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Title: Obras poéticas de Nicoláo Tolentino de Almeida, Tom. II
Author: Almeida, Nicolau Tolentino de, 1740-1811
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Obras poéticas de Nicoláo Tolentino de Almeida, Tom. II" ***


OBRAS POETICAS

DE

NICOLÁO TOLENTINO
DE ALMEIDA.


TOM. II.


LISBOA.

NA REGIA OFFICINA TYPOGRAFICA.

ANNO M.DCCCI.


_Com licença da Meza do Desembargo do Paço_.



QUINTILHAS


_Offerecidas ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde de S.
Lourenço_.



Ante vós, Claro Senhor,
Que pondes os sãos cuidados
De bons estudos no amor,
E que d'homens applicados
Sois o exemplo, e o protector;

Levanto sem pejo a voz;
Que essa alma nunca despreza
O pouco que encontra em nós;
Não produz a Natureza
Muitos homens como vós;

Pois vi outr'ora amparado
O discreto, e doce Brito,
Triste moço, em flor cortado,
Que hia alevantando o esprito,
De vossas luzes guiado;

Pois na vida lhe adoçastes
De seu fado a má ventura,
E não vos envergonhastes,
Quando a fria sepultura
Com as lagrimas lhe honrastes;

Se os seus Versos sonorozos
Inda repetis com mágoa;
E pensamentos saudozos
Vos trazem aos olhos agua,
Que os deixa, Senhor, formozos;

Hoje, outro triste vos faça
Nascer iguaes sentimentos;
Com os vossos pés se abraça;
Não tem os mesmos talentos;
Mas tem a mesma desgraça;

Nascido em baixa pobreza,
Quiz buscar huma Colu'na,
Foi sempre baldada a empreza,
Achou ingrata a fortuna,
Inda mais, que a natureza.

Em vão paternal ternura
Com vivo zêlo me assiste;
Foi trabalho sem ventura;
Crescia no Filho triste,
Com a idade, a desventura;

Das boas Artes no estudo
Bom Pai empenhar-me quiz;
Traçava o velho sizudo
Que fosse hum Filho feliz
Dos outros Filhos o escudo;

Forão seus intentos vãos;
Zombou desgraça importuna
Destes pensamentos sãos;
Para vencer a fortuna
Não ha lagrimas, nem mãos;

Cortado então de agonias,
Só esperei ter ventura,
Quando envolto em cinzas frias
Escondesse a sepultura
Meu nome, e meus tristes dias;

E em quanto o vento forceja,
E no mar, que em flor rebenta,
Meu fraco lenho veleja,
Demando, em tanta tormenta,
Por porto a Casa de Angeja;

Surgi em lugar seguro,
Onde achei mil acolhidos;
Clareou o dia escuro;
E meus molhados vestidos
Pelas paredes penduro;

De meu fado a força dura
Foi hum pouco enfraquecendo;
E ainda que em sombra escura,
Vem-me ao longe apparecendo
O bom rosto da Ventura;

Vossos Sobrinhos me dão
(Porque de meus males sabem)
Principios de protecção;
Mandai-lhe que em mim acabem
Esta obra da sua mão.

Mandai, que apressem o passo,
Que inda longe a méta vejo,
Pois nas supplicas que faço,
Não se vence com dezejo,
Vence-se á forca de braço;

Mandai, pois tendes direito,
Que o turvo mar arrostando,
A' corrente ponhão peito;
Fallai, Senhor, que em fallando,
O vosso mandado he feito.

Não vedes venal incenso
Por astuta mão queimado;
Fallo, Senhor, como penso;
Eu sei quanto he respeitado
O Erudîto São Lourenço;

Eu sei bem o alto conceito,
E as geraes estimações,
Que todos de vós tem feito;
Oiço ternas expressões,
Filhas de amor, e respeito;

Do bom Irmão, e Sobrinhos
Oiço tod'ora louvar-vos;
Oiço-lhes doces carinhos;
De poderem agradar-vos
Dezejão achar caminhos;

Vosso Irmão, e pregoeiro
Ordena, como sizudo,
Ao Illustre Neto, e Herdeiro,
Que das Sciencias no estudo
Vai dar o passo primeiro,

Se encoste a vós, sem desvio,
Qual ao Choupo Hera silvestre;
Que em Artes, virtude, e brio,
Mais, do que as regras do Mestre,
Siga os dictames do Tio;

Com que gosto oiço, e contemplo,
Dizer-lhe = Se ao bem te inclinas,
Segue-o no estudo, e no Templo;
Elle te dê as doutrinas;
Elle te sirva de Exemplo.

Mas sigo inutil empreza,
Pois sabeis quaes são seus peitos,
Mistura-se esta fineza
Com os sagrados direitos
Do sangue, e da natureza;

Todo o mundo, em vosso abono,
Põe na boca os corações,
E delles vos chama dono;
Oiço mil acclamações
Desde a plebe até ao Throno;

A geral estimação
Nos arma de authoridade;
Vinde pôr nesta obra a mão,
E dai-me felicidade,
Como me dais instrucção;

Sabeis a fundo, e de cór,
Tudo quanto ha bom, escrito;
Juntai extremos, Senhor;
Ao homem mais erudíto,
Juntai o mais bemfeitor.

Pois sabeis da Antiguidade
Prozas sans, e sã poezia,
Deveis sentir mais piedade;
Quem tem mais filozofia,
Vê melhor a humanidade:

Que eu nesta fresca espessura,
Entre estes Loiros sagrados,
Sentado sobre a verdura,
Cantarei Versos limados
A quem me fez ter ventura.

Deixarei em mil letreiros
O vosso Nome entalhado
Nos troncos destes Loureiros;
Possa elle ser respeitado
Do negro vento, e chuveiros;

Ramos sobre elle estendendo,
Dafne no seu peito o tome;
E eu, doces hymnos tecendo,
Verei ir o tronco, e o Nome
Té ás Estrellas crescendo.



QUINTILHAS


_Offerecidas ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Marquez do
Lavradio_.


Se os Versos, que outra ora fiz
Escutastes prompto, e attento;
E se aos pés, que abraçar quiz,
Achou grato acolhimento
A minha Muza infeliz;

Dai-me benignos ouvidos
A outros, em dôr traçados,
D'arte, e de enfeite despidos;
Pela verdade dictados,
E a vós, Senhor, dirigidos;

Em louvores não os fundo,
Pois sei que sempre os pizastes;
E co'as mais acções confundo
As do tempo, em que tomastes
As rédeas do Novo Mundo;

Mas se eu disser parte dellas,
Não me julgueis lizonjeiro;
Que vos poupo em não dizellas?
Se vedes, que o Mundo inteiro
As vai erguendo ás Estrellas?

Diz que vio a Capital
Cheia de pompa, e grandeza;
E que a ergueis a lustre tal
D'entre os braços da molleza,
Que he no Clima natural.

Que nas mãos, onde se encerra
Alto Poder respeitozo,
Mostraste na nova Terra
Ao Vizinho revoltozo,
N'uma a paz, em outra a guerra.

Que offreceis a vida então
Para a palavra salvar-se,
Que, os bons Reis não dão em vão;
Acção digna de contar-se
Entre as de Mario, ou Catão;

Que a mão que as Quinas voltêa,
Justiça ao Povo reparte;
E que igualmente menêa,
Ora as Bandeiras de Marte,
Ora as Balanças de Astiéa;

Mas já vossa austeridade
Minha narração reprime;
Ouvis-me contra vontade;
Perdoai, Senhor, hum crime,
De que foi causa a verdade;

Pois que vos não dão desvelos
Louvores, que préza a gente,
Eu vou, Senhor, suspendellos;
E vou dar-vos novamente
Motivos de merecellos.

A minha longa fadiga
Já sabeis qual he, Senhor;
Levai-me a bem, que a não diga;
Deixai-me poupar a dôr
De abrir huma chaga antiga.

Pintar Irmans desgrenhadas
Co'as creanças innocentes.
Nos débeis braços alçadas,
E de lagrimas ardentes,
Quasi sem fruto, banhadas.

Mostrar-lhe os olhos magoados,
Onde inutil pranto assiste,
Immoveis no chão pregados,
Nutrindo hum silencio triste,
Falsa paz dos desgraçados;

Contar-vos, que entre os Irmãos,
Diz o bom Pai, com ternura,
Que ao Ceo levantem as mãos;
Que assim se emenda a ventura,
E não com queixumes vãos:

Que he do espirito fraqueza
Perder suspiros no vento;
Que venção a natureza;
Que fação co'soffrimento
Honroza a dura pobreza;

Não lhe ver de dor sinais;
Ter no rosto olhos serenos,
E no peito agudos ais;
Que porque se escutão menos,
Por isso me córtão mais:

Dar-vos huma inteira idéa
Da desgraça minha, e delles,
Pintura de pranto chêa;
Se he preciza, he para aquelles,
A quem não dóe dor alhêa.

As almas tão bem nascidas,
Como a vossa vejo ser,
Para serem condoîdas,
Não tem precizão de ver
Correr sangue das feridas;

Sabeis, que soffro a impiedade
De vã fortuna traidora;
Mudai pois de heroicidade;
Vinde pleitear agora
A cauza da humanidade;

Por vós tirar não podeis
Penas, que a alma me abafárão;
Mas ante o Throno valeis;
E se o Sceptro vos fiárão,
Que vos negarão os Reis?

Reger-lhe os vastos Estados,
Ir dar-lhe hum novo esplendor,
São feitos famigerados;
Mas inda o será maior
Ir pedir por desgraçados,

Disse a Cezar o Orador,
Que os Soldados tinhão parte
No perigo, e no louvor;
Que fosse em outro Estendarte
Elle só o Vencedor;

Que era, de doce brandura
O deixar-se então vencer,
Mór victoria, e mais segura;
Onde não tinhão poder
Nem ferro, nem má ventura.

Vencei vós sem ter Soldados;
Fazei de dias de dor
Dias bemaventurados;
E possa essa mão, Senhor,
Mais do que podem meus fados;

Claros Avós imitastes,
Que o Mundo apenas abrange;
No berço palmas achastes;
Dos Heróes que vio o Gange,
O sangue, e as acções herdastes;

Remotos Povos vencêrão,
E mares bravos abrindo;
As Quinas desenvolvêrão;
Ante eles o Gange, e o Indo,
Tintos de sangue corrêrão.

Vós, que em obras semelhantes
Fostes ser a Copia honroza
Do que elles fizerão d'antes,
Na série maravilhoza
Das vossas acções brilhantes;

Consenti, que a larga historia,
Que Almeidas levanta aos Ceos,
Lhes deixe no Altar da Gloria
Pendente, entre os mais Troféos,
Huma negra Palmatoria.



_A' Illustrissima, e Excellentissima Senhora Condeça de Tarouca, na
occasião do seu Casamento_.


Senhora, o Forte da Estrella,
Chorando o bem que perdeo,
Das suas justas saudades
Por portador me escolheo;

Quiz que eu viesse contallas
Ao som desta rouca Lyra,
De longos annos affeita
A acompanhar quem suspira;

Não fallo nos ternos Pais;
Nelles a alta Jerarquia
Tempéra saudozo pranto
Com o pranto da alegria;

Ao nome dos seus Passados
Planos caminhos achárão,
Unindo ao sangue de Heróes
O sangue de Heróes que herdárão;

Não fallo no amavel Conde;
Esse não faz compaixão;
Tem seges, tem bons cavallos,
Tem o remedio na mão;

Sobre rápidos ginetes,
Quebrando a dura calçada,
Com o Francisco a reboque,
Andará sempre na estrada;

Tambem das caras Irmans
Não venho as mágoas pintar;
Co'a terna Mãi muitas vezes
As virão desafogar;

Fallo da triste Familia,
Que em amoroza manîa
Accuza o Ceo, que vos deo
Formozura, e Fidalguia;

Dons, de seu mal cauzadores;
E que deixão coroado,
Na mais illustre Conquista,
O mais ditozo Soldado;

Ralham delle a toda hora;
Foi cauza do seu tormento;
Elogião, e praguejão
Seu alto merecimento;

Se he Soldado, siga a Guerra,
E as funestas glorias della;
Ataque milhões de Fortes,
Mas deixe em paz o da Estrella;

Tem figura, tem talentos;
Tem alta Estirpe preclara;
Oxalá que assim não fosse,
Ella então o desprezára; =

Mas, Senhores, perdoai-lhes;
A's vezes na grande dor
Fallão palavras de raiva
A linguagem de amor;

O Silva, o Authomato honrado,[1]
Anda mais abstracto, e mudo;
Põe o doce antes da sôpa;
Queima o Café, quebra tudo;

[Nota de rodapé 1: Copeiro.]

O hirsuto, austéro Rodrigues,
Semblante de poucas pazes,
Desafoga a sua dor,
Dando murros nos rapazes;

Vossa Aya, de tres idades,
Em canto escuro assentada,
Vos manda calado pranto,
N'um cobertor abafada.

Outras vezes esquecida
De quanto seu Fado he crú,
No queixo ajustando o lenço,
E sobrepondo o bajú:

Ergue ao ar cansados ossos;
E sem temer ventos frios,
Tirando-lhe Amor o pezo
Dos gelados pés tardios;

Do bom costume enganada,
E com a uzada cautela,
Para dar, e ter, bons dias,
Vos vai abrir a janela;

A janela a desengana;
Renova-lhe a dor no peito;
Chama em vão o vosso nome,
Abraçando hum ermo leito.

Do peito das mais Creadas
A saudade se não risca,
Desde as Ayas ralhadoras,
Té á ladina Francisca.

E pois que o sangue de Reis,
Pois que a Augusta Ceremonia,
Bem a pezar das Creadas,
Vos trouxe a Santa Apollonia;

Ide, Senhora, mil vezes
Curar-lhes a fresca chaga;
Seu pranto he filho de amor,
E amor com amor se paga;

Na rica, airoza Berlinda,
Dando ao digno Espozo parte,
Aos patrios lares vos leve
Amor nos braços de Marte.

O Téjo, abaixando as ondas,
Vossos pés virá beijar;
Vai das Ninfas que creou,
Ver a Ninfa Tutelar.

Os Prazeres com os Rizos
Sejão a vossa equipagem;
Revôem em torno as Graças,
De quem sois a inveja, e a imagem:

Entrai nos tectos dourados,
Hoje lugar de saudade;
Ide, dos braços do Amor,
Lançar-vos nos da Amizade;

Levai-nos as doces noites,
Em que a voz que se escutava,
Sobre as azas da harmonia,
Nos nossos peitos entrava;

Quando o Cómico travêsso,
Entre geitos, e corcovos,
Habilmente arremedava
Todos os Muzicos novos,

O triste, calado Cravo;
Já não sente a déstra mão;
Apenas he perseguido
Pelo Senhor Dom João.[2]

[Nota de rodapé 2: Menino.]

Ide, Senhora, levar-nos
No vosso rosto a alegria;
Fazei á triste Junqueira,
O que faz o Sol ao dia;

Mas, Senhora, a minha Muza
Tem talvez errado os Cultos;
Cuidando ter feito obsequios,
Talvez tenha feito insultos;

Dirão, que, trocando as cordas
Forão meus sons desiguaes;
Que errei em fallar aos Filhos,
Sem fallar primeiro aos Pais.

Que podia esta Embaixada
Se désse em mais habil mão,
Cumprir as leis da Saudade,
Sem violar as da razão;

Mas, Penalvas, dito, dito;
Defendo o meu sacrilegio;
Sois tudo; mas não sois Noivos,
E he este o seu privilegio.



_No dia dos Annos da Illustrissima, e Excellentissima Senhora D. Maria
de Noronha, hoje Condeça de Valladares_.


Senhora, os pobres vestidos
Do vosso humilde Compadre,
Não o deixão ir aos Annos
Da sua Illustre Comadre;

O conhecido Colete
De bordadas guarnições,
Encartado ha longo tempo
Em Colete das Funções;

Sobre os seus cançados annos,
De humido Inverno Assaltado,
Cheio de invenciveis manchas
Me foi hoje apresentado;

Em vão bemfeitor miôlo
Lhe esfrega o quarto offendido;
A minha choroza Mana
Dá o cazo por perdido;

E se assim me apresentasse
A tão alta Companhia,
As suas nódoas serião
Manchas da seda, e do Dia;

Do Tempo a fôice raivoza
Não me dá só hum revéz;
Além de me fazer velho,
Faz-me tambem descortez;

Mas elle honrou hoje o Mundo;
Sois do Mundo ornato, e inveja;
Deo hoje mais huma paga
A' Illustre Caza de Angêja.

Sua mão, que aperfeiçoa
Altos dons da Natureza,
A huns lindos, modestos olhos
Vai augmentando a belleza;

Altêa a airoza figura
Sobre a das Graças moldada;
A huma alma a mais digna, e nobre
Dá a mais digna morada;

Justo Tempo, eu abençôo
O teu poder desigual;
E em honra de tantos bens,
Eu te perdoo o meu mal;

Cem vezes nas tuas azas
Nos mande este dia o Ceo;
As Virtudes o consagrem
Nos altares de Hymenêo.

E Vós, Illustre Senhora,
Perdoai Coletes rotos;
Valem mais, que inuteis sedas,
Puro incenso, puros votos;

Quiz mandallos em bons versos;
Suou em vão meu topete;
Fui achar a minha Muza
Como achei o meu Colete.



_A' Illustrissima, e Excellentissima Senhora Marqueza de Alegrete,
quando lhe nasceo huma Filha_.


Senhora, he couza sabida,
Que aos Deozes não são vedados
Os escondidos segredos
Do escuro livro dos Fados;

E pois que em tempos antigos
Já tive alguma valia
Co'aquelle, a quem coube em forte
O governo da Poezia;

Não esperando do Tempo
O vagarozo progresso,
E desejando augurar-vos
O vosso feliz successo;

Na raiz do alto Parnazo,
Curvando o humilde joelho,
Exclamei = Se aqui se escutão
Votos de hum Poeta velho,

Não te peço, esquivo Apollo,
Teus verdes, sagrados loiros;
Não aspirão a coroas
Desta testa os velhos coiros;

Abre, sim, a densa nevoa
Do vindoiro tempo escuro;
E ante meus ávidos olhos
Rasga as sombras do futuro;

Saiba meu justo dezejo
Quanto o destino promette
Aos nossos ardentes votos,
E aos da assustada Alegrete;

O Deos, que nunca em mim vio
De Odes moiras a manía,
Que sem o assumpto honrarem,
Lhe deshonrão a Poezia;

Que em Oiteiros de Oratorio
Não lhe puz a Lyra ao frio,
Arriscando-a a ter por paga
Ou pedrada, ou assobio;

E muito mais porque vio,
Que da minha petição
Erão sagrados motivos
A amizade, e a gratidão;

Fez fuzilar em meus olhos
Nova luz, vedada, e pura;
E de tudo o que então vi,
Vos vou fazer a pintura.

Vi, Senhora, as loiras Graças
Com doce, e rizonho aspeito,
Tecendo engenhozas danças
Em torno de hum aureo leito;

E abrindo as ricas Cortinas
Trazerem nos castos braços
O digno, e precioso Fruto
De Illustres, sagrados laços.

Sobre o mimoso semblante,
Em que os seus dons inspiravão,
Dos mais altos Pertendentes,
Mil suspiros auguravão;

Os Prazeres sobre as azas
O berço lhe rodeavão;
Fortuna lhe abria os cofres,
As Virtudes a embalavão;

Vi Penalvas, vi Angejas,
Que aos Ceos mil hymnos mandavão;
Aos Ceos, que as duas Familias
Novamente abençoavão:

Vi a roda das Creadas,
Que á Menina dando vai,
Humas, os olhos da Mãi,
Outras, a boca do Pai;

Mas Apollo aqui fechando
As altas couzas futuras,
E deixando o pobre velho
Alegre, mas ás escuras;

Me disse = Conta o que viste;
O mais, em tempo vindoiro,
Fiel, apurada historia,
O dirá em letras de oiro;

Corri: mas trémulas pernas
Tem sempre estrada comprida;
E pois acho a profecia,
Gradas aos Ceos, já cumprida,

Beijo respeitozamente
Estas faixas, que envolvêrão
Aquella, a quem dão a vida
Os que a minha protejêrão;

= Recebe, oh Recem-nascida,
Terno amor, alto respeito;
Teus Avós, teus claros Pais
Te derão este direito;

E tu, Formoza Alegrete,
Que depois de erguida a meza,
Ficavas co'as velhas Aias
De mágicos filtros prêza;

Quando eu a teus pés contava,
Mentirozo historiador,
Ora a do Caixão de vidro,
Ora a das Cidras do amor;

Quando os mesmos tenros annos
A tua Filha contar,
Todos os dias virei
Meu officio exercitar,

E em tanto, a pezar do tempo,
Que a fronte me vai gelando,
Com a rouca Lyra ás costas
Pelo Parnazo trepando:

Vou sentar-me entre os Loireiros,
Que réga Castalia fria;
Onde revôam em bandos
Os genios da Poezia;

E co'a testa descuberta
A' viração bemfeitora,
Traçarei mais dignos versos
Do que estes, que ouvis agora;

Com tempo os irei fazendo;
O Deos também me fez ver,
Que sobre este mesmo assumpto
Tenho muito que escrever.



_Na occazião em que o A. hia ver o Varatojo_.


Meu Amigo, duro Amigo,
Fatal, rígido Banqueiro,
Motivo dos meus pezares,
Herdeiro do meu dinheiro;

Em taes termos me deixaste,
Que sou deste rancho o nôjo;
E co'as lagrimas nos olhos
Parto para o Varatojo;

Por ti filho da pobreza,
Irei ser naquelle mato,
Qual foi São Sebastião,
Não na vida, mas no fato;

Vai tu seguindo a fortuna,
E leva a bandeira alçada,
De tarde na laranginha,
A' noite na Arrenegada;

Até que voltando a roda,
Mande teu fado inimigo,
Que deixes crescer as barbas,
E venhas viver comigo:

Vem, e traze o teu baralho,
Ministro dos meus destroços;
Farei do vicio virtude,
Apontando a Padres nossos;

Vem viver entre altas brenhas;
Vem curtir as minhas dores;
Traze o pranto dos Parentes,
Traze as pragas dos Crédores.

Não falla vão Agoureiro,
De cujas palavras rias;
Meus trabalhos me fizerão
Mestre nestas profecias.

Não te fies em ventura;
Quem joga, tem o meu fim;
Outrem te dará os gostos,
Que tu me tens dado a mim.



_Resposta a huma Carta, que em boa Poezia citava o A. por huns Versos,
que tinha promettido_.


A tua polida Carta,
Que honrou hum Poeta razo,
Escrita em pura linguagem,
E assignada no Parnazo;

Da mais injusta ambição
Traz testemunhos fieis;
Possues grossos thezoiros,
E citas-me por dez reis?

Quem do doce Anacreonte
Bebeo o estilo divino,
Quer prostituir seus olhos
Co'as Trovas do Tolentino?

Pago, em fim, divida louca;
Mas quem quer pontualidade,
Cuide tambem em pagar
As dividas da Amizade;

Sabes que intento imprimir;
E porque o Povo não fuja,
Sabio Amigo, emenda, risca,
Põe sabão na roupa suja;

Não te vendo falso íncenso;
Es Juiz da Confraria;
Oxalá que altos negocios
Se tratassem em Poezia;

A Paz, a fugida Paz,
Voltára seu alvo cóllo;
E dera brandos ouvidos
A' branda Lyra de Apollo;

Reziste humana cabeça
A' mais discreta razão;
Mas ao poder da harmonia
Não reziste o coração:

Faze, pois, o que eu te peço;
Que inda que ha vótos diversos,
Se lhe pões a tua lima,
Quem morderá nos meus Versos?

Dá-lhe, depois, teus louvores;
Comprará toda Lisboa,
Se huma vez te ouvir dizer =
Que comprem, que a Obra he boa;

Farta-me a bolsa; e se queres
Ver tambem minha alma farta,
Manda riquezas de Athenas
Embrulhadas n'outra Carta.



_Offerecendo hum Perum em caza, aonde todos os Domingos davão ao A. este
prato_.


Senhora, tambem hum dia
Entrarei co'a frente erguida;
Não serei na vossa meza
Dependente toda a vida;

Nem sempre abatido pejo
Dirá nesta cara feia
Quanto doe a hum peito altivo
Matar fome em caza alheia;

Airozo, gordo Perum,
He meu soberbo prezente;
Traz inda as pennas molhadas
Co'pranto da minha gente;

No Santo Dia esperavão,
Quebrando antigo jejum,
Cravar inexpertos dentes
Neste primeiro Perum;

A russa, magra Jozefa,[3]
Ergueo queixume sentido;
Custou-lhe mais esta auzencia,
Que a do defunto Marido.

[Nota de rodapé 3: Creada.]

O loiro, alvar galleguinho
Chegou aos olhos seu trapo;
Tinha vistas sobre a carne,
E muitas mais sobre o papo.

Seu almôço requerendo
Em luzindo a madrugada,
Na esquerda, grossa fatia
D'ambas as partes barrada;

Na dextra, com branda cana
O seu pupîlo guiava;
Em tenras, públicas malvas,
Para si o apascentava;

Quando lhe mandei trazer-vos
O bom companheiro seu,
Pedindo-me côxos mezes,
Me disse, que o trouxesse eu.

Eu o trago; a offerta he pura,
Mas a tenção a envenena;
Traz escondida huma uzura,
Maior, que a da meia sena.[4]

[Nota de rodapé 4: Partido de jogo.]

Com hum sorrizo acceitai
O atraiçoado convite;
Vem a morrer huma vez,
Porque muitas resuscite.

Curai todos os Domingos
A minha doença interna;
Sobre a meza milagroza
Seja esta ave, huma ave eterna;

De outra, que finge a Poezia,
Trocai em verdade a pêta;
E seja hum negro Perum
A Fenis deste Poeta;

Na ondada, pia toalha,
Co'a benção da vossa mão
Seus frios, despidos ossos,
De carne se cubriráõ;

Consenti, que este ouco peito
Ao prodígio se consagre;
E que dentro em si colloque
A mór parte do milagre;

Quanto ao Padre Prégador,[5]
Meu voto he não convidallo;
Porque ha de comer o assumpto,
Muito melhor que prégallo.

[Nota de rodapé 5: Capellão da Caza.]



_A huma Preta, que pertendia que a obsequiassem_.


Domingas, debalde queres,
Nesse canto da Cozinha,
Vencer a invencivel teima
Da rebelde carapinha;

Em vão te arripia a frente,
De que zomba o Deos de Amor,
Alvo côto de pomada,
Furtado do Toucador;

Debalde tufado laço
De atadeira fitta Ingleza
Te assombra a lêveda pôpa,
Rissada por natureza.

Debalde altêas as ancas,
Esguias, e enganadoras,
Co'as velhas algibeirinhas,
Que vão deixando as Senhoras,

Amor, fingindo dotar-te,
Te poz, com traidora mão,
Junto dos dentes de neve,
Faces tintas de carvão;

Inda que ancião pezado,
Desprézo teus vãos intentos;
Debaixo de murchas cans
Nutro altivos pensamentos.

Vejo a quebrada madeixa
Já tornada em gêlo frio;
Tudo o tempo me levou,
Mas não me levou o brio.

Debaixo da Zona Ardente
Jurar-te-hia amor, e fé;
Mas não tem culto na Europa
As Deidades de Guiné;

Se ás vezes te ponho os olhos,
Não he de amor sinal certo;
São dezejos de levar-te
A' caza de João Alberto.[6]

[Nota de rodapé 6: Comprador.]

A engomada cazaquinha
Te descobre novas faltas;
Para outro corpo foi feita,
Dizem-no as feições mais altas.

Já n'outros pés teus çapatos
Soffrêrão do tempo o açoite;
Cansada, fendida sêda,
Mostra dedos côr da noite;

E pois que a Amor queres dar-te,
Eu te aponto hum Xafariz,
Onde aches dignos amantes
Assentados em barris;

Acharás o Pai Francisco,
Homem a bulhas contrario,
Já duas vezes Juiz
Na Irmandade do Rozario;

Acharás o forro Antonio,
Que o tabaco, e vinho enjôa;
E tem nos calmozos Junhos
Caiado meia Lisboa;

Verás esbelto Crioilo,
Dado ao vento o peito nû,
Levantando airosos saltos
No manejo do barubû;

Que ávidos cães enxotando,
Tem, com braço arregaçado,
Nas êrmas praias do Téjo
Cem cavallos esfolado;

Nestes, vaidoza Domingas,
Assenta bem teu amor;
Chovão settas de teus olhos
Em peitos da tua côr;

Vai da janella da escada
Acolher, com doce agrado,
Os suspiros que te envião,
Ao som do londum chorado;

E deixa de atormentar-me
Com tuas loucas idéas;
Também sinto dores proprias,
E escuto pouco as alhêas;

Sim, Domingas, nós marchamos
Na mesma infeliz estrada;
E do amor, que eu te não pago,
Assaz estás bem vingada;

Tu puzeste em mim teus olhos,
E eu fui pôr em Marcia os meus;
Que me paga mil extremos,
Assim como eu pago os teus;

Marcia, que em alçando os olhos,
Mil settas nesta alma crava;
E em cuja caza tu tens
A dita de ser escrava;

Tens-me a mim por companheiro;
Temos o mesmo Senhor;
Tu, por cazos da fortuna,
Eu, por castigo de Amor;

E pois que eu não posso amar-te,
Seguirás melhor esteira,
Se de meus ternos suspiros
Quizeres ser mensageira;

Em vendo que ella está só,
Vai-lhe expôr a paixão minha;
Eu peço a Amor, que entretanto
Tóme conta na cozinha;

Amor lavará teus pratos,
E escumará a panella,
Em quanto tu a seus pés
Dizes, que eu morro por ella;

Teus grossos, trombudos beiços,
Lhe vão expôr meus cuidados;
Hão de ser melhor ouvidos,
Que sendo por mim contados;

Pinta-lhe as lagrimas tristes
Em que meu rosto se lava;
Por hum infeliz cativo
Peça huma ditoza escrava;

Dize-lhe, que não se assuste
De meu cabello nevado;
Jura-lhe que não são annos,
Mas penas, que me tem dado;

Que a cauza das minhas rugas
He o seu desabrimento;
E vai da minha velhice
Fazer-me hum merecimento;

Ah Domingas, se em seu peito
Me fazes achar piedade,
Tambem eu juro fazer
A tua felicidade;

E pois que o teu coração
Sómente he baixo, e grosseiro,
Em preferir liberdade
A tão feliz cativeiro;

Por amor serei mesquinho;
Meus gastos verás cortar;
Para ajuntar-te quantia
Com que te possas forrar;

Cheia de teus beneficios
Minha mão agradecida
Te irá pôr em larga praça
Rendozo modo de vida;

E assentada em novo estrado,
De fasquiada madeira,
Ondeando ao som do vento
Trémulo tecto de esteira,

Teus negros, airozos braços,
Chocalhando hum assador,
Encherão famintos peitos
De castanhas, e de amor;

Terás bojudas tigellas
Sobre incendidos tições,
Onde fêrvão em cardumes
Saborosos mexilhões;

Teus doces, sonóros écos,
Sem mentir, apregoaráõ
O azeite de Santarem,
O cravo do Maranhão.

Domingas, segue esse rumo;
Que teu amor reloucado,
Sem te fazer venturoza,
Me deixa a mim desgraçado;

E se sem dó dos meus ais,
Teimas nos projectos teus,
Fallando nos teus amores,
Em vez de fallar nos meus;

Trocando boa amizade
Por entranhado rancor,
Vou descubrir teus intentos
A teu austéro Senhor;

Que em zelo honrozo inflammado,
Sem ser precizo atiçallo,
Vai a caza do Lagoia[7]
Trocar-te por hum cavallo.

[Nota de rodapé 7: Comprador]



CARTA


_A hum Amigo, louvando-lhe o estado de cazado_.


Foi este o ditozo dia,
Que te deo a Espoza bella;
Doce, sólida alegria,
Para ti, junto com ella,
No mesmo berço nascia;

Por tua maior ventura,
Natureza lhe quiz pôr,
Entre os Dons da Formozura,
Outro dote inda maior,
Que he, alma innocente, e pura;

Eu sei teu costume antigo,
A Mulher, que he só formoza,
Não vale tudo comtigo;
Soubeste escolher Espoza,
Em quem tens Espoza, e Amigo;

Quer sempre ter hum Senhor
Nosso humano coração;
E na ventura maior
Inda sente em si hum vão,
Que só enche o casto amor;

De quantos males te eximes,
Dando ao teu tão bom Senhor?
Damnozas paixões reprimes;
Recebes das mãos do Amor
Os prazeres, sem os crimes;

Céga mocidade errada,
A' conjugal união
Quiz chamar vida cansada;
Diz que he triste escravidão,
De mil pensões carregada.

Chama á paz hum dissabor;
Diz, que de susto, e desdens
Se alimenta o Deos de Amor;
E que a certeza dos bens
Lhes diminue o valor;

Fechão olhos á verdade,
Caminhando apôs seus erros;
E em falsa tranquilidade,
Ao som de pezados ferros,
Vão cantando liberdade;

Mil remórsos na alma estão,
Que inda que o rosto os suffoca,
Roendo as entranhas vão;
Que importa rizo na boca,
Se ha punhaes no coração?

Amor he fogo sublime,
Que nas almas se accendeo;
As outras paixões reprime;
Elle he dadiva do Ceo,
O abuzo he que o faz ser crime;

Beija, Amigo, os teus grilhões;
Hum para o outro erão feitos
Os vossos bons corações;
Crava em vossos ternos peitos
Santo Amor os seus farpões;

Onde achas pessoa estranha,
Que não contrafaça o rosto,
Porque vê, que assim te ganha?
Quem he que na pena, ou gosto,
Com verdade te acompanha?

Contas teus cazos sem medo
A quem por amigo passa;
Fiaste-te em rosto lêdo;
Foste no meio da praça
Assoalhar teu segredo;

Mal os homens conheceo
Pura amizade enganada,
O santo rosto escondeo,
E tornou-se envergonhada
Para o Ceo, donde desceo;

O amigo que te rodeia,
Véste das tuas paixões;
Com ellas te lizonjeia;
São raros os corações,
Em que dôa dor alheia;

Quando acertares de ler,
Que houve entre homens união,
O Escritor a quiz fazer;
Não os pintou como são;
Mas como devião ser;

São coizas imaginadas
Dos _Nizos_ o amor profundo;
São fábulas bem contadas;
Ou os não houve no Mundo,
Ou não deixárão pégadas;

Puro amor, limpa verdade,
Só entre Esposos estão;
Desce a elles a Amizade;
Traz-lhes co'a santa união
Huma só alma, e vontade;

Communica á Espoza amada
Teus mais internos cuidados;
E vive em paz descançada
A vida dos bem cazados,
Vida bemaventurada;

Sem receio de perigo
Dorme sono saborozo;
Que não tens junto comtigo;
Lisonjeiro suspeitozo,
Traidor, com rosto de amigo;

Tens por doce companhia
Aquella, que o justo Ceo
Com mil virtudes te invia;
Tu es o cuidado seu,
E como seu, te vigia;

Goza em socego profundo
Tão pura felicidade;
Tens hum thezoiro fecundo;
Tens amor, tens amizade,
Tens todos os bens do Mundo.

E se ha entre homens desvelo
(Coiza que aqui contradigo)
Conta com hum, que he singelo;
E foi sempre teu amigo,
Quanto os homens podem sêlo.



CARTA


_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde de Villa Verde D. Jozé
de Noronha, hoje Marquez de Angeja_.


Senhor, eu não sou culpado;
Traçar outros Versos quiz;
Mas tenho perdido o trilho
Com as Trovas do Luiz;

A Muza, que ha pouco as fez,
Outra rima não me inspira;
Por mais que mordo nas unhas,
E que em vão tempéro a Lyra.

Acceitai meus bons dezejos;
E como homem de razão
Não desprezeis baixos Versos,
Quando os dicta o coração;

Minhas fiéis expressões,
Filhas de amor, e saudade,
O que não tem em poezia,
Lhe vai supprido em verdade.

Em quanto co'as soltas vélas,
Forçadas do vento rijo,
Demandava a Galeota
Os areaes do Montijo;

Em quanto ao Principe Augusto
O patrio Téjo se humilha,
E sobre os rasgados hombros
Lhe leva a soberba quilha;

Meus olhos, meus tristes olhos,
Nas aguas seguindo a esteira,
De lagrimas se arrazavão
Sobre as praias da Junqueira.

Dentro do cansado peito
Se ateou crua peleja;
Senti huma guerra viva
De saudades, e de inveja;

Não era de baixa inveja
Affecto grosseiro, e injusto;
Era invejar ao Creado
Ir junto a seu Amo Augusto.

Senhor, não sou atrevido;
Ha lugares derradeiros;
O meu dezejo me punha
Entre a chusma dos Remeiros;

Com as faces açoitadas
Dos agudos ventos frios,
Entre os borrifos das ondas,
E as pragas dos Algarvios;

A Apóllo pedindo a Lyra,
Que só para isto invéjo,
Chamára das frias grutas
As loiras Filhas do Téjo;

Que escutando o som divino
Entre as húmidas moradas,
E levantando nas ondas
Suas cabeças doiradas;

De tal Hospede soberbas
O lenho rodearião;
E as aguas co'branco peito
A' porfia lhe abririão;

O fatídico Protêo,
Cheio de saber divino,
Revelára ao novo Heróe
Os segredos do Destino;

Famozas acções cantára,
Levantando a sábia voz,
Moldadas sobre as historias
Dos Augustos Pais, e Avós:

Mas, Senhor, a minha Muza
Sem tino ao ar se remonta;
E vai-se mettendo em obra,
De que não póde dar conta;

Esta levantada empreza
Até a _Boileau_ deo sustos;
Dizia que só Virgilios
Podião louvar Augustos;

He queimar-lhe baixo incenso,
Cansallo com Versos frios;
Amor respeitoso, e votos
Serão os meus elogios:

Vós, Illustre Villa Verde,
Com quem sempre me hei achado,
Fazei que seja o meu nome
A seus ouvidos levado;

Se lhe der acolhimento,
Sigamos de Horacio as traças,
Façamos que a par das Muzas
Marchem as rizonhas Graças;

Dizei-lhe, que na Folhinha,
Com letras doiradas puz
Aquelles formozos dias
Das escadas de Quéluz;

Aquelles dias ditozos,
Quando a seus pés ajoelhado,
Era ao abrigo das Muzas
Benignamente escutado;

Quando, tendo já traçado
Melhorar-me os meus destinos,
Se dignava perguntar-me
Como estavão os meninos.

Quando me mandou, que em verso
Contasse como escapára
Naquelle funesto encontro
Dos taes Carreiros da Enxára;[8]

[Nota de rodapé 8: Allude ás Decimas.]

E se inda o favor mereço
De tão alta Protecção,
Dizei, que mudei de Officio,
Porém de ventura, não;

Que não me enganão zumbaias
Dos humildes Supplicantes;
Porque a bolsa mais sincera
Trata-me inda como dantes.

Que inda os cães atrás do Russo
Esperão nelle a merenda,
Quando eu vou para Lisboa
Fazendo Versos, e renda;

Que dando aos oucos ilhaes,
Vai marchando triste, e só;
Que as mais seges fazem sécia,
Porém que a minha faz dó;

Que até o boçal Gallego,
Que eu tinha por innocente,
Já me conhece a fraqueza,
E já me revíra o dente;

Depois, que as vélas de cebo
Já cerceia no topete,
E vai conquistar o Bairro
De polainas, e colete;

Depois que em chapeo de Braga,
Que só põe em dia claro,
Cozeo em devota rosca
Candêa de Santo Amaro;

Depois que em déstros meneios
O suado corpo bole,
E abre guerra ás Cozinheiras
Ao som da Gaita de fole;

Já responde focinhudo,
E eu me cálo as mais das vezes;
Porque, pelos meus peccados,
Sou réo de huns poucos de mezes:

Mas, Senhor, este Epizódio
Vai sendo dos arrastados,
O Gallego veio nelle,
Como me vai aos recados;

Se o julgardes enfadonho,
Ao Principe o não conteis;
Nos factos da minha vida
A' vontade escolhereis;

Pintai-lhe a triste familia,
Gritando-me por dinheiro;
Hoje o rol de hum Alfaiate,
A' manhã o de hum Tendeiro;

Pintai-lhe hum Procurador,
Que aqui vem todos os dias
Saber da minha saude
Da parte das Senhorias;[9]

[Nota de rodapé 9: Das Cazas.]

Enfeitai de côr alegre
A funesta narração;
Marchão ás vezes os rizos
Ao lado da compaixão;

E pois que os vossos esforços
Nunca me tem sido vãos,
Acabai, benigno Conde,
Esta obra das vossas mãos;

De hum mal fadado Poeta
Trocai em prazer as penas;
Já diante d'outro Augusto
Fez o mesmo outro Mecenas.



CARTA


_No dia dos Annos do Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Marquez de
Angeja D. Jozé de Noronha, estando o Author doente_.


Senhor, se vos são acceitos
Pobres Versos, mal limados,
Entre vidros, e receitas,
Em triste leito traçados;

Se de hum sombrio doente
A fúnebre poezia
Os prazeres não perturba
Deste faustissimo Dia;

Consenti, que a branda Lyra,
Por vós outr'ora escutada,
E que teimoza molestia
Tem ha muito pendurada;

Sobre este cansado peito,
Ferida com debil mão,
Mande ao Ceo singelos hymnos,
Nascidos do coração;

Consenti, que eu louve o Dia,
Para mim assinalado,
Qne raia em nosso Horizonte,
De nova luz coroado;

Dia, que vos vio nascer;
E que quiz trazer comsigo
Quem une ao nome de Grande,
O santo nome de Amigo;

Quem não quer só a Nobreza
De Illustres Antepassados;
E mais ama huma virtude,
Que cem Titulos herdados;

Quem sabe, que o vir honrar
Dos pequenos a baixeza,
He entre os que nascem Grandes
A verdadeira Grandeza;

Quem a favor de infelizes
Traz sempre occupada a idéa;
E estima a fortuna propria,
Só para fazer a alhea;

Cem vezes, formozo Dia,
Vem o Horizonte doirar;
Nunca possão negros ventos
Tuas luzes perturbar;

Tu nos déste em peito illustre,
Que se doe de alheios ais,
Hum coração adornado
De mil Virtudes Morais;

Senhor, eu não doiro enganos,
Que venal lizonja approva;
Sabidas verdades digo,
E sou dellas huima prova;

Sou hum dos muitos exemplos
Do vosso bom coração;
A minha felicidade
Foi obra da vossa mão;

Razoando em meu favor
Contra teimozos destinos,
Felizmente pleiteastes
A cauza dos meus Meninos;

Ao bom Principe pedistes,
Que com mão compadecida,
Lhes concedesse humas ferias,
Que durassem toda a vida;

Pedistes depois, Senhor,
Que a sua Real Grandeza
Se dignasse de arrancar-me
D'entre os braços da pobreza;

Sei que nelle he natural
Ter dó das alheias penas:
Mas ouve-as melhor Augusto,
Quando lhas conta Mecenas;

Por este modo alegrastes
A triste familia minha;
E em caza nos levantastes
O Interdicto da Cozinha:

Já hum segundo Frizão,
Pendurada a lingua velha,
Dá reboque, como póde,
A' antiga meia parelha;

Já o sórdido Gallego,
Meu antigo companheiro,
De gravata, e carrapito
Arvorado em Boleeiro;

Açoitando surdas ancas
De dois Sendeiros roazes,
No mesmo Bairro apregôa,
Ora barrîs; ora pazes;

Mas, Senhor, deixando graças,
Pois não as pede a materia,
E pedindo á minha Muza,
Que seja comvosco séria;

Rogo ao Ceo vos dê mil annos,
Já que são tão bem gastados;
Annos que achareis depois
Em Livro de Oiro apontados;

E se em dia de Mercês
Ides de Semana entrar,
Seja a Mercê destes Annos
O meu nome apprezentar.

Ao Principe, ajoelhando,
Em favoravel momento,
Por mim, Senhor, lhe jurai
Eterno agradecimento;

E eu, em largando este leito,
Já sei a hora opportuna
De poder ajoelhar-lhe,
Quando elle chega á Tribuna;

E pondo-me ao pé do Ginja,
Que na _Náo Ajuda_ falla;
E faz a todos os _Glorias_
Continencias co'a vengalla;

Surdo á historia do naufragio,
Com que elle ás vezes me afferra,
Rezarei ao Deos do Ceo,
E assistirei aos da Terra.



CARTA.


_Tendo mandado huma Senhora ao Author Vinho da Madeira com huma Carta em
boa Poezia_.


Hum humilde admirador
Da vossa bondade, e estilo,
Beija a Carta precioza,
Que veio honrallo, e instruillo;

Desde hoje, do Mestre Horacio
Minha alma a lição escuza;
Quiz a minha Bemfeitora
Ser tambem a minha Muza;

De fino licor mandastes
A minha cava prover;
A vossa mão generoza
Sabe dar, como escrever;

A' parca meza assentado,
Em Vinho, e Carta pegava;
Hia bebendo, hia lendo,
E tudo me embebedava;

Deixo o velho Anacreonte,
Hoje mettido a hum cantinho;
Sua meza nunca teve
Tão bons Versos, tão bom Vinho;

Se os teve, Vós o roubastes
Por minha felicidade;
Já cá tem o Vinho, e os Versos
Quem delle só tinha a idade;

Das escumas do Madeira
Vejo nascer a alegria;
Com as azas affugenta
A minha melancolia;

Já se perturba a cabeça;
Já tenho emprestadas cores;
Já começão a esquecer-me
As molestias, e os Crédores;

O tal Horacio enganou-se;
Não conhecêo a parreira;
Não se chamava Falerno;
Se era bom, era Madeira;

He bom, mas tira o juizo;
Mandai-mo, em vez de o beber;
Não se arrisque neste jogo
Quem tem tanto que perder.



CARTA.


_Desculpando-se o Author de não ir a huns Annos_.


Senhora, em honra do Dia,
Esforçando a mão pezada,
Tómo a Lyra, ha longo tempo
Ao silencio consagrada;

E em quanto lhe alimpo as cordas,
Que bolor aos dedos dão,
E atarantadas aranhas
Despejando o bêco vão;

C'os olhos ao ar alçados
A' minha Muza pedia
Me désse sonóros Versos,
Dignos de Apollo, e do Dia;

Que me ensinasse a louvar
O ditozo Nascimento,
Que ao vosso brilhante Séxo
Trouxe mais hum ornamento;

Que pintasse a loira Venus
Vosso rosto bafejando;
Que me mostrasse as tres Graças
O rico berço embalando;

Que me ensinasse a cantar,
Cingida a testa de loiro,
Huns claros, triunfantes olhos,
Huns finos cabellos de oiro;

Que me fizesse augurar,
Rasgando ao futuro o véo,
Amor consagrando as settas
Nos Altares de Hymenêo;

Mas as Muzas, como as Ninfas,
Tem para mim os pés mancos;
Fogem de trémulas vozes,
Tremem de cabellos brancos;

Fiquei, pois, desamparado;
E merecendo desculpa,
De não vos mandar bons Versos,
Peco perdão, sem ter culpa;

Sei que devia ir pedillo
Respeitozo, e diligente;
Mas impede-me essa honra
Hum defluxo impertinente;

E quem em caza traz botas,
E vinte xaropes bebe;
E quando fahe, fahe mettido
N'uma loge de Algebebe;

Se fosse em tempo invernozo
Entrar na illustre Assembléa
Com leve, ingleza cazaca,
Fina, transparente mêa;

Sem acabar cumprimentos,
Logo o corpo arripiado,
Gelada a voz sobre os beiços,
Cahiria constipado;

E o Marcos largando os bules,
Pondo o Velho em quentes pannos,
Entre os applauzos dos vossos,
Praguejaria os meus annos;

Vossa bondade não quer
Pôr o Cortezão em risco,
De ir com Habito de Christo,
E vir no de S. Francisco;

Acceitai dahi meus votos;
Daqui a mão vos beijei;
E dos doces que não como,
Domingo me vingarei;

Darei escumantes copos
Ao perum, e aos môlhos seus;
Brindarei os vossos Annos,
Tratando mui bem dos meus.



CARTA.


_Aconselhando a hum Cebelleireiro, que não continuasse a fazer Versos_.


Pois que o talento inquieto
Até em poezia provas,
E queres ás mais desgraças
Ajuntar desgraças novas;

Pois, que em galantes cantigas
Teu Rival puzeste razo,
E coroado de trovas
Vás entrando no Parnazo,

Quero em trovas avizar-te,
Que ha baixîos nesta barra;
Vou ser Prégador trovista,
Vou ser hum novo Bandarra;

A occupação de Poeta
He nobre por natureza;
Mas todo o Officio tem ossos,
E os deste são, a pobreza;

Os dentes do bom Camões
Sejão fieis testemunhas;
Muitas vezes esfaimados
Não achárão senão unhas;

Depois que seus frios olhos
Se fechárão no Hospital
Logo as Filhas da Memoria
Lhe erguêrão Busto immortal;

De que serve honra tardia?
Bem sei, que o rifão vem torto;
Mas faz lembrar a cevada,
Que se deo ao asno morto;

Só as Muzas o chorárão;
E o enterro devia ser
Como hoje nos pinta o Lobo
O de João Xavier.

Homéro, o divino Homéro,
Honra de antigas Idades,
Por cujos inuteis ossos
Brigárão sete Cidades;

Doces Versos recitando,
Pela Grecia discorria;
Tinha os Thezouros de Apollo,
E esmola aos homens pedia;

Mas se de Authores antigos
Tens tido pouco exercicio,
Eu te aponto hum bem moderno,
E até do teu mesmo Officio;

Foi este o famozo Quita,
A quem triste fado ordena,
Que a fome lhe traga o pentem,
E da mão lhe tire a penna;

Em quanto na suja banca
Pobre tarefa tecia,
Seu espirito sublime
Sobre o Parnazo se erguia;

Cozendo sobre o joelho
Era dura, falsa cáveira,
A sua alma conversava
Com Bernardes, e Ferreira;

Mil vezes travêssas Muzas
Da baixa obra o desvião;
E mostrando-lhe o tinteiro,
Pós, e banha lhe escondião;

Mas de que servem talentos
A quem nasceo sem ventura?
Vale mais, que cem Sonetos,
A peior penteadura;

Amigo, vamos errados;
Escolhemos muito mal;
He o fado dos Poetas
Não professarem real;

Péga no pardo baralho,
E sobre a cama assentado,
Fisga as biscas conhecidas
Ao parceiro descuidado;

Matando boçaes tafûes,
Vai mexendo os papelinhos;
Nem poupes no cadafalso
As gargantas dos Sobrinhos;

Em lhe vendo huma de seis,
Arma-lhe os laços viscozos;
Antes que lhe caia a xina
Na ceira dos laparozos;

Imita ondados cabellos
Co'rubro lápis na mão;
Estas pinturas dão xina,
As da Poezia, não;

Se em roda de loiras Ninfas
Gyrão em torno teus ais,
Em quanto lhe deres Versos,
Acharás sempre Vestais;

Fallo como exprimentado;
Fallo com peito sincero,
Póde huuma vara de fitta,
Mais que a Ilíada de Homéro;

No sonóro bandolim
Fortuna as armas te deo;
Não ha Dama, que rezista
A' moda do Melibêo;

Toca-lhe mil contradanças;
Mas se não tiverem Dom,
Entre ellas não sevandiges
O Fidalgo Cotilhom;

Nestas coizas he que eu creio;
Poezia he mal fadada;
Assenta, amigo Luiz,
Que nunca servio de nada;

Poucas Damas a conhecem;
Se a pedem, e se a festejão,
Gostão do que não entendem,
Pedem o que não dezejão;

Inda que por moda querem,
Que lhes repitão Versinhos,
Tem por modas de mais gosto
Convulsões, e Jozézinhos;

Huma Venus me pedio,
Por quem inda eu hoje peno,
Que lhe fizesse hum Soneto,
Inda que fosse pequeno;

Dinheiro, invisto dinheiro,
Só em ti he que eu me fundo;
Tens o Direito da força,
És o Tyranno do Mundo;

Amigo, escolhe hum Paralta,
Corpo esbelto, perna teza,
O chapeo tocando as nuvens,
As fivellas á Malteza;

Ornem-lhe loiros canudos,
Pendentes com igualdade,
Tenras faces, onde morão
A Saûde, e a Mocidade;

Chegue á bocca rubicunda
Cheirozo lenço anilado;
Dê bilhetinho discreto,
De huma Novela furtado;

Põe da outra parte hum Ginja,
Fivella de oiro no pé,
Bom vestido de lemiste,
Boa meia grudifé;

Com óculos no nariz,
Mas com a penna na mão,
Assignando vinte letras
Para Londres, e Amsterdão;

E dize-me, qual assentas,
Que será o mais querido?
Apósto, que as Damas todas
Cuidão que o Velho he Cupido.

Amigo, tenho acabado
O meu comprido Sermão;
Préguei-te as altas verdades,
Que trago no coração;

Abre mão das Poezias,
Que nenhum prestimo tem;
E cuida em sólidos meios
De ganhar algum vintem;

Se dizes, que contra os Versos,
Em Verso huma Carta ordeno,
E que aqui me contradigo,
Praticando o que condemno;

A teu forçozo argumento
Respondo com Fr. Thomaz;
Faze o que o Prégador diz,
Não faças o que elle faz.



CARTA.

_Pedindo-se ao Author huma Gloza_.


Menino, dizer finezas,
Só o proprio Pertendente;
Amor não póde imitar-se,
Só o pinta quem o sente;

Se adora alguma Nerina,
Se he para ella a tal Gloza,
Que vão fazer os meus Versos,
Onde está a sua proza?

Além disso, essa figura,
Faces tenras, e córadas,
Fallão mais discretamente,
Que mil Cantigas glozadas;

Lenço nas pontas bordado,
Cipó, tízicas fivellas,
Sobre hum corpo assim talhado,
Se eu gósto, que farão ellas?

Versos são mui fracas armas
Para vencer corações;
He clara a letra redonda,
Leia a vida de Camões;

Sua divina Poezia
Teve mui curtos poderes;
Tratarão-no mal os homens,
E inda peior as mulheres;

Pois entra de amor na estrada,
Siga nella outro farol;
Embuce-se a huma esquina,
Soffra chuva, soffra Sol;

Erga alli o Altar do Amor;
Queime alli humilde incenso;
Suba ao alto do capote
Branco, alcoviteiro lenso;

Que importa que os Çapateiros
Dem assobio insultante,
Se os negocios vão marchando
Com passadas de Gigante?

Cem vezes na mesma tarde
Pize esbelto a feliz rua;
Alheias cadeias de aço,
Relogio de hollanda crua;

Vá por aqui, que por Versos
Dá em vão loucas passadas;
São divertimento inutil,
São as historias das Fadas;

Inda que para cantallos
Lhe désse Garção a Lyra,
Como hão de crer-lhe verdades
Na linguagem da mentira?

Seja acérrimo chorão;
Pranto entendem raparigas;
Faça em lagrimas seu fundo,
E não o faca em Cantigas;

Palêe co'estes remedios,
Pois não tem o verdadeiro;
He elle (aqui em segredo)
O mílagrozo dinheiro;

Mas se teima em pedir Versos,
E conselhos não supporta,
Então perdôe, meu Menino,
Póde bater a outra porta.



CARTA.


_Agradecendo alguns pratos, que despertárão a vontade de comer_.


Senhor, a dada Perdiz,
Acerejada, e fresquinha,
Veio emendar os estragos
Da enjoativa gallinha;

Esta ave he sempre odioza
A melancólicos dentes;
Faz lembrar ultimos caldos
De já perdidos doentes;

He, além disto, hum cruzado
Fugido do mialheiro;
Este meu mortal fastio
Custou rios de dinheiro;

Mas da vossa lauta meza
Bocados medicinais
Forão tão bem applicados,
Que me curárão de mais;

Venceo vosso cozinheiro
O tal fastio cruel;
Meu estomago já pede
Meças com Fr. Manoel;

Mas, Senhor, vossa piedade
Vai ser-vos hum dom fatal;
Quizestes fazer hum bem,
Que redunda em vosso mal;

Fizestes nascer a fome,
E a fome pede mantença;
Se a deixais entregue a mim,
Póde morrer á nascença;

A vossa filha amparai;
Não he de peitos honrados
Pôr as suas Creaturas
Na Roda dos Engeitados.

Em soando as duas horas,
Sabei que esta cara minha
Tem longos, ávidos olhos,
Fitos na vossa Cozinha;

Eu não vou, porque inda fraco,
Indo arrostar ar delgado,
Antes de matar a fome,
Morreria constipado.



CARTA


_Sobre o mesmo Assumpto_.


Senhor, assim que eu largar
A baetal fatiota minha,
Vou beijar as pias lágeas
Da vossa farta Cozinha;

Não foi attento Hespanhol,[10]
Receitando amarga quina,
Quem venceo meu mal co'as armas
Da fallivel Medicina;

[Nota de rodapé 10: Medico.]

Vós sabeis traçar receitas
Mais gratas, e mais felizes:
Curárão-me oppostos males
Bem applicadas Perdizes;

Humas o appetite abrírão,
Outras socêgo lhe dão;
Sarárão as duas chagas
Co'pêllo do mesmo cão:

Dizem linguas inimigas,
Que esta doença he ficticia;
E os Práticos do meu pulso
A capitúlão malicia.

Que em meu capote abafadas
Estas goellas felizes,
Em vez de cozerem lynfas,
Estão armando ás Perdizes;

Senhor, não devo atalhar
Este conjurado assédio;
Porque era, provar doença,
Ingratidão ao remédio;

Só digo, que não ganhais,
Dando ouvido ás vozes suas;
Aqui dais-me huma Perdiz,
E se lá vou, tiro duas.



CARTA.


Bom Sobral, o que eu te disse
He, a meu pezar, verdade;
Sonóros, amenos versos,
São obra da Mocidade;

Mandaste que em Crescentini;
Louvando a doce harmonia,
O que o Mundo diz em proza,
Eu lho enfeitasse em Poezia;

Que invocando as brandas Muzas,
Encostada ao peito a Lyra;
Cante os ternos sentimentos,
Que elle nas almas inspira;

Môço Sobral, tu ignoras
Da inerte velhice os damnos;
Nesta fria testa brigão,
Co'teu preceito, os meus annos:

Que importa, que a huma orelha
A tua voz respeitada
Me mande afinar a Lyra
Ha dez annos pendurada,

Se á outra me diz Apollo,
Que eu sou já dos reformados;
Que em seu Tribunal não tornão
A servir Apozentados?

Longa idade, he longo mal;
Velho, só he bom o Amigo;
O teu mesmo Crescentini
Ha de provar o que eu digo:

Este homem, que a seu arbitrio
Move as humanas paixões;
Que traz na sua voz o sceptro
Dos sensiveis corações;

Que nos deixa duvidozos
Quaes forças maiores são,
Se os encantos da harmonia,
Ou se a viveza da acção;

Que em mim, que sou homem duro,
E rebelde ás Leis primeiras;
Que não chóro nos mais homens
As desgraças verdadeiras;

Que, insensivel, vi no Circo
Burlesco Neto arrastado
Deixar co'a rôta cabeça
O terreno ensanguentado;

Que vejo com olhos seccos,
Com firme semblante inteiro,
Fugir-me n'um parolim
O meu ultimo dinheiro;

Que em mim, digo, arranca pranto;
Que amolga hum peito de seixo;
Que muita vez co'chapeo
Encubro o trêmulo queixo;

Que quando dos tenros Filhos
Chorava o triste destino,
Tinha este peito de bronze
O coração de Sabino;

Este homem, que solto o panno,
Vivas vem á força ouvir;
Se cantar de hoje a déz lustros,
Em vez de chorar, faz rir;

Sobre os levantados áres
A envergonhada Harmonia,
Batendo apressadas azas,
Do seu Filho fugiria;

E o Jeronymo estendido[11]
Co'as pernas nos tamboretes,
Cabeceára entre as rimas
Dos ociozos bilhetes;

[Nota de rodapé 11: O Vendedor dos bilhetes.]

E cuidavas tu, que a foice
Que a taes dons ha de pôr fim,
Que ha de ferir Crescentini,
Me tinha poupado a mim?

Se eu hoje fosse aos Oiteiros,
Onde já tive elogios,
Dir-me-hião crueis verdades
Mil sinceros assobios;

Este Genio dos Poetas
He fugitivo, e mesquinho;
A' primeira cam nos deixa
Na ametade do caminho;

Não he irmão do teu Genio,
Este estende mão segura;
Acompanha os seus Valídos
A' borda da sepultura;

Fará que sempre as desgraças
Em tristes peitos emendes;
Que sigas sempre os exemplos,
Que dentro de caza aprendes;

Lastima, pois, minhas rugas,
Que até me cauzão o mal
De faltar ao teu preceito,
E a louvar hum homem tal;

Mas vasto, cheio Theatro,
Que elle encalma em tempo frio,
Falla melhor, que dez Odes,
He mais util elogio;

E nelle estas velhas mãos
Co'as forças que nascem d'alma,
Darão, em lugar de Versos
Muito pinto[12], e muito palma.

[Nota de rodapé 12: Cruzado novo.]



CARTA


_A huma Senhora, que em bons Versos pedio ao A. a Sátyra do Velho_.


Senhora, o Quadro pedido
Não estava retocado,
Mas brevemente o remetto,
Deixai isto ao meu cuidado;

Mostra os erros da velhice;
Põe alguns Velhos á raza;
Custou-me pouco a pintura,
Por ter as tintas de caza;

Que já hum Amigo o vio,
Eu, Senhora, vos confesso,
Porém mostrei-lho inda em calva
Como eu tambem lhe appareço

Vós sois de mais ceremonia,
E pezais com mais rigor;
Temi, que sem rir c'os Versos,
Só vos vissem rir do Author;

Tómo outra vez o pincel,
Vou-lhe pôr attenta mão;
Abençoarei meu trabalho,
Se lhe derdes protecção;

Pois que a deve o sangue illustre,
Tem dois direitos meu cazo;
Porque a peço a huma Fidalga,
Que o he tambem no Parnazo;

De tão alto voto espero,
Que geral favor me traga
A huns Versos, que antes de lidos
Tiverão tamanha paga.

Ao favor de mos pedirdes,
Honra, que eu não merecia,
Ajuntastes o thezoiro
De mos pedir em Poezia;

Que fáceis, que amenos Versos!
Trazem das Muzas o bafo;
A moral os faz ser vossos,
Que quanto ao mais são de Sapho;

Só na pintura dos annos
Errou essa mestra mão;
Porque inda que era em Poezia,
Foi puchar muito a ficção;

A doce, igual harmonia,
A imaginação fogoza,
Depuzerão contra vós,
E vos chamão mentiroza.

Se occulto, fyzico acazo
Branqueou huns fios de oiro,
Vosso vingador Apollo
Os cobre de mirto, e loiro;

Quem marcha ao lado das Graças,
Não sabe o que he fria idade;
Deixai-me dizer a mim
Essa funesta verdade;

He em mim que o voraz Tempo
Já empolgou a mão forte;
Se inda me mêcho em Poezia,
He já co'a ansia da morte;

Cedo raivozos Crédores,
A quem não curei as chagas,
Darão a meus frios ossos,
Em lugar de pranto, pragas;

E outros, a que a carapuça
Mesmo, sem mira, não erra,
Dirão com gosto ao Coveiro
=Enche-lhe a boca de terra.=

Mas tudo perdoaráõ
Minhas sepultadas cans,
Se de cypreste as cobrirdes
Vós, e as vossas oito Irmans.



CARTA.


A ti, amavel Bandeira,
Partidista da Verdade,
E de quem tenho mil provas,
Que o és tambem da Amizade:

Que são Filozofo vives,
E o mesmo morrer protestas,
A' excepção de me dares
Bilhete de boas festas:

Tolentino firme amigo
Inda quando o Mundo caia,
E a quem obrigas a sêllo
Desde a rua da Atalaia,[13]

[Nota de rodapé 13: Onde tinhão morado havia muitos annos.]

Dezeja pura alegria,
Saûde, e muito vintem;
Dezeja-te tudo aquillo,
Que elle quasi nunca tem;

Pois, que chuva, e negros ventos
Me fechão a porta, e o dia,
E em caza apontão cuidados,
Redobrada bateria;

Pois que a horrivel solidão
Aviva a idéa cruel
Da gaveta, vão sepulchro
Do agonizante quartel.

E a engenhoza Hypocondria
Me mette no antigo empenho
De jurar, que estou morrendo
Das molestias, que não tenho,

Vou ver se posso esquivar-me
A tanto mortal immigo,
Acolhendo-me ás lembranças
Do nosso bom tempo antigo;

Tem a sôlta fantazia
Farto, milagrozo armario;
Cura-me penas reaes
Com prazer imaginario;

O nosso bom tempo antigo!
Quando alçando a tôrva fronte
Jantava Quintiliano
A' meza de Anacreonte;

Quando nos brilhantes copos
Do casto, herdado Gorizos,[14]
Hião mergulhar as azas
Os Prazeres com os Rizos;

[Nota de rodapé 14: Nome de huma Quinta do Amigo, a quem o A.
escreve, a qual produz bom vinho.]

Quando em renhidas disputas
Mettias traidora mão,
Sendo o motivo da guerra
Solapada mangação.

E sem haver lindos olhos,
Sem haver ondadas tranças,
Doidos com doidos tecião
Turbulentas contradanças.

Quando o assustado Ministro,
Que as margens do Doiro trilha,
Pôde salvar da procella
A sua estimavel bilha.

Clama em vão por tão bom tempo
Minha discreta saudade;
Doce, fugitivo tempo,
Da nossa doirada idade!

Ante meus olhos sâudozos
Cruas azas despregou;
E em cambio de tantos bens,
Cans, e rugas me deixou.

Só tu podes, caro Amigo,
Virar-lhe o vôo apressado;
E fazer que elle me traga
Outra vez o meu reinado:

Não peço bruxos prestigios,
Basta ouvires meu alvitre,
Põe a rua da Atalaia
Na Calçada do Salitre;[15]

[Nota de rodapé 15: O A. jantava muitas vezes na rua da Atalaia em casa
do Amigo, a quem escreve, o qual se mudou para o Salitre.]

Prepara farta vingança
A meus compridos jejuns;
Lança, em nome da Amizade,
Mais nozes aos teus peruns;

Lance fumo a faca tinta
Nas victimas degolladas;
Revôem pelo quintal
As pennas ensanguentadas;

Tornem a dar os teus lares
Guarida á minha desgraça;
Tornem a ter teus amigos
Polido Isidro de graça;[16]

[Nota de rodapé 16: Caza de Pasto.]

Vai na franca, lauta meza,
Versos ouvindo, e tecendo;
Entre as Muzas, entre as Graças
Vai, a rir, empobrecendo;

Correntes do Doiro, e Rheno
Escaldem meu Estro fraco;
Abrão-me o Templo de Apóllo
Atrevidas mãos de Baco;

Sólte o rozado Taful
A falsa eloquencia sua;
E marche pelas Sciencias
Como marcha pela rua;[17]

[Nota de rodapé 17: Cóxeava.]

He alma das Companhias,
Alegres mezas governa;
Depois de estar assentado,
Não conheço melhor perna;

Tomando amolada faca
Teu sizudo Capitão,
Nos demonstre, sobre hum lombo,
A guerra do Rossilhão;

Aliza assim, caro Amigo,
Meu velho, engelhado coiro;
Manda ás Parcas, que o meu fio,
Já que he curto, seja de oiro.

Dá brando ouvido a meus rogos;
Teu bom peito em bem os tome;
Não te falla vil lizonja,
Falla-te a Amizade, e a fome:

E tu, dia tormentozo,
Que abalas velhas trapeiras,
Que o telhado me arripias,
Que me ensopas as esteiras;

Que em meus reumaticos ossos
Assentas pezado açoite;
E sobre medonhas nuvens,
Me mandas de tarde a noite;

Serás o dia mais alvo,
Que em meus largos annos levo,
Se for acceita esta Carta,
Que á tua má luz escrevo;

Chamarei Zéfiros brandos
A teus roucos ventos frios,
Se hoje rezolve o Bandeira
Dar de comer a vádios.



CARTA


_A hum Camarista_.


N'uma infeliz madrugada,
Antes que o Sol esclareça,
Mettido em pobre caleça,
Puz peito, Senhor, á estrada:
Sahi em hora mingoada,
Pois negra traição me espera;
Homens, com genios de féra,
Me atacárão sem motivo;
Por milagre fiquei vivo,
E devo pezar-me a cêra.

Vi revoltozos Carreiros
Com duro aguilháo armados;
Vi nuvens de páos alçados
Pelos cumes dos oiteiros:
Roldão, e o bravo Oliveiros,
Que alta pena Heróes declara,
Talvez voltassem a cara,
Que a tantos tremer fazia,
Se nos campos da Turquia
Vissem Carreiros da Enxara.

Vi os Campos inundados
De gentes vagas, e incertas;
Vi as estradas cobertas
De cacheiras, e cajados:
Não valem rogos, nem brados,
Não valem ligeiras pernas;
A raiva, e o Deos das Tavernas
Accendêo tanto os Campinos,
Que cuidei que os meus Meninos
Terião férias eternas.[18]

[Nota de rodapé 18: O A. era Professor de Rhetorica, e pertendia passar
para outro emprego.]

Em quanto no duro chão
Meu Companheiro arquejava,
Eu muito humilde esperava
Tambem a minha ração;
Bem me lembrou que esta acção
Deslustrava a minha gloria;
Mas não pertende vitoria,
Nem sabe mover espada
Mão, ha annos, costumada
A dar só com palmatoria.

Entre mortaes agonias,
Da bruta gente escapando,
Me fui na sege encaixando,
Maldizendo as romarias;
Praguejei meus negros dias,
Dias de pranto, e de dor;
Conheci então, Senhor,
Que só me dão meus destinos,
Ou Carreiros, ou Meninos,
Que Deos sabe o que he peior.

Mas a perda da vitoria
Sirva de abrandar meus fados;
Dem-vos motivo os Cajados
De fallar na Palmatoria;
Saiba o Principe esta historia;
Contai-lha com viva côr;
Fazei com que, em meu favor,
Sentindo affectos diversos,
Lhe motivem rizo os Versos,
E lhe faça dó, o Author.



CARTA


_A hum Camarista, tendo o A. sido despachado_.


A rara benignidade,
Que quiz o Ceo conceder-vos,
Permitta que de escrever-vos,
Tome eu hoje a liberdade;
Pois tendes tanta bondade,
Peço, nella confiado,
Que por mim ajoelhado,
E na bocca o coração,
Beijeis ao Principe a mão,
E lhe deis este recado.

=Dizei, pois, a Sua Alteza,
Que eu, seu humilde Afilhado,
Por elle ha pouco arrancado
D'entre os braços da pobreza,
Na simples, mas farta meza,
Entre os Irmãos, e os Parentes,
Aos Ceos, com votos ardentes,
Pedimos, que em paga justa,
Prosperem a Mão Augusta,
Que nos faz viver contentes:

E se entre as puras verdades,
Que Vós lhe podeis contar,
Virdes, que terão lugar
Algumas jovialidades,
Pintai-lhe as felicidades,
Que vai tendo a gente minha;
Dizei-lhe que na Cozinha
Ardem já montões de brazas;
Que em todas as minhas cazas,
Era a mais fresca, que eu tinha;

Que os enroupados Sobrinhos,
Affrontando o vento frio,
Vem todos mostrar ao Tio
Os seus novos jozésinhos;
Que então lhes conto, e aos vizinhos,
Por quem a roupa foi dada;
Que Mão, nunca assás louvada,
Mão Real, piedoza, e justa,
Me poz livre a Rua Augusta,[19]
Por varios crimes vedada;

[Nota de rodapé 19: Aonde se vende panno.]

Que hum Tendeiro, que os seus bens
Me fiava, dando arrancos,
Veio em barrete, e támancos
Dar-me logo os parabens;
Espera que os meus vintens
O fação tambem feliz;
Porque, segundo elle diz,
Ha de haver na sua Tenda
Mais sahida na fazenda,
E menos gasto no giz.[20]

[Nota de rodapé 20: Costumão marcar com giz o que dão fiado.]

Mas eu hum crime cometto,
Quando de ensinar-vos trato;
Quiz ser ao Principe grato,
Mas fui comvosco indiscreto;
Homem, como Vós, discreto
Não preciza formulario;
A Egoa do Seminario[21]
Me deve os rompões cravar,
Por eu querer ensinar
O Padre nosso ao Vigario.

[Nota de rodapé 21: Tinha alluzão particular.]



_A' Illustrissima, Excellentissima Senhora D. Catharina Micaella de
Souza, tendo feito a honra ao A. de lhe offerecer huma Vestia de Setim;
e pedindo-lhe este que lembrasse o Requerimento, em que seu Irmão
pertendia o Governo de hum Forte_.


Minha respeitoza mão
De seus limites não sai;
A escritura, que aqui vai,
Não he carta, he Petição;
Até ante os Thronos vão
Vozes em papel incluzas;
As minhas não vão confuzas;
São memorial mui claro;
Sou Poeta, dai-me amparo,
He obrigação das Muzas.

Não peço hoje para mim;
Bem cuberto anda meu peito;
Inda beijo, inda respeito
Huma Vestia de Setim.
Triste Irmão tem já no fim
Farda rôta, e chamuscada;
Tem má côr, e he mal fadada;
Quer que a mão piedoza, e franca,
Que a mim me deo Vestia branca,
Lhe dê Cazaca encarnada.



_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde de Villa Verde, hoje
Marquez de Angeja_.


Em sege estreita entaipados,
Sol á ilharga, Sol por cima,
Vinha eu, e o Padre Lima
Cheios de pó, e encalmados.
Eis-que na estrada atacados,

Párão as mulas baratas;
Cuidei eu que erão Piratas,
Que tirão vida, e dinheiro,
Fui ver se era o Clavineiro,
E achei duas Açafatas.

Trazião a arma mais dura,
Que nos peitos se tem posto,
Trazião ambas no rosto
O respeito, e a formozura.
Querem sege mais segura,
Porque a sua está quebrada;
E em quanto o Padre na estrada
Lhe diz palavras pompozas,
As minhas mãos respeitozas
Lhe affoufavão a almofada.

Trabalho infeliz fizerão,
Porque meus Fados são tais,
Que acceitando tudo o mais,
A almofada não quizerão.[22]
Debaixo dos pés puzerão

[Nota de rodapé 22: Por cauza dos toucados altos.]

Minha obra desprezada
Senhor, não fazemos nada,
Tomar vãos trabalhos oizas,
Tem todas as minhas coízas
O destino da almofada.



_No dia dos annos da Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde de
Villa Verde, hoje Marquez de Angeja, em cuja caza o Author jantou_.

Senhor, talvez neste dia
Já cantei Versos polidos;
Porém em tectos cahidos
Não mora o Deos da Poezia.
Voou; e da testa fria
Me tirou o verde loiro,
E das mãos a Lyra de oiro;
Tudo em fim se foi co'a bréca;
Mas se a Aganippe se séca,
Não se ha de secar o Doiro.

Embora no velho caco
Murche o cansado miôlo;
Se os loiros lhe tira Apollo,
Com parras o adorna Baccho;
Põe mira meu peito fraco
Nos vossos puros almudes;
E em honra de mil virtudes,
De mil talentos diversos,
Em vez de fazer dois Versos,
Farei duas mil saûdes.



_Sahindo por sortes Compadre de huma Senhora da primeira Grandeza_.


Devo pouco á Natureza,
E muito a hum brinco innocente;
Porque elle me faz parente
Da mais distinta Nobreza.
Embora esquiva riqueza
Pretas fortes me não mande;
Qne importa que ha annos ande
Sempre a perder nas menores,
Se nas dos premios maiores
Me sahio o premio grande.



_Fazendo annos o Illustrissimo, e Excelentissimo Senhor Marquez de
Angeja, Tenente General, na occazião em que sahíra Provedor da
Mizericordia_.


Que fazem Versos cansados,
Applaudindo os vossos Annos,
Se dos nossos Soberanos
São melhor elogiados?
Se os trazem sempre empregados
Em servir a Monarquia,
Se a Real Secretaria
Escreve em vosso favor,
Taes prozas louvão melhor,
Do que a melhor Poezia.

Da vossa dexteridade
Fião coizas encontradas;
Dão-vos as duas estradas,
A do Sangue, e da Piedade.
Vivei pois comprida idade

Sempre entre Povos amigos;
Mas se crescerem perigos,
Cresceráõ as acções nobres;
E a mão que defende os Pobres,
Cortará os Inimigos.



_No dia dos annos do mesmo Senhor_.


A Minha Muza cansada,
Perdendo os vôos ligeiros,
E ao pé de murchos loireiros
Com razão apozentada,
Hoje, Senhor, animada
Do amor, e da gratidão,
Esquecendo a multidão
De frios cabellos brancos,
Vem, forcejando os pés mancos,
Metter-me a Lyra na mão.

Gratidão seus passos rege;
Quer que em limada Poezia
Venha louvar neste dia
Quem em todos me protege;
Nas cordas de oiro, que elege,
Quer, que invocando as Camenas,
Eu cante as horas serenas
Em que o Ceo piedozo, e justo
Para o lado de hum Augusto
Me fez nascer hum Mecenas.

Eu respondi, que a harmonia
Me fugio co'a mocidade;
E que a sólida verdade
Não depende da Poezia;
Que em proza sempre seguia
Seu acertado conselho;
E que em fim Poeta velho
Por teima querer rimar,
He o mesmo que ir dançar
O vosso ginja, Botelho.[23]


[Nota de rodapá 23: Creado muito velho, tentado com minuetes.]



_Ao mesmo Senhor em outro dia de annos_.


Senhor, co'as minhas Poezias
Festejava os annos teus;
Porém mandão já os meus,
Que eu venha co'as mãos vazias;
Geladas madeixas frias
Fechão do Parnazo o passo;
Pois que já o Tempo escaço
Esfriar meus Versos quiz,
Quem me acceitou os que fiz,
Me agradeça os que não faço.

Mas he da tua Grandeza,
E a tal dia acção adquada,
Inda que não trago nada,
Não perder a Caza, e a meza;
Por culpas da Natureza
Não perca os meus ordenados;
Cubrão teus tectos doirados
Inutil, mudo Jarrêta;
Não o merece o Poeta,
Mas he costume aos Creados.



_Ao mesmo Senhor em outro dia de annos_.


Neste venturozo Dia,
Honrado, e honrador Marquez,
Sempre eu vim a vossos pés
Trazer a offerta em Poezia;
Ante Vós a Lyra erguia
Humilde, alegre, e casquilho;
Mas hoje mudando o trilho,
A bem, Senhor, me levai,
Que sendo os annos do Pai,
Dê a Colgadura ao Filho.

Moço Illustre, eu dou conselhos,
Filhos de, amor, e verdade;
Permittida liberdade
Aos fieis Creados velhos;
Ouvi: Bons Pais são espelhos;
Dão doutrinas sem enganos;
E eu rogo aos Ceos Soberanos,
Que ao vosso ouvindo as lições,
Sejão as vosss acções
O elogio dos seus Annos.



_Ao Illustrissimo, e Excelentissimo Senhor Marquez de Marialva, com quem
se tinha encontrado o A. na Caza em que estava o Embaixador de
Marrocos_.


Na Quinta da Praia clama,
Que lhe tireis a Cadeira
Hum triste, que quarta feira
Comvosco esteve em Moirama:
Se a Estrella, que a Vós o chama,
Não lhe abranda os seus destinos,
Torna para os Marroquinos;
Porque, agoiros por agoiros,
Antes cativo de Moiros,
Do que Mestre de Meninos.



_No dia dos Annos de hum Menino_.


De plumachos emplumado,
Manso, alegre Cavallinho,
Ou torneado carrinho
D'alvos Carneiros puchado,
Devião marchar ao lado
Deste papel que remetto;
Mas mostrando o meu affecto
Como póde o meu destino,
Em obzequio de hum Menino,
Vou dar aos outros Suéto.



_Na despedida de hum Ministro, que partia levando seus Filhos_.


A Lei da pura amizade
Minhas lagrimas condemna;
Quer que ceda a minha pena
A' tua felicidade;
Vai; e em quanto a vil maldade,

E a intrigante cubiça,
A baixa inveja, a injustiça
Pézas na recta balança,
Conserva de mim lembrança,
Que he tambem fazer justiça.

E vós, lindos Innocentes,
Que nessas tenras idades
Já sabeis mover saudades
Nos amigos, nos parentes,
Quando lhe virdes pendentes
As balanças da razão,
Ide internecello então
Com rizos, com géstos novos;
Lembrai-lhe, que aquelles Povos,
Como vós, seus filhos são.



_A hum Fidalgo, que pedia para o Author hum lugar na Secretaria, na
occazião em que elle pertendia o seu proprio Despacho_.


Se vemos rir quem chorava,
E tantos exemplos temos,
Senhor, não desesperemos,
Deos ainda está onde estava:
Água branda as pedras cava;
Em tudo o tempo he precizo;
Saber teimar com juizo
Tem mil montes aplanado;
Talvez sejais despachado,
E talvez que eu lavre o Avizo.

Ah Senhor, com que alvoroço,
Na liza banca forrada,
Eu de cazaca encarnada,
E fitta preta ao pescoço
Lançára o despacho vosso,
Que tanto tempo esqueceo!
Que grande favor do Ceo,
Se o meu primeiro exercicio
Fosse servir-me do Officio
A favor de quem mo deo!



_A respeito de hum Padre, que dizia ter sido Mestre de Rhetorica; que
tomava triaga contra o veneno que ainda lhe havião de dar; que dizia que
estava eleito Cardeal; e que era demaziadamente trigueiro, se deo este_


MOTE.


_Não tem côr de Cardeal_


Não ajuda ao Padre a cara;
Revolvo antigos Annaes,
E vejo que os Cardeaes
Tinhão a pelle mais clara;
Será maravilha rara
Achar hum de côr igual;
Forão brancos como a cal
Mazarino, e Alberoni;
E a não ser este o Negroni,
Não tem côr de Cardeal.


_Respondeo em Decimas, ás quaes se fizerão as seguintes_:


Que venhão fuscos garraios
Metter em Versos a mão!
Potente Jove, aonde estão
Os teus vingadores raios?
Hum homem de coiros baios
Segue as Muzas tuas filhas;
Tu, pois, que os vaidozos trilhas,
Faze que este, em todo o cazo,
Saia logo do Parnazo,
E passe para Cassilhas.

Se em rhetorico exercicio
Já soubeste regras dar,
Tambem eu posso fallar,
Porque sou do mesmo officio;
Que o teu cérebro tem vicio,
He verdade assás notoria;
Na Poezia, e na Oratoria
Vaz em total decadencia;
Collega, tem paciencia,
Has de vir á palmatoria.

No teu escuro Papel,
Aos bons ouvidos ingrato;
Achei hum vivo retrato
Da confuzao de Babel;
A' patria lingua infiel
Ès da Nação o desdoiro;
Bem sei que te chego ao coiro;
Mas não merece passagem,
Que a batina, e a linguagem
Ajuntem Clerigo, e Moiro.

A quem me queira arguir,
Mostro, Padre, o tal Papel;
He testemunha fiel,
Não me deixará mentir;
Em novos termos urdir
Mettes a todos n'um canto;
Que uzas palavras de encanto
Assentão gentes maxuchas,
Boas para ajuntar bruchas,
Ou para tirar quebranto;

Deixei-me, pois, de criterio,
E tomei melhor caminho;
Meu amigo, a hum louquinho
He loucura fallar serio;
Chova, pois, o vituperio
Sobre esse tostado coiro;
Saia o tal Cardeal Moiro,
Que o Capinha, alvoroçado,
Vai, por ordem do Senado,
Metter garrochas no toiro.

Fulla escrava Americana
Já mandava á luz do dia
Hum Crioilo, que seria
Nódoa da Curia Romana;
Carregado de banana,
Porque no caminho coma,
O rumo da Europa toma;
E em terra, marchando á pata,
Com sacco, e folha de lata,
Deo a sua entrada em Roma.

Assim mesmo estropeado,
E envolvido em grosso panno,
Foi entre o Povo Romano
Com mil respeitos tratado;
Do vento, e do Sol queimado,
Semblante quebrado, e afflito,
Tem tal dom na cara escrito,
Que gritavão de redor,
Huns, que he o Rei Belxior,
Outros, que he S. Benedito.

Tomou a Benção Papal;
E teve tanto poder,
Que sem o Papa o saber,
Ficou feiro Cardeal;
Voltou para Portugal
Já Cardeal Protector;
Achou cá pouco favor;
E zombão-lhe do Capello,
Por ter mui crespo o cabello,
E ser muito bassa a côr.

Erra o Vulgo os passos seus;
He hum cego, e maldizente;
A côr he méro accidente,
Todos são filhos de Deos.
Porém para os lucros teus
O Capello te faz mal;
No S. João, e Natal
Terias gôrda guedelha,
Armado de faca velha,
Pincel, e pote de cal.

Padre, vai-te o mundo ao pêllo;
E c'o a lingua maldizente
Te vai cortando igualmente
As Poezias, e o Capello;
Porém eu, que sou singelo,
E meus contrarios ameigo,
Te affirmo, piedozo, e meigo,
Que se não tens, por teu mal,
Em Roma o de Cardeal,
Tens no Parnazo o de Leigo.

Deves voltar outra vez,
E dizem que nisso fallas;
Mas pégão-se pelas sallas
Teus molles tardîos pés.
Se ajuda de custo vês,[24]
Fazes-te côxo, e ronceiro;
Meu Padre, és muito matreiro,
Já todos estão de acôrdo;
E sem te verem a bórdo,
Não pões a mão no dinheiro.

[Nota de rodapé 24: Pedia huma ajuda de custo.]

Tua saude se estraga,
Mas teu Medico condemno;
Meu amigo, o teu veneno
Não se cura com triaga;
Para a tua antiga chaga
Medicina impropria he esta;
Muda, pois vês que não presta;
Grita c'os olhos em braza,
Que te fechem n'uma caza,
E que te sangrem na testa.

De balde em Lisboa gritas,
Attestando a Italia inteira,
Que regeste huma Cadeira
Nos Claustros dos Jezuitas;
As obras que vejo escritas
Provão que nos tens mentido;
Até das Ordens duvido,
Quando as tem cabeças tontas;
Tu, cá pelas minhas contas,
Ès hum mulato fugido.

Foge outra vez, se tal és,
Qual foge apupado mono;
Antes que venha teu dono,
E te ponha nas Galés;
Antes que enfeite teus pés
Legal, sonóro fuzil;
Não veja o patrio Brazil,
Que os hombros do filho bello,
Vindo buscar hum Capello,
Só achárão hum barril.

Dizem todos, que és fingido,
Que ninguem louco te chame;
Por mais que eu lhe jure, e clame,
Que és mesmo doido varrido;
Dizem que estás conhecido,
E que o fazes por estudo;
Em tal cazo prompto acudo,
E de outro lado te ataco;
Se não és doido, és velhaco,
E talvez que sejas tudo.

Mas já quem póde me ordena,
Que armas ponhamos em terra;
Apôs sanguinoza guerra,
Alce a frente a Paz serena;
Sobre essa pelle morena
Em paz teu Capello ajusta;
Assento que he coiza justa
Seguires methodo novo,
E não dares gosto ao Povo,
Que quer rir á tua custa.

Não te finge falso agrado
Meu semblante contrafeito;
Não encobre honrado peito
Coração refalseado;
Se me julgas disfarçado,
Alta injustiça me fazes;
Eu te juro eternas pazes;
E se falto aos votos meus,
Ah Padre, permitta Deos
Que eu sempre ensine rapazes.

E tu, que sem estes sustos
Vives cheio de alegrias,
Serenos, doirados dias,
Aos pés de teus Reis Augustos;
Tu, que por titulos justos
Te chamas o novo Horacio,
Quando entrares em Palacio
Conserva de mim lembranças,
Porque tenho as esperanças
Postas em ti, e no _Estacio_.[25]

[Nota de rodapé 25: Bobo célebre.]



MOTE.

_Hum suspiro de repente,
Hum certo mudar de côr,
São evidentes sinaes
De que o peito occulta amor_.


GLOZA.


Debalde as penas, e os gostos
Disfarçais, loucos Amantes,
Se os attentos circumstantes
Tem em vós os olhos postos;
De que servem falsos rostos,
Se o coração desmente
N'um instante infelizmente
Sabe perdido o longo estudo,
Pois vem destruir-vos tudo
Hum suspiro de repente.

Nada faz cautella, ou medo
N'alma que devéras ama;
Esta turbulenta chamma
Não sabe arder em segredo;
Sobe ao rosto, ou tarde, ou sedo,
Do escondido fogo o ardor;
Basta a declarar a dor,
Vãmente n'alma guardada,
Huma palavra truncada,
Hum certo mudar de côr.

Duro amor, que coração
Saberá nunca occultar-te?
Que vai fazer força, ou arte,
Onde as tuas settas vão?
Cegos Amantes, em vão
O vivo fogo abafais;
Esses descuidados ais,
Que sem tino ao vento dáveis,
São provas incontestaveis,
São evidentes sinais.

De que serve estar fallando
Sizudos, e comedidos,
Se esses olhos insoffridos
Vos estão sempre entregando?
Alçados de quando em quando
Vão dizendo a occulta dôr;
Abaixallos, he peior;
Que essas vistas contrafeitas
Dão ás vezes mais suspeitas,
De que o peito occulta amor.



_Mandando huma gallinha a huma Pretinha bonita, que gostava de brincar
com ellas_.


As tuas fulas mãoszinhas,
Que a fome já não descarna,
E que de crearem sarna
Passão a crear gallinhas;
Acceitem creações minhas,
Que eu a outros fins guardava;
Senhora com côr de escrava,
Alta estrella, que em ti brilha,
Manda que se dê á Filha
Aquillo que o Pai furtava.



CANTIGAS


_Feitas nas caldas com o Estribilho_.


_Olhos meus, cansados olhos,
O vosso officio he chorar_.


Nas Caldas, nas tristes Caldas
Alegria vim buscar;
Quiz de noíte ver o Sol,
Quiz achar fogo no mar.
    _Olhos meus, etc._

Que importa mudar de terra,
E baldados passos dar,
Se a toda a parte a que os volto
Vai comigo o meu pezar.
    _Olhos meus, etc._

Vejo pálidos doentes
Pela Copa passear,
Oiço de antigas molestias
Tristes effeitos contar.
    _Olhos meus, etc._

Vejo nas férvidas aguas
Mirrados corpos banhar,
E de balde aos surdos Ceos
Convulsos braços alçar.
    _Olhos meus, etc._

Vejo de perdido pranto
Tristes ais acompanhar,
Com as lagrimas alhêas
Vou as minhas misturar.
    _Olhos meus, etc._

Que importa ver Ninfas bellas,
Se accrescentão meu pezar?
Gostão de attrahir os olhos,
E as almas tyrannlzar.
    _Olhos meus, etc._

Ao som de feridas cordas
Dão doces vozes ao ar,
Quaes enganozas Serêas,
Que cantão para matar.
    _Olhos meus, etc._

Se o meu pobre coração
Se deixa huma vez tocar,
Com escarneos, com rizadas,
Meu pranto vejo pagar.
    _Olhos meus, etc._

Fartai-vos, pois, olhos meus
De lagrimas derramar;
Vós nascestes para tristes,
E escolhestes o lugar.
    _Olhos meus, etc._



_A hum Leigo, que era vesgo, e que nunca teve fastio; e a quem por acazo
tocou na cabeça a ponta de hum espadim_.


Ferio sacrilega espada,
Alçada por mão traidora,
Cabeça, que sempre fôra
Té aos Barbeiros vedada;
D'entre a grenha profanada
Corre o sangue á terra dura;
Tosquiou-se a matadura;
E o casco rebelde a ordens,
Precizou destas desordens
Para ter Prima Tonsura.

Feroz Soldado imprudente,
Que nova espada esgrimio,
Foi o ímpio que ferio
Esta victima innocente;
A quem do golpe insolente
O motivo lhe procura,
Diz que fez compra segura;
Pois duvidozo na escolha,
Quiz ver que tal era a folha,
Cortando por coiza dura.

Homem de tenção damnada,
Só tu conseguiste o fim
De entrar o teu espadim
Aonde não entra nada;
Da repentina estocada
Cahe o Padre desmaiado;
Mas quando recuperado
A ti os olhos volveo,
Sabes o que te valeo?
Foi teres já almoçado.

Todo o Mundo te pragueja,
Porque em detestavel guerra
Hias deitando por terra
Esta columna da Igreja;
Mas se triunfaste a inveja,
E o Padre morresse então,
Dize, ó ímpío coração,
Que tanto em furor te atiças,
Quem ajudaria ás Missas?
Quem tocaria ao Sermão?

Quem nos daria a certeza
De haver outro homem sizudo,
Que pudesse comer tudo
Ouanto se puzer na meza?
Da próvida Natureza
Quem havia as Leis seguir!
Observante em digerir
Qual outro havia saber
Depois de acordar, comer,
Depois de comer, dormir!

Que importa, ó cruel Soldado,
Para desculpar teu erro
Ter sido o teu ímpio ferro
Já pela Patria arrancado?
Que importa que em campo armado
Junto a si Lippe te veja,
Que importa que o Mundo seja
Das tuas acções o abono,
Se a mão que defende o Throno,
Ataca depois a Igreja?

E tu, que segues os trilhos,
Que S. Francisco te fez,
E pões os teus gordos pés
Sobre os seus santos ladrilhos;
Pois que a seus devotos filhos
Guarda no Ceo largas pagas,
Nos olhos he bem que o tragas,
E de modélo não mudes;
E pois não he nas virtudes,
Que o seja ao menos nas chagas.



_Estando o A. doente, e mandando pedir algum prato á meza, aonde jantava
o sobredito Leigo_.


Hum estomago cansado,
De cuja antiga ruina
Tem sido cauzas iguaes
A molestia, e a Medicina;

Que tendo em si dos tres Reinos
As perigozas heranças,
Só não bebeo das Boticas
Os S. Migueis, e as balanças;

Hum estomago sem forcas,
E ás leis geraes ínfiel,
Que não trabalha em diamante,
Como o de Fr. Manoel;

Que não tem, como este Padre,
Tanta fome obediente;
E olha já para a gallinha
Como elle olha para a gente;

Para emendar semrazões,
Que faz Arte, e Natureza,
Vai, fugido das Boticas,
Acoitar-se á vossa meza;

Mil vezes por outra cauza
Teve a honra de bussalla;
Indo então por matar fome,
Vai hoje por despertalla;

Perdiz, ou branda vitella,
São deste remedio o nome;
Da vossa esplendida meza
Seja elogio huma fome;

E porque o Padre o não saiba,
Será a melhor cautella,
Mandar tirar a iguaria
Quando elle olhar para ella.



_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Marquez, de Ponte de Lima,
Ministro de Estado, pedindo-lhe o A. licença para ir ao remedio de
banhos, na occazião em que o mesmo Senhor se tinha encarregado de lhe
promever a mercê de se imprimirem as suas Obras na Officina Regia_.


CARTA.


Senhor, entreguei meu livro;
Foi esse filho mesquinho
Co'a esteril benção do Pai
Lançar-se aos pés do Padrinho;

Dei-lhe em dote inuteis rimas,
Dei-lhe vazio thezoiro;
Mas vossas mãos milagrozas
Convertem nadas em oiro;

Do mal fadado Parnazo
Quebrareis o injusto encanto;
Nem sempre seus verdes loiros
Serão regados com pranto;

Impertinentes crédores
Largar-me-hão em fim a rua;
O meu cégo abrindo a bocca
Lhes ha de fechar a sua;

Até apertados genios
Sem vontade comprarão;
Farão focinho á Poezia,
E obzequios á Protecçao;

Mas, Senhor, de livro basta;
He ínsulto ás mãos em que anda
Passar de ser o meu livro
A ser a minha demanda;

Foi esse meu rogo ouvido;
Deixai que para outro mude;
Tem objecto inda mais alto,
He mais do que oiro, he saude;

Contra o mal que me tem feito
Raivozos Caniculares
Me off-rece a fresca Ericeira
Seus claros, sádios mares;

Sei que nestas ondas bravas
O banho hum risco teria;
Posso começallo alli,
E ir acaballo á Bahia;

Bramindo na vasta praia
Enrolada vaga forte,
Dentro do pérfido seio
Me traz a saûde, e a morte;

Mas com protector penedo,
E cauto Marujo amigo,
O impune, tónico susto,
Tórna em remedio o perigo;

Falta só licença vossa,
E juro, Senhor, que vem;
Como podeis Vós negalla,
Se sabeis que ella he hum bem?

He o Pindo o meu thezoiro,
O Oceâno he meu Jordão;
D'ambos recebo mil bens,
Mas todos por vossa mão;

Eu a beijo; ella receba
Gratidão devida, e pura
Em tributo que lhe paga
O Creado, e a Creatura.[26]

[Nota de rodapé 26: Tinha nomeado o A. Official da Secretaria.]



_Ao Excellentissimo Senhor D. Lourenço de Lima, tendo promettido ao A.
que quando chegasse das Caldas, havia lembrar a mercê de se imprimirem
estas Obras_.


CARTA.


Ora do cume dos Montes,
Ora em suas verdes fraldas,
Hia estender os meus olhos
Na longa estrada das Caldas;

Sobre escumozos cavallos
Trotando empoada sege,
Disse quem fez os meus versos
=Ahi vem quem os protege;=

Alçando-me, hia a dizer-vos
=Senhor, chegou o meu prazo;
Honrastes hoje outros Montes,
Honrai agora o Parnazo;

Promettestes fazer ferteis
Seus estereis Mirto, e Loiro;
Promettestes que a Hypocrene
Levaria arêas de oiro;

Sua clara, inutil vêa
Réga chão, que não se lavra;
Vinde fazello fecundo,
Vinde cumprir-me a palavra.=

Mas, Senhor, não éreis Vós;
Era hum Casquilho, e do Povo;
Tornei a pegar nas Contas,
Tomei a esperar de novo;

Mil votos ao Céo mandava
Este humilde orador fraco,
Que vos não vissem Carreiros,[27]
Nem os ladrões do Tabaco;[28]

[Nota de rodapé 27: Allude ás Decimas da Enchára.]

[Nota de rodapé 28: Furto célebre feito naquella estrada.]


Então carrancuda Noite
Me enxotou co'as negras azas;
E em honra dos taes Amigos
Vim como Gato por brazas;

Sei, em fim, que já chegastes
Chamou por Vós minha dôr,
Venha o Illustre Conselheiro
Honrar-se em Procurador;

Fazer bem, he mór grandeza;
Deo-vos, tambem esta, o Pai;
Vós ambos d'entre os meus loiros
Cruas silvas arrancai;

Com piedoza Geografia
As Paternas mãos benignas,
Emendando ingratos Mappas,
Ponhão o Pindo nas Minas;

O Impressor gosta de Versos;
Quer que os meus públicos andem;
Mas he hum tanto acanhado,
Não imprime sem que o mandem;

Elle perdoa o contagio;
Pegai-lhe a minha doença;
Só deixarei de gemer
Em gemendo a sua Imprensa;

Assigne, pois, meu Avizo,
Pia, obedecida mão;
Mas não cuideis que com isso
Dais férias á protecção;

O mais ávido Leitor,
Das Quintilhas pregoeiro,
Ha de achallas insoffriveis
Em lhe custando dinheiro;

E só em nojoza Tenda
De Braguez Chatim mesquinho
Terão sahida os meus Versos,
Embrulhando o seu toicinho;

Só rapazes acharão
Minha Muza doce, e meiga;
Não porque tenha Poezia,
Mas porque teve manteiga;

Mettei, pois, Senhor, em brios
Ricos peitos avarentos;
Dizei, que comprem partidas,
Que he honra honrar os talentos;

Que serão, comigo, eternos
Se me evitarem o mal
De ir ao Templo da Memoria
Pela porta do Hospital;

E então da escondida burra
Ouvirá a surda aldraba
Não as vozes da Poezia,
Mas a voz de quem lha gaba;

Indo abrindo, juraráõ
A duas Artes odio, e medo;
A' da Guerra, em alta voz;
A' da Poezia, em segredo.

Entretanto ao digno Pai
Pedi que me faça Author;
Sejão públicos no Mundo
Meus versos, e o seu favor;

De Limas na honroza historia
Não serão titulos falsos
Fazer que as augustas Artes
Não marchem cos'pés descalços;

E Vós, firme Protector,
Fazei que por taes favores
Vamos beijar-vos a Mão,
Eu, e os meus dois mil Credores.



_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde dos Arcos, sobre o
mesmo assumpto_.


CARTA.


Bateu aos vossos Portaes
Hum morador do outro Pólo;[29]
Veio ao Templo de Minerva
Dar hum recado de Apollo;

[Nota de rodapé 29: Morava muito distante.]

Vós sois dos seus obrigados,
Bebeis seu licôr divino;
Manda que lembreis na Roza[30]
O esquecido Tolentino;

[Nota de rodapé 30: Sitio, aonde morava o Ministro de Estado respectivo.]

Sei que alli meu pobre livro
Altos Protectores tem;
Mas agora só se falla
Nesta magica _Dutein_;[31]

[Nota de rodapé 31: Dançarina célebre.]

Apollo não troca as Artes;
Mas vendo a Artifice, infia;
Recêa que com taes braços
A Dança affaste a Poezia;

Tambem sois réo; mas bem póde
A Mágia dos passos seus
Encantar os vossos olhos,
Sem fazer chorar os meus.



_Ao Excellentissimo Senhor D. Fernando de Lima, sobre o mesmo assumpto_.


CARTA.


Forte co'a vossa promessa
Dura voz se vai alçar;
Não vem como das mais vezes,
Não vem pedir, vem ralhar;

Não he de esteril rabugem
Raiva inutil, que em mim lavra;
Venho brigar, e vencer-vos,
Minha arma he vossa palavra;

São Leis os priscos rifões;
Na mão a Lei me mettestes;
Sei que a ricos não deveis,
Mas a pobre promettestes;

Promettestes, que huma Imprensa
Faria hum faminto farto;
Meu livro, e as vossas promessas
Inda estão no vosso Quarto;

Sei que a vossa Illustre Caza
He das que honrão Portugal;
Mas eu quero outra melhor,
Quero a Caza Manescal;[32]

[Nota de rodapé 32: Administrador da Imprensa Regia.]

Reis de Hespanha a vossa honrárão,
E eu espero o mesmo delle;
Fizerão-vos _Ricos Homens_,
O mesmo me fará elle;

Vós sois Protector das Artes,
E dahi meu mal viria;
Talvez que pela da Dança
Vos esqueça a da _Poezia_;

Por _Dutein_ esquece tudo;
Estes grupos tão gabados,
Não digo que são os vossos,
Porém são os meus peccados;

As tres Graças a fadárão,
Mas seus dons funestos são;
Tira ás Deozas a maçã,[33]
E a hum triste Poeta o pão;

[Nota de rodapé 33: Fazia a figura de Venus na Pantomima, em que se
reprezentava a fabula de Páris, julgando-lhe o pomo de oiro, destinado á
mais formoza.]

Se a vosso Pai vou queixar-me,
Juro que acceita a querella;
Juro, que vos quer os olhos
Antes em mim, do que nella;

Mas, Senhor, deixando graças
De poetica licença,
Este brinco quer dizer
Que apresseis a tal Imprensa;

Até por curiozidade
Forjai-me este mialheiro;
Só para vermos que effeito
Faz em mim o ter dinheiro;

Talvez que altiva luneta
Nos piscos olhos traidores
Não conheça huns tantos homens,
Principalmente os Crédores;

Talvez que o novel Gallego,
Que soltas bragas trazia,
Entaipado em pantalonas
Dê ao Amo senhoria;

Talvez que inventando heranças
Bisneto de grão Senhor,
A falso espectro agradeça
O que devo ao Protector;

Senhor, se o oiro tal póde;
Levantai da empreza a mão;
Antes réo do meu tendeiro,
Do que réo de ingratidão

Mas inda agora he que eu vejo,
Quanto me fui desmentindo;
Disse que vinha ralhar,
Por fim acho-me pedindo;

Não pude acabar a farça;
Costume custa a vencer;
Comvosco a minha linguagem
He pedir, e agradecer.



_A' Illustrissima, e Excelentissima Senhora Dona Catharina Micaella de
Souza, tendo o Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Luiz Pinto de
Souza expedido Avizo para se imprimirem as Obras do Author na Officina
Regia_.


CARTA.


Senhora, Apollo bem sabe
Que sois digna companhia
De quem em doirados annos
Lhe honrava a doce Poezia;

Inda de viçozo loiro
Lhe guarda a verde coroa;
Fez-lhe falta em sua Corte,
Mas a bem de outra o perdoa;

Manda, pois lhe estais ao lado,
Canteis polidos louvores
A quem em honra ao Parnazo
Fez versos, e faz favores;

Vio o prazer generozo
Com que acabou a tenção,
Que crua Parca arrancára
De outra bemfeitora Mão;[34]

[Nota de rodapé 34: O Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Marquez de
Ponte de Lima, Ministro de Estado, tinha obtido a mercê de se imprimirem
estes Versos a beneficio do A. cujo Avizo não chegou a assignar por seu
repentino falecimento.]

Vio, que apressou seus negocios
Perante quem todos rege;
E que amigo do seu Monte,
Ora o sóbe, ora o protege;

Grato ao grande beneficio
Vos envia o estilo, e a lyra;
Manda-vos cantar-lhe os hymnos,
Que lhe traja, e vos inspira;

Diz que esta empreza vos toca,
E que não admitte escuzas;
Que favor feito ao Parnazo
Hão de agradecello as Muzas;

Pulsai a lyra, enfreai
Bravos ventos rugidores;
Cantai agradecimentos
A quem cantastes amores;

Em má honra a longas cans
Desta empreza escuzo fico;
Fechou-me Apollo a sua Arte,
E quer que aprenda a de rico;

Dura, enganoza sciencia!
Incómmoda, tumultuaria!
Muito mais a quem andou
Sempre na escóla contraria;

Já em socegado somno
Não vejo doces ficções;
Inda a obra está na Imprensa
E já sonho com ladrões;

Sonho, que escalada a porta,
Medonhas caras sem dó,
Vem furtar a Tolentino
O que elle furta a _Boileau_;

Co'esse metal turbulento
Já d'antemão me malquisto;
Que me não fará a posse,
Se a esperança já faz isto?

Sei quem poz a ultima força
Ao punhal, de que me dôo;
Mas, em fim, nada de raivas,
Dizei-lhe que eu lhe perdôo;

E que he tal nesta virtude
Meu conforme coração,
Que não só perdoo o mal,
Mas beijo por elle a Mão.



_Offerecendo alguns dos Versos, que vão neste Livro ao lllustrissimo,
Excellentissimo Senhor Marquez de Angeja, Ministro de Estado, perante o
qual se pertendeo desabonar a Poezia, e os Poetas_.


ILL.^MO E EXC.^MO SENHOR.


V. Excellencia se digne de não julgar atrevimento ir eu aprezentar hum
Livro de inuteis Versos naquellas mesmas mãos, em que se apresentão
Papeis, que decidem dos interesses do Estado, e dos destinos dos homens.
A Poezia, Senhor, só he odioza a quem nella não he instruido. V.
Excellencia sabe a origem, e os progressos desta Arte divina; sabe que
de seu berço foi consagrada ao uzo da Religião, e da Politica; que por
meio della o homem natural, que nutria vagamente entre fragas, e
penedîas hum coração tão contrario ao do homem civil, conheceo a
humanidade, e tomou sobre seus hombros o jugo da Razão, e da Justiça.

Que os primeiros Legisladores escrevião as Leis em verso, para que a
harmonia lhes aplanasse, ou encubrisse aquelles passos escabrozos, que
ferem, e revoltão a nossa natureza, sempre amiga da liberdade; que os
Filosofos, e Sacerdotes do Egypto ensinavão em Poezia os seus Dogmas;
que os bons tempos dos Gregos, modélo dos Seculos de Augusto, e de Luiz
XIV, ao mesmo passo que se alargavão os limites do seu Imperio, vírão
levadas á ultima perfeição, de que são capazes as obras dos homens, a
Lirica, a Epica, e a Poezia de theatro.

V. Excellencia sabe, que os Poetas de Augusto, mais do que as Victorias
de Farsalia, fizerão chamar-se o seu seculo, o seculo de Oiro: que a
passagem do Rheno, e a conquista da Hollanda jazerião no esquecimento,
com o nome de Luiz XIV, se Corneille, e os que o seguírão, não mandassem
ás extremidades do Mundo a fama de suas Victorias; que ainda hoje a
França conta, com prazer, entre as acções daquelle Monarca, a protecção,
e acolhimento, que achárão ante elle as Artes, principalmente a da
Poezia; e que as ultimas palavras do grande Corneille moribundo, forão
agradecimentos ás liberalidades de Luiz XIV.

V. Excellencia sabe, que a Augusta Theologia da Escritura nos instrue
muitas vezes dos Attributos de Deos por imagens inteiramente poeticas;
que os Profetas, unindo maravilhosamente o simples ao sublime, fallão da
existencia, e da Omnipotencia de Deos, com a locução, e com as figuras
da mais alta Poezia.

Mas, SENHOR, eu insensivelmente vou fazendo de huma Dedicatoria huma
Dissertação. V. Excellencia se digne attribuir este erro de methodo á
desordem de animo, em que me põe a ingrata sem-razão de ver os Poetas
desfavorecidos de alguns homens, talvez sem mais crime, que serem
favorecidos das Muzas.

V. Excellencia, em cuja alma raia a razão illustrada, limpa das sombras
do abuzo, não faz cahir sobre o Poeta os defeitos, que são do homem: a
inconstancia de genio, o desconcerto das acções, a filozofia mal
entendida, que caminha a passo cheio á devassidão de costumes, são os
crimes de que o vulgo errado accuza indifferentemente todos os Poetas;
mas se vemos que estas más qualidades brotão no coração de tantos
homens, que não são Poetas, para que hão de elles sós levar o ferrete,
que a Natureza corrupta põe indistinctamente sobre todos os que não
deixão guiar-se da Religião, e da honra? Sempre houve Poetas, bem, e mal
morigerados, assim como o resto dos outros homens: e porque lei barbara
ha de pagar a Poezia as fraquezas da humanidade? Porque falsa Logica
havemos inferir, que o commercio das Muzas, a suave lição dos Antigos,
em que vemos pintada a Natureza, e explicada docemente a boa filozofia,
ha de affogar no coração do Poeta as virtudes, que a índole, ou a
educação talvez alli plantárão?

V. Excellencia julga mais rectamente; sabe, que em todos os ramos da
vida Christã, e Civil tem havido Poetas, que hum talento não exclue os
outros; que Richilieu fazia Versos, e foi grande Ministro; que entre os
Poetas, como entre todos os mais homens, huns são venturozos, outros
desgraçados; huns chamados aos grandes Empregos, ontros inteiramente
esquecidos; que se houve hum Camões, e hum Bernardes, cuja memoria
posthuma foi a unica paga do seu merecimento; tambem, houve hum Sá e
Menezes levantado a Camareiro Mór dos Senhores Reis D. João o III, e D.
Sebastião; hum Pedro de Andrade Caminha, Camareiro Mór do Infante D.
Duarte; hum Garcia de Rezende muito estimado do Senhor D. João o II;
hum Sá de Miranda feito Commendador pelo Senhor D. João o III; e para
não fazer hum catalogo quazi infinito, houve o grande Ferreira, e
Gabriel Pereira de Castro, os quaes, cada hum no gosto do seu Seculo,
misturando Bartholo, e Accureio com Homero, e com Virgilio, forão tão
estimados pelos Versos, que fazião no seu gabinete, como pelas Sentenças
que lançárão nos diversos Tribunaes a que forão promovidos.

O conhecimento da Historia Portugueza, huma das lições, que recreão o
espirito de V. Excellencia, talvez concorra junto com o gosto, que tem
pelas Artes, a que, seguindo o exemplo de tantos Reis, se não despreze
de ouvir os Poetas: eu sou huma prova viva de que V. Excellencia os
ouve, e os protege: nos tempos da antiga Roma Augusto fazia o mesmo, nos
tempos da moderna, lemos, que Benedicto XIV. não se envergonhou de fazer
a apologia aos Versos de hum Poeta Francez com aquella mesma mão, de que
pendião as Chaves do Ceo.

Esta justiça, e bom acolhimento, que V. Excellencia faz á Poezia, foi
quem me esforçou a pôr nas respeitaveis mãos de V. Excellencia hum Livro
de Versos; o terem alguns agradado a V. Excellencia, faz o seu unico
merecimento: hum tal voto fez com que eu julgasse bem delles, e os
levantasse á grande honra de serem offerecidos a V. Excellencia. Não me
acovardão alguns assumptos joviaes, que nelles trato; V. Excellencia
sabe, que se a Tragedia castiga os costumes pelos grandes afectos da
compaixão, e do terror, tambem a Sátyra os castiga pelo meio do rizo; e
este trabalho de minha penna, com que eu entretinha os meus cançados
dias, passará a ser o mais feliz, se tiver a fortuna de divertir alguns
instantes a V. Excellencia, para que com mais força torne depois a
metter mão nos importantes Negocios, de que os Reis, prevenindo os
dezejos do Público, se dignárão encarregar a V. Excellencia: isto
dezeja, Senhor


DE V. Excellencia

O Criado mais humilde, e mais venerador.



_Ao mesmo Senhor no dia dos seus Annos_.


ILL.^MO E EXC.^MO SENHOR.


Os louvores nem sempre são filhos da lizonja, nem sempre são a linguagem
baixa, em que os infelices fazem o seu commercio com os Poderozos;
quando assentão em merecimento sólido, são huma paga devida ás Virtudes;
o Ceo as dá; os Reis devem-lhe os premios; os outros homens os louvores.

Hoje, Ill.^mo e Exc.^mo Senhor, nos apontão os Fastos de Portugal o
feliz Nascimento de V. Excellencia; o costume consagra com Elogios estes
dias solemnes; a Patria recompensa assim os Annos, que a ella se derão;
e se em hum dia destinado aos obsequios, eu fosse hum méro espectador,
hum assistente ociozo, o silencio, tantas vezes virtude, seria agora hum
crime, seria huma prova da minha ingratidão.

A força do agradecimento, e a abundancia, da materia me porião na boca
huma torrente de louvores; mas V. Excellencia põe tanto cuidado em
merecellos, como em não querer ouvillos; temo a sua modestia; e huma
virtude de V. Excellencia me não deixa fallar-lhe nas outras; porém ao
menos seja-me permittido, que a minha alma se encha de complacencia,
lembrando-se de que tres Reis elogiárão a V. Excellencia, chamando-o a
grandes coizas; não quizerão que estes talentos jazessem debaixo da
terra; sobre ella, e sobre os mares os fizerão luzir.

Na flor dos annos, quando as paixões, os exemplos, a natureza abrem
guerra viva ao coração do homem, então vio a severa Magestade do Senhor
Rei D. João o V, que V. Excellencia tão moço nos annos, era já ancião
no conselho, e nos costumes, queria o seu voto nos Tribunaes, e o seu
braço nas Armadas, negros ventos, mares cavados, ferro, sangue, erão os
leitos brandos, em que V. Excellencia hia descançar das honrozas fadigas
da terra.

Que direi do Augusto, Piedozo, e ainda de fresco banhado das nossas
lagrimas, o Senhor Rei D. Jozé o I.? O merecimento, junto com a
semelhança dos genios, e de idades, puzerão sempre a V. Excellencia ao
lado daquelle Monarca; mandou-lhe que acceitasse novos, e importantes
Empregos; recebeo mil provas do seu poder, e da sua familiaridade, e
entre ellas aquella, que V. Excellencia não disse, mas que todos sabem;
aquella de que V. Excellencia nunca poderá lembrar-se sem dôr, e sem
gloria.

Os Benignos, e Amaveis Soberanos, que vemos sobre o Throno, puzerão o
Sêllo na Obra, que seus Augustos Predecessores tinhão começado;
encarregárão a V. Excellencia dos mais importantes Negocios do Estado: a
madureza nos conselhos, o sevéro espirito de inteireza, os Reis, a Lei,
a utilidade pública, são os objectos, que vírão sempre na frente dos
cuidados de V. Excellencia.

Mas, Senhor, eu vou abuzando da bondade, com que V. Excellencia se digna
ouvir-me: eu converto a minha falla ao Throno do Todo-poderozo, que tem
na sua mão as vidas, e os successos dos homens; alli peço ardentemente,
que dilate, que prospére tão bem cultivados annos; que conserve em V.
Excellencia o bom Pai, o Vassallo zelozo, o grande Ministro.

Vós, Illustres Mortos, antigos Instituidores da Caza de Angeja, que
trouxestes no peito o Sangue de dois Reis, não peçais conta delle;
descançai em paz nos frios moimentos, cheios de Victorias, cheios de
Serviços, que pagárão Deos, e os Reis por quem se fizerão. O vosso
Herdeiro he digno de Vós; caminha sobre as vossas pizadas; herdou os
vossos Titulos, e as vossas Virtudes.

E Vós, Moços Illustres, seus dignos Filhos, cujos costumes, frutos do
exemplo, são alto elogio da mão, que vos educa, já os Reis vos chamão;
querem nos Filhos perpetuar o Pai. Os largos, e felices annos, que o Ceo
lhe concederá de vida, serão a vossa escola. Servi os Reis, e a Patria;
sacrificai-lhe os vossos annos, e as vossas fadigas; sede affaveis,
justos, inteiros; sede como elle.


FIM.



INDICE


Do que contém este II. Tomo.


QUINTILHAS.

_Ao Excellentissimo Senhor Conde de S. Lourenço_.
_Ao Excellentissimo Senhor Marquez de Lavradio_.


QUARTETOS.

_A' Excelentissima Senhora Condeça de Tarouca_.
_No dia dos Annos da Excellentissima Senhora D. Maria de Noronha_.
_A' Excellentissima Senhora Marqueza de Alegrete, nascendo-lhe huma
filha_.
_Na occasião em que o A. hia ver o Varatojo_.
_Resposta a huma Carta, que em boa Poezia citava ao A. por huns Versos,
que tinha promettido_.
_Offerecendo hum Perum em huma caza, aonde todos os Domingos davão ao A.
este prato_.
_A huma Preta, que pertendia que a obzequiassem_.


CARTAS.

_A hum Amigo, louvando-lhe o estado de cazado_.
_Ao Excellentissimo Senhor Conde de Villa Verde D. Jozé de Noronha, hoje
Marquez de Angeja_.
_Ao mesmo Senhor, no dia dos seus Annos, estando o A. doente_.
_Tendo mandado huma Senhora ao A. Vinho da Madeira com huma Carta em boa
Poezia_.
_Desculpando-se o A. de não ir a huns Annos_.
_Aconselhando hum Cabelleireiro, que não continuasse a fazer versos_ .
_Pedindo-se ao A. huma Gloza_.
_Agradecendo o A. alguns pratos, que lhe despertárão a vontade de comer_.
_Sobre o mesmo Assumpto_.
_Ao Senhor Dezembargador Sebastião Antonio Sobral_.
_A huma Senhora, que em bons Versos pedio ao A. a Sátyra do Velho_.
_Ao Senhor Deputado Domingos Pires Monteiro Bandeira_.
_A hum Camarista_.


DECIMAS.


_A' Excellentissima Senhora D. Catharina Micaella de Souza, tendo feito
a honra ao A. de lhe offerecer huma Vestia de Setim_.
_Ao Excellentissimo Senhor Conde de Villa Verde, hoje Marquez de Angeja_.
_No dia dos Annos do mesmo Senhor_.
_Sahindo por sortes Compadre de huma Senhora da primeira Grandeza_.
_Fazendo Annos o Excellentissimo Senhor Marquez de Angeja_.
_Ao mesmo Senhor_.
_Ao mesmo Senhor_.
_Ao mesmo Senhor_.
_Ao Excellentissimo Senhor Marquez de Marialva_.
_No dia dos Annos de hum Menino_.
_Na despedida de hum Ministro, que partia levando seus filhos_.
_A hum Fidalgo, que pedia para o A. hum lugar na Secretaria, na occazião
em que elle pertendia o seu proprio despacho_.
_A hum Padre, que dizia ter sido Mestre de Rhetorica, e estava eleito
Cardeal_.
_Mote: Hum suspiro de repente_.
_Mandando huma galinha a huma Pretinha bonita_.
_Cantigas feitas nas Caldas_.
_A hum Leigo, que era vesgo_.
_Estando o A. doente, e mandando pedir algum prato á meza, onde jantava
o sobredito Leigo_.
_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Marquez de Ponte de Lima,
Ministro de Estado, pedindo-lhe o A. licença para ir ao remedio de
banhos_.
_Ao Excellentissimo Senhor D. Lourenço de Lima_.
_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde dos Arcos, sobre o
mesmo assumpto_.
_Ao Excellentissimo Senhor D. Fernando de Lima_.
_A' Illustrissima, e Excellentissima Senhora Dona Catharina Micaela de
Souza, tendo o Illustrissimo, e Excelentissimo Senhor Luiz Pinto de
Souza expedido Avizo para se imprimirem as Obras do A. na Officina
Regia_.


PROZAS.


_Ao Excellentissimo Senhor Marquez de Angeja, offerecendo alguns dos
Versos, que vão neste Livro_.
_Ao mesmo Senhor no dia dos seus Annos_.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Obras poéticas de Nicoláo Tolentino de Almeida, Tom. II" ***

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