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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº1 (de 12)
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº1 (de 12)" ***


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco

PUBLICAÇÃO MENSAL


N.º 1--Janeiro


LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON

96, Largo dos Clerigos, 98

PORTO

EUGENIO CHARDRON

4, Largo de S. Francisco, 4

BRAGA

1874


PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

62--Rua da Cancella Velha--62

1874


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA



SUMMARIO

_Proemio--Consolação a santos Nazareth--As ostras--Rehabilitação
do snr. visconde de Margaride--A Rival de Brites de Almeida--Egas
Moniz--Dous poetas ineditos do Porto--D. João 3.º, o principe
perfeito--Subsidio para a historia de um futuro santo--O livro 5.º
da Ordenação, titulo 22--Problema historico a premio--Desastre do
santo officio no Porto--Rancho do Carqueja._


TRABALHOS

DO

EXC.^mo SNR.

CAMILLO CASTELLO BRANCO

DE QUE É EDITOR ERNESTO CHARDRON

*O carrasco de Victor Hugo José Alves*, romance. 1 vol. ... 500

*A freira no subterraneo*, romance historico (traducção). 1 vol. ... 500

*Os amores do diabo*, romance (traducção). 1 vol. ... 800

*Mosaico e silva de curiosidades historicas*. 1 vol. ... 500

*Memorias do bispo do Pará*. 1 vol. ... 500

*Poesias e prosas de Soropita*. 1 vol. ... 500

*A espada de Alexandre*. Córte profundo na questão do homem-mulher e
mulher-homem, por um socio prendado de varias philarmonicas. ... 240

*Carta de guia de casados*, para que pelo caminho da prudencia se acerte
com a casa do descanço, a um amigo, por D. Francisco Manoel. Nova
edição, com um prefacio biographico, enriquecido de documentos ineditos.
... 360

*Vida d'el-rei D. Affonso VI*, escripta no anno de 1684. Com um
prefacio. ... 400

*Diccionario universal de educação e ensino*, traduzido e muito ampliado
nos artigos relativos a Portugal e Brazil. 2 grossos volumes, de 800
paginas cada um, a 2 columnas. ... 6$000



PROEMIO


Esta serie de livrinhos ha de ser uma cadêa com elos de bronze rijos e
toscos, e elos de pechisbeque flammantes e quebradiços. O bronze é a
porção prestadía do opusculo; é a pagina que não seria descabida em
livro de estudo; é a pretenção do author a que a sua obra perdure mais
de vinte e quatro horas no espirito de quem a lêr.

O pechisbeque é a futilidade que, ao nascer, é acolhida por um sorriso
do leitor; e, apenas o sorriso esmorece, a impressão esvaíu-se; e a idéa
fulge e apaga-se sem deixar mais signal que o relampago das noites de
agosto, e o arrancar da aguia no seio das nuvens.

Ambas as especies pertencem ás minhas noites de insomnia. N'esta
deploravel enfermidade, que ha seis annos me estila no cerebro gota a
gota a peçonha da morte, achei traça de me vingar do acaso que embala o
regalado dormir do meu cão, e me estrondeia nos ouvidos o marulhar das
vagas entre penhascos. Vou ao jazigo das minhas illusões, exhumo os
esqueletos, visto-os de truões, de principes, de desembargadores, de
meninas poeticas á semelhança das que eu vi quando a poesia era o aroma
dos seus altares. Visto-me tambem eu das côres prismaticas dos vinte
annos, aperto a alma com as garras da saudade até que ella chore
abraçada ao que foi. E, depois, n'este festim de mortos, conversamos
todos; e eu, no alto silencio da noite, escrevo as nossas palestras. Ás
vezes, entre muitos estridores que me resoam nos ouvidos, o mais
distincto é o dobre a finados. É quando a aurora reponta: a luz espanca
as imagens cujo meio de vida é a treva e o silencio.

Venho então sentar-me a esta banca, dou fórmas dramaticas ao dialogo dos
meus phantasmas, e convenço-me de que pertenço bem aos vivos, ao meu
seculo, ao balcão social, á industria, mandando vender a Ernesto
Chardron as minhas insomnias.

Eis a minha vingança, que abrangeria o leitor, se estes livros lhe não
abonassem horas de somnolenta digestão de alguns artigos substanciosos.
Estes artigos constarão da nobre sciencia da historia, nomeadamente de
historia nacional, e muito das cousas pertencentes á fidalguia de raça
que vai extinguir-se. É tempo de esgaravatar entre as ruinas do edificio
derruido algumas reliquias aproveitaveis para a comedia humana. Mas nem
tudo será escavar no lixo. Não vaguearemos sempre ao través dos
pardieiros dos antigos solares. Alguma vez nos sentaremos na testada da
serenissima casa de Bragança conversando com os seus duques e monarchas
n'aquella sem ceremonia permittida á arraia miuda de hoje em dia; mas
escreveremos as nossas considerações, como lá dizem, de luva branca e
penna de diamante. Desejamos que a posteridade se entretenha comnosco, e
com o snr. conselheiro Viale. Elle e nós levaremos aos evos uma sincera
historia de Portugal, e andaremos os dous, á compíta, a vêr quem maiores
emborcações de morphina injecta nos nervos das gerações porvindouras.



CONSOLAÇÃO A SANTOS NAZARETH

    _Beati qui lugent_, e não pagam.

                      A BIBLIA E EU.


Amigo!

Sensibilisou-me até ás lagrimas a noticia da sua prisão no theatro de S.
Carlos, n'aquella funesta noite da sua citada prisão, como diria o nosso
collega Jayme José Ribeiro de Carvalho.

Não foi a razão que motivou esta ternura: foi a amizade.

Vossê devia ser preso. Dizer que o espectador póde patear um espectaculo
desagradavel e caro é duvidar que o espectaculo é que tem direito de
patear o espectador.

Santos Nazareth ignora as leis do reino expungidas da jurisprudencia do
Manique, e não tem talvez opinião bem assente ácerca da transmigração
das almas.

A metempsychose do famoso intendente geral da policia fez-se ha 60
annos, pouco mais ou menos, na pessoa d'esse alcaide do real alcaçar que
enviou o meu amigo ao Limoeiro como enviaria Mattos Lobo e Diogo Alves,
se os colhesse no theatro de S. Carlos em flagrante _banzé_. Admitta o
plebeismo que tem o fartum fadista da cazerna e da guitarra, que ainda
hoje chora saudades da Severa, e disputa ás trombetas bastardas de Pedro
I as reaes delicias da sua progenie.

Quando a imprensa rugiu pelas suas guelas de zinco um rugido grande a
favor de vossê, as minhas palpebras exsudaram perolas, na hypothese de
que a intendencia da policia o obrigára a pagar aos quadrilheiros as
despezas de o conduzirem aos ferros d'el-rei.

É que eu considerando-me em plena monarchia do Pina Manique, lembrou-me
um caso acontecido ha 89 annos.

Raphael da Silva Braga, na noite de 2 de outubro de 1795, pateou uma
cantora no theatro de S. Carlos.

O corregedor Pedro Duarte da Silva mandou dous quadrilheiros agarrar o
espectador desgostoso, e mettel-o no Limoeiro.

No dia seguinte participou o successo ao Manique.

O intendente, informando-se das condições do preso, soube que era pobre
e tinha familia; e, além d'isso, pateára com tal conhecimento da arte.
Em consequencia do que, ordena que Raphael seja solto, _pagando 3$200
reis de diligencia para os officiaes_.

Se alguma vez é permittido a um homem da minha idade soluçar de
commoção, é agora. Dar a liberdade a um homem pobre, mediante 3$200
reis, em attenção á sua pobre e consternada familia, é uma cousa bonita
e lacrimavel!

Aqui lhe dou o traslado d'esta pagina de ouro do Manique, e lhe envio a
original pela posta, a fim de vossê regalar os seus amigos vaidosos de
serem de um paiz onde ha isto:


«Snr. Pedro Duarte da Silva. Louvo o procedimento que v. m.^ce teve
contra Raphael da Silva Braga, por ser um dos que hontem á noite deram a
pateada no theatro de S. Carlos: attendendo porém á sua pobre familia,
que está em consternação, e a outros motivos justos, que concorrem, v.
m.^ce o haverá por corrigido, e o mandará soltar, pagando tres mil, e
duzentos de diligencia para os officiaes. Deus guarde a v. m.^ce Lisboa,
3 de outubro de 1795.--_Diogo Ignacio de Pina Manique_.»


No rodar de 90 annos, desde 1795 até 1874, a poesia do direito, graças
ás insomnias do doutor Theophilo, defecou os Maniques da prosa dos 3$200
reis, de modo que vossê não pagou nada, segundo me consta. Isto me faz
cogitar que o progredir é fatal, e que o snr. barão de Zezere, o
longobardo,--chrysalida de outra transmigração,--ha de passar a fuzil
mais polido na cadêa dos intendentes geraes da policia; por maneira que,
na sua futura metempsychose, já se não distingam vestigios do corregedor
Marques Bacalhau, façanhoso magistrado de D. João V.

Entretanto, meu amigo, pois que a raça dos Maniques ainda referve nas
retortas depurantes, aceite o meu conselho:

Antes de entrar na platéa, vá ao camarote das authoridades, e
pergunte-lhes:

--Com quaes dos quatros pés manifestam v. exc.^as, esta noite, a sua
opinião lyrica?

E governe-se, consoante a resposta.



AS OSTRAS


No Porto, as commoções que sacodem os nervos da grande cidade, são
raras; mas, se rebentam, são a valer!

No principio d'este anno, estavamos todos quietos, com estas nossas
caras cheias de ideal, gravidos de philosophias, hypocondriacos, ares
inglezes, indigestos; mas, sobre tudo, bons visinhos e inimigos de
novidades.

A quarta pagina das gazetas andava, ha muito, alugada aos varios
_barateiros_, que se denominam numericamente como as dynastias,
traspassando a sua qualidade de barateiros n.^o 1, n.^o 2, etc., á
proporção que quebram, e vão transmittindo a genealogia dos epithetos,
maneira discreta de esconder os nomes.

Eis que, inesperadamente, se annunciam em letras colossaes AS OSTRAS.

E os litteratos, encarregados de guiarem a corrente da opinião publica,
escolhendo no seu guarda-joias a mais nitida pedraria de estylo,
apregoaram as ostras como ha dezenove seculos o fazia Horacio quando as
afogava no falerno de Mecenas.

O localista do _Primeiro de Janeiro_, com pulso febril, e ternura pelo
marisco, exclamou: «Abençoado o nome de quem quer que em tempos tão
doentios nos trouxe medicina tão efficaz e preconisada!... Não são de
Ostende as ostras que se nos offerecem, frescas, saborosas e
provocadoras, pela manhã como leite de cabra, ao meio dia como o _lunch_
á ingleza, á noite como um restaurador das forças perdidas no labutar
diurno. São de Montijo, igualmente boas, e igualmente irritantes. Vamos
a ellas!»

Vamos lá! conclamou toda a gente doentia, toda a gente em uso de leite
de cabra, toda a gente que _lunchava_ á ingleza, e, em summa, toda a
gente que á noite costumava restaurar as forças, deitando-se a dormir,
ou extrahindo do goraz cozido o phosporo necessario á sua vida
intellectual e physica.

Desde o alvorejar das gazetas, confluiram á praça de D. Pedro todos os
servos que superintendem na culinaria das familias. As massas que
desembocavam das ruas circumjacentes davam a lembrar os comicios
d'aquelles dias de vertigem civica, lá quando os irmãos Passos abriam na
viella da Neta os relampagos do Sinay, e a turbulencia da liberdade alli
vinha soltar um rugido e ameaçar os tyrannos.

Não assim agora n'estes dias em que o paiz, podre de feliz e anemico da
sua indigestão de prosperidade, procura restaurar-se pelo marisco.

De mais a mais, os diarios tinham annunciado que as ostras eram GORDAS;
e, sobre gordas, dizia o _Primeiro de Janeiro_, IRRITANTES. Pela
qualidade de gordas, o sorriso que brincava nos meus labios, quando
mandei o meu gallego comprar doze vintens d'aquelle remedio, era um
sorriso de tão legitima candura como o leitor os tem visto nas bentas
bochechas dos seraphins que sobem de gatinhas pelas columnas dos
altares. Quanto a irritantes, como essa virtude me não parecesse a mais
sadía, mandei ao mesmo tempo comprar a linhaça correspondente.

E, em quanto o criado ia e vinha, consultei, para illudir a impaciencia,
os meus livros no que havia, através dos seculos, mais averiguado ácerca
das ostras. Li em Chernoviz que póde uma pessoa comer oito duzias sem
experimentar o minimo incommodo. Oito duzias--noventa e seis ostras, de
manhã, como leite de cabra; noventa e seis, como _lunch_ á ingleza;
noventa e seis á noite para restaurar as forças: ao todo, duzentas e
oitenta e oito ostras quotidianas que custam no deposito da praça de D.
Pedro 3$840 reis.

É uma alimentação economica e boa para fortalecer o estomago de um paiz
pobre. Qualquer sujeito anemico, pallido, que não possa com um gato por
qualquer parte do mesmo, deve nutrir esperanças de que, no fim de um
anno, tendo comido cento e cinco mil cento e vinte ostras gordas da
praça de D. Pedro, que lhe custam um conto quatrocentos e um mil e
seiscentos reis, póde gozar uma saude mais ou menos gallega.

Assim que o meu criado chegou com dezoito ostras por 240 reis, atadas na
ponta de um lenço, á guisa de biscoutos de revalenta, duvidei da gordura
do testaceo, mas afaguei a charneira da concha bivalve, porque só de per
si a concha tem virtudes medicinaes cuja noticia eu envio aos risos
jubilosos dos meus amigos. Tenho aqui a _Anchora medicinal_ do grande
medico Francisco da Fonseca Henriques, e n'ella a pag. 247, _mihi_,
artigo _Ostras_, leio com estremeções de gaudio: _As conchas das ostras
queimadas são boas para as queixas das almorreimas._

Isto é o que o _Primeiro de Janeiro_ sabia de fundamento quando abençoou
o inventor de remedio tão conveniente ás doenças do tempo. Faz-se mister
grande intuição medica de entranhas a dentro para diagnosticar
hemorrhoidas universaes na nação.

Das alegrias externas, passei a averiguar a gordura annunciada do
testaceo hermaphrodita.

Não me pareceu tão gorda a ostra espalmada na concha que podesse
disputar vantagens a um jantar do Ugolino de Dante na Torre de Piza.

Authorisado pelas idéas que fórmo de gordura, suspeito que o empresario
d'estas ostras descobriu o segredo de repartir dez por cada casca; ou,
negociando as cascas em Montijo, as encheu com ameijoas do Cabedelo. É
uma falsificação engenhosa que merece desculpa em quanto se conservar na
familia dos testaceos; mas desde que o unico depositario das ostras
portuenses começar a introduzir nas conchas das ostras pedacinhos de
bucho de safio, carochas e grillos de salmoura, quer-nos parecer que uma
duzia d'estes covilhetes por oito vintens não é barato, nem me garante a
renovação do meu sangue depauperado.

Não obstante, o consummo de ostras no corrente mez, no Porto e
arrabaldes, tocou uma cifra que seria fabulosa, se as consequencias da
irritação, previstas pelo _Primeiro de Janeiro_, se não manifestassem
formidaveis, nos geitos, nos ademanes, nos esgares, nas crispações
electricas que faiscam dos olhos de toda a gente saturada das ostras do
unico deposito. Conhece-se que os insultos inferiores, que o pó da
concha combate, se deslocaram, e evadiram a cupula do edificio humano.
Os systemas nervosos, levados pela irritação a electróphoros,
tornaram-se engenhos luminosos que transcendem as mais phantasticas
idealisações da pyrotechnica. Esta galvanisação de organismos extenuados
é realmente um espectaculo que honra muito a ostra; mas que tambem póde
vir a ser nocivo á saude das almas.

Sei que temos recursos antiphlogisticos para combater as irritações,
desde as cataplasmas de fecula até ás ventosas sarjadas; mas o emprego
d'estes meios therapeuticos obriga as pessoas timidas a andarem na rua
com um alforge de drogas, como os antigos physicos, ministrando capilés
e orchatas a todos os sujeitos que denunciem instinctos inflammados no
ultimo grau de irritação.

Em nome da moral publica, pedimos ás pessoas irritaveis que se abeberem
em agua de cevada, quando sentirem que a ostra se lhes insinua
perfidamente nos seios do coração.



REHABILITAÇÃO DO SNR. VISCONDE DE MARGARIDE


S. exc.^a festejou o seu natalicio com um baile, em um dia de jejum, por
uma noite de janeiro, breve e esplendorosa. O dia era de abstinencia
carnal, note-se. Creio que o preceito começava á meia noite,
pontualmente á hora em que a restauração das forças, esvaídas na
vertigem dos bailados, reclamava varios phenomenos reparadores desde a
trituração até ao filtramento do chylo no systema sanguineo. Se eu não
odiasse o palavriado vulgar, diria que os hospedes do snr. visconde
precisavam de comer.

Á magnitude do appetite correspondeu a magnificencia dos acipipes. Era
já soada a hora da abstinencia do boi, do perú, da gallinhola, do
_salmagundy_. E, não obstante, as iguarias condimentosas, a febra, a
alimentação rija lourejava nos pratos e nas terrinas entre ondulações de
perfumes. Alguns dos convivas sabiam que o dia ou a noite era de peixe.
Senhoras de idade canonica, respeitaveis por seus principios e
observantes das disciplinas da igreja, não vendo alvejar a pescada ou o
rodovalho entre coxins de batata e cebola, tantalisavam a perdiz em
molho de villão; mas, cerrando os dentes á invasão do peccado,
esquivavam-se a sahir do baile com o bolo alimenticio azedado por
escrupulos. N'este comenos, alguem disse o que quer que fosse a meia voz
ás pessoas perplexas entre a gallinhola _truffée_ e a religião dos
Affonsos.

Umas pessoas, depois que ouviram a nova, sorriram, como vencidas de
tentação deliciosa, e comeram carnes. Outras, invulneraveis e inflexas
na sua abstinencia, martyrisaram-se com trutas e salmões. Como quer que
fosse, houve escandalo. Comeu-se volateria e ruminantes em sexta feira.
Algumas consciencias sahiram do baile do snr. visconde, ás 8 horas e
meia da manhã, com o peso do estomago sobre si.

A opinião publica, já em Guimarães, já em Braga, ergueu-se á altura dos
principios, e murmurou. Eu fiz parte d'esta opinião adversa ao
magistrado superior do districto a quem corre o dever de penitenciar os
seus hospedes com trutas e salmão em dias de peixe, em memoria dos
augustos mysterios do christianismo.

Quanto a mim, o snr. visconde era um atheu e os seus hospedes uma cafila
de heresiarcas. Eis senão quando a imprensa do Porto divulga uma noticia
que bafejou um halito de jubilo na face de Braga, no perfil de
Guimarães, e nos tres quartos do paiz. Apresso-me a repetil-a em grifo
com uma consolação catholica, e tanto ou quê apostolica: _O snr.
visconde de Margaride tinha obtido dispensa do prelado bracharense para
que os seus hospedes podessem comer carne._

Orvalhe-se de lagrimas de alegria o rosto da christandade portugueza;
que eu por mim, quanto um abraço cabe nas potencias da phantasia, aqui
aperto contra o coração o snr. visconde de Margaride, e felicito os
catholicos que digeriram innocentemente as suas vitualhas.



A RIVAL DE BRITES DE ALMEIDA


A façanhosa forneira de Aljubarrota resiste á incredulidade da critica,
abordoando-se ás muletas do patriotismo e á pá. Sabe-se pouco das
proezas de Nuno Alvares e Mem Rodrigues. Nada referem os historiadores
das apostas e porfias dos cavalleiros do Mestre de Aviz. Porém, que a
forneira matou sete hespanhoes ebrios, feridos ou prostrados de fadiga,
isso, que não póde ser honroso porque é vil, aprendem-o as crianças, e
repetem-o adultos com desvanecimento e orgulho. Por honra da minha
patria, quero crêr que a lenda da padeira de Aljubarrota é tão
authentica e verdadeira como a do caldeirão de Alcobaça, apresado no
arraial de D. João I de Castella. Dêem-se-me honras de Niebuhr n'esta
cousa do caldeirão de Alcobaça.

Houve outra heroina, mais digna de lembrança, e, todavia, ignorada. Essa
praticou um feito de nobre coragem, defrontando-se a rosto com o
inimigo, e derrubando-o.

Foi o caso que em 1762 os hespanhoes, commandados pelo marquez de
Sarria, invadiram Portugal pela provincia de Traz-os-Montes. A cidade de
Miranda foi das terras d'aquella provincia a que mais soffreu as
arremettidas do exercito invasor. Alli perto, passa o rio Fresno, cujas
margens se communicam por uma ponte. Na extrema esquerda d'esta ponte
vivia uma mulher casada, cujo marido se alistára nas guerrilhas
dispersas pelas empinadas penedias do Douro. Um piquete de hespanhoes,
com seu sargento, passou a ponte do Fresno. O sargento viu a mulher do
guerrilheiro, que era a mais esbelta e donosa moça da comarca. Postou os
soldados de atalaia a pequena distancia da ponte, e voltou de noite,
acompanhado de dous, com o proposito de se fazer amar da aldeã por meio
do assalto.

Este sargento, em tempo de guerra, não usava das artes maviosas do seu
patricio Tenorio. Em vez da guitarra e da escada de corda, fiava na
suspensão das garantias, na quebra do direito internacional, na cronha
da escopeta, e na pujança de seis rijas espadoas atiradas á porta
d'aquella Elvira montezinha.

A rapariga, votada ao saque, se não tinha commendador em casa, tinha
cousa mais infesta ao sargento: era o marido que, por saudade ou receio,
debandára da horda guerrilheira e fôra, encoberto por entre penhascos,
pernoitar a casa.

Alta noite, os tres castelhanos bateram á porta.

O portuguez não respondeu; foi ella que assomou na adufa do sobrado,
perguntando o que pretendiam áquella hora.

O sargento, depois de inutilisar algumas phrases lyricas, tomou o pulso
á timidez da moça, intimando-a a entregar a praça.

O marido estava ouvindo, e perguntou muito de manso á mulher:

--Quantos são?

--Tres--respondeu ella.

--Deixa-me lá ir, antes que venham mais. E ella, sahindo da janella,
disse:

--Então vamos lá.

--Tu não venhas.

--Não? isso lá, hei de ir, quer queiras, quer não.

O sargento no entanto voltou-se aos dous soldados e disse:

--A praça rende-se.

D'ahi a minutos, abriu-se a porta da rua.

O guerrilheiro deu uma guinada de tigre para a testada da porta, e
desfechou um arcabuz em um dos tres, que foi a terra. Dous pelouros ao
mesmo tempo lhe bateram no peito; mas o portuguez, ao cahir morto,
levava debaixo de si um dos dous com uma navalha hespanhola embebida nas
entranhas. Sobrevivêra o sargento aos companheiros, mas sómente o tempo
indispensavel para que ella o varasse do peito ás costas com o espeto da
cozinha.

Depois, como sentisse o tropel da soldadesca, travou do marido, desceu
por um algar escuro e pedregoso á ourela do rio, e cahiu prostrada de
afflicção, quando conheceu que levava um cadaver. Ao romper da manhã,
galgou á cumiada da serra, onde estanciavam os camaradas de seu marido,
e viu de lá as ultimas fumaças da sua casinha, que os soldados
castelhanos haviam queimado.

Nada mais se sabe d'esta mulher. Não consta, sequer, que o governo de D.
José I lhe mandasse reconstruir o casebre, acabada a guerra.

Houve um poeta contemporaneo, que a descantou em um soneto jocoso,
avantajando-a á Brites de Aljubarrota. As musas sérias não acharam a
heroina digna de poesia grave.

E esse mesmo soneto chocarreiro ninguem o conheceria, se lh'o não
publicassemos aqui, precedido de um interrogatorio académico:



_Qual acção é mais memoravel: a da forneira de Aljubarrota, matando os
castelhanos com a sua pá; ou a da mulher de Traz-os-Montes, matando o
sargento castelhano com o espeto?_

    SONETO

    _É problema que deve disputar-se,
    entre os authores de mais nome e nota,
    se póde essa mulher de Aljubarrota
    com a de Traz-os-Montes comparar-se._

    _Aquella tem razão para gabar-se
    de fazer com sua pá tanta derrota;
    esta, que deixa co'a barriga rota
    ao sargento, tambem deve estimar-se._

    _E esta, a meu vêr, melhor juizo tinha,
    pois, vingando o marido seu dilecto,
    fez o que ao seu genio lhe convinha._

    _Metteu-se-lhe nos cascos o projecto
    de tratar o hespanhol como gallinha,
    e, assim que topou um, pôl-o no espeto._

No principio d'este artigo, fallamos de apostas, porfias e promessas de
cavalleiros, antes de se desfraldarem os guiões e bandeiras na batalha
de Aljubarrota. Vasco Martim de Mello prometteu pôr as mãos no rei D.
João I de Castella; Gonçalo Annes de Castello de Vide prometteu ser o
primeiro que lhe enristasse a lança ao rosto. Estas promessas são
heroicas; mas houve uma de Martim Affonso de Sousa Chichorro
extremamente original pela deshonestidade. Vejam com que limpeza de alma
este fidalgo se preparava para um conflicto de morte, e deprehendam
d'ahi o que eram as crenças da immortalidade no seculo do cavalleiroso
Mestre de Aviz.

Na hoste de D. João assignalava-se João Rodrigues de Sá, o das Galés,
aquelle heroico perfil tão portuguezmente desenhado pelo snr. A.
Herculano no _Monge de Cistér_.

João Rodrigues de Sá, ainda moço n'aquelle tempo, tinha uma bella irmã,
abbadessa do mosteiro benedicino de Rio Tinto chamada Aldonsa Rodrigues.
Martim Chichorro queria muito á gentil prelada, e não resguardava da
censura os seus amores adulterinos com a esposa do Senhor. Na vespera da
batalha perguntaram-lhe os fidalgos namorados da ala de Mem Rodrigues
que promessa era a d'elle.

--Prometto, se escapar da batalha--respondeu o amoroso selvagem--ir ter
uma novena com a abbadessa de Rio Tinto.

Grande cascalhada de riso, naturalmente. Houve logo um bisbilhoteiro que
denunciou ao das Galés a fatuidade de Martim, quinto neto por bastardia
d'el-rei D. Affonso III.

--Pois eu--disse João Rodrigues serenamente--prometto ir atraz d'elle, e
bater-lhe.

Deu-se a batalha. Vasco Martim de Mello morreu no empenho de pôr a lança
no rei. Gonçalo Annes sahiu illeso do voto cumprido. E Martim de Sousa,
tão extensamente cumpriu a sua--as novenas succederam-se em tanta
copia--que a peregrina Aldonsa houve do seu pontual servidor dous filhos
que se chamaram Martim e Pedro. O que os genealogicos esconderam á
posteridade, edificada com as virtudes das abbadessas e dos Chichorros,
foi o genero de sova que o das Galés deu no pai dos seus sobrinhos.

Talvez se desforrasse, consoante o gosto do tempo, em o fazer tio dos
seus numerosos bastardos. As preladas formosas eram as conciliadoras em
contendas d'esta natureza. D. João I morigerava os mosteiros, mandando
vestir o habito de commendadeira de Santos a Ignez Pires, depois de a
condecorar com a dupla virtude da maternidade. Os nossos reis, quando se
enfastiavam das mulheres, davam-as de presente a Deus.



EGAS MONIZ


Representa-se no Porto um drama chamado _Egas Moniz_. Não louvo nem
censuro a composição, nem discuto se melhores interpretes a realçariam
no palco. Tambem não levanto a já debatida questão da veracidade do
facto. O snr. Alexandre Herculano crê que o aio de Affonso Henriques
praticou o feito heroico. É o bastante.

Quando o drama se annunciou, a primeira vez, nos cartazes, um homem de
sessenta annos, vestido de preto, sobrecasaca no fio, o velludo da gola
rapado, as calças recortadas e lamacentas á volta das botas azuladas de
velhice, parou á esquina da rua Formosa, a lêr o cartaz grudado no
cunhal da igreja das Almas.

Eu reconheci-o a distancia, avisinhei-me, e parei, por detraz d'elle, em
frente do cartaz, meditando.

E meditava isto:

Egas Moniz gerou Lourenço Viegas, o espadeiro;

Lourenço Viegas gerou Egas Lourenço;

Egas Lourenço gerou Sueiro Viegas Coelho;

Sueiro gerou João Soares Coelho, valido de D. Affonso III;

João Soares Coelho gerou Pedro Annes Coelho;

Que gerou Estevão Coelho;

Que gerou Pedro Coelho, o matador de D. Ignez de Castro;

Pedro Coelho gerou Gonçalo Pires Coelho;

E assim se foram gerando uns dos outros com uma constancia digna da
nossa admiração, até que uma senhora da casa dos Coelhos, senhores de
Vieira e Felgueiras, casou na casa dos senhores da Teixeira e Sergude, e
d'este consorcio gerou-se:

Gonçalo Pinto Coelho, que gerou:

Martim Teixeira Coelho, que gerou:

Bernardo José Teixeira Coelho, que gerou:

Gonçalo Christovão Teixeira Coelho de Mello Pinto de Mesquita, senhor da
Teixeira, de Sergude e do Bom Jardim, pai d'aquelle homem pobremente
vestido que lia o cartaz do drama _Egas Moniz_, na esquina da rua
Formosa.

Aproximei-me d'elle, puz-lhe a mão no hombro, e disse-lhe:

--Está o meu amigo regosijando-se de lêr em letras enormes o tio de seu
decimo oitavo avô Egas Moniz...

--Não, senhor--respondeu elle sorrindo--estava a scismar n'uma cousa que
me não regosija absolutamente nada...

--Bem sei--acudi eu com a minha notoria esperteza--estava v. exc.^a
meditando que já não ha portuguezes que, á semelhança do seu avô, fossem
de corda ao pescoço dar satisfação da palavra mal cumprida.

--Não, senhor; pensava em outra cousa...

--Bem sei... pensava no apagado luzimento d'esta heroica estirpe dos
Viegas, dos Coelhos, dos...

--Não, senhor; pensava em ir vêr ao theatro Baquet representar a façanha
d'este meu illustre avô; mas vejo aqui escripto que um lugar da galeria
custa duzentos reis; e eu, decimo oitavo neto de Egas Moniz, se tivesse
dous tostões, iria empregal-os no jantar de meus filhos, que estão em
jejum.

..........................................................................

Snr. Antonio Moutinho de Sousa, dê no seu theatro um beneficio a favor
de alguns netos do aio de D. Affonso I, e convide-os a levantar o obolo
que os admiradores de seu avô d'elles depositarem na bandeja dos pobres.

Os descendentes do fidalgo, que ensinou o primeiro rei portuguez a ser
honrado, não deviam ter fome e frio, quando as plateias desbordam de
gente jubilosa de bom patriotismo e de melhor jantar.



DOUS POETAS INEDITOS DO PORTO


Na segunda metade do seculo XVII floreceram no Porto dous doutores,
acariciados das musas, e por isso mesmo rivaes e inimigos: eram João de
Assucarello (ou Sucarello) Claramonte, e Christovão Alão de Moraes,
desembargador da Relação e mais tarde corregedor do civel do Porto. Do
primeiro temos algumas poesias deshonestas, e diminutas noticias, e
essas em referencias dos poetas seus contemporaneos, nomeadamente o
padre Jeronymo Bahia. Do segundo encontra o leitor ampla noticia no
_Panorama_ de 1854, n.^os 123 e 127. Distinguiu-se como poeta e
genealogico. Não sei onde param oito volumes em folha escriptos de sua
mão, intitulados _Genealogia das familias de Portugal_. Sei que o duque
de Lafões, no seculo passado, os não quiz comprar porque lhe não
respeitavam a pureza do sangue dos avós; e a bibliotheca publica de
Lisboa tambem os não adquiriu, ha poucos annos, «por incuria ou capricho
do ex-bibliotecario Canaes», diz o snr. Innocencio Francisco da Silva.

O doutor João de Assucarello satyrisava o Porto, representado nas
pessoas de mais importancia, algumas das quaes nos são hoje
desconhecidas, e difficilmente lhes rastrearemos as familias que as
representam.

Eis-aqui o maledicente soneto do medico, émulo de Christovão Alão:

    _As valentias de Gaspar de Anhaya,[1]
    O mero e mixto imperio do Sarinho,
    A calva de João Nunes frita em vinho,
    As filhas do Picão de Miragaya;_

    _Mercancia de esterco, ambar da Maya,
    Comprado ou já por lenha ou por toucinho,
    Geral remedio de Entre-Douro e Minho,
    Achado antes nas casas que na praia;_

    _Beata calva, immensa gravidade
    Dos infanções mantidos com farelo,
    Da manta rota a celebre Irmandade:_

    _Este é o Porto--acabo de dizel-o.
    Ó muito nobre e sempre leal cidade,
    Quem te pozera a couves e bacello!_

Não se percebem alguns epigrammas do soneto; mas aquelle verso que
rescende ao _ambar da Maya_ não seria ainda hoje um anacronismo.

Respondeu Christovão Alão, pelas mesmas rimas, do seguinte feitio:

    _Bem caro te custou Gaspar de Anhaya,
    E te póde custar inda o Sarinho;
    Poeta bacchanal, farto de vinho,
    Que és deshonra do Porto e Miragaya._

    _Villão inda mais sujo que da Maya,
    Creado só com brôa e com toucinho,
    Quem te mette a fallar em Douro e Minho,
    Sendo filho das ervas e da praia?_

    _Como has tu de entender da gravidade
    Dos infanções, brichote de farelo,
    Se não logras dos nobres a Irmandade?_

    _Este és, ó bebado!--acabo de dizel-o:
    Que só para beber toda a cidade,
    A desejaste poeta de bacello!_

Este soneto é bom.

Desculpa-se ao poeta fidalgo a arrogancia com que desdenha o plebeismo
do Assucarello, appellido que nenhum linhagista condecora; dado que este
medico já então tivesse o habito de cavalleiro da ordem de Christo. Ora
os Alões são mais antigos em Portugal que os seus monarchas. D. Mendo
Alão era senhor de Bragança, antes da vinda do conde D. Henrique a
Hespanha. Alguns genealogicos lhes dão como antepassados os reis
_álanos_. Na igreja de S. Bartholomeu de Lisboa existiu o morgado de
Santo Eutropio instituido por D. João Alão, bispo do Algarve. Esta
familia está representada no Porto por descendentes que não desdouram
tão nobre appellido.

    [1] Não ha no Porto alguem que use este appellido; mas a familia que
    o teve ainda aqui vivia honradamente no meiado do seculo passado, e
    se obscureceu no Alemtejo e Minho por onde se ramificára. Prende com
    esta familia do Porto Antonio Fogaça, aqui nascido. D. Sebastião o
    mandou como seu residente para Inglaterra, onde permaneceu largos
    annos, em serviço dos Philippes, enviando de lá importantes noticias
    em tempo de Henrique VIII. Seguiu a facção da rainha Catharina, e
    gastou o mais grosso dos seus grandes cabedaes n'esse brioso
    empenho. Succedendo no throno a rainha Isabel, foi Antonio Fogaça
    preso e duas vezes trateado na Torre de Londres, vindo a morrer das
    torturas, quando recobrou a liberdade. Por sua morte, foi-lhe
    confiscado o restante dos bens. Antonio Fogaça teve de sua mulher
    Isabel Ribeira de Vabo uma filha que se chamou D. Maria, e casou com
    Braz Rodrigues Anhaya. D'estes nasceu outra D. Maria do Vabo
    Pimentel, que casou com o capitão Manoel Soromenho Dias, de quem foi
    filho Luiz do Vabo Pimentel, governador da praça de Albufeira. Em
    1750 ainda existia em elevada categoria um filho d'aquelle ultimo.
    Era capitao-mór de Alvor, e chamava-se Antonio Pimentel do Vabo. Nas
    provincias de Traz-os-Montes e Minho, nomeadamente no Paço de Carude
    e Torre de D. Chama, existiram Vabos e Soromenhos. De todas estas
    familias descende o snr. Augusto Soromenho, erudito professor do
    curso superior de letras, e que, ha quinze annos, com legitimo
    fundamento, usou em documentos publicos dos seus appellidos _Vabo e
    Anhaya_.



D. JOÃO III, O PRINCIPE PERFEITO


Não me recordo se os chronistas d'este rei nos contam que os
resplendores da graça divina lhe aureolaram o rosto, quando a alma se
desatou d'aquella infame caverna, e foi receber o galardão dos milhares
de hebreus queimados em obsequio á religião da fé, esperança e caridade.
O snr. A. Herculano capitula este rei de _fanatico, ruim de condição e
inepto_; mas isto não faz implicancia á salvação do monarcha, antes a
confirma; porque o grande historiador, sabendo como se fazem optimos
livros, de certo ignora os processos da formação da glottica e dos
santos. Afóra isto, sabe tudo, excepto que D. João III, quando expirou,
causava medo aos que lhe viram a horrendissima cara.

As pessoas medianamente cultas não ignoram que houve um frade de grandes
virtudes e letras chamado frei Thomé de Jesus, da ordem de Santo
Agostinho. D. Sebastião o levou comsigo á batalha de Alcacerquibir. Não
sabemos se o frade pelejou; mas temos de certeza que ficou ferido,
captivo, e encarcerado nas masmorras de Maquinez. Transferido para
Marrocos, por diligencia do embaixador de Portugal, rejeitou o resgate,
que seus irmãos, fidalgos de primeira plana, lhe offereceram, preferindo
a escravidão alli onde eram muitissimos os captivos carecidos de
confortações e exemplos de paciencia. E, ao cabo de quatro annos de
servidão, morreu em Marrocos, aos 17 d'abril de 1582, na idade de
cincoenta e tres annos, legando-nos um livro lá escripto e muito
apreciado com o titulo _Trabalhos de Jesus_.

D'este escriptor mystico possuimos uma carta inedita, motivada pelo
trespasse de D. João III, e escripta desde Lisboa a certa communidade
religiosa. O esclarecido bibliographo F. Innocencio da Silva sente que
esta carta, principiada a imprimir no _Murmurio_, periodico bracharense,
ficasse incompleta. Nós, que tambem possuimos d'ella um traslado da mão
de D. fr. Manoel do Cenaculo, arcebispo de Évora, vamos dal-a integral e
textualmente, na certeza que revivemos um documento historico, lavrado
por testemunha presencial, e, além d'isso, por um dos mais abalizados
escriptores do seculo aureo da lingua portugueza.

Reza assim:

«Amantissimos Padres. O Spirito Sancto cosolador, e emparo dos
atribulados console suas almas, que creio estarão já com a dor, que nós
temos da morte de nosso Pai, Rei, e Senhor, taõ supita, e taõ inopinata,
como foi, e lhes dê o emparo espiritual de sua graça, e temporal de
cabeça tal, qual foi a que perdemos. Amen.

«Ainda que creio, que já teraõ a certeza da morte del Rei Nosso Senhor,
porem por mo mandar nosso Padre, e eu o ter já assim determinado de
fazer, e porque muitas cousas se dizem lá, e cá, que naõ foraõ assim,
pera saberem a certeza do que passa lhes quero contar por ordem tudo:
ainda que folgára eu muito de ter antes perdidas as virtudes, e forças
naturaes do corpo, que te-las pera aver de escrever o que agora ouvirão.

Quarta feira _infra octavas Penthecostes_, sahio El Rei Nosso Senhor,
que santa gloria aja, a ouvir missa á Misericordia, quasi indo em pessoa
a chamar a Misericordia, que d'ahi a pouco tempo o avia de levar á
sepultura, e assim foi esta derradeira sahida só, pera seu costume, e
hia ainda muito bem disposto. Ouvida a missa se tornou muito de pressa
ao Paço com muita, infinda gente, mal disposto de huma perna, mas pouca
cousa, e tudo isto vio hum Padre desta casa. Chegando ao Paço se
encerrou em huma camara só sem ninguem, onde esteve muito grande espaço,
depois do qual chamou, e pedio agoa rosada, com a qual lavou o rosto, e
mãos, e tornou a estar só outro pedaço, donde sahio a jantar muito
melenconisado, e jantou mal, e á tarde teve huma febrezinha muito
pequena.

«Quinta feira se alevantou, e andou hum pouco achacoso, diziaõ que era
de naõ dormir com cuidado do Principe[2] que tivera huma febre, e
arrevesava, e naõ dormia. Mas Deos sabe o que era. Com tudo não tinha
doença que o fizesse estar em cama.

«Á sexta feira se alevantou tarde, e ouvio missa em casa, e jantou muito
bem assombrado, e assim esteve toda a sésta, que ao parecer estava bem,
até as quatro horas, as quaes dadas nos chamárão á procissão _praecipue_
pelo Principe, que Deos guarde, a qual sahia da Sé á Misericordia.
Sahindo nós da Sé chegou hum recado que fossemos a Jesu de Saõ Domingos
com a procissaõ por el Rei, que estava muito mal, e assim se fez, e ouve
pregaçaõ. De maneira que perto das cinco horas se começou el Rei de
agastar, e chamou Confessor, que estava na Mesa da Consciencia, e
confessou-se das cinco até as oito. E logo do Saõ Giaõ lhe leváraõ o
Senhor, e chegando nós ao Rossio, nos deraõ novas, que lhe naõ achavaõ
pulso. Acabando de comungar começou a concertar seu testamento, o qual
naõ acabou de fazer com as mezinhas, e com os agastamentos; mas segundo
me dixe o Confessor da Rainha o substancial delle fez, e assinou. Ás dez
horas se achou mais leve, e despejou[3] para repousar, e ás onze chamou,
e vendo que carregava o accidente pedio a Unçaõ, a qual lhe trouxeraõ
logo, e quando já chegou naõ fallava, mas recebeo-a vivo, a qual
recebida, sendo já meia noite, em quanto podiaõ dizer huma terça rezada,
_expiravit_ levemente, e sem movimentos, nem trabalho mais, que o
mortal, que he o mór de todos. De maneira que em sete horas, a saber des
das cinco ás doze acabou. A isto naõ estive eu presente, mas soube-o do
Confessor da Rainha, e de Luiz Gonçalves, que ahi se achavão presentes,
e delles soube que quando el Rei pedio a Unçaõ, que se recolheo o
Cardeal, e os outros Senhores, e só a Rainha se foi pera el Rei, e com
elle esteve até espirar sem botar lagrima, e acenando a todos que
ninguem chorasse alto por não inquietar a el Rei, ella o consolava, e
animava a passar alegremente aquelle passo com muitas palavras christãs
e devotas: ella lhe teve com grande coraçaõ a candeia em a maõ, e lhe
fechou os olhos, e acabando elle de espirar se foi cobrir de dó, e se
poz em hum oratorio com quatro vellas no altar, e frontal, e dorsel de
veludo carmesi, com o braço de Saõ Sebastiaõ, onde o Padre Montoya a
visitou, e consolou, ou para melhor dizer ella consolou ao Padre, que
ainda que com muitas lagrimas, com tudo mui inteira na rasaõ, e na
modestia exterior, sem nenhum estremo, mostrou estar muito conforme com
a vontade do Senhor Deos, e receber tudo de sua maõ, e que rogava muito
aos Padres, que a encomendassem a Nosso Senhor.

«Agora o que vi com meus olhos lhes contarei, e o que tratei com minhas
mãos: querendo ungir el Rei mandáraõ chamar Padres de todallas Ordens,
os quaes todos chegáraõ tendo elle já espirado, e assim o nosso Padre,
cujo companheiro fui eu, correndo quanto podiamos fomos quasi todo o
caminho, porque não cuidavamos que se fosse taõ asinha. Achámos pelas
ruas e Ribeira tudo cheio de pranto, e de gritos, e de muita gente, que
com trabalho entrámos. Entrados _vidimus coronam capitis cecidisse, et
obiisse_:[4] ninguem se ouvia com gritos, e soluços, huns em pé, outros
de giolhos, outros por esse chaõ: huns chorávaõ, outros gemiaõ, outros
amarellos estavaõ pasmados com ver morte taõ supita e com desemparo taõ
de repente, e de improviso, estavaõ todos attonitos, e sentidos: ninguem
se ouvia, e escassamente podiaõ os Religiosos rezar com lagrimas, até
que ás duas, ou tres depois da meia noite entrou o Cardeal ainda de
vermelho a despejar a camara, rogando, e chamando a todos senhores, sem
lagrima nenhuma, e com el Rei ficáraõ os Religiosos, e alguns Fidalgos,
e assim estivemos até as cinco rezando muitos Officios de defunctos, e
muitas orações. Ás cinco depois de visto o testamento em conclavi, o
Arcebispo despejou a camara sem deixar mais que de cada Ordem hum ou
dous Religiosos para o amortalharem, e o Pinheiro com o Confessor del
Rei a hum canto rezando: e assim cobertas as cortinas do leito dous
Padres de Saõ Francisco, e hum do Carmo, e Frei Jeronimo d'Azambuja de
Saõ Domingos, e eu o amortalhámos, ministrando-nos hum Clerigo Fidalgo,
de maneira que estas tristes maõs o laváraõ, e alimpárão, e
amortalhárão: Bendito seja Deos. Seu corpo ainda que ficou bem
assombrado acabando de espirar, com tudo pelo muito que esteve por
amortalhar _quando o descobrimos estava mais feio, e mais preto do
rosto, e mãos, o mais sujo, e o mais nojento, e em fim o mais mortal e
terreno, que eu vi outro, e eu tive aquelle pelo mór espectaculo_, e
pera todo Religioso ver, pera doctrina, e edificaçaõ, que podia ser:
_Non potuimus continere lachrimas_[5] com pranto, e lagrimas rezando o
Officio de Defunctos lhe posemos huma toalha na cabeça e rosto mal
lavada, e despida huma camiza suja de sangue que botava pela boca, e
cousa verde depois de morto, lhe vestimos outra lavada, e lhe posemos o
Bentinho de Christo, e o emburilhamos em hum lençol, e cozemos com
barbante, sem outra cousa, nem vestido, nem mais habito, e o posemos em
hum catele sem alcatifa, nem nada, onde esteve ate trazerem o ataude.
Nisto acabou o estado, o fausto, as riquezas, as pompas, as cortezias,
os serviços, as adorações reaes, nem em tudo isto se aqueixou dos que
isto lhe faziaõ, aquelle que com só a vista fazia tremer o mundo. Dahi a
pouco lhe poseraõ hum estrado grande em o meio da camara coberto de
veludo preto, rodeado de alcatifas, e sobre elle hum ataude forrado de
veludo preto por fóra com huma cruz de damasco branco, e de linho de
dentro, aonde o Bispo de Leiria, e o do Funchal, e o Arcebispo, e o
Priol de Palmella, e o Bispo D. Pedro e eu com dous Frades o metemos,
onde lhe beijáraõ a maõ por sima do lençol estes que ahi estavaõ,
lançando-se todos sobre elle com muitas lagrimas, começando novo pranto,
e pregado o ataude lhe botáraõ por sima hum panno de veludo preto muito
grande com cruz de damasco branco, e aos pés poseraõ huma mesa coberta
com hum panno de damasco preto, na qual estava huma cruz da capella, e
dous castiçaes com suas vellas, e caldeira de agua benta, e ao rededor
quatro tochas em suas tocheiras de prata. E he muito pera notar, que
assim como el Rei, que santa gloria aja, foi em vida muito amigo dos
Frades, assim des que espirou até o levarem, elles o acompanháraõ,
porque até o amortalharem, como já dixe: estiveraõ com elle Frades de
todallas Ordens, Frades o amortalháraõ, e meteraõ no ataude, e
concertáraõ, e metido cada Ordem vinha sobre si com cruz alevantada, e
estava com elle duas horas dizendo hum Officio de Defunctos entoado.
Convem a saber os de Saõ Domingos das sete até as nove; os do Carmo das
nove até as onze; os de Saõ Francisco das onze ás doze e meia; depois os
da Trindade até quasi as duas; depois nós até as tres, e idos todos
ficáraõ huns poucos de cada Ordem com a capella até as quatro sempre
rezando. Ás quatro entrou o Cardeal, já de roxo, e de giolhos, sem
lagrimas, beijou o estrado, e repartio as toalhas do ataude, convem a
saber da maõ direita á cabeceira o Senhor Dom Duarte, logo Dom
Constantino, logo outro que naõ conheci, logo o Conde da Castanheira: da
banda esquerda _ad caput_ o Duque d'Aveiro, logo tres que naõ conheci,
os quaes escassamente podiaõ levar o ataude, e aberta a porta da camara
por onde o haviaõ de tirar, que estava na varanda, se alevantou hum
pranto taõ grande que era cousa de pasmo. Eu nunca vi tanta gente junta,
nem tanto grito e choro, nem faces ensanguentadas e arranhadas, nem
barbas depennadas, como entaõ vi, tanto que nem havia forças pera andar,
nem pera bulir o corpo lugar, até que o Cardeal rogou, que andassem, e
recolhendo-se começarão a andar, e passadas duas portas não podéraõ
mais, e chamaraõ Religiosos que os ajudassem, dos quaes fui eu hum, de
maneira que eu o amortalhei e meti no ataude, e levei até o meterem nas
andas; a aquelle que a mim, e a toda a Ordem deo sustentaçaõ, e vida, e
com tanto trabalho de meu corpo, que ando agora muito mal tratado por
pesar muito, e porque descendo pela escada me ficou sobre mim só todo da
banda dos pés, sem me poderem valer com a muita gente, onde cuidei de
ficar; mas certo que entaõ naõ senti este trabalho, nem me lembrava
repouso, nem sono, nem comer, no que tinha muitos infindos companheiros.
Assim nas andas forradas por dentro de veludo preto, com hum panno por
sima muito grande do mesmo, com cruz branca, o levou a Misericordia, e a
Capella, e o Cabido, sem mais cruz que a da Capella, todos com tochas a
cavallo, em duas azemolas, que bem tinhaõ que fazer em o levar, que
tanto pezava, e levaraõ-no a Belem, e enterraraõ-no á cabeceira de seu
Pai com hum Responso, que pera mais nem lagrimas, nem gritos, nem gente
davaõ lugar, que segundo se conjeiturava se ajuntáraõ ao levar, assim na
cidade, como fora, até Belem entre homens, mulheres, e meninos por todos
bem quarenta, ou cincoenta mil almas, o que crê facilmente quem presente
se achou, e o via por seu olho, e naõ foraõ com elle Ordens por rasaõ da
Festa da Trindade, nem sabemos ainda quando iraõ, porem todollos
Moesteiros se naõ occupaõ agora senaõ em dizer Officios por elle, e em
fim os Padres de Saõ Jeronimo o botáraõ á terra, onde jaz descansando, e
tornando-se naquillo, que he, aquelle que na vida era Pai, Rei, Senhor,
Emparo, e Soccorro, a quem naõ faltava nada pera ser o mais illustre
Principe da Christandade: praza a Nosso Senhor que lhe dê na outra vida
a gloria, que todos lhe desejamos, e que elle com suas boas obras creio,
que merece. Amen.

«Hoje se quebráraõ nesta cidade os Escudos, que he o terceiro dia, e
ámanhã terça feira juraraõ o Principe, e cremos que passada a Festa se
faraõ os Saimentos Reaes. Do estado do Reino, e quem fica por Governador
_nulli narranti credatis_, porque ainda tudo está secreto, nem se saberá
_ut creditur_ taõ cedo. Isto que lhes escrevi he o certo do que passa,
tudo o ai tenhaõ por incerto. Resta que o encomendem muito a Nosso
Senhor, e a Rainha, e ao Principe, o qual fica bem disposto, e eu o vi
sabbado em pé, e bom, e nosso Padre lhe dixe missa depois del Rei
amortalhado, e lhe dixe hum Evangelho.

«Esta carta tenhaõ cada hum por sua, e encomendem-me a nosso Senhor
todos, porque eu naõ tenho tempo, nem disposição pera escrever
particularmente a todos, ainda que sim vontade grande. As ceremonias da
cidade já naõ se fazem nos dias ordenados, mas a outro tempo. De Lisboa
a 14 de Junho de 1557. Irmaõ de todos, e filho em Christo. _Frei Thomé
de Jesus._»


Está visto que o principe perfeito, flagello dos israelitas, morreu
bastantemente fedorento, revessando postema esverdinhada, e envolto em
uma camisa chagada e esqualida, que fez engulhos ao bom do frade. No
discurso da vida, D. João II soffreu sempre de uma erysipela nas pernas,
que ás vezes lhe não consentia o uso das piugas; por maneira que trazia
as botas estremes sobre a pelle esgarçada de sorosidades. Era uma cousa
immunda em corpo e alma este scelerado real! Vem de molde o extracto de
umas antigas Memorias ineditas de Diogo de Paiva e Andrade:

«D. João III costumava dormir a sesta depois de jantar em uma casa que
tinha janellas para o Tejo, assistindo nos Paços da Ribeira, sendo
poucas as pessoas a quem permittia licença de entrar n'ella em quanto
descançava. Succedeu, uma tarde, abrir a porta uma d'aquellas a quem
tinha permittido a dita faculdade, e viu el-rei não deitado, mas em uma
cadeira sustentando com ambas as mãos a cabeça e com os braços
encostados sobre uma banca; e, não lhe dando palavra, retirou-se para a
casa immediata, e com os mais que estavam n'ella se principiou a
discorrer sobre qual seria o motivo que obrigava sua alteza a tanta
consideração. Achava-se tambem presente o marmanjo-mór, um chocarreiro
do paço, castelhano, chamado D. Fernando de Roxas, homem que tinha siso,
o qual, depois de observar muito tempo a conversação, disse para os que
fallavam:--Senhores, el-rei não quiz dormir, e não considera em cousa de
substancia--e, entrando logo na camara em que estava, perguntou-lhe em
que cuidava; ao que el-rei respondeu: «Estou considerando como se me
farão umas botas menos largas do que uso, sem padecerem as pernas.»
Voltou o chocarreiro para fóra, e, contando o que passava, acabaram os
discursos, entrando-se em outros, que merecia o assumpto. N'este tempo
foi mui frequente o calçado de botas, ainda em dias de grande funcção,
por imitação a el-rei, que quasi sempre as trazia, por ser muito soroso
das pernas, e tão grossas as tinha que poucas vezes se servia de meias.»

Até aqui o author do _Casamento perfeito_.

Quando se escrever sincera historia de Portugal, não se repita sómente o
que o snr. A. Herculano escreveu da inepcia, do fanatismo, e das ruins
entranhas de D. João III. Refira-se que a alma lhe exsudava o pus na
epiderme das pernas, e attribua-se ás angustias da sua suja enfermidade
o phrenesi que rebentava em raivas contra os judeus, a diabetes que se
dessedentava em sanque. Se Byron satyrisou os bons costumes e as
virtudes inglezas porque tinha um calcanhar desengonçado, que muito que
D. João III queimasse trinta mil innocentes, se as pernas lhe esvurmavam
peçonha?

Ao proposito do marmanjo-mór D. Francisco de Roxas, occorre-nos
acrescentar que elle teve uma filha chamada D. Maria, que casou com
André de Sousa Chichorro, descendente de Affonso III e de uma formosa
moura. D'este neto do rei e da filha do chocarreiro ha descendentes, a
quem não é hoje permittido saudar como netos do marmanjo-mór do paço
d'el-rei D. João, o _principe perfeito_.

    [2] Este principe era seu neto D. Sebastião.

    [3] _Despejar_, quer dizer que mandou sahir da camara os que lhe
    assistiam.

    [4] Vimos que a corôa lhe resvalára da fronte, e era morto.

    [5] Não podémos reter as lagrimas.



SUBSIDIO PARA A HISTORIA DE UM FUTURO SANTO


Falla-se na canonisação do arcebispo de Braga D. fr. Caetano Brandão.

Li as _Memorias para a historia_ da vida d'este insigne prelado,
colligidas por Antonio Caetano do Amaral. Não desconheço os louvores que
lhe teceu o insuspeito José Liberato Freire de Carvalho nas suas
_Memorias_. Li com mais prazer a biographia que lhe encarece as
virtudes, escripta pelo snr. Innocencio Francisco da Silva. Commoveu-me
a leitura do drama do doutor Silva Gayo, aquelle optimo coração que já
não pulsa cheio do amor de seus filhos.

Inferi d'estas variadas leituras que o arcebispo não tivera em vida quem
lhe suspeitasse da probidade, nem por tanto, no acto da canonisação, lhe
sahiria com libello infamatorio aquelle personagem que, no processo da
santificação, se chama o _advogado do diabo_.

Illusão que me desluz outras muitas fundadas em bases de vento e poeira.

O primeiro advogado do diabo que enrosca a hirta cauda e se amezendra
n'ella, ao tribunal dos cardeaes, é o ministro do principe regente, José
de Seabra da Silva; e o pio João é citado tambem para ouvir da lingua do
seu ministro o depoimento que elle authorisou. Quem duvidar do que vai
lêr, dirija-se ao archivo da secretaria do reino, e peça que lhe deixem
examinar o copiador dos _Avisos_ expedidos no anno 1794, e lá encontrará
o seguinte:


«_Ao arcebispo de Braga._ Sua magestade, sendo informada dos
procedimentos e _amontoados crimes_ que v. exc.^a tem perpretado contra
a disciplina da igreja, e ainda das mesmas leis, usando de sua regia
piedade por esta vez (pois devia ser outro o exemplo), é servida que
logo, sem perda de tempo, mande restituir por seus despachos a abbadessa
do convento de Santa Clara de Villa Real á sua occupação, e as mais
religiosas aos seus respectivos cargos, e as noviças continuem o seu
noviciado, levantando a supposta excommunhão, e dando conta ao confessor
do principe, o padre frei Mathias, incumbido dos negocios das
religiosas, de tudo o que obrou, declarando n'ella o motivo porque assim
tinha praticado, e outra á secretaria para constar da sua execução.
Palacio de Nossa Senhora da Ajuda 10 de fevereiro de 1794.--_José de
Seabra da Silva._»


Quem viu no começo do aviso o prelado arguido de _amontoados crimes
perpretados contra a disciplina da igreja_, e logo adiante encontra uma
ordem de restituir a abbadessa e as religiosas, e de mais a mais, as
noviças aos seus officios no convento de Santa Clara, cuida que D. frei
Caetano Brandão estava na sacrilega posse da abbadessa, das outras
freiras e--o que mais é de censurar e invejar--das noviças!

Apresso-me a desfazer a hypothese que se encosta á equivoca redacção do
_Aviso_. O arcebispo não tinha freira nenhuma desgarrada do divino
redil.

O que elle tinha era a santa e serena coragem de responder áquelle
hypocrita de frei Mathias em termos que revêem o socego de alma
invulneravel ás phrases insultuosas do ministro que em 1778 se havia
recolhido de Angola com aquelle luxo de cortezia.

A razão do insulto é simplesmente miseravel. O arcebispo, fundado no seu
direito, prohibiu que no convento de franciscanas de Villa Real
professassem religiosas. A relaxação d'aquella communidade ia na
vanguarda dos mosteiros onde os vicios se rehalçavam mais soltamente.
D'ahi a prohibição que punha a mira em desviar d'aquella gafaria as
meninas ainda incontaminadas.

O vigario geral da terra era amante da prelada, bem aparentado na côrte,
caprichoso e rico.

Foi a Lisboa, insinuou-se na estima de frei Mathias da Conceição,
confessor do principe, e alcançou, por intermedio do frade, licença para
professarem religiosas, directamente enviada á sua Heloisa d'elle
vigario geral, que se parecia tanto com Pedro de Abeillard como com
Origenes.

O arcebispo, avisado da desobediencia, excommungou a prelada, a escrivã,
a rodeira, a boticaria, as cantoras, a organista, as noviças, todo
aquelle harém, sujeito a um califado numeroso de padres, de fidalgos, de
poetas, de todos os freiraticos da provincia. Uma balburdia!

Voltou a Lisboa o vigario geral, depois da excommunhão, posto que as
excommungadas não tivessem fastio, nem extraordinarios ataques
esthericos.

D'esta segunda ida, resultou o _Aviso_ ultrajante que o leitor leu com
assombro e indignação.

D. Caetano respondeu ao confessor e ao ministro do regente, que
garganteava canto-chão em Mafra devotamente. As cartas são longas e a
vida é breve. Da resposta enviada ao padre Mathias, trasladamos um
periodo energico:


«... Espero que v. s.^a se capacite de que não é o espirito de teima o
que me anima ao presente lance; mas o desejo sincero que tenho de dar
boa conta da minha administração ao supremo juiz dos vivos e mortos.
Respeito com profunda submissão as ordens dos meus soberanos, e d'esta
disposição creio tenho dado as provas menos equivocas em doze annos que
vou contando de bispo, como podem attestar assim na America como no
reino todos os que tem ouvido ou lido as minhas instrucções pastoraes.
Mas esta obediencia ás reaes ordens sabe v. s.^a perfeitamente que nunca
deve extinguir no coração de um bispo o zelo que d'elle reclamam os
legitimos direitos da igreja, sobre tudo quando se enlaçam tão
apertadamente com a salvação das almas. O contrario seria transtornar a
ordem que Deus tem estabelecido entre o sacerdocio e o imperio; é querer
fazer a igreja captiva dos reis da terra convertendo-a em corpo
politico, o que sem difficuldade, diz Bossuet, arguiria a mais inaudita
lisonja que póde entrar no espirito humano... Uma cousa quero pedir mui
confiadamente a v. s.^a, e é que no caso que as razões expendidas lhe
não pareçam sufficientes para sustentar o meu designio relativamente aos
mosteiros d'esta diocese, como para mim tem força, e tal que liga
invencivelmente a minha consciencia, haja de expor a sua alteza a
impossibilidade em que me acho de condescender com a vontade d'aquellas
religiosas, em quanto se me não fornecerem novas luzes por onde venha no
conhecimento do meu erro... Braga 13 de março de 1794.»


Na resposta ao ministro é humildissimamente um apostolo da primitiva
christandade. Alludindo ao vigario geral que o detrahe e impugna na
carta, escreve mansamente:


«... Só um pequeno numero de espiritos, de que não era difficil conhecer
as intenções, pelo interesse que tinham de vêr deprimida e mesmo
extincta a authoridade de quem os dessocega na falsa paz da sua
relaxação e desordem (entre os quaes sobresahe com grande vantagem um
clerigo que se acha n'essa côrte com ar de requerente, homem que sempre
representou no theatro das intrigas que são manejadas com arte), só este
pequeno numero que a abbadessa se tinha associado para as suas
frequentes conferencias, é quem podia lisonjeal-a em tão estranho
projecto.»


E, a final, quem venceu?

Venceu o vigario geral, e a abbadessa, e a rodeira, e a organista, e a
escrivã, e a boticaria. Houve luminarias no adro do mosteiro. Versejou o
poeta da organista, que era padre, e se chamava o _Mormo_, alcunha de
molestia que lhe pegára o pegazo das cavallariças monasticas. Recitou o
poeta da boticaria, que se chamava o padre Mesquita, que lidava em
torneio de murros com o Mormo em todos os outeiros. O vigario geral fez
córar a abbadessa com uma ode em que ella era comparada á Venus
callipygia; em fim, até os _tachos_, que assim lá chamavam ás criadas,
deram motes e pasteis--os celebrados pasteis de Santa Clara--a muita
somma de sapateiro que n'aquella noite converteu a tripeça em lyra e a
sovella em plectro.

D. frei Caetano Brandão áquella hora pedia, talvez, a Deus que lhes
perdoasse a ellas e aos poetas porque não sabiam ellas o que faziam, nem
elles o que diziam. Era santo, em fim!

Quem poder imital-o, faça a mesma oração a favor de alguns poetas de
hoje em dia, e não se esqueça de mim, que sou dos mais necessitados.



O LIVRO 5.º DA ORDENAÇÃO, TITULO 22


O desembargador do paço e conselheiro real Ignacio da Costa Quintella
falleceu em 2 de janeiro de 1752, deixando o seu nome perpetuado na
_Bibliotheca Jurisconsultorum lusitanorum_, em quanto na face da terra
se souber latim.

Além da _Bibliotheca_, deixou uma viuva e dous filhos. A viuva chamou-se
D. Maria Michaela de Sousa; o filho era Ignacio Pedro Quintella, e a
filha chamou-se D. Isabel Thereza de Sousa Quintella.

Em casa da viuva ficou, por morte do desembargador, um escripturario
habilissimo, chamado Felix Tavares de Almeida, de familia limpa, bem
figurado, intelligente, poeta, e, pelo conseguinte, namoradiço.

D. Maria Michaela encarregou-o de todos os negocios de sua grande casa,
incumbindo-o especialmente de correr com o inventario do casal; mas nem
por isso lhe indultou a audacia de requestar-lhe a filha.

Assim, pois, que teve denuncia dos amorios de Isabel com o seu criado,
como ella o denominava para aviltal-o aos olhos da filha, despedia Felix
Tavares, com ameaças de o mandar prender, se teimasse em deshonrar a
estirpe dos Quintellas--estirpe que, a fallar verdade, ainda estava
muito em vergontea verde.

Isabel, com o seu amor, impunha ao escrevente expulso a obrigação de ter
coragem. A correspondencia epistolar continuou, apesar de todas as
vigilancias da mãi e do irmão de Isabel, que já era casado áquelle
tempo.

Queria muito a viuva dar querela contra o seductor, mas carecia de prova
escripta. A menina queimava as cartas assim que as lia, e não tinha
confidente que a trahisse, porque o medianeiro das cartas era um fio de
sêda, e as testemunhas eram a lua discreta e as estrellas silenciosas da
alta noite.

Acudiu o filho á inquietação da mãi com este alvitre: «Eu queixo-me de
que Felix Tavares, quando sahiu do nosso serviço, me roubou dinheiro, e
requeiro que se lhe passe revista á casa. As cartas, que Isabel lhe tem
escripto, hão de apparecer, se o apanharmos de sobresalto. Uma carta só
que appareça, é prova bastante.»

D. Maria approvou a idéa, applaudindo a esperteza do filho.

Feita e despachada a petição, o corregedor do bairro de Andaluz entrou
de subito na humilde casa do moço arguido de ladrão, fez-lhe abrir um
bahú, depois de revistar as gavetas, e achou um massete de cartas que,
n'um volver de olhos, reconheceu serem de amores. Metteu as cartas na
algibeira, repulsando com desabrimento as supplicas de Felix Tavares, e
sahiu.

O atribulado rapaz não soube que o infamavam de furto, porque o
magistrado fizera a diligencia sem proferir palavra nem explicar a razão
da visita.

Percebeu que as cartas de Isabel iam ser instrumento de processo.
Conhecia bem os homens do seu tempo, e escondeu-se.

O corregedor enviou parte das cartas mais lyricas de Isabel ao duque
regedor das justiças; e este, depois que se regalou e mais a familia com
os requebros delambidos da filha do desembargador, enviou-as a D. Maria
Michaela.

Esta, quando viu as cartas, perdeu os sentidos, porque do conteudo das
mesmas deprehendeu que, passados alguns mezes, seria avó. Quando tornou
á sua razão, envergonhou-se de pôr em juizo tão deshonrosos papeis.

N'este tempo, a viuva e a filha viviam em uma quinta nos arrabaldes de
Lisboa, esperando que se reedificasse o seu palacete aluido pelo
terremoto de 1755.

Felix Tavares, certificado do silencio da viuva e da segurança da sua
pessoa, continuou a frequentar os muros da quinta.

Instado por Isabel, e alentado para todo o risco, requereu ao vigario
geral, juntamente com ella, que lhe admittisse fiança a banhos, fundando
a petição em razões de honra, de pudor e de religiosidade. O vigario
geral dispensou-os de licenças e pregões.

Uma noite fugiram; e, ao amanhecer do dia seguinte, casaram-se.

D. Maria, quando deu falta da filha, sahiu para Lisboa, e fez
espectaculo das suas lagrimas na presença dos desembargadores amigos de
seu defunto marido. Comprometteram-se todos unanimemente a vingar a
viuva do conselheiro desembargador do paço Ignacio da Costa Quintella.

Isabel conhecia o genio iracundo da mãi. Apesar de haver legitimado com
o sacramento o seu erro, pediu ao marido que evitasse os primeiros
impetos da colera dos seus. Esconderam-se, pois, mudando o nome, no
sitio de Alcantara, e ahi viveram com o seu filhinho pobremente do
producto de algumas joias, até 1758.

No fim d'este anno, que era o terceiro de casados, persuadiram-se que o
coração da mãi devia estar aplacado pela acção do tempo. Isabel
escreveu-lhe, e não teve resposta; escreveu novamente, e recebeu a carta
fechada, e um insulto de viva voz. Apesar d'estes ruins presagios, Felix
Tavares de Almeida, forçado pela necessidade, mudou para Lisboa, a fim
de grangear sua subsistencia no trabalho da escripta ou agencia de
causas em que era versado.

Principiava a melhorar de posição, quando, ao sahir de sua casa, na
manhã de 2 de junho de 1760, foi preso á ordem do corregedor, e
conduzido ao Limoeiro.

Pouco tempo depois, D. Isabel Thereza de Souza Quintella era tambem, com
ordem de captura, conduzida á quinta de sua mãi nos arrabaldes de
Lisboa. Levava o filho nos braços.

Foi aquella criança que a defendeu do suicidio ao vêr-se sósinha na
quinta, com uma criada que nunca vira, e um escudeiro que a encarava de
esconso com tregeitos de menospreço.

No mesmo dia em que entrou no Limoeiro, Felix Tavares foi chamado á sala
para ouvir lêr a sua sentença.

--A minha sentença!--exclamou elle.

Não lhe respondeu o meirinho. Foi, e ouviu lêr o seguinte ao escrivão da
correição do crime da côrte, Loureiro, sujeito que lia uma sentença no
tom lugubre em que os frades entoavam os threnos de Jeremias:

«Vistos estes autos, libello da A. (authora), provas e documentos
juntos, mostra-se que, sendo o réo criado de escada acima...

--Criado!--interrompeu o preso.

--Ouça e cale-se!--respondeu asperamente o escrivão.

E continuou:

«Criado de escada acima assalariado do desembargador do paço Ignacio da
Costa Quintella, e da A. sua mulher, continuou no mesmo serviço de casa
até alguns dias depois do memoravel terremoto do 1.º de novembro de
1755, no qual tempo foi visto por muitas pessoas solicitar
escandalosamente de amores a filha da A. sua ama, D. Isabel Thereza de
Sousa Quintella, menor de 25 annos, escrevendo-lhe escriptos amatorios
com expressões de grande e estranhavel confiança, dos quaes, muitos
d'estes e reciprocamente d'ella foram achados pelo juiz do crime do
bairro de Andaluz no bahú do réo, indo em diligencia de furto de
dinheiro...

--Que é!--bradou Felix Tavares--que aleivosia é essa de furto de
dinheiro?

--Já lhe disse que me não interrompa!--sobreveio o escrivão.

--Hei de interrompel-o em quanto me não disser quem é o infame que me
chama ladrão!

--Eu não sou--disse o Loureiro, olhando-o por cima dos oculos de
tartaruga.--Escute lá o resto, que vm.^ce não é sentenciado por
ladrão...

O preso não pôde replicar suffocado pelos soluços; o escrivão proseguiu:

«De furto de dinheiro feito ao filho mais velho da A. já casado...

--O villão mentiu!--exclamou Felix Tavares, estendendo os braços
convulsos ás pessoas que o rodeavam, como se lhes pedisse que o
defendessem da calumnia.--O villão mentiu, senhores! Acreditem que eu
não furtei dinheiro algum!

--Já lhe disse que não furtou...--volveu o escrivão.--Isto são palavras
que não tiram nem põem...

--Não tiram nem põem!--replicou o sentenciado.--Oh! que infames! que
infames!...

E cobria o rosto com as mãos, balbuciando vozes inintelligiveis.

O escrivão continuou a lêr:

«E se reconheceram as letras serem suas, que o dito ministro queimou,
reservando algumas, que entregou ao duque regedor, para dar parte d'esta
aleivosia á dita A.; e outro sim foi visto por varias pessoas na quinta
da A., já depois de ultimamente despedido da dita casa, fallando só com
a filha da A. em sitio suspeitoso para acções lascivas, tendo assim
havido tratamento e ajuste occulto de se casarem, e ser ella tirada por
justiça contra vontade da A. sua mãi, para o que supplicou ao vigario
geral do patriarchado, e obteve fiança a banhos com o fundamento de
causas occultas que facilitaram a sua dispensa, do que se não quiz
passar a certidão pedida, fl. 235, de modo que sendo necessarios todos
estes requerimentos antecedentes e prova d'elles, em que certamente se
havia de gastar tempo, chegaram com effeito a receber-se em 23 de
novembro do dito anno, pouco depois de ter sido expulso de criado,
retrotrahindo-se todo o facto da solicitação e aleivoso ajustamento de
casarem ao tempo do famulato, e da quinta em que ella assistia com a A.
sua mãi, como tudo se mostra das certidões fl. 224 e 322.

«N'estes termos...--proseguiu o escrivão descarregando na venta direita
a pitada do simonte que esperava a suspensão de novo periodo--«n'estes
termos, sendo a filha da A. menor de 25 annos, conforme a certidão fl.
232, que o réo não podia ignorar pelo tratamento e serviço domestico de
muitos annos, e incumbencia de correr com o inventario do casal, que se
fez por fallecimento do marido da A., não sómente se acha incurso na
pena da Ordenação, livro 5.º, titulo 22 por ser indisputavel a illustre
qualidade da filha de um desembargador do paço e do real conselho, além
de outros honrosos empregos litterarios que tinha exercitado n'este
reino e côrte, e o réo apenas póde reputar-se em um estado indifferente
ou medio entre as pessoas da sua patria, em cuja camara e officios pouco
servem quaesquer pessoas desoccupadas[6], e como tal não convinhavel,
nem civilmente digno d'este casamento; mas tambem se acha comprehendido
na pena da Ordenação, tit. 24. Por tanto, attendendo a não concorrer a
prova e circumstancias para se impor a pena capital ordinaria, o
condemnam em seis annos de degredo, sem açoutes, para o reino de Angola,
e 20$000 reis para as despezas da relação, e no perdimento de toda a sua
fazenda para a A. na fórma da lei e custas dos autos. E o escrivão não
fará publica esta sentença sem primeiro se passarem as ordens
necessarias para o dito réo ser preso, e com effeito se achar na cadêa
da côrte. Lisboa 31 de maio de 1760.==_Giraldes, Franco, Xavier da
Silva, Vidigal, doutor Cunha, Silva._»

--Agora--disse o escrivão embocetando os oculos--snr. Felix, seja homem,
tenha paciencia, e dou-lhe de conselho que não perca tempo em
appellações. Seis annos passam depressa. Em toda a parte se come o pão
de Deus ou do diabo. O que se quer é que seja pão.

E como o condemnado lhe divisasse nos olhos um geito de piedade,
animou-se a perguntar-lhe, debulhado em lagrimas:

--Poderei levar minha mulher?

--Se ella quizer, ninguem a póde privar. Adeus, infeliz. Tenha alma...

Quando o escrivão sahia, encontrou no pateo da cadêa D. Isabel
Quintella, com o menino no collo, coberta de pó e extenuada de fadiga.
Loureiro, conhecendo-a, chamou-a de parte, precaviu-a do succedido para
que a sua chegada ao quarto do marido não exacerbasse a agonia do preso.
Reanimou-a com a esperança de o acompanhar ao degredo, e prometteu-lhe
servil-a em tudo que podesse, pois que já agora o erro do casamento era
irreparavel.

Entrou Isabel no quarto do esposo com o semblante constrangidamente
sereno; mas elle, apenas a viu, rompeu em alto choro, e, tomando o filho
nos braços, pedia a Deus que lhe valesse por amor d'aquelle
innocentinho.

A vinda de D. Isabel ao carcere fôra um logro ás espias que a mãi lhe
pozera. O escudeiro ainda a perseguira na estrada de Bemfica, ao passo
que ella se evadira por atalhos, esbofada de cansaço com o peso da
criança.

Quando o carcereiro a intimou a sahir, resistiu, dizendo que havia de
saber alli quem ordenára a sua prisão na quinta. A mulher do carcereiro
compadecida da pobre esposa e mãi, deu-lhe agasalho n'aquella noite.

No dia seguinte, D. Isabel Quintella, bem ou mal avisada, procurou o
ministro conde de Oeiras, que havia sido particular amigo de seu pai.

O ministro ouviu-a attentamente, sem lhe improperar a escolha de marido,
e disse-lhe que se recolhesse a sua casa que ninguem a lá iria
incommodar.

E, perguntando Isabel se poderia acompanhar ao degredo seu marido, o
conde de Oeiras compungiu-se, e respondeu:

--Se o ama, vá; que a sua vida aqui não ha de ser melhor.

Maria Michaela, sabendo que a filha estava na casa do marido e o
visitava na cadêa, sahiu de novo a solicitar a justiça em nome do seu
defunto. Corregedores e desembargadores, encolhendo os hombros, davam a
perceber que sentiam nas orelhas os beliscões do conde de Oeiras. Volveu
outra vez a viuva a pedir providencias que impedissem a ida da filha
para Angola. Responderam-lhe os letrados e os juizes que a lei não a
embaraçava.

Em junho d'aquelle anno de 1760 sahiu o degredado com a mulher e filho.
O conde de Oeiras mandára pelo mesmo navio uma breve carta ao governador
Antonio de Vasconcellos. Horas depois do desembarque, Felix Tavares de
Almeida recebia ordem de se apresentar ao governador, em separado dos
outros degredados. Recebeu-o Vasconcellos com bom rosto e desusada
cortezia. Nomeou-o fiscal das obras do palacio dos governadores, que se
andava então edificando, e coucedeu-lhe na porção já construida moradia
muito decente. Algum tempo depois, deu-lhe dragonas de capitão, sem
consultar a lei que inhibia os degredados de tão elevada patente. Felix
Tavares houve-se corajosamente n'um encontro com o sova Quiandala, que
expulsou do Libôllo, aprisionando os mussões que infestavam a provincia
de Cahenda.

Este governador, sobre ser severo, era cruel com os criminosos. Um
historiador dos governos de Angola diz que Antonio de Vasconcellos _por
qualquer desordem fazia trabalhar o sarilho da polé_, e acrescenta:
_esta inflexivel severidade, que tanto refreava os maus, deu origem a
intentarem elles um dos mais horrendos e temerarios crimes que se podem
imaginar_[7].

Desde o anno de 1756 que as levas de degredados eram extraordinariamente
numerosas. Sentenciados quasi todos por ladrões, eram esses os que o
conde de Oeiras não vingára pendurar nas forcas erguidas em Lisboa,
depois do dia do terremoto. Entre os quaes levára pena de degredo
perpetuo um cigano de Torres Novas, chamado José Alvares, facinoroso que
o conde de Obidos, notavel protector de ciganos, salvára do patibulo em
paga de serviços particulares.

José Alvares de Oliveira, que não incutira medo a Antonio de
Vasconcellos, e experimentára o citado _sarilho da polé_, traçou matar o
governador, a officialidade, os ministros e pessoas mais gradas de
Loanda, saqueando depois as casas, e abalando d'alli para o Brazil em
navio que estava prompto a sahir com despachos. _Um dos conjurados_, diz
o referido historiador, _descobriu tudo ao seu capitão_.

O capitão era Felix Tavares de Almeida que simultaneamente avisava o
governador, e prendia José Alvares.

O cigano foi aspado; quebraram-lhe os braços e pernas em vida. Os outros
em numero de dezenove, foram estrangulados. O governador de uma das
janellas do palacio assistiu ás execuções.

Em janeiro de 1764 tornou o governador ao reino. Na mesma monção voltou
Felix Tavares com o indulto de dous annos da sua sentença: tão valiosas
haviam sido as informações que Vasconcellos mandára do seu capitão ao
conde de Oeiras.

Em junho d'aquelle anno já o marido de Isabel Quintella exercia um
emprego liberalmente estipendiado na mesa da consciencia e ordens.

D. Maria Michaela, que ainda vivia para maiores zangas, foi obrigada por
sentenças successivas a dar a sua filha o patrimonio que lhe cabia por
inventario.

      *      *      *

Deixemos agora rodar 71 annos, ao cabo dos quaes tambem eu figuro n'esta
historia.

Conheci em 1835 um desembargador da supplicação, quasi octogenario,
chamado José Pedro Quintella. Era o filho de Felix Tavares e D.
Isabel--aquella criancinha cujas supplicas o preso offerecia a Deus como
resgate de seu infortunio. O desembargador Quintella, que muitos annos o
foi da Relação do Porto, suspeito que casou n'esta cidade.

Conheci tambem uma filha d'este magistrado casada com um bacharel
transmontano chamado José Cabral Teixeira de Moraes, que advogou alguns
annos em Lisboa na rua Nova do Carmo.

Vi, recentemente nascida, em 1835 uma menina filha d'aquella senhora,
que então morava em uma rua que liga o largo do Carmo ao largo da
Abegoaria. Em 1861, o nervoso poeta Raymundo de Bulhão Pato mostrou-me
no theatro de D. Maria uma formosa senhora, que era a criancinha que eu
vira ao lado de sua mãi, no dia seguinte ao do seu nascimento;
contemplei-a através de lagrimas, porque a imagem de meu pai cobriu de
luto estas reminiscencias da minha infancia.

N'esse tempo, ainda vivia em Lisboa o filho d'aquelle irmão de D. Isabel
que aleivosamente arguira de ladrão seu futuro cunhado. Chamava-se, como
seu avô, Ignacio da Costa Quintella. Era grão-cruz da ordem da
Torre-Espada, vice-almirante, ministro e secretario de estado honorario,
porque havia sido ministro do reino no Brazil e da marinha em Portugal
nos annos de 1821 e 1826. Além d'isso era escriptor distincto porque
escreveu os _Annaes da marinha portugueza_, e notavel poeta porque
verteu as odes de Horacio publicadas nos _Annaes das sciencias e artes_.

Seu primo, o filho de Felix Tavares, posto que mais obscuro socialmente,
hombreava com elle nas graças do talento. Traduziu uma ecloga de Pope
publicada no _Jornal de Coimbra_, e escreveu originalmente _O Redactor_,
ou _Ensaios periodicos de litteratura e conhecimentos scientificos,
destinados para illustrar a nação portugueza_ (1803).

Como sabem, os descendentes de Felix Tavares eram mui proximos parentes
de Farrobos, gerados de Quintellas; mas, entre as duas familias, corriam
ainda litigios de partilhas que contavam setenta annos. Odiavam-se
reciprocamente. Uns viviam opulentissimos, outros em mediania decente.
Hoje, parte dos que então estadeavam fausto de principes, vive da
caridade da defunta viuva do imperador do Brazil. Os outros não sei o
que são. Creio que é viva ainda a bisneta de D. Isabel Thereza de Sousa
Quintella. Se este livrinho lhe chegar ás mãos, indulte o peccado de
murmuração da vida alheia a um velho que, tendo sete annos de idade, a
beijou na face quando s. exc.^a contava algumas horas de existencia.

Oh!... mas, a final, que immensa tristeza me deixam no coração estas
paginas!...

    [6] Não percebemos esta salgalhada.

    [7] Memorias contendo a biographia do vice-almirante Luiz da Motta
    Fêo e Torres, etc, por J. C. Fêo Cardoso de Castello Branco e
    Torres. _Paris_, 1825, pag. 260 e seg.



PROBLEMA HISTORICO A PREMIO


(O premio offerecido a quem dilucidar a escuridade do caso é uma
collecção de _Fados_, encadernada em marroquim, de parçaría com os
_Musicos_, do snr. Joaquim de Vasconcellos, edição quasi em esgoto).


O snr. Miguel Dantas escreveu um livro cheio de noticias ácerca de cada
impostor que se intitulou _D. Sebastião_, rei de Portugal.

O ultimo chamou-se Marco Tullio Catizone, da Calabria. A respeito
d'este, o snr. Dantas exhibe documentos desconhecidos; e, na opinião do
snr. Pinheiro Chagas, não ha mais que dizer.

Ha.

Affirma o snr. Dantas, fundado em provas, que Marco Tullio, o
embusteiro, foi condemnado ao córte da mão direita, á forca, e á
exposição do cadaver feito pedaços, sentença executada em S. Lucar de
Barrameda, aos 23 de setembro de 1603.

Essas provas, se bem me recordo, não tem maior canção que a devida ao
nome do historiador sério.

O documento que s. exc.^a não viu nem indicou é a _sentença de Clemente
VIII_ a favor d'esse homem, que se intitulava _D. Sebastião_.

Este importantissimo depoimento na causa do pretendido rei nunca foi
impresso. É o seguinte:


«Clemente VIII, por Divina Providencia servo dos servos de Deus: Saude e
paz em Jesus Christo Nosso Senhor, que de todos é verdadeiro remedio e
salvação. Fazemos saber a todos nossos filhos carissimos, que debaixo da
protecção do Senhor virem com fervorosa fé em especial aos do reino de
Portugal, que o nosso mui amado filho D. Sebastião Rey de Portugal se
apresentou pessoalmente n'esta Curia Romana no sacro Palacio,
fazendo-nos com muita instancia e supplica o mandassemos meter na posse
do seu reino de Portugal pois era o verdadeiro e legitimo Rey delle; que
por peccados seus e juiso divino se perdera em Africa indo peleijar com
ElRey Maluco no campo de Alcacere quibir, e the agora estivera oculto e
não quizera dar conta de si por meter tempo em meio dos males que
succederam por seu conselho, e que para justificar ser o proprio estava
prestes para dar toda a satisfação que lhe fosse pedida: E considerando
nós o cazo, como somos juiz universal entre os principes catholicos,
mandamos por conselho dos cardeaes em conclave que apparecesse; e,
feito, se fez examinar com muita miudeza como convinha a tal cazo[8] de
que se fizeram processos em varias naçoens e no dito Reyno de Portugal
por pessoas qualificadas, assim dos signaes do seu corpo, como de outros
mais miudos do seu reino, ajunctando as partes por onde andou, e de sua
vida e costumes, como outras particularidades importantes para a verdade
ser mui claramente sabida, não nos fiando por uma só vez, mas por
muitas, e por pessoas constituidas em dignidade sacerdotal, e por
seculares titulares, do que se fizeram os processos _que no Archivo
desta curia se pozeram_, e que uns e outros se conferiram; e visto em
Conclave e perante nós se verificar ser o proprio Rey D. Sebastião e lhe
pertencer o dito Reyno, como unico herdeiro d'elle, e assim todas as
rendas des a data d'este para se investir de posse; pelo que,
Authoritate appostolica, por tal o declaramos, e sentenceamos, e
mandamos ao muito Catholico Filipe terceiro de Hespanha que largue o
Reyno em pax, sob pena de excommunhão mayor _ipso facto incurrenda_
reservada a nós, não permitindo dilações; como filho obediente aos
mandados Appostolicos deve temer a ira do Senhor fazendo o contrario;
nesta Curia sob o nosso signal do Pescador a 23 de Dezembro de 1598.»


Este documento não desfigura nem contraria a historia de Marco Tullio,
referida pelo snr. Miguel Dantas. O que d'ahi se deprehende é que Marco
Tullio enganára Clemente VIII, depois de ter enganado os sacerdotes e
titulares que depozeram de sua authenticidade na curia, se é que os
depoentes não mentiram ao summo pontifice para resuscitarem
fraudulentamente D. Sebastião.

De qualquer modo, se o impostor foi enforcado em 1603, segundo affirma o
snr. Dantas, é impossivel que esse mesmo, que Clemente VIII sentenciou
como rei em 1598, seja como rei sentenciado em 1617 por Paulo V.

Aqui está a sentença de Paulo V:


«Paulo V, Bispo de Roma, servo dos servos de Deus: Ao nosso mui amado
filho Phelipe 3.º[9] Rei de Hespanha, Saude em Jesus Christo Nosso
Senhor, que de todos é verdadeiro remedio e salvação: Fazemos saber que
por parte de ElRey D. Sebastião, que se dizia ser de Portugal, nos foi
apresentada uma sentença Appostolica de nosso antecessor Clemente
outavo, de que constou estar julgado pelo verdadeiro Rey e legitimo de
Portugal, nos pedia humildemente mandassemos por nosso Nuncio assim o
declarasse para effeito de se lhe dar a posse pacifica que convinha á
boa Christandade e exemplo dos infieis para que não tomassem motivo de
uzurparem o alheio, e que mandassemos consultar por nossos Cardeaes, vêr
e examinar a dita sentença com nova justificaçaõ, e como era o proprio
contheudo n'ella: movidos do Amor Paternal, para evitar escandalos que
podiam resultar, e guerras entre christaõs, nos pareceu para mais suave
meio, mandar-vos avizo por nosso Nuncio, não permitindo dardes ocaziaõ
para que se valesse das Armas da Igreja, antes logo com effeito
largareis o Reyno a seu dono, como estava mandado pela sentença junta,
na qual não houve satisfação, cousa estranha entre os Principes; pelo
que _authoritate appostolica_, e que nesta parte uzamos, mandamos a vós
Philipe 3.º, Rey de Hespanha, em virtude da sancta obediencia que
dentro de nove mezes, depois da notificação d'esta, largueis o dito
Reyno de Portugal a seu legitimo successor D. Sebastião mui
pacificamente sem efuzaõ de sangue e sob pena de excommunhão maior _lata
sententia_ da maneira que está julgada: Dada em esta Curia Romana sob o
signal do Pescador a 17 de março de 1617.»


Temos, por tanto, segunda sentença a favor do mesmo que a obteve em
1598, e que a historia melhor documentada e _estudo definitivo_, no
conceito do snr. Pinheiro Chagas, dá como enforcado em 1603.

Mas este mesmo homem impetrou terceira sentença do papa Urbano VIII. Se
fosse D. Sebastião devia, a esse tempo, orçar pelos setenta e seis
annos. A sentença de Urbano é mais pathetica por que ahi já o decrepito
exul pede que o não esbulhem do seu direito porque tem mulher e filhos.

A terceira sentença reza assim:


«Urbano VIII por Divina Providencia Bispo de Roma, Servo dos Servos de
Deus. A todos os Arcebispos e Bispos e pessoas constituidas com
dignidade que vivem debaixo do amparo da Igreja Catholica, em especial
aos do Reyno de Portugal e suas conquistas, saude e paz em Jesus Christo
nosso Salvador que de todos é verdadeiro remedio e salvaçaõ: Fazemos
saber que por parte do nosso filho D. Sebastião Rey de Portugal nos foi
aprezentado pessoalmente no Castello de Sancto Angelo duas sentenças de
Clemente Outavo e Paulo Quinto nossos antecessores, ambas encorporadas,
em que constava estar justificado largamente ser o proprio Rey e nesta
conformidade estava sentenciado para lh'o largar Felipe 3.º Rey de
Hespanha, ao que não quiz nunca satisfazer; pedindo-nos agora
tornassemos de novo a examinar os processos, e constando ser o proprio o
mandassemos com effeito investir da posse do Reyno, pois tinha filhos e
mulher, e não podia perder seus direitos, que prejudicava a seus
herdeiros, o que mandamos brevemente e por extenso vêr como convinha em
cazo de tanta importancia; e considerando como nos convem julgar e
detreminar a cauza dos Principes christãos, mandando dar vista a Felipe
Quarto que hoje vive, cometendo a cauza ao Imperador, e a ElRey de
Inglaterra e a ElRey de França, com o que se passou e se resolveu que
lhe desse posse do Reyno de Portugal; e hora por parte do dito Rey D.
Sebastião nos foi pedido pozessemos o cumpra-se na sentença, e
mandassemos passar nosso Breve Appostolico com excommunhão rezervada a
nós para que nenhum fiel christaõ lhe impida sua posse, nem tome armas
offensivas contra elle e seus soldados e Ministros; e vendo nós com os
nossos Cardiaes do nosso Conselho sua justiça, com maduro conselho lh'o
concedemos: pelo que vos mandamos que depois da notificação desta a nove
mezes primeiros seguintes que assignamos pelas trez canonicas
admoestaçoens, dando repartidamente trez mezes por cada canonica
admoestaçaõ, termo peremptorio, tanto que vos for apresentado e da minha
parte mandado, façaes por vossos religiosos assim Seculares como
Regulares publicar-se nos pulpitos das egrejas e praças publicas
que.....[10]. Dada em esta Curia Romana sob o signal do Pescador aos 20
de outubro de 1630.»


Ahi está o problema.

Quem era este homem?

Não podia ser o rei da Ericeira, nem o rei de Penamacor, nem o
pasteleiro do Escurial, nem Marco Tullio Catizone. Os quatros impostores
eram já mortos.

Então quem era?

Ferdinand Denis, quando relata o caso de Marco Tullio, diz que este
homem é um dos problemas insoluveis da historia.

Mas o snr. Dantas desatou o nó. O aventureiro foi enforcado em 1603.

Houve um quinto Sebastião falso?

Onde iremos buscar-lhe o rasto na historia?

É possivel que o snr. Dantas não escrevesse a palavra definitiva a
respeito do homem sentenciado por tres pontifices que o viram?

Ahi fica o problema.

    [8] Os signaes que D. Sebastião tinha no corpo eram estes: A mão
    direita maior que a esquerda; o braço direito maior que o esquerdo;
    o tronco dos hombros até á cinta desproporcionalmente curto e
    curvado, de modo que os seus gibões não cahiam bem n'outro corpo; da
    cinta aos joelhos muito comprido; a perna e o pé direitos maiores
    que os esquerdos; os dedos dos pés quasi iguaes. No dedo minimo um
    calo grande; na espadoa esquerda um signal pardo e cabelludo; outro
    signal preto na espadua direita; sardas pouco perceptiveis em rosto
    e mãos; faltava-lhe um dente no queixo inferior, que lhe fôra tirado
    por Sebastião Netto; o beiço grosso da parte direita, pés pequenos,
    pernas algum tanto tortas.

    O que ha mais importante historicamente n'esta nota é ter sido o
    dente de sua alteza extrahido por Sebastião Netto.

    [9] As alterações orthographicas constam do texto, que trasladamos
    quasi pontualmente.

    [10] Seguem-se algumas linhas que a humidade tornou inintelligiveis.



DESASTRE DO SANTO OFFICIO NO PORTO


A inquisição de Portugal, em 1704, confiava tanto na espada flammejante
de S. Domingos, que nem as esquadras britannicas lhe incutiam pavor.

N'aquelle anno, morava no Porto uma familia ingleza de appellido
_Fiuza_. Não assevero que assim se escrevesse ou pronunciasse o
appellido; mas assim o acho escripto em documento coevo, extrahido de um
processo do santo officio. Esta familia era catholica romana.

Havia no Porto outra familia ingleza herege. Appellidava-se _Mosheim_,
que os escreventes do tribunal dominicano escrevem Mossão.

Á familia catholica pertencia uma menina chamada Isabel. Á protestante
um moço chamado Thomaz.

Amavam-se os dous contra vontade de seus paes. Eram ambos abastados e
bem procedidos; mas tinham de permeio o inferno. Na opinião dos Fiuzas a
familia Mosheim estava condemnada ás penas eternas. Os Mosheim, por sua
parte, diziam que os Fiuzas eram lenha secca para as fornalhas
infinitas.

O pai de Thomaz consentia no casamento, se Isabel apostatasse do
catholicismo. O pai de Isabel cedia ás supplicas da filha, se Thomaz se
convertesse á verdadeira e unica religião.

Eram irreconciliaveis os dous inglezes.

Mas a paixão de Isabel pôde mais que o pai e que o esteio da fé.

Uma noite, fugiu de casa. Morava em uma das tres quintas de João
Pedróssem, a Villar. Desceu a Miragaya, e entrou em uma lancha ingleza,
onde a esperavam Thomaz Mosheim e um padre protestante.

Ao repontar da manhã, o padre abençoou o casamento dos dous
contrahentes, alli, sobre as aguas do Douro, em uma formosa alvorada de
agosto, com quatro marinheiros por testemunhas.

Feito isto, o sacerdote lutherano foi em demanda do inglez catholico, e
disse-lhe que acabava de abençoar o casamento de Isabel com Thomaz, e
lhe ia pedir que perdoasse a sua filha pelo amor de Deus. O velho inglez
arrepellou as barbas, injuriou o padre, e bradou tres maldições á filha
e á sua posteridade.

Divulgou-se o successo na cidade.

Ao outro dia, Carlos da Rocha Pereira, commissario da santa inquisição,
no Porto, acompanhado de alguns officiaes, entrou em casa de Thomaz
Mosheim, e prendeu Isabel em nome do santo officio. Ella, traspassada de
terror, seguiu aquelle homem que tinha nas palavras a rijeza de uma
tenaz de tortura. Foi conduzida ao aljube ecclesiastico, e interrogada.

A colonia inglesa, assim que soube da prisão de Isabel Fiuza, reuniu-se
em casa do seu consul. Sahiu o magistrado á frente dos queixosos, e
pediu audiencia ao vigario geral. Reclamou a ingleza em termos solemnes
com ameaças. O vigario geral amedrontou-se; mas disse que não podia
soltar a herege, sem ter consultado os inquisidores de Coimbra.

E, no em tanto, a noiva chorava incommunicavel no aljube ecclesiastico.

Foi encarregado o commissario Carlos da Rocha Pereira de consultar os
inquisidores de Coimbra. Estes, vacillando na resposta, consultaram o
conselho geral, que residia em Lisboa, no seguinte officio, que lá
chamavam _Conta_:


«O commissario do Porto Carlos da Rocha Pereira nos dá conta pela carta
inclusa do matrimonio que celebrou Isabel Fiuza, catholica romana,
ingleza, com Thomaz Mossão, inglez herege, no rio Douro, em uma lancha
ingleza; e nos remette o auto de perguntas, que lhe fez, depois de presa
no aljube ecclesiastico da mesma cidade, em que confessa o mesmo
matrimonio; e, no mesmo correio, dá conta aos inquisidores Affonso
Cabral Botelho, e deputado Francisco Carneiro de Figueirôa, pela carta
junta, do reparo que na dita cidade faziam os inglezes da prisão do
ordinario; e que ouvira que o seu consul se queria queixar a sua
magestade; e, posto nos pareceu que deviamos proceder contra a dita
Isabel Fiuza, na forma da disposição do _Regimento_, liv. 3.º tit. 16,
§. 2.º, o duvidamos fazer pelas circumstancias referidas, e reparo do
consul; e assim recorremos a v. ill.^ma para nos ordenar o que devemos
obrar n'esta materia. Coimbra em mesa 18 de agosto de 1704.==_Antonio
Portocarreiro, Affonso Cabral Botelho._»


O conselho da santa inquisição, desdenhando as ameaças do consul e a
opinião dor rei a tal respeito, respondeu, passados quarenta dias:


«Os inquisidores responderam ao vigario geral que, suppostas as
circunstancias, póde conhecer do caso de que se faz menção na fórma que
lhe parecer. Lisboa 26 de setembro de 1704.==_Carneiro, Moniz, Hasse,
Monteiro, Ribeiro, Rocha._»


E, no em tanto, Isabel conseguira receber no aljube ecclesiastico alguns
padres de notoria virtude que a reduzissem á religião catholica e a
desatassem do marido herege.

O vigario geral lisonjeára-se grandemente com a confiança delegada pelo
conselho geral; mas via-se entalado entre a fé catholica e o consul
inglez.

Depois de grandes prelios que as duas potencias lhe travaram na
consciencia, o magistrado ecclesiastico resolveu processar Isabel, visto
que ella, impenitentemente e contumaz, persistia em querer o seu marido
assim herege e condemnado ao sempiterno horror onde ha o perpetuo ringir
de dentes.

Esta deliberação foi communicada ao consul, que a ouviu com um sorriso
que o vigario geral não percebeu porque era sincero, virtuoso e
bonacheirão.

N'esse mesmo dia, o consul teve uma conferencia secreta com quatro
capitães de navios inglezes, ancorados no Douro.

Á volta das onze da chuvosa noite de 7 de outubro, pela porta da
Lingueta e pela dos Banhos entraram os muros da cidade trinta
marinheiros que por diversos pontos confluiram ao aljube ecclesiastico,
situado na visinhança da Sé.

A guarda d'este carcere era indigna de hoste ingleza tão numerosa. O
santo officio confiava muito dos ferrolhos, e dispensava as escopetas da
milicia; mas nunca lhe negrejára na mente a hypothese de que os esbirros
e carcereiros, tangidos por valentes sôcos britannicos, iriam libertar
da masmorra um dos seus presos.

Foi o que aconteceu n'aquella noite funesta para os fastos do santo
officio, e para os queixos dos quadrilheiros. Isabel que não podera ser
prevenida, quando ouviu a deshoras o rodar de portas nos gonzos, cuidou
que ia ser transferida aos carceres de Coimbra ou Lisboa. Estava em
joelhos com as mãos postas, quando Thomaz Mosheim, ladeado de marujos
athletas, entrou no recinto, e a custo a viu ao clarão de uma lampada
que alumiava um crucifixo.

E ella, reconhecendo-o, lançou-se-lhe nos braços, e perdeu o alento.

Um dos quatro colossos vermelhos, que o seguiam, tomou-a nos braços,
como quem aconchega do peito uma pomba assustada.

Depois, era triste de vêr-se como aquelles poucos guardas do aljube,
porque não percebiam o regougar dos saxonios, em vez de palavras eram
intimados a pontapés para que entrassem no carcere devoluto da ingleza.
E, todos elles--digamol-o com dôr de portuguezes e de catholicos--lá
ficaram fechados, apalpando as partes contusas.

Antes do arraiar da aurora, uma escuna ingleza balouçava-se defronte do
castello da Foz, á bocca da barra. Assim que amanheceu, as velas
trapejavam com prospero vento.

Isabel, ainda prostrada no seu beliche, pedia ao esposo que a
convencesse de que ella não estava louca nem sonhava. E elle, o doudo de
paixão e alegria, lá conseguiu convencel-a de que o Deus do céo e da
terra, que era o Deus de ambos, a tinha alli bem acordada para a suprema
felicidade d'este mundo.

Que fez o vigario geral depois de tão insolito ultrage? Consultou os
inquisidores de Coimbra. Os inquisidores de Coimbra consultaram o
conselho geral. O conselho geral consultou o rei. Fez-se um profundo
silencio. Ninguem fallou mais d'este caso, senão eu.

Já que estou com as mãos nas cinzas ensanguentadas do santo officio, hei
de dizer ao leitor a razão que assistiu aos inquisidores que em 1601
mandaram ensambenitar e queimar uma rica e gentil dama, chamada Violante
Mendes e seu marido Francisco Borges, ambos de Chaves.

E, trasladando a denunciação, que é a primeira peça do processo, dou aos
curiosos noticia do modo como semelhantes instrumentos se lavraram.

Estamos em Chaves, no dia 28 de maio de 1591, em casa do vigario geral,
onde são inquiridos os denunciantes, que são tres, e todos sacerdotes. O
escrivão James de Moraes escreve o seguinte:


«Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1591, aos 28 dias
do mez de maio do dito anno, na Villa de Chaves, nas pousadas do
licenciado Gaspar da Rocha Paes, vigario geral no temporal e espiritual
n'esta vigararia comarca da dita villa, pelo ill.^mo snr. D. fr.
Agostinho de Jesus, pela mercê de Deus e da santa sé apostolica,
arcebispo, senhor de Braga, primaz, etc. Presente elle appareceu o padre
João de Mattos, morador em a dita villa, o qual trouxe a mostrar a elle
vigario uma peça de _marfil_ (marfim), que mostrava ser de feição de uma
bezerrinha, e sómente lhe faltava as pernas, e braços que estavam
quebrados, e assim os corninhos espontados, o qual disse que a achára na
mão de André, moço de 16 annos, filho de João Rodrigues do Campo,
arrabalde d'esta villa; que por lh'a vêr na mão lh'a pediu que lh'a
mostrasse, o qual lh'a mostrou; e por a dita bezerrinha ser tal como
dito é, e além d'isso cheirar muito a almiscar, e parecer estar em
parte...[11], e lhe não parecer bem, lh'a trazia a mostrar por a pedir
ao dito moço André. O qual André presente disse que era verdade que
aquella peça, indo elle André hoje n'este dia a casa de Pero Fernandes,
escrevente d'esta villa, á escóla, para o ensinar a lêr, a achou debaixo
de uma arca, e ao tempo que a achou sem ninguem o vêr a guardou, e
levou, e andou mostrando a algumas pessoas entre as quaes foi ao dito
padre João de Mattos, e a Mathias de Barros cavalleiro d'esta dita
villa; e lh'a tomaram. E logo outro sim appareceu Pedro moço de 16
annos, filho do dito Pero Fernandes escrevente acima dito, e por elle
foi dito que era verdade que aquella bezerrinha elle dito Pedro a achára
na rua do Sol, d'esta villa, no meio da rua defronte da casa de
Francisco Borges, em que hora (_agora_) elle vive, que é de Diogo
Ferreira d'esta mesma villa, o que poderia haver um mez pouco mais ou
menos, e lh'a viu achar Lazaro, filho que ficou de Gaspar de Magalhães.
E depois de assim a achar a levára para casa como dito tem sem outra
cousa alguma, e a trazia em casa sem entender o que era; e andava ahi em
casa por detraz das arcas. E estando assim para se fazer este auto
chegou o padre Gaspar Dias, e o padre Antonio de Magalhães, ambos d'esta
dita villa, e disseram, que estando ambos juntos, e vindo pela porta do
dito Francisco Borges acima dito, estando Gaspar Teixeira Chaves á sua
janella, lhes disseram elles que se achára uma bezerra, não sabendo
onde, como na verdade não sabiam; e, estando n'esta pratica da dita
bezerra, disse uma moça que se chama Maria de Villar de Nantes, e criada
do sobredito Francisco Borges, e outra moça pequena, outro sim criada de
casa por nome Madanella, disse a grande rindo-se: _Senhores, isso é de
cá._ E elles ambos passaram seu caminho sem responder nada. E logo veio
atraz d'elles a dita moça Madanella, e elles a chamaram, e não quiz vir,
e foi a casa do dito Francisco Borges, e tornou logo a sahir, e veio ter
com elles ditos padres, e pediu a elle dito padre Antonio de Magalhães
que lhe desse a vaquinha, e elle lhe perguntou se era sua, e a dita moça
que sim era sua, que viera de Lisboa e que a trazia o menino na mão, e
que em algum tempo elle dito padre Gaspar Dias ouviu dizer aos
antepassados que uma Branca Manoel em Lisboa fôra queimada, a qual fôra
_bredona_ (?) de Violante Mendes mulher do dito Francisco Borges, e o
vinha denunciar e dizer. Estando assim elles ditos padres, presente elle
vigario, chegou a dita moça Madanella duas vezes, e na primeira disse a
elle vigario que a sobredita Violante Mendes sua senhora mandava pedir a
vaquinha que era do seu menino; e da segunda que tornou disse, que a
sobredita sua senhora a tornava a mandar que por amor de Deus lhe désse
a vaquinha que era do seu menino que a perdera havia quatro dias. E de
tudo mandou elle vigario fazer este auto, e assignou com os ditos padres
aos quaes todos tres deu juramento dos Santos Evangelhos que n'esta
parte tivessem todo o segredo como cousa do santo officio, e elles assim
o prometteram e juraram e assignaram que a tudo se achavam presentes ás
perguntas que se fizeram aos sobreditos moços, que elle vigario não quiz
estivessem presentes ao fazer do auto, nem que assignassem por não serem
capazes de segredo. E eu James de Moraes o escrevi, e a sobredita
vaquinha ficou em poder d'elle vigario. E eu sobredito escrevi.==_Rocha,
Gaspar Dias, Antonio de Magalhães, João de Mattos._»


Ahi está o corpo de delicto que levou á morte um homem e uma senhora que
tinham um filhinho, o qual brincava com uma bezerra de marfim sem pontas
nem pernas. Tres ungidos do Senhor, tres padres denunciantes lá estão na
gloria eterna revendo-se na bemaventarança das duas almas que elles
purificaram no fogo.

    [11] Palavra inintelligivel: parece dizer degolada.



RANCHO DO CARQUEJA


Ha 153 annos que um bando de estudantes, em Coimbra, acaudilhado pelo
mais intrepido e de peores entranhas, começando por espancar os
archeiros e rondas nocturnas, acabou por matar quem lhe offerecesse
reacção. Chamavam-se _do_ e não _da Carqueja_, como escrevem todos os
que relembram a funesta existencia d'aquelles rapazes perdidos.
_Carqueja_ e _Estopa_ haviam sido, por aquelle tempo, dous facinorosos
de Vizeu, chefes dos salteadores. Em honra do primeiro, escolheram os
estudantes o sinistro baptismo do seu bando. E é de notar e deplorar que
alguns da quadrilha eram padres que cursavam theologia. Depois de
repetidas atrocidades, o governo, a rogos dos habitantes de Coimbra e
lentes da universidade, enviou a marchas forçadas tropa de infanteria
com alguns esquadrões que chegaram de madrugada e colheram de sobresalto
os criminosos.

Alguns, bem que não reagissem, entraram acutilados no carcere, e foram
depois morrer no Limoeiro, em Lisboa. Aqui damos a relação dos seus
nomes:

O capitão do bando era da Terra da Feira; chamava-se Francisco Jorge
Ayres. João Pedro Ludovice, natural de Lisboa; o padre Vicente Gomes
Alvares Lobo, do Algarve; Manoel Antonio Ramos, José Rodrigues Esteves,
José Antonio de Azevedo, Antonio da Costa e Silva, _o Pescada_; o padre
José da Silva Couto, Miguel Pereira Coelho, Roque Monteiro Paim, José de
Horta, D. Manoel Alexandre da Costa, todos de Lisboa; Jacintho de
Figueiredo, natural de Almeida; José Pereira Manojo, brazileiro; o padre
Francisco Pereira Goes, natural de Pereira; José da Cunha Borges, do
Alemtejo; Pedro Gomes Barbosa, de Salvaterra; Lourenço Pimenta, Antonio
Maceiro, Thomaz da Silva, João dos Santos, todos de Coimbra. Estes foram
os presos conduzidos a Lisboa, afóra um estudante de Aveiro, cujo nome
não sabemos, e um filho do confeiteiro de Loures, muito conhecido
n'aquelle tempo. Um dos mais façanhosos, Francisco de Sá, natural de
Evora, pôde evadir-se de Coimbra para aquella cidade, e d'alli para
Hespanha. O juiz dos orphãos de Evora, a quem fôra recommendada a
captura de Francisco de Sá, procedeu negligentemente, d'onde lhe
resultou ir por ordem de el-rei carregado de ferros para o Limoeiro.

O estudante Francisco Jorge Ayres, capitão da malta, foi degolado no
Pelourinho de Lisboa em junho de 1722.

Antonio da Costa e Silva, de alcunha _o Pescada_, e José de Horta
morreram na cadêa.

A maior parte dos outros cumpriu sentença de degredo.

Entre os presos havia um poeta, D. Manoel Alexandre da Costa, neto do
primeiro conde de Soure, filho de D. Rodrigo da Costa, viso-rei da
India. Este fidalgo, ao saber que seu filho fôra preso na cáfila dos
scelerados, adoeceu de vergonha, e morreu n'esse mesmo anno de 1722, aos
16 de novembro, quando o filho ainda estava no Limoeiro, esperando a
sentença.

O protector deste moço era o marquez de Marialva, a quem o estudante,
desde que o prenderam relatou em toantes, á moda do tempo, as suas
desventuras. É longo o poema, e fastidioso, sem impedimento do interesse
inspirado pela tragedia do assumpto. Não me dispenso, porém, de
trasladar as quadras que dizem mais ao intento. Refere o incidente
imprevisto da prisão:


    ......................

    _Era, em fim, de madrugada,
    a hora menos escura
    em que o dia irresoluto
    nem se esconde, nem se occulta,_

    _Quando com bellicas vozes
    pela destra mão avulsas,
    pois a eloquencia de Marte
    não tem lingua, e não é muda,_

    _Se ouvem de uma, e outra parte
    gemer as portas, e ruas,
    em o concavo dos montes
    o ar ferido retumba._

    _Todos ás janellas chegam
    com desordenada chusma,
    quem nas janellas não cabe
    talvez aos telhados suba._

    _Quando vem de infanteria
    uma bem formada turba
    forte como portugueza;
    mas tyranna como turca._

    _Vem tambem destros ginetes
    cujos pennachos, e trunfas
    se tocavam das janellas
    ao movimento das upas._

    _Por outra parte a justiça
    entre os soldados vem junta,
    que o ser a justiça armada
    não é só para a pintura._

    _Das casas as portas tomam,
    não de todas; mas de algumas,
    pois só se emprega a vingança
    onde se suspeita a culpa._

    _Logo de vista tam nova
    com diversas conjecturas
    todo o prudente se admira,
    todo o culpado se assusta._

    _Que será, que não será,
    todo o innocente pergunta;
    não o pergunta o culpado
    que a mesma consciencia accusa,_

    _Quando para o desengano
    de tudo o que se murmura,
    a esquadra passa da porta
    a guarnição que as occupa_

    _Levando a baioneta
    mettida, calçada a buxa,
    muito valor, pouco termo,
    pouca attenção, muita furia._

    _Assim entram os soldados
    pelas casas mais occultas,
    dem-se á prisão repetindo
    ainda quando nada escuta._

    _Pois como vinham temendo
    os do rancho, cada um cuida,
    que cada taboa pregada
    mil criminosos occupa._

    _Não ha cozinha, ou armario,
    nem ha chaminé, nem tulha
    que logo se não despegue,
    logo não se desentupa._

    _Porém era muito cedo
    sem que nenhum tal presuma,
    pois a culpa obra-se sempre,
    Que a pena espera-se nunca._

    _Nas camas os acham todos:
    mau é que o culpado durma,
    porém quem se deita tarde,
    claro está que não madruga._

    _Alli sem trabalho os prendem;
    porque alli ninguem repugna,
    pois não tinham como os corpos
    alli as espadas nuas._

    _Querem fugir; mas não podem,
    pois por militar industria,
    como estão guardas ás portas
    não ha por onde se fuja._

    ......................

Até aqui, não ha razão para grandes piedades; mas, ao diante, as trovas
exhoram a compaixão; e o caso foi que o marquez de Marialva salvou do
degredo o supplicante poeta; mas não pôde arrancar o viso-rei das presas
do opprobrio que o mataram.

Quem visse dezesete annos depois D. Manoel Alexandre da Costa, obeso
doutor em canones, prior da igreja de Santa Cruz no Minho, e principal
da santa igreja de Lisboa, devia lembrar-se do socio bastantemente
prendado do _rancho do Carqueja_, e recommendar á justiça de Deus os
juizes que degolaram Francisco Jorge Ayres, e absolveram o afilhado do
marquez, e sobrinho do segundo conde de Soure!...


FIM DO 1.º NUMERO





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº1 (de 12)" ***

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