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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3 (de 12)
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3 (de 12)" ***


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco

PUBLICAÇÃO MENSAL


N.º 3--MARÇO


LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON

96, Largo dos Clerigos, 98

PORTO

EUGENIO CHARDRON

4, Largo de S. Francisco, 4

BRAGA

1874


PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

62--Rua da Cancella Velha--62

1874


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA


SUMMARIO


Feitiços da guitarra--Em que veias gira o sangue de
Camões?--Lisboa--Voltas do Mundo--Nova solução do problema
historico--Desgraçado Balzac! (Á «Actualidade»)--Os 2 Joaquins--Flôres
para a sepultura de Ferreira Rangel--Mysterio da Castanha--Bem
vindo!--Os Salões, pelo exc.^mo snr. visconde de Ouguella--Subsidios
para a historia da serenissima casa de Bragança



FEITIÇOS DA GUITARRA


Cuidará talvez muita gente, aliás instruida na historia da musica e seus
effeitos, que a influencia da guitarra nos paços reaes é cousa moderna e
peculiar da côrte portugueza. Não, senhores. O exemplo deu-o a Hespanha
no fim do seculo passado, e a historia do mais afortunado guitarrista
d'este planeta extravagante em que moramos, vou contal-a eu.

Na volta do anno 1786, D. Gabriel Alvares de Faria, arcediago da sé de
Badajoz, tinha dous sobrinhos, Luiz e Manoel. O arcediago, que blazonava
descender dos Farias, alcaides-móres de Palmella, em Portugal, timbrava
de muito fidalgo; mas declarava aos sobrinhos que fossem ganhar sua
vida, porque a pitança da conezia não dava para tres.

Os dous rapazes, que tangiam guitarra a primor, e cantavam seguidilhas
de sua invenção, fizeram-se no rumo de Madrid, á cata de aventuras. O
estalajadeiro, que lhes deu a credito o primeiro mez de hospedagem,
folgava tanto de ouvir as tonadilhas de D. Manoel, que não quiz outra
paga durante um anno.

Conseguiram os dous rapazes entrar na guarda de corpus. Luiz, mediante a
guitarra, insinuou-se no affecto de uma açafata da princeza Luiza de
Parma, esposa do principe que depois foi Carlos IV; e, quando a dama
ensandecia de amor ao seu menestrel, lhe disse elle que, se o seu cantar
e tanger a transportavam, que seria se ouvisse seu irmão D. Manoel!

Contou isto a dama á princeza. Sua alteza era folgazã. Quiz ouvir o
guitarrista. Ouviu-o, admirou-o, amou-o, e--o que muito é--convenceu o
marido a gostar das trovas de _a Tyrana_ acompanhadas d'um harpejo
triste, que não ha ahi cousa que mais diga.

O principe não era escorreito.

Menos incauto era Carlos III, que mandou sahir de Madrid o guitarrista,
logo que deu tento dos effeitos cupidineos dos bordões e prima, na
pessoa da nora.

Mas assim que o rei morreu, D. Manoel voltou a Madrid, foi restituido ao
palacio, á alcova real, e nomeado successivamente sargento-mór da
guarda, ajudante-general, grã-cruz de Carlos III, intendente dos
correios, cavalleiro do tosão, duque de Alcudia, primeiro ministro,
principe da paz, grande de Hespanha de primeira classe, com dotação
territorial de 50:000 piastras de rendimento, e general supremo dos
exercitos (em 1800) com o tractamento de _alteza serenissima_ (1807).

Em 1797 casára com D. Maria Thereza de Bourbon, filha natural do infante
D. Luiz, irmão d'el-rei Carlos III. A rainha conviera n'este consorcio,
já porque a noiva era abominavel de feia, já porque tinha zelos
infernaes de Josefa Tudo, formosissima mulher com quem o seu valido
casára clandestinamente, intitulando-a depois condessa de Castello-Fiel.

D. Manoel de Godoy, que assim tocára o galarim das grandezas humanas,
desceu tão rapido quanto subira.

Conjuraram contra elle influencias internas e externas.

Os hespanhoes, obrigados a guerrear a Inglaterra, odiavam o amigo da
França. Este odio exasperou-se depois do desastre de Trafalgar, onde
acabou para sempre o poder naval de Hespanha. Á frente dos adversarios
do principe da paz sahiu o principe das Asturias, chamado depois
Fernando VII.

Seguiram-se evoluções politicas, em que o heroe a resvalar ao ponto
d'onde subira, se voltou contra a França, de accordo com Portugal. Em
1808 preparava-se para fugir com a familia real, quando rebentou no
Aranjuez a revolução em que sua alteza serenissima se escondeu em uma
talha, e não foi estrangulado pelo povo a pedido do rei e da rainha.

Ainda depois d'esta crise, o duque de Alcudia voltou a dominar o animo
dos reis de Hespanha, e a rehaver a confiança de Napoleão; mas a final o
baque foi irreparavel. Passou a França, e depois a Roma, onde o papa o
intitulou _principe de Passerano_.

Em Hespanha, confiscaram-lhe os bens. A esposa, de quem elle se
divorciára amigavelmente, vivia pobre em Paris, intilulando-se _duqueza
de Chinchon_, e lá morreu em 1828. O viuvo declarou então que já era
casado com Josefa Tudo. A unica filha de D. Manoel Godoy casou em 1820
com o principe romano Raspoli.

Até 1844, o principe da paz viveu em Paris tão convisinho da indigencia
que Deus sabe se elle teve tentações de tanger a guitarra da sua
juventude á porta dos amadores do genero. Depois de 36 annos de exilio,
obteve licença de entrar em Hespanha, e readquiriu parte dos bens, que
lhe permittiram dez annos de vida relativamente abastada.

Morreu, por 1851, em Paris, com 84 annos de idade.

Os biographos d'este homem extraordinario ignoram todos que elle era, em
Portugal, conde de Evora-Monte por carta de 2 de outubro de 1797.

Tambem desconhecem que o alvará de mercê o faz primo de D. Maria I, e
descendente de D. Pedro I e de D. Ignez de Castro, por ser quarto neto
de Francisco de Faria, alcaide-mór de Palmella: descendencia a mais
imaginosa que ainda vimos amanhar-se em cabeças de nobiliaristas.

Ahi vai o alvará que é documento não despeciendo:


«D. Maria, etc. Faço saber aos que esta minha carta virem que attendendo
á mui antiga, e esclarecida nobreza, qualidades, e distinctos
merecimentos de D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios Sanches
Sarçosa, principe da paz, duque de Alcudia, grande de Hespanha de
primeira classe, meu primo, e aos grandes serviços, que a estes reinos
fizeram seus maiores antes e depois da fundação da monarchia com
repetidas, e assignaladas acções, que os fizeram benemeritos da augusta
consideração, e real munificencia dos senhores reis meus predecessores:
tendo entendido ser o dito D. Manoel quarto neto de Francisco de Faria,
alcaide-mór, e commendador de Palmella, por ser o filho segundo de Diogo
Rodrigues de Faria, que passou a Hespanha d'um modo inculpavel, e de
quem D. Manoel é terceiro neto: para dilatar com a maior distincção a
memoria d'uma tão distincta familia, a qual pela mesma linha de
Francisco de Faria é descendente do snr. rei D. Pedro I, e de D. Ignez de
Castro, de quem descende a maior parte dos soberanos da Europa; tendo
muito segura confiança nos sentimentos verdadeiros, e honrados de D.
Manoel, hereditarios na sua familia, que tem lealmente exercitado em
beneficio de meus reinos; conformando-me com os augustos, e cordiaes
desejos de suas magestades catholicas, esperando, que assim os continue:
hei por bem, com aprazimento dos mesmos reis catholicos, pelos ditos
respeitos, e por honrar em D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios
Sanches Sarçosa, a familia de Faria, de que descende, fazer-lhe a mercê
do titulo de conde de Evora-Monte, com o senhorio para elle e seus
descendentes, que houver na sua casa dispensando na lei mental, e quero
e mando, que elle D. Manoel de Godoy Alvares de Faria Rios Sanches
Sarçosa se chame conde de Evora-Monte, e com o dito titulo goze de todas
as honras, graças, liberdades, preeminencias, prerogativas,
authoridades, e franquezas, que hão, e tem, e de que usam, e sempre
usarão os condes d'estes reinos, assim como por direito, uso, e antigo
costume lhe pertencem, das quaes em tudo, e por tudo quero, e mando que
elle use, e possa usar por direito, uso, e costume sem minguamento, ou
duvida alguma, que a isso lhe seja posta, porque assim é minha vontade,
e com o referido titulo de conde de Evora-Monte haverá o assentamento
que lhe pertencer, de que se lhe passará alvará na fórma costumada, e
por firmeza de tudo lhe mandei dar esta carta por mim assignada, e
sellada com o sello pendente de minhas armas, e passada pela
chancellaria: e hei por bem que d'esta mercê se não paguem direitos
alguns velhos, e novos, não obstante os regimentos, e quaesquer
disposições contrarias. Dada no palacio de Queluz em 2 dias do mez de
outubro do anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1797.--O
principe com guarda.==_José de Seabra da Silva._==_Joaquim Guilherme da
Costa Posser_, a fez.»


Respeito a _Farias_, houve um, em tempo d'el-rei D. Fernando. O leitor
conhece da historia e do romance o celebrado alcaide do castello de
Faria, chamado Nuno Gonçalves, que os castelhanos mataram, quando elle,
na barbacã da fortaleza, ameaçou de maldição o filho, se a entregasse
para salvar seu pai. O snr. Herculano refere este caso com primoroso
enthusiasmo.

O filho chamava-se Gonçalo Annes, que se fez clerigo por desgosto de vêr
alli trespassado o pai debaixo de seus olhos; a paixão, porém, não lhe
impedia reproduzir-se em tres meninos, de quem foi mãi Aldonsa Vasquez.

Do mais velho, que se chamou Nuno Gonçalves de Faria, conhece-se a
descendencia. Esse _Diogo_ que no alvará se diz ter passado a Castella,
nem era filho de Francisco de Faria, nem passou a Castella: era filho do
valido de D. João II, Antão de Faria, e casou com D. Maria de Goes,
filha de Simão de Goes Machado.

No lapso de quatro seculos, a varonia do alcaide de Faria--a que eu
considero mais respeitavel, mais poetica, mais desculpavel aos fanaticos
d'estes archaismos--é a que se tiver conservado na posse das penedias
contiguas do esboroado castello, cuja alcaidaria foi do heroico Nuno
Gonçalves. O possuidor, ha trinta annos, d'essas ruinas, era João de
Faria Machado Pinto Roby. Vendeu as ruinas a um brazileiro.

No mesmo anno em que morreu em Paris sua alteza serenissima o principe
da paz, seu parente, morria elle em Lisboa. A providencia divina fez-lhe
a mercê de o resgatar assim de um grande supplicio: elle sahia de noite,
e pedia esmola aos que passavam. Tinha sido redactor do _Nacional de
Lisboa_, e official de cavallaria muito valente.

Deixou um filho chamado Isidoro de Faria Machado que se suicidou ha dous
annos em Lisboa.

Uma de suas filhas é hoje viuva do visconde da Carreira, Luiz. As outras
não sei que destino tiveram.

..........................................................................


Toda esta noite se me foi de insomnia, a vêr sempre, na penumbra da
lamparina, um homem que em Lisboa, ha 24 annos, me dizia com a face
coberta de lagrimas:

--Procurei tres amigos que me foram hospedes em meus lautos jantares,
quando eu aqui dissipava o meu ouro e a minha intelligencia no serviço
da politica. Apenas um se lembra de me conhecer em 1838; mas este é
pobre; os outros não se recordam... Sabe qual é a minha esperança?

--A queda dos Cabraes?

--Não: uma congestão cerebral.

Bella e bem realisada esperança!

O representante de Nuno Gonçalves de Faria foi levado morto á sua
familia no largo dos Cardeas de Jesus, por uma noite fria e chuvosa,
quando as carruagens, que se recruzavam para bailes e theatros, o
aspergiam da chuva dos tejadilhos e da lama das rodas.



EM QUE VEIAS GIRA O SANGUE DE CAMÕES?


Não é de mais saber-se isto, quando é moda esmiuçar tudo que entende com
o maior poeta do seu seculo.

O livro mais extravagante que, a tal respeito, viu a luz, é a _Historia
de Camões_ pelo snr. doutor Theophilo Braga.

As incurias, as criancices, os desvarios que esfervilham n'essas 441
paginas não aparam a pontoada da critica. O livro faz tristeza... porque
faz rir; e, por muito frouxo que seja o espirito de patriotismo no
censor dos escriptores seus conterraneos, dóe ter de dizer: «o professor
de litteratura fez córar a face dos discipulos.»

Os meus reparos n'este livro tocam sómente com o que ha n'elle relativo
á familia de Luiz de Camões; mas, ahi mesmo, é deploravel a falta de
siso do biographo.

A pag. 233 suppõe o snr. Theophilo que entre uns papeis que se perderam
de Luiz de Camões houvesse cartas escriptas _aos seus amigos mais
valiosos intercedendo por seu pai que estava preso_.

A pag. 243, no summario do capitulo VI, diz: _A noticia do perdão de seu
pai Simão Vaz de Camões._ Temos ainda Camões com pai.

A pag. 259: _Por estas mesmas novas chegadas de Lisboa nas Náos partidas
no principio do anno de 1557 soube Camões... da sentença que condemnava
Simão Vaz de Camões, seu pai, para o degredo perpetuo do Brazil com
pregão e cadeado._

O leitor chega ao cabo do livro, persuadido que Camões tinha um pai, que
por estouvamentos de rapaz devasso, ahi na volta dos 60 annos, mereceu
ser condemnado a degredo com pregão e cadeado; mas, por acaso, volta a
pagina das erratas, e vê que o biographo lhe pede que leia _primo_ onde
estiver _pai_. Parece uma anecdota isto!

Que razões motivaram esta correcção? Que raio de luz dardejou o bom
senso na ultima pagina do livro? Pois o doutor, durante a formação do
estirado livro, não teve um intervallo lucido? E, se o teve no fim,
porque não queimou a obra desde a primeira pagina, embora se perdesse a
_Carta de Ayres Barbosa a André de Rezende_?

Eis aqui o modo como o snr. Theophilo descobriu a final que Simão Vaz de
Camões era _primo_ e não era _pai_ do poeta.

Quando o livro ia sahir do prelo, a humilde pessoa, que escreve estas
linhas, publicava, no _Diccionario de educação_ de Campagne, um breve
artigo intitulado _Camões_, em que se lêem estes periodos:


«Os louvores ao prodigioso genio de Luiz de Camões são tantos, e tão
amiudados no discurso de tres seculos que já hoje em dia o repetil-os,
pelos mesmos conceitos e fórmas encomiasticas, nos parece banal
encarecimento. Mais util e plausivel nos avulta o esforço de alguns
biographos empenhados em esclarecer os lanços menos claros da biographia
do poeta. N'esta ardua lide tem mostrado ardente zelo o snr. visconde de
Juromenha, o mais particularisador noticiarista da vida de Luiz de
Camões. Todavia, assentando boa parte de suas innovações em conjecturas,
resulta que a louvavel vontade de esclarecer se demasie em hypotheses
pouco menos de inverosimeis. Está em o numero d'estas a affirmativa de
residir em Coimbra por 1556, o pai de Luiz de Camões, Simão Vaz. Este
mesmo é na hypothese do biographo, um tal que o corregedor de Coimbra
enviava preso a Lisboa, em 1563, por ter entrado em mosteiro de freiras,
e vem a ser o mesmo que em 1576, juntamente com os seus criados,
espancava o almotacé de Coimbra. Bastaria a despintar da phantasia do
snr. visconde de Juromenha semelhante conjectura, a pobreza do filho,
que recebeu 2$400 reis para se alistar na armada, em lugar d'outro, em
quanto seu pai, com mais de cincoenta de idade, andava por Coimbra
escalando conventos, e já com mais de setenta espancava as justiças,
acaudilhando criados,--circumstancia indicativa de vida abastada, e
orgulho de fidalgo com as posses que dão azas ao orgulho.

«De todo em todo aniquila a supposição de que o mexediço Simão Vaz de
Camões haja sido pai do poeta, e marido da desvalida Anna de Macedo, uma
nota do snr. doutor Ayres de Campos, sobposta ao traslado da provisão
passada em 16 de maio de 1576, a respeito das injurias e offensas
praticadas por Simão Vaz de Camões no almotacé. Eis a nota: «E para
tambem não ficarmos culpados em passar por alto alguns outros documentos
que com estes tem estreitas relações, aqui os apontamos desde já em
quanto as suas integras não forem publicadas no supplemento. Assim elles
vão prestar auxilio valioso, e não grande embaraço a todos os criticos
illustres que, talvez fascinados por meras semelhanças de nomes e
appellidos, não teem hesitado em attribuir ao turbulento cidadão
conimbricense Simão Vaz de Camões, muito vivo e são em 1576, a honrosa
paternidade _legitima_ do author dos _Lusiadas_.» Cita mais o insigne
antiquario a vereação da camara de Coimbra de 31 de julho de 1563 da
qual se deprehende que Simão Vaz havia casado em 1562, e casára
novamente. Ora, quer o _novamente_ signifique segundas nupcias, quer
primeiras, como alguem aventa, sem dar a razão do alvitre, é certo que
esse não podia ser o pai de Luiz de Camões, que falleceu antes de sua
mãi. (Veja _Indices e Summarios dos Livros e Documentos mais antigos e
importantes do Archivo da Camara Municipal de Coimbra._ Coimbra, 1867,
pag. 7).

«Temos presente a genealogia dos Camões, manuscripto de Jorge de Cabedo,
fallecido em 1602 ou 1604, e pelo tanto contemporaneo de Luiz de Camões.
(Veja _Diccion. bibliog._ de I. F. da Silva, tom. IV, pag. 161).

«Cabedo falla do bisavô do poeta João Vaz de Camões, que foi corregedor
em Coimbra, e jaz em Santa Cruz.

«Segue Antão Vaz de Camões (filho d'aquelle e avô do poeta) que casou no
Algarve com Guimar Vaz da Gama. Menciona Simão Vaz de Camões (filho de
Antão Vaz e pai do poeta) _que foi por capitão d'uma náo á India, e deu
á costa á vista de Goa, salvou-se em uma taboa, e lá morreu, deixando
viuva Anna de Macedo, dos Macedos de Santarem_.

«Faz tambem menção de outro Simão Vaz de Camões, residente em Coimbra,
parente proximo do poeta, dizendo ter sido aquelle casado com Francisca
Rebello[1] filha de Alvaro Rebello Cardoso, a qual, viuvando, casára com
Domingos Roque Pereira[2].»

O snr. Theophilo leu isto sem duvida alguma, e cedeu aos singelos
argumentos do artigo do _Diccionario_.

Que faria o leitor, sendo (Deus o livre!) author do livro de Theophilo?

A não entregar a obra toda ao fogo purificador dos seus creditos
litterarios, rasgava as paginas em que chamava _pai_ a Simão Vaz,
substituindo-as por outras em que lhe chamasse _primo_.

Diga-se verdade: o snr. Theophilo rasgou duas paginas do livro, a 59 e
60; mas devia inutilisar as seguintes em que subsistem os erros
derivados da confusão dos dous homonymos Simão Vaz de Camões.

Escrevi no _Diccionario_, reportando-me impensadamente a um genealogico
dos Camões: «Faz tambem menção de outro Simão Vaz de Camões, parente
proximo do poeta, dizendo ter sido aquelle casado com Francisca Rebello,
filha de Alvaro Rebello Cardoso, a qual, viuvando, casára com Domingos
Roque Pereira.»

Escreve o sr. Theophilo na regenerada pag. 59:

«Simão Vaz de Camões, que em 1562 casou em Coimbra com Francisca
Rebello, filha de Alvaro Cardoso[3].»

Convido o snr. Theophilo Braga a declarar onde leu a noticia de tal
casamento! Com toda a certeza, a primeira pessoa, que imaginou vêr isto
em letra de mão, e o pôz em escriptura, desde que ha letra redonda, fui
eu.

Pesa-me do intimo seio que o snr. doutor T. Braga escorregasse na
ladeira do meu engano. Já o snr. Felner lhe armou a esparrella da carta
de Ayres Barbosa; e eu, mais innocentemente, fil-o casamenteiro de Simão
Vaz com Francisca Rebello! É fado esquerdo do snr. Theophilo! Porém, o
que tem graça infinita é o snr. doutor fixar o anno do casamento em
1562! Que eu o inventasse, vá; mas que o snr. Theophilo lhe marcasse o
anno, é vontade de callaborar nas indiscrições alheias!

Isto não é simplesmente criancice párvoa--é desgraça; é mais que
desgraça--é castigo da Providencia, porque o sr. Theophilo ladrou
arrogantemente a Castilho, a Herculano, a Garrett, a Rebello, a
Varnhagen; e não houve ainda detrahidor tão audaz, tão ignorante, e,
sobre ignorante, ridiculo.

O meu lapso procedeu de confundir dous nomes confusamente escriptos em
uma arvore genealogica. Simão Vaz de Camões, o libertino parente do
poeta, casou com uma sua criada, e morreu sem descendentes. Esta é a
verdade. Quem casou em Coimbra com Francisca Rebello, filha de Alvaro
Rebello Cardoso, morgado das Caldas, foi Simão _Vasconcellos_, e não
Simão _Vaz_.

Cá me fica pesando na consciencia o tempo e o papel que o snr. Theophilo
desperdiçou. De ambas as cousas tenho escrupulo; menos da data do
casamento; que essa é d'elle.

Mas, se o snr. Theophilo substituiu as duas paginas que eram a fonte do
erro, porque não supprimiu as correntes que derivam d'essa fonte? Não
viu que todas as referencias ás paginas substituidas ficavam
incomprehensiveis? O sentimentalismo que enternece o pesar do poeta pela
prisão do _pai_ não póde subsistir racionalmente na prisão do _primo_!
Que faz então o snr. Theophilo? Usa processos sobre maneira economicos:

     ERRATA

     Onde se lê _pai_, leia-se _primo_.

E está acabado.

Ninguem me dê definições d'este preceptor infeliz!

Contem-me esta passagem, que eu não preciso cenhecel-o de perto, nem
lobrigar-lhe o feitio interior dos camarins do pensamento. É um cháos!
Eu já não me admirarei se o snr. Theophilo, depois de esponjar alguns
centos de livros, escrever uma _Errata geral_ n'este sentido: onde se
lê: OBRAS _de Theophilo_, leia-se: MANOBRAS _do mesmo_.

      *      *      *      *      *

Se o leitor quer, vamos agora farejar sangue de Camões nas veias dos
nossos contemporaneos. Não cuide, porém, que vai deliciar-se n'esta
leitura. É materia árida, fructo das taes insomnias constantes do
proemio do numero primeiro.

Vasco Pires de Camões veio de Castella no tempo de Fernando I. Foi
alcaide-mór de Alemquer e Portalegre. Fugiu para Castella, quando o
mestre de Aviz se levantou com o reino. Foi prisioneiro em Aljubarrota,
perdeu os bens da corôa; mas cá ficou.

Gonçalo Vaz, seu primogenito, instituiu um morgado em Evora, chamado da
Camoeira. Não temos que vêr com os outros filhos, cujos descendentes ou
foram pobres, ou identificaram os seus haveres nos morgadios do primeiro
ramo, á falta de geração.

Succedeu-lhe Antonio Vaz, pai de Lopo Vaz de Camões, cujo primogenito,
tambem Antonio Vaz, teve um filho, que outro sim se chamou Lopo, e fez
um morgado em Aviz.

D'este ultimo gerou-se D. Anna de Castro, que foi casar a Guimarães com
Diogo Lopes de Carvalho, quarto senhor dos coutos de Abbadim e Negrellos
no tempo de Philippe II.

Luiz Lopes de Carvalho, 5.º senhor dos coutos, foi assassinado em
Guimarães.

Gonçalo Lopes de Carvalho Camões e Castro Madureira, bisneto de Lopo Vaz
de Camões, succedeu nos morgados da Camoeira da Torre de Almadafe no
termo de Aviz, e da Gesteira no termo de Evora, ambos creados por
Gonçalo Vaz de Camões e Duarte de Camões, ultimo representante da
varonia, que morreu sem geração, e por isso os vinculos passaram aos
descendentes femininos de Lopo Vaz de Camões, que eram os senhores de
Abbadim e Negrellos. Existia esta posse em 1692[4].

Thadeu Luiz Lopes de Carvalho, filho de Gonçalo Lopes, casou, depois do
anno 1718, em Lisboa, com D. Brites Thereza de Menezes, que morreu muito
nova. Celebrou segundas nupcias com D. Francisca Rosa de Menezes e
Mendonça, filha de D. Francisco Furtado de Mendonça.

Tiveram filhos varões, que morreram na infancia, e tres filhas que
casaram: D. Marianna Luiza Ignacia, com Caetano Balthazar de Sousa de
Carvalho, alcaide-mór de Villa Pouca de Aguiar; D. Anna Joaquina, com
Gonçalo Barba Alardo Corrêa, em 1751; D. Guiomar Marianna Anacleta de
Carvalho Fonseca Camões e Menezes, herdeira, com D. Antonio de
Lencastre, governador de Angola--(1772-1179), filho segundo de D.
Rodrigo de Lencastre.

Nasceram, entre outros fallecidos na infancia, um filho, que se chamou
D. Rodrigo de Lencastre Carvalho Fonseca e Camões, e uma senhora, D.
Francisca Rosa de Lencastre, que casou com seu primo Lourenço de Almada,
1.º visconde de Villa Nova de Souto de El-Rei.

D. Rodrigo, herdeiro dos morgadios e senhorios de Negrellos, Abbadim,
etc., e sargento-mór do regimento de cavallaria do principe D. João em
1791, casou com D. Maria do Carmo Henriques, filha herdeira de João
Henriques, do Bombarral.

No morgado da Camoeira succedeu o 2.º visconde de Souto de El-Rei pelo
seu casamento com D. Francisca Felizarda de Lencastre, filha de D.
Guiomar de Camões, senhora de Abbadim e Negrellos. Uma filha d'estes
viscondes, D. Guiomar, casou com Gonçalo da Silva Alcoforado.

Está, por tanto, o sangue dos Camões em todos os descendentes da mulher
do 1.º visconde de Souto de El-Rei. O terceiro ainda se assignou com o
appellido Camões. Está igualmente na familia Alcoforado da casa da
Silva, na familia da casa de Villa Pouca de Guimarães; nos descendentes
de José Bruno de Cabedo, 1.º barão do Zambujal, por linha feminina, pois
sua mãi era neta de D. Guiomar de Carvalho Camões e Fonseca; na casa da
Pousada em Braga, representada ha quarenta annos por Francisco Xavier
Alpoim da Silva e Castro, terceiro neto de Thadeu Camões, senhor de
Abbadim.

Em quasi analogo parentesco estão os snrs. Leites de Paço de Sousa, e os
snrs. Pachecos Pereiras de Villar, ou de Belmonte.

Não prolongarei esta resenha que de certo, hoje em dia, se ramifica tão
copiosamente quanto cumpre imaginar das faculdades reproductoras das
pessoas que representam aquelles illustres appellidos.

Falta dizer que Luiz de Camões deixou um filho que não se reproduz, e é
immortal: chama-se LUSIADAS.

     [1] Adiante se verá que fui inexacto n'esta noticia.

     [2] Este Simão Vaz de Camões era filho de Duarte de Camões de
     Tavora, filho de outro Simão Vaz de Camões, senhor do morgado da
     Torre. Casou Duarte com D. Isabel Lobo, filha de Ayres Tavares e
     Sousa, de quem houve, além de Simão Vaz de Camões, Luiz Gonçalves
     de Camões, e D. Maria da Camara, que casou com Francisco de Faria
     Severim. Quanto ao Simão que viveu em Coimbra, diz o linhagista que
     _se casára á sua vontade_, como quem desfaz na estirpe da esposa.

     [3] A pag. 417 amplia o traslado do meu artigo, escrevendo: _a qual
     casou depois em segundas nupcias com Domingos Roque Pereira._

     [4] Veja Memorias resuscitadas da antiga Guimarães, pelo padre
     Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 361.



LISBOA


Antes do traslado, darei breve noticia do livro de outro viajante bem
creado que nos visitou mais de espaço em 1730. A _Description de la
Ville de Lisbonne_, impressa em Paris, n'aquelle anno, é facil de
encontrar em Portugal.

Este viajante esteve no paço da Ribeira. Viu as riquissimas alfaias do
vasto palacio. Reinava D. João V, o Salomão do occidente. Que valores
não sorveu aquella vasa do Terreiro do Paço vinte e cinco annos depois!

Uma cousa achou tristissima o viajante; eram as noites de Lisboa:


«Esta grande cidade (diz elle) não é alumiada de noite, e é isso causa a
que um homem se veja em embaraços para acertar com o seu caminho, e
soffra sobre si os despejos de immundicies que lá se atiram das janellas
ás ruas, porque as casas não tem latrinas. A obrigação de cada qual é
levar essas immundicies ao rio, para o que ha negras que se occupam
n'este serviço muito baratas; mas a plebe não quer saber d'essas ordens.
Nas ruas não se anda de noite com bastante segurança, salvo quando se é,
como lá dizem, _embuçado_, isto é, quando se envolve a gente em um farto
capote, desde a cabeça até ás canellas: é um trajar exquisito, de que
usam as pessoas mais qualificadas, e até os principes, como trajo
privilegiado e respeitado. O respeito que se tem a esta especie de
mascara, vem de impedir que os taes se reconheçam, e do receio que o
disfarce encubra armas de fogo prestes a disparar-se sobre quem os
insultar ou quizer conhecer... Lisboa não tem passeio algum, nem
divertimento de nenhuma casta a não ser um mau theatro hespanhol. Os
fidalgos, não obstante, frequentam este theatro; e, depois que sahem[5]
vão gastar o restante do dia a passear nas suas carruagens, na praça do
Rocio, onde palestream até á noite, sem sahir das carruagens. As
cadeirinhas usam-se muito, e as liteiras estão na moda das damas
distinctas e dos velhos; mas, por conta das ruas intransitaveis, os
coches são raros.»


Fallando de estalagens, diz que eram quasi todas francezas, inglezas e
hollandezas, sendo a melhor de todas uma franceza na praça dos
Romulares, onde o passadio de cada dia custava 6 francos.

Attribue a carestia á diminuta concorrencia de estrangeiros, que se
hospedem fóra das casas dos amigos.

Já n'aquelle tempo, pelos modos, era mais barato hospedar-se a gente em
casa dos amigos. N'este particular, não adiantamos nada. Outros
forasteiros, que não tivessem amigos em Lisboa, costumavam alugar
quartos, com uma banca, seis cadeiras de palha, louça de barro, e cama
no chão, constante d'uma enxerga e duas cobertas, que á noite se
desdobram sobre uma esteira de junco. Diz elle que nas hospedarias era
peor.

Conheceu o sujeito em Lisboa uma senhora portugueza, casada com um
negociante francez, de Bayonna. A tal senhora via o que se passava no
interior do corpo humano e nas entranhas da terra, não tendo nos olhos
senão grande belleza. Incommodava-se-lhe a vista quando divisava nos
reconditos escaninhos da economia animal abscessos asquerosos. Via os
phenomenos physiologicos da digestão, e dizia se o feto no ventre
materno era macho ou femea, aos sete mezes. Na profundeza de 30 ou 40
braças descobria mananciaes d'agua. Estas prerogativas extraordinarias
só as gozava em quanto estivesse em jejum; algumas vezes, porém, á hora
de sesta, refinava no condão de vêr os rins de um homem gordo através do
capote. Os descobrimentos de agua, já para o rei já para os
particulares, o voto dos sabios e dos ministros, em fim, os
incontroversos prodigios d'esta mulher grangearam-lhe a mercê regia do
_dom_ e o habito de Christo para seu marido.

O padre Le Brun, no anno seguinte á publicação d'este livro, metteu a
riso a historia da lisboeta. (Veja _Histoire critique des Pratiques
superstitieuses_, etc., l. 1.º, cap. 6, edição de Amsterd. 1733). Mas o
cavalheiro de Oliveira que demorava então em Londres, onde publicava o
seu _Amusement periodique_, a pag. 274 e seguintes do 2.º tomo, impugna
a incredulidade do francez, com as seguintes razões. E note-se,
primeiramente, que Francisco Xavier de Oliveira foi o portuguez mais
incredulo do seu tempo; e, se não fugisse de Portugal, teria sido
queimado como herege.

Diz elle:


«Eu não subscrevo ás suspeitas de impostura que o padre Le Brun irroga á
mulher portugueza, porque a conheci pessoalmente, tendo ella entre onze
e doze annos. Vi-a, pela primeira vez, em Paço d'Arcos na quinta de
Jeronymo Lobo Guimarães, onde fôra para indicar o ponto onde havia agua.
Do primeiro lanço de olhos, apontou o sitio. Lobo fez cavar no ponto
indicado, e achou agua abundantemente. Verdade é que ella marcava entre
seis e sete braças; e a agua borbulhou na profundidade de oito. Tambem é
certo que, estando eu vestido, ella me disse positivamente os signaes
todos que eu tinha na pelle, e o mesmo fez a cinco pessoas presentes.
Afianço isto como testemunha ocular. Que ella visse através da pelle,
nunca ouvi dizer...»


Prolonga-se o cavalheiro de Oliveira abonando os prodigios contrariados
por Le Brun, e prosegue:


«Declarou esta menina que não podia entrar em igrejas e atravessar
cemiterios, por causa do horror que lhe faziam os cadaveres enterrados,
que ella via podres debaixo das lapides. Todos os tribunaes, e
maiormente o do santo officio, tomaram conhecimento d'esta declaração.
Abriu-se um tumulo como experiencia, e achou-se o cadaver qual ella o
descrevera, antes que levantassem uma grossa lousa. Não sei que destino
teve esta mulher: o que sei é que nem a inquisição nem algum tribunal a
inquietou[6].»


Proseguindo na viagem do admirador da prodigiosa lisboeta, refere elle
algumas cousas da côrte de D. João V que precisam ser esclarecidas.

Numera os officiaes, que servem a casa real, e diz que, áquelle tempo, o
officio de mordomo-mór tinha vagado, em consequencia de ter fugido de
Portugal em 1724 este empregado do paço com uma das mais formosas damas
do reino, esposa de um fidalgo. E acrescenta:


«O rei mandou depós os fugitivos um esquadrão de cavallos; mas como
elles levavam um dia de avanço, e correram á desfilada, a tropa não
logrou apanhal-os; por maneira que chegaram a Vigo[7], na Galliza sem
embaraço. Com tudo, breve lhes foi o contentamento; porque o bispo
d'aquella cidade fez entrar a dama em um mosteiro, e o fidalgo
retirou-se para Madrid. O marido da fugitiva vestiu-se de luto, assim
que soube da fuga; e, conforme o prejuizo do paiz, ou como lá dizem os
portuguezes, _porque tinha barbas_, jurou não apparecer mais sem matar o
raptor, e matar ou enclausurar para sempre sua mulher.»


No immediato numero saberá o leitor quem foram os personagens d'este
caso, que envolve tragedia digna de livro de maior fôlego.

     [5] Vê-se que as representações eram de dia.

     [6] São rarissimos ou talvez unicos em Portugal, estes livros do
     cavalheiro de Oliveira. Diz elle que apenas tinha na sua patria
     dous assignantes, e um era Jacome Raton.

     [7] É erro: foi em _Tuy_.



VOLTAS DO MUNDO


Ayres Ferreira, da casa dos senhores de Cavalleiros, e couto de Frazão e
Marvilla de Couros, viveu em Barcellos, no tempo de D. João III.

Teve quatro filhos e duas filhas.

Os rapazes, á excepção de um que morreu na infancia, foram todos servir
na India: eram Ruy, Alvaro e Gonçalo.

As meninas professaram, e foram abbadessas perpetuas no mosteiro de Cós.

Os tres soldados grangearam fama no Oriente; e Ruy Ferreira de Mendonça,
o mais velho, avantajou-se nas proezas--nas crueis façanhas que os
Coutos e Barros chamaram proezas.

Não lhes desluzam, por isso, a memoria. Era seculo de trevas e de
missionarios. Reinava D. João III, o inquisidor. Cada qual é do seu
tempo. Se algum contemporaneo, como o bispo de Silves, protestou contra
o fanatismo sanguinario, deve-se o protesto honroso a não ter ido lá o
insigne escriptor. Se fosse, pegaria d'elle a contagião da carnagem, a
peste d'aquelle ar infecto da sangueira, o colera que accendia sêdes de
cubiça insaciavel.

No seu solar de Barcellos ficára Ayres Ferreira, sósinho e triste.
Doia-lhe mais que tudo a saudade de Ruy, o seu primogenito, que lhe
fugira, ancioso de batalhas, e invejoso dos irmãos, cujos nomes
começaram a ser laureados na Asia em 1543. N'aquelle tempo, um mancebo
de appellido _Goes_, renunciava esse appellido, que era o de seu
progenitor, em affronta ao pai que lhe impedira servir as armas na
India!

Um dia, Ruy Ferreira de Mendonça recebeu em Goa carta de seu pai,
queixando-se dos filhos que o deixaram velho, desamparado, e exposto aos
affrontamentos de quem já lhe não temia o braço alquebrado por annos e
desgostos.

E contava que o abbade de Creixomil, clerigo fidalgo e possante, ousára
pôr-lhe as mãos nas barbas.

Ruy sahiu com a carta de seu pai em demanda do vice-rei a pedir-lhe
licença para vir ao reino. O vice-rei negou-lh'a, com o intento de
evitar um crime, privando-se de um dos seus mais valentes capitães. E,
sabendo que o fidalgo lhe não obedeceria e se andava negociando
clandestinamente passagem nas náos, deu-lhe ordem de prisão até que os
navios levassem ancora.

As náos abalaram, e Ruy foi posto em liberdade.

Apenas livre, correu á barra, avistou ao longe o velame, arrojou-se ás
ondas, e nadou na esteira d'ellas. Quatro horas bracejou, reagindo ao
sossobro, que já o levava de vencida. Favorecido por subita calmaria, as
náos balouçavam-se paradas, e as vagas alisaram-se como lago de aguas
estanques. Viram da amurada o homem que nadava. O capitão, que lhe
quizera dar passagem occulta, suspeitou quem fosse, e mandou, uma lancha
com oito remadores ao encontro d'elle. Colheram-o reanimado, mas em
tamanho quebranto de forças que levou dias a restaurar-se. Tinha cortado
duas leguas de mar!

Desembarcou em Lisboa, e seguiu para o Minho.

S. Thiago de Creixomil, abbadia do então chamado Couto de Fragoso,
demorava no termo de Barcellos.

Ahi vivia o clerigo que affrontára Ayres Ferreira.

Ruy, antes de se avistar com o pai, bateu á porta do abbade, e
enviou-lhe o seu nome.

O fidalgo tonsurado desceu ao recio da sua residencia, empunhando a
espada de cavalleiro. O soldado da India rejubilou quando viu o
adversario armado. Vexava-o ter de matar um inerme. Travaram-se os dous
gladios; mas que prelio tão desigual entre o guerreiro experimentado e o
fidalgo que sabia apenas a esgrima de curioso! Á volta de poucos botes,
o abbade de Creixomil cahiu traspassado do peito ás costas, ouvindo
estas vozes frementes de odio:

--Perro! não pozesses as mãos nas barbas de um velho!

E depois foi beijar a mão a seu pai, com quem se demorou algumas horas,
e partiu para não perder a passagem das náos que estavam de vela para a
India.

E lá foi ceifar novos louros.

Passados annos, o solarengo de Barcellos morreu, e foi sepultado na
capella do Santissimo Sacramento da igreja matriz de Barcellos, onde
estavam os ossos de seus paes e avós.

Ruy Ferreira voltou ao reino, e succedeu na casa de seu pai.

Ninguem lhe pediu saldo de contas com os descendentes do abbade que
naturalmente os tinha, de collaboração com as mais nitidas ovelhas do
seu rebanho.

Disputou a posse do morgadio de S. Pedro de Fajozes, no concelho da
Maya, a sua prima D. Joanna de Eça, da casa de Cavalleiros. Ganhou a
demanda.

Em seguida, casou com D. Philippa de Athaide, filha de Martim Lopes de
Azevedo, decimo primeiro senhor da casa e solar d'Azevedo e da Villa de
Souto.

Tiveram seis ou mais filhos; parte d'estes morreram na India.

A representação d'esta casa, volvidos 60 annos, estava em Duarte Pacheco
Pereira, governador de Ormuz, descendente do heroe desgraçado que teve
aquelle nome; porque um bisneto de Ruy, chamado Luiz de Mendonça, casou
com D. Guiomar de Albuquerque, neta de Duarte Pacheco Pereira.

Eu não sei se algum dos trinta e quatro barões que conheço, estando no
Brazil, e sabendo que seu pai, o tio Antonio da Thereza, foi espancado
pelo estadulho do tio Joaquim da Thomazia, seria capaz de vir da rua da
Quitanda desaffrontar o seu velho progenitor! Acho que não; e faria
muito bem. Ha 300 annos, aquelle Ruy poz o abbade a dormir o somno
eterno, cavalgou na sua mula, e lá foi socegadamente para Lisboa, e de
Lisboa para a India. Hoje em dia, se o barão de Ranhados matar o
Januario do Quinchoso, que lhe bateu no pai, o mulherio grita á
d'el-rei, o regedor participa ao administrador, este faz uma circular
telegraphica para os quatro pontos cardeaes, e o barão, quando chegar,
mais aqui ou mais além, dá de cara com dous policias, e depois bem
sabemos o resto.

Mudaram os tempos pela mesma razão que mudaram os fidalgos. Não ha pai
por filho nem filho por pai, em quanto se ganha dinheiro.

Entre HEROISMO antigo e DINHEIRO moderno está um fosso. Quem quizer
palmilhar de salto as duas orlas do abysmo cahe no _ridiculo_ ou... nas
mãos da policia.



NOVA SOLUÇÃO DO PROBLEMA HISTORICO


Cá está outra que me parece mais sensata que a primeira. O premio,
infelizmente para o verdadeiro merito, era já distribuido. Não obstante,
o snr. _Bibliophilo_ ha de ser galardoado. A minha livraria é pobre: não
vejo livro digno de s. s.^a; mas vou munir-me de duas joias litterarias,
que submetto á escolha do douto letrado.

Disponha, pois, s. s.^a do FAUST do snr. Joaquim de Vasconcellos, ou dos
ORIGINAES OPUSCULOS do snr. Jayme José Ribeiro de Carvalho. A primeira,
bem que não trate de hygiene, é drastica; a segunda, posto que entenda
com a sciencia dos derivativos, corre parelhas com a utilidade da
primeira. D'este modo, dou testemunho publico da consideração que me
merece o bibliophilo, e fio muito dos dous offerecidos authores a
lapidação do seu espirito, que reslumbra e rasga na seguinte carta
destinos de nenhum modo chochos.

«_Snr. redactor das NOITES DE INSOMNIA._

«Estimo esta occasião de o informar de um caso que succedeu em 1693, e
esclarece completamente as suas duvidas a respeito do augusto forasteiro
que tres pontifices sentenciaram rei de Portugal.

«Tenho a satisfação de possuir um folheto rarissimo que meu avô
conseguiu salvar no incendio da livraria do conde da Ericeira, em 1755.
É conhecido outro exemplar no _Museu britannico_. E eu preso-o tanto que
não me desfiz d'elle, quando me offereceram em troca as obras completas
do doutor Theophilo, e sete menos cinco em dinheiro.

«Intitula-se a minha raridade: _Relaçam do sucesso que teve o patacho
chamado Nossa Senhora da Candelaria da Ilha da Madeira, o qual vindo da
Costa de Guiné, no anno de 1693, huma rigorosa tempestade o fez varar na
Ilha incognita. Que deixou escripta Francisco Corrêa, mestre do mesmo
patacho, e se achou no anno de 1699, depois da sua morte. Impresso em
Lisboa em 1734._»

«Aproveitando as suas insomnias, vou dar-lhe muito resumida a substancia
do referido opusculo.

«Conta Francisco Corrêa que, ao avistar as ilhas de Cabo-Verde,
toldou-se repentinamente o céo, e logo uma nebrina escura fez noite a
bordo, a termos de se não conhecerem os tripolantes. De subito, pegam de
esfuziar nas gaveas repellões de ventania, e os relampagos a fuzilarem,
e logo as nuvens negras a abrirem-se em jorros de chuva.

«Traquete e mezena voaram. A embarcação fez agua por todas as pranchas
descosidas; e, apesar de esforços desesperados, não vingaram cegar os
sorvedouros. Quinze eram os nautas que se deram em uma jangada á
misericordia divina. Ao abrir da manhã, avistaram a leste uns morros
pardacentos; mas como não tinham governo que alli os proejasse,
deixaram-se ir na corrente e á mercê de Deus até varar em terra.

«Em quanto se reparava a embarcação, o mestre do patacho, com Manoel
Antunes e João de Arruda, embrenharam-se no matagal com os arcabuzes bem
cevados. Viram mono de oito palmos, e dentes de duas pollegadas e meia;
viram cobras grossas como pipotes de oito almudes; e viram a final uma
mulher marinha que Francisco Corrêa descreve d'este feitio:


«Tinha todas as perfeições até á cinta, que se discorrem na mais
formosa, e sómente a desfeavam as grandes orelhas que tinha, pois lhe
chegavam abaixo dos hombros, e quando as levantava, lhe subiam a
distancia de mais de meio palmo por cima da cabeça. Da cinta para baixo,
toda estava coberta de escamas, e os pés eram do feitio de cabra, com
barbatanas pelas pernas. Tanto que se viu no monte, presentindo ser
vista, deu taes berros, que estremecia a ilha, pelo retumbo dos echos; e
sahiram tantos animaes, e de tão diversas castas, que nos causou muito
medo. Arrojou-se finalmente ao mar pela outra parte com tal impeto, que
sentimos nas aguas a sua vehemencia. Todos se assustaram, menos eu, pois
já tinha visto outra no cabo de Gué; e tinha perdido o medo com outras
semelhantes apparições; e me lembra, que junto a Teneriffe vi um homem
marinho de tão horrendo feitio, que parecia o mesmo demonio. Tinha
sómente a apparencia de homem na cara, na cabeça não tinha cabellos, mas
uma armação, como de carneiro, revirada com duas voltas; as orelhas eram
maiores que as de um burro, a côr era parda, o nariz com quatro ventas,
um só olho no meio da testa, a bocca rasgada de orelha a orelha, e duas
ordens de dentes, as mãos como de bugio, os pés como de boi, e o corpo
coberto de escamas, mais duras, que conchas. Uma tempestade o lançou em
terra, e taes bramidos deu, que entre elles expirou, e para memoria se
mandou copiar a sua fórma, e se conserva na casa da cidade d'aquella
ilha.»


«Ao terceiro dia, 8 d'agosto de 1693, ouviram uma voz lá dos reconcavos
da serra, a bradar: _Portugal!_ _Castella!_ Seguindo a toada das
exclamações, toparam um homem de venerando aspecto, que lhes fallou
assim:


«_Graças a Deus Senhor; infinitas graças vos dou, por me chegardes a
tempo, depois de tantos annos, em que eu visse gente da Europa_; e logo
olhando gravemente, e cortez para nós, disse: _Senhores, de que nação
sois?_ Nós pasmados, não acertavamos a responder; e conhecendo elle o
nosso susto, nos animou brandamente, rogando-nos para a sua pobre
habitação, aonde entrámos, e sentados em um tosco pau, nos fallou com
taes palavras:

«_Senhores, sois portuguezes, ou castelhanos? Respondei sem susto; que
não tendes, quem n'esta ilha se opponha aos vossos designios. Se me
procuraes, para acabardes com a minha vida, aqui me achaes sem
resistencia, e sem defensa mais que a de Deus; e como de tanto viver
estou aborrecido, grande favor me fazeis em me alliviardes de tão grande
penalidade._ Eu, que respeitava a sua pessoa, desejando satisfazer á sua
pergunta, o certifiquei de que eramos portugueses, que arribáramos com
um grande temporal áquella ilha: do que, tanto que me ouviu, posto de
joelhos, levantadas as mãos, pondo os olhos no céo, soltando as
lagrimas, deu graças a Deus, dizendo: _Ah bom Deus, quão grande é a
vossa infinita Providencia!_ E levantando-se, nos abraçou, e saudou,
dizendo: _Meus portuguezes, meus portuguezes_; sem que as lagrimas
cessassem: e levando-nos para o interior da cova, nos fez sentar junto a
si, perguntando-me pelos companheiros, e pelo nosso infausto successo,
de que lhe démos larga conta. Perguntou-nos quem reinava em Hespanha, e
sabendo que em Castella reinava Carlos II, e em Portugal D. Pedro II,
suspirando com alvoroço, disse: _E Portugal tem rei! Oh Deus immenso,
que te lembraste do teu reino!_ E dizendo-lhe nós como fôra acclamado
el-rei D. João IV, e os milagrosos successos d'aquelle dia, não cessava
de mostrar o gozo, que interiormente sentia: e logo repetindo novas
lagrimas, suspiros, e soluços, nos perguntou pela conquista de Africa,
ao que respondemos dando-lhe conta, do que sabiamos, e como desde a
batalha, que perdera el-rei D. Sebastião, se não continuára, tomando-se
horror a tal terra: e desejosos nós de sabermos com quem tratavamos, lhe
pedimos nos consolasse, dizendo-nos, quem o levára áquella ilha
incognita, e não arrumada nas cartas, e roteiros; ao que satisfez com
taes palavras:

«No tempo, que Philippe II entrou com violencia em Portugal, se retirou
muita gente, por não vêr o seu reino recuperado das mãos dos mouros
pelos nossos ascendentes, sem ajuda dos visinhos, sujeito a principe
estranho. Muito tempo andei retirado, discorrendo pelo interior da
Africa, passei á Palestina, e outras terras, tendo tantos trabalhos por
muito suaves, na consideração, de não vêr com os meus olhos o quanto
padeciam os meus naturaes; e passados alguns annos, passando á Europa,
cahi nas suas mãos; e entregando-me a certos homens, me levaram a uma
embarcação na bahia de Cadix, que promptamente se fez á vela. Tinha o
cabo ordem particular para que em certa altura me lançassem ao mar, sem
que me ouvisse, nem me deixasse fallar; e notando elle as minhas acções,
e innocencia, suspendeu a execução; até que na altura de Cabo Verde, me
intimou a ordem com tanto pezar, que bem entendi o desejo que tinha de
me favorecer. Preparou-se uma lancha, o melhor que se pôde, e n'ella se
pôz mantimento para tres dias. Entrou logo a animar-me, exhortando-me a
que confiasse em Deus, que me poderia livrar do perigo, a que me haviam
de expôr: e me mandaram baixar á lancha, o que não quiz executar, sem me
confessar, e me preparar espiritualmente, para entregar a alma a Deus;
que tudo se me concedeu; e tanto que baixei, cortaram o cabo, e me
entregaram á disposição das ondas. Não perdi o animo, antes constante
soffri este golpe, esperando, que Deus olhasse para a minha causa; e
nadando a lancha livremente, na manhã seguinte de 4 de outubro, cheguei
por acaso a esta ilha, em que habito sem que no discurso de tantos annos
visse alguma creatura racional. Penetrei o interior, encontrando a
piedade nos brutos, que não experimentei nos homens; e descobri esta
concavidade, que a natureza devia ter obrado para meu abrigo. Aqui me
recolhi, aqui tenho passado tantos annos, sustentando-me com datiles, e
outras frutas. Vivo, e não sei para o que vivo; Deus sabe o para que.»


«O testemunho do narrador, confirmado por Manoel Antunes e João de
Arruda, assevera-me que se alguma vez houve D. Sebastião era aquelle.
Muito instaram os nautas que se deixasse levar a Portugal; «mas
elle--acrescenta o mestre do patacho _Nossa Senhora da
Candelaria_--encarecidamente nos pediu com as lagrimas nos olhos, que o
não precisassemos a tal jornada, pois não chegára ainda o tempo de
passar a Portugal; que pelo amor que nos tinha, o lançassemos, terra
firme, em qualquer parte da Africa; e que debaixo da palavra que lhe
haviamos de dar como portuguezes partiria comnosco; o que lhe juramos.
Perguntamos-lhe se tinha alguma cousa na sua cova, que embarcasse; e
respondeu, que desde que n'ella entrára não cuidára mais que viver para
Deus; e que todos os annos lavrava por suas mãos uma tunica de folhas de
palma, para cobrir honestamente o corpo; na cova não tinha mais que uma
cruz, que por suas mãos fizera de madeira; e que essa deixassem, para
que n'aquella terra ficasse o signal da nossa redempção; e quando ella
se povoasse nos tempos futuros se acharia tambem a noticia do seu
habitador. Embarcou-se comnosco, beijando a terra, com muitas lagrimas;
e fazendo-nos á vela, esteve em nossa companhia dous dias e meio, em que
nos contava monstruosidades d'aquella ilha; e satisfazendo ao seu
pedimento o lançamos em terra duas leguas distante de Arguim,
expondo-lhe os perigos a que se expunha, sem que o podessemos persuadir
a suspender o desembarque em terra de barbaros; ao que respondia, que
Deus que o conservára até aquelle tempo, o livraria de todos os perigos.

«Despediu-se de nós com tantas lagrimas, e gosto, que bem mostrava as
saudades, que de nós levava, e o quanto se alegrava de passar áquella
terra. Abraçou-nos a todos, e saltando em terra, a beijou, e levantando
as mãos agradeceu a Deus as mercês que lhe fizera, e esperava receber da
sua piedosa mão; e penetrando aquella costa inculta, nos deixou sentidos
pela falta da sua companhia. Jámais podemos alcançar, o sabermos d'elle,
a sua patria, e nome; divertindo a resposta politicamente com tanta
gravidade, que nos não dava confiança, para instarmos; e sómente ao
despedir me disse, que a seu tempo o saberiam os nossos descendentes; e
dizendo-lhe eu nos consolasse ao menos declarando o tempo, nos disse:
que Deus o sabia.

«Varios discursos fizemos sobre este homem, conservado por tantos annos
n'aquella ilha, e agora caminhando por taes desertos; e nos persuadimos
ser cousa maior. Deus o leve, e traga a salvamento.»


«Confronte agora v. as datas das sentenças dos tres pontifices, e
deprehenda que D. Sebastião, tendo corrido a Palestina e _varias terras_
como elle disse aos marinheiros, muito é de crêr que estivesse em Roma
nas tres épocas assignaladas na sentença.

«Quanto á circumstancia de estar então o rei bastante avançado na
idade--pois tinha 137 annos--isso é controversia que pertence á alta
philosophia e não ao calendario decidir. São os _porquês_ de Deus, dos
quaes, sobre o mesmo assumpto, escreveu o doutissimo padre Antonio
Vieira:


«Demais que os porquês de Deus são incomprehensiveis, e das suas razões
não póde o entendimento humano dar razão; quanto mais, que Deus Nosso
Senhor sempre faz as suas cousas grandes, e com grandes milagres. Bem
podia Deus dar no tempo do Anti-Christo padres, que a este prégassem, e
com tudo guarda ha tantos annos a Enoch e Elias: outras paridades podéra
trazer se a brevidade as permittira.

«... Ou este rei morreu, ou não! Se morreu, aonde? Na batalha, ou fóra
d'ella? Se fóra d'ella, quem o testemunhou? Se morreu na batalha, como
não acharam os mouros o despojo, que tanto desejavam, e procuravam? Se
morreu no rio, como veio a sua espada? Como mandou o cardeal D. Henrique
aos que se fingiram reis inquirir e perguntar se eram o verdadeiro rei?
Se lhe a elle constára a sua morte, nunca fizera tal inquirição; e a
quem melhor podia constar, senão a elle? E bem se viu, que lhe não fez
exequias, nem officios, sendo um ministro da igreja, a quem
verdadeiramente tocava como rei, como tio, como prelado e por obrigação.
Mais: se morreu, como esteve depois em Veneza, e Napoles, preso e
desprezado, o que consta evidentissimamente, o qual successo refere
Lucio Floro nos seus _Annaes_, e D. João de Castro, que foi testemunha
de vista, o escreveu; e todas as circumstancias d'isso, e os prodigios,
que então succederam o confirmam, os quaes no quarto fundamento d'este
discurso mostraremos? Mais: que o snr. rei D. João IV o testificou e
contou, o que é uma mostra de evidencia certa, e outras muitas, que é
trabalhoso o referil-as por papel.»


«Responda-lhe, se póde.


«Muito venerador


«_Bibliophilo._»


Não tenho que responder. S. s.^a cuidará que eu sou menos sebastianista
que a sua pessoa?

Já lhe disse que escolha uma das obras citadas, e... sabe que mais?
mande-as buscar ambas, que as merece.



DESGRAÇADO BALZAC!

(Á _ACTUALIDADE_)


Tantas vezes o noticiarista repete que eu sou assignante do seu papel,
que parece estar-me convidando a declarar a razão por que assignei.

Eu lh'a digo ao noticiarista. Foi para me regalar com as inepcias do
folhetinista.

Quer-me parecer que os dous são um e mesmissimo tolo (com licença: não
diga que sou incivil).

Se os dous não são homogeneos, então tenho centauro pela frente. Em
cima, no noticiario, está a porção humana do aborto; em baixo, no
folhetim, está (com a devida cortezia) a porção bestial do mesmo
centauro.

Mas ha lanços em que o centauro se cabriola de feitio que a metade
debaixo esperneia em cima; e a gente, a meia volta, não sabe já onde
está o homem, nem onde está (com a divida venia) a bêsta.

O noticiarista, que me dizem chamar-se Silva Pinto, consinta que eu, por
conveniencias da composição e da variedade da fórma, lhe não chame
sempre centauro e tolo. Obriga-me a pedir-lhe licença todas as vezes em
obsequio á urbanidade. O melhor é chamar-lhe, como variante, Silva
Pinto.

O snr. Silva Pinto começou no n.º 16 da _Actualidade_ a traduzir
romances de Balzac.

Ai da nomeada do eminente explorador da alma, se Balzac podesse
espelhar-se na fusca photographia que lhe tirou este encarvoador de
paredes caiadas!

Eu não me despendo em considerações banaes acerca das difficuldades que
empecem trasladar a portuguez os livros de Balzac.

Quem entende as galas dos classicos francezes, e as encontra condensadas
no author dos _Contes drolatiques_, ainda que lhe sóbre igual saber da
linguagem portugueza, ha de vêr-se em apuros para moldurar em estylo
vernaculo as concisões, os idiotismos, a energia, o atticismo de Balzac.

Quem se afoutaria aos espinhos da empreitada? Um sujeito ignorantissimo
de ambos os idiomas: o snr. Silva Pinto.

E, sem mais delongas, vou provar-lh'o. O leitor faça-me o obsequio de se
prover do n.º 16 da _Actualidade_, e abrir isso onde começa o martyrio
de Balzac. Não me demoro a mostrar-lhe que tudo ahi tresanda bafio
francez, sem um torneio de phrase portugueza, sem um resalto que denote
primor, ou sequer um dizer que não venha gafado de construcção
gallicista. Isso é o menos. Vamos ás tolices mais lerdas:

Balzac, descrevendo um sujeito, a quem os seus amigos chamavam
_tempo-brusco_, dá a razão do epitheto n'estes termos:

_Il ne se rencontre en effet chez lui ni lumière trop vive, ni obscurité
complete._

E vai agora o snr. Silva Pinto, parvoejando, traduz:

_Effectivamente, estão banidas por elle de sua casa tanto a luz
demasiado viva como a escuridão completa._

Viram? _chez lui_--de sua casa. Incrivel!

Balzac, interpretado por um portuguez medianamente versado na sua
lingua, quiz dizer:

_Não ha que esperar d'este homem grandes luzes nem grandes trevas._

Mas... _a casa do homem_! Quando quiz Balzac saber se o sujeito tinha
luz ou estava ás escuras em casa? Quem estava em _escuridão completa_
sabemos nós.

Adiante.

Balzac descreve uma senhora rodeada de homens desvanecidos, gentis,
espirituosos, de notavel fama ou nome illustre, de baixa e alta
condição, e acrescenta:

_Auprès d'elle tout a blanchi._

O snr. Silva interpreta assim a phrase:

_Tudo isto via embranquecer á beira d'ella os proprios cabellos._

Quer dizer: _áquelles homens, quando conversavam com aquella senhora,
embranqueciam-se-lhes os proprios cabellos._

Esta sandice faz-me compaixão. Se vejo outra assim, emigro.

Balzac queria dizer: todos estes homens de prestigio, de galhardia, de
renome, aos olhos d'ella, _tout a blanchi_, «eram como se fossem
velhos». Não lhe inquietavam o coração, não lhe perturbavam a serena
indifferença, etc.

Adiante.

Referindo-se á insensibilidade d'esta dama, acrescenta Balzac:
_Certaines femmes coquettes sont capables de suivre ce plan la_. O
author quer dizer: _Certas mulheres galanteadoras tem artes de
dissimularem os mesmos geitos_; mas o snr. Pinto, subtrahindo o
_coquettes_ que dá o relevo ao confronto, diz espalmadamente:

_Ha mulheres capazes de seguir... aquelle plano._

Chatissimo!

Balzac diz que Eugène de Rastignac... _avait plus d'une fois regardé la
marquise de manière à l'embarrasser_.

Traducção do centauro:

_Olhava de quando em quando a marqueza de modo capaz de embaraçal-a._

Ha aqui um fartum de rapaz de escola, que faz engulho. Como é que os
olhos embaraçam a dama? Com os rudimentos da lingua, um traductor menos
soez diria:

_Fitou-a algumas vezes de modo que a inquietou, ou enleou, ou
perturbou._ Abstenho-me de extrahir dos diccionaristas as indecencias
subentendidas na phrase _embaraçal-a_.

Adiante.

Balzac diz que o personagem _etait commodément assis, et avait les pieds
plus souvent sur ses chenets que dans sa chancelière_.

O tal Pinto estraga d'esta arte:

_Estava commodamente sentado e aquecia mais frequentemente os pés no
brazeiro do que no traste forrado de pelles, destinado para tal fim._

No traste forrado de pelles!

_Chancelière_,--uma palavra diluida em nove!

Podia elle, avisinhando-se da indole da lingua, traduzir _capacho_, ou
_ceirão de félpo_, ou _guarda-pés_, ou _pelliça_, por analogia com os
mantos forrados de pelles; mas... _traste!_ Salvo seja!

E traduzir _chenets_ para brazeiro!

Este brazeiro deu-lhe provisão para tolejar á larga, e afogar no
tinteiro as palavras que não percebeu.

Logo em seguida, escreve Balzac:

_Oh! avoir les pieds sur la barre polie qui reunit les deux griffons
d'un garde-cendre_, etc.

Querem vêr o que é uma traducção sovina?

_Oh! conservar os pés junto ao brazeiro..._ E acabou-se.

Áquelles _griphos_ embucharam-no ao bom do Pinto! Passou por aquillo
como o leitor e eu pelas legendas arabes da sé velha de Coimbra. Com a
sua crystallina ignorancia, privou o leitor de entender o suave
sybaritismo do personagem que, refestellado na poltrona, recostava _os
pés no varandim lustroso que entre-une os dous griphos do cinzeiro_.
Percebeu elle que os fogões tem um receptaculo, que recebe a cinza, ao
través de uma grelha, e que os ha ladeados de figuras que formam entre
si o apoio dos pés? Não percebeu nada.

Senhores leitores do Balzac, segundo a _Actualidade_:

O homem que nos vai apresentar o author da _Comedia humana_, vestido de
farrapos bordalengos, é esse que ahi fica... _ás moscas_, até ao numero
seguinte.

      *      *      *      *      *

Agora, duas palavras graves.

O snr. Theophilo Braga mandou acorrentar este _house-dog_ á porta da
_Actualidade_. Fez mal. Eu tinha-me recolhido mansamente ao silencioso
espanto das arrancadas que os cafres faziam no campo arroteado pelos
Castilhos, Garretts, Herculanos, e outros somenos lidadores d'essa ala
que ahi está exposta ás injurias de tanto biltre. Era meu proposito
deixal-os cavar a sepultura d'elles com o seu proprio escoucear
phrenetico.

Logo, porém, que o rafeiro mais refilado da matilha me latiu á sombra,
quando eu nem sequer o estremava dos anonymos que desprezo,
sacudil-o-hei á cara dos que o açulam, e fal-o-hei portador das minhas
caricias aos que o alimentam, em conformidade com o proverbio: _An
hungry dog will eat dirty pudding._



OS 2 JOAQUINS


Um é o arranjador dos _Musicos_ e de outras maravalhas.

Outro é Theophilo que tambem é _Joaquim_.

E tambem é _Fernandes_.

Expungiu o nome e o appellido, logo que se aforou em letras.

_Joaquim Fernandes_ era a parte chata do sujeito.

Desfez-se d'isto, poz-se ás cavalleiras do genio, e apregoou-se
_Theophilo Braga_[8].

Aviso á posteridade:

Elle era Joaquim!

A fatalidade dera 2 a Portugal, no mesmo seculo.

Gemeos, homogeneos, homonymicos, productos de gravidez longa, parto
feito a urros, ferozes no nascedouro, ringindo com dentes anavalhados,
ao tempo que a lisonja os lambia, para os ageitar, como a ursa faz aos
seus cachorros.

E que cachorros!

      *      *      *      *      *

Nem os sepulcros respeitam.

Remetteram contra um, simultaneamente, os 2 Joaquins.

A sepultura era de gigante que o leitor, se não o viu, ainda o vê na
projecção da sua imagem pelas paginas do livro amado.

Chamára-se, n'esta vida, ALMEIDA-GARRETT;--e chama-se hoje a gloria
imperecedoura de Portugal.

O Joaquim, que se expurgou de Fernandes, para escoucear o cadaver de
Cesar, disse...

Mas, antes de reler-se o que elle disse, veja-se o que escreveu o editor
de _Helena_, romance posthumo e incompleto do author de _Fr. Luiz de
Sousa_:


«Acabava o anno de 1854; ás primeiras cerrações do outomno inclinára
mortalmente a fronte o snr. visconde de Almeida-Garrett, sentindo no
coração os aggravos da doença que, dentro em pouco e para sempre, havia
de apagar-lhe a luz dos olhos.

«Cresceu o mal. Imminente o perigo, durante os poucos mezes em que a
vida lhe fugia, quiz o nobre enfermo dizer o ultimo adeus ás queridas
producções do seu elegante espirito. Era então que a voz quasi infantil
da filha idolatrada lhe dizia os seus livros todos; foi então que,
revendo o archivo dos seus papeis, elle rasgava os que não deviam
sobreviver-lhe, guardando aquelles que, de mão propria, legava á
posteridade. Era um sol no occaso, revendo-se na luz immensa com que
alumiára a patria.

«Finda a leitura, prompto o legado, extinguiu-se aquella existencia
esplendida, abraçada á cruz de Christo, abençoando a herdeira do seu
nome, e embalada pelos cantos da sua propria harpa. Fim sublime! Sentiu
no ultimo suspiro,--o seu credo, o seu génio e todo o seu coração.»



Agora, Joaquim Theophilo, interpretando com gaiata solercia as palavras
de C. G., genro de Garrett e editor de _Helena_:


«Elle escreve alludindo á morte de Garrett: «Era um sol no occaso
_revendo-se na luz_ immensa com que alumiava a patria.» E em seguida:
«extinguiu-se aquella existencia esplendida _abraçada á cruz_ de
Christo...»


E ajunta o pellitrapo das letras com brutalidade manhosa:


«É de crêr que não haja aqui intenção maliciosa, mas desperta
insensivelmente o dito celebre de Rodrigo da Fonseca Magalhães.»


É impudor glosar essa sordicia que ahi fica. Ninguem se demora a
observar um cão resêcco, pilharengo, derreado, chagoso, que lambe
faminto a sangueira negra de um matadouro.

Até os ossos de Rodrigo da Fonseca lhe serviram á gargalhada!

Nunca o honrado estadista proferira o tal motejo que lhe assacaram,
estando Garrett na agonia da morte.

Garrett morreu entre dous amigos e duas irmãs da caridade.

Eu perguntei a um dos intimos de Fonseca Magalhães, ao desembargador
Northon, se o seu amigo proferira o gracejo tão celebrado.

--Não--respondeu elle--mal sabe a dôr que eu involuntariamente causei a
Rodrigo, quando lhe repeti a proterva zombaria que lhe attribuiam.

      *      *      *      *      *

Agora, o outro Joaquim, o musicógrapho.

Escrevi em um livro estas linhas em fórma de carta a um amigo:


«Sabes tu o que eu queria roubar á gaveta de José Gomes Monteiro? As
cartas de Almeida-Garrett, as confidencias d'aquelle immenso genio, que
se expandiam na alma e intelligencia de José Gomes Monteiro. Estas
seriam as paginas de ouro da biographia de ambos. Uma sei eu que existe
em que Almeida-Garrett, em perigo de vida ou previsão de morte proxima,
encarrega o seu amigo de defender-lhe a honra e a fama assim que a pedra
sepulchral lhe vedar o direito da defeza. Que sublime legado! que
legitima e jubilosa vaidade para o coração honrado e generoso de José
Gomes Monteiro![9]»

E vai agora, o dos _Musicos_, péga de Garrett, adormecido, havia 19
annos, no sagrado somno dos mortos santificados por saudade, talento e
veneração, e enxovalha-o d'esta arte:


«Sim, senhor, basta isto para nos pintar o janota de 55 annos, que, para
brilhar como um _vieux vert_ aos olhos das _petites maítresses_ de ha 30
annos, não teve vergonha de pintar as suas barbas com elixires, dando
com a sua vida airada a confirmação de que o _genio immenso_ precisa da
_bohème_ para a sua inspiração, etc.[10]».


Alma e linguagem travam-se aqui de mão, e medem a sciencia e a educação
do sujeito. Este snr. Joaquim usa gravata, e não me consta que passasse
a infancia gandaiando nas escadas dos Congregados. Foi educado na
Allemanha, por não caber (diz elle) _nos focos de immundicie physica,
moral e intellectual de dous ou tres collegios do Porto onde o haviam
mettido_[11]. Já vêem que o homem é limpo. Depois, veio á patria para se
formar em Coimbra; e, como aquillo de Coimbra lhe cheirasse aos
collegios do Porto, foi-se embora, e abriu, por sua conta, universidade
de frandulagens no Porto, com succursaes em Allemanha, França, etc.

Não só é conhecido mas até soffregamente lido em Paris.

Elle mesmo nos conta esta cousa no livro onde estou esgaravatando:


«Voltamos serenamente aos nossos trabalhos sobre a _Archeologia
artistica para darmos_ a nova edição critica do _Catalogo da livraria
d'el-rei D. João IV_ que, _como sabemos_ pelo nosso sabio amigo Mr.
Ferdinand Denis, é esperada com impaciencia em Paris.»


Viram? _com impaciencia_.

Era em 1872, quando ainda o coração e o cerebro da França vibravam nas
angustias do opprobrio nacional, da luta fratricida, da devastação, do
petroleo, da ingente miseria das viuvas e dos orphãos. Pois, em meio de
tanto horror, a unica esperança que, a intervallos, dava palpitações de
gaudio a Paris era a impaciencia das turbas, com os olhos postos no
occidente, á espera do livro do nosso, tão nosso, Joaquim! Cada vez que
chegava á capital da França a mala de Portugal, as multidões
acotovelavam-se frementes á porta do Mr. Ferdinand Denis, amigo do
sobredito, e, ullulando insoffridas, pediam o _Catalogo_. O sabio
francez linimentava com promessas o phrenesi da academia e dos
institutos; as massas debandavam; e depois, recolhido ao seu gabinete,
Mr. Denis pedia novamente o _Catalogo_ ao lusitano Joaquim, pintando-lhe
com termos não encarecidos a impaciencia dos seus.

Aqui está quem é o homem lá fora, e cá dentro.

Elle embirra com a maioria do publico portuguez; e justifica a birra
n'estes termos:


«Porque lhe antepomos um ideal que elle não quer ter[12].»

Então? fazem favor de aceitar o ideal que lhe antepõe o snr. Joaquim?
Elle não sabe a significação do verbo _ante-pôr_; mas imagine-se que
quer dizer o que a palavra não diz; presuma-se que nos _offerece_ um
ideal, por um preço razoavel. Que duvida temos em haver ás mãos isso que
o rapaz nos trouxe de Hamburgo, em vez de nos trazer dous costaes de
queijos? Ha de haver muito quem antes quizesse, em vez do _ideal_
anteposto, uma _idéa_ de servir; mas, se Joaquim dá _ideaes_, peguem
n'elles, antes que o homem os exporte, como cá fazem aos bois gordos que
os nossos magarefes não aceitam pela taxa de Londres, posto que lh'os
anteponham.

É o diabo este homem! Má mez p'ra elle!

Lá que o rapazola verbere os escriptores vivos que lhe não aceitam o
ideal, é bem feito. De Mendes Leal, por exemplo, diz que é _uma
antigualha que só apparece nos leilões dos burguezes de ha 40 annos_. De
Castilho diz que lhe riscára o nome, depois que o outro Joaquim _lhe
applicou o processo_. (Ai d'aquelles a quem o outro applica processos!
_Eheu!_) De Herculano diz: «está decrepito». Todos estes e outros de
menos porte são os relapsos do ideal de Joaquim; mas Garrett e Rebello
da Silva? Um era já morto; o outro fallecia quando o enxovedo alvorejava
n'este novo dia da sciencia patria. É crueza injurial-os, posto que
Joaquim Theophilo Fernandes lhes haja _applicado o processo_.

Este Fernandes já processou o Herculano, e disse: «O snr. Alexandre
Herculano nunca teve vocação litteraria[13].» E o _Eurico_? E a
_Abobada_? E o _Monge de Cistér_? E o _Bobo_? e a _Historia de
Portugal_? e a da _Inquisição_! e a _Harpa do crente_? Cuida o leitor
que é mister vocação litteraria para escrever estas cousas? Não, senhor.
Estes livros só os escreve quem a não tem. O snr. Herculano, se tivesse
vocação litteraria, fazia umas botas.

Parte d'aquellas obras diz Fernandes que é glosa da _Notre Dame_ de
Victor Hugo.

_Eurico_ é a variante do typo de _Claudio Frollo_;

O _Monge de Cistér_ é variante da paixão de _Esmeralda e de Phebus_;

O _Bobo_ é o desenvolvimento de Pierre Gringoire;

A _Historia de Portugal_ é apenas a historia dos concelhos precedida da
biographia dos reis.

Depois, escalpella-lhe a linguagem, e diz que o seu estylo _só se
admitte nos rapazes de escóla_[14].

O leitor está em dizer que este Joaquim parvoeira tão fóra dos termos
concedidos aos sandeus que a policia não deve ser estranha ao escandalo.

Mas, n'este comenos, apparece um tal Adolpho Coelho, e diz:

É _Theophilo Braga evidentemente um dos homens mais notaveis que
Portugal tem produzido n'este seculo_[15].

--E quem é Adolpho Coelho?--pergunta o leitor.

Vem Theophilo, e responde:

É o _introductor da sciencia da philologia comparada em Portugal_[16].

Todos estes Joaquins é que sabem lá uns dos outros.

Juntam-se ás vezes e perguntam entre si:

_Theophilo a Coelho_: Quem és tu, ó aquelle?--Resposta: Eu sou o
introductor da philologia comparada em Portugal.

_Coelho a Theophilo_: E tu?--Resposta: Sou um dos homens mais notaveis
que Portugal tem produzido n'este seculo.

_Joaquim dos Musicos a Joaquim dos Mosárabes_: Quem sou eu?--Resposta:
És o musicógrapho, e o inventor dos imperativos _sejai_ e _estejai_.

_O 2.º ao 1.º Joaquim_: E eu?--Tu applicas processos, e eu risco os
nomes.

Ó pandegos, ó lombrigas que roeis o intestino recto da Minerva! Ó
Joaquins! Eu vos arrenego!

     [8]No _Diccionario bibliographico_ do snr. I. Francisco da Silva, é
     conhecido por _Joaquim Theophilo Fernandes Braga_. (Veja
     Supplemento).

     [9] _Esboços de apreciações litterarias._

     [10] _O consummado germanista_, por Joaquim do Vasconcellos, pag.
     50.

     [11] _Obra cit._, pag. 2.

     [12] _Obra cit._, pag. 9.

     [13] _Bibliographia critica_, pag. 106.

     [14] _Obra cit._, pag. 200 e 201.

     [15] _Obra cit._, pag. 215.

     [16] _Obra cit._, pag. 253.



FLORES PARA A SEPULTURA DE FERREIRA RANGEL


É o snr. Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos que m'as envia. Irei
levar-lh'as. Conheço a valia que principia a hervecer. As côres alegres
da esperança cobrem a podridão.

Estão como a dizer-nos que o viver é olhar para diante e para os vivos;
e nada de mortos nem de saudades. Iremos levar-lhe as flôres do seu
amigo da mocidade.

Antonio Augusto escreveu, a respeito de Ferreira Rangel, no seu _Jornal
da Noite_, uma pagina assignaladamente formosa e triste. Alli ha
coração, ha lagrimas, ha o que quer que seja que resgata o delicto da
imprensa, silenciosa, na morte de um valoroso obreiro da liberdade, e
modesto cultor das letras. E, ao proposito de letras, acrescentarei que
Ferreira Rangel, nos derradeiros annos da vida, tinha uns cem volumes de
obras portuguezas mais de sua feição; e, quando expirou, esses cem
volumes estavam empenhados para o custeio dos ultimos caldos.

Indemnise-se a indigencia d'este homem de bem com a riqueza do alto
louvor que lhe apregôa um brilhante espirito a quem não se escondem as
desventuras alheias, nem esmorece o brado a favor dos desvalidos.

Estas são as palavras pungitivas e eloquentes do grande escriptor:

..........................................................................


«Não succedeu porém outro tanto com o artigo intitulado FERREIRA RANGEL.
Ahi assaltou-nos a saudade do homem, a recordação de obsequios
recebidos, a magoa da sua desventura, e não podémos, nem quizemos conter
as lagrimas. Se é vergonha chorar, diga-se que é a mais viciosa vergonha
inventada por homens.

«Conhecemos aquelle Francisco Ferreira Ribeiro Pinto Rangel em 1834.
Ainda morava a Santo Antonio do Penedo em uma especie de ilha sem mar
entre o convento de Santa Clara e o palacio dos Vieiras de Mello, então
habitado pelo visconde de S. Gil de Perre, depois marquez de Terena, e
agora pelo snr. visconde de Azevedo. A supposta ilha era formada, se a
memoria nos não engana, pela capella de Santo Antonio e pela casa do
chamado _escrivão fidalgo_ cujo brazão recentemente collocado alvejava
na frontaria.

«Ferreira Rangel tinha servido em um dos batalhões do Porto durante o
cerco, e era liberal enthusiasta. Ainda trajava o uniforme militar, e
apparecia nos theatros, nos passeios e em todas as reuniões. Não lhe
chamavam _janota_ porque a palavra estava por cunhar na casa da moeda da
vernaculidade. Os seus principaes companheiros eram Nicolau Coquet Pinto
de Queiroz que foi depois empregado da camara municipal, e talvez já não
viva, e Antonio Joaquim Carneiro Homem que foi acabar a vida em
Moçambique, provido no mais reles emprego da provincia em recompensa de
varias feridas recebidas no cerco e de ter gasto na defeza da liberdade
toda a sua fazenda. O ministro que o despachou, envergonhava-se de
empregar tão mesquinhamente homem de taes serviços. Era o snr. Mendes
Leal. Mas não havia outro emprego, e o pobre voluntario liberal não
podia esperar. Tinha mulher e filhos, e já não tinha pão nem calçado.

«D'esses tres homens o que tinha imaginação mais viva, enthusiasmo
vigoroso, e propensões litterarias era Ferreira Rangel. O seu amor á
liberdade não tinha limites, e como era amor sincero, muitas vezes o
impelliu a expôr a vida para salvar da furia brutal dos exaltados os
proprios adversarios contra quem lutára havia pouco nas linhas do Porto.
Alguns cavalheiros das provincias do norte lhe deveram n'esse tempo
assignalados serviços. A generosidade do coração era n'elle igual á
coragem e valentia.

«Uma noite desciamos a rua do Bomjardim onde moravamos, e ao dobrar a
esquina da rua do Bolhão vimo-nos cercados por quatro scelerados que
tomando-nos, apesar de imberbe, por algum temeroso capitão das hostes
realistas, iam demonstrar-nos com argumentos de carvalho-cerquinho a
excellencia do governo liberal, e induzir-nos a crêr que os caceteiros
azues e brancos não ficavam a dever nada aos seus predecessores azues e
encarnados.

«Subia a rua Ferreira Rangel e chegava ao sitio do combate; quando o
rapaz de 18 annos principiava a rebater, como podia, a crua dureza
d'aquelles argumentos. O mesmo foi advertir no caso que saltar ao meio
do grupo, deitar por terra um dos aggressores, ferido de tremenda
bofetada, e obrigar os outros a fugirem, envergonhados mas resmungando.

«Conservamos sempre relações com este excellente homem. Depois de 1839
nas ferias da universidade, iamos sempre visital-o quando passavamos no
Porto. Desde 1850 nunca mais tivemos noticias d'elle. Quando agora lêmos
no livro do snr. Camillo Castello Branco a commemoração da morte de
Ferreira Rangel, desvalido, ignorado, e conduzido na tumba dos pobres
entre quatro tochas desde a rua Chã até ao Prado, sentimos não ter
estado no Porto n'esse dia para acompanhar á derradeira morada aquelle
homem desditoso.

Está explicada a sensação que nos causou o artigo FERREIRA RANGEL.
Permitta o snr. Camillo Castello Branco que entre o ruido surdo da
enxada do coveiro alizando o comoro de terra sobre as taboas chuviscadas
do caixão, e o silencio eterno do mundo, se levante a nossa voz a
prestar á memoria do morto a homenagem da gratidão que lhe deviamos.

«D'esta vez a _alçada da imprensa chegará até ao esquife do defunto_, e
derramará sobre elle sinceras lagrimas de saudade e de reconhecimento.»



O MYSTERIO DA CASTANHA


No estimavel livro das _Cartas familiares_ de D. Francisco Manoel de
Mello, ha uma que estimulava fortemente a minha curiosidade, sempre que
a lia. É a LXXIV da _centuria segunda_, escripta _a um amigo que passava
á provincia da Beira_. A carta é breve, e diz assim:


«Que vos hei de dizer? senão que vos vades embora, que estejaes pouco,
que vos lembreis de mim. Não sei certo se se diz mais nas partidas: que
eu, de puro estar, já não sei se como a gente se despede[17]. Só vos
peço que, pois ides para terra de muitos castanheiros, me não caseis lá
com alguma Maria Castanha; _cujo tempo parece que tornou agora, porque
aqui entre nós o fez assim.... Mas que muito, se traz o diabo aos pés,
que o fizesse resvalar e cahir? salvo na conta_. Ide com Deus, senhor
meu, e tende em tudo tão bom successo, que vos pareça a Beira mal, e
volteis logo. Nosso Senhor, etc. Torre em 15 de maio 1646.»


As palavras grifadas eram o meu enleio. Toda a minha scisma laborava em
saber o nome rebuçado n'aquellas reticencias, a razão por que o sujeito
trazia o diabo aos pés, e que casta de pessoa era aquella Castanha
casada com o anonymo, forçosamente individuo de alta prosapia.

As pessoas de siso, que leram esta carta enigmatica, de certo não moêram
sua paciencia a farejar-lhe o escandalo; eu, porém, que não posso
dormir, e acordo os mortos para conversarem commigo á hora em que os
vivos dormem, necessito saber por inteiro o viver das pessoas com quem
estou relacionado.

E, por tanto, á custa de muito averiguar, e bisbilhotar com os
contemporaneos do illustre encarcerado da Torre Velha, logrei
decifrar-lhe a carta.

As reticencias encobrem o nome de Francisco Botelho, primeiro conde de
S. Miguel. Por ser de _S. Miguel_, é que D. Francisco lhe põe o diabo
aos pés.

Temos o nome do mysterioso personagem.

Saibamos agora quem era a _Castanha_.

Era Ignez de Almeida, filha de Manoel Castanha, escrivão em Lisboa.

Ignez era formosa e honesta.

O conde de S. Miguel, já viuvo de D. Isabel de Mendonça, filha do
segundo conde de Penaguião, apaixonou-se por Ignez. Frustrados na
esquivança da moça todos os artificios do ouro com o prestigio da
pessoa, o conde accedeu á condição que ella estipulou: o casamento.

Divulgou-se em Lisboa o disparatado consorcio, que toda a fidalguia
censurou, e D. Francisco Manoel metteu a riso, dando o noivo como
resvalado e cahido por cambapé que lhe fez o diabo.

No entanto, o escrivão Castanha rejubilava por se vêr tão egregiamente
aparentado.

Volvidos dous annos, apaixona-se o conde por D. Isabel Cecilia de
Tavora, filha herdeira de Alvaro Pires de Tavora.

Este fidalgo com os da sua parentella, e com os estranhos,
escandalisam-se do proceder deshonrado do marido da Castanha, o qual
ousa requestar uma donzella de primeira linhagem.

O conde defende-se, publicando que não é legitimamente casado com Ignez
Castanha.

E, feita a infame declaração, separa-se d'ella e do filhinho, que se
chamava Nuno.

Ignez, ferida no coração e na honra, protesta que é legitima esposa do
conde de S. Miguel.

Instaura-se demanda.

O conde confessa então que, na verdade, fizera um simulacro de
casamento, mediante um padre fingido, que era seu criado, com corôa
rapada, e vestido sacerdotalmente.

A justiça aceitou a confissão do conde, confirmada pelo parocho fingido
e pelas testemunhas da tromoia.

Sentenciada a nullidade do casamento, cuida o leitor que o conde foi
obrigado a revalidal-o, ou a seguir o seu criado e as testemunhas para o
degredo?

Não, leitor pio.

A fidalguia restituiu ao seu parente a dignidade abalada pelo supposto
consorcio com a Castanha.

A lei desquitou-o da pobre senhora, cujo delicto estava santificado por
ignorar que no mundo havia tamanho infame.

Porém, como ella tivesse um filho, a sentença mandou que esse menino, D.
Nuno Alvares Botelho, fosse considerado legitimo filho do conde de S.
Miguel.

Ignez lá se foi amparar nos braços de seu pai, o plebeu, a quem Deus
inspiraria ternuras que despontassem os espinhos da sua corôa de
condessa ridiculisada pela sociedade.

Desembaraçado e readmittido á estima dos Tavoras, o conde casou com a
tal Isabel Cecilia, de quem houve um filho que foi segundo conde de S.
Miguel.

Quanto ao filho de Ignez, sabemos que viveu com pouco luzimento e
escassos haveres. Casou com D. Luiza de Moura, filha de Antonio
Castanheira de Moura. Teve dous filhos e cinco filhas. Um dos rapazes
chegou a general na India. O outro casou com uma filha do capitão-mór de
Goes, Antonio Barreto Perdigão. Uma filha casou, e das outras quatro
ignoro o destino.

Esta linha, derivada da fraude e do vicio mascarado com a batina e
sobrepeliz, desappareceu: era justo. Na outra, que é a legitima e
consagrada pelo padre authentico, é que está o setimo conde de S.
Miguel, que--ainda bem!--não tem que vêr com a Castanha, zombeteada por
D. Francisco Manoel.

Ora eu presumo que este fidalgo, que escreveu tão piedosas cousas a
respeito de Santo Agostinho, quando soubesse que a supposta condessa de
S. Miguel fôra apenas uma inconsciente concubina do seu torpe seductor,
espantar-se-hia de se vêr a si entre ferros, e ao outro nos braços de D.
Isabel de Tavora!

     [17] Ia no seu 4.º anno de prisão D. Francisco Manoel.



BEM VINDO!


Brindo o leitor com o capitulo primeiro d'um livro que ha de chamar-se
OS SALÕES.

Firma-o--escuso apresental-o--um nome que, ha vinte annos, alvoreceu por
entre duas formosissimas auroras: a das letras amenas, e a dos triumphos
forenses.

O visconde de Ouguella esteve já a meio caminho da montanha fragosa por
onde se trepa a outra ordem de mais estrondosa celebridade. Por um triz
que o não enxertam na estirpe tyrannicida dos Harmodios e Catões.

O governo, o delegado, a côrte e o Moraes do _Mosquito_ principiavam a
desbastar-lhe o marmore para o nicho no templo da Memoria, quando vem o
jury, e nos diz que o visconde de Ouguella nem queria matar el-rei nosso
senhor, nem vender-nos a Castella, nem frigir em petroleo as nossas
carnes, mais ou menos pingues.

Esta decisão abriu um sorriso de socegado contentamento desde o poço do
Borratem até á rua da Betêsga, não ha duvida; mas o visconde achou-se de
repente reduzido sómente á celebridade que tinha: a do talento.

Um d'estes dias fui vêl-o a Lisboa. Achei-o na sua livraria, entre dous
bustos de bronze que projectavam sobre elle umas sombras verde-negras,
que lhe davam toques de luz sinistra. Os bustos figuraram-se-me de
Ravaillac e Fieschi--os regicidas.

Passados alguns minutos, afiz-me áquella meia luz crepuscular descórada
pelos bronzes, e o meu coração e o meu figado aquietaram-se. Os bustos
representavam a primor os dous estadistas mais philodynastas que deu
Portugal: o duque de Palmella e Rodrigo da Fonseca Magalhães. O
visconde, que, ao principio, me pareceu, nos tufos hirtos e espessos do
seu cabello, o que quer que fosse de Mirabeau, já me transluzia no
semblante o sorriso amoravel com que alumia o caminho de sua alma aos
que lá sabem ir pela lealdade do coração.

Relancei os olhos, ainda suspeitosos, á sua banca, e vi papeis escriptos
recentemente. Com a liberdade de condiscipulo desde a escóla,
inclinei-me sobre o manuscripto, e li no alto de uma folha de almasso:
OS SALÕES. Depois li o capitulo, que era o primeiro; dobrei-o, metti-o
na algibeira, resolvido a estampal-o entre as minhas insomnias, como um
despertar alegre, lucido e côr de rosa, entre dous pesadelos.



OS SALÕES


CAPITULO I

FATUM

     Pour connaitre les hommes, pratiquer les femmes; pour connaitre les
     femmes, pratiquer encore les femmes: c'est la sagesse des nations
     folles.

     *     *     *     *     *

     La femme est le dernier mot du Créateur. Le grand maitre avait
     d'abord sculpté les mondes, puis le mastodonte, puis l'aigle, puis
     l'homme; il termina par la femme. Ce fut alors qu'il se reposa pour
     se contempler dans son oeuvre.

     ARSÈNE HOUSSAYE.

O esboço é tudo.

A esculptura, a sciencia, a pintura, a litteratura e a propria vida
começam pelo embryão.

Deus mesmo não cria de repente uma obra prima:--como todos os artistas,
principia pelo esboço.

A propria luz tem os seus arreboes, annuncia o seu alvorecer, tem as
suas auroras, prepara-nos as suas alvoradas, insinua-se pelos cambiantes
anacarados dos tons pallidos e transparentes da madrugada, formula o
_fiat lux_ biblico, antes de se espargirem os seus opulentos e
brilhantissimos raios por sobre as magnificencias do universo.

Começar pelo esboço--no presente livro--era consultar as sibyllas da
cidade antiga, as pythonissas que enunciavam a palavra divina, escutar
os oraculos dos templos de Delphos e de Epheso, ouvir as Egerias do
porvir, antes de dar a lume o manuscripto de João Aleixo de Castro
Pimentel e Figueiredo.

Assim fiz.

Conta-se d'um povo d'Asia, que promettera o diadema de rei ao primeiro
que, em determinado dia, visse nascer o sol. Correram á praça publica os
ambiciosos da purpura real, e em quanto todos filavam o oriente, houve
um, dos mais avisados, que, voltando costas ao berço do luzeiro
esplendido da terra, pregou os olhos nas arrendadas cupulas d'um
elegante e sumptuoso edificio, que demorava ao occidente.

Foi este que alcançou a corôa. As primeiras frechas de ouro,
arremessadas pelo astro supremo do dia, vieram cravar-se no topo das
elevadas torres d'aquelle templo pagão.

O passado vencera, aqui, o futuro.

Sirva a lenda, n'este estylo e perfume oriental, para explicar o meu
singelo proceder.

Quiz ouvir os murmurios das épocas, que passaram, e que vão perdidas na
escura noite dos tempos. Desejei escutar o trabalho ruidoso dos seculos
que vem, as promessas do futuro, os periodos que se desdobram, e
desenrolam nos horisontes rasgados da nossa idade, pela voz authorisada
e prophetica dos que riram, e dos que soffreram.

Foi por isso, que consultei a marqueza de ***, e a condessa de ***.

Uma é a religião austera do passado, cheia de nobilissimas tradições,
personificação viva da côrte antiga, reflexo ainda esplendoroso da
fidalga portugueza, na altivez das fórmas, na elegancia do dizer, na
familiaridade estudada do trato, na urbanidade singela das maneiras, e
no preito pago constantemente a tudo quanto é grande, nobre e generoso.

A outra, a condessa, senhora da mesma época, nascida, e educada no
centro da mesma sociedade--permittam-me este desalinho de phrase--é,
como a estatua da liberdade, erguida sobre um pedestal de marmore de
Carrara ou de Paros, esquecendo a proposito os pulverulentos pergaminhos
d'outras eras, e os emblemas heraldicos da sua nobillissima familia,
para se lembrar sómente que é ella, esta excellente senhora, uma das
mais illustres victimas das tremendas e formidaveis lutas de
emancipação, por que combatemos e batalhamos ha um seculo.

Sentei-me a seu lado, e escutei-as alternadamente.

Uma fazia-me curvar de joelhos, respeitoso, e reverente, ao rememorar o
passado. A outra robustecia, em mim, este preito, que eu presto
diariamente á imagem sacrosanta da liberdade.

A distincção, a grandeza do porte, a inimitavel polidez, a admiravel
cortezia, a elegancia incomparavel, e as fórmas obsequiosamente
aristocraticas são as mesmas.

Mas a marqueza soffreu, e soffreu muito pelo antigo regimen.

A condessa habitou, em tristezas amargas, e com dôres excruciantes, as
cadêas da côrte pela liberdade.

Uma é a vestal antiga, espiando, sentinella irreprehensivel, junto do
fogo sagrado, se a scentelha divina vai apagar-se, e prompta a
acudir-lhe, solicita, para que o facho se conserve acceso, e immaculado,
na urna etrusca em que brilha e resplandece.

A outra é a musa da democracia--risonha, serena, e impassivel, quer no
carcere, gemendo pela ousadia das suas crenças liberaes, quer a cavallo,
com os cabellos desprendidos ao vento das batalhas, sofrega do ruido, e
do pó e fumo dos combates, ao lado do homem, que o seu coração elegeu
para esposo, e que foi, Achilles d'esta Iliada, um dos heroes nas
epopêas da nossa liberdade.

E com o mesmo respeito, com a mesma attenção, e com a mesma homenagem li
a estas duas illustres senhoras o manuscripto achado na gaveta do meu
contador.

Eu respeito todas as crenças.

Onde ha uma alma, que se eleve nas aspirações grandiosas do futuro, onde
ha um coração, que saiba palpitar, com enthusiasmo, na vasta arena de
todas as religiões do sentimento--ha, ahi, de certo, uma individualidade
marcada com o sello divino.

O Senhor, na omnipotencia dos seus impenetraveis designios, curvando-se,
em toda a sua magestade, no centro do universo, escuta o ruido surdo, e
imperceptivel para ouvidos humanos, da herva ignorada, e rasteira, que
rasga a custo os seios da terra, e ouve a prece fervorosa, e ardente da
alma, que, em effluvios d'amor, se desprende das vaidades do mundo, e
sobe até ao seu throno de gloria.

Só a hypocrisia, e o scepticismo são vis.

Não condemnemos crenças, nem aspirações.

Tenho medo que o credo de hontem seja o anathema de ámanhã.

Apavora-me o receio de que o axioma de hoje, da actualidade, seja a
mentira, e a blasphemia do futuro.

Depois de Platão, d'Aristoteles, de Socrates e de Christo, que sabemos
nós mais do mundo moral?

Newton, Galileu, Harvey, Cuvier, Laplace, Spinosa, Kant, Proudhon e
tantos outros, n'essa pleiade immensa de illustrações, que vão
atravessando os seculos, e renegando symbolos e credos, que passaram,
são, para mim, a demonstração irrespondivel d'este clamor da
consciencia.

Basta.

Volto ao manuscripto.

No pendor d'uma das montanhas sobre que está edificada Lisboa, no ponto
mais suave da encosta, levanta-se um palacio, cuja apparencia é modesta.

Ahi vive a marqueza.

Sobe-se uma escada de marmore á esquerda d'um pateo, que conserva todas
as tradições arabes. No patamar superior rasga-se am corredor sombrio, e
pouco alumiado, que conduz a uma saleta onde as elegancias modernas nada
teem que vêr.

Este aposento não o adornou Gardet, nem o forraram os estofadores mais
afamados dos nossos tempos. Foram os seculos, que o vestiram, que o
alindaram, que lhe cobriram as paredes, e que lhe deram aquella
austeridade de ornamentação, disposta alli por varias gerações.
Ligam-se, e ajustam-se uns aos outros, em severas molduras d'ebano, os
retratos dos avós d'esta illustre familia. Ao lado d'um camarista de
Carlos III, de Hespanha, sorri, em vestuario de côrte, um cavalleiro de
S. Thiago, filho segundo d'esta nobre estirpe. Em convivencia com um
mimoso pagem do Escurial apruma-se, vigoroso e forte, um rico-homem de
Castella, envolto no arrogante e opulento manto de grande de Hespanha. E
as senhoras, oriundas de tão distinctos appellidos, adornadas com as
telas e estofos preciosos de épocas, que já acabaram, parecem estremecer
de jubilo, e anciarem pelo futuro d'aquelles tempos, que são hoje, para
nós, o passado, e a cinza d'aquelles cadaveres.

Foi ahi, n'essa saleta, respirando aquelles perfumes do seculo
preterito, que li á marqueza o manuscripto de que sou legatario por
direito de conquista.

A marqueza, se eu não quizera chamar-lhe a tradição viva, a imagem da
luz diffusa, que se vai immergindo no oceano das nossas tradições
heraldicas, e dos brasões esculpidos nas abobadas dos paços de Cintra,
seria, ainda assim, um reflexo da bondade divina.

Encostada a uma bengala, cujo castão era uma maravilha artistica de
Benvenuto Cellini, envolta em vestes negras, que a acompanham desde a
sua viuvez, sem lhe occultarem a altivez das fórmas, e a superioridade
da mais elevada distincção, ouviu a marqueza, attenta, a leitura dos
trabalhos do desembargador. Sorriu-se ao chegarmos á conclusão, e soltou
apenas estas palavras, fitando os seus avós:

--Visconde, ouça, e aconselhe-se com as illustrações do seculo. Eu sou o
passado. Bata á porta da actualidade.

Beijei-lhe a mão, que a marqueza me estendeu com a elegancia da sua
primorosa educação, e sahi, curvando-me perante a grandeza d'aquelles
nobres instinctos, e suavidade de fórmas, que vão perdidas no nosso
seculo.

Ao levantar o reposteiro, onde o brasão de familia, bordado em lãs
finissimas, brilha no centro dos panos, que rastejam, em vastas pregas
franjadas, n'aquelle recinto, que é um salão de antepassados, um
verdadeiro solar, vedado a olhos profanos--ouvi a voz branda, e
cadenciada da marqueza, que me dizia de pé, em face do retrato de seu
marido:

--Visconde, conte do marquez as historias que lhe narrei.

--Os desejos de v. exc.^a são ordens para mim, minha senhora.

E sahi.

No fundo do passeio publico desdobram-se dous largos. Em um d'elles, por
meio de casas mais ou menos mesquinhas, levanta-se um palacete no estylo
moderno. Ha ahi uma sala, rica de adornos e de todo o conchego, que faz
o confortavel da vida intima.

Vive ahi a condessa.

Pendem das paredes e cobrem as _étagères_ varios retratos de familia.

Ha trabalhos de costura, e de _crochet_ estendidos por sobre as mesas;
ha, finalmente, todos estes pequenos nadas, que explicam os sentimentos
intimos da existencia, e que se traduzem em recordações do lar
domestico.

Não era o vestibulo, entre os romanos, a primeira adoração a Vesta?

A condessa envolta, tambem, nos seus crepes negros, viuva do homem, que
ajudou a cravar, com o vigor, e robustez do seu pulso, o pendão da
liberdade em Portugal--recebeu-me com a semceremonia aristocratica do
seu elegantissimo trato.

Apesar dos annos decorridos, a despeito dos desgostos profundos, das
lagrimas choradas no lugubre captiveiro, dos trabalhos inenarraveis
soffridos em lutas titanicas--conserva a condessa os perfis e contornos
da sua antiga formosura, tão puros, e tão correctos, que, se não é a
Venus irrompendo do seio das ondas espumosas e crystallinas dos mares da
Grecia, na deslumbrante belleza do Olympo pagão, tem, ainda assim, os
vagos e recordaveis traços da austera Juno, quando presidia aos festins
dos deuses.

Ouviu impassivel a leitura do manuscripto.

--Que me diz v. exc.^a a este livro?

Havia um sorriso ironico e espirituoso brincando nos labios da condessa.

--Digo-lhe, que o publique. Mas escute: faltam-lhe ahi os lampejos de fé
viva, a crença robusta na liberdade, que animava e esforçava os heroes
do Porto. Venha, aqui, por vezes, ouvir, como lh'as tenho contado, as
lendas d'essas lutas de gigantes. Perdôe muito, como eu tenho perdoado,
aos homens que se esqueceram ou que erraram. Analíse e estude as
variadas transicções, que nos trouxeram a estas sinistras épocas de
descrença. Consulte o passado.

Abri, para sahir, a porta d'este magico e encantador gabinete na mesma
perplexidade d'espirito com que entrára.

--Ouça, visconde--disse-me ainda esta illustre senhora, na phrase breve,
e perceptivelmente imperiosa com que parece ordenar.--Não esqueça as
historias que lhe tenho narrado. Dê-as como suas ou como escriptas pelo
doutor João Aleixo--nem por isso lhe tomará elle contas na eternidade.

Curvei-me respeitoso, e sahi.

A condessa e a marqueza insistiam pela narração das anecdotas do seu
tempo. Quanto ao mais, quanto á historia vasta, severa, incisiva,
analytica, e verdadeira, como é ou deve ser, mandavam-me estudal-a nos
livros, porque não podiam, não queriam ou não desejavam esclarecer-me.

Creio que o seculo XIX envolveu no sudario da agonia as idolatrias da
idade media, assim como as lendas do Golgotha amortalharam, para todo o
sempre, a mythologia pagã.

Não se repetem agora os clamores sinistros, que reboavam nas florestas
da Thessalia, e se ouviam nas clareiras dos bosques sagrados da Grecia e
de Roma: «Morreu o Deus Pan!»

Mas vai acabando a democracia com os preitos, que as cruzadas, as côrtes
d'amor, os torneios, e as cavallarias feudaes prestavam á mulher,
divinisando-a. Quer-me parecer que a ultima Egeria, _Madame_ Rolland,
expirou no cadafalso em face da estatua da liberdade. É mais uma realeza
que se extingue com tantas outras.

Onde acabava o oraculo começava a crença. Escutei o futuro.

E conservei intacto, sem rasuras, nem entrelinhas, o manuscripto do
desembargador.

VISCONDE DE OUGUELLA.



SUBSIDIOS PARA A HISTORIA

DA

SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA


I

PEDRO DE ALPOEM

Sempre que encontrei este nome ligado á vida aventureira de D. Antonio,
prior do Crato, me detive a scismar no honrado homem que se chamou
assim.

Pedro de Alpoem era portuguez de rija tempera. Seguira o pequeno bando
de D. Antonio, quando o duque de Bragança, D. João, primeiro de nome,
transigiu com Philippe II, por preço que adiante se dirá. Acclamou-o em
Santarem; fêl-o bemquisto da mocidade academica de Coimbra; seguiu-o na
fuga, depois da derrota de Alcantara, até Vianna do Minho; e, d'ahi,
como o infante se agasalhasse em seguro abrigo, voltou a Lisboa a
negociar-lhe a emigração em navio estrangeiro. Colhido de sobresalto
n'esta diligencia, foi posto a tormento. Confessou que viera a Lisboa a
fim de arranjar a passagem do principe; não lhe arrancaram, porém, as
torturas o segredo do escondrijo de D. Antonio. Ameaçaram-no com a
decapitação. Pedro de Alpoem sob-poz o pescoço ao cutello do verdugo, e
pereceu com o segredo do asylo do seu rei. Estremada probidade, que só
por si nobilita o nome portuguez, aviltado pelo maximo da fidalguia
bandeada com o usurpador!

Entristecia-me a mingoada noticia que os historiadores nos transmittiram
de tão memoravel sujeito. E esse pouco foi dadiva de Herrera (_Cinco
libros de la historia de Portugal_, liv. III), de Faria e Sousa (_Europa
portugueza_, tom. III, part. 1, cap. IV), e do opusculo francez
intitulado_ Briefve et sommaire description de la vie et mort de D.
Antoine, premier du nom et dix-huitième roy de Portugal_, impressa em
Paris, no anno 1629.

Uma vez, folheando a _Bibliotheca lusitana_, vi o nome e appellido do
leal amigo de D. Antonio.

Senti uma d'essas raras alegrias que só entendem os que andam a joeirar
o lixo dos seculos por vêr se acham um certo diamante que a maior parte
da gente não trocaria por missangas.

A noticia que Barbosa Machado me deu, rezava assim: _Pedro de Alpoem
Contador, natural de Coimbra, doutor em direito cesareo, collegial do
collegio de S. Pedro, aonde foi admittido no 1.º de janeiro de 1578. Na
universidade patria regentou a cadeira de Instituta, que levou por
opposição a 18 de outubro de 1572, d'onde passou á do Código em 2 de
janeiro de 1579. Foi um dos celebres defensores da successão da corôa
portugueza a favor da senhora D. Catharina, como tambem do direito que
tinha á mesma corôa o snr. D. Antonio, prior do Crato, por cuja causa
morreu degolado._ _Escreveu_: Carta ao duque de Bragança D. João, o
primeiro de nome, quando Philippe Prudente entrou em Portugal. _A data é
do Seio de Abrahão a 20 de julho de 1581._ _Começa_: «Obriga-me a
escrever a v. exc.^a cá d'est'outro mundo de verdades e desenganos.»
_Acaba_: «Conforme a santa lei d'este reino ao qual Deus eternamente tem
promettido conservar.» _É larga, muito judiciosa, e consta de uma forte
invectiva contra o cardeal D. Henrique, por dispôr que os castelhanos se
senhoreassem de Portugal, e juntamente contra o mesmo duque de Bragança
por seguir o cardeal._ (Tom. III, pag. 553).

Alguns annos frustrei esforços em busca da carta manuscripta de Pedro de
Alpoem, pois, com certeza, não corria impressa; até que, entre uns
papeis pertencentes á rica livraria do jurisconsulto Pereira e Sousa, e
havidos por compra em 1873, se me deparou a carta que Barbosa Machado
inculcára.

O investigador equivocou-se attribuindo-a ao doutor Pedro de Alpoem. Se
reparasse que ella é datada no _Seio de Abrahão_, deprehenderia logo
que, em nome de Pedro de Alpoem, já degolado em 20 de julho de 1581,
alguém escreveu aquella carta, como vinda d'além-mundo. E, até no começo
da carta, as palavras: _Obriga-me a escrever a v. exc.^a cá d'est'outro
mundo de verdades e desenganos_, estão confirmando a ficção.

Posto que o prazer de possuir um inedito de Alpoem se me agorentasse á
luz da boa critica, nem por isso desestimei o manuscripto, onde abundam
especies historicas não sabidas, traços profundos da physionomia do avô
de D. João IV, e alguns lanços ignorados da biographia da nobre victima
da amizade e do patriotismo.

Persisti, assim mesmo, na indagação da linhagem de Pedro de Alpoem,
esperançado em descobrir miudezas que realçassem as feições principaes,
já de si bastante proeminentes a caracterisal-o. Pouco mais
esquadrinhei, senão que foi filho de Antonio de Alpoem, e neto de Pedro
de Alpoem, e de uma senhora de appellido _Caldeira_, filha de Affonso
Domingos de Aveiro, instituidor da capella de Santo Ildefonso, na igreja
de S. Thiago em Coimbra, da qual o justiçado amigo de D. Antonio era
administrador[18]; e, como não deixasse descendencia, o morgadio passou
a seus parentes, filhos de Isabel Caldeira, irmã de seu avô, casada com
Estevão Barradas.

No fim do seculo XVIII, o possuidor do morgadio de Pedro de Alpoem era
Lopo Cabral da Silveira, bisneto de D. Isabel Caldeira. Estas
impertinencias genealogicas pouco montam na historia de um homem que se
dispensava de avós illustres, bastando-lhe a proeza individual e sua de
dar a cabeça ao algoz e legar o nome sem mancha ao coração do principe
homisiado; mas seria hoje em dia brasão aos que procedessem d'esse
egregio sangue.

D. Antonio captivou na desgraça amigos que lhe sacrificaram haveres,
liberdade, honras e vida. Sobrelevam entre outros o conde de Vimioso, o
bispo da Guarda, D. Diogo de Menezes,--que o duque d'Avila mandou
enforcar em Cascaes, juntamente com Henrique Pereira, alcaide do
castello--, Duarte de Lemos, senhor da Trofa, D. João de Azevedo, Antonio
de Brito Pimentel, Diogo Botelho, D. Duarte de Castro, D. Manoel de
Portugal, Manoel da Fonseca da Nobrega, e D. João de Castro, o
visionario, que, morta a esperança no filho de Violante Gomes,
resuscitou D. Sebastião na pessoa do calabrez Marco Tullio.

As historias antigas e tambem as modernamente escriptas pelos snrs.
Rebello da Silva e Pinheiro Chagas não mencionam um amigo estrenuo do
prior do Crato. Era Martim Lopes de Azevedo, 19.º senhor da casa de
Azevedo, hoje representado pelo snr. visconde d'aquelle titulo,
cavalheiro em quem se alliam as altas qualidades do coração com
superiores dotes de provada intelligencia.

Da inflexivel dedicação de Martim Lopes de Azevedo se lembra o principe
desterrado na Carta latina que escreveu ao papa Gregorio XIII, e outro
sim no seu testamento impresso nas _Provas da historia genealogica da
casa real_, tom. II, pag. 556.

Era, ao tempo, aquelle fidalgo senhor da villa de Souto de Riba-Homem, e
outros senhorios e padroados de igrejas. Bandeou-se com o filho do
infante D. Luiz, logo que o duque de Bragança offereceu a sua casa como
valhacouto seguro aos embaixadores hespanhoes, a quem os partidarios do
rei portuguez ameaçavam, depois da morte do cardeal-rei.

Perdidas as esperanças, Martim Lopes de Azevedo provou as angustias do
carcere e desterro, até que, volvidos annos, conseguiu perdão de
Philippe II, mediante o patrocinio de sua tia D. Leonor de Mascarenhas,
que havia sido dama da imperatriz D. Isabel, mãi do rei que lhe perdoou.
Todavia, o mais grosso de seus haveres em commendas e senhorios da corôa
nunca mais voltou á casa de Azevedo. Todos os conjurados contra a
usurpação, cedo ou tarde, se recobraram, e houveram generosas
indemnisações dos reis brigantinos; não assim os descendentes de Martim
Lopes, cujo representante, em 1874, dos bens de seus avoengos possue
apenas o que a rapacissima vingança de Philippe II lhe deixou. Entre os
netos de D. Arnaldo de Bayão e os do bastardo de Ignez Pires não tem
havido no decurso de tres seculos humiliações de vassallos nem
magnanimidade de reis.

Volvendo á suppositicia carta de Pedro de Alpoem, aceitemos de seu
author, quem quer que fosse, o bosquejo do duque de Bragança, auxiliar,
senão causa primaz, da escravidão de Portugal, da degradação da nobreza,
da miseria do povo, do perdimento das colonias, e dos atrozes flagellos
que se contaram pelos dias de sessenta annos.

Sirva este papel de vestibulo por onde depois entraremos ao archivo
secreto da veniaga que maniatou o duque de Bragança aos calcanhares de
Philippe II.

     [18] N'esta capella ainda existe a sepultura com epitaphio dos
     ascendentes de Pedro de Alpoem, mandada construir por seu avô do
     mesmo nome em 1514.



ERRATA DO N.º 2

Pag. 42, linha 3.ª:

Aquillo com que mais se accende o engenho.

Emende:

_Aquillo_ «com que mais se accende o engenho».


FIM DO 3.º NUMERO





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº3 (de 12)" ***

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