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Title: O credito agricola em Portugal
Author: Lima, Jaime de Magalhães, 1859-1936
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "O credito agricola em Portugal" ***


BOLETIM DA REAL ASSOCIAÇÃO

Central da Agricultura Portugueza

SEPARATA


O credito agricola em Portugal

(Conferencia realisada na Real Associação Central da Agricultura
Portugueza)

POR

JAYME DE MAGALHÃES LIMA



1899

TYP. ESTEVÃO NUNES & FILHOS

_R. d'Assumação, 18 a 24_

LISBOA



BOLETIM DA REAL ASSOCIAÇÃO

Central da Agricultura Portugueza

SEPARATA


O credito agricola em Portugal

(Conferencia realisada na Real Associação Central da Agricultura
Portugueza)

POR

JAYME DE MAGALHÃES LIMA



1899

TYP. ESTEVÃO NUNES & FILHOS

_R. d'Assumação, 18 a 24_

LISBOA



Separata do «Boletim da Real Associação Central da Agricultura Portugueza»



O credito agricola em Portugal

Conferencia realisada na séde da Associação em a noite de 19 de abril por
JAYME DE MAGALHÃES LIMA


                                           MEUS SENHORES:

Encontrando-me n'este logar por virtude d'um convite da Real Associação
Central da Agricultura Portugueza, a minha primeira obrigação é agradecer a
honra que esse convite para mim significa.

Essa obrigação cumpro-a com devoção, não só pelo respeito que me merecem as
pessoas que me convidaram mas ainda pela superior consideração que ha muito
votei á classe a que pertencem. É minha convicção que, se ha possibilidade
de consolidação e desenvolvimento nacional, nenhuma classe está destinada a
ter n'essa grande obra maior e mais proveitosa influencia do que a dos
agricultores e proprietarios ruraes; porque em nenhuma outra é mais intimo
e constante o contacto de grandes e pequenos, a penetração das diversas
condições n'um labor conjugado e solidario e, por conseguinte, em nenhuma
outra deverá manifestar-se mais intensamente esta harmonia social, este
equilibrio moral e economico que é a corôa de toda a grandeza politica e
que é a condição fundamental da paz e da verdadeira prosperidade.

Mostrou a direcção d'esta Real Associação desejos de que me occupasse do
credito agricola.

Até por este lado o convite me foi agradavel! O credito agricola é uma
questão sempre e para todos interessante, mas é particularmente para nós,
n'este momento, da maior opportunidade. Estudado ha muito pelos trabalhos
dos publicistas e pelas tentativas dos legisladores, não se póde dizer
ainda uma questão resolvida mas póde affirmar-se que nunca como hoje se
approximou tanto d'uma solução pratica e efficaz, d'uma solução, direi
mesmo, iniciada com grandes beneficios e com esperanças ainda maiores.

Oxalá a minha capacidade correspondesse á magnitude do problema! Bem sei
que infelizmente não corresponde e que d'elle se distancia de modo
incommensuravel. Por isso não é confiado n'ella que venho aqui mas pura e
unicamente na certeza de que o saber e a indulgencia dos que me ouvirem
supprirá a insufficiencia dos meus conhecimentos e a estreiteza do meu
pensamento.

O credito agricola é, meus senhores, uma questão estudada pelos nossos
publicistas. Entre os seus trabalhos, que são numerosos e de valor, avultam
o que em 1888 publicou o illustre agronomo sr. João Achilles Ripamonti e as
longas paginas que no seu ultimo livro, _A Terra_, o sr. Anselmo d'Andrade
consagrou a este assumpto; ambos conquistaram logar privilegiado na
litteratura agricola nacional, o primeiro pelos elementos que colligiu
sobre as instituições do reino e o segundo pela profundeza e pela
multiplicidade d'aspectos com que encara o problema.

Seria offender a illustração dos que me ouvem fallar-lhes dos bancos da
Allemanha, da Escocia e da Italia que fazem descontos á lavoura ou por
qualquer outro modo lhe prestam serviços. São do conhecimento de todos; a
sua organisação está descripta innumeras vezes e as suas vantagens teem
sido tão largamente apregoadas como reconhecidas.

Demais, uma outra razão me obriga a ser breve n'este ponto. É que temos uma
instituição nacional que nada fica a dever em beneficios aos bancos
populares estrangeiros e que, não sei bem por que capricho, é muito pouco
conhecida entre nós. Refiro-me á Caixa Economica d'Aveiro.

A Caixa Economica d'Aveiro foi fundada ha cerca de quarenta annos (em 1858)
pelo fallecido sr. Nicolau de Bettencourt que, servindo n'aquella cidade o
logar de governador civil e tendo fundado nos Açores, d'onde era natural,
uma caixa inteiramente igual, quiz assignalar a sua passagem no governo do
districto com uma creação cujos beneficios já por experiencia conhecia.
Para isso pediu, instou e conseguiu a cooperação de todos os principaes
proprietarios e capitalistas da terra que não eram muitos.

Esses proprietarios reuniram-se e por escriptura publica formaram uma
associação destinada a receber depositos em conta corrente com o juro de 5%
ao anno, não podendo as respectivas entradas serem superiores a 30$000 réis
nem inferiores a 100 réis e não podendo a somma total de cada depositante
exceder a quantia de 400$000 réis. Para garantia d'estas operações os
socios obrigavam-se por determinada importancia com que podiam ser
obrigados a entrar, não vencendo todavia essas importancias juro algum. O
fundo constituido pelos depositos e pelas entradas dos socios seria
negociado em emprestimos sobre penhores d'ouro, prata, objectos de valor e
facil venda e ainda sobre lettras garantidas por firmas acreditadas.

A organisação era e é simples: tres directores, presidente, secretario e
thesoureiro, eleitos annualmente e que são ao mesmo tempo a mesa da
assembléa geral, assembléa geral que póde funccionar e deliberar
validamente estando presente a quarta parte dos socios. Actualmente, como
os accionistas não chegam a cincoenta, a assembléa geral funcciona com
treze socios.

Na Caixa Economica d'Aveiro, tudo começou por favor e emprestimo; não sei
mesmo se o papel para o primeiro expediente foi um favor da repartição do
governo civil e se o cofre que guardava toda a carteira commercial era o
simples cuidado da pessoa que tomou isso a seu cargo. Pois essa instituição
iniciada e continuada n'um regimen que em materia bancaria se póde dizer
archaico, sem ter mudado de estatutos e com a sua administração
patriarchal, estava em 31 de dezembro de 1898 na seguinte situação:

Tinha 206:709$000 réis em 2.012 depositos, dos quaes 1.426, ou seja 70,9%
não excediam a 100$000 réis. N'um movimento de réis 947:438$900 em lettras,
2.290 em 2.700 ou 84.8% não são superiores a 100$000 réis, emquanto em
4.001 penhores, representando um movimento de 124:981$420 réis, 3.071 ou
76,7% não excedem 10$000 réis.

Se a isto accrescentarmos que a maior parte do movimento em lettras resulta
de transacções com proprietarios e lavradores, escusamos dizer mais para
mostrar o que é a Caixa Economica d'Aveiro, que beneficios presta, que
classes ajuda e que significação lhe podemos attribuir como instituição
servindo a agricultura. Não creio que estabelecimento algum estrangeiro
mereça mais o nosso estudo e attenção do que esta singela instituição
nacional.

Seria agora occasião de me referir aos celleiros communs, tão bellamente
estudados no livro do sr. Ripamonti. Sobre elles direi apenas que, sem
embargo, prestaram serviços mas a sua hora passou; os caminhos de ferro, a
intensidade da vida economica que resulta da facilidade de communicações
exigem hoje qualquer cousa mais larga e mais geral do que poderiam ser
esses estabelecimentos minusculos, disseminados desigualmente, sem relação
entre si, sujeitos unicamente a condições locaes. Não se restauram
facilmente instituições que caducaram por condições de vida nova que não
podiam preencher. Não ha cousa mais captivante que uma cidade medieval e
todavia não nos seria possivel crear um só organismo social d'esse typo. E
assim em tudo o mais: outros tempos, outras necessidades.

Do estudo, que os publicistas teem feito entre nós do credito agricola,
tres conclusões parecem deduzir-se que nos hão de servir de guia para o que
de futuro possamos resolver:

1.º A descentralisação dos capitaes.

É necessario que os estabelecimentos de credito comprehendam uma pequena
área; só assim se poderá conhecer inteiramente a solvabilidade dos que
contractarem, o seu valor pessoal e o destino que dão aos seus capitaes, a
sua vida moral e o seu tino economico, e só assim, por conseguinte, o
credito poderá alargar-se com confiança. D'outro modo o capital retráe-se e
deve retrair-se porque não póde correr aventuras.

Os melhores estabelecimentos extrangeiros assim como a Caixa Economica
d'Aveiro, todos funccionam n'uma estreitissima área; a Caixa Economica póde
dizer-se que não vae além dos concelhos de Aveiro e Ilhavo e ainda um pouco
d'aquelles que lhes são immediatamente visinhos.

2.º A promiscuidade de operações.

Todas as boas instituições de credito popular descontam indifferentemente
ao commercio, á lavoura ou á industria, a todos aquelles que dão garantia
de satisfação dos seus compromissos. Não ha situações privilegiadas; o
credito é só um. Nem convém que as haja: não se comprehende como os
differentes ramos da actividade economica d'uma sociedade devam ter credito
differente se todos são igualmente lucrativos e igualmente uteis pois
d'outro modo não devem subsistir. Póde a natureza das operações exigir
differentes condições de contractos, conforme uma liquidação mais ou menos
rapida, conforme o maior ou menor risco e consequente necessidade de
amortisação, mas essas como muitas outras circumstancias só attingem
propriamente a administração bancaria e nunca o credito, a possibilidade
fundamental de desconto.

Ainda n'este ponto, instituições nacionaes e extrangeiras nos indicam a boa
regra.

3.º A interferencia do Estado.

É uma conclusão muito particularmente para o nosso paiz esta intervenção do
Estado que os trabalhos dos publicistas nos indicam como a iniciadora do
credito agricola e de todo o credito popular; é uma condição nacional, mas
parece-me ser uma condição. É singular que até a Caixa Economica d'Aveiro,
tão prospera e tão bellamente mantida e administrada, por iniciativa
particular, fosse creada por esforço e deligencia d'um homem que juntava á
sympathia pessoal que merecia a qualidade de alto funccionario
administrativo, que não foi nem podia ser indifferente ao bom resultado da
sua tentativa. Os celleiros communs foram na sua quasi totalidade de
creação e administração ou das corporações municipaes ou dos juizes de
direito ou de qualquer outra entidade relacionada com os poderes do Estado.
Administração livre e independente é caso raro, rarissimo. E este facto
deve, a meu vêr, tirar-nos quaesquer illusões e esperanças que possamos ter
sobre a instituição do credito agricola por iniciativa individual. Não é
essa a tradição nacional nem, digamol-o de passagem, se vêem presentemente
meios e tendencias de entrar em novos costumes.

Disse que o credito agricola estava tambem estudado entre nós pelas
tentativas dos legisladores. Attentemos agora um momento n'este segundo
ponto.

D'essas tentativas tres são notabilissimas, já pela alta capacidade dos
homens que a ellas presidiram, já pelos elementos d'estudo que nos
fornecem. O projecto de Alexandre Herculano em 1855, as leis de Andrade
Corvo em 1866 e 1867 e finalmente o projecto do homem superior que foi o
meu querido mestre e que até agora não tem successor, o projecto de
Oliveira Martins em 1887, constituem um fundo de subsidios para o estudo da
questão que põe a nossa litteratura agricola ao par das melhores que se
teem occupado da materia.

O projecto Herculano está n'uma proposta da Camara municipal de Belem, de
que era presidente, ao parlamento para que lhe permittisse crear uma «Caixa
de Soccorros Agricolas» nas condições que lhe designava.

Esse projecto vem precedido d'um relatorio que hoje é um documento precioso
para estudarmos as necessidades e o caracter das nossas populações ruraes;
a grandeza do mestre até alli transparece com uma inegavel evidencia.
Pretendia a Camara municipal de Belem crear um fundo destinado a
subministrar capitaes baratos aos cultivadores e para isso reservaria
annualmente tres quartos do producto do imposto sobre a farinha fabricada
até completar a somma de 35:000$000 réis. Depois, esse capital assim creado
passaria por emprestimo ás mãos dos cultivadores em condições altamente
vantajosas que a lei indicava.

Esta lei, se tivesse sido votada, seria uma concessão á Camara de Belem,
mas evidentemente deixava a porta aberta para o estabelecimento do credito
agricola no paiz porque não havia motivo para que não fosse applicada d'uma
maneira generica. Estabelecia-o por um processo do mais rematado
socialismo; isto é, a Camara reservava para si, por todos os meios
coercitivos de que dispõe, uma parte da riqueza particular, e em seguida
distribuia-a para beneficiar uma classe que carecia d'auxilio. Nada mais
captivante, mas logo se pergunta onde vamos por este caminho. Porque um
beneficio á lavoura com exclusão do commercio e da industria? Não são
porventura todos esses factores d'igual valor na sociedade que os deve
manter sãos e vigorosos n'uma boa economia? A poucos passos estariamos n'um
perfeito communismo, o Estado recebendo e distribuindo os capitaes da
communa; não era facil pôr limites a esta socialisação da riqueza uma vez
iniciada, tanto mais que as reclamações não tardariam a surgir instantes, á
maneira que as necessidades se mostrassem. Depois, quem administra esses
capitaes? A camara municipal, uma corporação eleita por todos os que teem
capacidade politica? Aqui estamos pois chegados a todos os males da
politica e das eleições que infelizmente sabemos bem o que são. Quando as
assembléas geraes dos bancos e companhias são já perturbadas tão
frequentemente por ambições de toda a casta e da mais duvidosa
legitimidade, o que seriam essas assembléas geraes do banco communal em que
se confundiam as cobiças da politica e os interesses da suprema
distribuição do capital? Evidentemente, o caminho era perigoso; ou por isso
ou por quaesquer outros motivos que desconheço, o projecto não teve
seguimento.

Outro tanto não succedeu a Andrade Corvo que viu convertido em lei o seu
pensamento sobre o credito rural. Deu aos hospitaes, misericordias,
confrarias e identicas corporações a faculdade de formarem com os seus
capitaes bancos provinciaes ou districtaes de credito agricola e industrial
com privilegios e garantias que os incitavam a aproveitar-se das concessões
da lei. E todavia muito poucos usaram os beneficios da lei; quasi todos
continuaram na antiga vida. Porque? Essas corporações tinham por certo os
seus capitaes collocados e toda a transformação iria ferir interesses ou,
pelo menos, trazer incommodos que haviam de ser um estorvo ao novo estado
que se pretendia crear. Deus sabe mesmo até que ponto, com os abusos que
são inseparaveis da administração da fazenda commum, os proprios gerentes
d'essas corporações seriam os interessados em as manter no estado em que se
encontravam! Mas, quando assim não fosse, quando a lei, aliás tão bem
pensada, d'Andrade Corvo tivesse operado a transformação que ambicionava,
ainda assim a questão não estaria resolvida. Ficava de pé o que tem sido
uma das grandes chagas da economia nacional, a diversidade do preço dos
capitaes que vae de 4% até 10 ou 20%. Quem era rico, ficava rico; quem era
pobre, ficava pobre. Cada um viveria sobre si, por isso que os bancos se
constituiam com os recursos locaes e operariam n'uma pequena área; haveria
regiões de superabundancia e regiões de extrema miseria. E, depois, talvez
succedesse que esses capitaes que se pretendia chamar á lavoura já na
lavoura estivessem; ao tempo em que a lei foi publicada, a estreiteza do
commercio e da industria era entre nós tamanha que fóra de Lisboa não
haveria collocação segura de capitaes que de perto ou de longe não
interessasse á agricultura.

Era depois d'estas experiencias e tentativas que apparecia o projecto de
lei de fomento rural de Oliveira Martins, tendo, como não podia deixar de
ter em obra de tamanha vastidão e alcance, um capitulo consagrado ao
credito rural. Creava um banco com o capital de 10:000 contos de réis,
especialmente destinado a proporcionar capitaes, quer á lavoura, quer á
propriedade rustica, não só para o desbravamento dos terrenos incultos como
para o melhoramento dos cultivados. O banco teria uma agencia em cada
concelho de população igual ou superior a 40:000 habitantes, ou em cada
grupo de concelhos de 50 a 60:000 habitantes. O Estado constituia o banco
administrador legal de todos os bens actuaes e futuros, comprehendendo os
fundos consolidados, das seguintes pessoas moraes: igrejas, corporações
religiosas, irmandades, confrarias, misericordias e quaesquer outros
estabelecimentos de beneficencia ou piédade. Ao banco competiam varias
obrigações, entre as quaes se comprehendia a fiscalisaçáo pelos seus
agentes da applicação do dinheiro, e eram-lhe concedidos privilegios que
iam até á garantia do juro pelo Estado.

Completava-se d'este modo a lei d'Andrade Corvo, tornando obrigatorio o que
fôra facultativo e trazendo á lavoura d'uma maneira segura os capitaes das
corporações; e,--ponto capital do projecto em que transparecia o genio do
mestre,--realisava-se por meio d'uma centralisação, seguida d'um
derramamento uniforme, essa distribuição igual de capitaes em todo o paiz
de que devia resultar a uniformidade na taxa do desconto. Era uma obra
verdadeiramente nacional, destruindo toda a desigualdade de mercado de
capitaes, fazendo acudir os centros de plethora ás regiões de miseria.

Se exceptuarmos a garantia de juro pelo Estado, que entre nós tem dado
sempre uma confusão de contos onerosissima para o thesouro publico, o
projecto de Oliveira Martins era o que de mais captivante se tem
apresentado ao parlamento portuguez sobre este assumpto. Embora abandonado,
por motivos que não quero saber, o tempo veiu dar-lhe rasão; esse projecto
está hoje realisado, em parte, por via de circumstancias inteiramente
alheias á questão.

É agora occasião de dizer em que razões me fundo para affirmar que o
credito agricola tem em Portugal um inicio de solução.

Depois da apresentação do projecto de fomento rural de Oliveira Martins,
deu-se na vida economica portugueza um facto da maior grandeza destinado a
ter em toda a nossa actividade as mais largas e fecundas consequencias.
Estabeleceu-se o Banco emissor.

O Estado, para accrescentar as suas receitas, segundo creio, contractou com
o Banco de Portugal o privilegio da emissão fiduciaria, recebendo em troca
varias e complexas vantagens. Em virtude d'esse contracto, o banco ficava
sendo o thesoureiro do Estado e d'aqui provinha que, para o cumprimento das
suas obrigações, tinha de estabelecer agencias em todas as capitaes de
districto. Creio que o fim primitivo d'essas agencias era unicamente
realisar as operações do Estado, mas o certo é que uma vez estabelecidas
nenhuma razão havia para que não fizessem simultaneamente operações
commerciaes: em 31 de dezembro de 1898 apparecem-nos com 1:454 contos de
réis de lettras descontadas em carteira, ao mesmo tempo que se mostra que o
banco emissor teve no reino e ilhas adjacentes um movimento de
transferencias commerciaes por meio de lettras que sommou 16:249 contos.
Está assim realisada a aspiração de Oliveira Martins; temos um banco
dispondo de largos capitaes e descontando por preço uniforme em todo o
paiz, fazendo essa operação não só sem subsidio mas antes com beneficio do
thesouro. E temos ainda mais uma facilidade de cobranças baratas sem
precedentes, o dinheiro viajando de Melgaço a Villa Real de Santo Antonio
por um preço unico, por uma tabella uniforme. Todas as vantagens
fundamentaes d'uma economia bem organisada possuimos; só falta que a
lavoura d'ellas participe como é do seu interesse e do interesse do paiz.

Multiplicar as agencias do banco emissor, exactamente n'aquella proporção
que Oliveira Martins estabelecia, isto é, uma agencia por cada 50 a 60:000
habitantes, e reservar para a lavoura uma parte da emissão,--n'isto reside,
a meu vêr, a solução do problema do credito agricola. Não o digo eu, alguem
com mais competencia do que eu o disse já, antes de mim. O sr. Anselmo
d'Andrade, com a profundeza e lucidez que caracterisam o seu bello livro,
_A Terra_, escreveu: «... a uma economia no emprego da moeda deveriam
corresponder reducções na circulação fiduciaria que permittissem ao banco
apartar um fundo de capitaes disponiveis para agricultura. Poderia essa
disponibilidade constituir o capital para desconto e redesconto do papel
dos _Syndicatos agricolas_, merecedores de confiança pela qualidade das
pessoas que os compozessem e dirigissem, não sendo muito que nos contractos
do Governo com o banco emissor, e em conta do preço da emissão, entrasse
como clausula obrigatoria a reserva d'uma importancia a fixar, e a juro que
tambem se fixasse, para desconto d'esse papel agricola. Esta fórma de
protecção saía, por assim dizer, de graça ao Estado, e bastaria como meio
de fomento para que as associações de credito se desenvolvessem e
generalisassem no paiz, á sombra de uma fórma proteccionista que lhe
garantisse, a juro modico, o desconto do seu papel. É verdade que pelo seu
contracto tem o Estado uma participação nos lucros do banco, mas se é certo
que o banco deve ao Estado o seu privilegio, é tambem certo que deve ao
mundo dos negócios os seus lucros, sendo por isso justo e necessario que
elle multiplique os seus serviços tornando-os extensivos a cathegorias de
clientes, que actualmente pouco se aproveitam d'elles, como são os
agricultores... A commercialisação dos agricultores que se inscrevessem nos
registos commerciaes, a intervenção dos _Syndicatos agricolas_ e
associações de credito rural na distribuição de capitaes pelos associados,
e a creação de um fundo especial destinado no Banco de Portugal ao credito
agricola, são portanto condições de vida nova, capazes de egualar perante o
credito a agricultura e o commercio...»

São, sem duvida, condições de vida nova, d'uma infallivel prosperidade para
a agricultura; encerram para nós a solução do problema e encerram tambem a
prova do desatino governativo da nação. Porque é preciso saber-se e
repetir-se, para que se lhe dê remedio, se esperanças de remedio póde
haver, que o Banco emissor fechava o anno de 1898 tendo nas suas agencias
1:454 contos de réis em lettras descontadas quando em 1897 fechava a sua
conta com 1:684 contos sob igual rubrica. Baixou 230 contos e, se tão pouco
baixou, deve-o ás instancias do commercio, da lavoura e da industria e
nunca ao zelo do Estado.

Como se explica este retrocesso, se a prosperidade do paiz vae crescendo e
se o interesse do banco é alargar as suas operações? Unica e
exclusivamente, todos o sabem e o proprio relatorio do banco o confessa aos
accionistas, pela abusiva intervenção do Estado, pela absorpção, com uma
avidez insaciavel, de toda a nova emissão fiduciaria na conta do thesouro.
De fórma que esse mesmo Estado que devia ser o maior propulsor da
actividade economica é o seu maior inimigo, pela desenfreada concorrencia
que lhe faz no mercado dos capitaes. Assim, toda a tentativa de credito
agricola ou de qualquer outra especie de credito é vã, trabalho baldado. O
Estado levou todo o dinheiro do Brazil no tempo em que elle de lá vinha com
abundancia; consumiu mais tarde todo o oiro estrangeiro quando o credito
das praças europeias nos trazia em constante abundancia; absorve toda a
emissão fiduciaria agora que os instrumentos de circulação nos pertencem.
Emquanto ao mercado concorrer um cliente assiduo que tem mais de 50:000
contos de réis de rendimento por anno e outros que não teem 50$000 réis,
desenganemo-nos, a victoria será sempre do mais rico, tanto mais que esse
tem na sua mão uma arma formidavel e vem a ser: que elle é que faz a lei
para si, para os outros, para aquelles proprios que lhe devem.

Ouvi que o Estado ia renovar o seu contracto com o Banco de Portugal e que
d'ahi tiraria um accrescimo de receita no valor de trezentos contos de
réis. Se alguma cousa me fosse dado pedir, pediria que, uma vez ao menos, o
Estado abrandasse a sua voracidade e, em logar de exigir mais trezentos
contos para si, exigisse a multiplicação das succursaes do Banco de
Portugal, dotadas de capital bastante e administradas em condições idoneas
ao serviço da lavoura.

Iria mesmo mais longe. Ainda mais uma vez commungando nas ideias do sr.
Anselmo d'Andrade, acceitaria o alvitre que esse illustre publicista
propunha n'um artigo publicado no _Jornal do Commercio_ de 15 de março
ultimo. Não veria o menor perigo n'um pequeno alargamento da circulação
fiduciaria com tanto que esse alargamento fosse unica e exclusivamente
destinado ao desconto mercantil e agricola; pelo contrario, tanto
enfraquece o banco a emissão absorvida pelo Estado como reforça a sua
solidez e o seu credito a emissão transformada em carteira commercial.

Quando o banco tivesse creado cem agencias, estava realisada a ambição de
Oliveira Martins, distribuidos os estabelecimentos de credito n'aquella
proporção com a população que elle indicava. Pois essas cem agencias não
demandariam uma despeza inicial superior a 200 contos, despeza que com o
tempo havia de annular-se completamente e até mesmo converter-se em
beneficio. Fossem essas agencias dotadas com trinta contos de réis cada
uma,--e não consentiria em que nos primeiros annos tivessem maior dotação
porque a collocação de capitaes só lentamente póde realisar-se com inteiro
proveito, e os exaggerados alargamentos de desconto são mais nocivos á
economia nacional que um desmedido retraimento;--fossem essas agencias
dotadas com trinta contos e não hesito em affirmar que tão estreita somma,
e tão barata para a administração publica, havia de produzir milagres de
prosperidade. Já não são pequenos os que produzem os miseros 1:454 contos
de réis que o banco emissor tem na carteira commercial das suas agencias;
tanto me basta para avaliar do futuro.

Quando o Estado tivesse assim cumprido a sua missão, estaria, a meu vêr,
terminada a sua tarefa. Cessava aqui a solução do problema por parte dos
poderes publicos, a questão ia mudar d'aspecto e de questão economica
converter-se-ia n'uma questão moral. O Estado poz capitaes á disposição dos
lavradores, é a estes que agora compete darem garantia bastante para o
levantamento d'esses capitaes.

Luzzati, cuja principal gloria está em ter iniciado e propagado os bancos
populares na Italia, exclamava apreciando-os: «Mas o que seriam as nossas
casas de credito sem os bons costumes dos seus socios!» Entre nós, pelo que
sabemos da Caixa Economica d'Aveiro, poderiamos dizer outro tanto. É facil
a constituição de casas de desconto: o que parece mais difficil é a creação
d'esses bons costumes que hão de fazer que ellas funccionem com inteiro
proveito para a riqueza publica e particular, para a boa ordem social.

O penhor nas mãos do mutuante ou do mutuario, a garantia na alfaia e nos
fructos pendentes, a associação de qualquer especie como intermediaria e
principal responsavel entre os bancos e os lavradores, a simples fiança
pelo acceite em lettras de cambio, tudo são processos que podem utilmente
ser aproveitados e a nenhum d'elles ousarei contestar valor benefico. Mas
sempre direi que tudo o que não seja a singela assignatura em uma letra de
cambio garantida com duas firmas que, pelos seus bens e principalmente pelo
seu tino e honestidade, mereçam confiança, é mais um signal de descredito
do que de credito. Ai d'aquelle cuja reputação não basta e precisa ser
amparada por qualquer cousa d'ordem material! Ha muito o commercio e a
industria assim o comprehenderam e não sei nem posso attingir, a não ser
que os procure em viciosos costumes, os motivos porque um industrial póde
levantar dinheiro n'um banco na supposição de que não disporá das
mercadorias fabricadas sem satisfazer os seus compromissos e outro tanto
não póde fazer o lavrador que é tambem fabricante de productos
commerciaveis. Não sei por que ao commerciante se entregam capitaes n'um
ajuste tacito de que a elles ficam obrigados os generos que guarda na loja,
e não se póde fazer outro tanto com o lavrador que tem celleiro e adega
onde guarda objectos igualmente commerciaveis. É muito facil a um
negociante de cereaes ou de vinhos encontrar credito, mas é difficil
alcançal-o o lavrador que primitivamente produziu e possuiu aquellas mesmas
mercadorias.

Administrei a Caixa Economica d'Aveiro durante cinco annos, ha cerca de
seis annos que sou agente do Banco de Portugal; quer n'um quer n'outro
logar tenho contractado muito com lavradores por meio de lettras de cambio.
Pois não exaggero dizendo que nunca com elles perdi um real e que a Caixa
Economica d'Aveiro dá o primeiro logar na sua carteira commercial ao papel
firmado por lavradores. Tudo está unicamente no tino de quem administra
esses estabelecimentos, no zelo com que procura averiguar da applicação a
que o dinheiro se destina e das qualidades pessoaes de quem o procura.

A fiança, o simples acceite n'uma lettra de cambio, a equiparação do
lavrador e do commerciante, eis o que a minha estreita experiencia me
indica como o processo mais facil, mais prompto, e porventura mais seguro,
de operações de credito, quer agricola quer de qualquer outra especie. Para
isso porém, torna-se necessario que proprietarios e lavradores comprehendam
as suas obrigações de patronato.

Da maneira como ellas são ignoradas permitta-se-me que recorde um exemplo
que é caracteristico.

Conheci uma região no districto de Coimbra, terra fertil, feracissima,
abundantemente regada, com um magnifico clima, em que o primeiro dos
quarenta maiores contribuintes pagava de contribuição predial 400$000 réis,
o quarto 40$000 réis, o quadragesimo 13$000 réis. Calcule-se por ahi a
distribuição da propriedade, monopolisada nas mãos dos poucos de que
dependia uma basta legião de arrendatarios.

As rendas eram exageradissimas, raro o anno em que, o arrendatario as podia
pagar por completo.

Estranhei este systema a um proprietario que, na melhor boa fé e julgando
provar assim capacidade de administrar, me respondeu;--É muito bom. D'este
modo estão sempre em divida e pagam o mais que podem.

Quando se chegava a junho ou julho, o mais tardar, o arrendatario já não
tinha pão e ia procurar um homem que invariavelmente lhe accudia. Esse
homem retratava-o Herculano, no relatorio que precede o seu projecto de
credito agricola, com uma fidelidade e um relevo que a mais aperfeiçoada
machina photographica nunca alcançará:

«É homem chão, modesto, exacto no cumprimento dos seus deveres civis,
laborioso, valedor: é quasi um bom homem. Ignora as partidas dobradas e
repugnam-lhe por via de regra não só os juros exorbitantes, mas até o juro
legal. Quando empresta o seu dinheiro ao agricultor é por dó d'elle; é para
lhe acudir n'um apuro. O que quer é assegurar o reembolso da somma mutuada.
Tendo horror ás demandas, se o lavrador é proprietario não lhe acceita o
predio como hypotheca, porque conhece a imperfeição das nossas leis
hypothecarias; se o não é, nem por isso quer abandonal-os. N'esta situação
que faz? Empresta sem juro; mas exige um contracto que lhe dê a certeza do
reembolso. O cultivador ha de pagar em genero na eira. E como ha de ser o
pagamento? Os cereaes regular-se-hão pelos preços mais inferiores do genero
n'essa conjunctura. É uma precaução. Para os riscos das baixas possiveis,
que depois sobrevenham, de uma venda anterior, d'uma divida desconhecida,
de uma colheita insignificante, etc., o mutuario promette o abatimento de
um, de dois, de tres vintens ou mais em alqueire. É outra precaução. O
usurario é compassivo, é benevolo para com a sua victima, mas precisa de
ser prudente. O contracto fica secreto, não se escreve porque o mutuante
conta com a probidade do mutuario, ou para melhor dizer, com o temor que
este terá de achar em novos apuros condições mais onerosas, e esses apuros
são quasi inevitaveis desde que o pobre cultivador cahiu uma vez nas suas
mãos.»

Este homem bemfazejo, na região a que me refiro, contenta-se com pouco;
empresta em junho uma moeda para receber em setembro ou outubro o capital e
mais um alqueire de trigo e até ás vezes de milho. Preço modico, um juro
que oscilla entre 20 e 30% ao anno. Conheci um que, não tendo propriedades,
tinha um celleiro para receber... os juros.

Está assim fechado o cerco; onde não chega o proprietario com as suas
brutaes exigencias accode galhardamente o usurario. Que fica ao agricultor?
O direito de emigrar? Não, que tambem não ha dinheiro para a passagem.
Servo da gleba, miseria e humildade, a astucia deshonesta para accrescentar
o que o trabalho não dá,--eis o seu triste destino.

Pensando bem, talvez ninguem tivesse lucrado. O proprietario desvalorisa a
propriedade tendo-a em meio d'uma população indigente e anniquillando assim
o mercado em que a podia negociar por bom preço; o agricultor tem a sorte
que sabemos; e até o usurario... não, o usurario esse accrescenta a sua
fortuna rapidamente. Alguem havia de capitalisar o trabalho do lavrador de
cujo producto este só usufrue uma parte minima.

Emquanto taes costumes se mantiverem, emquanto as obrigações e os
interesses do patronato, de auxilio e protecção aos humildes não entrarem
na vida corrente dos proprietarios e dos mais abastados, emquanto não se
comprehender que uma parte da nossa fortuna consiste sempre em a possuirmos
entre gente rica e por isso enriquecendo o visinho nos enriquecemos tambem,
emquanto assim fôr, as loucuras da administração do Estado encontrarão
digna imagem na incapacidade individual. Mas que a boa razão, quer d'um
quer d'outro lado, comece de prevalecer e o problema do credito agricola em
Portugal não tardará a ter solução.

Uma derradeira abservação.

Eu acceitei o alvitre do sr. Anselmo d'Andrade quando propunha que o banco
emissor descontasse aos syndicatos que seriam os fiadores e principaes
pagadores dos creditos individuaes; mas, entenda-se bem, isto será
unicamente um dos processos de negociar. O desconto directo ao lavrador é
porém uma necessidade sempre que o credito d'este o permitta. Porque,
d'outro modo, os intermediarios, sejam elles quaes forem, hão de reclamar o
preço do seu risco e do seu trabalho e aqui temos iniciado um caminho
perigoso que deixa margem a muito negocio escuro.

Tal é, meus senhores, sobre a questão do credito agricola o meu pensamento,
na exposição do qual abusei talvez da vossa bondosa attenção que,
reconhecido, agradeço.





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