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Title: D. Antonio Alves Martins: bispo de Vizeu: esboço biographico
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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                         D. ANTONIO ALVES MARTINS

                              BISPO DE VIZEU

                            ESBOÇO BIOGRAPHICO

                                    POR

                          CAMILLO CASTELLO BRANCO


                              SEGUNDA EDIÇÃO


                                   PORTO
                  Livraria Internacional de Ernesto Chardron
                               Casa editora
                     LUGAN & GENELIOUX, successores
                                   1889

                            Preço... 200 RÉIS



                            ESBOÇO BIOGRAPHICO



                         D. ANTONIO ALVES MARTINS

                              BISPO DE VIZEU

                            ESBOÇO BIOGRAPHICO

                                    POR

                          CAMILLO CASTELLO BRANCO


                              SEGUNDA EDIÇÃO


                                   PORTO
                  Livraria Internacional de Ernesto Chardron
                               Casa editora
                     LUGAN & GENELIOUX, successores
                                   1889

                        Todos os direitos reservados



IMPRENSA INTERNACIONAL
Victoria, 166



É agradavel e não commum esboçar alguns traços da vida de um varão
benemerito, cujos antepassados, praticando obscuramente o bem, nos não
intimam o dever de lhes attribuir ou inventar proezas civicas. Em tempos
não remotos, quando era costume inculcar ou explicar, pelo decoro da
stirpe, virtudes ou heroismos, raro biographo se sahia limpa e
airosamente de ao pé do berço humilde do seu heroe. É vêr o empenho
pouco menos de lastimavel dos que inventaram avós fidalgos a João Pinto
Ribeiro, como se o explendor de seu patriotismo fosse demasiado para um
só homem, e devêsse, em vez de ir adiante afidalgar vindouros,
retroceder aos passados, e lustrar-lhes as sepulturas em galardão
posthumo! Donosa e bizarra fidalguia é uma que nos faz sentir que o é,
por que ha ahi natural fronteira entre bom e máo: é a que vêmos
gerar-se, florir e fructear sem inculcadas e vans precedencias; é a que
assignala os homens prestantes, allumiando-os de luz sua, a fim de que a
posteridade os extreme da sombra, se os contemporaneos não poderam ou
não quizeram aquilatal-os desassombradamente. Homens d'este vulto, per
si mesmos nobilitados, não se procuram no berço: é em meio de nós, é
desde o momento que os vimos receber da gratidão publica os titulos de
sua nobreza.



O snr. D. Antonio Alves Martins, doutor na faculdade de theologia, bispo
de Vizeu, par do reino e ministro de estado honorario, nasceu na Granja
de Alijó, provincia de Traz-os-montes, aos 18 de fevereiro de 1808.
Modesta abundancia e laboriosa probidade--excellencias congeneres da
profissão agricultora--honravam e felicitavam a familia de que procede o
snr. bispo de Vizeu.

Dado que a sua iniciação a estudos superiores não levasse o intento
posto em determinado destino, motivos, em que talvez seria grande parte
a obediencia, moveram o moço de deseseis annos a entrar na Terceira
Ordem de S. Francisco, chamada da Penitencia, cuja casa capitular era em
Lisboa.

Não é já hoje em dia mui vulgar a noticia da illustração em que
primacialmente se avantajava aquella corporação religiosa, cujos
serviços litterarios e evangelicos ahi estão consignados nas _Memorias
historicas_ do arcebispo Cenaculo e nos variados escriptos de fr.
Vicente Salgado. Nenhuma ordem, digamo'l-o assim, acabou com mais
brilhantes fins de existencia gloriosa, atravez de quatro seculos. Ali
principalmente se ensinaram a diplomatica e as linguas orientaes; d'ali
sahiram abalisados mestres de grego e hebraico, arabe e syriaco.

Muito de industria lembramos esta clausula quasi inutil, por que temos
lido e ouvido inconsiderados se não indoutissimos conceitos dos
Regulares da Terceira Ordem de S. Francisco. Não será pois descabido
lembrar a juizes menos competentes que a livraria, actualmente chamada
da Academia real das sciencias, era a d'elles.

Em 21 de maio de 1825 vestiu o snr. Antonio Alves Martins o habito de
professo, e passou a estudar philosophia no Collegio do Espirito Sancto
em Evora, doação de el-rei D. José á Terceira Ordem, em 1776, extincta a
Companhia de Jesus. Em outubro do anno seguinte, matriculou-se no
collegio das Artes, com o proposito de seguir o curso universitario,
frequentando alternadamente as aulas de mathematica, philosophia e
theologia.

Cursava o distincto academico o seu terceiro anno da universidade,
quando as renovadas idêas de 1820 agitavam febrilmente os animos de
grande numero de escolares--aquella phalange de generosa mocidade,
predestinada a ser tão grande parte na propaganda dos principios
liberaes e na occupação dos mais eminentes postos da representação
nacional. O alumno de theologia, posto que ligado a uma corporação
religiosa, aliou-se aos propugnadores do governo representativo, sem
todavia imparceirar-se com os injustificaveis bandos que intermetteram
uma pagina de deshonra indelevel na historia dos asperos sacrificios
d'aquelle periodo.

Desde tenros annos a condição do snr. Alves Martins sahiu avessa a
rebuçar ou sequer temperar calculadamente as suas opiniões politicas.
Este franco destemor e afouta energia foi sempre, é, e apezar da
experiencia será sempre a mais relevante physionomia do snr. bispo de
Vizeu. Á ousadia de manifestar-se affeiçoado á revolta militar do Porto,
de 16 de maio de 1828, seguiu-se ser riscado da universidade, quando
frequentava o terceiro anno theologico. Sem embargo, o snr. Alves
Martins proseguiu nas aulas da sua congregação; e, concorrendo ás
cadeiras de philosophia e theologia, recebeu o premio de sua applicação
e creditos, sendo logo, e tanto na flôr da idade, nomeado mestre da
Ordem. Os condiscipulos do estudioso mancebo ainda hoje recordam a
viveza, penetração e discernimento com que elle se egualava aos mais
distinctos.

Não estava, todavia, aquelle alvoroçado espirito ainda maduro de feição
para pautar-se ao magisterio. Impulsaram-no estimulos inflexiveis a
quinhoar dos perigos e honras nas luctas que estrondeavam fóra e dentro
do claustro. Era aquelle um tempo em que todo homem olhava para o
horisonte do dia novo, bem que a uns se figurassem de fogo destruidor as
côres da aurora, e outros a saudassem como luz redemptora a alvorejar
civilisação para o mais ignaro, escuro e abatido torrão da Europa. Alves
Martins não podia pertencer ao numero dos prudentes que, adorando a
occultas a idêa, sopesavam com os açamos de uma discreta espectativa os
impetos de a confessar e servir. A experiencia mostrou seguidamente que
estes sisudos foram depois os primeiros que sahiram enramados a rojar os
louros nos tapetes dos ministros de 1834: por onde se prova que a
prudencia é sempre de medranças, ainda quando uma san terminologia a
alcunhe de ardilosa.

Como quer que fosse, Alves Martins, no momento em que as tropas liberaes
rebeladas no Porto evacuavam Coimbra, sahiu do collegio, acompanhou-as,
e sentou praça no regimento de Voluntarios de Alijó. Sem demora lhe foi
instaurado processo no tribunal secular e nas commissões militares de
Traz-os-montes; o profugo, porém, recolhendo-se ao claustro, pensou
talvez que a perseguição, empenhada em exterminar inimigos mais
temerosos, o esqueceria. Era, em verdade, ter em coisa de pouco a
memoria das testemunhas juramentadas no seu processo!

Em 1832 foi nomeado capellão da armada: fôra-lhe imposto o encargo sob
obediencia, por que da Terceira Ordem sahiam os padres para os navios do
estado[1].

Poucos mezes depois, o capellão, cuja pertinacia em ser liberal o
tornára por demais esquecido do instaurado processo, foi de novo
processado na Majoria-General, preso nas cadeias de Coimbra, e
sentenciado com mais tres companheiros na Conservatoria da Universidade.

Na tarde do dia 28 de janeiro d'aquelle anno uma leva de presos ida de
Coimbra para Almeida conseguiu fugir na altura de Sancto Antonio do
Cantaro, favorecida talvez pelo commandante da escolta. N'aquella leva
iam tres presos já sentenciados no Conservatoria. A sentença era um
modêlo de concisão e ferocidade. Chegados a Vizeu, deviam ser
espingardeados no campo de Sancta Christina. Um dos tres condemnados era
o snr. Antonio Alves Martins.

As alegrias d'uma salvação muito incerta não compensaram ao sentenciado
e a tres companheiros as angustias que se seguiram. Desviados de todo
trilho, desprovidos de minimo recurso, e até desconfiados da caridade do
lavrador a quem pedissem um pouco de pão e agasalho, durante onze dias e
noutes, erraram, por serranias, retranzidos de frio e fome. Quando ao
nono dia de tamanha miseria chegaram á margem do Mondego, junto de Villa
Verde, e reconheceram que o passo era guardado por sentinellas, os
quatro fugitivos ás nove da noute entraram na agua, e, como submersos em
uma salina, esperaram quatro horas de formidavel agonia a menos perigosa
opportunidade de vadear o rio. Dois dias depois chegaram a Leiria, onde
se apresentaram ao tenente coronel Vasconcellos, hoje visconde d'aquella
localidade.

Com quanto a robusta mocidade de Alves Martins se aguentasse na lucta
com os trabalhos d'aquella fuga, o resultado funestou-se-lhe depois,
sobrevindo-lhe um typho para o tratamento do qual o hospital de Leiria
lhe favoreceu uma enxerga. Apenas convalescido, passou a Lisboa; e,
terminada a guerra civil, voltou a continuar seus estudos em Coimbra,
onde se graduou em theologia, por 1837, deixando as faculdades de
mathematica e philosophia no segundo anno.

Na lista dos estudantes perseguidos e por tanto agraciados pela lei de
1834, estava o nome de Antonio Alves Martins. Elle, ainda assim,
dispensando-se dos beneficios da lei, subjeitou-se ás praxes, frequencia
e provas dos restantes academicos. Aceitou apenas os doze mil reis que
lhe pertenciam como a eggresso da Terceira Ordem. Eis ahi o primeiro
lance de desinteresse que será o percursor de outros testemunhos de não
vulgar desprendimento.

De mais d'isto, um homem no vigor dos annos e sasão das aspirações, com
justa causa para desvanecimentos de meritos, uns ganhados com seu
eminente espirito, outros adquiridos pelos trances que correu a sua vida
no serviço da causa triumphante, ahi o temos concorrendo a uma cadeira
de philosophia no Lyceu do Porto para grangear o pão da independencia,
visto que o despacho para o magisterio universitario se demorava. Mas,
nem ainda ahi, nome e serviços lhe complanaram difficuldades. Um antigo
professor obteve, annullado o concurso, despacho fundado em direitos de
já ter exercido o ensino. Alves Martins concorreu novamente á cadeira de
historia e geographia para a qual foi despachado em 1839.

Assombra e entristece ao mesmo tempo o confronto das ambições
descompassadas que hoje em dia saltam e bravejam de nomes obscurissimos,
e a modestia, comedimento e parcimonia dos homens de então, os quaes tão
affastados já parecem d'estes nossos dias! E todavia, são de hoje, são
nossos contemporaneos! Que decorosos brios não reportavam o animo dos
que se davam por bem pagos de ser livres para poderem buscar sua parca
vida no ensinamento da mocidade! Claro era que Antonio Alves Martins não
podia abastardar os dons da intelligencia, mal-baratando-os em incenso
ao poder--em escambo de mercês que lhe permittissem, inerte na força da
idade, e no regalo de lerdos ocios, descurar como incommoda esta coisa
onerosa chamada honra do trabalho.

Tres annos passados, o professor do lyceu foi eleito deputado.

A sua entrada no parlamento em 1842 abriu mais um exemplo dos damnos que
fomenta a rigidez do caracter vinculada ao arrojo da censura. O snr.
Alves Martins distinguiu-se na opposição. Os seus discursos não eram
preparados com a engenhosa paciencia dos que attentam superiormente no
brunido e terso dos periodos, e a miudo pompeam enfeites academicos em
assumptos de seu natural simplissimos. Como a sua eloquencia brotava
subita das convicções, e a cada passo os desacertos do poder lh'as
estimulavam, não se lhe fazia mister o prévio lavor da composição
litteraria das suas orações. O snr. Alves Martins era, primeiro que
tudo, dialetico, assim destro quanto laconico; umas vezes severo, outras
asperrimo, mas sempre justo, e escutado com respeitosa attenção de
parciaes, e adversarios, entre os quaes se procuravam sempre os mais
audaciosos para o impugnarem. A austeridade de sua indole, inflexa ás
chamadas conveniencias partidarias, singularisava-se por uma honrada
obstinação propriamente com os erros da sua parcialidade. Os do seu lado
impacientavam-se magoados quando as frechas do intemerato argumentador
lhes iam apontadas e mais penetrantes que as dos adversos. Que montava
isso á serena consciencia de Alves Martins? Os seus amigos politicos
deixavam de o ser, logo que exhibissem, como diplomas de consideração,
polluir-lhe por efeito d'uma forçada condescendencia a inteireza de seus
principios sempre liberaes, e ao mesmo passo moderados e conciliadores.
Contra as demasias do poder achamol'-o sempre em reacção vigorosa, quer
os governos se fortalecessem na complacencia do throno, quer no apoio
faccioso dos plebiscitos. No seu animo tanto impendiam influencias
patriciatas como populares. Abusos de ambas as procedencias lhe eram por
egual odiosos, e o sobre-excitavam a extremos de não poder estancar o
impeto das phrazes excessivamente acrimoniosas, se algum contendor lhe
recalcitrava com desabamento. Assim o vimos sempre e com indomavel pulso
nas accêsas disputas com o actual visconde de Souto Maior[2].

Acima escrevemos que a sua entrada no parlamento inaugurára mais um
exemplo dos damnos inherentes á rigidez de caracter e aos atrevimentos
de uma franca reprovação. O governo, para lhe fazer sentir seu
desagrado, á custa d'uma injustiça sem disfarce, preteriu-o no despacho
universitario. Este facto devêra capitular-se de inveterada
desmoralisação, se antes não fosse uma especie de direito
consuetudinario nos governos que todos se estribam na adhesão dos
amigos, e por amor d'elles supplantam a justiça dos contrarios. E tão
perversor direito explica as abjecções, as apostasias, os invilecimentos
contra os quaes Antonio Alves Martins, desde deputado até ministro do
reino, desde conventual de Jesus até prelado viziense, se levantou
sempre com honesta sobranceria.

Verdadeiramente, contra o adversario d'este fôlego não bastavam os
athletas parlamentares. Urgia ao poder suspeitoso espial-o no escuro das
noites e ladeal-o de quadrilheiros.

Antes de ser deputado, já o snr. Alves Martins, no ultimo anno de sua
formatura, em 1837, havia sido prezo em Coimbra como cumplice na revolta
dos marechaes--lance que passou totalmente alheio da sua menor
interferencia. O illustre preso devia ainda conhecer no carcere, que lhe
davam os livres, a tabua que lhe tinha dado o governo dos escravos.
Apenas se haviam interposto tres annos desde a sentença de morte lavrada
na Conservatoria até ao mandado de captura da auctoridade
constitucional!

Sendo deputado, foi preso em 1843, ou, como quem quer adoçar o termo,
foi detido por que entrava por noute alta em conciliabulos
revolucionarios.

No seguinte anno, 1844, estando no Porto, foi intimado para
encarcerar-se no Castello da Foz, como faccionario da revolta militar
d'aquelle anno. Governava então o districto o snr. Antonio Emilio
Brandão, cavalheiro cujas virtudes ainda não foram puidas pelo atrito da
politica. Dignou-se a auctoridade ouvir as declarações do indiciado como
conspirador; e, suspensa a ordem de prisão, deixou-o vigiado pela
policia.

Escusado é procurar o snr. Alves Martins estranho á revolução de 1846 e
1847. Conheceu os homens, que formaram o gabinete revolucionario,
visinhou d'elles com o seu conselho e pratica dos negocios; mas pendemos
a crer que muitissimos actos da Junta, nomeadamente os militares e
diplomaticos, mereceram a sua reprovação, mais ou menos expressada no
opusculo NOVE DE OUTUBRO, que sua S. Ex.ª publicou, historiando os
successos tumultuosos da contra-revolução[3].

O snr. Antonio Alves Martins não conheceu o andamento da revolução
sómente pelos «boletins» das manobras e batalhas impressos nas gazetas.
Viu-a de perto, bem no centro dos perigos, tomando d'elles o quinhão que
lhe quadrava, como a homem que em si sentia impulsos de defender no
campo a causa que patrocinára na imprensa. Ha ahi o quer que seja
grandioso que nos avulta a proporções improprias d'este tempo o homem de
letras de par com o soldado não esquivo aos trances das pelejas. A
hypocrisia não acha edificativo o lance; mas os espiritos
despreoccupados admiram e respeitam a coragem que intendeu dever ao bem
da sua patria, a um tempo, os serviços do braço e os thesouros da
intelligencia.

Terminada a guerra civil pela convenção de Gramido, continuou o
professor a reger sua cadeira, e simultaneamente redigindo o _Nacional_,
diario então organisado para sustentar os principios da reforma,
abastardados senão derruidos pelo gabinete constituido depois da
convenção. O trabalho assiduo de S. Ex.ª era gratuito como antes e
depois aconteceu em todos os periodicos de sua collaboração. Concorremos
então na parte litteraria do _Nacional_. Com intima saudade nos
recordamos da lhaneza e cordeal critica com que o primeiro redactor
politico nos acoimava de frivolos ou louvava por esperançosos uns
folhetins com que nos ensaiavamos para esta lida indefessa de vinte
annos.

Os artigos do snr. Alves Martins, ridigidos com admiravel presteza, e
momentos antes ou simultaneos da composição typographica, eram modêlos
de polemica, e ás vezes retaliações um tanto acerbas para os
adversarios. Passos Manoel, avaliando o caloroso publicista como
escriptor politico, elevava-o á eminencia entre os melhores. N'aquelles
annos de 48 e 49, o _Nacional_ primou no seu progressista e
liberalissimo programma, confiado ás superiores capacidades de Alves
Martins, Parada Leitão, Evaristo Basto, e Nogueira Soares.

O espirito publico estava disposto a coadjuvar a revolução militar de
1851, acaudilhada pelo marechal Saldanha, e resurgida da sua prostração
por alentos de alguns seus confederados no Porto. No esforçado numero
dos cooperadores da intitulada «Regeneração» alistou-se o snr. Alves
Martins, posto que a politica do snr. duque de Saldanha lhe não abonasse
mais prosperidades nacionaes que a politica do snr. conde de Thomar. Uma
e outra, mais ou menos aulicas e filiadas na côrte, eram pouco menos de
facciosas, e mais que muito impopulares. A nosso juizo, o snr. Alves
Martins, considerando que o antagonismo pleiteava entre dois validos a
disputarem-se privança e influencia, teve como politico e acertado
expediente apoiar o mais fraco, para assim, removidos os estorvos dos
nomes panicos, abrir novo horisonte ás reformas desejadas, e sobverter
os elementos reaccionarios. Este seria, por ventura, o proposito do
solerte politico e de outros notaveis correligionarios da Junta
consubstanciados na revolução.

E, de feito, a phase da nova politica, animada pelo talento sagacissimo
e genio conciliador de Rodrigo da Fonseca Magalhães, inaugurou-se com
ares de sciencia nova em materia de governar. Homens de arraiaes
contrarios congrassaram-se no mesmo intuito, fatigados dos vaniloquios
da tribuna, e cortados dos desastres da guerra civil. Iniciaram-se na
administração algumas intelligencias devotadas ao progredir material, ao
adiantamento procedente dos estudos economicos, descurados até áquelle
tempo em que, pelo ordinario, os mais loquases parlamentares pareciam
ainda remodelar as suas theses pelas recordações tribunicias das
primeiras camaras, estudando a eloquencia em Ferreira Borges e Fernandes
Thomaz. Então se viu esfriarem os intranhados despeitos, apagarem-se as
inspirações sonorosas dos questionadores politicos, e communicarem-se
uns a outros o mesmo impulso de apoio para obras publicas, estradas,
telegraphos, portos maritimos, reformas aduaneiras, desvinculação da
terra, em fim, operou-se estranhamente a communhão de todas as vontades
no estudo e exploração dos processos de riqueza que as nações prosperas
nos exemplificavam.

Mas em quanto os videntes do progresso material pindarisavam os adais da
idéa nova, o governo, inaugurado em 1851, dilapidava e prodigalisava,
como se o edificio novo houvesse de ser cimentado sobre as ruinas da
fazenda nacional, e o povo, que farte empobrecido para tão descommedidas
despezas, devesse ser sacrificado aos creditos dos iniciadores do
progresso.

O snr. Alves Martins retirou o seu apoio ao governo. Estava com o povo e
contra as demasias do poder. Estava com o progresso; mas progresso
compativel com a debilidade do thesouro.

Em novembro de 1852, obteve S. Ex.ª a nomeação de lente de theologia:
suscitando-se duvidas, no entanto, sobre a antiguidade que lhe competia,
renunciou o magisterio, optando pela cadeira canonical na sé patriarchal
de Lisboa.

Continuou militando já na opposição, já nas maiorias, assim na imprensa
como no parlamento, por espaço de nove annos.

Em 1861, foi nomeado enfermeiro-mór do hospital de S. José, onde se
disvelou quanto cabia em suas muitas faculdades e prestantissimos
alvitres. A imprensa louvou-o unanimemente pelas reformas que em sua
administração se operavam. Cortou abusos. Pautou rigorosamente
obrigações. Gratificou serventuarios benemeritos. Exauthorou os nocivos.
Feriu pela raiz a arvore dos desperdicios á sombra da qual se medravam
muitos, com aggravo da pobreza e do infortunio. E tamanho affecto cobrou
o novo enfermeiro-mór áquella casa de dôres que, volvidos annos, e já
ministro do reino, se lhe estava sempre desintranhando em beneficios,
convertendo em pão e cobertura as liberalidades das pessoas que por
ellas, mais do que pelas mercês, se então nobilitaram.

Approuve a S. Magestade galardoal-o com a commenda da Conceição pela sua
benemerencia no exercicio de enfermeiro-mór. O snr. Alves Martins
regeitou a graça por intender que o comprimento de uma obrigação não era
caso para condecorações.

De passagem notaremos no despacho d'este afanoso encargo um successo que
motiva saudades: foi este despacho o ultimo que o snr. D. Pedro
assignou. O amigo dos infelizes, ao despedir-se d'elles, enviava-lhes
uma alma cheia de generosa rectidão a zelar-lhes o seu patrimonio. Bem
escolhido protector para desvalidos que--bem o sabem os que de perto
convivem com o illustre prelado--facilmente enternecereis a lagrimas e
vereis commiserado aquelle aspeito que se vos figura severo e
inaccessivel ás dôres maviosas da compaixão.

Em julho de 1862 foi apresentado bispo na sé de Vizeu o snr. D. Antonio
Alves Martins, confirmado no consistorio de S. Matheus, e sagrado em dia
de Todos os sanctos. Como a doença o impedisse, governou a diocese por
procurador, até que em janeiro de 1863 fez entrada solemne na sua
cathedral. No tempo que medeou entre a sua apresentação e confirmação,
recebeu um breve de S. Santidade, encarregando-o do regimento da
diocese, na qualidade de vigario apostolico, a fim de debellar o scisma
que lavrava no bispado, á conta da nomeação do vigario capitular. Fôra o
caso que o cabido descontente, recorrendo a Roma, obtivera annullar a
segunda eleição. Recusou-se o snr. bispo a cumprir o breve, posto que
honroso para S. Ex.ª em quanto S. Magestade o não approvasse. Travou-se
alguma contestação entre o prelado e o nuncio que se dispensava do
placito regio. O breve, porem, não se cumpriu. O snr. D. Antonio antepoz
o respeito da lei portugueza ao arbitrio romano. Só depois da sua
sagração, é que S. Ex.ª intendeu nos negocios da sua diocese. Foi esta
uma judiciosa inflexibilidade de caracter que se dicidiu pela dignidade
nacional contra a jurisdição prelaticia. As insignias do principe da
egreja, honorificadas pela confiança do chefe da christandade, não o
demoveram de acatar submissamente os fóros do chefe da nação. Louvavel
rigidez de primoroso animo que em cada acto nos está sobrepujando a
medida vulgar.

O zêlo da missão prelaticia divorciou-o fundamentalmente da politica. A
sua cadeira na camara alta, ao invez de mui naturaes conjecturas, esteve
por espaço de annos devoluta. O solicito prelado dedicou-se de coração
aos cuidados pastoraes, quer morigerando abusos, quer invidando esforços
na educação do clero.

No primeiro anno fez tres ordenações; e, nos seguintes, ordenação geral
e unica nas temporas de S. Matheus, attendendo ao proveito dos
ordinandos.

Aqui vem de molde um facto cuja notoriedade nos corta delongas no
memoral-o. De natureza estranha foi elle, e, como tal, soou com grande
estampido dentro e fóra do paiz.

Em junho e julho de 1867 concorreu S. Ex.ª a Roma para assistir ás
festas do centenario de S. Pedro e canonisação de alguns sanctos. Em
certo dia o soberano recitou na capella sixtina um como discurso do
throno ao qual é de estylo responderem os bispos como uma saudação a S.
Santidade. N'esta saudação, previamente elaborada, realçavam pontos
doutrinarios e controversos grandemente incongruentes com as convicções
do prelado viziense ácerca da infallibilidade e do poder temporal do
papa. A saudação ou resposta ao discurso pontificio não havia sido
discutida nem consentaneamente redigida por alguma assemblêa episcopal.
Era papel já de antemão impresso, como se o contheudo fundamentasse em
dogmas incontradictaveis na christandade. Os prelados concorrentes á
capella sixtina, no acto de se apartarem, receberam convite impresso a
comparecerem, no seguinte dia, no palacio Altieri para o intento de
lerem e assignarem a saudação. O cardeal, que rubricava o convite, não
solemnisou com a sua presença a assemblêa dos prelados, os quaes, ao
compasso que entravam, iam recebendo os exemplares, e eram advertidos
que lessem, assignassem e os não levassem. O snr. bispo de Vizeu, já que
ninguem abria discussão, nem o peremptorio do aviso a permittia, leu e
deliberou, tambem peremptoriamente, não assignar.

Em o 1.º de julho, appareceu a saudação a S. Santidade em acto solemne,
ao qual o snr. D. Antonio, divergente de seus collegas, não concorreu.
Não obstante, entre os signatarios, d'aquelle protesto pela
infalibilidade e poder temporal encontrou o bispo portuguez o seu nome.
Sem interpor tempo, S. Ex.ª protestou, por via do embaixador de Portugal
em Roma, contra a sua assignatura nem feita nem authorisada. O nobre
prelado, protestando n'este theor, não cogitava em assoprar escarceus
que dessem a lembrar as divergencias das christandades primitivas,
quando as duvidas sobre infallibilidade dos bispos de Roma eram
suscitadas por venerandos prelados que tinham bem no vivo de sua fé as
tradições dos primeiros seculos. Da parte de S. Ex.ª o intuito era
natural e simplissimo: repellir uma tal qual fraudulencia, equivocamente
piedosa, que involvêra a falsidade d'uma assignatura, e violencia de
especie nova, imposta á sua consciencia. Não obstante, o episcopado
catholico, ardendo em espirito menos santo, assanhou-se com o desusado
procedimento, como se ahi pelo seculo IV algum discipulo de Arius
ousasse, á face da cadeira de S. Pedro, contender sobre os divinos
fundamentos da religião de Jesus. E, todavia, o snr. bispo de Vizeu
protestára singelamente contra a falsificação de sua assignatura,
denegando-se a subscrever a infallibilidade do papa, como ninguem
subscreveu nos primeiros sete seculos da egreja, tal qual e pelas mesmas
palavras com que a declinou de si o papa S. Gregorio Magno, e como, ha
poucos dias, o protestou o eminentissimo Dupanloup na sua ultima
pastoral. O que muito aggravava a culpabilidade do nosso bispo não era a
duvida: era o protesto. Não crêsse embora; mas... immudedecesse. O que
era, pois, dignidade, foi malsinado de orgulho. O dissentir de seus
collegas, n'um acto a que todos por ventura ligavam minima valia, foi
havido em nota de rebellião propria dos heresiarcas que parvamente
forcejavam por que as portas do inferno prevalecessem.

Lamentavel é dizer-se que este caso passou hontem; e que a mais
pronunciada feição de tal conflicto seria irrisoria por conta de Roma,
se não fosse profundamente triste!

O snr. bispo de Vizeu, impassivel ás graves censuras e encontrado pela
opinião de todos seus collegas, contentou-se bastantemente do applauso
da consciencia, como quem, reclamando contra a falsificação do seu nome,
praticava um mero acto de moralidade, sem discutir se os apophtegmas de
Hildebrando ou as Decretaes de Isidoro Mercador deviam ser de novo
aquecidos ao sol do seculo XIX.

Uma commissão de tres prelados procurou seguidamente o snr. bispo para
lhe declarar que fôra engano e não proposito a subscripção do seu nome
no documento official. A esse tempo já o snr. D. Antonio havia sahido de
Roma. A mesma commissão declarou o equivoco, perante o embaixador de
Portugal, pedindo que se transmittisse a satisfação ao prelado
portuguez, e se lhe pedisse que se houvesse por contente. Em Paris
recebeu o snr. D. Antonio o officio do secretario da embaixada,
relatando os successos, e solicitando o remate da pendencia. Conveio S.
Ex.ª no desejado termo de tão ruidoso quão simples incidente,
bastando-lhe que na legação portugueza em Roma se inscrevesse, muito ao
claro, que o bispo viziense não assignára nem mandára assignar a
saudação ao pontifice, infallivel e monarcha.

Recolhido á sua diocese, o tranquillo prelado enviou cópia de todos os
documentos substanciaes d'este conflicto ao ministerio da justiça,
esclarecendo o seu poder em Roma. O governo, accusando a recepção do
relatorio e documentos appensos, absteve-se do louvor e da censura. Nem
o louvor se fazia mister ao socego do pundonoroso bispo: nem a censura,
se tamanho vilipendio sahisse imparceirado com a inepcia, poderiam
molestal-o senão como testemunho de impertinente ignorancia ou refolhada
hypocrisia.

Entretanto, ao passo que uma parte da imprensa louvava a probidade do
snr. D. Antonio, fundamentando o elogio em racionalissimos argumentos
por nenhum modo attentatorios dos justos direitos da theara pontificia,
alguns menos sabios que pios fautores da moradia perpetua do espirito
sancto no Vaticano, e do patrimonio do principe dos apostolos, e da
legitimidade monarchica de Innocencio IV e João XXII sahiram contra o
snr. bispo de Vizeu, já em periodicos mais ou menos trasladados
mascavadamente de Joseph de Maistre, já em cartas impressas e
subscriptadas com irrisorio desplante e grosseiro desprimor ao douto
prelado. Não redarguiu S. Ex.ª a semelhantes artigos e cartas constantes
de maravalhas triviaes de sabatina do primeiro anno theologico com que
usa estofar-se esta ordem de coisas piamente ignaras--quaes o auctor
d'este opusculo as escrevia n'um tempo em que estudava historia
ecclesiastica, provando assim que a não tinha estudado. Não redarguiu S.
Ex.ª, por que não se houve por deslustrado com censuras innocentes quasi
degenerando em parvoiçadas. O antigo mestre de sua congregação, o doutor
em theologia, o lettrado, o bispo não devia responder.

Abstrahido á politica, e empenhado novamente nos seus cuidados
apostolicos, apercebia-se S. Ex.ª para visitar o restante do seu
bispado--como remate á mais capital tarefa da missão episcopal--quando
foi convidado pelo snr. duque de Loulé para ser parte no governo, cuja
organisação lhe fôra encarregada pelo rei, em seguimento á queda do
ministerio Avila. Inutilisadas as diligencias, resignou o snr. duque a
melindrosa empreza. O cháos assustava os mais intrépidos. Nem já os
sedentos da honra de governar se atreviam a ensaiar a sua pericia
pregoada nos comicios.

Então foi chamado ao paço o snr. bispo de Vizeu, e convidado a organisar
ministerio.

Aceitou. Corria-lhe obrigação de não esquivar-se a lances de alta
responsabilidade quem se defrontára com todas as procellas politicas no
decurso de quarenta annos tempestuosos. Aquella crise era certamente a
da mais desnorteada mareação da náo descalavrada; mas urgia crêr e
pensar na possibilidade de salvamento, sendo desde muito o porto
almejado do insigne escriptor e parlamentar as reformas, os golpes
fundos nos excessos, a amputação de abusos á mão tenente, sem attentar
na gerarchia das classes offendidas pela razoira economica. Cuidou
certamente o snr. bispo de Vizeu que a dolorosa experiencia dos ultimos
successos politicos seria forte alavanca para derruir obstaculos,
manejada por pessoas cujos precedentes não illudissem a confiança da
nação.

Esta esperança, denotando peito de rija tempera, argue não extremado
conhecimento dos homens.

Difficultou-se, ao mesmo tempo, a escolha de ministro da guerra. Lembrou
o snr. bispo convidar-se o snr. marquez de Sá, em quem lustram honra
acrisolada com eminentes predicados de bom juizo. Aceitou o snr. marquez
a pasta e presidencia. Aceitou por que s. ex.ª não sabe quando um filho
de Portugal possa justificar a evasiva do seu prestimo no serviço da
patria.

Começou a funccionar o gabinete em 22 de julho de 1868.

Todos os ministros eram alheios dos tumultos de janeiro que lograram a
queda do ministerio Aguiar; apezar d'isso, o programma da revolução não
podia ser melhorado ou substituido. O estandarte, discreta ou
indiscretamente arvorado pelos impulsores portuenses, proclamára batalha
campal e inexoravel ás prodigalidades, aos sacrificadores do povo, á
voracidade dos incartados no sêvo da fazenda publica. O lábaro era
sympathico, sem impedimento de, em crises analogas, desde muitos annos,
desfraldado por mãos inexperientes ou ávidas, apenas ter vingado toldar
o ambiente d'umas poeiras, descondensadas as quaes o que se via era as
arcas do thesouro cercadas de gente nova com os vicios velhos. Seria
desacôrdo, ainda assim, a vacillação do novo gabinete, se um desculpavel
scepticismo lhe agurentasse a crença nos principios conclamados pelos
tribunos. Adoptaram, pois, os novos ministros o programma das reformas,
impetrada auctorisação das côrtes.

O fundamento da politica do ministerio em que o snr. bispo de Vizeu
consubstanciava o espirito e actividade dos seus collegas, em poucas
palavras se define: augmentar a receita e diminuir a despeza.

Contra a ameaçadora fórma d'este moto de partido encapellaram-se para
logo aversões filhas do interesse, odios inconciliaveis de classes e
individuos affeitos a considerarem legitimos os gosos da sua regalada
posição.

Como e quando se tinha operado o milagre de extirpar o egoismo de cada
um para melhorar a condição de todos? Quem tinha promettido ao novo
gabinete neutralisar pela justiça as forças congregadas dos
descontentes? Em que ponto de apoio haviam de assestar a alavanca os
temerarios reedificadores?

Duzentos contos tinham sido aliviados ao onus da despeza, quando as
hostilidades, pouco tempo clandestinas, romperam clamorosas. O
funccionalismo tinha por si a imprensa mais qua nunca descortez, iniqua
e desenfreada. Os mais engenhosos e eminentes na cathegoria dos
publicistas, apagando os lumes sagrados com que tinham ministrado no
altar da liberdade os seus talentos de bem pensar e aconselhar, em dias
da gloriosa perseguição, pegaram de escrever objurgatorias tenebrosas em
que a soltura da idéa raras vezes se descasava da fórma condigna. O
ministerio Sá-Vizeu, na imprensa, era apoiado por poucos, mas
desinteresseiros amigos, não querendo grangear algum com o dinheiro da
nação. Os talentos postos a ganho refinaram na injuria quando se viram
desdenhados como coisa funesta por tal preço. D'ahi as devassas ao
recondito da familia, e o despejo das calumnias, que redundavam em
deshonra de toda uma terra onde para taes entendimentos se havia
fermentado na lama tão desaforada licença.

Na hoste dos funccionarios bandeou-se a legião dos engenheiros civis,
classe bafejada no berço por taes prosperidades e mimosa condição que
julgal-a-hieis, no meio do abatimento e desconforto geral, a mais bem
acondicionada em um paiz opulento. Esta corporação, fadada para destinos
incomprehensiveis, ao vêr attravancar-se-lhes o accesso a collocações
ambicionadas, conjurou-se em hostilidade sanhosa dentro e fóra do
parlamento.

Depois, os aspirantes ao poder dividiam-se em ministros que tinham sido
e ministros que queriam ser. Dos segundos, o phrenesi impaciente de
governar desfechou em destemperos que a historia séria não póde disputar
ao dominio da baixa comedia. Tinha batido a hora em que se julgava com
direito a uma pasta ou duas quem quer que tivesse aliado á ignobil
coragem de acirrar as iras da opposição a audacia de se julgar
predestinado para salvar o paiz.

Entre elementos assim desorganisadores espanta como o ministerio pôde
manter-se um anno sem extraviar-se da senda constitucional, escudando-se
com a inconcussa honestidade de seus actos, respondendo aos motins do
parlamento e das praças com imperturbavel segurança.

D'entre os mais devotos do governo, muitos, atroados pelo estridor da
opposição, começaram de sentir os vágados das consciencias que se
reviram. Alguns poucos, que o tinham contrariado em incidentes
inevitaveis, sustentaram a probidade por tão distincta fórma que não
pôde o final desfecho inodoar-lh'a.

Quando a froixa maioria cuidou conjurar a tempestade, sacrificando dois
ministros menos favorecidos de apoio, a pugna recrudesceu, por que os
ministros retirados deixavam apenas duas pastas, e os candidatos se
haviam multiplicado a ponto que não cahia em forças humanas fazer
supurar tanta aposthema de ambição debaixo das fardas de só dois
ministros.

Simultaneamente, na camara alta, um homem de lettras florentes,
acepilhada eloquencia e bons quilates oratorios para mais uteis
triumphos, profligou o ministerio com inflammada pertinacia, ao mesmo
passo que notaveis mediocridades vociferavam, provando que a syntaxe e
prosodia não são condicionaes para applausos.

N'esta extremidade, o snr. bispo de Vizeu, para quem tinha corrido um
anno de acerbos dissabores e excruciantes desenganos, sentiu o desalento
que prostra os homens de bem, e lhes não permitte impôr, por meios
fortes, ás rebeldias irracionaes uns sentimentos que ellas não aceitaram
do procedimento liso e franco.

Perdido o apoio n'uma questão momentosa, o ministro do reino briosamente
repulsou o alvitre de sondar o espirito da camara n'outra votação. A
insistencia daria azo á suspeita de que S. Ex.ª timbrava em permanecer
ministro, disputando á soffreguidão febril de seu successor missão tão
pouco para invejas.

Demittiu-se o bispo de Vizeu. O gabinete cahiu.

Esta nova, posto que esperada, impressionou tristemente a maioria da
familia portugueza. N'esta maioria é bem de entender que não se incluiam
as classes prejudicadas pelas reformas. O elemento mais sensivel e
respeitavel do paiz para quem o nome do snr. bispo de Vizeu foi caução
de porvindouras prosperidades, era o povo que sustenta o funccionalismo,
o povo agricola, o povo industrial, o povo que labuta no tracto
mercantil. Para muitos a missão do ex-ministro do reino, embargada por
cobiçosos e perfidos a meio caminho, deixou como inexequivel qualquer
tentamen de proseguil-a na ladeira, cuja escabrosidade incute mêdos a
quem já viu as ganancias que auferem os reformadores arrojados.

Quem não sentiu pungimentos de saudade do poder foi o snr. D. Antonio
Alves Martins. Se elle poder esquecer as injurias da imprensa e a
maleabilidade das consciencias em que esteiava a inteireza da sua, hão
de sobrar-lhe memorias dolorosas de um anno de vida desasocegada e fóra
do remanso de seus estudos e das consolações da sua recatada
beneficencia.

O povo que, ha pouco, o saudou com amoroso enthusiasmo, hade invocal-o
ainda, em dias que se vão preparando para grandes provas. E o snr. bispo
de Vizeu voltará de novo á lucta e ao sacrificio, terminando o cyclo
glorioso de sua vida, qual a começára, em prol da liberdade, cujo berço
elle embalou entre ferros.

FIM

    [1] «No reinado do snr. rei D. Sebastião é que os Religiosos
    (_regulares da 3.ª Ordem_), amantes da patria, do serviço do rei, da
    sua gloria e do zêlo da religião catholica, a exemplo dos distinctos
    missionarios, que tinham fructificado tanto na Azia, foram á
    infausta jornada d'Africa, acompanhando os seus parentes e amigos,
    capellães dos terços e das náos de transportes, em serviço da
    corôa... ficando desde aquelles dias conservado o distincto logar de
    capellão-mór das armadas reaes em Religiosos d'esta congregação, por
    especial graça dos Soberanos d'esta monarchia.» _Fr. Vicente
    Salgado. Compendio historico da Congregação da Terceira Ordem de
    Portugal. Lisboa 1793_, 8.º, pag. 71, e seg. Ao mesmo preposito,
    veja o arcebispo Cenaculo nas _Memorias historicas_, _Appendix
    Segundo_, art. _sobre a Capellania-mór_, pag. 297, onde vem
    transcriptos excerptos das _Ordenanças de Marinha_ de Filippe IV.

    Não pareça prolixa e descabida a nota. Ha poucos mezes que mais de
    uma gazeta presumidamente illustrada fingia ignorar que os capellães
    da armada eram obrigados ao exercicio d'esse ministerio. O proveito
    d'esta simulada ignorancia rendia tão sómente aos publicistas
    injustos a satisfação de poderem denegrir o ministro do reino, de
    1869, de miguelista em 1832, por que andára por aquelle tempo em
    navio do governo na qualidade de capellão. Não são estas impericias
    as de que mais se peja a liberdade de escrever. Seria mister que a
    ignorancia fosse, por meio da gazeta, contagiosa para que
    semelhantes aleivosias vingassem.

    [2] Nos _Apontamentos sobre oradores parlamentares em 1853 por um
    Deputado_, (O snr. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara) lê-se ácerca
    do snr. Alves Martins: «Tem physionomia carrancuda e é um pouco
    desabrido no seu trato. Quando aggride o contrario, não usa
    precauções oratorias, nem cuida em lhe dourar a pilula. Está sempre
    em occasião proxima com o snr. Antonio da Cunha e, se travam lucta,
    não ficam a dever nada um ao outro.»

    [3] Em 1849, José da Silva Passos, fiando demasiadamente da nossa
    idoneidade para historiador, nos convidou a escrever, sob sua
    influencia, a _Historia da Junta do Porto_. Como lhe perguntassemos
    que valor deviamos dar ao _Nove de Outubro_ escripto pelo snr. Alves
    Martins, nos respondeu o ex-ministro da Junta: «Alves Martins não
    sympathisava comnosco. Se o tivessemos feito ministro da guerra,
    tudo isto tinha voado n'uma barrica de polvora.»

    José Passos, gracejando, consoante o seu genio ás vezes brincão,
    n'aquellas palavras desconcertadas de sentido e substancia, elogiava
    involuntariamente a actividade resoluta de Alves Martins, e
    censurava a accomodaticia e transigente indole de alguns seus
    collegas postos em trabalhos onde o seu temperamento soffria grande
    violencia.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "D. Antonio Alves Martins: bispo de Vizeu: esboço biographico" ***

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