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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 11 (de 12)
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco


PUBLICAÇÃO MENSAL


N.º 11--NOVEMBRO

LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON
_96, Largo dos Clerigos, 98_
PORTO

EUGENIO CHARDRON
_4, Largo de S. Francisco, 4_
BRAGA

1874


PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

62--Rua da Cancella Velha--62

1874


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA


SUMMARIO


_O ultimo carrasco, pelo exc.mo snr. visconde de Ouguella--O
desastroso fim de Damião de Goes--A menina perdida--O heroe da ilha
Terceira--O nariz--João Baptista Gomes--Auto da fé... a rir_



O ULTIMO CARRASCO


I

    Para mim a sepultura é santa; são santas as fundas agonias humanas,
    ainda quando associadas ao crime.

                                                          A. HERCULANO.


    Si l'on demande comment, avec de pareils sentiments, j'ai pu remplir
    si longtemps les horribles fonctions qui m'étaient échues en
    partage, je n'ai que ceci à répondre: qu'on vacille bien jeter les
    yeux sur la condition dans laquelle j'etais né... C'est le testament
    de la peine de mort par le dernier bourreau.

                 _Mémoires des Sanson_ par H. SANSON,
        ancien executeur des hautes oeuvres de la cour de Paris.


    Felizmente a civilisação do seculo arrancou do nosso codigo esse
    negro artigo da pena de morte, e esta conquista da illustração, que
    a tenaz perseverança da philosophia alcançou gloriosa, depois d'uma
    porfiada lucta, já não póde retrogradar em Portugal, e parabens me
    dou a mim mesmo de não estar já ameaçado de commetter homicidios, e
    de sentir gotejar sobre a minha cabeça, n'estes meus já bem cançados
    dias, o sangue, que uma lei draconiana fazia espadanar no cadafalso.

         _Historia_ (inedita) _de Luiz Antonio Alves dos Santos_--O NEGRO,
                    ultimo executor de justiça em Portugal.


    A pena de morte será executada na forca pelo executor da justiça
    criminal, em lugar publico, com o acompanhamento da confraria da
    Misericordia, se a houver no lugar, e dos ministros da religião, que
    o condemnado professar: assistirá o escrivão dos autos para n'elles
    dar fé do cumprimento da sentença. Nas quarenta e oito horas
    marcadas no artigo antecedente, se ministrarão ao condemnado todos
    os soccorros da religião, e os mais que por elle forem requeridos.

              (Art. 1203 da _Reforma judicial novissima_,
                   decretada em 21 de maio de 1841).


O meu quarto, o meu antro, a minha jaula tinha quinze passos de comprido
e seis de largura. Era tão limitado o recinto que nos achavamos face a
face--o carrasco e eu.

A primeira impressão que senti, ainda mal, porque se traduziu em
factos--arrependi-me depois--foi recuar e esconder as mãos nos bolsos.

Na lei, que ordenava o homicidio, é que eu não devia tocar. Era para com
o juiz, que proferia a sentença, para com o jury, que condemnava, e para
com o ministerio publico, que requeria, que eu devia guardar estas
reservas e cuidados.

Para com o executor--não.

Este era o instrumento, era o cumplice, era a força physica, era a
machina brutal, inconsciente, estupida e passiva. Era a forca, era a
guilhotina, era o patibulo, era o cadafalso, era o pelourinho, era a
gargalheira, era o potro, era o equuleo, era a cruz do supplicio--era
finalmente o verdugo, o algoz e o saião. Era o carrasco.

Para com elle, o meu instincto de repulsão era um absurdo.

Toca-se nas rodas dentadas d'uma machina qualquer--quando postas em
movimento, se o operario n'um momento de irreflexão e de imprudencia se
aproxima d'ellas--despedaçam-no, esmagam-no. A roda é um agente: obedece
impassivel ao impulso da diretriz, do motor.

E, aliás, ninguem despreza a roda, ninguem a reputa aviltante, ninguem a
insulta.

Que mais vale o carrasco, para que o legislador lhe legasse o desprezo e
a consciencia da sua infamia?

O movimento de repulsão, que actuou em mim, não fôra tão rapido que o
não observasse Luiz Negro.

Observou.

Vi rebentar uma lagrima nas palpebras avermelhadas do velho. Rolou-lhe,
depois, deslisando na concavidade das rugas, que lhe sulcavam as faces,
e foi em espiral, mansamente, gota a gota, perder-se-lhe na espessura
das barbas.

Conheci a affronta e corrigi-a sem detença. Estendi-lhe a mão. Apertou-a
o carrasco com uma alegria convulsiva. Havia não sei que traços de
gratidão desenhados n'aquella physionomia franca e aberta. Parece-me
têl-os ainda impressos na memoria, para remorso eterno da minha
consciencia.

«Posso apertar-lhe a mão com desafogo», exclamou elle, com uma voz surda
e rouca. Senti-a primeiro no coração antes de me entrar nos ouvidos.
«Felizmente, nos abysmos da minha profunda desgraça, resta-me uma
consolação...» Hesitou. Depois proseguiu: «consolação unica, que me
alumia a existencia, e mitiga os pezares que me vão n'alma: as minhas
mãos estão puras, tenho-as immaculadas da forca, não arroxearam jámais,
com a soga, a garganta dos padecentes--não derramaram nunca o sangue das
victimas que a lei sem respeito pela vida humana, e a que por escarneo
chama justiça, obriga outro nomem a derramar.

«Venho, aqui, para o conhecer. Não tenho por costume procurar presos.
Nem os busco, nem lhes fallo. Mas sei que é adversario da pena de morte;
quiz vêl-o face a fece. Era justo que o carrasco e o homem de lei
conversassem em intima convivencia. Estamos em presença um do outro:
escutar-nos-hemos reciprocamente.»

E ao passo que Luiz Negro se exprimia assim, perguntava eu a mim
mesmo--quantas mãos mais polluidas, menos nobres, menos dignas e menos
puras teria eu apertado na minha vida.

Assim como Talleyrand, se Talleyrand era--não me falhando a
memoria--asseverava, que a palavra fôra dada ao homem para mentir, tenho
para mim que os respeitaveis e acreditados luveiros da nobre cidade de
Lisboa foram nascidos e educados, para nos evitarem o contacto de mãos,
que nos podem contagiar com estes virus paludosos, que por ahi vão
medrando á sombra de magnificas protecções.

Quando o carrasco proferia as ultimas palavras, que acabo de narrar,
chegava o meu almoço, trazido por um criado, e acompanhado por outro,
que tem sido para mim como o Caleb de Ravenswood, descripto por Walter
Scott. Em seguida appareceram amigos meus, trazidos ao Limoeiro pelo
desejo de me acompanharem nas horas, em que, sendo-lhes permittida a
entrada, eu me achava mais só.

Sentaram-se em torno da mesa. Luiz Negro almoçava comnosco. Fallavamos
de tudo. Ignoravam todos o mister do meu novo hospede. Viam um homem
avançado em annos, envolto n'um casaco escuro que tinha fórmas de
tunica, silencioso, calado e triste, comendo sem nos interromper a nós
que esqueciamos as grades, os ferrolhos e os guardas--e arrastados pela
nossa imaginação peninsular nem sequer pensavamos no governo.

Fui sempre um conspirador assim--em que pese esta modesta confissão
minha ao illustre e meritissimo juiz do processo.

Não direi os nomes dos meus amigos, n'este jovial almoço, com receio de
os denunciar ás iras, e aos instinctos odientos dos consules actuaes.
Receio que lhes abram assento no santo officio regenerador.

A conversação ia cortada em dialogos cheios de vida, recamados de
originalidade e opulentos na elegancia do dizer e na facilidade da
phrase. Poderia parecer uma academia litteraria, se não fosse uma enxovia.

Vivia eu, então, n'um carcere que me dizem ter sido morada de Diogo
Alves nas vesperas do seu supplicio.

As paredes, se não conservavam tradições de taes luctas legaes,
guardavam, pelo menos, os vermes, que formam o apanagio e arrhas d'estes
lugubres esponsaes com as nossas cadeias.

Ao terminarmos a nossa refeição, quando o fumo dos cigarros e charutos
começava a ennovelar-se em densas espiraes, velando-nos as faces, disse
para os meus amigos e alegres convivas, que me penitenciava alli d'um
erro grave, erro de lesa polidez, porque os tivera, por tão largo espaço
e em tão intima convivencia, com pessoa para elles desconhecida, sem os
apresentar, conforme ordenam e exigem as demoradas pragmaticas e
minuciosas etiquetas britannicas.

Ninguem o conhecia. Só eu.

Enchi-me d'animo e terminei assim:

«Meus senhores, tenho o prazer de lhes apresentar o carrasco.»

Houve um silencio profundo. Parecia que um d'estes tremendos
cataclysmos, de que só a natureza tem o segredo, se desencadeára em
torno de nós.

As minhas palavras reboaram como o choque d'uma pilha
voltaica--faltavam-lhes, apenas, as chispas eletricas.

A sensação foi grande. Não era temor, não era medo, não era susto, que
contagiára d'esta sorte todos os meus amigos. Era repulsão. Sentiam-se
todos inficionados d'este contacto. Parecia que haviam respirado os
gazes deleterios, os fluidos mephyticos d'algum charco paludoso.

E todavia diante de nós estava um homem, feito á imagem de Deus, segundo
rezam as piedosas lendas biblicas. Estava um irmão nosso, um filho da
mesma raça, nascido na mesma patria, educado na mesma religião de amor e
de perdão, e fóra a lei e os seus levitas, que o haviam convidado,
constrangido ou subornado, a exercer as cruentas e sinistras funcções
d'aquella magistratura de sangue.

Venerar e respeitar os authores das monstruosas carnificinas, que se
appellidam em phrase composta e decorosa «pena de morte» desprezando, ao
mesmo tempo, o mandante e forçado executor de uma penalidade absurda e
irreparavel, pareceu-me sempre um contrasenso abjecto, um preconceito
irrisorio, uma aberração torpe e villã. O pudor deslocado não é virtude:
ou é hypocrisia ou imbecilidade.

Achei sempre muito mais racional a doutrina de De Maistre. Divinisava
quasi o carrasco, elevava-lhe o mister á altura de sacerdocio. Bem haja
elle. Pelo menos era logico, consequente e audaz. As situações definidas
teem a severidade do raciocinio, a coragem dos dogmas que enunciam, o
supremo valor e a immensa lealdade de aceitarem francamente as
consequencias fataes e necessarias dos seus actos.

Em épocas d'uma triste cobardia moral, escólas que formulam as suas
doutrinas, sem tergiversações nem receios, merecem o respeito de todos
nós; porque qualquer que seja o absurdo dos principios existe, pelo
menos, alli, a fé viva que os escuda e defende.

Mas nas escólas dos doutrinarios ou conservadores modernos qual é o
credo ou symbolo do seu programma politico e social?

Vejamos.

Explica-o Littré por fórma tal que me tira o desejo de o dizer:

«Não é só a França--é a Europa inteira que se acha dividida em tres
escólas politicas: a escóla retrograda, a escóla revolucionaria e a
escóla estacionaria ou conservadora. Buscam todos um d'estes tres
balsões. E cada um se liga e enfileira ou ás instituições do passado ou
trabalha para a sua destruição ou busca, n'um equilibrio--physica e
moralmente impossivel--um ponto de apoio, no encontro d'estas duas
forças oppostas.»

As resultantes, n'estas absurdas combinações de forças, são as
catastrophes.

A escóla estacionaria, rigorosamente fallando, não tem doutrina sua.
Existe, medra e espreguiça-se no seio d'estas convulsões sociaes,
aceitando os principios da revolução, cujas consequencias repelle, e
dobra-se, curva-se e sujeita-se ás conclusões da escóla retrograda, ao
_ultimatum_ da sua doutrina reaccionaria--simulando, aliás, um profundo
horror pelos seus principios. Não é um systema esta evolução do seu
procedimento--é um expediente, que vive da impotencia a que por mais
d'uma vez as outras duas escólas se teem reduzido. E ha tanta verdade
n'estes confrontos, que vemos os conservadores, arrastados pelo
medo--terror panico dos espiritos timoratos e dos homens enriquecidos á
sombra das revoluções--mergulharem até ao lôdo das escólas retrogradas,
como em busca d'um local recondito e mysterioso onde possam esconder e
occultar os seus haveres. O pavor produz estas allucinações. Como se o
passado podesse encobrir o trabalho accumulado para o futuro!

Luiz Negro era um homem intelligente. Percebeu que eu queria levantal-o,
alli, deixando a responsabilidade da sua profissão áquelles que lh'a
deram, e que, em seguida, o desprezavam tambem.

Ergueu-se, olhou-nos a todos quando se achou de pé, e confesso que nos
dominou.

O patibulo, que é um lugar elevado, deve ter fascinações e delirios
deslumbrantes, como os teem os thronos, as eminentes funcções do estado,
e a cadeira gestatoria dos pontifices e santos padres. Para alguma cousa
deve servir estar mais alto do que os outros homens.

Foi n'uma montanha--rezam assim as piedosas chronicas do Nazareno--que
Satanaz quiz tentar Jesus.

O carrasco, no meio de nós, fitando-nos a todos--com um olhar
profundamente triste, que era o resumo d'uma existencia
horrivel--possante, herculeo e espadaúdo como um gladiador dos circos da
Roma pagã--era mais do que um homem: era um phantasma.

A alegria esvahiu-se. Era tão profundo e completo o silencio, que o
zumbido d'um insecto qualquer ter-nos-hia parecido uma convulsão medonha
no globo que habitamos.

Já a mim mesmo me reprehendia eu d'esta apresentação inopportuna.

Luiz Negro mediu-nos a todos com um olhar profundo e scintillante. Havia
o que quer que era de feroz e sinistro nos primeiros lampejos d'aquella
vista penetrante. Depois amorteceu-se. Em seguida as lagrimas
rebentaram-lhe por entre as palpebras, a ferocidade diluiu-se-lhe
n'aquelle imperceptivel chôro, e momentos mais tarde havia um olhar de
mansidão e de ternura a expandir-se, com uma meiguice extraordinaria,
por sobre nós.

Desapparecera o carrasco. Estava o homem.

«Metto-vos mêdo? Faz-vos pavor a minha presença? Não ha razão nem motivo
para tanto. De mim sei dizer e posso assegurar que estou livre de odios
e de ruins paixões contra quem quer que seja. Tenho no meu coração um
thesouro inesgotavel de perdões--ainda mesmo para aquelles que me
acarretaram os infortunios da minha vida.»

Continuava o silencio.

Luiz Negro proseguiu:

«Sou christão. Aprendi, portanto, a perdoar nas lições do Divino Mestre.
Elle--que levantou a dignidade do homem com o seu proprio martyrio.

«Quebrou as algemas da escravidão do mundo antigo para implantar, na
terra, a liberdade, a igualdade e a fraternidade--trindade augusta
d'esta religião d'amor.

«Ao visconde hei de eu contar largamente a minha vida. Hei de dar-lhe a
narração escripta do triste fado da minha existencia. Quem, como eu, só
espera do sepulchro--da valla, direi melhor--o silencio e o repouso, não
pretende nem quer illudir ninguem.

«Retiro-me. Sinto-me aqui de mais. Apavora a minha presença com o
sinistro nome que me deram.»

Devo dizel-o: estenderam-se-lhe todas as mãos. Nem uma só houve, que se
esquivasse a este signal de pura cordialidade com que os homens se
buscam e apreciam.

Ao cerrar da porta, ouvi que me dizia: «Até ámanhã.»

Este «ámanhã» seria a sua historia.

Ao passo que o carrasco descia os setenta e sete degraus, que conduziam
á minha jaula, fiquei eu isolado e silencioso no meio dos meus amigos.

Perguntava a mim mesmo o que tinha ganho a sociedade, nas suas cruezas e
ferocidades, ainda depois da inquisição.

Havia ao menos--alli--a logica brutal das feras, havia os instinctos
felinos d'aquelle tribunal catholico. E nós a recebel-os e a
apertar-lhes a mão--aos successores, e filhos dilectos d'estas infamias!
E nem sentimos as chispas de fogo, as gotas de sangue, os gemidos de
tantas victimas!

Muito podia e muito póde a reacção!

Diga-o Pelletan.

A inquisição não tinha só jurisdicção sobre a vida humana: não lhe
escapava a propria morte. Assim como a hyena na ferocidade dos
instinctos levantava, cavando, a terra dos cemiterios, assim ella, a
inquisição, desenterrava os ossos dos suspeitos posthumos, escavava, nas
vallas, a podridão dos cadaveres dos impios, fabricava, com esqueletos,
heresiarchas e herejes, interrogava gravemente os espectros,
queimava-lhes os detrictos, e as cinzas arremeçava-lh'as ao vento.

Fica entendido, que os bens--pelo confisco--não os entregava aos herdeiros.

E com todo este apparato affectava ares e modos de suprema beatitude.

Havia cheiro de santidade em todo o seu procedimento.

Começava por si. Chamava-se a santa fé. Era a prisão a santa casa, o seu
tribunal o santo officio, a sua policia a santa irmandade, o sambenito a
sua libré, e para mostrar que em tudo seguia a phrase evangelica,
proferia palavras d'uma mansidão ineffavel. Quando estorcia e quebrava
os membros da victima, do paciente pela tortura, chamava a este hediondo
facto: interrogar com bondade--_benigniter_. Ao condemnar á fogueira,
acrescentava logo com doçura evangelical, que applicava a pena mais
suave: _poena clementissima_. Ao inscrever a sentença de morte, no seu
registro funerario, designava o compendio d'estes horriveis morticinios,
pelo nome de livro de vida: _liber vitae_. Se entregava o padecente ao
carrasco, em vocabulo tão amoravel que parecia absolvição, dizia que o
relaxava: _relaxare_; e, quando, finalmente, o condemnado ia a caminho
do supplicio escrevia, com letras d'ouro, na sua seraphica bandeira, a
palavra _misericordia_!

A inquisição era dôce, suave e meiga na fórma, como o são todas as
medonhas infamias e todas as fundas hipocrisias.

Conta-se do crocodilo, que imita, nos juncaes, os gemidos infantis da
criança que se afoga, para arrastar os corações generosos a acudir-lhes
e devoral-os.

No baixo imperio, quando as sociedades se estorciam, nas mais baixas e
degradantes vasas de cynismo, de hediondez e d'abjecção, a polidez das
fórmas era inimitavel e soberanamente cortez. Custava a conter na
memoria as classificações, tão adjectivadas, dos mais ignobeis e
crapulosos misteres palacianos. Rezavam as chronicas, estatuiam
diariamente os rescriptos dos principes, determinavam os decretos
imperiaes as designações de illustrissimos e eminentissimos
senhores--applicadas e votadas estas grandezas--se grandezas ha, n'esta
torpe nomenclatura--á escoria dos eunuchos e dos devassos das aulas regias.

Todos estes vocabulos iam envoltos na podridão e na torpeza da mais vil
malvadez, e no lôdo aviltante, e vasa immunda e mephytica dos escravos,
levantados, sem crenças e sem fé.

Vieram depois os barbaros.

Vieram bem.

Sahirão agora do quarto estado?

Talvez.

A raça latina carece d'uma nova transformação.

D'onde virá?

Aviltada, corroida, podre e corrupta em França, na Italia e em Portugal,
olha a medo para a Hespanha. Estremece de susto e pavor ao encarar os
delirios d'um povo que parece barbaro, e que faz esforços sobrehumanos,
para se regenerar e tomar assento nas ágapes das civilisações, modernas.

Poderá concluir e completar esta transformação?

Não posso nem quero crêr na aniquilação dos povos da familia latina.

Nós somos a expressão mais perfeita da raça indo-europêa.

Assim como, em 1789, a nobreza devassa, leviana e egoista preparou o
engrandecimento da burguezia, assim, tambem, os gravissimos e repetidos
echos d'esta classe estão apressando e dando vida ao futuro
indestructivel do quarto estado--á regeneração da nossa raça pelo povo.

Seria longo estudar, aqui, as numerosas causas da decadencia e da fatal
destruição, que vão gangrenando, sem elixir reparador, a nobreza, o
clero e a classe media.

Um dia o povo escreverá a historia de todas estas podridões.

      *      *      *      *      *

Os meus amigos sahiram pouco depois do carrasco.

Esperei ancioso pelo dia seguinte.

Na solidão da cadeia, entregue por tão longas horas da tarde e da noite
ao silencio e á reclusão, ignorando a sorte que me esperava, e os planos
que forjaram os meus inimigos, buscava todas as distracções, que o acaso
ou a sorte me depararam, para sahir do torpôr moral e da tristeza
profunda que me ia n'alma.

As horas corriam tão lentas e vagarosas, que me aconteceu, por vezes,
esperar, com prazer, os momentos em que os guardas vinham, no silencio
da noite, correr-me os ferros da minha janella, para se confirmarem e
terem a certeza de que eu não tentava fugir. Sorria-me sempre a este
acto nocturno e solemne da minha vida de prisioneiro d'estado.

                                                   VISCONDE DE OUGUELLA.



O DESASTROSO FIM DE DAMIÃO DE GOES


Não era boa pessoa. Tinha talento, fazia chronicas de reis, escrevia em
variados assumptos; mas era mordacissimo, deslinguado, e desluzia as
gerações dos seus inimigos com a injustiça propria da sua malquerença.

D. Antonio de Athayde, conde da Castanheira, e valido de D. João III,
foi um dos fidalgos mais aggravados.

Uma satyra appareceu na côrte por aquelle tempo, precisamente no anno
1554. Um homem vestido de frade a entregou pessoalmente ao rei.

Diogo de Paiva de Andrade (_Memorias ineditas_) refere assim o caso:

_Um frade capucho, ou, como tambem se disse, pessoa que vestiu aquelle
habito, procurou com grande empenho fallar a D. João III, que estava no
paço da Ribeira, em occasião que se recolhia a dormir a sesta; e, pelo
esforço que fazia em se lhe dar recado, se deu parte a el-rei; o qual
mandou entrar o frade. Este se queixou extraordinariamente de um regulo
que havia na sua terra, pedindo a sua alteza desaggravasse o opprimido
povo; e, acabando de fallar, se retirou, entregando-lhe um papel. Abriu
el-rei o papel; e, vendo que era uma satyra contra o conde da
Castanheira, D. Antonio de Athayde, ordenou logo fossem em busca do
frade; e, por maiores diligencias que se fizeram, não foi possivel
encontral-o. Este papel guardou el-rei na sua guarda-roupa, d'onde o
pôde haver Damião de Goes que, copiando-o, o deixou junto a um
nobiliario, que tinha escripto das familias d'este reino, e d'aqui teve
origem, sem fundamento, a seita puritana; porque, depois de descompôr o
conde na figura e nos costumes, o infamou na familia, nas seguintes
quadras:_

    _Mestre João sacerdote,
    de Barcellos natural,
    houve de uma moura tal
    um filho de boa sorte._

    _Pero Esteves se chamou;
    honradamente vivia;
    por amores se casou
    com uma formosa judia._

    _D'este (pois nada se esconde)
    nasceu Maria Pinheira,
    mãi da mãi d'aquelle conde
    que é conde da Castanheira._

Em outro lanço das _Memorias_, Diogo de Paiva, reportando-se novamente a
este caso que estrondeou n'aquella época, acrescenta:

_Damião de Goes, bem conhecido n'este reino por seus escriptos, foi
grande inimigo de D. Antonio de Athayde, 1.º conde da Castanheira, e
valido de D. João III; porque apparecendo em palacio a celebre satyra
contra o mesmo conde, que deu causa á murmuração de Maria Pinheira,
Damião de Goes a ajuntou a um nobiliario que tinha escripto;--sabendo-o
o conde, o esperou na rua Nova de Lisboa uma noite, e lhe deu com um
pau. Augmentou-se de parte a parte a inimizade; e, achando-se D. Antonio
de Athayde na casa da India uma manhã, como vedor da fazenda, e Damião
de Goes como feitor de Flandres, que havia occupado, ahi se travaram de
razões, e o conde lhe deu com umas luvas na cara._

A satyra, que D. João III releu muitissimas vezes, e outras tantas
fechou no contador dos seus papeis particularissimos, devia de ser
acerba para o vingativo conde, e mortalmente funesta para Damião de Goes.

O leitor, sem duvida, deseja vêl-a, porque, se a não viu manuscripta,
com certeza a não encontrou ainda impressa. As tres quadras trasladadas
por Diogo de Paiva são as unicas apenas conhecidas dos leitores de
genealogias; mas o mordaz poema comprehende sessenta e quatro quadras.

Por não empecer á curiosidade, dou primeiro o traslado da satyra; hão de
vêr depois outras cousas importantissimas no caso.


TROVAS

QUE SE MANDARAM DAR A EL-REI D. JOÃO III POR UM FRADE DE SANTO ANTONIO,
DOUS ANNOS ANTES DA SUA MORTE, E AS TINHA NA SUA GAVETA, E AS LIA
ALGUMAS VEZES, E AS MANDOU QUEIMAR POR MANOEL DE S. THIAGO NO DIA QUE
VEIO DA MISERICORDIA, TRES DIAS ANTES DO SEU FALLECIMENTO QUE FOI A 22
DE JUNHO DO ANNO DE CHRISTO DE 1557.

    1

    Deus sabe que esconder
    a minha tenção não posso;
    e, por seu serviço e vosso,
    digo quanto aqui disser.

    2

    Se sobre isto o dessirvo,
    com a clemencia que sóhe,
    como a vassallo e captivo,
    que o ama, me perdoe.

    3

    Um poeta dos latinos
    a um seu amigo escrevia:
    «Já agora a terra cria
    homens maus e pequeninos.!»

    4

    Como que, com a idade
    tudo cança e nos esquece,
    afóra só a maldade,
    que esta sempre prevalece.

    5

    Homens bons de muito ser
    n'esta terra haver sohia;
    ainda os ha; mais haveria,
    se os deixassem viver.

    6

    Os que mettem pelos portos
    mercadorias defezas,
    com que os mortos são mortos
    e os vivos são suas prezas,

    7

    Esses no reino metteram
    mentiras e judiarias,
    baixezas e hypocrisias
    que toda esta terra encheram.

    8

    E tanto quê, mór valia
    tem já isto em Portugal
    que droga, cravo e tincal,
    nobreza e cavallaria.

    9

    Mas de um, que tudo pende[1],
    vos direi, senhor, um pouco,
    em que me tenhaes por louco;
    que Deus calar me defende.

    10

    Pois dá brado sem cessar--
    diz Izaias--e canta;
    como trombeta, levanta
    tua voz sem descançar.

    11

    E elle, que tudo é, tudo
    nos salva pela tenção!
    Vêr eu tanta perdição
    me faz fallar, sendo mudo.

    12

    E eu, com esta ousadia,
    o direi, porém com febre,
    que em sua physionomia
    vereis melhor que tem lebre.

    13

    Convenho no que se diz:
    Dês que o mundo se criou,
    aquelle a quem Deus bem quiz
    no rosto lh'o amostrou.

    14

    Após isto, no cabello,
    na sombra tão infernal;
    de estopa de ruim pello
    nunca se fez bom sayal.

    15

    As sobrancelhas hirsutas
    maiores que abebedouro,
    no meio da testa justas,
    signal é de mau agouro.

    16

    Olheiras por meio rosto,
    olhos tristes, embaciados,
    risinhos falsos, sem gosto,
    pensamentos esfaimados.

    17

    Esfaimados de cobiça,
    de soberba e de inveja,
    de quantos males atiça
    quem todo o mundo deseja.

    18

    Esfaimado de suspeitas,
    enganos e falsidades,
    e palavras contrafeitas
    onde nunca entrou verdade.

    19

    Esfaimado por lançar
    o reino e terra a perder,
    o preço, a honra, e o ser
    dos que são para estimar.

    20

    Esfaimado e esfaimado
    por acabar de roubar
    honra, fazenda e estado
    de quem isto lhe foi dar.

    21

    Ente do seu parecer,
    nas obras do tanta perda,
    parentesco deve ter
    co' ladrão da mão esquerda.

    22

    É um sem fundo, adverso
    da direita e do envez,
    em ser ruim e perverso
    da cabeça até aos pés.

    23

    Do qual ousei affirmar,
    a um seu (ninguem se espante)
    pardelhos e calcanhar
    são mores que por diante.

    24

    São de ladrão calcanhares,
    dizem todos a uma voz,
    faz com ratos nos altares
    mais lavoura que na foz.

    25

    Té quando, pois, durará,
    Senhor, tão cruel engano,
    sortido em tanto damno,
    trinta e tres annos ha!

    26

    Ponhamos em termos isto,
    vejamos quem tem razão,
    seja juiz Jesus Christo
    em quem não ha suspeição.

    27

    Vossa alteza que achou
    n'este homem feito empelado,
    que assim se apoderou
    de si e do seu estado?

    28

    Entregues á sua vontade
    d'onde dependem as leis,
    tudo podem dar os reis,
    salvo sua liberdade.

    29

    Este, tudo tem de vós,
    com que se fez soberano,
    ingrato, cruel tyranno,
    a Deus, a vós e a nós.

    30

    Este, a mais sobre todos,
    este credes desde a...[2]
    este tem comvosco os modos
    de D. Alvaro de Luna.

    31

    Senhor, que engano é este?
    como não fugis d'este homem
    de que tantos outros morrem
    por ser o seu mal de peste?

    32

    Que só dous, tres dias, dura
    qualquer outro em vossa graça,
    logo de vós a rechaça
    sua levação[3] sem cura.

    33

    Não podem ser todos maus;
    elle só é virtuoso,
    sendo, á fé, falso raposo
    todo cheio de _desvaus_(?).

    34

    Faz quanto se lhe antoja;
    e diz, quando adoece:
    «Quem me visita, me enoja,
    Quem o não faz me aborrece.»

    35

    Olhai lá pelo virote!
    Amaes-lhe os cabellinhos?
    Criai-lhe bem os filhinhos,
    governai por este norte.

    36

    Em qualquer outra pessoa
    passára isto por graça;
    que quem não tem cousa sua,
    ponha os seus bofes na praça.

    37

    Malditos sejam os pais
    que geraram tão má cousa,
    de que todos dão mil ais,
    e nenhum fallar não ousa!

    38

    Por terem reconhecido
    ser de vós apoderado,
    como Deus é adorado,
    como o diabo é temido.

    39

    Dai ao demo este diabo,
    dai este diabo ao demo!
    Não é bom, não vol-o gabo,
    de governalho e de remo.

    40

    Não se lhe sabe virtude,
    não viu leão nem pelejou,
    nem mortos resuscitou,
    dos vivos tolhe a saude.

    41

    Pois que milagres são estes,
    que siso, que discrição,
    pois que assim lhe concedestes
    o da vossa jurisdicção?

    42

    Se elle fôra sisudo
    e discreto em seus modos,
    não governára elle tudo,
    e mais com dolo de todos.

    43

    É da gloriosa lei,
    que a todos nós ensina,
    imigo, e de Deus e Rei
    ante quem todos malsina.

    44

    Se vos tem amor ou não,
    não é texto de Hipocrás;
    as obras vol-o dirão,
    não cureis dos seus _salás_[4]

    45

    que são figuras, e basta,
    villãs reverenciaduras
    com que vos caçou e arrasta
    por nossas desaventuras.

    46

    Que o criado verdadeiro
    que tem verdadeiro amor,
    mais que o seu, e primeiro,
    sente o mal de seu senhor.

    47

    Nos conselhos, vossa alteza
    em elle sómente crê;
    sendo tudo na grandeza
    da perdição que se vê.

    48

    Por seu conselho casou
    a princeza em Castella[5];
    vêde como Deus livrou
    este vosso reino d'ella.

    49

    Por seu conselho deixastes
    quatro lugares aos mouros[6];
    verdade é que poupastes
    com isso grandes thesouros.

    50

    Mas por seu procurador
    poz Deus boas contraditas,
    que não fizessem mesquitas
    nos templos do Salvador.

    51

    Ao duque poz suspeição;
    que sempre em tudo procede
    por ser parente d'Abrahão
    e tambem de Mafamede.

    52

    Que como homem antigo
    parece que lhe sabia
    a sua genealogia,
    que é esta que aqui digo:

    53

    Mestre João sacerdote,
    de Barcellos natural,
    houve de uma moura tal
    um filho de boa sorte.

    54

    Pero Esteves se chamou,
    honradamente vivia,
    por amores se casou
    com uma formosa judia.

    55

    D'este (pois nada se esconde)
    nasceu Maria Pinheira,
    mãi da mãi d'aquelle conde,
    e sua avó verdadeira[7].

    56

    Vêde se era bem provada
    esta sua suspeição;
    mas não aproveita já nada
    onde sobeja a affeição.

    57

    E com juiz tão suspeito,
    mal inclinado, teimoso,
    desalmado, cubiçoso,
    todos perdem seu direito.

    58

    Farto trabalho receio
    lhe faz tal sentença dar:
    christão e sisudo meio
    para o meu aproveitar.

    59

    Antepor a Deus fazenda
    receio, e maior trabalho;
    nunca já será atalho
    mas rodeio sem emenda.

    60

    Veja isto vossa alteza
    nas cousas que tal causaram,
    pois que todas se dobraram
    e muito mais a pobreza

    61

    E como, para poupar
    gastos, se faz a tal obra,
    Ai! da nação que sossobra,
    e dobra-se o individar.

    62

    Em os taes conselhos vãos
    verá o mais a que veio;
    nascerão mil de um receio
    de mouros aos bons christãos.

    63

    O trabalho era d'além
    em meritoria guerra;
    agora, a além e áquem,
    em todo o mar e na terra.

    64

    Vós, senhor, não tenhaes
    pouca culpa n'este feito;
    peço-vos tudo gemaes
    sempre dentro em vosso peito.

O author da satyra era o proprio Damião de Goes, que ajuntára a copia ao
seu nobiliario; e o portador d'ella a D. João III fôra um familiar do
conde da Portella, inimigo do conde da Castanheira. Assim m'o assevera o
padre D. Manoel Caetano de Sousa, aquelle doutissimo theatino, cujas 289
obras em varias linguas catalogou o conde da Ericeira, no livro
intitulado _Bibliotheca Sousana_[8].

Entre os manuscriptos que tenho do insigne academico está a satyra
copiada com mais razoavel orthographia da que Damião de Goes interpozera
na genealogia do conde da Castanheira.

_Formosa_, lhe chama elle. A mim me não quiz parecer cousa para mediana
admiração. A escóla de Sá de Miranda não póde gabar-se de mui notavel
alumno no engenho de Damião de Goes; todavia, mais como documento
historico, e pouquissimo como modelo de poesia, a considero dignissima
da publicidade.

O esclarecido possuidor da satyra invectiva contra Damião de Goes
alcunhando-o de detrahidor de alheios creditos. Eis a textual
exprobração do clerigo:


_Tudo isto continha aquella formosa satyra de que se não sabem mais que
as coplas 53, 54 e 55, as quaes malicia e inveja encommendaram mais á
memoria por encerrarem em si falta que se transfunde na posteridade
quando não é tão falsamente imposta como n'este caso. Cheias andam as
Memorias dos genealogicos de argumentos que convencem de falta aquella
impostura; aos quaes eu só acrescento que não quero maior prova de sua
falsidade do que vêr aquellas coplas, entre tantas tão maledicas, que
dizem de um só homem, e tão grande como aquelle conde foi, tantos
defeitos que não cabem em tantos homens vis e facinorosos; e vêr que nas
coplas 9, 10 e 11, quer o author com pouco respeito ás divinas
escripturas attribuir a impulsos do Espirito Divino os que só são
effeitos do espirito maligno que sem duvida levaria comsigo ao inferno o
author das coplas, se elle antes de morrer se não desdissesse como se
affirma que desdisse. E Deus que é summamente justo quer que aquelle
mesmo conde, cuja descendencia, n'esta satyra, se emprehendeu infamar,
tivesse uma mui esclarecida descendencia, cheia de varões insignes em
santidade, letras, armas, dignidades ecclesiasticas e seculares as
maiores que se podem conseguir em Portugal, como sabem os que tem menos
que mediana noticia das familias d'este reino, na qual sempre os mais
sisudos tiveram estas coplas por falsidade_[9].

Damião de Goes, em favores ou desfavores genealogicos, não era
extremamente consciencioso. Quando recolheu das suas illustradas
viagens, procurou Antonio Carneiro, secretario de estado d'el-rei D.
João III, e entregou-lhe um papel em que demonstrava que a sua familia
d'elle secretario descendia do duque de _Mouton_, de França, que
aportuguezado dizia «Carneiro». O ministro sorriu-se de zombaria á
destampada lisonja, lançou o papel, sem o abrir, ao brazido de uma
chaminé, e disse a Damião de Goes:--«Contento-me com que os meus
descendentes contem como progenitora a honra com que procuro viver sendo
util ao rei e á patria.»

Antonio Carneiro bem sabia que não procedia dos _Moutons_. Era natural
do Porto, e de familia honrada. Foi a Lisboa por dependencia que tinha
de Pedro Fernandes de Alcaçova, escrivão da fazenda d'el-rei D. João II.
Pedro Fernandes tanto se lhe affeiçoou que, além do prompto despacho, o
convidou a ficar na côrte, empregando-o no expediente do seu officio.
Como Antonio Carneiro fosse o encarregado de levar a despacho real o
sacco dos papeis, n'estas idas ao paço, deu trela ao coração, e
requestou D. Brites de Alcaçova, filha do seu protector, e dama da
rainha. Casou-se com ella a furto; mas, publicado o delicto, foram ambos
degredados para a ilha do Principe. Decorridos annos, as reiteradas
supplicas da desterrada commiseraram o coração do pai. Veio Antonio
Carneiro para o reino com sua mulher, e logo se habilitou para
secretario do despacho universal de D. Manoel, revelando-se politico
sagacissimo. Semelhantes honras lhe concedeu D. João III, e com ellas o
senhorio da ilha do Principe, onde havia gemido degredado e pobre.
Morreu aos 86 annos de idade, deixando larga descendencia.

Se leram _Damião de Goes, e a Inquirição de Portugal_, estudo
biographico de Lopes de Mendonça, ou sequer a summariada noticia que
escreveu o snr. Innocencio Francisco da Silva, sabem que o adversario do
conde da Castanheira, denunciado pelo padre Simão Rodrigues, foi preso
como lutherano nos carceres da inquisição, d'onde o mandaram
penitenciar-se em reclusão austera no mosteiro da Batalha.

Concluido o prazo da expiação, quando já orçava pelos setenta annos,
transferiu-se a sua casa.

Um dia--diz o snr. Innocencio, atido ao testemunho de memorias
contemporaneas--o velho chronista d'el-rei D. Manoel foi encontrado
morto, _quer de accidente apopletico, quer assassinado por domesticos ou
estranhos_.

D. Manoel Caetano de Sousa refere que a maledicencia heraldica de Damião
de Goes não despontára com a velhice, antes se afiára mais na pedra do
rancor aos que elle suspeitava seus inimigos. O segundo conde da
Castanheira, desforrando-se dos velhos e renovados ultrajes a Maria
Pinheira, mandou criados seus moêrem com saccos de arêa o ancião no
pateo de sua mesma casa; e de modo se houveram, que Damião de Goes
apenas teve forças que o arrastassem á cama, onde se desprendeu da vida,
e mormente da lingua que tantos trabalhos lhe custára.

Esta relação do theatino Sousa encontrei eu confirmada em um Nobiliario
de Pinheiros, que pertence ao meu joven e illustrado amigo Vicente
Pinheiro de Mello e Almada, filho do primeiro visconde de Pindella, e
tambem descendente de D. Maria Pinheira.

Concluo rogando aos barões do meu conhecimento que me não façam moêr com
saccos de arêa, se eu alguma vez lhes lembrar a tripeça dos avós. Eu
lhes asseguro que, em suppostos casos, levo mais em vista nobilital-os
que envilecêl-os pelo honrado trabalho de seus avoengos. Ainda assim,
não está no meu animo--diga-se verdade--comparar ss. exc.as aos condes
da Castanheira, nem confrontar-me a mim com Damião de Goes. Todos nós
somos mais ou menos sapateiros nos baronatos e nas sciencias.

    [1] Principia a desancar o valído.

    [2] Palavra inintelligivel.

    [3] Tumor.

    [4] Zumbaias.

    [5] D. Isabel. Casou com o imperador Carlos V, em 1525.

    [6] Safi e Azamor foram abandonadas á mourisma em 1524. Em seguida,
    perdemos Arzilla.

    [7] _Que é conde da Castanheira_, variante de Diogo de Paiva.

    [8] D. Manoel Caetano de Sousa nasceu em 1658, e falleceu em 1734.

    [9] A casa da Castanheira passou ao segundo marquez de Cascaes por
    herança de sua prima D. Anna d'Athayde, ultima condessa da
    Castanheira, fallecida no meiado do seculo XVII. Na casa de Cascaes
    succedeu a de Niza. E em ambas succederam o defunto snr. José Maria
    Eugenio e outros que medraram quando a casca do mundo antigo se poz
    do envez, e as heras absorveram a seiva dos troncos.



A MENINA PERDIDA


Em novembro de 1873 chegou a Braga uma senhora, que as suas criadas
negras e o seu escudeiro inglez chamavam baroneza.

Vi-a no _Hotel dos dous amigos_. Figurava trinta annos, ou pouco mais.
Feições fortes, duras; mas bonitas d'esta belleza rija das camponezas da
Maia. Garbosa sem delicadeza nem a flexura da casta flebil e fina.
Mulher a valer. Era o ideal de um morgado de Cabeceiras de Basto, que
vestisse o seu ideal com os musculos e feitios da mulher menos
corpulenta que a femea do elephante.

Entendi-me com o escudeiro inglez, ácerca de sua ama.

Viera do Brazil em agosto d'aquelle anno. Era viuva do barão de...
Ipiranga--supponha-se que era de Ipiranga; mas não era. Quanto mais
verdadeiros são os contos, mais forçosa e urbana é a mentira.

--É portugueza ou brazileira?--perguntei ao inglez.

--É portugueza.

--Que faz em Braga esta senhora? veio vêr o Bom-Jesus do Monte?

--Não, senhor. Anda a procurar a mãi; disse-m'o a sua criada grave.

--A procurar a mãi em Braga?! Como foi isso? Perdeu-se aqui a mãi, ou...

--Não sei como foi--volveu o escudeiro.

N'este comenos, entrou no hotel um meu amigo, que foi conduzido á sala,
onde a baroneza tocava piano melancolicamente. Deteve-se algum tempo.
Esperei-o, e perguntei-lhe que romance era aquella mulher.

--Um romance, com toda a certeza.

--É certo que esta baroneza procura a mãi?

--É, e encontrou-a.

--Então...--acudi eu tão incommodado com a escuridade d'aquelle caso
como se me faltassem ao respeito, não m'o communicando previamente e em
quatro palavras.--Então como é isso? A mãi quem é? onde estava a mãi?
como se perdeu a mãi? como se encontrou a mãi?...

--Se a tua impaciencia consente, conversaremos de espaço--objectou o meu
amigo;--mas peço á tua sofrega curiosidade que se contenha até á noite.
Vou d'aqui ao recolhimento da Tamanca procurar um velha chamada Anna de
Jesus, que é mãi d'esta baroneza. Já sabes quem é a mãi, onde está a
mãi, como se encontrou a mãi. Depois te direi como se perdeu...

--A dita mãi? Pois até logo. Confio em ti.

      *      *      *      *      *

Reduz-se a poucas linhas tudo que o sujeito me disse. A baroneza nascera
em uma aldeia, visinha do Porto, á beira-mar, chamada Nevogilde. Seu pai
era official-calafate; sua mãi era filha de um agricultor remediado. Os
paes amaram-se, e propagaram _extra-matrimonium_, como diz o snr.
professor e historiador Viale, quando dá noticia dos filhos bastardos
dos reis. O artista safou-se para o Brazil. A menina ficou com sua mãi,
que a teve comsigo até aos quatro annos, vestindo-a e alimentando-a com
aceio e abundancia, em quanto lhe durou o producto de uns grossos
cordões de ouro, que herdára d'uma parenta. Seus paes expulsaram-na de
casa, e obrigaram-na a esconder-se com o escandalo da filha em outra
aldeia proxima de Leça.

Quando se lhe exhauriram os recursos, Anna de Jesus foi servir para o
Porto, deixando Amelia aos cuidados de uma gente pobre, a quem entregava
mensalmente os seus salarios; porém, como não bastassem á alimentação da
filha, resolveu entregal-a aos parentes do pai, que eram proprietarios
em Mathosinhos.

Isto dizia a baroneza que lh'o referira o marido; mas não sabia contar
como a levaram de Leça para o Pará, quando tinha seis annos. Lembrava-se
de ter sido apertada nos braços de um homem, que fôra a bordo, e lhe
chamára filha; que esse homem a levára para um collegio allemão, d'onde
nunca mais sahira, senão aos dezoito annos para casar com um negociante
rico, pardo e velho, que, ao depois, se fez barão.

Acrescentava que via seu pai no dia 1 de cada mez e que nunca lhe
perguntára por sua mãi. E, por lh'o referir o marido, soubera que seu
pai a não levava a casa, porque era marido de uma riquissima mulata,
velha e doente, de quem esperava herdar tudo, a não intervir entre elles
algum caso que irritasse o genio ferocissimo da esposa. Mais dizia a
baroneza que a mulata acabou os seus dias antes de acabar a paciencia do
marido, e o instituira herdeiro; mas, como lhe tinha empeçonhado o
sangue, pouco lhe sobrevivera o viuvo. D'onde resultou ficar Amelia
opulenta herdeira, sob a tutela do paraense que a fez sua mulher.
Concluiu, finalmente, a baroneza, mostrando ao meu amigo de Braga dous
numeros do _Periodico dos Pobres_, do Porto, de agosto de 1845, os quaes
ella encontrára nas gavetas de seu pai, e d'onde inferira o pouco que
sabia do seu nascimento, e se lhe afervorára o filial desejo de procurar
sua mãi, e afortunar-lhe os ultimos annos, se ella, por ventura de
ambas, existisse.

Mostrou-me o meu amigo os dous numeros do _Periodico dos Pobres_, que
diziam assim:


«MENINA PERDIDA.--No dia 31 de julho pelas 8 horas da noite appareceu
batendo a uma porta na rua de Sant'Anna, freguesia de Mathosinhos, uma
linda menina, de idade de 4 annos, branca, bem nutrida, cabello louro
liso, com uma trança de perto de um palmo, olhos grandes azues, vestido
curto de cassa riscada de vermelho, guarnecido de trancelim; calça de
paninho branco com dous entremeios de renda; saia de paninho, e outra de
baeta de algodão; collete de atacador de linho; chapéo de papelão
coberto de sêda verde; sapatos de duraque cinzento acoturnados com
botões ao lado, meia comprida de linha, ligas de fitas de nastro cosidas
nas meias;--diz chamar-se _Amelia_, e que a mãi se chamava _Anninhas_, a
qual vivia com um _snr. Antonio_. Esta criança foi vista ás 6 horas da
tarde na estrada de Mathosinhos na companhia d'uma mulher de mantilha e
vestida de preto, e um individuo de pouca idade vestido de calça e
jaqueta azul e boné.

«Estes individuos haviam convidado uma mulher para levar a criança ao
collo até Mathosinhos; como elles fossem ficando muito para traz, dando
a entender desejarem livrar-se da criança, a mulher desconfiou d'alguma
cilada, e os obrigou a tomarem conta da criança. Convidaram então um
rapaz a quem prometteram 50 reis, o qual a levou ao collo, até que,
vendo-se de repente abandonado dos ditos individuos, a deixou no lugar
indicado e fugiu. A criança diz que a sua casa é perto do rio; que
continuadamente via barcos; que ia aos banhos com a mãi; que fugia para
a ponte do rio; e que o snr. Antonio ralhava; que brincava com outra
menina que morava no andar de baixo, chamada Julia, a qual tinha bonecos
para brincar, etc. Suppõe-se que tinha sido furtada a seus paes, ou por
elles abandonada, e por isso se publica este facto para conhecimento de
quem pertencer; a criança está em poder do actual administrador do
concelho de Bouças em Mathosinhos.»


Até aqui o numero de 3 de agosto. Segue o numero de 6:


«No dia immediato áquelle em que a menina foi encontrada, achou-se atraz
da parede n'um campo uma trouxa de roupa de criança, e uma carta; foi
tudo apresentado ao administrador do concelho, que pelo seu conteúdo
descobriu a historia d'aquelle acontecimento, os nomes dos paes e
parentes, etc. Era remettida pela mãi aos parentes do pai, por este se
achar ausente no Brazil, e pela falta de meios que ella tem para se
sustentar, acrescendo achar-se enferma. Parece que os parentes a não
quizeram receber, e que o rapaz que a conduzia, voltando ao lugar da
estrada de Mathosinhos d'onde havia deixado os individuos que lh'a
haviam entregado, não os encontrou, e, temendo comprometter-se, a lançou
n'um campo com a trouxa e fugiu.

«O administrador do concelho obrigou a familia do pai, residente em
Leça, a tomar conta d'ella, o que teve lugar no dia 3 do corrente á
noite, em quanto se não descobre onde pára a mãi para se verificar até
que ponto sejam verdadeiros os factos de que se faz menção n'aquella
carta. Varias pessoas teem querido tomar conta da menina; porém isto não
tem podido ter lugar em vista do que fica exposto, e porque os parentes
do pai estão em circumstancias de podêl-a sustentar.

«Consta ultimamente que a mãi fôra para Braga, chama-se _Anna de Jesus
Lima_, tem sido criada de servir em algumas casas d'esta cidade.»

Na margem do jornal, onde está escripto: «diz chamar-se _Amelia_, e que
a mãi se chamava _Anninhas_, a qual vivia com um snr. _Antonio_»--o pai
da baroneza, sublinhando o nome appellativo _Antonio_, escrevera umas
palavras que estavam cancelladas e inintelligiveis. O mesmo succedia
mais abaixo, no ponto em que se diz: «que fugia para a ponte do rio, e
que o snr. _Antonio_ ralhava.» Parece que este «Antonio», commentado á
margem, explicava o silencio do marido da mulata a respeito da mãi de
Amelia. Eu não sei nada positivo a tal respeito, nem formei ainda
opinião com que possa alumiar a vereda de ulteriores pesquizas.

      *      *      *      *      *

O que sei é que no recolhimento da Tamanca existia, desde 1855, Anna de
Jesus, como criada de uma velha fidalga que para alli entrára em 1834,
obrigada pela moral que a condemnára a expiar na clausura uns amores de
gran vilta para seus avós. Sei mais que Anna de Jesus sahiu do convento
sem verdadeiramente saber a razão porque sahia, pois lhe disseram que ia
tratar com os seus parentes a restituição da legitima que lhe haviam
extorquido. Que foi recebida no quarto da baroneza para quem olhou com
respeitoso assombro vendo-a coberta de velludo e pelliças de varios
feitios. E que, ao vêr-se abraçada por aquella senhora, rodeada de
pretas, e lhe ouvira pronunciar a palavra _mãi_, perdera os sentidos, e
os recobrára, dizendo extravagancias. Finalmente, como a felicidade não
faz endoudecer ninguem--para se não parecer com a desgraça--Anna de
Jesus, remoçada, alegre até ás lagrimas, e a cuidar sempre que a sua
vida era um sonho, foi para o Pará com sua filha, tão angelica, tão
santa que lhe perdoou o desamparal-a do seu amor de mãi, por onde lhe
adveio o acaso mais amparador da riqueza, que somma 1:000 contos, 500 da
mulata do pai, e 500 do marido mulato.

E mais nada.



O HEROE DA ILHA TERCEIRA


Cypriano, Ciprião ou Scipião. O leitor conhece o valente governador da
ilha Terceira, o portuguez intransigente com Castella, o partidario
inflexivel de D. Antonio, prior do Crato, que reinou uma hora em
Santarem, outra hora em Setubal, a derradeira hora entre a plebe de
Lisboa. Onde elle reinou deveras foi no coração e na consciencia dos
seus raros amigos.

Os historiadores portuguezes chamam _Cypriano_ ao heroe dos Açores; os
francezes chamam-lhe _Scipião_, nobilitando-o, por analogia do nome e
dos feitos, com o general romano. Nas Provas da Historia genealogica da
casa real leio _Ciprião_. Elle mesmo a si se chamava _Scipião_, para não
desfazer no glorioso nome que Henrique IV lhe dava, e Philippe II
tambem, como ironia ou como lisonja[10].

Procedia de estirpe illustre, não tanto como diz uma neta de seu irmão
Sebastião Gomes de Figueiredo. Esta neta é mad. Gillot de Sainctonge,
que, em 1696, publicou a _Histoire secrete de Dom Antoine Roy de
Portugal, tirée des memoires de Dom Gomes Vasconcellos de Figueiredo_.
Engrandece a poetiza franceza a prosapia de sua mãi com a costumada
ignorancia dos francezes quando entendem comnosco. Diz que _Jean, fils
de Pierre, le Justicier, roy de Portugal, épousa Marie fille de Martin
Alfonse Tello, & d'Aldonze de Vasconcellos soeur de la reine Eleonor,
femme de Ferdinand_.

Que mixtiforio ahi vai!

Se Aldonsa (ou Dulce) de Vasconcellos podesse ser irmã de Leonor Telles,
nem assim Scipião de Figueiredo procederia, por _Vasconcellos_, d'essa
linhagem.

O pai de Scipião era de Alcochete. Chamou-se Sebastião Gomes de
Figueiredo: casou com D. Antonia Fernandes de Vasconcellos, filha do
bispo de Lamego, D. Fernando de Menezes, que morreu arcebispo de Lisboa,
e dotou a filha com o prazo de Velloso, doação riquissima em direitos
reaes.

Teve cinco filhos o genro do bispo. O primogenito, Duardos de
Figueiredo, era representado em 1716 por Nicolau de Tovar e
Vasconcellos, sargento-mór de batalha. O segundo, Scipião, doutorou-se
em direito canonico imperial, e foi mandado governar a ilha Terceira,
não por D. Antonio, como diz o historiador Rebello da Silva[11], mas por
D. Sebastião, como diz o proprio prior do Crato na carta latina ao papa
Gregorio XIII, em 1583. Teve um filho illegitimo, que se chamou
Constantino. O prior do Crato inscreve-o no rol dos amigos que o
seguiram no desterro. Ignoro o destino do filho de Scipião. Os outros
irmãos do governador da Terceira chamaram-se Ruy, que ficou no reino bem
aconchavado com os Philippes; D. Brites, que casou com um Ribeiro
Soares; e Sebastião, de quem darei ampla noticia, avô de mad. de
Sainctonge, ou Sainct'Onge, como se escreve modernamente.

A porção mais estafadora d'este escripto conclue aqui.

      *      *      *      *      *

Quando chegou á Terceira a noticia da acclamação do prior do Crato,
Scipião proclamou-o rei, sem lhe discutir a illegitimidade.

Era portuguez D. Antonio? Era. Logo era legitimo como D. João I, o filho
de Thereza Lourenço.

Rei castelhano é que elle não queria. Morrer na defeza da sepultura não
pisada pelo sapato ferrado do hespanhol--cahir em terra ensanguentada,
mas portugueza--valia tanto como um triumpho para o faccionario do filho
da Pelicana.

A onça de Castella afrontára o leão na sua caverna. Elle surgiu fóra, e
espedaçou-a. A ilha Terceira era inexpugnavel com tal caudilho na
vanguarda de alguns bravos fanatisados pelo heroismo de seu chefe, e
talvez atemorisados pelo terror das suas cruezas com os partidarios de
Hespanha.

Philippe II, em outubro de 1581, mezes depois que D. Pedro Valdez
voltára derrotado dos Açores, tentou pela segunda vez a fidelidade de
Scipião de Figueiredo, enviando de Lisboa á ilha Terceira Gaspar Homem
com uma carta de seu proprio punho. Na brandura das insidiosas
expressões, reçumbra o aviltamento a que descia o parricida castelhano
para haver á mão o unico baluarte de D. Antonio. Calcule-se com que
rancoroso disfarce Philippe II não offereceria perdão e mercês ao
indomito governador, que apenas lhe deixára vivos cincoenta soldados, e
nem um só dos officiaes aguerridos como D. Diogo Valdez e D. Luiz de Baçan.

Dizia assim a carta de Philippe[12]:

_Doutor Scipião de Figueiredo, eu el-rei vos envio saudar. Não podendo
deixar de crêr de vós que cumprireis com a obrigação que tendes a meu
serviço, e ao bem d'essa ilha, e ao que particularmente vos toca, me
parece encommendar-vos isto mesmo que de vós confio, que fazendo-vos
assim como é de crêr, não sómente vos perdôo as culpas passadas, mas que
folgarei de vos fazer mercê quanto serviço que de vós n'isto espero,
para que se escusem os grandes damnos d'essa ilha, e dos moradores
d'ella, e seu povo; indo sobre ella o apercebimento que tenho mandado
fazer de gente, navios e munições, como tudo largamente vos dirá quem
vos esta minha carta dará.--Escripta em Lisboa a 14 de outubro de 1581._

O governador respondeu com alguma intermissão de tempo:

_Vi a carta que V. M. me mandou por Gaspar Homem, na qual me dizeis que
não podeis deixar de crêr de mim que cumprirei com a obrigação que tenho
a vosso serviço, ao bem d'esta ilha, e ao que particularmente me toca.
Prouvera a Deus que tivera V. M. lembrança da em que estaes aos reis de
Portugal, e principalmente ao serenissimo infante D. Luiz, que com seus
vassallos e pessoa sempre em guerras ajudou ao imperador vosso pai;
porque nem as fizereis contra o reino levantado com el-rei D. Antonio
seu filho, offendendo tanto a Deus Nosso Senhor nos estragos de honras,
vidas e fazendas, que causastes no meu, e nem os portuguezes verdadeiros
seus vassallos deixariamos de vos servir como a rei christão, e a quem
sempre amou a nação portugueza, mas como V. M. se esqueceu de tão devida
razão, e da do sangue pelo muito parentesco que tendes com os reis de
Portugal, nem a V. M. lhe cabe querer que eu o sirva, como vassallo, nem
a mim convém obedecer como subdito. Esta ilha, e moradores d'ella são de
el-rei D. Antonio a quem juraram por seu rei e natural senhor, assim
pela successão do reino lhe pertencer, e o povo d'ella o ter eleito,
como por a cidade, e camara de Lisboa isso escrever. As razões e justiça
que para isso havia não posso eu crêr que V. M. não as tenha muitas
vezes passadas pela memoria; e ainda que outras não houvera mais que a
eleição do povo que n'este reino por muitos actos tem direito de nomear
rei (faltando descendentes adquiridos) bastára entrar V. M. n'elle com
mão armada, estando em litigio, para ainda que tivereis muita justiça
perderdes todo o vosso direito; mas em Deus confio que tudo ha de tornar
ao estado, que nem V. M. por occupar o alheio perca sua alma, nem o que
está por ora usurpado deixe de vir ao poder do seu dono. Não me tenha V.
M. por atrevido, mas julgue-me por desinteressado; e prouvera a Deus que
os reis tiveram homens livres, e pouco ambiciosos em seus conselhos;
porque nem el-rei D. Antonio chegára aos termos que o pozeram tamanhas
traições, nem V. M. a perigo de perder o seu, e pôr em risco toda a
christandade. Coitado d'aquelle que ha de dar conta no final juizo das
honras, mortes, fazendas de tantos, da liberdade, e gosto da vida;
porque para quem se perdeu não haverá arrependimento que baste em
satisfação, por se lhe acabar o tempo. Se V. M. bem cuidar na hora da
morte que vos espera, e quantos males n'ella se vos hão de representar,
e as penas que, pelo que tendes em Portugal feito eternamente haveis de
ter, e justamente haveis de padecer, lembrando-vos quão perto estaes de
se vos acabar tudo, ah! como dareis uma volta tão grande ao passado
porque tudo se vos ha então de ser presente! Quanto melhor vos fôra
estar em vossos reinos pacifico, vossos vassallos quietos, amado de
todos os reis christãos, e servido de todos os seus, que com o que
tendes feito em Portugal! não sómente os christãos, mas todas as nações
infieis vos terão intrinseco odio. Cuidai quantos innocentes matastes
com o vosso exercito: cuidai nas honras das viuvas, e donzellas
roubadas, e nos gemidos que ante a divina justiça estão pedindo vingança
de vós. Lembre-vos quantas casadas ao adulterio forçadas são
apostatadas! os templos de Deus que profanaram, as religiosas que
deshonraram, a servidão em que pozestes os moradores de Portugal, e
finalmente tudo o que n'elle causastes que Deus tem tomado á sua conta,
e toma-vol-a com rigorosa justiça; como por um reino que mais que todos
do mundo nobilitou dando-lhe as suas sagradas chagas, com que nos
redimiu, por armas, que foi signal e penhor de nunca o desamparar. As
cousas que padecem os moradores d'esse affligido reino, bastavam para
vos desenganar, que os que estão fóra d'esse pesado jugo quereriam antes
morrer livres, que em paz sujeitos. Nem eu darei aos moradores d'esta
ilha outro conselho, porque não perca minha alma, nem minha honra, que
trocarei quantas vidas tivera, e pudera possuir por morrer leal a meu
rei que jurei, porque um morrer bem é viver perpetuamente; d'aqui me vem
ter mais conta com perseverar até o fim da vida n'esta lealdade, que
temer os vossos apercebimentos de gente, navios, e munições com que V.
M. na sua me ameaça; porque confiando em Deus que peleja por nós, para
os navios está o mar, e portos d'esta ilha apparelhados, para as
munições as fortalezas e trincheiras e muitos poços para metter n'elles
toda gente que nos vier buscar, a quem se não perdoará, pelos males que
resultam de perdões. Não me ponha V. M. culpa, por que jurei a D.
Antonio por meu rei e senhor, e de defender esta corôa; que tambem
fizera o mesmo por vós se vos tivera jurado (posto que não com tanto
gosto) porque basta ser rei portuguez: e, se a desventura me chegasse a
estado que ficasse com vida sujeito, e, por fazer o que devo, me
mandassem matar, perdendo a vida pelo senhor rei D. Antonio, então a
ganhava, e tambem não perderia a memoria de minha lealdade, nem se
perderia a fama da vossa crueza, e sem justiça. Eu não sirvo a el-rei D.
Antonio por interesse (posto que d'elle se podiam esperar maiores mercês
que de nenhum outro rei) mas sirvo com a pureza de minha obrigação de
que resulta não me moverem mercês promettidas, que foi o laço em que
cahiu Portugal; porque fóra do que devo nenhuma cousa me poderá mover a
troco de vender a honra, e lealdade que não tem preço nem ha nenhum que
eu tanto estime; lição que a muitos fidalgos esqueceu. Nosso Senhor leve
a V. M. para o seu reino e restitua o de Portugal ao seu amado rei o
snr. D. Antonio como os verdadeiros e leaes portuguezes desejamos._

_D'esta muito nobre, e sempre leal cidade de Angra, ilha Terceira de
Jesus Christo._

SCIPIÃO DE FIGUEIREDO DE VASCONCELLOS,
governador da ilha dos Açores.

      *      *      *      *      *

Este lance de patriotismo não impediu que a fidelidade de Scipião fosse
suspeita a D. Antonio, por insinuações de perfidos, se é bem provada a
seguinte pagina de Rebello da Silva:

«Os detractores não descançavam, porém, e a fim de offuscarem o animo do
prior reproduziam as accusações, asseverando que Figueiredo principiava
a vacillar, pintando-o inclinado aos jesuitas, contrafeito na lealdade,
e disposto a restituir a liberdade aos presos politicos. Concluiam, por
fim, que o corregedor se entendia secretamente com os castelhanos. D.
Antonio, se não deu inteiro credito a estas vozes, tambem não cortou,
como devia, os enredos pela raiz, e chamando Cypriano de Figueiredo para
seu lado, feriu nos brios e no conceito o homem que acabava de lhe
conservar a Terceira. Desconfiado e voluvel, facil em esquecer os
serviços, mas lembrado e resentido dos aggravos, justificou mesmo na
desgraça em varios lances a nota de ingrato. Na pequena côrte de
proscriptos, que o rodeava, só Diogo Botelho, alma de todos os
conselhos, viveu exceptuado da desattenção com que feriu os portuguezes,
que tinham sacrificado patria, bens e posição para o seguir. Faltou-lhe
sempre a magnanimidade, realce do infortunio, porque tanto engrandece na
prosperidade, como serve de quilate e de timbre na desgraça aos
caracteres heroicos.

«Abrindo os ouvidos ás queixas contra Figueiredo, e preferindo para o
substituir no governo da ilha a Miguel da Silva, nomeado conde de
Torres-Vedras, o pretensor, punido pela má escolha, praticou uma acção
injusta, e commetteu um grande erro. As honras vãs, de que assim mesmo
se não mostrou prodigo com Cypriano de Figueiredo, na idéa de lhe adoçar
o que havia de cruel e de iniquo n'este golpe, não apagaram de certo no
peito do honrado cavalleiro a nodoa de se vêr immolado á calumnia.
Offendido na lealdade, e quasi injuriado publicamente pelo triumpho
concedido aos adversarios, Figueiredo calou a affronta, e veio encerrar
junto do principe, no desterro, a carreira, que abrira, abraçando uma
causa vencida, e rejeitando as promessas de Philippe II, insinuadas pelo
principe de Eboly[13].»

Descreio que D. Antonio escutasse as intrigas, e afrouxasse na confiança
do seu validissimo amigo. Na carta latina que escreveu a Gregorio XIII,
em 1583, avalia d'esta maneira o defensor da Terceira: «_... entre
outros, está o egregio doutor em direito canonico imperial, integerrimo
governador, em nome de el-rei D. Sebastião nas ilhas Terceiras; do qual,
incorrupto a promessas e lisonjas para que entregasse as praças que lhe
haviam sido confiadas, confiscou-lhe os bens como costuma, apossou-se
d'elles; e, sem embargo este constantissimo fidalgo manteve o povo em
sua fé e promessa e deveres, foi quem primeiro, n'estes nossos tempos,
domou os castelhanos com gloriosa victoria, e grangeou nome de capitão e
fidelissimo governador e tal soldado se mostrou aos inimigos que muito é
reluzam n'elle a um tempo esplendor de letras e grandeza militar_.

Acresce que Scipião de Figueiredo é, juntamente com Diogo Botelho,
testamenteiro de D. Antonio, e mais que todos os seus amigos,
recommendado á gratidão de seus filhos. O testemunho de Sebastião de
Figueiredo, irmão do valente defensor da Terceira, insurge-se tambem
contra a calumnia, nas memorias que sua neta, mad. de Sainctonge
publicou: _Dom Antoine qui croioit qu'il ne donneroit pas peu d'affaire
a Philippe, s'il conservait ses Isles, ne pouvait se lasser de louer le
courage de Scipion; il avait une si forte passion de le voir, qu'il eut
l'imprudence de lui écrire de le venir trouver, pour se rejuir avec lui
de sa victoire, et de laisser le soin de son gouvernement à Manuel da
Silva qu'il lui envoyoit qui etoit une personne de confiance. Voila ce
qui fit croire à ceux qui ne jugent des choses que par les aparances que
Dom Antoine se défioit de lui..._[14].

Se é aceitavel o testemunho dos contemporaneos, alliviemos a memoria do
prior do Crato d'esse imputado crime de ingratidão ao homem que deixou,
na carta a Philippe, o mais energico testemunho de patriotismo,
n'aquella vergonhosa conjunctura em que tantissimos fidalgos chatinaram
a consciencia.

      *      *      *      *      *

Scipião de Figueiredo assistiu, em 1595, ao trespasse do quasi mendigo
D. Antonio. Pobremente viviam todos os amigos que o rodeavam. A pensão
que Henrique IV lhe esmolava deprehende-se qual seria da mobilia do
prior do Crato, inventariada por sua morte[15]. Essa mesquinha
pensão continuou-a o rei em beneficio dos filhos e amigos de D. Antonio,
consoante a carta, enviada de Lião, a Scipião de Figueiredo:

_Seigneur Scipion de Figueredo, j'ay porté le regret que je devois de la
mort de mon feu cousin le roi de Portugal, pour la perte que j'ay faite
d'un bon amy, et je seray toûjours aussi prompt á faire paraitre á
l'endroit de ses serviteurs, la bonne volonté que je lui portois; comme
j'ay de déplaisir et de compassion de vôtre infortune; j'ay apris par
vos lettres, quil vous a fait executeur de son testament, avec le sieur
de Diogo Botheillo, il ne pouvoit faire un meilleur choix, car je
m'asseure que vous vous acquiterez fidellement de ses dernieres volontez._

_J'écris á ceux de mon conseil des finances, de payer ce qui étoit du de
la pension du dit roy, jusqu'à la fin de la presente année, dans lequel
tems étant sur les lieux, je réglerai et ordenneray ce que je pourray
faire à l'avenir pour mon cousin Dom Christolphe son flls, et auray à
plaisir de gratifier tous ceux de sa famille en ce qui me sera possible,
et vous en particulier, aux occasions qui se presenteront, priant Dieu,
seigneur Scipion de Figueredo, qu'il vous ait en sa sainte et digne garde._

_Ecrit á Lion, le vingt de septembre, mil cinq cent quatre vingt quinze._

Transpira d'esta carta a bonissima alma de Henrique IV a favor de um
principe que tragava as penurias a que não foi estranho o filho de
Joanna d'Albret. Aquelle tempo ainda elle não era marido de Maria de
Medicis, que lhe permittiu contar com o almoço seguro e um gibão sem
remendos. Quem diria que tão nobre e querida alma se iria a Deus, quando
o corpo se estorcia debaixo do punhal de Ravaillac! Menos infeliz e
menos amado, morrêra tranquillamente o proscripto Antonio, graças a
Henrique III que o defendeu do sicario duque de Mercoeur, bisavô da
rainha portugueza Maria Francisca Isabel de Saboya[16].

Scipião despendeu com D. Antonio e seus filhos os bens que adquirira na
governação da ilha Terceira.

Falla-se de um brilhante que o prior do Crato empenhára por quarenta mil
libras, na mão de mr. du Harley Sancy, um dos mais pecuniosos fidalgos
de Paris, de quem depois houve mais sessenta mil libras, por trespasse
completo da joia (proximamente 18:000$000--o producto total do
brilhante). A pedra preciosa era do neto d'el-rei D. Manoel ou de
Scipião? Mad. de Sainctonge refere a passagem de modo que nos persuade
ser do amigo de D. Antonio: _Scipion Vasconcelles de Figueredo avoit
déjà vendu pour lui_ (D. Antonio) _tout ce qu'il avoit apporté de son
gouvernement, et avoit engagé un diamant d'un prix inestimable pour
quarente mille livres, à Monsieur de Sensy qui étoit si honnête-homme
qu'il lui donna encore vingt-mille écus voyant qu'il n'etoit pas en état
de le retirer_. Parece dizer que o proprietario do diamante era Scipião
de Figueiredo[17]. Esta pedra, considerada quanto aos quilates, o oitavo
diamante conhecido, foi depois empenhada por du Sancy, em Metz. Um
hebreu d'aquella cidade emprestou dinheiro para pagar aos suissos de
Henrique III, revolucionados por falta de pagamento. O proprio du Sancy
cahiu em apuros, por 1605, e vendeu a pedra a Sully que a comprou por
150:000 escudos em nome do rei. Não sei que mãos percorreu o diamante.
Em 1870 foi vendido em Calcutta, por ordem da princeza Demidoff,
originaria da Russia, e aparentada com a familia Bonaparte[18].

      *      *      *      *      *

Em 1586, tinha Scipião comsigo em Paris um irmão de vinte e cinco annos,
lá conhecido por D. Gomes de Vasconcellos, que por alli se andava
estadeando a sua pobreza e inutilidade. Pediu Scipião a Catharina de
Medicis que lhe empregasse o irmão no exercito do marechal de Brissac. A
rainha-mãi escreveu a favor de _Sebastião de Gomes_ a affectuosa carta
que sua neta publica a pag. 162 da _Histoire secrete_, etc.

Poucos mais vestigios restam de Scipião de Figueiredo até 1601. N'este
anno Maria de Medicis recommenda-o encarecidamente ao gran-duque de
Toscana, por carta escripta de Lion, em 10 de janeiro. Ahi lhe expõe que
o seu protegido vai a Italia _pour aucunes siennes affaires_. Não é
possivel rastrear os negocios particulares de Scipião em Italia. O
pretendente era já morto desde 26 de agosto de 1595. Póde ser que o
testamenteiro de D. Antonio ainda conspirasse a favor dos filhos.

Não sei se se demorou muito em Italia. Sabe-se que, na volta, foi morar
nos arrabaldes de Paris em uma aldeia chamada _Les Fontaines_, perto de
Lagny, d'onde ia a miudo visitar o filho de seu defunto amo, D.
Christovam de Portugal, que vivia em Paris bastante descuidado dos seus
interesses e honra[19]. Poucos annos viveu em _Les Fontaines_
soccorrendo os portuguezes expatriados com a pensão que lhe dava o rei.
Ahi morreu, depois de 1606, e foi sepultado no proximo mosteiro dos
Agostinhos. O rei continuou a dar a pensão aos commensaes de Scipião,
reservando em beneficio de D. Gomes seiscentas libras annuaes, uns
110$000 reis pouco mais ou menos.

Ora este D. Gomes tem sua historia, longa e arrastada, porque morreu em
idade de noventa e sete annos, reinando já em Portugal D. João IV.

Se o leitor póde esforçar a sua paciencia, e dar-me relevante prova de
que os estudos serios, grossos e profundos lhe são agradaveis, leia até
ao fim o que eu lhe vou contar, muito pela rama, do irmão do heroe da
Terceira.

      *      *      *      *      *

D. Gomes, soldado valoroso e aventureiro, que expunha a vida na
perspectiva da morte ou da fortuna, sahiu de uma das suas batalhas com
uma perna quebrada e o rosto desfigurado por um gilvaz que lhe
esbrucinára parte do nariz.

Quando se levantou curado das feridas, e se viu no espelho,
trespassou-se-lhe a alma de tamanha paixão que esteve nos colmilhos da
morte. _Il pensa mourir de chagrin de se voir si different de ce qu'il
avoit été_--diz sua neta mad. de Sainctonge.

A fealdade pungia-o tanto quanto elle era caroavel de damas, galanteador
bemquisto, e famoso no bom successo das suas empresas amorosas.

Como allivio de seus males, alistou-se de novo na milicia de Luiz XIII.
Affrontou a morte com desesperado menospreço de si mesmo, e vingou
apenas ajuntar novas cicatrizes á gloria das outras, que o não
resguardaram da pobreza nos tristes dias de nonagenario.

Voltando a Paris, foi acolhido por D. Christovão, filho do defunto prior
do Crato, que o estimava em extremo.

Quando orçava pelos sessenta annos, Sebastião Gomes de Figueiredo, que
tinha a maior no coração o que lhe minguava no nariz--orgão importante
da cara humana, segundo a opinião do diccionarista Couto
Guerreiro--apaixonou-se por uma menina parisiense, formosa, illustre e
pobre, com a sobrecarga de espirituosa.

E casaram--o que foi mau; e tiveram tres filhos--que foi peor.

Dous morreram; a mãi tambem morreu aos dezoito annos de casada,
deixando-lhe uma galante menina de quartorze annos, conhecida na boa
sociedade por mademoiselle de Vasconcellos.

D. Gomes era pobre, e o futuro da filha torturava-lhe o coração
paternal. A estas penas acresceu a da morte do seu amigo D. Christovão,
em 1638, em cuja parcimoniosa mesa elle tinha certo o talher.

Porém, n'esta noite da desgraça alvorejou uma aurora de esperança.

Em 1640 foi acclamado rei portuguez. Sebastião Gomes, com bom
fundamento, imaginou-se chamado á patria e reintegrado nos bens que
Philippe II lhe confiscára.

Assim que chegou a Paris D. Francisco de Mello, primeiro embaixador de
D. João IV, Gomes de Vasconcellos apresentou-se-lhe. O embaixador
abraçou o ancião, dizendo que não esperava encontrar n'este mundo um
irmão do heroico Scipião de Figueiredo, cujo nome ainda soava em
Portugal gloriosamente. Perguntou-lhe o velho se seria licito esperar
que el-rei de Portugal lhe permittisse voltar á patria e apossar-se dos
seus bens. Respondeu D. Francisco de Mello que era illicito duvidar da
justiça e probidade d'el-rei. Grandes jubilos no seio d'aquella pobre
familia!

Escreveu o embaixador para o reino aos seus amigos mais conjuntos do
monarcha. Todos, á uma, lhe responderam que o rei faria justiça.

Pactuaram logo sahirem juntos para Portugal; mas como D. Francisco
tivesse um filho enfermo, demorou-se; e, quando o filho convalescia,
teve de seguir o rei de França a Compiegne, e deixou o filho entregue
aos cuidados de Gomes de Vasconcellos.

O rapaz tinha vinte e dous annos, era até certo ponto aparvalhado, fôra
educado portuguezmente, não tinha a minima pratica de sala, e não sabia
palavra da lingua franceza.

Com o fim de o recrear nos desalentos da convalecença, Gomes de
Figueiredo levou-lhe a casa a filha, que era bella, e mais algumas
amigas de mademoiselle Vasconcellos--moças garridas, buliçosas,
desenxovalhadas, francezas desde as plumas até ao talão--cousas
gentilmente satanicas que se pareciam tanto com as damas de Lisboa como
elle com os estouvados de Paris.

Assim que lhe entraram ao quarto, o rapaz, que as não percebia,
contemplou-as com a mais sincera cara de tolo, não obstante ser
prevenido da visita. _Il ne laissa pas de paroître déconcerté_--diz mad.
de Sainctonge, a filha da gentil Vasconcellos--_elles en attribuerent la
cause au peu d'habitude qu'il a voit de voir des femmes_.

Mas habituou-se logo; o amor ensinou-lhe tudo, sem excepção do francez.
Por essa occasião lhe disse o velho:

--Este modo de viver francez deve ser estranho a um moço de paiz onde os
homens não tem a menor convivencia com as senhoras.

--Gosto d'estes costumes! exclamou o rapaz.

De quem elle já gostava muito era da menina Vasconcellos; mas a paixão
que o apanhou de salto não impediu que elle se mostrasse portuguez de
lei, mandando pôr na mesa bocêtas de dôce nacional para regalar as
meninas, e por signal que o avantajaram ás confeiteiras francezas:
_bassins de confitures séches beaucoup plus belles que celles qu'on fait
en France_--diz a citada historiadora.

O convalecente deu logo alta, e transfigurou-se.

Bailes, merendas, passeios campestres, lyrismo, conjugação dos verbos
regulares e irregulares de parçaria com as pequenas, revelações,
confidencias, leituras de novellas, etc. Em resumo, D. Francisco de
Mello, quando voltou a Paris, não conhecia o filho, de gordo, de
folgazão, de peraltice, e até d'uns vislumbres de poeta pelo ar
provençal com que fallava das graças das francezas, e particularmente de
mademoiselle Vasconcellos.

Amavam-se e projectavam voltar juntos e casados a Portugal. Assim o
tinham decidido em sorrisos de mutua e louca felicidade n'um baile em
que o moço, toda a noite, valsára com a noiva. _Mais il ne prevoioit pas
que la France seroit son tombeau_, escreve a snr.ª de Sainctonge. Ao
sahir d'esse baile, aconchegando do seio o ramilhete da adorada menina,
constipou-se, e morreu de uma pleuresia seis dias depois.

Sobre este infortunio outro maior.

N'estes dias, appareceu em Paris um neto de D. Antonio, D. Luiz de
Portugal. Este sujeito, que não degenerava dos vicios do avô e do pai,
ainda, dous annos antes (1639) escrevêra uma carta a João Caramuel,
defensor dos direitos de Castella ao throno portuguez, confessando a
legitimidade de Philippe III, e offerecendo o seu braço na defeza da
usurpação. A carta corria impressa, já em Portugal era conhecida, e o
leitor póde vêl-a nas primeiras paginas do in-folio intitulado
_Philippus Prudens_.

Pois não obstante este villanissimo testemunho da sua indignidade, ousou
D. Luiz apresentar-se ao embaixador portuguez, encarregando-o de
perguntar a D. João IV se poderia voltar á patria, e á posse dos bens de
seus avós.

D. Francisco de Mello fez a pergunta a D. João IV que respondeu
d'est'arte: «Perguntas d'essa natureza não se fazem.»

Mas, como D. João IV soubesse que Sebastião Gomes de Vasconcellos vivia
amigavelmente com o neto de D. Antonio, recusou tambem recebel-o em
Portugal; e, quanto á restituição dos bens, disse que não podia tiral-os
ás pessoas a quem Philippe II os dera, porque se considerava obrigado a
premiar os filhos d'essas pessoas, dos quaes fôra bem servido na sua
acclamação.

A resposta era infame porque não era sincera; e, ao mesmo tempo,
injuriava os que haviam trahido a patria, recebendo como paga os bens
dos Vasconcellos, e injuriava os filhos d'esses traidores que tambem
atraiçoaram a casa de Hespanha que lhes enriquecera os avós e os paes.

Sebastião Gomes supportou corajosamente este golpe, que ainda não devia
ser o ultimo. Um dos seus amigos mais valedores era um residente que D.
João IV mandára a França: Manoel Fernandes Villa-Real. Aproveitemos a
descripção de mad. Sainctonge qual ella ouvira de sua filha: _C'etoit un
homme d'un agreable commerce; il n'avoit rien dans l'humeur de ceux de
sa nation; son esprit étoit d'un caractere à le faire beaucoup d'amis;
aussi tous les gens de qualité et de bon goût se faisoient un plaisir de
le voir; on étoit charmé de son air ouvert et de ses manieres aisées;
tous ses dehors etoient d'un parfaitement honnête homme et on ne pouvoit
le connoitre sans l'estimer_[20].

Manoel Fernandes de Villa Real tinha casado em Rouen com a filha de um
portuguez opulento, israelita, escapulido ao santo officio. O residente
de D. João IV não era--diga-se verdade--mais sincero christão que seu
sogro.

Em compensação era intelligentissimo. Tinha escripto, em defeza dos
direitos de seu rei, o _Anti-Caramuel_, que o leitor conhece. Era poeta.
Fazia versos francezes, que o leitor encontra em uma collecção de
elegias á _Memoria da snr.ª D. Maria de Athayde_. Como illustrado,
ria-se dos sermões bordalengos do padre Francisco de Santo Agostinho de
Macedo, prégados nos pulpitos de Paris, com descredito nacional.
Censurava as baixezas que o mesmo ex-frade praticava, agenciando
dinheiros com torpes pretextos. Era um homem de bem, quanto póde sêl-o
um incircumciso, como o leitor e eu.

Quem o denunciára de judaisante para Portugal fôra o padre Macedo,
attribuindo-lhe simultaneamente a redacção de uns papeis enviados ao
cardeal Richelieu, e adversos a D. João IV.

De repente, é chamado Manoel Fernandes á presença do rei de Portugal.
Contristou-se na hypothese de que ia ser substituido, depois de tão
briosamente haver procedido no serviço d'el-rei. Os sustos de Sebastião
Gomes anteviram mais negro desenlace. Aconselhou-o o ancião que não
viesse a Portugal, pois era casado e rico em França, e tinha inimigos
conjurados a perdêl-o.

Não o demoveram o amigo, a esposa e os filhos.

Partiu, quando Sebastião Gomes dizia á filha: «Elle se arrependerá; mas
tarde.» Figueiredo sabia que o seu amigo era christão-novo; mas esta
denominação terrivel tanto lhe confragia a alma que nem á filha a
denunciou.

D'ahi a pouco tempo, o novo residente, que voltou a Paris, levou a
triste nova de que Manoel Fernandes Villa-Real estava nos carceres da
inquisição processado como judeu, e não muito depois soube que o seu
amigo fôra condemnado á morte de garrote, e queimado no dia 10 de
outubro de 1652[21].

Alquebrado pela decrepidez, Sebastião Gomes ainda achou um amigo no
residente que substituira Manoel Fernandes.

Era aquelle Duarte Ribeiro de Macedo cujas cartas impressas o meu leitor
illustrado conta em o numero dos seus mestres de bem escrever. Nos
braços d'elle, e de sua filha--esposa de um cavalheiro illustre, pai da
escriptora de Sainctonge--expirou o irmão do heroe da Terceira, aos
noventa e sete annos de idade.

Que recordações revoluteariam n'aquella alma! Que synopse de immensas
angustias! Como veria elle desdobrarem-se noventa annos de recordações,
desde a infancia de D. Sebastião, através da catastrophe de Alcacer, dos
heroismos dos Açores, dos sessenta annos de esforços vãos contra a
pobreza amparado pela honra do nome portuguez, e por fim... morrer alli,
ás sopas de estranhos, porque D. João IV lhe dissera:

«Morre de fome, que eu não vou tirar os teus bens aos filhos dos que
venderam a patria!»

    [10] Assim subscreve a approvação do testamento de D. Antonio, e
    assigna uma carta a Philippe II que ao diante se lerá.

    [11] _Historia de Portugal..._ t. II, pag. 602. D. Antonio nomeou
    Scipião de Figueiredo conde de S. Sebastião--accessorio que nenhum
    escriptor menciona, senão Caramuel (_Philippus Prudens_, pag. 302),
    que tratou com singular benevolencia os partidarios de D. Antonio,
    por entender que nenhum contrapeso faziam na balança em que Philippe
    III, em 1689, no ultimo anno do seu reinado, mandava pesar os seus
    direitos.

    [12] A carta e resposta de Scipião de Figueiredo possuimol-as na
    collecção de _Ineditos_ de D. Manoel Caetano de Sousa. Nos
    historiadores apenas encontramos noticia perfunctoria de haver sido
    tentado o suborno do governador pelo principe de Eboly.

    Estas cartas foram impressas em uma apologia de D. Antonio, escripta
    por Scipião de Figueiredo contra D. João de Castro. Na duvida em que
    estão os bibliophilos sobre a authoridade d'essa apologia decide
    João Caramuel no seu _Philippus Prudens_, etc. pag. 171 e 172, na
    lista dos authores que escreveram a favor de D. Antonio: _Cyprianus
    de Fuigueredo... sed Scipio... publicavit Epistolam, quã notas facit
    Philippo II, caussas quibus movebatur ut individuus comes non
    desereret ipsum Antonium, cui ab annis pluribus in honor e maximo
    servievat. Édidit etiam Apologiam pro Antonio contra D. Joannem de
    Castro, olim ex Antonianis, etc._

    O titulo do livro que o cisterciense Caramuel denomina «apologia» é
    _Reposta que os tres estados do reino de Portugal, a saber Nobreza,
    Clero e Povo, mandaram a D. João de Castro, sobre um discurso que
    lhes dirigiu sobre a vida e apparecimento d'el-rei D. Sebastião_ (s.
    l.), 1603, 8.º Diz o snr. Innocencio que entre pag. 75-80 está a
    carta que este dirigiu a Philippe II. Não sei se alli se encontra a
    carta que Philippe lhe enviou por Gaspar Homem. Este livro é um dos
    rarissimos da livraria portugueza.

    [13] _Historia de Portugal_, l. c.

    [14] _Histoire secrete de Dom Antoine roy de Portugal_, pag. 101.

    [15] Veja tom. II das _Provas da Historia genealogica da real casa
    portugueza_, pag. 537 e seg.

    [16] Veja a _Lettre du roy Henry III au duc de Mercueur_ (sic) a
    pag. 120 da _Histoire secrete de Dom Antoine_, por mad. de
    Sainctonge.

    [17] Diversifica da primeira importancia da pedra a outra menor que
    lhe dá a escriptora franceza. Mr. Edouard Fournier extrahiu a
    noticia das _Memoires de l'Estoile_ por Lenglet Dufresnoy. Veja _Un
    prétendant portugais au XVIme siecle_, par Edouard Fournier. Paris,
    1852.

    [18] Parece que D. Antonio já em Londres, no anno de 1582, empenhára
    ou vendera um brilhante de mais quilates. No _Museu Britannico,
    Bibliot. Cottoniana_, fol. 295. Nero, B. I. ha um diamante que o S.
    F. F. de la Figanière descreve assim:

    «Carta, em inglez, do proprio punho de lord Burghley, dirigida á
    rainha Isabel, na qual, em conformidade das ordens que lhe haviam
    sido transmittidas pelo conde de Leicester, dá a sua opinião sobre o
    destino que deveria ter o grande diamante de D. Antonio (prior do
    Crato), o qual estava em poder do mesmo conde, como penhor pelo
    dinheiro emprestado a D. Antonio por certos negociantes inglezes,
    que instavam muito pelos seus creditos, julgando lord Burghley, que,
    em attenção ao seu grande valor, seria conveniente que a rainha
    embolsasse os ditos negociantes, ficando com o diamante como penhor
    da quantia emprestada, etc. Esta carta tem apenas indicado o anno de
    1582. Consta de uma pagina. Lord Burghley pede desculpa da carta que
    envia á rainha por soffrer muito da perna, e haver-se-lhe exigido
    resposta immediata. Com effeito parece antes um borrão do que uma
    carta que se dirigia a uma soberana.»

    A venda do outro diamante em Paris é posterior alguns annos.

    [19] Em um dos proximos numeros darei noticia laboriosamente
    averiguada dos descendentes de D. Antonio.

    [20] _Obra cit._, pag. 234 e seg.

    [21] A pag. 182 e seg. do romance intitulado _Olho de vidro_ vem
    integralmente publicada a sentença da inquisição. Nos _Manuscriptos
    addicionaes_ do Museu Britannico, n.º 15:170, fl. 243 v. ha um
    soneto de Manoel Fernandes Villa-Real escripto no carcere do santo
    officio. (Figanière, _Catalogo_, pag. 284).



O NARIZ


Na poesia moderna tem adquirido bastante importancia o nariz.

E, posto que a época vá muito de idealismo, repara-se mais nas ventas
que nas faculdades moraes dos personagens epicos.

É certo que o nariz tem servido para formar maximas e aphorismos no
regimen social, na sciencia chamada _ethica_--sciencia de que ninguem
falla desde que a educação da mocidade passou a _tisica_ com apparencias
de _hydropica_.

Tudo esdruxulo.

Do nariz inferiram os observadores certos signaes de qualidades do
espirito, e formaram anexins e regras que ainda vigoram, e já vem dos
gregos, os quaes tambem tiveram nariz--(_nira_), por anagramma _nari_.

Em portuguez, ha muito proloquio sobre nariz e ventas.

Camões, querendo indicar a alegria na rubidez de um nariz a reçumar bom
sangue agitado pelo jubilo, cantou em termos altos:

    Tem vermelho o sangue do nariz.

«Ter cabellos na venta».

«Dar com as ventas n'um sedeiro».

«Não ver um palmo adiante do nariz».

Conhecem tudo isto.

«Nariz de cêra»--a musa dos tribunos, a inspiração dos prégadores, a
rhetorica dos romancistas.

«Senhor do seu nariz». Nem sempre. Ás vezes os poetas fazem-nol-o
propriedade sua.

«Nariz de palmo e meio»--imagem que exprime a embaçadella--ou, á
franceza--o desapontamento. Exemplo: o leitor, no fim d'este bonito
trabalho.

«Chegar-lhe a mostarda ao nariz», etc.

O cão tambem collabora nasalmente n'estas analogias: «É sebo em nariz de
cão».

      *      *      *      *      *

Em cima, disse eu que o nariz tem adquirido bastante importancia na
poesia moderna.

Justifica-me um brilhante livro, que está no coronal das modernas
publicações.

É _A morte de D. João_, do snr. Guerra Junqueiro, uma verdadeira flôr
entre os espinheiros da nossa charneca litteraria.

D. João VIII, em sonho, os phantasmas das mulheres que desgraçára. Algumas

    _... que foram lirios juvenis,
    Já carcomidas pelas larvas frias,
    Caminhavam sem olhos, sem nariz._

Reduzido a miseravel histrião e cornaca de ursos e dromedarios, D. João

    _Possuia um nariz vermelho, incendiado._

Não era de certo o nariz vermelho, acceso pelo jubilo, de que falla o
Camões.

Mais abaixo, o mesmo D. João, no deplorativo dizer do snr. Guerra
Junqueiro,

          _Cheirava muito a alho
    E tinha no nariz verrugas biliosas._

Elle mesmo, o escalavrado amante de Imperia, exclama:

    _Tornou-se-me o nariz esqualido purpureo
    Por causa das paixões e do ultra-romantismo._

Faz pena o diabo do homem!

E, para fecho de desgraça, quando está nas ultimas,

            _O seu nariz purpureo
    É uma esponja de carne a distillar mercurio._

Por onde se vê que a poesia moderna tira grande partido do nariz, já
cortando-o, já alongando-o, umas vezes enverrugando-o, outras vezes
esponjando mercurio d'elle, consoante lhe convém.

Não é completamente novo isto.

Em Portugal houve sempre esta mania de fazer litteratura nas ventas das
pessoas dotadas d'esse orgão com saliencias extraordinarias.

No fim do seculo XVII, galhardeavam grandemente os poetas n'esse genero.
Eu, entre os meus papeis, tenho um poema consagrado a um nariz, em que
não havia verrugas nem azougue; mas sim uma grandeza magestosa e limpa.
Veja o leitor se acha graça a isto:

    A UM NARIZ GRANDE

    Tratava de encarecer-vos;
    porém logo (ó caso estranho!)
    vos achei, nariz, tamanho,
    que não pude comprehender-vos.

    Que sois nariz tão fatal,
    em ser comprido, e ser grosso,
    que n'um reconcavo vosso
    se escondeu um arraial.

    Alguem vos chama infinito;
    mas eu, que em razão me fundo,
    as quatro partes do mundo
    sei que são vosso districto.

    Pareceis cá baluarte
    dos chinas, bem que o venceis,
    e com Deus vos pareceis,
    porque estaes em toda a parte.

    E um velho da Saxonia
    diz vos viu mui grande espaço
    servir, nariz, de compasso
    da torre de Babylonia.

    Mas affirma quem se humana
    mais nas vossas maravilhas,
    que tendes as trinta milhas
    da ponte do Guadiana.

    Que sejaes, senhor nariz
    tão comprido e tão fatal,
    que já cá de Portugal
    cheiraes na Arabia Feliz.

    Que sois o farol do Egypto
    que toma de mar a mar,
    se se póde comparar
    finito com infinito.

    E jurou certo moderno
    (não diga elle algum desmancho)
    que podeis servir de gancho
    que tire as almas do inferno.

    E que, se nos horisontes,
    nariz, vós nascereis d'antes,
    escusaram os gigantes
    de pôr montes sobre montes.

    Bem podeis, senhor nariz,
    estar onde mais quizerdes;
    mas, se ao sol vos pozerdes,
    fareis logo ser sol-criz.

    A vós, nariz, o gran monte
    do Parnaso se assemelha;
    pareceis arco da velha
    que toma todo o horisonte.

    E dizem quatro juizes,
    segundo a sentença diz,
    que tiram de vós, nariz,
    a massa dos mais narizes.

    Inda que estar queiraes só,
    vos verão, em que vos pez,
    que tamanho Deus vos fez
    como a escada de Jacob.

    E assenta certo moderno,
    no que acerta, quanto a mim,
    que sois sem principio e fim,
    e que sois, nariz, eterno.

    Ao arraial do Maluco
    daes n'uma venta estalagem;
    e podereis dar passagem
    de Lisboa a Pernambuco.

    Para que el-rei se desvela?
    Se el-rei quer estar seguro,
    ponha-vos, nariz, por muro
    entre este reino, e Castella.

    A vós só, nariz, se deu
    pena eterna, e gosto eterno;
    que tendes posto no inferno
    um pedaço, outro no céo.

    Ha no mundo narigote,
    ha nariz, e narigão,
    houve nariz de Sansão,
    e nariz de D. Quixote.

    Sois nariz archi-potente,
    porque só vós assombraes
    do Occidente, onde estaes,
    os narizes do Oriente.

    D'onde, nariz, presumi
    chamar-vos gran narigão;
    porque sei que ha ahi gran Cão,
    que ha gran turco, e gran Sophi.

    Se não se póde alcançar
    nunca a medida do mundo,
    nem nunca ao mar se achou fundo,
    vós, nariz, sois mundo e mar.

    Parece, quando espirraes,
    (cousa para o mundo nova!)
    Eolo que sahe da cova
    com todos os ventos mais.

    Eras bom n'uma fronteira;
    que d'essas ventas o vento
    é pelouro mais violento,
    que de bombarda, e roqueira.

    Outros, encontrando a fé,
    dizem atrevidamente
    que em vós se salvou mais gente
    que na arca de Noé.

    E em fim sois, porque conclua,
    nariz tão mal ensinado,
    que vos viram cavalgado
    então nos cornos da lua.

    Do sol dizem que enfiava;
    da lua, que então gemia;
    e do céo, que estremecia
    co'o peso que sustentava.

    Sois mór que a serra da Estrella;
    porque eu vi por uma venta
    vossa, na maior tormenta,
    passar um navio á vela.

    Esse rosto deshumano
    onde pôr-vos o céo quiz,
    chama-se cento-nariz,
    como o outro centimano.

    E de quem n'elle vos pôz
    saber me dera gran gosto,
    se andaes vós, nariz, no rosto,
    ou se o rosto anda em vós.

    Bem que o rosto é cousa rara
    de maneira que só diz
    tal cara com tal nariz
    e tal nariz com tal cara.

    Da limpeza foreis centro,
    se vós deixareis entrar
    cem mil homens, a limpar
    as furnas, que lá vão dentro.

    Mas ser sujo não me espanto;
    pois jámais vos assoastes,
    nariz, porque não achastes,
    linho que abrangesse a tanto.

    Para a India uma nau ia,
    eis que um peixe se levanta
    no mar, de grandeza tanta,
    que a nau á vela cobria.

    Eram tudo paroxismos
    na nau, tudo estremecer,
    quando lhe mandam fazer
    por um padre os exorcismos.

    Mandou-lhe n'este comenos
    o bom padre, que a nau deixe,
    e o que criam que era peixe,
    era o demo, quando menos.

    Entrou-me no pensamento
    mandar-vos exorcismar,
    sómente por alcançar
    se sois nariz, se portento.

    Que nariz não pareceis;
    e, pelo rosto em que estaes,
    a nariz assemelhaes,
    e no rosto não cabeis.

    Salvo, nariz, se sois tal,
    e de tão má condição,
    que ides comer ao Japão,
    e purgaes em Portugal.


    _Etc. etc._

Posto isto, em quanto o leitor boceja nos preliminares de um agradavel
somno, apresso-me a dizer-lhe que não está no meu animo detrahir nem
menoscabar a seita poetica, a hoste da Idéa Nova em que o snr. Guerra é
o alferes da bandeira. Gosto do nariz de D. João; e, quanto ás verrugas
biliosas e á distillação de _licôr de Van-Swieten_, prefiro estes
narizes pôdres das pessoas afflictas aos narizes de cêra dos litteratos.



JOÃO BAPTISTA GOMES


Conhecem perfeitamente o famoso author da _Nova Castro_.

Seria opprobrio desconhecerem o poeta portuense, honrado na Allemanha ha
trinta annos, desde que Alexandre Wittich traduziu a tragedia de Ignez.

João Baptista Gomes, filho de outro de igual nome e appellido, foi
guarda-livros no Porto. Casou com uma formosa menina, D. Anna Benedicta
Gomes. Morreu na flôr da idade em 20 de dezembro de 1803. Nos braços da
sua viuva--que contava vinte e quatro annos--deixou uma menina, D.
Thereza Benedicta que veio a ser esposa do dr. José Machado de Abreu,
que morreu barão de S. Thiago de Lordello.

A viuva do poeta felleceu em 1844, aos sessenta e seis annos de idade. A
bisneta do author da _Nova Castro_, D. Maria Ismenia de Abreu, ainda
vive, casada com o snr. Guilherme Francisco de Almeida e Silva, coronel
de cavallaria. O dr. José Machado de Abreu, reitor da universidade e
barão de S. Thiago de Lordello, contrahiu segundas nupcias. A exc.ma
baroneza, que enviuvou na flôr dos annos, casou com o snr. conselheiro
Adriano de Abreu Cardoso Machado, tão notavelmente respeitado nas boas
letras, como na politica militante, á qual não chamo tambem _boa_, para
me forrar a contendas com os que militam na politica diversa.

João Baptista Gomes, ainda em fevereiro do anno em que morreu, levado de
generosa inspiração, escreveu um _Elogio aos cidadãos do Porto_,
concorrentes a um beneficio destinado a suavisar a desgraça dos presos.
Foi o Elogio recitado no real theatro do Principe na noite de 16 de
fevereiro de 1803. Esta poesia inedita não é talvez a unica reliquia
desconhecida d'aquella forte, dado que inculta intelligencia, da qual
Garrett escreveu: _Atalhou-o a morte em tão illustre carreira, e deixou
orphão o theatro portuguez, que de tamanho talento esperava reforma e
abastança._ Por ventura, no espolio de sua viuva, se encontrariam as
paginas soltas da historia dos seus reciprocos amores, e, talvez, as
fatidicas tristezas da morte que empeceu ao desabotoar das vergonteas
d'aquella poderosa phantasia. Como quer que seja, desde que João
Baptista Gomes se extinguiu, raras vezes as honras posthumas lhe
enverdeceram a gloria na lembrança dos vivos, nem alguem se lembrou de
lhe estremar os ossos sepultados na igreja de S. Francisco.

No _Elogio_ aos portuenses, ha versos de profundo sentimento, de elevado
conceito, e dos mais condimentados com as especies arcadicas d'aquelle
tempo.

Queiram-lhe bem os portuenses ao seu poeta, e inscrevam mais este nome
no numero dos que, depois de cantarem duas ou tres primaveras, quebraram
a lyra na pedra do sepulcro. Que mysterio haverá n'esta ceifa da morte,
n'este golfão que tantos cerebros grandes e ardentes dissolve na leiva
dos cemiterios?--Coelho Lousada, Evaristo Basto, Soares de Passos,
Arnaldo Gama, Ernesto Pinto de Almeida, Guilherme Gomes Coelho, e ainda
hontem o maximo entre os melhores, Guilherme Braga!...

      *      *      *      *      *

João Baptista Gomes, dez mezes antes de se arrancar não sei se ás
alegrias, se ás amarguras da existencia, pedia esmola para os
encarcerados, e deixava aos seus portuenses talvez os derradeiros sons
da sua harpa.

Dizia assim:

    Louvores á virtude aos céos aprazem:
    Nas aras da verdade puro incenso
    Respeitosa tribute a humanidade
    A quem da humanidade os males pungem,
    A quem aos males da indigencia acode;
    Com piedosa mão, mão generosa,
    Da macilenta face ao desgraçado
    O pranto enxuga, que a penuria arranca.
    Sensiveis cidadãos, porção mimosa,
    D'alta prole de Luso esmalte, e gloria,
    Meus hymnos relevai, que aos vates cumpre
    Honrar a quem dá honra á especie humana:
    Beneficas acções, que almas transportam,
    Por desafogo d'alma applausos pedem.
    Na sinuosa habitação do crime,
    Nas pavorosas, lobregas masmorras,
    Onde fome, e nudez (oh dôr!) outrora,
    As miserandas victimas ralavam;
    Onde o estridor horrisono dos ferros,
    D'imprecações, de pragas, de blasphemias
    Era, não sem razão, acompanhado;
    Alli onde animados esqueletos
    Bradavam pelo jus, que á vida tinham,
    Em quanto justo oraculo de Themis
    Castigo aos crimes seus não arbitrava;
    E os descarnados braços, d'entre os ferros
    Famintos estendendo as mãos escassas,
    Com lamentosa voz, parco alimento,
    Quasi desfallecendo em vão pediam;
    Alli, onde impio throno a morte alçára,
    Tem agora seu throno a humanidade.
    Amavel, divinal beneficencia,
    Dos céos emanação, innata ao homem,
    Lei filha da razão, que a natureza
    Indelevel gravou no peito humano!
    Só tu fazes heroes, só tu distingues
    Os entes racionaes das brutas feras.
    Cobraste, ó natureza, os teus direitos,
    Desaffrontada estás. Exulta, ó patria!
    Na estancia destinada ao crime, á infamia,
    Inconcusso padrão teus beneficios
    Fabricado já tem á gloria tua.
    Os carceres contempla, e goza o fructo
    Das acções, que praticas generosa,
    Em louvores trocadas as blasphemias;
    Co'a justiça abraçada a humanidade;
    Abundancia frugal alenta os tristes,
    Que inerte esquecimento abandonára
    Nas garras da penuria, e dos flagicios:
    Como se não bastasse aos desgraçados
    Do crime o peso, o peso dos remorsos,
    Da justa punição a idéa horrivel!
    Quem ha que delinquente ser não possa?
    E ha de auxilio negar-se aos delinquentes?
    Os culpados não deixam de ser homens:
    E á compaixão dos homens tem direito,
    Compaixão, não esteril, prestadia.
    A bem da humanidade taes dictames
    Leu em seu coração heroe prestante;
    De honrosa instituição motor ditoso,
    Com seu sopro accendeu piedoso incendio
    Em corações dispostos á piedade:
    Liberaes á porfia generosos,
    Sobeja caridade exercem todos.
    Oh dadiva do céo! alma sublime,
    Que recto, imparcial punindo os crimes
    Pranteias compassivo os criminosos,
    E ao culpado infeliz auxilio prestas,
    Aligeiras seu mal, a mão lhe estendes,
    Que invergavel d'Astrea a vara empunha,
    Illustre... Mas que faço? o teu preceito,
    Tua nobre modestia me prohibe
    Teu nome proferir porém debalde:
    Mesmo entre ferros o profere o afflicto,
    Que de lisonja vil não é suspeito;
    Perenne gratidão aos astros manda
    O nome teu, que impresso em nossos peitos,
    Transmittido será de paes a filhos!...
    Mais quizera dizer, dissera pouco
    Por muito, e muito, que dizer podesse:
    Custa ao vate conter d'alma os transportes:
    Mas silencio m'impões, silencio guardo.



AUTO DA FÉ... A RIR


O meu benevolente mestre e amigo, o snr. Innocencio Francisco da Silva,
alludindo ao que se escreveu no n.º 10 das _Noites de insomnia_, a
respeito do infeliz e talentoso José Anastacio da Cunha, diz-me o
seguinte: _A proposito, occorreu-me offerecer-lhe o papel junto, copia
de outro que possuo ha bons quarenta annos. É uma noticia assás
circumstanciada e divertida do auto da fé, em que sahiram penitenciados
o mallogrado professor da universidade e seus companheiros. Se acaso v.
entender que a narrativa agradará a alguns leitores das NOITES, póde
dar-lhe ahi as honras da publicidade, etc._

Segue o curioso papel que, a meu vêr, é a photographia das cousas e das
pessoas d'aquelle tempo, avultando á primeira luz do painel o cardeal da
Cunha, inquisidor geral:


Noticia presencial do auto da fé a que presidiu o cardeal da Cunha em
11 de outubro de 1778.

«Meu pai tinha grangeado, não sei como, a amizade, e era muito da
obrigação d'esse cardeal inquisidor geral, que na vespera do auto da fé,
em que sahiu José Anastacio com os outros seus companheiros, veio a
nossa casa e recommendou a meu pai, que ao outro dia, _para boa doutrina
e exemplo_, mandasse seu filho assistir a esse acto de religião: «_venha
o rapaz_ (disse o tonto); _venha cedo; que almoçará commigo, e depois
tambem lhe darei de jantar_.» Assim m'o encommendou o meu velho, quando
n'esse dia me recolhi a casa, e não tive eu mais remedio senão
apresentar-me ao outro dia na casa triste, aonde cheguei a tempo de vêr
levantar-se da cama o alarve do inquisidor, que enceroulou os seus
calções largos, e esfregando os olhos, bocejando, e fazendo cruzes na
bocca, me levou para a mesa do almoço, que nos foi servido de café com
leite e as torradas competentes. D'ahi abalamos para a capella da
inquisição, aonde foi a minha boa fortuna o ficar assentado junto a um
frade de S. Domingos, homem com menos de meia idade, mas de juizo
inteiro, segundo o mostrou no discreto e gracioso motejo, que fez de
quanto se passou n'aquella santa e religiosa feira da ladra. Tivemos
missa inteira, e depois tivemos sermão, que bem fôra o ter sido partido
por todos os dias do anno, por o muito que nos enfadou com um sem numero
de sandices o prégador. Quando as este vasava do sagrado almofariz, não
escapavam ellas ao meu visinho, que para mim se voltava, dizendo
admirado: «_arre! e como é eloquente o prégador!_» E tambem, quando ao
lêr da sentença, os réos, segundo o chavão e formulario do santo
officio, foram alcunhados de deistas, atheistas, herejes, scismaticos,
etc., o bom do meu visinho, pondo os olhos no céo com grande compunção,
dizia: «_Jesus Maria! Que gente tão ruim!... Atheistas e deistas ao
mesmo tempo!... E ainda com mais o trambolho de herejes e
scismaticos!... Valha-nos Deus com tantos peccados!_» Todavia, a
gravidade e recolhimento discreto desamparou a esse bom frade, assim
como a maior parte da companhia, quando se leu a sentença, havendo por
intervallos uma assuada geral de gargalhadas, rompida por os fidalgos,
que assistiam de familiares. Quem não havia rir? Entre os cargos, que se
faziam aos réos, entrava o de que nos dias d'abstinencia deitavam postas
de vacca em baldes d'agua, d'onde tiravam a carne com um gancho, e a
chamavam _pescada_, que mandavam guisar para o jantar! Entre os mais
graves capitulos era o que se fazia ao réo João Manoel d'Abreu, o qual,
perguntado--qual tinha por mais violento, o fogo do inferno ou o do
purgatorio? Respondeu: _O do purgatorio._ E instado por a razão de o
julgar assim, tornou a responder: _porque o do purgatorio, além de
queimar as almas, tem a força de aguentar as panellas de tantos mil
frades e clerigos, que d'ahi vivem._ Sonora gargalhada, que retumbou por
toda a capella, com grande escandalo dos padres tristes.

José Anastacio, com todos os mais penitenciados, tinham velas de cêra
amarella nas mãos[22]; estavam todos com o semblante carregado
e melancolico, senão o major de artilheria de Valença, que se estava
sorrindo; e, acontecendo pôr os olhos nos d'um conhecido seu, logo lhe
fez uma cortezia com o brandão de cêra, por o modo, que o faria com a
espada, se estivesse mandando uma parada. Emfim, acabou-se a farça;
sahiram d'ahi os penitenciados para os lugares de suas reclusões, e nós
para o abundante jantar, que nos deu o cardeal. Quando assentados á
mesa, voltou-se elle para mim, e começou a me admoestar por esta
maneira: _Então, snr. V... viu vm.ce a piedade e misericordia da santa
inquisição? Veja como deu castigo brando a tamanhas culpas! Porém, isso
foi por a primeira vez; que se tornarem a delinquir, não hão de ficar
assim._ A isto respondi eu--que me parecia deviam os penitenciados ser
mais d'uma vez perdoados; porque, perguntando Pedro a seu divino Mestre,
quantas vezes se havia perdoar ao peccador; se deveria ser até sete
vezes, Christo lhe respondera: _não só sete vezes, mas sete vezes
setenta; pelo que_ (continuei eu) _multiplique v. exc.ª sete por
setenta, ou 70 por 7, e achará a conta de 490 vezes, que se deve perdoar
ao peccador, e d'ahi se a inquisição quizer seguir a doutrina da
Escriptura, ainda aos que foram agora penitenciados se deve 489 vezes o
perdão_. A este tempo estava um dominicano, frei José da Rocha, grande
valido do cardeal, por traz d'elle, fazendo-me signaes para que não
continuasse o discurso; e para esse frade, como para arbitro e
qualificador, se voltou o cardeal: _hui! oh frei José! Aquillo que diz
este rapaz vem lá na Escriptura?_ Depois d'algum empacho, respondeu o
frade: _Isso lá vem por algum modo, como v. exc.ª sabe melhor do que eu;
mas, para que é agora acarretar a Escriptura para o jantar? O que se
agora ha mister é refeição corporal, e não espiritual._ Ficou com a
decisão um pouco turvado o cardeal, mas logo, dando maior pinote, poz
termo á questão dizendo: _Pois se isso vem lá na Escriptura, nós cá é
outra cousa._ E como isto disse, foi entrando pela sopa.»

    [22] A côr amarella é de reprovação, e a usavam os inquisidores nas
    velas e sambenitos dos penitenciados, talvez por ser d'essa côr a
    tunica, que sempre em todas as pinturas se dá a Judas traidor, assim
    como n'ellas a S. João sempre se deu a tunica verde. D'ahi vem
    talvez a côr das fitas e capellos na faculdade de medicina, a qual
    era antigamente a menos nobre das faculdades em a nossa
    universidade, e por isso seguida, por a mór parte dos que o povo
    infamava com o titulo de _christãos-novos_. Todavia, já nós
    conhecemos época, em que a côr amarella andou mais em moda, que a de
    purpura, e foi em França, legisladora de modas e vestidos; pois
    quando ahi nasceu por 1811 ou 1812 um filho a Bonaparte, foi tão
    geral em todos a alegria, que para solemnisar tão feliz
    acontecimento, todas as senhoras trajavam de côr do excremento do
    menino. Oh francezes!...

FIM DO 11.º NUMERO





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 11 (de 12)" ***

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