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Title: O Claro Riso Medieval
Author: Lima, João de Lebre e
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "O Claro Riso Medieval" ***


                        JOÃO DE LEBRE E LIMA

                           O claro riso
                             medieval

             CONFERENCIA LIDA PELO AUTOR NO PRIMEIRO
               SALÃO DOS HUMORISTAS E MODERNISTAS
             REALISADO NA CIDADE DO PORTO 14-VI-915



                        LIVRARIA CHARDRON
                   DE LELO & IRMÃO, EDITORES
                           PORTO-1916



Als ik kan

    Sinal do pintor
    Jehan de Eyck



O CLARO RISO MEDIEVAL



Do Autôr:

    O LIVRO DO SILENCIO seguido dos POÊMAS DO CORAÇÃO E DA TERRA (1913)

        A seguir:

    DA PÊNA DE MORTE

    PALAVRAS... PALAVRAS

    O TEAR DE PENÉLOPE



                        JOÃO DE LEBRE E LIMA

                           O claro riso
                             medieval

             CONFERENCIA LIDA PELO AUTOR NO PRIMEIRO
               SALÃO DOS HUMORISTAS E MODERNISTAS
             REALISADO NA CIDADE DO PORTO 14-VI-915



                        LIVRARIA CHARDRON
                   DE LELO & IRMÃO, EDITORES
                             PORTO



                AOS EXPOSITORES E CONFERENTES
                            DO
                        PRIMEIRO
                    SALÃO DOS HUMORISTAS
                        HOMENAGEM DE
            ADMIRAÇÃO, RECONHECIMENTO E SIMPATIA.


                        J. de L. e L.



        Quand une chose me plaira, je ne prétends pas qu'elle te plaise,
        encore moins qu'elle plaise aux autres. Le ciel nous préserve des
        legislateurs en matière de beauté, de plaisir et d'émotion! Ce que
        chacun sent lui est propre et particulier comme sa nature; ce que
        j'éprouverai dépendra de ce que je suis.

                                                TAINE--_Voyage en Italie._



                                            MINHAS SENHORAS
                                            MEUS SENHORES

Eu não sei de período histórico que mais malsinado tenha sido, por
quanto arengadôr comicieiro se tem lembrado de evocal-o, que esse que
pelo nome dá de Meia-Idade, fecundo e generoso período que a erudição
moderna, ha uns lustros a esta data, com tão desvelado carinho vem
reabilitando, para mór desespêro e atarantação dos que na «noite dos
seculos», «treva da Humanidade» e «aviltamento do espírito humano»
encontraram bordões cómodos a que apoiar a sua indolencia
intelectual e o seu arripiante desdém pelos processos honestamente
scientíficos de fazêr ou espalhar a História. E é com um regalo um
tudo-nadinha perverso que eu esfrego as mãos a cada nova descoberta,
visionando a desorientação sempre maior que vai por casa do Senhor
Logar-Comum e de sua estimavel consorte, Mme. Frase-Feita.

Popularisada pelo espírito sectarista da Renascença, ainda conserva
raíses teimosas no cérebro contemporáneo a impressão de que a
Idade-Média mais não foi do que uma deprimente crise, em que tudo quanto
de nobre existe no homem correu sério risco de naufrágio.

Porque, ao alvorecêr do cristianismo, das landes e florestas bravías,
da Germánia, alguns milhares de teutões, brutais e fortes, como vaga
assoladora descêram até aos países que se abrigavam sob a asa, já
então desplumada, da águia romana e porque, esfacelado o Império que
assombrára o mundo, essas rudes hordas batalhadoras durante alguns
centos de anos rijamente se haviam disputado os pingues bocados da
prêsa, logo para o critério racionalista, factício, estreito, dos
humanistas do _Quattrocento_ os dez séculos que precederam a
ressurreição da cultura greco-latina se tornaram num grosseiro e
despresivel rosário de ladroagens, devassidões e carnificinas--assim
como que uma jaula enorme em que um bando faminto de ursos se
entredevorasse, enraivado e excitado pela sangueira.

Por outro lado, as preocupações doentias do _au-delà_, os terrôres do
inferno e o papel capital que a Egreja desempenhou em todas as grandes
crises da época, criaram a lenda de que os tempos medievos haviam
coalhado em todos os lábios os sorrisos e as palavras de alegria,
tornando o mundo num gelado claustro de convento, aonde ninguem se
atrevia a falar alto, com mêdo de perturbar o sussurro das litanias e
dos _Kyries_.

O mundo era demasiado estreito para nêle cabêrem à vontade outras
figuras que a do frade e a do cavaleiro não fossem. E como por traz do
burel monástico se ocultava o mistério da Divindade, isto é, a incertêsa
do _além_--que tanto podia sêr o paraíso como as labarêdas implacaveis
do inferno--e a cota de malha dos guerreiros apenas prometia mortes,
pestes, assolações e fome, inferiu-se levianamente que, da queda de Roma
á queda de Bisáncio, a alegria se exilára duma terra que a não
compreendia, tão absorvidas andavam as almas pelo cuidado da própria
salvação e os corpos pelo terrôr da morte sempre presente.

A própria catedral gótica (que é o mais intenso himno de júbilo que
conheço) foi erradamente encarada como um simbolo de tristêsa, de
dolorosa anciedade, de cobardia até[1]!

Essa arquitectura de sonho, tão fragil e amavel aos olhos como uma velha
renda de Malines ao tacto, foi inventada, disse-se, para enternecer,
para subornar manhosamente Jehovah, tão ríspido e intransigente como nos
tempos remotos do Exodo e do Pentateuco.

Não se amava Deus, como não se amava o rico-homem feudal. Mas pagava-se
o tributo a um e a outro para arredar calamidades da beira da porta.

Assim se figuraram a Idade-Média os contemporáneos de Lourenço de
Médicis: aos pés do lirio mistico de Dante Alighieri a acha de
armas, pingando sangue, de Gilles de Rais--o Barba-Azul da legenda.

Assim tambem a imaginamos nós ainda, os melancólicos e scepticos
contemporáneos de Mr. Anatole France e da politica parlamentar.


Certo, muito de exacto se pode topar no fundo deste conceito.

Efectivamente, ao desabrochar da era actual, o homem assistiu a um
espectáculo de catástrofes e horrores capaz de desconcertar a imaginação
do mais absurdo creadôr de _films_ cinematográficos ou do mais
fantasioso _metteur-en-scène_ de grand-guignolescas tragedias. Durante
cêrca de duzentos annos (que tanto durou a invasão ocidental dos
bárbaros, ou, na xaroposa denominação tudesca, a migração dos povos) um
ciclónico vento de agonia e desvairo sacudiu toda a Europa, de
Bisancio--ultimo santuário do heleno-romanismo--ás praias fecundas do
Atlantico.

O imperio dos cesares, perdida a virtude antiga dos seus homens e
relaxado o culto severo do exclusivismo da _civitas_, arquejava sôb a
nuvem de extrangeiros, que, espontánea ou forçadamente, acorriam a Roma
de todos os cantos do mundo, e morria, asfixiado, de beiços colados
sofregamente aos seios morenos e lascivos das escravas asiáticas e ás
gargantas firmes e frias das loiras mulheres do Norte--que tinham
grandes pupilas azúes de creança e provocantes receios de gazela, que os
halalis de caça desorientam.

Os membrudos legionários, que desbarataram as coortes de Anibal e sob
todos os sóes haviam passeado a águia de oiro da _Roma Victrix_, já não
podiam com o rijo casco dos tempos heróicos e usavam agora um chapéo
leve e nem couraça traziam. Dos campos desertava a população rural, que
para as cidades enveredava, sequiosa de partilhar as inéditas volúpias
dos triclinios em festa. E já não era sómente ao claro Apolo e a Venus
Anadyómene que Roma erguia altares votivos e sacrificava as réses e os
fructos do ritual litúrgico, mas a quantas misteriosas e tenebrosas
divindades esquálidos profetas lhe traziam dos confins dum Oriente
rutilante e exasperado e hirsutos druidas, cobertos de alvas túnicas de
linho, importavam das florestas sombrias e metafisicas da Gália.

Foi então que os Bárbaros apetecêram a cortesan romana, que, nos
átrios de mármore e sôb o olhar vasio das estatuas, uivava de luxúria
monstruosa, entre cacos de taças estilhaçadas e sob um chuveiro
continuo, embriagante, exaustivo, de pétalas de rosa.

E a epopeia do Fim principiou...

De norte a sul e de oriente a ocidente, um frémito de terrôr galvanisou
a carne entorpecida do heroi, que ia morrer--que inexoravelmente ia morrer.

Num derradeiro lampejo de coragem, dessa coragem sublimada e excelsa que
lhe déra mundos e a sua quadriga de triunfo acorrentara cem raças, êle
ergueu-se, então, cambaleante, meio tonto da ultima bacanal, e, sacando
do pesado gladio de Rómulo e Remo, tentou ainda uma desesperada
resistencia á investida dos que lhe cobiçavam as pedrarias das arcas e a
carne voluptuosa e dôce das mulheres requintadissimas.

Mas, ai! aos músculos do seu braço não acudiu o vigor de outros
tempos--e dos seus dedos afusados, femininos, cobertos de joias, o
gladio das victorias desprendeu-se e, ao bater no mosaico do chão,
partiu-se em mil bocados, com um ruido sinistro de bronze que se lamenta...

E os Bárbaros entraram.


E os Bárbaros entraram, de roldão, como um _sirocco_ de inferno, talando
campos, incendiando cidades, semeando a morte e o horror por onde
passavam. Á sua aproximação burgos inteiros se despejavam de habitantes
e as legiões, que o desuso da guerra amolentára, fugiam tambem, mordidas
de terrôr pânico.

Foi um êxodo trágico, que nenhum Rochegrosse poderá ressuscitar!

Sobre as terras do Império agonisante a morte desdobrára as azas rígidas
e o Império acabava, afogado em tristêsa pela brutal profanação...

Mas, mais alto ainda que o desespêro estridente das mulheres e o clamor
ululante dos vencidos, subia a gargalhada satisfeita, a imensa
gargalhada das hordas victoriosas. Riso de embriaguês, riso de insania,
que importa? era um riso que fazia estremecer a terra inteira e sob a
abóbada do céo écoava como um himno triunfal!


Depois...

A Historia aqui balbucia.

Pouco a pouco a tempestade amainou. Das inúmeras tribus, lançadas como
irresistiveis arietes contra a muralha latina, umas, levadas pela
vertigem de epopeia que os seus chuços de guerra andavam escrevendo,
desabaram caudalosamente sôbre a Iberia e, atravessando o mar, fôram
perder-se nas areias de Africa, como regatinhos míseros, que o deserto
facilmente engole; outras--a maioria--menos ambiciosas, ou mais
extenuadas de tanto pelejar, cravaram no chão as suas tendas de pele de
cabra e a primeira noite dormida em sólo romano foi a primeira de uma
Historia nova, de um mundo novo.

Para traz de elas e ao seu redor nada restava da luminosa sociedade que
sabia de cór hexámetros de Horacio e com Petronio aprendêra a arte
subtil de enrugar uma toga. Palacios, termas, sumptuosos pórticos e até
humildes cabanas de tijolo jaziam por terra, desfeitas em cinzas, que
fumegavam ainda. E as estatuas mutiladas pela primeira vez sentiram
aflorar aos seus olhos de marmore, divinamente impassiveis, uma lagrima
de humana piedade...

A Belêsa antiga morrêra!

Debalde os invasores, num supersticioso temor de _parvenus_ selvagens,
tentaram ressuscital-a e com ela o mecanismo complicado e sabio da
administração romana.

«Começou-se a restauração dos aqueductos, banhos e teatros; chegou-se
mesmo a edificar monumentos novos, como o palacio de Verona e a basilica
de Ravêna. Os espectaculos recomeçaram, reabriram as escolas de
retórica. Mas os Godos não toleraram por muito tempo similhante regimen.
Após a morte de Teodorico, como a rainha Amalasonte tivesse confiado a
educação do filho a preceptores romanos, os principais guerreiros
exigiram-lhe que a creança fosse educada com os seus camaradas, para
com êles aprender a caça e o manejo das armas, conforme era de uso entre
bárbaros[2]».

Este episódio melhor que nenhum outro revela a fisionomia moral da Idade
Média dos primeiros séculos.

O vinho novo não se acomodava nos ôdres velhos. O pesado estatismo
latino embaraçava, sufocava os movimentos de aqueles homens que traziam,
de longe, um zeloso culto pela dignidade e liberdade do individuo.

Tudo, na civilisação que o Lacio cultivara ao longo das duas Europas,
meridional e central, se opunha e resistia á absorpção. Roma era um
estado enorme, disciplinado, culto e homogéneo, a despeito da
infinidade de povos diferentes que pela sua Lei se regiam. As suas
condições de estabilidade e a manifesta superioridade do seu talento
governativo davam-lhe um prestigio tão grande que muitos bárbaros, como
os francos, burgondos e wisigodos, não hesitavam em desertar em massa as
suas terras, para se colocarem sob a protecção do césar, que nove
decimas partes da população do imperio nunca vira e, talvez por isso
mesmo, temia e respeitava como a um deus.

Outras e muito diversas eram as condições da sociedade que para lá do
Reno e do Danubio ficava. O territorio da Alemanha actual encontrava-se
parcelado, dividido por um sem-número de tríbus, que se não estimavam
entre si e que, quando não guerreavam o Império, matavam o tempo
batalhando umas com as outras. Chefe supremo que coordenasse todas
aquelas energias dispersas não havia. Quando muito suportavam,
momentaneamente, qualquer _condottiere_, que a fortuna das armas em
certo minuto bafejara e cujo prestigio findava com o primeiro revés ou
com a morte, não chegando a criar tradição.

Este permanente estado de briga impedia o desenvolvimento de uma
superior cultura do espirito, permitindo unicamente as profissões que
podemos alcunhar de instinctivas: a pastoricia, a agricultura e a
guerra. Só esta ultima seria capaz de fixar unidade, se fôsse servida
por um plano politico nitidamente estabelecido, como sucedeu com a
conquista romana. Ora esse plano não existia. A guerra entre os
Germanos, porque era motivada por impulsos passionais e sofreguidão de
pilhagem, apenas logrou robustecer a barbarie e fomentar a dissociação.

Raça juvenil, fremente de acção e de paixões violentas, afeiçoando o ar
livre e os scenarios naturais, que melhor falavam á espontaneidade do
seu instincto, não podia intender as serenas discussões do _Forum_,
entre alabastros plácidos e inertes. Para estes homens, que dormiam a
cavalo e amavam com a simplesa de animais magnificos, só o que a vida
lhes revelava directamente seduzia as suas irraciocinadas preferencias.

Quando se assembleiavam, escolhiam um recanto ao acaso sob a copa de um
carvalho tutelar. E, ahi, sentados em calháus asperos, ouvindo o
gorgolejar das fontes e o balir dos rebanhos, tumultuosamente
deliberavam sôbre uma guerra a fazer ou um crime a julgar.

Além da natural distincção entre fortes e fracos não havia outras
hierarquias. Quem não podia brandir a massa de armas, que laborasse a
terra. Os guerreiros eram os pares do seu chefe. Cada tribu formava um
estado e todos se conheciam dentro de cada tribu.

Era o ensaio fruste da comuna medieval futura e das modernas
democracracias.


Deste conflicto se entretece a historia dos primeiros séculos de
barbarie, após a queda do Baixo-Imperio.

Se meu intuito fôra massacrar abusivamente a benévola atenção de Vossas
Excelências, eu poderia ainda--sem modestia e sem custo--longamente
dissertar sôbre o assunto. Mas, porque ele vos é familiar e eu careço
absolutamente de abreviar-vos, tanto quanto possivel, a fastidiosa
obrigação de me escutardes, deixarei em paz este confuso e tumultuado
desenrolar de guerras, brutalidades e catástrofes de toda a
sorte--tenebrosa retorta de alquimista maluco em que o mundo de agora já
se sente obscuramente fermentar.

Não o abandonarei, comtudo, sem primeiro ter salientado a minha
persuasão de que o riso não se sumiu da face da terra, mesmo neste
cataclísmico período em que horrorosas pestes aniquilavam provincias
inteiras e por cada espaço de setenta anos havia quarenta de fome e se
chegara a comêr carne humana.

Riso brutal, decerto, gargalhar selvagem de mandibulas desconjunctadas,
riso que faria desmaiar de espanto e de terrôr as _preciosas_ do palacio
Rambouillet e as marquesinhas liricas do Trianon--mas riso
verdadeiro, espontáneo, irreprimivel, riso de creanças e de heróes, riso
sem adjectivos nem _parti-pris_, riso simplesmente e nuamente riso!


Eis, porém, que o ano mil se avisinha.

Por toda a cristandade supersticiosa vôa celeremente a crença de que o
mundo vai acabar e todas as bôcas se contracturam num rictus de agonia,
que enlividece e espectralisa as máscaras.

Inutilmente alguns doutores da Igreja procuram destruir o credo absurdo.
Ninguem os ouve, ninguem acredita neles. O sortilégio do número embruxa
todos os cérebros e o contágio do mêdo acaba por ganhar aqueles mesmo
que a principio descriam.

Então viu-se esta coisa de tragédia esquiliana: multidões
rouquejando de aflição aos pés dos frades lívidos, dementadas procissões
de fanáticos azorragando-se até ao sangue, corais sinistras de
miseraveis erguendo para o céo parado mãos súplices e crispadas, como,
por certo crepúsculo da Hélade, as mãos convulsas das carpideiras, aos
gritos junto de Patroclo morto...

Ah! que supremo Artista, que semi-deus d'Annunzio cantará a angustia
dessa noite de epopeia!


Senhoras e Senhores, perdoai a quem, tendo-se proposto ocupar-vos do
riso na Meia-Idade mais não fêz ainda que passar-vos ante os olhos
quintos-actos de dramalhão histórico. É que, para a minha sensibilidade
e para o meu espírito, esta profunda crise da velha civilisação
ocidental tem captivancias de côr, _sorcelleries_ de mistério, de vida
intensa e magnífica, que em nenhuma outra encontro e que nenhumas
palavras sabem dar. Rasão por que...

Eu procurarei, no emtanto, absolvêr-me do venial pecado.

Ia dizendo que, ao aproximar do ano 1000, entre os cristãos se espalhara
a crença de que o mundo ia acabar e que o terrôr do Fim exilára das
bôcas pálidas o riso claro e sonóro de outras eras.

Breve, porém, se desfez o cauchemarêsco bruxedo. Ao clarear da primeira
madrugada do século XI, o homem, que--como escreve certo historiador de
arte[3]--se deitára para morrer, ergueu-se do seu catre,
atónito e deslumbrado, e a cristandade toda respirou fundo, desopressa
da lúgubre ameaça.

Era o remoto milagre de Lázaro redivivo que em plena Meia-Idade se repetia.

Então foi pelo mundo adiante uma alegria desordenada, febril, quase
dolorosa, como o casquinar das histéricas em face dum perigo que
inesperadamente se desfaz. Libertas do cruciante pesadelo, as almas,
reconhecidas, volveram-se para Deus, para esse Deus de misericordia e de
piedade que conjurára a apocalíptica ameaça. E as bôcas, que ainda
hontem soluçavam _requiems_ de desespêro, abriram-se num _te-Deum_
imenso, que iluminava a terra como um sol de gloria e para o céo subia
como o perfume de um roseiral sem limites.

A estas rudes creaturas, porém, não bastava o platonismo da oração. O
seu ingénuo e sincero reconhecimento anceiava por encontrar uma forma de
exteriorisar-se mais duradoira e efectiva que a das palavras, que
logo morrem mal nascem.

E encontraram a igreja románica.

Durante muito tempo o deus dos cristãos não tivera santuário próprio. O
credo galileu, mesmo depois de perfilhado pelo Imperio, era prégado em
casa de pagãos. E quando os recem-convertidos, no zêlo da sua fé,
pretenderam repudiar os templos, que a idolatria dos antepassados para
sempre havia maculado, e em seus espíritos nasceu o desejo de erguêr á
Divindade nova um altar novo, foi ainda á _basílica_ dos romanos que
êles fôram pedir o plano arquitectonico de que tanto careciam[4].

Logo, porém, que as invasões cessaram e uma paz relativa trouxe um pouco
de socêgo ao velho mundo _bouleversé_, começou-se a notar que o recinto
escolhido não satisfazia as exigencias de sensibilidade que o Verbo
nazarêno acordára em todas as almas.

Aquela grande sala nua, rectangular, monótona, de tecto horisontal e
escassamente alumiada, em nada correspondia, ou antes, nada traduzia da
aspiração ardente dos cristãos. Contra as pesadas traves de aquele tecto
raso, baixo, opressivo, as azas brancas da oração esbarravam e,
ensanguentadas, tombavam sôbre o lagêdo da nave, como pombas alvíssimas
feridas.

A par desta objecção de ordem estetico-sentimental, outra, de naturêsa
puramente material, mas não menos importante, havia a considerar: é que
tal processo de construir oferecia inconvenientes serios, dos quais o
menor certamente não era a cobertura dos templos, feita, em geral, com
enormes pedras horisontais, dificeis de obtêr, de trabalhar e de
colocar. Para iludir este grave embaraço várias vezes se tentou
substituir o granito por compridos pranchões de madeira. Mas a inovação
fracassou, pois as inclemencias do tempo e os incendios muito frequentes
em breve demonstraram a fragilidade do subterfúgio.

Foi então que o sistema das construcções abobadadas se apresentou ao
espirito de não se sabe que obscuro arquitecto de génio, que, um dia,
talvez em frente de uma arcada romana, as imaginou.

«Esta inovação acarretava uma série de modificações. Contrafortes
exteriores, mas ainda pouco salientes, encostaram-se ás parêdes,
exactamente nos pontos sobre os quais a abóbada fazia maior pressão.
Pilares macissos, com columnas encravadas em cada uma das quatro faces,
alternaram com columnas isoladas. Rasgaram-se as janelas em cintro
e, quando eram geminadas, uma claraboia as sobrepujava[5]».

Interiormente, a longa nave da basilica romana foi cortada, a dois
terços do seu comprimento, por uma nave perpendicular, de menores
dimensões, de sorte que o edificio ficou com a forma de uma cruz latina.
Exteriormente, além das modificações já apontadas, outra se verifica,
muito importante: o aparecimento do campanario ou campanarios, torreões
macissos, aderentes ao corpo da igreja e servindo não só para instalar
os sinos como tambem para vigiar os terrenos em volta, precaução
naturalíssima n'aqueles tempos de guerrilhas quotidianas.

«Quanto á decoração, não se fêz caso algum da simetria romana. A forma e
a ornamentação dos capiteis fôram completamente abandonadas á
fantasia dos esculptôres. Ha igrejas románicas em que não é possivel
encontrar dois capiteis similhantes[6].

Reparem agora Vossas Excelencias nesta gravura. É um _croquis_ da linda
igreja de Poitiers, _Nôtre-Dame-la-Grande_, um dos mais belos monumentos
religiosos da época que estamos analisando[7].

Frequente é encontrar nas historias de arte a afirmação de que esta
arquitectura é triste, pesada, conventual, acompanhada da inevitavel
explicação de que sómente á torturada, á sombria fisionomia moral da
Idade-Média se póde e deve atribuir a feição particular de similhante
arte. É nesta altura que é de uso sacar dos tropos retumbantes, a que já
tive ocasião de aludir nos umbrais de esta palestra, e dar cabo da pobre
Idade-Média, carregando-a de nomes feios, mutilando-a ferinamente,
enxovalhando-a e humilhando-a sem piedade.

Eu peço vénia para não juntar a minha debil voz ao côro dos
apostrofadôres, sem que a minha renúncia, comtudo, signifique pretenção
de afirmar que a êles não assiste o mais fugidio vislumbre de razão.
Sim, a arquitectura románica, á primeira vista, é melancolica, soturna.
Estas grandes paredes nuas e cegas, de uma espessura esmagadora, são
rebarbativas, duras, quasi hostís. O interior da igreja tambem não nos
dispõe melhor: a luz é coada por frestas tuberculosas, abertas aqui
e acolá, medrosamente, na mole compacta de granito. Sufoca-se lá dentro
com tanta penumbra e tanta frialdade. Dir-se-hia que de aquelas pedras,
de aquelas enormes pedras de castelo medievo, eternamente escorre um
suor frio de terror.

Terão razão, portanto, os que no templo do século XI se obstinam em
encontrar a mais fiel traducção do espírito supersticioso, coalhado de
angustias e pavores, que é para êles, o espírito do nosso antepassado
feudal?

Todas as ideias, por mais absurdas, são defensaveis--e esta é-o mais que
nenhuma. Todavia, parece-me que ainda aqui se toma um pouco a nuvem por
Juno...

O ano 1000 passára e, com êle, um dos maiores pánicos da cristandade.
Como é possivel que fossem tristes os homens que ergueram tais
edificios, se esses homens como que haviam renascido uma segunda vêz?

As próprias condições históricas da sociedade, que produziu a arte que
estudamos neste momento, parecem auxiliar a minha conjectura. O mundo
feudal ganhára uma certa estabilidade. As exacções e violencias dos
barões eram menos frequentes, porque o aparecimento das cruzadas
afastára da Europa um grande número de esses senhores brigões e
aventureiros. O camponez principiava a respirar. O fructo do seu
penosissimo labôr já lhe não era, como em tempos idos, insolentemente
surripiado pelos vílicos do castelo. O direito era ainda a força, mas os
costumes ganhavam cada vêz mais prestigio e o trabalho dos _glossadôres_
começava a sêr encarado como uma tarefa util e necessária. Com a paz
veio um esboço de prosperidade e o oiro afluiu ao velho continente,
arruinado e miseravel. O homem não era ainda feliz, decerto. Mas que
diferença entre o passado próximo e aquele presente, escancarado para um
futuro de que havia tudo a esperar e nada a temêr, por as almas e os
corpos estarem ha muito couraçados para todas as miserias!

Examinai de perto, agora, uma igreja de esta época. Vereis quão
facilmente se dissolve a vossa primeira impressão, ante as surprêsas que
vos reserva um exame mediocremente atento!

Arsène Alexandre, o historiadôr amavel da caricatura, afirma algures que
os constructores do templo medieval quizeram «aterrar por meio das
grandes linhas, alegrar e distrair pelo detalhe.»[8]

Eu não saberia dizer-vos melhor nem mais completamente a minha ideia.

Com efeito, a igreja románica é pesada, austera, no seu conjuncto
arquitectural--jocosa e satírica, frequentes vezes, em sua decoração.

Como interpretar esta contradicção?

Creio que facilmente, desde que saibamos que aos frades da época se deve
o plano da referida igreja. Os monges eram, ao tempo, os unicos homens
cultos da Europa meridional, que foi aonde a arte románica nasceu e
produziu os seus mais belos fructos. Refugiados nos mosteiros da
montanha ou perdidos na solidão das florestas despovoadas, êles
entregavam-se, nos intervalos dos oficios sacros, á piedosa tarefa de
recolher os fragamentos da velha náu latina desmantelada, pondo, na lide
ingrata, aquela amorosa e inabalavel tenacidade que mais tarde possuirá
os tres precursores da renascença medicénica: Dante, Petrarca e
Bocácio. Que admira, pois, que, ao planearem a nova casa de Deus, êles
se deixassem inconscientemente influenciar pela arte dos pagãos, cuja
nobre simplicidade de algum modo era afim do austero evangelismo de então?

Uma força tenaz e obscura, porém, se opunha á realisação integral da
concepção benedictina, erudita e grave: a imaginação popular. Mais puros
de sugestões alheias, ignorando por completo a arte antiga e a teologia
contemporánea, os pedreiros humildes, a quem a tarefa coubéra de erguer
o templo, desforravam-se da _contrainte_ monacal, dando largas á sua
fantasia exuberante e um pouco desordenada, quando chamados a decorar os
nichos, tímpanos, capiteis, portais.

Tudo quanto os interessava, todas as ideias que os preocupavam, uma
diabrura que os fizéra rir ou um vicio que pretendiam stigmatisar,
tudo nessas pedras ficou modelado pelo cinzel ainda ingénuo e
balbuciante, mas já irreverente e malicioso, dos mestres canteiros da
época.

É certo que, por vezes, no meio de essas lavranterias do granito, uma
cabeça monstruosa surge, relembrando antigos pavores. Simples capricho
de esculptôr-contista, historiando o inferno á mingua de outro assumpto.
O diabo era ainda temido, sem duvida, mas ao respeito de outrora
começava a misturar-se não sei que vago halito de mordacidade jovial,
que singularmente o apoucava...

Depois, por aquele principio que os psicólogos baptisaram de «lei do
esquecimento activo»--o qual nos ensina que a memoria do homem tem
repugnancia pelas recordações dolorosas e se esforça por libertar-se
de elas--, não me parece muito atrevida a afirmação que venho fazendo.
Sobre aquelas almas primitivas a lembrança da recente agonia pairava
ainda sinistramente. Que é, pois, de admirar que eles, libertos do
perigo buscassem atordoar-se, por um natural instincto de reacção,
entregando-se francamente a uma alegria, que não souberam exprimir?

E é, talvez, porque não souberam exprimir-se porque não tiveram a
ajuda-los um tecnica perfeita, que, ainda hoje, muitos afirmam, iludidos
pelas aparencias, que a esculptura decorativa da igreja románica, é na
maioria dos casos, recatada, austera e cheia de melindrosos
pudores--quando a verdade é que ela não passa de um riso que foi mal
rido.


Esta inconsciente revolta da imaginação espontánea e caprichosa dos
artistas contra o dogmatismo árido de uma reduzida _élite_ de eruditos
foi lentamente preparando as almas e os olhos para o milagre ogival.

A Europa, mesmo durante as invasões, nunca deixára de estar em contacto
com o Oriente. Com o advento das cruzadas as relações estreitam-se entre
os dois continentes. Os bárbaros guerreiros, que do velho mundo abalavam
á caça do infiel, voltavam de lá maravilhados com o explendôr de uma
civilisação que não intendiam, mas que os perturbava como o perfume de
uma flôr de estufa. E, nas desabridas noites de invernia, entre as
paredes fuliginosas dos donjons, ouvindo crepitar os grossos tóros de
carvalho na lareira, tudo era arregalar os olhos deslumbrados para o
rude homem de armas, que falava de êsses países longínquos como de um
paraíso inegualavel, em que tudo fossem preciosíssimos brocados, joias
scintilantes e palácios de mil côres, irreais como filigranas de cibórios!

Das altas salas do castelo a maravilhosa legenda descia até ao povo,
trazida pela bôca de algum menestrel tagarela, que a recontava,
prodigalisando tintas.

E sempre no auditorio havia um artista que a escutava, embebido, e se
ficava sonhando, mesmo depois da historia concluída e a multidão
dispersa...


Por uma gradual evolução, que não vem a pêlo detalhar, o gótico, filho
espúrio do románico, aparta-se de êste e, ahi por fins do século
XII, adquire fóros de arquitectura original. O plenocintro, acanhado,
frio, incómodo como uma grilheta, cede o logar á ogiva esbeltissima, que
se ergue para o céo com a mesma graça alada de duas mãos que resam e o
mesmo indefinido anceio de liberdade que faz estremecer de entusiasmo as
lanças compridas das comunas, luctando pela sua independencia
politico-económica.

A insurreição lavra por toda a parte e em todos os campos. Já de ha
muito o homem se rebelára contra a secura doutrinal dos teólogos, que
prégavam o horrôr pela carne e só das almas curavam, minando-as de
terror e desesperança[9]. «O cristão Abeillard nega o pecado original,
reabilita a dignidade dos sentidos e procura estabelecer, pelo estudo
imparcial da filosofia antiga e da doutrina dos Padres, a unidade do
espirito humano, desde a antiguidade até á Idade-Media. Quatro anos
depois da sua morte, Arnaldo de Brescia, seu discipulo, proclama a
republica em Roma[10]».

Entre a creatura e o Creadôr de novo se intromete a vida natural,
terrena, humaníssima, que, em vez de ser um contacto de infamia e
damnação, se torna no mais comovido meio de comunicar com Deus.

Certa manhan de chuva torrencial, Joaquim de Flora, numa qualquer
humilde capela de aldeia, prégava sobre o pecado. Súbito, a borrasca
serena e um raio de sol penetra alegremente na igreja, vestindo de
oiro os ombros vergados dos ouvintes. Comovido, o bom do frade cala-se
um instante e fica a olhar, extasiadamente, a nesga de luz... Mas logo
recobra os sentidos e, entoando o _Veni-Creator_, sái com a multidão
para o campo, a saudar o grande sol amigo[11]! Cem anos mais
tarde, á hora da sua morte, o maravilhoso pobresinho de Assis havia de
renegar o ascetismo, pedindo perdão ao irmão corpo de o haver maltratado
tanto. E, com o derradeiro suspiro, dos seus lábios exangues voariam
para o céo os versos imortais do «Cantico ao Sol»:

    Laudato sia, Dio mio signore,
    con tutte le tue creature![12]

A insurreição contra os moldes asfixiantes do Passado invade todos os
campos, desperta em todos os corações o anceio do libertamento.
Interpretes inconscientes do sonho comum, os trovadôres levam, de terra
em terra, com o embalo das liricas de amôr e o vinho acre e forte das
_canções de gesta_, o seu reportorio sempre aclamado de _fabliaux_
mordazes e sirventes implacaveis[13].

Por toda a parte um ritmo surdo, mas grandioso e indomavel, anima a vida
colectiva, conjugando energias dispersas, elaborando o sônho de
deslumbramento que nas catedrais góticas se perpetuará. Muito fraco
ainda para derrubar o barão feudal, o vilão procura neutralisar um
poderio que o insurge, vinculando-se fortemente á comuna, isto é, á
confraria dos seus pares. Assim fortalecido o seu esforço individual
pela coordenação de mil esforços, sedentos de liberdade, êle poderá
orgulhosamente solicitar do senhor os forais que o deixarão trabalhar em
paz e erguêr, mesmo em face do castelo da senhoria, o seu _beffroi_, tão
rendilhado e opulento como um templo ogival.

Para estas almas, cachoantes de revolta, um podêr ha, comtudo, que lhes
não pésa, nem excita ódios: o poder de Deus. É tambem o único que
aceitam sem murmúrio--mais, é o único que amam. E amam-no com um ardor
tanto maior quanto mais funda é a miseria em que se debatem. Porque,
para elas, amar a Deus é ainda de algum modo robustecer a febre de
insurreição que as abrasa, pois é tomar contacto com um _além_ radioso
em que não ha cavaleiros arrogantes nem servos espesinhados,
abençoado mundo em que todos são iguais e se não odeiam, jardim de
maravilha eternamente florido por onde nunca passaram fomes, nem pestes,
nem guerras incruentas.

Então as almas voltam-se para a casa de Deus na terra, para a igreja
acolhedora e apasiguadora, na anciosa esperança de ahi vivêrem mais
plenamente o sonho de universal fraternidade que as devora.

Em breve a estreita nave románica se torna insuficiente para contêr a
multidão, que ao assalto da felicidade confiada e alegremente avança.

A maré sobe, engrossa, faz pressão contra as muralhas do velho templo,
cujas pedras vão cedêr ante a irresistivel força de expansão da vaga
rumorosa e formidavel. E quando, por fim, as broncas paredes desabam e
sôbre a terra alastra o entusiasmo novo, das águas vivas da inundação
emerge, feminina, irreal, levíssima, a catedral nova, como um lirio
de milagre abrindo ao sol as suas pétalas de mármore!


Johannes Joergenson, o nobilissimo poeta dinamarquês, cuja recente
conversão ao catolicismo fez de êle o mais enternecido dos historiadores
de S. Francisco de Assis, conta, no seu «_Le Livre de la Route_», o
seguinte delicado episódio.

Um dia, certo anonimo pesquisador de belas coisas, encontrando-se de
passagem em não me recorda que medievesco burgo do Norte, lembrou-se de
visitar-lhe a catedral--notavel reliquia de arte gótica, ao que parece.

Depois de a havêr miudamente esquadrinhado, quiz rematar o seu exame por
uma ascenção ao mais elevado ponto da flecha, tão afusada e alta que os
maiores edificios da cidade pareciam de joelhos aos pés de ela. Ora
sucedeu que, ao chegar lá acima, áquela imensa altura, o nosso curioso
visitante inesperadamente esbarrou com um velho canteiro de longas
barbas de prata, que, de cinzel e de martelo em punho, minuciosamente
abria, num pedaço de granito desornado, um sem-número de minusculas
flôres e outros _motivos_ frageis...

Um instante interdicto, o turista acabou por interpelal-o, com um
sorriso de piedosa ironia:

--Eh! meu amigo, esse trabalho bem inutil me parece! Pois para que
servirão tantos cuidados, se, lá de baixo, ninguem, absolutamente
ninguem, poderá vêr e admirar a sua obra?!

Então, o pedreiro, volvendo para o indiscreto uns olhos plácidos e
ingenuos, retorquiu brevemente:

--E que não vejam?! _Deus vê_--é quanto basta.

E, de novo, o cinzel cantou sôbre o granito frio...

Á medida que o meu estudo mais intimamente me relaciona com a
Meia-Idade, mais no meu espírito se radica a impressão de que pela bôca
dêste velho obscuro lucidamente falam alguns séculos de Historia--quiçá
os mais intensos, senão os mais belos, de quantos o homem até ao
presente viveu.

«Deus vê!»

Pois não é verdade que nesta frase rápida, de uma singelêsa e de uma
precisão de legenda latina, nêstes dois monosilabos breves, que
facilmente cabem num hálito de creança, toda a Idade-Média se resume e
como se justifica amplamente?

«Deus vê!»

Sim, Deus vê. E porque Deus vê, e para que Deus veja, é que os
homens esventram montanhas e lhes roubam os mármores sem preço, vão ao
fundo da terra cavar os finos metais e as pedras rutilantes, jogam a
vida sôbre os mares traiçoeiros em demanda dos brocados e sêdas nunca
vistas--e de todos êsses tesoiros confusamente amontoados arrancam, por
fim, a mais audaciosa e deslumbrante maravilha do humano engenho: o
templo gótico!

Sim, é porque Deus vê que os Van Eyck põem todo o seu génio enorme no
retábulo de Gand e Memling toda a sua indizivel candura nas telas do
Hospital de Bruges; é porque Deus vê que Jehan Pucele, Pol de Limbourg,
Jehan Fouquet e outros gastam uma vida inteira iluminando insonhaveis,
preciosissimos missais, livros de Horas e psalterios; é porque Deus vê
que Fra Angelico, o divino, ergue as mãos em résa antes de começar o seu
labôr e nunca altera o que pintou, «_porque foi Ele quem guiou o seu
pincel_»; é porque Deus vê que um formigueiro de arquitectos e maçãos
levanta as catedrais de Amiens, Reims, Paris, Chartres, Bruxelas,
Lincoln, Colonia, Strasburgo, e pintores as decoram, e esculptores as
vestem de milhares de estátuas[14], e marceneiros as enriquecem com
madeiras prodigiosamente lavradas, e vitralistas-poetas, perdulários de
sonho e de emoção, lhes encastoam nas esguias ventanas ogivadas todos os
milagres da _Legenda Sanctorum_ feitos linha e côres inimitaveis. E é
ainda porque Deus vê que a quasi totalidade dos artistas dêsses fecundos
e gloriosos séculos de crença, de esperança, de legitimas revoltas,
deixa por assignar as obras que das mãos palpitantes lhes saem! Para quê
assignal-as?! Assoldadados embora, êles trabalham com elevado ardôr,
menos para agradar ao principe que os remunera, que ao Senhor _que os
vê_. Os homens poderão esquecer-lhes os serviços e até os nomes; Deus é
que sempre os recordará, pois por amôr de Ele labutaram.

A arquitectura religiosa da Baixa Meia-Idade é a creação suprema dêstes
anónimos Homeros. Todos êles, possuidos de uma fé igual, trazem à obra
comum o melhor do seu esforço: os artistas a sua arte, os sábios a sua
sciencia, os rudes o seu braço e até os mendigos o seu óbolo. «Graças a
êstes admiraveis trabalhadores, a catedral é um sêr vivo, uma árvore
gigantesca cheia de aves e flores. Mais parece uma obra da natureza
que dos homens... A igreja é a casa de todos, a arte traduz o pensamento
de todos... A catedral pode substituir não importa que livros. Só a
França soube fazer da catedral uma imagem do mundo, um resumo da
história, um espelho da vida moral[15]».

Nunca o preceito d'anunziano: «_crear com alegria_» foi tão
escrupulosamente observado como nêste periodo. De aquelas pedras,
amorosamente acasteladas até ao céo, num tão vertiginoso impeto que
chega a causar arripios, irradia uma tal satisfação, um tal
contentamento, que eu não sei de alma bronca que, em frente de elas, não
entreadivinhe, um instante, as delicias da Terra Prometida!

Do sombrio templo románico já nada ou pouca resta. O hieratismo e o
convencionalismo decorativos do anterior periodo cedem o passo ao franco
naturalismo do periodo que começa. Os grandes panos de muralha cega e
quasi nua vestem-se, de alto a baixo, de prodigiosos lavores e
surgem-nos agora tão recortados de altissimas janelas, enormes rosáceas
e frestas sem conto que a gente chega a ter a impressão de que a
catedral está suspensa no ar!

Deixai o grande Taine dizer que o interior do edificio é lúgubre e
frio[16] e escutai-o antes quando ele vos descrever, na sua
prosa sumptuosissima, tão luminosa e forte como um alabastro da
Acropole, as catedrais de Assis e de Milão.[17]

Não, meus senhores, a arte ogival não odiou a luz, antes a fêz a sua
mais assidua colaboradôra e até por amôr de ela se perdeu. «A
arquitectura gótica repudiou a obscuridade... Quando a catedral é
obscura é porque o mestre de obras calculou mal o seu esforço, quiz
obrigal-a a dar mais do que ela podia, ou pretendeu acumular nos seus
flancos multidões sôbre multidões, como em Paris, aonde as quatro naves
laterais aparecem esmagadas por galerias inúmeras. Se vestem as largas
aberturas de vitrais, não é para entenebrecer a nave, mas para
glorificar a luz............. O vitral oferecia a sua matriz inflamada
aos dias pálidos do Norte, para que o afago de êstes fosse mais quente
á pedra que de todos os lados subia. Os seus azues liquidos, os seus
azues carregados, os seus amarelos de açafrão e de oiro, os seus
alaranjados, os seus vermelhos vinosos ou púrpureos, os seus verdes
densos, arrastavam ao longo da nave o sangue de Cristo e a safira
celeste, o rubro das folhas de vinha que o outono crestou, a esmeralda
dos longinquos oceanos e dos prados de em redor. Em verdade êle apenas
atenuava as suas rutilantes policromias no fundo das capelas absidiais,
aonde a mancha dos cirios fazia tremular a noite. Era um pretexto para
acumular á roda do santuario a imprecisão angustiosa e a volúpia do
misterio. Mas desde que o céo se descobre, a grande nave estremece de
alegria e o cántico triunfal da luz espalha-se por toda ela em grandes
lençois de oiro[18]».

      *      *      *      *      *

Eu termino.

«_Lunga fu la gioniata_» como diz o Poeta--longa e fastidiosa, ai de
vós, ai de mim! Pilôto inhabil, atarantadamente guiei os vossos passos
atravéz de regiões cuja extranha beleza a minha palavra dura e a minha
sciencia minguada vos não souberam salientar. Adivinho os vossos
reproches e curvo, em silencio, a pecadôra cabêça...

Mas se, para não agravar as muitas culpas de que me acuso, vos poupo
miudas justificações, outrotanto não posso fazer com respeito a certa
falta, que absolutamente careço de explicar.

Prometi eu falar-vos do riso na Meia-Idade e, afinal, apenas vos
contei--e quão pobremente o fiz!--da clara alegria medieval.

Certo, o riso e alegria são irmãos. Ás vezes, porém, tão arredados andam
um do outro, que mais se diriam extranhos que gerados no mesmo ventre.
Nas máscaras dos que nos rodeiam quantos risos sem timbre! quanta
alegria tambem que desconhece o esgar hilariante! É que os primeiros, à
similhança de certas bizarras plantas que não carecem da terra para
viver, podem florir sem ter raizes na alma. Mas a segunda é o próprio
humus que palpita sob o profundo beijo de Anteu, a própria alma exaltada
e transfigurada. Joana de Arc, sagrando Carlos VII após a sua marcha
heroica e miraculosa sôbre Reims, não sorriu; mas o seu coração batia as
azas, festivamente, como uma pomba em maio... Sôbre o glorioso Monte
Alverne, na manhan dos Stigmas, o divino filho de Bernardone não
sorriu tambem; mas os seus olhos brilhavam, como se toda a luz do sol
lhe cantasse dentro do peito.

Foi de uma alegria assim que eu vos falei, de uma prodigiosa alegria
que, durante séculos, fêz bater mais depressa o coração de um mundo
adolescente--e não do riso que os homens dessas eras tão espontanea e
clamorosamente riram. Porque, atravéz de todas as miserias, de todas as
vexações, de todos os dramas, essas ásperas creaturas souberam rir o
mais puro e claro riso que a velha Europa viu rir depois que os herois
de Homero se calaram. Simplesmente--e com isto penso absolver-me da
voluntária culpa--êsse belo riso não é para aqui, para um auditorio que
tantas e tão gentilíssimas senhoras aformoseiam.

As catedrais medievas são verdadeiros museus de inconveniencias lavradas
em granito. Nenhum acto, por mais intimo, da vida de cada um se exime a
figurar nelas com um realismo só familiar aos compendios de
fisiologia[19].

De uma velha inglesa solteirona sei eu que, em frente de um capitel em
que duas nudezes se enroscavam mais vivamente, ia rebentando de
apoplexia. E, comtudo, lá na pensão belga em que a conheci, rosnava-se
com bonhomia que Vesta talvez não fizesse boa cara às oferendas desta
encortiçada pucela...

De facto, a chalaça dos nossos avós frequentemente descamba no
escabroso. E as suas melhores _boutades_ ainda são aquelas que só
podemos contar aos amigos em noites de tertulia ruidosa ou, pelo
telefone... às madamas curiosas.

Ingenuos, simples, duma franqueza de crianças terriveis, amando rir e
nunca perdoando a quem os arreliava, os maçãos obscuros que conceberam e
realizaram a suprema obra de arte da Meia Idade jámais souberam calar o
que lhes ia nas almas, quer se tratasse dum sonho, quer duma farçada.

Um companheiro fôra surpreendido numa atitude grotesca? Dias depois uma
gárgula travêssa, suspensa no ar, faria rir toda a colonia de pedreiros
e os fieis que entravam para a missa. Um juiz prevaricára, deixára-se
subornar? O artista imortalisar-lhe-hia a façanha, pintando-o com
orelhas de burro, pernas de pato e compridas garras de ave de prêsa.

A ninguem perdoavam, nem aos senhores que tudo podiam sôbre os corpos,
nem aos clerigos, que tudo podiam sôbre as almas.

Mas, eu nunca mais terminaria se começasse a desfiar o rosário de
anecdotas que as velhas catedrais sabem de cór!...

Para V. Exas. fazerem uma ideia mais precisa desta crua franqueza,
passo a ler um fragmento de uma carta que Bocacio escreve a Mainardo de
Cavalcanti, apreciando o «Décameron» e censurando este seu amigo por
haver deixado ler tal livro às mulheres do seu _entourage_:

«Eu nunca poderei louvar-te por haveres deixado que as mulheres que te
rodeiam lessem os meus carapetões. Rogo-te, por isso, que nunca mais
consintas semelhante coisa. Bem sabes quanto desafôro e ofensas á
decencia, quantas excitações aos amores impudicos, quantas passagens
capazes de arrastar à prática de más acções os corações mais
experimentados nesse livro se encontram. Se as mulheres honradas, em
cujas frontes brilha ainda o santo pudôr, se não deixam induzir ao
adultério, tal leitura, no entanto, pode tornar as suas almas impudicas
e vicial-as pela tara obscena da concupiscencia. No caso em que a honra
destas mulheres não baste para te conter, então pensa na minha, pois
aqueles que me lerem hãode imaginar que eu não passo de um desprezivel
alcoviteiro e de um velho debochado, divulgador das patifarias de
outrem»[20].

Que artista de hoje subscreveria tão desassombrado libelo contra a
própria obra?

E já que evoquei a interessante figura do pitoresco filho de Certaldo,
não a deixarei sem contar-vos uma anecdota que vos dirá, melhor que
todos os meus comentários, como os nossos avós se desforravam dos
remoques das donas que se burlavam de amorios.

Bocácio, já velho, tendo encontrado no seu caminho uma formosissima
viuva florentina, apaixonou-se violentamente por ela. A dama, astuciosa
e galhofeira, fingiu não desdenhar as homenagens do poeta, que,
entusiasmado, lhe mandou cartas sôbre cartas, todas palpitantes dum amor
vulcanico. A certa altura, a ironica deusa, sentindo a necessidade de
pôr um dique forte áquela tumultuosa verbosidade e desejando imenso
folgar de gôrra com as amigas, reuniu todas as cartas e publicou-as. O
escandalo foi enorme em Florença. Então, para vingar os seus ultrajados
brios de Lovelace serodio, o nosso amoroso escreveu uma tremenda
verrina contra as mulheres, a que pôs o nome de _Corbaccio_ ou _O
Labirinto do Amor_, por nela se tratar das angustias dum namorado
perdido na floresta do Amor e que dela é tirado por um Espirito tutelar.
O namorado, bem de ver, é o próprio Boccacio e o Espirito a sombra do
marido morto, que vem do inferno à terra para desencantar o mísero
transviado, a quem revela, complacentemente, toda a miseria fisica e
moral do conjuge ironista.

Oiçamos a fala rancorosa:

«Quem a visse, como eu a via todas as manhans, com o seu barrete enfiado
na cabeça, o manto de noite sôbre os ombros, ir acocorar-se à beira do
fogão, e lhe tivesse contemplado os olhos ramelentos, encovados e baços,
tossindo e cuspinhando sempre, teria esquecido cem mil amores».

E por este diapasão afina o resto da tirada! Num dado momento abandona o
seu caso particular e generalisa:

«As mulheres apenas se ocupam de parecerem belas e serem admiradas.
Nenhuma ha que seja ajuizada e capaz de agir criteriosamente. Todas elas
são inconstantes, levianas, frívolas, querem e não querem uma coisa ao
mesmo tempo, excepto se ela se relaciona com os seus desregrados
apetites..... Fingem-se medrosas e tímidas; se estão num logar elevado,
queixam-se de vertigens; se é necessário entrar num barco, aqui-del-rei
que o seu delicado estomago não o suporta; se se trata de caminhar de
noite, receiam encontrar espiritos, duendes e até mesmo ratos; se o
vento sacode uma janela ou da parede se despega uma pedrinha, todas
se cobrem de suores frios.

Deus sabe, no entanto, como elas são atrevidas, quando se trata do que
lhes apraz! Não há rudeza de logar, precipicios de montanha, altura de
palacio, obscuridade de noite, que sejam capazes de as deter!»[21]

Não se agastem Vossas Excelencias, Minhas Senhoras, com as desamaveis
reflexões do poeta, nem comigo tampouco, que apenas as reproduzo pelo
saboroso pitoresco que encontro nelas. Tais desabridos queixumes, no fim
de contas, só em favor da mulher redundam. De ela tudo se tem dito desde
que o mundo é mundo--todo o bem e todo o mal. As mulheres fazem-me
lembrar as obras de arte, que só são inteiramente más quando ninguem
fala de elas. E a verdade, a grande verdade é que as mulheres são
obras de arte de que nós, homens, constantemente e regaladamente nos
ocupamos.

Mas se, para merecer o vosso perdão, isto não basta ainda,
recordar-vos-hei que, enquanto Bocácio dava largas à sua misogenia de
despeitado, o seu amigo Petrarca continuava a exalçar Laura e na memória
de todos os corações persistia a saudade amorosissima da mulher de
excepção que o Dante imortalisou!

      *      *      *      *      *

Com a Renascença o grande riso puro, vibrante, terra-a-terra, desaparece
de todos os labios para dar logar à casquinada erudita e petulante do
«humanismo». Os humoristas da transição--Ariosto, Rabelais, o nosso
mestre Gil e, mais tarde, Molière, Cervantes, o pintor Brueghel-o-Velho
e até o próprio Brantôme--são a gargalhada suprema, embora um pouco
dolorosa, dum mundo na agonia.

Oh! o _De profundis_ inegualavel!

De então para cá a alegria torna-se uma palavra quasi sem sentido,
vocábulo inerte que os dicionarios.--que são museus de palavras--guardam
sómente para satisfação de arqueologos amadores de inutilidades. No dia
em que o homem descobriu o sorriso e a ironia, da sua boca desertou para
sempre o grande riso de outrora.

Hoje, esbofado por cinco duros seculos de marchas forçadas para a
Civilisação, nem mesmo esse sorriso e essa ironia lhe restam! Quando
tenta rir, os musculos do _facies_ resistem ao desejo, cavando-lhe
mais fundo a sua tisica _grimace_ de neurastenico arqui-civilisado; e,
se procura ironisar, as palavras saem-lhe pela garganta com um rangido
seco, gritante, agudissimo, de porta com gonzos pêrros.


    [1] H. Taine, _Philosophie de l'art_, 1.º vol.

    [2] CH. SEIGNOBOS--_Histoire de la Civilisation: Moyen âge et temps
    modernes_, 5ième éd. Sôbre os monumentos de Ravêna, a Bisancio
    italiana, consulte-se o interessante volume de Charles Diehl,
    _Ravenne_, ed. Laurens--Paris, 1907.

    [3] E. PÊCAUT E CHARLES BAUDE--_L'art_, 10ième éd.

    [4] SALOMON REINACH--_Apollo_, 5ième éd.

    [5] EUGÉNE VÉRON--_L'esthétique_, 1878.

    [6] E. VÉRON--_Op. cit._

    [7] Na impossibidade de reproduzir o _croquis_ em referencia,
    indicamos ao leitor, que pelo assumpto se interesse, o livro já
    citado de E. PÉCAUT e CH. BAUDE e o valioso trabalho de ELIE FAURE,
    «_Histoire de l'art: L'art medieval_». Em qualquer de êles, bem como
    em qualquer antologia desenvolvida de artes plásticas, o curioso
    encontrará não só a reproducção do aludido monumento como a de
    outros, que o ajudarão a completar a sua visão estética dêste
    periodo.

    [8] _Histoire du rire et de la caricature._

    [9] ÉMILE GEBHART, no seu curioso romance _Autour d'une tiare_,
    revive o duelo formidavel, através das predicas antagónicas do
    asceta Egidius e do tolerante bispo Joaquim, curiosa figura de
    pre-franciscano, que o auctor esboçou sugestionado pelo grande vulto
    do Santo que a Idade-Media com mais fervente e duradoiro culto
    venerou.

    [10] ÉLIE FAURE, _Op. cit._

    [11] ÉMILE GEBHART--_L'Italie mystique._

    [12] S. Francisco de Assis é o poeta máxinio da Alegria--uma suprema
    figura de assombro. Na aurea legenda do cristianismo não ha vulto
    que o exceda em belêsa moral, nem lábios que tenham rido um riso
    mais comovido e pacificador que o seu. O Snr. JAIME DE MAGALHÃES
    LIMA resume assim um dos pontos mais salientes da clara doutrina do
    _Poverello_: «A mágoa será pecado de rebeldia; não ha dôr que não se
    torne benéfica, para exaltação da carne ou do espirito; a desgraça é
    uma ilusão; a toda a sorte havemos de sorrir; porque sempre,
    qualquer que seja, é caminho do bem. Todo o estado conduz à
    perfeição; em todo o momento trabalhamos na construcção de um
    edifício infindo de infinita belesa. A tristêsa será uma
    infidelidade religiosa; quem a admitiu no coração esqueceu o Senhor
    e os seus desígnios.» Cf. _apud «S. Francisco de Assis»_ pag. 150.
    Com o doce amigo do cardeal Hugolino (mais tarde Gregório IX) o
    catolicismo atinge o seu mais belo significado e um dos pontos mais
    culminantes da sua história--só comparavel ao periodo heroico do
    Apostolado. A quem o assumpto desperte interesse aconselho a leitura
    dos três belos trabalhos do dinamarquês JOHANNES JOERGENSON, de uma
    rigorosa probidade scientifica e de um encantador relevo literário:
    _Saint François d'Assise, Pélerinages franciscains_ e _Le livre de
    la route_ (trad. de Teodor de Wyzewa,) Perrin & Cie., Paris.

    [13] «_Les Fableaux_ sont sur tons sujets: y paraissent Dieu, les
    anges, les diables, les saints, les chevaliers, les trouvères, les
    jongleurs (trouvères de second ordre), les bourgeois, les
    moines--très souvent--les paysans. Les hommes de toutes classes de
    la societé y sont moqués, quelquefois avec une extrême finesse,
    quelquefois avec une verdeur gauloise un peu rude..... Les Fableaux
    peuvent être considerés comme la grande oeuvre de sagesse
    bourgeoise, de bon sens un peu sec et dur et de gauloiserie
    divertissante du moyen àge. Les romans de renart sont du même genre,
    mais avec plus d'ingeniosité.» _Cf._ E. FAGUET. _Petite histoire de
    la littérature française_, pag. 6 e 7. «Papas, reis e senhores, se
    nas canções recebiam a vassalagem da adulação, encontravam nas
    _cantigas de mal disêr_ o mais desassombrado castigo e a mais dura
    vingança. A avaliar pelo que dos cancioneiros nos resta, o
    comentario político e religioso teriam assumido uma extensão
    incrivelmente audaciosa» _Cf._ HIPPOLYTO RAPOSO, _Sentido do
    Humanismo_, pag. 14.

    [14] «A fachada de Nossa Senhora de Paris, que está longe de ser a
    mais rica, tem sessenta e oito estátuas muito maiores que o natural
    e a maioria de elas executadas com rara perfeição; ha mais de cem em
    cada um dos pórticos de Nossa Senhora de Chartres e de Amiens». ED.
    CORROVER, «_L'architecture gothique_» pag. 157.

    [15] MALE, cit. pelo DR. CABANÈS, _Moeurs intimes du Passé_, 3.ième
    série Paris.

    [16] «_Philosophie de l'art_» cit., pag. 81 e seg.

    [17] «_Voyage en Italie_» tômo II.

    [18] E. FAURE, _op. cit._, pag. 229 e segg.

    [19] CANANÉS _op. cit._

    [20] E. RODOCANACHI, _Boccace: poète, conteur, moraliste, homme
    politique_, Hachette, Paris, 1908.

    [21] RODOCANACHI, _op. cit._



PEQUENO MEMENTO
BIBLIOGRÀFICO

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                            ACABOU DE IMPRIMIR-SE
                            ESTA BROCHURA AOS  21
                            DE  DEZEMBRO DE  1915
                            NA    TIPOGRAFIA   DO
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