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Title: Costumes Madrilenos - Notas de um Viajante
Author: Lima, Sebastião de Magalhães, 1850-1928
Language: Portuguese
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                              MAGALHÃES  LIMA

                            COSTUMES  MADRILENOS

                            NOTAS DE UM VIAJANTE

                               SEGUNDA EDIÇÃO



                                   COIMBRA
                   LIVRARIA CENTRAL DE J. D. PIRES--EDITOR
                                    1877



COSTUMES MADRILENOS



COSTUMES MADRILENOS

NOTAS DE UM VIAJANTE

POR

S. de Magalhães Lima

SOCIO HONORARIO D'EL FOMENTO DE LAS ARTES DE MADRID

2.ª EDIÇÃO



COIMBRA
LIVRARIA CENTRAL DE JOSÉ DIOGO PIRES--EDITOR
1877



IMPRENSA ACADEMICA



AO

SENHOR.

D. BENIGNO JOAQUIM MARTINEZ

Off.

O auctor



COSTUMES MADRILENOS



I

CARACTERES E COMPARAÇÕES


Leitor amigo, se queres possuir a chave da vida, se queres ter o segredo
da existencia, aprende a viajar.

A viagem tem, como todas as cousas d'este mundo, a sua pequena
philosophia e as suas theorias, mais ou menos complicadas, e os seus
progressos mais ou menos notaveis.

Viajar não é uma variedade de sensações apenas; mas ainda mais, e
principalmente, uma fonte inexgotavel de boa e salutar experiencia,
um manancial perenne de vividos enthusiasmos por tudo quanto é bello,
novo e original, e uma origem fecunda de analyse, de observação e de
critica, que de ordinario raro é de encontrar-se no paiz onde nascemos,
ou na cidade onde residimos.

E assim é realmente que, se tu quizeres admirar a seriedade nos
costumes, a robustez no corpo, a soberania na guerra, o metaphysico na
sciencia, o imperio na familia, a fidelidade nos affectos, e a
superstição na religião--tu irás á Allemanha.

Se pelo contrario, tu desejares vêr a frouxidão no corpo, o
indifferentismo em politica, a lassidão nos costumes, a perversão nos
principios, a fraqueza na sciencia, o theologismo na religião, o lyrismo
na vida--tu, sem mais trabalhos nem violencias, ficarás em Portugal.

Mas se tu, embora não te repugne a debilidade physica e a
pusillanimidade de espirito, quizeres o ideal da arte e a architectura
da sciencia--então procurarás Italia.

Por outro lado ainda, se te impressiona o ruido das palavras, a viveza
do olhar, a facilidade dos affectos, a modestia do trajar, a
generosidade do coração, o esplendor do _ménage_--parte para a Hespanha.

Com uma mulher hespanhola vive-se bem um mez, num sensualismo delicioso,
numa voluptuosidade tepida e numa ardencia de amores que nem sempre é
vulgar nas outras mulheres do mundo.

Com uma mulher franceza, porém, o espirito não se cança nunca, nem o
coração chega jámais a desesperar--e se um seculo vivessemos, um seculo
tambem consagrariamos a essas fadas, mais demonios do que anjos, e quasi
sempre mais amantes do que esposas.

No francez dá-se, a par da elevação da idéa, a agilidade elegante do
corpo, a simplicidade maravilhosa do trajar, a delicadeza sem igual da
cosinha, a intrepidez risonha dos factos e das circumstancias, a
attenção magnetica das palavras, a originalidade dos costumes.

Com elles contrastam os inglezes, os quaes, não obstante serem
mudaveis em religião, são, todavia, prudentes nos seus negocios, zelosos
na sua vida intima, affaveis nas maneiras, orgulhosos no trajo e
astuciosos na guerra.

Subordinados ás circumstancias, ao tempo e aos logares--os povos são um
resultado do meio em que se acham mergulhados.

O que promoveu a questão do Oriente não foi verdadeiramente a ambição
dos monarchas, mas antes o imperio que a civilisação moderna tem direito
de exercer sobre tudo e sobre todos.

E por isso a Turquia, como vestigio de barbarismo que ainda é hoje na
Europa, foi de ha muito condemnada á morte e ao ostracismo.

O caracter turco era facilmente domavel, mas por natureza fanatico,
supersticioso, intolerante--tal qual como as verdades do Alcorão.

Por isso, leitor, embora tu sintas grandes saudades do harem e das
houris, resigna-te, e deixa de combater pelos turcos.

Que elles e os seus sultões se dignem subir ao setimo céu de Mafoma, e
que nos deixem.

Mas, francamente, se tu queres viver pela natureza, se soffres dos
pulmões, se és pantheista, se gostas das borboletas e das flores, se te
enthusiasmas com os limpidos horisontes das montanhas e dos rios, se és
socegado, melancholico, um tanto nostalgico e triste, escolhe a
peninsula, aluga uma casa todos os annos no Bussaco, percorre a
Andaluzia na primavera, visita as praias, e deixa-te ficar por cá.

Se, porém, não temes os frios do norte, se és audaz, intrepido, valente,
corajoso, se amas a sciencia e a arte, se não te canças em subir a uma
montanha e em correr num _trenó_ num dia gelado, e por um rio coberto de
neve, se gostas da vida, tal como ella deve ser--valorosa, hygienica, e
grande, então vai á Suissa, á Allemanha, á Italia, e até mesmo á Russia,
se tanto fôr da tua vontade.

Convém que faças uma viagem todos os annos na primavera. Para isso basta
apenas, que no teu viver domestico, no teu gastar quotidiano, tu
adquiras uma sciencia tão difficil, como rara de conservar-se--a
sciencia da economia.

No fim de oito ou dez annos, tu sentir-te-has forte, cheio de critica,
vigoroso na discussão, capaz de entrar em todos os assumptos, que por
acaso se ventilarem, e susceptivel de comparar, entre si, não só todos
os paizes do mundo, mas ainda os homens e as sociedades.

E assim tu terás o dom do historiador, a evidencia dos factos, a
observação da natureza e o estudo das cousas em geral.

Eu não quero que tu te faças misanthropo, doente, regenerador. Não!
Porque sou portuguez, e desejo que tu sejas alegre, feliz, espirituoso,
bom amigo, excellente marido e cidadão prestante.

E para isso, para afugentar terrores e negrumes, para que tenhas saude,
vida e amor--é forçoso que tu viages, que deixes a tua aldeia e as tuas
arvores, que arranjes a tua mala, que te despeças dos teus conhecidos e
que partas.

Nada de esperas. Quanto mais cedo melhor. O mundo é para quem
caminha; e a viagem é como a sciencia, tambem um progresso.

Aqui tens o teu casaco. Cabeça alta e adeus á patria querida.

Cocheiro--açoute nesses cavallos!

Para deante. Para deante é que é o caminho.



II

NÓS E ELLES


Não ha duvida que nós não somos elles, nem elles são nós.

Não obstante, elles querem ser nós, mas nós é que não queremos ser elles.

Coisas d'este mundo!

Nós, não nos fartamos de elogiar Madrid; e elles não se cançam nunca de
exaltar Lisboa.

_Mutatis mutandis_, ninguem está bem senão onde não está.

A verdade, porém, é que nem a patria do sr. Fontes é má, nem as terras
do sr. Canovas são detestaveis.

Lisboa tem, como Madrid, as suas pequenas corrupções, os seus ministros
ociosos, a sua realeza inutil, o seu credito abastardado, a sua
administração vacillante, os seus empregados preguiçosos, a sua fama em
decadencia e o seu futuro compromettido.

Tudo isto temos nós, e tudo isto têm elles--mercê de Deus.

Por cá, como por lá, multiplicam-se os bailes, rangem as sêdas, reluzem
as _toilettes_, scintillam os chrystaes, refervem os vinhos nas suas
taças preciosas, adelgaça-se o corpo, polvilham-se os cabellos,
tingem-se as faces, alarga-se a consciencia, confundem-se os factos,
adora-se a elegancia, e todos--ó céus! sem mesmo o presentirem--caminham
para o bom tom, impellidos pela magreza, que os devora, arrastados pela
falta de hygiene e seduzidos pela eterna sereia das humanas velleidades.

D'onde se conclue que cá e lá más fadas ha.

Mas Lisboa, com franqueza, não é de todo má: as suas ruas estão povoadas
de bellos e formosissimos edificios; os seus jantares, embora sem
dinheiro, são abundantes; os seus hospedes vestem-se bem, não obstante
faltar-lhes para isso o corpo e o sangue; as suas filhas de aguarella
sabem calçar uma bota á _Benoiton_; Aline, a sua modista, tem algum
gosto; Stellpflug e Manuel Lourenço, os seus sapateiros predilectos,
contentam os seus freguezes; Barral tem bons remedios; o café, em geral,
não é mau; os charutos satisfazem; os assassinos não tem sido demais;
quem quizer tambem póde deixar de se suicidar; emfim, ella não é
despiciente, acreditem:--unicamente o que lhe falta é o espirito, isto
é, o _tic_ nervoso, que dá o bom senso; o enthusiasmo, que eleva as
gerações; o fanatismo scientifico, que torna os homens celebres e
audazes; o que lhe falta verdadeiramente é isso--essa primeira parte da
humanidade a que Shakespeare chamaria, talvez, o _to be_ da humana
existencia--o caracter.

Emile Péreire, no tempo em que escrevia no _Nacional_, sob as ordens de
Armand Carrel, tão pobre era que longe estava de imaginar o futuro
de riqueza que o esperava.

Foi, recordando-se d'esse passado de miseria, que elle pronunciou
aquella esplendida phrase, de que Charlet fez uma caricatura:

--Aos trinta annos tinha dentes e não tinha pão; aos sessenta tenho pão
e não tenho dentes.

Pois assim está a nossa capital--quando tinha caracter e dinheiro
faltava-lhe o espirito e o desenvolvimento intellectual; agora que
naturalmente está mais desinvolvida e mais apta para as concepções do
mundo moderno, escasseia-lhe o caracter e a franqueza.

Façamos como Paulo Vernet, o pintor realista--abramos a janella, e
olhemos serenamente o que se passa.

Em Madrid vive-se no café e pelo café. Quando se quer procurar qualquer
pessoa importante, não se pergunta nunca pela casa onde reside, mas sim
pelo café que costuma frequentar. E ahi está tambem o motivo, porque, na
capital da Hespanha, os cafés, que quasi se podem dizer pequenas
aldeias pela extensão e pelo comprimento, estão cheios, perfeitamente
cheios, durante a noite e durante o dia. É ahi que se faz a politica, e
é ahi tambem que se preparam os futuros acontecimentos do paiz.

Dizia madame de Grirardin que um dos primeiros deveres da mulher era ser
bonita. Pois o hespanhol tem para si, que um dos primeiros deveres do
homem, em geral, é ser fallador, ruidoso, amante das revoltas e
sinceramente admirador do extraordinario.

Lembro-me que, numa noite, no theatro da zarzuella, um meu companheiro
de viagem havia sido apresentado a uma distincta familia de Madrid, com
quem travou estreitas relações de amizade e de quem recebeu os mais
inequivocos testemunhos de affecto.

Eram pae, mãe e duas filhas.

No dia immediato ao da apresentação um grande acontecimento echoou na
cidade. Dizia-se que uma senhora havia sido ferida na cabeça por um tiro
de rewolver, desfechado á queima roupa por seu marido, o qual,
julgando-a morta, se suicidára logo em seguida.

Este facto, importante em qualquer outro paiz, ali mal despertou a
curiosidade publica. Quasi que passou desapercebido.

Averiguado, porém, o caso, soube-se effectivamente que a heroina era nem
mais nem menos do que a tal senhora, que, na vespera, pela sua
attenciosa bizarria confundira o meu amigo, com attenções e delicadezas.
Ella exigira do esposo dinheiros avultados, que elle asseverava
abertamente não ter em casa, naquella occasião. Então a mulher,
enfurecida, gritou, fingiu-se morta, até que emfim se atirou ao marido,
o qual, não constando que fosse santo, se atirou por seu turno a ella.

E assim, travados de razões, armaram aquella tragedia, digno exemplo de
duas filhas menores e edificante monumento da civilisação de um povo.

Madrid tem, sobretudo, um vicio de origem--a falta de agua. O caracter
hespanhol, tão contradictorio em si e nas suas manifestações, é todavia
secco, aspero ás vezes, e irreflectido quasi sempre.

A escassez de agua, além de escurecer toda a paisagem da Estremadura,
faz ainda, porém, com que as flores sejam raras na cidade, e de todo o
ponto destituidas de gosto.

Ora todos sabem que a flôr entra hoje na vida do _ménage_ como uma
necessidade, insubstituivel. Muitas senhoras têm nella uma companheira e
uma amiga. A aridez da vida domestica é muitas vezes compensada pela
existencia de um jardim, ao qual a dona da casa consagra todos os seus
ocios e em virtude do qual ella cura todos os seus tedios.

A mulher hespanhola, como não tem flores nem jardim, procura
naturalmente os cafés e o mundo exterior, de que aliás precisa para
conviver e para se entreter; cousa que, em nosso juizo, ninguem, em
verdade, lhe poderá levar a mal.

E, no meio de tudo isto, não ha povo que sinceramente comprehenda melhor
as leis da hospitalidade e que melhor e mais bizarramente saiba
attrahir a si os estrangeiros.

Mas, embora elles queiram ser nós,--nós é que, em boa logica, não
podemos ser elles.

Elles, por exemplo, empregam o adjectivo _larga_--_esta calle es muy
larga_--para significar o comprimento, ao passo que nós o empregamos
para exprimir a largura.

Antithese completa!

Oh! não--decididamente nós não podemos ser elles..

Mas, _se ellas_ quizessem ser nós!...

Se nós fossemos _ellas_!...



III

A CIDADE


No centro de uma extensa planicie, acompanhando a margem esquerda do
Manzanares e alteada sobre differentes collinas de arêa de pequena
elevação, ergue-se a cidade de Madrid, a formosissima _villa coronada_,
prodigiosa de encantos, opulenta de prazeres e esplendida de vida.

Data do reinado de Philippe II, em 1560, a mudança da capital do reino
hespanhol de Toledo para Madrid.

Perde-se na bruma dos tempos a origem etymologica d'esta cidade. No
entretanto julga um illustrado escriptor que a verdadeira derivação
de Madrid é _Magerit_, palavra arabe, que na nossa lingua significa
_corrente de agua_.

Muitas foram, e successivas, as invasões por que passou a cidade. Não
vem para aqui, por deslocada, uma resenha historica de todos esses
tempos de agitação, mais ou menos intimamente ligados com as coisas do
nosso Portugal.

Philippe IV foi para a Hespanha o mesmo que Luiz XIV foi para a França.
No seu reinado brilharam as artes, as sciencias e a litteratura. Quiz,
porém, a fatalidade, como que para realçar o dominio dos contrastes do
mundo, que o seu herdeiro Carlos II fosse um rei pusillanime, fraco,
fomentador da intriga e iniciador d'uma crise, que cessou com a
assolação d'uma tremendissima guerra civil no tempo de Filippe V.

Madrid soffreu immensamente nestas lutas intestinas. Sem embargo, os
sacrificios compensaram as perdas. E quando depois Carlos III subio ao
throno de Hespanha, a um sorriso do monarcha privilegiado desabroxou
a paz, e as reformas brotaram por completo naquelle paiz.

Este estado foi, porém, de curta duração. Napoleão I, senhor da França,
põe a Hespanha novamente em tumulto e deixa-a entregue á fome e ao saque
das hordas estrangeiras.

Expulsos os francezes de Madrid, começou então a luta entre realistas e
liberaes, os quaes depois se subdividiram ainda em progressistas e
moderados, dando assim logar a uma infinidade de fracções, que só deviam
abortar na mallograda revolução de 1854.

Foi d'aqui que se originaram os partidos unionista, o democrata e mais
tarde o neo-catholico; e foi d'aqui tambem que nasceu a Hespanha
revolucionaria moderna, de todos conhecida, desde 1868 até nós.

      *      *      *      *      *

Madrid é, pois, uma cidade pequena, não talvez muito maior que o Porto,
com um clima excessivamente regular, comportando na sua área 360:000
habitantes, cuja indole póde naturalmente e com o maximo rigor ser
observada á luz do gaz e durante a noite em qualquer dos principaes cafés.

Conta-se que um alcaide hespanhol se compromettera certo dia a fazer
tres discursos numa dada povoação.

Chegou o primeiro dia, e perguntou á turba:

--Entenderão o que lhes vou dizer?

Ninguem respondeu.

--Pois se não têm de entender-me é escusado pregar no deserto.

No segundo dia voltou, e repetiu a mesma pergunta.

--Sim! responderam todos, já zangados com a occorrencia do dia anterior
e desejosos por saber o que tão illustre orador d'elles queria.

--Nesse caso, se comprehendem, são inuteis as explicações.

Chegou, porém, o dia da terceira e ultima prelecção, e o povo concordou
em responder indistinctamente.

--Serão capazes de perceber qual é o fim do meu discurso?

Sim! Não! conclamou a turba em dois córos.

--Então aquelle que percebeu que explique ao que não entendeu.

E assim é, na verdade, o caracter hespanhol. Todos se entendem, e
ninguem se entende. De modo que, no seio de tão estranha confusão, a
vida domestica de Madrid, toda anarchica, toda exterior, toda ficticia,
vai naturalmente reflectir-se nas coisas publicas--no commercio, na
industria, na arte, na litteratura, na politica--pondo a cidade em
continuo alvoroço, e deixando o viajante profundamente assombrado de tão
fortes e repetidas contradicções.

E tudo isto, o que mais é ainda para estranhar, num paiz onde os grupos
dissidentes são quasi tantos como os talentos politicos, e onde o
caracter de cada individuo varia e se modifica em justa proporção com a
sua leviandade de espirito e seguindo naturalmente as differentes
oscillações da opinião publica, sempre precipitada e louca.

Obedecendo á influencia do meio que os domina, os estadistas
hespanhoes são mais theoricos do que practicos, mais litteratos do que
politicos, e, sem duvida alguma, mais poetas do que observadores.

D'aqui a impossibilidade de uma união séria, progressista e
trabalhadora. As subdivisões prolongam-se até ao infinito. Antes de 30
de dezembro de 1875, os moderados formavam um unico partido. Agora,
porém, avultam os moderados _transigentes_, tendo por orgão o jornal _El
Tiempo_: os moderados _intransigentes_ com _La España_ e os moderados de
_estola_ com _El Siglo Futuro_.

O mesmo com o partido constitucional, que hoje se acha subdividido em
constitucional do sr. Sagasta, representado na imprensa pela _Iberia_;
em constitucional dissidente do sr. Santa Cruz, representado pela
_Patria_ e em constitucional do sr. Ulloa, representado outr'ora pelo
periodico _El Constitucional_, que já não se publica.

As celebridades não escasseiam. Antes, pelo contrario: ao passo que em
França quasi todos os homens illustrados são escriptores, em
Hespanha quasi todos são oradores.

Abstrahindo mesmo de Emilio Castellar, o luminosissimo vulto do seculo
XIX, que só em Gambetta encontraria um rival condigno, e porventura,
como politico, mais pratico, mais accentuadamente positivo do que elle;
abstrahindo do sympathico materialista Figueras e do advogado Martos,
poucos ha, naquella adoravel nacionalidade, que não possuam o fogo
sagrado dos sublimes enthusiasmos patrioticos e a brilhantissima
scentelha dos grandes espiritos revolucionarios.

Numa palavra, a Hespanha é o paiz solemne das occasiões, o paiz do _à
propos_, o paiz do momento.

Os generaes Prim e O'Donnel andam ainda hoje apregoados pela fama
publica. Pois bem. Muitos annos não se haviam passado depois do seu
regresso da Africa, e concluida a guerra de Marrocos, que Prim,
collocado numa das janellas do _Hotel de Paris_, recebera a mais
enthusiastica ovação que humanamente era licito dispensar a um
idolo. Uma noite regressava o illustre general do congresso, quando,
subito, uma detonação acordou a cidade. Correram todos. Duas balas
haviam-lhe destruido a emoplata, o ante-braço e a mão direita. Estava
morto o heroe de tantas victorias e o deus de tamanhos enthusiasmos. A
policia não apparecera. Ainda presentemente nas cadeias de Madrid se
conservam presos, por suspeitos, seis homens. O resto, sabem-n'o os seus
inimigos, d'elle.

Madrid, a cidade _imperial_ e _coronada_, a _mui nobre, mui leal e mui
heroica_ cidade, como em 1814 lhe chamou Fernando VII, tem, porém, ainda
uma outra face, que realmente não deve esquecer ao historiador; e essa
face, esse lado immensamente grande e extraordinario, que a Cervantes
valeu uma reputação e uma immortalidade, é a anecdota, o delirio da
bagatella e do ridiculo.

Sim! a Hespanha, como bandoleira que é, tem uma lenda--_a lenda do
bandido_.

Estudando essa lenda, melhor e mais facilmente poderemos fazer uma idéa
do que é e do que foi a Hespanha nos seus movimentos, nas suas
idéas, na sua politica, no seu commercio, na sua industria, no seu
progresso e na sua civilisação.

Voltemos, portanto, a pagina.



IV

A LENDA DO BANDIDO


O bandido!... Mas quem o não conhece? Elle, o maganão, o seductor, o
adultero, o perverso, elle tem vivido sempre e sempre impune, sempre
ironico, sempre chasqueador, sempre rapaz, sempre diabo. Com mil
granadas! Que sublime ratão...

Houve quem lhe chamasse _espirito das trevas_; houve tambem quem o
appellidasse com o epitheto de carne, de Satan, de magico, de serpente,
de lagarto e não sei tambem se de _D. Juan_, se de Mephistopheles, se de
Falstaff.

E é que elle realmente tem esse condão.

Todos os dias se renova, renascendo das proprias cinzas, como a phenix
mythologica, mudando de pelle como qualquer simples giboia, usando barba
postiça, como um grotesco que é, e dando-se os ares frescos e
traiçoeiros de velha rapoza, já useira e veseira nos altos assumptos de
quem tem o olho em Deus e a unha no proximo.

Não! Elle não é simplesmente o palerma namorador, que, á meia noite, de
guitarra em punho, vai desferir uns estupidos landuns, mal tocados,
debaixo da janella da sua pallida amante; tambem não é apenas o ebrio
impenitente, que, pela madrugada, carregado de vinho e de tosse, corre
as ruas num tropego cavallo de aluguer, atropellando quem passa e
vomitando injurias _aguardentadas_ sobre a honestidade de quem trabalha.
Porque, sendo tudo isto, o nosso typo tem, todavia, uma feição
proeminente, feição grave, enormissima, que ninguem jámais lhe poderá
disputar. Oh! sim, só elle é o bandido por excellencia, bandido de
casaca e luva branca, mas bandido de alma larga e coração esperto,
emquanto a mim o peior de todos os bandidos.

Cautella, meu fidalgo, que nós já te conhecemos. Tu, que não duvidaste
vestir a farda de imperador; tu, que tens levado as insignias da realeza
até á crapula dos bordeis; tu, que enlameaste o teu brazão ao contacto
effeminado da fadistagem de navalha e faixa encarnada; tu, meu politico,
tu, meu banqueiro, tu, meu villão, é que verdadeiramente és o rei do
mundo, porque te falta a vergonha e a decencia.

Eu queria fazer de ti um Sancho Pança, mas Sancho é gordo e póde cair na
embuscada; não, não serás Sancho, nem D. Quixote pela razão opposta; mas
o que tu podes ser realmente é um Claret--um Claret sem corôa, de olhar
mellifluo, doce no dizer, suave na convivencia e insinuante nos modos.

Que o jesuitismo esteja descançado emquanto a nós. Unicamente nós
pedimos licença a suas reverendissimas para pegar num dos seus mais
respeitaveis membros, para o virar, para o revirar, para lhe dar
umas palmadinhas no ventre; e feito isto, para o despedir com um
piparote--tal qual, como se faz a um boneco de papel. E nada mais.
Depois nem sequer pensaremos em similhante entidade. Tentaremos dormir
sobre o caso, fazendo cama--e que boa cama!--de tão beatificas proezas.

Agora o touro que saia: bandarilhas na mão e firmeza no pulso.

Era uma vez um paiz, rico, poderoso, rodeado de magnificas paisagens,
realçado pela formosura de mulheres peregrinas, e dominado pela ambição
de politicos tresloucados. Um dia, porém, o sol, que era ardente, trouxe
á cidade febres incuraveis. Adoeceram, então, os estadistas; e no
delirio da doença cousas espantosas e horripilantes se começaram a ouvir
de suas bôccas evangelicas. A febre tomou-os dos pés á cabeça; e
então--ó céus!--doidos, perdidos, alucinados, elles, os doces, elles, os
virtuosos, elles, os santos, que precisavam de saude e de vida, porque
estavam mal, inventaram uma cousa muito melhor do que a _agua
circassiana_, muito melhor ainda do que a _Revalescière du Barry_...
elles deliberaram segurar as vidas em perigo.

E a população mecheu-se activa, energica, em favor de tão alta instituição.

Estava salva a patria.

Contra o abysmo, que a perseguia, contra o diluvio, que a ameaçava,
tinha o governo tambem inventado a sua arca santa--as companhias de
seguro de vida.

E sem embargo, os typhos, as bexigas, os sarampos, as erysipellas não
haviam desapparecido da terra. O paiz continuava a soffrer as suas
doenças, a alimentar rivalidades no seu seio e a prestar-se como sempre
ás mil intriguinhas da côrte.

Vai então o bandido amigo, irrequieto e nervoso, começa de farejar novas
vias de exploração.

--Nada! dizia elle. Segurar a vida é pouco; é preciso tambem segurar o
capital. Mãos á obra!

E formaram-se os bancos e as casas bancarias.

Mas bandido--manhoso tinha já propensões para abusar. A policia ia-lhe
sempre na pista. Todavia, elle, o heroe, elle não descansava nunca.

Ah! bandido! ah! brejeiro!

Ainda era pouco. Claret tinha a ambição louca e avara de um Shylock
hespanhol. Queria ser rico, queria jogar, queria amar, queria
divertir-se. E para tudo isso era preciso inventar, ser original, ter
idéas.

Crearam-se os bancos; o credito, porém ficou o mesmo, isto é, um pouco
peior do que estava. O paiz não melhorava a sua riqueza publica. Então o
governo pensou comsigo mesmo e disse:--Maldito bandido!--sempre
desassocegado e criança: por Deus, cautella! nem mais um passo...

E bandido--esperto abriu o olho e principiou a ver, ao longe uma cousa
que lhe fallava em inscripções e em fundos publicos. Olé! Olé! Cá está a
incognita! A elles, aos fundos publicos!

Ao que o sr. Salaverria sorriu ironicamente, como querendo
dizer:--Espera maroto, que te escacho!

E assim foi.

Bandido foi já derrotado na politica, no commercio, na industria, na
economia, nas artes e nas sciencias. Mas apesar de tudo elle não
descrê. É forte, tem bom pulso, jámais teve uma dôr de dentes e nunca
cortou os callos, porque tambem nunca os teve. Abençoado patife! Creado
nas montanhas e industriado nas altas tricas da politica, elle só espera
momento opportuno para tornar a apparecer em campo.

E depois hão de vel-o. Pois julgavam que elle era sujeito para se curvar
a qualquer Salaverria? Enganaram-se.

Nem a Salaverria, nem á honestidade. Unicamente elle tem em
vista--alcançar os seus fins sejam quaes forem os meios.

E assim é a Hespanha na sua evolução social.

_Ah! Machiavel! ah! bandido!_



V

EDIFICIOS PUBLICOS E OUTRAS CURIOSIDADES HISTORICAS


Dizia um celebre escriptor allemão que a vida era uma viagem em caminho
de ferro: o casamento um choque de trens; o somno a passagem de um
tunel; um negocio a passagem de uma ponte; o destino um machinista que
nos leva silencioso ao termo da viagem.

Nestas circumstancias, e a ser verdade o que nos diz tão excentrico
pensador, parece, de facto, que ao homem nada mais resta neste mundo do
que uma vida de sensações rapidas e imprudentes, sem um unico
pensamento, que o preoccupe, sem repouso, sem ligações, sem familia, sem
crenças, sem humanidade.

E apesar de tudo, e sem embargo do auctor citado, o universo
apresenta-nos um aspecto perfeitamente em contrario do que acima
transcrevemos.

Por toda a parte a fixidez se nos antólha como elemento essencialissimo
na vida dos povos. Na evolução das sociedades a primeira cousa que o
homem teve em vista foi certamente fixar-se, construir a cabana onde
tinha de pernoitar e estabelecer definitivamente a séde dos seus
trabalhos e operações.

Imagine-se o leitor, em Madrid, no meio de uma praça irregular, que se
chama _Puerta del Sol_. É o coração da cidade. Conta-se que em 1520
houvera alli um castello, sobre a porta do qual se encontrava uma
pintura representando o sol. Desde então para cá póde dizer-se que é
aquelle o logar destinado, aos despreoccupados do mundo, aos _flaneurs_
do bom tom e á fina _èlite_ dos salões madrilenos.

Que contraste! Na propria sociedade hespanhola, que mais pensa na
vida externa do que na vida interna, pacifica, de casa, nessa mesma nos
foi dado admirar a impretrerivel tendencia da natureza humana para o
viver confortavel, commodo, alegre e quasi poderiamos tambem dizer luxuoso.

Poucas familias ha, em Madrid, que não tenham a sua casa,
excellentemente mobilada, e que, pelo menos, não possuam o modesto
segredo do _savoir-vivre_, isto é, o segredo da conservação e da hygiene
individual.

Sem sahir da _Puerta del sol_, o viajante poderá, se quizer, fazer um
telegramma aos seus amigos, dirigindo-se áquelle magnifico predio onde
actualmente se acha o ministerio da _governação_, e poderá, tambem, se
assim lhe aprouver, tomar uma chavena de chocolate no magnifico _café
Imperial_ ou subir mesmo ao primeiro andar d'esse mesmo edificio, e
ordenar que lhe reservem um quarto no _Hotel de Paris_.

Sahindo da _Puerta del sol_ encontramos duas ruas quasi parallelas--a
rua _Alcalá_ e a _Carrera S. Jeronymo_. Na primeira d'estas ruas
eleva-se um soberbo arco triumphal, erecto no reinado de Carlos III, a
fim de perpetuar a memoria da sua vinda á côrte de Hespanha. Consta de
cinco entradas, sendo tres eguaes, no meio, e em fórma de arco, e uma
quadrada em cada extremo. A _Puerta de Alcalá_, a primeira de Madrid,
conta 70 pés de altura, com a seguinte inscripção:


REGE CAROLO III
ANNO MDCCLXXVIII.


Além d'esta ha ainda a _Puerta de Toledo_, situada no fim da rua do
mesmo nome, consagrada, no anno de 1827, a Fernando VII, o _desejado_.

E, visto estarmos fallando nas maravilhas da arte hespanhola, bom será
que não esqueçamos as duas principaes praças da cidade--_la plaza de
Oriente_ e _la plaza Mayor_.

A primeira tem fórma circular, e é circumdada exteriormente por um
formosissimo passeio, onde estão collocadas quarenta e quatro
magnificas estatuas, destinadas a representar os monarchas hespanhoes.

No centro da praça ergue-se a estatua de Filippe IV, symbolisando o seu
disvelo pela arte nacional, e dando-nos em allegoria o solemnissimo
momento em que tão generoso monarcha se dignava condecorar o celebre
pintor Velasques com a cruz de Sant'Iago.

O theatro _real_ faz tambem com que este logar seja um dos que melhor
perspectiva apresentam na cidade.

A segunda--a _plaza Mayor_--foi construida em 1619, sob a direcção do
architecto D. Juam Gomes de Mora. É o logar destinado ás festas da côrte
hespanhola. Antigamente a fidalguia armada costumava, em actos solemnes,
esperar ali a sahida dos touros, que eram picados com a maxima destreza
e pericia por parte dos amadores da arte de Pepe-Híllo. Já por duas
vezes o incendio tentou destruir tão formoso recinto. No seu centro está
collocada a estatua equestre de Philippe III, obra começada pelo
architecto Juan Bologna e terminada por Pedro Tacca.

Presentemente a _plaza Mayor_ acha-se reduzida ás condições de um
deliciosissimo jardim e pouco mais.

Passemos, porém, ao _Palacio Real_. É uma das obras de arte, que mais
particular attenção merece da parte dos entendedores.

Foi construido este palacio em meados do seculo passado. Situado no
extremo occidental da povoação, precisamente no logar onde outr'ora se
erguia o famoso alcaçar de Madrid, a sua origem remonta, segundo uns, ao
reinado de Affonso VI, e segundo outros ao reinado de Pedro I. No cimo
da escada, que é de marmore, existe uma estatua de Carlos III, o qual,
parece, concorrêra bastante para a melhoria d'aquelle edificio.

Começando pela fachada do Oriente, a pintura, que se vê na primeira
sala, representa o Tempo descobrindo a Verdade; na segunda encontra-se
Apollo premiando o talento; na terceira a queda dos gigantes, que uma
vez tiveram a ousadia de attentar contra os céus; na quinta a
apotheose de Hercules; e na sexta, septima, oitava e nona a
representação da philosophia, da pintura, da musica e da poesia.

Além do que aqui deixamos mencionado, muito mais, porém, poderiamos
accrescentar. O _Palacio real_ é uma das maravilhas da capital de
Hespanha, já pela sua riqueza, já pelos seus valiosissimos quadros, já,
emfim, pela sua vasta opulencia.

Não pára, comtudo, aqui a nossa admiração. Cumpre egualmente não
esquecer outras maravilhas da cidade, taes como o _Palacio do Senado_,
onde pela primeira vez se reuniram as côrtes hespanholas em 1820: o
_palacio do congresso_, edificio muito moderno, principiado a construir
em 1834, os _ministerios publicos_, as _reaes cavallariças_ situadas ao
norte do palacio, e ainda como reliquias de architectura dos seculos
XVI, XVII e XVIII até nós, os palacios particulares de _Medinacellí_, de
_Liria_, do _duque de Abrantes_, do _marquez de Salamanca_, etc.

E ainda, se o leitor fôr poeta e se interessar pelos grandes homens, não
deixarei de recommendar-lhe a visita ás casas de Cervantes, de Lope de
Vega, de Torrijós, de Cisneros e da beata Maria Anna.

A casa de Cervantes, edificada na rua do mesmo nome, tem, por cima do
portal da entrada, em marmore branco, a seguinte inscripção:


_«Aqui vivió y murió Miguel de Cervantes Saavedra; cuyo ingenio admira
el mundo. Falleció em MDCXVI»._


Na parte superior está o busto do poeta.

A casa de Lope de Vega foi recentemente restaurada, e a de Torrijós,
celebre general, tem tambem um distico, em que se lê pouco mais ou menos
o seguinte:


_«Aqui nació el general D. José Maria Torrijós; defendia la
independencia e libertad de la patria e murió em 11 de deciembro de
1831, arcabuceado em Malaga por haber intentado restabelecer con las
armas la Constituicion»._

      *      *      *      *      *

Agora, permitta-me o leitor que lhe offereça um charuto. Emquanto se
espera entremos aqui neste café, no café de Sevilha. Uma chavena de
chocolate não lhe fará de certo mal.

--Rapaz!--Chocolate!...



VI

A INSTRUCÇÃO PUBLICA


«Deixae-me instruir a juventude, e eu reformarei o mundo»--dizia Leibnitz.

E assim é, com effeito.

Reforma que não seja acompanhada de raciocinio, pecca por falta de
seriedade scientifica e por ausencia de dados positivos. E por isso é
que a Allemanha, pelo espirito de Luthero, e a França, pelo espirito de
Fénelon, foram sempre as primeiras a accordar o coração do povo pelo sol
da instrucção. Jules Simon, o sympathico auctor da _Politica radical_,
tem consagrado quasi todos os annos da sua vida á solução d'este
notavel problema; e a verdade é que a França, neste ponto, em nada fica
a dever ás nações, que, ainda mesmo como os Estados-Unidos, a Suissa e a
Belgica, caminham na vanguarda da civilisação.

É ainda o mesmo Jules Simon que nos diz:

«No dia em que a lei obrigasse toda a gente a saber lêr, toda a gente
estaria mais perto da liberdade».

E assim deviam fallar todos os verdadeiros democratas; porque, sem
instrucção, é impossivel a educação, do mesmo modo que sem o
desenvolvimento intellectual se atrophiaria o desenvolvimento moral.

E o homem não é só intelligencia, mas tambem coração. Desenvolver uma e
outra cousa é hoje a missão da escola moderna, sanccionada pela
philosophia positiva.

Levasseur, acceitando a obrigação da instrucção, pretende, comtudo, que
aos interessados se deixe a livre escolha de escola, confessando ao
mesmo tempo, que, onde as escolas escasseiam, ou onde a maioria da
população não está no habito de concorrer a ellas, a experiencia prova
que a obrigação não passa de uma disposição inutil; asserção que elle
confirma pelos exemplos de Portugal, Hespanha e Italia.

Emile de Girardin, o celebre publicista, que em duello matou Armand
Carrel, fazendo depois elle proprio a apologia do seu infeliz
adversario;--Emile de Girardin, embora não combatesse a instrucção
obrigatoria, achava-a comtudo, ephemera e subjeita a erros. Assim como
ninguem obriga o seu semelhante a comer um pedaço de pão, assim nós
tambem não podemos obrigar ninguem a ser instruido.

_Necessaria_, portanto, é que a instrucção devia ser, isto é, todos
deviam saber ler, contar e escrever--o que, _mutatis mutandis_, vinha a
dar o mesmo.

Em Portugal já a instrucção obrigatoria havia sido consignada no decreto
de 20 de setembro de 1844, onde a penalidade, imposta á negligencia das
familias, appareceu pela primeira vez neste paiz.

E, no entretanto, as escolas continuam sem frequencia, os methodos
peioram de dia para dia, o professorado anda equiparado aos creados das
cavallariças reaes, e nós, os preguiçosos do occidente, navegamos em mar
de bonança na quietação mais materialmente feliz d'este mundo sub-lunar.

O sr. Levasseur, membro da _commissão franceza_, na ultima exposição
internacional de Vienna d'Austria publicou a estatistica do movimento
das escolas primarias nos diversos paizes do mundo, e achou que a
frequencia das escolas, no Baixo Canadá, está na relação de 23 alumnos
por cada 100 habitantes, na França 13 por 100 e em Portugal 3 por 100.

Este facto, horroroso em si, não nos é, todavia, extremamente desfavoravel.

Em Hespanha, onde a instrucção superior está tão profusamente derramada,
a ponto de haver um sem numero de universidades, de escolas, de
academias, de archivos, de institutos e de bibliothecas; em Hespanha a
instrucção primaria, se não é inferior, corre, pelo menos, parelhas com
o nosso paiz.

Quer-nos parecer que sem uma remuneração, concedida pelo estado aos paes
de familia, nunca a instrucção _obrigatoria_ será levada por deante, na
peninsula. No inverno a grande distancia dos povoados a que ficam as
escolas, faz com que ellas sejam menos frequentadas; no verão, as
colheitas obrigam os lavradores a não dispensar seus filhos dos
trabalhos ruraes. E por isso é, creio, que de facto existe uma
desproporção enorme entre os algarismos da população rural e a
frequencia numerica das respectivas escolas.

Mas a Hespanha, _litterariamente_, ao menos, tem uma vida propria, sua,
original, ao passo que nós tanto na arte, como na politica, estamos
fatalmente destinados á morte e ao esquecimento.

Entre nós o ultimo poeta, verdadeiramente, interprete do sentimento
nacional foi Garrett. Desde então para cá a influencia da litteratura
franceza tem-se feito por tal fórma sentir, que os nossos poetas, embora
dotados de muitissimo talento e de vivissima imaginação, mais parecem
conhecer a vida de Paris do que a vida de Lisboa; e de tal modo que
o nosso povo mal os lê, porque mal os entende tambem. O resultado é que
vamos atravessando um periodo de transição e que a historia não poderá
nunca registrar esta época, senão como um facto accessorio da vida
portugueza.

E, cousa singular! a causa, que tão poderosamente actua nos nossos
costumes e na nossa vida nacional, é a mesma que, passando por cima da
Hespanha nem sequer vestigios deixa da sua passagem. Victor Hugo,
assimilado e imitado pelos portuguezes, emprehendeu na sua infancia uma
viagem á Hespanha. «Essa viagem--escreve Castelar--tem analogia com a de
madame de Stäel á Allemanha. A eminente escriptora trazia o romantismo
idealista do norte, o sublime escriptor o romantismo pratico do
Meio-Dia; Stäel inspirava-se nos tristes e profundos sonhos de João
Paulo Richter, Victor Hugo nos singelos versos do _Romancero_ e nos
conceitos de Calderon, impressos na consciencia, como esses listrões de
materia cosmica, a que damos o nome de nebuloses, e dos quaes talvez em
cada minuto se desprende como uma gota de luz um novo planeta na
vastidão do espaço. Victor Hugo sahiu de Hespanha com o animo
disposto a incendiar o templo dos deuses e da velha arte. Reinava
desassombradamente a poesia classica, desde a epoca de Luiz XIV. Se o
povo de 93 descobrisse esta realeza, tambem a teria derrubado no seu
incansavel afan de renovar a vida. Era a Academia, o Versailles, onde
aquella corôa estava enthesourada».

Podem os poetas hespanhoes não ser melhores que os nossos, mas a verdade
é que são mais originaes, e mais do seu paiz. Foi da Hespanha que partiu
o grito destruidor do velho convencionalismo poeta, em redor do qual se
haviam agrupado Racine, Voltaire, Corneille o outros. E esse
revolucionario audaz e intrepido foi Lope de Vega.

A vida litteraria de Hespanha é tal que só em Madrid se publicam
aproximadamente 60 jornaes. Da _Universidade Central_, situada na rua de
S. Bernardo, e dividida em 6 faculdades, sahem annualmente para cima de
cem bachareis.

Por onde se vê que a instrucção superior em Hespanha tem attingido um
enormissimo progresso; progresso, em nosso entender, que lhe ha de
assegurar sempre virilidade, independencia e vida propria, o sufficiente
para que uma nação, em poucos annos, se eleve e conceitúe no animo dos
seus inimigos.

E posto isto, tratemos d'outro assumpto.



VII

TEMPLOS E RELIGIÃO


Desapparece o carnaval, e a mulher hespanhola, de todas as mulheres do
mundo a mais alegre, a mais festiva e a mais ruidosa, sacode os seus
cabellos, desgrenha a sua fronte, pintada a carmim, rasga a sua ligeira
mascara de seda, põe de parte o seu vestuario extravagante, descalça os
seus sapatinhos de setim, toma o seu véo de Sevilha, calça a sua luva
preta, e penetra soberanamente no templo, onde o Christo a aguarda,
para, num sorriso de perdão, a absolver das suas culpas e dos seus
peccados.

É que ella, a feiticeira, comprehende o mundo, tal como elle é--de
alegrias e de tristezas, de esperanças e de duvidas, de amor e de
descrença, de riso e de lucto, de primavera e de outomno, de vida e de
morte.

O templo veste-se de negro; o orgão faz resoar os seus canticos
plangentes; Jesus, a pallida creança, ostenta uma face macerada, e o
padre, oh! o padre, o grande ladrão!--como raposa que espreita o
galinheiro innocente, acocora-se no confissionario, á semelhança de
gallo, que em materia de instinctos é useiro e vezeiro.

E tu, minha pobre peccadora, ó minha querida--terás de ouvir
silenciosamente, concentradamente, todos os lamentos do propheta, todas
as dôres da mãe, todas as lagrimas dos pequeninos.

Um dia levantar-te-has mais cedo; com ar triste e melancolico seguirás a
via do resgate; ajoelharás timidamente deante do sr. cura da freguezia,
que depois te dará a communhão.

Que maldicta manhã não passarás, minha pequena
catholica!--lembrando-te das travessuras de que a consciencia te não
accusa, e tendo de abrir ao padre, ao negro carcereiro da tua alma, os
segredos que te vão no coração atribulado.

Mas tu tens pae, bem o sei; tua avó não te dispensará o sacrificio de
todos os annos, e tua propria mamã exigirá de ti nesse dia um beijo e um
affecto.

Que louca extravagancia! Confessar-se a gente a um homem desconhecido,
que toma rapé e usa lenço encarnado, quando, ao contrario, podia revelar
a sua vida ao ente predilecto da sua existencia, áquelle, que, _au clair
de la lune_, fuma debaixo das nossas janellas um delicioso _breva_ e nos
diz umas doces palavras mysteriosas....

E depois--que horror!--cahir no velho tumulo catholico, quando toda a
natureza, como que por contraste, é um encanto e um paraizo?!

_Oh! mon Dieu, que c'est trop fort...._

Mas, emfim, sevilhana amiga, tu que, durante o carnaval, escapaste, de
uma bronchite, faze tambem diligencia para, durante a quaresma, te
furtares á insolita constipação catholica.

_Á la belle etoile_ cantaremos e libaremos aos nossos amores. Bem vês
que o convite attrahe. Tu fallar-me-has no bigode preto do teu amante,
nos seus cabellos de azeviche, na sua fronte pallida, nos seus olhos
profundos e apaixonados; de tudo me has de fallar, gentilissima menina,
que, eu, no entretanto, sem deixar de ouvir-te, irei preparando uma
delicadissima ceia, toda ella de boas aves saborosas e de finissimos
vinhos francezes.

Acceitas? Por Deus não pretendas imitar o lyrismo de Santa Thereza,
aquella boa alma mystica, que «_morria de não morrer_!»--ou antes «_por
não morrer_». É verdade que escusas tambem de seguir _madame_ Roland,
indo para o cadafalso, vestida de branco e Carlota Corday apunhalando
Marat; escusas mesmo de te aproximar de _madame_ de Maintenon, no seu
odio contra a religião protestante: e escusas tambem de ser Joanna
d'Arc, uma Margarida d'Anjou, uma Joanna de Montfort. Tudo isto seria
desnecessario e inutil. Para serdes respeitadas e felizes, bastava
apenas, minhas boas andorinhas ideaes, que vós possuisseis o orgulho
e a consciencia das vossas acções; porque emfim, se o homem é o orgulho
de Deus, a mulher é o orgulho do homem, como mui judiciosamente escreveu
um espirito comtemporaneo.

Conta-se que o chefe arabe dissera da actriz Rachel:--«É uma alma de
fogo num corpo de gaze», e que a actriz, á hora da morte, exclamára:--«O
fogo queimou a gaze!»

Assim, pois, que a minha gentilissima hespanhola não possa tambem nunca
dizer, á imitação de Rachel:--_O fogo matou a mulher!_

      *      *      *      *      *

Em Madrid os templos são de somenos importancia. E, embora a religião
catholica-apostolica tenha ali fanaticos e fanaticos decididos, não nos
parece que os edificios destinados ao culto sejam dignos de uma menção
especial. Ao ouvir fallar nas cathedraes de Cordova e Sevilha, de
Toledo e Burgos, de Valladolid e Zaragoza, quasi se nos afigura
impossivel, senão mesquinho, que Madrid não possua tambem o seu templo
official. A verdade, porém, é que, apesar de todas as tentativas, ainda
até hoje não foi possivel levar por deante o velho projecto da
edificação de uma cathedral na côrte de Hespanha.

Entretanto, forçoso é confessar, que poucos paizes ha na Europa onde o
fanatismo religioso tenha attingido tão elevadas proporções de
hypocrisia e de retrocesso. Philippe I assemelha-se a Luiz XI, o qual
antes de mandar enforcar qualquer subdito do seu reino, supplicava
sempre a Nossa Senhora, cuja imagem trazia no _bonnet_, para que tivesse
dó d'elle, e assim tambem a Hespanha deve a Philippe I uma grande parte
do seu carlismo e da sua reacção.

Os hospitaes, todavia, as casas de beneficencia, os asylos, e as
associações philantropicas são innumeras em Madrid. A alta sociedade
exerce mesmo a caridade em larga escala. Unicamente nos parece que a
razão publica entra pouco n'estas cousas.

Seja, porém, como fôr, o certo é que um pouco menos de fanatismo e
alguma cousa mais de raciocinio, nenhum mal faria a Hespanha.

Porque, de facto, uma nacionalidade que possue criticos tão notaveis
como Francisco Maria Tubino, director da excellente revista _La
Academia_, e poetas tão distinctos como D. Ventura Ruiz Aguillera,
fundador do magnifico _Museu archeologico_, e Zorrilla, o arrojado
trovador peninsular, que, por fórma alguma, deve ser confundido com o
politico, seu homonymo; uma nacionalidade tão forte e tão vigorosa
sempre merece ser mais alguma cousa do que uma simples expressão dos
velhos tempos theologicos.

Toda a vida de um paiz se resume numa palavra--bom-senso.



VIII

A POLITICA[1]


(CONTRASTES)

Ainda hontem a vimos expulsa da patria, que ella de creança aprendera a
renegar no vilissimo ensinamento de um jesuitismo perverso; ainda
hontem, humilhada, mas não contricta, lhe mostravam as bayonetas
nacionaes que não podia ser aquelle o coito das suas devassidões
infrenes; ainda hontem, offendida no seu amor proprio, e sempre
arrogante, ella transpunha os Pyrineus, como as columnas de Hercules,
por onde jámais lhe seria dado volver ás terras das suas hybridas
façanhas e ao solar das suas sabidissimas intrigas.

E no entretanto esse magnifico sol, que parece ter brilhado para toda a
Europa, no explendido fulgôr de uma vivissima luz, apagou-se subito no
horisonte, deixando empós de si o triste e doloroso prenuncio de uma
tempestade eminente.

E, coisa singular, nada faltou áquelle dia de festa.

Ayalla coloria o seu estylo brilhante; e com as côres douradas da sua
divina palheta, quasi se sentira feliz por festejar aquelle sahimento
funebre de uma mulher, justamente condemnada pelos fastos da historia e
merecidamente repellida pelos progressos da humanidade; o duque da Torre
alçava para o céo a sua cabeça de cidadão arrojado, congratulando-se com
os seus e com os estranhos pela victoria da justiça do seu paiz:
Sagasta tinha a convicção de uma grande causa conquistada, e
persuadia-se ter concluido uma obra meritoria; Prim, o esforçado
batalhador de Marrocos, ostentava em pleno dia as alegrias que lhe iam
na alma, e as esperanças que se lhe occultavam no coração; Castelar,
emfim, com todo o arrojo da sua notavel eloquencia, suppozera-se
victorioso, e victorioso para sempre.

Mas, coisa ainda mais singular! todas estas acclamações de momento,
todas estas palmas improvisadas, todos estes delirios de occasião, todas
estas festas, todas estas vertigens, todos estes rumores, cahiram, n'um
minuto, inesperadamente, abruptamente, revelando-nos, mau grado nosso,
que a politica foi, é, e será sempre a suprema contradicção das cousas
humanas e a mais evidente demonstração de quanto a humanidade é
inconstante, leviana e traiçoeira.

A entrada de Isabel II em Hespanha é a abjuração cabal da revolução de
Cadiz.

Pouco nos importa que o sr. Sagasta fosse agora o primeiro a
cumprimentar a ex-rainha expulsa, acceitando-lhe o retrato e as
perfidias; pouco nos importa que o sr. Ayalla abra tambem o cofre dos
seus gabos e a cornucopia da sua generosidade. Tudo isso é do mundo, e
nós estamos no mundo. Unicamente, nós temos direito a perguntar aos
nossos vizinhos qual é actualmente o seu rei.

Quem governa? Isabel II ou Affonso XII?

A abdicação da rainha por ninguem foi ainda reconhecida. Não é ella de
facto que occupa o throno, sabemol-o; mas na realidade é ella quem
governa, desde o momento que o consentimento lhe foi dado, para de novo
residir no palacio _del Oriente_.

Que diria a isto Prim, o heroe de 1868, se por acaso hoje vivesse? Que
dirão a isto os senhores liberaes de Hespanha, que, por suas proprias
mãos, acabam de cavar o proprio sepulchro? E que fará o sr. Canovas del
Castillo, o amigo duvidoso da ex-rainha?

E a Hespanha, a nobre filha da peninsula, consentirá impunemente n'este
attentado contra a sua dignidade? Volverá ao nefasto governo dos Clarets
sem um protesto, sem um brado de indignação, sem uma affirmativa do seu
brio e do seu pundonor?

Nada temos com personalidades. A politica pessoal é, de todas as
politicas, a mais detestavel e a mais perniciosa. Mas se isto nada é, o
principio é tudo. É forçoso respeital-o e seguil-o. De outro modo não ha
paiz que se sustente, da mesma maneira que sem leme é impossivel a
navegação no mar.

Amadeu I, pela sua demasiada simplicidade, não logrou nunca que os
hespanhoes o guindassem ao fastigio da gloria. Muito bem. O sr. Zorrilla
dispensa-o do seu serviço, e prepara-se para dirigir a politica do seu
paiz. Mas, ó incoherencia! o proprio sr. Zorrilla, segundo affirmaram
alguns, é o primeiro a divorciar-se dos republicanos, emigrando e
dizendo-se apenas radical. E, por incoherencia ainda, é elle hoje o
conspirador por excellencia, e, segundo todas as vistas, o chefe do
futuro gabinete republicano.

E tão odioso é de facto o seu nome ao actual governo, que, ainda ha
pouco, o jornal _El Globo_, orgão do sr. Castelar, e de que é director o
sr. Olías, foi supprimido por apenas lhe ter estampado a photographia na
primeira pagina.

E esta suppressão indigna, violação manifesta do direito, da justiça e
da propriedade, foi feita sem denuncias, sem accusações fiscaes e sem
que os tribunaes fossem, ao menos, ouvidos.

Tal é, em geral, o fructo dos governos restauradores!

Quando Affonso XII subiu ao throno não faltaram, nem as apostas, nem os
protestos, nem as indignações.

Mas tudo isso passou. E _el niño de su madre_, o pequeno authomato dos
tempos modernos, convicto de que o seu reinado havia de ser de ouro,
sentou-se no throno, com o serenidade de um fingido Bourbon, sem
consciencia e sem reflexão.

Agora, porém, falla-se com insistencia numa nova revolução. Madrid
agita-se; o exercito divide-se; a fazenda publica está num estado
desesperador; a população descrê; tudo isto, aggravado ainda com a vinda
da rainha Isabel para Madrid, que a todos inspira odio e antipathia, faz
suppôr que o movimento revolucionario se não demorará muito no seu
apparecimento.

Ninguem hoje tem o poder de resuscitar cadaveres. A elevação de Affonso
XII ao throno nunca passou mesmo de uma mera phantasmagoria politica,
especie de entreacto entre o passado e o futuro. Hão de tornal-o a
enterrar, estou convencido, e sem grande difficuldade.

Conta-se que num jantar, ultimamente dado em Barcelona, se reuniram seis
politicos de vulto. Travada a discussão viu-se que cada um d'elles
professava opinião differente ácerca do estado geral da patria.
Progrediram assim as cousas; e de tal maneira que, no fim do banquete,
os copos voaram pelos ares ao clamor estridulo e confuso de uma contenda
infernal. Ninguem se entendia. O meio de persuasão estava já nos punhos
arregaçados e nos calices feitos pedaços. Finalmente parece que tão
delicioso repasto terminou, sem levar a convicção ao espirito dos
convivas, é verdade, mas deixando-lhes, todavia, a liberdade do vinho
absorvido, e a gloria dos destroços por cada um operados em favor da sua
causa.

E assim é, em quanto a nós, tambem a politica em Hespanha--uma
Babylonia!

    [1] Este artigo, embora restricto a um facto particular da
    actual dynastia reinante em Hespanha, póde, todavia, ampliar-se
    á politica geral do paiz, e por elle ser criticada.



IX

MUSEUS


No seculo XVI, ao mesmo tempo que tudo decahia em Hespanha--politica,
commercio, industria--como que para contrastar, surgia, por outro lado,
o primeiro poeta hespanhol, Calderon, e o primeiro pintor, Velasquez.

E desde então para cá as artes e as sciencias têm tomado um incremento
verdadeiramente assombroso; a ponto de, ainda ultimamente, muitos
professores da Universidade de Heidelberg, varios homens politicos
francezes, e alguns sabios de Inglaterra, se terem reunido afim de
lançar os primeiros fundamentos da Universidade livre de Madrid, que o
sr. Canovas del Castillo referiu que se chamasse _Instituto livre de
ensino_.

Em todos os museus de Madrid, que são muitos e admiraveis, se encontra a
immortalidade da historia hespanhola aliada á eloquencia do genio e da
inspiração individual.

O Museu real de pintura e esculptura, situado no passeio do Prado, é
ainda hoje um dos melhores do mundo, e foi fundado por Fernando VII, a
rogo de sua esposa Maria Christina.

Impossivel nos seria dar aqui uma resenha historica de todos os
principaes quadros que adornam aquelle paraiso. Apontaremos no entanto
alguns.

A escóla de pintura _hespanhola_ resente-se extraordinariamente do
catholicismo que lhe servia de inspiração. Assim, para exemplo, pódem
ver-se, entre outros, os quadros de Murillo, um, symbolisando a
_Annunciação de Nossa Senhora_, outro, representando a _Familia
Sagrada_, outro desenhando a _Concepção_, etc.; e os de Velasquez,
que tem um _Nosso Senhor Crucificado_ maravilhosamente acabado, assim
como um outro intitulado o _Quadro dos bebedores_; os de Rivera, que
produziu o _Martyrio de S. Bartholomeu_, _S. Jeronymo em oração_, etc.;
e os de Zurbaran sobre assumptos mysticos, e os de Goya, que realça
principalmente por um retrato a cavallo de Carlos IV, etc.

A escóla _florentina_ é, como a hespanhola, uma escola religiosa. Assim,
temos de Leonardo de Vinci dois esplendidos quadros: o retrato de Mona
Lisa, mulher de D. Francisco Gicondo, cavalleiro florentino, e a
representação da _Familia Sagrada_, tendo S. João e o menino Jesus em
attitude de se beijarem; de Andréas del Sarto, chamado Andrea Vennucci,
um retrato em busto de sua mulher Lucrecia Fede, e muitos outros; de
Miguel Angel Buonarroti um _Nosso Senhor atado á columna_; e, como
estes, outros de Bronsino, de Allori, de Carducei, de Vanni, etc.

Na escóla _romana_ o principal expositor é Sanzio Rafael, chamado
Urbino, que possue, entre outros, _A queda de Nosso Senhor Jesus
Christo com a cruz_, conhecido pelo nome de _Pasmo de Sicilia_, e muitas
allegorias á familia sagrada, umas conhecidas por _Ecce Agnus Dei_,
outras pela _Rosa_, outras pela _Perola_, etc. Seguem-se-lhe Julio
Romano, Sassaferrato, Barroci, etc.

Na escóla _veneziana_ o mais importante é Piciano, que tem uns
magnificos quadros de Carlos V a cavallo, de Jesus Christo apresentado
ao povo, do peccado original, da Victoria de Lepanto, da Virgem das
Dôres e do _Ecce Homo_; depois temos Bellino, Tintoretto, Bassano e mais
alguns.

As menos notaveis, talvez, neste museu são as escolas, _bolonheza_,
_lombarda_, a de Milão, e a de Napoles, as quaes, não obstante, ainda
apresentam nomes como os de Corregio (_lombardo_), Dominiquino e Guido
(_bolonhezes_) e Salvator Rosa (_napolitano_).

Nas escólas _franceza_, _hollandeza_ e _allemã_ ha cecebridades, como
Pedro Paulo Rubens, que apresenta o _Castello de Emaus_, _A serpente de
metal_, _Orpheu e Euridice_, _A dança dos paizanos_, _As tres
Graças_, _Perseu libertando Andromeda_, e outros, sendo 62 a somma total
dos seus quadros, ali expostos, a 28 os da sua escóla.

Antonio Van Dyck dá-nos retratos admiraveis, taes como o do pintor David
Rickart, o da duqueza de Oxford, o de Carlos I a cavallo, e o de D.
Henrique, conde de Berga.

David Teniers é pintor quasi bucolico, e offerece-nos quadros d'um mimo
inexcedivel--_Um colloquio pastoril_, _Uma festa de paizanos_, _Um
banquete campestre_, etc.

Antonio Raphael Mengs (allemão) é auctor de _Santa Maria Magdalena_;
Rembrandt (hollandez) tem _A rainha Artemisa_; e Moso Antonio (da mesma
escóla) pintou a esposa de D. João III, rainha de Portugal.

A escóla franceza tambem ali se acha dignamente representada por Pousin,
Claudio de Lorena, Antonio Watteau, Claudio Vernet e muitos mais.

Emfim, só a narração circumstanciada d'este museu daria para um grosso
volume, não incluindo já na conta a galeria de pinturas da _Academia
de S. Fernando_, na rua de Alcalá, que possue mais de 300 quadros, e o
_Museu nacional de pintura_, na rua da Atocha.

Se o leitor fôr curioso, com certeza não deixará de visitar os _museus_
de Madrid, que evidentemente constituem os monumentos mais notaveis da
civilisação hespanhola.

Só no _museu de antiguidades e medalhas_, na Bibliotheca nacional, se
pódem ver mais de 98:000 medalhas de ouro, prata, ferro, bronze, cobre e
barro, e muitissimas e numerosas antiguidades egipcias, etruscas,
gregas, romanas, godas, arabes, etc.

Na rua de Alcalá encontra-se o _Museu de historia natural_, que foi
fundado no tempo de Carlos III, e que possue ricas collecções de
mineralogia, de paleontologia e de zoologia.

Dos melhores do seu genero são tambem o _Museu anatomico_ de S. Carlos,
na rua da Atocha; o _Museu de artilheria_, no Buen Retiro, e o _Museu
naval_ no ministerio da marinha, o qual contém uma rica collecção de
armas, tropheus, e outros muitos vestigios de guerra e de combate.

Em Hespanha ha uma tendencia especial para esta arte. Raros são os
particulares que não possuam tambem o seu museu.

Um vi eu que me maravilhou devéras. Pertencia a Romero Ortiz. Entre
outras raridades, foi-me dado vêr ali o mappa em que o general Moltke
traçára a guerra franco-prussiana, e a faixa encarnada que Prim tinha
cingida á cinta na noite em que o assaltaram. Muitas reliquias
portuguezas me foram tambem mostradas, e creio até que uma do fallecido
visconde de Castilho.

Não ha de facto palavras que facilmente descrevam tanta arte, tanto
aceio e tanta maravilha.

Sobretudo--que maravilha!



X

A MUSICA


Poucas cidades ha já hoje na Europa que não tenham o seu theatro lyrico.
A musica não é apenas um entretenimento agradavel; é ainda mais, uma
necessidade impreterivel.

Aos domingos e dias santificados, aquelles que, por falta de meios, não
podem concorrer a espectaculos pagos, procuram naturalmente os jardins
publicos, onde, gratuitamente, lhes é dado ouvir uma orchestra ou uma
banda musical. E assim, este simples divertimento faz com que muitas
vezes se afastem da taberna muitos centenares de operarios. É que a
attracção de uma boa musica traz-nos frequentemente o esquecimento das
proprias dôres e dos proprios soffrimentos.

Tres escólas se disputam a palma no campo da lucta.

Uma (a escóla allemã) é a harmonia: raciocina, descreve as lendas do seu
paiz, e obriga á reflexão; outra (a escóla italiana) é a melodia: corre
atraz da sua imaginação, queda-se com um sentimento triste, expande-se
com a dôr, e recolhe-se com o amor. A primeira é grave, solemne,
austera, e pertence naturalmente aos povos do norte; a segunda é meiga
como uma mulher portugueza, leviana como a natureza em que vivemos, doce
como os costumes da Italia, e a sua vida está subordinada aos povos do
meio dia.

Na _Africana_, por exemplo, ha gritos selvagens, notas lancinantes,
harmonias plangentes; mas tudo isto com a inexcedivel pericia de um
maestro consciencioso, e, sobretudo, pensador.

Beethoven tem o condão maravilhoso de nos compellir ao estudo, á
concentração intima, ao seguimento de uma idéa, que é como que o
desabroxar do espirito para um mundo novo.

Grottschalk e Mendelssohn têm nas suas composições o cunho indelevel da
tristeza, prevêem a morte, e cantam-n'a. Não têm horror ao mysterio, e
por isso as suas partituras avivam em nós um não sei quê de vago, de
indefinido, que involuntariamente nos obriga a interrogar os arcanos da
consciencia.

Mozart tem uma certa vivacidade que seduz; em meio das suas lucubrações
pára, e, espraiando a vista pelos horisontes além, sente-se feliz, e
sorri; e tão formosos são os seus sorrisos, que d'elles, como se fossem
um sol, partem os raios animadores das suas obras monumentaes.

Ricardo Wagner, hoje o maior vulto musical da Allemanha, tem nas suas
obras, a par do rythmo, profundamente cadenciado e harmonico, uma feição
notavelmente litteraria e artistica; estudando as lendas do seu paiz,
conta-as com a superioridade de uma grande potencia, a quem não
escasseia nem o genio nem a phantasia.

A terceira escóla é a franceza, sem ideal definido, portentosa umas
vezes, com os arrojos de Meyerbeer, e suavemente deliciosa n'outras
occasiões, com as meigas melodias de Bellini ou Donizetti. E no
entretanto uma coisa distingue esta escóla: é a _verve_, o frescôr
animadissimo, transparente, que se exhala de todas as notas; a harmonia
que nos leva á meditação; a melodia que nos arrasta os sentidos, á
selhança de quem vive numa atmosphera impregnada de vapores e de perfumes.

A escóla franceza tem, é verdade, muito de condemnavel como escóla
_ecletica_; mas ainda assim não devemos nunca esquecer que a ella
pertencem talentos soberbos, como o de Gounod, compositor do _Fausto_,
e o de Berlioz, auctor do _Manfredo_, que para muitos foi o predecessor
de Ricardo Wagner, e o de Auber, e o de Herold e o de muitos outros.

A escóla franceza é, pois, uma intermediaria entre a escola _allemã_,
toda _subjectiva_, inspirando-se nos grandes arrebatamentos da
consciencia humana, cheia de gravidade, como a justiça, rodeada de
esplendores, como a verdade e infiltrada de meditações, como o espirito
da humanidade, e a escóla _italiana_, toda _objectiva_, obedecendo mais
ás impressões dos sentidos, tendo por norma de vida o ideal da natureza,
cercada de flôres, de primaveras e de aves, e cantando o paraizo ao som
das intimas alegrias e dos intimos prazeres.

Os _dilletanti_ do nosso theatro lyrico quasi que chegam a menosprezar
hoje a musica italiana, por obnoxia e anachronica.

Não nos parece razoavel semilhante proposito. A não ser a moda, não
sabemos que outros factos possam abonar tão disparatada opinião.

Portugal não tem uma educação musical verdadeiramente avigorada. Está
longe ainda de poder attingir o classicismo allemão.

Depois, nós somos um povo peninsular. Vivemos com as impressões
exteriores da natureza; o nosso espirito segue as oscillações da
temperatura atmospherica; somos frouxos, levianos, sem o vigor que dá a
consciencia nem a elevação que nos traz a idéa: a nossa escóla ainda
ha de ser por muitos annos a escola italiana.

A musica constitue, como a litterutura, a genuina expressão dos
sentimentos de um povo. A França, que ri sempre e a proposito de tudo e
de todos, não podia deixar de ser a patria da comedia moderna; por
eguaes razões a Inglaterra, que se alimenta de fumo e de _spleen_, se
não possuisse Shakespeare, o sublime tragico, possuiria de certo
qualquer outro que lhe interpretasse os sentimentos e as paixões, com a
mesma eloquencia com que o soube fazer aquelle divino artista; a
Allemanha, á semelhança de quasi todos os paizes do norte, é mais
inclinada ao drama symbolico, de que o _Fausto_ é um exemplo
maravilhoso, do que ao drama de paixão, que pertence naturalmente á raça
latina.

O genero musical mais favorito, em Hespanha, é o _tango_, a _habañera_,
a _malagueña_, a _seguidilla_, n'uma palavra a--zarzuella, com feição
especial e caracteristica, podendo tomar-se como mais uma affirmação do
genio bandoleiro hespanhol, e do espirito aspero, violento e
contradictorio d'aquelle esplendido paiz.

Que a musica entre os hespanhoes é originalissima, sabem-n'o todos. E
por tal fórma é isto verdade que jámais povo algum do mundo foi capaz de
assimilar-lhe a inspiração, o rythmo e o cadenciado da phrase.

A Hespanha ficaria incompleta se porventura lhe subtrahissem este genero
de musica, de todos os generos o mais monotono, talvez, mas com certeza
o mais espontaneo, porque é a expressão das suas tradições e da sua
nacionalidade.

Rara é a mulher em Madrid que não sabe cantar. O proprio amor madrileno
é um tango, em que a amada ou a amante ora quer, ora não quer, ora
solluça e ora ri, ora finge e ora pensa.

D'este modo vê-se que a musica em Hespanha, producto natural d'aquelle
paiz é como tudo o que alli existe--uma contradicção agradabillissima, e
talvez mesmo que um sonho encantador.

Mais adeante, porém, voltaremos a este assumpto.



XI

O CHOCOLATE E O CAFÉ


Eu havia realmente feito uma idéa da minha querida _señorita_; mas, por
Deus, ella, a caprichosa, está muito acima da minha pobre imaginação.

Madrid já não é simplesmente a mulher formosa, que ao sopro da
_ventarola_ agita os olhos avidos e curiosos, inflammada na eterna
chamma do amor e docemente embriagada pelo _Xerez_ do sentimentalismo
peninsular. Não. Madrid é mais alguma coisa do que isso--Madrid resume
em si a altissima idéa industrial do chocolate e o singularissimo
pensamento politico do café.

Peço perdão, minha senhora, se porventura fui menos claro no modo de
exprimir a minha idéa. Eu me explico. O chocolate é aqui o nosso
companheiro inseparavel, o nosso _bâton_ da manha e a nossa _badine_ da
noite.

Pela madrugada, ao descerrar a palpebra, ainda meio adormecida pelo
vivido enthusiasmo d'este _magasin_ pittoresco--a leitora será
mansamente despertada no seu leito, não por um formosissimo sol de
abril, mas sim por um mysterioso toque symbolico na porta do quarto, o
que lhe indicará muito claramente que, não longe d'ali, a está esperando
uma gentil creadinha com uma simples chavena de chocolate.

E, ou queira, ou não queira, ha de tomar o chocolate; do mesmo modo que,
se estivesse no Brazil, havia de tomar café sempre que visitasse um
amigo, e na China havia de aturar o chá vinte vezes por dia.

Ora, em caso de luta, eu prefiro o chocolate, porque, emfim, nem nos
torna nervosos, como o café, nem anemicos como o chá; que a fallar a
verdade elle--que para a Hespanha é o caracter, o amor, a vida, a
poesia, o commercio, a industria, a politica, a arte--elle, o chocolate,
é sobretudo nutriente e impregnado de substancias vivificadoras.

Pobre Hespanha! Alegre filha do estreito Manzanares, eu, em ti, não
canto as mulheres, nem as mantilhas de Sevilha, nem os teus risos
infernaes--eu, em ti, formosa, canto, apenas, o chocolate e o café, isto
é, a revolução e o futuro.

Pois julgam que não? Não acreditam na efficacia do chocolate, o escuro
semsaborão? Perguntem a s. s.ª, o dono da fabrica de _la Saragoza_.
Perguntem-lh'o. Tenham a bondade de perguntar-lhe qual é o seu consumo
diariamente.

Os hespanhoes são alegres, cheios de vida, dormindo pouco, saindo muito,
falladores, enthusiastas. E sabem porquê? Por causa do chocolate, o
mysterioso, que traz sempre estes ventres bem fartos, e, portanto,
orgulhosos de si mesmo.

A Hespanha passeia muito, é ligeira nos seus affectos, caprichosa na sua
politica, sonhadora, aventureira, risonha. E sabem porquê? É porque ella
precisa de fazer a digestão do seu chocolate. E por isso ella, a
olympica, faz duas ou tres corridas por anno por politicas differentes,
e inventa revoluções, que, por causa do chocolate, apenas poderão durar
poucos mezes.

As mulheres voam como andorinhas; correm de coração em coração, são
seductoras, amaveis, familiares, intimamente affectuosas, mas tudo isto
com azas, e portanto, com perigo.

Ora é por isso que eu ouso dar um conselho a s. s.as os srs. maridos de
Hespanha--não dêem chocolate a suas esposas, se é que realmente amam
mais o seu _mènage_ do que o _boulevard_.

Agora o café.

É um _pendant_ ao primeiro: ambos são negros, como suas reverendissimas
os senhores jesuitas que por aqui caminham aos centos.

O café é o complemento do chocolate. Vive-se n'elle, e n'elle se
apura a linguagem, a _toilette_ e o bem-senso.

As mulheres conciliam no seu coração o amor do profano e o amor do
sagrado. Entram no templo catholico com o mesmo _sans façon_ com que
entram no templo social. Porque o café--talvez a leitora o ignorasse--o
café é tambem um templo.

E que templo, minha querida marqueza! De tudo se encontra ali desde o
fidalgo da regencia _ci-devant_ até ao maratista sans-cullote.

Venha v. ex.ª a Madrid aprender a egualdade humana. Venha tomar aqui uma
chavena de café, e verá como, embora desconheça a liberdade, v. ex.ª
fallará na egualdade. Venha, minha senhora. Não se arreceie dos
carlistas, que esses bandidos já hoje não vivem, e pertencem á historia.

Quando S. M., o sr. D. Affonso XII, houve por bem entrar em Madrid,
depois de concluida a guerra carlista, a cidade embandeirou-se,
illuminou-se, gritou, exclamou, abriu a bôcca. E sabem tudo porquê?
Porque a cidade havia tomado muito chocolate. Sem _blague_. Estavam
todos fartos de chocolate, e a vingança foi digerir o patriotismo,
abertamente, rasgadamente, como qualquer leão do deserto.

Só a tropa não havia tomado a sympathica droga, e, por isso, ella entrou
na cidade esfarrapada, com as faces crestadas pelo sol das montanhas,
que não pelo sol das batalhas, e olhos encovados e lobregos. Por isso o
primeiro dever de sua magestade o sr. D. Affonso XII será mandar vestir
os que estão nús e dar chocolate a quem tem fome.

Que sua magestade seja misericordioso. Que sua magestade se inspire no
amor do proximo e no bem da humanidade!

Sua magestade é rapaz, que não prima pela formosura, mas que poderá, de
certo, primar pelo espirito. Eu não tenho a honra de conhecer sua
magestade. Sei que entrou em Madrid, e que a estas horas--tres da
tarde--já terá tomado chocolate no seu palacio de _la Plaza de Oriente_.

Deve ser-lhe de bom proveito, porque, emfim, sua magestade como
primeiro cidadão do seu paiz, tem de andar sempre bem alimentado, porque
muito tem que trabalhar.

Que sua magestade, portanto, haja por bem engordar e deitar fóra a
magreza que o devora, e tornar-se rijo, como qualquer dos seus soldados.

Que sua magestade, como bom catholico, se digne implorar da providencia
tão alta mercê.

Que sua magestade, reinando _por graça de Deus_, não seja frouxo nem
anemico.

Que sua magestade, emfim, tome muito chocolate, para assim angariar a
estima de seus subditos e o amor do proximo!

Que sua magestade não tenha pejo de entrar no café; que entre no café,
que questione, que se torne hespanhol, tomando a sua capa, e passeiando
pelas ruas da cidade, como qualquer humilde mortal.

Posto isto nós não temos mais que dizer a sua magestade.

E, portanto, que sua magestade passe muito bem, e me honre com as suas
ordens sempre que assim lhe aprouver.

      *      *      *      *      *

Entre os muitos e notaveis cafés de Madrid, avultam, principalmente, o
_Imperial_, o _Oriental_, o das _Columnas_ e o de _Levante_, na Puerta
del Sol, o _Suisso_, na rua de Sevilla, o da _Iberia_, na Carrera de S.
Jeronymo e o _Fornos_ na rua de Alcalá.

O viajante que escolha á sua vontade; na certeza de que em todos elles
encontrará vida, apetite e enthusiasmo.

Portanto--_à l'aventure_!



XII

O SALERO


Por Deus, que se tivesse agora de fallar numa mulher franceza, eu, á
semelhança de um prégador d'aldeia, invocaria em meu auxilio, não a
virgem pura dos altares, mas sim a orgulhosa modista de sua magestade a
rainha--a sr.ª D. Cecilia Fernandes.

Mas o caso é outro. Trata-se de uma cousa engraçada, de uma cousa
extraordinaria, singular, de uma cousa perfeitamente real, e que não
deve a sua existencia neste mundo nem a Marsoo, a modista, nem a
Stellpflug, o sapateiro.

Trata-se, minhas senhoras, trata-se meus senhores, trata-se do grande
rei de Hespanha, da grande alma dos cafés, do grande senhor da politica,
da grande _dama d'honor_ de todos os paços, do grande, do supremo
_Bobeche_ de todos os ministerios, do grande _Pierrot_ de todos os
tribunos; trata-se (mas isto em segredo!) trata-se do _salero_.

O _salero!_ _Caramba!_ Sabe a marqueza o que é o _salero_? Nunca na sua
vida teve, ao menos, um ataque nervoso; nunca se irritou contra as
diabruras do marquez; nunca teve as cócegas, que ordinariamente nos
trazem as comidas apimentadas; nunca experimentou _Mabille_; nunca
dançou um _can-can_ simples, um d'estes _can-cans_ que mesmo em familia
se dançam com os pequenos da casa; nunca namorou, marquesa? e nesse
culto virginal, não se mexia, não revirava os olhos, não compunha o laço
da gravata, não apanhava a prega do vestido, não se assoava, não mudava
um gancho do cabello, não tinha sorrisos frisantes, não fingia, não
brincava?

Fazendo tudo isto, sem mesmo o saber, a marqueza tinha _salero_, e era
hespanhola.

Mas, perdoe-me a leitora, para se ter _salero_ não basta só conhecer o
_Terreiro do Paço_ e o _Rocio_, ir de quando em quando a S. Carlos ouvir
mad. Sass, e frequentar aos domingos o _Passeio publico_, como qualquer
simples burguez.

Nada d'isto. Se a marqueza realmente quizer ter _salero_ saia de
Portugal, despeça-se dos seus amigos, vá a Madrid, tome a sua mantilha
de andaluza, frequente todos os dias o _Prado_ e o _Retiro_, entre no
café imperial e discuta a politica do sr. Canovas del Castillo--emfim,
minha querida senhora, se quizer ter _salero_ seja hespanhola.

Bem vê, marqueza, que isto de ser portuguez é um tanto exquisito, e
arrasta-nos a gravissimos inconvenientes; porque, emfim, permitta-me v.
ex.ª que espirre um pequeno sarcasmo sobre o paiz do sr. D. Affonso
Henriques--nós, os portuguezes, nem temos a _coquetterie_ franceza nem a
seriedade britanica; de modo, que, imitando a todos, ficamos sendo
cousa nenhuma, o que mathematicamente equivale a zero.

Destruir, porém, o zero, anathematisar o vacuo, preencher essa pequena
lacuna deselegante, rotunda e burguesa--tal deve ser a missão da nossa
mulher.

Que o zero se retire d'este paiz: que o sr. Serpa não tenha pejo em o
pôr fóra da sua secretaria; que os grandes algarismos herculeos nos
entrem pela porta dentro, e exclamem soberbamente: «Nós, os finorios da
arithmetica, nós é que somos a riqueza, o credito e a virilidade. _Nos
quoque gem sumus...._»

E dito isto--que _mylady_, a sr.ª marquesa, se não esqueça de mandar vir
uma boa carroagem _Daumont_; que _mylord_, o sr. duque, mande preparar
um bom jantar aos seus amigos intimos; e finalmente, que o _demi-monde_
procure Keil, a gloria dos alfaiates lisbonenses, adquirindo assim, em
virtude da thesoura, o _chic_ e a pose de quem muito viajou.

Já vêem que o conselho é aliás muito trivial; para o pôr em pratica uma
unica condição se requer--pagar aquillo que se deve.

Eu desejava, é verdade, que a leitora tivesse _salero_--que o comprasse
nos cafés, nas _calles_, na _Puerta del Sol_, que o adquirisse no
_Prado_ e no _Retiro_, onde diariamente apparecem de mil a duas mil
carroagens, deslumbrantemente equipadas, mas, emfim, se isto lhe é de
todo impossivel, se realmente lhe repugna o caracter hespanhol, tenha
paciencia, e mande vir um figurino de Paris. Aprenda a calçar-se bem;
arranje 60 libras, e appareça um dia no _Bois de Boulogne_; decore dois
ou tres bons ditos: torne-se artificial, ligeira, engraçada, mas com
_verve_, _avec de l'esprit_--numa palavra torne-se franceza; ou ainda,
se a menina vê difficuldade neste passo e tem aspirações a ser mãe,
então tenha a bondade de tomar um bilhete pelo primeiro paquete de
Southampton e de visitar a Inglaterra.

E assim é realmente que a mulher hespanhola é mais material do que
sentimentalista, mais da sociedade do que da familia, mais do mundo do
que do coração.

Por via de regra, a hespanhola é franzina, delicada do corpo, com as
faces coloridas pelo uso do chocolate e os olhos scintillantes de
vivacidade e de ardor verdadeiramente meridional--alguma cousa do
facetado do crystal e da delicadeza da porcellana; nem possue o
_coquettismo_ da franceza, porque lhe falta o apuro do espirito, a
revelação da ironia, o pungente do sarcasmo, nem a _mènagerie_ da mulher
ingleza, porque ella é muito simplesmente a negação d'esse viver intimo
e famillar.

Mas, em compensação, ella, a minha formosa andaluza, tem uma cousa que
nenhuma mulher d'este mundo é capaz de ter--ella tem o _salero_, isto é,
o desprendimento olympico, titanico, por tudo quanto é vida e amor, o
doce _laisser-aller_ da arte, que é luz, e magnetismo--luz, que abrasa
em sua chamma aquellas candidas borboletas dos cafés, magnetismo, que
adormece em seus braços aquellas ternas andorinhas, como as outras aves,
suas irmãs, sequiosas de ar, de prazeres mundanos, de folgança, mas
folgança, perfeitamente real, selvagem como o matar de um touro, o
esfaquear de uma creatura, ou o abrazar de uma consciencia--ella, a
hespanhola, ella não é verdadeiramente uma mulher, mas muito mais do que
isso:--ella é um rapaz de saias, um pequeno demonio alegre, juvial,
attrahente, um doce mysterio de dois sexos, incomprehensivel, que ao
mesmo tempo participa de um, pela virilidade, pela audacia, pelo arrojo,
e de outro pela meiguice inconsequente, pelo rir suavemente acariciador,
e pela ternura extraordinariamente singular que as reveste.

Oh! as hespanholas! as originaes!...

As nossas mulheres, por exemplo, imitam servilmente as francezas; mas
ella--por Deus!--ella é o que é--só ella, sem mais ninguem, caprichosa,
unica, originalissima.

Aquelle fallar, aquelle rir, aquelle modo de dizer as cousas tão á
_propôs_ e tão seu, aquelle _salero_, e, sobre tudo isto, fazem com que
a mulher hespanhola tenha dois lados immensamente notaveis e
extraordinarios--a energia e o _salero_, isto é, o chocolate na sua
consequencia digestiva e physiologica--o movimento e a graça.

Dito isto, minha querida leitora, façamos como ellas--tomemos o
chocolate e tenhamos _salero_.

_Caramba! que salero!..._



XIII

THEATROS


A vivacidade do genio hespanhol tem ainda um reflexo do seu bom humor e
da sua veia, sempre fina, alegre, e sarcastica a espaços relampagueada
por um raio de colera ou por uma faisca de trovoada--é o theatro.

Oh! os theatros em Hespanha! que sumptuosos edificios! que riqueza na
_mise-en-scene_ de qualquer peça! que luxo! que prodigalidade...

Ao ouvir as doces _malagueñas_ e as ternas seguidilhas, desferidas por
labios de romã, que nem eu sei se são da terra, se são do ceu,
quasi chegamos a julgar-nos transportados ao Oriente, com todo o seu
cortejo de sensualidades que matam, de _bailadeiras_ que seduzem, e de
amores que fervem.

Que deliciosissimas sereias, em pleno seculo XIX! que sublimes actrizes,
aquellas, meu Deus! E havia de, ainda assim, ser condemnado um cidadão,
se, _à la belle etoile_, e a occultas da parentella, intentasse o rapto
d'uma d'aquellas formosas _sabinas_, mais diabos que o proprio Diabo e
ganhando em seducção á propria serpente do paraiso terreal?!...

Uma cousa, porém, distingue o theatro hespanhol--é a _zarzuella_,
especie de meio termo entre a opera lyrica e a opera buffa; suave umas
vezes com as transparencias sentimentaes das paixões humanas, alegre
sempre, folgasã quasi sempre, e por toda a parte impregnada d'um
estranho frescor de malicia e de surpreza, que chega a prender ainda os
menos atreitos aos laços de Satanaz.

Em França, por exemplo, a opera buffa foi uma creação meramente do
_demi-monde_; creação necessaria no meio das corrupções do imperio,
em que se fazia mister caricaturisar e pôr bem ao vivo todos os podres
de uma sociedade effeminada, desde o imperador, que representava o vicio
dourado e a lepra engastada em diamantes artificiaes, até á ultima
_grisette_, que, por causa de um estudante do bairro latino, tinha
empenhado os seus derradeiros ceitis: mas com a _zarzuella_ não succedeu
o mesmo, porque ella foi uma creação espontanea da jovialidade de um
povo relativamente feliz, e que ha de sobreviver a todos os cataclismos
sociaes, como até aqui tem sobrevivido a todos os tempos.

Offenbach tem na sua gamma uma só nota caracteristica--o riso, a ironia,
o sarcasmo. Marianno de Larra, auctor de muitas _zarzuellas_ notaveis,
possue, além do riso, a lagrima que lhe serve de contraste e que o
dulcifica.

A _Grã-Duqueza_ é uma correcção ás momices imbecis de uma diplomacia
estonteada, um quadro fiel das _cocottes_, arvoradas em mandadeiras de
exercitos, uma photographia de costumes pervertidos pela
immoralidade de um governo inepto e pelo capricho de um monarcha infame;
o _Jogar com fogo_ é um entre-acto agradavel ás acenas da vida, um
delicioso intervallo aos soffrimentos e ás dôres da humanidade.

E é o que tem a _zarzuella_: não cança nunca, porque foi um producto
natural e espontaneo dos hespanhoes, tal qual como o chocolate e o
_salero_; ha de viver sempre, e atravez de tudo, porque tem em si
impresso o cunho da originalidade e da tradição, que não morre, e a
elevação do sentimento, que será sempiterno no seio dos homens e das
civilisações.

A opera-buffa foi um arranco de homens fortes, em meio da perdição que
os ameaçava; nem ha de ter nunca a universalidade da _zarzuella_ nem a
elevação da alta-comedia. O seu dominio no theatro ha de ser, portanto,
passageiro e ephemero.

Numa palavra, a _zarzuella_ tem as suas raizes nas immutaveis
oscillações do coração humano, e que a torna duradoura e imperecivel; a
opera-buffa originou-se numa sociedade de transição, e ha de, por
isso, como ella, ter um mediano imperio sobre as épocas positivas e
scientificamente organisadas.

Em quasi todos os theatros de Madrid se canta a _zarzuella_, e em quasi
todos elles tambem com a animação, com o vigor, com a frescura com que
só os hespanhoes a sabem cantar.

Quando, pela primeira vez, entrei no _Theatro Real_, situado no largo de
Isabel II, com a fachada principal para a praça do Oriente, senti-me
sinceramente deslumbrado. É tal o luxo d'aquella casa, tal a ordem,
tamanho e socego, que, em boa verdade, mal chega a gente a pensar que
esteja na capital da Hespanha, no paiz dos bandoleiros de toda a especie
e no centro de um vulcão, sempre em revolta comsigo mesmo.

E depois, que contraste entre uma tourada e uma representação theatral!
Que a delicadissima leitora, do meio de um deserto, confuso, anarchico,
impetuoso, açoutado pelo _simuon_ e ennegrecido pelas areias, se julgue
subitamente transportada a um paraiso, onde adejam os cherubins com
as suas azas brancas e onde sorriem os anjos com as faces louras.

Assim me succedeu a mim quando uma tarde, dos suburbios da Porta de
Alcalá, onde existe a praça de touros, me lembrei de ir ao theatro, afim
de ouvir cantar esse eterno e insubstituivel poema do coração humano,
mui modestamente chamado--_Romeu e Julietta_.

Nunca em Hespanha uma pateada interrompeu os espectaculos lyricos. A
platêa do _Theatro real_ não é só rica em alcatifas, em estofos, em
casacas e gravatas brancas, mas ainda e muito principalmente na
seriedade dos seus espectadores e na respeitabilidade mais que urbana e
generosa dos seus _habitués_.

Na rua de Jovellanos encontra-ae o theatro da _zarzuella_. De
_zarzuella_... dizem elles; nós diriamos quasi um segundo theatro
lyrico. Que vozes tão admiravelmente timbradas, e que modulações tão
harmonicamente produzidas!

Representava-se então uma velha _zarzuella_, muito velha e muito ouvida,
mas sempre fresca no rhythmo e no pensamento, que é nada menos do
que a expressão do caracter hespanhol. Queremos fallar de _Pan y toros_.

--_Panem et circenses_, gritavam os romanos; _Pan y toros_, exclamam os
hespanhoes, como querendo mostrar a intima affinidade que, de facto,
existe entre um e outro paiz. Mas--cousa singular! a França tambem é de
origem latina, e no entretanto a França, a generosissima filha da
revolução e do pensamento moderno, em vez de pão e touros, do alto das
suas muralhas de guerra e do topo das suas fortalezas, soluça
altivamente--_ou pão ou chumbo_.

E assim é realmente que ella caminha, não em demanda de espectaculos que
embrutecem, mas sim em procura de civilisações, que são como que os
marcos milliarios da humanidade trabalhadora.

Muito bem. Imaginemos a côrte no doido phrenesi d'um baile. Subito uma
denotação fere os ares. Abre-se uma das janellas do palacio. Cessa a
volupia. Um dos convivas descendo a escadaria, reconhece haver-se
morto ali um capitão de infanteria, ha poucos instantes. Averiguado o
caso nada era.

--«Póde o baile continuar, exclama o mestre. Não é nada, não é nada. Um
homem morto. Apenas um homem morto!»

E a orgia proseguiu; porque, a dizer-se a verdade, não vale nunca a pena
interromper os prazeres mundanos pela simples bagatella de um assassinato.

Ora nesta _zarzuella_ transparece perfeitamente o caracter hespanhol,
irrequieto e indomavel, com todos os seus mil caprichos de momento e as
suas labyrinticas phantasias de occasião.

Além, porém, d'estes dois theatros, ainda poderiamos mencionar muitos
outros, e entre elles o theatro da _Comedia_, theatro muito moderno,
lindissimo na fórma e admiravel pelo seu reportorio; o theatro do
_Circo_, na praça del Rey; o theatro de _D. Affonso_, proximo da Porta
de Alcalá; o theatro das _Variedades_, o theatro das _Novidades_, etc.,
etc.

E tudo isto ainda por cima, rodeado de circos, de largos, de exposições,
de musicas, de alegrias ferozes e de mulheres encantadoras.

É verdade, e os _patinadores_?

Fallemos dos _patinadores_.



XIV

OS PATINADORES


Princeza, o seu braço! Vossa alteza é morena, viva, alegre; tem uns
bellos olhos rasgados, profundos, negros, como os abysmos do inferno.
Pois bem: que a sua alma ardente e expansiva, como este bello sol da
peninsula, que nos aquece e anima, se digne, por um pouco, acompanhar-me
a aspirar o ar bom da natureza.

Quero tel-a ao meu lado, rainha. Bem vê--eu não sou fidalgo, nem conde,
nem barão. Á fé que o não sou. Mas emfim, se é verdade que a um
democrata nunca ficou mal beijar a mão de uma aristocrata,
conceda-me a indiscripção. Os meus labios tocarão delicadamente á
superficie d'essa meiga flôr de liz, mais bella e mais transparente do
que uma renda de Bruxellas. Depois, e só depois, o paraizo...

Antes de mais, porém, tomemos um fiacre, um commodo fiacre, ligeiro, com
duas molas flexiveis, dois nobres cavallos, briosos, e um valoroso
cocheiro de mão certa e pulso firme. É verdade que as rainhas hoje nem
sempre estão prevenidas. No entretanto, tu, minha velha amiga, tu, que
não tens nenhum reino a perder; tu, que nunca passaste do _boulevard_
com todos os seus perigos e attracções; tu, com certeza, tens ainda os
cem luizes que hontem á noite te deixou aquelle inglez excentrico de
suissa loura e ar grave.

É para elles que eu appello, para esses cem luizes honestos, puros,
serenos, capazes de encher a historia do mundo, e incapazes de concitar
em redor de si odios republicanos ou raivas demagogicas. Não! os cem
luizes são de todos--de todos os tempos e de todos os logares--reinando
sempre, e sempre bem: irresponsaveis, sem exercitos, sem côrte, sem
apparato, mas valentes, com consciencia de si, e valendo pelo silencio,
aquillo que os mais abalisados do mundo não podem conquistar pela
palavra.

Que magnificos sujeitos!

E agora reparo que nestas conversas iamos perdendo o tempo. Aqui está a
carruagem. Entremos para a carruagem.

Da _Puerta del Sol_ ao _Prado_ são dois passos. Olhe a princeza: vê
aquelle cavalheiro de bigode e pera alourados, estatura regular, pallido
de rosto e expressivo no olhar?--é o general Pavia, o celebre assassino
da republica em Hespanha.

Mais além, repare: aquella morenita, leve como uma penna, e adoravel
como uma fada, é Pepa--uma heroina de amores e uma actriz de corações
humanos. Mas, que nobre vulto, este agora? É o duque de Abrantes, por
sangue descendente de Portugal, antigo possuidor da quinta das
_Laranjeiras_, senador e conselheiro de Isabel II. É homem baixo, magro,
secco e decidido nos seus gestos, o que indica uma vontade firme e
um caracter recto.

Mas chegámos, finalmente. Uma vez que estamos em _Recoletos_, entremos
num d'estes circos.

Que magnifico sol e que supremas alegrias! A neve é pouca; e por isso
nós, que queremos patinar, recorreremos ao artificio.

A praça está encerada. Muito bem. Patinemos na praça.

O seu pé, minha doce amiga. Não tenha medo. Por Deus, não trema. Não
trema, que não morrerá, asseguro-lh'o eu. Nunca leu a admiravel historia
dos patinadores descripta por Alexandre Dumas no _Colar da Rainha_?

Olhe, é um encanto! Por exemplo, eu quero patinar, mesmo no circo,
colloco debaixo de cada pé um pequeno carrinho, composto de tres
rodellas de ferro.

Dê-me o seu pé, e verá.

Agora firme, sem attrictos, serenamente, imperturbavel; deixe-se
escorregar, como uma pequena gondola veneziana; unicamente, para não
cahir, imprima um leve movimento aos joelhos, alternando-os, por
causa da lei do equilibrio.

Depois, oh! depois, o infinito, o ideal, o amor, as azas, mais velozes
do que as de uma ave, as pernas mais ligeiras que as de uma corça; uma
estranha mão apertando-nos a nossa; é o paraiso a sorrir-nos num beijo
que ninguem vê, e a gloria a mirar-nos num céo, que nos allucina, que
nos embriaga, que nos absorve.

Correr, voar, amar!--tal é o triplice fim de um patinador.

Mas, antes que se chegue a ser um bom patinador, intrepido e
valente--que trabalhos, que luta e que risota! Que risota, sobretudo!

Vai um portuguez a Madrid, e mesmo nisto começa por conhecer a sua
inferioridade. Que poltrão! Aluga dois carrinhos, e vem para o circo:
olha; vê, sorri-se, anedia as guias do bigode, dá um geito ao cabello, e
toma ares de _Bayard_ de papellão; deseja tomar a posição perpendicular,
e vacilla. Dou-lhe um, dou-lhe dois, dou-lhe tres; por fim o heroe parte;
horror! não parte, porque a inhabilidade o torna pesado,
refractario á gymnastica, e ao desenvolvimento de musculos. Risota
geral--Ah! Ah! Ah... _Hic jacet infelix patinator..._

A victima levanta-se, desconfia d'aquelles comprimentos improvisados, e
conclue por detestar os sabios de qualquer natureza que elles sejam.

Mais uma tentativa. Vejamos. Talvez fosse defeito das rodas, talvez dos
pés, talvez da falta de agilidade... Experimentemos. Novo impulso. Ah!
Ah! Ah! Nova queda.

E, entretanto, em quanto isto se dá, alguns milhares de cavalheiros vão
seguindo o seu rumo, sem interrupção, olhando de soslaio os
principiantes, e mostrando naquelle modo de correr que até a andar se
póde ter consciencia de si e vaidade dos outros.

Duas senhoras inglezas vi eu, um tanto esquivas ás ironias do amor, que
mais pareciam, patinando, sonhos aéreos, visões romanticas do que
realidades terrenas.

Nós a tentarmos a approximação, e ellas a fugir, a fugir, como sombras
longinquas, que só por escarneo se approximam de nós, para
novamente nos escapar, fazendo-nos umas tristes e desoladas figas.

Que horror! E Frutos Martinez, o patinador illustre, avisado naquelles
assumptos, collocando, cheio de raiva os seus carrinhos, lá se ia,
inconscientemente, atraz d'aquellas borboletas de olhos azues e cabellos
louros.

Mas, certamente, meus caros concidadãos--a patinação não e simplesmente
um espectaculo agradavel, rodeado de peripecias curiosas e movido por
generosos impulsos de espirito. Não! na patinação ha ainda mais o
desenvolvimento physico, que muito conviria á nossa mocidade enfesada, e
o interesse moral, que, de certo, aproveitaria mais aos nossos rapazes
do que uma facada dada no Bairro Alto, em pleno dia.

Em todo o caso, uma vez que assim queremos ser, sejamos assim, sem
graça, sem espirito, e sem a elegancia, que naturalmente se exige nas
existencias modernas.

_Honra soit qui mal y pense..._



XV

TOURADAS


_A los toros! a los toros!..._


E a populaça, ebria de sangue e sedenta de prazer, empoleirava-se no
cimo das carruagens, comprava camarotes pelo dobro do preço, corria
pelas ruas como um possesso, gritava, ria-se, atirava ao ar os seus
chapeus emplumados, cortejava a realeza que passava, dava vivas á
_Marselhesa_, e fugia, fugia nas azas do phrenesi irrequieto, em demanda
do mais barbaro de todos os espectaculos do mundo.

Ó Hespanha, minha querida amiga, doce filha dos cafés e da volupia,
tu, que possues _museus_ que te são um legitimo patrimonio de orgulho e
de riqueza; tu, que amamentaste ao teu seio os maiores oradores da
Europa contemporanea; tu, que tiveste artistas como Murillo, Velasques,
e Goya; tu, que és o amor, a contradicção, o mysterio; tu, minha perola,
tu não devias ser _torera_.

Emfim, eu sei que tu tens defeitos; e o teu primeiro defeito,
acredita-me bem, é ser militar. Os teus rapazes, porque são novos,
desejam agradar ás mulheres: pegam numa arma com a mesma sem-ceremonia
com que nós aqui bebemos um copo de agua. Que valentões! O campo de
batalha sorri-lhes, o inimigo revolta-lhes as iras concentradas, e são
leões, atiram-se, atiram-se ferozmente sobre a metralha adversa. Nem sua
magestade o canhão Krupp os intimida, nem os joelhos lhes tremem á vista
do adversario.

Que valentões! que valentões...

Ai! querida minha, que se não fossem as mulheres, tu serias mais feliz e
respeitada. Mas, que diabo! para que tens tu filhas tão
formosas?--para que? Não te bastava já o chocolate, para, á semelhança
de um vulcão, trazeres sempre dentro de ti o fermento da revolta? Ainda,
por cima, olhos scintillantes, rostos abrasadores e _salero_ atrevido?
Ora pois, nada mais te faltava...

Tem paciencia; mas tu, Hespanha, tu o que tens é excesso de calor, de
sensualidade, de veneno, de corrupção. Os estrangeiros acham a tua
cosinha demasiadamente apimentada; nós encontramos as tuas mulheres
sempre como uma braza--a ferver; nos teus cafés toma-se pouca soda; o
proprio sr. Canovas del Castillo, quando falla no congresso, não é muito
atreito aos gólos de agua; o teu rio é semsaborão, estreito, pouco
abundante e superficial. Ao que parece, um poucochinho de agoa de mais,
um poucochinho de lume de menos não deixaria de fazer-te bem. Numa
palavra, minha querida amiga, se queres viver independente, feliz,
alegre, satisfeita comtigo mesmo--purga-te, manda vir da botica duzentas
grammas de bom senso politico, que será a tua magnesia calcinada;--fóra,
fóra com essa bilis que te devora o organismo: estomago limpo e menos...
chocolate aos srs. politicos.

Mas os touros, os touros! por vida minha, que nunca assisti a
espectaculo mais curioso, mais terrivel, mais seductor. Até as proprias
mulheres se tornam viris, musculosas, corpulentas--ellas, que uma hora
antes tinham acceitado a côrte a um gentil militar imberbe; ellas, que
são um puro mysterio, uma alta excentricidade; ellas, emfim, que têm o
dom mythologico de nos apparecer sob o duplo aspecto da força e da
fraqueza, do repente e do meditado, do meigo e do energico.

Inundára-se de povo a _Calle de Alcalá_. Os _char-á-bancs_ eram sem
numero; os guisos telintavam nos classicos muares; por toda a parte a
corrida infrene, as subitas allucinações, os risos infernaes; as
vertigens, que referviam em desejos ardentes; a loucura, que volitava em
nuvens de enthusiasmo; a alegria, que trasbordava em ondas de amor; a
vida, a mulher, o fumo, o chocolate, os touros emfim.

Que delirio para aquella gente! que devoção! que irresistencia!

Chega o primeiro touro: os leques agitam-se; no olhar ha mais
irradiação; scintillam as moedas de prata; aos pés do bandarilheiro
audaz cahem as dezenas de charutos.

--A elle, meu valente, a elle...

E o cavalleiro aponta-lhe a lança ao pescoço, e o animal investe com o
cavallo. Com uma das pontas rasga-lhe o ventre; a multidão, embriagada,
applaude o sangue; mais uma investida e o _misero cavallo lazarento_
succumbirá; assim; mais uma; até que, emfim, vem a morte dulcificar este
pandemonio infernal!

Agora _Lagartijo_ que se approxime; elle traz uma pequena espada na mão
direita; para elle está reservada a mais garbosa _moña_, que nunca mão
de mulher se lembrou de fazer. Deante do touro o heroe não trepida; lá
estão ambos que parecem dois tigres: alfim o animal cança: _Lagartijo_
investe; mais uma volta, e o touro cahirá.

As bandas marciaes rompem em hymnos estridentes; a populaça agita os
lenços de côr; em todos os olhos se lê o phrenesi irrequieto,
nervoso, indomavel: _Lagartijo_ venceu, _Lagartijo_ é o heroe da festa;
triumpho a _Lagartijo_...

_Otro toro! otro toro!..._

Quasi que nem chega a haver tempo para arrastar para fóra da praça os
derradeiros restos d'aquella barbara batalha, tão audazmente pelejada
entre um homem e um animal, que, em vez de joguete de circo, muito bem
podia ser a felicidade da agricultura e o alimento da miseria.

Touro, cavallo, farpas, lanças,--tudo á uma é arrastado em padiolas para
fóra do amphitheatro.

Depois, esperando, faz-se sempre votos para que o outro touro seja
melhor do que o seu antecessor; como se para saciar a avidez dos
espectadores fosse pouco todo o sangue derramado.

É que a Hespanha é realmente assim, em meio da sua vida tumultuosa e
larga. Pouco lhe importa a morte de dez, vinte, trinta homens; a questão
é que o enthusiasmo não decresça nunca, e que a vida não deixe jámais de
ser uma terna e doce folgança, onde os risos e as lagrimas, as
alegrias e as tristezas crescem e augmentam, temperados na mesma proporção.

E, no entanto, nenhum paiz existe de mais vastos recursos do que a
Hespanha, onde as minas de cobre, de ouro, de prata são quasi tantas
como as suas provincias e os seus concelhos.

Nas suas planicies, por igual risonhas e productivas, medra e
desenvolve-se toda a especie de productos agricolas; as suas paizagens,
se bem que aridas na Extremadura, pela escacez de agoa, tomam todavia um
aspecto deliciosissimo na Andaluzia, onde as mulheres e os horisontes se
disputam a palma e o amor.

Abençoado paiz! Nem as guerras, nem as dissidencias civis, nem as
revoltas populares poderam ainda prostral-o.

Uma nação que tão sinceramente ama as touradas, não poderá nunca deixar
de ser guerreira e sanguinosa.

Ai de nós, no momento em que a Hespanha deixasse de ser o que
é--lutadora, _torera_ e ruidosa.

_A los toros! a los toros!_



XVI

O PRADO E O RETIRO


Dizem os physiologistas que o calor é a vida; e por isso é, creio, que
os cafés, assim como as _soirées_, assim como os _clubs_, assim como os
_boulevards_ se tornam hoje uma verdadeira e insubstituivel necessidade
social.

Que o homem nasceu para a sociedade--escrevem-o philosophos abalisados e
tem-o repetido ha um seculo, e ininterruptamente, o corpo cathedratico
da nossa universidade.

Esta verdade passou, porém, da metaphysica á pratica; e assim é que, ao
contrario de Rousseau--que na natureza fundava todo o pacto entre
os homens--se elevaram, como por encanto, o _Bois de Boulogne_, em
Paris, o _Hyde Park_, em Londres, e o _Central Park_, em New-York.

A não ser Lisboa, a velha fanatica do passeio publico, poucas cidades ha
agora na Europa, que não tenham o seu pequeno _boulevard_, especie de
_rendez-vous_ do mundo elegante e da fina sociedade do bom tom.

E necessario é que isto assim seja. O _boulevard_ não é simplesmente uma
ostentação de capital, mas ainda mais uma parte indispensavel á educação
de um povo, que não é só intellectual e moral, senão tambem physica e
social.

Em Paris qualquer creança aprende mais pelos olhos e pelo ouvido do que
nós nas nossas escolas. E o motivo é facil. Habituados desde a infancia
a frequentar os differentes jardins--botanico, zoologico, etc.--quando
chegam a uma edade razoavel, quasi se póde dizer que são dotadas de uma
vasta e profunda educação.

Praticamente aprendem os nomes aos animaes; ouvem-lhes a historia;
assistem-lhes ao desenvolvimento e acompanham-lhes os movimentos e os
instinctos. E tudo isto, porque desde pequenos frequentam os
_boulevards_, onde brincam e onde muitas vezes arranjam os meios de
ganhar a vida no futuro.

Mas o _boulevard_ tambem é hygiene, pelo bom ar que lá se respira, pelos
exercicios a que convida, e pela facilidade com que se passeia. Depois
nem só isto. Ha ali campo para largas observações e assumpto para
profundos estudos. Muitos romances conheço eu que tiveram lá a sua
origem, além de muitas mulheres que lá foram procurar a sua felicidade e
a sua riqueza.

O _Prado_ é um dos mais celebres e um dos mais concorridos passeios da
sociedade elegante de Madrid. Diz-se que a sua origem, tal qual se acha
presentemente, data do reinado de Carlos III. Rodeado de fontes, de
lagos, de arvores, de estatuas, de _restaurantes_, de praças, o seu
espaço é enorme, extendendo-se da fonte de Cybele quasi em linha recta
até encontrar o passeio de Atocha, formado pela prolongação da rua
do mesmo nome.

É raro o dia em que ali não passeiam de quinhentas a mil carruagens,
vendo-se frequentemente dentro d'ellas rostos formosissimos, adornados
de bellos olhos, profundos e escuros, como só os sabem ser os olhos
hespanhoes.

Com dois ou tres passeios ao _Prado_ quasi se fica conhecendo toda a
sociedade madrilena, nas suas distincções e nos seus vicios, nas suas
virtudes e nos seus erros.

E depois--que mulheres!

A uma historieta assisti eu, divertidissima por signal e extremamente
curiosa.

Um amigo meu, amoroso e simples, encontrou-se um dia profundamente
apaixonado por uma gentilissima menina, que todas as tardes ali
costumava expôr-se á admiração geral dos passeiantes e dos leões da moda.

Até aqui, já se vê, nada de extraordinario.

O ingenuo rapaz, porém, não se podendo mais conter, entrou-se
tristemente na desgraçada usança portugueza, e abeirando-se da
mulher, fez-lhe a seguinte declaração:

--Deponho aos seus pés, minha senhora, a mais pura e sincera homenagem
dos meus respeitos e do meu amor...

Ao que a deusa respondeu:

--Ai! que graça!... Se o cavalheiro soubesse em que eu agora estava a
pensar?!...

O galã aproximando-se mais:

--Em que estava a pensar?!...

--Sim, pois não adivinha? aflautou a ingenua.

--Certamente que não.

--Pois olhe estava a pensar num bonito vestido de riscas...

Ó illusões! ó facadas!

No dia immediato o apaixonado moço pegou num lapis, e escreveu á pressa
num bilhete de visita as seguintes e doces palavras:

«Pepa (era o nome da heroina)--«Pepa--aborreço-me, e adoro-te».

A resposta, porém, não veio. Pegou noutro bilhete, e tornou a escrever:

«Quem a adora, onde a poderá encontrar?»

Então o coração de Pepa pulsou violentamente dando de si uma tremenda
explosão que em seguida passamos a transcrever fielmente.

«Cavalheiro--Recebi o seu primeiro e o seu segundo bilhete. Não respondi
ao primeiro, porque não quiz, e ao segundo apenas tenho a dizer que o
acho de um arrojo extraordinario e nunca visto».

Assignado por um nome supposto que não era o de Pepa.

Assim continuaram as cousas. Os episodios succederam-se uns após outros.
Numa noite, comtudo, ás tristezas do costume seguiram-se no meu amigo
umas alegrias estranhas. Interroguei-me a mim e interroguei-o a elle.
Reparei-lhe nos olhos, e reconheci-os mortiços; olhei-lhe as narinas, e
vi-lh'as extraordinariamente dilatadas. Então a minha consciencia deixou
o estado de duvida em que se achava, e entrou serenamente na estrada da
certeza. A conquista havia-se effectivamente realisado. Pepa, a sublime
actriz, depois de varias piruetas, de varios zig-zagues, de varias
fórmulas, concluira emfim por se render. Não era praça inexpugnavel.
Presentiu metralha, e caiu. Cumpriu religiosamente o dever que a sua
condição lhe impunha.

E nada mais. O meu patricio, o indigena, sahia todos os dias de casa,
alegre e bem disposto, e entrava altas horas da noite com algumas libras
de menos na algibeira e com algumas desillusões a mais no espirito, até
que por fim se saciou.

Ao deixar Madrid, elle vinha menos ingenuo e mais pratico. Lições do
_boulevard_!

Na hora da partida escreveu á sua amada uma carta frisante, que bem nos
póde revelar a transformação que no seu caracter se operára ultimamente.

«Minha menina--Um negocio urgente me chama a Lisboa. Digo-lhe adeus. A
menina é formosa, elegante e distincta. Com duas ou tres horas de
janella por dia, estou convencido, encontrará um digno substituto á
minha pessoa. Sem mais. O seu...»

E assim é, de facto, o _boulevard_:--a vida, o amor, a formosura--e
tambem a lição aos ingenuos e a practica aos inexperientes.

      *      *      *      *      *

Agora, marqueza, tenha paciencia, caminhemos para o _Retiro_.

Dizem que o sol é o pae da vida--approveitemos o sol. _Bras-dessus_,
_bras-dessous_, conversemos. Que lindo tempo! É verdade!--sabe a
marqueza de um facto que hontem se deu na cidade? Não sabe? Pois eu lhe
conto. Conhecia a Dolores, a formosissima _cocotte_ da _rua de Alcalá_?
Que elegante mulher! Tinha uns cabellos louros, que pareciam estrellas
do céo. Os amantes, que eram aos centos, querendo comparar a côr do seu
cabello com a côr do ouro, por mais de uma vez tinham ficado sem o
dinheiro, e, o que é peior ainda, privados tambem do proprio cabello de
tão gentil _señorita_. Que ferro, minha amiga, que ferro!

Ha de haver seis mezes, Dolores appareceu, como de costume, no _Prado_.
Seriam quatro horas, quando eu a vi chegar. Trajava um elegante vestido
de seda escarlate, cuja fimbria recebia quotidianamente os beijos dos
amantes e os suspiros do solo, que muito ao de leve pisava e quasi sem
mesmo se aperceber. Porque Dolores, a vaidosita, não era mulher que por
ahi se gastasse em qualquer passeio solitario. Ella tinha a sua
carruagem--uma bonita carruagem moderna e commoda--e tinha tambem, além
de muitos escravos, de que o seu coração por vezes escarnecia, os seus
creados e as suas governantas.

Dolores era, no fim de contas, como todas as mulheres do _boulevard_, um
espirito risonho, attrahente, leviano,--nem Rigolboche, nem Magdalena.
Ella alimentava em seu seio o sublime sentimento da familia, educára
suas irmãs; e conduzia seu pae--um triste cego!--pelo braço. Não amava
porque não queria; tambem não odeiava; mas, se fugia do amor era
simplesmente porque lhe reconhecia os perigos. Afóra isto, como se
encontrou só e desamparada no mundo, destituida de prendas e de
educação, fez vida pela sua formosura, e caminhou rectamente,
serenamente, desassombradamente, sem attrictos, sem desvios, sem atalhos
pela estrada dos assalariados da terra.

No subir para este calvario, ella, que não queria passar por santa,
sentiu que a cruz lhe era demasiadamente pesada e quiz descarregar-se
d'ella. Mas ao olhar para traz viu que a sua familia--uma pobrissima e
desgraçada familia--carecia, para não morrer de fome, de comer e de se
alimentar.

Então chorou. Pobre Dolores! Quantas mulheres como tu não terão passado
pelo mesmo desespero e pela mesma agonia!...

Um raio de esperança, porém, penetrou-lhe no coração. A passo lento
approximou-se do espelho. O espelho reflectiu-lhe a gentileza sem par.
Que alegria, meu Deus!--exclamava ella. Finalmente... finalmente...

E foi-se para a rua nuns impetos estranhos, nervosos,
incomprehensiveis...

D'ahi a um mez, Dolores, trajando sedas e veludos, era uma das mil e
perigosissimas rainhas do _Prado_.

Mas vamos ao escandalo. Havia um mez seguramente que em redor d'ella
como que tentava esvoaçar um ingenuo da provincia--bom rapaz, é verdade,
mas algum tanto lorpa. Dolores não gostava d'elle. Mas, emfim, ou por dó
ou por capricho permittiu-lhe um dia a approximação. Effectuou-se o
_rendez-vous_, que durou meia hora. Ella fallou sempre; elle, porém,--ó
pudor!--apenas a comprimentou á entrada e á saída.

Muito bem.

No dia immediato, ao de semilhante encontro, recebia Dolores a seguinte
carta:


                                                       «_Minha senhora_,


«Pretendo ardentemente o seu coração. Amo como nunca amei. Exijo que me
attenda. No caso contrario, suicidar-me-hei.»


--Curioso, curioso!--exclamava ella, rindo e correndo pela sala.

--Original, original!... Tinha graça... ficar sem o meu _chacho_... elle
que me póde render ainda tão boas, tão santas libras... Oh! pois não...
attendel-o-hei... Cahirei aos pés d'elle, que não falla... aos pés
d'elle... não, não te suicidarás, formoso!....

E, e sem mais, Dolores tomou a penna e escreveu laconicamente:


                         CONTA CORRENTE


«_Deve o sr. F. por meia hora de conversação commigo, no dia 1.º do
corrente, a simples quantia de 1:000$000 réis, que pagará em oiro ou
prata, dentro de vinte e quatro horas a contar de hoje das 11 da manhã._


                                                   _Assignada_--DOLORES.»


E assim foi. O rapaz, ao receber o bilhete, sentiu-se quasi allucinado.
Depois, porém, recobrou animo e serenidade. Pensando que seria aquelle o
unico meio de a conquistar, volvidas duas horas, após a recepção da
carta, respondeu com a mesma singeleza:


                                                        «_Minha senhora_,


«Por si darei tudo, a minha vida e o meu futuro. Póde, quando quizer,
mandar receber o dinheiro que pede no banqueiro C., rua de ***, n.º....»


Dolores passou, então, pela primeira impressão forte na sua vida. Esta
resposta laconica e expressiva, como era, agitou-lhe violentamente as
fibras da sua alma, d'ella. Reflectindo bem no caso e na dedicação, com
que fôra brindada, ella a orphã, ella, a _desdichada_, ella, a
meiga, ella--a preciosissima joia, engastada numa sociedade de
meras apparencias e de meras formalidades, ella, a Dolores, ella chorou
sinceramente.

--Não!--dizia ella--Eu não receberei este dinheiro. Nunca! Mas em vez do
seu dinheiro--oh, sim!--eu receberei o seu amor, que deve ser sublime
com a sua generosidade; o seu amor, a pura expressão de um coração
honesto e simples.

E escrevendo, ella disse-lhe a chorar:


                                                              Meu amigo,


«Renuncio ao seu desinteresse. Sinto que o amo doidamente. Desejo vel-o.
Venha quando quizer.


                                                           «_Dolores._»


Assim se encadearam os acontecimentos. Dolores, sem ser Margarida
arrependida, tornou-se, todavia, mulher séria e grave. O nosso
provinciano, sem ser Armando, adquiriu pelo amor de Dolores a
consciencia de si e a elevação da sua dignidade abatida.

Mas, quando menos a gente as espera, é quando o diabo as arma.

Dizem-me que hontem, tanto Dolores como o seu amante, foram encontrados
mortos, na propria casa em que desde muito habitavam.

Oh! os _boulevards_, minha querida marqueza...

Mas, por Deus, entremos no _Retiro_.

O seu braço, minha amiga, o seu braço!...

      *      *      *      *      *

O passeio do _Retiro_, um dos mais afamados da Europa, foi fundado no
reinado de Filippe IV, sob a inspiração do conde duque de Olivares,
especie de marquez de Pombal na Hespanha.

Quasi todos os despotas gostam de deixar assignalada a sua passagem
na terra com monumentos immorredouros, por via de regra attestados de
inepcia, de orgulho e de mau gosto.

Foi assim que, entre nós, no tempo de D. João V se originou o celebre
convento de Mafra. E foi assim que nasceu o _Escurial_, embora de melhor
gosto e de mais elevação artistica.

Durante o reinado do seu fundador, o _Buen-Retiro_, pelos seus passeios,
pela sua magnificencia, pelos seus jardins, pelos seus palacios, pelos
seus theatros, quasi se podia dizer um Eden, entreaberto aos sorrisos
das morenas feiticeiras e um paraiso entresonhado pelos cavalleiros
desde aquelles periodos aventurosos.

Tudo, porém, neste mundo tem a sua decadencia. Filippe V, querendo
guindar-se á altura do monarcha francez, virou-se para os jardins de
Aranjuez, onde lhe pareceu divisar competencias, embora longinquas, com
Versailles, de todos os passeios actuaes da Europa o mais célebre e o
mais sumptuoso, ainda quando mais não fosse senão pelo jogo das aguas,
as quaes, na sua ascensão phantastica e miraculosa, se alteiam
muitas vezes, numa extensão de cincoenta metros acima do nivel do lago.

Assim foi decaindo tão rara maravilha. Fernando VII tentou restituil-a á
vida. E o facto é que o _Retiro_, mercê das grandes e enormissimas
quantias nelle sepultadas, atravessou incolume até nós, a salvo das
revoluções e em plenos sorrisos de felicidade.

Leitora amiga--se realmente ama o passeio, percorra a _Carreira de S.
Jeronymo_ e entre no _Retiro_. Levante-se cedo, tome o seu chaile, calce
as suas luvas, e prepare-se afoitamente para banhar-se numa boa
atmosphera, salutar e agradavel. Esta pequena digressão ha de fazer-lhe
bem, porque é hygienica e variada. Em casa póde dispensar o seu
chocolate; ha de saboreal-o lá, depois de ter passeado, depois de ter
ido ao lago, depois de ter visto as feras, emfim, depois de estar
cançada. E verá que a não engano. Lá encontrará um bom _restaurant_
aceiadissimo e commodo. Á cautella, porque o almoço é tarde, sempre
lhe aconselho que mande vir duas ou tres bolachas.

Como queira. Perto de nós temos a _montanha artificial_ e o _salão
oriental_. Já lá foi? Que soberbo panorama! D'ali, d'aquella eminencia,
apparece-nos Madrid, em toda a sua vida e em toda a florescencia. Que
magnifica cidade, e sobretudo, que cidade tão moderna!

É verdade--e o _jardim botanico_? É logo no passeio do _Prado_. Dizem
que só está aberto desde 30 de maio até 30 de setembro. Mas é um famoso
recinto, bem cultivado, com excellentes plantas e situado num magnifico
local. Possue, além disso, este jardim uma notavel variedade de plantas
e uma curiosissima secção _zoologica_, cujo objecto é alimentar e
propagar, na Hespanha, toda a especie de animaes.

E a _Recoletos_--já foi a leitora?--E á _fuente Castellana_?

O primeiro tem, como o _Prado_, oito lindissimas fontes, todas ellas no
meio de praças, de arvores, e de mil outros attractivos, que dão ao
nacional o supremo consolo de poder passar bem duas ou tres horas
por dia.

Porque estes passeios não servem apenas de meras distracções. Outros são
os seus fins e outras são tambem as suas vantagens.

Os _boulevards_, em geral, além de possuirem no seu seio mil cousas
dignas de um estudo especial, são por outro lado um espectaculo que as
municipalidades offerecem á pobreza, tão curiosa como digna de divertir-se.

No nosso paiz os operarios não encontram um espectaculo gratuito. Por
isso, á falta de entretenimentos, entram nas tabernas, e embriagam-se.
Tivessem elles uma boa musica, um bom passeio, um exercicio attrahente e
o amor do vinho desapparecera. Tivessem elles, sobretudo,
municipalidades desinteressadas e independentes, e as suas doenças,
assim como o seu mal estar não teriam mais razão alguma de ser.

O artista tem no _boulevard_, uma formosa galeria, especialmente
merecedora de analyse e de critica. Nos museus encontram-se os
quadros pintados. Pois o _boulevard_ é um museu--ao vivo, já se entende.

Dizia Richelieu que costumava esmagar o amor debaixo do tacão da sua
bota. D'onde se vê que nem o illustre cardeal se pôde eximir ás
influencias do mundo exterior e dos _boulevardiers_.

O _boulevard_ é ainda mais o figurino, a moda, o _chic_. Quem fôr á
_fuente castellana_, que começa na casa da moeda e termina na
fonte do mesmo nome, encontra ali o mais selecto da sociedade
madrilena--_toilletes_ finissimas, aristocracia elegante e burguezia
desempenada.

Foi na _fuente castellana_ que se originou uma elegantissima paixão
ainda hoje inedita nos annaes da historia hespanhola.

Conta-se que um notavel tribuno, escriptor e poeta, andando um dia a
recrear-se neste passeio, fôra apanhado de surpreza pelos olhos
abrasadores de uma sevilhana gentil; e por tal fórma se deu este facto
que elle, hoje politico illustre no seu paiz, nunca mais pôde
subtrahir-se ás influencias d'aquelle dominio.

A menina foi, passado um mez, pedida á familia em casamento. Ella
acceitou, e o matrimonio ficou assim solemnemente tratado.

Demorou-se, porém o negocio. A noiva pretextava desculpas, que ninguem
sabia a que attribuir. Em casa, além da familia, só entrava um padre. O
noivo, furioso, tratou de indagar. Sabendo finalmente, que fôra o padre
o motor de similhante desordem, elle, com a maxima serenidade,
procurou-o em casa, e disse-lhe expressivamente:

--Entre o insulto e o assassinio prefiro o segundo. Queira fazer o acto
de contricção.

O padre ajoelhou.

--Agora levante-se, e peça perdão a Deus.

E zás, sem mais tir-te nem guar-te, ouviu-se a detonação de um tiro. Uma
bala havia atravessado o peito do hypocrita.

--Finalmente--exclamou o tribuno.--Para os frades bacamarte, para a
batina clavina.

E fugiu.

Volvidos annos, este mesmo cavalheiro voltava á patria, casava com a
mesma menina que em tempos namorára, e preparava-se para ser ministro, o
que já foi ha muitos annos.

Oh! os _boulevards_, minha querida marqueza, os _boulevards_...

Mas, a proposito, quer a marqueza jantar commigo?


XVII

HISTORIA INEDITA


Ha de haver nove mezes que isto succedeu. Ia eu de Madrid para o
Escurial. O unico companheiro de viagem que a fortuna me concedeu,
durante o trajecto que vae da cidade do sr. D. Affonso XII ao Versailles
hespanhol, era uma senhora alta, de cabello louro, de olhos azues e de
uma distincção profundamente aristocratica.

Mudos, por muito tempo, foi ella, afinal, quem rompeu o silencio.

--_Es usted español?_--perguntou-me a minha amavel companheira.

--Não, minha senhora, sou portuguez--respondi.

--Ah! portuguez.... conheço perfeitamente Lisboa; já lá estive tres
mezes. É uma cidade bonita, mas muito monotona. A natureza é admiravel,
mas a sociedade é demasiadamente ficticia. Não tem uma vida propria, e
vive do que os outros lhe querem dar...

--E posso eu ter a honra de saber a quem me dirijo?

--Ora! por Deus! sou muito modesta para que deseje saber quem sou. Nasci
na America, em Nova-York. Depois meus paes mandaram-me para Paris, onde
fui educada. De Paris passei á Suissa, onde residi alguns annos, e da
Suissa vim para Madrid, onde vivo ha dez annos com meu marido e um unico
filho que tenho.

--E a opinião de v. ex.ª ácerca de Madrid?

--Um magnifico centro com muita vida propria e alguma corrupção. Detesto
muito a politica hespanhola, e amo do coração a sua litteratura. Gosto
muito dos seus poetas e dos seus litteratos. São enthusiastas
ardentes e mais que tudo fanaticos _à outrance_.

--E a respeito das litteratas hespanholas, que me diz v. ex.ª?

--Uns verdadeiros talentos. Conheci de perto D. Carolina Coronado. Tem
uma historia engraçada. Um dia ella, a caprichosa, que tanto e tão a
peito defendia a emancipação da mulher, arrojou para longe de si o trajo
feminino, e fez-se rapaz. Engraçadissima! Entrou na universidade ao
mesmo tempo que seu marido, formou-se em direito, e já escreveu sobre
direito penal. Hoje é uma distinctissima poetisa, e ainda uma
deslumbrante mulher.

--Admiravel!

--Tambem tive relações intimas com a melhor novellista hespanhola, que
usava do pseudonymo Fernand Caballero. Havia sido perceptora dos filhos
do duque de Montpensier, e presentemente pouco escreve, creio eu.

--E a baroneza de Wilson, conheceu?

--Perfeitamente. D'essa senhora conta-se tambem uma anecdota curiosa.
Diz-se que Zorrilla estivera doente, e que, na sua enfermidade,
fôra tratado desveladamente por uma senhora, sua vizinha. Ao cabo da
doença, elle, querendo ser grato, esposou a sua enfermeira, a qual,
então, vivia com uma sobrinha, mulher de um grande talento, que mais
tarde casou com um inglez e que por isso se chamou baroneza de Wilson. E
tambem vivi muito de perto com D. Maria Pilar Sinués de Marco. É
romancista afamada. Vem-lhe de seu marido o nome de Marco, e por isso os
hespanhoes dizem d'elle--_se le conoce porque és marido de la Sinués_,
(similhança de _Cabeza e Calabazas_).

--Nunca fallou em Lisboa com uma distinctissima senhora, que usa do
pseudonymo Leon de la Vega?

--Pois não! Sei que é esposa de um engraçado escriptor chamado D. Thomaz
de Mello.

--Exactamente.

--Além d'estas, convivi com Angela Grassi, mulher, talvez não muito
formosa mas de muito talento; com D. Antonia de Arciniega e Martinez,
que cultivou um genero de poesia quasi pastoril; com D. Josepha
Estevez del Canto, admiradora em excesso das fabulas de Lafontaine, com
D. Emilia Cale Torres de Quintero, com D. Sofia Tartilau e com muitas
outras. Bem vê que seria impossivel recordar-me agora de todas as minhas
relações. Unicamente lhe affianço que em Hespanha as mulheres que
escrevem, embora não sejam muitas, são todas dotadas de um immenso talento.

--Mas, minha senhora, permitta-me que lhe manifeste os meus mais
ardentes desejos de a conhecer...

--Perdão... isso é que não está no contracto. Tenho respondido a todas
as suas perguntas e isso me basta... O meu nome, não lh'o posso por ora
revelar. É possivel que mais tarde o saiba. Por agora desculpe-me.

--_Escurial! Escurial!..._--gritaram os guardas do caminho de ferro.

A minha companheira apeou-se, e, estendendo-me a mão, nem sequer me deu
tempo para me despedir d'ella.

      *      *      *      *      *

Dois dias depois, o creado do hotel, em Madrid, entregava-me um bilhete
concebido nos seguintes dizeres:

                     _D. Maria del Sarto_
    _pede-lhe a fineza da sua companhia para o jantar de hoje,
          ás 6 horas da tarde, na Calle de Alcalá---8._

--Maria del Sarto! Quem será Maria del Sarto?--exclamei.

E ás 6 horas da tarde, em ponto, dirigi-me para a rua de Alcalá.

Qual foi, porém, o meu espanto, quando, ao entrar na sala dei de rosto
com a minha formosa amiga de viagem.

--Sente-se aqui--disse-me ella, apontando para uma cadeira.

E foi nessa occasião, e nesse jantar, que me foi dado formar um juizo
seguro ácerca das cousas e dos homens de Hespanha.

Devo-o principalmente áquella affectuosissima senhora, a quem d'aqui
envio os meus respeitos e a minha gratidão.

.........................................................................

Uma vez, porém, que fallamos em celebridades, conversemos um pouco sobre
ellas.



XVIII

HOMENS ILLUSTRES


Em Hespanha é extraordinario o numero dos homens illustres.

Poucos são os talentos naquelle paiz que não possuam uma feição
eminentemente litteraria. Os proprios politicos resentem-se d'este
defeito, se defeito se lhe póde chamar.

Do romance são innumeros os cultores. A Hespanha, como paiz de mais
aventuras, presta-se a elle. Entre nós são já muito conhecidos os nomes
dos srs. Manuel Fernandez y Gonzalez, homonymo do celebre ministro
republicano, ultimamente mandado sahir de Lisboa pelo governo
portuguez, Henrique Peres Escrich, Ortega y Frias, Tarrago e Mateos, etc.

O sr. Fernandez y Gonzalez é uma especie de Ponson du Terrail hespanhol.
É escriptor fecundo e de muita força concepcional.

Peres Escrich é quasi mystico. Os assumptos dos seus romances são quasi
sempre religiosos. É um romancista catholico, mas são puras as suas
intenções sem as sacrificar á seita.

Ortega y Frias, Tarrago y Mateos, Piedro Antonio Alarcon, Peres Gadosh,
Antonio Hurtado, Varella, Vilhoslava, Ricardo Sepulveda são os que mais
se aproximam do romance moderno na descripção e no entrecho dos assumptos.

Eusebio Blasco é um humorista de grande merecimento, e José Castro e
Serrano é, em nosso juizo, talvez o primeiro novellista hespanhol.

A estes podemos, de certo, juntar D. Manoel Silvella, Asmodeu,
pseudonymo, Antonio Trueba, auctor de uns famosos contos,
sobejamente conhecidos na litteratura da Europa.

Na poesia avultam Zorrilla, um lyrico surprehendente; Campoamor; Garcia
Gutierres, de quem se diz que nasceu com o _Trovador_ e que morreu com
D. Urraca; Ventura Ruiz Aguillera, auctor de um famoso livro de satyras;
José Martinez Villergas, egualmente satyrico: Roberto Robert, espécie de
Voltaire no arrojo da palavra e do conceito; Grillo, Gaspar Nunes de
Arse, Espronceda, José Eshegarai, Hartzenbusch, Antonio Arnao, Antonio
Hurtado, José Selgas, tambem prosador, Trueba, Carlos Frontaura, Carlos
Rubio, Larra e outros.

Passando da poesia para a politica, são tantos os nomes, que
difficilmente seria possivel recordal-os a todos.

Quando estive em Hespanha, contava-se uma anecdota curiosa de Emilio
Castelar.

Dois estudantes da escola medico-cirurgica de Lisboa tinham ido a Madrid
assistir á entrada de D. Affonso XII na cidade, depois de concluida a
guerra carlista. Era dia de sessão no congresso. Fallava Castelar.
Nas tribunas agglomerava-se o povo. Difficilmente se obtinha um logar.

Um dos estudantes, porém, reflectindo no caso, entrou numa mercearia, e
escreveu a Emilio Castelar as seguintes linhas:

«Estão aqui dois portuguezes, seus admiradores, que desejam ouvil-o.»

O merceeiro, que viu que a carta era subscriptada para o insigne orador,
não lhes levou nada, nem pelo papel, nem pela tinta.

Castelar leu o bilhete, e immediatamente sahiu do congresso, a fim de
introduzir os dois estudantes na tribuna, reservada á diplomacia.

Quando acabou de fallar foi ter de novo com os dois estrangeiros, e
offereceu-lhes os seus serviços e a sua pessoa n'aquella cidade.

Este traço revela bem as brilhantes qualidades, que caracterisam Emilio
Castelar.

E, uma vez que fallámos em Castelar, não esqueceremos tambem de
mencionar um distincto talento, seu amigo intimo, director do
jornal, o _Globo_, e auctor de um famoso livro sobre o _movimento
operario na Europa no seculo XIX_. Este cavalheiro chama-se D. Joaquim
Martin de Olias.

Francisco Pi y Margall é um outro vulto que trouxe na memoria. Estive em
sua casa perto de duas horas, e precisamente na mesma sala onde aquelle
célebre padre tresloucado tentou assassinal-o. É um caracter magestoso e
um talento deslumbrante. Fui encontral-o a brincar com dois filhinhos
menores. Que contraste entre aquella scena puramente domestica e a dos
seus actos publicos! O homem vigoroso da tribuna e da imprensa é um anjo
de paz e de amor no seio dos seus! Foi-me realmente agradavel esta visita.

Salmeron, o erudito publicista, que resignou gloriosamente o poder por
não querer assignar a pena de morte para o exercito, vivia
exclusivamente do professorado. Regia uma cadeira de ensino livre no
Atheneu, retribuida pelos discipulos.

Zorrilla, que atravessou os transes mais dolorosos da vida, e que
além de um grande poeta é tambem politico de notavel bom-senso, vê-se
hoje expatriado e longe dos seus.

O mesmo succede a talentos notaveis como Fernandez de los Rios, Fernando
Garrido, Ramon de Cala, Estevanez, Gonzalez e outros.

José Maria Orense, o decano da democracia hespanhola, está quasi
afastado da politica.

Sagasta póde talvez ser classificado entre os radicaes. Passa por
excellente caracter e por conservador sympathico.

Canovas del Castillo, embora defensor de uma má causa, é todavia um
eminente orador e um notavel poeta.

Que a dizer a verdade, abaixo de Castelar, os dois oradores mais
afamados são Figueras e Martos.

O verdadeiro enthusiasmo hespanhol está, porém, no exercito. Entre
Olozaga e Martinez Campos, prefere-se este justamente pela espada, que
traz á cinta. E a prova é que, terminada a luta com os carlistas, as
acclamações da cidade dirigiram-se mais a Martinez Campos do que a
D. Affonso XII.

De modo que em Hespanha o militarismo é um vicio galante, de que as
mulheres não desdenham e que os politicos temem soberanamente.

Fallando, porém, de homens illustres, não deveremos de modo algum
omittir dois nomes, que, por mais do que um lado, nos devem ser
sympathicos e affectuosos.

Esses nomes são os dos srs. D. Benigno Joaquim Martinez e Antonio Romero
Ortiz, de quem em seguida nos vamos occupar.



XIX

D. BENIGNO JOAQUIM MARTINEZ E ANTONIO ROMERO ORTIZ


Só em Madrid o numero de jornalistas sobe talvez a mais de duzentos.
Ainda ha pouco, por occasião de se installar o _Casino de la Prensa_ na
calle Mayôr, orçaram por 160 as adherencias da parte do jornalismo
madrileno.

Entre os mais sympathicos periodicistas hespanhoes podemos citar:
Escobar, Perez de Guzman, José Ortega, Ulloa, Sagasta, Garcia Ruiz, Pi y
Margall, Figueras, Navarro, Blasco, Molina, L. Rubio, Palacio, Alcalá
Galliano, dr. Galdo, Tubino, Diaz Perez, Quintero, Escosura,
Soriano Fuestes, Ruti, Rivera, Calvo Ascencio, Leon Serrano, Benigno
Martinez, Romero Ortiz e mil outras illustrações que nos seria
impossivel enumerar em opusculo de tão limitadas proporções.

      *      *      *      *      *

D. Benigno Joaquim Martinez é conhecido pelo doce appellido de _amigo
dos portuguezes_. A sua casa e a sua bolsa estão sempre á disposição dos
nossos patricios e conterraneos. Nada ha que possa retribuir tamanho
affecto e tão devotada abnegação. Dir-se-ia que D. Benigno é, de facto,
mais portuguez do que hespanhol.

Martinez foi por muito tempo empregado superior no ministerio da
justiça. Até ahi advogara e vivera do jornalismo. As suas convicções
radicaes não lhe permittiram, porém, que continuasse a servir um governo
que desde muito lhe era antipathico. Então sem mais recursos, deliberou
entregar-se exclusivamente á imprensa, tanto nacional como estrangeira.
Tem sido correspondente de jornaes inglezes, italianos e francezes. A
sua vida mal se descreve. Ha dias em que se senta á meza desde a
madrugada até ao jantar e desde o jantar até á madrugada. A honra e a
dignidade são a sua divisa. Nunca transigiu. Em Portugal já 11 jornaes
lhe confiaram as correspondencias de Madrid, as quaes elle tem cumprido
com uma pontualidade rigorosamente britannica. Tambem collaborou no
periodico _Italia e Popolo_ de José Mazzini. Redigiu em Madrid seis
folhas politicas. Escreveu a biographia de 45 vultos portuguezes, e
sempre, desde 1846 até hoje, se tem occupado, com verdadeiro fervor, das
cousas, da politica e dos homens do nosso paiz. Por isso tambem quasi
todas as sociedades portuguezas o têm distinguido com os seus diplomas e
honrarias.

D. Benigno é casado com uma senhora distinctissima, de quem teve tres
filhos: uma menina, já casada, e dois rapazes, um dos quaes é Frutos
Martinez y Lumbreras, estudante classificado na universidade central e
escriptor já conhecido pelas _Bandeiras de Portugal_ e _Hespanha_.

Em casa de Martinez tivemos a honra de travar relações com dois notaveis
talentos, de quem não deixaremos de fallar; e são elles D. Manoel Maria
José de Galdo e Antonio Hesse.

Do primeiro escreveu um periodico portuguez o seguinte:

«Pela nomeação do sr. Rivero para ministro de _la gobernacion_ em
Hespanha ficou vaga a presidencia da municipalidade de Madrid. Neste
logar foi provido por eleição o sr. D. Manoel Maria José de Galdo,
cavalheiro distincto de cujos precedentes diremos algumas palavras. O
sr. Galdo é cathedratico proprietario na universidade de Madrid, e além
de regente de 1.ª classe de sciencias, lecciona mineralogia e noções de
zoologia e botanica. É licenciado em medicina e cirurgia, doutor na
faculdade de philosophia, licenciado em direito civil, administrativo e
canonico. É membro honorario de muitas sociedades e institutos
scientificos de Hespanha, França e Portugal. É em resumo um cavalheiro
muito illustrado, e em extremo laborioso e modesto.»

Em seguida á revolução de setembro foi o dr. Galdo feito 1.º alcaide da
capital de Hespanha e commandante geral de 20.000 voluntarios de Madrid.
Nestes dois importantes e difficeis cargos mereceu sempre os applausos
de toda a imprensa sem distincção de côres politicas. O que prova
exuberantemente o espirito de justiça e a alta prudencia que dirigem
todos os actos d'aquelle cavalheiro. Ultimamente a sua eleição para
presidente da municipalidade de Madrid, em substituição de um homem de
tão reconhecido merito como o sr. Rivero, é mais um titulo honroso que
vem juntar-se aos muitos, que já recommendavam ao partido radical da
Hespanha, e em geral a toda a nação vizinha, um honrado filho da
peninsula, que ao seu talento, ao trabalho e ás suas qualidades pessoaes
deve a estima de nacionaes e estrangeiros.

Na inauguração do canal Suez coube ao sr. dr. Galdo a honra de
representar a Hespanha.

A sua integridade de caracter e a sua modestia, conservaram-no muito
tempo afastado das lides politicas, ás quaes voltou cheio, como d'antes,
de dedicação e amor aos principios liberaes, apenas a Hespanha sacudiu o
jugo que a opprimia. Nos ultimos arrancos da monarchia deposta, mais de
uma vez fôra tão illustre e inoffensivo cidadão apontado á vindicta do
poder.»

Antonio Hesse é advogado de nome; possue excellentes dotes oratorios e
d'elle corre impresso um ajuizado opusculo sobre critica religiosa.

Para rematar, porém, o que dissemos, ácerca de D. Benigno Joaquim
Martinez, basta ainda accrescentar que é elle um modelo de amor de
familia, um ousadissimo e infatigavel trabalhador, uma consciencia recta
e uma intelligencia sã.

      *      *      *      *      *

Antonio Romero Ortiz é um outro amigo dos portuguezes. Nascido na
Gallisa, onde fundou differentes jornaes liberaes e onde organisou um
nobre batalhão de voluntarios, só em 1843 se inscreveu como advogado em
_Santiago_, terra da sua naturalidade. Em 1856, quando mais accesa
andava a lucta entre miguelistas e liberaes, veiu ao Porto, e ahi foi
pronunciado e levado prisioneiro para bordo do _Serra do Pilar_, que o
conduziu para Peniche.

Em 1848 Narvaez, um covilheiro infame do absolutismo, descobriu uma
conspiração de liberaes, capitaneada por Romero Ortiz. Sem mais
averiguações, o carrasco ordenou a prisão do chefe dos revolucionarios,
mandando-o para as masmorras de Santo Anton, perto da Corunha. O
processo foi instaurado; duas cartas existiam de grave compromisso para
o encarcerado. No momento, porém, em que o escrivão estava distrahido
Romero Ortiz, pegando nas cartas, arremessou-as pela janella. Este
arrojo salvou-o do patibulo.

Em 1849 veiu para Madrid, onde, entre outras obras interessantes,
publicou o _Diccionario da politica_, de collaboração com dois amigos.

Chegou o anno de 1854, e desde então para cá, ora na imprensa, ora na
tribuna, têm sido assignalados os seus feitos em pro da patria e da
liberdade. Foi elle que, sendo ministro da justiça, instituiu o
matrimonio civil e aboliu a companhia de Jesus. Por diversas vezes foi
nomeado governador civil; e quando em Hespanha se constituiu a _União
liberal_, o sr. Rios Rosas dispensou-lhe a maior consideração e os
maiores respeitos. Foi deputado pela primeira vez em 1854 pela Corunha.
Tomou parte activa na revolução de 1868, e no governo _provisional_ foi
elle um dos ministros.

O seu mais notavel discurso, que versava sobre uma concessão de direitos
aos portuguezes, foi pronunciado no congresso em 29 de março de 1859; e
a sua mais afamada publicação intitula-se: «_La historia de la
literatura portuguesa em el siglo XIX._»

É obra que denota boas intenções a nosso respeito. Conhece o periodo
contemporaneo, e é seguro o estudo sobre Filinto, dos mais
conscienciosos que conhecemos. Mas, no momento actual em que nos
considerou, dá mostra de recebimento de más informações. Guinda a certa
altura quem não merecia ir tão alto, e esquece nomes, em todas as
pretendidas escholas, dos que, á parte rivalidades de que nós nos não
fazemos echo, são de primeira plana em todos os campos.

Com o golpe de 3 de janeiro de 1873 foi Romero Ortiz nomeado ministro do
ultramar.

Ultimamente vive um pouco doente e retirado das cousas politicas, quasi
que exclusivamente entregue ao seu museu, que é curiosissimo, e aos seus
estudos.

No seu museu, de que já fallámos mais atraz, encontram-se muitas
curiosidades do nosso paiz, e entre ellas uma luvas do marquez de Sá da
Bandeira, a caixa de rapé do visconde de Castilho, e uma lembrança
de D. Pedro V, e outra do visconde de Paiva Manso, etc.

Tambem alli se póde vêr a camisa de Santa Thereza de Jesus, a casaca de
Cabrera, um crucifixo feito pela rainha Isabel II e muitas outras
reliquias dignas da maior attenção e de estudo.



XX

EM RETIRADA


Onde não ha fumo ha amor; onde não ha amor ha vinho; onde não ha vinho
ha _spleen_.

São estas as palavras de um poeta notavel, que muito de molde nos
acudiram ao espirito, em relação ao caso presente.

Quem viaja deve fumar. O fumo não é apenas um bom e doce companheiro
para as tristes horas de tédio e de melancolia, mas ainda mais, e quasi
sempre, um distinctivo do sabio e um facil auxiliar da nossa digestão
intellectual.

O fumo está para o cerebro na mesma proporção em que o café está
para o estomago. Ambos se tornam até certo ponto necessarios ao homem;
com a simples differença de que o café nos excita, por vezes,
demasiadamente os nervos, ao passo que o fumo se limita a produzir em
nós um salutar estimulo ás nossas idéas e ao nosso raciocinio.

Mas, se, além do fumo, nos falta ainda o amor e o vinho, então,--ai de
nós! que chegaremos ao aborrecimento de nós mesmos, isto é--ao _spleen_.

A viagem sem companhia é a peior de todas as torturas. A expansão é tão
necessaria á nossa natureza, como o azul ao firmamento. Que nos importa
ver uma formosissima paisagem, se depois não temos a quem communicar as
nossas impressões e o nosso juizo de momento?

E notavel contradicção! A companhia é-nos tanto mais necessaria, quanto
é certo que, quando estamos no estrangeiro, nos acommette uma singular
nostalgia por tudo o que é nosso e nos interessa, emquanto que, quando
regressamos á patria, nos assalta uma terrivel hypocondria por tudo
o que é estranho e nos assombra.

D'este modo, leitora amiga, se algum dia tiver o capricho de viajar,
tenha paciencia, e tome uma aia; ou ainda, se isso lhe aborrece, peça a
uma das suas intimas confidentes para a acompanhar.

E verá que a não engano!

      *      *      *      *      *

Ora a retirada é quasi que uma recapitulação de tudo o que se fez pelas
terras onde se esteve.

--Que te pareceu esta gente?--perguntava-me o meu companheiro e velho
condiscipulo--amigo José Trigueiros Martel.

--Esta gente!... pois que diabo me havia de parecer, senão unica e
originalissima!... retorqui.

E começamos a enumerar os principaes partidos politicos em que se
dividia a familia hespanhola, que eram pouco mais ou menos os
seguintes:

Absolutistas de qualquer rei.

Carlistas clericaes.

Carlistas militares.

Carlistas constitucionaes.

Cabreiristas.

Neo-dynasticos absolutistas.

Dynasticos tolerantes.

Moderados unitarios.

Moderados conservadores.

Conservadores da conciliação.

Heterogeneos.

Homogeneos canovistas puros.

Santa-crucistas.

Sagastinos.

Neo-constitucionaes democraticos.

Radicaes puros.

Radicaes do X.

Radicaes republicanos.

Democratas monarchicos.

Democratas puros.

Republicanos catholicos.

Confederados.

Separatistas.

Communistas.

E não queria Amadée Achard que a Hespanha fosse alcunhada de bandoleira!
Ninguem lhe desconhece os feitos de Numancia, de Sagunto, de Madrid, e
de Zaragoza. Certamente que a Hespanha tem na sua historia paginas
sagradas, como por exemplo as que resam das santas guerras das
_communidades_ de Castilla. Mas a par de tudo isto, ahi estão os factos
da Andaluzia a fallar mais alto do que os patriotismos exagerados; e ahi
estão tambem os acontecimentos dos ultimos vinte annos a affirmar-nos
eloquentemente que esse paiz, embora cheio de vida e dotado de
enthusiasmos respeitaveis, ha de ser sempre uma contradicção viva a tudo
o que existe e um especialissimo parenthese na vida das nações.

E provirá isto de uma simples questão de raça, de clima, de religião, de
lingua, de costumes, de civilisação ou de _meio_?

Que o digam os srs. philosophos historiadores.

Nos costumes reside, principalmente, a expressão de uma nacionalidade.

Porque hoje, francamente, não se póde viajar apenas, como um
simples brazileiro endinheirado--_em trem especial de exclamações_.

Não basta só dizer, admiravel! magnifico! explendido! como aliás parece
fazer a maioria dos nossos viajantes.

--Então que me diz o amigo de Pariz?

--_Ah!_

--E de Londres?

--_Eh!_

--E da Suissa?

--_Uh!_

E assim ficamos, sem passar das cinco vogaes exclamativas; sem uma unica
noção da justiça do povo que visitamos, como ella era administrada e
repartida, sem uma unica idéa da sua arte, da sua politica, da sua
religião e dos seus progressos.

A isto podia, quando muito chamar-se-lhe uma ostentação, mas nunca uma
viagem.

      *      *      *      *      *

Resumindo:

A Hespanha possue um vicio inicial de que difficilmente se libertará--a
religião catholica-apostolica-romana guindada ás alturas de fanatismo.

Na sua politica, como na sua justiça, reflecte-se tristemente a
contradicção, junto a um continuo mal estar de quem não tem uma noção
clara da evolução que a deveria reger, e das leis que deveriam presidir
ao seu desenvolvimento moral e material.

A sua arte afigurou-se-nos estar em perfeita harmonia com as suas
mulheres: mais brilhante talvez, na fórma do que na concepção e no
sentimento.

Entretanto, forçoso é confessar que poucos paizes ha de tão vastos
recursos como a Hespanha, e porventura mesmo poucos existirão com futuro
tão promettedor como ella.

Os casos das _Baldomeras_ têem-lhe ultimamente aberto os olhos para
as grandes luctas da civilisação moderna, apurando-lhe o raciocinio para
os insignes debates do espirito e da critica positiva.

Que tudo isso lhe seja de bom proveito, assim como Sédan o foi para a
França.

      *      *      *      *      *

Mas perdão! 6 horas da madrugada. Devemos estar perto de Lisboa.

--_Lisboa! Lisboa!_ exclama um guarda de fóra.

Assim, pois, leitor amigo, permitta-me que lhe aperte a mão, e que com
tristeza me despeça da sua extrema amabilidade.

Um seu creado!

FIM



INDICE

                                                                    Pag.
    I--CARACTERES E COMPARAÇÕES                                       7
    II--NÓS E ELLES                                                  15
    III--A CIDADE                                                    23
    IV--A LENDA DO BANDIDO                                           33
    V--EDIFICIOS PUBLICOS E OUTRAS CURIOSIDADES HISTORICAS           41
    VI--A INSTRUCÇÃO PUBLICA                                         51
    VII--TEMPLOS E RELIGIÃO                                          59
    VIII--A POLITICA                                                 67
    IX--MUSEUS                                                       75
    X--A MUSICA                                                      83
    XI--O CHOCOLATE E O CAFÉ                                         91
    XII--O SALERO                                                    99
    XIII--THEATROS                                                  107
    XIV--OS PATINADORES                                             117
    XV--TOURADAS                                                    125
    XVI--O PRADO E O RETIRO                                         133
    XVII--HISTORIA INEDITA                                          155
    XVIII--HOMENS ILLUSTRES                                         163
    XIX--D. BENIGNO JOAQUIM MARTINEZ E ANTONIO ROMERO ORTIZ         171
    XX--EM RETIRADA                                                 181





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