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Title: Christo não volta - (Resposta ao «Voltareis, ó Christo?» de Camillo Castello-Branco)
Author: Pimentel, Alberto, 1849-1925
Language: Portuguese
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                            CHRISTO NÃO VOLTA

       (Resposta ao «Voltareis, ó Christo?» de Camillo Castello-Branco)

                                 NARRATIVA

                                    POR

                              ALBERTO PIMENTEL

    Meus Deus, enviae segunda vez á terra o vosso divino Filho! Esta
    negridão gentilica é peor que a de ha dois mil annos. N'aquelle
    tempo esperava-se; nas entranhas sociaes estremecia o presentimento
    d'um regenerador... Hoje em dia, nada, nada, ó altissima
    Providencia! Nada! Mas... voltareis, ó Christo?

                                                 CAMILLO CASTELLO-BRANCO.

                            LIVRARIA INTERNACIONAL
                                      DE
                               ERNESTO CHARDRON
                          96, Largo dos Clerigos, 98
                                     PORTO

                               EUGENIO CHARDRON
                        4, Largo de S. Francisco, 4-A
                                     BRAGA

                                     1873.

                                PREÇO, 200 réis.



CHRISTO NÃO VOLTA



CHRISTO NÃO VOLTA

(Resposta ao «Voltareis, ó Christo?» de Camillo Castello-Branco)

NARRATIVA

POR

ALBERTO PIMENTEL

    Meus Deus, enviae segunda vez á terra o vosso divino Filho! Esta
    negridão gentilica é peor que a de ha dois mil annos. N'aquelle
    tempo esperava-se; nas entranhas sociaes estremecia o presentimento
    d'um regenerador... Hoje em dia, nada, nada, ó altissima
    Providencia! Nada! Mas... voltareis, ó Christo?

                                                 CAMILLO CASTELLO-BRANCO.

LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON

96, Largo dos Clerigos, 98

PORTO

EUGENIO CHARDRON

4, Largo de S. Francisco, 4-A

BRAGA

1873.



PORTO: TYP. DE MANOEL JOSÉ PEREIRA

Rua de Santa Thereza, n.º 4 a 6.



Cartas enviadas ao «Primeiro de Janeiro»


I

Castello de Paiva, junho de 1873.

                                                              MEU AMIGO.

Como tem navegado Douro acima e conhece bem as planicies e montanhas que
a uma e outra margem se encontram, umas espraiando-se ao nivel da
corrente, outras erguendo-se ameaçadoras e aridas para o ceo, não me
dispenso de contar-lhe um caso triste e verdadeiro, porque o presenciei
eu, se bem que mal possa ser chronista, porque estou ainda na commoção
da surpreza.

Encontrei-o no Porto, e disse-lhe que tinha de partir para Castello de
Paiva. Effectivamente parti no dia fixado. Não jornadeei por terra, o
que seria incomparavelmente mais rapido, porque me julguei obrigado, a
bem de meus proprios interesses, a acompanhar o barco carregado por
minha conta. Larguei do caes da Ribeira, cerca da meia noite, para
aproveitar a maré até Pé de Moira. Obedeço a um pedido não declarando o
dia. Cerca das onze horas da manhã estava em Pé de Moira, onde os
marinheiros e arraes almoçaram, comendo uns peixes fritos na barraca de
ramas de pinheiro, que o meu amigo conhece, e bebendo pela tradicional
bilha de barro vermelho.

Ahi me prophetisou o arraes que o termo da viagem seria moroso, porque
não havia vento e o barco ia muito carregado.

Resignei-me.

Armou-se um tolde com a vela, accendi o meu cachimbo, bebi tambem, e
comecei a lêr os jornaes que trazia no bolso, disposto a viver sobre
agua o tempo que fosse preciso.

Oh! enfadonha coisa este ante-diluviano processo de locomoção! Digo
ante-diluviano em rasão de Noé se ter salvo embarcado no dia da grande
submersão da terra.

Li os jornaes de fio a pavio, como se diz não sei se em bom portuguez,
reli-os, decorei-os. Cheguei a devorar os annuncios com uma soffreguidão
de cannibal. Enguli e digiri todos os _barateiros_ e todos os
_precisa-se_. Comprehendi então o que ha de profundamente triste em
_precisar_; eu tambem precisava de chegar a casa o mais breve possivel e
todavia a terra firme estava para mim como a agua para Tantalo. Vi-a; e
tudo se ficava em vêl-a.

Foi-me anoitecendo ainda a grande distancia de casa. Custou-me a
transigir com a necessidade de passar segunda noite no rio. Que me
importava a mim o luar, a ardentia das aguas, as vaporações embalsamadas
da natureza? Não sou poeta; já tive um pouco d'isso, é verdade, mas o
que mais ambiciono presentemente é dormir na minha cama, comer á minha
mesa, e calçar as minhas botas.

Finalmente não havia remedio senão conformar-me ás circumstancias; o
homem nasceu para joguete; fui pois o que tem sido e ha de ser
perpetuamente o meu similhante.

Cerrou-se-nos inteiramente a noite ao sopé das Victoreiras. O arraes deu
voz de lançar ferro; os marinheiros iam cansados de tirar o barco á
sirga e logo saltaram em terra para queimar sobre gravetos o seu
bacalhau. Puxei do meu taleigo e comi uma fatia de presunto de fiambre e
outra fatia de queijo.

Depois que gregos e troyanos se banquetearam com o frugal repasto,
tractou-se de acamar e dormir.

Os marinheiros acobertaram-se com as mantas e romperam, tarauteando
pelos narizes, em hymnos a Morpheu. Eu é que não nasci pagão; fui
remisso em render culto á tetrica divindade mythologica. Mexi-me,
remexi-me, rebuli-me e por mais d'uma vez accendi o meu rolinho de
viagem para dar batalha a pulgas, persevejos e demais bicharia, que
passava dos marinheiros para mim e de mim para os marinheiros.

Cerca das onze horas da noite pareceu-me ouvir de repente o baque de um
corpo em terra, mas um segundo depois não pude duvidar ao ouvir um grito
surdo como o de quem cahia contra o solo. Chamei afflictivamente os
marinheiros, que despertaram roncando interrogações.

--Que foi? Que é? perguntaram elles.

--Ahi fóra cahiu gente!

--Quem havia de cahir, senhor!

--Ouvi distinctamente a queda, e um grito depois.

--Um grito!

--Posso affirmar; ouvi gritar com toda a certeza.

Instiguei-os, pedi-lhes instantemente que me acompanhassem. Elles
accenderam o seu lampeãosinho e seguiram-me. Fomos marinhando pelas
fragas á procura d'agulha em palheiro. Os marinheiros começavam a rir
alvarmente e a dizer que eu era dado a medo de bruxas. De repente
pareceu-me porém ouvir gemer. Intimei silencio. Os marinheiros trocaram
entre si um olhar ironico, que para logo se volveu credulo, porque
distinctamente ouviram um gemido.

--É alma perdida! disse um com voz tremula.

--É naturalmente corpo perdido, objectei eu. Calem-se. Vamos a vêr se
nos orientamos.

Apoz um longo intervallo, ouvimos gemer do novo, se bem que mais
debilmente. Podemos orientar-nos. Eu marinhei á frente dos homens,
arrancando da mão d'um a lanterna. A pequena distancia pareceu-me vêr um
vulto estendido no chão. Baixei o lampeão e reconheci um corpo de
mulher. Os marinheiros estavam attonitos e como que receiosos
d'approximar-se. Fui eu quem, poisando o lampeão, levantou o corpo.
E--surpreza extraordinaria!--vi uma bonita mulher, se bem que
mortalmente pallida, nova, franzina, com o rosto ferido, ensanguentado.
Estaria viva ou morta? Não sabiamos. A verdade é que estava fria como
cadaver. Os marinheiros, capacitados de que não era bruxa, ajudaram-me a
transportal-a ao barco. Deitamol-a, aspergimol-a, lavamos-lhe os
ferimentos e nem tempo tivemos--eu pelo menos--para pensar no
extraordinario do acontecimento. Hoje é que eu, ainda que mal,
reflexiono e me confirmo que não ha romance que seja absurdo.


II

A formosa desconhecida continuava a estar immovel e fria, apesar dos
cuidados que lhe prodigalisamos e que, attentas as nossas
circumstancias, não podiam ser completos.

Sabe que eu não sou piegas nem romantico,--o que significa o mesmo,
porque o romantecismo é a pieguice do espirito--mas confesso-lhe
francamente que me horrorisaram a solidão, a escuridade, a massa negra
das aguas e a massa negra das serras, o desamparo do homem entre a agua
que é fria e a rocha que é dura, entre ambas que são mudas e
surdas,--finalmente, o desagasalho, a impossibilidade de encontrar
soccorro!

Como o Douro me pareceu differente d'aquelle extenso e caudaloso rio
nosso conhecido, meu e seu, quasi sempre placido, povoado de barcos,
animado de cantares, marginado de casinhas e campanarios que de longe a
longe se penduram das fragas, n'uma palavra, accidentado de tons
variados e por mais d'uma vez festivos!

Ordinariamente, quando se viaja, tem-se saude. Vem a gente a lêr no
barco, a fumar, a conversar os marinheiros, a incital-os a que cantem ao
desafio, a comer a sua canja e a beber a sua pinga!

Nada nos apavora então! Quando o barco passa por baixo das Victoreiras,
e se vê lá no alto, ameaçando eternamente despegar-se, aquella enorme
avalanche negra, informe, nem siquer lembra que os fraguedos, que se
encastellaram um dia, por uma evolução da natureza, podem rolar e
precipitar-se alguma hora, por outra evolução imprevista. Contenta-se a
gente com ouvir da bocca dos marinheiros uma tradição do sitio.

--Alli, dizem elles, é que os homens trahidos trazem as mulheres a
despenhar-se.

Elles não dizem isto por estas palavras, mas digo eu. E a gente
facilmente acredita que haja homens que se dêem ainda o incommodo de
jornadear por algumas horas para despenhar as mulheres adulteras, que já
estão despenhadas, e que haja mulheres, que depois de conhecerem o
vicio, tenham a virtude de se deixar morrer!

A viagem pelo Douro, de dia, em boa disposição d'espirito e corpo, tem
alguma coisa de idyllio, d'Arcadia, de creendice, coisas impossiveis de
encontrar hoje em qualquer outra parte. É uma especie de Pantana, onde o
carneiro assado parece saltar-nos aos dentes, e a borracha trepar-nos
aos beiços, e onde a gente, olhando para as mãos, encontra cinco facas e
cinco garfos! Onde é hoje que se póde encontrar a realidade d'este ideal
de Pantana, a não ser n'uma viagem pelo Douro? Quem é hoje que come
com a mão, desde que o Monteverde publicou o _Manual encyclopedico_,
e nos exames do lyceu se ensina a dar ao queixo, quer dizer, a comer com
as mandibulas?

Mas como o quadro muda de noite, santo Deus! quando terra, ceo e agua
são escuros, e está ao pé de nós um corpo frio, immovel, quando o nosso
espirito pergunta a si mesmo, para resolver um mysterio, se aquella
mulher, formosa e inanimada, gentil e desconhecida, será morta ou viva!

E não haver um sal que se lhe dê a respirar! um espelho para lhe receber
o halito, se ainda o tem! uma voz que nos anime! um espirito que
comprehenda a nossa tribulação! porque os marinheiros do Douro são os
puros cadeirinhas do rio! Fazem tudo mechanicamente; teem força: puxam
por ella. Perdão, pelo que elles puxam é por nós, pelo barco, e por
elles mesmos. Podiam ter nascido bois, e nasceram homens. Tambem os
cadeirinhas podiam ter nascido burros de carga e nasceram gallegos. Que
a natureza emendasse a mão em qualquer feitura humana, comprehende-se,
porque tambem aquelle artista, que estava a fazer o demonio calcado pelo
archanjo, mudou de tenção, por quebrar os chifres ao demonio, e
aproveitou a esculptura para fazer um santo deitado.

O que é certo é que a natureza humana, tirante os marinheiros de
riba-Doiro e os cidadãos de riba-Minho, é tão nobre, tão dedicada,--e
perdoe-se-me a vaidade de a estudar em mim mesmo--que logo me esqueci da
urgencia de abreviar a viagem, de descarregar em Castello de Paiva os
meus generos, e concentrei todas as minhas attenções n'aquella mulher
que não conhecia, que vagueava a deshoras por uma serra, com risco de
rolar ao Douro, sósinha com a sua ideia, que era provavelmente uma
grande dôr.

Permitta-me--entre parenthesis--que chame á _dôr_ moral uma ideia e não
um sentimento. Isto é philosophia minha. Quando se acorda pela manhã, e
se _lembra_ a gente do soffrimento da vespera, é que continua a _sentir_
o que na vespera sentiu. E que tal! approva? Eu quando fui d'uma vez ao
Porto, acompanhar o meu patricio Barros que ia fazer concurso para uma
cadeira de philosophia n'um lyceu do sul, e ouvi argumentar um tal
Albuquerque d'oculos verdes, adquiri a convicção de que tambem podia ser
philosopho, mais pelo que ouvi ao Albuquerque do que pelo que ouvi ao
Barros.

A verdade é, meu amigo, que a nossa alma verga ao perigo como o aço ao
joelho.

Pozessem no meu barco um farrabraz, um mata-mouros, um espadachim, ao pé
d'aquella mulher, e ainda que esse stentor não tivesse esposa, nem
filha, nem--ó prodigio!--tivesse mãe, elle sentiria o que eu senti, a
abnegação das situações anormaes, a ancia de valer a quem está carecido
de soccorro, a necessidade de saber se aquella mulher estava morta ou viva!

Cobri-a com todas as mantas que havia no barco, as dos marinheiros e as
minhas, a vêr se provocava a reacção; lembrei-me de que tinha aguardente
comigo, friccionei-lhe os braços e os pés, e, ao agasalhal-a, ao
conchegar-lhe a roupa, senti que tinha no bolso papeis.

Bem podia ser que alli estivesse a chave do enigma.


III

Com quanto eu seja um pouco preguiçoso em escrever, e ainda hontem lhe
tenha enviado a segunda carta sobre o extraordinario caso das
Victoreiras, não posso resistir á tentação de voltar hoje ao assumpto
para lhe communicar que por carta recebida agora do correio do Porto fui
ameaçado de não sei que medonhos perigos no caso de proseguir na
veridica historia da morta ou viva.

Em nenhum acto da minha vida blasono de valente, mas tambem não é meu
costume recuar por cobarde. Continuarei pois a narrativa encetada, em
proveito da humanidade, porque, repetindo o que dizia na primeira carta,
é uma tremenda lição. E depois que ideia se fará no Porto da policia de
Castello de Paiva? Julgarão isto sertão de feras, serra deserta, região
ignorada? Eu não sei. O que posso affirmar é que a tenebrosa carta nem
me cheirou a certidão d'obito, nem estou em terra onde a supradita
carta, dado que eu fosse simplesmente poltrão, podesse converter-se em
realidade impunementemente.

Não, meu amigo, eu protesto contra todas as mordaças açaimadoras de
escandalos. Isto assim não póde ser,--que triumphe sempre o forte e
soffra sempre o fraco. Bem sei que é costume recatar os escandalos e,
quando muito, publical-os desfigurados. Mas--erro imperdoavel!--o
escandalo é muitas vezes a lição e algumas vezes póde ser a cura. É
preciso que se espalhe, que se discuta, que se commente, com vagar, como
eu estou fazendo, para que a precipitação não cegue o entendimento.

Este caso da morta ou viva tem surprehendido muita gente, mesmo em
Castello de Paiva. Era eu a unica pessoa que estava na confidencia
d'elle, porque fui a unica testimunha occular. A principio julguei dever
guardar segredo. Ao cabo, porém, de muitas noites de insomnia, resolvi
dar-lhe publicidade. Sabido apenas por mim, não aproveitaria a ninguem;
divulgado, algum proveito poderá levar á sociedade.

Ha que tempos se anda ahi a fallar da emancipação da mulher! Mentira,
hypocrisia, infamia!

A sociedade lança mão da these-emancipação para mais escravisar a
mulher, como os governos costumam exhibir o rotulo _melhoramentos
materiaes_ quando tentam vexar os povos com novos tributos.

Querem estes philosophos de má morte emendar a natureza. A mulher não
nasceu para _senhora_ nem para _escrava_; a mulher é companheira. Como
esta palavra está a dizer, ella deve compartir comnosco alegrias e
dores, risos e lagrimas, flores e espinhos. Fallar-lhe em
emancipacão é suppor que havemos sido despotas ao ponto de lhe
roubarmos a liberdade relativa que lhe deviamos ter dado, e que lhe
queremos restituir; é proclamar a nossa propria vileza; é arrogar-nos
fatuamente a importancia de libertadores do genero humano. Escravisal-a
é aviltar nossos filhos até á condição de filhos d'escrava e
julgarmo-nos nós mesmos nas circumstancias de nossos filhos.

Não ha emancipação nem escravidão: o que deve haver simplesmente é
sociedade conjugal.

Portanto eu, philosopho montanhez, estarei sempre na brecha para atacar
qualquer das duas falsidades, qualquer dos dois extremos, que são
viciosos, estando pois a virtude mais uma vez no meio-termo.

Estas cartas são um brado ardente contra o aviltamento da mulher, cuja
honra se quer subjeitar a um capricho, esquecendo-nos de que
deshonrando-a a ella nos deshonramos a nós mesmos. Não façamos da mulher
a guitarra com que nos recreamos durante uma serenata e que ao romper do
dia, ebrios de mau vinho e mau prazer, atiramos pela janella fóra. Quem
a recolherá depois de a vêr no monturo? O trapeiro, apenas. E todavia a
guitarra era mimosa, quando suspirava ao luar; tinha uma voz doce e
melodiosa que despertava vagos pensamentos na alma; podia ainda murmurar
cadencias se continuasse a ser dedilhada por mãos delicadas. Mas nós,
que a principio mal poisavamos os dedos nas cordas, que a julgavamos
intermedio entre a nossa alma e a natureza, porque era ella, a guitarra,
que estava fallando por nós e respondendo pela natureza, deixamos por
ultimo cahir em cheio a mão sobre o fragil instrumento e fizemos estalar
uma corda, que precedeu o estalar de todas as outras.

Pois a corda que estalou chamava-se--honra; depois d'ella estalaram
todas as outras, que se podem chamar--pundonor, brio, fé. A mulher,
quando chega a este destino da guitarra, já não tem pundonor, porque não
se peja de haver cahido; não tem brio, porque não pensa em
rehabilitar-se; não tem fé, porque já não acredita na propria
rehabilitação nem na rehabilitação das outras.

Vai, como a guitarra partida, para o muladar do trapeiro ou para a loja
do adello.

Ou morre ou se vende.

Não, philosophos da philosophia de Mahomet, que sustentaes o _crê ou
morres_, não, em nome de nossas mães, de nossas irmãs, de nossas
esposas, de nossas filhas, havemos, nós, os que temos dignidade e
coração, de quebrar aos vossos pés essas duas laminas d'aço cortante que
limitam o vosso perfido dilemma. E como o havemos de fazer? Desvendando
a mulher, avisando-a, apontando-lhe o exemplo.

Meu amigo,--perdoe-me esta dissertação que era precisa, depois de lhe
haver annunciado a recepção d'uma carta ameaçadora, e previna os seus
leitores de que eu d'aqui em diante entrarei directamente no assumpto.


IV

Quer que lhe explique o meu demorado silencio?

Dias depois de publicada a terceira carta, recebo pelo correio outra de
letra desconhecida.

Abro e leio:

«Ill.mo snr:

«Vejo que é um homem esforçado e brioso, para quem todas as ameaças são
nullas. Perdoe-me o havel-o comprehendido mal, tomando-o como
pusillanime. Lance tudo á conta do meu desespero de me vêr justamente
accusado em muitos relanços das suas cartas, e falsamente incriminado
n'outros. Foi uma infamia, que a sua magnanimidade perdoará, e que o meu
arrependimento redimirá. Peço-lhe porém--se alguma confiança lhe mereço
ainda depois de perdoado--que me ouça, antes de continuar as suas
cartas, para que, melhor informado, possa conhecer as particularidades
da veridica narrativa. Um inconveniente obsta porém á minha ida a
Castello de Paiva: é o ser uma terra muito pequena e açular eu a
curiosidade do publico ocioso com a minha presença ahi, depois da
publicação das suas cartas.

«N'esta conjunctura não será grosseira impertinencia pedir-lhe um
sacrificio por amor da imparcialidade com que quer ser juiz na minha
causa? Pois bem, ao magistrado que me tem de julgar perante a opinião
publica, e que deve escutar com igual benevolencia reu e queixoso,
exoro, supplico vivamente que se digne marcar sitio onde me possa dar
audiencia para ouvir da minha justiça.

«Não receie ciladas. Se não fosse realmente um homem corajoso,
lembrar-lhe-ia que prevenisse a authoridade da hora e local da entrevista.»

Respondi immediatamente:

«Ill.mo snr:

«Tenho de ir a Penafiel depois d'amanhã. Portanto, se não quer ser
visto, espere-me ás onze horas da noite na capella de S. Roque.

«Não receio ciladas. Deixemos a authoridade em paz.»

Fui.

Effectivamente pude orientar-me melhor nos episodios que precederam o
caso das Victoreiras, o que de nenhum modo quer dizer que eu modificasse
absolutamente o meu primeiro juizo.

Ainda assim cumpre-me restabelecer a verdade dos factos.

Da parte _d'elle_ não houve a minima culpa no incidente d'aquella noite.
Foi sim um grave erro da sua parte, o erro de ceder á loucura d'um
momento, que deu logar a esse acto de desespero da formosa desconhecida.

Elle, porém, não estava avisado da fuga, como pude verificar pelo
confronto dos depoimentos d'ambos.

O que é certo é que o vi chorar...

Nunca o seu coração está tão endurecido que não tenha a sensibilidade
que refrigera com lagrimas as dôres intimas.

Todavia aguardemos o desfecho dos acontecimentos, esperando, como o dr.
Pangloss, que tudo seja pelo melhor no melhor dos mundos.

Isto até aqui, meu amigo, foi para si.

D'aqui em diante vae proseguir a narrativa, reatando-se no ponto em que
ficara, como se não se houvera dado este episodio que acabo de referir,
e que todavia me permittirá ser mais explicito.

Senti, disse eu na segunda carta, que a desconhecida tinha no bolso papeis.

Só alli podia estar a chave do que para mim era enygma.

Mas, ao mesmo passo, um escrupulosito: Ser-me-ia permitlido lêr essa
correspondencia?

E logo a contrapôr-se ao escrupulosito uma reflexão: Não a traria ella
comsigo, prevendo que as suas debilitadas forças lhe faltariam no
caminho, para esclarecimento de quem quer que a encontrasse morta ou viva?

Resolvi lêr os papeis.

Eram um maço de cartas, atadas com torçal vermelho.

Á primeira vista, fiquei perplexo.

Reparando melhor, dei tino de haver entalado, entre o torçal e o rolo,
um bilhete.

Esse devia ser o esclarecimento desejado.

Era, em verdade.

Dizia simplesmente isto:

«Chamo-me F., da casa de... vou para..., fugida á justa punição de meu
pai e apenas confiada na protecção do pai de meu filho, que deve nascer
se a morte não surprehender a mãe n'esta ousada resolução.

«Tu, que me lêres, perdoa-me.

«Se és pai, põe todos os teus cuidados na guarda de tuas filhas: se és
mulher, e estás descida a iguaes abysmos, vê no espelho da minha
desgraça a profundeza do teu erro.»

Tinha-se feito a luz.

Aquella mulher era filha d'um homem respeitabilissimo que ha muitos
annos se soterrara n'umas serras do Douro depois de haver percorrido o
mundo, semeando dinheiro e anecdotas, batendo os melhores cavallos,
baloiçando-se nos melhores tilburys, jogando, bebendo, reptando,
apostando nas corridas, atirando aos pombos, pompeando nas aguas de Spa,
debruçando-se n'um camarote da Grande Opera, merecendo referencias a
Julio Janin, enchendo o mundo, o folhetim, o romance e até o theatro.

Ha quem diga que o nosso conhecido _Antony_, transportado do lar
deshonrado para a scena igualmente deshonrada, fôra apenas uma copia
desenhada pelo _crayon_ ultra-romantico de Alexandre Dumas n'uma hora
mais ultra-romantica que o proprio _crayon_.


V

Finalmente, ao recolher d'uma das viagens ao extrangeiro, casou com uma
senhora da primeira sociedade lisbonense. Quasi o surprehendeu o ser amado.

Não conhecia o amor senão da capa dos livros e dos _vaudevilles_. O
casamento era para elle apenas uma comedia que vira em França e na qual
homem e mulher se davam excellencia e cumprimentavam ao jantar. Pensava
pouco mais ou menos em observar o regimen matrimonial da comedia, mas
completamente se enganou, porque, sentindo-se amado, começou de
encontrar no amor thesouros que lhe eram desconhecidos desde a mocidade.
Atravessara o mundo, sem atravessar a familia: não conhecia o amor,
porque só na familia o ha. A alegria das festas, fóra do lar, irradia
como a espuma do _champagne_ á luz de candelabros, mas entorna-se e
dissipa-se como ella.

Suppunha elle haver-se apaixonado uma vez, aos vinte annos. A 2 de
abril de 1829, fazendo a primeira viagem a Pariz, ouvira cantar a
Malibran, que era então a rainha da opera, n'um concerto matutino dado
na rua Taitbout, em favor dos orphãos adoptados pela «Sociedade de moral
christã.» Ficara doido, embriagado, e logo obteve uma apresentação á
cantora, que o recebeu ao _dessert_.

N'essa mesma noite cantava a Malibran o papel de Desdemona no theatro
dos Buffos. O theatro trasbordava de espectadores; a receita do
espectaculo subiu ao algarismo de 18,000 francos.

Não obstante ser immensa a multidão, a cantora pareceu enxergal-o e
distinguil-o com um sorriso,--d'estes sorrisos que as mulheres de
theatro espalham como bilhetes de beneficio...

Isto acabou de enlouquecel-o. Todo o theatro tinha visto: a Malibran
sorrira-lhe!

N'esse mesmo anno foi a cantora a Londres. Acompanhou-a, seguindo por
toda a parte o rastro de gloria que ella abrira ao passar por entre a
admiração britannica.

Em janeiro de 1830, estavam ambos em Pariz: ella e elle.

Foi n'esse mez e anno que Pariz a ouviu cantar o segundo acto do
_Matrimonio segretto_, com as duas maiores notabilidades cantantes da
epocha,--a Sontag e a Damoreau-Cinti.

A vida do nosso _touriste_ foi, durante o tempo que seguiu a Malibran,
uma serie de viagens,--as mesmas que ella fazia,--de ceias, de
_pic-nics_, de prazeres, que acabavam sempre ao amanhecer, porque os
falsos sorrisos desmascarar-se-iam á luz da manhã, e, digamol-o tambem,
foi um inferno de ciume.

Elle tinha tamanha emulação de quem lhe dava a ella um broche, como de
quem lhe dava simplesmente um bravo. Isto, meu amigo, acho eu
desarrasoado; mas diga-me se não tenho rasão, visto que vive em terra
onde ha theatros.

Ora o nosso heroe, que, para maior facilidade, chamaremos X, julgava-se
perdidamente amado, e perdidamente namorado.

Duplo erro!

O que lhe sustentava essa rosada illusão eram as flores, as luzes, os
crystaes, as ovações, as perolas e os sorrisos da Malibran, o publico,
as ceias, os bailes, toda essa vida exteriormente seductora, apenas
architectada sobre este pedaço de vidro, que no mundo se chama a _gloria_.

Mas--desapontamento horrivel!--o pedacinho de vidro quebrou, cessaram as
scintillações prismaticas, e o castello encantado desabou.

Foi n'esse mesmo anno de 1830 que a Malibran atou com o celebre
violinista Beriot as intimas relações que os tornaram inseparaveis.

Foi n'uma ceia que elle soube a fatal noticia por intencional chocarrice
de um conviva.

Esteve para erguer-se e reptar Beriot, mas Beriot era um homem serio, e
não o havia offendido.

Desistiu.

Amuou, corou, empallideceu, começou a tornar-se ridiculo.

Malibran, que fez reparo no despeito do seu admirador, levantou-se e
apresentou-lhe a Lablanche, que estava á mesa.

Coruscou no cerebro de X a ideia da vingança. Começou a galantear a
Lablanche, a ponto de que em 1832 percorreram todos a Italia: Malibran,
Lablanche, Beriot e X.

Já viu o meu amigo mais doida mocidade, mais desbaratada vida, e ao
mesmo passo tamanha nudez d'alma ainda mesmo na epocha em que o corpo se
involve na ampla capa de D. Juan?

Um beneficio recebeu porém d'esse divagar pelos prazeres ruidosos.
Saturou-se do mundo. Felizmente, a sua vinda a Lisboa facilitou-lhe o
unico meio de conhecer a unica coisa que desconhecia,--a familia. Entrou
no lar pela porta do casamento quando pela janella sahia a extravagancia
ainda desgrenhada das ceias e de charuto na bocca.

A proposito de charuto, meu amigo: de-me tempo de fumar um.


VI

Continuemos a fallar do pai da nossa gentil desconhecida.

Acabei o charuto: podemos conversar por um pouco.

O amor completou a regeneração que a experiencia do mundo principiara.

Casou.

No coração da esposa encontrou thesouros de raras virtudes.
Alvoreceu-lhe em torno uma aurora de tão doce luz, que pela sua mesma
suavidade desbancava as scintillações crystallinas das ceias, e os
clarões que illuminavam em scena a figura da Malibran.

Toda a gente o presumia ainda rico: a verdade era que a realidade não
correspondia á opinião publica.

Havia gastado como um principe russo. A capa de D. Juan não tem bolso,
de modo que emquanto as mãos tangem o bandolim da aventura vai o
dinheiro cahindo no chão.

Casado, encarou com mais gravidade no seu futuro, e achou que não podia
aguentar-se nas pompas de Lisboa.

O casamento tem quasi sempre isso de bom: desperta a consciencia
adormecida pela crápula.

Pediu informações aos feitores, e as informações confirmaram a suspeita.

Chamou á puridade a esposa e disse-lhe:

--Perdoa-me, anjo, se te vou magoar com a minha primeira confidencia,
mas devo-te a verdade toda. Eu não sou tão rico como geralmente se
suppõe. Gastei muito, quasi esbanjei na sociedade o patrimonio da
familia. Quero porém que tu vivas feliz, e para attingir a tua
felicidade apenas encontro abertos dois caminhos: ou o trabalho honesto
ou a tranquilla solidão. Se desejas viver no extrangeiro, poderei obter
uma embaixada; mas se preferes viver no meu e teu paiz, temos que
recolher-nos á provincia, e viver na doce tranquillidade que o mundo da
capital não conhece. Só te peço que sejas franca. Decide, e a tua
vontade será lei.

A resposta foi esta:

--Partiremos amanhã para o teu solar. A felicidade está onde a gente a
tem; tel-a-hemos lá. A vida no extrangeiro seria a prolongação da tua
mocidade; ora eu tenho direitos incontestaveis ao teu coração. Quero-o,
pois. E onde melhor o possuirei do que na solidão do lar, onde, fechada
a porta, seremos nós os unicos habitantes do nosso mundosinho de
felicidade? Vamos lá, meu amigo. Nem sabes como me sinto alegre! Quanto
mais te distanciares do passado, menos ciumes terei d'elle. Vamos lá.

Foram.

O solar, construcção coeva dos primeiros tempos da monarchia, era
mais acervo de ruinas que palacio de nobres. As pedras haviam-se
desconjunctado, e a hera marinhava pelas fendas até ensombrar as
janellas. Nos longos corredores havia a escuridão sinistra dos carceres.
As salas, denegridas pelo tempo, eram d'uma vastidão que punha medo. A
mobilia, tão deteriorada como o edificio, tinha o aspecto funebre de
phantasmas que á meia noite se fossem sentar encostados ás lousas do
cemiterio. Os grandes contadores de pau preto negrejavam a pequenos
intervallos como ossadas de gigantes carbonisadas em forja de cyclopes.
Por entre a escuridão e o silencio da casa algum pipillar d'andorinhas,
que penduraram o ninho entre as ruinas. Tambem ás vezes no cemiterio, no
meio da concava sombra dos chorões, assim chilriam uns passarinhos que
fogem quando presentem gente, porque estão habituados ao socego das campas.

As sombras da casaria deserta apavoraram a noiva de X. Uma noite uma
coruja fôra piar a uma das janellas do solar. A pobre senhora estremeceu
e chorou.

Acudiu o marido a abraçal-a meigamente.

--Tinha sido melhor, disse elle, optarmos pelo estrangeiro. Isto aqui é
triste. Ainda se as andorinhas se não calassem de noite...

--São os nossos unicos amigos, respondeu a dama. Se esta casa não é
completamente sepulcro, a ellas o devemos. Mas, meu amigo, as andorinhas
me bastam para conforto. Eu chorei porque estava triste; não foi que
tivesse medo. Não te inquietes...

--Não, anjo, não. É preciso sahirmos d'aqui...

--Para o extrangeiro não, não?

--Socega, filha. Pois que estes montes te amedrontam menos que estas
paredes, e que te resignas ao sacrificio, ficaremos. Limitar-nos-hemos a
mudar de casa. Amanhã tractarei de ajustar a edificação d'um predio que
tenha em conchego o que aqui perdemos em vastidão. Bem vês que mais nos
aproximaremos ainda. Eu quero ouvir a tua voz a todo o instante. E
depois, como sabes, o berço das creanças costuma ser pequenino, e tu
vais ser mãe. A nossa nova casa será pois o berço de nosso filho.
Escolho o laranjal. O vento que passar agitando as folhas embalará o
berço... Queres?

--Se quero!


VII

Construida a casa ao centro do laranjal, entrava a felicidade pelas
janellas com os murmurios e os olôres de fóra.

Ficara deserto o solar na eminencia em que assentava. Negrejava como o
cavername de navio naufragado sobre rochas. Eram as ruinas do passado,
os escombros do feudalismo que dormiam o seu somno de seculos; o
_cottage_ do laranjal era alegre como a liberdade estensiva a nobres e
plebeus:--aos nobres, porque já lhes não pesava a tarefa de mandar; aos
plebeus, porque já não eram servos de gleba.

As corujas invadiram as ruinas em competencia com as trepadeiras que
bracejaram desaffogadamente, e as pavidas visões da esposa de X ficaram
lá sepultadas para nunca mais a perturbarem emquanto costurava o
enxovalsinho da creança que ia nascer.

O fidalgo pasmava do poder regenerador da familia, que lhe tinha raspado
da alma a ultima lepra da extravagancia. Não via mais mundo do que
aquelle. Andava a toda a hora a olhar para o berço vasio, ancioso de vêr
sobre o travesseiro o relevo d'uma cabeça pequenina. Não faltava já o
lençol de rendas nem a coberta de damasco: o que faltava era a creança.
Pozessem alli dentro uma alma, e a felicidade ficaria completa.

Chegou finalmente o dia de se realisar o venturoso sonho. Desdobrou-se a
cobertasinha adamascada, acamaram-se as rendas para não maguar o
corpinho delicado, e ali dormiu a creança o primeiro somno velada pelo
pai que nem ousava beijal-a para não a maguar.

Aos cinco annos a creança tinha já um portesinho senhoril que era de
namorar os olhos. Muito redondo o vestidinho; os cabellos annelados e
auri-luzentes; o pequenino corpo escondido na fita que lhe servia de cinto.

E chilreava, e esvoaçava, como se tivesse a casa por gaiola.

Á medida que a pequerrucha ia crescendo, crescia com ella o amor
paternal. Sorriam de a vêr sorrir, e choravam de a vêr chorar.

O grande receio era de que morresse.

Esta é a loucura de todos os pais.

Querem roubar á tyrannia da morte uma vida que lhes não pertence.
Esquecem-se de si mesmos para se absorverem n'uma existencia que não
lhes é essencial, mas complementar.

Não a eduquem á revelia, deixando-a entregue aos instinctos bons e maus
que nascem com ella. Visto que o filho é o complemento dos pais,
completem-se pelo filho. Adaptem-n'o, quanto possivel, á sua maneira
de pensar e sentir; façam d'elle a coda da santa melodia chamada
familia. Não se riam de que a creança faça aquillo que elles nunca
fizeram. Não lhe applaudam o bater com o pésinho no chão, o desfolhar as
flores que lhe são defezas, o mexer nos objectos que devem respeitar.
Bater com o pé no chão é a principio um movimento mechanico, nervoso.
Com o decorrer do tempo corresponde ao movimento uma ideia má e um mau
sentimento. Então esse acto já não é mechanico simplesmente; é a
manifestação da raiva, do desespero, do odio. A esta perniciosa educação
é preferivel a morte. As plantas novas tomam o geito que lhes dão.
Deixem crescel-as sem enleial-as, que ellas assombrarão todo o pomar.

Ora o amor é cego, e não vê nada para fóra de si.

Foi isto o que aconteceu.

A creança cresceu com a mulher. Os pais, para que outro amor lh'a não
roubassem, deram de mão a todas as visitas de gente moça. As unicas
relações que se conservaram foram as do voltarete: eram duas. O
capitão-mór tinha cincoenta e cinco annos; tinha além d'isto rheumatismo
e oculos azues. O outro parceiro era um morgado de quarenta annos, que
estivera em Pariz com o pai da menina e _servira de capa_ a varias
escaladas. Tinha casado e parecia um homem morto. O casamento tem tanto
de bom como de mau: é como os carceres. A uns presos aproveita a
reclusão; outros sahem da cadeia mais desmoralisados.

Os primeiros estavam representados em X; os segundos no morgado.

Bem casados e mal casados, diz o mundo.

O amigo do fidalgo tinha _verve_ e bigode: duas tentações.

Ainda sabia dar o laço da gravata: um mau symptoma.

Fumava charuto: um perigo.

Contava das suas viagens, dizia que tal cantora, que conhecera, tinha os
olhos bonitos e as unhas feias; que o nariz da Malibran não era tão
correcto como o pescoço: uma desgraça.

N'uma palavra: era entendedor.

A menina da casa, emquanto elles jogavam, estava por ali.

E o peior que podia acontecer n'aquella casa era o entendedor estar lá.

Por mais que elle quizesse dominar o seu temperamento, ser bom e digno,
leal e cavalheiro, o coração, que estava comprimido nas reixas
conjugaes, aproveitou a occasião e poz a cabeça fóra da grade a pedir
esmola d'amor.

A inexperiente menina ouviu-o, sem saber o que fazia.

Tinham-n'a ensinado a não fugir d'aquelles dois homens: não fugiu.


VIII

Mau é brincar com fogo: o incendio irrompe.

O amigo da casa começou a fazer reparo nas graças da menina, e achou que
tinha os dentes alvissimos, os olhos formosos, os cabellos soberbos.

A menina, por sua parte, entrou de deixar-se influenciar agradavelmente
pela amena eloquencia do unico homem estranho que fallava n'aquella casa.

Era elle o unico orador dos serões intimos; a unica voz que sobrepujava
o fremito das cartas na mesa do voltarete.

Depois a menina lisongeava-se de que um homem, que tinha corrido o
mundo, e conhecido mulheres celebres por talento e formosura, a
conceituasse intelligente e gentil.

Estava-se preparando n'aquelle seroar despreoccupado a ruina de Troya.

O apartamento é um mau systema de educação. A borboleta, que não conhece
o perigo da chamma, arroja-se á luz.

Era melhor tel-a avisado para que demorasse a morte quanto lhe fosse
possivel.

Após as amabilidades vieram os galanteios, e após os galanteios as
confidencias.

A menina ouviu e acreditou.

Começou-se a dizer por fóra que a menina era amada pelo morgado.

Só não o diziam, nem ouviam, os pais da menina e a esposa do morgado.

Decorreu tempo, e a menina deixou de sahir a passeio; ao mesmo tempo o
morgado deixou de ser assiduo.

A menina fez-se triste; o morgado andava preoccupado.

Luctavam ambos com a resolução do mesmo problema: encobrir uma vergonha
commum.

Foi n'essa epocha que o morgado teve de ir ao Porto por causa de pleitos
que se ventilavam nos tribunaes.

Pediu-lhe a menina que a tirasse da casa paterna, antes que rebentasse o
escandalo.

O morgado prometteu demorar-se apenas alguns dias no Porto, e voltar
depois de recolhidas grossas quantias, cujo embolço dependia da solução
do pleito, a seu vêr bem encaminhado, para se passarem ambos a Hespanha.

Houve porém uma camponeza que os viu estarem-se despedindo em logar
afastado. Contou-o á noite á lareira. A revelação da camponesa
espalhou-se. Chegou aos solares, e aos ouvidos da desventurosa esposa do
morgado.

Pensou a infeliz senhora que poderia ainda atalhar o incendio, e mandou
um portador com uma carta á mãe da menina.

Faltaram-lhe as forças para ir pessoalmente.

Chegava o mensageiro a tempo que a menina estava chorando á janella do
seu quarto.

O coração, que é sempre feiticeiro, adivinhou.

O mensageiro, que trazia recommendação, não fez caso.

Sahiu-lhe a menina ao encontro. Pediu-lhe com lagrimas nos olhos e na
voz que lhe entregasse a carta e fosse dizer á morgada que a havia
depositado nas mãos de sua mãe.

--Veja que me perde, podendo salvar-se com uma simples mentira! Se
tivesse uma filha, seria mais clemente.

O mensageiro era pae: entregou-lhe a carta.

A menina leu-a, e cuidou morrer d'afflicção e vergonha.

Dizia a morgada que as senhoras da terra,--as quaes eram amantes de
varios morgados casados,--já não levantariam o olhar, se a encontrassem
nos caminhos, para a amante de seu marido.

Era um modo de dizer que o escandalo tinha estrondeado, e que Jesus
Christo não voltaria mais ao mundo, porque nenhuma das voluntarias
peccadoras se arreceiava de ser a primeira a apedrejar a peccadora incauta.

De feito, Christo ainda não voltou, nem já agora voltará, porque ainda
os vendilhões da honra alheia entram ao templo da familia, e as mulheres
adulteras erguem vozes e pedras contra a que resvalou para o abysmo em
que ellas estão.

A menina tratou de emmassar as cartas do morgado e de metter no seio o
bilhetinho que já tivemos occasião de lêr.

Esperou que fosse noite, e metteu-se a caminho.

Onde ia a pobresinha?

Procurar o morgado ao Porto.

Foi andando, andando, rasgando os pés nas burguas das serras,
rompendo a escuridão, arquejante, timida do menor ruido, resoluta da
coragem que dá o desespero, até que, cerca das onze horas da noite,
cahiu extenuada ao sopé das Victoreiras.

N'este lance entronca a minha primeira carta bastante a explicar o mais
que se passou.

Como se vê, o morgado não estava prevenido da fuga da menina e sob a
afllicção da surpresa escrevera as ameaças da primeira carta que recebi.

A gentil desconhecida, como a principio eu lhe chamava, tornou em si
depois de empregados muitos esforços para reanimal-a. Meu tio padre,
chamado por mim precipitadamente, encarregou-se do piedoso encargo de
recolher a menina em sua casa, e de negociar a sua entrada no convento
de *, onde se enclausurará depois que seja mãe.

O morgado, lendo casualmente no Porto uma das minhas cartas, publicadas
no _Primeiro de Janeiro_, escreveu-me a impensada missiva e logo se deu
pressa em partir, e em me convidar á entrevista que acceitei.

Tomará conta do filho, logo que nasça, e aproveitará decerto esta
tremenda lição.

Ainda agora me não parece dislate repetir a pergunta: Morta ou viva?

Viva para si mesma, e morta para o mundo.

Que desgraça!

Ah! Christo não voltará outra vez; a ter de voltar, já se haveria
amerciado de tantas miserias humanas!


FIM.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Christo não volta - (Resposta ao «Voltareis, ó Christo?» de Camillo Castello-Branco)" ***

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