Home
  By Author [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Title [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Language
all Classics books content using ISYS

Download this book: [ ASCII | HTML | PDF ]

Look for this book on Amazon


We have new books nearly every day.
If you would like a news letter once a week or once a month
fill out this form and we will give you a summary of the books for that week or month by email.

Title: Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III
Author: Camões, Luís Vaz de, 1524-1580
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III" ***


produced from scanned images of public domain material


Notas de transcrição:

O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro
impresso em 1843.

Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns
pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a leitura do texto,
e que por isso não considerámos necessário assinalá-los. Mantivemos
inclusivamente as eventuais incoerências de grafia de algumas palavras, em
particular quanto à acentuação.


      *      *      *      *      *



                          CLASSICOS PORTUGUEZES.

                                 TOMO II.

                                  CAMÕES.

                                    II.



PARIZ.--NA OFFICINA TYPOGRAPHICA DE FAIN E THUNOT,
Rua Racine, 28, junto ao Odeon.



OBRAS COMPLETAS

DE

LUIS DE CAMÕES,

CORRECTAS E EMENDADAS

PELO CUIDADO E DILIGENCIA

DE

J. V. Barreto Feito e J. G. Monteiro.


TOMO TERCEIRO.


LISBOA.

ACHA-SE TAMBEM EM PARIZ,
NA LIVRARIA EUROPEA DE BAUDRY,
3, quai Malaquais, près le pont des Arts.

1843



      *      *      *      *      *

RIMAS.

      *      *      *      *      *


RIMAS.



REDONDILHAS.


    Sôbolos rios que vão
    Por Babylonia, me achei,
    Onde sentado chorei
    As lembranças de Sião,
    E quanto nella passei.
    Alli o rio corrente
    De meus olhos foi manado;
    E tudo bem comparado,
    Babylonia ao mal presente,
    Sião ao tempo passado.

    Alli lembranças contentes
    N'alma se representárão;
    E minhas cousas ausentes
    Se fizerão tão presentes,
    Como se nunca passárão.
    Alli, despois d'acordado,
    Co'o rosto banhado em ágoa,
    Deste sonho imaginado,
    Vi que todo o bem passado
    Não he gôsto, mas he mágoa.

    E vi que todos os danos
    Se causavão das mudanças,
    E as mudanças dos anos;
    Onde vi quantos enganos
    Faz o tempo ás esperanças.
    Alli vi o maior bem
    Quão pouco espaço que dura;
    O mal quão depressa vem;
    E quão triste estado tem
    Quem se fia da ventura.

    Vi aquillo que mais val
    Qu'então s'entende melhor,
    Quando mais perdido for:
    Vi ao bem succeder mal,
    E ao mal muito peor.
    E vi com muito trabalho
    Comprar arrependimento:
    Vi nenhum contentamento;
    E vejo-me a mi, qu'espalho
    Tristes palavras ao vento.

    Bem são rios estas ágoas
    Com que banho este papel:
    Bem parece ser cruel
    Variedade de mágoas,
    E confusão de Babel.
    Como homem, que por exemplo
    Dos trances em que se achou,
    Despois que a guerra deixou,
    Pelas paredes do templo
    Suas armas pendurou:

    Assi, despois qu'assentei
    Que tudo o tempo gastava,
    Da tristeza que tomei,
    Nos salgueiros pendurei
    Os orgãos com que cantava.
    Aquelle instrumento ledo
    Deixei da vida passada,
    Dizendo: Musica amada,
    Deixo-vos neste arvoredo
    Á memoria consagrada.

    Frauta minha, que tangendo
    Os montes fazieis vir
    Par'onde estaveis, correndo;
    E as ágoas, que hião descendo,
    Tornavão logo a subir;
    Jamais vos não ouvirão
    Os tigres, que s'amansavão;
    E as ovelhas, que pastavão,
    Das hervas se fartarão,
    Que por vos ouvir deixavão.

    Ja não fareis docemente
    Em rosas tornar abrolhos
    Na ribeira florecente;
    Nem poreis freio á corrente,
    E mais se for dos meus olhos.
    Não movereis a espessura,
    Nem podereis ja trazer
    Atraz vós a fonte pura;
    Pois não pudestes mover
    Desconcertos da ventura.

    Ficareis offerecida
    Á Fama, que sempre vela,
    Frauta de mi tão querida;
    Porque mudando-se a vida,
    Se mudão os gostos della.
    Acha a tenra mocidade
    Prazeres accommodados;
    E logo a maior idade
    Ja sente por pouquidade
    Aquelles gostos passados.

    Hum gôsto, que hoje s'alcança,
    Á manhãa ja o não vejo:
    Assi nos traz a mudança
    D'esperança em esperança,
    E de desejo em desejo.
    Mas em vida tão escassa
    Qu'esperança será forte?
    Fraqueza da humana sorte,
    Que quanto da vida passa
    Está recitando a morte!

    Mas deixar nesta espessura
    O canto da mocidade:
    Não cuide a gente futura
    Que será obra da idade
    O que he fôrça da ventura.
    Qu'idade, tempo, e espanto
    De ver quão ligeiro passe,
    Nunca em mi puderão tanto,
    Que, postoque deixo o canto,
    A causa delle deixasse.

    Mas em tristezas e nojos,
    Em gôsto e contentamento;
    Por sol, por neve, por vento,
    _Tendré presente á los ojos
    Por quien muero tan contento._
    Orgãos e frauta deixava,
    Despôjo meu tão querido,
    No salgueiro que alli'stava,
    Que para tropheo ficava
    De quem me tinha vencido.

    Mas lembranças da affeição
    Que alli captivo me tinha,
    Me perguntárão então,
    Qu'era da musica minha,
    Que eu cantava em Sião?
    Que foi daquelle cantar,
    Das gentes tão celebrado?
    Porque o deixava de usar,
    Pois sempre ajuda a passar
    Qualquer trabalho passado?

    Canta o caminhante ledo
    No caminho trabalhoso
    Por entre o espêsso arvoredo;
    E de noite o temeroso
    Cantando refreia o medo.
    Canta o preso docemente,
    Os duros grilhões tocando;
    Canta o segador contente;
    E o trabalhador, cantando,
    O trabalho menos sente.

    Eu qu'estas cousas senti
    N'alma de mágoas tão cheia,
    Como dirá, respondi,
    Quem alheio está de si
    Doce canto em terra alheia?
    Como poderá cantar
    Quem em chôro banha o peito?
    Porque, se quem trabalhar
    Canta por menos cansar,
    Eu só descansos engeito.

    Que não parece razão,
    Nem sería cousa idonia,
    Por abrandar a paixão
    Que cantasse em Babylonia
    As cantigas de Sião.
    Que quando a muita graveza
    De saudade quebrante
    Esta vital fortaleza,
    Antes morra de tristeza,
    Que por abrandá-la cante.

    Que se o fino pensamento
    Só na tristeza consiste,
    Não tenho medo ao tormento:
    Que morrer de puro triste,
    Que maior contentamento?
    Nem na frauta cantarei
    O que passo, e passei ja,
    Nem menos o escreverei;
    Porque a penna cansará,
    E eu não descansarei.

    Que se vida tão pequena
    S'accrescenta em terra estranha;
    E se Amor assi o ordena,
    Razão he que canse a penna
    D'escrever pena tamanha.
    Porém, se para assentar
    O que sente o coração,
    A penna ja me cansar,
    Não canse para voar
    A memoria em Sião.

    Terra bem-aventurada,
    Se por algum movimento
    D'alma me fores tirada,
    Minha penna seja dada
    A perpétuo esquecimento.
    A pena deste destêrro,
    Qu'eu mais desejo esculpida
    Em pedra, ou em duro ferro,
    Essa nunca seja ouvida,
    Em castigo de meu êrro.

    E se eu cantar quizer
    Em Babylonia sujeito,
    Hierusalem, sem te ver,
    A voz, quando a mover,
    Se me congele no peito;
    A minha lingua se apegue
    Ás fauces, pois te perdi,
    S'em quanto viver assi
    Houver tempo, em que te negue,
    Ou que m'esqueça de ti.

    Mas ó tu, terra de glória.
    S'eu nunca vi tua essencia,
    Como me lembras na ausencia?
    Não me lembras na memoria,
    Senão na reminiscencia:
    Que a alma he taboa rasa,
    Que com a escrita doutrina
    Celeste tanto imagina,
    Que vôa da propria casa,
    E sobe á patria divina.

    Não he logo a saudade
    Das terras onde nasceo
    A carne, mas he do Ceo,
    Daquella santa Cidade,
    Donde est'alma descendeo.
    E aquella humana figura,
    Que cá me póde alterar,
    Não he quem se ha de buscar;
    He raio da formosura,
    Que só se deve d'amar.

    Que os olhos, e a luz que ateia
    O fogo que cá sujeita,
    Não do sol, nem da candeia,
    He sombra daquella ideia,
    Qu'em Deos está mais perfeita.
    E os que cá me captivárão,
    São poderosos affeitos
    Qu'os corações tẽe sujeitos;
    Sophistas, que m'ensinárão
    Maos caminhos por direitos.

    Destes o mando tyrano
    M'obriga com desatino
    A cantar ao som do dano
    Cantares d'amor profano,
    Por versos d'amor divino.
    Mas eu, lustrado co'o santo
    Raio, na terra de dor,
    De confusões e d'espanto
    Como hei de cantar o canto,
    Que só se deve ao Senhor?

    Tanto póde o beneficio
    Da graça que dá saude,
    Que ordena que a vida mude:
    E o qu'eu tomei por vício,
    Me faz grao para a virtude;
    E faz qu'este natural
    Amor, que tanto se préza,
    Suba da sombra ao real,
    Da particular belleza
    Para a belleza geral.

    Fique logo pendurada
    A frauta com que tangi,
    Ó Hierusalem sagrada,
    E tome a lyra dourada
    Para só cantar de ti;
    Não captivo e ferrolhado
    Na Babylonia infernal,
    Mas dos vicios desatado,
    E cá desta a ti levado,
    Patria minha natural.

    E s'eu mais der a cerviz
    A mundanos accidentes,
    Duros, tyrannos e urgentes,
    Risque-se quanto ja fiz
    Do grão livro dos viventes.
    E, tomando ja na mão
    A lyra santa e capaz
    D'outra mais alta invenção,
    Calle-se esta confusão,
    Cante-se a visão de paz.

    Ouça-me o pastor e o rei,
    Retumbe este accento santo,
    Mova-se no mundo espanto;
    Que do que ja mal cantei
    A palinodia ja canto.
    A vós só me quero ir,
    Senhor, e grão Capitão
    Da alta tôrre de Sião,
    Á qual não posso subir,
    Se me vós não dais a mão.

    No grão dia singular,
    Que na lyra em douto som
    Hierusalem celebrar,
    Lembrae-vos de castigar
    Os ruins filhos de Edom.
    Aquelles que tintos vão
    No pobre sangue innocente,
    Soberbos co'o poder vão,
    Arrazá-los igualmente:
    Conheção que humanos são.

    E aquelle poder tão duro
    Dos affectos com que venho,
    Qu'encendem alma e engenho;
    Que ja m'entrárão o muro
    Do livre arbitrio que tenho;
    Estes, que tão furiosos
    Gritando vem a escalar-me,
    Maos espiritos damnosos,
    Que querem como forçosos
    Do alicerce derribar-me;

    Derribae-os, fiquem sós,
    De fôrças fracos, imbelles;
    Porque não podemos nós,
    Nem com elles ir a vós,
    Nem sem vós tirar-nos delles.
    Não basta minha fraqueza
    Para me dar defensão,
    Se vós, santo Capitão,
    Nesta minha Fortaleza
    Não puzerdes guarnição.

    E tu, ó carne, qu'encantas,
    Filha de Babel tão feia,
    Toda de miseria cheia,
    Que mil vezes te levantas
    Contra quem te senhoreia;
    Beato só póde ser
    Quem co'a ajuda celeste
    Contra ti prevalecer,
    E te vier a fazer
    O mal que lhe tu fizeste:

    Quem com disciplina crua
    Se fere mais que huma vez;
    Cuja alma, de vicios nua,
    Faz nodas na carne sua,
    Que ja a carne n'alma fez.
    E beato quem tomar
    Seus pensamentos recentes,
    E em nascendo os affogar,
    Por não virem a parar
    Em vicios graves e urgentes:

    Quem com elles logo der
    Na pedra do furor santo,
    E batendo os desfizer
    Na Pedra, que veio a ser
    Emfim cabeça do canto:
    Quem logo, quando imagina
    Nos vicios da carne má,
    Os pensamentos declina
    Áquella Carne divina,
    Que na Cruz esteve ja.

    Quem do vil contentamento
    Cá deste mundo visibil,
    Quanto ao homem for possibil,
    Passar logo entendimento
    Para o mundo intelligibil;
    Alli achará alegria
    Em tudo perfeita, e cheia
    De tão suave harmonia,
    Que nem por pouca recreia,
    Nem por sobeja enfastia.

    Alli verá tão profundo
    Mysterio na summa Alteza,
    Que, vencida a natureza,
    Os mores faustos do mundo
    Julgue por maior baixeza.
    Ó tu, divino aposento,
    Minha patria singular,
    Se só com te imaginar,
    Tanto sobe o entendimento,
    Que fara se em ti se achar?

    Ditoso quem se partir
    Para ti, terra excellente,
    Tão justo e tão penitente,
    Que despois de a ti subir,
    Lá descanse eternamente!

      *      *      *      *      *


CARTA A HUMA DAMA.

    Querendo escrever hum dia
    O mal, que tanto estimei;
    Cuidando no que poria,
    Vi Amor que me dizia:
    Escreve, qu'eu notarei.
    E como para se ler
    Não era historia pequena
    A que de mi quiz fazer,
    Das azas tirou a penna
    Com que me fez escrever.

    E, logo como a tirou,
    Me disse: Aviva os espritos;
    Que pois em teu favor sou,
    Esta penna, que te dou,
    Fara voar teus escritos.
    E dando-me a padecer
    Tudo o que quiz que puzesse,
    Pude emfim delle dizer,
    Que me deo com qu'escrevesse
    O que me deo a escrever.

    Eu qu'este engano entendi,
    Disse-lhe: Qu'escreverei?
    Respondeo, dizendo assi:
    Altos effeitos de mi.
    E daquella a quem te dei.
    E ja que te manifesto
    Todas minhas estranhezas,
    Escreve, pois que te prézas,
    Milagres d'hum claro gesto,
    E de quem o vio, tristezas.

    Ah Senhora, em quem se apura
    A fé de meu pensamento!
    Escutae e estae a tento,
    Que com vossa formosura
    Iguala Amor meu tormento.
    E, postoque tão remota
    Estejais de m'escutar
    Por me não remediar,
    Ouvi, que pois Amor nota,
    Milagres se hão de notar.

    Escrevem varios Authores,
    Que junto da clara fonte
    Do Ganges, os moradores
    Vivem do cheiro das flores
    Que nascem naquelle monte.
    Se os sentidos podem dar
    Mantimento ao viver,
    Não he logo d'espantar,
    S'estes vivem de cheirar,
    Que viva eu só de vos ver.

    Huma árvore se conhece,
    Que na geral alegria
    Ella tanto s'entristece,
    Que, como he noite, florece,
    E perde as flores de dia.
    Eu, qu'em ver-vos sinto o preço
    Qu'em vossa vista consiste,
    Em a vendo m'entristeço,
    Porque sei que não mereço
    A glória de ver-me triste.

    Hum Rei de grande poder
    Com veneno foi criado,
    Porque, sendo costumado,
    Não lhe pudesse empecer,
    Se despois lhe fosse dado.
    Eu, que criei de pequena
    A vista a quanto padece,
    Desta sorte m'acontece,
    Que não me faz mal a pena,
    Senão quando me fallece.

    Quem da doença Real
    De longe enfêrmo se sente,
    Por segredo natural
    Fica são vendo somente
    Hum volatil animal.
    Do mal, que Amor em mi cria,
    Quando aquella Phenix vejo,
    São de todo ficaria;
    Mas fica-me hydropesia,
    Que quanto mais, mais desejo.

    Da vibora he verdadeiro,
    Se a consorte vai buscar,
    Qu'em se querendo juntar,
    Deixa a peçonha primeiro,
    Porque lh'impede o gerar.
    Assi quando m'apresento
    Á vossa vista inhumana,
    A peçonha do tormento
    Deixo á parte, porque dana
    Tamanho contentamento.

    Querendo Amor sustentar-se,
    Fez huma vontade esquiva
    D'huma estatua namorar-se:
    Despois, por manifestar-se,
    Converteo-a em mulher viva.
    De quem m'irei eu queixando,
    Ou quem direi que m'engana
    Se vou seguindo e buscando
    Huma imagem, que d'humana
    Em pedra se vai tornando?

    D'huma fonte se sabía,
    Da qual certo se provava
    Que quem sôbre ella jurava,
    Se falsidade dizia,
    Dos olhos logo cegava.
    Vós, que minha liberdade,
    Senhora, tyrannizais,
    Injustamente mandais,
    Quando vos fallo verdade,
    Que vos não possa ver mais.

    Da palma s'escreve e canta
    Ser tão dura e tão forçosa,
    Que pêzo não a quebranta,
    Mas antes, de presunçosa,
    Com elle mais se levanta.
    Co'o pêzo do mal que dais,
    A constancia qu'em mi vejo,
    Não somente ma dobrais,
    Mas dobra-se meu desejo,
    Com qu'então vos quero mais.

    Se alguem os olhos quizer
    Ás andorinhas quebrar,
    Logo a mãe, sem se deter,
    Huma herva lhe vai buscar
    Que lhes faz outros nascer.
    Eu que os olhos tenho attento
    Nos vossos, qu'estrellas são,
    Cegão-se os do entendimento,
    Mas nascem-me os da razão
    De folgar com meu tormento.

    Lá para onde o sol sahe,
    Descobrimos, navegando,
    Hum novo rio admirando,
    Que o lenho que nelle cahe,
    Em pedra se vai tornando.
    Não s'espantem disto as gentes;
    Mais razão será qu'espante
    Hum coração tão possante,
    Que com lagrimas ardentes
    Se converte em diamante.

    Póde hum mudo nadador
    Na linha e cana influir
    Tão venenoso vigor,
    Que faz mais não se bulir
    O braço do pescador.
    Se começão de beber
    Deste veneno excellente
    Meus olhos, sem se deter,
    Não se sabem mais mover
    A nada que se apresente.

    Isto são claros sinais
    Do muito qu'em mi podeis:
    Nem podeis desejar mais;
    Que se ver-vos desejais,
    Em mi claro vos vereis.
    E quereis ver a que fim
    Em mi tanto bem se pôs?
    Porque quiz Amor assim,
    Que por vos verdes a vós,
    Tambem me visseis a mim.

    Dos males que m'ordenais,
    Qu'inda tenho por pequenos,
    Sabei, se mos escutais,
    Que ja não sei dizer mais,
    Nem vós podeis saber menos.
    Mas ja que a tanto tormento
    Não se acha quem resista,
    Eu, Senhora, me contento
    De terdes meu soffrimento
    Por alvo de vossa vista.

    Quantos contrarios consente
    Amor, por mais padecer!
    Que aquella vista excellente,
    Que me faz viver contente,
    Me faça tão triste ser!
    Mas dou este entendimento
    Ao mal, que tanto m'offende,
    Como na vela s'entende,
    Que se se apaga co'o vento,
    Co'o mesmo vento se accende.

    Exprimentou-se algum'hora
    D'ave, que chamão Camão,
    Que se da casa, onde mora,
    Vê adúltera senhora,
    Morre de pura paixão.
    A dor he tão sem medida,
    Que remedio lhe não val.
    Mas oh ditoso animal,
    Que póde perder a vida,
    Quando vê tamanho mal!

    Nos gôstos de vos querer
    Estava agora enlevado,
    Se não fôra salteado
    Das lembranças de temer
    Ser por outrem desamado.
    Estas suspeitas tão frias,
    Com que o pensamento sonha,
    São assi como as harpias,
    Que as mais doces iguarias
    Vão converter em peçonha.

    Faz-me este mal infinito
    Não poder ja mais dizer,
    Por não vir a corromper
    Os gostos que tenho escrito,
    Co'os males qu'hei d'escrever.
    Não quero que s'apregôe
    Mal tanto para encobrir,
    Porque em quanto aqui s'ouvir
    Nenhuma outra cousa sôe,
    Que a glória de vos servir.

      *      *      *      *      *


Á MESMA.

    Dama d'estranho primor,
    Se vos for
    Pezada minha firmeza,
    Olhae não me deis tristeza,
    Porque a converto em amor.
    E se cuidais
    De me matar, quando usais
    D'esquivança,
    Irei tomar por vingança
    Amar-vos cada vez mais.

    Porém vosso pensamento,
    Como isento,
    Seguirá sua tenção,
    Crendo qu'em tanta affeição
    Não haja accrescentamento.
    Não creais
    Que desta arte vos façais
    Invencibil;
    Que Amor sôbre o impossibil
    Amostra que póde mais.

    Mas ja da tenção que sigo,
    Me desdigo;
    Que se ha tanto poder nelle,
    Tambem vós podeis mais qu'elle
    Neste mal que usais comigo.
    Mas se for
    O vosso poder maior
    Entre nós,
    Quem poderá mais que vós,
    Se vós podeis mais que Amor?

    Despois que, Dama, vos vi,
    Entendi,
    Que perdêra Amor seu preço;
    Pois o favor que lh'eu peço,
    Vos pede elle para si.
    Nem duvido
    Que não póde, de sentido,
    Resistir;
    Pois em vez de vos ferir,
    Ficou de vos ver ferido.

    Mas pois vossa vista he tal
    Em meu mal,
    Que posso de vós querer?
    Que mal poderei valer,
    Onde o mesmo Amor não val.
    Se attentar,
    Nenhum bem posso esperar:
    E oxalá
    Que vos alembrasse ja,
    Sequer para me matar.

    Mas nem com isto creais
    Que façais
    Meus serviços mais pequenos;
    Porqu'eu, quando espero menos,
    Sabei qu'então quero mais.
    Nada espero;
    Mas de mi crede este fero,
    Qu'em ser vosso,
    Vos quero tudo o que posso,
    E não posso quanto quero.

    Só por esta phantasia
    Merecia
    De meus males algum fruito;
    E não era certo muito
    Para o muito que queria.
    De maneira,
    Que não he, na derradeira,
    Grande espanto,
    Que quem, Dama, vos quer tanto,
    Que outro tanto de vós queira.

      *      *      *      *      *


A HUMAS SUSPEITAS.

    Suspeitas, que me quereis?
    Qu'eu vos quero dar lugar
    Que de certas me mateis,
    Se a causa, de que nasceis,
    Vós quizesseis confessar.
    Que de não lhe achar desculpa,
    A grande mágoa passada
    Me tẽe a alma tão cansada,
    Que se me confessa a culpa,
    Te-la-hei por desculpada.

    Ora vêde que perigos
    Tẽe cercado o coração,
    Que no meio da oppressão
    A seus proprios inimigos
    Vai pedir a defensão!
    Que, suspeitas, eu bem sei,
    Como se claro vos visse,
    Que he certo o que ja cuidei;
    Que nunca mal suspeitei,
    Que certo me não sahisse.

    Mas queria esta certeza
    Daquella que me atormenta;
    Porque em tamanha estreiteza
    Ver que disso se contenta,
    He descanso da tristeza.
    Porque se esta só verdade
    Me confessa limpa e nua
    De cautela e falsidade,
    Não póde a minha vontade
    Desconforme ser da sua.

    Por segredo namorado
    He certo estar conhecido
    Que o mal de ser engeitado
    Mais atormenta sabido
    Mil vezes, que suspeitado.
    Mas eu só, em quem se ordena
    Novo modo de querella,
    De medo da dor pequena,
    Venho a achar na maior pena
    O refrigerio para ella.

    Ja nas iras m'inflammei,
    Nas vinganças, nos furores,
    Que ja doudo imaginei;
    E ja mais doudo jurei
    De arrancar d'alma os amores.
    Ja determinei mudar-me
    Para outra parte com ira;
    Despois vim a concertar-me
    Que era bom certificar-me
    No que mostrava a mentira.

    Mas despois ja de cansadas
    As furias do imaginar,
    Vinha emfim a rebentar
    Em lagrimas magoadas,
    E bem para magoar.
    E deixando-se vencer
    Os meus fingidos enganos
    De tão claros desenganos,
    Não posso menos fazer,
    Que contentar-me co'os danos.

    E pedir que me tirassem
    Este mal de suspeitar
    Que me vejo atormentar,
    Indaque me confessassem
    Quanto me póde matar.
    Olhae bem se me trazeis,
    Senhora, pôsto no fim;
    Pois neste estado a que vim,
    Para que vós confesseis,
    Se dão os tratos a mim.

    Mas para que tudo possa
    Amor, que tudo encaminha,
    Tal justiça lhe convinha;
    Porque da culpa, qu'he vossa,
    Venha a ser a morte minha.
    Justiça tão mal olhada
    Olhae com que côr se doura,
    Que quero, ao fim da jornada,
    Que vós sejais confessada,
    Para qu'eu seja o que moura!

    Pois confessae-vos jagora,
    Indaque tenho temor
    Que nem nesta última hora
    Me ha de perdoar Amor
    Vossos peccados, Senhora.
    E assi vou desesperado,
    Porque estes são os costumes
    D'amor que he mal empregado;
    Do qual vou ja condemnado
    Ao inferno de ciumes.

      *      *      *      *      *


LABYRINTHO, QUEIXANDO-SE DO MUNDO.[1]

    Corre sem vela e sem leme
    O tempo desordenado,
    D'hum grande vento levado:
    O que perigo não teme,
    He de pouco exprimentado.
    As redeas trazem na mão
    Os que redeas não tiverão:
    Vendo quanto mal fizerão
    A cobiça e ambição,
    Disfarçados se acolhêrão.

    A nao, que se vai perder,
    Destrue mil esperanças:
    Vejo o mao que vem a ter;
    Vejo perigos correr
    Quem não cuida que ha mudanças.
    Os que nunca em sella andárão,
    Na sella postos se vem:
    De fazer mal não deixárão;
    De demonio hábito tem
    Os que o justo profanárão.

    Que poderá vir a ser
    O mal nunca refreado?
    Anda, por certo, enganado
    Aquelle que quer valer,
    Levando o caminho errado.
    He para os bons confusão,
    Ver que os maos prevalecêrão;
    Que, pôsto se detiverão
    Com esta simulação,
    Sempre castigos tiverão:

    Não porque governe o leme
    Em mar envolto e turbado,
    Que tẽe seu rumo mudado,
    Se perece grita e geme
    Em tempo desordenado.
    Terem justo galardão,
    E dor dos que merecêrão,
    Sempre castigos tiverão
    Sem nenhuma redempção,
    Postoque se detiverão.

    Na tormenta, se vier,
    Desespere na bonança,
    Quem manhas não sabe ter:
    Sem que lhe valha gemer,
    Verá falsar a balança.
    Os que nunca trabalhárão,
    Tendo o que lhe não convem,
    Se ao innocente enganárão,
    Perderão o eterno bem,
    Se do mal não s'apartárão.

[1] Este Labyrintho, onde ninguem se entende, não parece obra do poeta.
Nelle não fazemos emenda alguma, porque a unica judiciosa seria
passar-lhe um traço por cima: o que não ousamos fazer por andar em
todas as edições.

                                               _Nota dos editores._

      *      *      *      *      *


CONVITE QUE FEZ NA INDIA A CERTOS FIDALGOS.

_A primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataide, e dizia:_

    Se não quereis padecer
    Huma, ou duas horas tristes,
    Sabeis que haveis de fazer?
    Volveros por dó venistes,
    Que aqui não ha que comer.
    E, postoque aqui leais
    Trovinha que vos enleia,
    Corrido não estejais;
    Porque por mais que corrais,
    Não heis de alcançar a ceia.

_A segunda a D. Francisco de Almeida._

    Heliogabalo zombava
    Das pessoas convidadas;
    E de sorte as enganava,
    Que as iguarias que dava,
    Vinhão nos pratos pintadas.
    Não temais tal travessura,
    Pois ja não póde ser nova;
    Porque a cêa está segura
    De vos não vir em pintura;
    Mas ha de vir toda em trova.

_A terceira a Heitor da Silveira._

    Cêa não a papareis:
    Com tudo, porque não minta,
    Para beber achareis,
    Não Caparica, mas tinta,
    E mil cousas que papeis.
    E vós torceis o focinho
    Com esta amphibologia?
    Pois sabei que a Poesia
    Vos dá aqui tinta por vinho,
    E papéis por iguaria.

_A quarta a João Lopes Leitão, a quem o Author fez huns versos, que vão
adiante, sôbre huma peça de cacha, que deo a huma Dama._

    Porque os que vos convidárão
    Vosso estomago não danem,
    Por justa causa ordenárão,
    Se trovas vos enganárão,
    Que trovas vos desenganem.
    Vós tereis isto por tacha,
    Converter tudo em trovar;
    Pois se me virdes zombar,
    Não cuideis, Senhor, que he cacha,
    Que aqui não ha que cachar.

_Responde João Lopes._

    Pezar ora não de são,
    Eu juro pelo Ceo bento,
    Se de comer não me dão,
    Qu'eu não sou camaleão,
    Que m'hei de manter do vento.

_Responde o Author._

    Senhor, não vos agasteis,
    Porque Deos vos proverá;
    E se mais saber quereis,
    Nas costas deste lereis
    As iguarias que ha.

_Virado o papel, dizia assi:_

    Tendes nem migalha assada;
    Cousa nenhuma de môlho;
    E nada feito em empada;
    E vento de tigelada;
    Picar no dente em remôlho:
    De fumo tendes taçalhos;
    Ave da pena que sente
    Quem da fome anda doente;
    Bocejar de vinho e d'alhos;
    Manjar em branco excellente.

_A derradeira a Francisco de Mello._

    D'hum homem, que teve o scetro
    Da vêa maravilhosa,
    Não foi cousa duvidosa,
    Que se lhe tornava em metro
    O qu'hia a dizer em prosa.
    De mi vos quero affirmar
    Que faça cousas mais novas,
    De quanto podeis cuidar;
    E esta cêa, que he manjar,
    Vos faça na boca em trovas.

      *      *      *      *      *


NA INDIA AO VISO-REI, COM O MOTE ADIANTE.

    Conde, cujo illustre peito
    Merece nome de Rei,
    Do qual muito certo sei
    Que lhe fica sendo estreito
    O cargo de Viso-Rei;
    Servirdes-vos d'occupar-me
    Tanto contra meu Planeta,
    Não foi senão azas dar-me,
    Com as quaes vou a queimar-me,
    Como o faz a borboleta.

    E s'eu a penna tomar,
    Que tão mal cortada tenho,
    Será para celebrar
    Vosso valor singular
    Dino de mais alto engenho.
    Que se o meu vos celebrasse,
    Necessario me sería
    Que os olhos d'aguia tomasse,
    Só para que não cegasse
    No sol de vossa valia.

    Vossos feitos sublimados
    Nas armas, dignos de gloria,
    São no mundo tão soados,
    Qu'em vós de vossos passados
    Se resuscita a memoria.
    Pois aquelle ânimo estranho,
    Prompto para todo effeito,
    Espanta todo o conceito:
    Como coração tamanho
    Vos póde caber no peito?

    A clemencia, que asserena
    Coração tão singular,
    S'eu nisso puzesse a penna,
    Sería encerrar o mar
    Em cova muito pequena.
    Bem basta, Senhor, que agora
    Vos sirvais de me occupar;
    Que assi fareis aparar
    A penna, com que algum'hora
    Vos vereis ao ceo voar.

    Assi vos irei louvando,
    Vós a mi do chão erguendo,
    Ambos o mundo espantando;
    Vós com a espada cortando,
    Eu com a penna escrevendo.

_Mote que lhe mandou o Viso-Rei._

    Muito sou meu inimigo,
    Pois que não tiro de mi
    Cuidados, com que nasci,
    Que põe a vida em perigo.
    Oxalá que fôra assi!

_Volta._

    Viver eu, sendo mortal,
    De cuidados rodeado,
    Parece meu natural;
    Que a peçonha não faz mal
    A quem foi nella criado.
    Tanto sou meu inimigo,
    Que por não tirar de mi
    Cuidados, com que nasci,
    Porei a vida em perigo.
    Oxalá que fôra assi!

    Tanto vim a accrescentar
    Cuidados, que nunca amansão
    Em quanto a vida durar,
    Que canso ja de cuidar
    Como cuidados não cansão.
    S'estes cuidados, que digo,
    Dessem fim a mi e a si,
    Farião pazes comigo;
    Que pôr a vida em perigo,
    O bom fôra para mi.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, QUE LHE MANDOU PEDIR ALGUMAS OBRAS SUAS.

    Senhora, s'eu alcançasse
    No tempo que ler quereis,
    Que a dita dos meus papéis
    Pola minha se trocasse;
    E por ver
    Tudo o que posso escrever
    Em mais breve relação,
    Indo eu onde elles vão,
    Por mi só quizesseis ler;

    Despois de ver hum cuidado
    Tão contente de seu mal,
    Verieis o natural
    Do que aqui vêdes pintado;
    Que o perfeito
    Amor, de que sou sogeito,
    Vereis aspero e cruel,
    Aqui com tinta e papel,
    Em mi com sangue no peito.

    Que hum continuo imaginar
    Naquillo que Amor ordena,
    He pena, que emfim por penna
    Se não póde declarar;
    Que se eu levo
    Dentro n'alma quanto devo
    De trasladar em papéis,
    Vêde que melhor lereis,
    Se a mi, se aquillo qu'escrevo?

      *      *      *      *      *


A HUMA SENHORA, A QUEM DERÃO HUM PEDAÇO DE SITIM AMARELLO.

    Se derivais da verdade
    Esta palavra _Sitim_,
    Achareis sem falsidade,
    Que apos o _si_ tẽe o _tim_,
    Que tine em toda a Cidade.
    Bem vejo que m'entendeis;
    Mas porque não falle em vão,
    Sabei que a esta Nação
    Tanto que o _si_ concedeis,
    O _tim_ logo está na mão.

    E quem da fama s'arreda,
    Que tudo vai descobrir,
    Deve sempre de fugir
    De sitins, porque da seda
    Seu natural he rugir.
    Mas panno fino e delgado,
    Qual a raxa e outros assi,
    Dura, aquenta, e he callado,
    Amoroso, e dá de si
    Mais que _sitim_, nem brocado.

    Mas estes, que sedas são
    Com quem s'enganão mil Damas,
    Mais vos tomão, do que dão;
    Promettem, mas não darão,
    Senão nodoas para as famas.
    E se não me quereis crer,
    Ou tomais outro caminho,
    Por exemplo o podeis ver,
    Quando lá virdes arder
    A casa d'algum vizinho.

    Oh feminina simpreza,
    Donde estão culpas a pares,
    Que por hum Dom de nobreza,
    Deixão dões da natureza,
    Mais altos e singulares!
    Hum Dom, que anda enxertado
    No nome, e nas obras não.
    Fallo como exprimentado;
    Que _sitim_ desta feição
    Eu tenho muito cortado.

    Dizem-me qu'era amarello;
    E quem assi o quiz dar,
    Só para me Deos vingar,
    Se vem á mão amarê-lo,
    O qu'eu não posso cuidar.
    Porque quem sabe viver
    Por estas artes manhosas,
    (Isto bem póde não ser)
    Dá a meninas formosas,
    Somente polas fazer.

    Quem vos isto diz, Senhora,
    Servio nas vossas armadas
    Muito, mas anda ja fóra;
    E póde ser qu'inda agora
    Traz abertas as fréchadas.
    E, postoque desfavores
    O tirão de servidor,
    Quer-vos ventura melhor;
    Que dos antigos amores
    Inda lhe fica este amor.

      *      *      *      *      *


A HUMA SENHORA REZANDO POR HUMAS CONTAS.

    Peço-vos que me digais
    As orações que rezastes,
    Se são polos que matastes,
    Se por vós que assi matais?
    Se são por vós, são perdidas;
    Que qual será a oração,
    Que seja satisfação,
    Senhora, de tantas vidas?

    Que se vêdes quantos vem
    A só vida vos pedir,
    Como vos ha Deos de ouvir,
    Se vós não ouvis ninguem?
    Não podeis ser perdoada
    Com mãos a matar tão prontas,
    Que se n'huma trazeis contas,
    Na outra trazeis espada.

    Se dizeis que encommendando
    Os que matastes andais;
    Se rezais por quem matais,
    Para que matais rezando?
    Que se na fôrça do orar
    Levantais as mãos aos Ceos,
    Não as ergueis para Deos,
    Erguei-las para matar.

    E quando os olhos cerrais,
    Toda enlevada na fé,
    Cerrão-se os de quem vos vê,
    Para nunca verem mais.
    Pois se assi forem tratados
    Os que vos vem quando orais,
    Essas horas que rezais,
    São as horas dos finados.

    Pois logo, se sois servida
    Que tantos mortos não sejão,
    Não rezeis onde vos vejão,
    Ou vêde para dar vida.
    Ou se quereis escusar
    Estes males que causastes,
    Resuscitae quem matastes,
    Não tereis por quem rezar.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA QUE LHE DEO HUMA PENNA.

    Se n'alma e no pensamento
    Por vosso me manifesto,
    Não me peza do que sento;
    Que se não soffrer tormento,
    Faço offensa a vosso gesto.
    E, pois quanto Amor ordena,
    E quanto est'alma deseja,
    Tudo á morte me condena,
    Não quero senão que seja
    Tudo pena, pena, pena.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA QUE LHE CHAMOU CARA SEM OLHOS.

    Sem olhos vi o mal claro,
    Que dos olhos se seguio:
    Pois cara sem olhos vio
    Olhos, que lhe custão caro.
    D'olhos não faço menção,
    Pois quereis que olhos não sejão;
    Vendo-vos, olhos sobejão,
    Não vos vendo, olhos não são.

      *      *      *      *      *


DISPARATES NA INDIA.

    Este mundo es el camino
    Adó hay ducientos váos,
    Ou por onde bons e maos,
    Todos somos del merino.
    Mas os maos são de teor,
    Que desque mudão a côr,
    Chamão logo a ElRei compadre;
    E emfim dejadlos, mi madre,
    Que sempre tẽe hum sabor
    De quem torto nasce, tarde s'endireita.

    Deixae a hum que se abone:
    Diz logo de muito sengo,
    Villas y castillos tengo,
    Todos á mi mandar sone.
    Então eu, qu'estou de môlho,
    Com a lagrima no ôlho,
    Polo virar do envés,
    Digo-lhe: _tu ex illis es_,
    E por isso não te ólho;
    Pois honra e proveito não cabem n'hum saco.

    Vereis huns, que no seu seio
    Cuidão que trazem París,
    E querem com dous ceitís,
    Fender anca pelo meio.
    Vereis mancebindo de arte,
    Com espada em talabarte:
    Não ha mais Italiano.
    A este direis: Meu mano,
    Vós sois galante que farte;
    Mas pan y vino anda el camino, que no mozo garrido.

    Outros em cada theatro,
    Por officio lhe ouvirês
    Que se matarán con tres,
    Y lo mismo haran con cuatro.
    Prezão-se de dar respostas,
    Com palavras bem compostas;
    Mas se lhe meteis a mão,
    Na paz mostrão coração,
    Na guerra mostrão as costas;
    Porque aqui torce a porca o rabo.

    Outros vejo por ahi,
    A que se acha mal o fundo,
    Que andão emendando o mundo,
    E não se emendão a si.
    Estes respondem a quem
    Delles não entende bem
    El dolor que está secreto;
    Mas porém quem for discreto,
    Responder-lhe-ha muito bem:
    Assi entrou o mundo, assi ha de sahir.

    Achareis rafeiro velho,
    Que se quer vender por galgo:
    Diz que o dinheiro he fidalgo,
    Que o sangue todo he vermelho.
    Se elle mais alto o dissera,
    Este pelote puzera:
    Que o seu eco lhe responda;
    Que su padre era de Ronda,
    Y su madre de Antequera,
    E quer cobrir o ceo co'huma joeira.

    Fraldas largas, grave aspeito,
    Para Senador Romano.
    Oh que grandissimo engano!
    Que Momo lhe abrisse o peito!
    Consciencia, que sobeja,
    Siso, com que o mundo reja,
    Mansidão outro que si;
    Mas que lobo está em ti,
    Metido em pelle de oveja!
    E sabem-no poucos.

    Guardae-vos de huns meus Senhores,
    Que ainda comprão e vendem;
    Huns, qu'he certo, que descendem
    Da geração de pastores:
    Mostrão-se-vos bons amigos;
    Mas se vos vem em perigos,
    Escarrão-vos nas paredes;
    Que de fóra dormiredes,
    Irmão, que he tempo de figos;
    Porque de rabo de porco nunca bom virote.

    Que direis d'huns, que as entranhas
    Lh'estão ardendo em cobiça,
    E se tẽe mando, a justiça
    Fazem de teas de aranhas?
    Com suas hypocrisias,
    Que são de vossas espias:
    Para os pequenos huns Neros,
    Para os grandes tudo feros.
    Pois tu, parvo, não sabías,
    Que lá vão leis, onde querem cruzados?

    Mas tornando a huns enfadonhos,
    Cujas cousas são notorias;
    Huns, que contão mil histórias
    Mais desmanchadas que sonhos;
    Huns mais parvos que zamboas,
    Qu'estudão palavras boas,
    A que ignorancia os atiça:
    Estes paguem por justiça,
    Que tẽe morto mil pessoas,
    Por vida de quanto quero.

    Adonde tienen las mentes
    Huns secretos trovadores,
    Que fazem cartas d'amores,
    De que ficão mui contentes?
    Não querem sahir á praça;
    Trazem trova por negaça;
    E se lha gabais, qu'he boa,
    Diz qu'he de certa pessoa.
    Ora que quereis que faça,
    Senão ir-me por esse mundo?

    Ó tu, como me atarracas,
    Escudeiro de Solia,
    Com bocaes de fidalguia,
    Trazido quasi com vacas;
    Importuno a importunar,
    Morto por desenterrar
    Parentes, que cheirão ja!
    Voto a tal, que me fara
    Hum destes nunca fallar
    Mais com viva alma.

    Huns, que fallão muito, vi,
    De que quizera fugir;
    Huns que, emfim, sem se sentir,
    Andão fallando entre si;
    Porfiosos sem razão;
    E desque tomão a mão,
    Fallão sem necessidade;
    E se algum'hora he verdade,
    Deve ser na confissão;
    Porque quem não mente... Ja m'entendeis.

    Oh vós, quem quer que me lerdes,
    Qu'haveis de ser avisado,
    Que dizeis ao namorado
    Que caça vento com redes?
    Jura por vida da Dama;
    Falla comsigo na cama;
    Passêa de noite e escarra;
    Por falsete na guitarra
    Põe sempre: Viva que ama,
    Porque calça a seu proposito.

    Mas deixemos, se quizerdes,
    Por hum pouco as travessuras,
    Porqu'entre quatro maduras
    Leveis tambem cinco verdes.
    Deitemos-nos mais ao mar;
    E se algum se arrecear,
    Passe tres ou quatro trovas.
    E vós tomais côres novas?
    Mas não he para espantar;
    Que quem porcos ha menos,
    Em cada mouta lhe roncão.

    Ó vós, que sois Secretarios
    Das consciencias Reais,
    E que entre os homens estais
    Por Senhores ordinarios;
    Porque não pondes hum freio
    Ao roubar, que vai sem meio,
    Debaixo de bom governo?
    Pois hum pedaço de inferno
    Por pouco dinheiro alheio
    Se vende a Mouro e a Judeo.

    Porque a mente, affeiçoada
    Sempre á Real dignidade,
    Vos faz julgar por bondade
    A malicia desculpada.
    Move a presença Real
    Huma affeição natural,
    Que logo inclina ao Juiz
    A seu favor: e não diz
    Hum rifão muito geral,
    Que o Abbade donde canta, dahi janta?

    E vós bailais a esse som:
    Por isso, gentís pastores,
    Vos chama a vós mercadores
    Hum que só foi pastor bom.

      *      *      *      *      *


A JOÃO LOPES LEITÃO, SÔBRE HUMA PEÇA DE CACHA QUE MANDOU
A HUMA DAMA, QUE SE LHE FAZIA DONZELLA.

_Mote._

    Se vossa Dama vos dá
    Tudo quanto vós quizestes,
    Dizei-me: p'ra que lhe déstes
    O que vos ella fez ja?

_Volta._

    Sendo os restos envidados,
    E vós de cachas mil contos
    Sabeis com quão poucos pontos,
    Que lhos achastes quebrados;
    Se o que tẽe, isso vos dá,
    Vós mui bem lho merecestes,
    Porque se a cacha lhe déstes
    Tinha-vo-la feita ja.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Menina formosa e crua,
    Bem sei eu
    Quem deixará de ser seu,
    Se vós quizereis ser sua.

_Voltas._

    Menina mais que na idade,
    Se para me querer bem
    Vos não vejo ter vontade,
    He porque outrem vo-la tem;
    Tẽe-vo-la, e faz-vo-la crua.
    Porém eu
    Ja tomára não ser meu,
    Se vós não foreis tão sua.

    Nos olhos, e na feição
    Vos vi, quando vos olhava,
    Tanta graça, que vos dava
    De graça este coração:
    Não o quizestes de crua,
    Por ser meu:
    Se outrem vos dera o seu,
    Póde ser foreis mais sua.

    Menina, tende maneira,
    Que ainda não venha a ser,
    Pois não quereis quem vos quer,
    Que queirais quem vos não queira.
    Olhae não me sejais crua,
    Que pois eu
    Quero ser vosso, e não meu,
    Sêde vós minha, e não sua.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA DOENTE

_Mote._

    Da doença, em que ora ardeis,
    Eu fôra vossa mézinha
    Só com vós serdes a minha.

_Voltas._

    He muito para notar
    Cura tão bem acertada,
    Que podereis ser curada
    Somente com me curar.
    Se quereis, Dama, trocar,
    Ambos temos a mézinha,
    Eu a vossa, e vós a minha.

    Olhae, que não quer Amor,
    (Porque fiquemos iguais)
    Pois meu ardor não curais,
    Que se cure vosso ardor.
    Eu cá sinto vossa dor;
    E se vós sentis a minha,
    Dae e tomae a mézinha.

      *      *      *      *      *


OUTRO

    Deo, Senhora, por sentença
    Amor, que fosseis doente,
    Para fazerdes á gente
    Doce e formosa a doença.

_Voltas._

    Não sabendo Amor curar,
    Foi a doença fazer
    Formosa para se ver,
    Doce para se passar.
    Então vendo a differença
    Que ha de vós a toda a gente,
    Mandou, que fôsseis doente,
    Para glória da doença.

    E digo-vos de verdade,
    Que a saude anda invejosa,
    Por ver estar tão formosa
    Em vós essa enfermidade.
    Não façais logo detença,
    Senhora, em estar doente,
    Porque adoecerá a gente,
    Com desejos da doença.

    Qu'eu por ter, formosa Dama,
    A doença, qu'em vós vejo,
    Vos confesso, que desejo
    De cahir comvosco em cama.
    Se consentis, que me vença
    Deste mal, não houve gente
    Da saude tão contente,
    Como eu serei da doença.

      *      *      *      *      *


AO MESMO

    Olhae que dura sentença
    Foi amor dar contra mi!
    Que porqu'em vós me perdi,
    Em vós me busque a doença.
    Claro está,
    Que em vós só me achará;
    Qu'em mi, se me vem buscar,
    Não poderá mais achar,
    Que a fórma do que foi ja.

    Que s'em vós Amor se pôs,
    Senhora, he forçado assi,
    Que o mal, que me busca a mi,
    Que vos faça mal a vós.
    Sem mentir,
    Amor me quiz destruir
    Por modo nunca cuidado,
    Pois ha de ser ja forçado
    Pezar-vos de vos servir.

    Mas sois tão desconhecida,
    E são meus males de sorte,
    Que vos ameaça a morte,
    Porque me negais a vida.
    Se por boa
    Tal justiça se pregoa;
    Quando desta sorte for,
    Havei vós perdão de Amor,
    Que a parte ja vos perdoa.

    Mas o que mais temo, emfim,
    He que nesta differença,
    Que se não torne a doença,
    Se me não tornais a mim.
    De verdade,
    Que ja vossa humanidade
    De que se queixe não tem;
    Pois para as almas tambem
    Fez Amor enfermidade.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA VESTIDA DE DÓ.

_Mote._

    De atormentado e perdido,
    Ja vos não peço, senão
    Que tenhais no coração
    O que tendes no vestido.

_Volta._

    Se de dó vestida andais
    Por quem ja vida não tem
    Porque não o haveis de quem
    Vós tantas vezes matais?
    Que brado sem ser ouvido,
    E nunca vejo senão
    Cruezas no coração,
    E grande dó no vestido.

      *      *      *      *      *


A DONA GUIOMAR DE BLASFÉ, QUEIMANDO-SE COM HUMA VÉLA NO ROSTO.

_Mote._

    Amor, que todos offende,
    Teve, Senhora, por gôsto,
    Que sentisse o vosso rosto
    O que nas almas accende.

_Volta._

    Aquelle rosto que traz
    O mundo todo abrazado,
    Se foi da flamma tocado,
    Foi porque sinta o que faz.
    Bem sei que Amor se vos rende;
    Porém o seu presupposto
    Foi sentir o vosso rosto
    O que nas almas accende.

      *      *      *      *      *


A HUMA MULHER, AÇOUTADA POR HUM HOMEM, QUE CHAMAVÃO QUARESMA.

_Mote._

    Não estejais aggravada,
    Senão se for de vós mesma;
    Porqu'a mulher, que he errada,
    Com razão pela Quaresma
    Deve ser disciplinada.

_Voltas._

    Quererdes profano amor
    Em Quaresma, he consciencia:
    Açoutes e penitencia
    Vos está muito melhor.
    Não fiqueis disto affrontada,
    Pois a culpa he vossa mesma;
    Que mulher, que he tão malvada,
    He bem que pela Quaresma
    Seja bem disciplinada.

    Se a penitencia vos val,
    Mui bem açoutada estais;
    Pois por Quaresma pagais
    Vossos vicios do carnal.
    Não torneis a ser errada,
    Nem condemneis a vós mesma,
    Pois estais ja emendada;
    E não sereis por Quaresma
    Outra vez disciplinada.

      *      *      *      *      *


A HUM FIDALGO, QUE LHE TARDAVA COM HUMA CAMISA, QUE LHE PROMETTEO.

    Quem no mundo quizer ser
    Havido por singular,
    Para mais s'engrandecer,
    Ha de trazer sempre o dar
    Nas ancas do prometter.
    E ja que vossa mercê,
    Largueza tẽe por divisa,
    Como o mundo todo vê,
    Ha mister que tanto dê,
    Que venha a dar a camisa.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, QUE LHE CHAMOU DIABO, POR NOME FOÃ DOS ANJOS

_Mote._

    Senhora, pois me chamais
    Tão sem razão tão mão nome,
    Inda o diabo vos tome.

_Voltas._

    Quem quer que vio, ou que leo,
    Terá por novo e moderno,
    Ter quem vive no inferno,
    O pensamento no ceo.
    Mas se a vós vos pareceo,
    Que m'estava bem tal nome,
    Esse diabo vos tome.

    Perdido mais que ninguem
    Confesso, Senhora, ser;
    Mas o diabo não quer
    Aos Anjos tamanho bem.
    Pois logo não me convem,
    Ou se me convem tal nome,
    Será para que vos tome.

    Se vos benzeis com cautella,
    Como de Anjo, e não de luz,
    Mal póde fugir da Cruz,
    Quem vós tendes pôsto nella.
    Mas ja que foi minha estrella
    Ser diabo, e ter tal nome,
    Guardae-vos, que vos não tome.

    Ja que chegais tanto ao cabo,
    Com as mãos, postas aos ceos
    Vou sempre pedindo a Deos,
    Que vos leve este diabo.
    Eu, Senhora, não me gabo;
    Mas pois que me dais tal nome,
    Tomo-o, para que vos tome.

      *      *      *      *      *


A HUM AMIGO, QUE NÃO PODIA ENCONTRAR.

_Mote._

    Qual terá culpa de nós
    Neste mal, que todo he meu?
    Quando vindes, não vou eu,
    Quando vou, não vindes vós.

_Volta._

    Reinando Amor em dous peitos,
    Tece tantas falsidades,
    Que de conformes vontades
    Faz desconformes effeitos.
    Igualmente vive em nós;
    Mas por desconcêrto seu
    Vos leva, se venho eu,
    Me leva, se vindes vós.

      *      *      *      *      *


MOTE SEU.

    Descalça vai pela neve:
    Assi faz quem Amor serve.

_Voltas._

    Os privilegios, que os Reis
    Não pódem dar, póde amor,
    Que faz qualquer amador
    Livre das humanas leis.
    Mortes e guerras crueis,
    Ferro, frio, fogo e neve,
    Tudo soffre quem o serve.

    Moça formosa despreza
    Todo o frio, e toda a dor.
    Olhae quanto póde Amor
    Mais que a propria natureza.
    Medo, nem delicadeza
    Lh'impede que passe a neve.
    Assi faz quem Amor serve.

    Por mais trabalhos que leve,
    A tudo se off'receria;
    Passa pela neve fria,
    Mais alva que a propria neve;
    Com todo frio se atreve.
    Vêde em que fogo ferve
    O triste, que a Amor serve.

      *      *      *      *      *


OUTRO ALHEIO

    A dor que a minha alma sente,
    Não na sabe toda a gente.

_Voltas._

    Qu'estranho caso de Amor!
    Que desejado tormento!
    Que venho a ser avarento
    Das dores de minha dor!
    Por me não tratar peor,
    Se se sabe, ou se se sente,
    Não na digo a toda a gente.

    Minha dor e causa della
    De ninguem ouso fiar;
    Que sería aventurar
    A perder-me, ou a perdella.
    E pois só com padecella,
    A minha alma está contente,
    Não quero que o saiba a gente.

    Ande no peito escondida,
    Dentro n'alma sepultada;
    De mi só seja chorada,
    De ninguem seja sentida.
    Ou me mate, ou me dê vida,
    Ou viva triste ou contente,
    Não ma saiba toda a gente.

      *      *      *      *      *


OUTRO SEU

    D'alma, e de quanto tiver,
    Quero que me despojeis,
    Com tanto, que me deixeis
    Os olhos para vos ver.

_Volta._

    Cousa este corpo não tem,
    Que ja não tenhais rendida:
    Despois de tirar-lhe a vida,
    Tirae-lhe a morte tambem.
    Se mais tenho que perder,
    Mais quero que me leveis,
    Com tanto que me deixeis
    Os olhos para vos ver.

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Amores de huma casada,
    Que eu vi pelo meu mal.

_Voltas._

    N'huma casada fui pôr
    Os olhos, de si senhores:
    Cuidei que fossem amores,
    Elles fizerão-se amor.
    Faz-se o desejo maior
    Donde o remedio não val,
    Em perigo de meu mal.

    Não me paraceo que Amor
    Pudesse tanto comigo,
    Que donde entra por amigo,
    Se levante por senhor.
    Leva-me de dor em dor,
    E de final em final,
    Cada vez para mor mal.

      *      *      *      *      *


OUTRO SEU

    Enforquei minha esperança;
    Mas Amor foi tão madraço,
    Que lhe cortou o baraço.

_Volta._

    Foi a esperança julgada
    Por sentença da Ventura,
    Que pois me leve á pendura,
    Que fosse dependurada:
    Vem Cupido com a espada,
    Corta-lhe cerce o baraço.
    Cupido, foste madraço.

      *      *      *      *      *


OUTRO SEU

    Puz o coração nos olhos,
    E os olhos puz no chão,
    Por vingar o coração.

_Volta._

    O coração invejoso
    Como dos olhos andava,
    Sempre remoques me dava
    Que não era o meu mimoso:
    Venho eu de piedoso
    Do Senhor meu coração,
    E boto os olhos no chão.

      *      *      *      *      *


OUTRO SEU

    Puz meus olhos n'huma funda,
    E fiz hum tiro com ella
    Ás grades d'huma janella.

_Volta._

    Huma Dama, de malvada,
    Tomou seus olhos na mão;
    E tirou-me huma pedrada
    Com elles ao coração.
    Armei minha funda então,
    E puz os meus olhos nella,
    Trape, quebrei-lhe a janella.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    De pequena tomei amor,
    Porque o não entendi;
    Agora que o conheci,
    Mata-me com desfavor.

_Voltas._

    Vi-o moço e pequenino,
    E a mesma idade ensina
    Que s'incline huma menina
    Ás amostras d'hum menino:
    Ouvi-lhe chamar Amor,
    Pelo nome me venci;
    Nunca tal engano vi,
    Nem tamanho desamor.

    Cresceo-me de dia em dia
    Com a idade a affeição,
    Porque amor de criação,
    N'alma, e na vida se cria.
    Criou-se em mi este amor,
    E senhoreou-se de mi:
    Agora que o conheci,
    Mata-me com desfavor.

    As flores me torna abrolhos,
    A morte me determina
    Quem eu trouxe de menina
    Nas meninas de meus olhos.
    Desta mágoa e desta dor
    Tenho sabido que emfim
    Por amor me perco a mim
    Por quem de mi perde amor.

    Parece ser caso estranho
    O que Amor em mi ordena,
    Qu'em idade tão pequena
    Haja tormento tamanho.
    Sejão milagres d'Amor,
    Hei-os de soffrer assi,
    Até que haja dó de mi
    Quem entender esta dor.

      *      *      *      *      *


CANTIGA VELHA.

    Apartárão-se os meus olhos
    De mi tão longe.
    Falsos amores,
    Falsos, maos, enganadores.

_Voltas._

    Tratárão-me com cautella,
    Por m'enganar mais asinha;
    Dei-lhe posse d'alma minha,
    Forão-me fugir com ella.
    Não ha vê-los, nem ha vella,
    De mi tão longe.
    Falsos amores,
    Falsos, maos, enganadores!

    Entreguei-lhe a liberdade,
    E, emfim, da vida o melhor;
    Forão-se; e do desamor
    Fizerão necessidade.
    Quem teve a sua vontade
    De si tão longe?
    Falsos amores,
    E oxalá enganadores!

      *      *      *      *      *


OUTRA.

    Falso Cavalheiro, ingrato,
    Enganais-me,
    Vós dizeis, que eu vos mato,
    E vós matais-me.

_Voltas._

    Costumadas artes são
    Para enganar innocencias,
    Piedosas apparencias
    Sôbre isento coração.
    Eu vos amo, e vós ingrato
    Magoais-me,
    Dizendo, que eu vos mato,
    E vós matais-me.

    Vêde agora qual de nós
    Anda mais perto do fim,
    Que a justiça faz-se em mim,
    E o pregão diz que sois vós.
    Quando mais verdade trato
    Levantais-me
    Que vos desamo e vos mato,
    E vós matais-me.

      *      *      *      *      *


PROPRIO.

    Se de meu mal me contento,
    He porque para vós vejo
    Em todo o mundo desejo,
    E em ninguem merecimento.

_Volta._

    Para quem vos soube olhar
    Tão impossivel foi ser
    O poder-vos merecer,
    Como o não vos desejar.
    Pois logo a meu pensamento
    Nenhum remedio lhe vejo,
    Senão se der o desejo
    Azas ao merecimento.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Vós, Senhora, tudo tendes,
    Senão que tendes os olhos verdes.

_Voltas._

    Dotou em vós natureza
    O summo da perfeição;
    Que o qu'em vós he senão,
    He em outras gentileza:
    O verde não se despreza,
    Que, agora que vós os tendes,
    São bellos os olhos verdes.

    Ouro e azul he a melhor
    Côr, por que a gente se perde;
    Mas a graça desse verde
    Tira a graça a toda côr.
    Fica agora sendo a flor
    A côr, que nos olhos tendes,
    Porque são vossos e verdes.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Para que me dan tormento,
    Aprovechando tan poco?
    Perdido, mas no tan loco,
    Que descubra lo que siento.

_Voltas._

    Tiempo perdido es aquel
    Que se passa en darme afan,
    Pues cuanto más me lo dan,
    Tanto menos siento dél.
    Que descubra lo que siento?
    No lo haré, que no es tan poco;
    Que no puede ser tan loco
    Quien tiene tal pensamiento.

    Sepan que me manda Amor,
    Que de tan dulce querella,
    A nadie dé parte della,
    Porque la sienta mayor.
    Es tan dulce mi tormento,
    Que aun se me antoja poco;
    Y si es mucho, quedo loco
    De gusto de lo que siento.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    De vuestros ojos centellas,
    Que encienden pechos de hielo,
    Suben por el aire al cielo,
    Y en llegando son estrellas.

_Voltas._

    Falsos loores os dan,
    Que essas centellas tan raras
    No son nel cielo mas claras
    Que en los ojos donde estan.
    Porque cuando miro en ellas
    Lo como alumbran al suelo,
    No sé que seran nel cielo;
    Mas sé que acá son estrellas.

    Ni se puede presumir
    Que al cielo suban, Señora;
    Que la lumbre que en vós mora,
    No tiene más que subir;
    Mas pienso que dan querellas
    Á Dios nel octavo cielo,
    Porque son acá en el suelo
    Dos tan hermosas estrellas.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    De dentro tengo mi mal,
    Que de fuera no hay señal.

_Volta._

    Mi nueva y dulce querella
    Es invisible á la gente;
    El alma sola la siente,
    Que el cuerpo no es dino della.
    Como la viva centella
    Se encubre en el pedernal,
    De dentro tengo mi mal.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Amor loco, amor loco,
    Yo por vós, y vós por otro.

_Voltas._

    Dióme Amor tormentos dós,
    Para que pene doblado;
    Uno es verme desamado,
    Otro es mancilla de vós.
    Ved que ordena Amor en nós!
    Porque vós haceisme loco,
    Que seais loca por otro.

    Tratais Amor de manera,
    Que porque asi me tratais,
    Quiere que, pues no me amais,
    Que ameis otro que no os quiera.
    Mas con todo, si no os viera
    De todo loca por otro,
    Con mas razon fuera loco.

    Y tan contrario viviendo,
    Alfin, alfin, conformamos;
    Pues ambos a dós buscamos
    Lo que mas nos vá huyendo.
    Voy tras vós siempre siguiendo,
    Y vós huyendo por otro:
    Andais loca, y me haceis loco.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Vêde bem se nos meus dias
    Os desgostos vi sobejos,
    Pois tenho medo a desejos,
    E quero mal a alegrias.

_Volta._

    Se desejos fui ja ter,
    Servírão de atormentar-me;
    Se algum bem póde alegrar-me,
    Quiz-me antes entristecer.
    Passei annos, passei dias
    Em desgostos tão sobejos,
    Que só por não ter desejos,
    Perderei mil alegrias.

      *      *      *      *      *


PROPIO.

    Pois he mais vosso que meu,
    Senhora, meu coração,
    Eu vosso captivo são,
    Meus olhos, lembre-vos eu.

_Volta._

    Lembre-vos minha tristeza,
    Que jamais nunca me deixa;
    Lembre-vos com quanta queixa
    Se queixa minha firmeza:
    Lembre-vos que não he meu
    Este triste coração;
    E pois ha tanta razão,
    Meus olhos, lembre-vos eu.

      *      *      *      *      *


OUTRO.

    Senhora, pois minha vida
    Tendes em vosso poder;
    Por serdes della servida,
    Não queirais que destruida
    Possa ser.

_Volta._

    Isto não por me pezar
    De morrer, se vós quizerdes;
    Que melhor me he acabar
    Mil vezes, que supportar
    Os males que me fizerdes;
    Mas só por serdes servida
    De mi, em quanto viver,
    Vos peço que minha vida
    Não queirais que destruida
    Possa ser.

      *      *      *      *      *


OUTRO.

    Pois damno me faz olhar-vos,
    Não quero, por não perder-vos,
    Que ninguem me veja ver-vos.

_Voltas._

    De ver-vos a não vos ver
    Ha dous extremos mortaes;
    E são elles em si taes,
    Que hum por hum me faz morrer;
    Mas antes quero escolher,
    Que possa viver sem ver-vos,
    Minh'alma, por não perder-vos.

    Deste tamanho perigo
    Que remedio posso ter,
    Se vivo só com vos ver,
    Se vos não vejo, perigo?
    Mas quero acabar comigo,
    Que ninguem me veja ver-vos,
    Senhora, por não perder-vos.

      *      *      *      *      *


A TRES DAMAS, QUE LHE DIZIÃO QUE O AMAVÃO.

_Mote._

    Não sei se m'engana Helena,
    Se Maria, se Joanna;
    Não sei qual dellas m'engana.

_Voltas._

    Huma diz que me quer bem,
    Outra jura que me quer;
    Mas em jura de mulher
    Quem crerá, se ellas não crem?
    Não posso não crer a Helena,
    A Maria, nem Joanna;
    Mas não sei qual mais m'engana.

    Huma faz-me juramentos
    Que só meu amor estima,
    A outra diz que se fina,
    Joanna, que bebe os ventos.
    Se cuido que mente Helena,
    Tambem mentirá Joanna;
    Mas quem mente não m'engana.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA MAL EMPREGADA.

_Mote._

    Menina, não sei dizer,
    Vendo-vos tão acabada,
    Quão triste estou por vos ver
    Formosa e mal empregada.

_Voltas._

    Quem tão mal vos empregou,
    Pouco de mi se dohia,
    Pois não vio o quanto me hia
    Em tirar-me o que tirou.
    Obriga o primor que tem
    Lindeza tão extremada
    Que digão quantos a vem,
    Formosa e mal empregada!

    Tomastes da formosura
    Quanto della desejastes,
    E com ella me guardastes
    Para tão triste ventura.
    Mataveis sendo solteira,
    Matais agora em casada;
    Matais de toda a maneira,
    Formosa e mal empregada.

      *      *      *      *      *


A HUMA Foãa Gonçalves.

_Mote._

    Com vossos olhos, Gonçalves,
    Senhora, captivo tendes
    Este meu coração Mendes.

_Volta._

    Eu sou boa testimunha,
    Que Amor tem por cousa má,
    Que olhos, que são homens ja,
    Se nomeiem sem alcunha;
    Pois o coração apunha,
    E diz, olhos, pois vós tendes,
    Chamae-me coração Mendes.

      *      *      *      *      *


OUTRO

    De que me serve fugir
    De morte, dor e perigo,
    Se me eu levo comigo?

_Voltas._

    Tenho-me persuadido,
    Por razão conveniente,
    Que não posso ser contente,
    Pois que pude ser nascido.
    Anda sempre tão unido
    O meu tormento comigo,
    Qu'eu mesmo sou meu perigo.

    E se de mi me livrasse,
    Nenhum gôsto me sería:
    Quem, senão eu, não teria
    Mal, que esse bem me tirasse?
    Fôrça he logo que assi passe,
    Ou com desgôsto comigo,
    Ou sem gôsto e sem perigo.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, QUE JURAVA PELOS SEUS OLHOS.

    Quando me quer enganar
    A minha bella perjura,
    Para mais me confirmar
    O que quer certificar,
    Polos seus olhos me jura.
    Como meu contentamento
    Todo se rege por elles,
    Imagina o pensamento,
    Que se faz aggravo a elles
    Não crer tão grão juramento.

    Porém como em casos tais
    Ando ja visto e corrente,
    Sem outros certos sinais,
    Quanto me ella jura mais,
    Tanto mais cuido que mente.
    Então vendo-lhe offender
    Huns taes olhos como aquelles,
    Deixo-me antes tudo crer,
    Só pola não constranger
    A jurar falso por elles.

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Ha hum bem, que chega e foge;
    E chama-se este bem tal,
    Ter bem para sentir mal.

_Volta._

    Quem viveo sempre n'hum ser,
    Inda que seja em pobreza,
    Não vio o bem da riqueza,
    Nem o mal d'empobrecer:
    Não ganhou para perder;
    Mas ganhou com vida igual
    Não ter bem, nem sentir mal.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, QUE LHE VIROU O ROSTO.

_Mote._

    Olhos, não vos mereci
    Que tenhais tal condição,
    Tão liberaes para o chão,
    Tão irosos para mi.

_Volta._

    Baixos e honestos andais,
    Por vos negardes a quem
    Não quer mais que aquelle bem,
    Que vós no chão espalhais?
    Se pouco vos mereci,
    Não m'estimeis mais que o chão,
    A quem vós o galardão
    Dais, e mo negais a mi.

      *      *      *      *      *


PROPRIO.

    Venceo-me Amor, não o nego;
    Tẽe mais fôrça qu'eu assaz;
    Que como he cego e rapaz,
    Dá-me porrada de cego.

_Volta._

    Só porque he rapaz ruim,
    Dei-lhe hum boféte zombando.
    Diz-me: Ó mao, estais me dando,
    Porque sois maior que mim?
    Pois se eu vos descarrégo,
    E em dizendo isto, chaz;
    Torna-me outra; tá rapaz,
    Que dás porrada de cego.

      *      *      *      *      *


AO DESCONCERTO DO MUNDO.

    Os bons vi sempre passar
    No mundo graves tormentos;
    E para mais m'espantar,
    Os maos vi sempre nadar
    Em mar de contentamentos.
    Cuidando alcançar assi
    O bem tão mal ordenado,
    Fui mao; mas fui castigado.
    Assi, que só para mi
    Anda o mundo concertado.

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, PERGUNTANDO-LHE QUEM O MATAVA.

_Mote._

    Perguntais-me, quem me mata?
    Não quero responder nada,
    Por vos não fazer culpada.

_Volta._

    E se a penna não me atiça,
    A dizer pena tão forte,
    Quero-me entregar á morte,
    Antes que a vós á justiça.
    Porém se tendes cobiça
    De vos verdes tão culpada,
    Direi que não sinto nada.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Esconjuro-te, Domingas,
    Pois me dás tanto cuidado,
    Que me digas se te vingas,
    Viverei menos penado.

_Voltas._

    Juravas-me, que outras cabras
    Folgavas de apascentar;
    Eu por não me magoar,
    Fingia qu'erão palabras.
    Agora d'arte te vingas
    D'algum meu doudo peccado,
    Qu'inda que queiras, Domingas,
    Não posso ser enganado.

    Qualquer cousa busca o seu;
    A fonte vai para o Tejo,
    E tu para o teu desejo,
    Por te vingares do meu.
    De mi t'esqueces, Domingas,
    Como eu faço do meu gado:
    Praza a Deos, que se te vingas,
    Que morra desesperado.

    Na phantasia te pinto,
    Fallo-te, responde o monte,
    Busco o rio, busco a fonte,
    Endoudeço, e não o sinto:
    Domingas no valle brado,
    Responde o eco Domingas;
    E tu inda te não vingas
    De me ver doudo tornado!

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Se a alma ver-se não póde
    Onde pensamentos ferem,
    Que farei para me crerem?

_Voltas._

    Se n'alma huma só ferida
    Faz na vida mil sinais,
    Tanto se descobre mais,
    Quanto he mais escondida.
    S'esta dor tão conhecida
    Me não vem, porque não querem,
    Que farei para ma crerem?

    Se se pudesse bem ver
    Quanto callo, e quanto sento,
    Despois de tanto tormento
    Cuidaria alegre ser.
    Mas se não me querem crer
    Olhos, que tão mal me ferem,
    Que farei para me crerem?

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Vosso bem querer, Senhora,
    Vosso mal melhor me fôra.

_Voltas._

    Ja agora certo conheço
    Ser melhor todo tormento,
    Onde o arrependimento
    Se compra por justo preço.
    Enganou-me hum bom comêço;
    Mas o fim me diz agora
    Que o mal melhor me fôra.

    Quando hum bem he tão damnoso,
    Que sendo bem, dá cuidado,
    O damno fica obrigado
    A ser menos perigoso.
    Mas se a mi por desditoso,
    Co'o bem me foi mal, Senhora,
    Co'o vosso mal bem me fôra.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Se me desta terra for,
    Eu vos levarei, amor.

_Voltas._

    Se me for, e vos deixar,
    (Ponho por caso, que possa)
    Est'alma minha, qu'he vossa,
    Comvosco m'ha de ficar.
    Assi que só por levar
    A minha alma, se me for,
    Vos levarei, meu amor.

    Que mal póde maltratar-me,
    Que comvosco seja mal?
    Ou que bem póde ser tal,
    Que sem vós possa alegrar-me?
    O mal não póde enojar-me,
    O bem me será maior,
    Se vos levar, meu amor.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Pequenos contentamentos,
    Hi buscar quem contenteis,
    Que a mi não me conheceis.

_Voltas._

    Os gostos, que tantas dores
    Fizerão ja valer menos,
    Não os acceita pequenos,
    Quem nunca teve maiores:
    Bem parecem vãos favores,
    Pois tão tarde me quereis,
    Qu'inda me não conheceis.

    Offereceis-me alegria,
    Tendo-me ja cego e mouco:
    He baixeza acceitar pouco,
    Quem tanto vos merecia.
    Ide-vos por outra via,
    Pois o bem que me deveis,
    Nunca mo satisfareis.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Perdigão perdeo a penna,
    Não ha mal que lhe não venha.

_Voltas._

    Perdigão, que o pensamento
    Subio a hum alto lugar,
    Perde a penna do voar,
    Ganha a pena do tormento:
    Não tẽe no ar, nem no vento,
    Azas com que se sostenha:
    Não ha mal que lhe não venha.

    Quiz voar a huma alta torre,
    Mas achou-se desasado;
    E vendo-se despennado,
    De puro penado morre.
    Se a queixumes se soccorre,
    Lança no fogo mais lenha:
    Não ha mal que lhe não venha.

      *      *      *      *      *


A HUMAS SENHORAS, QUE HAVIÃO SER TERCEIRAS PARA COM HUMA DAMA.

    Pois a tantas perdições,
    Senhoras, quereis dar vida,
    Ditosa seja a ferida,
    Que tẽe taes Cirurgiões!
    Pois ventura
    Me subio a tanta altura,
    Que me sejais valedoras,
    Ditosa seja a tristura,
    Que se cura
    Por vossos rogos, Senhoras!

    Ser minha pena mortal,
    Ja qu'entendeis, que he assi,
    Não quero fallar por mi,
    Que por mi falla meu mal.
    Sois formosas,
    Haveis de ser piedosas,
    Por ser tudo d'huma côr;
    Que pois Amor vos fez rosas
    Milagrosas,
    Fazei milagres de Amor.

    Pedi a quem vós sabeis,
    Que saiba de meu trabalho,
    Não pelo qu'eu nisso valho,
    Mas pelo que vós valeis.
    Que o valer
    De vosso alto merecer,
    Com lho pedir de giolhos,
    Fara qu'em meu padecer
    Possa ver
    O poder que tẽe seus olhos.

    Vossa muita formosura
    Com a sua tanto val,
    Que me rio de meu mal,
    Quando cuido em quem me cura.
    A meus ais,
    Peço-vos que lhe valhais,
    Damas de Amor tão valídas,
    Que nunca tal dor sintais,
    Que queirais,
    Onde não sejais queridas.

      *      *      *      *      *


CANTIGA ALHEIA.

    Na fonte está Leonor
    Lavando a talha, e chorando,
    Ás amigas perguntando:
    Vistes lá o meu amor?

_Voltas._

    Pôsto o pensamento nelle,
    Porque a tudo o Amor a obriga,
    Cantava, mas a cantiga
    Erão suspiros por elle.
    Nisto estava Leonor
    O seu desejo enganando,
    Ás amigas perguntando:
    Vistes lá o meu amor?

    O rosto sôbre hũa mão,
    Os olhos no chão pregados,
    Que de chorar ja cansados,
    Algum descanso lhe dão;
    Desta sorte Leonor
    Suspende de quando em quando
    Sua dor; e em si tornando,
    Mais pezada sente a dor.

    Não deita dos olhos ágoa,
    Que não quer que a dor s'abrande
    Amor, porque em mágoa grande
    Sécca as lagrimas a mágoa.
    Despois que de seu amor
    Soube novas perguntando,
    D'improviso a vi chorando.
    Olhae que extremos de dor!

      *      *      *      *      *


ESTAS TROVAS MANDOU O AUTOR DA CADEIA, EM QUE O TINHA EMBARGADO POR HUMA
DIVIDA MIGUEL ROIZ, FIOS SECOS D'ALCUNHA, AO CONDE DO REDONDO D.
FRANCISCO COUTINHO, VISO-REI, QUE SE EMBARCAVA PARA FÓRA, PEDINDO-LHE O
FIZESSE DESEMBARGAR.

    Que diabo ha tão damnado,
    Que não tema a cutilada
    Dos fios seccos da espada
    Do fero Miguel armado?
    Pois se tanto hum golpe seu
    Sôa na infernal cadeia;
    Do que o demonio arreceia
    Como não fugirei eu?

    Com razão lhe fugiria,
    Se contr'elle, e contra tudo
    Não tivesse hum forte escudo
    Só em Vossa Senhoria.
    Por tanto, Senhor, proveja,
    Pois me tẽe ao remo atado,
    Que antes que seja embarcado,
    Eu desembargado seja.

      *      *      *      *      *


ESTAS TROVAS MANDOU HEITOR DA SILVEIRA AO MESMO CONDE, INVERNANDO EM GOA.

    Vossa Senhoria creia
    Que não apura o engenho
    Fome, se he como a que tenho,
    Mas afraca e corta a veia.
    E quem o contrário sente,
    Está farto em toda a hora,
    Como estou faminto agora:
    Mas Martha, se está contente,
    Dá-lhe pouco de quem chora.

    E pois Vossa Senhoria
    Em geral a tudo acode,
    Acuda a mi, que só póde
    Dar-me no engenho valia.
    Esperte esta Musa minha,
    Que o tempo traz somnolenta;
    Valha-lhe nesta tormenta
    Com essa doce mézinha,
    Que só dá vida e contenta.

    Acuda com provisão,
    Não de papel, mas provída
    D'ouro e prata; que esta vida
    Não sustentão papéis, não.
    De feitor a thesoureiro
    Ser-me-hia trabalho grande;
    Vossa Senhoria mande
    Algum remedio, primeiro,
    Com que a morte o ferro abrande.

_Ajuda de Luis de Camões._

    Nos livros doutos se trata
    Que o grande Achilles insano
    Deo a morte a Heitor Troiano;
    Mas agora a fome mata
    O nosso Heitor Lusitano.
    Só ella o póde acabar,
    Se essa vossa condição
    Liberal e singular
    Não mete entr'elles bastão,
    Bastante para o fartar.

      *      *      *      *      *


A HUMA SENHORA, QUE LHE CHAMOU DIABO.

_Esparsa._

    Não posso chegar ao cabo
    De tamanho desarranjo,
    Que sendo vós, Senhora, Anjo,
    Vos queira tanto o Diabo.
    Dais manifesto sinal
    De minha muita firmeza,
    Que os diabos querem mal
    Aos Anjos por natureza.

      *      *      *      *      *


CANTIGA.

    Vi chorar huns claros olhos,
    Quando delles me partia.
    Oh que mágoa! Oh que alegria!

_Voltas._

    Polo meu apartamento
    Se arrazárão todos d'ágoa.
    Quem cuidou qu'em tanta mágoa
    Achasse contentamento?
    Julgue todo entendimento
    Qual mais sentir se devia,
    Se esta dor, se esta alegria?

    Quando mais perdido estive,
    Então deo a est'alma minha
    Na maior mágoa que tinha,
    O maior gôsto que tive.
    Assi, se minha alma vive,
    Foi porque me defendia
    Desta dor esta alegria?

    O bem, que Amor me não deu
    No tempo que desejei,
    Quando delle me apartei,
    Me confessou, qu'era meu.
    Agora que farei eu,
    Se a fortuna me desvia
    De lograr esta alegria?

    Não sei se foi enganado,
    Pois me tinha defendido
    Das íras de mal querido,
    No mal de ser apartado.
    Agora peno dobrado,
    Achando no fim do dia
    O princípio da alegria.

      *      *      *      *      *


VILLANCETE PASTORIL.

    Deos te salve, Vasco amigo.
    Não me fallas? Como assi?
    Bofé, Gil, não 'stava aqui.

_Voltas._

    Pois onde te hão de fallar,
    Se não 'stás onde appareces?
    Se Magdanela conheces,
    Nella me pódes achar.
    E como te hão d'ir buscar
    Aonde fogem de ti?
    Pois nem eu estou em mi.

    Porque te não acharei
    Em ti, como em Magdanela?
    Porque me fui perder nella
    O dia que me ganhei.
    Quem tão bem falla, não sei
    Como anda fóra de si.
    Ella falla dentro em mi.

    Como estás aqui presente,
    Se lá tens a alma e a vida?
    Porqu'he d'hum'alma perdida
    Apparecer sempre á gente.
    Se es morto, bem se consente
    Que todos fujão de ti.
    Eu tambem fujo de mi.

      *      *      *      *      *


OUTRO PASTORIL.

    Porque no miras, Giraldo,
    Mi zampoña como suena?
    Porque no me mira Elena.

_Voltas._

    Vuelve acá, no estês pasmado,
    Mira que gentil sonar!
    Como te podrá mirar
    Quien no puede ser mirado?
    Y que bueno enamorado!
    No dirás, si es mala, o buena?
    No, que me hizo mudo Elena.

    Mira tan dulce armonía,
    Déjate dessos enojos.
    Tengo clavados los ojos
    Con que mirar te podia.
    Ansí Dios te dé alegría:
    No vés cuan dulce que suena?
    No, porque no veo Elena.

      *      *      *      *      *


OUTRO PASTORIL.

    Crescem, Camilla, os abrolhos
    De chorares por Cincero:
    Não he muito, que lhe quero,
    Belisa, mais que meus olhos.

_Voltas._

    Sempre os teus olhos estão,
    Camilla, d'ágoas banhados.
    De se verem desamados
    Póde ser que chorarão.
    Si, mas crescem os abrolhos,
    E tu cegas por Cincero.
    S'eu não vejo quem mais quero,
    Para que quero mais olhos?

    Se se foi ha mais d'hum mês,
    Teus olhos não cansarão?
    Não, que apos elle se vão
    Estas lagrimas que vês.
    Fazem logo estes abrolhos
    O mato espinhoso e fero.
    Pois eu não vejo a Cincero,
    Isso só verão meus olhos.

    Chorando queres morrer?
    Mais quero viver chorando.
    Tu não vês que vás cegando?
    Se cego, como hei de ver?
    Põe na vista outros antolhos.
    Não posso, nem menos quero.
    Outra para outro Cincero,
    Antes não quero ter olhos.

      *      *      *      *      *


A HUMA MULHER, QUE SE CHAMAVA GRACIA DE MORAES.

_Mote._

    Olhos, em qu'estão mil flores,
    E com tanta graça olhais,
    Que parece que os Amores
    Morão onde vós morais.

_Volta._

    Vem-se rosas e boninas,
    Olhos, nesse vosso ver;
    Vem-se mil almas arder
    No fogo dessas meninas.
    E di-lo-hão minhas dores,
    Meus suspiros e meus ais;
    E dirão mais, que os amores
    Morão onde vós morais.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Quem se confia em huns olhos,
    Nas meninas delles vê
    Que meninas não tẽe fé.

_Voltas._

    Quem põe suas confianças
    Em meninas sem assento,
    Offereça o soffrimento
    A duzentas mil mudanças.
    Mostrão no ar esperanças;
    Mas em seus olhos se vê
    Como não tẽe n'alma fé.

    Enganão ao parecer,
    Porque no caso d'amar,
    São mulheres no matar,
    E meninas no querer.
    Quem em seus olhos se crer,
    Cem mil graças nelles vê;
    Vê-las sim, mas não ter fé.

    Amostrão-vos n'hum momento
    Favores assi a mólhos;
    Mas na mudança dos olhos
    Se lhe muda o pensamento.
    Em nada ja tẽe assento,
    E o que mais nelles se vê
    He formosura sem fé.

      *      *      *      *      *


LOUVANDO E DESLOUVANDO UMA DAMA.

_Cantiga Velha._

    Sois formosa, e tudo tendes,
    Senão que tendes os olhos verdes,

_Voltas._

    Ninguem vos póde tirar
    Serdes tão bem assombrada;
    Mas heis-me de perdoar,
    Que os olhos não valem nada.
    Fostes mal aconselhada
    Em querer que fossem verdes:
    Trabalhae de os esconderdes.

    A vossa testa he jardim,
    Onde Amor se desenfada;
    He tão branca e bem talhada,
    Que parece de marfim.
    Assi he; e quanto a mim,
    Isso vos nasce de a terdes
    Tão perto dos olhos verdes.

    Os cabellos desatados
    O mesmo sol escurecem;
    Senão que por ser ondados,
    Algum tanto desmerecem:
    Mas á fé, que se parecem
    A furto dos olhos verdes,
    Não vos peze, não, de os terdes.

    As pestanas tẽe mostrado
    Ser raios, que abrazão vidas:
    Se não forão tão compridas,
    Tudo o mais era pintado:
    Ellas me tinhão levado
    A alma, sem o vós saberdes,
    Se não forão os olhos verdes.

    O mimo desse carão
    Nem pôr-lhe os olhos consente:
    O ser liso e transparente
    Rouba todo o coração:
    Inda assi achareis nação,
    Que lhe não peze de os verdes;
    Mas não seja co'os olhos verdes.

    Esse riso, que he compôsto
    De quantas graças nascêrão,
    Senão que alguns me disserão,
    Vos faz covinhas no rôsto.
    Na vontade tenho posto
    Dar-vos a alma, se quizerdes,
    A trôco dos olhos verdes.

    Nunca se vio, nem se escreve
    Boca co'huma graça igual,
    Se não fôra de coral,
    E os dentes de côr de neve.
    Dou-me eu a Deos, que me leve!
    Soffrerei quanto tiverdes,
    Não me tenhais olhos verdes.

    Essa garganta merece
    Outras palavras não minhas,
    Senão qu'he feita em rosquinhas
    D'alfenim, ao que parece.
    Eu sei bem quem se offerece
    A tomar tudo o que tendes,
    E tambem os olhos verdes.

    Essas mãos são ferropeas:
    Só o vê-las enfeitiça;
    Senão que são alvas, cheias,
    E tẽe a feição roliça;
    Com que appellais por justiça,
    Para com ellas prenderdes
    Quem vê vossos olhos verdes.

    A vossa galantaria
    Matará a quem fallardes:
    Tendes huns desdens e tardes,
    Que eu logo vos roubaria.
    Oh dou-me a Santa Maria!
    Sou cujo de quanto tendes,
    E tambem desses olhos verdes.

      *      *      *      *      *


AO MESMO.

    Tudo tendes singular,
    Com que os corações rendeis,
    Senão que rindo, fazeis
    Covinhas para enterrar:
    E para resuscitar
    Tẽe força a graça que tendes;
    Senão que tendes os olhos verdes.

    Tudo, Senhora, alcançais,
    Quanto o ser formosa alcança,
    Senão que dais esperança
    Co'os olhos com que matais.
    Se acaso os alevantais,
    He para as almas renderdes;
    Senão que tendes os olhos verdes.

      *      *      *      *      *


A DOM ANTONIO, SENHOR DE CASCAES, QUE TENDO-LHE PROMETTIDO SEIS
GALLINHAS RECHEADAS POR HUMA COPLA QUE LHE FIZERA, LHE MANDOU POR
PRINCÍPIO DA PAGA MEIA GALLINHA RECHEADA.

    Cinco gallinhas e meia
    Deve o Senhor de Cascais;
    E a meia vinha cheia
    De appetite para as mais.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Catharina bem promette;
    Ora má! como ella mente!

_Voltas._

    Catharina he mais formosa
    Para mi, que a luz do dia;
    Mas mais formosa sería,
    Se não fosse mentirosa.
    Hoje a vejo piedosa,
    Á manhãa tão differente,
    Que sempre cuido que mente.

    Prometteo-me hontem de vir,
    Nunca mais appareceo;
    Creio que não prometteo,
    Senão só por me mentir.
    Faz-me, emfim, chorar e rir;
    Rio, quando me promette,
    Mas chóro quando me mente.

    Jurou-me aquella cadella
    De vir, pela alma que tinha;
    Enganou-me; tinha a minha;
    Deo-lhe pouco de perdella.
    A vida gasto apos ella,
    Porque ma dá, se promette,
    Mas tira-ma, quando mente.

    Má, mentirosa, malvada,
    Dizei, porque me mentis?
    Prometteis, e então fugis?
    Pois sem tornar, tudo he nada.
    Não sois bem aconselhada;
    Que quem promette, se mente,
    O que perde não o sente.

    Tudo vos consentiria
    Quanto quizesseis fazer,
    Se este vosso prometter
    Fosse por me ter hum dia.
    Todo então me desfaria
    Com gôsto; e vós de contente,
    Zombarieis de quem mente.

    Mas pois folgais de mentir,
    Promettendo de me ver,
    Eu vos deixo o prometter,
    Deixae-me vós o servir:
    Haveis então de sentir
    Quanto a minha vida sente
    O servir a quem lhe mente.

    Catharina me mentio
    Muitas vezes, sem ter lei,
    E todas lhe perdoei
    Por huma só que cumprio.
    Se como me consentio
    Fallar-lhe, o mais me consente,
    Nunca mais direi que mente.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    A alma, qu'está offrecida
    A tudo, nada lhe he forte;
    Assi passa o bem da vida,
    Como passa o mal da morte.

_Volta._

    De maneira me succede
    O que temo, e o que desejo,
    Que sempre o que temo, vejo,
    Nunca o que a vontade pede.
    Tenho tão offerecida
    Alma e vida a toda a sorte,
    Que isso me dera da morte,
    Como ja me dá da vida.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Ferro, fogo, frio e calma,
    Todo o mundo acabarão;
    Mas nunca vos tirarão,
    Alma minha, da minha alma.

_Volta._

    Não vos guardei, quando vinha,
    Em tôrre, fôrça, ou engenho;
    Que mais guardada vos tenho
    Em vós, que sois alma minha.
    Alli nem frio, nem calma,
    Não podem ter jurdição;
    Na vida sim, porém não
    Em vós que tenho por alma.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Esperei, ja não espero
    De mais vos servir, Senhora;
    Pois me fazeis cada hora
    Tanto mal, que desespéro.

_Volta._

    Pois sei certo que folgais,
    Quando mais mal me fazeis,
    E que nunca descansais,
    Senão quando me mostrais
    Quão pouco bem me quereis;
    Servir-vos mais não espero
    Pois meu viver empeora
    Com me fazerdes, Senhora,
    Tanto mal, que desespéro.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Descalça vai para a fonte
    Leonor pela verdura;
    Vai formosa, e não segura.

_Voltas._

    Leva na cabeça o pote,
    O testo nas mãos de prata,
    Cinta de fina escarlata,
    Sainho de chamalote:
    Traz a vasquinha de cote,
    Mais branca que a neve pura;
    Vai formosa, e não segura.

    Descobre a touca a garganta,
    Cabellos de ouro entrançado,
    Fita de côr d'encarnado,
    Tão linda que o mundo espanta:
    Chove nella graça tanta,
    Que dá graça á formosura;
    Vai formosa, e não segura.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Quem disser que a barca pende,
    Dir-lhe-hei, mana, que mente.

_Voltas._

    Se vos quereis embarcar,
    E para isso estais no caes,
    Entrae logo: que tardaes?
    Olhae qu'está preamar:
    E se outrem, por vos fretar,
    Vos disser qu'esta que pende,
    Dir-lhe-hei, mana, que mente.

    Esta barca he de carreira;
    Tẽe seus apparelhos novos:
    Não ha como ella outra em Povos
    Boa de leme, e veleira:
    Mas, se por ser a primeira,
    Vos disser alguem que pende,
    Dir-lhe-hei, mana, que mente.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Com razão queixar-me posso
    De vós, que mal vos queixais;
    Pois, Senhora, vos sangrais,
    Que seja n'hum corpo vosso.

_Voltas._

    Eu para levar a palma,
    Com que ser vosso mereça,
    Quero que o corpo padeça
    Por vós, que delle sois alma.
    Vós do corpo vos queixais,
    Eu queixar-me de vós posso,
    Porque, tendo hum corpo vosso,
    Na minha alma vos sangrais.

    E sem fazer differença
    No que de mi possuis,
    Pelo pouco que sentis,
    Dais á minh'alma doença.
    Porque dous aventurais?
    Oh não seja o damno nosso!
    Sangre-se este corpo vosso,
    Porque, minha alma, vivais.

    E inda, se attentardes bem,
    Seguis medicina errada,
    Porque para ser sangrada
    Hum'alma sangue não tem.
    E pois em mi sarar posso
    Males, que á minha alma dais,
    Se inda outra vez vos sangrais,
    Seja neste corpo vosso.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Ojos, herido me habeis,
    Acabad ya de matarme;
    Mas muerto volved á mirarme,
    Porque me resusciteis.

_Voltas._

    Pues me distes tal herida,
    Con gana de darme muerte,
    El morir me es dulce suerte,
    Pues con morir me dais vida.
    Ojos, qué os deteneis?
    Acabad ya de matarme;
    Mas muerto volved á mirarme,
    Porque me resusciteis.

    La llaga cierto ya es mia,
    Aunque, ojos, vós no querrais;
    Mas si la muerte me dais,
    El morir me es alegría.
    Y así digo que acabeis,
    O ojos, ya de matarme;
    Mas muerto volved á mirarme,
    Porque me resusciteis.

      *      *      *      *      *


A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO, QUE LHE MANDOU GLOSAR ESTE VERSO:

    Mas porém a que cuidados?

    Tanto maiores tormentos
    Forão sempre os que soffri,
    Daquillo que cabe em mi,
    Que não sei que pensamentos
    São os para que nasci.
    Quando vejo este meu peito
    A perigos arriscados
    Inclinado, bem suspeito
    Que a cuidados sou sujeito,
    _Mas porém a que cuidados?_

_Ao mesmo._

    Que vindes em mi buscar,
    Cuidados, que sou captivo?
    Eu não tenho que vos dar:
    Se vindes a me matar,
    Ja ha muito que não vivo:
    Se vindes, porque me dais
    Tormentos desesperados,
    Eu, que sempre soffri mais,
    Não digo que não venhais;
    _Mas porém a que cuidados?_

_Ao mesmo._

    Se as penas que Amor me deu,
    Vem por tão suaves meios,
    Não ha que temer receios;
    Que val hum cuidado meu
    Por mil descansos alheios.
    Ter n'huns olhos tão formosos
    Os sentidos enlevados,
    Bem sei qu'em baixos estados
    São cuidados perigosos;
    _Mas porém a que cuidados?..._

_Carta com a glosa acima._

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m. crendo me sería assi mais
seguro: mas agora que he servida de me tornar a resuscitar, por me
mostrar seus poderes, lembro-lhe que huma vida trabalhosa he menos de
agradecer, que huma morte descansada. Mas se esta vida, que agora de
novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se della, não me fica
mais que desejar, que poder acertar com este mote de v. m., ao qual dei
tres entendimentos, segundo as palavras delle pudérão soffrer: se forem
bons, he mote de v. m.: se maos, são as glosas minhas.

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Campos bem-aventurados,
    Tornae-vos agora tristes;
    Que os dias, em que me vistes,
    Alegres ja são passados.

_Glosa._

    Campos cheios de prazer,
    Vós qu'estais reverdecendo,
    Ja m'alegrei com vos ver;
    Agora venho a temer
    Qu'entristeçais em me vendo.
    E pois a vista alegrais
    Dos olhos desesperados,
    Não quero que me vejais,
    Para que sempre sejais,
    _Campos, bem-aventurados._

    Porém se por accidente
    Vos pezar de meu tormento,
    Sabereis que Amor consente
    Que tudo me descontente,
    Senão descontentamento.
    Por isso vós, arvoredos,
    Que ja nos meus olhos vistes
    Mais alegria, que medos,
    Se mos quereis fazer ledos,
    _Tornae-vos agora tristes._

    Ja me vistes ledo ser,
    Mas despois que o falso Amor
    Tão triste me fez viver,
    Ledos folgo de vos ver,
    Porque me dobreis a dor.
    E se este gôsto sobejo
    De minha dor me sentistes,
    Julgae quanto mais desejo
    As horas que vos não vejo,
    _Que os dias em que me vistes._

    O tempo, qu'he desigual,
    De seccos, verdes vos tem;
    Porqu'em vosso natural
    Se muda o mal para o bem,
    Mas o meu para mor mal.
    Se perguntais, verdes prados,
    Pelos tempos differentes
    Que de Amor me forão dados,
    Tristes, aqui são presentes,
    _Alegres, ja são passados._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Trabalhos descansarião
    Se para vós trabalhasse;
    Tempos tristes passarião,
    Se algum'hora vos lembrasse.

_Glosa._

    Nunca o prazer se conhece,
    Senão despois da tormenta:
    Tão pouco o bem permanece,
    Que se o descanso florece,
    Logo o trabalho arrebenta.
    Sempre os bens se lograrião,
    Mas os males tudo atalhão;
    Porém ja que assi porfião,
    Onde descansos trabalhão,
    _Trabalhos descansarião._

    Qualquer trabalho me fôra
    Por vós grão contentamento:
    Nada sentira, Senhora,
    Se víra disto algum'hora
    Em vós hum conhecimento.
    Por mal que o mal me tratasse,
    Tudo por bem tomaria;
    Postoque o corpo cansasse,
    A alma descansaria,
    _Se para vós trabalhasse._

    Quem vossas cruezas ja
    Soffreo, a tudo se poz;
    Costumado ficará;
    E muito melhor será,
    Se trabalhar para vós.
    Tristezas esquecerião,
    Postoque mal me tratárão;
    Annos não me lembrarião,
    Que como est'outros passarão,
    _Tempos tristes passarião._

    Se fosse galardoado
    Este trabalho tão duro,
    Não vivêra magoado.
    Mas não o foi o passado,
    Como o será o futuro?
    De cansar não cansaria,
    Se quizereis, que cansasse;
    Cavar, morrer, fa-lo-hia;
    Tudo, emfim, esqueceria,
    _Se algum'hora vos lembrasse._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Triste vida se me ordena,
    Pois quer vossa condição
    Que os males, que dais por pena,
    Me fiquem por galardão.

_Glosa._

    Despois de sempre soffrer,
    Senhora, vossas cruezas,
    A pezar de meu querer,
    Me quereis satisfazer
    Meus serviços com tristezas.
    Mas, pois em balde resiste
    Quem vossa vista condena,
    Prestes estou para a pena;
    Que de galardão tão triste
    _Triste vida se me ordena._

    De contente do mal meu
    A tão grande extremo vim,
    Que consinto em minha fim:
    Assi que vós e mais eu,
    Ambos somos contra mim.
    Mas que soffra meu tormento,
    Sem querer mais galardão,
    Não he fóra de razão
    Que queira meu soffrimento,
    _Pois quer vossa condição._

    O mal, que vós dais por bem,
    Esse, Senhora, he mortal;
    Que o mal, que dais como mal,
    Em muito menos se tem,
    Por costume natural.
    Mas porém nesta victoria,
    Que comigo he bem pequena,
    A maior dor me condena
    A pena, que dais por gloria,
    _Que os males, que dais por pena._

    Que mor bem me possa vir,
    Que servir-vos, não o sei.
    Pois que mais quero eu pedir,
    Se quanto mais vos servir,
    Tanto mais vos deverei?
    Se vossos merecimentos
    De tão alta estima são,
    Assaz de favor me dão
    Em querer que meus tormentos
    _Me fiquem por galardão._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Ja não posso ser contente,
    Tenho a esperança perdida;
    Ando perdido entre a gente,
    Nem morro, nem tenho vida.

_Glosa._

    Despois que meu cruel Fado
    Destruio huma esperança,
    Em que me vi levantado,
    No mal fiquei sem mudança,
    E do bem desesperado.
    O coração, que isto sente,
    Á sua dor não resiste,
    Porque vê mui claramente
    Que pois nasci para triste,
    _Ja não posso ser contente._

    Por isso, contentamentos,
    Fugi de quem vos despreza:
    Ja fiz outros fundamentos,
    Ja fiz senhora a tristeza
    De todos meus pensamentos.
    O menos que lh'entreguei,
    Foi esta cansada vida:
    Cuido que nisto acertei,
    Porque de quanto esperei
    _Tenho a esperança perdida._

    Acabar de me perder
    Fôra ja muito melhor;
    Tivera fim esta dor,
    Que não podendo mor ser,
    Cada vez a sinto mor.
    De vós desejo esconder-me,
    E de mi principalmente,
    Onde ninguem possa ver-me;
    Que pois me ganho em perder-me,
    _Ando perdido entre a gente._

    Gostos de mudanças cheios,
    Não me busqueis, não vos quero:
    Tenho-vos por tão alheios,
    Que do bem que não espero,
    Inda me ficão receios.
    Em pena tão sem medida,
    Em tormento tão esquivo
    Que morra, ninguem duvída;
    Mas eu se morro, ou se vivo,
    _Nem morro, nem tenho vida._

      *      *      *      *      *


A HUMA DAMA, QUE SE CHAMAVA ANNA.

_Mote._

    A morte, pois que sou vosso,
    Não a quero; mas se vem,
    Ha de ser todo meu bem.

_Glosa._

    Amor, qu'em meu pensamento
    Com tanta fé se fundou,
    Me tẽe dado hum regimento,
    Que quando vir meu tormento
    Me salve com cujo sou.
    E com esta defensão,
    Com que tudo vencer posso,
    Diz a causa ao coração:
    Não tẽe em mi jurdição
    _A morte, pois que sou vosso._

    Por exprimentar hum dia
    Amor se me achava forte
    Nesta fé, como dizia,
    Me convidou com a morte,
    Só por ver se a temeria.
    E como ella seja a cousa
    Onde está todo meu bem,
    Respondi-lhe, como quem
    Quer dizer mais, e não ousa:
    _Não a quero, mas se vem..._

    Não disse mais, porque então
    Entendeo quanto me toca;
    E se tinha dito o não,
    Muitas vezes diz a boca,
    O que nega o coração.
    Toda a cousa defendida
    Em mais estima se tem:
    Por isso he cousa sabida,
    Que perder por vós a vida
    _Ha de ser todo meu bem._

      *      *      *      *      *


Á MESMA DAMA.

    Vejo-a n'alma pintada,
    Quando me pede o desejo
    O natural que não vejo.

_Glosa._

    Se só de ver puramente
    Me transformei no que vi,
    De vista tão excellente
    Mal poderei ser ausente,
    Em quanto o não for de mi.
    Porque a alma namorada
    A traz tão bem debuxada,
    E a memoria tanto voa,
    Que se a não vejo em pessoa,
    _Vejo-a n'alma pintada._

    O desejo, que s'estende
    Ao que menos se concede,
    Sôbre vós pede e pretende,
    Como o doente que pede
    O que mais se lhe defende.
    Eu, qu'em ausencia vos vejo,
    Tenho piedade e pejo
    De me ver tão pobre estar,
    Qu'então não tenho que dar,
    _Quando me pede o desejo._

    Como áquelle que cegou,
    He cousa vista e notoria,
    Que a natureza ordenou
    Que se lhe dobre em memoria
    O qu'em vista lhe faltou:
    Assi a mi, que não vejo
    Co'os olhos o que desejo,
    Na memoria e na firmeza
    Me concede a natureza
    _O natural que não vejo._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Sem vós, e com meu cuidado,
    Olhae com quem, e sem quem.

_Glosa._

    Vendo Amor que com vos ver
    Mais levemente soffria
    Os males que me fazia,
    Não me pôde isto soffrer;
    Conjurou-se com meu Fado;
    Hum novo mal me ordenou:
    Ambos me levão forçado,
    Não sei onde, pois que vou
    _Sem vós e com meu cuidado._

    Não sei qual he mais estranho
    Destes dous males que sigo,
    Se não vos ver, se comigo
    Levar imigo tamanho.
    O que fica, e o que vem,
    Hum me mata, outro desejo:
    Com tal mal, e sem tal bem,
    Em taes extremos me vejo:
    _Olhae com quem, e sem quem_!

      *      *      *      *      *


AO MESMO.

    Amor, cuja providencia
    Foi sempre que não errasse,
    Porque n'alma vos levasse,
    Respeitando o mal d'ausencia,
    Quiz qu'em vós me transformasse.
    E vendo-me ir maltratado,
    Eu e meu cuidado sós,
    Proveo nisso de attentado,
    Por não me ausentar de vós,
    _Sem vós, e com meu cuidado._

    Mas est'alma, qu'eu trazia,
    Porque vós nella morais,
    Deixa-me cego, e sem guia;
    Que ha por melhor companhia
    Ficar onde vós ficais.
    Assi me vou de meu bem,
    Onde quer a forte estrella,
    Sem alma, qu'em si vos tem,
    Co'o mal de viver sem ella:
    _Olhae com quem, e sem quem_!

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Sem ventura he por demais.

_Glosa._

    Todo o trabalhado bem
    Promette gostoso fruito;
    Mas os trabalhos, que vem,
    Para quem dita não tem
    Valem pouco, e custão muito.
    Rompe toda a pedra dura,
    Faz os homens immortais
    O trabalho quando atura;
    Mas querer achar ventura,
    _Sem ventura, he por demais._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Minh'alma, lembrae-vos della.

_Glosa._

    Pois o ver-vos tenho em mais
    Que mil vidas que me deis,
    Assi como a que me dais,
    Meu bem, ja que mo negais,
    Meus olhos, não mo negueis.
    E se a tal estado vim
    Guiado de minha estrella,
    Quando houverdes dó de mim,
    Minha vida, dae-lhe a fim,
    _Minh'alma, lembrae-vos della._

      *      *      *      *      *


MOTE ALHEIO.

    Tudo póde huma affeição.

_Glosa._

    Tẽe tal jurdição Amor
    N'alma donde se aposenta,
    E de que se faz senhor,
    Que a liberta e isenta
    De todo humano temor.
    E com mui justa razão,
    Como senhor soberano,
    Que Amor não consente dano.
    E pois me soffre tenção,
    Gritarei por desengano:
    _Tudo póde huma affeição._

      *      *      *      *      *


TROVA DE BOSCÃO.

    Justa fué mi perdicion;
    De mis males soy contento;
    Ya no espero galardon,
    Pues vuestro merecimiento
    Satisfizo mi pasion.

_Glosa._

    Despues que Amor me formó
    Todo de amor, cual me veo,
    En las leyes, que me dió,
    El mirar me consintió,
    Y defendióme el deseo.
    Mas el alma, como injusta,
    En viendo tal perfeccion,
    Dió al deseo ocasion:
    Y pues quebré ley tan justa,
    _Justa fué mi perdicion._

    Mostrándoseme el Amor
    Mas benigno que cruel,
    Sobre tirano traidor,
    De zelos de mi dolor,
    Quiso tomar parte en él.
    Yo que tan dulce tormento
    No quiero dallo, aunque peco,
    Resisto, y no lo consiento;
    Mas si me lo toma á trueco
    _De mis males, soy contento._

    Señora, ved lo que ordena
    Este Amor tan falso nuestro!
    Por pagar á costa agena,
    Manda que de un mirar vuestro
    Haga el premio de mi pena.
    Mas vos, para que veais
    Tan engañosa intencion,
    Aunque muerto me sintais,
    No mireis, que si mirais,
    _Ya no espero galardon._

    Pues que premio (me direis)
    Esperas que será bueno?
    Sabed, sino lo sabeis,
    Que es lo mas de lo que peno
    Lo menos que mereceis.
    Quien hace al mal tan ufano,
    Y tan libre al sentimiento?
    El deseo? No, que es vano.
    El amor? No, que es tirano.
    _Pues? Vuestro merecimiento._

    No pudiendo Amor robarme
    De mis tan caros despojos,
    Aunque fué por mas honrarme,
    Vos sola para matarme
    Le prestastes vuestros ojos.
    Matáranme ambos á dos;
    Mas á vos con mas razon
    Debe el la satisfaccion;
    Que á mi por él, y por vos,
    _Satisfizo mi pasion._

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Todo es poco lo posible.

_Glosa._

    Ved que engaño señorea
    Nuestro juicio tan loco,
    Que por mucho que se crea,
    Todo el bien, que se desea,
    Alcanzado, queda poco.
    Un bien de cualquiera grado,
    Si de haberse es imposible,
    Queda mucho deseado.
    Mas para mucho, alcanzado,
    _Todo es poco lo posible._

_Outro._

    Posible es á mi cuidado
    Poderme hacer satisfecho,
    Si fuera posible al hado
    Hacer no hecho lo hecho,
    Y futuro lo pasado.
    Si olvido pudiera haber,
    Fuera remedio sufrible;
    Mas ya que no puede ser,
    Para contento me hacer,
    _Todo es poco lo posible._

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Vos teneis mi corazon.

_Glosa._

    Mi corazon me han robado;
    Y Amor viendo mis enojos,
    Me dijo: Fuéte llevado
    Por los mas hermosos ojos,
    Que desque vivo he mirado.
    Gracias sobrenaturales
    Te lo tienen en prision.
    Y si Amor tiene razon,
    Señora, por las señales,
    _Vos teneis mi corazon._

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Qué veré que me contente?

_Glosa._

    Desque una vez yo miré,
    Señora, vuestra beldad,
    Jamas por mi voluntad
    Los ojos de vos quité.
    Pues sin vos placer no siente
    Mi vida, ni lo desea,
    Si no quereis que yo os vea,
    _Qué veré que me contente?_

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Sem vós, e com meu cuidado.

_Glosa._

    Querendo Amor esconder-vos
    Em parte que vos não visse,
    Co'o extremo de querer-vos
    Cegou-me os olhos com ver-vos,
    Levou-vos, sem que vos visse.
    Eu cego, mas atinado,
    Quando vi que vos não via,
    Do mesmo Amor indignado,
    Ja vêdes qual ficaria
    _Sem vós e com meu cuidado._

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Retrato, vós não sois meu;
    Retratárão-vos mui mal;
    Que a serdes meu natural,
    Foreis mofino como eu.

_Glosa._

    Indaqu'em vós a arte vença
    O que o natural tẽe dado,
    Não fostes bem retratado;
    Que ha em vós mais differença,
    Que no vivo do pintado.
    Se o lugar se considera
    Do alto estado, que vos deu
    A sorte, qu'eu mais quizera;
    Se he qu'eu sou quem d'antes era,
    _Retrato, vós não sois meu._

    Vós na vossa glória pôsto,
    Eu na minha sepultura,
    Vós com bens, eu com desgôsto;
    Pareceis-vos ao meu rosto,
    E não ja á minha ventura.
    E pois nella e vós errarão
    O qu'em mi he principal,
    Muito em ambos s'enganárão.
    Se por mi vós retratárão,
    _Retratárão-vos mui mal._

    Mas se esse rosto fingido
    Quizerão representar,
    E houverão por bom partido
    Dar-vos a alma do sentido
    Para a glória do lugar;
    Víreis, pôsto nessa alteza,
    Que vos não ha cousa igual;
    E que nem a maior mal
    Podeis vir, nem mor baixeza,
    _Que a serdes meu natural._

    Por isso não confesseis
    Serdes meu, qu'he desatino,
    Com que o lugar perdereis:
    Se conservar-vos quereis,
    Blazonae que sois divino.
    Que se nesta occasião
    Conhecessem qu'ereis meu,
    Por meu vos derão de mão,
    . . . . . . . . . .
    _Fôreis mofino, como eu._

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Foi-se gastando a esperança,
    Fui entendendo os enganos;
    Do mal ficárão-me os danos,
    E do bem só a lembrança.

_Glosa._

    Nunca em prazeres passados
    Tive firmeza segura.
    Antes tão arrebatados,
    Qu'inda não erão chegados,
    Quando mos levou ventura.
    E como quem desconfia
    Ter em tal sorte mudança,
    No meio desta porfia,
    De quanto bem pretendia
    _Foi-se gastando a esperança._

    Não tive por desatino
    A occasião de perdella;
    Mas foi culpa do destino,
    Que a ninguem, como mais dino,
    Amor pudéra sostella.
    Dei-lhe tudo o qu'era seu,
    Não receando taes danos
    Deste, a quem alma lhe deu:
    Quando ja não era meu,
    _Fui entendendo os enganos._

    Fiquei deste mal sobejo
    A quem a causa compete
    Dizer-lhe tudo o que vejo,
    Que Amor acceita o desejo,
    Mas mente no que promete.
    Que se a mi se me obrigou
    A dar-me bens soberanos,
    Foi engano que ordenou;
    Que do bem tudo levou,
    _Do mal ficárão-me os danos._

    E se dor tão desigual
    Soffro em mi com padecellos,
    Quero de novo soffrellos;
    Que por a causa ser tal,
    Não determino offendellos.
    Dobre-se o mal, falte a vida,
    Cresça a fé, falte a esperança,
    Pois foi mal agradecida;
    Fique a dor n'alma imprimida,
    _E do bem só a lembrança._

      *      *      *      *      *


ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA.

    Aquella captiva,
    Que me tẽe captivo,
    Porque nella vivo,
    Ja não quer que viva.
    Eu nunca vi rosa
    Em suaves mólhos,
    Que para meus olhos
    Fosse mais formosa.

    Nem no campo flores,
    Nem no ceo estrellas,
    Me parecem bellas,
    Como os meus amores.
    Rosto singular,
    Olhos socegados,
    Pretos e cansados,
    Mas não de matar.

    Huma graça viva,
    Que nelles lhe mora,
    Para ser senhora
    De quem he captiva.
    Pretos os cabellos,
    Onde o povo vão
    Perde opinião,
    Que os louros são bellos.

    Pretidão de Amor,
    Tão doce a figura,
    Que a neve lhe jura
    Que trocára a cór.
    Leda mansidão,
    Que o siso acompanha,
    Bem parece estranha,
    Mas barbara não.

    Presença serena,
    Que a tormenta amansa:
    Nella emfim descansa
    Toda minha pena.
    Esta he a captiva,
    Que me tẽe captivo;
    E pois nella vivo,
    He fôrça que viva.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Quem ora soubesse
    Onde o Amor nasce,
    Que o semeasse!

_Voltas._

    D'Amor e seus danos
    Me fiz lavrador;
    Semeava amor,
    E colhia enganos;
    Não vi, em meus anos,
    Homem que apanhasse
    O que semeasse.

    Vi terra florída
    De lindos abrolhos,
    Lindos para os olhos,
    Duros para a vida.
    Mas a rez perdida,
    Que tal herva pasce,
    Em forte hora nasce.

    Com quanto perdi,
    Trabalhava em vão:
    Se semeei grão,
    Grande dor colhi.
    Amor nunca vi
    Que muito durasse,
    Que não magoasse.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Se me levão ágoas,
    Nos olhos as levo.

_Voltas._

    Se de saudade
    Morrerei ou não,
    Meus olhos dirão
    De mi a verdade.
    Por elles me atrevo
    A lançar as ágoas,
    Que mostrem as mágoas
    Que nesta alma levo.

    As ágoas, qu'em vão
    Me fazem chorar,
    Se ellas são do mar,
    Estas de amar são.
    Por ellas relévo
    Todas minhas mágoas;
    Que se fôrça d'ágoas
    Me leva, eu as levo.

    Todas me entristecem,
    Todas são salgadas;
    Porém as choradas
    Doces me parecem.
    Correi, doces ágoas,
    Que se em vós m'enlévo,
    Não doem as mágoas,
    Que no peito levo.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Menina dos olhos verdes,
    Porque me não vedes?

_Voltas._

    Elles verdes são,
    E tẽe por usança
    Na côr esperança,
    E nas obras não.
    Vossa condição
    Não he d'olhos verdes,
    Porque me não vêdes.

    Isenções a mólhos
    Qu'elles dizem terdes,
    Não são d'olhos verdes,
    Nem de verdes olhos.
    Sirvo de giolhos,
    E vós não me credes,
    Porque me não vêdes.

    Havião de ser,
    Porque possa vê-los,
    Que huns olhos tão bellos
    Não se hão d'esconder:
    Mas fazeis-me crer,
    Que ja não são verdes,
    Porque me não vêdes.

    Verdes não o são,
    No que alcanço delles;
    Verdes são aquelles
    Qu'esperança dão.
    Se na condição
    Está serem verdes,
    Porque me não vedes?

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Trocae o cuidado,
    Senhora, comigo;
    Vereis o perigo,
    Qu'he ser desamado.

_Voltas._

    Se trocar desejo
    O amor entre nós,
    He para qu'em vós
    Vejais o que vejo.
    E sendo trocado
    Este amor comigo,
    Ser-vos-ha castigo
    Terdes meu cuidado.

    Tendes o sentido
    D'Amor livre e isento,
    E cuidais qu'he vento
    Ser tão mal querido.
    Não seja o cuidado
    Tão vosso inimigo,
    Que queira o perigo
    De ser desamado.

    Mas nunca foi tal
    Este meu querer,
    Que a quem tanto quer,
    Queira tanto mal
    Seja eu maltratado,
    E nunca o castigo
    Vos mostre o perigo,
    Qu'he ser desamado.

      *      *      *      *      *


Á TENÇÃO DE MIRAGUARDA.

    Ver, e mais guardar
    De ver outro dia,
    Quem o acabaria?

_Voltas._

    Da lindeza vossa,
    Dama, quem a vê,
    Impossivel he
    Que guardar-se possa.
    Se faz tanta mossa
    Ver-vos hum só dia,
    Quem se guardaria?

    Melhor deve ser
    Neste aventurar
    Ver, e não guardar,
    Que guardar e ver.
    Ver e defender,
    Muito bom sería,
    Mas quem poderia?

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Irme quiero, madre,
    Á aquella galera,
    Con el marinero,
    Á ser marinera.

_Voltas._

    Madre, si me fuere,
    Do quiera que vó,
    No lo quiero yo,
    Que el Amor lo quiere.
    Aquel niño fiero,
    Hace que me mueva
    Por un marinero
    Á ser marinera.

    El que todo puede,
    Madre, no podrá,
    Pues el alma vá,
    Que el cuerpo se quede.
    Con él por que muero
    Voy, porque no muera;
    Que si es marinero,
    Seré marinera.

    Es tirana ley
    Del niño Señor,
    Que por un amor
    Se deseche un Rey.
    Pues desta manera
    Quiero irme, quiero
    Por un marinero
    Á ser marinera.

    Decid, ondas, cuando
    Vistes vos doncella,
    Siendo tierna y bella,
    Andar navegando?
    Mas qué no se espera
    Daquel niño fiero?
    Vea yo quien quiero,
    Sea marinera.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Saudade minha,
    Quando vos veria?

_Voltas._

    Este tempo vão,
    Esta vida escassa,
    Para todos passa,
    Só para mi não.
    Os dias se vão
    Sem ver este dia,
    Quando vos veria.

    Vêde esta mudança
    Se está bem perdida,
    Em tão curta vida
    Tão longa esperança.
    Se este bem se alcança,
    Tudo soffreria,
    Quando vos veria.

    Saudosa dor,
    Eu bem vos entendo;
    Mas não me defendo,
    Porque offendo Amor.
    Se fôsseis maior,
    Em maior valia
    Vos estimaria.

    Minha saudade,
    Charo penhor meu,
    A quem direi eu
    Tamanha verdade?
    Na minha vontade
    De noite e de dia
    Sempre vos teria.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Vida da minha alma,
    Não vos posso ver:
    Isto não he vida
    Para se soffrer.

_Voltas._

    Quando vos eu via,
    Esse bem lograva,
    A vida estimava,
    Pois então vivia;
    Porque vos servia
    Só para vos ver.
    Ja que vos não vejo
    Para qu'he viver?

    Vivo sem razão,
    Porqu'em minha dor
    Não a poz Amor;
    Que inimigos são.
    Mui grande traição
    Me obriga a fazer
    Que viva, Senhora,
    Sem vos poder ver.

    Não me atrevo ja,
    Minha tão querida,
    A chamar-vos vida,
    Porque a tenho má.
    Ninguem cuidará,
    Que isto póde ser,
    Sendo-me vós vida,
    Não poder viver.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Coifa de beirame
    Namorou Joanne.

_Voltas._

    Por cousa tão pouca
    Andas namorado?
    Amas o toucado,
    E não quem o touca?
    Ando cega e louca
    Por ti, meu Joanne,
    Tu pelo beirame.

    Amas o vestido?
    Es falso amador.
    Tu não vês que Amor
    Se pinta despido?
    Cego e mui perdido
    Andas por beirame,
    E eu por ti, Joanne.

    A todos encanta
    Tua parvoice;
    De tua doudice
    Gonçalo s'espanta,
    E zombando canta:
    Coifa de beirame,
    Namorou Joanne.

    Eu não sei que viste
    Neste meu toucado,
    Que tão namorado
    Delle te sentiste.
    Não te veja triste;
    Ama-me, Joanne,
    E deixa o beirame.

    Joanne gemia,
    Maria chorava,
    E assi lamentava
    O mal que sentia:
    (Os olhos feria,
    E não o beirame,
    Que matou Joanne)

    Não sei do que vem
    Amares vestido;
    Que o mesmo Cupido
    Vestido não tem.
    Sabes de que vem
    Amares beirame?
    Vem de ser Joanne.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Se Helena apartar
    Do campo seus olhos,
    Nascerão abrolhos.

_Voltas._

    A verdura amena,
    Gados, que pasceis,
    Sabei que a deveis
    Aos olhos d'Helena.
    Os ventos serena,
    Faz flores d'abrolhos
    O ar de seus olhos.

    Faz serras florídas,
    Faz claras as fontes:
    S'isto faz nos montes,
    Que fara nas vidas?
    Tra-las suspendidas,
    Como hervas em mólhos,
    Na luz de seus olhos.

    Os corações prende
    Com graça inhumana;
    De cada pestana
    Hum'alma lhe pende.
    Amor se lhe rende,
    E pôsto em giolhos,
    Pasma nos seus olhos.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Verdes são os campos
    De côr de limão;
    Assi são os olhos
    Do meu coração.

_Voltas._

    Campo, que t'estendes
    Com verdura bella;
    Ovelhas, que nella
    Vosso pasto tendes;
    D'hervas vos mantendes
    Que traz o verão;
    E eu das lembranças
    Do meu coração.

    Gados, que pasceis
    Com contentamento,
    Vosso mantimento
    Não no entendeis.
    Isso que comeis,
    Não são hervas, não;
    São graça dos olhos
    Do meu coração.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Verdes são as hortas
    Com rosas e flores:
    Moças, que as régão,
    Matão-me d'amores.

_Voltas._

    Entre estes penedos
    Que daqui parecem,
    Verdes hervas crescem,
    Altos arvoredos.
    Vai destes rochedos
    Ágoa, com que as flores
    D'outras são regadas,
    Que mátão d'amores.

    Com ágoa, que cai
    Daquella espessura,
    Outra se mistura,
    Que dos olhos sai:
    Toda junta vai
    Regar brancas flores;
    Onde ha outros olhos,
    Que mátão d'amores.

    Celestes jardins,
    As flores estrellas:
    Hortelôas dellas
    São huns seraphins.
    Rosas e jasmins
    De diversas côres,
    Anjos, que as régão,
    Mátão-me d'amores.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Menina formosa,
    Dizei de que vem
    Serdes rigorosa
    A quem vos quer bem?

_Voltas._

    Não sei quem assella
    Vossa formosura;
    Que quem he tão dura
    Não póde ser bella.
    Vós sereis formosa;
    Mas a razão tem
    Que quem he irosa,
    Não parece bem.

    A mostra he de bella,
    As obras são cruas:
    Pois qual destas duas
    Ficará na sella?
    Se ficar _irosa_,
    Não vos está bem:
    Fique antes _formosa_,
    Que mais fôrça tem.

    O Amor formoso
    Se pinta e se chama:
    Se he amor, ama,
    Se ama, he piedoso.
    Diz agora a grosa
    Que este texto tem,
    Que quem he formosa
    Ha de querer bem.

    Havei dó, menina,
    Dessa formosura;
    Que se a terra he dura,
    Secca-se a bonina.
    Sêde piedosa;
    Não veja ninguem
    Que por rigorosa
    Percais tanto bem.

      *      *      *      *      *


ALHEIO.

    Tende-me mão nelle,
    Que hum real me deve.

_Voltas._

    C'hum real d'amor,
    Dous de confiança,
    E tres d'esperança,
    Me foge o trédor.
    Falso desamor
    S'encerra naquelle
    Que hum real me deve.

    Pedio-mo emprestado,
    Não lhe quiz penhor:
    He mao pagador;
    Tendo-mo afferrado.
    C'hum cordel atado,
    Ao Tronco se leve;
    Que hum real me deve.

    Por esta travéssa
    Se vai acolhendo:
    Ei-lo vai correndo,
    Fugindo a grã pressa.
    Nesta mão, e nessa
    O falso se atreve,
    Que hum real me deve.

    Comprou-me o amor,
    Sem lhe fazer preço:
    Eu não lhe mereço
    Dar-me desfavor.
    Dá-me tanta dor,
    Que ando apos elle
    Pelo que me deve.

    Eu de cá bradando,
    Elle vai fugindo;
    Elle sempre rindo,
    Eu sempre chorando.
    E de quando em quando
    No amor se atreve,
    Como que não deve.

    A fallar verdade
    Elle ja pagou;
    Mas ainda ficou
    Devendo ametade.
    Minha liberdade
    He a que me deve:
    Só nella se atreve.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Dó la mi ventura,
    Que no veo alguna?

_Voltas._

    Sepa quien padece,
    Que en la sepultura
    Se esconde ventura
    De quien la merece.
    Allá me parece,
    Que quiere fortuna
    Que yo halle alguna.

    Naciendo mesquino,
    Dolor fué mi cama;
    Tristeza fué el ama,
    Cuidado el padrino.
    Vestióse el destino
    Negra vestidura,
    Huyó la ventura.

    No se halló tormento,
    Que alli no se hallase;
    Ni bien, que pasase,
    Sinó como viento.
    Oh qué nacimiento,
    Que luego en la cuna
    Me siguió fortuna!

    Esta dicha mia,
    Que siempre busqué,
    Buscándola, hallé
    Que no la hallaria;
    Que quien nace en dia
    D'estrella tan dura,
    Nunca halla ventura.

    No puso mi estrella
    Mas ventura em min:
    Ansí vive en fin
    Quien nace sin ella.
    No me quejo della;
    Quéjome que atura
    Vida tan escura.

      *      *      *      *      *


MOTE.

    Vida de minha alma.

_Volta._

    Dous tormentos vejo
    Grandes por extremo:
    Se vos vejo, temo,
    E se não, desejo.
    Quando me despejo,
    E venho a escolher,
    Temendo o desejo,
    Desejo temer.

      *      *      *      *      *


CANTIGA ALHEIA.

    Pastora da serra,
    Da serra da Estrella,
    Perco-me por ella.

_Voltas._

    Nos seus olhos bellos
    Tanto Amor se atreve,
    Que abraza entre a neve
    Quantos ousão vellos.
    Não sólta os cabellos
    Aurora mais bella:
    Perco-me por ella.

    Não teve esta serra
    No meio d'altura
    Mais que a formosura,
    Que nella se encerra.
    Bem ceo fica a terra,
    Que tẽe tal estrella:
    Perco-me por ella.

    Sendo entre pastores
    Causa de mil males,
    Não se ouvem nos vales
    Senão seus louvores.
    Eu só por amores
    Não sei fallar nella,
    Sei morrer por ella.

    D'alguns, que sentindo
    Seu mal vão mostrando.
    Se ri, não cuidando
    Qu'inda paga rindo.
    Eu triste, encobrindo
    Só meus males della,
    Perco-me por ella.

    Se flores deseja
    Por ventura bellas,
    Das que colhe dellas
    Mil morrem d'inveja.
    Não ha quem não veja
    Todo o melhor nella:
    Perco-me por ella.

    Se n'ágoa corrente
    Seus olhos inclina,
    Faz a luz divina
    Parar a corrente.
    Tal se vê, que sente
    Por ver-se a ágoa nella:
    Perco-me por ella.

      *      *      *      *      *


ENDECHAS.

    Vós sois huma Dama
    Das feias do mundo;
    De toda a má fama
    Sois cabo profundo.

    A vossa figura
    Não he para ver;
    Em vosso poder
    Não ha formosura.

    Vós fostes dotada
    De toda a maldade;
    Perfeita beldade
    De vós he tirada.

    Sois muito acabada
    De taixa e de glosa:
    Pois quanto a formosa,
    Em vós não ha nada.

    Do grão merecer
    Sois bem apartada;
    Andais alongada
    Do bem parecer.

    Bem claro mostrais
    Em vós fealdade:
    Não ha hi maldade,
    Que não precedais.

    De fresco carão
    Vos vejo ausente;
    Em vós he presente
    A má condição.

    De ter perfeição
    Mui alheia estais;
    Mui muito alcançais
    De pouca razão.

      *      *      *      *      *


ENDECHAS.

    Vai o bem fugindo,
    Cresce o mal co'os annos,
    Vão-se descubrindo
    Co'o tempo os enganos.

    Amor e alegria.
    Menos tempo dura.
    Triste de quem fia
    Nos bens da ventura!

    Bem sem fundamento
    Tẽe certa a mudança,
    Certo o sentimento
    Na dor da lembrança.

    Quem vive contente,
    Viva receoso:
    Mal que se não sente,
    He mais perigoso.

    Quem males sentio,
    Saiba ja temer;
    E pelo que vio
    Julgue o qu'ha de ser.

    Alegre vivia,
    Triste vivo agora;
    Chora a alma de dia,
    E de noite chora.

    Confesso os enganos
    De meu pensamento:
    Bem de tantos annos
    Foi-se n'hum momento.

    Meus olhos, que vistes?
    Pois vos atrevestes,
    Chorae, olhos tristes,
    O bem que perdestes.

    A luz do sol pura
    Só a vós se negue;
    Seja noite escura,
    Nunca a manhãa chegue.

    O campo floreça,
    Murmurem as ágoas,
    Tudo me entristeça,
    Cresção minhas mágoas.

    Quizera mostrar
    O mal que padeço;
    Não lhe dá lugar
    Quem lhe deu comêço.

    Em tristes cuidados
    Passo a triste vida;
    Cuidados cansados,
    Vida aborrecida.

    Nunca pude crer
    O que agora creio:
    Cegou-me o prazer
    Do mal que me veio.

    Ah ventura minha,
    Como me negaste!
    Hum so bem que tinha,
    Porque mo roubaste?

    Triste fantasia
    Quanta cousa guarda!
    Quem ja visse o dia,
    Que tanto lhe tarda!

    Nesta vida cega
    Nada permanece;
    O qu'inda não chega,
    Ja desaparece.

    Qualquer esperança
    Foge como o vento:
    Tudo faz mudança,
    Salvo meu tormento.

    Amor cego e triste,
    Quem o tẽe padece:
    Mal quem lhe resiste!
    Mal quem lhe obedece!

    No meu mal esquivo
    Sei como Amor trata:
    E pois nelle vivo,
    Nenhum amor mata.

      *      *      *      *      *



SEXTINAS.


SEXTINA I.

    Foge-me pouco a pouco a curta vida,
    Se por caso he verdade qu'inda vivo;
    Vai-se-me o breve tempo d'ante os olhos;
    Chóro por o passado; e em quanto fallo,
    Se me passão os dias passo a passo.
    Vai-se-me, emfim, a idade, e fica a pena.

    Que maneira tão aspera de pena!
    Pois nunca hum'hora vio tão longa vida
    Em que do mal mover se visse hum passo.
    Que mais me monta ser morto que vivo?
    Para que chóro, emfim? para que fallo,
    Se lograr-me não pude de meus olhos?

    Oh formosos, gentís e claros olhos,
    Cuja ausencia me move a tanta pena,
    Quanta se não comprende em quanto fallo!
    Se no fim de tão longa e curta vida
    De vós m'inflammasse inda o raio vivo,
    Por bem teria todo o mal que passo.

    Mas bem sei que primeiro o extremo passo
    Me ha de vir a cerrar os tristes olhos,
    Que Amor me mostre aquelles por quem vivo.
    Testimunhas serão a tinta e penna,
    Qu'escrevêrão de tão molesta vida
    O menos que passei, e o mais que fallo.

    Oh que não sei qu'escrevo, nem que fallo!
    Pois se d'hum pensamento em outro passo,
    Vejo tão triste genero de vida,
    Que se lhe não valerem tanto os olhos,
    Não posso imaginar qual seja a penna
    Qu'esta pena traslade com que vivo.

    N'alma tenho contino hum fogo vivo,
    Que se não respirasse no que fallo,
    Estaria ja feita cinza a pena;
    Mas sôbre a maior dor que soffro e passo,
    O temperão com lagrimas os olhos:
    Com que, se foge, não se acaba a vida.

    Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
    Vejo sem olhos, e sem lingua fallo;
    E juntamente passo gloria e pena.

      *      *      *      *      *


SEXTINA II.

    A culpa de meu mal só tẽe meus olhos,
    Pois que derão a Amor entrada n'alma,
    Para que perdesse eu a liberdade.
    Mas quem póde fugir a huma brandura,
    Que despois de vos pôr em tantos males,
    Dá por bens o perder por ella a vida?

    Assaz de pouco faz quem perde a vida
    Por condição tão dura e brandos olhos;
    Pois de tal qualidade são meus males,
    Que o mais pequeno delles toca n'alma.
    Não s'engane com mostras de brandura
    Quem quizer conservar a liberdade.

    Roubadora he de toda liberdade
    (E oxalá perdoasse á triste vida!)
    Esta que o falso Amor chama brandura,
    Ai meus antes imigos, que meus olhos!
    Que mal vos tinha feito esta vossa alma,
    Para vós lhe fazerdes tantos males?

    Cresção de dia em dia embora os males;
    Perca-se embora a antigua liberdade;
    Transforme-se em Amor esta triste alma;
    Padeça embora esta innocente vida;
    Que bem me págão tudo estes meus olhos,
    Quando de outros, se os vem, vem a brandura.

    Mas como nelles póde haver brandura,
    Se causadores são de tantos males?
    Engano foi d'Amor, porque meus olhos
    Dessem por bem perdida a liberdade.
    Ja não tenho que dar senão a vida,
    Se a vida ja não deo, quem ja deo a alma.

    Que póde ja'sperar quem a sua alma
    Captiva eterna fez d'huma brandura,
    Que quando vos dá morte, diz qu'he vida?
    Forçado me he gritar nestes meus males,
    Olhos meus: pois por vós a liberdade
    Perdi, de vós me queixarei, meus olhos.

    Chorae, meus olhos, sempre os damnos d'alma,
    Pois dais a liberdade a tal brandura,
    Que para dar mais males, dá mais vida.

      *      *      *      *      *


SEXTINA III.

    Oh triste, oh tenebroso, oh cruel dia,
    Amanhecido só para meu damno!
    Pudeste-me apartar daquella vista
    Por quem vivia com meu mal contente?
    Ah se o supremo fôras desta vida,
    Qu'em ti se começára a minha glória!

    Mas como eu não nasci para ter glória,
    Senão pena que cresça cada dia,
    O ceo m'está negando o fim da vida,
    Porque não tenha fim com ella o damno:
    Para que nunca possa ser contente,
    Da vista me tirou aquella vista.

    Suave, deleitosa, alegre vista,
    Donde pendia toda a minha gloria,
    Por quem na mor tristeza fui contente;
    Quando será que veja aquelle dia
    Em que deixe de ver tão grave damno,
    E em que me deixe tão penosa vida?

    Como desejarei humana vida,
    Ausente d'hũa mais que humana vista,
    Que tão glorioso me fazia o damno!
    Vejo o meu damno sem a sua glória;
    Á minha noite falta ja seu dia:
    Triste tudo se vê, nada contente.

    Pois sem ti ja não posso ser contente,
    Mal posso desejar sem ti a vida;
    Sem ti ja ver não posso claro dia,
    Não posso sem te ver desejar vista;
    Na tua vista só se via a glória,
    Não ver a glória tua he ver meu damno.

    Não via maior glória que meu damno,
    Quando do damno meu eras contente:
    Agora me he tormento a maior glória,
    Que póde prometter-me Amor na vida,
    Pois tornar-te não póde á minha vista,
    Que só na tua achava a luz do dia.

    E pois de dia em dia cresce o damno,
    Nem posso sem tal vista ser contente,
    Só com perder a vida acharei glória.

      *      *      *      *      *


SEXTINA IV.

    Sempre me queixarei desta crueza
    Que Amor usou comigo quando o tempo,
    A pezar de meu duro e triste fado,
    A meus males queria dar remedio,
    Em apartar de mi aquella vista,
    Por quem me contentava a triste vida.

    Levára-me, oxalá, traz ella a vida,
    Para que não sentira esta crueza
    De me ver apartado de tal vista!
    E praza a Deos não veja o proprio tempo
    Em mi, sem esperança de remedio,
    A desesperação d'hum triste fado!

    Porém ja acabe o triste e duro fado!
    Acabe o tempo ja tão triste vida,
    Qu'em sua morte só tẽe seu remedio.
    O deixar-me viver he mor crueza,
    Pois desespéro ja d'em algum tempo
    Tornar a ver aquella doce vista.

    Duro Amor! se pagava só tal vista
    Todo o mal que por ti me fez meu fado,
    Porque quizeste que a levasse o tempo?
    E se o assi quizeste, porque a vida
    Me deixas para ver tanta crueza,
    Quando em não vê-la só vejo o remedio?

    Tu só de minha dor eras remedio,
    Suave, deleitosa e bella vista.
    Sem ti, que posso eu ver senão crueza?
    Sem ti, qual bem me póde dar o fado,
    Se não he consentir que acabe a vida?
    Mas elle della me dilata o tempo.

    Azas para voar vejo no tempo,
    Que com voar a muitos foi remedio;
    E só não vôa para a minha vida.
    Para que a quero eu sem tua vista?
    Para que quer tambem o triste fado
    Que não acabe o tempo tal crueza?

    Não poderão fazer crueza, ou tempo,
    Fôrça de fado, ou falta de remedio,
    Qu'essa vista m'esqueça em toda a vida.

      *      *      *      *      *



ELEGIAS


ELEGIA I.

    O sulmonense Ovidio desterrado
    Na aspereza do Ponto, imaginando
    Ver-se de seus Penates apartado;

    Sua chara mulher desamparando,
    Seus doces filhos, seu contentamento,
    De sua Patria os olhos apartando;

    Não podendo encobrir o sentimento,
    Aos montes ja, ja aos rios se queixava
    De seu escuro e triste nascimento.

    O curso das estrellas contemplava,
    E aquella ordem com que discorria
    O ceo e o ar, e a terra adonde estava.

    Os peixes por o mar nadando via,
    As feras por o monte procedendo
    Como o seu natural lhes permittia.

    De suas fontes via estar nascendo
    Os saudosos rios de crystal,
    Á sua natureza obedecendo.

    Assi só, de seu proprio natural
    Apartado, se via em terra estranha,
    A cuja triste dor não acha igual.

    Só sua doce Musa o acompanha
    Nos soidosos versos qu'escrevia,
    E nos lamentos com que o campo banha.

    Dest'arte me figura a phantasia
    A vida com que morro, desterrado
    Do bem qu'em outro tempo possuia.

    Aqui contemplo o gôsto ja passado,
    Que nunca passará por a memoria
    De quem o traz na mente debuxado.

    Aqui vejo caduca e debil glória
    Desenganar meu êrro co'a mudança
    Que faz a fragil vida transitoria.

    Aqui me representa esta lembrança
    Quão pouca culpa tenho; e m'entristece
    Ver sem razão a pena que m'alcança.

    Que a pena que com causa se padece,
    A causa tira o sentimento della;
    Mas muito doe a que se não merece.

    Quando a roxa manhãa, dourada e bella,
    Abre as portas ao sol e cahe o orvalho,
    E torna a seus queixumes Philomela;

    Este cuidado, que co'o somno atalho,
    Em sonhos me parece; que o que a gente
    Por seu descanso tẽe me dá trabalho.

    E despois de acordado cegamente,
    (Ou, por melhor dizer, desacordado,
    Que pouco acôrdo logra hum descontente)

    Daqui me vou, com passo carregado,
    A hum outeiro erguido, e alli m'assento,
    Soltando toda a redea a meu cuidado.

    Despois de farto ja de meu tormento,
    Estendo estes meus olhos saudosos
    Á parte donde tinha o pensamento.

    Não vejo senão montes pedregosos;
    E sem graça e sem flor os campos vejo,
    Que ja floridos víra, e graciosos.

    Vejo o puro, suave e rico Tejo,
    Com as concavas barcas, que nadando
    Vão pondo em doce effeito o seu desejo.

    Humas com brando vento navegando,
    Outras com leves reinos brandamente
    As crystallinas ágoas apartando.

    D'alli fallo com a ágoa que não sente
    Com cujo sentimento est'alma sae
    Em lagrimas desfeita claramente.

    Ó fugitivas ondas, esperae;
    Que pois me não levais em companhia,
    Ao menos estas lagrimas levae.

    Até que venha aquelle alegre dia
    Qu'eu vá onde vós ides, livre e ledo.
    Mas tanto tempo, quem o passaria?

    Não póde tanto bem chegar tão cedo:
    Porque primeiro a vida acabará,
    Que se acabe tão aspero degredo.

    Mas essa triste morte que virá,
    S'em tão contrário estado me acabasse,
    Est'alma assi impaciente adonde irá?

    Que se ás portas Tartaricas chegasse,
    Temo que tanto mal por a memoria
    Nem ao passar do Lethe lhe passasse.

    Que se a Tantalo e Ticio for notoria
    A pena com que vai, e que a atormenta,
    A pena que lá tẽe, terão por glória.

    Essa imaginação, emfim, me augmenta
    Mil mágoas no sentido, porque a vida
    De imaginações tristes se contenta.

    Que pois de todo vive consumida,
    Porque o mal que possue se resuma,
    Imagina na glória possuida.

    Até que a noite eterna me consuma,
    Ou veja aquelle dia desejado
    Em que a Fortuna faça o que costuma;

    Se nella ha hi mudar-se hum triste estado.

      *      *      *      *      *


ELEGIA II.

    Aquella que d'amor descomedido
    Por o formoso moço se perdeo,
    Que só por si d'amores foi perdido;

    Despois que a deosa em pedra a converteo
    De seu humano gesto verdadeiro,
    A última voz só lhe concedeo.

    Assi meu mal do proprio ser primeiro
    Outra cousa nenhũa me consente,
    Qu'este canto qu'escrevo derradeiro.

    E se huma pouca vida, estando ausente,
    Me deixa Amor, he porque o pensamento
    Sinta a perda do bem d'estar presente.

    Senhor, se vos espanta o soffrimento
    Que tenho em tanto mal para escrevê-lo,
    Furto este breve espaço a meu tormento.

    Porque quem tẽe poder para soffrê-lo,
    Sem se acabar a vida co'o cuidado,
    Tambem terá poder para dizê-lo.

    Nem eu escrevo hum mal ja acostumado;
    Mas n'alma minha triste e saudosa
    A saudade escreve, e eu traslado.

    Ando gastando a vida trabalhosa,
    E esparzindo a contínua soidade
    Ao longo d'huma praia soidosa.

    Vejo do mar a instabilidade,
    Como com seu ruido impetuoso
    Retumba na maior concavidade.

    De furibundas ondas poderoso,
    Na terra, a seu pezar, está tomando
    Lugar, em que s'estenda, cavernoso.

    Ella, como mais fraca, lh'está dando
    As concavas entranhas, onde esteja
    Sempre com som profundo suspirando.

    A todas estas cousas tenho inveja
    Tamanha, que não sei determinar-me,
    Por mais determinado que me veja.

    Se quero em tanto mal desesperar-me,
    Não posso, porque Amor e saudade
    Nem licença me dão para matar-me.

    Ás vezes cuido em mi, se a novidade
    E estranheza das cousas, co'a mudança,
    Poderião mudar huma vontade.

    E com isto figuro na lembrança
    A nova terra, o novo trato humano,
    A estrangeira progenie, a estranha usança.

    Subo-me ao monte que Hercules Thebano
    Do altissimo Calpe dividio,
    Dando caminho ao mar Mediterrano;

    D'alli'stou tenteando adonde vio
    O pomar das Hesperidas, matando
    A serpe que a seu passo resistio.

    Estou-me em outra parte figurando
    O poderoso Anteo, que derribado
    Mais fôrça se lhe vinha accrescentando;

    Porém do Herculeo braço sobjugado,
    No ar deixando a vida, não podendo
    Dos soccorros da mãe ser ajudado.

    Mas nem com isto, emfim, qu'estou dizendo,
    Nem com as armas tão continuadas,
    D'amorosas lembranças me defendo.

    Todas as cousas vejo demudadas,
    Porque o tempo ligeiro não consente
    Qu'estejão de firmeza acompanhadas.

    Vi ja que a Primavera, de contente,
    Em variadas côres revestia
    O monte, o campo, o valle, alegremente.

    Vi ja das altas aves a harmonia,
    Que até duros penedos convidava
    A algum suave modo d'alegria.

    Vi ja que tudo, emfim, me contentava,
    E que, de muito cheio de firmeza,
    Hum mal por mil prazeres não trocava.

    Tal me tẽe a mudança e estranheza,
    Que se vou por os prados, a verdura
    Parece que se sécca de tristeza.

    Mas isto he ja costume da ventura;
    Porque aos olhos que vivem descontentes,
    Descontente o prazer se lhes figura.

    Oh graves e insoffriveis accidentes
    De Fortuna e d'Amor! que penitencia
    Tão grave dais aos peitos innocentes!

    Não basta examinar-me a paciencia
    Com temores e falsas esperanças,
    Sem que tambem me tente o mal de ausencia?

    Trazeis hum brando espirito em mudanças,
    Para que nunca possa ser mudado
    De lagrimas, suspiros e lembranças.

    E s'estiver ao mal acostumado,
    Tambem no mal não consentis firmeza,
    Para que nunca viva descansado.

    Ja quieto m'achava co'a tristeza;
    E alli não me faltava hum brando engano.
    Que tirasse desejos da fraqueza.

    Mas vendo-me enganado estar ufano,
    Deo á roda a Fortuna; e deo comigo
    Onde de novo chóro o novo dano.

    Ja deve de bastar o que aqui digo,
    Para dar a entender o mais que calo
    A quem ja vio tão aspero perigo.

    E se nos brandos peitos faz abalo
    Hum peito magoado e descontente,
    Que obriga a quem o ouve a consolá-lo;

    Não quero mais senão que largamente,
    Senhor, me mandeis novas dessa terra;
    Que alguma dellas me fara contente.

    Porque se o duro Fado me desterra
    Tanto tempo do bem, que o fraco esprito
    Desampare a prisão onde s'encerra;

    Ao som das negras ágoas do Cocito,
    Ao pé dos carregados arvoredos
    Cantarei o que n'alma tenho escrito.

    E por entre estes horridos penedos
    A quem negou Natura o claro dia,
    Entre tormentos asperos e medos,

    Com a trémula voz, cansada e fria,
    Celebrarei o gesto claro e puro,
    Que nunca perderei da phantasia.

    O Musico de Thracia, ja seguro
    De perder sua Eurydice, tangendo
    Me ajudará ferindo o ar escuro.

    As namoradas sombras, revolvendo
    Memorias do passado, me ouvirão;
    E com seu chôro o rio irá crescendo.

    Em Salmonêo as penas faltarão,
    E das filhas de Belo juntamente
    De lagrimas os vasos s'encherão.

    Que se amor não se perde em vida ausente,
    Menos se perderá por morte escura:
    Porque, emfim, a alma vive eternamente,

    E amor he effeito d'alma, e sempre dura.

      *      *      *      *      *


ELEGIA III.

    O poeta Simonides fallando
    Co'o Capitão Themistocles hum dia,
    Em cousas de sciencia praticando;

    Hum'arte singular lhe promettia,
    Qu'então compunha, com que lh'ensinasse
    A lembrar-se de tudo o que fazia;

    Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
    Que nunca lhe passassem da memoria
    Em nenhum tempo as cousas que passasse.

    Bem merecia, certo, fama e gloria
    Quem dava regra contra o esquecimento,
    Que sepulta qualquer antigua historia.

    Mas o Capitão claro, cujo intento
    Bem differente estava, porque havia
    Do passado as lembranças por tormento;

    Oh illustre Simonides! (dizia)
    Pois tanto em teu engenho te confias,
    Que mostras á memoria nova via;

    Se me désses hum'arte, qu'em meus dias
    Me não lembrasse nada do passado,
    Oh quanto melhor obra me farias!

    S'este excellente dito ponderado
    Fosse por quem se visse estar ausente,
    Em longas esperanças degradado;

    Oh como bradaria justamente,
    Simonides, inventa novas artes;
    Não midas o passado co'o presente!

    Que se he forçado andar por várias partes
    Buscando á vida algum descanço honesto,
    Que tu, Fortuna injusta, mal repartes;

    E se o duro trabalho, he manifesto
    Que por grave que seja, ha de passar-se
    Com animoso esprito e ledo gesto;

    De que serve ás pessoas o lembrar-se
    Do que se passou ja, pois tudo passa,
    Senão d'entristecer-se e magoar-se?

    S'em outro corpo hum'alma se traspassa,
    Não como quiz Pythagoras na morte,
    Mas como quer Amor na vida escassa;

    E s'este Amor no mundo está de sorte,
    Que na virtude só d'hum lindo objecto
    Tẽe hum corpo, sem alma, vivo e forte;

    Onde este objecto falta, qu'he defecto
    Tamanho para a vida, que ja nella
    M'está chamando á pena a dura Alecto;

    Porque me não criára a minha Estrella
    Selvatico no mundo, e habitante
    Na dura Scythia, e no mais duro della?

    Ou no Caucaso horrendo, fraco infante
    Criado ao peito d'huma tigre Hircana,
    Homem fôra formado de diamante;

    Porque a cerviz ferina e inhumana
    Não submettêra ao jugo e dura lei
    Daquelle que dá vida quando engana.

    Ou em pago das ágoas qu'estilei,
    As que passei do mar, forão do Lete,
    Para que m'esquecêra o que passei.

    Porque o bem que a esperança vãa promette,
    Ou a morte o estorva, ou a mudança,
    Que he mal que hum'alma em lagrimas derrete.

    Ja, Senhor, cahirá como a lembrança,
    No mal, do bem passado he triste e dura,
    Pois nasce aonde morre a esperança.

    E se quizer saber como se apura
    Em almas saudosas, não s'enfade
    De ler tão longa e misera escriptura.

    Soltava Eolo a redea e liberdade
    Ao manso Favonio brandamente,
    E eu a tinha ja sôlta á saudade.

    Neptuno tinha pôsto o seu tridente;
    A proa a branca escuma dividia,
    Com a gente maritima contente.

    O côro das Nereidas nos seguia;
    Os ventos, namorada Galatêa
    Comsigo socegados os movia.

    Das argenteas conchinhas Panopêa
    Andava por o mar fazendo mólhos,
    Melanto, Dinamene, com Ligea.

    Eu, trazendo lembranças por antolhos,
    Trazia os olhos n'ágoa socegada,
    E a ágoa sem socêgo nos meus olhos.

    A bem-aventurança ja passada
    Diante de mi tinha tão presente,
    Como se não mudasse o tempo nada.

    E com o gesto immoto e descontente,
    Co'hum suspiro profundo e mal ouvido,
    Por não mostrar meu mal a toda a gente,

    Dizia: Oh claras Nymphas! se o sentido
    Em puro amor tivestes, e inda agora
    Da memoria o não tendes esquecido;

    Se por ventura fordes algum'hora
    Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
    A Tethys, que vós tendes por Senhora;

    Ou ja por ver o verde prado enxuto,
    Ou ja por colher ouro rutilante,
    Das Tagicas areias rico fruto;

    Nellas em verso erotico e elegante
    Escrevei co'huma concha o qu'em mi vistes;
    Póde ser que algum peito se quebrante.

    E contando de mi memorias tristes,
    Os pastores do Tejo, que me ouvião,
    Oução de vós as mágoas que me ouvistes.

    Ellas, que ja no gesto m'entendião,
    Nos meneios das ondas me mostravão
    Qu'em quanto lhes pedia consentião.

    Estas lembranças, que me acompanhavão
    Por a tranquillidade da bonança,
    Nem na tormenta triste me deixavão.

    Porque chegando ao Cabo da Esperança,
    Comêço da saudade que renova,
    Lembrando a longa e aspera mudança;

    Debaixo estando ja da estrella nova
    Que no novo Hemispherio resplandece,
    Dando do segundo axe certa prova;

    Eis a noite com nuvens s'escurece;
    Do ar subitamente foge o dia;
    E todo o largo Oceano s'embravece.

    A máchina do mundo parecia
    Qu'em tormentas se vinha desfazendo;
    Em serras todo o mar se convertia.

    Lutando Boreas fero e Noto horrendo.
    Sonoras tempestades levantavão,
    Das naos as velas concavas rompendo.

    As cordas co'o ruido assoviavão;
    Os marinheiros, ja desesperados,
    Com gritos para o ceo o ar coalhavão.

    Os raios por Vulcano fabricados
    Vibrava o fero e aspero Tonante,
    Tremendo os Polos ambos de assombrados.

    Amor alli, mostrando-se possante,
    E que por algum medo não fugia,
    Mas quanto mais trabalho, mais constante;

    Vendo a morte presente, em mi dizia:
    Se algum'hora, Senhora, vos lembrasse,
    Nada do que passei me lembraria.

    Emfim, nunca houve cousa que mudasse
    O firme amor intrinseco daquelle
    Em quem alguma vez de siso entrasse.

    Huma cousa, Senhor, por certa asselle,
    Que nunca amor se affina, nem se apura,
    Em quanto está presente a causa delle.

    Dest'arte me chegou minha ventura
    A esta desejada e longa terra,
    De todo pobre honrado sepultura.

    Vi quanta vaidade em nós s'encerra,
    E nos proprios quão pouca; contra quem
    Foi logo necessario termos guerra.

    Huma Ilha que o Rei de Porcá tem,
    E que o Rei da Pimenta lhe tomára,
    Fomos tomar-lha, e succedeo-nos bem.

    Com huma grossa armada, que juntára
    O Viso-Rei, de Goa nos partimos
    Com toda a gente d'armas que se achára.

    E com pouco trabalho destruimos
    A gente no curvo arco exercitada:
    Com morte, com incendios os punimos.

    Era a Ilha com ágoas alagada,
    De modo que se andava em almadias:
    Emfim, outra Veneza trasladada.

    Nella nos detivemos sós dous dias,
    Que forão para alguns os derradeiros,
    Pois passárão da Estyge as ondas frias.

    Qu'estes são os remedios verdadeiros
    Que para a vida estão apparelhados
    Aos que a querem ter por cavalleiros.

    Oh Lavradores bem-aventurados!
    Se conhecessem seu contentamento,
    Como vivem no campo socegados!

    Dá-lhes a justa terra o mantimento;
    Dá-lhes a fonte clara d'ágoa pura;
    Mungem suas ovelhas cento a cento.

    Não vem o mar irado, a noite escura,
    Por ir buscar a pedra do Oriente;
    Não temem o furor da guerra dura.

    Vive hum com suas árvores contente,
    Sem lhe quebrar o somno repousado
    A grã cobiça d'ouro reluzente.

    Se lhe falta o vestido perfumado,
    E da formosa côr de Assyria tinto,
    E das torçaes Attalicos lavrado;

    Se não tẽe as delicias de Corinto,
    E se de Pario os marmores lhe faltão,
    O pyropo, a esmeralda e o jacinto;

    Se suas casas de ouro não s'esmaltão,
    Esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
    Onde os cabritos seus comendo sáltão.

    Alli lhe mostra o campo várias côres;
    Vem-se os ramos pender co'o fructo ameno;
    Alli se affina o canto dos pastores.

    Alli cantára Tityro e Sileno.
    Emfim, por estas partes caminhou
    A sãa Justiça para o ceo sereno.

    Ditoso seja aquelle que alcançou
    Poder viver na doce companhia
    Das mansas ovelhinhas que criou!

    Este bem facilmente alcançaria
    As causas naturaes de toda cousa;
    Como se gera a chuva e neve fria:

    Os trabalhos do sol, que não repousa;
    E porque nos dá lũa a luz alhêa,
    Se tolher-nos de Phebo os raios ousa:

    E como tão depressa o ceo rodêa;
    E como hum só os outros traz comsigo;
    E se he benigna ou dura Cytherêa.

    Bem mal póde entender isto que digo,
    Quem ha de andar seguindo o fero Marte;
    Que sempre os olhos traz em seu perigo.

    Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
    Pois postoque a Fortuna possa tanto,
    Que tão longe de todo o bem me aparte;

    Não poderá apartar meu duro canto
    Desta obrigação sua, em quanto a morte
    Me não entrega ao duro Radamanto;

    Se para tristes ha tão leda sorte.

      *      *      *      *      *


ELEGIA IV.

    Despois que Magalhães teve tecida
    A breve historia sua, que illustrasse
    A Terra Santa Cruz, pouco sabida;

    Imaginando a quem a dedicasse,
    Ou com cujo favor defenderia
    Seu livro d'algum zoilo que ladrasse;

    Tendo nisto occupada a phantasia,
    Lhe sobreveio hum somno repousado,
    Antes que o sol abrisse o claro dia.

    Em sonhos lhe apparece todo armado
    Marte, brandindo a lança furiosa,
    Com que fez quem o vio todo enfiado;

    Dizendo em voz pezada e temerosa:
    Não he justo que a outrem se offereça
    Obra alguma que possa ser famosa,

    Senão a quem por armas resplandeça
    No largo inundo com tal nome e fama,
    Que louvor immortal sempre mereça.

    Disse assi: quando Apollo, que da flama
    Celeste guia os carros, de outra parte
    Se lhe presenta, e por seu nome o chama,

    Dizendo: Magalhães, postoque Marte
    Com seu terror t'espante, todavia
    Comigo deves só de aconselhar-te.

    Hum Varão sapiente, em quem Thalia
    Poz seus thesouros, e eu minha sciencia,
    Defender tuas obras poderia.

    He justo que a escriptura na prudencia
    Ache só defensão; porque a dureza
    Das armas he contrária da eloquencia.

    Assi disse: e tocando com destreza
    A cithara dourada, começou
    A mitigar de Marte a fortaleza.

    Mas Mercurio, que sempre costumou
    Pacificar porfias duvidosas,
    Co'o Caducêo na mão, que sempre usou,

    Determina compor as perigosas
    Opiniões dos deoses inimigos
    Com suaves razões e ponderosas.

    E disse: Bem sabemos dos antigos
    Heroes, e dos modernos, que provárão
    De Belona os gravissimos perigos,

    Como tão bem mil vezes concordárão
    As armas com as letras; porque as Musas
    A muitos na milicia acompanhárão.

    Nunca Alexandre, ou Cesar, nas confusas
    Guerras o estudo deixão grande espaço;
    Que as armas jamais delle são escusas.

    N'huma mão livros, n'outra ferro e aço;
    Aquella rege e ensina; est'outra fere:
    Mais co'o saber se vence, que co'o braço.

    Pois, logo, hum Varão grande se requere,
    Que com teus dões (Apollo) illustre seja,
    E de ti (Marte) palma e glória espere.

    Este vos darei eu, em quem se veja
    Saber e esfôrço no sereno peito,
    Que he hum Leoniz que faz ao mundo inveja.

    Deste as Irmãas em vendo o bom sogeito,
    Todas nove nos braços o tomárão,
    Criando-o co'o seu leite no seu leito:

    As Artes e as Sciencias lh'ensinárão;
    Inclinação divina lh'influírão
    Ás virtudes moraes, que logo o ornárão.

    Daqui nos exercidos o seguírão
    Das armas no Oriente, onde primeiro
    Hum soldado gentil instituírão.

    Alli taes provas fez de Cavalleiro,
    Que, de Christão magnanimo e seguro,
    A si mesmo venceo por derradeiro.

    Despois, ja Capitão forte e maduro,
    Governando toda a Aurea Chersoneso,
    Lhe defendeo co'o braço o debil muro.

    Porque vindo a cercá-la todo o pêso
    Do poder dos Achens, que se sustenta
    De alheio sangue, em furia todo acceso;

    Este só que a ti, Marte, representa,
    O castigou de sorte, que vencido
    De ter quem vivo fique se contenta.

    E logo qu'este Reino defendido
    Deixou, segunda vez com maior glória
    Para o ir governar foi elegido.

    Mas não perdendo ainda da memoria
    Os amigos o seu govêrno brando,
    Os imigos o damno da victoria;

    Huns com amor intrinseco esperando
    Estão por elle, e os outros congelados
    O estão com frio medo receando.

    Vêde pois se serião debellados
    Por seu claro valor, se lá tornasse,
    E dos Indicos mares degradados.

    Porqu'he justo que nunca lhe negasse
    O conselho do Olympo alto e subido
    Favor e ajuda com que pelejasse.

    Aqui só póde ser bem dirigido
    De Magalhães o estudo: este só deve
    Ser de vós, claros deoses, escolhido.

    Assi Mercurio disse; e em termo breve
    Conformados se vem Apollo e Marte;
    E voou juntamente o somno leve.

    Acorda Magalhães, e ja se parte
    A offrecer-vos, Senhor claro e famoso,
    Tudo o que nelle poz sciencia e arte.

    Tẽe claro estylo, e engenho curioso,
    Para poder de vós ser recebido,
    Com mão benigna, de ânimo amoroso.

    Pois se só de não ser favorecido
    Hum alto esprito fica baixo e escuro;
    Este seja comvosco defendido,

    Como o foi de Malaca o debil muro.

      *      *      *      *      *


ELEGIA V.

    Aquelle mover de olhos excellente,
    Aquelle vivo espirito inflammado
    Do crystallino rosto transparente;

    Aquelle gesto immoto e repousado,
    Qu'estando n'alma propriamente escrito,
    Não póde ser em verso trasladado;

    Aquelle parecer, que he infinito
    Para se comprender d'engenho humano;
    O qual offendo em quanto tenho dito;

    Tanto a inflamar-me vem d'hum doce engano,
    E tanto a engrandecer-me a phantasia,
    Que não vi maior glória que meu dano.

    Oh bem-aventurado seja o dia
    Em que tomei tão doce pensamento,
    Que de todos os outros me desvia!

    E bem-aventurado o soffrimento
    Que soube ser capaz de tanta pena,
    Vendo que o foi da causa o entendimento!

    Faça-me quem me mata, o mal que ordena,
    Trate-me com enganos, desamores;
    Qu'então me salva, quando me condena.

    E se de tão suaves desfavores
    Penando vive hum'alma consumida,
    Oh que doce penar! que doces dores!

    E se huma condição endurecida
    Tambem me nega a morte por meu dano,
    Oh que doce morrer! que doce vida!

    E se me mostra hum gesto lindo humano,
    Como que de meu mal culpada se acha,
    Oh que doce mentir! que doce engano!

    E s'em querer-lhe tanto ponho tacha,
    Mostrando refrear o pensamento,
    Oh que doce fingir! que doce cacha!

    Assi que ponho ja no soffrimento
    A parte principal de minha glória,
    Tomando por melhor todo tormento.

    Se sinto tanto bem só co'a memoria
    De ver-vos, linda Dama, vencedora;
    Que quero eu mais que ser vossa victoria?

    Se tanto a vossa vista mais namora,
    Quanto eu sou menos para merecer-vos;
    Que quero eu mais que ter-vos por senhora?

    Se procede este bem de conhecer-vos,
    E consiste o vencer em ser vencido,
    Que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

    S'em meu proveito faz qualquer partido,
    Só na vista d'huns olhos tão serenos,
    Que quero eu mais ganhar que ser perdido?

    Se, emfim, os meus espritos, de pequenos,
    A merecer não chegão seu tormento,
    Que quero eu mais, que o mais não seja menos?

    A causa, pois, m'esforça o soffrimento;
    Porque, a pezar do mal que me resiste,
    De todos os trabalhos me contento;

    Que a razão faz a pena alegre, ou triste.

      *      *      *      *      *


ELEGIA VI.

    Entre rusticas serras e fragosas,
    Compostas d'asperissimos rochedos,
    De salitradas lapas cavernosas;

    Onde gretando os humidos penedos
    Orvalhados de neve branca e fria,
    Brotando estão de si mil arvoredos;

    Huma floresta fez verde e sombria
    A natureza experta, que rodeia,
    Como elevado muro, a serrania.

    Neste formoso sítio se recreia
    O lascivo Cupido entre as boninas,
    Que sempre hum brando Zephyro meneia.

    Da candida cecem, das clavellinas,
    Da salva, mangerona e das mosquetas,
    Das rubicundas flores hyacinthinas,

    Muitas capellas tece, que de setas
    Lhe servem contra peitos de donzellas,
    A quem d'inveja traz sempre inquietas.

    Não são d'huma só côr as flores bellas;
    Que humas esmalta verde, outras rosado,
    Entre as azues crescendo as amarellas.

    Dos agrestes loureiros rodeado,
    Faz o valle huma sombra deleitosa,
    Quando apparece o sol mais levantado.

    E por cima da relva bem graciosa
    As gottas de crystal quasi imitando
    Estão do aljofar puro a luz formosa.

    As crystallinas fontes, que brotando
    Por entre alvos seixinhos se derivão,
    Das árvores os troncos vão banhando.

    Entre as limpidas ágoas, qu'inda esquivão
    O formoso pastor que se perdeo,
    Preso das falsas mostras que o captivão,

    Cresce a por cuja causa s'esqueceo
    A linda Cytherêa de Vulcano,
    Quando presa d'Amor se lhe rendeo.

    Na brancura do rosto soberano,
    Inda as crueis feridas apparecem
    Do javali cerdoso e deshumano.

    As rosas que de sangue resplandecem,
    As candidas boninas marchetadas,
    Qual roxo esmalte á vista bem se offrecem.

    Do matutino orvalho rociadas,
    As flores rutilantes e cheirosas
    Estão como por cima prateadas.

    Os humidos botões abrindo as rosas,
    Que os agudos espinhos vão cercando,
    No prado se vem rindo deliciosas.

    A mellifera abelha, susurrando
    Por cima das boninas que rodeia,
    Está co'o som das ágoas concertando.

    Do trémulo regato a branda areia
    De jacinthos se cobre e de vieiras,
    Qu'encrespão da corrente a branca veia.

    Os álamos s'abração co'as videiras
    De sorte, que s'enxérga escassamente
    Se são os cachos seus, se das parreiras;

    E pendendo por cima da corrente,
    Outro formoso bosque debuxando
    Estão no fundo della brandamente.

    Ouve-se o rouxinol aqui, lembrando
    Do perfido cunhado a crueldade,
    Mágoas em melodias transformando.

    A solitaria rôla com soidade
    Desfaz o rouco peito, ja cansada
    De que não move a morte a piedade.

    A domestica Progne anda banhada
    No sangue de seus filhos, em vingança
    Da triste Philomela profanada.

    De competir co'o merlo não descança
    O garrulo calhandro, qu'enrouquece
    Por não perder callado a confiança.

    Em quanto o pobre ninho ajunta e tece
    O sonoro canario, modulando
    Engana a grave pena que padece.

    Alguns versos s'escuta derramando
    O vário pintasirgo, tão saudaveis,
    Que produzem memorias d'amor brando.

    Por os direitos troncos ha notaveis
    Epigrammas; alguns d'antigua historia,
    Que contra o duro tempo são duraveis.

    Huns de cruel tormento, outros de glória,
    Conforme a liberdade do qu'escreve,
    Estranhos casos mostrão á memoria.

    O que neste lugar contente esteve,
    Contente declarou seu pensamento,
    E os prazeres tambem que nelle teve.

    Mas outros, declarando o sentimento
    Que dos olhos destila tristes ágoas,
    Deixárão mil lembranças de tormento.

    Abrazando-se alguns em vivas frágoas,
    Escrevêrão do bosque em muitas partes
    Gostos d'Amor agora, agora mágoas.

    Porque, cruel menino, o premio partes
    A quem serás[2] tyranno se lho negas,
    E injusto e desigual, se lho repartes?

    Porqu'enganas as almas que tão cegas
    Arrastas apos ti, de error captivas?
    Porque a crueis rigores as entregas?

    Para que contra hum peito assi t'esquivas,
    Que humilde se sujeita a teu cuidado,
    Com enganos de sombras fugitivas?

    Levas, como a menino, hum pobre a nado,
    N'huma apparencia falsa embevecido,
    Quando co'os braços corta o mar inchado.

    Querendo-se tornar, vê-se perdido;
    Ja grita que se affoga; e tu zombando,
    Da praia entre os penedos escondido!

    O triste, que conhece ir-se affogando,
    No meio da arriscada zombaria
    Por divino soccorro está clamando.

    Mas eu de que m'espanto, se dizia
    Hum sabio que d'enganos se temesse
    O que tomasse a hum cego tal por guia?

    Nunca nelle a firmeza permanece;
    Se nos dá gôsto algum, muda-se logo;
    Ja chora, ja se ri, ja s'enfurece.

    Anda co'os corações sempre em hum jôgo;
    Humas vezes os faz de pedra fria,
    Outras os faz de neve, outras de fogo.

    Tornando ao bosque meu que descrevia,
    Despois de ter contado da frescura
    Que nelle tão pomposa apparecia,

    Referir quero agora huma aventura
    Que nelle ao vão Narciso aconteceo,
    Digna de se chorar com mágoa pura.

    Castigo foi que o moço mereceo
    Por se mostrar esquivo com aquella,
    Qu'em viva pedra Juno converteo.

    Ardia em fogo d'alma a vãa donzella,
    Soffrendo hum duro peito; que a Narciso,
    Quando ella mais se abraza, mais congela.

    E quando a fraca Nympha mais de siso
    Mostrava hum signal certo de firmeza,
    Então se provocava o moço a riso.

    Ja d'huma profundissima tristeza
    A descora o rigor que a consumia.
    Como diz desfavor mal com belleza!

    O gelado pastor folgava e ria;
    Mas vendo-a de seu gôsto andar contente,
    Por não a contentar s'entristecia.

    He tal o seu rigor, que não consente
    Que seja o gôsto proprio festejado;
    Antes disso se mostra descontente.

    Mas o cego Cupido, d'affrontado,
    Em vingança da fé que desprezou,
    Fez que fosse de si mesmo enganado.

    Casualmente hum dia se chegou
    A beber n'huma fonte crystallina,
    Que de si nova sêde lhe causou.

    Vendo a sua figura peregrina
    Que a fonte dentro em si representava,
    Se perdeo por imagem tão divina.

    Como ja, d'enlevado, não cuidava
    Nos enganos que a sombra lhe fazia,
    Vendo o formoso rosto, suspirava.

    Por as avaras ágoas se metia;
    E quanto mais molhava os tenros braços,
    Então mais vivamente o fogo ardia.

    Vendo-se assi prender em duros laços,
    Ao sentimento obriga a paciencia,
    Dando, fóra de si, ao vento abraços.

    Embevecido todo n'apparencia,
    Sem saber de cuidado o que sentia,
    Não fez ao doce engano resistencia.

    Ao ver-se longe mais, mais perto via
    O peregrino gesto; e se chegava,
    Então para mais longe lhe fugia.

    Vendo, emfim, como em tudo o remedava
    Cahio no torpe engano que tivera,
    A tempo que de si ja preso estava.

    A belleza que a tantas morte dera,
    De si mesma se abraza e se captiva.
    Quão longe então de si ver-se quizera!

    Ella se abranda propria; ella se esquiva;
    E sendo ella somente a que se amava,
    Ella se chama ingrata e fugitiva.

    A formosura, pois, que namorava,
    Com tal difficuldade era seguida,
    Qu'estando dentro em si, mui longe estava.

    A solitaria Nympha, qu'escondida
    Ja nas cavernas concavas se via,
    Dos males que lhe ouvio foi commovida.

    Das namoradas mágoas que dizia
    O namorado moço, ella somente
    Os ultimos accentos repetia.

    Elle vendo-se estar alli presente,
    As crystallinas ágoas accusava
    De que ellas o fazião descontente.

    Outras vezes á fonte, quando a olhava,
    Ja cego, e sem juizo, agradecia
    A figura que dentro lhe mostrava.

    Mas vendo qu'ella em nada se dohia
    De seu grave tormento, grita e chora.
    Quanto erra quem de sombras se confia!

    Ja lhe pede que saia para fóra.
    Ignorando que sempre fóra esteve
    A belleza que nelle proprio mora.

    Despois que longo espaço se deteve
    Nestes queixumes seus tão lastimosos,
    Que com tão longo ser, julgou por breve;

    Co'os olhos, bellos si, mas lagrimosos,
    Do valle se despede e da espessura,
    Dando soluços da alma vagarosos.

    Entregue na vontade da ventura,
    Ou, por melhor dizer, de seus enganos,
    Ao centro se arrojou da fonte pura.

    Dest'arte feneceo em tenros anos
    Narciso, dando exemplo á formosura
    De que tema, se he tal, tambem seus danos.

    Sentimento mostrou da sorte dura
    O namorado Jupiter, mudando
    Ao moço em flor purpurea, qu'inda dura.

    Aquellas claras ágoas rodeando,
    Onde por seus amores se perdeo,
    Está despois da morte acompanhando.

    Tanto no seu engano procedeo,
    Que não sabe na morte inda apartar-se
    Dos erros que na vida commetteo.

    Bem póde o coração desenganar-se,
    Que o fogo d'hum querer, n'alma inflammado,
    Não costuma na morte resfriar-se.

    Porque despois do corpo sepultado,
    Prisão onde s'encerra o fraco esprito,
    Eternamente chora o seu cuidado.

    E das escuras ágoas do Cocito
    A rapida corrente refreando,
    Celebra o lindo gesto n'alma escrito.

    Lá se está co'os favores recreando;
    E se foi desprezado, lá padece,
    As duras esquivanças lamentando.

    Nem dos avaros olhos lá s'esquece,
    Que de formoso verde a terra esmaltão,
    Por não ver os do triste qu'endoudece.

    Assi que os desfavores nunca faltão,
    Até despois da morte perseguindo
    Hum triste coração que desbaratão.

    Triste de quem em vão lhe vai fugindo!

[2] Este terceto foi viciado na cópia e depois, ao que parece, corrigido
por mão estranha. A versificação está certa, mas o sentido he absurdo:
e se a verdadeira lição não he:

    Porque, cruel menino, o premio partes
    De modo que es tyranno, quando o negas,
    E injusto e desigual, quando o repartes?

não podemos adivinhar qual seja. _Nota dos Editores._

      *      *      *      *      *


ELEGIA VII.

    Ao pé d'hum'alta faia vi sentado,
    N'hum valle deleitoso e bem florido,
    A Almeno, pastor triste e namorado.

    Outro no mundo póde haver nascido
    Mui queixoso de Amor; porém não tanto,
    Como este amante, por amar perdido.

    Ja Venus hia recolhendo o manto
    Escuro com que a terra se mostrava,
    Para ajudar d'Almeno o triste pranto.

    Apollo sôbre os montes derramava
    Seus dourados cabellos, que fazião
    Ao triste inda mais triste do qu'estava.

    As flores por o prado s'estendião.
    E das que finas mais erão as côres,
    Brancas, roxas, as Nymphas mais colhião.

    Ja guiavão seus gados os pastores,
    Que, deixando-os no campo deleitoso,
    Com ellas praticavão só d'amores.

    Mas era esta alegria hum perigoso
    Estado para Almeno entristecido;
    E por isso a deixava pressuroso,

    Buscando outro lugar: contra Cupido
    Claramente exclamava, e o arguia
    De contrário, d'astuto e fementido.

    De quando em quando a frauta que tangia.
    Numeros dava ao ar tão docemente,
    Que as aves provocava a melodia.

    Cego assi desta dor, deste accidente,
    Com os olhos em lagrimas banhados,
    Postos no ceo, dizia tristemente:

    Se, Amor, eu te offendi com meus cuidados,
    Porque mos déste tu para offender-te,
    Quando livre vivia nestes prados?

    Não vês quanto me negas merecer-te
    O bem que me mostravas, se deixasse
    Ferir meu coração para soffrer-te?

    Qual bem me has dado, Amor, que me durasse?
    Ou qual me has promettido, que hajas dado?
    Ou qual déste, que muito não custasse?

    Mostra-me quem puzeste em tal estado,
    Que pudesse viver de ti contente,
    Ou quem de ti não fosse lastimado?

    Inimigo cruel de toda a gente,
    Ja não quero teu bem, só meu mal quero;
    Se de ti nem meu mal se me consente.

    Inda que de teus bens ja desespéro,
    Não desprézo dos males o tormento;
    Antes o prezo mais, quando he mais fero.

    Arrebatado deste pensamento
    Hia o triste pastor com hum contino
    Pranto, que lhe avivava o sentimento.

    Quando entrou n'hum vergel d'esmalte fino,
    Qu'era de Amor plantado; e parecendo
    Lhe está menos humano que divino.

    Nelle a dor sua esteve suspendendo:
    Porém não, como cervo, está ferido,
    Reparo ao mal que leva pretendendo.

    Apparecia o sítio tão florído,
    Que provocava a não vulgar espanto,
    Entre huns altos ulmeiros escondido.

    D'hum crystallino orvalho tinha o manto,
    Quando entrou nelle o misero pastor,
    E as tenções explicou neste seu canto.

    Ó bellas rosas, vós que sois amor,
    He por dita humildade, ou he baixeza,
    O ter apar de vós murta, que he dor?

    Papoulas conversais, que são tristeza!
    Não desprezais o cardo, que he tormento!
    Admittis a hortelãa, sendo crueza!

    Dos goivos longe vejo o sentimento;
    Dos jasmins perto estou vendo o perigo;
    Dos malmequeres vejo o soffrimento.

    Deste me temerei como inimigo;
    Mas traz por armas salva, que he razão:
    Com ella acabará tambem comigo.

    As minhas vem a ser huma affeição,
    Que são os puros cravos misturados
    Co'a vontade sujeita, que he limão.

    Ai mosquetas, que sois d'amor cuidados!
    Ai crespa mangerona, que es prazer!
    Vós sós devieis adornar os prados.

    Não pódem dous oppostos juntos ser:
    Onde se põe giesta, que he lembrança,
    Junto do rosmaninho, que he 'squecer?

    Bem peza do leve álamo a mudança;
    Do roxo goivo anima o pensamento
    Do cypreste odorifero a esperança.

    O trevo, que he sentido apartamento,
    Cérca o mangericão, que se interpreta
    Memoria a quem offende o esquecimento.

    Mais importuna que o jardim de Creta,
    A ameixieira a flor está soltando:
    A segurelha vejo, que he discreta.

    As hervas que daqui irei tomando,
    São a pura cecem, qu'he saudade;
    Cravos, medo de ver qual de amor ando.

    E, de ter mui perdida a liberdade,
    Tomarei madresylva entendimento;
    Legação tomarei, porqu'he verdade.

    Marmeleiro me dá arrependimento:
    Por a salva, que he gôsto, tomarei
    Coentro opposto ao meu contentamento.

    Conhecimento firme nunca achei,
    Que violetas são; e, quando o houvera,
    Qual meu damno então fôra, bem o sei.

    Oh quem, herva cidreira, oh quem pudera
    Ver-vos aqui menor, pois sois victória,
    Que de mi alcançou chamma severa!

    Mas se quereis que tenha alguma glória,
    Por galardão d'amar e ser sujeito,
    Perderei de tormentos a memoria.

    Porém, pois mo negais, de todo engeito
    A palma, qu'he ventura; e na parreira,
    Qu'he'sperança perdida, me deleito.

    Entretanto co'a flor da laranjeira,
    Qu'he desafio duro e arriscado,
    Posso arguir da hora derradeira.

    Ja não se quer deter o meu cuidado
    Com a romãa descanso: a brevidade
    Das maravilhas só tẽe desejado.

    E vós, ovelhas minhas, sem piedade
    Vos apartae de mi, se algum desejo
    Tendes de ter do pasto mais vontade.

    Se muita de me verdes em vós vejo,
    Toda a minha de ver-vos hei perdido
    Á força do poder d'amor sobejo.

    Lograe do Tejo o placido ruido;
    Sós lograe estas veigas florecidas:
    Pois se perde o pastor vosso querido,

    Não gosteis de com elle ser perdidas.

      *      *      *      *      *


ELEGIA VIII.

    Belisa, unico bem desta alma triste,
    Descanso singular de minha vida,
    Throno donde o poder d'Amor consiste;

    Formosa fera, a quem está rendida
    D'Amor a que he mais livre liberdade,
    Ganhada mais, se mais por ti perdida;

    Quão contrário parece na beldade,
    Que os corações captiva com brandura,
    Alguma nódoa haver de crueldade!

    Quão contrário parece em formosura,
    Que deixa muito atraz quanto he humano,
    Esquiva condição, ou alma dura!

    Quão mal parece em quem só co'hum engano
    Póde dar vida ao coração sujeito,
    Dar-lhe, em lugar de vida, hum mortal dano!

    Quão mal parece que hum amor perfeito
    Não seja d'outro igual remunerado,
    Inda que seja, acaso, contrafeito!

    Quão mal parece estar desesperado
    Quem tanto por ti soffre e tẽe soffrido,
    Devendo estar de penas alliviado!

    Porém peor parece quem rendido
    Não for a hum parecer que tudo rende,
    Por mais qu'em seu rigor viva offendido.

    E inda peor parece quem defende
    O ser essa belleza sempre amada,
    Por mais qu'em vão se canse o que a pretende.

    Se quem te mostra amor te desagrada,
    Só pódes pretender o não ser vista,
    Mas não despois de vista o ser deixada.

    Quão mal sabe o valor de tua vista
    Quem cuida que o que della acaso alcança
    Póde achar coração que lhe resista!

    Quão bem pareceria huma esperança
    Ja concedida a meu amor ardente,
    Não sempre huma mortal desconfiança!

    Se hum padecer por ti constantemente
    Pudesse ser reparo a quem mais te ama,
    Inda esperar pudera o ser contente.

    Mas eu temo que aquella immensa chama
    Com que a teu bello imperio me levaste,
    Te enfrie tanto a ti, qu'anto m'inflama.

    Se a Olympica belleza assi imitaste,
    Que brandamente move hum amor puro,
    Porque tão dura condição tomaste?

    Qual elevado, qual soberbo muro
    Este mal, que m'occupa o pensamento,
    Contado, não tornára menos duro?

    Tu, qu'es a causa só de meu tormento,
    Tu, que somente podes gloriar-me,
    Queres que as minhas queixas leve o vento?

    Tu, que me pagarias com matar-me,
    Inda a morte me negas vezes tantas?
    Ai, que me deras vida em morte dar-me!

    Usa piedade, tu, que o mundo espantas
    Co'os bellos olhos, com que o douras tanto,
    Se acaso a vê-lo brandos os levantas.

    Estende-se na terra o negro manto,
    E á noute dá alegria a luz alheia;
    Mas nos meus olhos tristes dura o pranto.

    Torna a manhãa despois alegre e cheia
    Da luz que o chôro enxuga á bella Aurora;
    Mas do meu chôro nunca enxuga a veia.

    Lagrimas ja não são qu'esta alma chora,
    Mas amor he vital que dentro arde,
    E por a luz dos olhos salta fóra.

    Como inda a morte quer que mais aguarde?
    Não tarde ja, mas corra a mal tão fero.
    Mas ja por mais que corra virá tarde.

    Nem no supremo trance de ti 'spero
    Qu'inda com ver o estado em que me has pôsto
    Queiras, crua, entender quanto te quero.

    Ai! se volveres esse bello rosto
    Ao lugar triste em que morrer me vires,
    Não por desgôsto teu, mas por teu gôsto,

    Não quero de ti, não, que alli suspires,
    Nem que de dar-me a morte te arrependas,
    Mas que os olhos de ver-me então não tires.

    Assi nunca pastor a quem te rendas,
    Te faça conhecer o que me fazes,
    Para que com teu mal meu mal entendas!

    Como ja agora não te satisfazes
    Das penas deste amor, que por querer-te,
    De teu merecimento são capazes?

    Pois quem com outro merito render-te
    Presume, (oh raro monstro de belleza!)
    Muito mais longe está de merecer-te.

    Este si, que merece a grã crueza
    Com que tu d'acabar-me a vida tratas,
    Pois diante de ti, de si se preza.

    Se cuidas que com isto desbaratas
    O meu constante amor, porque não viva,
    Elle mais vive quando mais me matas.

    Se o dar-me morte tens por glória altiva,
    Eu m'inclino a que mates; tu t'inclina
    A matar mais de branda que d'esquiva.

    S'esta alma tua julgas por indina
    Daquelle grande bem qu'em ti s'esconde,
    Do descoberto mal a faze dina.

    Onde (ai!) voz acharei que baste, (ai!) onde,
    A poder reduzir-te a ser piedosa?
    Ou m'acaba de todo, ou me responde.

    Mas por mais que te mostres rigorosa,
    Deixar meu pensamento m'he impossivel,
    Igualmente que a ti não ser formosa.

    E por mais qu'esta dor seja terrivel,
    Somente o contemplar a causa della,
    Inda que a faz maior, a faz soffrivel

    Porém chegando a não poder soffrê-la,
    Perdendo a vida; quando a morte chame,
    Não perderei o gôsto de perdê-la.

    He justo qu'eu por ti mil mortes ame:
    Mas vê tu se te illustra, quando offensa
    Minha mortal o teu valor se chame.

    Bem vês que huma beldade tão immensa
    De vencer-me tẽe glória bem pequena,
    Pois só render-me tomo por defensa.

    Mas ja que amor tão puro me condena,
    Contente fico assaz desta victoria;
    Que não me dão meus males tanta pena,

    Quanto o serem por ti me dá de glória.

      *      *      *      *      *


ELEGIA IX.

    A vida me aborrece, a morte quero:
    Será eterno o meu mal, segundo entendo,
    Pois na mor esperança desespéro.

    Sem viver vivo, por morrer vivendo
    Por não verdes, Senhora, como eu vejo,
    Quanto de mi por vós me ando esquecendo.

    Seja-me agradecido este desejo;
    Ingrata não sejais a quem vos ama
    Com puro e honestissimo despejo.

    A culpa que me pondes, ponde-a á fama,
    Que pregôa de vós celeste vida
    Que os corações d'amor divino inflama.

    Humana, quando não agradecida,
    Vos mostrae ao mal meu, que me faz vosso,
    Antes que a alma do corpo se despida.

    Mas que posso eu fazer, pois ja não posso
    Hum tormento domar tão forte e duro,
    Homem formado só de carne e de osso?

    Em minha fé segura me asseguro;
    Porqu'esta, quando he grande, jamais erra,
    Se resulta d'amor sincero e puro.

    Essa beldade santa me faz guerra;
    Por ella hei de morrer, inda que veja
    Tornar o brando rio em dura serra.

    Que cousa tenho eu ja que minha seja?
    Quem não deseja a vossa formosura,
    Não póde assegurar que o ceo deseja.

    De qu'eu sempre a deseje estae segura:
    Neste desejo meu nunca mudança
    Hão de ver as mudanças da ventura.

    A vida tenho posta na balança
    Da glória singular, do damno esquivo;
    Que o perdê-la por vós he mor bonança.

    Se vos offendo, cuido que não vivo:
    Olhae se muito mais que de offender-vos,
    Das esperanças do viver me privo.

    O que temo somente he só perder-vos;
    O que quero somente he só adorar-vos;
    O que somente adoro he só querer-vos.

    Querer-vos sem deixar de venerar-vos;
    Desejar-vos somente por servir-vos;
    Por servir a amor vil não desejar-vos:

    Somente ver-vos, e somente ouvir-vos
    Pretendo; e pois somente isto pretendo,
    Deveis a estes sentidos permittir-vos.

    Isto somente, (oh cego!) estou dizendo,
    Como se fôra pouco isto somente!
    Que mais que ouvir-vos ha? qu'estar-vos vendo?

    Se o não merece o meu amor decente;
    Se morte por amar-vos se merece,
    Morra eu, Senhora; e vós ficae contente.

    Se vos aggrava quem por vós padece;
    Se vos vẽe a offender quem vos quer tanto,
    Quem desta sorte errou não desmerece.

    Que quando os olhos da razão levanto
    Ao ceo d'essa rarissima belleza,
    De não morrer por ella só m'espanto.

    Deixae-me contentar desta tristeza,
    E fazer de meus olhos largo rio;
    Se algum póde abrandar vossa dureza.

    Correndo sempre as lagrimas em fio,
    Farei crescer as hervas por os prados,
    Pois ja d'outra alegria desconfio.

    No monte darei pasto a meus cuidados;
    E serão de mi sempre entre os pastores
    Esses divinos olhos celebrados.

    Aprenderão de mi os amadores
    Aquillo que se chama amor sublime,
    Ouvindo o rigor vosso, e minhas dores.

    E nenhum havera que a pena estime
    Mais soberana por a causa della,
    Que a que teve até então não desestime;

    E qu'inveja não mostre á minha estrella.

      *      *      *      *      *


ELEGIA X.

    Que tristes novas, ou que novo dano,
    Qu'inopinado mal incerto sôa,
    Tingindo de temor o vulto humano?

    Que vejo? as praias humidas de Goa
    Ferver com gente attonita e turbada
    Do rumor que de boca em boca vôa!

    He morto D. Miguel (ah crua espada!)
    E parte da lustrosa companhia
    Que alegre s'embarcou na triste Armada:

    E d'espingarda ardente e lança fria
    Passado por o torpe e iniquo braço,
    Que nossas altas famas injuría.

    Não lhe valeo escudo, ou peito d'aço,
    Não ânimo d'avós claros herdado,
    Com que temer se fez por longo espaço.

    Não ver-se em de redor todo cercado
    D'irados inimigos, qu'exhalavão
    A negra alma do corpo traspassado.

    Não as fortes palavras que voavão
    A animar os incertos companheiros,
    Que timidos as costas lhe mostravão.

    Mas ja postos, nos termos derradeiros,
    (Rotos por partes mil e traspassados
    Os membros, no valor somente inteiros)

    Os olhos (de furor acompanhados,
    Qu'inda na morte as vidas amedrentão
    Dos duros inimigos espantados)

    Postos no ceo, parece que presentão
    A alma pura á suprema Eternidade,
    Por quem os ceos e a terra se sustentão.

    E pedindo dos erros, que na idade
    Immatura e innocente ja fizera,
    Perdão á pia e justa Magestade,

    As rosas apartou da neve fria;
    E, como debil flor, a quem fallece
    O radical humor de que vivia,

    Nas mãos do Coro Angelico, que dece,
    S'entrega; e vai lograr a vida eterna,
    Que com morte tão justa se merece.

    Vai-te, alma, em paz á gloria sempiterna;
    Vai, que quem por a Lei sacra e divina
    A sólta, áquelle a dá que o ceo governa.

    Mas se de tal valor foi morte dina,
    A ausencia que do gôsto nos saltêa,
    A perpétua saudade nos inclina.

    Deixa pois tu, formosa Cytherêa,
    Do gentil filho e neto de Cyniras
    O pranto por a morte horrida e fêa.

    E tu, dourado Apollo, que suspiras
    Por o crespo Jacintho, moço charo,
    Por quem a clara luz ao mundo tiras;

    Vinde e chorae hum moço em tudo raro,
    Não de ferino dente vulnerado,
    Nem de risco sujeito a algum reparo:

    Mas só de ferro imigo traspassado;
    Que sem duvida incerta, ou frio medo,
    A vida poz nas mãos de Marte irado.

    Tambem tu, moço Idalio, assiste quedo;
    Deixa de dar o venenoso mel
    A beber por os olhos, triste e ledo.

    Pois os formosos olhos de Miguel
    Ja cobertos se vem do escuro manto
    Da lei geral a todos mais cruel.

    E vós, filhas de Thespis, que co'o canto
    Podeis bem mitigar a dor immensa
    Dos irmãos generosos e alto pranto;

    Não consintais que fação larga offensa
    Á grande integridade, a que se devem
    Ágoas não só, do damno recompensa.

    Que ja diante os olhos me descrevem,
    Quando as bocas da Fama voadora
    Ao patrio e claro Tejo as novas levem,

    A profunda tristeza; qu'em hum'hora
    Tal posse tomará dos altos peitos,
    Que delles o discurso lance fóra.

    Alli de dor os corações sujeitos
    Hão de lançar de si toda a memoria
    D'exemplos claros, solidos respeitos.

    Mas, porém se igualais a vida á glória,
    Ó claro Dom Philippe, e pretendeis
    Deixar-nos de acções vossas larga historia;

    Eu não vos persuado a que estreiteis
    O coração na Estoica disciplina,
    Onde livre d'affectos vos mostreis.

    Que mal a natureza determina
    Medo, esperanças, dores e alegria,
    Como o Cynico velho nos ensina.

    Immanidade estupida (dizia
    O Sulmonense canto) e vil rudeza,
    He não sentir affectos que a alma cria.

    Porém se o sentir nada for bruteza,
    E se paixão devida se consente,
    Tambem o sentir muito he ja fraqueza.

    Em vós hum soffrer alto s'exprimente,
    Qual nos fortes Varões foi conhecido,
    Como em estranha, em Lusitana gente.

    Bem conheço que o corpo assi perdido,
    Como de illustre tumulo carece,
    Será de brutas feras consumido.

    Mas consola-me, emfim, que se parece
    Ao grande bisavô, que por a vida
    Real, a sua á Maura lança offrece.

    Em pedaços a gente enfurecida
    O corpo alli lhe deixa; e com mão dura
    Lhe nega a sepultura merecida.

    Facil he a perda aqui da sepultura:
    Diogenes prudente, e Theodoro
    Pouco sentem do corpo essa jactura.

    Assi formoso e inteiro, assi decoro
    Adorna quem o tẽe, como o tomou,
    Quando se ouvir o extremo som canoro.

    Mas ai! qual terror subito occupou
    O vosso claro peito, ó Portuguezes?
    Qual pavido temor vos congelou?

    Que lançadas, que golpes, que revézes
    Vos fizerão fazer tamanha injúria
    Aos fortes Lusitanicos arnezes?

    Ou ja de Capitão sobeja incuria,
    Ou fraqueza? Não: qu'elle sustentava
    Com seu peito dos barbaros a furia.

    Ou ja do ferreo cano a fôrça brava
    Com estrondos que atroão mar e terra,
    Os corações ardentes congelava?

    Ah! quem vos fez que os impetos da guerra
    Não sustentasseis com valor ousado,
    Desprezando o temor que a vida encerra?

    A vida por a Patria e por o Estado
    Pondo nossos avós, a nós deixárão,
    Em terra e mar, exemplo sublimado.

    Elles a desprezar nos ensinárão
    Todo temor. Pois como agora os netos
    Subitamente assi degenerárão?

    Não pódem, certo, não, viver quietos
    Com feia infamia peitos generosos,
    Ja em publicos lugares, ja em secretos.

    Mortos d'Esparta os Héroes valerosos
    Da fera multidão, fazendo extremos,
    Taes Epitaphios tinhão gloriosos:

    _Dirás, Hóspede, tu, que aqui jazemos
    Passados do inimigo ferro, em quanto
    Ás santas Leis da Patria obedecemos._

    Fugindo os Persas vão com frio espanto,
    Mas achão as mulheres no caminho,
    Mostrando-lhes o ventre, em terror tanto.

    Pois do damno fugís, vendo-o visinho,
    Fracos! vinde a esconder-vos (lhes dizião)
    Outra vez no materno e escuro ninho.

    Vêde quaes com mais glória ficarião,
    Se aquelles que morrêrão por o Estado,
    S'estes a quem mulheres injurião?

    Mas tu, claro Miguel, que ja acordado
    Deste sonho tão breve, estás naquella
    Tôrre do ceo, seguro e repousado;

    Onde, com Deos unida a forte e bella
    Alma, com teus Maiores reluzindo,
    Trocaste cada chaga em clara estrella;

    Co'os pés o crystallino ceo medindo,
    Nada d'essas altissimas Espheras,
    Nem da terreste aos olhos encobrindo;

    Agora hum curso e outro consideras,
    Agora a vaidade dos mortaes,
    Que tu tambem passáras se vivêras,

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

      *      *      *      *      *


ELEGIA XI.

    Se quando contemplamos as secretas
    Causas, por que este mundo se sustenta,
    E o revolver dos ceos e dos planetas;

    E se quando á memoria se presenta
    Este curso do sol tão bem medido,
    Que hum ponto só não míngua, nem s'augmenta;

    Aquelle effeito, tarde conhecido,
    Da lua na mudança tão constante,
    Que minguar e crescer he seu partido;

    Aquella natureza tão possante
    Dos ceos, que tão conformes e contrarios
    Caminhão, sem parar hum breve instante;

    Aquelles movimentos ordinarios,
    A que responde o tempo, que não mente,
    Co'os effeitos da terra necessarios;

    Se quando, emfim, revolve subtilmente
    Tantas cousas a leve phantasia,
    Sagaz escrutadora e diligente;

    Bem vê, se da razão se não desvia,
    Aquelle unico Ser, alto e divino,
    Que tudo póde, manda, move e cria.

    Sem fim e sem princípio, hum Ser contino;
    Hum Padre grande, a quem tudo he possibil,
    Por mais que o difficulte humano atino:

    Hum saber infinito, incomprehensibil;
    Huma verdade que nas cousas anda,
    Que mora no visibil e invisibil.

    Esta potencia, emfim, que tudo manda,
    Esta Causa das causas, revestida
    Foi desta nossa carne miseranda.

    Do amor e da justiça compellida,
    Por os erros da gente, em mãos da gente
    (Como se Deos não fôsse) deixa a vida.

    Oh Christão descuidado e negligente!
    Pondera-o com discurso repousado;
    E ver-te-has advertido facilmente.

    Ólha aquelle Deos alto e increado,
    Senhor das cousas todas, que fundou
    O ceo, a terra, o fogo, o mar irado;

    Não do confuso caos, como cuidou
    A falsa Theologia, e povo escuro,
    Que nesta só verdade tanto errou;

    Não dos atomos leves d'Epicuro;
    Não do fundo Oceano, como Thales,
    Mas só do pensamento casto e puro.

    Ólha, animal humano, quanto vales,
    Pois este immenso Deos por ti padece
    Novo estylo de morte, novos males.

    Ólha que o sol no Olympo s'escurece,
    Não por opposição de outro Planeta;
    Mas só porque virtude lhe fallece.

    Não vês que a grande máchina inquieta
    Do mundo se desfaz toda em tristeza,
    E não por causa natural secreta?

    Não vês como se perde a Natureza?
    O ar se turba? o mar batendo geme,
    Desfazendo das pedras a dureza?

    Não vês que cahe o monte, a terra treme?
    E que lá na remota e grande Athenas
    O docto Areopagita exclama e teme?

    Oh summo Deos! tu mesmo te condenas,
    Por o mal em qu'eu só sou o culpado,
    A tamanhas affrontas, tantas penas?

    Por mi, Senhor, no mundo reputado
    Por falso, e violador da sacra Lei?
    A fama a ti se põe do meu peccado?

    Eu, Senhor, sou ladrão, tu justo Rei.
    Pois como entre ladrões eu não padeço?
    A pena a ti se dá do qu'eu errei?

    Eu servo sem valor, tu immenso preço,
    Em preço vil te pões, por me tirares
    Do captiveiro eterno que mereço?

    Eu por perder-te, e tu por me ganhares
    Te dás aos soltos homens, que te vendem,
    Só para os homens presos resgatares?

    A ti, que as almas sóltas, a ti prendem?
    A ti summo Juiz, ante Juizes
    Te accusão por o error dos que te offendem?

    Chamão-te malfeitor; não contradizes:
    Sendo tu dos Prophetas a certeza,
    Dizem que quem te fere prophetizes.

    Rim-se de ti; tu choras a crueza
    Que sôbre elles virá: a gente dura,
    Por quem tu vens ao mundo, te despreza.

    O teu rosto, de cuja formosura
    Se veste o ceo e o sol resplandecente,
    Diante quem pasmada está a Natura,

    Com cruas bofetadas da vil gente,
    De precioso sangue está banhado,
    Cuspido, atropellado cruelmente.

    Aquelle corpo tenro e delicado,
    Sôbre todos os Santos sacrosanto,
    A açoutes rigorosos desangrado;

    Despois coberto mal d'hum pobre manto,
    Que se pegava ás carnes magoadas
    Para dobrar-lhe as dores outro tanto.

    Magoavão-no as chagas não curadas,
    Hum tormento causando-lhe excessivo
    Ao despir por as mãos crueis e iradas.

    As venerandas barbas de Deos vivo
    De resplandor ornadas, s'arrancavão
    Para desempenhar a Adão captivo.

    Com cordas por as ruas o levavão,
    Levando sôbre os hombros o trophéo
    Da victoria qu'as almas alcançavão.

    Ó tu, que passas, homem Cyrenêo,
    Ajuda hum pouco a est'Homem verdadeiro,
    Que agora, como humano, enfraqueceo.

    Ólha que o corpo afflicto do marteiro,
    E dos longos jejuns debilitado,
    Não póde ja co'o pêso do madeiro.

    Oh não enfraqueçais, Deos incarnado!
    Essas quédas, que tanto vos magôão,
    Supportae Cavalleiro sublimado.

    Aquellas altas vozes, que lá sôão,
    Dos Padres são, que o Limbo tẽe escuro,
    E ja de louro e palma vos corôão.

    Todos vos bradão que subais o muro
    Da cidade infernal, e que arvoreis
    Em cima essa bandeira mui seguro.

    Oh Santos Padres! não vos apresseis;
    Pois muito mais a Deos, que a vós, custárão
    Essas duras prisões em que jazeis.

    Aquellas mãos que o mundo edificárão,
    Aquelles pés que pízão as estrellas,
    Com durissimos pregos s'encravárão.

    Mas qual será o humano qu'as querellas
    Da angustiada Virgem contemplasse,
    Sem se mover a dor e mágoa dellas?

    E que dos olhos seus não destillasse
    Tanta cópia de lagrimas ardentes,
    Que carreiras no rosto sinalasse?

    Oh quem lhe víra os olhos refulgentes
    Convertendo-se em fontes, e regando
    Aquellas faces bellas e excellentes!

    Quem a ouvíra com vozes ir tocando
    As estrellas, a quem responde o ceo,
    Co'os accentos dos Anjos retumbando!

    Quem víra quando o puro rosto ergueo
    A ver o Filho, que na Cruz pendia,
    Donde a nossa saude descendeo!

    Que mágoas tão chorosas que diria!
    Que palavras tão miseras e tristes
    Para o ceo, para a gente espalharia!

    Pois que sería, Virgem, quando vistes
    Com fel nojoso, e com vinagre amaro
    Matar a sêde ao Filho que paristes?

    Não era este o licor suave e claro,
    Que para o confortar então darieis
    A quem vos era, mais que a vida, charo.

    Como, Virgem Senhora, não corrieis
    A dar as puras tetas ao Cordeiro,
    Que padecer na Cruz com sêde vieis?

    Não era só, não, esse o verdadeiro
    Poto, que vosso Filho desejava,
    Morrendo por o mundo em hum madeiro;

    Mas era a salvação que alli ganhava
    Para o misero Adão, que alli bebia
    Na fonte que do peito lhe manava.

    Pois, ó pura e Santissima Maria,
    Que, emfim, sentistes esta mágoa, quanto
    A grave causa della o requeria;

    D'essa Fonte sagrada e peito santo
    M'alcançae huma gotta, com que lave
    A culpa que me aggrava e pesa tanto.

    Do licor salutifero e suave
    M'abrangei, com que mate a sêde dura
    Deste mundo tão cego, torpe e grave.

    Assi, Senhora, toda criatura
    Que vive e vivirá, e não conhece
    A Lei de vosso Filho, a abrace pura;

    O falsissimo herege, que carece
    Da graça, e com damnado e falso esprito
    Perturba a Santa Igreja, que florece;

    O povo pertinaz no antiguo rito,
    Que só o destêrro seu, que tanto dura,
    Lhe diz qu'he pena igual ao seu delito;

    O torpe Ismaelita, que mistura
    As Leis, e com preceitos tão viciosos
    Na terra estende a seita falsa e impura;

    Os idolatras maos, supersticiosos,
    Varios de opiniões e de costumes,
    Levados de conceitos fabulosos;

    As mais remotas gentes, onde o lume
    Da nossa Fé não chega, nem que tenhão
    Religião alguma se presume;

    Assi todos, emfim, Senhora, venhão
    A confessar hum Deos crucificado,
    E por nenhum respeito se detenhão.

    E d'hum e d'outro o vício ja deixado,
    O seu Nome, co'o vosso nesse dia,
    Seja por todo o mundo celebrado;

    E respóndão os ceos: JESUS, MARIA.

      *      *      *      *      *


ELEGIA XII. ACROSTICA.

    Juizo extremo, horrifico e tremendo,
    E Juiz sempiterno, alto e celeste,
    Significará a terra, humedecendo.
    Ver-se-ha nella hum suor que manifeste
    Como em carne vem Deos, para que o veja
    Homem toda esta máchina terreste;
    Rei justo, que dos corpos e almas seja
    Juiz; e quando o mundo cego e inculto
    Sôbre espinhos crueis deitado seja,
    Todo vão simulacro e gentil culto
    Ousará engeitar a gente; e guerra
    Fará co'o mar o fogo, e cru tumulto.
    Immensa luz, que as carnes desenterra,
    Lançará fóra as portas vãas do Averno,
    Hum Justo e outro alçando á santa terra.
    Outros, que são os maos, no fogo eterno
    Deitará, descobrindo-se os segredos,
    E sendo claro todo feito interno.
    Desfeitos serão montes e penedos,
    E será tudo pranto e estridor duro;
    Obras de grande dor e tristes medos.
    Será tornado o sol de todo escuro,
    E destruida a máchina do mundo,
    Sem luz as luzes todas do Orbe puro;
    Altos serão os valles, e em profundo
    Lugar se abaterão os altos montes;
    Vibrará mares vento furibundo:
    Haverá só de chammas vivas fontes:
    De trombeta tremenda som terribil,
    Ouvido, fara pallidas as frontes.
    Responderá dos maos gemido horribil.

      *      *      *      *      *



EPISTOLAS.


EPISTOLA I.

    Quem póde ser no mundo tão quieto,
    Ou quem terá tão livre o pensamento,
    Quem tão exprimentado, ou tão discreto,
    Tão fóra, emfim, de humano entendimento,
    Que ou com público effeito, ou com secreto,
    Lhe não revolva e espante o sentimento,
    Deixando-lhe o juizo quasi incerto,
    Ver e notar do mundo o desconcêrto?

    Quem ha que veja aquelle que vivia
    De latrocinios, mortes e adulterios,
    Que ao juizo das gentes merecia
    Perpétua pena, immensos vituperios,
    Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
    Mostrando, emfim, que tudo são mysterios,
    Em alteza d'estados triumphante,
    Que por livre que seja não s'espante?

    Quem ha que veja aquelle, que tão clara
    Teve a vida, qu'em tudo por perfeito
    O proprio Momo ás gentes o julgára,
    Inda quando lhe visse aberto o peito,
    Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
    O reprime, e lhe nega seu direito,
    Que lhe não fique o peito congelado,
    Por mais e mais que seja exprimentado?

    Democrito dos deoses proferia
    Que erão sós dous; a Pena, e o Beneficio.
    Segredo algum será da phantasia,
    De qu'eu achar não posso claro indicio.
    Que se ambos vem por não cuidada via
    A quem os não merece, he grande vício
    Em deoses sem-justiça e sem-razão.
    Mas Democrito o disse, e Paulo não.

    Dir-me-heis, que s'este estranho desconcêrto
    Novamente no mundo se mostrasse,
    Que por livre que fosse e mui experto,
    Não era d'espantar se m'espantasse.
    Mas que se ja de Socrates foi certo
    Que nenhum grande caso lhe mudasse
    O vulto, ou de prudente, ou de constante,
    Exemplo tome delle, e não m'espante.

    Parece a razão boa; mas eu digo
    Deste uso da Fortuna tão damnado
    Que quanto he mais usado e mais antigo,
    Tanto he mais estranhado e blasphemado.
    Porque, se o Ceo, das gentes tão amigo
    Não dá á Fortuna tempo limitado,
    Não he para causar mui grande espanto,
    Que mal tão mal olhado dure tanto?

    Outro espanto maior aqui m'enleia,
    Que com quanto Fortuna tão profana
    Com estes desconcertos senhoreia,
    A nenhuma pessoa desengana.
    Não ha ninguem, que assente, nem que creia
    Este discurso vão da vida humana,
    Por mais que philosophe, nem qu'entenda,
    Que algum pouco do mundo não pretenda.

    Diogenes pisava de Platão
    Com seus sordidos pés o rico estrado,
    Mostrando outra mais alta presumpção
    Em desprezar o fausto tão prezado.
    Diogenes, não vês que extremos são
    Esses que segues, de mais alto estado?
    Pois se de desprezar te prezas muito,
    Ja pretendes do mundo fama e fruito.

    Deixo agora Reis grandes, cujo estudo
    He fartar esta sêde cubiçosa
    De querer dominar e mandar tudo,
    Com fama larga e pompa sumptuosa.
    Deixo aquelles que tomão por escudo
    De seus vicios e vida vergonhosa
    A nobreza de seus antecessores,
    E não cuidão de si que são peores.

    Aquelle deixo, a quem do somno esperta
    O grão favor do Rei que serve e adora,
    E se mantẽe dest'aura falsa e incerta,
    Que de corações tantos he senhora.
    Deixo aquelles qu'estão co'a boca aberta
    Por s'encher de thesouros de hora em hora,
    Doentes desta falsa hydropesia,
    Que quanto mais alcança, mais queria.

    Deixo outras obras vãas do vulgo errado,
    A quem não ha ninguem que contradiga,
    Nem de outra cousa alguma he governado,
    Que d'huma opinião e usança antiga.
    Mas pergunto ora a Cesar esforçado,
    Ora a Platão divino, que me diga,
    Este das muitas terras em que andou,
    Aquelle de vencê-las, que alcançou?

    Cesar dirá: Sou digno de memoria:
    Vencendo povos varios e esforçados,
    Fui Monarca do mundo; e larga historia
    Ficará de meus feitos sublimados.
    He verdade: mas esse mando e glória,
    Lograste-o muito tempo? Os conjurados
    Bruto e Cassio dirão que, se venceste,
    Emfim, emfim, ás mãos dos teus morreste.

    Dirá Platão: Por ver o Etna e o Nilo
    Fui a Sicilia, Egypto e outras partes,
    Só por ver e escrever em alto estilo
    Da natural sciencia e muitas artes.
    O tempo he breve, e queres consumi-lo,
    Platão, todo em trabalhos? e repartes
    Tão mal de teu estudo as breves horas,
    Que, emfim, do falso Phebo o filho adoras?

    Pois quanto des que vive ja apartada
    A alma desta prisão terreste e escura;
    Está em tamanhas cousas occupada,
    Que da fama, que fica, nada cura.
    E se o corpo terreno sinta nada,
    O Cynico dirá se por ventura
    No campo, onde lançado morto estava,
    De si os cães, ou as aves enxotava.

    Quem tão baixa tivesse a phantasia,
    Que nunca em mores cousas a metesse,
    Qu'em só levar seu gado á fonte fria,
    E mungir-lhe do leite que bebesse,
    Quão bem-aventurado que sería!
    Que por mais que a Fortuna revolvesse,
    Nunca em si sentiria maior pena,
    Que pezar-lhe de a vida ser pequena.

    Veria erguer do sol a roxa face,
    Veria correr sempre a clara fonte,
    Sem imaginar a ágoa donde nace,
    Nem quem a luz occulta no Horizonte.
    Tangendo a frauta donde o gado pace,
    Conheceria as hervas do alto monte,
    Em Deos creria simples e quieto,
    Sem mais especular algum secreto.

    D'hum certo Trasilao se lê e escreve
    Entre as cousas da velha antiguidade,
    Que perdido grão tempo o siso teve
    Por causa d'huma grave enfermidade;
    E em quanto, de si fóra, doudo esteve,
    Tinha por teima, e cria por verdade,
    Qu'erão suas, das naos que navegavão,
    Quantas no porto Píreo ancoravão.

    Por hum Senhor mui grande se teria,
    (Além da vida alegre que passava)
    Pois nas que se perdião não perdia,
    E das que vinhão salvas se alegrava.
    Não tardou muito tempo, quando hum dia
    Huncrito, seu irmão, que ausente estava,
    Á terra chega; e vendo o irmão perdido,
    Do fraternal amor foi commovido.

    Aos Medicos o entrega, e com aviso
    O faz estar á cura refusada.
    Triste! que por tornar-lhe o antigo siso
    Lhe tira a doce vida descansada.
    As hervas Apollineas d'improviso
    O tornão á saude ja passada.
    Sisudo Trasilao, ao charo irmão
    Agradece a vontade, a obra não.

    Porque despois de ver-se no perigo
    Do trabalho a que o siso o obrigava,
    E despois de não ver o estado antigo,
    Que a louca presumpção lhe apresentava:
    Oh inimigo irmão, com côr de amigo!
    Para que me tiraste (suspirava)
    Da mais quieta vida e livre em tudo,
    Que nunca pôde ter nenhum sisudo?

    Por qual Senhor algum eu me trocára,
    Ou por qual algum Rei de mais grandeza?
    Que me dava que o mundo se acabára,
    Ou que a ordem mudasse a natureza?
    Agora me he penosa a vida chara;
    Sei que cousa he trabalho, e qu'he tristeza.
    Torna-me a meu estado; qu'eu te aviso
    Que na doudice só consiste o siso.

    Vêdes aqui, Senhor, bem claramente
    Como a Fortuna em todos tẽe poder,
    Senão só no que menos sabe e sente;
    Em quem nenhum desejo póde haver.
    Este se póde rir da cega gente;
    Neste não póde nada acontecer;
    Nem estara suspenso na balança
    Do temor mao, da perfida esperança.

    Mas se o sereno Ceo me concedêra
    Qualquer quieto, humilde e doce estado,
    Onde com minhas Musas só vivêra,
    Sem ver-me em terra alheia degradado;
    E alli outrem ninguem me conhecêra,
    Nem eu conhecêra outro mais honrado,
    Senão a vós, tambem como eu contente;
    Que bem sei que o serieis facilmente:

    E ao longo d'huma clara e pura fonte,
    Qu'em borbulhas nascendo, convidasse
    Ao doce passarinho, que nos conte
    Quem da chara consorte o apartasse;
    Despois, cobrindo a neve o verde monte,
    Ao gasalhado o frio nos levasse,
    Avivando o juizo ao doce estudo,
    Mais certo manjar d'alma, emfim, que tudo.

    Cantára-nos aquelle, que tão claro
    O fez o fogo da árvore Phebêa,
    A qual elle em estylo grande e raro
    Louvando, o crystallino Sorga enfrêa;
    Tangêra-nos na frauta Sanazaro,
    Ora nos montes, ora por a arêa;
    Passára celebrando o Tejo ufano
    O brando e doce Lasso Castelhano.

    E comnosco tambem se achára aquella,
    Cuja lembrança, e cujo claro gesto
    N'alma somente vejo, porque nella
    Está em essencia puro e manifesto;
    Por alta influição de minha estrella
    Mitigando o rigor do peito honesto,
    Entretecendo rosas nos cabellos,
    De que tomasse a luz o sol em vellos;

    E em quanto por Verão flores colhesse,
    Ou por Inverno ao fogo accommodado,
    O que de mi sentíra nos dissesse,
    De puro amor o peito salteado;
    Não pedíra então eu, que Amor me désse
    Do insano Trasilao o doudo estado;
    Mas que alli me dobrasse o entendimento,
    Por ter de tanto bem conhecimento.

    Mas por onde me leva a phantasia?
    Porqu'imagino em bem-aventuranças,
    Se tão longe a Fortuna me desvia,
    Qu'inda me não consente as esperanças?
    Se hum novo pensamento Amor me cria
    Onde o lugar, o tempo, as esquivanças
    Do bem me fazem tão desamparado,
    Que não póde ser mais qui'maginado?

    Fortuna, emfim, co'o Amor se conjurou
    Contra mi, porque mais me magoasse:
    Amor a hum vão desejo me obrigou,
    Só para que a Fortuna mo negasse.
    O tempo a tal estado me chegou;
    E nelle quiz que a vida se acabasse;
    Se ha em mi acabar-se, o qu'eu não creio;
    Que até da muita vida me receio.

      *      *      *      *      *


EPISTOLA II.

    Como nos vossos hombros tão constantes
    (Principe illustre e raro) sustenteis
    Tantos negocios arduos e importantes,
    Dignos do largo Imperio, que regeis;
    Como sempre nas armas rutilantes
    Vestido, o mar e a terra segureis
    Do pirata insolente, e do tyrano
    Jugo do potentissimo Othomano;

    E como com virtude necessaria,
    Mal entendida do juizo alheio,
    Á desordem do vulgo temeraria
    Na santa paz ponhais o duro freio;
    Se com minha escriptura longa e vária
    Vos occupasse o tempo, certo creio
    Que com vagante e ociosa phantasia
    Contra o commum proveito peccaria.

    E não menos sería reputado
    Por doce adulador, sagaz e agudo,
    Que contra meu tão baixo e triste estado
    Busco favor em vós que podeis tudo,
    Se contra a opinião do vulgo errado
    Vos celebrasse em verso humilde e rudo.
    Dirão, que com lisonja ajuda peço
    Contra a miseria injusta que padeço.

    Porém, porque a verdade póde tanto
    No livre arbitrio, (como disse bem
    Ao Rei Dario o moço sabio e santo,
    Que foi reedificar Hierusalem)
    Esta m'obriga a qu'em humilde canto,
    Contra a tenção que a plebe ignara tem,
    Vos faça claro a quem vos não alcança;
    E não de premio algum vil esperança.

    Romulo, Baccho e outros que alcançárão
    Nomes de semideoses soberanos,
    Em quanto por o mundo exercitárão
    Altos feitos, e quasi mais que humanos,
    Com justissima causa se queixárão
    Que não lhes respondêrão os mundanos
    Favores do rumor justos e iguaes
    A seus merecimentos immortaes.

    Aquelle, que nos braços poderosos
    Tirou a vida ao Tingitano Anteo,
    E a quem os seus trabalhos tão famosos
    Fizerão Cidadão do claro ceo;
    Achou que a má tenção dos invejosos
    Não se doma, senão despois que o véo
    Se rompe corporal: porque na vida
    Ninguem alcança a glória merecida.

    Pois logo, se Barões tão excellentes
    Forão do baixo vulgo molestados,
    O vituperio vil das rudas gentes,
    He louvor dos Reaes, e sublimados.
    Quem no lume dos vossos Ascendentes
    Poderá pôr os olhos, que abalados
    Lhes não fiquem da luz, vendo os maiores
    Vossos passados, Reis e Imperadores?

    Quem verá aquelle Pae da Patria sua,
    Açoute do soberbo Castelhano,
    Que o duro jugo só, co'a espada nua,
    Removeo do pescoço Lusitano,
    Que não diga: Ó grão Nuno, a eterna tua
    Memoria causará, se não m'engano,
    Que qualquer teu menor tanto s'estime,
    Que nunca possa ser senão sublime?

    Nisto não fallo mais, porque conheço
    Que da materia se me baixa o engenho.
    Mas, pois a dizer tudo m'offereço,
    E dias ha que no desejo o tenho,
    Sendo vós de tão alto e illustre preço,
    A vida fostes pôr n'hum fraco lenho,
    Por largo mar e undosa tempestade,
    Só por servir á Regia Magestade.

    E despois de tomar a redea dura
    Na mão, do povo indomito qu'estava
    Costumado a larguezas, e á soltura
    Do pezado govêrno que acabava;
    Quem não terá por santa e justa cura,
    Qual do vosso conceito s'esperava,
    A tão desenfreada enfermidade
    Applicar-lhe contrária qualidade?

    Não he muito, Senhor, se o moderado
    Govêrno se blasphema e se desama;
    Porque o povo á largueza costumado,
    Á lei serena e justa, dura chama.
    Pois o zelo em virtude só fundado
    De salvar almas da Tartarea flama
    Com a ágoa salutifera de Christo,
    Poderá por ventura ser malquisto?

    Quem quizesse negar tão grã verdade,
    Qual he o seu effeito santo e pio;
    Negue tambem ao sol a claridade,
    E certifique mais que o fogo he frio.
    Se o successo he contrário da vontade
    Nas obras que são boas, e ha desvio;
    Está nas mãos dos homens comettellas,
    E nas de Deos está o successo dellas.

    Sei eu, e sabem todos que os futuros
    Verão por vós o Estado accrescentado,
    Serão memoria vossa os fortes muros
    Do Cambaico Damão bem sustendado:
    Da ruina mortal serão seguros,
    Tendo todo o alicerce seu fundado
    Sôbre orfãas amparadas com maridos,
    E pagos os serviços bem devidos.

    Quãmanha infamia ao Principe he perder-se
    Pouco do Estado seu, que inteiro herdou,
    Tanto por glória grande deve ter-se
    Se accrescentado e próspero o deixou.
    Nunca consentio Roma ennobrecer-se
    Com triumphos alguem, se não ganhou
    Provincia com que o Imperio s'augmentasse,
    Por maiores victorias qu'alcançasse.

    Póde tomar o vosso nome dino
    Damão, por honra sua clara e pura,
    Como ja do primeiro Constantino
    Tomou Byzancio aquelle qu'inda dura.
    E tu, Rei, que no Reino Neptunino,
    Lá no seio Gangetico a Natura
    Te aposentou, de ser tão inimigo
    Deste Estado não ficas sem castigo.

    Bem viste contra ti nadantes aves
    Cortar a espumosa ágoa navegando;
    Ouviste o som das tubas, não suaves,
    Mas com temor horrifero soando;
    Sentiste os golpes asperos e graves
    Do Lusitano braço nunca brando.
    Não soffreste o grão brado penetrante,
    Que os trovões imitava do Tonante.

    Mas antes dando as costas e a victoria
    Á Bragancez ventura não corrido,
    Déste bem a entender quão grande glória
    He de tal vencedor o ser vencido.
    Quem faz obras tão dignas de memoria
    Sempre será famoso e conhecido,
    Onde os altos juizos o estimarem,
    Qu'estes sós tẽe poder de fama darem.

    Não vos temais, Senhor, do povo ignaro,
    Tão ingrato a quem tanto faz por elle;
    Mas sabei qu'he signal de serdes claro
    O ser agora tão malquisto delle.
    Themistocles, da patria sua amparo,
    O forte e liberal Cimon, e aquelle
    Que Leis ao povo deo d'Esparta antigo,
    Testimunhas serão de quanto digo.

    Pois ao justo Aristídes hum robusto,
    Votando no ostracismo costumado,
    Lhe disse claro assi: Porque era justo
    Desejava que fosse desterrado.
    Pachitas por fugir do povo injusto
    Calumnioso, dando no Senado
    Conta de Lesbos, qu'elle ja mandára,
    Se tirou co'o seu ferro a vida chara.

    Demosthenes, lançado das tormentas
    Populares, Ó Pallas! foi dizendo,
    Que de tres monstros grandes te contentas,
    Do drago e moucho, e do vil povo horrendo!
    Que glórias immortaes houve, qu'isentas
    Do veneno vulgar fossem, vivendo?
    Pois mil exemplos deixo de Romanos,
    E vós tambem sois hum dos Lusitanos.

      *      *      *      *      *


EPISTOLA III.

    Mui alto Rei, a quem os Ceos em sorte
    Derão o nome augusto e sublimado
    Daquelle Cavalleiro que na morte,
    Por Christo, foi de settas mil passado;
    Pois delle o fiel peito, casto e forte,
    Co'o nome Imperial tendes tomado,
    Tomae tambem a setta veneranda
    Que a vós o Successor de Pedro manda.

    Ja por ordem do Ceo, que o consentio,
    Tendes o braço seu, reliquia chara,
    Defensor contra o gladio que ferio
    O povo que David contar mandára.
    No qual, pois tudo em vós se permittio,
    Presagio temos, e esperança clara,
    Que sereis braço forte e soberano
    Contra o soberbo gladio Mauritano.

    E o que hum presagio tal agora encerra,
    Nos faz ter por mais certo e verdadeiro
    A setta, que vos dá quem he na terra
    Dos celestes thesouros Dispenseiro:
    Que as vossas settas são na justa guerra
    Agudas, e entrarão por derradeiro
    (Cahindo a vossos pés povo sem lei)
    Nos peitos que inimigos são do Rei.

    Quando vossas bandeiras despregava
    Albuquerque fortissimo com glória
    Por as praias de Persia, e alcançava
    De Nações tão remotas a victoria;
    As settas embebidas, que tirava
    O arco Armusiano (he larga historia)
    Nos ares, Deos querendo, se viravão,
    Pregando-se nos peitos que as tiravão.

    O querido de Deos, por quem peleja,
    O ar tambem e o vento conjurado
    Ao atambor lhe acodem, porque veja
    Que o que a Deos ama, he de Deos amado:
    Os contrarios revéis á Madre Igreja
    Atroarão co'o tom do Ceo irado.
    Que assi deo ja favor maior que humano
    A Josué Hebreo, Teodosio Hispano.

    Pois se as settas tiradas da inimiga
    Corda, contra si só nocivas são,
    Que farão, Rei, as vossas que tẽe liga
    Com a que ja tocou Sebastião?
    Tinta vem do seu sangue, com que obriga
    A levantar a Deos o coração,
    Crendo bem que as que vós despedireis,
    No sangue Sarraceno as tingireis.

    Ascanio, (se trazer me he concedido
    Entre santos exemplos hum profano)
    Rei do Imperio, despois tão conhecido,
    De Roma, e só reliquia do Troiano,
    Vingou com setta e ânimo atrevido
    As soberbas palavras de Numano;
    E logo foi dalli remunerado
    Com louvores de Apollo, e celebrado.

    Assi vós, Rei, que fostes segurança
    De nossa liberdade, e que nos dais
    De grandes bens certissima esperança;
    Nos costumes, e aspecto que mostrais,
    Concebemos segura confiança
    Que Deos, a quem servis e venerais,
    Vos fara vingador dos seus revéis,
    E os premios vos dará que mereceis.

    Estes humildes versos, que pregão
    São destes vossos Reinos com verdade,
    Recebei com benigna e Real mão,
    Pois he devida a Reis benignidade.
    Tenhão (se não merecem galardão)
    Favor sequer da Regia Magestade:
    Assi tenhais de quem ja tendes tanto,
    Com o nome e reliquia, favor santo.

      *      *      *      *      *


EPISTOLA IV.

    Senhora, s'encobrir por algum'arte
    Pudera esta occasião de meu tormento,
    Não creias que chegára a declarar-te
    Este meu perigoso pensamento.
    Mas por mais que te offenda, não sou parte
    No crime de tamanho atrevimento:
    Elle he d'amor; e delle fui forçado
    A que te declarasse o meu cuidado.

    Se merece castigo a confiança
    Com que descubro agora o que padeço,
    Aqui prompto me tens; toma a vingança
    Que por tão grave culpa te mereço.
    Bem me podes negar toda esperança,
    Mas eu não desistir deste comêço;
    Porque tempo e Fortuna não são parte
    Para deixar hum'hora só de amar-te.

    Ja que ver-te os meus olhos alcançárão,
    Descansem neste bem com alegria,
    Pois ja com ver os teus tanto ganhárão,
    Quanto, estando sem vê-los, se perdia.
    Que glória querem mais, se a ver chegárão
    Aquella pura luz que vence ao dia?
    Qual mor bem ha no mundo que querer-te,
    Se não ha mais que ver despois de ver-te?

    Minhas dores mortaes, bella Senhora,
    Tirárão a virtude ao soffrimento;
    E fazendo-se mais em qualquer hora,
    Levando vão traz ti meu pensamento:
    Porém soberbos vejo desde agora,
    Por a causa gentil de seu tormento,
    Minha alma, meu desejo, meu sentido,
    Porque á tua belleza se hão rendido.

    A par de tua rara formosura
    Se desconhece o mor merecimento;
    A tua claridade torna escura
    Do sol a clara luz em hum momento.
    Se Zeuxis ao formar bella figura,
    A vista em ti pudera pôr attento,
    Mais alto original houvera achado
    Para admirar o mundo co'o traslado.

    Aquelles qu'escrevêrão mil louvores
    De formosura, graça e gentileza,
    Todos forão, Senhora, huns borradores
    De tua perfeitissima belleza.
    Agora se vê claro em teus primores
    Qu'em ti s'esmerou mais a natureza;
    E qu'erão os seus cantos prophecias
    Do que havias de ser em nossos dias.

    Vê, pois, se vinha a ser culpavel falta
    Em mi o não render-te amante a vida,
    E se deixar d'amar glória tão alta
    Era digno da pena mais crescida.
    Emfim, eu te amarei; que Amor m'exalta
    Co'o castigo de culpa assi atrevida:
    E quando della caia, maior glória
    Tera o Tejo, que o Pó, com sua historia.

      *      *      *      *      *



OITAVAS.


GLOSA DO SONETO 14.

    Despois que a clara Aurora a noite escura
    Com novo resplandor foi desfazendo,
    E Phebo por os montes e espessura
    Os seus dourados raios estendendo;
    Se buscava nos valles a verdura
    O manso gado a luz serena vendo,
    Quando a férvida sésta ja abrazava,
    _Todo animal da calma repousava._

    Ja por fugir do sol o fogo ardente,
    As sombras os rebanhos vão buscando;
    Os tenros cabritinhos juntamente
    Apos as mansas mães hião saltando;
    Tangendo as suas frautas docemente
    Os pastores, estavão enganando
    A grã chamma solar qu'então ardia;
    _Só Liso o ardor della não sentia._

    Tristes lembranças tanto o traspassavão,
    Que a dura sésta nelles só passava;
    O tempo qu'em prazer outros gastavão,
    Em celebrar seu mal elle o gastava;
    As festas que com jogos celebravão,
    Elle com suspirar as celebrava:
    Nada buscava mais, mais não queria
    _Que o repouso do fogo em qu'elle ardia._

    Os repetidos jogos dos pastores,
    As lutas entre a rama repetidas,
    Em nada lhe divertem suas dores;
    Mas antes n'alegria as vê crescidas.
    Como o repouso roubão os amores
    Ás almas que para elles são nascidas,
    Elle, todo o repouso qu'esperava,
    _Consistia na Nympha que buscava._

    Com o chôro, que ja corria em fio
    Por o pallido rosto, augmenta as fontes,
    Que levão ágoa estranha ao claro rio
    Que os valles vai regando entre altos montes.
    Com suspiros a quem o ecco pio
    Responde de apartados horizontes,
    Os ventos parecia qu'enfreava,
    _Os montes parecia que abalava._

    Que ás queixas de seus doces pensamentos
    Se movessem os montes mais constantes,
    Se parassem os mais veloces ventos,
    Qu'estavão, que corrião circumstantes,
    Bem se devia á dor de seus tormentos,
    E inda que fosse em peitos de diamantes;
    Que hum peito de diamante abrandaria
    _O triste som das mágoas que dizia._

    Porém elle as dizia a outro peito,
    Mais, que diamante, inexpugnavel, duro:
    A fé lh'encarecia, a que sogeito
    O tinha em pena eterna o amor puro;
    Mostrava-lhe este n'alma mais perfeito,
    Quanto mais offendido, mais seguro:
    A Nympha mais segura tudo ouvia,
    _Mas nada o duro peito commovia._

    As lástimas aqui tanto crescêrão,
    Que s'em montes de Hircania s'escuitárão,
    Tigres nos seios seus mover puderão,
    E pedras nos seus cumes abrandárão.
    Mas se no peito as tristes vozes dérão
    Daquella fera humana que buscárão,
    Elle d'as admittir se retirava;
    _Que na vontade de outro pôsto estava._

    Desenganado ja da triste sorte,
    De que mal fino amor se desengana,
    Com a desperança só de sua morte
    Aquellas penas últimas engana.
    Deixando na espessura o claro Norte,
    Para elle de outra luz mais soberana,
    A hum valle aberto então sahir procura,
    _Cansado ja de andar por a espessura._

    Deixando as suas cabras que pascessem
    Naquelle verde prado as frescas flores;
    Porque os Satyros leves o soubessem,
    E os sylvestres Faunos amadores;
    Tambem porque os pastores o entendessem,
    Todo o processo e fim de seus amores
    Escreveo (sem em nada haver mudança)
    _No tronco d'huma faia por lembrança._

    Por lembrança no tronco d'huma faia,
    Que vai sahindo ao ceo de puro altiva
    Na verde, prateada e aurea praia,
    Por onde o claro Tejo se deriva;
    Porque tambem ao ceo sua dor saia
    Sôbre aquella corrente fugitiva,
    Escrita no papel da natureza;
    _Escreve estas palavras de tristeza:_

    Natercia, Nympha bella, por quem vivo
    Em tal tormento, tempo algum me olhou;
    Mas des qu'em mi sentio qu'era captivo
    Daquelle brando olhar que m'enganou,
    O amor tornava em desamor esquivo;
    E d'hum tormento tal a outro passou.
    Em cousas tão sujeitas a mudança
    _Nunca ponha ninguem sua esperança._

    Para dar proveitosos desenganos
    Dos enganos que são de Amor effeitos,
    E dos dous sexos publicar, humanos,
    A origem das mudanças de seus peitos;
    Estas letras aqui por longos anos
    Digão a corações a amar sujeitos
    Em peito varonil, que de ventura,
    _Em peito feminil, que de natura..._

    Faltou-lhe aqui o alento, e ja cansado
    Cahio ao pé da faia em qu'escrevia,
    Não podendo seguir o começado,
    Porque a alma ja do corpo lhe sahia.
    Tres vezes, com accento mal formado,
    Para exemplo futuro repetia:
    Amantes, entendei que a mór belleza
    _Somente em ser mudavel tem firmeza._

      *      *      *      *      *


GLOSA DO SONETO 194.

    _Cá nesta Babylonia adonde mana_
    Hypocrisia, engano e falsidade;
    Cá donde ousada toda carne humana
    A todo arbitrio vive da vontade;
    Cá donde enrouqueceo da Lusitana
    Musa o furor heroico e suavidade;
    Cá donde se produz por cega via
    _Materia a quanto mal o mundo cría_;

    _Cá donde o puro Amor não tẽe valia_,
    Porque Baccho o tẽe hoje desterrado;
    Cá donde a frecha d'ouro não feria,
    Senão cabello preto e alfenado;
    Cá donde a loura trança não se via,
    Nem o rosto de sangue matizado;
    Cá donde nada val a glória humana,
    _Que a mãe, que manda mais, tudo profana_;

    _Cá donde o mal se affina, o bem se dana_,
    Se algum a terra em si quer produzir;
    Cá donde a falsa gente Mahometana
    A glória toda funda em adquirir;
    Cá donde multiplica a mão tyrana,
    Professa em mais crescer, matar, mentir;
    Cá donde o fazer bem he villania,
    _E póde mais que a honra a tyrannia_;

    _Cá donde a errada e cega Monarchia_
    De fabulosas leis está vivendo,
    E á fôrça d'hum amor engrandecia
    O nefando Alcorão em qu'está crendo;
    Cá donde nada val a Poesia,
    E s'está da lei della escarnecendo;
    Cá donde a fidalguia Mahometana
    _Cuida qu'um nome vão a Deos engana._

    _Cá nesta Babylonia, onde a Nobreza_
    Da Lusitana gente se perdeo;
    E do grão Sebastião toda a grandeza
    Irreparavelmente se abateo;
    Cá donde algum mentir não he baixeza,
    E os meritos esmola (assi cresceo
    Da cobiça mortal a semrazão)
    _Co'o esfôrço e saber, pedindo vão._

    _Ás portas da cobiça e da vileza_
    Estes netos de Agar estão sentados
    Em bancos de torpissima riqueza,
    Todos de tyrannia marchetados.
    He do feio Alcorão summa a largueza
    Que tẽe para que sejão perdoados
    De quantos erros commettendo estão
    _Cá neste escuro cáos de confusão._

    _Cumprindo o curso estou da natureza_,
    Illustre Dama, neste labyrintho;
    Mas quem usa comigo mais crueza,
    He tua condição, que n'alma sinto.
    Acabe-se algum dia tal tristeza,
    E este sentido mal qu'em versos pinto:
    E pois n'alma he sentido e coração,
    _Ve se m'esquecerei de ti, Sião._

      *      *      *      *      *


A SANTA URSULA.

    D'huma formosa virgem desposada,
    Que d'outras onze mil, tambem formosas,
    Entrou no claro Olympo acompanhada,
    Com corôas de lyrios e de rosas;
    De Christo Esposo seu tão namorada,
    Que delle as quiz fazer todas esposas;
    Amor, vida e martyrio cantar quero,
    Fiado no favor que della espero.

    Alcança, Ursula bella, (que diante
    De tão bello esquadrão foste por guia)
    De teu suave Amor, que de ti cante
    O seu amor que no teu peito ardia.
    Meu verso para ti mais se levante,
    Ó Christifera, ó heroica companhia;
    Tanto se mostre aqui mais soberano,
    Quanto o divino Amor excede o humano.

    E vós, unica Mãe e Virgem pura,
    Pois sois das que tal ordem escolhêrão,
    Que fostes, sois, sereis guarda segura
    Da pureza que a Deos offerecêrão;
    Neste canto me dae melhor ventura
    Do que atégora as Musas vãas me derão:
    Vossas servas serão de mi servidas,
    Cantadas suas mortes, suas vidas.

    Serenissima Infante, produzida
    Do grão Tronco Real, sublime Planta;
    No titulo, nas obras e na vida,
    Retrato natural de Ursula Santa,
    Desta virgem, tambem de Reis nascida,
    Ouvi com ledo rosto o que se canta;
    Dae o sentido hum pouco a tal sogeito:
    Não lhe tire seu preço o meu defeito.

    No tempo que Ciriáco se sentava
    Na Cadeira de Pedro pescador,
    De que com sãa doutrina apascentava
    As Ovelhas de Christo, Bom Pastor;
    Teve Bretanha hum Rei, que professava
    A Lei que deo no mundo o Redemptor,
    Justo e temente ao Ceo, pio e devoto,
    Chamado Mauro d'huns, e d'outros Noto.

    De virtudes hum novo exemplo e raro,
    Em idade e belleza florecia
    Ursula, por quem Noto era mais claro,
    Que por todo o poder que possuia;
    Com quem em nada o Ceo quiz ser avaro,
    Com quem todas as graças repartia;
    Prudente, honesta e docta a maravilha,
    De tão ditoso pae ditosa filha.

    Aquella que por o ar com ligeireza
    As pennas de mil azas abre e cerra,
    E que com velocissima presteza
    Com outros tantos pés corre por terra;
    Aquella, que de sua natureza
    Não cuida em quanto diz se acerta ou erra,
    E d'huma em outra boca se derrama:
    Aquella, emfim, a quem chamamos Fama;

    Hia por todo o mundo divulgando
    Extremos desta virgem soberana,
    Aquella formosura celebrando
    Com que Amor cego a tanta vista engana:
    Mais hia a d'alma sua publicando,
    Porqu'era mais divina do que humana:
    Ja d'huma, e d'outra ja dizia tanto,
    Qu'em huns criava amor, n'outros espanto.

    Ouvidos seus louvores, muitas vezes
    Desejou desta virgem fazer nora
    Hum Rei que o sceptro tinha dos Inglezes,
    Idolatras então, cegos agora.
    Ó povo cego e leve! as torpes fezes
    Aparta do ouro puro e lança fóra,
    Torna-te ao teu pastor, perdido gado!
    Ólha que vás sem elle mal guiado.

    Hum filho deste Rei (de quem dizia
    Que ser de Ursula sogro desejava)
    Movido do rumor que della ouvia,
    Ja dentro no seu peito a namorava.
    Alli seu amor, delle, lhe offrecia;
    Alli por o amor della suspirava.
    Suspira elle por ella; ella suspira
    Tambem por outro amor que nunca vira.

    Mandou o Rei Inglez Embaixadores
    Com pompa Regia e lustre sumptuoso,
    (Do grande Reino seu grandes Senhores)
    A Noto, Rei não tanto poderoso.
    Pedio-lhe a bella filha (qu'em amores
    Ardia toda do celeste Esposo)
    Para esposa do filho, que sabia
    Que ja d'amores della todo ardia.

    O Rei Bretão se achava descontente
    Com a nova embaixada de Inglaterra:
    Receia que se nella não consente,
    O gentio lhe mova cruel guerra:
    Porque sendo mais rico e mais potente,
    Assi no largo mar, como na terra,
    Quando desprezos visse de seu rôgo,
    Podia pôr Bretanha a ferro e fogo.

    Sôbre este não errado pensamento
    Do medo de perder seu senhorio,
    Novo discurso tinha e novo intento,
    Com que se achava mais medroso e frio.
    Estranhava o fazer ajuntamento
    Da catholica filha co'hum gentio;
    Pois nem a Lei de Christo o permittia,
    Nem Ursula fiel o admittiria.

    Estando o pae em tal angústia pôsto,
    Divinamente a filha ja inspirada,
    Lhe assegurava com sereno rosto
    Que consentir podia na embaixada;
    Dizendo que se o Inglez levava gôsto
    D'ella com seu herdeiro ser casada,
    Primeiro lhe mandasse dez donzellas,
    Do Reino as mais illustres, as mais bellas.

    Que mil daria a cada virgem destas,
    E que a ella outras mil tambem daria,
    Todas de claro sangue, e em vista honestas.
    (Dest'arte a conta de onze mil fazia)
    Que por trez annos dilação nas festas,
    Além do ja pedido, lhe pedia;
    E naos e mantimentos, porque todas
    Fossem com ella a Roma antes das bodas.

    Alli sua pureza e virgindade
    Queria com solemne e sacro voto
    Consagrar á divina Potestade,
    Que o ceo e a terra fez de proprio moto.
    E que deixasse a vãa gentilidade
    Seu filho, para genro ser de Noto,
    Para que neste espaço doutrinado
    Fosse na Fé de Christo, e baptizado.

    Com estas condições Ursula disse
    Ao charo pae, que, a ser dellas contente,
    Podia responder; e despedisse
    A proposta daquelle Rei potente:
    Ou porque ouvindo-as elle desistisse,
    Podendo-se acceitar difficilmente;
    Ou porque, quando as virgens concedesse,
    Comsigo a seu Senhor onze mil désse.

    Oh Divino saber, quão soberano
    Conselho he sempre o teu! quão remontado!
    Oh quanto o mor saber te cede humano,
    Por mais que de razões vá mais ornado!
    Ja dos idolos deixa o cego engano
    O Principe, da virgem namorado;
    Ja terno pede ao pae quanto ella pede;
    Ja o pae quanto lhe roga lhe concede.

    Ja para ti, ó virgem bella e branda,
    Com huma singular velocidade,
    Juntar se via d'huma e d'outra banda
    De feminil nobreza tenra idade.
    As naos apparelhar o Rei ja manda;
    Ja nellas se recolhe a Virgindade;
    Ja dão para Bretanha ao vento velas.
    O coração do noivo vai com ellas.

    Ja vem a tomar porto onde esperava
    Ursula alvoroçada em grã maneira;
    Que para as receber alli se achava,
    Como senhora não, mas companheira.
    Quão falsa era a Lei dellas lhes mostrava,
    A de Christo quão pura e verdadeira.
    Ja se baptiza huma e outra Dama;
    Damas Ursula ja do ceo lhes chama.

    A Fama, que não sabe repousar,
    Voou de Reino em Reino, d'ilha em ilha;
    A gente que concorre não tẽe par,
    Por ver a nunca vista maravilha.
    Outros vem por servir e acompanhar
    A Virgem de Rei nora, de Rei filha.
    Movem-se muitos Bispos de Bretanha;
    Pantalo em vida e morte os acompanha.

    Por ti, deixando o Reino, co'a familia
    E quatro filhas suas, s'embarcou,
    Juliana, Victoria, Aurea, Babilia;
    (Hum filho tinha mais que mais levou)
    Gerasina, Rainha de Sicilia,
    E com devido amor te acompanhou;
    Qu'he justo que comtigo vão Rainhas,
    Quando tu para o Rei dos Reis caminhas.

    Ja se partem as bellas peregrinas,
    As mãos ao claro Empyreo levantadas;
    Ja rompem, ja, por ondas crystallinas
    As naos de formosura carregadas.
    Quando, dizei, ó ágoas Neptuninas,
    Fostes de tal belleza navegadas?
    Nunca, despois que a terra descobristes,
    A tal frota por vós caminho abristes.

    Com vento sempre igual, com mar bonança,
    Sem perigos alguns, sem algum pejo,
    Ceyla forão tomar, porto de França,
    Onde pouca demora fazer vejo.
    O coração da virgem não descança,
    Saudosa do fim de seu desejo;
    Manda que levem ferro, soltem linho
    Que leve por o mar o negro pinho.

    O vento nova posse vai tomando
    Das virgens que lhe são encommendadas:
    Com tal prosperidade vão voando,
    Que ja deixão atraz ondas salgadas:
    Ja nas doces do Rheno estão entrando,
    Onde tẽe suas vidas limitadas:
    Huma cidade vem á lingua da ágoa,
    Que de vê-las morrer não teve mágoa.

    Ah Colonia cruel, que não t'encobres
    A tão formosos olhos, que seguros
    As altas tôrres vião que descobres,
    Lustrosos edificios, fortes muros!
    Permitte o largo Ceo que fama cobres
    De ser tão dura mãe de peitos duros?
    Duros peitos, que a tantos, limpos de êrro
    Virão abrir sem dor com impio ferro!

    Estando neste porto a bella Armada
    Tomando o necessario mantimento,
    Para poder seguir sua jornada,
    E dar terceira vez o treu ao vento;
    Sendo parte da noite ja passada,
    A virgem lá no seu retrahimento,
    Quando estava dormindo toda a frota,
    A Christo orou assi, branda e devota:

    Amor, divino Amor, Amor suave,
    Amor, que amando vou toda rendida;
    Com quem não ha na vida pena grave,
    Sem quem glória real não ha na vida;
    Amor, que do meu peito tens a chave,
    Amor, de cujo amor ando ferida,
    Quando verei, Amor, o que desejo,
    Para que veja, Amor, o que não vejo?

    Amor, que d'amor cheio e de brandura,
    D'amor enches est'alma saudosa;
    Amor, sem cujo amor e formosura,
    Não póde nunca haver cousa formosa;
    Amor, com cujo amor anda segura
    Huma vida tão fraca e duvidosa,
    Quando verei, Amor, o que desejo,
    Para que veja, Amor, o que não vejo?

    Amor, que por amor te dispuzeste
    A restaurar o mundo errado e triste;
    Amor, que por amor do ceo desceste;
    Amor, que por amor á Cruz subiste;
    Amor, que por amor a vida déste;
    Amor, que por amor a glória abriste,
    Quando verei, Amor, o que desejo,
    Para que veja, Amor, o que não vejo?

    Amor, que mais e mais sempre te augmentas
    No coração que lá comtigo trazes;
    Amor, que d'amor puro te sustentas
    No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
    Amor, que sem amor não te contentas,
    De tudo com amor te satisfazes,
    Quando verei, Amor, o que desejo,
    Para que veja, Amor, o que não vejo?

    Amor, que com amor me captivaste;
    (Se livre póde ser quem não captivas)
    Amor, qu'em taes prisões m'asseguraste
    As esperanças d'antes fugitivas:
    Amor, que suspirando m'ensinaste
    A derramar por ti lagrimas vivas,
    Quando verei, Amor, o que desejo,
    Para que veja, Amor, o que não vejo?

    Quando verei hum dia em que offereça
    Por ti ao cruel ferro o peito forte,
    E cercada de virgens appareça
    Na tua soberana e eterna Corte;
    Onde lá cada huma te mereça,
    Cá passando comigo a propria morte;
    E todas dando o sangue juntas, todas
    Celebremos comtigo eternas bodas?

    Faze-me ja, Senhor, esta vontade
    Que tenho de te ver, que sempre tive,
    Des que me deo lugar a tenra idade,
    E lume de razão nesta alma vive.
    Não queiras, meu Amor, que a saudade
    Sem tal bem a mi só da vida prive;
    Que se muito se alarga este destêrro,
    Por ella irei a ti, não por o ferro.

    Desata o meu espirito saudoso,
    Do nó mortal em que se vai detendo,
    Primeiro que tres vezes pressuroso
    O sol os doze Signos vá correndo.
    Espaço he que tomei, meu doce Esposo,
    Para outro esposo meu ir entretendo:
    Mas a meu amor crendo, de ti creio
    Que acabes com a vida o meu receio.

    Inda neste fervente e justo rôgo
    Ursula suspirando procedia,
    Quando d'hum resplandor como de fogo
    Divina voz ouvio, que assi dizia:
    Ó virgem, que soubeste fazer jôgo
    Do que no mundo tẽe maior valia,
    Entende que da volta que fizeres,
    Aqui quero que seja o que tu queres.

    Tanto que tal resposta do Ceo teve,
    Não quiz do que esperava perder hora:
    Ja lhe parece larga a noite breve,
    E que ja tarda muito a bella aurora.
    Em descobrindo Apollo o carro leve,
    Do porto de Colonia sahio fóra.
    Ja Basilêa em breve tempo toma:
    E a pé d'alli partirão para Roma.

    O Pastor summo, Ciriáco santo,
    As sahe a receber, e as acompanha
    Com gôzo espritual, com grande espanto
    De ver em tal idade fé tamanha.
    Dizer se póde mal, mal cuidar quanto
    Se goza o Real sangue de Bretanha,
    Os veneraveis Templos visitando
    Daquelles que tambem foi imitando.

    Na propria noite deste proprio dia
    Que Roma ver as virgens mereceo,
    A quem de Pedro a Barca então regía
    Revelou o que rege a terra e ceo
    Que martyrio tambem receberia
    Onde Ursula co'as mais o recebeo:
    Deixa contente o grão Pontificado,
    Desejoso de ser martyrizado.

    Por mais que todo o Clero soffre mal
    Mover-se por aquellas Estrangeiras,
    Movido da Vontade divinal
    O bom Pastor se vai com as Cordeiras.
    Hum Arcebispo leva, hum Cardeal:
    Tres Bispos deixão vagas tres Cadeiras,
    De Luca, Ravicana e de Ravenna:
    Mauricio me ficava ja na penna.

    Despois de n'ágoa entrar, donde sahírão,
    Com tão formoso sol tantas estrellas,
    Ja as ancoras debaixo acima tirão,
    E de cima ja abaixo soltão vellas.
    Estas naos lá adiante outras naos vírão,
    Que fazendo-se vem na volta dellas;
    Conhecêrão-se logo as duas frotas:
    Ambas d'hum Reino são, ambas devotas.

    Alli, ja Rei erguido d'Inglaterra,
    Vinha de Ursula bella o bello esposo,
    Que reinar não queria ja na terra,
    Do ceo ja namorado e saudoso.
    Do seu primeiro amor venceo a guerra
    A fôrça d'outro amor mais poderoso:
    Amando ja em seu Deos a esposa bella,
    Para o poder achar, buscava a ella.

    A mãe, ja convertida, traz comsigo;
    O pae, ja Christão feito, fallecêra,
    Com que soube evitar o grão castigo
    Que, morrendo Gentio, não soubera.
    Amor celeste, como aqui não digo
    O teu sublime obrar? (Ah quem pudera!)
    Por meio d'huma virgem foste meio
    Com que gente copiosa a Christo veio.

    Vinha mais nesta nova companhia
    Florencia, irmãa do Rei, da mãe cuidado;
    Florencia, qu'em belleza florecia,
    Como flor em jardim bem cultivado.
    Tambem a frota Bispos dous trazia,
    Hum Marcello, Clemente outro chamado:
    O primeiro ja em Grecia bago teve;
    Do segundo o Bispado não s'escreve.

    Outra Virgem viuva alli mais vinha,
    Que desposada sendo em tenra idade,
    Antes das bodas enviuvado tinha,
    E promettida a Christo a castidade.
    Esta do mesmo Rei era sobrinha,
    Filha da Imperatriz da grã cidade,
    Onde por culpa nossa, ou pouca dita,
    Seu throno agora tẽe o fero Scita.

    Estes, que adverte repetida historia
    Deixárão só por Deos altos Estados,
    Com outros, de que he menos a memoria,
    Forão divinamente amoestados
    Que todos, para entrar juntos na glória,
    Ao côro virginal fossem juntados,
    Com quem na terra Martyres serião,
    E no ceo para sempre reinarião.

    Sería estranho o gôzo que sentírão
    Aquellas bem nascidas almas santas,
    Quando juntas alli todas se vírão
    De partes tão remotas, e de tantas.
    Sem estorvos, que d'antes o impedírão,
    As duas, mais que todas, bellas plantas
    Alli abraços se dão sem algum pejo,
    Ambas conformes ja n'hum só desejo.

    Alli faria o Rei acatamento
    A quem deixou da Barca o grão govêrno;
    E elle, conforme a seu merecimento,
    Responderia com amor paterno.
    Não faltaria em tal recebimento
    Prazer exterior, prazer interno;
    Inda que nos estados differentes,
    Todos serião huns em ser contentes.

    O vento as brancas velas não enchia,
    Corria o frio Rheno então mais quedo;
    Antes para Colonia não corria,
    Porque as virgens não fossem lá tão cedo.
    Parece que ja claro conhecia
    (Oh côro virginal, sereno e ledo!)
    Que lá vos esperava a impia morte.
    Agora, ó Musa, conta de que sorte.

    Aquelle que na fórma de serpente
    Deixou aos dous primeiros enganados,
    Invejoso de ver que tanta gente
    Se convertia á Lei dos Baptizados;
    No caração entrou manhosamente
    De dous gentios Principes damnados,
    Da soberba Romãa Cavaleria,
    Por encurtar a Fé que s'estendia.

    A Fama os assegura com certeza
    Que a virgem a Colonia ja voltava,
    Com toda a casta juvenil belleza
    Que por amor do Ceo peregrinava.
    Fizerão avisar com grã presteza
    A hum parente, que Julio se chamava,
    Soberbo Capitão dos Hunnos feros;
    Que todos para todas forão Neros.

    Eis logo o cego Principe gentio,
    Com gente innumeravel de seu mando,
    A praia a tomar vem do mesmo rio
    Por onde as virgens vinhão navegando.
    Ja descobrem aquelle, este navio
    Os qu'estão do mais alto atalaiando:
    Ás armas veloz corre o bruto povo,
    Por de novo as tingir no sangue novo.

    Vindo a frota a surgir junto do muro,
    Onde lhe parecia estar segura,
    (Oh virgens que buscais? lugar seguro
    Adonde vos espera a sepultura!)
    Entra com mão armada o povo duro
    Por esta peregrina formosura:
    Ja começa a provar os aços fortes;
    Eis tudo sangue ja, eis tudo mortes.

    Ja nu todas as virgens offrecião
    O delicado collo, o tenro peito:
    Era para caber quantas cahião,
    Todo largo lugar lugar estreito.
    Do puro sangue os rios que corrião,
    Outro vermelho mar ja tinhão feito.
    Tu só, Córdula, á morte t'escondeste;
    Mas despois a buscaste e recebeste.

    Ciriáco o primeiro, bem constante,
    A vida ao ferro offrece sem espanto:
    O moço Rei Inglez cahio diante
    Daquelles castos olhos que amou tanto.
    Espera, brando esposo, hum breve instante;
    Espera a tua doce esposa, em tanto
    Que outro Amor outro golpe lhe prepara;
    E juntos entrareis na Patria chara.

    Em qual terra, ó crueis, em qual cidade,
    Entre quaes gentes mais a furor dadas,
    Se não usou d'amor e de piedade
    Com formosas donzellas desarmadas?
    Como belleza tanta e tal idade
    Vos deixou arrancar vossas espadas?
    Ah lobos carniceiros, tigres bravos,
    Filhos da crueldade, d'ira escravos!

    De quantos animaes sustenta a terra
    Nunca tanta crueza foi usada;
    Inda que tenhão huns com outros guerra,
    Nunca do macho a femia he lastimada:
    Anda a cerva co'o cervo por a serra,
    A novilha do touro acompanhada,
    Á leoneza o leão defender preza:
    Vós sós quebrais as leis da natureza?

    Puderão outros olhos por ventura
    De lagrimas divinas escusar-se,
    Vendo, cuberta ja de névoa escura,
    A luz de tantos bellos apagar-se?
    Vendo a purpurea rosa, a cecem pura
    Em tão formosas faces descorar-se?
    As tranças d'ouro vendo, espedaçadas,
    Por debaixo dos pés andar pizadas?

    Na fôrça desta furia accesa e brava
    O Tyranno cruel a vista ergueo
    Á virgem, qu'invencivel animava
    As almas que juntára para o Ceo.
    Assi ja envolta em sangue como andava,
    Da sua formosura se venceo;
    E com doces razões, que Amor ensina,
    A vencê-la d'amor se determina.

    Fingindo se arrepende do passado,
    (E de fingi-lo se arrepende azinha)
    Sua vida lhe offrece e seu Estado,
    Sem ver qu'Estado e vida a perder vinha.
    O seu amor lhe pede confiado;
    O seu amor que dado a seu Deos tinha:
    Pede-lhe o seu amor; antes não seu,
    Porque ja dado o havia a quem lho deu.

    Usa de mil lisonjas, mil enganos,
    Por conseguir o seu desejo bruto.
    A flor logra (dizia) de teus anos,
    Colhe d'essa belleza o doce fruto:
    Não dês materia nova a novos danos,
    Não pagues verde á morte o seu tributo:
    Olha que tens em mi (não são cautelas)
    Outro Reino, outro esposo, outras donzelas.

    Não faças mentirosa a natureza
    Que dá d'amor em ti grande esperança.
    Que se póde alcançar d'essa belleza,
    Se ja piedade della não s'alcança?
    Aos tigres, aos leões deixa a braveza,
    E deixa aos meus soldados a vingança.
    Se por ver-me cruel queres ser crua,
    Ja te vingas de mi em cousa tua.

    Volve esses olhos ja com mais brandura;
    Esses olhos, d'Amor doce morada:
    Delles não faça em mi a formosura,
    O qu'em tantos ja fez a minha espada.
    Se queres derribar minha ventura,
    Que delles estar vejo pendurada,
    Acabarei de ver quão pouca tenho,
    Pois donde a matar vim a morrer venho.

    Como do rôgo meu não te aproveitas,
    Quando o teu risco a me rogar te obriga?
    Ou não conheces bem a quem engeitas,
    Ou m'engeitas por mais que seja e diga.
    Em que cuidas, Senhora? ou que suspeitas?
    Mais proprio era chamar-te dura imiga.
    Mas não consente Amor nome tão duro
    Em parecer tão brando e tão seguro.

    Os raios desses olhos ja serenos
    Enxuguem desse rosto as puras rosas;
    O triste suspirar ja sôe menos
    Nestas concavidades saudosas.
    Não fação grande mal males pequenos;
    Que não soffre esperanças vagarosas
    Quem anda costumado em seus amores
    A medir por seu gôsto seus favores.

    Que gôsto podes ter de maltratar-me,
    Vendo-me do passado arrependido?
    Attenta que mais ganhas em ganhar-me,
    Do que neste destrôço tens perdido.
    Se queres insistir em desprezar-me,
    Ver-me-has, sôbre amoroso, enfurecido.
    Não me declaro mais, porque não quero
    Que o medo faça o que d'amor espero.

    Ah perfido amador! deixa o teu êrro.
    Não vês quanto enganado e cego andas?
    Aquella a quem não vence o duro ferro,
    Como a podem vencer palavras brandas?
    Manda a sua alma ja deste destêrro,
    Com essas que a seu doce Esposo mandas.
    Não a detenhas mais em teus amores,
    Se dobrar-lhe não queres suas dores.

    Vendo o cruel, emfim, que o que dizia,
    Tomava a bella virgem por affronta,
    E que quanto d'amor mais se accendia,
    Ella delle fazia menos conta;
    No concavo arco que na mão trazia,
    Huma setta embebeo d'aguda ponta,
    E o peito lhe passou de banda a banda.
    Assi rendeo o esprito a virgem branda.

    Vae-te, Esprito gentil, desta baixeza;
    As azas abre ja, ja a luz derrama;
    Vôa com desusada ligeireza
    Onde o teu Bem t'espera, onde te chama.
    Verás baixa do mundo a mór alteza;
    Verás qu'engana mais a quem mais ama;
    E lá do teu Amor, cá suspirado,
    O fructo colherás tão desejado.

    Em paz te vae, ó alma pura e bella,
    Mais bella inda no sangue que verteste;
    Vae-te alegre a gozar, vae, ja daquella
    Formosa Região, alta e celeste.
    Coroada de glória immortal, nella
    Com Christo lograrás, a quem te déste
    Com tantas e tão bem nascidas almas,
    (Formosura do Ceo) onze mil palmas.

      *      *      *      *      *



COMEDIAS.


INTERLOCUTORES.


DO PROLOGO.

    O MORDOMO, ou DONO DA CASA.
    MARTIM CHINCHORRO.
    AMBROSIO, Escudeiro.
    LANÇAROTE, Moço.


DA COMEDIA.

    ELREI SELEUCO.
    A RAINHA ESTRATONICA.
    O PRINCIPE ANTIOCHO.
    LEOCADIO, Pagem do Principe Antiocho.
    FROLALTA, Criada da Rainha Estratonica.
    HUM PORTEIRO DA CANA.
    HUMA MOÇA DA CAMARA.
    HUM PHYSICO, ou MEDICO.
    SANCHO, Moço do Physico.
    ALEXANDRE DA FONSECA, hum dos Musicos.



      *      *      *      *      *


ELREI SELEUCO.

COMEDIA.



PROLOGO.

_Diz logo o Mordomo, ou Dono da Casa._

Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quiz
representar huma Farça; e diz, que por não se encontrar com outras ja
feitas, buscou huns novos fundamentos para a quem tiver hum juizo assi
arrazoado satisfazer. E diz que quem se della não contentar, querendo
outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros da
Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em
casa do Boticario; e não lhe faltará que conte. Porém diz o Autor que
usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora quanto á obra, se não parecer
bem a todos, o Autor diz que entende della menos que todos os que lha
puderem emendar. Todavia, isto he para praguentos: aos quaes diz que
responde com hum dito de hum Philosopho, que diz: _Vós outros estudastes
para praguejar, e eu para desprezar praguentos?_ Eu com tudo quero saber
da Farça, em que ponto vai. Lançarote?

MOÇO.

Senhor.

MORDOMO.

São ja chegadas as figuras?

MOÇO.

Chegadas são ellas quasi ao fim de sua vida.

MORDOMO.

Como assi?

MOÇO.

Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem talão de
çapato, que não sahisse fóra do couce. Ora vierão huns embuçadetes, e
quizerão entrar por fôrça; ei-lo arrancamento na mão: derão huma pedrada
na cabeça ao Anjo, e rasgárão huma meia calça ao Ermitão; e agora diz o
Anjo que não ha de entrar, até lhe não darem huma cabeça nova, nem o
Ermitão até lhe não pôrem huma estopada na calça. Este pantufo se perdeo
alli; mande-o v. m. Domingo apregoar nos pulpitos; que não quero nada do
alheio.

MORDOMO.

Se elle fôra outra peça de mais valia, tu botáras a consciencia pela
porta fóra, para o metteres em tua casa.

MOÇO.

Oh! se o elle fôra, mais consciencia sería torná-lo a seu dono, quem o
havia mister para si.

MORDOMO.

Ora vem cá: vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que temos
cá Auto com grande fogueira; que se venha sua mercê para cá, e que traga
comsigo o Senhor Romão d'Alvarenga, para que sôbre o Canto-chão botemos
nosso contraponto de zombaria. Ouves, Lançarote? ir-lhe-has abrir a
porta do quintal, porque mudemos o vinte aos que cuidão de entrar por
fôrça.

_Indo-se o Moço diz:_

Chichelo de Judeo, assi como foste pantufo, que te custava ser huma
bolsa com hum par de reales, que são bons para Escudeiro hypocrita; que
são pouco, e valem muito?

MORDOMO.

Moço, que estás fazendo que não vás?

MOÇO.

Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora fôra aquelle
tempo, em que corrião as moedas dos sambarcos, sempre deste tiraria para
humas palmilhas. Mas ja que assi he, diga-me v. m. que farei deste?

MORDOMO.

Oh fideputa bargante! esperae, que est'outro vo-lo dirá.

_Faz que lhe atira com outro pantufo; vai-se o Moço, e diz o Mordomo:_

Não ha mais mao conselho, que ter hum villão destes mimoso, porque logo
passão o pé além da mão, e zombão assi da gravidade de seu amo. Mas
tornando ao que importa; vossas mercês he necessario que se cheguem huns
para os outros, para darem lugar aos outros Senhores que hão de vir; que
de outra maneira, se todo o corro se ha de gastar em palanques, será bom
mandar fazer outro alvalade; e mais, que me hão de fazer mercê, que se
hão de desembuçar, porque eu não sei quem me quer bem, nem quem me quer
mal: este só desgôsto tẽe hum Auto, que he como offício de Alcaide; ou
haveis deixar entrar a todos, ou vos hão de ter por villão ruim.

_Entra Martim Chinchorro, fallando com o Escudeiro Ambrosio, e diz:_

MARTIM.

Entre v. m.

AMBROSIO.

Dias ha, Senhor, que ando de quebras com cortezias; e por isso vou
diante. Beijo as mãos a v. m. A verdade he esta, passear em casa
juncada, fogueira com castanhas, mesa posta com alcatifa e cartas; além
disto Auto para esgaravatar os dentes: esta he a vida, de que se ha de
fazer consciencia.

MORDOMO.

Senhor, o descanso dizem lá, que se ha de ter em quanto homem puder,
porque os trabalhos, sem os chamarem, de seu se vem por seu pé, que seu
nome he.

MARTIM.

Ora pois, Senhor, o Auto que tal dizem que he? Porque hum Auto enfadonho
traz mais somno comsigo que huma prégação comprida.

MORDOMO.

Senhor, por bom mo vendêrão, e eu o tomei á cala de sua boa fama. E se
tal he, eu acho que, por outra parte, não ha tal vida, como ouvir hum
villão, que arranca a falla da garganta, mais sem sabor que huma
pera-pão, e huma donzella, que vem podre de amor, fallando como
Apostolo, mais piedosa que huma lamentação.

MARTIM.

Para estes taes he grande peça rapaz travesso com mólho de junco, porque
não andem mais ao coscorrão, mais roucos que huma cigarra, trazendo de
si enfadamento.

MOÇO.

O lá Senhoras; pedem as figuras alfinetes para toucarem hum Escudeiro.
Ora sus, ha hi quem dê mais? que ainda vos veja todas a mim ás
rebatinhas: ora sus, venhão de mano em mano, ou de mana em mana.

MORDOMO.

Moço, falla bem ensinado.

MOÇO.

Senhor, não faz ao caso; que os erros por amores tẽe privilegio
de Moedeiro.

AMBROSIO.

Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardarão muito por entrar.

MOÇO.

Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.

AMBROSIO.

Oh que salgado moço! Zombas de mi? Vem cá. Donde es natural?

MOÇO.

Donde quer que me acho.

AMBROSIO.

Pergunto-te onde nasceste.

MOÇO.

Nas mãos das parteiras.

AMBROSIO.

Em que terra?

MOÇO.

Toda a terra he huma; e mais eu nasci em casa assobradada, varrida
daquella hora, que não havia palmo de terra nella.

MARTIM.

Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo filho es? He para
ver com que disparate respondes.

MOÇO.

A fallar verdade, parece-me a mi, que eu sou filho de hum meu tio.

MARTIM.

Vem cá. De teu tio! E isso como?

MOÇO.

Como? Isto, Senhor, he adivinhação, que vossas mercês não entendem. Meu
pae era Clerigo, e os Clerigos sempre chamão aos filhos sobrinhos; e
daqui me ficou a mi ser filho de meu tio.

MARTIM.

Ora te digo que es gracioso. Senhor, donde houvestes este?

MORDOMO.

Aqui me veio ás mãos sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e
mais tẽe outra cousa, que huma trova fa-la tão bem como vós, ou como
eu, ou como o Chiado.

AMBROSIO.

Não! quanté disso nós havemos-lhe de ver fazer alguma cousa, em quanto
se vestem as figuras. Aindaque, para que he mais Auto, que vermos a este?

MORDOMO.

Vem cá, moço: dize aquella trova que fizeste á moça Briolanja, por amor
de mi!

MOÇO.

Senhor, si, direi; mas aquella trova não he senão para quem a entender.

MARTIM.

Como! Tão escura he ella?

MOÇO.

Senhor, assi a fiz e a escrevi na memoria, porque eu não sei escrever
senão com carvão; e porém diz assi:

    Por amor de vós, Briolanja,
    Ando eu morto,
    Pezar de meu avô torto.

MARTIM.

Oh como he galante! Que descuido tão gracioso! Mas vem cá: que culpa te
tẽe teu avô nos desfavores que te tua dama dá?

MOÇO.

Pois, Senhor, se eu houve de pezar de alguem, não pezarei eu antes dos
meus parentes, que dos alheios?

MORDOMO.

Pois oução vossas mercês a volta; que he mais cheia de gavetas, que
trombeta de Serenissimo de la Valla.

MOÇO.

A volta, Senhores, he mui funda; e parece-me, Senhores, que nem de
mergulho a entenderão. E por isso mandem assoar os engenhos, e metão
mais huma sardinha no entendimento; e póde ser que com esta servilha lhe
calçará melhor: e todavia palra assi:

    Vossos olhos tão daninhos
    Me tratárão de feição,
    Que não ha em meu coração
    Em que atem dous reis de cominhos.
    Meu bem anda sem focinhos
    Por vós morto,
    Pezar de meu avô torto.

MARTIM.

Ora bem: que tẽe de ver os cominhos com o teu coração?

MOÇO.

Pois, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedella, não
se podem comer senão com cominhos: e mais, Senhores, minha dama era
tendeira; e este he o verdadeiro entendimento.

MARTIM.

E aquella regra que diz, _Meu bem anda sem focinhos_, me dá tu a
entender; que ella não dá nada de si.

MOÇO.

Nunca vossas mercês ouvirão dizer: _Meu bem e meu mal lutárão hum dia;
meu bem era tal, que meu mal o vencia?_ Pois desta luta foi tamanha a
quéda que meu bem deo entre humas pedras, que quebrou os focinhos; e por
ficarem tão esfarrapados, que lhe não podião botar pedaço; por conselho
dos Physicos lhos cortárão por lhe nelles não saltarem erpes; e daqui
ficou: _Meu bem anda sem focinhos_, como diz o texto.

AMBROSIO.

Tu fazes ja melhores argumentos, que moços de estudo por dia de S. Nicolao.

MARTIM.

Senhor, aquillo tudo he bom engenho: este moço he natural para Logico.

MOÇO.

Que, Senhor? Natural para loja! Si, mas não tão fria como vossas mercês.

MORDOMO.

Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por
baixo desta mesa, e ouçamos este Representador, que vem mais amarrotado
dos encontros, que hum capuz roxo de piloto que sahe em terra, e o tira
da arca de cedro.

MARTIM.

Senhor, elle parece que aprende a cirurgião.

AMBROSIO.

Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos
verdes.

MORDOMO.

Emfim, parece figura de Auto em verdade.

_Entra o Representador._

    He lei de direito, assaz verdadeira,
    Julgar por si mesmos aquillo que vem;
    Peloque, se cuidão que zombo de alguem,
    Eu cuido que zombão da mesma maneira.

E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer seu
proprio engano, por grande que seja. Ora, Senhores, a mim me esquece o
dito todo de ponto em claro: mas não sou de culpar, porque não ha mais
que tres dias que mo derão. Mas em breves palavras direi a vossas mercês
a summa da obra: ella he toda de rir, do cabo até á ponta. Entrarão logo
primeiramente quinze donzellas que vão fugidas de casa de seus paes, e
vão com cabazes apanhar azeitona; e traz ellas vem logo oito mundanos,
metidos em hum covão, cantando: _Quem os amores tẽe em Cintra_; e
despois de cantarem farão huma dança de espadas; cousa muito para ver:
entra mais ElRei Dom Sancho bailando os machatins, e entra logo
Catharina Real com huns poucos de parvos n'huma joeira; e semeá-los-ha
pela casa, de que nascerá muito mantimento ao riso. E nisto fenecerá o
Auto, com musica de chocalho e buzinas, que Cupido vem dar a huma
alfeloeira a quem quer bem; e ir-se-hão vossas mercês cada hum para suas
pousadas, ou consoarão cá comnosco disso que ahi houver. Parece-me que
nenhum diz que não. Ora pois ficareis _in vanum laboraverunt_, porque
atégora zombei de vós, por me forrar do êrro da representação, como quem
diz, _digo-to, antes que mo digas._

AMBROSIO.

Ora vos digo, Senhores, que se as figuras são todas taes, que acertarião
em errar os ditos; aindaque me parece que este o não fez, senão a ser
mais galante. Mas se assi he, ella he a melhor invenção que eu vi;
porque jagora representações, todas he darem por praguentos; e são tão
certas, que he melhor errá-las, que acertá-las.

MORDOMO.

Parece-me que entrão as figuras de siso: vejamos se são tão galantes na
prática, como nos vestidos.


      *      *      *      *      *


_Entra El Rei Seleuco, com a Rainha Estratonica._

REI.

    Senhora, desque a ventura
    Me quiz dar-vos por mulher,
    Me sinto emmeninecer;
    Porqu'em vossa formosura
    Perde a velhice seu ser.
    Hum homem velho, cansado,
    Não tẽe fôrça, nem vigor,
    Para em si sentir amor:
    Se não he qu'estou mudado
    Com ser vosso n'outra côr.
    Muito grande dita tem
    A mulher que he formosa.

RAINHA.

    Senhor, grande: mas porém
    Se a tal he virtuosa,
    Quer-lhe a ventura mor bem.

REI.

    Si, mas porém nunca vemos
    A natureza esmerar
    Adonde haja que taxar;
    Que quando ella faz extremos,
    Em tudo quer-se extremar.
    Eu fallo como quem sente
    Em vós está calidade,
    Pelo que vejo presente;
    E se me esta mostra mente,
    Mente-me a mesma verdade.
    Huma só tristeza tenho
    Que não tẽe a meninice,
    Que no mor contentamento
    O trabalho da velhice
    Me embaraça o sentimento.

RAINHA.

    Senhor, novidades tais
    Far-me-hão crer de verdade...

REI.

    Novidades lhe chamais!
    Folgo, Senhora, que achais
    Na velhice novidades.

RAINHA.

    Senhor, dias ha que sento
    Em o Principe Antiôcho
    Certo descontentamento:
    Dera alguma cousa a trôco
    Por saber seu sentimento.
    Vejo-lhe amarello o rosto,
    Ou de triste, ou de doente:
    Ou elle anda mal disposto,
    Ou lá tẽe certo desgôsto
    Que o não deixa ser contente.
    Mande, Senhor, vossa Alteza
    A chamá-lo por alguem,
    Saberemos que mal tem,
    Se he doença de tristeza,
    De que nasce, ou de que vem.

REI.

    Certo qu'eu me maravilho
    Do que vos ouço dizer.
    Que mal póde nelle haver?
    Ide dizer a meu filho
    Que me venha logo ver.

RAINHA.

    Se curar não se procura
    Huma cousa destas tais,
    Vem despois a crescer mais.
    Quando ja não se acha cura,
    Toda a cura he por demais.

_Entra o Principe Antiocho com seu Pagem por nome Leocadio._

PRINCIPE.

    Leocadio, se es avisado,
    E não te falta saber,
    Saber-me-has dar a entender,
    Quem ama desesperado,
    Que fim espera de haver?

PAGEM.

    Senhor, não.
    Mas porém porque razão
    Lhe avem sabê-lo, ou de que?

PRINCIPE.

    Pergunto-te a conclusão;
    Não me perguntes porque.
    Porque he minha pena tal,
    E de tão estranho ser,
    Que me hei de deixar morrer;
    E por não cuidar no mal
    O não ouso de dizer.
    Que maneira de tormento
    Tão estranho e evidente,
    Que nem cuidar se consente!
    Porque o mesmo pensamento
    Ha medo do mal que sente.

PAGEM.

    Não entendo a Vossa Alteza.

PRINCIPE.

    Assi importa á minha dor.

PAGEM.

    E porque razão, Senhor?

PRINCIPE.

    Para que seja a tristeza
    Castigo do meu temor.
    Porque ordena
    O Amor, que me condena,
    Que se haja de sentir,
    E sem dizer nem ouvir.
    Bem-aventurada a pena
    Que se póde descobrir!
    Oh caso grande e medonho!
    Oh duro tormento fero!
    Verdade he isto, qu'eu quero?
    Não he verdade, mas sonho
    De que acordar não espero.
    Quero-me chegar a ElRei
    Meu pae, que ja m'está vendo.
    Mas onde vou? Não m'entendo.
    Com que olhos eu olharei
    Hum pae, a quem tanto offendo?
    Que novo modo de antolhos!
    Porque neste atrevimento
    Devêra meu sentimento
    Para elle não ter olhos,
    Nem para ella pensamento.

_Chega aonde está ElRei, e diz:_

REI.

    Filho, como andais assi?
    Que tanto desgôsto tomo
    De vos ver como vos vi!

PRINCIPE.

    Não sei eu tanto de mi,
    Que possa saber o como.
    Dias ha ja, Senhor, que ando
    Mal disposto, sem saber
    Este mal que possa ser;
    Que se nelle estou cuidando,
    Quasi me vejo morrer.

REI.

    Pois, filho, será razão
    Que meus Physicos vos vejão.

PRINCIPE.

    Os Physicos, Senhor, não;
    Que os males qu'em mi estão,
    São curas que me sobejão.

RAINHA.

    Deite-se; que na verdade
    Hum corpo, deitado e manso,
    Descansa á sua vontade.

PRINCIPE.

    Senhora, esta enfermidade
    Não se cura com descanso.

RAINHA.

    Todavia, bom será
    Que lhe fação huma cama.

PRINCIPE.

    (Hum coxim abastará,
    Que assi não descansará
    O repouso de quem ama.)

REI.

    Vamos, filho, para dentro,
    Em quanto a cama se faz:
    Repousae como capaz;
    Que a mi me dá cá no centro
    A pena que assi vos traz.

_Vão-se, e vem huma moça a fazer a cama e diz:_

MOÇA.

    Mimos de grandes Senhores,
    E suas extremidades,
    Me hão de matar de amores,
    Porque de meros dulçores
    Adoecem.
    Então logo lhes parecem
    Aos outros, que são mamados;
    E os que são mais privados,
    Sôbre elles estremecem.
    Certo (e assi Deos me ajude!)
    Que são muito graciosos,
    Porque de meros viçosos,
    Não podem com a saude.
    Mas deixallos,
    Porque elles darão nos vallos,
    Donde mais não se erguerão,
    Inda que lhe dem a mão
    Os seus privados vassallos.

_Entra hum Porteiro da Cana, e bate primeiro e diz:_

PORTEIRO.

    Traz, traz.

MOÇA.

                Jesu! Quem'stá ahi?

PORTEIRO.

    Ja vós, mana, ereis mamada:
    Para vos levar furtada
    Nunca tal ensejo vi.
    E vós estais descuidada!

MOÇA.

    E meus descuidos que fazem?

PORTEIRO.

    Vossos descuidos? cadella!
    Ah minh'alma! Sois tão bella,
    Qu'esses descuidos me trazem
    Dous mil cuidados á vela.
    Pois sou vosso ha tantos annos,
    Mana, tirae os antolhos,
    E vereis meus tristes dannos.

MOÇA.

    Não tenhais esses enganos.

PORTEIRO.

    Nem vós tenhais esses olhos;
    Que de vossos olhos vem
    Esta minha pena fera.

MOÇA.

    De meus olhos? Assim era.

PORTEIRO.

    Moça, que taes olhos tem,
    Nenhuns olhos ver devêra.

MOÇA.

    E porque?

PORTEIRO.

             Porque cegais
    A quantos olhos olhais,
    Postoque por vós padecem.
    Olhos, que tão bem parecem,
    Porque não os castigais?

MOÇA.

    Deos dê siso, pois de vós
    Tirou o que aos outros deu.

PORTEIRO.

    Desatae-me lá esses nós.
    Que mais siso quero eu,
    Que não ter siso por vós?

MOÇA.

    Fallais d'arte; eu vos prometo
    Que a resposta vem á vela.
    Isso he ôlho de panella.
    Quanto ha ja que sois discreto?

PORTEIRO.

    Quanto ha ja que vós sois bella?

MOÇA.

    Dais-me logo a entender
    Que eu sou feia, a meu ver.

PORTEIRO.

    E isso porque o entendeis?

MOÇA.

    Porque? Porque me dizeis
    Que só de meu parecer
    Vos procede o que sabeis.

PORTEIRO.

    He verdade.

MOÇA.

                   Pois bem sento
    Que o vosso saber he vento.
    Fica a cousa declarada,
    Meu parecer não ser nada.

PORTEIRO.

    Olhae aquelle argumento:
    Além de bella, avisada!
    Oh nem tanto, nem tão pouco!
    Vêde vós o que fallais.

MOÇA.

    Cego no saber andais.

PORTEIRO.

    No siso, mas não tão louco
    Como vós, mana, cuidais.
    Ora dizei, duna má:
    Que não amais, quem vos ama?

MOÇA.

    Ouvistes vós cantar ja,
    _Velho malo, em minha cama?_
    Ja m'entendereis.

PORTEIRO.

                       Ha, ha.
    Senhora, estais enganada;
    Que com huma capa e espada,
    E com este capuz fóra...

MOÇA.

    Ora bem: tirae-o ora,
    E fazei huma levada.

PORTEIRO.

    Não: se m'eu hoje alvoróço,
    Achar-me-heis d'outra feição.

_Aqui tira o capuz e diz:_

PORTEIRO.

    Tenho má disposição?
    Estas obras são de moço,
    Se as mostras de velho são.

MOÇA.

    Tendes mui gentis meneios.

PORTEIRO.

    Não, Senhora; faço extremos.

MOÇA.

    Passeae ora, veremos
    Se tendes tão bons passeios.

PORTEIRO.

    Tudo, Senhora, faremos.

MOÇA.

    Virae ora a essoutra mão.

PORTEIRO.

    Esta disposição vêde-a;
    Que tenho gentil feição.

MOÇA.

    Tendes vós mui boa redea.
    Soffreis ancas?

PORTEIRO.

                   Isso não.

MOÇA.

    Por certo que tendes graça
    Em tudo quanto fizerdes.
    Fazei mais o que souberdes.

PORTEIRO.

    Não sei cousa que não faça,
    Senhora, por me quererdes.

MOÇA.

    Tendes vós muito bom ar.

PORTEIRO.

    Mais qu'isto faz quem quer bem.

MOÇA.

    I-vos asinha, que vem
    O Principe a se deitar.

PORTEIRO.

    Nunca huma pessoa tem
    Hum'hora para fallar!

_Entra o Principe com o seu Pagem Leocadio e diz:_

PRINCIPE.

    Seja a morte apercebida,
    Porque ja o Amor ordena
    A dar a meu mal sahida;
    Porque o fim da minha vida
    O seja da minha pena.
    Não tarde, para tomar
    Vingança de meu querer,
    Pois não se póde dizer
    Que não tẽe ja que esperar,
    Nem com que satisfazer?
    Os Physicos vem e vão,
    Sem saberem minhas mágoas,
    Nem o pulso me acharão;
    E se o querem ver nas ágoas,
    As dos olhos lho dirão.
    Se com sangrias tambem
    Procurão ver-me curado;
    O temor de meu cuidado
    O mais do sangue me tem
    Nas veias todo coalhado.
    Quero-me aqui encostar,
    Que ja o esprito me cae.
    Leocadio, vae-me chamar
    Os Musicos de meu Pae;
    Folgarei de ouvir cantar.

_Aqui se deita, como que repousa e falla dizendo assi:_

PRINCIPE.

    Senhora, qual desatino
    Me trouxe a tanta tristura?
    Foi, Senhora, por ventura
    A fôrça do meu destino,
    Como vossa formosura?
    Bem conheço que não posso
    Ter tão alto pensamento;
    Mas disto só me contento,
    Que se paga com ser vosso
    O mor mal de meu tormento.

_Entrão os Musicos, e diz Alexandre da Fonseca, hum delles:_

ALEXANDRE.

    Senhor, de que se acha mal
    O Principe, ou que mal sente?

PAGEM.

    Senhor, sei que está doente;
    Mas sua doença he tal,
    Qu'entender se não consente.
    Os Physicos vem e vão,
    Huns e outros a meude,
    Sem o poderem dar são.
    Quanto mais cura lhe dão,
    Então tẽe menos saude.
    O Pae anda em sacrificios
    Aos deoses, que lhe dem
    A saude que convem;
    Dizendo que por seus vicios
    O mal a seu filho vem.
    Eu suspeito qu'isto são
    Alguns novos amorinhos,
    Que tera no coração.

ALEXANDRE.

    Amores! com quem serão,
    Que lhe não dem de focinhos?

PORTEIRO.

    Senhores, que lhe parece
    Da doença de Antiôcho?

ALEXANDRE.

    Diga-lha quem lha conhece.

PAGEM.

    Que toma morrer a trôco
    De callar o que padece.

PORTEIRO.

    Isso he estar emperrado
    Na doença; que he peor.
    Tẽe-no os Physicos curado?

ALEXANDRE.

    Oh! que de mal del amor
    No ha, Señor, sanador.

PORTEIRO.

    Fallais como exprimentado;
    Qu'eu cuido que esta fadiga,
    Que o faz com que desespere;
    Y por mas tormento quiere
    Que se sienta, y no se diga.

ALEXANDRE.

    Pois, Senhor meu, isso asselle,
    Porque a pena, que sabeis,
    Que eu cuido que está nelle,
    Dar-lhe-ha penas crueis,
    Pues no hay quien la consuele.

PORTEIRO.

    Folgo, porque m'entendeis.

PAGEM.

    Hemo-nos, Senhores, de ir,
    Porque nos está 'sperando.

PORTEIRO.

    Pois eu tambem hei de ir;
    Que não me posso espedir
    Donde vejo estar cantando.

PRINCIPE.

    Cantae, por amor de mi,
    Alguma cantiga triste;
    Que todo meu mal consiste
    Na tristeza em que me vi.

PORTEIRO.

    Mande-lhe cantar hum chiste.

ALEXANDRE.

    Chiste não, que he deshonesto,
    E não tẽe esses extremos:
    Outro canto mais modesto;
    Porém não sei que diremos.

PAGEM.

    Gaoleão o dirá presto.

PORTEIRO.

    Dá licença V. Alteza
    Que diga minha tenção?

PRINCIPE.

    Dizei: seja em canto-chão.

PORTEIRO.

    Pois crede qu'he subtileza.
    Qu'os Anjos a comerão.
    Digão esta:
    _Enforquei minha esperança,
    E o Amor foi tão madraço,
    Que lhe cortou o baraço._

ALEXANDRE.

    Não me parece essa boa.

PORTEIRO.

    Haja eu perdão,
    Porque não a entenderão.

ALEXANDRE.

    Entender!

PORTEIRO.

                   Bofé qu'he boa:
    Não lhe cahis na feição?

ALEXANDRE.

    Dizei ora outra melhor,
    Com que nos atarraqueis.

PORTEIRO.

    Ora esperae, e ouvireis:
    Se a esta não dais louvor,
    Quero que me degolleis.

Cantiga.

    Com vossos olhos Gonçalves,
    Senhora, captivo tendes
    Este meu coração Mendes.

ALEXANDRE.

    Essa parece mui taibo,
    Porque mostra bom indicio.

PORTEIRO.

    Vós cuidareis qu'eu que raivo.

ALEXANDRE.

    Todavia tẽe mao saibo.
    Ora mal lhe corre o offício.

PRINCIPE.

    Tá, não vá mais por diante
    A zombaria, que he má:
    Cantae qualquer dellas ja;
    Qu'esse Porteiro he galante,
    Ninguem o contentará.

_Aqui cántão, e em acabando, diz o_

PAGEM.

    Parece que adormeceo.

PORTEIRO.

    Pois será bom que nos vamos.

ALEXANDRE.

    Senhor, quer que nos vejamos?

PORTEIRO.

    Senhor vir-me-ha do ceo:
    Releva-me que o façamos.

_Entra a Rainha com huma sua Criada por nome Frolalta, e diz:_

RAINHA.

    Frolalta, como ficava
    Antiôcho em te tu vindo?

FROLALTA.

    Ficava-se despedindo
    Da vida qu'então levava,
    E assi seus dias cumprindo.

RAINHA.

    Oh grave caso d'amor!
    Desesperada affeição!
    Oh amor sem redempção,
    Que alli te fazes maior
    Onde tens menos razão!
    No mais alto e fundo pégo
    Alli tens maior porfia:
    Razão de ti não se fia.
    Quem a ti te chamou cego,
    Mui bem soube o que dizia.
    Por ventura hia chorando?

FROLALTA.

    Chorando hia e chamando
    Ao Amor, Amor cruel;
    E em, Senhora, se deitando
    Lhe cahio este papel.

RAINHA.

    Que papel?

FROLALTA.

             Este, Senhora.

RAINHA.

    Amostra, que quero lê-lo.
    Agora acabo de crê-lo;
    Que ao que mostra por fóra,
    Aqui lhe lançou o sello.

_Aqui lê o papel e diz:_

RAINHA.

    Oh estranha pena fera!
    Desditosa vida chara!
    Oh quem nunca cá viera,
    E com seu Pae não casára,
    Ou em casando morrêra!

FROLALTA.

    Aindaque eu pêca são,
    Senhora, tudo bem vejo.
    Attente, que na eleição
    O que lhe pede o desejo
    Não consente o coração.

RAINHA.

    Frolalta, pois qu'es discreta
    Nada te posso encobrir;
    Porque, se queres sentir,
    A huma mulher discreta
    Tudo se ha de descobrir.
    O dia qu'entrei aqui,
    Que a Seleuco recebi,
    Logo nesse mesmo dia
    No Principe filho vi
    Os olhos com que me via.
    Este principio soffri-lho,
    Para ver se se mudava;
    Antes mais se accrescentava:
    Eu amava-o como filho,
    E elle d'outr'arte me amava.
    Agora vejo-o no fim
    Por se me não declarar.
    E pois ja que a isso vim,
    A morte que o levar,
    Me leve tambem a mim.
    Porque ja que minha sorte
    Foi tão crua e desabrida,
    Que me não quer dar sahida;
    Sejamos juntos na morte,
    Pois o não somos na vida.
    Oh quem me mandou casar,
    Para ver tal crueldade!
    Ninguem venda a liberdade,
    Pois não póde resgatar
    Onde não tẽe a vontade.
    Que não ha mor desvario,
    Que o forçado casamento
    Por alcançar alto assento;
    Que, emfim, todo o senhorio
    Está no contentamento.
    Não sei se o vá ver agora,
    Se será tempo conforme,
    Ou se imos a deshora.

FROLALTA.

    Despois iremos, Senhora,
    Que agora dizem que dorme.

_Entra o Physico a tomar-lhe o pulso, e tomando-o diz:_

PHYSICO.

    Su madrasta oyó nombrar,
    Y el pulso se le alteró:
    Esto no entiendo yo,
    Porque para le alterar
    El corazon le obligó.
    Pues que el corazon se altere,
    Es porque en un momento
    Algun nuevo vencimiento
    De aficion terrible le hiere,
    Que causa tal movimiento.
    Pues que aficion cabe así
    Con madrasta? Digo yo,
    Dos razones hay aqui:
    La una dice, que sí,
    La otra dice, que no.
    Empero yo determino
    De exprimentar la verdad,
    Y hacer una habilidad,
    Que declare es agua, ó vino
    Esta su enfermedad.
    Porque toda esta mañana
    Tengo estudiado su mal,
    Sin ver causa efectual
    De su dolencia inhumana,
    Ni otra de su metal.
    Llamar quiero este asnejon;
    Mas aun debe de dormir,
    Segun que es dormilon.
    Sancho? ó Sancho?

SANCHO.

                    Ah Señor.

PHYSICO.

    Ea, aun estás dormiendo?

SANCHO.

    Estoyme, Señor, vestiendo.

PHYSICO.

    Pues vellaco y sin sabor,
    No me respondes dormiendo?
    Vestios presto, ladron.
    Oh qué mozo, y qué ventura!

SANCHO.

    (Mas qué amo y qué cabron!)
    Embíeme acá el ropon,
    Que no hallo mi vestidura.

PHYSICO.

    Que embie el ropon acá?
    Parece que os desmandais.

SANCHO.

    Que vaya, Señor? ha, ha.
    Que buenos dias hayais.

_Entra o moço embrulhado em huma manta, e diz:_

PHYSICO.

    Di como vienes así
    Con la manta, y para qué?

SANCHO.

    Yo, Señor, se lo diré:
    Por venir presto vestí
    Lo que mas presto me hallé:
    Porque viendo que él me llama,
    Dormiendo yo sin afan,
    Salté presto de la cama,
    Que parezco un gavilan,
    Hermoso como una dama.

PHYSICO.

    Mas es tu bovedad tanta,
    Que vienes desta facion?

SANCHO.

    De mi vestido se espanta?
    De noche sirve de manta,
    Y de dia de ropon.

PHYSICO.

    Embióme ElRey á llamar
    Otra vez.

SANCHO.

               Y á mí?

PHYSICO.

                           Y á ti!

SANCHO.

    Y él qué presta allá sin mí?

PHYSICO.

    Qué puedes tu aprovechar?

SANCHO.

    Yo se lo diré de aqui:
    Si por la ventura quiere
    Para que le dé consejo,
    Cuando doliente estuviere;
    Digo, coma, si pudiere,
    Y beba buen vino anejo;
    Porque este es el licor
    Que dá fuerza, y es sabroso;
    Que segun dicen, Señor,
    _Vinum lœtificat cor
    Hominis_, y le es provechoso.

PHYSICO.

    Ya sabes la medicina,
    Que Avicena nos refiere.

SANCHO.

    Pues, Señor! porque es divina.
    Pero ElRey qué le quiere,
    Qué manda, ó qué determina?

PHYSICO.

    El Principe está doliente.

SANCHO.

    Oh mesquino! Y qué mal ha?

PHYSICO.

    Y á ti, necio, que te vá?

SANCHO.

    O Señor, que es mi pariente!

PHYSICO.

    Gracioso el bovo está.
    Y pues díme por tu fé:
    Llorarás si se muriere?

SANCHO.

    No, Señor, no lloraré;
    Empero, Señor, haré
    La peor cara que pudiere.

PHYSICO.

    Ea, bovo, vé corriendo,
    Y ensilla la mula ayna.

SANCHO.

    Véngala ensillar mejor.

PHYSICO.

    Oh velhaco, y sin sabor!

SANCHO.

    Yo por cierto no lo entiendo.
    Pero una medicina
    Le he de pedir, Dios queriendo,
    (Porque ando atribulado,
    Y no sé parte de mi
    Con este nuevo cuidado)
    Para un sayo esfarrapado,
    Que me dicen hay allí.

PHYSICO.

    Ora ensilla; y nunca viva,
    Pues sufro tus desatinos.

SANCHO.

    Señor, pasion no reciva:
    _Ya cavalga Calaínos
    A la sombra de una oliva._

_Aqui sahe bolindo com a almofaça, e acorda o Principe e diz:_

PRINCIPE.

    Oh bella vista e humana,
    Por quem tanto mal sostenho!
    Oh Princeza soberana!
    Como? nos braços vos tenho,
    Ou este sonho m'engana?
    Pois como, sonho, tambem
    Me queres vir magoar?
    E para me atormentar
    Mostras-me a sombra do bem
    Para assi mais m'enganar?
    Assi que, com quanto canso,
    Ja não posso achar atalho,
    Pois que o somno quieto e manso,
    Que os outros tẽe por descanso,
    Me vem a mi por trabalho.
    Pois ha hi tantos enganos
    Que condemnão minha sorte;
    Não o tenho ja por forte,
    Se á volta de tantos danos
    Viesse tambem a morte.

_Aqui entra ElRei com o Physico, e diz:_

REI.

    Andae e vêde se achais
    O rasto deste segredo,
    Que me dizem que alcançais;
    Ainda que tenho medo
    Que lhe seja por demais.

PHYSICO.

    Plega á Dios que aqueste sea
    Para salud y remedio
    Desta dolencia tan fea.
    Yo buscaré todo el medio,
    Que presto sano se vea.

_Aqui lhe toma o Physico o pulso, e diz:_

PHYSICO.

    Aflojen, Señor, sus ais.
    Como se halla en su penar?

PRINCIPE.

    Como me acho perguntais?
    E como se póde achar
    Quem sempre se perde mais?

PHYSICO.

    (La respuesta abre el camino.)
    Imagina de contino?

PRINCIPE.

    Não tenho outro mantimento,
    Nem outro contentamento,
    Senão o em que imagino.

_Aqui entra a Rainha e diz:_

RAINHA.

    Como se sente, Senhor?
    Tẽe a febre mais pequena?

PRINCIPE.

    Responda-lhe minha pena.

PHYSICO.

    (Conocido es su dolor.
    Ora sea en hora buena,
    Tomada está la tristeza
    Á las manos.) Qué sentió?
    (Usaré de subtileza.)

_Diz contra ElRei:_

    Cúmpleme que solo yo
    Platique con Vuestra Alteza.

REI.

    Cheguemos-nos para cá.

RAINHA.

    Não deve desesperar,
    Qu'em fim, se bem attentar,
    Para tudo o tempo dá
    Tempo para se curar.

PRINCIPE.

    Que cura poderá ter
    Quem tẽe a cura, Senhora,
    No impossivel haver?

RAINHA.

    Ficae-vos, Senhor, embora,
    Que vos não sei responder.

_Vai-se a Rainha, e diz ElRei:_

REI.

    Neste mal, que não comprendo,
    Que meio dais de conselho?

PHYSICO.

    Señor, nada entiendo dello;
    Y supuesto que lo entiendo,
    Yo quisiera no entendello.

REI.

    Porque?

PHYSICO.

            Porque he entendido
    Lo mas malo de entender,
    Para lo que puede ser,
    Porque anda, Señor, perdido
    De amores por mi muger.

REI.

    Santo Deos! que! tal amor
    Lhe dá doença tão fera!
    Que remedio achais melhor?

PHYSICO.

    Forçado será que muera,
    Porque no muera mi honor.

REI.

    Pois como! a hum só herdeiro
    Deste Reino não dareis
    Vossa mulher, pois podeis;
    Que tudo faz o dinheiro?
    Pois este não o engeiteis;
    Dae-lha, porque eu espero
    De vos dar dinheiro e honra,
    Quanto eu para elle quero.

PHYSICO.

    No tira el mucho dinero
    La mancha de la deshonra.

REI.

    Ora bem pouco defeito!
    He pequice conhecida,
    Quando deixa de ser feito;
    Porque com elle dais vida
    A quem vos dara proveito.

PHYSICO.

    Cuan facilmente aporfia
    Quien en tal nunca se vió!
    Del consejo que me dió,
    Vuestra Alteza que haria
    Si agora fuese yo?

REI.

    A mulher que eu tivesse
    Dar-lha-hia. Oxalá
    Que elle a Rainha quizesse!

PHYSICO.

    Pues déla, si le parece,
    Que por ella muerto está.

REI.

    Que me dizeis?

PHYSICO.

                 La verdad.

REI.

    Sem dúvida, tal sentistes?

PHYSICO.

    Sin duda, sin falsedad.
    Pues, Señor, ahora tomad
    Los consejos que me distes.

REI.

    Certamente, qu'eu o via
    Em tudo quanto fallava.
    Como o vistes? porque via?

PHYSICO.

    Nel pulso, que se alterava
    Si la via, ó si la oia.

REI.

    Que maneira ha de haver?
    Qu'eu certo me maravilho,
    Possa mais o amor do filho,
    Do que póde o da mulher.
    Finalmente hei-lha de dar,
    Que a ambos conheço o centro.
    Quero-o ir alevantar,
    E iremos para dentro
    Neste caso praticar.

_Diz contra o Principe:_

    Levantae-vos, filho, d'hi
    O melhor que vós puderdes,
    E vindo-vos para aqui;
    Porque, emfim, o que quizerdes
    Tudo havereis de mi.

PAGEM.

    Ah Senhores, oulá, ou?

PORTEIRO.

    Viestes em conjunção
    A melhor que póde ser:
    Haveis aqui de fazer
    A tosquia a hum rifão.

PAGEM.

    Deixae-me, Senhor, dizer:
    Haveis isto de acabar,
    Coração, hi bugiar,
    No esteis preso en cadenas,
    Que pois o amor vos deo penas,
    Que vos lanceis a voar.

PORTEIRO.

    Por certo que bem comprou.

PAGEM.

    Ora sabeis o que vai?
    Antiocho que casou
    Com a mulher de seu Pai,
    E o mesmo Pae o ordenou.

PORTEIRO.

    Isso como?

PAGEM.

                   Não o sei;
    Porque dizem que a amava,
    E que só por ella andava
    Para morrer; e ElRei
    Deo-a a quem a desejava.

PORTEIRO.

    Se o casa por querer bem
    Com a moça, a quem elle ama,
    Direi eu que a mim me inflama
    O amor mais que a ninguem.

PAGEM.

    Pois pedi-lhe a nossa dama.

PORTEIRO.

    Por São Gil, que ei-los cá vem,
    Elle pela mão com ella.

_Entra ElRei, e Antiocho com a Rainha pela mão, e diz:_

REI.

    Que mais ha hi que esperar?
    Olhae qu'estranheza vai!
    O muito amor ordenar,
    Ir-se o filho namorar
    D'huma mulher de seu Pai!
    Querer bem foi sua dor,
    Negar-lha será crueldade;
    Assi que ja foi bondade
    Usar eu de tal amor,
    E de tal humanidade.
    Ella deixou de reinar
    Como fazia primeiro
    Por se com elle casar;
    E por amor verdadeiro
    Tudo se póde deixar.
    Eu que nella tinha pôsto
    Todo o bem de meu cuidado,
    Deixei mais que ella ha deixado;
    Que mais se deixa no gôsto,
    Que no poderoso estado.
    Mas ja que tudo isto vemos,
    Hajão festas de prazer,
    As que melhor possão ser;
    Porqu'em tão grandes extremos,
    Extremos se hão de fazer.
    Hajão cantos para ouvir,
    Jogos, prazeres sem fundo;
    Porque, se quereis sentir,
    Deste modo entrou o mundo,
    E assi ha de sahir.

_Aqui vem os Musicos e cántão, e depois de cantarem, sahem-se todas as
figuras, e diz_

MARTIM CHINCHORRO.

Ora, Senhor, tomemos tambem nosso pandeiro, e vamos festejar os noivos;
ou vamos consoar com as figuras, porque me parece que esta he a mor
festa que póde ser. Mas espere v. m., ouviremos cantar, e na volta das
figuras nos acolheremos. Moço, accende esse mólho de cavacos, porque faz
escuro, não vamos dar comnosco em algum atoleiro, onde nos fique o ruço
e as canastras.

ESTACIO DA FONSECA.

Não, Senhor, mas o meu Pilarte irá com elles com hum par de tições na
mão; e perdoem o mao gasalhado. Mas daqui em diante sirvão-se desta
pousada; e não tenhão isto por palavras, porque essas e plumas, o vento
as leva.

      *      *      *      *      *



OS AMPHITRIÕES,

COMEDIA.


INTERLOCUTORES.

    AMPHITRIÃO.
    ALCMENA, sua mulher.
    CALLISTO.
    FELISEO.
    SOSEA, moço de Amphitrião.
    BROMIA, sua criada.
    BELFERRÃO, Patrão.
    AURELIO, Primo de Alcmena.
    HUM MOÇO DE AURELIO.
    JUPITER.
    MERCURIO.


OS AMPHITRIÕES,

COMEDIA.



ACTO PRIMEIRO.


SCENA I.

_Entra Alcmena, saudosa do marido, que he na guerra, e Bromia._

ALCMENA.

    Ah Senhor Amphitrião,
    Onde está todo meu bem!
    Pois meus olhos vos não vem,
    Fallarei co'o coração,
    Que dentro n'alma vos tem.
    Ausentes duas vontades,
    Qual corre mores perigos,
    Qual soffre mais crueldades,
    Se vós entre os inimigos,
    Se eu entre as saudades?
    Que a ventura, que vos traz
    Tão longe de vossa terra,
    Tantos desconcertos faz,
    Que se vos levou á guerra,
    Não me quiz leixar em paz.
    Bromia, quem com vida ter,
    Da vida ja desespera,
    Que lhe poderás dizer?

BROMIA.

    Que nunca se vio prazer,
    Senão quando não se espera.
    E por tanto não devia
    De ter triste a phantasia;
    Porque Vossa Mercê creia,
    Que o prazer sempre salteia
    Quem delle mais desconfia.
    Eu tenho no coração,
    Do Senhor Amphitrião
    Venha hoje alguma nova:
    Não receba alteração,
    Que a verdadeira affeição
    Na longa ausencia se prova.

ALCMENA.

    Dizei logo a Feliseo
    Que chegue muito apressado
    Ao caes, e busque mêo
    De saber se algum recado
    Do porto Persico vêo:
    E mais lhe haveis de dizer,
    (Isto vos dou por offício)
    D'alguma nova saber,
    Em quanto eu vou fazer
    Aos Deoses o sacrificio.


SCENA II.

BROMIA.

    Saudades de minh'ama,
    Chorinhos e devoções,
    Sacrificios e orações,
    Me hão de lançar n'huma cama,
    Certamente.
    Nós mulheres de semente
    Somos sedenho mui tosco:
    Com qualquer vento que vente,
    Queremos forçadamente
    Que os Deoses vivão comnosco.
    Quero Feliseo chamar,
    E dizer-lhe aonde ha de ir.
    Mas elle como me vir,
    Logo ha de querer rinchar,
    De travesso.
    Eu que de zombar não cesso,
    Por ficar com elle em salvo,
    Lanço-lhe hum e outro remêsso;
    Aos seus furto-lhe o alvo;
    E então elle fica avesso.
    Porque o melhor destas danças,
    Com huns vindiços assi,
    He trazê-los por aqui
    Ó cheiro das esperanças,
    Por viver.
    Ha-os homem de trazer
    Nos amores assi mornos,
    Só para ter que fazer;
    E despois ao remetter
    Lançar-lhe a capa nos cornos.
    Feliseo, se estais á mão,
    Chegae cá, vem como hum gamo:
    Bem sei que não chamo em vão.


SCENA III.

_Feliseo e Bromia._

FELISEO.

    Chamais-me? tambem vos chamo;
    Porém eu ouço, e vós não:
    Senhora, que me matais,
    Se vós ja nunca me ouvis,
    Ou me ouvis, e vos callais,
    Dizei: porque me chamais
    Se me vós a mim fugis?

BROMIA.

    Eu vos fujo?

FELISEO.

                    Fugis, digo,
    De dar a meus males cabo.

BROMIA.

    Sabei que desse perigo
    Não fujo como de imigo,
    Fujo como do diabo.

FELISEO.

    Dae ao demo essa tenção,
    Usae antes de cortês,
    Cahi vós nesta razão.

BROMIA.

    Do p'rigo fogem os pés,
    Do diabo o coração.

FELISEO.

    Dizeis-me que nessa briga
    Do meu coração fugis.

BROMIA.

    Ainda qu'eu isso diga...

FELISEO.

    Ah minha doce inimiga!
    Bem sinto que me sentis.
    Mas para que me chamais?

BROMIA.

    Manda-vos minha Senhora
    Que chegueis daqui ao cais,
    E algumas novas saibais
    D' Amphitrião nesta hora.

FELISEO.

    Quem as não sabe de si,
    D'outrem como as sabera?

BROMIA.

    Não as sabeis vós de mi.

FELISEO.

    Má trama venha por ti,
    Duna feiticeira má!
    Porque não me ólhas direito,
    Cadella, que assi me cortas?

BROMIA.

    Porque vos quero dar portas;
    Que s'eu olhar d'outro geito,
    Trarei cem mil vidas mortas.

FELISEO.

    E pois para que me andais
    Enganando ha cem mil annos?

BROMIA.

    Dou-vos vida com enganos.

FELISEO.

    Nesses enganinhos tais
    Acho crueis desenganos.

BROMIA.

    Quant'esses vos quero eu dar:
    Vós cuidais que estais na sella?
    Pois podeis-vos descer della;
    Qu'eu nunca vos pude olhar.

FELISEO.

    Jogais comigo á panella?
    Tendes-me ha tanto captivo,
    E desenganais-me agora?
    Tudo isto he o que privo.
    Assi que he isso, Senhora,
    Dochelo morto, dochelo vivo?
    Se me vós desenganais
    No cabo de tantos annos,
    Direi, se licença dais,
    Dais-me vida com enganos,
    Desenganos, ja chegais.
    Mas se isso havia de ser,
    Dizei, má desconhecida,
    Destêrro de meu viver,
    Que vos custava dizer
    Amor, vae buscar tua vida?

BROMIA.

    Zombais? Fallais-me coprinhas?

FELISEO.

    Rir-vos-heis se vem á mão:
    Copras não, mas isto são
    Ansias y pasiones minhas
    Dos bofes e coração.

BROMIA.

    Is-vos fazendo d'huns sengos.....

FELISEO.

    Perdóneme Dios si peco.

BROMIA.

    Nesses dentinhos framengos
    Conheço que sois hum pêco
    De todos quatro avoengos.

FELISEO.

    Tudo vos levo em capelo,
    Ja qu'estais tanto em agraço.
    Porém, fallando singelo,
    A furto desse mao zêlo,
    Quereis-me dar hum abraço?

BROMIA.

    Ora digo que não posso
    Usar comvosco de fero:
    Tomae-o.

FELISEO.

              Ja o não quero,
    Porque esse abraço vosso,
    Sabei que he engano mero.

BROMIA.

    Oh! vós sois d'huns sensabores...
    Abraço pedis assim?
    S'eu remango d'hum chapim...

FELISEO.

    Tudo isso são favores:
    Zombae, vingae-vos de mim.

BROMIA.

    Vós de furioso touro
    As garrochas não sentis.

FELISEO.

    Vedes, com isso sé mouro:
    Quando cuido que sois ouro,
    Acho-vos toda ceitis.

BROMIA.

    Emfim, sanha de villão
    Vos fez perder hum bom dia.

FELISEO.

    Jagora o eu tomaria;
    Quereis-mo dar?

BROMIA.

                     Ora não.
    Cocei-vos eu todavia.

FELISEO.

    Pois, Senhora, a quem vos ama
    Sois tão desarrazoada,
    Quero tomar outra dama;
    Que não digão os d'Alfama
    Que não tenho namorada.

BROMIA.

    Deixae-me.

FELISEO.

                 Vós me deixais.

BROMIA.

    Deixae-me.

FELISEO.

               Zombais de mi?

BROMIA.

    Deixae-me. Pois m'engeitais,
    Eu me ausentarei daqui
    Onde me mais não vejais.

FELISEO.

    Boa está a zombaria!

BROMIA.

    Não são essas minhas manhas.

FELISEO.

    Porém is-vos todavia?

BROMIA.

    Voyme á las tierras estrañas.
    Adó ventura me guia.


SCENA IV.

_Feliseo só._

    Phantasias de donzellas,
    Não ha quem como eu as quebre;
    Porque certo cuidão ellas,
    Que com palavrinhas bellas
    Nos vendem gato por lebre.
    Esta tẽe lá para si
    Qu'eu sou por ella finado;
    E crê que zomba de mi;
    E eu digo-lhe que, si,
    Sou por ella esperdiçado.
    Preza-se d'humas seguras;
    E eu não quero mais Frandes:
    Dou-lhe trela ás travessuras,
    Porque destas coçaduras
    Se fazem as chagas grandes.
    Qu'estas, que andão sempre á vela,
    Estas vos digo eu que coço;
    Porque de firmes na sella,
    Crem que falsão a costella,
    E ficão pelo pescoço.
    Que quando estas damas tais
    Me cachão, então recacho.
    Mas disto agora nó mais.
    Quero-me ir daqui ao cais
    Ver se algumas novas acho.


SCENA V.

_Jupiter e Mercurio._

JUPITER.

    Oh grande e alto destino!
    Oh potencia tão profana!
    Que a setta d'hum menino
    Faça que meu ser divino
    Se perca por cousa humana!
    Que m'aproveitão os ceos,
    Onde minha essencia mora
    Com tanto poder, se agora
    A quem me adora por deos,
    Sirvo eu como a senhora?
    Oh quão estranha affeição!
    Quem em baixa cousa vai pôr
    A vontade e o coração,
    Sabe tão pouco d'Amor,
    Quão pouco Amor de razão.
    Mas que remedio hei de ter
    Contra mulher tão terribil,
    Que se não póde vencer?

MERCURIO.

    Alto Senhor, teu poder
    O difficil faz possibil.

JUPITER.

    Tu não vês qu'esta mulher
    Se preza de virtuosa?

MERCURIO.

    Senhor, tudo póde ser;
    Que para quem muito quer,
    Sempre a affeição he manhosa.
    Seu marido está ausente
    Na guerra, longe daqui;
    Tu, qu'es Jupiter potente,
    Tomarás sua fórma em ti;
    Que o farás mui facilmente.
    E eu me transformarei
    Na de Sósea, criado seu;
    E ao arraial me irei,
    Onde logo saberei
    Como se a batalha deu.
    E assi poderás entrar,
    Em lugar de seu marido;
    E para que sejas crido,
    Poderás tambem contar
    Quanto eu lá tiver sabido.

JUPITER.

    Quem arde em tamanho fogo
    Tira-lhe a virtude a côr
    De subtil e sabedor;
    E quem fóra está do jôgo
    Enxérga o lanço melhor.
    Mas tu, que dos sabedores
    Tanto avante sempre estás,
    Se deos es dos mercadores,
    Sê-lo-has dos amadores,
    Pois tal remedio me dás.
    Ponha-se logo em effeito;
    Que não soffre dilação
    Quem o fogo tẽe no peito;
    E tu vae logo direito
    Aonde anda Amphitrião.


SCENA VI.

_Feliseo e Callisto._

FELISEO.

    Adó bueno por aqui,
    Tão longe do acostumado?

CALLISTO.

    Mais longe vou eu de mi,
    D'ir perto de meu cuidado.

FELISEO.

    No andar vos conheci.

CALLISTO.

    E vós onde vos lançais,
    Com vossa contemplação?

FELISEO.

    Eu chego daqui ao cais
    A saber de Amphitrião:
    Não sei se vou por demais.

CALLISTO.

    Porque por demais dizeis?

FELISEO.

    Porque nada alli ha certo.

CALLISTO.

    Novas lá não as busqueis,
    Que aqui as tendes mais perto.

FELISEO.

    Pois dae-mas ja, se as sabeis.

CALLISTO.

    Hum navio he ja chegado
    Á barra, que vem de lá;
    Traz de Amphitrião recado,
    Diz que o deixa embarcado
    Para se vir para cá.
    Tẽe vencido aquelle Rei;
    E diz, segundo lhe ouvi,
    Qu'esta noite será aqui.

FELISEO.

    Essas novas levarei
    A Alcmena, que torne em si,
    Porque ella tẽe maior guerra
    Co'os temores de perdello,
    Qu'elle co'o Rei dessa terra.

CALLISTO.

    Onde amor lançar o sello,
    Nenhuma cousa o desterra.
    Porqu'inda que o pensamento
    Vos fique, Senhor, em calma,
    Por morte ou apartamento;
    Sempre vos lá ficão n'alma
    As pégadas do tormento.

FELISEO.

    Isso he hum segredo mero,
    A que o amor nos obriga:
    Por isso em caso tão fero,
    Senhor, nunca ninguem diga,
    Ja lho quiz, e não lho quero.
    Eu quiz bem a huma mulher,
    Que vós conhecestes bem,
    E, com muito lhe querer,
    Casou-se.

CALLISTO.

              Oh! e com quem?
    Que ainda o não posso crer.

FELISEO.

    Com hum Mercador, que veio
    Agora do Egypto, rico.

CALLISTO.

    Isso traz ágoa no bico.
    Esse homem he parvo, ou feio?

FELISEO.

    Pois vêdes? disso me pico.
    E em pago desta traição,
    Afóra outros mil descontos
    Que traz comsigo a affeição,
    Sempre os signaes destes pontos
    Trarei no meu coração.

CALLISTO.

    Viste-la mais?

FELISEO.

                 Senhor, vi,
    Na janellinha da grade;
    Passei, e disse-lhe assi:
    Casada sem piedade,
    Porque não a haveis de mi?

CALLISTO.

    Que vos disse?

FELISEO.

                 Lá no centro
    Lh'enxerguei pouca alegria;
    E como quem lhe dohia,
    Metendo-se para dentro
    Disse: Ja pasó folia.

CALLISTO.

    Ah má sem conhecimento!
    Quem lhe désse mil chofradas!

FELISEO.

    Senhor, como são casadas,
    Casão-se co'o esquecimento
    Das cousas que são passadas.

CALLISTO.

    Lembranças de vos deixar
    Picar-vos-hão como tojos.

FELISEO.

    Senhor, haveis d'assentar
    Que onde amor vos quer matar,
    Siempre allá miran los ojos.
    Hum motete lhe mandei
    Hum dia, estando com febre,
    Só da paixão que tomei.

CALLISTO.

    Pois vejamos quem tẽe lebre.

FELISEO.

    Senhor, eu vo-lo direi.

Mote.

    Vós por outrem, e eu por vós;
    Vós contente, e eu penado;
    Vós casada, eu cansado.
    Polos santos de minha dona!

CALLISTO.

    Senhor, vós só o fizestes?

FELISEO.

    Si, que ninguem me ajudou.

CALLISTO.

    Se vós só o compuzestes,
    Crede, que extremos dissestes.
    Nunca Orlando tal fallou.
    Senhor, fizestes-lhe pé?

FELISEO.

    Senhor, si; e todo hum anno...
    Vós zombais, se não m'engano?

CALLISTO.

    Não, mas dou-vos minha fé
    Que nunca vi tão bom panno.

FELISEO.

    Ora olhe vossa mercê.

Volta.

    Olhae em quão fundos vaos
    Por vossa causa me affógo,
    Que outro me ganha no jôgo,
    E eu triste pago os paos.
    Olhos travessos e maos,
    Inda eu veja o meu cuidado
    Por esse vosso trocado.

CALLISTO.

    Não mais, qu'isso me degola.

FELISEO.

    Senhor, eu haja perdão.

CALLISTO.

    Fizestes esse rifão
    Em algum jôgo de bola?
    E foi-lhe elle ter á mão?

FELISEO.

    Digo-vos que o vio, e lho leo
    Hum moçozinho d'escola.

CALLISTO.

    Está isso assi do ceo.
    Sabe ella jogar a bola?

FELISEO.

    Não.

CALLISTO.

         Pois não vos entendeo.
    Ora eu ja cheguei a ler
    Petrarca, e crede de mi
    Que nunca tal cousa vi.
    Onde mora o bom saber,
    Logo dá sinal de si.
    Onde _casada_ puzestes,
    Dizei, porque não dissestes
    _La que yo vi por mi mal._

FELISEO.

    Renunciava o metal;
    Qu'em rifõeszinhos como estes,
    Ha-se-de pôr tal com tal.
    Que a trova trigo-tremez
    Ha de ser toda d'hum pano;
    Que parece muito Ingrez
    N'hum pelote Portuguez
    Todo hum quarto Castelhano.
    Ouvi outra tambem minha,
    Que fiz a certa tenção,
    Clara, leve, bonitinha,
    De feição, que esta trovinha,
    He trovinha de feição.
    Como eu hum dia me visse
    Morto, e a mão na candêa,
    E ella não me acodisse;
    Fiz-lhe esta, porque sentisse
    Que dava os fios á têa.
    E o propósito he
    Andar eu hum dia só;
    E para que houvesse dó
    De mi e de minha fé,
    Lamentei-lhe como Jó.

CALLISTO.

    Andastes, Senhor, mui bem.

FELISEO.

    Ora, Senhor, attentai,
    E vêde o saibo que tem;
    Se he para a ver alguem.

CALLISTO.

    Ora dizei.

FELISEO.

              Ei-la vai.

Trova.

    Coração de carne crua,
    Vê-lo teu amor aqui,
    Que esmorecido por ti
    Jaz no meio desta rua?

CALLISTO.

    Na rua, Senhor, jazia?
    E era em tempo de lama?

FELISEO.

    Senhor, quem falla a quem ama,
    De si mesmo se não fia:
    Haveis de mentir á dama.

CALLISTO.

    Volta disso?

FELISEO.

                 Singular,
    Senão que he muito sentida;
    Far-vos-ha, Senhor, chorar.

CALLISTO.

    Oh! diga, por sua vida!

FELISEO.

    Farei o que me mandar.

Volta.

    Porque não has delle mágoa,
    Ó dura mais que ninguem,
    Que anda o triste, que não tem
    Quem lhe dê huma vez d'ágoa?
    Não lhe negues teu querer,
    Pois te não custa dinheiro;
    Que, emfim, por derradeiro
    A terra te ha de comer.

CALLISTO.

    Tal trova nunca se vio.
    Agorentaste-la ja?

FELISEO.

    Senhor, não; ainda está
    Como a sua mãe pario;
    E não está muito má.

CALLISTO.

    He trova, que tẽe por seis;
    Não a posso mais gabar.
    Mas, pois, tal cousa fazeis,
    Senhor, não m'ensinareis
    Donde vem tão bem trovar?

FELISEO.

    Não he a cousa tão pequena,
    Como, Senhor, a fizestes,
    Essa que agora dissestes.
    Mas porém vou dar a Alcmena
    Estas novas que me déstes.
    Despois, Senhor, nos veremos;
    Ficae ja roendo esse osso.

CALLISTO.

    O roer, Senhor, he vosso.

FELISEO.

    Pois eu, por mais que zombemos,
    Hei de ser vosso e revosso.

CALLISTO.

    Oh!.. Escusae-vos d'extremos,
    Qu'isso, Senhor, me atarraca.
    Mas nós nos encontraremos,
    E sôbre isso envidaremos
    Dous reales mais de saca.



ACTO SEGUNDO.


SCENA I.

_Jupiter e Mercurio transformados, Jupiter na fórma de Amphitrião,
Mercurio na de Sosea escravo._

JUPITER.

    Mercurio, pois sou mudado
    Nesta fórma natural,
    Ólha e nota com cuidado,
    Se está em mi o pintado
    Apparente co'o real.

MERCURIO.

    Quem tão proprio se transforma.
    Tenho por opinião,
    Que na tal transformação
    Lhe prestou natura a fôrma,
    Com que fez Amphitrião.

JUPITER.

    Pois tu no gesto e na côr
    Estás Sósea escravo seu.

MERCURIO.

    Muito mais faras, Senhor.

JUPITER.

    Não o faz senão o Amor,
    Que nisto póde mais qu'eu.

MERCURIO.

    Ja, Senhor, te fiz menção
    Como deo Amphitrião
    A ElRei Terela a morte;
    Que, na guerra igual, a sorte
    Póde mais que o coração.
    E despois de ser tomada
    Toda a Cidade, com gloria
    D'Amphitrião bem ganhada,
    Como em sinal de victoria,
    Esta copa lhe foi dada.
    Por ella bebia ElRei,
    Em quanto a vida queria;
    E eu, porque te cumpria,
    A seu escravo a furtei,
    Que n'huma caixa a trazia.
    Esta poderás levar
    A Alcmena, por lhe mostrar
    Verdadeiro, o que he fingido;
    E dest'arte serás crido,
    Sem mais outro ardil buscar.

JUPITER.

    Pois tudo tens ordenado
    Por tão nova e subtil arte;
    Como me vires entrado,
    Irás dar este recado
    A Phebo de minha parte:
    Que faça mais devagar
    Seu curso neste Hemispherio.
    Que o que soe acostumar;
    Qu'esta noite hei de ordenar
    Hum caso de alto mysterio.
    E á Esphera mais alta
    Mandarás que fixa esteja,
    Porque a noite maior seja:
    Porque sempre o tempo falta,
    Onde a alegria he sobeja.
    E terás tamanho tento,
    Que como isto se ordenar,
    Venhas aqui vigiar,
    Porque meu contentamento
    Ninguem mo possa estorvar.

MERCURIO.

    Seja feito sem debate
    Tudo como te convem.

JUPITER.

    Pois não parece ninguem,
    Como homem de casa bate,
    E muda a falla tambem.

MERCURIO, _batendo à porta_.

    Ó de la casa, en buena hora,
    Darmehan de cenar aqui?

BROMIA _dentro_.

    Sósea parece que ouvi:
    Alviçaras, minha Senhora,
    Que na falla o conheci.


SCENA II.

_Alcmena, Bromia, Jupiter, e Mercurio._

ALCMENA.

    Zombais, Bromia, por ventura?

BROMIA.

    Senhora, não zombo, não.

ALCMENA.

    Vejo eu Amphitrião,
    Ou a vista me afigura
    O qu'está no coração?

JUPITER.

    Olhos, diante dos quais
    Desejei mais este dia,
    Que nenhuma outra alegria,
    Senhora, nunca creais
    Que lhe minta a phantasia.

ALCMENA.

    Oh presença mais querida
    Que quantas formou Amor!
    Isto he verdade, Senhor?
    Acabe-se aqui a vida,
    Por não ver prazer maior.

JUPITER.

    Pois esta hora de vos ver
    Alcançar, Senhora, pude;
    Para mais contente ser,
    Conformem co'este prazer
    Novas de vossa saude.

ALCMENA.

    Vida foi pezada e crua
    A saude qu'eu sostinha;
    Qu'em quanto, Senhor, a tinha,
    Temer perigo na sua,
    Me fez descuidar da minha.

MERCURIO.

    Y pues, mi Señora Alcmena,
    Pese al demonio malvado,
    No dirá á un su criado,
    Vengais Sósea norabuena?

ALCMENA.

    Sejais, Sósea, bem chegado.

BROMIA.

    Bem mal cri eu, que pudesse
    Ver-te, Sósea, hoje aqui.

MERCURIO.

    Pues tambien yo no creí
    Que en mi vida te viese,
    Segun las muertes que vi.

ALCMENA.

    Muito, Senhor, folgarei
    Com novas do vencimento.

JUPITER.

    De tudo quanto passei,
    Por vos dar contentamento,
    Em summa vos contarei.
    Trago, Senhora, a victoria
    Daquelle Rei tão temido,
    Com fama clara e notoria.
    Porém maior foi a gloria
    De me ver de vós vencido.
    Sem me terem resistencia,
    Os Grandes me obedêcerão,
    Como ElRei morto tiverão:
    Em sinal de obediencia
    Esta copa me trouxerão.
    ElRei por ella bebia:
    (Ella, e tudo o mais he nosso)
    Por onde claro se via,
    Que tudo me obedecia,
    Pois tinha nome de vosso.

MERCURIO.

    Si, mas luego de rondon
    La fortuna dió la vuelta.

ALCMENA.

    Como?

MERCURIO.

            Fué gran perdicion,
    Porque en aquella revuelta,
    Me hurtaron mi jubon.
    Pero bien me lo pagaron,
    Cuando comigo riñeron;
    Que aunque me despojaron
    Si uno de seda llevaron,
    Otro de azotes me dieron.

ALCMENA.

    Senhor, não posso gostar
    De gôsto, que he tão immenso,
    Senão muito devagar:
    Faça-me mercê d'entrar,
    E contar-mo-ha por extenso.


SCENA III.

_Mercurio e Bromia._

MERCURIO.

    Yo tambien te contaria,
    Bromia, si quedas atrás,
    Que una noche... enojartehas?

BROMIA.

    Que?

MERCURIO.

          Soñaba, que te tenia...
    No me atrevo á decir mas.

BROMIA.

    Dize.

MERCURIO.

          Pardies, no diré.
    Soñaba...

BROMIA.

            Bem: que sonhavas?

MERCURIO.

    Que cuando en la cama estavas
    Que yo... enfin recordé.

BROMIA.

    Pois tudo isso receavas?

MERCURIO.

    Sabe Dios qué yo acá siento:
    Sola una alma vive en dos,
    La cual anda dentro en vos.

BROMIA.

    E que quer ella cá dentro?

MERCURIO.

    Tambien eso sabe Dios.


SCENA IV.

MERCURIO.

    Bem se poderá enganar
    Bromia, segundo ora estou,
    Como Alcinena s'enganou;
    Mas cumpre-me ir ordenar
    O que meu Pae me mandou.
    E porque seja guardada
    Esta porta e vigiada
    De toda a gente nascida,
    Me será cousa forçada,
    Ser tão depressa a tornada,
    Quão prestes faço a partida.


SCENA V.

SOSEA, _cantando_.

     Amphitrion esforzado
    Bravo vá por la batalla,
    Siete cabezas llevaba,
    De las mejores que ha hallado.

_Falla._

    Quien viene de tierra agena,
    Y de la muerte escapó,
    La razon le permitió
    Que cante como sirena,
    Como agora hago yo.
    Y pues canto tan gentil,
    Fuera llanto si muriera.
    Quiero cantar como quiera,
    Una y otra, y mas de mil,
    Que digan desta manera:

_Canta._

    Dongolondron, con dongolondrera,
    Por el camino de Otera,
    Rosas coge en la rosera,
    Dongolondron, con dongolondrera.

_Falla._

    Cuando yo vengo á pensar
    Que uno matarme quisiera,
    No hago sino temblar,
    Porque creo si muriera,
    No pudiera mas cantar.
    Porque estando á un rincon
    De la casa adó quedé,
    Senti muy grande ronron,
    Y mirando, que miré?
    Vi que era un gran raton.
    Empero yo nunca sigo,
    Sino consejos muy sanos;
    Que en estes casos levianos,
    Quien desprecia el enemigo,
    Mil veces muere á sus manos.
    Pero mi Señor alli
    Mató al Rey de los Glipazos:
    Yo como muerto le vi,
    Juro á mi fé, que le dí
    Mas de dos mil cuchillazos.
    Y por me librar de afan,
    Me voy siempre á cosa hecha
    Probar mi mano derecha;
    Que aquel es buen capitan,
    Que del tiempo se aprovecha.
    Que quien ha de pelear,
    Ha de buscar tiempo y hora.
    Pero quiero caminar,
    Que me muero por contar
    Todo aquesto á mi Señora.


SCENA VI.

_Mercurio e Sósea._

MERCURIO.

    Mil vezes comigo vejo,
    Para que meu Pae se affoute;
    Pois em tão pequeno ensejo
    Lhe mandei talhar a noute
    Á medida do desejo.
    E pois que como possante,
    A mi tudo se reporta,
    Chego agora neste instante
    A estorvar qu'este bargante
    Me não chegue a esta porta.

SOSEA.

    No sé que miedo, ó locura,
    Neste pecho se me cria:
    Por Dios que se me afigura,
    Que ha mucho que es noche escura,
    Sin que venga el claro dia.
    Mas sabed, que pienso yo
    Que el sol que no se acordó
    De con el dia venir,
    Que á noche cuando cenó
    Algun buen vino bebió,
    Que le hace tanto dormir.

MERCURIO.

    Ja sentes comprida a noute,
    Qu'eu assi mandei fazer?
    Pois mais te quero dizer,
    Que sentirás muito açoute,
    Se cá quizeres vir ter.
    Porém, pois este bargante
    Tẽe medroso coração,
    Quero-me fingir ladrão,
    Ou phantasma, e por diante
    Não irá, se vem á mão.
    E com tudo se passar,
    A falla quero mudar
    Na sua de tal feição,
    Que couces, e porfiar,
    Lhe fação hoje assentar
    Que sou Sósea, e elle não.

_Falla Castelhano._

    No veo pasar ninguno,
    En quien yo me pueda hartar.

SOSEA.

    Á quien oigo aqui hablar?
    Mande Dios no sea alguno
    Que me quiera aporrear.

MERCURIO.

    La carne de algun humano
    Me seria muy sabrosa.

SOSEA.

    Oh quê voz tan temerosa!
    Hombres comes, ó mi hermano?
    No es mejor otra cosa?
    Carne humana es muy mezquina.
    Oh no comas deso, no!
    Antes carne de gallina.
    Pero se mas se avecina,
    Qué mas gallina, que yo?

MERCURIO.

    Una voz de hombre ahora
    Á la oreja me voló.

SOSEA.

    Pésete quien me parió:
    La voz traigo boladora?
    Ella quisiera ser yo.
    Pues mi voz pudo volar
    Do la pudieses oir;
    Por contigo no reñir,
    Me debiera de prestar
    Las alas para huir.

MERCURIO.

    Qué buscas cabe esa puerta,
    Hombre? Sé que eres ladron.

SOSEA.

    Ay que el alma tengo muerta!
    Oh Júpiter me convierta
    Las tripas en corazon!

MERCURIO.

    Quien eres? quieres hablar?

SOSEA.

    Soy quien mi voluntad quiere.

MERCURIO.

    Piensas que puedas burlar?

SOSEA.

    Y tú puédesme quitar
    Que yo sea quien quisiere?

MERCURIO.

    Osas hablar tan osado,
    Don vellaco bovarron?
    Dí, quien eres?

SOSEA.

                     Un criado
    Del Señor Amphitrion,
    Por nombre Sósea llamado.

MERCURIO.

    Pienso que el seso perdiste.
    Como te llamas, mal hombre?

SOSEA.

    Sósea soy, si no me oiste.

MERCURIO.

    Como? en persona tan triste
    Osas d'ensuciar mi nombre?
    Estos puños llevarás,
    Pues tener mi nombre quieres.
    Quiéresme dicir quien eres?

SOSEA.

    O Señor, no me dés mas,
    Que yo seré quien tú quisieres.

MERCURIO.

    Con tan nueva falsedad
    Andais por esta Ciudad,
    Delante de quien os mira?
    Pues si sois Sosea, tomad.

SOSEA.

    Si me dás por la verdad,
    Que me harás por la mentira?

MERCURIO.

    Y qué verdad es la tuya?
    Que te quiero dar castigo.

SOSEA.

    Si no soy Sósea que digo,
    Que Júpiter me destruya.

MERCURIO.

    Mirad el falso enemigo:
    Tomad este bofeton,
    Que yo soy Sósea, y no vos.

SOSEA.

    Tu Sósea?

MERCURIO.

             Sósea por Dios,
    Escravo de Amphitrion.

SOSEA.

    De modo que tiene dos?

MERCURIO.

    No tendrá, aunque tú quieres;
    Que á mi solo conoció.

SOSEA.

    Pues luego de quien soy yo?

MERCURIO.

    Si tú no sabes quien eres,
    Quieres que yo lo sepa? No.

SOSEA.

    Enfin, has me de hacer crer
    Que yo no soy quien ser solia?

MERCURIO.

    Quien solias tú de ser?

SOSEA.

    Tregoas me has de prometer,
    Dirtelohé sin profia.

MERCURIO.

    Prometo.

SOSEA.

              No me darás?

MERCURIO.

    No, si no fuere razon.

SOSEA.

    Pues, hermano, tú sabrás
    Que mi amo Amphitrion...

MERCURIO.

    Tu amo? Pues llevarás.
    Mi amo es, que tuyo no.

SOSEA.

    Ay que un brazo me quebró!

MERCURIO.

    Mas que luego te matase.

SOSEA.

    Ojalá Dios ordenase
    Que tú ahora fueses yo,
    Y yo que te desmembrase!

MERCURIO.

    Esa tu tema tan loca,
    Puños te la han de quitar.
    Dime, di, vergũenza poca,
    Qué hablas?

SOSEA.

                    Qué puedo hablar,
    Si me has quebrado la boca?

MERCURIO.

    Di quien eres, sin fatiga.

SOSEA.

    Soy un hombre, en quien tú dás.

MERCURIO.

    Díme pues, qué nombre has.

SOSEA.

    Como quieres tú que diga,
    Para que no me dés más?

MERCURIO.

    No me has de hablar contrahecho.

SOSEA.

    Toda mi vida pasada
    Sósea fuy, y con despecho
    Ahora soy... qué? No nada;
    Que tus manos me han deshecho.

MERCURIO.

    Cuyo eres, pues las sientes,
    Dejando consejos vanos?
    La verdad; que si me mientes,
    Dás con la lengua en los dientes,
    Y yo dóyte con las manos.

SOSEA.

    No conoces Amphitrion?

MERCURIO.

    Hombre sin seso te llamo.
    Tan fuera estás de razon!
    Piensas de mí, bovarron,
    Que no conozco á mi amo?

SOSEA.

    En su casa conociste
    Uno, que es Sósea llamado,
    Hombre despreciado y triste?

MERCURIO.

    Desa suerte lo dijiste?
    Yo soy triste y despreciado?
    Pues sabe que te llegó
    Á la muerte tu fortuna.

SOSEA.

    Pues logo si yo no soy yo,
    Aunque nadie me mató;
    Soy luego cosa ninguna.
    Oh dioses, que desconcierto!
    Yo por ventura soy muerto,
    Ó murióme la razon?
    Yo no soy de Amphitrion?
    Él no me mandou del puerto?
    Yo sé que no estoy loco.
    De mi madre no naci?
    No ando? No hablo aqui?

MERCURIO.

    Pues sosiega ahora un poco,
    Que yo tambien diré de mí.
    Yo no sé que yo soy yo?
    Yo no te dí con mis manos?
    Mi Señor no me llevó
    Á la guerra, adó mató
    Aquel Rey de los Thebanos?

SOSEA.

    Yo eso muy bien lo sé.
    Empero tú qué hacias
    Cuando la batalla vias?

MERCURIO.

    Escucha: yo lo diré,
    Y cesaran tus porfías.
    Cuando mi Señor andaba
    Peleando, y derramaba
    La sangre de algun mezquino;
    Con una bota de vino
    Yo la mia acrescentaba.

SOSEA.

    (Dice lo que yo hacia)
    Con todo, saber queria
    Sola una cosa, si puedo:
    Tu pecho entonces sentia?

MERCURIO.

    Del beber grande alegria,
    Y del pelear gran miedo.

SOSEA.

    Y despues?

MERCURIO.

                 Muy reposado
    Á dormir me eché de grado,
    Desde el sol hasta la luna.

SOSEA.

    (Todo lo tiene contado.
    Enfin, tengo averiguado
    Que yo no soy cosa ninguna)
    Pues de todo en un instante
    Me has echado de mí fuera,
    Aconséjame si quiera,
    Quien seré daqui adelante,
    Pues no soy quien de antes era.

MERCURIO.

    Cuando yo no ser quisiere
    Ese, que tú ser deseas,
    Despues que ya Sósea no fuere,
    Dartehé, si te pluguiere,
    Licencia que todo seas.
    Y acógete luego, amigo,
    Á buscar tu nombre, digo,
    Pues Dios vida te dejó;
    Que el Sósea queda comigo.

SOSEA.

    Pues contigo quedo yo,
    Dios quede, hermano, contigo.
    Ahora quiero ir allá
    Adó mi Señora está,
    Contarle como es venido
    Mi Señor. Mas, oh perdido!
    Si un otro yo tiene allá,
    Todo lo terná sabido.

MERCURIO.

    Ah hombre.....

SOSEA.

                   Mi voz sonó.

MERCURIO.

    Aonde vuelves ahora?

SOSEA.

    Por Dios no sé onde vó,
    Porque si yo no soy yo,
    Ni Alcmena es mi Señora.

MERCURIO.

    Adonde vas?

SOSEA.

                 Con mensaje
    Del Señor Amphitrion
    Para Alcmena.

MERCURIO.

                    Adó, salvaje?
    Pues quebraste la omenaje,
    Ahí verás tu perdicion.
    Yo doyte consejos sanos,
    Y porfias otra vez?

SOSEA.

    Altos dioses soberanos!
    Pues me no valen las manos,
    Aqui me valgan los pies.            _Foge._

MERCURIO.

    Desta arte enseñan aqui
    Á hurtar el nombre ageno?


SCENA VII.

SOSEA.

    Ay Dios, como me acogí!
    Ó Júpiter alto y bueno,
    Cuan cerca la muerte vi!
    Quiérome ir á mi Señor
    Contarle cuanto hé pasado;
    Y él me dirá de grado,
    Si yo soy su servidor,
    En que cosa me hé tornado.



ACTO TERCEIRO.


SCENA I.

_Jupiter e Alcmena._

JUPITER.

    Toda a pessoa discreta
    Terá, Senhora, assentado,
    Que hum bem muito desejado
    Se ha de alcançar por dieta,
    Para ser sempre estimado.
    E quem alcançado tem
    Tamanho contentamento;
    Por conservá-lo convem
    Que tome por mantimento
    A fome de tanto bem.
    E por isso hei de tomar
    Este tempo tão ditoso
    Para a frota visitar;
    E despois quando tornar,
    Tornarei mais desejoso.
    Que pois tão bom captiveiro
    Me tẽe presa a liberdade,
    Eu lhe prometto em verdade
    Que torne ainda primeiro,
    Que mo peça a saudade.

ALCMENA.

    Aindaque se possa ir
    Mais asinha do que creio,
    Como hei d'eu consentir
    Que se haja de partir
    Na mesma noite que veio?

JUPITER.

    Forçada he minha tornada,
    Mas muito cedo virei;
    Porque desque foi chegada
    A este porto a Armada,
    Ainda a não visitei.

ALCMENA.

    Pois, Senhor, tão pouco estais
    Com quem vistes inda agora?
    Faça-se como mandais.

JUPITER.

    Vós me vereis cá, Senhora,
    Primeiro do que cuidais.


SCENA II.

_Amphitrião e Sosea._

AMPHITRIÃO.

    Emfim tu, que estás aqui,
    Estavas ja lá primeiro?

SOSEA.

    Señor, crea que es ansí.

AMPHITRIÃO.

    Eu nunca entendi de ti,
    Qu'eras tambem chocarreiro.

SOSEA.

    Señor, yo que estoy presente,
    No soy Sósea su criado?

AMPHITRIÃO.

    Creio que não certamente,
    Porque Sósea era avisado,
    E tu es mui differente.

SOSEA.

    Pues, Señor, si en mí se vé
    Que no soy quien de antes era,
    Vuélvome.

AMPHITRIÃO.

                E para que?

SOSEA.

    Ver se á dicha me quedé
    Durmiendo por la galera.

AMPHITRIÃO.

    Pois me queres fazer crer
    Huma doudice tão rasa,
    Mais quero de ti saber:
    Como não entraste em casa
    D'Alcmena minha mulher?

SOSEA.

    Aunque Sósea quisiese,
    La verdad no negará:
    Aquel yo que allá está,
    No quiso que á casa fuese
    Estotro yo, que iba allá.
    Y con furia tan crecida
    Á mí se vino aquel hombre,
    Que yo me puse en huida,
    Y ansí le dejé mi nombre,
    Por me dejar él la vida.

AMPHITRIÃO.

    Quem seria tão ousado,
    Que tanto mal te fizesse?

SOSEA.

    Yo mismo Sósea llamado,
    Que á casa era ya llegado,
    Antes que de acá partise.

AMPHITRIÃO.

    Tu chegaste antes de ti?
    Este he gentil disparate.

SOSEA.

    Pues mas le digo daqui,
    Que vengo huyendo de mí,
    Porque yo mismo no me mate.

AMPHITRIÃO.

    Erão dous, ou era hum só,
    Quem te fez assi fugir?

SOSEA.

    Pésete quien me parió:
    Digo, que era un solo yo:
    Mil veces lo hé de decir?
    Puede ser que naceria
    De aquel hombre otro alguno,
    Como aquel de mí nacia;
    Porque aunque fuese él uno,
    Por mas de cuatro tenia.
    Él tenia mi aparencia,
    Empero yo nunca vi
    Tal fuerza, ni tal potencia:
    Esta sola diferencia
    Le tengo hallado de mí.

AMPHITRIÃO.

    Pudeste delle saber
    Cujo era?

SOSEA.

                Quien? aquel yo?
    Tuyo, Señor, dijo ser.

AMPHITRIÃO.

    Nunca eu tive mais que hum só,
    E esse não quizera ter.

SOSEA.

    Pues, Señor, si el bien doblado
    Te le muestra agora Dios,
    Debe ser de ti alabado;
    Pues de uno solo criado
    Te ha hecho agora dos.

AMPHITRIÃO.

    Antes para que conheças,
    Que cousa he mao servidor,
    Me pezará se assi for;
    Que de tão ruins cabeças,
    Quantas mais, tanto peor.
    E ja que são tão incertos
    Teus ditos para se crer;
    Muito melhor deve ser
    Que deixe teus desconcertos,
    E va ver minha mulher.


SCENA III.

ALCMENA.

    Que fado, que nascimento
    De gente humana nascida,
    Que d'escasso e avarento,
    Nunca consentio na vida
    Perfeito contentamento!
    Amphitrião, que mostrou
    Hum prazer tão desejado
    A quem tanto o desejou;
    Na noite, que foi chegado,
    Nessa mesma se tornou!
    De se tornar tão asinha
    Sinto tanto entristecer
    O sentido e alma minha,
    Que certo que me adivinha
    Algum novo desprazer.
    Mas parece este que vem,
    Se não estou enganada:
    Se elle he, venha com bem,
    Pois que com sua tornada
    Tão transtornada me tem.


SCENA IV.

_Amphitrião, Alcmena e Sosea._

AMPHITRIÃO.

    Com que palavras, Senhora,
    Poderei engrandecer
    Tão sublimado prazer,
    Como he ver chegada a hora,
    Em que vos pudesse ver?
    Certo grão contentamento
    Tive de meu vencimento;
    Mas maior o hei de mim,
    De me ver pôsto no fim
    De tão longo apartamento.

ALCMENA.

    Ja eu disse o que sentia
    De vinda tão desejada.
    Mas diga-me todavia:
    Como não foi ver a Armada,
    Que me disse hoje este dia?

AMPHITRIÃO.

    Della venho eu inda agora
    Desejoso de vos ver,
    Muito mais que de vencer.
    Mas que me dizeis, Senhora,
    Que hoje me ouvistes dizer?

ALCMENA.

    Se não estava remota,
    Certamente que lhe ouvi,
    Quando hoje partio daqui,
    Que tornava a ver a frota.
    Porque era forçado assi.

AMPHITRIÃO.

    Sósea.

SOSEA.

           Señor, aqui estoy yo.

AMPHITRIÃO.

    Tu ouves tal desconcêrto?

SOSEA.

    Grandes orejas ganó,
    Pues estando en casa oyó
    Quien estava allá nel puerto!

AMPHITRIÃO.

    Quando dizeis, que m'ouvistes?

ALCMENA.

    Hoje, quando vos partistes.

AMPHITRIÃO.

    Donde?

ALCMENA.

             Daqui, de me ver.

AMPHITRIÃO.

    Nunca vi grande prazer,
    Que não tenha os cabos tristes.
    Quantos males d'improviso
    Que causão grandes mudanças!
    Que mulher de tanto aviso,
    Agora minhas lembranças
    A tẽe fóra de juizo!

ALCMENA.

    Quereis-me fazer cuidar
    Que poderia sonhar
    O que pelos olhos vi?
    Nunca vos eu mereci
    Quererdes-me exprimentar.

AMPHITRIÃO.

    Postoque he para pasmar
    Ver hum caso tão estranho,
    Todavia hei de attentar,
    Se poderei concertar
    Hum desconcêrto tamanho.
    Quando dizeis que vim cá?

ALCMENA.

    Esta noite que passou.

AMPHITRIÃO.

    Dae-me alguem que aqui se achou,
    Que me visse.

ALCMENA.

                   Esse que hi está,
    Sósea que comvosco andou.

AMPHITRIÃO.

    Sósea, podes-te lembrar,
    Que hontem me vistes aqui?

SOSEA.

    Nunca yo supe de mí
    Que me pudiese acordar
    De aquello que nunca vi.

ALCMENA.

    Ora eu creo, e he assi,
    Que ambos vindes conjurados,
    Para zombardes de mi;
    Mas eu darei hoje aqui
    Sinaes que sejão provados.

AMPHITRIÃO.

    Que sinaes póde ahi haver
    De mentira tão notoria,
    Que nem foi, nem póde ser?

ALCMENA.

    Donde vim eu a saber
    Novas de vossa victoria?

AMPHITRIÃO.

    Que novas?

ALCMENA.

                   Dir-vo-las-hei,
    Assi como mas contastes:
    Que na batalha matastes
    Aquelle soberbo Rei,
    E tudo desbaratastes:
    Não fazendo resistencia
    N'huma batalha tão crua,
    Dando-vos obediencia,
    Vos derão huma copa sua,
    Lavrada por excellencia.

AMPHITRIÃO.

    Sósea he culpado só
    Nestes acontecimentos.

SOSEA.

    Señor, son encantamientos,
    Porque aquel hombre, que es yo,
    Le contaria estos cuentos.

AMPHITRIÃO.

    Quem he esse, que vos deu
    Taes novas, saber queria?

ALCMENA.

    Quem mo pergunta.

AMPHITRIÃO.

                          Quem? Eu!
    Quereis-me fazer sandeu?

ALCMENA.

    Mas vós me fazeis sandia.

AMPHITRIÃO.

    Ora quero perguntar:
    Que fiz sendo aqui chegado?

ALCMENA.

    Puzemos-nos a cear.

AMPHITRIÃO.

    E despois de ter ceado?

ALCMENA.

    Fomos-nos ambos deitar.

AMPHITRIÃO.

    Nunca queira Deos que possa
    Achar-se na minha honra
    Nenhuma falta nem mossa:
    Seja isto doudice vossa,
    Antes que minha deshonra.

SOSEA.

    Bien lo supe yo entender,
    Que era esto encantaciones;
    Y ahora me habrá de crer
    Que dos Sóseas puede haber,
    Pues hay dos Amphitriones.

ALCMENA.

    Com me quererdes tentar
    Tão torvada me fizestes,
    Que me não pôde lembrar
    Que vos mandasse mostrar
    A copa que me hontem déstes.

AMPHITRIÃO.

    Eu? copa? Se isso ahi ha,
    Que estou doudo cuidarei.

SOSEA.

    Señor, bien guardada está.

ALCMENA.

    Bromia?

BROMIA, _de dentro_.

             Senhora.

ALCMENA.

                         Dae cá
    A copa que hontem vos dei.

SOSEA.

    Pues yo parí otro yo,
    Y vós otro Amphitrion,
    No es mucha admiracion,
    Si la copa otra parió,
    Ni aun fuera de razon.


SCENA V.

_Amphitrião, Alcmena, Sosea e Bromia._

BROMIA.

    Eis-aqui a copa vem,
    Testimunho da verdade.

AMPHITRIÃO.

    Oh estranha novidade!

ALCMENA.

    Poder-me-ha dizer alguem
    Que o que digo he falsidade?

AMPHITRIÃO.

    Sósea, quando hontem cá vinhas,
    Poder-me-has negar, ladrão,
    Que lhe déste as novas minhas,
    E mais a copa que tinhas
    Guardada na tua mão?

SOSEA.

    Señor, que no pude, no,
    Ver á mi Señora Alcmena:
    Si aquel eso acá ordenó,
    No lleve este yo la pena
    Del mal que hizo el otro yo.

AMPHITRIÃO.

    Ora eu não sei entender
    Tal caso, nem lhe acho fundo:
    Com tudo venho a dizer,
    Que ha tantos males no mundo,
    Que tudo se póde crer.
    Se vos trouxer quem vos diga
    Como esta noite dormi
    Na nao, crereis que he assi?

ALCMENA.

    Nenhuma cousa me obriga
    A que não creia o que vi.

AMPHITRIÃO.

    Se o Patrão aqui vier,
    Que he homem d'autoridade,
    Crereis o que vos disser?

ALCMENA.

    Sim, que ninguem póde haver
    Que me negue esta verdade.

AMPHITRIÃO.

    Eu estou em concrusão
    D'hoje desembaraçar
    Tão enleada questão:
    Á nao me quero tornar
    A trazer cá Belferrão.
    Sósea, até minha tornada
    Fica nesta casa em vela;
    Qu'eu armarei tal cilada
    A quem ma a mim tẽe armada,
    Que venha hoje a cahir nella.


SCENA VI.

_Alcmena e Bromia._

ALCMENA.

    Oh mulher triste e suspensa
    Da mais alta confusão
    Que nunca vio coração!
    Em que mereces a offensa,
    Que te faz Amphitrião?
    Sempre de mi foi amado,
    Tanto quanto em mi se sente,
    Co'o coração tão liado,
    Que se de mi era ausente,
    Nelle o via figurado.
    E pois mulher, que cumprisse
    Melhor qu'eu fidelidade,
    Não a vi, nem quem me visse
    Que dos limites sahisse
    Hum pouco da honestidade.
    Pois porque he tão maltratada
    Innocencia tão singella?
    Que a pena mais apertada,
    He a culpa levantada
    Ao coração livre della.
    Mas ja que minh'alma está
    Sem culpa do que padeço,
    Seja o que for; qu'eu conheço
    Que a verdade me porá
    No qu'eu pola ter mereço.
    Bromia?

BROMIA.

           Senhora.

ALCMENA.

                         Hi mandar
    A Feliseo, que vá
    Meu primo Aurelio chamar;
    Que lhe quero perguntar
    Que conselho me dará.
    E pois que Amphitrião
    Vai buscar somente quem
    Lhe ajude a sua tenção,
    Quero eu ter aqui tambem
    Quem me defenda a razão.



ACTO QUARTO.


SCENA I.

_Jupiter, Alcmena e Sosea._

JUPITER.

    Grão desconcêrto tẽe feito
    Amphitrião com Alcmena!
    Qualquer delles tẽe direito:
    Eu sou o que venço o preito,
    E ambos págão a pena.
    Quero-me ir lá desfazer
    Tão trabalhosa demanda,
    Por nos tornarmos a ver;
    Porque, emfim, quem muito quer
    Com qualquer desculpa abranda.
    E pois ja que a affeição
    Ha de mudar tão asinha,
    Quero ir alcançar perdão
    Da culpa, que sendo minha,
    Parece d'Amphitrião.

ALCMENA.

    Parece que torna cá
    Amphitrião, que ja se hia:
    Não sei a que tornará.
    Senão se lhe peza ja
    Dos enganos que tecia.

JUPITER.

    Senhora, não haja error
    Que tantos males me faça,
    Porque se o contrário for,
    Pequeno será o amor,
    Que manencória desfaça.
    E pois com tanta alegria
    De tantos perigos vim,
    Pezar-me-ha se achar no fim,
    Que huma leve zombaria
    Vos possa aggravar de mim.

ALCMENA.

    Com palavras de deshonra
    Não se ha de tratar quem ama;
    Nem zombaria se chama,
    Por exprimentar a honra,
    Pôr em tal perigo a fama.
    Bem tive eu para mim,
    Que era aquillo experiencia.

JUPITER.

    Errei no que commetti:
    Bem me basta a penitencia
    De quanto me arrependi.
    E se fiz algum error,
    Com que vosso amor se mude
    De quem vo-lo tẽe maior;
    Não exprimentei virtude,
    Mas exprimentei amor.
    Que se com caso tão vário
    Folguei de vos agastar,
    Foi amor accrescentar;
    Porque ás vezes hum contrário
    Faz seu contrário avisar.
    Daqui vem, que a leve mágoa
    Firmeza e affeições augmenta,
    Como bem se vê na frágoa,
    Onde o fogo se accrescenta,
    Borrifando-o com pouca ágoa.
    Se hum mal grande se alevanta
    N'hum coração que maltrata,
    A affeição se desbarata;
    Porque onde a ágoa he tanta
    O fogo d'amor se mata.
    E pois tive tal tenção,
    Perdoae, Senhora, a culpa
    Deste vosso coração.

ALCMENA.

    Não se alcança assi perdão
    D'erro que não tẽe desculpa.

JUPITER.

    Ora pois assi tratais
    Quem em tanto risco pôs
    O amor que vós negais,
    Eu m'ausentarei de vós
    Onde mais me não vejais.
    Que, pois desculpa não tem
    Coração que tanto quer,
    Vou-me; que não será bem
    Que quem vós não podeis ver,
    Que possa mais ver ninguem.
    Se algum'hora meu cuidado
    Vos der dor, em que pequena;
    Peço-vos, pois fui culpado,
    Que vos não peze da pena
    De quem vos foi tão pezado.
    E despois que a desventura
    Puzer este coração
    Debaixo da sepultura,
    As letras na pedra dura
    Vossa dureza dirão.
    Isto vos hei de dizer,
    Que m'ensinou minha dor:
    Se quizerdes leda ser,
    Nunca exprimenteis amor
    Em quem vo-lo não tiver.
    Deixae-me ir; não me tenhais.

ALCMENA.

    Amphitrião, não choreis!
    Amphitrião!

JUPITER.

                   Que quereis,
    Ou para que nomeais
    Homem, que ver não podeis?

ALCMENA.

    Amphitrião, s'eu causei
    Com manencória pequena
    Cousa, com que o magoei;
    Eu quero cahir na pena
    Dessa culpa que lhe dei.

JUPITER.

    Sempre serei magoado
    Se vossa má condição
    Me não perdôa o passado.

ALCMENA.

    Perdôo, e peço perdão
    De lhe não ter perdoado.

SOSEA.

    No le perdone, Señora,
    Hasta que con devocion
    Tambien me pida perdon;
    Que bien se me acuerda ahora
    Que me ha llamado ladron.

JUPITER.

    Sósea?

SOSEA.

           Señor.

JUPITER.

                      Vae buscar
    O Piloto Belferrão;
    Dir-lhe-has, se desembarcar,
    Que me parece razão
    Que venha hoje cá cear.

SOSEA.

    Si, Señor, voy á la hora.

JUPITER.

    De nenhuma qualidade
    Cure de fazer demora.
    E nós vamos-nos, Senhora,
    Confirmar nossa amizade.


SCENA II.

MERCURIO.

    Grandes revoltas vão lá.
    Grandes acontecimentos!
    Cumpre-me que esteja cá,
    Em quanto meu pae está
    Em seus desenfadamentos.
    Porque vi Amphitrião
    Vir da nao mui apressado;
    E tendo corrido e andado,
    Não pôde achar Belferrão,
    Que lhe era bem escusado.
    Parece-me que virá
    Ver se lhe abre aqui alguem;
    Mas, porém, se chega cá,
    Ja póde ser que se vá
    Mais confuso do que vem.


SCENA III.

_Mercurio e Amphitrião._

AMPHITRIÃO.

    Quiz-nos nossa natureza
    Com tal condição fazer,
    Que ja temos por certeza
    Não haver grande prazer,
    Sem mistura de tristeza.
    Este decreto espantoso,
    Que instituio nossa sorte,
    He tal e tão rigoroso,
    Que ninguem antes da morte
    Se póde chamar ditoso.
    Com esta justa balança
    O Fado grande e profundo
    Nos refreia a esperança,
    Porque ninguem neste mundo
    Busque bem-aventurança.
    Eu, que cuidei de viver
    Sempre contente de mi
    Com tamanho Rei vencer,
    Venho achar minha mulher
    De todo fóra de si.
    Mas d'outra parte, que digo?
    Que s'he verdade o que vi,
    E o que ella diz he assi;
    Virei a cuidar comigo
    Qu'eu sou o fóra de mi.
    Quero ver se a acho ja
    Fóra de tão seccos nós.
    Ó de casa?

MERCURIO.

                    O de allá?
    Quien sois?

AMPHITRIÃO.

                  Abre.

MERCURIO.

                           Santo Dios!
    Pues no os conocen acá.

AMPHITRIÃO.

    Oh que gentil desvario!
    Abri-me ora se quizerdes.

MERCURIO.

    No haré, que en mí confio
    Que de fuera dormiredes,
    Que no comigo, amor mio.
    (Que cancion para oir!)

AMPHITRIÃO.

    Ah Sósea! zombas de mi?
    (Ora quero-me fingir
    Que ainda o não conheci,
    Por ver se me quer abrir)
    Ah Senhor, não abrireis?

MERCURIO.

    Qué quereis, hombre, por Dios?

AMPHITRIÃO.

    Duas palavras de vós.

MERCURIO.

    Tengo dicho mas de seis,
    E ahora me pedis dos?
    De fuera podeis dormir,
    Que entrar no podeis acá.

AMPHITRIÃO.

    Ora acabae, abri lá.

MERCURIO.

    Digo que no quiero abrir:
    Dije dos palabras ya.

AMPHITRIÃO.

    Ora sus, bargante, abri.

MERCURIO.

    Si no te vuelves de aqui,
    Á gran peligro te ofreces.

AMPHITRIÃO.

    Velhaco, não me conheces.
    Ou estás fóra de ti?

MERCURIO.

    Bonito venis, amor.
    Quien sois, que hablais tan osado?

AMPHITRIÃO.

    Abre, que sou teu Senhor.

MERCURIO.

    Vuélvase de esotro lado,
    Y conocerlehé mejor.

AMPHITRIÃO.

    Sósea moço.

MERCURIO.

                  Así me llamo,
    Huélgome que lo sepais;
    Empero digo que os vais,
    Que Amphitrion es mi amo;
    Vos id buscar quien seais.

AMPHITRIÃO.

    Pois quero saber de ti:
    Eu quem sou?

MERCURIO.

                    Y quien sois vós?
    Como os llaman?

AMPHITRIÃO.

                      Abri.

MERCURIO.

    Á vos os llaman Abri?
    Pues, Abri, andad con Dios.

AMPHITRIÃO.

    Quem ha, que possa soffrer
    Em sua honra tal destrôço,
    Que para me endoudecer
    Me tẽe negado a mulher,
    E agora me nega o moço?

MERCURIO.

    Mira el encantador
    Como se lastima y llora,
    Y fuese tomar ahora
    La forma de mi Señor,
    Para engañar mi Señora.
    Pues esperad, y no os vais,
    Por un espacio pequeño;
    Verná quien representais,
    Y él os hará que volvais
    El falso gesto á su dueño.

AMPHITRIÃO.

    Vae, velhaco, e chama cá
    Esse falso feiticeiro;
    Que se elle lá dentro está,
    Esta espada julgará
    Qual de nós he o verdadeiro.


SCENA IV.

_Amphitrião, Sosea e Belferrão._

BELFERRÃO.

    Ora ninguem presumíra
    Que tinhas tão pouco siso;
    Pois vás achar d'improviso
    Tão bem forjada mentíra,
    Que me faz cahir de riso.
    Hum moço, que alevantou
    Tal graça, nunca nasceo:
    Porque vos jura que achou
    Que ou elle em dous se perdeo,
    Ou de hum dous se tornou.

SOSEA.

    Patron, que no burlo, no:
    En uno son dos unidos,
    Y en dos cuerpos repartidos;
    Yo soy él, y él es yo,
    De un padre y madre nacidos.

BELFERRÃO.

    Esse tu que lá estás,
    Tão velhaco he como ti?

SOSEA.

    Mas aun pienso que es mas:
    Por delante y por detrás
    Todo se parece á mí.
    Y fue gran merced de Dios
    Ayuntar á mí mas uno,
    Que peor fuera de nos,
    Si Dios me hiciera ninguno,
    Que no de uno hacer dos.

BELFERRÃO.

    Assi que, se te perdeste
    Vieste a cobrar mais hum:
    Mui gentil conta fizeste,
    Pois que perdido soubeste
    Que eras dous, sendo nenhum.

SOSEA.

    Pues teneis por abusion
    Verdad tan clara, y tan rasa,
    Aunque pone admiracion;
    Quiera Dios, que allá en casa
    No halleis otro Patron.

AMPHITRIÃO.

    O Patrão, que fui buscar,
    Parece que vejo vir:
    Não sei quem o foi chamar;
    Mas que me ha de aproveitar
    Se me não querem abrir?
    Ah Belferrão!

BELFERRÃO.

                     Ah Senhor!
    Ja sinto que fui culpado;
    Porque quem he convidado,
    Se tão vagaroso for,
    Merece não ser chamado.

AMPHITRIÃO.

    A vós quem vos convidou?

BELFERRÃO.

    Sósea, por mandado seu.

AMPHITRIÃO.

    Disso, Patrão, não sei eu;
    Que Sósea ja me negou,
    E ja se não dá por meu.
    E se alguem vos foi dizer
    Qu'eu vos chamo á minha mesa;
    Mal vos dara de comer
    Quem de todo lhe he defesa
    A casa, e mais a mulher.

BELFERRÃO.

    Quem he esse tão ousado,
    Que vos isso faz, Senhor?

AMPHITRIÃO.

    Sósea, creio que enganado
    Por algum encantador,
    Que a honra me tẽe roubado.

BELFERRÃO.

    Se elle aqui comigo vem,
    Isso como póde ser?

AMPHITRIÃO.

    Ah! que a íra que vou ter,
    Tão cega a vista me tem,
    Que mo não deixava ver.
    Porque razão, cavalleiro,
    Não me abris quando vos mando?
    Vós fazeis-vos chocarreiro?

SOSEA.

    Yo Señor? y como? y cuando?

AMPHITRIÃO.

    Quereis-lo saber primeiro?
    Esperae, dir-se-vos-ha,
    Mas será por outro son.

SOSEA.

    Ah Señor Amphitrion,
    Porque matándome está,
    Sin delito, y sin razon?

AMPHITRIÃO.

    Agora que vos eu dou
    Me chamais Amphitrião,
    E para me abrirdes não?

BELFERRÃO.

    Este moço em que peccou?
    Porque pena sem razão?
    Não mais por amor de mi.

AMPHITRIÃO.

    Não, que não sou seu Senhor;
    Eu sou hum encantador.
    Não o dizeis vós assi,
    Ladrão, perro, enganador?

SOSEA.

    Porque fuy presto á llamar
    Por su mandado al Patron,
    Me quiere ahora matar?

AMPHITRIÃO.

    Quem vo-lo mandou buscar?

SOSEA.

    Si no hay otro Amphitrion,
    Vuestra merced sin dudar.

AMPHITRIÃO.

    Eu te mandei?

SOSEA.

                   Si Señor,
    Si otro no.

AMPHITRIÃO.

                 Outro ha aqui,
    Por quem tu zombes de mi?
    Pois só desse encantador
    Me quero vingar em ti.

SOSEA.

    Oh Júpiter, á quien bramo
    Por su bondad que me vala!
    Pues porque Sósea me llamo,
    Yo mismo, y despues mi amo,
    Me dieron venida mala!



ACTO QUINTO.


SCENA I.

_Jupiter, Belferrão, Sosea e Amphitrião._

JUPITER.

    Quem he o tão atrevido,
    Que aqui ousa de fazer
    Tão revoltoso arruido
    Com meus moços, sem temer,
    Que fui sempre tão temido?
    Quem aqui faz união,
    Toma mui grande despejo.

BELFERRÃO.

    Oh grande admiração!
    Vejo eu outro Amphitrião,
    Ou he sonho isto que vejo?

SOSEA.

    No mirais la encantacion,
    Que aquel hizo á mi Señor?
    El que sale, Belferron,
    Es el cierto Amphitrion,
    Que estotro es encantador.

JUPITER.

    Sósea?

SOSEA.

              Mi Señor, ya vó.

JUPITER.

    Patrão, só por vós espero.

SOSEA.

    No os lo dicia yo,
    Que este era el verdadero,
    Y esse que allá queda, no?

AMPHITRIÃO.

    Bargante, aonde te vás?
    Fazes teu Senhor sandeu?
    Pois espera, e levarás.

JUPITER.

    Ó lá, tornae por detrás,
    Não deis no moço, que he meu.

AMPHITRIÃO.

    Vosso?

JUPITER.

              Meu.

AMPHITRIÃO.

                      Póde isto haver,
    Que outrem minhas cousas tome?
    Vós galante haveis de ser,
    O que me tomais o nome,
    Casa, moços e mulher.
    Eu vos farei conhecer
    Com quem tendes esse trato.

JUPITER.

    Sósea?

SOSEA.

            Señor.

JUPITER.

                      Vae dizer,
    Que apparelhem de comer,
    Em quanto este doudo mato.

BELFERRÃO.

    Oh Senhor, não seja assim,
    Haja em vós concêrto algum!
    E senão, pois aqui vim,
    Farei que só tome em mim
    Os golpes de cada hum.

JUPITER.

    Patrão, vossa boa estrella
    Me fara deixar com vida
    Quem me não merece tella.

AMPHITRIÃO.

    Não a tenho eu merecida,
    Pois que vos deixo com ella.

BELFERRÃO.

    O homem que for sisudo,
    N'huma tão grande questão
    Ha de tomar por escudo
    A justiça, e a razão;
    Que estas armas vencem tudo.
    E pois essa natureza
    Muitos homens faz iguais,
    Dê qualquer de vós signais
    De quem he, para certeza
    Da fórma que ambos mostrais.

JUPITER.

    Sou contente de mostrar
    Polos sinaes que vos dou,
    Que são estes sem faltar.

AMPHITRIÃO.

    Que sinaes podeis vós dar,
    Para que sejais quem sou?

JUPITER.

    Estes, que logo vereis
    Se são vãos, se de raiz.
    Patrão, vós sêde juiz,
    Que vós logo enxergareis
    Qual mais verdade vos diz.

BELFERRÃO.

    Eu não sinto onde consista
    A cura desta doença,
    Que ha tão pouca differença,
    Que aquelle em que ponho a vista,
    Por esse dou a sentença.
    Mas, Senhor, vós que ordenastes
    Que o juiz disto fosse eu,
    Quando se a batalha deu,
    Dizei, que m'encommendastes
    Que ficasse a cargo meu?

JUPITER.


    Dei-vos cargo, qu'estivesse
    Toda a Armada a bom recado,
    E, se mal nos succedesse,
    Que para os vivos houvesse
    O refugio apparelhado.

BELFERRÃO.

    Ora vós quantos dobrões
    Esse dia m'entregastes?

AMPHITRIÃO.

    Tres mil; e vós os contastes.

BELFERRÃO.

    Ambos sois Amphitriões
    Pelos sinaes que mostrastes.

JUPITER.

    Para ser mais conhecida
    A tenção deste sandeu,
    Vêde est'outro sinal meu,
    Que he neste braço a ferida
    Que me ElRei Terela deu.

BELFERRÃO.

    Mostrae vós, Senhor, tambem.

AMPHITRIÃO.

    Aqui o podeis olhar.

BELFERRÃO.

    Oh cousa para espantar!
    Que ambos a ferida tem
    D'hum tamanho, em hum lugar!


SCENA II.

_Jupiter, Amphitrião e Sosea._

SOSEA.

    Dice mi Señora Alcmena
    Que no se ha de así de estar
    Con un bobo á razonar,
    Que se le enfria la cena.

JUPITER.

    Belferrão, vamos cear.

AMPHITRIÃO.

    Belferrão, não me deixeis.
    Como? tambem me negais?

JUPITER.

    Andae, não vos detenhais,
    Vamos comer, se quereis,
    Não ouçais hum doudo mais.

AMPHITRIÃO.

    Ah maos! assi me ordenais
    Offensa tão mal olhada?
    Eu farei, se m'esperais,
    Com que todos conheçais
    Os fios da minha espada.

JUPITER.

    As portas prestes fechemos,
    Não entre este doudo cá.

SOSEA.

    De fuera se dormirá:
    Entre tanto que cenemos,
    Puede pasearse allá.


SCENA III.

AMPHITRIÃO _só_.

    Oh ira para não crer,
    Em que minh'alma se abraza,
    Que me faz endoudecer,
    E não me ajuda a romper
    As paredes desta casa!
    E porque? Não tenho eu
    Forças, que tudo destrua?
    Pois que tanto a salvo seu,
    Outrem acho que possua
    A melhor parte do meu;
    Eu irei hoje buscar
    Quem me ajude a vir queimar
    Toda esta casa sem pena,
    Donde veja arder Alcmena,
    Com quem a vejo enganar.


SCENA IV.

_Aurelio e Moço._

AURELIO.

    No hallo á mis males culpa,
    Para que merezca pena
    La causa que me condena.

MOÇO.

    Essa está gentil desculpa
    Para hoje dar a Alcmena!
    Tẽe-no mandado chamar,
    E elle está tão descuidado!

AURELIO.

    Moço, queres-me matar?
    Que desculpa posso eu dar
    Melhor qu'este meu cuidado?

MOÇO.

    E não ha mais que fazer?
    Com isso a boca me tapa
    Para mais nada dizer?

AURELIO.

    Ora dá-me cá essa capa
    E vamos ver o que quer:
    Não trates de mais razão,
    Pois não ha quem te resista.
    Que vejo? outra novação!

MOÇO.

    Que he?

AURELIO.

             Ou me mente a vista,
    Ou eu vejo Amphitrião.

MOÇO.

    Eu ouvi a Feliseo,
    Quando cá trouxe o recado,
    Como elle era chegado,
    E quiz-me dizer que veo
    Do siso desconcertado.

AURELIO.

    Isso quero eu ir saber,
    Pois que tal cousa se sôa.


SCENA V.

_Aurelio e Amphitrião._

AURELIO.

    Senhor, póde-se dizer
    Que a vinda seja mui boa?

AMPHITRIÃO.

    Essa não póde ella ser.

AURELIO.

    Porque não?

AMPHITRIÃO.

                 Porque he roubada
    Minha honra sem temor,
    E minha casa tomada,
    E vossa Prima enganada
    Por hum grande encantador.

AURELIO.

    Isso he certo?

AMPHITRIÃO.

                      E manifesto:
    E tudo tẽe ja por seu
    Adúltero e deshonesto:
    Tẽe-me tomado o meu gesto,
    E faz-lhe crer que sou eu.

AURELIO.

    Contais hum caso d'espanto!
    E pois não podeis entrar,
    Defendei-me por em tanto,
    Que eu hei lá de chegar
    Para ver quem póde tanto,


SCENA VI.

AMPHITRIÃO _só_.

    Se ver deshonra tão clara
    Me não tivera o sentido
    Totalmente endoudecido,
    Que gravemente chorára
    Ver tão grande amor perdido!
    E quando vejo a verdade
    Do nosso amor e amizade
    Desfeita com tanta mágoa
    Enchem-se-me os olhos d'ágoa,
    E a alma de saudade.
    Assi que quiz minha estrella,
    Para nunca ser contente,
    Que agora, estando presente
    Viva mais saudoso della,
    Que quando della era ausente.
    Esta porta vejo abrir
    Com impeto demasiado,
    Que poderei presumir,
    Que vejo Aurelio sahir,
    Como homem desatinado?


SCENA VII.

_Amphitrião, Aurelio, Belferrão e Sosea._

AURELIO.

    Oh estranha novidade!
    Oh cousa para não crer!

BELFERRÃO.

    Venho cego de verdade,
    Que não puderão soffrer
    Meus olhos a claridade.

SOSEA.

    Oh triste, que vengo ciego
    Con rayos, y con visiones!
    Y destas encantaciones,
    Si nuestra casa arde en fuego,
    Han se de arder mis colchones.

AURELIO.

    Vamos a Amphitrião
    Contar-lhe cousas tamanhas.

AMPHITRIÃO.

    Que vai lá? que cousas vão?

AURELIO.

    Maravilhas tão estranhas,
    Que me treme o coração.
    Porque aquelle homem, que assi
    Tantos enganos teceo,
    Como era cousa do Ceo,
    Tanto qu'eu appareci,
    Logo desappareceo.
    E em desapparecendo
    Com ruido grande e horrendo,
    Toda a casa allumiou;
    E de arte nos inflammou,
    Que nos vimos acolhendo
    Do raio que nos cegou.
    Estes acontecimentos
    Não são de humana pessoa.
    Vós ouvis a voz que soa?
    Escutae, estae attentos;
    Vejamos o que pregôa.

JUPITER, _de dentro_.

    Amphitrião, qu'em teus dias
    Vês tamanhas estranhezas,
    Não t'espantem phantasias,
    Que ás vezes grandes tristezas
    Parem grandes alegrias.
    Jupiter sou manifesto
    Nas obras de admiração,
    Que por mi causadas são:
    Quiz-me vestir em teu gesto,
    Por honrar tua geração.
    Tua mulher parirá
    Hum filho de mi gerado,
    Que Hercules se chamará,
    O mais valente e esforçado,
    Que no mundo se achará.
    Com este, teus successores
    Se honrarão de serem teus;
    E dar-lhe-hão os escriptores,
    Por doze trabalhos seus,
    Doze milhões de louvores.
    E dessa illustre fadiga
    Colherás mui rico fruito:
    Enfim, a razão me obriga
    Que tão pouco delle diga,
    Porque o tempo dirá muito.

      *      *      *      *      *



FILODEMO,

COMEDIA.


INTERLOCUTORES.

    FILODEMO.
    VILARDO, seu moço.
    DIONYSA.
    SOLINA, sua moça.
    VENADORO.
    MONTEIRO.
    DORIANO, amigo de Filodemo.
    HUM PASTOR.
    HUM BOBO, filho do pastor.
    FLORIMENA, pastora.
    DOM LUSIDARDO, pae de Venadoro.
    DOLOROSO, amigo de Vilardo.
    TRES PASTORES.


ARGUMENTO.

Hum Fidalgo Portuguez, que acaso andava nos Reinos de Dinamarca, como
por largos amores e maiores serviços, tivesse alcançado o amor de huma
filha d'el Rei, foi-lhe necessario fugir com ella em huma galé, por
quanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo chegados á costa
de Hespanha, onde elle era senhor de grande patrimonio, armou-se-lhe
grande tormenta, que sem nenhum remedio, dando a galé á costa, se
perdêrão todos miseravelmente, senão a Princeza, que em huma taboa foi á
praia: a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de huma fonte
pario duas crianças, macho e femia; e não tardou muito que hum pastor
Castelhano, que naquellas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos
meninos, lhe acudio a tempo que a mãe ja tinha espirado. Crescidas,
emfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquelle pastor, o
macho que Filodemo se chamou á vontade de quem os baptizára, levado da
natural inclinação, deixando o campo, se foi para a cidade, aonde por
musico e discreto, valeo muito em casa de D. Lusidardo, irmão de seu
Pae, a quem muitos annos servio sem saber o parentesco que entre ambos
havia. E como de seu Pae não tivesse herdado nada mais que os altos
espiritos, namorou-se de Dionysa, filha de seu Senhor e Tio, que
incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque ellas
nada engeitão, lhe não queria mal. Aconteceo mais, que Venadoro, filho
de D. Lusidardo, mancebo fragueiro, e muito dado ao exercicio da caça,
andando hum dia no campo apos hum cervo, se perdeo dos seus; e indo dar
em huma fonte, onde estava Florimena, irmãa de Filodemo (que assim lhe
pozerão o nome) enchendo huma talha de ágoa, se perdeo de amores por
ella, que se não soube dar a conselho, nem partir-se donde ella estava,
até que seu Pae o não foi buscar. O qual informado pelo pastor que a
criára (que era homem sabio na Arte Magica) de como a achára e como a
criára, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionysa sua filha, e
prima de Filodemo; e a Venadoro seu filho, com Florimena sua sobrinha,
irmãa de Filodemo pastor; e tambem pela muita renda que tinha e de seu
Pae ficára, de que elles erão verdadeiros herdeiros. Das mais
particularidades da Comedia, fara menção o Auto, que he o seguinte.



FILODEMO,

COMEDIA.



ACTO PRIMEIRO.


SCENA I.

_Filodemo e Vilardo._

FILODEMO.

    Moço Vilardo?

VILARDO.

                      Ei-lo vae.

FILODEMO.

    Fallae era má, fallae,
    E sahi cá para a sala.
    O villão como se cala!

VILARDO.

    Pois, Senhor, sahi a meu pae,
    Que quando dorme não fala.

FILODEMO.

    Trazei cá huma cadeira:
    Ouvis, villão?

VILARDO.

                    Senhor, sim.
    (Se m'ella não traz a mim.
    Vejo-lh'eu ruim maneira.)

FILODEMO.

    Acabae, villão ruim.
    Que moço para servir
    Quem tẽe as tristezas minhas!
    Quem pudesse assi dormir!

VILARDO.

    Senhor, nestas manhãzinhas
    Não ha hi senão cahir:
    Por demais he trabalhar
    Qu'este somno se me ausente.

FILODEMO.

    Porque?

VILARDO.

           Porque ha d'assentar
    Que se não for com pão quente,
    Não ha de desaferrar.

FILODEMO.

    Ora hi pelo que vos mando,
    Villão feito de fermento.      _Sahe Vilardo._
    Triste do que vive amando
    Sem ter outro mantimento,
    Qu'estar só phantasiando!
    Só hũa cousa me desculpa
    Deste cuidado que sigo,
    Ser de tamanho perigo,
    Que cuido que a mesma culpa
    Me fica sendo castigo.

_Vem o moço, e assenta-se na cadeira Filodemo e diz avante_

FILODEMO.

    Ora quero praticar
    Só comigo hum pouco aqui;
    Que despois que me perdi,
    Desejo de me tomar
    Estreita conta de mi.
    Vae para fóra, Vilardo.
    Torna cá: vae-me saber
    Se se quer ja lá erguer
    O Senhor Dom Lusidardo,
    E vem-mo logo dizer.      _Vai-se o moço._
    Ora bem, minha ousadia,
    Sem azas, pouco segura,
    Quem vos deo tanta valia,
    Que subais a phantasia
    Onde não sobe a ventura?
    Por ventura eu não nasci
    No mato, sem mais valer,
    Que o gado ao pasto trazer?
    Pois donde me veio a mi
    Saber-me tão bem perder?
    Eu, nascido entre pastores,
    Fui trazido dos currais,
    E d'entre meus naturais
    Para casa dos Senhores,
    Donde vim a valer mais.
    E agora logo tão cedo
    Quiz mostrar a condição
    De rustico e de villão!
    Dando-me ventura o dedo,
    Lhe quero tomar a mão!
    Mas oh! qu'isto não he assi,
    Nem são villãos meus cuidados,
    Como eu delles entendi;
    Mas antes, de sublimados,
    Os não posso crer de mi.
    Porque como hei eu de crer
    Que me faça minha estrella
    Tão alta pena soffrer,
    Que somente pola ter
    Mereço a gloria della?
    Senão se amor, d'attentado,
    Porque me não queixe delle,
    Tẽe por ventura ordenado
    Que mereça o meu cuidado,
    Só por ter cuidado nelle.


SCENA II.

_Vilardo e Filodemo._

VILARDO.

    O Senhor Dom Lusidardo
    Dorme com todo o convento;
    E elle com o pensamento
    Quer estar fazendo alardo
    De castellinhos de vento!
    Pois tão cedo se vestio,
    Com seu damno se conforme,
    Pezar de quem me pario;
    Que ainda o sol não sahio:
    Se vem á mão, tambem dorme.
    Elle quer-se levantar
    Assi pela manhãzinha!
    Pois quero-o desenganar:
    Nem por muito madrugar
    Amanhece mais asinha.

_Filodemo._

    Traze-me a viola cá.

VILARDO.

    (Voto a tal que me vou rindo.)
    Senhor, tambem dormirá.

FILODEMO.

    Traze-a, moço.

VILARDO.

                    Si, virá,
    Se não estiver dormindo.

FILODEMO.

    Ora hi polo que vos mando:
    Não gracejeis.

VILARDO.

                   Eis-me vou:
    Pois, pezar de São Fernando!
    Por ventura sou eu grou?
    Sempre hei d'estar vigiando?      _Sahe._

FILODEMO.

    Ah Senhora, que podeis
    Ser remedio do que peno,
    Quão mal ora cuidareis
    Que viveis e que cabeis
    N'hum coração tão pequeno!
    Se vos fosse apresentado
    Este tormento em que vivo,
    Crerieis que foi ousado
    Este vosso, de criado
    Tornar-se vosso captivo?


SCENA III.

_Filodemo e Vilardo._

VILARDO.

    Ora eu creio, se he verdade
    Qu'estou de todo acordado,
    Que meu amo he namorado;
    E a mi dá-me na vontade
    Que anda hum pouco abalado.
    E se tal he, eu daria
    Por conhecer a donzella
    A ração d'hoje este dia;
    Porque a desenganaria,
    Somente por ter dó della.
    Havia-lhe perguntar:
    Senhora, de que comeis?
    Se comeis d'ouvir cantar,
    De fallar bem, de trovar,
    Em boa hora casareis.
    Porém se vós comeis pão,
    Tende, Senhora, resguardo;
    Qu'eis-aqui está Vilardo,
    Qu'he como hum camaleão,
    Por isso, bus, fazei fardo.
    E se vós sois das gamenhas,
    E houverdes d'attentar
    Por mais que por manducar,
    Mi cama son duras peñas,
    Mi dormir siempre es velar.
    A viola, Senhor, vem
    Sem primas, nem derradeiras:
    Mas sabe o que lhe convem?
    Se quer, Senhor, tanger bem,
    Ha de haver mister terceiras.
    E se estas cantigas vossas
    Não forem para escutar,
    E quizerdes espirar;
    Ha mister cordas mais grossas,
    Porque não possão quebrar.

FILODEMO.

    Vae para fóra.

VILARDO.

                    Ja venho.

FILODEMO.

    Qu'eu só desta phantasia
    Me sostenho e me mantenho.

VILARDO.

    Quamanha vista que tenho,
    Que vejo a estrella do dia!      _Sahe._


SCENA IV.

FILODEMO, _cantando_.

    Adó sube el pensamiento,
    Seria una gloria inmensa
    Si allá fuese quien lo piensa.

_Falla._

    Qual espirito divino
    Me fará a mi sabedor
    Deste meu mal, se he amor,
    Se por dita desatino?
    Se he amor, diga-me qual
    Póde ser seu fundamento,
    Ou qual he seu natural,
    Ou porque empregou tão mal
    Hum tão alto pensamento.
    Se he doudice, como em tudo
    A vida me abraza e queima,
    Ou quem vio n'hum peito rudo
    Desatino tão sisudo,
    Que toma tão doce teima?
    Ah Senhora Dionysa,
    Onde a natureza humana
    Se mostrou tão soberana!
    O que vós valeis me avisa,
    Mas o qu'eu peno m' engana.


SCENA V.

_Solina e Filodemo._

SOLINA.

    Tomado estais vós agora,
    Senhor, co'o furto nas mãos.

FILODEMO.

    Solina, minha Senhora,
    Quantos pensamentos vãos
    Me ouvirieis lançar fóra?

SOLINA.

    Oh Senhor, quão bem que sôa
    O tanger de quando em quando!
    Bem sei eu huma pessoa,
    Que haja huma hora, e boa,
    Que vos está escutando.

FILODEMO.

    Por vida vossa, zombais?
    Quem he? quereis-mo dizer?

SOLINA.

    Não o haveis vós de saber,
    Bofé se me não peitais.

FILODEMO.

    Dar-vos-hei quanto tiver,
    Para taes tempos como estes.
    Quem tivera voz dos Ceos,
    Pois escutar me quizestes!

SOLINA.

    Assi pareça eu a Deos,
    Como lhe vós parecestes.

FILODEMO.

    A Senhora Dionysa
    Quer-se ja alevantar?

SOLINA.

    Assi me veja eu casar,
    Como despida em camisa
    Se ergueo por vos escutar.

FILODEMO.

    Em camisa levantada!
    Tão ditosa he minha estrella?
    Ou mo dizeis refalsada?

SOLINA.

    Pois bem me defendeo ella
    Que vos não dissesse nada.

FILODEMO.

    Se pena de tantos annos
    Merecer algum favor,
    Para cura de meus dannos
    Fartae-me desses engannos,
    Que não quero mais de Amor.

SOLINA.

    Agora quero eu fallar
    Neste caso com mais tento;
    Quero agora perguntar:
    E de siso his vós tomar
    Hum tão alto pensamento?
    Certo he minha maravilha,
    Se vós isto não sentis
    Bem: vós como não cahis
    Que Dionysa qu'he filha
    Do Senhor a quem servis?
    Como? Vós não attentais
    Os Grandes, de qu'he pedida?
    Peço-vos que me digais
    Qual he o fim que esperais
    Neste caso, em vossa vida.
    Que razão boa, ou que côr
    Podeis dar a esta affeição?
    Dizei-me vossa tenção.

FILODEMO.

    Onde vistes vós amor
    Que se guie por razão?
    Se quereis saber de mi
    Que fim, ou de que theor
    O pretendo em minha dor;
    S'eu neste amor quero fim,
    Sem fim me atormente Amor.
    Mas vós com gloria fingida
    Pretendeis de m'enganar,
    Por assi mal me tratar:
    Assi que me dais a vida
    Somente por me matar.

SOLINA.

    Eu digo-vos a verdade.

FILODEMO.

    Da verdade fujo eu,
    Porque se o Amor me deu
    Pena de tal qualidade,
    Assaz me custa do meu.

SOLINA.

    Fólgo muito de saber
    Que sois amante tão fino.

FILODEMO.

    Pois mais vos quero dizer,
    Que ás vezes no imaginar
    Não ouso de m' estender.
    Na hora que imaginei
    Na causa de meu tormento,
    Tamanha gloria levei,
    Que por onças desejei
    De lograr o pensamento.

SOLINA.

    Se me vós a mi jurardes
    De me terdes em segredo
    Huma cousa... mas hei medo
    De logo tudo contardes.

FILODEMO.

    A quem?

SOLINA.

               Áquelle enxovedo.

FILODEMO.

    Qual?

SOLINA.

            Aquelle mao pezar,
    Que ant'hontem comvosco hia.
    Quem se fosse em vós fiar!
    O que vos disse o outro dia,
    Tudo lhe fostes contar.

FILODEMO.

    Que lhe contei?

SOLINA.

                      Ja lh'esquece?

FILODEMO.

    Por certo qu'estou remoto.

SOLINA.

    Hi, que sois hum cesto roto.

FILODEMO.

    Esse homem tudo merece.

SOLINA.

    Vós sois muito seu devoto.

FILODEMO.

    Senhora, não hajais medo:
    Contae-m'isso, e far-me-hei mudo.

SOLINA.

    Senhor, o homem sisudo,
    Se em taes cousas tẽe segredo,
    Saiba que alcançará tudo.
    A Senhora Dionysa
    Crede que mal vos não quer:
    Não vos posso mais dizer.
    Isto tende por balisa
    Com que vos saibais reger.
    Qu'em mulheres, se attentais,
    O querer está visibil;
    E se bem vos governais,
    Não desespereis do mais,
    Porque, emfim, tudo he possibil.

FILODEMO.

    Senhora, póde isso ser?

SOLINA.

    Si, que tudo o mundo tem:
    Olhae não o saiba alguem.

FILODEMO.

    E que maneira hei de ter
    Para crer tamanho bem?

SOLINA.

    Vós, Senhor, o sabereis;
    E ja que vos descobri
    Tamanho sogredo aqui,
    Huma mercê me fareis
    Em que me vai muito a mi.

FILODEMO.

    Senhora, a tudo me obrigo
    Quanto for em minha mão.

SOLINA.

    Pois dizei a vosso amigo
    Que não gaste tempo em vão,
    Nem queira amores comigo.
    Porque eu tenho parentes,
    Que me podem bem casar;
    E mais que não quero andar
    Agora em boca de gentes
    A quem s'elle vai gabar.

FILODEMO.

    Senhora, mal conheceis
    O que vos quer Duriano:
    Sabei-o, se o não sabeis,
    Qu'em sua alma sente o dano
    Do pouco que lhe quereis;
    E que outra cousa não quer,
    Que ter-vos sempre servida.

SOLINA.

    Pola sua negra vida,
    Isso havia eu bem mister.

FILODEMO.

    Vós sois desagradecida!

SOLINA.

    Si, que tudo são enganos
    Em tudo quanto fallais.

FILODEMO.

    Não quero que me creais:
    Crede o tempo; que ha dous anos
    Que vos serve, e inda mais.

SOLINA.

    Senhor, bem sei que m'engano;
    Mas a vós, como a irmão,
    Descubro este coração:
    Sabei que a Duriano
    Tenho sobeja affeição.
    Olhae que lhe não digais
    Isto que vos aqui digo.

FILODEMO.

    Senhora, mal me tratais:
    Inda que sou seu amigo,
    Sabei que vosso sou mais.

SOLINA.

    E ja que vos confessei
    Aquestas fraquezas minhas,
    Que ha tanto que de mi sei;
    Fazei vós nas cousas minhas
    O qu'eu nas vossas farei.

FILODEMO.

    Vós enxergareis, Senhora,
    O qu'eu por vós sei fazer.

SOLINA.

    Como me deixo esquecer!
    Aqui estivera agora
    Fallando té anoitecer.
    Vou-me; e olhae quanto val
    O que passou entre nós.

FILODEMO.

    E porque vos ides vós?

SOLINA.

    Porque parece ja mal
    Estar aqui ambos sós.
    E mais vou vestir agora
    A quem vos dá tão má vida.
    Ficae-vos, Senhor, embora.

FILODEMO.

    Nessa ide vós, Senhora,
    Que ja vos tenho entendida.


SCENA VI.

FILODEMO _só_.

    Ora se póde isto ser
    Do qu'esta moça me avisa,
    Que a Senhora Dionysa,
    Por me ouvir, se fosse erguer
    Da sua cama em camisa!
    E diz que mal me não quer.
    Não queria maior gloria;
    Mas o que mais posso crer,
    Que nem para lhe esquecer
    Lhe passo pela memoria.
    Mas ter Solina tambem
    Em Duriano o intento,
    He levar-me a lenha o vento;
    Porque s'ella lhe quer bem,
    Para bem vai meu tormento.
    Mas foi-se este homem perder
    Neste tempo, de maneira,
    Por huma mulher solteira,
    Que não me atrevo a fazer
    Que hum pequeno bem lhe queira.
    Porém far-lhe-hei hum partido,
    Porqu'ella não se querelle:
    Que se mostre seu perdido,
    Inda que seja fingido,
    Como lh'outrem faz a elle.
    E ja que me satisfaz,
    E tanto nisto se alcança,
    Dê-lhe fingida esperança:
    Do mal que lhe outrem faz,
    Tomará nella vingança.


SCENA VII.

VILARDO _só_.

    Ora boa está a cilada
    De meu amo com sua ama,
    Que se levantou da cama
    Por ouvi-lo! Está tomada:
    Assi a tome má trama.
    E mais crede que quem canta,
    Ainda descantará;
    E quem do leito, onde está,
    Por ouvi-lo se levanta,
    Mor desatino fará.
    Quem havia de cuidar,
    Que dama formosa e bella
    Saltasse o demonio nella,
    Para a fazer namorar
    De quem não he igual della?
    Que me dizeis a Solina?
    Como se faz Celestina,
    Que por não lhe haver inveja
    Tambem para si deseja
    O que o desejo lh'ensina!
    Crede que se me alvoróço,
    Que a hei de tomar por dama;
    E não será grão destrôço,
    Pois o amo quer a ama,
    Que a moça queira o moço.
    Vou-me; que vejo lá vir
    Venadoro, apercebido
    Para a caça se partir:
    E voto a tal, que he partido
    Para ver e para ouvir.
    Que he razão justa e rasa
    Que seu folgar se desconte
    Em quem arde como brasa;
    Que se vai caçar ao monte,
    Fique outrem caçando em casa.


SCENA VIII.

VENADORO _só_.

    Aprovada antiguamente
    Foi, e muito de louvar
    A occupação do caçar,
    E da mais antigua gente
    Havida por singular.
    He o mais contrário officio
    Que tẽe a ociosidade,
    Mãe de todo o bruto vício:
    Por este limpo exercicio
    Se reserva a castidade.
    Este dos grandes Senhores
    Foi sempre muito estimado;
    E he grande parte do estado
    Ter monteiros, caçadores,
    Como officio qu'he prezado.
    Pois logo porque razão
    A meu pae ha de pezar
    De me ver ir a caçar?
    E tão boa occupação
    Que mal me póde causar?


SCENA IX.

_Venadoro e o Monteiro._

MONTEIRO.

    Senhor, venho alvoroçado,
    E mais com muita razão.

VENADORO.

    Como assi?

MONTEIRO.

                 Que me he chegado
    O mais extremado cão,
    Que nunca caçou veado.
    Vejamos que me ha de dar.

VENADORO.

    Dar-vos-hei quanto tiver;
    Mas ha-se d'exprimentar,
    Para se poder julgar
    As manhas que póde ter.

MONTEIRO.

    Póde assentar qu'este cão,
    Que tẽe das manhas a chave.
    Bem feito? Em admiração.
    Pois em ligeiro? He huma ave.
    Em commetter? Hum leão.
    Com porcos? Maravilhoso.
    Com veados? Extremado.
    Sobeja-lhe o ser manhoso.

VENADORO.

    Pois eu ando desejoso
    D'irmos matar hum veado.

MONTEIRO.

    Pois, Senhor, como não vae?

VENADORO.

    Vamos, e vós mui ligeiro
    O necessario ordenae;
    Qu'eu quero chegar primeiro
    Pedir licença a meu pae.



ACTO SEGUNDO.


SCENA I.

DURIANO.

Pois não creio eu em S. Pisco de pao, se hei de pôr pé em ramo verde, té
lhe dar trezentos açoutes. Despois de ter gastado perto de trezentos
cruzados com ella, porque logo lhe não mandei o setim para as mangas,
fez de mim mangas ao demo. Não desejo eu de saber, senão qual he o
galante que me succedeo; que se vo-lo eu colho a balravento, eu lhe
farei botar ao mar quantas esperanças lhe a fortuna tẽe cortado á
minha. Ora tenho assentado, que amor destas anda com o dinheiro, como a
maré com a lũa: bolsa cheia, amor em ágoas vivas; mas se vasa, vereis
espraiar este engano, e deixar em sêcco quantos gostos andavão como o
peixe na ágoa.


SCENA II.

_Filodemo e Duriano._

FILODEMO.

Ó lá! cá sois vós? Pois agora hia eu bater essas moutas, para ver se me
sahieis de alguma; porque quem vos quizer achar, he necessario que vos
tire como huma alma.

DURIANO.

Oh maravilhosa pessoa! Vós he certo que vos prezais de mais certo em
casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem á mão, os
pensamentos com os focinhos quebrados, de cahirem onde vós sabeis. Pois
sabeis, Senhor Filodemo, quaes são os que me mátão? Huns muito bem
almofaçados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio, e se prezão de
brandos na conversação, e de fallarem pouco e sempre comsigo, dizendo
que não darão meia hora de triste pelo thesouro de Veneza; e gábão mais
Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sahem das mãos virgens; e tudo isto
por vos meterem em consciencia que se não achou para mais o grão Capitão
Gonçalo Fernandes. Ora pois desengano-vos, que a mor rapazia do mundo
farão altos espiritos: e eu não trocarei duas pescoçadas da minha etc.,
depois de ter feito a tosquia a hum frasco, e fallar-me por tu e
fingir-se-me bebada, porque o não pareça, por quantos Sonetos estão
escriptos polos troncos dos árvores do vale Luso, nem por quantas
Madamas Lauras vós idolatrais.

FILODEMO.

Tá, tá, não vades avante, que vos perdeis.

DURIANO.

Aposto que adivinho o que quereis dizer?

FILODEMO.

Que?

DURIANO.

Que se me não acudieis com o batel, que me hia meus passos contados a
herege de amor.

FILODEMO.

Oh que certeza tamanha, o muito peccador não se conhecer por esse!

DURIANO.

Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opinião! Mas
tornando a nosso proposito, que he o para que me buscais? que se he
cousa de vossa saude, tudo farei.

FILODEMO.

Como templará el destemplado? Quem poderá dar o que não tẽe, Senhor
Duriano? Eu quero-vos deixar comer tudo: não póde ser que a natureza não
faça em vós o que a razão não póde: o caso he este, dir-vo-lo-hei; porém
he necessario que primeiro vos alimpeis como marmelo, e que ajunteis
para hum canto da casa todos esses maos pensamentos; porque segundo
andais mal avinhado, damnareis tudo aquillo que agora lançarem em vós.
Ja vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa que não he
servir a Senhora Dionysa; e postoque a desigualdade dos estados o não
consinta, eu não pretendo della mais que o não pretender della nada,
porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga; que este meu amor he como
a ave Phenix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.

DURIANO.

Bem praticado está isso; mas dias ha que eu não creio em sonhos.

FILODEMO.

Porque?

DURIANO.

Eu vo-lo direi: porque todos vós-outros os que amais pela passiva,
dizeis que o amor fino como melão, não ha de querer mais de sua dama que
amá-la; e virá logo o vosso Petrarca, e o vosso Pietro Bembo, atoado a
trezentos Platões, mais çafado que as luvas de hum pagem d'arte,
mostrando razões verisimeis e apparentes, para não quererdes mais de
vossa dama que vê-la; e ao mais até fallar com ella. Pois inda achareis
outros esquadrinhadores d'amor, mais especulativos, que defenderão a
justa por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne) se a
qualquer destes lhe entregassem sua dama tosada e apparelhada entre dous
pratos, eu fico que não ficasse pedra sôbre pedra: e eu ja de mi vos sei
confessar que os meus amores hão de ser pela activa, e que ella ha de
ser a paciente, e eu agente, porque esta he a verdade. Mas, com tu de,
vá v. m. co'a historia por diante.

FILODEMO.

Vou, porque vos confesso que neste caso ha muita dúvida entre os
Doctores: assi que vos conto, que estando esta noite com a viola na mão,
bem trinta ou quarenta legoas pelo sertão dentro de hum pensamento,
senão quando me tomou á traição Solina; e entre muitas palavras que
tivemos, me descobrio que a Senhora Dionysa se levantára da cama por me
ouvir, e que estivera pela greta da porta espreitando quasi hora e meia.

DURIANO.

Cobras e tostões, sinal de terra: pois ainda vos não fazia tanto avante.

FILODEMO.

Finalmente, veio-me a descobrir, que me não queria mal, que foi para mi
o maior bem do mundo; que eu estava ja concertado com minha pena a
soffrer por sua causa, e não tenho agora sogeito para tamanho bem.

DURIANO.

Grande parte da saude he para o doente trabalhar por ser são. Se vos
deixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado, nunca
chegareis onde chegou Rui de Sande. Por isso boas esperanças ao leme;
que eu vos faço bom que ás duas enxadadas acheis ágoa. E que mais
passastes?

FILODEMO.

A maior graça do mundo: veio-me a descobrir que era perdida por vós; e
me quiz dar a entender que faria por mi tudo o que lhe vós merecesseis.

DURIANO.

Santa Maria! Quantos dias ha que nos olhos lhe vejo marejar esse amor?
porque o fechar de janellas que essa mulher me faz, e outros enojos que
dizer poderia, no son sino corredores del amor, e a cilada em que ella
quer que eu caia.

FILODEMO.

Nem eu não quero que lho queirais, mas que lhe façais crer que lho quereis.

DURIANO.

Não... quanté dessa maneira me offereço a romper meia duzia de serviços
alinhavados ás panderetas, que bastem assentar-me em soldo pelo mais
fiel amante que nunca calçou esporas; e se isto não bastar, salgan las
palabras mas sangrientas del corazon, entoadas de feição, que digão que
sou hum Mancias, e peor ainda.

FILODEMO.

Ora dais-me a vida. Vamos ver se por ventura apparece, porque Venadoro,
irmão da Senhora Dionysa, he fóra á caça; e sem elle fica a casa
despejada; e o Senhor Dom Lusidardo anda no pomar; que todo o seu
passatempo he enxertar e dispôr, e outros exercicios d'agricultura,
naturaes a velhos: e pois o tempo nos vem á medida do desejo, vamo-nos
lá; e se puderdes fallar, fazei de vós mil manjares, porque lhe façais
crer que sois mais esperdiçado d'amor que hum Braz Quadrado.

DURIANO.

Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil maravilhas,
com que vosso feito venha á luz.


SCENA III.

_Dionysa e Solina._

DIONYSA.

    Solina, mana.

SOLINA.

                     Senhora.

DIONYSA.

    Trazei-me cá a almofada;
    Que a casa está despejada,
    E esta varanda cá fóra
    Está melhor assombrada.
    Trazei a vossa tambem
    Para estarmos cá lavrando;
    Em quanto meu pae não vem,
    Estaremos praticando,
    Sem nos estorvar ninguem.

SOLINA.

    Este he o mesmo lugar
    Onde estava o bem logrado,
    Tal que de muito enlevado
    Se esquecia do cantar
    Por se enlevar no cuidado.

DIONYSA.

    Vós, mana, sois mui ruim!
    Logo lhe fostes contar
    Que me ergui polo escutar.

SOLINA.

    Eu o disse?

DIONYSA.

               Eu não o ouvi?
    Como mo quereis negar?

SOLINA.

    E pois isso que releva?
    Que se perde nisso agora?

DIONYSA.

    Que se perde! Assi, Senhora,
    Folgareis vós que se atreva
    A contá-lo lá por fóra?
    Que se lhe meta em cabeça
    Alguma parvoa tenção?
    Que faça, se vem á mão,
    Algũa cousa que pareça?

SOLINA.

    Senhora, não tẽe razão.

DIONYSA.

    Eu sei mui bem attentar
    Do que se ha de ter receio,
    E do que he para estimar.

SOLINA.

    Não he o demo tão feio
    Como alguem o quer pintar;
    E não se espera isso delle,
    Que não he ora tão moço.
    E Vossa Mercê asselle
    Que qualquer segredo nelle
    He como huma pedra em poço.

DIONYSA.

    E eu que segredo quero
    Co'hum criado de meu pae?

SOLINA.

    E vós, mana, fazeis fero?
    Ao diante vos espero,
    Se adiante o caso vae.

DIONYSA.

    O madraço! quem o vir
    Fallar de siso co'ella...
    Então vós, gentil donzella,
    Folgais muito de o ouvir?

SOLINA.

    Si, porque me falla nella;
    E eu como ouço fallar
    Nella, como quem não sente,
    Folgo de o escutar,
    Só para lhe vir contar
    O que della diz a gente;
    Qu'eu não quero nada delle.
    E mais, porque está fallando?
    Não m'esteve ella rogando
    Que fosse fallar com elle?

DIONYSA.

    Disse-vo-lo assi zombando.
    Vós logo tomais em grosso
    Tudo quanto me escutais.
    Parvo! que vê-lo não posso.

SOLINA.

    Ella alli, e o cão co'o osso!
    Inda isto ha de vir a mais.
    Pois que tal odio lhe tem,
    Fallemos, Senhora, em al;
    Mas eu digo que ninguem
    Merece por querer bem
    Que a quem lho quer, queira mal.

DIONYSA.

    Deixae-o vós doudejar.
    Se meu pae, ou meu irmão,
    O vierem a aventar,
    Não ha elle de folgar.

SOLINA.

    Deos meterá nisso a mão.

DIONYSA.

    Ora hi polas almofadas,
    Que quero hum pouco lavrar;
    Por ter em que me occupar;
    Qu'em cousas tão mal olhadas
    Não se ha o tempo de gastar.

SOLINA.

    Que cousa somos mulheres!
    Como somos perigosas!
    E mais estas tão viçosas
    Qu'estão á boca _que queres_
    E adoecem de mimosas!
    Se eu não caminho agora
    A seu desejo e vontade;
    Como faz esta Senhora,
    Fazem-se logo nessa hora
    Na volta da honestidade.
    Quem a vira o outro dia
    Hum poucochinho agastada,
    Dar no chão com a almofada,
    E enlevar a phantasia,
    Toda n'outra transformada!
    Outro dia lhe ouvirão
    Lançar suspiros a mólhos,
    E com a imaginação
    Cahir-lhe a agulha da mão,
    E as lagrimas dos olhos.
    Ouvir-lhe-heis á derradeira
    A ventura maldizer,
    Porque a foi fazer mulher.
    Então diz que quer ser Freira;
    E não se sabe entender.
    Então gaba-o de discreto,
    De musico e bem disposto,
    De bom corpo e de bom rosto.
    Quanté então eu vos prometo,
    Que não tẽe delle desgôsto.
    Despois, se vem a attentar,
    Diz que he muito mal feito
    Amar homem deste geito;
    E que não póde alcançar
    Pôr seu desejo em effeito.
    Logo se faz tão Senhora,
    Logo lhe ameaça a vida,
    Logo se mostra nessa hora
    Muito segura de fóra,
    E de dentro está sentida.
    Bofé, segundo vou vendo,
    Se esta postema vier,
    Como eu suspeito, a crescer,
    Muito ha que della entendo
    O fim que póde vir ter.


SCENA IV.

_Duriano e Filodemo._

DURIANO.

Ora deixae-a ir, que á vinda lhe fallaremos; entretanto cuidarei o como
hei de fazer; que não ha mor trabalho para huma pessoa que fingir-se.

FILODEMO.

Dar-lhe-heis esta carta; e fazei muito com ella que a dê á Senhora
Dionysa; que me vai nisso muito.

DURIANO.

Por mulher de tão bom engenho a tendes?

FILODEMO.

E porque me perguntais isso?

DURIANO.

Porque ainda hontem entrou pelo A, B, C, e ja quereis que leia carta
mandadeira: fa-la-heis cedo escrever materia junta.

FILODEMO.

Não lhe digais que vos disse nada, porque cuidará que por isso lhe
fallais; mas fingi que de puro amor a andais buscando a tempos que fação
á vossa tenção.

DURIANO.

Deixae-me vós a mi com o caso, que eu sei melhor as pancadas a estes
vintes, que vós; e eu vo-la farei hoje vir a nós sem gafas; e vós
entretanto acolhei-vos a sagrado, porque ei-la lá vem.

FILODEMO.

Olhae lá: fazei que a não vêdes, e fingi que fallais comvosco; que faz a
nosso caso.

DURIANO.

Dizeis bem. (Yo sigo tristeza, remedio de tristes: la terrible pena mia
no la espero remediar. Pois não devia assi de ser, polos santos
Evangelhos! mas muitos dias ha que eu sei que o amor, e os cangrejos,
andão ás vessas. Ora, emfim, las tristezas no me espanten, porque suelen
aflojar cuando mas duelen.)


SCENA V.

_Solina e Duriano._

SOLINA, _com a almofada_.

    Aqui anda passeando
    Duriano, e só comsigo
    Pensamentos praticando:
    Daqui posso estar notando
    Com quem sonha, se he comigo.

DURIANO.

    Ah quão longe estará agora
    Minha Senhora Solina
    De saber que estou bem fóra
    De ter outra por senhora,
    Segundo o amor determina!
    Porém se determinasse
    Minha bem-aventurança
    Que de meu mal lhe pezasse.
    Até que nella tomasse
    Do que lhe quero vingança!...

SOLINA.

    (Comigo sonha por certo.
    Ora quero-me mostrar,
    Assi como por acêrto:
    Chegar-me-hei mais ao perto,
    Por ver se me quer fallar.)
    Sempre esta casa ha d'estar
    Acompanhada de gente,
    Que não possa homem passar!

DURIANO.

    Á traição vindes tomar
    Quem ja feridas não sente?

SOLINA.

    Logo me a mi parecia
    Que era elle o que passeava.

DURIANO.

    E eu mal adivinhava
    Que me viesse este dia,
    Que ha tantos que desejava.
    Se huns olhos por vos servir,
    Com o amor que vos conquista,
    Se atrevêrão a subir
    Os muros da vossa vista,
    Que culpa tẽe quem vos vir?
    E se esta minha affeição,
    Que vos serve de giolhos,
    Não fez êrro na tenção,
    Tomae vingança nos olhos,
    E deixae o coração.

SOLINA.

    Ora agora me vem riso.
    Assi que vós sois, Senhor,
    De siso meu servidor?

DURIANO.

    De siso não, porque o siso
    Me tẽe tirado o amor.
    Porque o amor, se attentais,
    N'hum tão verdadeiro amante
    Não deixa siso bastante;
    Senão se siso chamais
    A doudice tão galante.

SOLINA.

    Como Deos está nos Ceos,
    Que se he verdade o que temo,
    Que fez isto Filodemo.

DURIANO.

    Mas fê-lo o démo; que Deos
    Não faz mal tanto em extremo.

SOLINA.

    Bem. Vós, Senhor Duriano,
    Porque zombareis de mim?

DURIANO.

    Eu zombo?

SOLINA.

                    Eu não m' engano.

DURIANO.

    S' eu zombo, inda em meu dano
    Vejais vós mui cedo a fim.
    Mas vós, Senhora Solina,
    Porque me querereis mal?

SOLINA.

    Sou mofina.

DURIANO.

                   Oh! real.
    Assi que minha mofina
    He minha imiga mortal.
    Dias ha qu'eu imagino
    Qu'em vos amar e servir
    Não ha amador mais fino;
    Mas sinto que de mofino
    Me fino sem o sentir.

SOLINA.

    Bem derivais: quanté assi
    Á popa o dito vos veio.

DURIANO.

    Vir-me-ha de vós, porque creio
    Que vós fallais dentro em mi,
    Como esprito em corpo alheio.
    E assi que em estas piós
    A cahir, Senhora, vim;
    Bem parecerá entre nós,
    Pois vós andais dentro em mim,
    Que ande eu tambem dentro em vós.

SOLINA.

    He bem: que fallar he esse?

DURIANO.

    Dentro na vossa alma, digo,
    Lá andasse, e lá morresse!
    E se isto mal vos parece,
    Dae-me a morte por castigo.

SOLINA.

    Ah mao! Como sois malvado!

DURIANO.

    Mas vós como sois malvada,
    Que de hum pouco mais de nada
    Fazeis hum homem armado,
    Como quem 'stá sempre armada!
    Dizei-me, Solina, mana.

SOLINA.

    Qu'he isso? Tirae lá a mão:
    Oh! vós sois mao cortezão.

DURIANO.

    O que vos quero m'engana,
    Mas o que desejo não.
    Não ha aqui senão paredes,
    As quaes não fallão, nem vem.

SOLINA.

    Está isso muito bem.
    Bem: e vós, Senhor, não vêdes
    Que poderá vir alguem?

DURIANO.

    Que vos custão dous abraços?

SOLINA.

    Não quero tantos despejos.

DURIANO.

    Pois que farão meus desejos,
    Que querem ter-vos nos braços,
    E dar-vos trezentos beijos?

SOLINA.

    Olhae que pouca vergonha!
    Hi-vos d'hi, boca de praga.

DURIANO.

    Eu não sei certo a que ponha
    Mostrardes-me a triaga,
    E virdes-me a dar peçonha.

SOLINA.

    Ora ide rir á feira,
    E não sejais dessa laia.

DURIANO.

    Se vêdes minha canseira,
    Porque lhe não dais maneira?

SOLINA.

    Que maneira?

DURIANO.

                     A da saia.

SOLINA.

    Por minha alma, hei de vos dar
    Meia duzia de porradas.

DURIANO.

    Oh que gostosas pancadas!
    Mui bem vos podeis vingar,
    Qu'em mim são bem empregadas.

SOLINA.

    Ao diabo, que o eu dou.
    Como me doeo a mão!

DURIANO.

    Mostrae cá, minha affeição,
    Que essa dor me magoou
    Dentro no meu coração.

SOLINA.

    Ora hi-vos embora asinha.

DURIANO.

    Por amor de mi, Senhora,
    Não fareis huma cousinha?

SOLINA.

    Digo que vades embora.
    Que cousa?

DURIANO.

                  Esta cartinha.

SOLINA.

    Que carta?

DURIANO.

                 De Filodemo
    A Dionysa vossa ama.

SOLINA.

    Dizei, que tome outra dama,
    E dê os amores ao démo.

DURIANO.

    Não andemos pola rama.
    Senhora, (aqui para nós)
    Que sentis della com elle?

SOLINA.

    Grandes alforges sois vós!
    Pois hi-lhe dizer que appelle.

DURIANO.

    Fallae, que aqui 'stamos sós.

SOLINA.

    Qualquer honesta se abala,
    Como sabe que he querida.
    Ella he por elle perdida:
    Nunca n'outra cousa falla.

DURIANO.

    Ora vou-lhe dar a vida.

SOLINA.

    E eu não lhe disse ja
    Quanta affeição lh'ella tem?

DURIANO.

    Não se fia de ninguem,
    Nem crê que para elle ha
    No mundo tamanho bem.

SOLINA.

    Dir-vos-hia de mim lá
    O que lh'eu disse zombando?

DURIANO.

    Não disse, por S. Fernando!

SOLINA.

    Ora ide-vos.

DURIANO.

                    Que me va!
    E mandais que torne? Quando?

SOLINA.

    Quando eu cá vir lugar,
    Vo-lo mandarei dizer.

DURIANO.

    Se o quizerdes buscar,
    Não vos deve de faltar,
    Se não faltar o querer.

SOLINA.

    Não falta.

DURIANO.

              Dae-me hum abraço
    Em sinal do que quereis.

SOLINA.

    Tá, que o não levareis.

DURIANO.

    De quantos serviços faço
    Nenhum pagar me quereis?

SOLINA.

    Pagar-vos-hão algum'hora,
    Que isso a mi tambem me toca;
    Mas agora hi-vos embora.

DURIANO.

    Essas mãos beijo, Senhora,
    Em quanto não posso a boca.


SCENA VI.

_Solina que traz a almofada, e Dionysa._

SOLINA.

    Ja Vossa Mercê dirá
    Qu'estive muito tardando.

DIONYSA.

    Bem vos detivestes lá.
    Bofé que estava cuidando
    Em não sei que.

SOLINA.

                   Que será?
    Aqui somos. (Quanté agora
    Está ella transportada.)

DIONYSA.

    Que rosnais vós lá, Senhora?

SOLINA.

    Digo que tardei lá fóra
    Em buscar esta almofada.
    Que estava ella agora só
    Comsigo phantasiando?

DIONYSA.

    Bofé que estava cuidando
    Qu'he muito para haver dó
    Da mulher que vive amando.
    Que hum homem póde passar
    A vida mais occupado:
    Com passear, com caçar,
    Com correr, com cavalgar,
    Fórra parte do cuidado.
    Mas a coitada
    Da mulher sempre encerrada,
    Que não tẽe contentamento,
    Não tẽe desenfadamento,
    Mais que agulha e almofada?
    Então isto vem parir
    Os grandes erros da gente:
    Forão mil vezes cahir
    Princezas d'alta semente.
    Lembra-me que ouvi contar
    De tantas affeiçoadas
    Em baixo e pobre lugar,
    Que as que agora vão errar
    Podem ficar desculpadas.

SOLINA.

    Senhora, a muita affeição
    Nas Princezas d'alto estado
    Não he muita admiração;
    Que no sangue delicado
    Faz amor mais impressão.
    Mas deixando isto á parte,
    Se m'ella quizer peitar,
    Prometto de lhe mostrar
    Huma cousa muito d'arte,
    Que lá dentro fui achar.

DIONYSA.

    Que cousa?

SOLINA.

                  Cousa d'esprito.

DIONYSA.

    Algum panno de lavores?

SOLINA.

    Inda ella não deo no fito?
    Cartinha sem sobre-escripto,
    Que parece ser de amores.

DIONYSA.

    Essa he a boa ventura?

SOLINA.

    Bofé que mo pareceo.

DIONYSA.

    E essa donde nasceo?

SOLINA.

    No meu cesto da costura:
    Não sei quem m'alli meteo.

DIONYSA.

    Mostrae-ma; não hajais medo,
    Mana. Eu que vos descobri...

SOLINA.

    E se ella vem para mi,
    Logo quer ver meu segredo?
    Não a veja: vá-se d'hi.
    Ei-la-ahi.

DIONYSA.

                Cuja será?

SOLINA.

    Não sei certo cuja he.

DIONYSA.

    Si; sabeis.

SOLINA.

                Não sei, bofé.

DIONYSA.

    Ora a carta mo dirá.

SOLINA.

    Pois leia Vossa Mercê.

_Abre Dionysa a carta, e lê-a._

Se para merecer minha pena me não falta mais que viver contente della,
ja logo ma podeis consentir; pois que de nenhuma outra cousa vivo
triste, senão por não ser para tão doce tristeza. Se tendes por offensa
commetter tamanha ousadia; por maior a devieis ter, se a não
commettesse; que amor acostumado he fazer os extremos á medida das
affeições, e as affeições á medida da causa dellas. Pois logo, nem o meu
amor póde ser pouco, nem fazer menos: se este não bastar para
consentirdes em meu pensamento, baste para me dardes o que pelo ter
mereço; e senão muitas graças ao Amor, que me soube dar hum cuidado, que
com tê-lo se paga o trabalho de soffrê-lo.

SOLINA.

    Quanta parvoice diz!

DIONYSA.

    Ora muito boa está!
    Como vós, mana, sois má!
    Não sejais vós tão biliz;
    Que bem vos entendo ja.
    Cuja he?

SOLINA.

              E eu que sei?

DIONYSA.

    Pois quem o sabe?

SOLINA.

                         O démo.

DIONYSA.

    Certo que he de quem temo;
    Que os ditos que nella achei
    São todos de Filodemo.
    Este homem, que atrevimento
    He este que foi tomar?
    Qual será seu fundamento?
    Que mil vezes me faz dar
    Mil voltas ao pensamento.
    Não entendo delle nada.
    Mas inda qu'isto he assi,
    Disso que delle entendi,
    Me sinto tão alterada,
    Que me arreceio de mi.
    Eu inda agora não creio
    Que he verdade este amor;
    Mas praza a Deos, se assi for,
    Que inda este meu arreceio
    Se não converta em temor.

SOLINA.

    Ja vós, ja sêdes,
    Peixes, nas redes.
    Senhora, quem mais confia,
    Mais asinha a cahir vem:
    Natural he o querer bem;
    Que o amor n'alma se cria,
    Sem o sentir quem o tem.
    Filodemo, no que ouvi,
    Tẽe-lhe sobeja affeição;
    E postoque o creia assi,
    Ou eu sonhei, ou ouvi.
    Que era d'alta geração.
    Logo na phisionomia,
    Nas manhas, artes e geito,
    Mostra mui grande respeito:
    Nem tão alta phantasia
    Não se põe em baixo peito.

DIONYSA.

    Tudo isso cuido, e vi
    Mil vezes miudamente;
    Mas estas mostras assi
    São desculpas para mi,
    E não para toda a gente.

SOLINA.

    O seu moço vejo vir
    A nós, seu passo contado:
    Este he muito para ouvir,
    Que diz que me quer servir
    D'amores esperdiçado.


SCENA VII.

_Vilardo, Solina e Dionysa._

VILARDO.

    Senhora, o Senhor seu pae,
    Mesmo de Vossa Mercê,
    Ja lá para casa vae:
    Por isso, Senhora, andae,
    Que elle me mandou n'hum pé;
    E diz que fosse jantar
    Vossa Mercê mesmamente.

SOLINA.

    E ja veio do pomar?

DIONYSA.

    Oh quem pudéra escusar
    De comer, nem de ver gente!
    (Nenhuma côr de verdade
    Tenho do que m'elle manda.)

VILARDO.

    S'ella sem vontade anda,
    Eu lh'emprestarei vontade,
    Empreste-m'ella a vianda.

SOLINA.

    Va, Senhora, por não dar
    Mais em que cuidar á gente.

DIONYSA.

    Irei, mas não por jantar;
    Que quem vive descontente
    Mantem-se de imaginar.

VILARDO.

    Pois tambem cá minhas dores
    Me não deixão comer pão;
    Nem come minha affeição
    Senão sopadas d'amores,
    E mil postas de paixão.
    Das lagrimas caldo faço,
    Do coração escudella;
    Esses olhos são panella
    Que coze bofes e baço,
    Com toda a mais cabedella.


SCENA VIII.

_O Monteiro, um pastor e um bobo._

MONTEIRO.

    Perdeo-se por esta brenha
    Venadoro, meu Senhor,
    Sem que novas delle tenha:
    Queira Deos que inda não venha
    Desta perda outra maior.
    Contra esta parte daqui
    Des pos hum cervo correo,
    Logo desappareceo:
    Como da vista o perdi,
    O gosto se me perdeo.
    Eu, e os mais caçadores,
    Corremos montes e covas;
    Fallamos com lavradores
    Deste valle, e com pastores,
    Sem acharmos delle novas.
    Quero ver nestes casais
    Que cobre aquelle arvoredo,
    Se acharei pastores mais,
    Que me dem alguns sinais
    Que me possão tornar ledo.

_Chama._

    Ó dos casaes, ó de lá:
    Ah pastores, não fallais?

PASTOR.

    Quien sois, ó lo que buscais?

MONTEIRO.

    Ouvis? Chegae para cá.

PASTOR.

    Dicid vos lo que mandais.

BOBO.

    No vayais adó os llamó,
    Padre, sin saber quien es.

PASTOR.

    Porque?

BOBO.

             Porque este es
    Aquel ladron que hurtó
    El asno del Portugues.
    Y se vais adó estan,
    Os juro al cuerpo sagrado
    De San Pisco, y San Juan,
    Que tambien os hurtarán,
    Que sois asno mas honrado.

PASTOR.

    Déjame ir, que me llamó.

BOBO.

    No, por vida de mi madre;
    Que si allá vais, muerto so',
    Y desta vez quedo yo,
    Sin asno, triste! y sin padre.

MONTEIRO.

    Vinde, que vo-lo encommendo,
    E em vossas mãos me ponho.

BOBO.

    No vais, que dijo _en comiendo_.
    Encomiendoos al demonio!      _(Ao Monteiro.)_
    Y esso es lo que andais haciendo?

PASTOR.

    Déjame ir adó está,
    Que no es cosa que me espante.

BOBO.

    No quereis sino ir allá?
    Pues echadle pan delante,
    Puede ser amansará.

PASTOR.

    Dios os guarde! Qué cosa es
    Esa por que voceais?

MONTEIRO.

    Dar-m'heis novas, ou sinais
    D'hum Fidalgo Portugues,
    Se passou por onde andais?

BOBO.

    Yo so' Hidalgo Portugues:
    Que manda su Señoria?

PASTOR.

    Cállate: oh que nescio es!

BOBO.

    Padre, no me dejarés
    Ser lo que quisiere un dia?
    Ah Santo Dios verdadero!
    No seré lo que otros son?
    Digo ahora que no quiero
    Ser Alonsico, el vaquero.

PASTOR.

    Cállate ya, bobarron.

BOBO.

    Ya me callo: ahora un poco
    He de ser lo que yo quisiere.

PASTOR.

    Señor, diga lo que quiere,
    Porque este mochacho es loco,
    Y muero porque no muere.

MONTEIRO.

    Digo, que se por ventura
    Sabeis o que ando buscando:
    Hum Fidalgo, que caçando
    Se perdeo nesta espessura
    Apos hum cervo andando.
    Tenho esta parte corrida,
    Sem delle poder saber:
    Trago a alegria perdida;
    E se de todo a perder,
    Perca-se tambem a vida.
    Porque só polo buscar
    Tenho trabalhos assás.

BOBO.

    (Yo no puedo callar mas.)

PASTOR.

    (Como no puedes callar?
    Quítate allá para tras.)
    Cuanto por aquesta tierra,
    No siento nueva ninguna.

MONTEIRO.

    Oh trabalhosa fortuna!

PASTOR.

    Mas detras daquesta sierra
    Hallareis, por dicha, alguna;
    Que unas choças de vaqueros
    Portugueses allí estan;
    Y ahí muchas veces van
    Cazadores Cavalleros:
    Puede ser que lo sabran.

MONTEIRO.

    Quero-me ir lá saber.
    Ficae-vos a Deos, pastor.

PASTOR.

    Dios os livre de dolor.

BOBO.

    Y á nos dé siempre comer
    Pan y sopas, qu'es mejor.
    Mirad lo que os notifico:
    En aquel valle, acullá,
    Anda paciendo un burrico,
    Hidalgo, manso, y bonico;
    Puede ser que ese será.

PASTOR.

    Calla, y acaba de andar.

BOBO.

    Ya ando.

PASTOR.

              Quieres callar?
    Bobo, que tan poco sabe!

BOBO.

    No diceis que ande y acabe?
    Ando, y no quiero acabar.



ACTO TERCEIRO.


SCENA I.

_Florimena, pastora, com hum pote que vai á fonte._

FLORIMENA.

    Por este formoso prado
    Tudo quanto a vista alcança
    Tão alegre está tornado,
    Que a qualquer desesperado
    Póde dar certa esperança.
    O monte, e sua aspereza,
    De flores se veste ledo;
    Reverdece o arvoredo,
    Somente em minha tristeza
    Está sempre o tempo quedo.
    Junto desta fonte pura,
    Segundo a muitos ouvi,
    D'altos parentes nasci:
    Foi como quiz a Ventura,
    Mas não como eu mereci.
    O dia que fui nascida,
    Minha mãe do parto forte
    Foi sem cura fallecida;
    E o dia que me deo vida
    Lhe dei eu a ella a morte.
    Do mesmo parto nasceo
    Meu irmão, que entre os cabritos
    Comigo tambem viveo;
    Mas, assi como cresceo,
    Crescêrão nelle os espritos.
    Foi-se buscar a cidade;
    Teve juizo e saber;
    Eu fiquei, como mulher,
    E não tive faculdade
    Para poder mais valer.
    A hum pastor obedeço
    Por pae, que d'outro não sei;
    E, pola mãe que matei,
    A huma cabra conheço,
    De cujo leite mamei.
    Mas porém, ja qu'este monte
    Me obriga e meu nascimento,
    Quero, pois quer meu tormento,
    Encher a talha na fonte
    Que co'os olhos accrescento.

_Finge que enche a talha._


SCENA II.

_Venadoro e Florimena._

VENADORO.

    Pois que me vim alongar
    Dos caminhos e da gente,
    Fortuna, que o consente,
    Se devia contentar
    De me ter tão descontente.
    Porém, segundo adivinho,
    Por tão espêsso arvoredo,
    Por tão aspero rochedo,
    Quanto mais busco o caminho,
    Tanto mais delle me arredo.
    O cavallo, como amigo,
    Ja cansado me trazia:
    Mas deixou-me todavia;
    Que mal pudera comigo
    Quem comsigo não podia.
    Quero-me aqui assentar
    Á sombra, nesta hervinha,
    Porque canso ja de andar;
    Mas inda a fortuna minha
    Não cansa de me cansar.
    Junto desta fonte pura
    Não sei quem cuido qu'está;
    Mas no coração me dá
    Que aqui me guarda a Ventura
    Alguma ventura má.
    Ou ganhado, ou bem perdido,
    Faça, emfim, o que quizer,
    Qu'eu o fim disto hei de ver?
    Que ja venho apercebido
    A tudo quanto vier.
    Oh que formosa serrana
    Á vista se me offerece!
    Deosa dos montes parece;
    E se he certo que he humana,
    O monte não a merece.
    Pastora tão delicada,
    De gesto tão singular,
    Parece-me qu'em lugar
    De perguntar pola estrada,
    Por mim lhe hei de perguntar.
    Atéqui sempre zombei
    De qualquer outra pessoa
    Que affeiçoada topei;
    Mas agora zombarei
    De quem se não affeiçoa.
    Serrana, cuja pintura
    Tanto a alma me moveo,
    Dizei-me: Por qual ventura
    Andareis nesta espessura,
    Merecendo estar no ceo?

FLORIMENA.

    Tamanho inconveniente
    Andar na serra parece?
    Pois a ventura da gente
    Sempre he mui diferente
    Do que, ao parecer, merece.

VENADORO.

    Tal resposta he manifesto
    Não se parecer co'as cabras.
    Pois não vos parece honesto
    Saberdes matar co'o gesto,
    Senão inda com palabras?
    No mato tudo he rudeza.
    Ha tal gesto e discrição?
    Não o creio.

FLORIMENA.

                  Porque não?
    Não supprirá natureza
    Onde falta criação?

VENADORO.

    Ja logo nisso, Senhora,
    Dizeis, se não sinto mal,
    Que do vosso natural
    Não era serdes pastora.

FLORIMENA.

    Digo, mas pouco me val.

VENADORO.

    Pois quem vos pôde trazer
    Á conversação do monte?

FLORIMENA.

    Perguntae-o a essa fonte;
    Que as cousas duras de crer,
    Hum as faça, outro as conte.

VENADORO.

    Esta fonte, que está aqui,
    Que sabe do que dizeis?

FLORIMENA.

    Senhor, mais não pergunteis.
    Porque outra cousa de mi
    Sabei que não sabereis.
    De vós agora sabei,
    O que não tendes sabido:
    Se quereis ágoa, bebei;
    Se andais por dita perdido,
    Eu vos encaminharei.

VENADORO.

    Senhora, eu não vos pedia
    Que ninguem m'encaminhasse;
    Que o caminho qu'eu queria,
    Se o eu agora achasse,
    Mais perdido me acharia.
    Não quero passar daqui;
    E não vos pareça espanto
    Qu'em vos vendo me rendi;
    Porque quando me perdi,
    Não cuidei de ganhar tanto.

FLORIMENA.

    Senhor, quem na serra mora
    Tambem entende a verdade
    Dos enganos da cidade:
    Vá-se embora, ou fique embora,
    Qual for mais sua vontade.

VENADORO.

    Oh lindissima donzella,
    A quem a ventura ordena
    Que me guie como estrella!
    Quereis-me deixar a pena,
    E levar-me a causa della?
    E ja que vos conjurastes
    Vós e Amor para matar-me,
    Oh não deixeis d'escutar-me!
    Pois a vida me tirastes,
    Não me tireis o queixar-me!
    Qu'eu, em sangue e em nobreza
    O claro Ceo me extremou;
    E a Fortuna me dotou
    De grandes bens e riqueza,
    Que sempre a muitos negou.
    Andando caçando aqui,
    Apos hum cervo ferido,
    Permittio meu fado assi,
    Que andando dos meus perdido,
    Me venha perder a mi.
    E porqu'inda mais passasse
    Do que tinha por passar,
    Buscando quem m'ensinasse,
    Por que via me tornasse,
    Acho quem me faz ficar.
    Que vingança permittio
    A fortuna n'hum perdido!
    Oh que tyranno partido,
    Que quem o cervo ferio,
    Vá como cervo ferido!
    Ambos feridos n'hum monte,
    Eu a elle, outrem a mi:
    Huma differença ha aqui,
    Qu'elle vai sarar á fonte,
    E eu nella me feri.
    E pois que tão transformado
    Me tẽe vossa formosura,
    Hum de nós troque o estado.
    Ou vós para o povoado,
    Ou eu para a espessura.

FLORIMENA.

    Dos arminhos he certeza,
    Se lhe a cova alguem çujar,
    Morar fóra, antes d'entrar:
    D'estimar muito a limpeza
    Pola vida a vai trocar:
    Tambem quem na serra mora
    Tanto estima a honestidade,
    Que antes toma ser pastora,
    Que perder a honestidade
    A trôco de ser Senhora.
    Se mais quereis, esta fonte
    Vos descubra o mais de mim:
    O que ella vio, ella o conte;
    Porque eu vou-me para o monte,
    Porque ha ja muito que vim.


SCENA III.

VENADORO.

    Ó linda minha inimiga,
    Gentil pastora, esperae!
    Pois que tanto amor me obriga,
    Consenti-me que vos siga;
    Vá o corpo onde alma vae.
    E pois por vós me perdi,
    E neste estado Amor pôs
    Os olhos com que vos vi,
    Pois os deixaste sem mi,
    Oh não os deixeis sem vós!
    Porque a Fortuna me disse
    Que nas serras, onde andais,
    Em estes extremos tais,
    Não era bem que vos visse
    Para não ver de vós mais.
    E pois Amor se quiz ver
    Da livre vida vingado,
    Em que eu sohia viver;
    Faça em mi o que quizer,
    Que aqui vou ao jugo atado.


SCENA IV.

_Dom Lusidardo, o Monteiro e Filodemo._

LUSIDARDO.

    Oh Santo Deos verdadeiro,
    A quem o mundo obedece!
    Meu filho não apparece.
    E que me dizeis, Monteiro?

MONTEIRO.

    Digo-lhe que m' entristece.
    Qu'eu corri por esses montes,
    Bem quinze leguas, ou mais,
    E busquei polos casais,
    Por serras, montes e fontes,
    Sem ver novas, nem sinais.
    Toda a gente que levou,
    Buscando-o, muito cansada
    Pelo mato anda espalhada;
    Mas ainda ninguem tomou,
    Que soubesse delle nada.

LUSIDARDO.

    Oh fortuna nunca igual!
    Quem me fara sabedor
    De meu filho e meu amor?
    Que se he muito grande o mal,
    Muito mor he o temor.
    Quem tolhe que não achasse
    Algum leão temeroso
    N'algum monte cavernoso,
    Que sua fome fartasse
    Em seu corpo tão formoso?
    Quem ha que saiba, ou que visse,
    Que das montanhas erguidas
    Algum monstro não sahisse,
    E com seu sangue tingisse
    As hervas nellas nascidas?
    Oh filho! vai-me a lembrar
    Quantas vezes os mandava
    Que deixasseis o caçar!
    Não cuidei de adivinhar
    O que Fortuna ordenava.
    Eu irei, filho, buscar-vos
    Por esses montes, por hi,
    Ou a perder-me, ou cobrar-vos;
    Que morte que quiz matar-vos,
    Quero que me mate a mi.
    Onde fostes fenecido,
    Seja tambem vosso pae;
    Ser-me-ha acontecido,
    Como a virote que vae
    Buscar outro que he perdido.
    Vós só haveis de ficar,
    Filodemo, encarregado
    Para esta casa guardar;
    Que de vosso bom cuidado
    Tudo se póde fiar.
    Ide-vos a fazer prestes,
    Mandae cavallos sellar;
    Pois achá-lo não pudestes,
    Ir-m'heis buscar o lugar
    Onde da vista o perdestes.


SCENA V.

_O Bobo com o vestido de Venadoro, a quem dera o seu._

_Canta._

    Los mochachos del Obispo
    No comen cosa mimosa,
    Ni zanca d'araña, ni cosa mimosa.

_Falla._

    De su sayo colorado
    Tan lozano me vestió,
    Que yo ya no soy yo,
    Ya por otro estoy trocado;
    Que este sayo me trocó.
    Oh qué asno Portugues,
    Que loco por Florimena,
    Deseó zamarra agena,
    Y dame por enterés
    Una zamarra tan buena!
    Como yo vi la bobilla
    Andar con él en questiones,
    Y parársele amarilla,
    Díjele: Florimenilla,
    Andais en dongolondrones?
    Él me dijo: Matalote,
    No tengais dello desmayo.
    Y en esto, como un rayo,
    Tomóme mi capirote,
    Y dióme su capisayo.
    Capirote, en buena fé,
    Si vos, cuando en mi entrastes,
    Capisayo vos tornastes,
    Que yo por eso cantaré,
    Pues ansí me mejorastes.

_Canta._

    Lyrio, lyrio, lyrio loco,
    Con qué? Con capirotada.
    Por hablar con la golosa
    De amores, mirad la cosa!
    Zamarrilla tan hermosa,
    Que me ha dado tan honrada,
    Con qué? Con capirotada.

_Falla._

    Yo entonces respondí:
    Señor, dame pan y queso,
    Mas despues que lo entendí,
    Dije á ella: Dale un beso,
    Que él me dió zamarra á mí.
    Ahora me mirarán
    Cuantos á la eglesia fueren;
    Y aquellos que no me quieren,
    Ahora me rogarán.
    Sabeis porque no querré?
    Porque estoy ahidalgado;
    Y cuando fuere rogado,
    Cantando responderé,
    Que ya estoy otro tornado.

_Canta e baila._

    Soropicote, picote, mozas,
    Ahora quiero amores con vosotras.


SCENA VI.

_O Pastor e o Bobo._

PASTOR.

    Hijo Alonsillo.

BOBO.

                     Hijo Alonsillo.

PASTOR.

    No me quieres escuchar?

BOBO.

    Pues déjame suspirar.

PASTOR.

    Escúchame ahora, asnillo,
    Lo que te quiero mandar.
    Véte al valle de las rosas,
    Y di á Anton del Lugar
    Que si puede acá llegar,
    Porque tengo muchas cosas
    Que importan para le hablar.
    Porque es aqui llegado
    Á este valle un hombre honrado,
    Mancebo de casta buena,
    Que amores de Florimena
    Le traen loco y penado.
    Dice que quiere casar
    Con ella, que su tormento
    No le deja reposar;
    Y que venga festejar
    Tan dichoso casamiento.

BOBO.

    Dicid, padre, tambien vos,
    No quereis casar comigo?
    Casemos ambos adós.

PASTOR.

    Vé, y haz lo que te digo.

BOBO.

    Responde, padre, por Dios.

PASTOR.

    Vé luego, y vuelve apresado.
    Anda. No quieres andar?

BOBO.

    Pues que me habeis empujado,
    Juro á mi de desandar
    Todo cuanto tengo andado.

PASTOR.

    Trabajoso es este insano!
    Nunca hace lo que quereis.

BOBO.

    Ora no os apasioneis,
    Mi padrecico lozano:
    Que burlaba, no lo veis?

PASTOR.

    Véte dahi.

BOBO.

              Héme aqui.

PASTOR.

    Vé donde te dije.

BOBO.

                        Ya vengo.
    Oh que padrasto que tengo,
    Que asi me manda por ahi,
    Siendo camino tan luengo!



ACTO QUARTO.


SCENA I.

_Dionysa e Solina._

DIONYSA.

    Oh Solina, minha amiga,
    Que todo este coração
    Tenho posto em vossa mão;
    Amor me manda que diga,
    Vergonha me diz que não.
    Que farei?
    Como me descobrirei?
    Porque a tamanho tormento
    Mais remedio lhe não sei,
    Que entregá-lo ao soffrimento.
    Meu pae muito entristecido
    Se vai pela serra erguida,
    Ja da vida aborrecido,
    Buscando o filho perdido,
    Tendo a filha cá perdida!
    Sem cuidar,
    Foi a casa encommendar
    A quem destruir lha quer:
    Olhae que gentil saber,
    Que vai comigo deixar
    Quem me não deixa viver.

SOLINA.

    Senhora, em tanto desgôsto.
    Não posso meter a mão;
    Mas como diz o rifão,
    Mais val vergonha no rosto,
    Que mágoa no coração.
    E bofé, se eu tanto amasse,
    E visse tempo e sazão,
    Sem seu pae, sem seu irmão,
    Que a nuvem triste tirasse
    De cima do coração.

DIONYSA.

    Ah mana! que tenho medo,
    Que s'eu em tal consentisse
    Que logo o mundo o sentisse,
    Porque nunca houve segredo,
    Que, emfim, se não descobrisse.

SOLINA.

    Se eu tantas dobras tivesse
    Como quantas houve erradas,
    Sem que o mundo o soubesse,
    Á fé qu'eu enriquecesse,
    E fosse das mais honradas.

DIONYSA.

    Sabeis que tenho em vontade?

SOLINA.

    Que podeis, Senhora, ter?

DIONYSA.

    Fallar-lhe, só para ver
    Se he por ventura verdade
    O que dizeis que me quer.

SOLINA.

    Bofé, mana, dizeis bem,
    E eu o mandarei chamar,
    Como para lhe rogar
    Que hum annel, que lá me tem,
    Que mo mande concertar.

DIONYSA.

    Dizeis mui bem.

SOLINA.

                    Vou-me lá
    Chamar o seu moço á sala;
    E s'este parvo vem cá,
    Com elle hum pouco rirá,
    Que sempre amores me fala.
    Vilardo, moço?


SCENA II.

_Vilardo e Solina._

VILARDO.

                   Quem chama?

SOLINA.

    Vem cá, moço; eu te chamo.
    Qu'he de teu amo?

VILARDO.

                      Ah que dama!
    Perguntais-me por meu amo,
    E não por hum que vos ama?

SOLINA.

    E quem he esse amador,
    Que quer ter comigo passo?
    Será elle algum madrasso?

VILARDO.

    Eu sou o mesmo, que o amor
    Me quebra pelo espinhasso.
    E mais vós sabei de mi,
    Se eu a dizê-lo me atrevo,
    Que desque esses olhos vi,
    Que yo ni como, ni bebo,
    Ni hago vida sin ti.
    E mais para namorado
    Não sou ora tão madraço.

SOLINA.

    Sois muito desmazelado.

VILARDO.

    Mas antes, de delicado
    Caio pedaço a pedaço.
    E mais eu soffrer não posso
    Que me façais tanto fero,
    Qu'estou ja posto no osso,
    Porque sou vosso e revosso,
    Por vida de quanto quero.

SOLINA.

    Feros está cheia a rua.
    Ora estou bem aviada!

VILARDO.

    Cupido, por vida tua,
    Que a não faças tão crua,
    Pois que te não faço nada!
    Amor, Amor, mas te pido,
    Que quando se for deitar,
    Que le digas al oido:
    Devieis-vos de lembrar
    Neste tempo de hum perdido.

SOLINA.

    E tu ja fazes coprinhas?
    Ainda tu trovarás?

VILARDO.

    Quem eu? Por estas barbinhas,
    Que se vós virdes as minhas,
    Que digais que não são más.

SOLINA.

    Ora, pois me quereis bem,
    Dizei-me huma.

VILARDO.

                     Ei-la aqui;
    E veja o saibo que tem;
    Porque esta trovinha assi,
    Saiba qu'he trova do assem.

_Trova._

    Passarinhos, que voais
    Nesta manhãa tão serena,
    Sabei que só minha pena
    Póde encher mil cabeçais.

SOLINA.

    O rifão está salgado.
    Essa pena te dou eu?

VILARDO.

    Vós e Amor, que de malvado,
    Me tẽe melhor empennado,
    Que nenhum virote seu.
    Pois se me ouvíreis cantar!

SOLINA.

    E tu es tambem cantor?

VILARDO.

    Canto melhor que hum açor.
    Quereis que vos venha dar
    Musiqueta de primor,
    E que vos mande tanger
    Muito melhor que ninguem?

SOLINA.

    Ja isso quizera ver.

VILARDO.

    Querer-me-heis, se o eu fizer,
    Algum pedaço de bem?

SOLINA.

    Querer-te-hei trinta pedaços.

VILARDO.

    E esse querer dará fruito,
    Que me tire destes laços?

SOLINA.

    E que fruito?

VILARDO.

                     Dous abraços.

SOLINA.

    Esse fruito custa muito.

VILARDO.

    Esse he o amor qu'em vós ha?
    Pezar de minha mãe torta!

SOLINA.

    Ora hi, chamae logo lá
    Vosso amo que venha cá,
    Porque he cousa que importa.

VILARDO.

    Logo?

SOLINA.

            Logo nessas horas.

VILARDO.

    Não estarei aqui mais?

SOLINA.

    Não. Ainda ahi estais?
    Vós haveis mister esporas.

VILARDO.

    Irei, porque me mandais.


SCENA III.

_O pastor, e Venadoro com elle, feito pastor._

PASTOR.

    Mas de un mez es ya pasado
    Que en esta sierra andais;
    Y es caso mal mirado
    Que andeis guardando ganado
    Por una que tanto amais.
    Y si os determinais
    En querer casar con ella,
    Juro á mi que nada errais;
    Y si eso es para habella,
    En vano cabras guardais.
    Ya me distes vuestra fé
    (Sábenlo estas tierras todas):
    Yo con ella me engañé,
    Que luego mandar llamé
    Quien festejase las bodas.
    Y agora dicis con pena,
    Que es dura cosa casar:
    Pues volveos hora buena,
    Que no habeis de engañar
    Con palabras Florimena.

VENADORO.

    Quem se ha de ter coração
    Para tamanho temor?
    Que em mim pegando estão.
    De huma parte a razão.
    E d'outra parte o Amor.
    Tambem vejo que perdella
    Será minha perdição;
    Que bem me diz a affeição,
    Que pouco faço por ella,
    Pois não desfaço em quem são.

PASTOR.

    Digoos, si por bajeza
    Dicis que no os conviene,
    Daros hé una certeza,
    Que en sangre y en nobleza,
    Tanto como vos la tiene.

VENADORO.

    Pastor, digo que daqui
    Farei tudo que quizerdes;
    E se mais quereis de mi,
    Digo que vos dou o si
    Para tudo o que quizerdes.

PASTOR.

    Dios os dé su bendicion;
    Y pues que casais con ella,
    Yo os afirmo en conclusion,
    Que aun de vos y mas della
    Verná gran generacion.
    Yo me voy por ella, hijo,
    Tomadla asi mal compuesta;
    Verná quien haga la fiesta;
    Que en placer y regocijo
    Nos festeje esta floresta.


SCENA IV.

VENADORO _só_.

    Ó ribeiras tão formosas,
    Valles, campos pastoris,
    Porque vos não revestis
    De novas flores e rosas,
    Se minha gloria sentis?
    Porque não seccais, abrolhos?
    E vós, ágoa, que regando,
    Os olhos his alegrando,
    Correi, que tambem meus olhos
    D'alegres estão manando.
    Ah pastora, em quem espero
    Poder viver descansado!
    Comtigo guardarei gado,
    Que ja eu sem ti não quero
    Nenhuma alteza d'estado.
    Diga o que quizer a gente,
    Tudo terei n'huma palha,
    Porque está claro e evidente
    Que não ha honra que valha
    Contra a vida descontente.


SCENA V.

_Tres pastores bailando, e cantando de terreiro, diante do pastor, que
traz Florimena._

PASTOR.

    Pues el amor os obliga
    Á que hagais tan buena liga,
    Tomando á Dios por testigo,
    Daqui os la entrego, amigo,
    Por muger y por amiga.

VENADORO.

    Consentis nisto, Senhora?

FLORIMENA.

    Senhor, em tudo consento.

VENADORO.

    Oh grande contentamento!

FLORIMENA.

    Saiba que nunca tégora
    Lhe houve inveja ao tormento.

PASTOR.

    Asi lo dices, bobilla?
    Oh! mala dolor os duela!
    Pero no es maravilla
    Quien consiente ansi la silla,
    Consienta tambien la espuela.


SCENA VI.

_Tornão a bailar e cantar, e acabado, entra D. Lusidardo, e o Monteiro,
que andão em busca de Venadoro._

LUSIDARDO.

    Tres dias ha ja que ando
    Por esta larga espessura
    A Venadoro buscando;
    E o que delle vou achando
    He como quer a Ventura.

MONTEIRO.

    Senhor, cuido que lá vejo
    Huns lavradores cantar.

LUSIDARDO.

    Hi diante perguntar.

MONTEIRO.

    Cumprido he seu desejo,
    Se a vista não m'enganar.

LUSIDARDO.

    Como assi?

MONTEIRO.

                     Elle não vê
    Aquelle pastor loução
    Com huma moça pela mão?
    Se Venadoro não he,
    Nem eu o Monteiro são.

PASTOR.

    Quien veo allá asomar,
    Que se viene á nuestras bodas?

BOBO.

    No los dejemos llegar,
    Que nos vernan á roubar,
    Juro á mi, las migas todas.

LUSIDARDO.

    Oh Venadoro, meu filho!
    Es tu este?

VENADORO.

                    Tal estou,
    Que cuido que este não sou.

LUSIDARDO.

    Certo que me maravilho
    De quem tanto te mudou.
    Como estais assi mudado
    No rosto e mais no vestido!

VENADORO.

    Ando ja n'outro trocado,
    Tanto, que fiquei pasmado
    De como fui conhecido.
    E se Vossa Mercê vem
    Para me levar daqui,
    Mais ha de levar que a mi;
    E ha de ser quem me tem
    Todo transformado em si.

BOBO.

    Eso porque lo entendeis?
    Por las migas por ventura?
    Voto á tal no llevareis:
    Por mas y por mas que andeis
    No hareis tal travesura.

VENADORO.

    Esta formosa donzella
    Em mi teve tal poder,
    Que folguei de me perder;
    Pois, emfim, vim achar nella
    O que não cuidei de ser.
    Tanto em mi pôde este amor,
    Que a tenho recebida;
    E se o êrro grave for,
    Aqui quero ser pastor:
    Deixe-me ter esta vida.

LUSIDARDO.

    He certo tal casamento?

VENADORO.

    Tenha-o por cousa segura.

LUSIDARDO.

    Oh grande acontecimento!
    Dest'arte sabe a ventura
    Aguar hum contentamento!

PASTOR.

    Óigame, Señor, á mi,
    Como hombre sabio, discreto,
    Porque acaeció así,
    Y lo que supo hasta aqui
    Lo puede tener por cierto.
    Muchos años son corridos
    Que en esta fuente abierta,
    En estos valles floridos
    Hallé dos niños nascidos,
    Y á su madre casi muerta.
    Los niños chicos crié,
    (Y desto cierto me arreo)
    Y á la madre sepulté;
    Y despues un gran deseo
    De saber esto tomé.
    Como yo fuese enseñado
    De chico á la mágica arte
    Por mi padre, que es finado;
    Muy conoscido y nombrado
    Soy por tal en toda parte.
    Yo con yervas de la sierra,
    Animales y otras cosas
    Haré, si el arte no se yerra,
    Que desciendan á la tierra
    Las estrellas luminosas.
    Soy, en fin, certificado
    Que la madre de los dos
    Fué Princeza de alto estado.
    Y por un caso nombrado
    La trajo á esta tierra Dios.
    El macho, como creció,
    Deseoso de otro bien,
    Á la Corte se partió:
    La hembra es esta por quien
    Vuestro hijo se perdió.
    Y si mas quiere, Señor,
    De mi arte, prestamente
    Dello le haré sabedor;
    Mas ha de ser de tenor
    Que no lo sepa la gente.

LUSIDARDO.

    Mas vamos-nos, se quereis,
    Que não soffro dilação,
    A minha casa, e então
    Lá disso me informareis,
    Que caso he de admiração.
    E vós, filho, não cuideis
    Que a gloria de vos achar
    Não he tanto d'estimar,
    Qu'em qualquer 'stado que esteis,
    Não folgue de vos levar.



ACTO QUINTO.


SCENA I.

_Solina, Dionysa e Filodemo._

SOLINA.

    Eis Filodemo lá vem:
    Asinha acudio ao leme.

DIONYSA.

    Isso he de quem quer bem;
    Mas não sei se o vio alguem,
    Porque quem espera teme.
    Agora me quizera eu
    Daqui cem mil leguas ver.

FILODEMO.

    Folgára eu assi de ser,
    Porqu'este cuidado meu
    Fôra mais de agradecer.
    Que quando por accidente
    A Fortuna desastrada
    Vos apartasse da gente
    N'hum deserto, onde somente
    Das feras fosseis guardada;
    Lá por ferro, fogo e ágoa
    Buscar minha morte iria;
    A voz ronca, a lingua fria,
    Tamanho mal, tanta mágoa
    Ás montanhas contaria.
    Lá, mui contente e ufano
    De mostrar amor tão puro,
    Poderia ser que o dano,
    Que não move hum peito humano,
    Que movesse hum monte duro.

DIONYSA.

    Nesse deserto apartado
    De toda a conversação
    Merecieis degradado
    Por justiça, com pregão
    Que dissesse: _Por ousado_.
    E eu tambem merecia
    Metida a grave tormento,
    Pois que, como não devia,
    Vim a dar consentimento
    A tão sobeja ousadia.

FILODEMO.

    Senhora, se me atrevi,
    Fiz tudo o que Amor ordena;
    E se pouco mereci,
    Tudo o que perco por mi,
    Mereço por minha pena.
    E se Amor pôde vencer,
    Levando de mi a palma,
    Eu não lho pude tolher;
    Que os homens não tẽe poder
    Sôbre os affectos da alma.
    E ainda que pudera
    Resistir contra o mal meu.
    Saiba que o não fizera;
    Que pouco valêra eu,
    Se contra vós me valêra.
    Não deve logo ter culpa
    Quem se venceo d'armas tais:
    Assi que nisto, e no mais,
    Tomo por minha desculpa
    Vós mesma que me culpais.
    E se este atrevimento
    Com tudo for de culpar,
    Acabae de me matar;
    Que aqui tenho hum soffrimento
    Que tudo póde passar.
    E se esta penitencia,
    Que faço em me perder,
    Algum bem vos merecer,
    Fique em vossa consciencia
    O que me podeis dever.
    Que dizeis a isto, Senhora?

DIONYSA.

    Eu que vos posso dizer?
    Ja não tenho em mi poder,
    Segundo me sinto agora,
    Para poder responder.
    Respondei-lhe, vós Solina,
    Pois que a vós me entreguei.

SOLINA.

    Bofé não responderei:
    Veja ella o que determina.

DIONYSA.

    Não o vejo, nem o sei.

SOLINA.

    Pois eu tambem não sei nada.

DIONYSA.

    Porque?

SOLINA.

              Do que eu fizer,
    Se despois se arrepender,
    Dirá qu'eu fui a culpada.

DIONYSA.

    Eu só quero a culpa ter.

SOLINA.

    Senhora, por não errar,
    Não quero que fique em mim.
    Esta noite no jardim
    Ambos podem praticar
    Como isto venha a bom fim.
    Lá poderão ajustar
    Entr'ambos o parecer;
    Qu'eu não m'hei nisso de achar,
    Que não quero temperar
    O que outrem ha de comer.

DIONYSA.

    Vós vêdes a torvação,
    Que lá nessa casa vae?

SOLINA.

    Dá-me cá no coração
    Que he vindo o Senhor seu pae
    Com o Senhor seu irmão.

DIONYSA.

    Filodemo, hi-vos embora,
    Fallae depois com Solina.

SOLINA.

    Vamos-nos tambem, Senhora.
    Receber seu pae lá fóra;
    Não venha sentir a mina.


SCENA II.

_Vilardo e Doloroso, que vem dar hum descante a Solina com os Musicos._

VILARDO.

Assi que te contava, Doloroso, destas em que sempre andão rugindo as sedas.

DOLOROSO.

Avante, que bem sei que o não dizeis polas sedas de Veneza.

VILARDO.

Ja sabeis que esta nossa Solina he tão Celestina, que não ha quem a
traga a nós.

DOLOROSO.

Logo parece moça brigosa, que por dá cá aquellas palhas, dará e tomará
quatro espaldeiradas; e ao outro dia quem ha de cuidar que huma mulher
de sua arte ha de querer bem a hum parvo como a ti? porque estas taes
são como homens sisudos; se de noite se achão em algum arruido, onde
possão fugir sem serem conhecidos, facilmente o fazem; e ao outro dia
quem ha de cuidar que hum tão honrado havia de fugir? Outros dizem: Bem
pode ser, porque noite escura he capa de Judeos e de envergonhados.

VILARDO.

Mui gentil comparação he esta. Mas assi que te dizia, o outro dia assi
zombando lhe prometti de lhe dar huma musica, e ja chamei outros dous
meus amigos, que logo hão de vir aqui ter comnosco.

DOLOROSO.

Que tal he a musica que determinas de lhe dar? Não seja de siso; porque
será a maior parvoice do mundo, porque não concerta com a parvoice que
tu finges.

VILARDO.

A musica não he senão das nossas; mas faço-te queixume, que nem com hum
cão de busca pude achar humas nesperas por toda esta terra.

DOLOROSO.

Nem as acharás senão alugadas; mas eu não sou de opinião que teus amores
te custem dinheiro. Ora ja lá apparecem os outros companheiros, e eu
tambem ajudarei de telhinha ou de assovio; e vem-me isto á popa, porque
daqui iremos á porta da minha padeirinha, porque ando com ella n'hum
certo requerimento.

VILARDO.

Vossas Mercês vem ao proprio: boa seja a vinda. As guitarras vem
temperadas?

DOLOROSO.

Tudo vem como cumpre: mandae vigiar a Justiça entretanto.

VILARDO.

Ora sus: fazei como se temperasseis cabeça de pescada com seu figado e
bucho, e canada e meia, que nunca meu pae fez tamanho gasto na sua Missa
nova.

_Neste passo se dá a musica com todos quatro, hum tange guitarra, outro
pentem, outro telhinha, outro canta cantigas muito velhas, e no melhor
diz Vilardo:_

Estae assi quedos, que eu sinto quem quer que he.

DOLOROSO.

Justiça, pelo corpo de tal! Ora sus: aqui não ha outro valhacouto que
nos valha, que pôr os pés ao caminho, e mostrar-lhe as ferraduras.


SCENA III.

O MONTEIRO _só_.

Como he gracioso este mundo, e como he galante! E quão gracioso sería
quem o pudesse ver de palanque com carta d'alforria ao pescoço, porque
não podessem entender nelle Meirinhos, Almotacés da limpeza, trabalhos,
esperanças, temores, com toda a outra cabedella de enfadamentos! Ora
notae bem de quantas côres teceo a Fortuna esta manta d'Alentejo:
perdeo-se Venadoro na caça, eis a casa toda envolta como rio: o pae
enfadado, a irmãa triste, a gente desgostosa; tudo, emfim, fóra do
couce; e o galante aposentado nos matos com trajos mudados como
camaleão, decepado dos pés e das mãos, por huma serranica d'Alentejo; e
veio acaso a sahir de maneira fóra da madre, que a recebeo por mulher; e
rapa oleo e chrisma de quem he, e renega todas as lembranças de seu pae;
pois tanto tomou ao pé da letra o que Deos disse: _Por esta deixarás teu
pae e mãe_. E attentae isto por me fazer mercê: cuidareis que este caso
era _solus peregrinus_: sabei que os não dá a fortuna senão aos pares,
como quédas. Dionysa mais mimosa e mais guardada de seu pae que bicho de
seda, moça sem fel como pombinha, que nos annos não tinha feito inda o
enequim; mais formosa que huma manhãa do S. João, mais mansa que o Rio
Tejo, mais branda que hum Soneto de Garcilasso, mais delicada que hum
pucarinho de Natal; emfim, que por meia hora de sua conversação se
poderá soffrer huma pipa com cobra e gallo e doninha, como a parricida,
com tanto que dissesse o pregão o porque; porque vos não fieis em
castanhas (não sei se diga, se o cale, que de magoado me trava pola
manga a falla da garganta; mas, com tudo, não ha quem se tenha) seu pae
a achou esta noite no jardim com Filodemo, mais arrependida do tempo que
perdêra, que do que alli perdia: eu, coitado de mi, que meta os dentes
nos cabeçaes se desejar ave de penna.


SCENA IV.

_Duriano e o Monteiro._

DURIANO, _como cantando_.

Ti ri ri, ti ri rão.

MONTEIRO.

Que he isso, Senhor Duriano? Que descuidos são esses? Onde he cá a ida
agora?

DURIANO.

Vou assi como parvo, porque o melhor he não saber homem nada de si.

MONTEIRO.

Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube aproveitar do tempo
que ficou só em casa?

DURIANO.

Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa, se não he isso
caso para sahir com elle a desafio.

MONTEIRO.

Porque?

DURIANO.

Porque não basta que lhe dê a Fortuna gostos tão medidos sôbre o funil,
que lhe põe nos braços Dionysa, a mais formosa dama que nunca espalhou
cabellos ao vento, senão ainda para o assegurar em sua boa ventura, lhe
vem a descobrir, que he filho de não sei quem, nem quem não.

MONTEIRO.

Esses são outros quinhentos. Cujo filho dizem que he? que eu ouvi ja
sôbre isso não sei que fábulas.

DURIANO.

Dir-vo-lo-hei; pasmareis, que não he menos que Principe, e peor ainda.
Nunca ouvistes dizer de hum irmão do Senhor Dom Lusidardo que aggravado
del Rei, se foi para os Reinos de Dinamarca?

MONTEIRO.

Tudo isso ouvi ja.

DURIANO.

Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que ElRei de Dinamarca
lhe fizera, meteo-se d'amores com huma sua filha, a mais moça; e como
era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher
abalão, desejou ella de ver geração delle; senão quando, livre-nos Deos!
se lhe começou d'encurtar o vestido; e porque estes sirgos não se
desistem em nove dias, senão em nove mezes, foi-lhe a elle então
necessario acolher-se com ella, porque não colhessem a ella com elle:
acolheu-se em huma galé; e vêde la Princeza em huma galera nueva, con el
marinero á ser marinera. Finalmente, vindo navegando todo esse Oceano
Germanico, bancos de Frandes, mar d'Inglaterra, e trazidos á costa
d'Hespanha, não os quiz a Ventura deixar gozar do repouso que nella
buscavão: deo-lhe subitamente tamanha tormenta, que sem remedio deo a
galé á costa, onde feita pedaços, morrêrão todos desastradamente, sem
escapar mais que a Princeza com o que trazia na barriga, a quem parece
que a Fortuna guardava para dar o descanso, que a seu pae e mãe negára.
Sahio finalmente a moça na praia, tal qual o temeroso naufragio deixaria
huma Princeza mais delicada que hum arminho; e indo assi a pobre mulher
pola terra estranha e despovoada, e sem quem a encaminhasse por onde,
despois de ter perdido toda a esperança de ter algum remedio, derão-lhe
as dores de parto junto de huma fonte, aonde em breve espaço lançou duas
crianças, macho e femia, como vizagras. E como a fraca compreição da
delicada mulher não pudesse sustentar tantos e tão desacostumados
trabalhos, facilmente deo a vida, que tanto havia que desejava de dar,
deixando vivos aquelles dous retratos della e de seu pae, que por causa
de seus nascimentos a vida lhe tirárão, como acontece a viboras. E como
as crianças fossem destinadas ao que vêdes, não faltou hum pastor que as
criasse, que alli veio ter, dando a mãe a alma a Deos: de maneira que,
por não gastar mais palavras, o macho he vosso amigo Filodemo, e a femia
he a serrana Florimena, mulher que he ja de Venadoro.

MONTEIRO.

Estranhas cousas me contais. Assi que logo de seu pae herdou Filodemo
namorar a filha do Senhor que serve: não haverá logo por mal o Senhor
Dom Lusidardo tomar por genro e nora, quem acha por sobrinhos.

DURIANO.

Sabei que chora de prazer com elles, que ja diz que acha que Filodemo se
parece natural com seu irmão, e Florimena com sua mãe.

MONTEIRO.

Dae-me a entender, como se creo tão de ligeiro o Senhor Dom Lusidardo de
quem isso contou.

DURIANO.

No caso não ha dúvida, porque o pastor que hi achastes, lhe certificou
todo o caso; e fez ao pastor muitas mercês, e mandou fazer muitas festas
solemnes. Venadoro, casado com sua mulher e prima, e Filodemo, que o
mesmo parentesco tẽe com a Senhora Dionysa, estão fóra de crer tamanho
contentamento; cuido que zombão delle.

MONTEIRO.

Ora deixa-me ir a ver o rosto a esse velhaco de Filodemo; pois de meu
matalote se me tornou Senhor. Creio que vem o Senhor Dom Lusidardo:
dissimulemos.


SCENA V.

_Dom Lusidardo com Venadoro, que traz Florimena pela mão, e Filodemo a
Dionysa._

LUSIDARDO.

    Quem não ficará pasmado
    De ver que por tal caminho
    Tẽe a Ventura ordenado
    Filodemo, meu criado,
    Vir ser meu genro e sobrinho!
    Quem não pasmará agora
    De ver a ventura minha,
    Que tẽe tornado n'hum'hora
    Florimena, huma pastora,
    Ser minha nora e sobrinha!
    Dem-se graças ao Senhor,
    Cujo segredo he profundo;
    Pois que vemos que quiz dar
    A ventura e o amor
    Por prazeres deste mundo.

      *      *      *      *      *



CARTAS.



CARTAS.


CARTA I.

Desejei tanto huma vossa, que cuido que pola muito desejar a não vi;
porque este he o mais certo costume da Fortuna, consentir que mais se
deseje o que mais presto ha de negar. Mas porque outras naos me não
fação tamanha offensa, como he fazerem-me suspeitar que vos não lembro,
determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco mais ou menos
vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, d'ante
mão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de huma arca
para aviso de alguns aventureiros, que cuidão que todo o mato he
ouregãos, e não sabem que cá e lá más fadas ha.

Despois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo,
mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão
público: _Por falsificadoras de moeda_. E desenganei esses pensamentos,
que por casa trazia, porque em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assi
posto em estado, que me não via senão por entre lusco e fusco, as
derradeiras palavras que na nao disse, forão as de Scipião Africano:
_Ingrata patria, non possidebis ossa mea_. Porque quando cuido, que sem
peccado que me obrigasse a tres dias de Purgatorio, passei tres mil de
más linguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja,
de verem _su amada yedra de sí arrancada, y en otro muro asida_.... Da
qual tambem amizades mais brandas que cera, se accendião em odios que
disparavão lume que me deitava mais pingos na fama, que nos couros de
hum leitão. Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pelle a virtude
de Achilles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as
quaes de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não engeitar
conversações da mesma impressão, a quem fracos punhão mao nome, vingando
com a lingua o que não podião com o braço. Emfim, Senhor, eu não sei com
que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavão
os acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo mais venerado
que os touros de Merceana, e mais quieto que a cella de hum Frade
Prégador. Da terra vos sei dizer que he mãe de villões ruins, e madrasta
de homens honrados. Porque os que se cá lanção a buscar dinheiro, sempre
se sustentão sobre ágoa como bexigas; mas os que sua opinião deita á las
armas Mouriscote, como maré corpos mortos á praia, sabei que antes que
amadureção, se seccão. Ja estes que tomavão esta opinião de valentes ás
costas, crede que nunca riberas de Duero arriba cavalgaron Zamoranos,
que roncas de tal soberbia entre si fuesen hablando; e quando vem ao
effeito da obra, salvão-se com dizer que se não podem fazer tamanhas
duas cousas, como he, prometter e dar. Informado disto veio a esta terra
João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões,
verdadeiramente que alli era su comer las carnes crudas, su beber la
viva sangre. Callisto de Siqueira se veio cá mais humanamente, porque
assi o prometteo em huma tormenta grande em que se vio. Mas hum Manoel
Serrão, que, _sicut et nos_, manqueja de hum olho, se tẽe cá provado
arrezoadamente, porque fui tomado por juiz de certas palavras, de que
elle fez desdizer a hum Soldado, o qual pela postura de sua pessoa era
cá tido em boa conta. Se das damas da terra quereis novas, as quaes são
obrigatorias a huma carta, como marinheiros á festa de S. Frei Pero
Gonçalves, sabei que as Portuguezas todas cahem de maduras, que não ha
cabo que lhe tenha os pontos, se lhe quizerem lançar pedaço. Pois as que
a terra dá? além de serem de rala, fazei-me mercê que lhe falleis alguns
amores de Petrarca, ou de Boscão; respondem-vos huma linguagem meada de
hervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança ágoa
na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgae, Senhor, o que sentirá
hum estomago costumado a resistir ás falsidades de hum rostinho de
tauxia de huma Dama Lisbonense, que chia como pucarinho novo com ágoa,
vendo-se agora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como
não chorará las memorias de in illo tempore! Por amor de mi, que ás
mulheres dessa terra digais de minha parte que se querem absolutamente
ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis mezes de má vida
por esse mar, que eu as espero com procissão e palio, revestido em
pontifical, aonde est'outras Senhoras lhe irão entregar as chaves da
cidade, e reconhecerão toda a obediencia, a que por sua muita idade são
ja obrigadas. Por agora não mais, senão que este Soneto[3]
que aqui vai, que fiz á morte de Dom Antonio de Noronha, vos mando em
sinal de quanto della me pezou. Huma Ecloga fiz sobre a mesma materia, a
qual tambem trata alguma cousa da morte do Principe, que me parece
melhor que quantas fiz. Tambem vo-la mandára para a mostrardes lá a
Miguel Dias, que pela muita amizade de D. Antonio, folgaria de a ver;
mas a occupação de escrever muitas cartas para o Reino, me não deo
lugar. Tambem lá escrevo a Luis de Lemos em resposta d'outra que vi sua:
se lha não derem, saiba que he a culpa da viagem, na qual tudo se perde.

Vale.

[3] He o Soneto 12.

      *      *      *      *      *


CARTA II.

Esta vai com a candeia na mão morrer nas de v. m.; e se dahi passar,
seja em cinza; porque não quero que do meu pouco comão muitos. E se
todavia quizer meter mais mãos na escudella, mande-lhe lavar o nome, e
valha sem cunhos.

    La mar en medio y tierras, he dejado
    Á cuanto bien cuitado yo tenia:
    Cuan vano imaginar, cuan claro engaño
    Es darme yo á entender que con partirme
    De mí se ha de partir un mal tamaño!

Quão mal está no caso quem cuida que a mudança do lugar muda a dor do
sentimento! E senão, diga-o quien dijo que la ausencia causa olvido.
Porque emfim la tierra queda, e o mais a alma acompanha. Ao alvo destes
cuidados jogão meus pensamentos á barreira, tendo-me ja, pelo costume,
tão contente de triste, que triste me faria ser contente; porque o longo
uso dos annos se converte em natureza. Pois o que he para mor mal, tenho
eu para mor bem. Aindaque, para viver no mundo, me debruo d'outro panno,
por não parecer coruja entre pardaes, fazendo-me hum para ser outro,
sendo outro para ser hum; mas a dor dissimulada dara seu fruito; que a
tristeza no coração, he como a traça no panno.

    E por tão triste me tenho,
    Que se sentisse alegria,
    De triste não viviria.
    Porque a tal sorte vim,
    Que não vejo bem algum
    Em quanto vejo,
    Que não nasceo para mim;
    E por não sentir nenhum,
    Nenhum desejo.

Porque cousas impossiveis, he melhor esquecê-las que deseja-las. E por isso

    Só, tristeza, vos queria,
    Pois minha ventura quer
    Que só ella
    Conheça por alegria;
    E que se outra quizer,
    Morra por ella.

Pouco sabe da tristeza quem (sem remedio para ella) diz ao triste que se
alegre. Pois não vê que alheios contentamentos a hum coração
descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dóbrão o que padece.
Vós, se vem á mão, esperais de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de
bons propositos. Pois desenganae-vos, que desque professei tristeza,
nunca mais soube jogar a outro fito. E porque não digais, que não sou
gente fóra do meu bairro, vêdes, vai huma volta feita a este mote, que
escolhi na manada dos engeitados; e cuido que não he tão dedo queimado,
que não seja dos que ElRei mandou chamar; o qual falla assi:

    Não quero, não quero
    Jubão amarello.

    Se de negro for,
    Tão bem me parece,
    Quanto me aborrece
    Toda alegre côr:
    Côr que mostra dor,
    Quero, e não quero
    Jubão amarello.

Parece-vos que se póde dizer mais? Não me respondais: Quem gabará a
noiva? porque assentae, que fui comendo e fazendo, ou assoprando, que
não he tão pequena habilidade. E porque vos não pareça, que foi mais
acertar, que querê-lo fazer; vêdes, vai outra do mesmo jaez, com tanto
que se não vá a pasmar.

    Perdigão perdeo a penna,
    Não ha mal, que lhe não venha.

    Em hum mal outro começa,
    Que nunca vem só nenhum;
    E o triste que tẽe hum,
    A soffrer outro se offreça;
    E só pelo ter conheça,
    Que basta hum só que tenha,
    Para que outro lhe venha.

Que graça será esperardes de mim propositos em cousa que os não tẽe
para comigo? Pois ainda que queira, não posso o que quero; que hum sentido
remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe succede assi; e cada
hum acode ao que lhe mais doe; e mais eu, que o que mais me entristece
he ter contentamento, pois fujo delle, que minha alma o aborrece, porque
lhe lembra que he virtude viver sem elle. Que ja sabeis que mágoa he,
vê-lo-has e não o paparás. Por fugir destes inconvenientes,

    Toda a cousa descontente
    Contentar-me só convinha
    De meu gôsto:
    Que o mal, de que sou doente,
    Sua mais certa mézinha
    He desgôsto.

Ja ouvirieis dizer: Mouro, o que não podes haver, dá-o pola tua alma. O
mal sem remedio, o mais certo que tẽe, he fazer da necessidade virtude:
quanto mais, se tudo tão pouco dura, como o passado prazer. Porque,
emfim, allegados son iguales los que viven por sus manos etc. A este
proposito, pouco mais ou menos, se fizerão humas voltas a hum mote
d'enchemão, que diz por sua arte zombando, mais que não de siso (que
toda a galantaria he tirá-la donde se não espera), o qual crede que tẽe
mais que roer do que hum praguento. Por tanto recuerde el alma adormida,
e mande escumar o entendimento, que d'outra maneira, de fuera
dormiredes, pastorcico. E o meu Senhor diz assi:

    Dava-lhe o vento no chapeirão,
    Quer lhe dê, quer não.

    Bem o póde revolver,
    Que o vento não traz mais fruito;
    E mais vento he sentir muito
    O que, emfim, fim ha de ter.
    O melhor, he melhor ser,
    Que o vento no chapeirão,
    Quer lhe dê, quer não.

Huma cousa sabei de mim, que queria antes o bem do mal, que o mal do
bem; porque muito mais se sente o por vir, que o passado; e a morte até
matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque para tomar
a palha a esta materia, são necessarias azas de Nebri. Mas vós sois
homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mi vos
sei dar he:

    Que esperança me despede,
    Tristeza não me fallece,
    E tudo o mais me aborrece.
    Ja que mais não mereceo
    Minha estrella,
    Só a tristeza conheço,
    Pois que para mi nasceo,
    E eu para ella.

No mundo não tẽe boa sorte, senão quem tẽe por boa a que tẽe. E
daqui me vem contentar-me de triste. Mas olhae de que maneira:

    Vivo assi ao revés,
    Tomando por certa vida
    Certa morte,
    Com que fólgo em que me pês;
    Pois minha sorte he servida
    De tal sorte.

Huma cousa sabei, que o mal, inda que ás vezes o vejais louvar, não ha
quem o louve com a boca, que o não tache com o coração.

    Ajuda-me a soffrer
    Vida tão sem soffrimento,
    E tão sem vida,
    Ver que, emfim, fim hão de ter
    Desgôsto e contentamento
    Sem medida.

Attentae que não são maos confeitos de enforcado, para os que estão com
o baraço na garganta, cuidar que o bem e o mal, aindaque sejão
differentes na vida, são conformes na morte; porque vemos

    Que não ha tão alta sorte,
    Nem ventura tão subida,
    Ou desastrada,
    A quem o assópro da morte
    Não sopre o fogo da vida.

    A seu fim todas cousas vão correndo;
    Nem ha cousa, que o tempo não consuma,
    Nem vida, que de si tanto presuma,
    Que se não veja nada, em se vendo.

    Que o mais certo que temos,
    He não termos nada certo
    Cá na terra.
    Pois para seus não nascemos;
    Se o seu nos dá incerto,
    Nada erra.

Quero-vos dar conta de hum Soneto sem pernas, que se fez a hum certo
recontro que se teve com este destruidor de bons propositos, e não se
acabou, porque se teve por mal empregada a obra; cujo teor he o seguinte:

    Forçou-me amor hum dia, que jogasse;
    Deo as cartas, e az de ouros levantou;
    E sem respeitar mão, logo triumphou,
    Cuidando que o metal, que me enganasse.

    Dizendo, pois triumphou, que triumphasse
    A huma sota de ouros, que jogou,
    Eu então por burlar quem me burlou,
    Tres paos joguei, e disse que ganhasse.

Principes de condição, ainda que o sejão de sangue, são mais enfadonhos
que a pobreza: fazem com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias
de seus avós, onde não ha trigo tão joeirado, que não tenha alguma
hervilhaca. Ja sabeis que basta hum Frade ruim, para dar que fallar a
hum convento. Duas cousas não se soffrem sem discordia; companhia no
amar, mandar villão ruim sôbre cousa de seu interesse. Não se póde ter
paciencia com quem quer que lhe fação o que não faz. Desagradecimentos
de boas obras destruem a vontade para não fazê-las a amigo, que tẽe
mais conta com o interesse, que com a amizade: rezae delle, que he dos cá
nomeados.

Grande trabalho he querer fazer alegre rosto, quando o coração está
triste: panno he, que não toma nunca bem esta tinta; que a lua recebe a
claridade do sol, e o rosto do coração. Nada dá quem não dá honra no que
dá: não tẽe que agradecer, quem, no que recebe, a não recebe; porque
bem comprado vai o que com ella se compra. Não se dá de graça o que se
pede muito. Estai certo, que quem não tẽe huma vida, tẽe muitas. Onde
a razão se governa pela vontade, ha muito que praguejar, e pouco que
louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto comsigo, como males de que
se não guardárão, podendo. Não ha alma sem corpo, que tantos corpos faça
sem almas, como este purgatorio, a que chamais honra: onde muitas vezes
os homens cuidão que a ganhão, ahi a perdem. Onde ha inveja, não ha
amizade; nem a póde haver em desigual conversação. Bem mereceo o engano,
quem creo mais o que lhe dizem, que o que vio. Agora ou se ha de viver
no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual,
perguntae-lhe donde vem: vereis que algo tiene en el cuerpo, que le
duele. Ora temperae-me lá esta gaita, que nem assi, nem assi achareis
meio real de descanso nesta vida; ella nos trata somente como alheios de
si, e com razão;

    Pois somente nos he dada
    Para que ganhemos nella
    O que sabemos.
    Se se gasta mal gastada,
    Juntamente com perdella
    Nos perdemos.

Enfim, esta minha senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, he a mais
fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve he,

    Ponderemos e vejamos
    Que ganhamos em viver
    Os que nascemos:
    Veremos, que não ganhamos,
    Senão algum bem fazer,
    Se o fazemos.

E por isso respeitando,

    Que o por vir tal será,
    Enthesouremos;
    Porque ao certo não sabemos
    Quando a morte pedirá
    Que lhe paguemos.

Nunca vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte: sendo
mais aborrecida que a verdade, tẽe-se em menos conta que a virtude. Mas
com tudo, com seu pensamento, quando lhe vem á vontade, acarreta mil
pensamentos vãos; que tudo para com ella he hum lume de palhas. Nenhuma
cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem na mor bonança,
como ella; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras,
dando com os corpos á costa; e, se vem á mão, com as almas no inferno,
que he bem ruim gasalhado.

    E pois todos isto temos,
    Não nos engane a riqueza,
    Por que tanto esmorecemos,
    Traz que vamos;
    Ja que temos por certeza
    Que quando mais a queremos,
    A deixamos.

    Gastâmos em alcançá-la
    A vida; e quando queremos
    Usar della,
    Nos tira a morte lográ-la:
    Assi que a Deos perdemos,
    E a ella.

Porque ja ouvirieis dizer: _Ninho feito, pêga morta_. Que me dizeis ao
contentamento do mundo, que toda a dura delle está emquanto se alcança?
Porque acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque
acabado de alcançar, he passado; e maior saudade deixa, do que he o
contentamento que deo. Esperae, por me fazer mercê, que lhe quero dar
humas palavrinhas de proposito.

    Mundo, se te conhecemos,
    Porque tanto desejamos
    Teus enganos?
    E se assi te queremos,
    Mui sem causa nos queixamos
    De teus danos.

    Tu não enganas ninguem;
    Pois a quem te desejar,
    Vemos que danas:
    Se te querem qual te vem,
    Se se querem enganar,
    Ninguem enganas.

    Vejão-se os bens que tiverão
    Os que mais em alcançar-te
    Se esmerárão;
    Que huns vivendo, não vivêrão,
    E outros, só com deixar-te,
    Descansárão.

    Se esta tão clara fé
    Te põe claros teus enganos,
    Desengana:
    Sobejamente mal vê,
    Quem com tantos desenganos
    Se engana.

    Mas como tu sempre mores
    No engano em que andamos,
    E que vemos,
    Não cremos o que tu podes,
    Senão o que desejamos
    E queremos.

    Nada te póde estimar
    Quem bem quizer conhecer-te
    E estimar-te;

    Qu'em te perder ou ganhar,
    O mais seguro ganhar-te
    He perder-te.

    E quem em ti determina
    Descanso poder achar,
    Saiba que erra;
    Que sendo a alma divina,
    Não a póde descansar
    Nada da terra.

    Nascemos para morrer,
    Morremos para ter vida,
    Em ti morrendo:
    O mais certo he merecer
    Nós a vida conhecida,
    Ca vivendo.

    Emfim, mundo, es estalagem,
    Em que pousão nossas vidas
    De corrida:
    De ti levão de passagem
    Ser bem ou mal recebidas
    Na outra vida.

Á fuera, á fuera Rodrigo, que eu se muito for por este caminho, darei em
enfadonho, de que me parece me não livrará, nem ainda privilegio de
Cidadão do Porto. E pois me vendo a vós, soffrei-me com meus encargos. E
porque não digais que sou herege de amor, e que lhe não sei orações,
vêdes, vai huma: _Di, Juan, de qué murió Blas?_ com hum pé á Portugueza,
e outro á Castelhana: e não vos espanteis da libré, que eu em qualquer
palmo desta materia perco o norte. E os supplicantes dizem assi:

    Di, Juan, de que murió Blas,
    Tan niño y tan mal logrado?
    Gil, murió de desamado.

    Dime, Juan, quien se engañó,
    Que con amor se engañase,
    Pensando que el bien hallase,
    Adonde el mal cierto halló?
    Despues que el engaño vió,
    Que hizo desenganado?
    Gil, murió de desamado.

    Travou com elle pendença,
    Em ter razão confiado;
    Mas Amor, como he letrado,
    Houve contr'elle a sentença:
    E co'aquella differença,
    Disse entre si o coitado:
    Gil, morreo de desamado.

    Quem tẽe razão tão cerrada,
    Que não saiba, sendo rudo
    E sem respeito,
    Que sem Deos he tudo nada,
    E nada com elle tudo
    Sem defeito?

    E sendo isto assi tão certo,
    Como todos confessamos
    E sabemos;
    Não troquemos pelo incerto
    O em que tão certo estamos,
    Pois o vemos.

A tudo isto podeis responder, que todos morremos do mal de Phaeton,
porque del dicho al hecho, vá gran trecho. E de saber as cousas a passar
por ellas, ha mais differença, que de consolar a ser consolado. Mas assi
entrou o mundo, e assi ha de sahir: muitos a reprehendê-lo, e poucos a
emendá-lo. E com isto amaino, beijando essas poderosas mãos huma
quatrinqua de vezes, cuja vida e reverendissima pessoa nosso Senhor etc.

      *      *      *      *      *

_O seguinte fragmento de uma composição satyrica em prosa e verso, em
que Luis de Camões descreve uns jogos de canas, com que na cidade de Goa
se festejou a successão de Francisco Barreto no governo daquelle Estado,
appareceo na 3.ª edição das suas Rimas, com as duas antecedentes cartas,
e em seguimento da ultima. O intento do poeta he mostrar por meio das
divisas que tirárão os Justadores, que todos elles erão ou sacerdotes de
Baccho, ou parvos, ou homens perdidos._

.....e hum que bebia excessivamente, tirou por divisa hum morcego; ave
em que foi convertida Alcithoe com as irmãas, por desprezarem os
sacrificios de Baccho. E como aquelle, que se em tal êrro cahisse, não
queria ser convertido em tão baixo animal e tão nojoso, dizia a sua
letra assi em Castelhano:

    Si yo desobedeciere
    Á tu deidad santa y pura,
    En al mudes mi figura.

Alguns praguentos quizerão dizer que esta letra era maliciosa, e que não
queria dizer tanto desejar este galante de ser mudado em al, como que
desejava almudes deste licor. Mas he muito grande falsidade, que sendo a
letra assi feita, acaso acertou de sahir aquella palavra, com que
molhava as suas quem tirava a divisa. Do que o innocente Autor, despois
ficou para se enforcar. Mas outro galante, que de fino bebado ja passava
os limites do bom e costumado beber, tirou por divisa huma palmeira;
árvore, que entre os Antigos significava victoria; e ao pé della alguns
ramos de vides e de parreiras pizadas; e dizia a letra assi:

    Ficae vencidas, sem gloria,
    Vós vides e vós parreiras;
    Porque os ramos das palmeiras
    São os que tẽe a victoria.

Tambem aqui não faltárão praguentos, que quizerão dizer que este devoto,
deixando ja atraz Portugal, commettia com valeroso animo Orracas e
Fullas, tendo em pouco Caparicas e Seixaes. Mas quem ha que fuja de más
linguas, ou de mal costumadas gargantas?

Outro galante, a quem fazia mal ao estomago beber o vinho agoado, tirou
por divisa huma peça de chamalote sem ágoas, que apresentava Baccho; e
dizia a letra, como por parte do mesmo Baccho:

    Sem ágoas, Senhor, levaio
    Se for bom,
    Que las aguas de Moncaio
    Frias son.

Aqui não tiverão praguentos que dizer, por ser opinião de physica, serem
melhores os mantimentos simples, que os compostos.

Outro, que no beber lançava a barra inda mais além que os acima
escritos, tirou por divisa huma salamandra, passeando por cima de humas
brazas de fogo; e a letra dizia:

    En el fuego vivo yo.

Mas o pintor errando as letras, acertou de pôr: _De fuego la bebo yo_.
Donde os praguentos quizerão adivinhar que este galante bebia Orraca de
fogo. O demonio foi fazer tal êrro, para delle sahir tamanho acêrto.

Outro devoto, que desque estava quente, dizia dos companheiros,
quaesquer que fossem, o que de cada hum sabía, sem respeito, tirou por
divisa hum demoninhado, lançando os olhos em alvo, escumando e apontando
com o dedo para hum frasco de vinho; e dizia a letra:

    Se fallar demasiado,
    Não mo tachem, porque, emfim,
    Aquella alma falla em mim.

Sendo atéqui introduzidos os religiosos de Baccho, pedírão dous d'outra
religião que tambem os deixassem jogar as canas, e que elles tirarião
tal divisa, com que se tirasse a limpo sua habilidade; e sendo entrados
ambos juntos, por certa conformidade que havia entre ambos, trouxerão
pintados nas bandeiras cada hum seu par de pombas; e dizia a letra:

    Se como vós ha hi par,
    Vós o podereis julgar.

Certo, que atéqui chegou a malicia dos homens, porque tão subtilmente
quizerão interpretar a innocencia desta letra, que tomárão a derradeira
syllaba da primeira regra, e ajuntárão-na com a primeira da derradeira,
que vem a dizer _parvos_; e disserão que juntos significavão isso
aquelles dous innocentes. Mal peccado! tão errada anda a maldade humana,
que logo tẽe por parvos aos que sabem pouco!

Outro homem entrou tambem por adherencia nas canas, o qual dizem que
tinha partes maravilhosas; porque era tão perfeito em suas cousas, que o
seu comer havia de ser o melhor temperado e o mais suave do mundo; e os
seus vestidos erão sempre dos mais finos pannos e sitins, que se
podessem descobrir; e esta perfeição até nos amores e amizades se lhe
estendia, porque com os amigos sempre tinha subtilezas de conversação, e
com as amigas hum fingir que queria o que não queria. E, emfim, até no
jogar usava daquellas manhas todas, as que para ganhar erão necessarias.
E tinha mais hum revez da fortuna recebido, que se lhe estendia desde a
ponta do nariz até huma orelha. Este Senhor tirou por divisa huma camisa
toda lavrada de pontinhos, lavor antigo; e a letra dizia assi:

    Pontos de honrado e sisudo
    Sempre na vida quiz ter;
    Apontado no viver,
    Apontado mais que tudo
    Em meu vestir e comer.
    Pontos subtis no meu gôsto,
    Mais subtis no conversar:
    Tanto me vim a apontar,
    Que apontado trago o rosto,
    E as cartas para jogar.

Muitos outros homens illustres quizerão ser admittidos nestas festas e
canas, e que se fizera memoria delles, conforme suas qualidades; mas
infinita escritura fôra, segundo todos os homens da India são
assinalados; e por isto esses bastem para servirem de amostra do que ha
nos mais.

FIM.


      *      *      *      *      *



NOTAS.



NOTAS.

Pag. 16. V. 17. _Não do sol, mas da candea._] Todas as ed.; mas he lição
viciosa, porque se a luz do sol não he sombra daquella idea, que em Deos
está mais perfeita, menos o será a da candea. Exclue o poeta uma e outra
destas luzes, para que se entenda a da belleza mortal, que tanto cá nos
seduz e encanta. Corrigimos portanto:

    *Não do sol, nem da candea.*


P. 67. V. 4. _De mim tão longe._] Todas as ed.; mas he êrro, porque o
poeta diz que, tinha posto a sua vontade em quem lhe fugio com ella, e
pergunta depois se alguem vio a sua vontade de si tão longe? Corrigimos:

    *De si tão longe.*


P. 123. V. 25.

    _Vós na minha gloria posto.
    Eu na vossa sepultura._]

Todas as ed. Mas he justamente o contrário:

    *Vós na vossa gloria posto,
    Eu na minha sepultura.*


P. 124. V. 9.

    _Mas se esse rosto fingido
    Quizereis representar,
    Houvera por bom partido
    Dar-lho a alma do sentido
    Para a gloria do lugar._]

Assim andão corrompidos estes versos em todas as ed. Corrigimos:

    *Mas se esse rosto fingido
    Quizerão representar,
    E houverão por bom partido
    Dar-vos a alma do sentido
    Para a gloria do lugar:
    Víreis etc.*


P. 148. V. 1. _Vai o bem fugindo etc._] Estas endeixas, que
evidentemente são do poeta, andão na 1.ª e 2.ª edição das Rimas; na 3.ª
aindaque apontadas no index, forão supprimidas por descuido: nós as
restituimos.


P. 164. V. 23. _E amor he effeito d'alma._] Todas as ed. Parece que deve
ser _affeito d'alma_.


P. 183. V. 7. _Sem saber do cuidado o que sentia._] Todas as ed.; mas he
êrro: corrigimos:

    *Sem saber de cuidado o que sentia;*

isto he um saber de pensado, ou sem examinar, o que sentia.


P. 185. V. 20. _Ao pé d'uma alta faia etc._] Esta que inadvertidamente
aqui vai com o nome de Elegia, por assim andar nas precedentes edições,
propriamente não he senão uma Egloga, que se deve ajuntar ás mais.


P. 185. V. 24. _Tão queixoso d'Amor_] Faria e Sousa. He vicio:
corrigimos: _Mui queixoso d'Amor_.


P. 186. V. 8. _As roxas brancas Nymphas_] Faria e Sousa. He corrupção de
texto: corrigimos:

    *Brancas, roxas, as Nymphas mais colhião,*

porque se entende flores.


P. 188. V. 15. _Junto do rosmaninho, que he crescer_] Faria e Sousa. He
corrupção de texto: corrigimos:

    *Junto do rosmaninho qu'he 'squecer.*


P. 191. V. 25. _Ai que me deras vida a morte dar-me_] Faria e Sousa. He
corrupção de texto: corrigimos:

    *Ai que me deras vida em morte dar-me.*


P. 197. V. 23. _E como debil flamma a quem fallece O radical humor de
que vivia_] Faria e Sousa. He corrupção de texto; porque o radical humor
só pode faltar as plantas: corrigimos:

    *E como debil flor etc.*


P. 215. V. 15.

    _Por qual, Senhor, algum eu me trocára. Ou por qual algum rei de
    mais grandeza_]

Faria e Sousa. Não julgamos correcto o dizer: _por qual algum_: devem
portanto estes versos ler-se como nas primeiras edições:

    *Por que Rei, por que duque eu me trocára,
    Por que Senhor de grande fortaleza?*


P. 220. V. 30.

    _Se o successo he contrário da vontade As obras que são boas, e o
    desvio_]

Faria e Sousa. He corrupção de texto: corrigimos:

    *Se o successo he contrário da vontade
    Nas obras que são boas, e ha desvio etc.*


P. 221. V. 41. _Quanto de infamia_] Faria e Sousa. Quãmanha infamia, 3.ª
ed. Esta ultima nos parece ser a lição do poeta.


P. 222. V. 29. _Populares a Pallas._] Todas as ed. He vicio de texto:
corrigimos:

    *Populares (ó Pallas) etc.*


P. 223. V. 17. _E pois que tudo em vos se permittio_] Faria e Sousa. _No
qual, pois tudo em vós etc._] 3.ª ed. Preferimos esta lição, que nos
parece ser a do poeta.


P. 224. V. 11.

    _O querido de Deos por quem peleja
    O ar tambem, e o vento socegado,
    Ao atambor acode, porque veja
    Que quem a Deos ama, he de Deos amado_

Assim se lião estes quatro versos na 3.ª edição. Manoel de Faria corrigio:

    _Oh querido de Deos, por quem peleja
    O ar tambem, e o vento socegado!
    Ao tambor acode, porque veja
    Que o qu'a Deos ama, he de Deos amado._

Mas esta apostrophe, por elle introduzida, não tem aqui lugar; porque o
poeta acaba de dizer na Oitava antecedente que quando Albuquerque nas
praias da Persia conseguia victoria daquellas nações tão remotas, as
settas, que tirava o arco Ormusiano, por milagre de Deos, se viravão no
ar, pregando-se nos peitos dos mesmos que as tiravão; e continúa,
observando que o querido de Deos que por elle peleja, o mesmo ar e o
vento conjurado em seu favor, ao atambor lhe acodem, para que elle veja
que o que a Deos ama, he delle amado e favorecido. Este he o sentido
natural e obvio. Mas Faria e Sousa, vendo que estes versos erão imitação
dest'outros de Claudiano:

    _O nimium dilecte Deo, cui fundit ab antris
    Aeolus armatas hiemes! tibi militat aether,
    Et conjurati veniunt ad classica venti._

julgando que o poeta os devia traduzir servilmente, e não accommodá-los
ao seu intento, metteo aqui esta exclamação forçada, sem nem ao menos
saber a quem ella se refere, porque diz elle mesmo: _Yo dudo si esta
exclamacion mira al Albuquerque, si al Rey Don Sebastian._ E assim
estando ja viciado o texto, muito mais o ficou ainda. Nós seguimos a
lição antiga, mas como a falta de clareza que nella se encontra, argue
vicio de cópia, corrigimos:

    *O querido de Deos, por quem peleja,
    O ar tambem e o vento socegado
    Ao atambor lhe acodem, porque veja
    Que o que a Deos ama, he de Deos amado.*


P. 225. V. 3. _Com louvores de Apollo celebrado._] Todas as ed.; mas
aqui ha vicio, porque falta a clareza: corrigimos:

    *Com louvores de Apollo, e celebrado.*


P. 228. V. 1. _Depois que a clara aurora a noite escura._] Esta glosa do
Soneto 14 bem como a do 194 que vai a pag. 132, evidentemente não he
obra do poeta: por inadvertencia as conservámos nesta edição.


P. 257. L. 7. _Que são muito e valem pouco._] Todas as ed.; mas o que o
poeta quer dizer, he que um par de reales são cousa pouca, mas para um
escudeiro pobre valem muito. Corrigimos:

    *Que são pouco, e valem muito.*


P. 258. L. 17. _Ora, pois, Senhor, o Auto dizem, que he tal._] Todas as
ed. Mas he vicio manifesto: corrigimos:

    *Que tal dizem, que he?*


P. 259. L. 1. _E huma donzella que vem mais podre de amor, fallando como
Apostolo, mais piedosa que huma lamentação._] Todas as ed.; mas he
vicio: corrigimos:

    *Que vem podre de amor etc.*


P. 259. L. 8. _Olá, Senhores._] Lição vulgar. He viciosa: corrigimos:

    *Olá, Senhoras.*


P. 286. V. 1. _Mas qué amo y cararon._] Lição vulgar. He grande estrago
de texto: corrigimos:

    *Mas qué amo y qué cabron!*


P. 369. V. 11. _Esperai, dir-vo-lo-ha._] Faria. He êrro: deve ler-se:

    *Dir-se-vos-ha.*


P. 370. V. 14.

    _Pois só desse encantador
    Me quero vingar de ti._]

Lição vulgar: he viciosa: corrigimos:

    *Pois so desse encantador
    Me quero vingar em ti.*


P. 374. V. 48. _E se mal vos succedesse._] Lição vulgar: he êrro de
cópia ou de impressão: corrigimos:

    *E se mal nos succedesse.*


P. 386. L. 11. _O qual informado pelo pastor que a achára, (que era
homem sabio na arte magica) e como a criára._] Lição vulgar; mas a
oração esta imperfeita: corrigimos: *O qual informado pelo pastor etc.;
de como a achára e como a criára.*


P. 402. V. 17. _E levar-me a lenha o vento._] Lição vulgar: He viciosa,
porque falta a clausula da oração: corrigimos:

    *He levar-me a lenha o vento.*


P. 418. L. 5. _Pois não devia assi de ser posantos e vanselos._] Lição
vulgar. Estranha corrupção de texto: corrigimos:

    *Pois não devia assi de ser, polos Santos Evangelhos.*


P. 418. V. 6. _Que os amos e os cangrejos._] Lição vulgar. He viciosa:
corrigimos:

    *Que o amor e os cangrejos.*


P. 447. V. 16.

    _Que das montanhas erguidas
    D'algum monte não sahisse._]

Lição vulgar. Não he menos notavel esta corrupção: corrigimos:

    *Que das montanhas erguidas
    Algum monstro não sahisse.*


P. 453. V. 20. _Se tanto amasse._] Lição vulgar; mas aqui ha vicio de
texto, porque falta a clareza, com que o poeta sempre costuma
exprimir-se. Corrigimos:

    *Se eu tanto amasse.*


Pag. 467. V. 12.

    _Que quando por accidente
    Da fortuna desastrado
    Fosse apartado da gente
    N'um lugar onde somente
    Das feras fosse guardado:
    E por ferro, fogo e ágoa
    Buscar minha morte iria._]

Lição vulgar. Mas a corrupção de texto não póde ser mais visivel.
Comtudo não difficil atinar-se com o sentido do poeta.

Acaba de dizer Dionysa a Filodemo que tomára ver-se dalli cem mil
leguas, pelo perigo que corria a sua honestidade. Responde-lhe este, que
isso desejava tambem elle que succedesse; porque nesse caso teria
occasião de fazer por ella uma fineza, que fosse mais de agradecer; e
vem a ser, que quando ella por algum caso da fortuna fosse apartada da
gente n'um deserto onde não tivesse por guarda, senão as feras; por
ferro, fogo e ágoa lá iria elle buscar a sua morte. E porque não póde
ser outro o sentido do poeta, corrigimos:

    *Que quando por accidente
    A fortuna desastrada
    Vos apartasse da gente
    N'um deserto, onde somente
    Das feras fosseis guardada;
    Lá por ferro, fogo e ágoa
    Buscar minha morte iria etc.*


P. 475. L. 20. _Que estas cidras não se desistem em nove dias, senão em
nove mezes._] Lição vulgar. Não ha maior corrupção de texto. Que tem as
cidras que desistir? Que o poeta não disse um tal absurdo, he fóra de
toda a dúvida. O que elle disse foi isto:

*E porque estes sirgos não se desistem em nove dias, senão em nove
mezes, foi-lhe a elle necessario acolher-se com ella etc.*

Sirgo he o envolucro, onde se encerra o bicho da seda, quando passa ao
estado de metamorphose, e onde se conserva doze dias, ou nove, como diz
o poeta. Mas a ignorancia transformou sirgos em cidras.


P. 482. L. 7. Porque quando cuido que sem peccado que me obrigasse a
tres dias de purgatorio, passei tres mil de más linguas, peores tenções,
damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem _su amada yedra de
si arrancada, y en otro muro asida..._ Aqui ha lacuna porque falta o
verbo da oração.


P. 489. V. 28.

    _A quem não assopre a morte
    Nem sopre o fogo da vida._]

Lição vulgar; mas a do poeta he:

    *A quem o assôpro da morte
    Não sopre o fogo da vida.*


P. 490. L. 26. _Tres cousas não se soffrem sem discordia; companhia,
namorar, mandar villão ruim sobre cousa de seu interesse._] Todas as ed.
Mas o vicio he palpavel: corrigimos: *Duas cousas não se soffrem sem
discordia; companhia no amar, mandar villão ruim sobre cousa de seu
interesse.*



INDEX.


REDONDILHAS &c.

    Pag.

    100 A alma que está offrecida
     61 A dor que a minha alma sente
    113 A morte, pois que sou vosso
     71 Amor loco, amor loco
     57 Amor que todos offende
     63 Amores de huma casada
     66 Apartárão-se os meus olhos
    126 Aquella captiva

    107 Campos bem-aventurados
     99 Catharina bem promette
     98 Cinco gallinhas e meia
    136 Coifa de beirame
    103 Com razão queixar-me posso
     76 Com vossos olhos, Gonçalves
     38 Conde, cujo illustre peito
     33 Corre sem vela e sem leme
     93 Crescem, Camilla, os abrolhos

     53 Da doença em que ora ardeis
     62 D'alma e de quanto tiver
     28 Dama d'estranho primor
     56 De atormentado e perdido
     70 De dentro tengo mi mal
     65 De pequena tomei amor
     76 De que me serve fugir
     70 De vuestros ojos centellas
     54 Deo, Senhora, por sentença
     91 Deos te salve, Vasco amigo
     60 Descalça vai pela neve
    102 Descalça vai para a fonte
    143 Dó la mi ventura

     63 Enforquei minha esperança
     80 Esconjuro-te, Domingas
    101 Esperei, ja não espero
     46 Este mundo es el camino

     67 Falso cavalleiro ingrato
    101 Ferro, fogo, frio e calma
    125 Foi-se gastando a esperança

     78 Ha hum bem que chega e foge

    132 Irme quiero, madre

    112 Ja não posso ser contente
    119 Justa fue mi perdicion

    105 Mas porém a que cuidados
    140 Menina formosa
     52 Menina formosa e crua
     75 Menina, não sei dizer
    129 Menina dos olhos verdes
    118 Minh'alma, lembrae-vos della

     86 Na fonte está Leonor
     57 Não estejais aggravada
     89 Não posso chegar ao cabo
     74 Não sei se m'engana Helena

    104 Ojos, herido me habeis
     55 Olhae que dura sentença
     94 Olhos em que estão mil flores
     78 Olhos, não vos mereci
     79 Os bons vi sempre passar

     69 Para que me dan tormento
    145 Pastora da serra
     43 Peço-vos que me digais
     83 Pequenos contentamentos
     84 Perdigão perdeo a penna
     80 Perguntais-me quem me mata
     85 Pois a tantas perdições
     73 Pois damno me faz olhar-vos
     72 Pois he mais vosso que meu
     92 Porqué no miras, Giraldo
     64 Puz o coração nos olhos

     60 Qual terá culpa de nós
     77 Quando me quer enganar
     87 Que diabo ha tão damnado
    122 Qué veré que me contente
    103 Quem disser que a barca pende
     58 Quem no mundo quizer ser
    128 Quem ora soubesse
     94 Quem se confia em huns olhos
     21 Querendo escrever hum dia

    123 Retrato, vós não sois meu

    134 Saudade minha
     81 Se a alma ver-se não póde
     68 Se de meu mal me contento
     41 Se derivais da verdade
    137 Se Helena apartar
     83 Se me desta terra for
    128 Se me levão agoas
     45 Se n'alma e no pensamento
     35 Se não quereis padecer
     51 Se vossa Dama vos dá
     45 Sem olhos vi o mal claro
    117 Sem ventura he por demais
    116 Sem vós, e com meu cuidado
     59 Senhora, pois me chamais
     73 Senhora, pois minha vida
     40 Senhora, s'eu alcançasse
     95 Sois formosa e tudo tendes
      9 Sôbolos rios que vão
     30 Suspeitas, que me quereis

    141 Tende-me mão nelle
    121 Todo es poco lo posible
    109 Trabalhos descansarião
    110 Triste vida se me ordena
    131 Trocae o cuidado
    118 Tudo póde huma affeição
     98 Tudo tendes singular

    148 Vai o bem fugindo
     72 Vêde bem se nos meus dias
    115 Vejo-a n'alma pintada
     79 Venceo-me Amor, não o nego
    132 Ver e mais guardar
    138 Verdes são os campos
    139 Verdes são as hortas
     90 Vi chorar huns claros olhos
    135 Vida da minha alma
     68 Vós, Senhora, tudo tendes
    146 Vós sois huma Dama
    122 Vos teneis mi corazon
     88 Vossa Senhoria creia
     82 Vosso bem querer, Senhora

SEXTINAS.

    152 A culpa de meu mal só tem meus olhos
    151 Foge-me pouco a pouco a curta vida
    154 Oh triste, oh tenebroso, oh cruel dia
    155 Sempre me queixarei desta crueza

ELEGIAS.

    194 A vida me aborrece, a morte quero
    185 Ao pé d'hum'alta faia vi sentado
    160 Aquella que de amor descomedido
    175 Aquelle mover de olhos excellente
    190 Belisa, unico bem desta alma minha
    172 Depois que Magalhães teve tecida [4]
    177 Entre rusticas serras e fragosas
    208 Juizo extremo, horrifico e tremendo
    164 O poeta Simonides fallando
    157 O sulmonense Ovidio desterrado
    196 Que tristes novas, ou que novo damno [5]
    202 Se quando contemplamos as secretas

      [4] A D. Leoniz Pereira, havendo-lhe Pedro de Magalhães
          Gandavo dedicado o seu livro intitulado: _Historia da
          Provincia de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos
          Brasil_. Impresso em Lisboa 1576.

      [5] Á morte de D. Miguel de Menezes na India, filho de D.
          Henrique de Menezes, Governador da casa do Civil. Foi
          dirigida a seu irmão D. Philipe de Menezes.

EPISTOLAS.

    217 Como nos vossos hombros tão constantes [6]
    223 Mui alto Rei a quem os ceos em sorte [7]
    210 Quem póde ser no mundo tão quieto [8]
    225 Senhora se encobrir por alguma arte

      [6] A D. Constantino de Bragança, Viso-Rei da India.

      [7] Sobre a setta que o Papa enviou a ElRei D. Sebastião
          no anno de 1575.

      [8] A D. Antonio de Noronha, sôbre o desconcêrto do mundo.

OITAVAS.

    232 Cá nesta Babylonia adonde mana
    228 Despois que a clara Aurora a noite escura
    234 D'huma formosa virgem desposada

COMEDIAS.

    255 ElRei Seleuco
    301 Os Amphitriões
    385 Filodemo

CARTAS.

    481 Carta 1.ª
    484 Carta 2.ª

    503 NOTAS





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III" ***

Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.



Home