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Title: Julião e a Biblia
Author: Martinez, Emilio
Language: Portuguese
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[Illustration]



JULIÃO E A BIBLIA



[Illustration: «O pequenito parece que se vae saindo»

Pag. 10.]



                            _EMILIO MARTINEZ_

                            JULIÃO E A BIBLIA

                         TRADUZIDO DO HESPANHOL
                                   POR
                             GUILHERME DIAS

                               3.ª EDIÇÃO

                           LIVRARIA EVANGELICA
                       RUA DAS JANELAS VERDES, 32
                                 LISBOA

                            IMPRENSA LIMITADA
                     Marianos—Rua das Janelas Verdes
                                 LISBOA



CAPITULO I

A benção de Deus


Ao cair duma tarde de primavera, entramos no pateo duma casa situada na
rua dos Embaixadores, em Madrid, onde nos chamaram, desde logo, a atenção
duas janelas que, a julgar pelo ruido que delas sahia, uma devia ser a da
oficina dum carpinteiro, e a outra a dum latoeiro.

Perto desta ultima janela, uma mulher já de edade, a julgar pelos seus
cabelos brancos, estava sentada, lendo com grande interesse um livro, que
tinha sobre os joelhos. Não podemos, pela posição em que ela está, ver
o seu rosto, porém chama-nos a atenção a seriedade com que lê o livro e
o desejo, que se lhe nota no rosto, de aproveitar na leitura os ultimos
instantes que lhe restam da luz do dia.

Não sabemos que estranha simpatia nos arrasta para aquela mulher.

De repente, entra no pateo um rapaz, que diz:

—Senhora Josefa, o mestre chama-a.

Então ela levantou a cabeça, porém a surpreza, em que estavamos, não
nos deixou ouvir a resposta. Aquele nome, aquelas feições e aquela
voz traziam-nos á memoria uma pessoa a quem muito estimavamos, e uns
acontecimentos que seguramente se nos tinham apagado da memoria.

Josefa atravessou o pateo e desapareceu.

—Quem é esta senhora?—perguntámos ao rapaz que neste momento recolhia a
cadeira em que Josefa estava sentada.

—A mãe do mestre—respondeu-nos ele, e desapareceu por uma porta, que
havia no pateo, e que dava passagem para a loja do vidraceiro.

Então sahimos para a rua, e, olhando para a _vitrine_ duma loja que ha ao
lado do portal, a nossa vista foi fixar-se no seguinte letreiro, que se
lê no cimo dela:

                                 JULIÃO

                    VIDRACEIRO, CHUMBEIRO E LATOEIRO

Este nome tambem nos traz á memoria uma pessoa e um facto, e a nossa
surpreza foi grande quando a porta da loja se abriu e apareceu nela um
rapaz, a quem havia bastante tempo conheceramos quando era ainda menino,
disputando com um sacerdote.

Efectivamente, este homem é Julião, e a senhora que lia no pateo era
Josefa, a vendedeira.

Mas que mudança! Quem havia de reconhecer neste joven o filho de Josefa?

Pouco depois da epoca em que o conhecemos, o Senhor lhe proporcionou
trabalho em casa dum bom mestre, onde, ao fim dum ano, se cativou das
suas simpatias.

Era o mestre de Julião de edade avançada, viuvo e pae duma joven de 19
anos, que o tratava com todo o carinho duma boa filha, e a qual se
chamava Maria das Dôres.

Ao cabo dum ano, que Julião esteve á frente da casa, progrediu esta de
tal maneira que o mestre não deixava de falar em toda a parte no seu
oficial. Passados dois anos, depois que Julião estava em casa do mestre,
viu-se este atacado duma pneumonia, e, sentindo que os seus ultimos
momentos se aproximavam, chamou Julião e disse-lhe:

—Julião, tu tens-te portado em minha casa como um homem de bem... os meus
ultimos momentos aproximam-se, e desejo, já que outra coisa não pode ser,
que me dês a tua palavra de honra que continuarás em minha casa sendo o
que eras até aqui... Lembra-te de que esta casa é o amparo duma orfã, e
de que, se tu nos deixares, não sei o que será dela... eu bem queria...
mas...

E o ancião deteve-se como se temesse dizer alguma inconveniencia.

—Mestre—respondeu Julião soluçando,—Deus não quererá que morra, mas,
se essa fôr a Sua vontade, cumpra-se... eu lhe prometo que continuarei
velando pela casa com mais solicitude do que até aqui... e que Maria das
Dôres será para mim uma irmã... já que outra coisa não...

—Julião—disse-lhe o seu mestre,—fala claro; um velho que se acha ás
portas da morte faz-te este pedido.

—Pois bem—respondeu Julião,—já ha tempo que, comigo mesmo, tenho admirado
as virtudes e prendas que adornam sua filha, porém o receio de que me
atribuissem fins interesseiros, pela diferença de posições, obrigaram-me
a calar e a não dizer palavra.

—Graças te dou, oh meu Deus—exclamou o ancião,—porque coroaste os meus
desejos.

E, mandando chamar a filha, depois de consultar a vontade dela e de
receber a aprovação de Josefa, Julião e Maria das Dôres se receberam por
marido e mulher, na presença do oficial do registo civil. Pouco depois
falecia o mestre de Julião.

A benção de Deus se estendeu sobre os dois esposos até ao ponto de
conceder-lhes, como fruto do seu matrimonio, um menino, ao qual pozeram o
nome de Paulo.

Tal é o estado de Julião e sua familia.

Já que é nosso amigo, entremos na sua loja. Nada ha de extraordinario
que nos chame a atenção, excepto um quadro em cartão, colocado numa das
paredes, que diz:

_Lembra-te de santificar o dia de descanço. Trabalharás seis dias, e
farás neles tudo o que tens para fazer; o setimo dia, porém, é o dia de
descanço consagrado ao Senhor, teu Deus; não farás nesse dia obra alguma,
nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva,
nem o teu animal, nem o peregrino que vive das tuas portas para dentro;
porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra e o mar e tudo o que
neles ha, e descançou ao setimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia
setimo e o santificou._

Vamos agora travar conhecimento com um dos visinhos de Julião,—o dono da
oficina de carpinteiro.

Chama-se João, homem de 65 a 68 anos. Apezar desta edade, ainda está
vigoroso, e, se não fôra por algumas dôres que sofre, em consequencia de
ter dormido muitas noites ao relento, no tempo da guerra dos sete anos,
estaria forte como um rapaz. O seu caracter é bom, liberal desde a medula
dos ossos, e é sargento da Guarda Nacional.

A sua familia compõe-se de Brigida, sua esposa, e uma joven de 18 a 20
anos, chamada Antonia, fresca e louçã como as flores de maio e na qual
ele faz consistir toda a sua felicidade.

João está despedindo os oficiaes e aprendizes, dizendo-lhes:

—Vinde ás dez horas; já sabeis que ámanhã é dia de Santo Antonio, e que
não se trabalha.

—Porém, mestre—observou um—a obra que ha oito dias encomendaram tem de se
entregar na segunda feira.

—Nesse caso, trabalharemos no domingo até ás tres horas da tarde. No dia
de Santo Antonio não se préga um prego em minha casa; é o dia do santo
do nome de minha filha, e tanto basta. Ás dez horas aqui vos espero para
o baile: não esqueçaes as guitarras; até eu hei-de bailar... É Santo
Antonio quem vae presidir á festa. Minha filha poz-lhe no altar o docel
de veludo, que me custou cerca de dez libras, e se lhe acenderão pelo
menos quarenta luzes. Ide ver o altar.

Todos ficaram admirados do bom gosto que presidiu ao adorno do altar, e,
pensando já no divertimento que iam ter, sairam alegres, esfregando as
mãos de contentes.

Quando o mestre ficou só, avistou Julião, que brincava com o filhinho, e,
dirigindo-se a ele, disse-lhe:

—Boas noites, visinho.

—Boas noites, sr. João—respondeu Julião.



CAPITULO II

Devoção e... vinho


O pequenito parece que se vae saindo.

—É verdade, sr. João—respondeu Julião. Depois de guardarem alguns
momentos de silencio, disse Julião:

—Porque não se senta, sr. João?

—Com muito gosto—respondeu este, sentando-se num banco ao lado de Julião,
e acrescentando: Como vamos com respeito a trabalho?

—Tenho mais do que o que se pode fazer. Acabo de tomar uma encomenda de
caldeirões para um regimento de artilheria, e trabalhamos sem cessar,
graças a Deus.

—Pois eu tambem tenho muito que fazer. Alem do trabalho da casa, ainda
tenho oito obras de fóra.

—Eu—continuou Julião—vou começar a fazer serão de ámanhã em deante.

—Como assim?—perguntou o carpinteiro—vae trabalhar ámanhã, que é dia de
Santo Antonio?

—E porque não? Ámanhã, no meu entender, é um dia como os outros.

—Certamente—replicou o sr. João.—Olhe, eu não sou lá muito amigo dos
santos; mas no dia de Santo Antonio não consinto que em minha casa se
prégue um prego. É santo a quem quero muito, porque é o advogado da minha
filha. É verdade que eu devia trabalhar ámanhã, porque na segunda feira
tenho de entregar umas travessas! Mas, dia por dia, prefiro trabalhar no
domingo.

—Trabalhar ao domingo é coisa que eu não farei, porque Deus assim o manda
e é preciso obedecer-Lhe.

Neste momento, Dôres, Brigida e Antonia assomaram á porta das suas
respectivas habitações, cumprimentando-se ao mesmo tempo.

Dôres pegou no menino, que estava ao colo do marido, e dirigiu-se para
a carpinteria, a cuja porta estava a sr.ª Brigida acenando-lhe para que
fosse ter com ela.

Deixemos os dois homens continuar na sua conversação e escutemos o que
dizem as duas mulheres.

—Que me quer, sr.ª Brigida?—disse Dôres ao chegar.

—Que nos deixes ver o teu filho.

—Pois está bem gorducho—disse com orgulho Dôres, apresentando-lhe o
menino.

—Oh! está lindo como os amores!—insistiu Brigida, tomando o menino nos
braços, e acrescentando:—Ah! que se o seu avô o visse!...

—Por fim—interrompeu a mãe de Antonia—tu foste feliz, porque perdeste um
pae muito bom mas encontraste um marido tão bom como ele.

—Isso é verdade; não tenho motivos senão para dizer bem do meu Julião.

—Deve querer muito ao filhinho, não é verdade?—perguntou Antonia.

—É cego por ele—respondeu Dôres.

—É natural—acrescentou a sr.ª Brigida—Como é o primeiro e está tão
lindo... Santo Antonio o abençôe.

—Senhora Brigida—respondeu Dôres, pegando no menino,—abençoando-o Deus, é
quanto basta.

—Filha, e os santos tambem, e porque não?

—É que—disse a filha do carpinteiro—Dôres tem presente o rifão que diz:
_O que Deus não quer, santos não podem_; não é verdade?

—Pois olhe—disse Brigida,—eu tenho muita fé em Santo Antonio, porque
é um santo de muita virtude, ou ele não fosse chamado _Advogado dos
impossiveis_. Sem ir mais longe, outro dia perdi uma nota do banco de
100 pesetas; imediatamente acendi uma véla a Santo Antonio que tinha na
sala, rezei-lhe um Padre Nosso, e em seguida, remexendo bem na comoda,
no terceiro gavetão, onde eu não costumo guardar dinheiro, encontrei a
nota; desde então não ha de faltar ao santo, todos os dias, uma lamparina
acesa. Já vês, pois, que...

—Pois eu não vejo nisso outra coisa senão que com o andar do tempo
perderá realmente as 100 pesetas, gastando-as em azeite com o santo.
Demais, se, em logar de haver mal gasto o tempo em rezar e acender luzes
ao santo, tivesse remexido bem a comoda, teria achado o seu dinheiro,
pois que não estava perdido; se em vez de o ter metido na comoda, o
tivesse deixado cair na rua, veria como Santo Antonio não lho traria a
casa.

—Filha, és muito incredula!

—De modo nenhum, senhora Brigida, eu creio...

—Em quem crês? Porém não é isso; o que eu pergunto é: Qual é o Cristo da
tua devoção? É o Cristo do Prado, da Fé, o Cristo do Perdão, ou, emfim,
qualquer dos muitos outros Cristos?

—A nenhum desses, porque não conheço mais do que o Cristo, Filho de Deus,
que está nos céus.

Neste momento foi interrompida a conversa, porque lhes chamou a atenção
um tropel de gente que vinha rua acima. No meio da multidão, vinham dez
ou doze rapazes com guitarras e bandurras, e na frente deles um rancho de
mulheres, jovens tambem, e vestidas ao uso do povo, _de saias redondas_,
como eles dizem, porém com luxo. Ao chegar á oficina do carpinteiro,
deixaram de tocar, pararam, e o que fazia de director disse:

Vá; siga a _seguidilla_.

As guitarras deram a entrada, e uma mulher cantou:

    Ó Antonio glorioso
    Livrae-nos de todo o mal,
    Alcançando-nos a vitoria
    De toda a força infernal.

—Senhores, lá para dentro toda a gente—disse o sr. João;—porém onde estão
essas mulheres?... Brigida... Antonia...

—Ah! mãe!—exclamou Antonia,—vão entrar, e eu não queria que me vissem
emquanto não estivesse com o vestido novo.

—Sim?—respondeu a mãe,—pois verás como tudo se arranja!

Brigida dirigiu-se para a porta, e chegou ainda a tempo para dizer ao
marido, que vinha á frente dos convidados:

—Alto lá! não é permitida a entrada até que o santo, o presidente da
festa, esteja devidamente preparado.

—Muito bem, exclamaram a uma voz todas as pessoas presentes.

A mãe de Antonia entrou, fechando a porta sobre si, e momentos depois,
quando a filha já estava com o seu vestido novo, veiu de novo á porta,
dizendo:

—Podem entrar.

Homens e mulheres penetraram na sala, e, depois de trocados os primeiros
cumprimentos, cada um procurou logar, ficando algumas mulheres
ajoelhadas deante do altar, rezando ao santo.

—Senhores—exclamou João,—emquanto se prepara a ceia, entretenham-se como
puderem. Cantem e bailem umas _seguidillas_.

    Oh’ Santo Antonio,
    Meu amante coração,
    Quer na vida, quer na morte,
    Sêde a nossa salvação.

—Bravo! bravo!... venha de lá outra, disseram alguns.

As guitarras continuaram tocando, e outro rapaz cantou:

    Ó Antonio glorioso,
    A ti chego confiado,
    Que nas minhas aflições
    Hei de ser remediado.

—Agora, para poder continuar—disse o que tinha cantado—é preciso que
venha vinho para molhar as guelas.

—É isso mesmo—exclamou entusiasmado o mestre carpinteiro—tem razão o
rapaz. _Vinho tinto_, sim, porque sem ele não se pode tocar, nem cantar,
nem bailar. O vinho é preciso para tudo, e tanto que sem ele os padres
não podem dizer a missa. Bem se expressou aquele que disse: «Onde não
ha vinho não ha talento». Brigida,—acrescentou ele, dirigindo-se a sua
mulher—enche um cangirão com vinho e tral-o cá.

Deixemos agora que se divirtam e festejem o santo portuguez a seu modo.
Entretanto vamos visitar o nosso amigo Julião e sua familia.

O nosso amigo, acompanhado de sua mãe, está sentado á mesa, á espera que
lhe sirvam a ceia. O pequenito Paulo dorme no seu berço, e Dôres vem da
cosinha com a comida, que coloca em cima da mesa.

Á sala, onde estão, chega o ruido que vae na casa de seu visinho João.

—Demos graças ao Senhor—disse Julião, depois que Dôres se sentou á mesa.

Todos inclinaram a cabeça, e Julião dirigiu a Deus a seguinte oração:

—Oh! nosso Deus! Damos-Te graças pelos bens que nos dispensas, dando-nos
saude, trabalho e sustento; abençôa a minha familia, e o meu filhinho,
abençôa a oficina, e perdôa a esses pobres cegos ali do lado que Te estão
ofendendo; lembra-te dos pobres e dos enfermos; o que tudo Te pedimos
pelos merecimentos de Jesus Cristo, Nosso Salvador. Amen.

—Conte-nos agora—disse Julião, dirigindo-se a sua mãe,—o que vocemecê leu
hoje na sua Biblia.

—Cheguei ao versiculo 25 do cap. 11 do Evangelho segundo S. Mateus,
onde Jesus diz: «Graças Te dou a Ti, Pae, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas coisas aos sabios e entendidos e as revelaste
aos pequeninos». Meditei sobre isto, e que grande verdade é que Deus
nos revelou coisas tão importantes que as podemos sentir mas que nunca
poderemos expressar!

—Oh! sim—exclamou Julião.—Deus ensina-nos diariamente coisas muito boas,
não é verdade, Dôres?

—Oh! sim—respondeu ela,—a mim tem-me ensinado, por Sua misericordia,
muitas coisas; a principal tem sido mostrar-me que sem Jesus Cristo
eu era uma pecadora perdida, e que, graças a Ele, agora sou salva;
antigamente eu andava fazendo obras que julgava meritorias, taes como
dar dinheiro para sufragios, jejuar, ouvir missa, etc.

—E eu—disse a mãe de Julião—que me fiava nos conselhos dos confessores,
e mandava dizer missas, acender velas aos santos; que comprava a _Bula
da Santa Cruzada_, para poder comer carne, e a _Bula dos Defuntos_! E a
respeito das _indulgencias_? Se algum valor elas tivessem, eu ganharia
mais indulgencias do que cabelos tenho na cabeça! Quando penso no erro em
que vivi, estremeço de medo!

—Pois eu—disse Dôres—ainda me lembro de que não havia dia nenhum, em que
fosse ao mercado fazer as compras, que não lançasse dinheiro na caixinha
das almas!

—Oh! terrivel conta—disse Julião,—teem que dar a Deus aqueles que se
esforçam por manter no erro a gente simples e credula.

—E quanta gente vive por esse mundo enganada!—exclamou a mãe de Julião.

—Eu—interrompeu Dôres—sinto-o por todas as pessoas com quem trato, porém
sinto-o de preferencia por Antonia, á qual desejava tornar conhecida a
verdade. Tanto ela como sua familia são muito boas pessoas; desde creança
quero-lhe como a irmã.

—Sim—disse Josefa;—no emtanto repara como passam a noite, cantando e
bailando deante dum altar. O erro dos romanos vae tão longe que lhes faz
colocar sob o mesmo teto Deus e o diabo ao mesmo tempo. Bailando adoram,
e adorando bailam.

—E o peor é—acrescentou Julião—que não levam geitos de se emendarem.
A inobservancia do domingo é coisa muito má, e eu vejo com grande
sentimento que o nosso visinho prefere trabalhar no dia de domingo,
comtanto que guarde o dia de Santo Antonio; quer dizer: profana o dia
do Senhor para guardar o dia dum santo imaginario. A regeneração das
classes trabalhadoras deve principiar pela observancia do domingo; para
elas o dia do repouso é uma necessidade para se refazerem as forças
fisicas que se gastam nos outros seis dias. Eu por mim mesmo tenho
observado que aqueles que trabalham os seis dias e não descançam ao
setimo gastam-se mais depressa, e gozam menos saude, do que aqueles que
guardam o dia do Senhor: e isto sem falar do concernente á saude da alma.

Neste momento, tendo acabado já de cear, chamaram á porta que dava para o
pateo. Julião levantou-se, indo abril-a, e Antonia, acompanhada de outra
joven, apresentou-se na sala, onde ainda estavam sentadas á mesa Dôres e
Josefa.

—Deus lhes dê boas noites—disseram ambas ao entrar, e a filha do
carpinteiro acrescentou:

—Venho da parte de meu pae dizer-lhes que teria muito prazer se viessem
cear comnosco.

Julião e sua mulher acompanharam a filha do carpinteiro e a sua amiga a
casa.

—Mestre, mestre—exclamou o carpinteiro ao ver entrar Julião,—venha cá
para o meu lado e sirva-se dalguma coisa.

—Muito obrigado, sr. João—respondeu Julião,—porém permita-me que não me
sirva de nada; sua filha é testemunha de que nos viu sentados á mesa.

—Bem, não me importa—disse o carpinteiro,—hoje ha em minha casa carta
branca para que cada qual faça o que quizer em honra de Santo Antonio;
que todos se divirtam e que ninguem esteja triste.

A ceia continuou sem nenhum incidente, até que á sobremesa o sr. João
disse:

—Agora os brindes; que cada qual brinde por quem quizer.

Julião estava sentado na cadeira, pensando no triste estado daquela
gente. Dôres falava com Antonia e outras raparigas da sua edade.

—Brindo—exclamou o sr. João—por Santo Antonio, que é o santo de minha
filha, pela liberdade, e para que fiquem confundidos os inimigos da ordem.

Ao brinde do dono da casa corresponderam os convidados, bebendo cada qual
o seu copo. A este brinde sucederam-se outros.

Um dos assistentes, joven ainda, oficial de confeiteiro, observou que
Julião não tomava parte nos brindes, e, fazendo convergir sobre ele as
atenções de todos, disse-lhe:

—Então vocemecê porque não bebe? Não gosta de vinho?

—Não bebo—respondeu Julião—porque acabo de cear em minha casa, e eu não
costumo beber senão ás comidas.

—Ora—disse o confeiteiro com modos impertinentes—isso será muito bom para
a saude, porém eu creio que o vinho é sempre bom.

—Cada um tem as suas idéas, e eu tenho as minhas.

—Pois olhe: o que a mim me parece é que vocemecê tem cara de padre, e que
se não brinda é porque não é homem.

—Ai!—exclamou Julião com toda a calma,—por aquilo que eu brindaria seria
para que Deus lhe desse mais juizo e menos palavriado.

Uma gargalhada geral ressoou em toda a sala ao ouvirem as palavras de
Julião. Este, conhecendo, pelo estado dos convidados, que aquilo não
era logar proprio nem para ele nem para sua esposa, deixou a sala,
despedindo-se cortezmente de todos.

O baile prolongou-se até á uma hora da madrugada; não havia cabeça que
estivesse em si. O sr. João, numa linguagem ininteligivel, disse:

—Senhores... ámanhã... disse... ámanhã... será dia. Proponho que vamos á
horta, ao campo... como ha que madrugar... é preciso dormir... com que
cada mocho a seu souto... tenho dito.

—Bem, bem!—exclamaram todos com alegria.

—Ordem, companheiros!—gritou com voz um pouco rouca o confeiteiro;—antes
de nos separarmos venha mais um gole e dancemos o _galope_ infernal.

—Sim, sim, disseram alguns, vamos ao galope infernal.

Encheram-se os copos e esvasiaram-se, e as guitarras tocaram
desafinadamente. Alguns pares começaram a bailar... Bailar? Melhor
diriamos que aquilo não era baile, mas sim dança de furias; aquela massa
de gente empurrava-se e pisava-se, indo dum lado para o outro. Por fim
sucedeu o que era de esperar. O confeiteiro e a sua companheira cairam
no chão e aos outros aconteceu o mesmo, por estarem com a cabeça toldada
pelo vinho.

Que scena! homens e mulheres, em revolta confusão, rolando pelo chão;
o calor sufocava! as vozes, no meio das quaes se ouviam alguns ais,
ensurdeciam, e tudo isto diante do santo da sua devoção! Por fim foram
levantando-se conforme poderam, os _devotos_ do santo, á excepção duma
joven que ficou estendida no chão, por efeito duma pancada violentissima
que havia recebido. Então é que foram os lamentos e os ais; uns resavam
ao santo, outros abriam roda, e abanavam com os lenços, e finalmente
Antonia correu ao seu quarto por um frasquinho de essencia que, aplicado
ao nariz da pobre menina, fêl-a voltar a si.

Finalmente, depois do susto que tiveram, o que é muito natural, os
convidados sairam para a rua, ficando só a familia da casa. Antonia
entrou no seu quarto chorando, porque na ocasião do baile tinha caido, e
na queda tinha partido um dos brincos, perdendo tres diamantes que tinha
mandado engastar nele.

Que dirão seus paes? Encontrará Santo Antonio os diamantes?



CAPITULO III

No dia de Santo Antonio


Amanheceu o dia 13 de Junho do ano de 18.. puro e sereno. Dois
estabelecimentos dos muitos que ha na Rua dos Embaixadores estavam ainda
fechados ás cinco e meia da manhã, e dois grupos bem distintos um do
outro estavam batendo a cada uma das respectivas portas.

Estes dois estabelecimentos eram: a oficina do sr. João e a oficina
do nosso amigo Julião. Á porta deste estão quatro homens e dois
rapazes vestidos com a roupa do trabalho, com um pequeno saco na mão,
que continha, certamente, o almoço, preparados para se entregarem ao
trabalho, apezar de ser o dia de Santo Antonio.

A porta de Julião abriu-se, e aqueles que estavam á espera entraram.

O grupo que aguardava que o sr. João ou alguem da sua casa désse sinaes
de vida compunha-se de jovens dum e doutro sexo, com guitarras e
bandurras, vestidos com a sua roupa domingueira.

Depois duns minutos de espera, tambem foi aberta a porta, aparecendo o
sr. João, que disse:

—Bons dias, senhores.

—Bons dias, sr. João.

—Já veiu o carro?

—Sim, já está á porta.

—Nesse caso, que vá um rapaz buscar a canastra.

O sr. João transmitiu a ordem, e um dos moços do carro entrou, voltando
depois com uma canastra á cabeça em que iam as viandas e no cimo uma
bateria de garrafas de vinho, o que foi saudado pelo grupo quando o
viram, com gritos de entusiasmo, entre os quaes se distinguia a voz dum
deles, que disse:

—Viva Santo Antonio, e as Antonias e todos os que estamos aqui reunidos!
Sobretudo viva a festa e o prazer!

A conversa interrompeu-se porque o sr. João apareceu na loja, e logo
em seguida sua mulher e filha. Ao verem esta, um—_viva a filha do
mestre!_—ressoou na oficina.

Quando estavam subindo para a carruagem, chegou um pedreiro á porta da
loja do mestre carpinteiro, dizendo-lhe:

—O senhor vae passar o dia ao campo?

—Sim; que queres?

—Venho do mando do mestre de obras para ver quantos caixilhos posso levar.

—Dize-lhe que hoje não levas nenhum; é dia de Santo Antonio e não
trabalho.

—Porém, veja bem, mestre, que um partido de operarios não pode trabalhar
se se não levar isso para a obra.

—Pois que vão para o campo assim como eu.

O rapaz retirou-se. Entretanto Brigida e Antonia falavam com Julião
e Dôres, á porta da sua oficina. Instavam com eles para que os
acompanhassem, porém em vão.

—Nesse caso, se teimam em ficar—disse Brigida,—não deixem de olhar cá
pela casa.

—Esteja descançada—disse Julião,—que nós olharemos pela sua casa.

Brigida despediu-se, e a sua filha, aproximando-se de Dôres, disse-lhe ao
ouvido:

—Ai, Dôres! mau dia de Santo Antonio vamos ter. A vespera foi má e o dia
não será melhor! Depois te contarei tudo.

Como passaram o dia as personagens da nossa historia?

Vamos dizer-vol-o em poucas palavras, tanto quanto nos seja possivel.

Julião passou o dia trabalhando, e tanto ele como sua familia e oficiaes
gozaram perfeita tranquilidade.

Quanto ao mestre carpinteiro, vamos encontral-o com sua familia e amigos
no campo pelas cinco horas da tarde.

Todos se acham alegres, como é natural, quando se vae passar o dia ao
campo, e especialmente á hora de comer.

—Vamos—disse neste momento mestre João,—trinchemos estas aves, como dizem
os ricos.

—Quem fala agora aqui de ricos?—Vivam os pobres!

—Viva a liberdade!—gritou João.

—Viva!!!

—Olha—perguntou o confeiteiro—para que queres tu a liberdade?

—Homem... eu... para... que sim... porque meu avô foi muito liberal... e
odiava os padres, a religião e os ricos.

—Que não se fale aqui de politica—disse uma mulher.

—Sim, sim, para fóra daqui a politica; falemos antes de religião, o que
está na ordem do dia desde que chegaram aqui os protestantes. Falemos,
pois, de religião, como falou hontem á noite o mestre Julião, que tem
cara de padre.

—Pois falemos de religião—disse uma das pessoas presentes; e,
dirigindo-se ao confeiteiro, disse-lhe: Tu que és? catolico apostolico
romano, ou judeu?

—Homem—respondeu ele—eu sou hespanhol.

Uma gargalhada geral acolheu esta resposta.

—De que se riem vocês?—perguntou ele—Eu nasci em Madrid, portanto sou
hespanhol.

—Isso nada tem que ver. És cristão?

—Sim.

—Catolico apostolico romano?

—Sim.

—Nesse caso crês no Papa.

—Eu não creio no Papa.

—E nos padres?

—Tão pouco.

—E na Virgem?

—Sim.

—Pois então não és católico apostolico romano, porque não crês no Papa.

—Lembra-te de que ele é infalivel.

—Sim, e exactamente agora, porque é infalivel, perdeu ele o poder
temporal, e contra ele se levantam os proprios catolicos. Ha pouco li num
jornal, de que sou assinante, que o padre Jacinto, esse padre ou frade
francez que tanto tem dado que falar, vae casar-se, e o mesmo vae fazer
um sabio alemão que se chama... não me posso recordar agora do seu nome;
o certo é que eles dizem que os padres devem ser casados.

—Isso é que é uma grande verdade—disse outra pessoa presente,—os padres
devem ser casados; assim não se presenciariam certos escandalos...

—Mas é que o Papa—disse outro—é muito provavel que saia de Roma, apezar
de toda a sua infa...li...bi...lidade.

—Em vista de tanta trapalhada que ha na egreja e tanta
palhaçada—exclamou o sr. João—eu não sou nada; o que me ensinaram meus
paes isso ensino eu a minha filha; porém eu... creio que ha um Ser
supremo, mas que não intervem em coisa alguma deste mundo; faço o bem que
posso, respeito os santos, e não me meto com ninguem; e com isto tenho a
certeza de ganhar o céu, se é que o ha.

—Isso sim—exclamaram alguns—isso é que é ser cristão.

Assim continuou a conversação, expondo cada qual as suas idéas religiosas.

Segundo eles, fazer o bem que se pode fazer, crer num _Ser_ que é antes
um _não ser_, visto que em nada intervem, e respeitar os santos, eis o
que é preciso para uma pessoa ser cristã e salvar-se.

Que cegueira! E quem tem a culpa de tanto erro? Não hesitemos em o
declarar; a culpa tem-na em sua maior parte um clero tão ignorante como
fanatico, porém sobretudo tão egoista, que não ergue a voz senão quando
se vê ofendido nos seus interesses materiaes.

Ha milhares e milhares de pessoas como o mestre João, excelentes paes de
familia, homens honrados segundo o mundo, porém em questões religiosas,
já por vezes o temos observado, com o facto de fazerem o bem que podem
dão-se por satisfeitos. Erro! lamentavel erro! Aqueles que em tal coisa
crêem que escutem o que disse Jesus ao doutor da lei.

«Mestre—disse um doutor da lei a Jesus—o que é preciso que eu faça para
alcançar a vida eterna? E Jesus lhe disse: O que está escrito na lei?
Como lês tu? E, respondendo o doutor, disse: Amarás o Senhor teu Deus,
de todo o teu coração, com todas as forças do teu entendimento, e o teu
proximo como a ti mesmo.—Bem falaste (respondeu Jesus); _faze isso e
viverás_».

_Faze isso e viverás_; não basta fazer uma parte, é preciso fazer tudo
para a gente se salvar. Porém agora surge esta pergunta: Pode o homem
fazer tudo? Não. Para ele cumprir a lei, ganhar a salvação da sua alma,
é impossivel; porém temos um Substituto que fez tudo; foi-nos dado _um_
que não deixou nada por fazer. Esse _um_ é Jesus Cristo, e só por Ele
temos redenção, justificação e santificação. Sim, pela fé em Jesus temos
assegurada a salvação da nossa alma. Sem a fé em Jesus _nada_ temos.

Porém voltemos á reunião.

É já quasi noite, e os amigos do mestre João, este e sua familia,
preparam-se para irem para suas casas. Ao subirem para o carro, o
boleeiro ria como um perdido na almofada, e por mais que fizessem para o
dissuadirem disso não poderam.

O carro partiu, e todos iam alegres e contentes.

O confeiteiro começou a sentir-se incomodado com o movimento do carro, e
principiou a gritar:

—Parem! parem! he! he! sinto-me incomodado: quero...

Inclinou-se para um lado, e, sem que ninguem podesse evital-o, caiu do
carro abaixo. O cocheiro fez um supremo esforço para parar os cavalos,
porém em vão; não o pôde fazer senão depois de terem dado alguns passos.

Toda a gente, soltando gritos de horror, desceu do carro, e foi logo para
junto do confeiteiro, que jazia estendido no chão, banhado em sangue,
sendo necessario transportal-o para a casa mais proxima.

Houve uma pessoa que, apezar da muita devoção que tinha a Santo Antonio,
não pôde deixar de exclamar:

—Se Santo Antonio não tivesse vindo ao mundo, nem tivesse amanhecido o
seu dia, não se teria perdido com isso coisa nenhuma. Ao passo que outro
acrescentou: «Melhor nos teria sido passar o dia com Julião, trabalhando
na oficina, e ganhando para nós e nossas familias».



CAPITULO IV

Consequencias


São decorridos quinze dias desde o dia de Santo Antonio até hoje. Em casa
do mestre João deve ter havido alguma coisa de extraordinario. Reina lá
uma agitação fóra do costume; as mulheres andam apressadas dum para outro
lado e o rosto de mais duma delas está humedecido pelo pranto. Que terá
sucedido?

Consequencias duma vespera e dum dia de Santo Antonio.

Quer pela perda dos diamantes, quer pelo susto que recebeu com a queda do
moço confeiteiro, Antonia veiu para casa doente.

No dia seguinte manifestou-se-lhe uma febre tão intensa que o medico
declarou que não havia tempo a perder, pois via-a ameaçada duma congestão
cerebral. Acrescentou que o caso não podia ser mais grave, e que,
portanto, seria conveniente que se preparasse espiritualmente.

A pessoa que recebeu esta noticia foi a Dôres.

A mãe de Antonia estava como fóra de si; o pae chorava como uma creança,
e para dizer tudo numa palavra—todo e qualquer teria pena daquela
familia, tão triste agora como alegre ainda não havia muitos dias.

Dôres transmitiu a noticia a uma tia de Antonia, a qual disse que não a
comunicava aos paes dela. Por fim, depois de muita hesitação, resolveram
dizel-o a um sacerdote que vivia na mesma casa. Chamava-se Francisco,
era ainda novo, um tanto instruido e, apezar de fanatico nas suas idéas
religiosas, gozava de bastantes simpatias entre os seus freguezes.

As mulheres despediram-se do padre Francisco, e dez minutos depois um
aprendiz de Julião entrou na oficina do carpinteiro, dizendo:

—Sr. João, o meu mestre pede-lhe que vá á loja dele, pois que precisa
muito de falar-lhe.

O carpinteiro seguiu o rapaz, e, logo que avistou Julião, este disse-lhe:

—Boas tardes, sr. João. Como vae Antonia?

—Mal, muito mal. Filha da minha alma!

—Senhor João—disse Julião muito comovido—não se aflija. Emquanto um
doente tem vida, ainda ha esperança. Venha comigo cá para dentro, que
temos que falar.

Quando chegaram á sala e se sentaram, Julião deixou que o seu amigo se
tranquilisasse um pouco, e chamou por sua mãe para que trouxesse um copo
de agua.

—Então, sr. João!—disse a senhora Josefa, apresentando-lhe o copo com a
agua—não se entregue á dôr dessa maneira, tenha confiança em Deus.

—Deus, Deus—exclamou o carpinteiro,—Deus não ouve, Deus está...

A senhora Josefa ia a responder, porém um gesto de Julião indicou-lhe que
saisse, e assim o fez, dizendo:

—Jesus está em toda a parte.

—Senhor João—disse Julião quando sua mãe saiu,—ha sucessos na vida
mediante os quaes é posta á prova a alma do homem. Quando um pae sofre
o que vocemecê está sofrendo, e crê e confia em Deus, não se desespera
assim.

—Não sei, Julião, o que teem as suas palavras, que tanto me consolam;
porém, não, não, minha filha não deve morrer tão joven... eu proprio a
disputarei a Deus.

—Quer disputal-a a Deus?

—Sim, como?

—Pela oração.

—Eu não sei rezar, nem quero; o que quero é minha filha.

—Tão pouco eu quero que reze; o que eu quero é que se volte para o Senhor
com humildade, dizendo: «Senhor, não te deixarei se não me abençoares;
ofereço-Te minha filha, faze dela o que fôr da Tua vontade; sómente Te
rogo que ma deixes, ou que me dês forças para sofre este golpe no caso de
ma levares; tem piedade de mim, em nome de Jesus».

—Eu não sei dizer isso; eu não sei orar.

—Não? Pois então diga ao Senhor: «Senhor, ensina-me a orar...» Jesus
disse: «Tudo o que pedirdes em oração, tendo fé, recebereis».

Estavam nisto quando bateram de mansinho á porta da sala.

Julião abriu, e o P.ᵉ Francisco entrou, saudando João e Julião, que por
sua vez corresponderam á saudação.

—Pois, senhores, deixo-os sósinhos—disse Julião.

—Não, não, de modo nenhum; deve até ficar—respondeu o sacerdote,
acrescentando:—Vejamos, sabe já o sucedido, sr. Julião?

—Não—respondeu Julião—eu tratava de o consolar, exortando-o a que pozesse
a sua confiança em Deus, infinitamente bom.

Todos tomaram assento, e o P.ᵉ Francisco disse:

—Sim, é certo que Deus é bom, porém quer que da nossa parte façamos
alguma coisa.

—E que devemos fazer nós?—perguntou Julião.

—Oh!—exclamou o sacerdote—a penitencia! Esse precioso dom que nos
concedeu a misericordia dum Deus Salvador! Dom que, acompanhado da
poderosa intercessão da Bemdita Virgem e de toda a côrte celestial de
anjos, querubins e santos, nos abre infalivelmente as portas do céu, já
se vê, uma vez que haja a absolvição do sacerdote, apoz a confissão! Sim,
meu amigo, se receia alguma coisa por sua filha, deve, revestindo-se de
valor, dizer-lhe... que se confesse.

João ia a falar, quando o P.ᵉ Francisco o interrompeu, dizendo:

—Já sei o que me vae dizer. Dirá o que todos dizem, isto é, que a
confissão feita por um enfermo no leito da morte é um golpe terrivel
para ele. Mas porquê? Quando o sacerdote, vestido com os seus habitos
talares, e com a autoridade que Deus e a santa egreja lhe dão, se
aproxima da cabeceira do doente para o advertir de que se acha ás portas
da eternidade, e de que o espera talvez a condenação eterna, a sua
presença e palavras actuam de tal maneira no espirito do doente que lhe
dão novas forças; e, no momento de se confessar para poder receber a
Jesus sacramentado, opera-se nele uma tal mudança que se pode atribuir
á certeza, que é dada ao enfermo, da absolvição dos seus pecados dada
aqui na terra pelo sacerdote romano e ratificada no céu. Então pode
o moribundo entregar-se com inteira confiança á protecção da mãe dos
pecadores, e morrer em estado de graça e em perfeita e completa paz.

—Eu pergunto uma coisa—disse Julião.—O sacerdote não diz nada de Jesus
aos enfermos?

—Sim, diz; porém o nome de Maria Santissima é mais doce, induz mais
facilmente ao arrependimento.

—Não estou de modo nenhum conforme com isso, porque, afinal, quem operou
a salvação dos pecadores, Maria ou Jesus?

—A salvação é obra dos dois, porque, se Jesus morreu, foi concebido no
ventre da Virgem e amamentado aos seus peitos; e, ainda que não fosse por
isso, pelo facto de ela ser mãe de Jesus, Este ha de declinar nela todo o
poder. Sem Maria não podia existir Jesus.

—Porém essas doutrinas são hereticas; onde encontra o senhor uma só
palavra na Biblia que autorize taes opiniões?

—Mas se a Biblia o não diz dil-o a egreja e os padres.

—A palavra de Deus tem mais autoridade do que padre algum, pois que o
melhor deles é falivel.

—Porém de que se trata?—perguntou mestre João.

—Simplesmente—respondeu o sacerdote—dizer-lhe que sua filha está
perigosamente doente, e que é preciso que se confesse.

—Filha do meu coração!—exclamou o carpinteiro, louco pela dôr.—Minha
pobre filha! Com que então morre?..

Houve um momento de silencio, durante o qual o sacerdote e mestre Julião
encararam com profunda simpatia o aflito pae.



CAPITULO V

Tlim... tlim... tlim... tlim...


No dia seguinte ao dos acontecimentos narrados no capitulo antecedente,
estava tudo preparado para se levar o _Viatico_ a Antonia.

A opinião do padre Francisco prevaleceu, e ele mesmo confessou a filha
do carpinteiro. Ao anoitecer já estavam todos os amigos de mestre João e
grande numero de visinhos esperando que soasse a hora marcada para irem á
egreja.

Entre os visinhos faltava um, era mestre Julião.

Deixemol-os no caminho da egreja, e ouçamos o seguinte dialogo entre duas
visinhas:

—É estranho que a mulher de mestre Julião não esteja neste momento em
casa de Antonia, visitando-a tanto a miudo como a visitava.

—Olhe, sr.ª Tomazia, segundo o que tenho ouvido dizer, ela e o marido são
protestantes, e por isso... como vão á...

—Protestantes! Vocemecê está louca, sr.ª Joana! Pois então não conheço eu
Dôres desde pequenina, e não foi baptizada em S. Caetano?

—Pois filha, o que lhe digo e repito é que mestre Julião é protestante.

—Pois está muito enganada. Os protestantes não são hespanhoes nem estão
baptizados.

—Então que são eles?

—São uns estrangeiros que vieram de longe, da mourama, mandados de lá
para conquistarem a Hespanha.

—Pois a mim disseram-me em segredo que Julião era protestante.

—Não, esse está baptizado e é hespanhol; e ha pouco entrou em sua casa o
padre Francisco; já vê que, se ele fosse protestante, não entraria ali
aquele sacerdote.

—Pois é exactamente por isso que eu o sei. O padre Francisco soube que
mestre Julião estava aconselhando o pae de Antonia a que não deixasse
confessar a filha, e foi lá a casa para o trazer comsigo.

—É verdade! Isso é um misterio.

—Misterio não; ha quem diga...

Neste momento ouviu-se o _tlim... tlim... tlim... tlim..._ da campainha
anunciando a chegada do _Viatico_.

Imediatamente em casa da enferma e nas casas visinhas se estabeleceu
uma grande confusão. Os moradores dos andares superiores desceram á
porta da rua, uns trazendo luzes e outros com brazas nas pás, em que
queimavam alfazema e incenso. O som da campainha ouvia-se cada vez mais
distintamente, e os que vinham na frente com tochas acesas entraram no
portal. Toda a gente se poz de joelhos. O sacerdote passou pelo meio,
murmurando palavras que não se entendiam, e entrou pela porta que dava
para as trazeiras da carpinteria. A porta de Julião, de que já falámos, e
que ficava em frente da de mestre João, permaneceu fechada, causando este
facto grande surpreza.

Emquanto o sacerdote estava lá dentro, alguns dos que tinham vindo
acompanhar processionalmente o _Viatico_ ficaram no portal, porque não
cabiam no quarto da enferma, e, para não perderem o tempo, começaram a
fumar e a conversar muito tranquilamente.

—Ouça lá, visinha—disse um individuo a uma mulher que estava com um
candieiro na mão.—Quem mora nessa casa cuja porta está fechada e que não
teve uma triste vela para alumiar o Senhor quando passou?

—Ali—respondeu a mulher, apontando para a porta que estava fechada—é a
oficina de mestre Julião. Não são muito amigos destas coisas, nem ele nem
sua familia; são...

—Protestantes?

—Exactamente.

—Oh! com mil bombas! Ouve tu—dirigindo-se a outro—; naquela casa mora um
protestante: deveriamos chamal-o e obrigal-o á força a abrir a porta e
trazer uma luz.

—Não, deixae-vos de loucuras, cada um é livre de pensar como
quizer—respondeu ele.

—Bom, bom—disse um homem já de edade,—por essa tolerancia da mocidade em
admitir estrangeiros é que a Hespanha está assim.

—Não—respondeu uma visinha,—ámanhã mesmo o comunicaremos ao sr. padre
Francisco, pedindo-lhe que diga ao senhorio que despeça aquelas aves de
mau agouro.

Neste ponto terminou a conversa, pois que tinha tambem terminado a
cerimonia da administração do _Viatico_ á enferma. Pôz-se tudo na mesma
ordem; tornou a soar a campainha, e o _Deus inventado pela Egreja romana_
saiu de casa, e lá foi novamente nas mãos dum simples mortal.

Vejamos entretanto o que estava fazendo aquela familia que conservou a
porta sempre fechada, e que nem uma _triste vela_ acendeu á passagem do
viático.

Dôres, Josefa e Julião estavam sentados na sala, tendo este ultimo deante
de si um livro aberto.

—Que tristeza—disse Julião—me causa tudo o que se está passando na casa
de João! Que diferente é o que estão fazendo com Antonia daquilo que o
Senhor ordena na Sua Palavra! Leiamol-a e vejamos o que se deve fazer
com os enfermos. Na Epistola de S. Tiago, cap. V, vv. 14 e 15, lê-se o
seguinte: «Está entre vós algum enfermo? chame os presbiteros da egreja,
e estes façam oração sobre ele, ungindo-o em nome do Senhor; e a ORAÇÃO
DA FÉ salvará o enfermo, e o Senhor o aliviará; e, se _estiver em alguns
pecados_, ser-lhe-hão perdoados.» Taes são as instruções que temos na
Palavra de Deus, e portanto não devemos afastar-nos delas, desprezando-as.

Façamos «_a oração da fé_ que salvará o enfermo», pedindo a Deus por
nossa visinha a quem tanto estimamos; não que a nossa oração a salve, mas
sim porque é uma recomendação de Deus, e por meio da qual liberalisa a
Sua graça e concede os Seus dons. Porém é preciso fazer essa oração com
fé. Minha mãe e tu, Dôres, sentem-se com verdadeira fé, para pedir ao
Senhor por Antonia, crendo firmemente que o Senhor a aliviará?

—Sim, responderam elas resolutamente.

—Pois então oremos ao Senhor.—Pozeram-se todos de joelhos, e, depois duns
momentos de meditação profunda, ergueu-se a voz de Julião, pausada e
solene, dizendo:

—Oh! Senhor e nosso Pae! Ajoelhamo-nos deante de Ti, em nome de Jesus
Cristo, para Te suplicarmos que nos concedas uma benção especial. Senhor,
lemos na Tua Palavra que nos mandas que oremos pelos enfermos, prometendo
que «a oração da fé salvará o enfermo, e que Tu, Senhor, o aliviarás».
Dá-nos a fé necessaria para Te pedirmos por Antonia, nossa visinha. Tu,
oh! Deus, sabes todas as coisas, e conheces todos os corações. Sabes,
pois, a situação em que se encontra a nossa amiga e o estado do seu
coração. Ah! Senhor! Não permitas que, enganada por praticas vãs, que lhe
ensinaram, sua consciencia continue a estar adormecida, pois que nesse
caso qual será o seu despertar? Oh! bom Deus; aqui Te apresentamos a
promessa; agora, Senhor, atende ao que Te pedimos: Que levantes Antonia
do seu leito, e que a convertas a Ti, sarando-lhe deste modo o seu corpo
e a sua alma. Senhor, concede-nos isto, faze-nos ver o Teu poder, dá
consolação a seus paes, e restitue-lhes sua filha; mas, se fôr do Teu
agrado leval-a para Ti, salva a sua alma. Ouve-nos, Senhor; assim To
pedimos em nome, por amor e pelos merecimentos de Jesus Cristo, Teu
Filho. _Amen._

—_Amen_, repetiram as duas mulheres.

Quando se levantaram, Julião disse:

—Agora aguardemos a resposta do Senhor.

—Olha, Julião—disse Dôres,—vou ver como está Antonia, e volto já.

—Se te deixarem entrar..., observou Josefa.

—E porque não me hão de deixar entrar?

—Porque como nenhum de nós foi á porta quando passou o _Viatico_...

—Nesse caso—interrompeu Julião,—se te disserem alguma coisa que não te
agrade, volta imediatamente para casa.

Dôres saiu, e dentro em breves instantes eil-a em casa de mestre João.
Estranho contraste se apresentou então aos seus olhos! O altar de Santo
Antonio estava iluminado como na vespera do seu dia, e adornado de
flores; porém ás gargalhadas e ao ruido das guitarras havia sucedido o
pranto; ao forte sapatear da dança, o andar de mansinho nas pontas dos
pés; á atmosfera viciada pelo fumo dos cigarros a não menos viciada
atmosfera do fumo do incenso e da alfazema. Na presença do Santo tinha
sido a orgia, na presença do Santo as lagrimas e os soluços. E este,
impassivel deante das palavras grosseiras de então, continuava impassivel
agora á dôr e ao pranto de toda uma familia. Então ofereceram-lhe
canções, agora oferecem-lhe orações, e, se áquelas foi completamente
surdo e cego, a mesma surdez e cegueira manifesta em presença destas.
O mal principiou no dia do Santo, ou antes na vespera, e quando e como
acabará?

Estas ideias perpassam pelo espirito de Dôres, que pôde observar tambem
como, á sua entrada, algumas mulheres que estavam na sala cessaram de
falar e a encaravam com certa reserva.

—Boas noites—disse ela.

—Boas noites—responderam as pessoas que estavam.

—Posso ir ver Antonia?

As mulheres hesitaram; por fim uma disse:

—Pode ir.

Dôres entrou na alcova, e aproximou-se silenciosamente da cabeceira da
enferma, inclinando-se para a ver. Antonia abriu os olhos, e logo que
reconheceu que era Dôres disse-lhe com voz debil:

—És tu, Dôres?

—Sim, sou eu—respondeu ela,—como estás?

—Mal, muito mal; não sinto a cabeça.

—Pois nesse caso não fales.

—Não, não falarei; o cheiro da cera e do incenso entonteceram-me...
Porque não vieste antes?

—Deves saber, Antonia, que, ainda que não esteja a teu lado, lembro-me
de ti e oro a Deus por ti. Vou deixar-te. Pensa em Deus, minha amiga, e
lembra-te de que só Jesus Cristo é que pode salvar-nos.

—Eu já recebi a comunhão.

—Muito bem; porém não fies a tua salvação de mais ninguem senão de Jesus
Cristo. Por Ele serás salva.

—Assim o farei... porém não vás ainda, senta-te aqui junto de mim.

Dôres calou-se e sentou-se, orando em silencio por sua amiga. Passados
alguns momentos, saiu para a sala, e, dirigindo-se ás mulheres que ali
estavam, disse-lhes:

—Onde estão os paes de Antonia?

—Não sabemos—respondeu uma, muito secamente.

Dôres, apezar de notar que a sua pergunta não tinha sido bem recebida,
continuou:

—Parece-me que as senhoras deviam apagar algumas luzes do altar. Antonia
queixa-se do calor e do cheiro da cera.

—Bem sabemos—respondeu a tia de Antonia—aquilo que temos de fazer. E a
proposito; a senhora far-nos-hia um grande favor não tornando aqui até
que Antonia esteja livre de perigo. O confessor prohibiu que fale com
certa classe de gente... e...

—Sim—interrompeu Dôres—e entre essa classe de gente estão Julião, sua mãe
e sua mulher, não é verdade? Pois bem, retiro-me, porém graças a Deus que
em minha casa orarei pela minha amiga, e sei que Deus me ouvirá.

—Já lhe dissemos que pode retirar-se—exclamaram todas.

—Sim, retiro-me—disse Dôres com as lagrimas nos olhos—retiro-me, e que
Deus vos perdôe o mal que me fazeis.

As mulheres continuaram por alguns momentos falando, e Dôres saiu,
chorando, em direcção de sua casa. Ao verem-na entrar assim, sufocada
pelas lagrimas, Julião e Josefa levantaram-se apressados, interrogando-a:

—Morreu?

—Não—respondeu Dôres.

—Então que foi?

—Ai!... por ordem do confessor não podemos entrar mais naquela casa.

—E então isso é motivo para que te aflijas assim dessa maneira?—exclamou
Julião.

—Sim, porque quero muito a Antonia, e desprezam-nos sem saber porquê!

—Sem saber porquê?—disse Josefa—Não digas isso; eles de mais o sabem; é
porque nós somos cristãos e eles não; eis ahi o motivo.

—Porém podiamos ter feito tanto bem a Antonia... que...

—O mesmo lhe podemos fazer agora—disse Julião.—Oremos sem cessar por
Antonia, e Deus nos ouvirá. Quanto ao mais, preparemo-nos para sofrer
toda a classe de desprezos e insultos, porém pensemos no que disse
Jesus Cristo: «Lançar-vos-hão fóra das sinagogas; e virá tempo em que,
quando qualquer vos matar, julgará que com isso faz um serviço a Deus».
Confiança, pois, e oremos ao Senhor pelos nossos inimigos.



CAPITULO VI

Manda-o minha filha, e é quanto basta


Ao declinar da tarde do dia seguinte em que Antonia recebeu o _Viatico_,
a sua cabeça estava um pouco mais leve, manifestando alguns sinaes de
melhoras. Perguntou então por Dôres.

—Não está aqui—respondeu a mulher que cuidava dela.

—Nesse caso chamem-na—disse ela.

A mulher saiu da alcova para dar conhecimento aos paes de Antonia do
desejo que ela acabára de manifestar. A mãe enxugou as lagrimas, procurou
tranquilisar-se para entrar no quarto de sua filha, á qual perguntou
carinhosamente:

—Que queres, minha filha?

—Quero ver Dôres.

—Para quê? O confessor disse que não falasses com ela.

—Não quero saber do que disse o confessor; o que eu quero é falar com
ela, e tanto basta. O confessor encheu-me de muito medo, impoz-me uma
penitencia que... finalmente, quero ver Dôres.

—Minha filha, socega, não penses em nada, nem te recordes de nada.

—Minha mãe—disse Antonia, já bastante agitada—já disse que quero ver
Dôres, e hei-de vêl-a. Ela entende-me e diz-me umas coisas que ninguem as
sabe dizer... quero ver Dôres, já disse... e se fosse possivel...

Mestre João, desejoso de ouvir o que dizia sua filha, tinha-se aproximado
pé ante pé da alcova, escutou a petição de sua filha, e em seguida entrou
e disse resolutamente.

—Para que queres ver Dôres?

—Para falar com ela—respondeu Antonia.

—Pois espera, que eu mesmo vou chamal-a.

—Muito obrigada, meu pae, muito obrigada...

João saiu da alcova, e sua mulher apoz ele, dizendo-lhe:

—Porém espera, homem; vê o que fazes!

—O que faço?—perguntou ele muito secamente.

—Então sempre vaes chamar essa mulher?

—Sim; e não só a ela como tambem o seu marido.

—Homem, tu estás...

—Estou como queiras que esteja, porém agora vou chamal-os. Pede-o minha
filha, e é quanto basta.

—Porém o padre Francisco disse que não e... não.

—E minha filha diz que sim, e... e sim.

E João, sem fazer caso do que dizia sua mulher, acompanhada no mesmo tom
pela tia de Antonia, saiu em direcção da oficina de Julião, pedindo a
este a sua mulher e sua mãe que fossem a sua casa, logo que fechassem a
porta.

Dôres, acompanhada de seu marido, entrou na casa de sua amiga.

—Antonia—disse Dôres muito baixinho.

—Ah! és tu?—respondeu a filha do carpinteiro, reanimando-se.

—Como estás?

—Mal, Dôres, muito mal; porém não sei que voz secreta me diz que desta
vez ainda não morro.

—Tem confiança em Deus e está socegada, filha, esperando que a Sua
vontade seja feita... porém não fales mais...

—Mas eu quero falar-te.

—E a cabeça?

—A cabeça já não me doe tanto. Oh! se tivessem continuado as mesmas
dôres de hontem, certamente que já não seria deste mundo... Não podiam
deixar-nos sósinhas?—disse para duas mulheres, suas visinhas.

—Sua mãe—respondeu uma delas—disse que a não deixassemos nem um instante
só.

—Pois saiam agora e vão para a sala.

—Olha—disse Antonia quando se viu sósinha com Dôres—tu és a pessoa em
quem tenho mais confiança, e por isso, se eu morrer, desejo encarregar-te
de certas coisas...

—Antonia, querida Antonia—interrompeu Dôres—não te alteres, socega. Não
disseste ainda ha pouco que não morrerias desta vez?

—Não me altero, Dôres, e tão pouco penso em morrer.

Depois de descançar um momento, disse:

—Recordas-te de que, no dia de Santo Antonio, em que fui para o campo, ao
despedir-me de ti te disse: _Mau dia vou ter?_

—Sim.

—Vê então como acertei sem ser profetiza. Por mais que pedisse de todo o
meu coração ao Santo, não fui ouvida dele.

—Olha, Antonia, e crê o que te vou dizer: Em logar de pedires a Santo
Antonio, pede em nome de Jesus. Foi Ele que te remiu com o Seu sangue;
Ele te chama; para que deixar a Deus pelo homem, o certo pelo duvidoso?

—Sim, sim, tens razão... Olha, hontem quando me deram o _Santissimo_
pareceu-me que estava tranquila, porém hoje, que a minha cabeça está um
pouco mais leve, as duvidas assaltam o meu espirito; pois que a verdade é
que, quando me confessei, com a cabeça já quasi perdida, o P.ᵉ Francisco
me falou da morte, do inferno, e não sei de quantas coisas mais. No
estado em que tinha a cabeça, a minha confissão...

—Antonia, só Deus pode perdoar os pecados; portanto, só a Ele é que deves
confessar-te; dize-Lhe, pois: «Pae, pequei contra Ti, mas por amor de
Jesus Cristo perdôa todos os meus pecados».

—E dize-me Dôres, Deus perdoa assim tão facilmente? Não haverá nada que
purgar?

—Não, não ha nada, porque Cristo purgou tudo.

—Ai, Dôres, se eu pudesse crêr nisso, que bem sentiria!

—Se queres, esta noite virá Julião, e ele te falará a esse respeito.

—Sim, quero, que venha. Tenho um encargo a fazer-te. Abre a gaveta
daquele toucador e vê se ali ha uma caixinha; dentro dela ha uns brincos,
a um falta-lhe fazer o aro; sabe quanto custa e dize-mo.

Dôres obedeceu, fazendo o que Antonia lhe havia recomendado.

As duas amigas pouco depois despediram-se, e Dôres saiu em direcção a sua
casa.

Vejamos entretanto o que fazem mestre João, sua mulher e a tia de
Antonia, irmã de João, que estão na oficina.

—Tenho dito—dizia a sr.ª Brigida—que não quero que essa mulher esteja
ahi, e não estará.

—E Antonia—respondeu o carpinteiro—disse que quer que esteja, e estará.

—Porém tu queres perder a alma da pequena? perguntou sua irmã.

—O que vós ambas quereis é que eu perca a paciencia, e então...

—Essa mulher cheira-me a enxofre, João.

—E dize-me, querida Brigida, não te cheirava a enxofre quando lhe
recomendavas que tivesse cuidado da nossa casa?

—Então não sabia o que eles eram.

—Sim, que o sabias, porque na noite em que baptizaram o seu filho foste á
capela dos protestantes vêl-o baptizar.

—Eu não sabia que eram tão maus como são.

—Porém eles que te fizeram?

—A mim nada, porém o P.ᵉ Francisco sabe-o muito bem, e por isso ele diz
o que diz. Estou certa de que agora Dôres está dizendo a nossa filha que
não acredite em Deus nem nos santos, para que morra em pecado e seja
condenada.

—Isso—observou a tia—se não a matar.

—Quando digo que...

—Esta noite—interrompeu Brigida—vou chamar o P.ᵉ Francisco para que
confesse outra vez Antonia.

—E eu, se torno a ver o padre dentro de minha casa, vós e ele saireis
correndo pela porta. Repara, Brigida, que estou meio louco, que jámais te
faltei ao respeito; porém eu sei que Dôres não diz a nossa filha nenhuma
coisa má, e que não quero o padre em minha casa. Se até aqui tenho sido
fraco, agora não o sou.

—Digo-te que virá o P.ᵉ Francisco... e ha-de vir.

A disputa terminou, saindo mestre João a tratar dos seus negocios, e
Brigida saiu apoz ele para ir falar com o padre, a quem disse:

—Ah! meu padre! minha filha quiz ver a mulher de Julião, e meu marido foi
chamal-a.

—Pois é necessario impedir que ela lhe fale.

—Oh! senhor! Já estão falando ha bastante tempo!

—Porém, qual é a opinião de seu marido a tal respeito?

—Meu marido diz que Dôres não diz coisa alguma que seja má a Antonia!

—Então como se entende isso? Não diz nada que seja mau? Julgue a senhora
por si mesma. A primeira coisa que sem duvida lhe terá dito é que não
faça caso daquilo que eu lhe disse; que será bom que se entregue a Deus
e que tenha confiança n’Ele (e isto para a enganar, pois que este é o
sistema dos protestantes), porém que não satisfaça a penitencia, porque
é uma loucura que dá muito incomodo; tambem lhe terá dito que pode muito
bem salvar-se sem recorrer a nenhum santo; e que não creia de maneira
nenhuma no poder e intercessão de Maria Santissima.

«Oh! contra a bemaventurada Virgem certamente que terá dito coisas que
não estão na cartilha; como, por exemplo, que nunca existiu, que não foi
pura e...

—Oh! que horror! que horror!—exclamou Brigida com os olhos fóra das
orbitas, como tomada dum grande espanto, e acrescentou:

—E não poderá vir agora comigo, que não está em casa meu marido?

—Sim, sr.ª Brigida.

—Então corramos a salvar minha filha.

O sacerdote saiu em companhia da sr.ª Brigida, para visitar Antonia. Na
oficina já estava mestre João, que, oferecendo uma cadeira ao padre, lhe
disse:

—Poderá dizer-me a que devo a honra da sua visita?

—Sim, senhor—respondeu o P.ᵉ Francisco;—sua mulher disse-me coisas muito
graves e serias.

—Minha mulher fala mais do que aquilo que deve...

—Não se altere, sr. João—disse o sacerdote, acrescentando:—Não trate
assim sua pobre mulher.

—Nunca—respondeu mestre João—tratei mal a minha mulher nem a ninguem,
porém agora empenharam-se em se oporem áquilo que eu ordeno, e isto não
posso consentil-o.

—Mas em que se opõem á sua vontade?

—Em que não quero que contrariem minha filha no estado em que ela está.

—Aquele que mais quer mal a Antonia é vocemecê.

—Eu?

—Sim, senhor; vocemecê, que lavra a eterna condenação dela, lançando-a no
inferno, onde será para sempre atormentada, porque, estando prestes a sua
ultima hora, vocemecê, seu pae, ácerca de pessoas que...

—Essas pessoas são tão dignas como V. S. e como eu—exclamou o carpinteiro
com certa energia, e acrescentou:—Que mal lhe fizeram Dôres e seu marido
para que fale dessa maneira?

—São uns herejes—respondeu o sacerdote—que renegam a fé cristã.

—P.ᵉ Francisco, se não tivesse em atenção o seu caracter sacerdotal,
dir-lhe-hia claramente que aquilo que diz não é verdade.

—Como! eu minto!—exclamou o padre, levantando a voz.

—Ouça, sr. padre: na minha casa ninguem levanta mais a voz do que eu.

—Eu sou um ministro de Deus e tenho poder para erguer a minha voz
sagrada, sempre e onde seja necessario.

—João, sê prudente—disse a sr.ª Brigida em voz suplicante.

—Cala-te—respondeu o marido; e em seguida, dirigindo-se ao padre,
disse-lhe:—Para que veja como eu respeito esses direitos, peço-lhe que me
diga franca e claramente o que quer, ou então que saia de minha casa.

—Bem—respondeu o padre,—venho confessar sua filha, pois de contrario
morre em pecado e será condenada, por ter falado com essa mulher que está
excomungada.

—E eu digo-lhe que não confessará minha filha, e que, pelo contrario,
o Sr. Julião e sua mulher estarão constantemente em minha casa e á
cabeceira de minha filha.

—Pois eu não respondo pela sua alma, nem nenhum santo estará á sua
cabeceira quando exale o ultimo suspiro, e, o que é mais ainda, ninguem
lhe dirá uma missa por sua alma, pois que será inutil.

—Tão inutil será então como o é agora. Não fui senão uma vez á capela
dos protestantes, e nessa ocasião tirei mais proveito do que em todas
as vezes que fui á missa. Ali se lê e prega o Evangelho. Ali o ministro
roga a Deus pela nação, pelo governo, pelos enfermos, pelos pobres e
pelos aflitos. Ali os assistentes tomam parte no culto cantando hinos.
Ali falam em hespanhol, de modo que o senhor e todos podem entender o que
se diz. O senhor que lingua fala quando diz missa? Tanto pode ser mouro,
como grego, como latim; o que eu sei é que não entendo palavra.

—Nem faz falta que entenda; o que lhe faz falta é crêr.

—Mas crêr em quê?

—No valor da missa.

—Porém, que valor tem a missa?

—Muito.

—Pois eu dou-lhe uma libra para que diga uma missa afim de que minha
filha fique boa.

—A missa não cura senão as enfermidades da alma.

—Pois então enganaram minha mulher, pois que eu sei que lhe aconselharam
a que mandasse dizer missa pela saude de minha filha.

—Parece mentira que um homem que tem em sua casa um altar dedicado a
Santo Antonio fale dessa maneira.

—O que vou fazer do Santo Antonio, mais tarde o verá. Como me ha-de ouvir
ele, se não é mais do que um pedaço de madeira? Fique sabendo que eu vi
esse Santo quando tinha cortiça. Do mesmo tronco de madeira fizeram o
Santo e um cavalo.

—Oh! não posso ouvil-o por mais tempo.

—Pois o que lhe digo é verdade; o escultor é muito meu amigo.

—Por ultimo, permite-me que confesse sua filha?

—Não, senhor.

—E que lhe fale?

—Tambem não.

—Julião falará com ela?

—Sim, senhor. E a mim me ensinará a viver; a sua casa é mais abençoada do
que a minha.

—Não durará muito essa benção, eu lho prometo, nem habitará por muito
tempo na casa onde mora.

—Pode fazer tudo o que quizer.



CAPITULO VII

A visita


Retrocedamos e voltemos a encontrar Dôres no momento de entrar em sua
casa, depois da visita que fez á sua amiga.

Julião e sua mãe, apenas a viram, perguntaram-lhe como estava Antonia, e,
ao saberem que ia melhor, Julião exclamou:

—«A oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o aliviará.»

—Deus é fiel—acrescentou a sr.ª Josefa.

Dôres contou a seu marido a conversa que tivera com Antonia, e o encargo
que ela lhe fez dos brincos.

Á hora do costume Julião fechou a porta da loja, e, munindo-se da sua
Biblia, saiu, acompanhado de sua mãe e Dôres, em direcção da casa de
mestre João. Bateram de mansinho á porta, que João veiu abrir.

—Entrem para a oficina. Antonia está dormindo, e o medico, bastante
surpreendido, disse que isto era um bom sinal.

Na carpinteria estavam a senhora Brigida, a tia de Antonia e mais tres
mulheres.

—Boas noites—disseram ao entrar.

—Boas noites—responderam com certa reserva as pessoas que ali estavam.

—Então Antonia está dormindo? Oh! isso é um bom sinal.

—E diga-me, sr.ª Brigida, se sua filha chegar a ter saude, a quem atribue
essa graça?

—Eu atribuo-a ao bemaventurado Santo Antonio, que jámais me negou o que
eu lhe tenho pedido.

—Permite-me, querida Brigida—interrompeu mestre João—que te diga que o
tal Santo Antonio não te ouviu na ocasião presente. Eu já dantes estava
certo, porém agora estou certissimo, de que Santo Antonio não te ouviu,
nem te ouve, nem jámais te ouvirá, ainda que o chames com uma buzina.

—Certamente que, tendo um marido tão pouco devoto como tu, ainda que
chame por todos os santos da côrte celestial, nenhum me ouvirá.

—Com que então eu sou um impio! E como o sabes tu? O que me pésa no
coração não é o ter-me oposto a que Antonia se confessasse, mas sim ter
sido tão fraco que permitisse que o padre Francisco a tenha confessado.
Tendel-o entendido? Demais, agora creio-me menos impio do que antes,
porque, em logar de não pensar nada em Deus, agora penso alguma coisa.

—Senhores—interrompeu Julião,—se me permitem, direi algumas palavras, as
quaes, com o auxilio de Deus, nos serão muito uteis para esclarecer esta
questão.

—Senhor Julião—disse Brigida,—todos sabemos as doutrinas que professa; eu
sei o que creio, e nada me desviará dessa crença.

—Muito bem, senhora Brigida—respondeu Julião,—porém permita-me uma
pergunta? Em que crê?

—Eu creio no que diz a Egreja.

—E que diz a Egreja?

—A Egreja diz... diz... diz o que diz; eu bem sei o que diz.

—Mulher—interrompeu o carpinteiro,—com essas razões ficamos inteirados.

—Diga-me, sr.ª Brigida—esclamou Julião,—que conseguiu Antonia com a
confissão que fez ao P.ᵉ Francisco?

—Muito—respondeu a mulher do carpinteiro,—pois se daquela ocasião tivesse
morrido certamente que se salvava.

—Isso não é certo, pois que a confissão não salva ninguem, porém, apezar
de tudo, diga-me: quantas coisas são necessarias para fazer uma boa
confissão?

—Sim, senhor, são cinco; Catecismo do Padre Ripalda _sobre a penitencia_,
(pag. 54) exame de consciencia, dôr do coração...

—Ouve—interrompeu o marido,—eis ahi o que não tinha nossa filha; o que
ela tinha era uma forte dôr de cabeça.

—Cala-te e não digas loucuras... dôr de coração, proposito de emenda,
dizer os pecados ao confessor e cumprir a penitencia.

—Muito bem, e crê que sua filha, hontem de tarde, atormentada pelas dôres
da doença, estava nas disposições de ter esses requisitos, sem os quaes,
segundo a Egreja romana, não se pode fazer uma confissão capaz de obter o
perdão dos pecados? Vejamos: Antonia, em consequencia do ataque cerebral,
sofrendo da cabeça horrivelmente, vae confessar-se; preparam-na de
antemão para isso! dizem-lhe que o confessor irá dali a uma hora, e que é
preciso fazer exame de consciencia; nada menos do que passar em revista
tudo o que disse e fez desde a ultima vez que se confessou. Dali a uma
hora vem o confessor, e a joven, que não pode sequer abrir os olhos, e a
quem o menor ruido incomoda, tem que ouvir e responder ás perguntas que
ele lhe faz; isto se ela pode falar, pois que do contrario o confessor
pega-lhe na mão e começa a confessal-a pelos dedos. Depois disto, que
não é pouco, vem a penitencia, que geralmente consiste em rezar tantos
Padre Nossos, tantas Avé Marias, tantas Salvé-Rainhas, tantos Credos,
etc. Suponhamos agora que o penitente tem dôr do coração e muito
proposito de emenda; porém terá forças para cumprir a penitencia e fazer
exame de consciencia? Mas isto ainda não é tudo; dali a uma hora vem _o
Santissimo_, que muitas vezes é administrado ao enfermo no periodo agudo
da doença, e estão tão convencidos de que é dificil ao doente o tomar a
_particula_ que a todo o doente que a recebe pergunta o sacerdote: _Já
passou?_ Por consequencia, sr.ª Brigida, são estas as boas disposições
para a gente se salvar?

A mãe de Antonia calou-se, e algumas mulheres, e com elas o sr. João,
disseram maquinalmente:

—Tem razão.

Julião conheceu que estava senhor da situação, e, levado dum grande zelo
em anunciar o Evangelho, continuou desta maneira:

—A um enfermo não se deve falar senão de Jesus; na Palavra de Deus
encontram-se frases tão consoladoras como estas: «O sangue de
Jesus-Cristo nos purifica de todo o pecado». «Ainda que ande nos vales
da sombra da morte, não temerei mal algum». «Na verdade, na verdade, vos
digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna». «Eu, diz Jesus, sou
a ressurreição e a vida; aquele que crê em mim, ainda que esteja morto,
viverá». Estas palavras necessariamente comoverão o enfermo e o farão
exclamar:—E quem és tu?—E então o Filho de Deus responde ao enfermo: «Eu
sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a vida pelas Suas ovelhas». «Eu sou
Jesus». E «todo aquele que vem a mim, não o lançarei fóra»...

Quando Julião acabou de falar, fez-se um silencio profundo. Por fim, uma
das mulheres disse:

—Sabe que gostei muito do que acaba de dizer, e que nunca ouvi falar
assim?

—Parece que o que dizes tem visos de verdade—acrescentou a irmã de mestre
João.

—Senhora—disse Julião,—as palavras do Evangelho são verdadeiras; porém,
tornando á nossa questão, repito: Crêem que a confissão, feita da maneira
por que a Egreja a preceitúa, salva?

—Se não salva—respondeu Brigida,—temos feito tudo o que podemos para que
assim seja.

—Porém, amiga, é um deploravel erro crêr que a confissão feita ao ouvido
dum sacerdote pode abrir as portas do céu. Na Biblia Sagrada não ha uma
só palavra ácerca da confissão secreta; nem tão pouco os apostolos a
praticaram. Mas, apezar de tudo, a sua filha ficou mais tranquila, depois
que se confessou?

—Não, senhor—apressou-se a dizer mestre João.

—Desejou ver outra vez o seu confessor?

—Não, senhor; opõe-se tenazmente a isso—respondeu ainda o carpinteiro.

—Opõe-se a isso—disse Brigida—porque não falta quem lhe meta na cabeça
idéas corrompidas.

—Senhora Brigida—exclamou Julião—se diz isso referindo-se a minha esposa,
eu lhe asseguro que Dôres não disse a Antonia palavra alguma má. Estou
certo de que não lhe falou senão de Jesus, seu Salvador.

—Pois eu não sei outra coisa mais senão que minha filha não quer ver o
P.ᵉ Francisco, e ela terá as suas razões.

Neste momento a mulher que velava por Antonia entrou na oficina para
dizer que Antonia tinha acordado e que chamava. Suspendeu-se, pois,
a conversação, e todos se dirigiram para a sala, entrando Brigida tão
sómente na alcova.

Brigida aproximou-se do leito de sua filha e perguntou-lhe:

—Como estás, minha filha?

—Bastante melhor—respondeu a enferma, que acrescentou:—Dôres não veiu?

—Sim, está ali.

—Pois então que venha.

A mulher do carpinteiro saiu da alcova, e pouco depois todos entraram
nela. Trocadas algumas palavras referentes ao estado de Antonia, Julião
disse-lhe:

—Antonia, disseram-me que desejava ver-me. Diga-me: em que lhe posso ser
util?

—Ah! Julião, desejava vêl-o anciosamente, e agora essa anciedade aumentou.

A enferma calou-se por alguns instantes. Depois, fitando os olhos em
Julião, com uma expressão indescritivel, perguntou-lhe:

—Qual é o caminho que conduz ao céu?

Julião vacilou por alguns momentos, comovido pela anciedade daquela
pergunta, e por fim disse:

—Vou dizer-lho, querida amiga. Jesus é quem lhe responde: «Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida; ninguem vem ao Pae senão por mim.» Jesus,
pois, é o caminho que conduz ao céu?

—Bem... porém que tenho a fazer para seguir esse caminho e entrar no céu?

—O mesmo Jesus o diz: «Não temas; crê sómente, e serás salva».

—Porém crêr, em quê ou em quem?

—«Se confessares com a tua boca ao Senhor Jesus e crêres do teu coração
que Deus O ressuscitou dos mortos serás salva.» «Crê no Senhor Jesus e
serás salvo». Isto é o que diz a Santa Palavra.

Julião ficou silencioso, observando o efeito que aqueles textos faziam na
enferma. Por fim, Antonia disse:

—Porém não tenho que fazer nada para salvar-me?

—A Palavra do Senhor diz-lhe: «Crê sómente e serás salva», e acrescenta:
«Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus por meio de Nosso Senhor
Jesus Cristo.»

—Porém, Julião, isso parece-me uma coisa impossivel, porque sou muito
pecadora...

—Sim? Pois precisamente por isso póde apropriar a si as palavras de
Jesus, que diz: «Não vim a chamar os justos, mas sim os pecadores». Pode
por isso considerar que Deus perdoa gratuitamente, mas, se ainda lhe
resta alguma duvida, atenda que é o proprio Jesus que vae falar: «O Filho
do Homem veiu buscar e salvar o que havia perecido; e todo aquele que vem
a mim, não o lançarei fóra».

—Ah! Julião, que doce consolação para a minha alma! Porém parece-me
impossivel que Deus me ame dessa maneira.

—Ouça o que diz a Sua Palavra: «De tal maneira Deus amou ao mundo, que
lhe deu Seu Filho unigenito, para que todo o que nele crê não pereça mas
tenha a vida eterna.»

—Oh! como Deus é bom! Porém, como nenhum dos meus confessores me disse
nada dessas coisas, senão que, ao contrario, o P.ᵉ Francisco, apezar da
fraqueza em que eu estava, me sobrecarregou com uma penitencia que...

—Os confessores sabem a razão por que calam essas coisas, e a menina
tambem algum dia o saberá. Agora o importante é que creia no bom Jesus, e
que o aceite como seu Salvador.

Houve outro momento de silencio; ninguem se atreveu a interrompel-o. Por
fim, mestre João disse:

—Parece incrivel que os padres não nos ensinem coisas tão boas como as
que Julião acaba de dizer-nos.

—Meu pae—disse Antonia,—desejo possuir um livro como o de Julião.

—Sim, minha filha, ámanhã mesmo o terás, se Julião me disser onde se
vendem.

—E que lhe parece tudo isto?—perguntou a sr.ª Josefa a Brigida.

—Oh! parece-me que é muito bom—respondeu esta,—porém a mim não ha nada
que me arranque ás minhas opiniões.

—Senhores—interrompeu Julião,—creio que incomodamos a enferma, e que
devemos retirar-nos.

—Não—replicou vivamente Antonia,—a mim não me incomoda; pelo contrario,
não sabe o bem que as suas palavras causaram á minha alma, e a paz que
sinto; porém de que modo pedirei perdão ao Senhor para o obter? Sou uma
pobre pecadora, que se encontra ás portas da morte.

—Visto que deseja falar, falemos. «Um homem teve dois filhos, e disse
o mais moço deles a seu pae: Dá-me a parte da herança que me toca. _E
passados não muitos dias_, depois de ter recebido a herança, partiu para
uma terra muito distante, num paiz estranho.» Um pecado nunca vae só;
sempre arrasta outro comsigo.

«O joven, ao ver-se em perfeita liberdade, e possuidor de grandes bens,
gastou tudo o que seu pae havia ganho. Porém gastou-o em coisas santas?
Em esmolas? Não; «dissipou toda a sua fazenda, vivendo dissolutamente.»
Bem depressa o joven se viu reduzido á pobreza. Que fazer? Deus enviou
áquele paiz uma grande fome, e o joven, só e pobre, teve que sofrer
aquela praga até ao ponto de desejar as landes que comiam os porcos
que ele guardava. Neste estado, entrando em si, veiu-lhe á imaginação
_a sua casa e o seu pae_. «Quantos jornaleiros—disse ele—ha em casa
de meu pae que teem pão em abundancia, e eu aqui pereço á fome!» Desta
reflexão nasceu outra em sua alma. Quanto tenho pecado! Que fazer?
«Levantar-me-hei, e irei buscar a meu pae, e dir-lhe-hei: Pae, pequei
contra o céu e deante de ti: já não sou digno de que me chames teu filho;
_faze de mim como dum dos teus jornaleiros_». Concedeu-lhe o pae o que
ele pediu? _Não, mil vezes não._ O pae vê vir lá ao longe um homem,
esfarrapado, coberto de pó. Alguns homens do povo passam junto dele,
olham-no de alto a baixo, porém não o conhecem. Ah! os olhos dum pae
vêem a uma grande distancia. O ancião reconhece naquele, que parecia um
mendigo, seu filho, e corre ao seu encontro, abraça-o, e, quando lhe
ouve a confissão que ele faz, reconhece o seu arrependimento, e não
diz! «Trazei-lhe uma enxada ou uma pá», mas sim: «Tirae depressa o seu
primeiro vestido e vesti-lho, metei-lhe um anel no dedo e uns sapatos nos
seus pés; trazei tambem um vitelo bem gordo, e matae-o para comermos e
para nos regalarmos.»

—Agora, meus amigos—continuou Julião—apliquemos esta parabola a nós
mesmos. Todos temos pecado. Cada um de nós é um filho prodigo, nosso pae
é Deus, e perdoar-nos-ha Ele? Sim, certamente, porque «se o estipendio
do pecado é a morte, a graça de Deus é a vida perduravel em Cristo
Jesus» (_Rom. 6: 23_). Deste modo se explicam as palavras de Jesus:
«Assim vos digo que haverá maior jubilo no céu sobre um pecador que se
arrepender do que sobre noventa e nove justos que não hão mister de
arrependimento» (_Luc. 15: 7_). Não crê, querida Antonia, que Deus quer e
pode perdoar-lhe desta maneira?

—Oh! dificil é explicar o que sinto; sómente posso dizer que creio de
todo o coração que Jesus é meu Salvador e que estou salva.

—Que o Senhor abençoe a sua fé.

Todos se levantaram para se despedirem; Julião e sua familia dirigiram-se
para casa.

João e as mulheres ficaram falando, com louvor, de Julião. Brigida
sómente repetia:

—Não, não, a mim não ha nada que me arranque das minhas opiniões. Parece
verdade, parece...

Pouco tempo depois toda a gente, menos a tia de Antonia, que ficava
aquela noite a cuidar dela, se retirou para descançar.



CAPITULO VIII

A calunia


Passaram quinze ou vinte dias desde que Julião anunciou o Evangelho em
casa de mestre João. Antonia, obtendo sensiveis melhoras, havia entrado
em convalescença, e, se bem que ainda fraca, costumava vir para o pateo,
onde passava algum tempo acompanhada por Dôres, ambas sentadas, lendo ou
conversando.

—Numa dessas tardes, depois de terem lido e meditado sobre uma passagem
do Evangelho, Dôres disse á sua amiga:

—Antonia, ámanhã é o dia em que devo ir buscar os brincos.

—Ámanhã!... Eis aqui a primeira parte de Santo Antonio!... Não sei como o
direi a meu pae.

—Ouve, Antonia; Julião não teria inconveniente algum em dar-nos os 600
reales que custa o concerto; graças a Deus, hoje temos essa quantia;
porém alguem poderá reparar em que tratamos de enganar teus paes.

—Sim, Dôres, sim; o melhor é que nós mesmas digamos tudo a meu pae.

—E porque não dizêl-o a tua mãe? Não julgas que seria melhor?

—Não, Dôres; infelizmente, minha pobre mãe, imbuida pelos conselhos de
algumas pessoas, está muito reservada para comigo; o outro dia vi-a
ajoelhar-se deante de Santo Antonio, e ouvi-lhe pedir a minha morte,
chorando copiosamente.

—A tua morte!

—Sim. Minha mãe julga que eu estou condenada, e, segundo pude
compreender, essa crença dimana daquilo que algum padre lhe tem dito,
pois que ela dizia ao Santo entre outras coisas: «Santo Antonio, peço-te
que faças entrar no bom caminho a minha filha; prometo que mandarei dizer
uma missa todos os primeiros sabados de cada mez, e isto emquanto eu
viva, se fizeres com que minha filha volte ao seio da Egreja Catolica
Romana. Porém se isto não pode ser, dá-lhe um momento de arrependimento,
e depois manda sobre ela um raio da tua divina graça e leva-a para ti.»

As duas amigas guardaram silencio, profundamente impressionadas ao
considerarem a oração dirigida por Brigida ao Santo. Depois de alguns
momentos, Antonia disse:

—Agora chama meu pae, para lhe falarmos dos brincos.

Dôres ia chamar João, quando este apareceu no limiar da porta.

O carpinteiro tinha mudado completamente. Desde que sua filha se poz boa,
recobrou o seu genio alegre; e, relativamente ás suas idéas, devemos
dizer que tambem haviam experimentado alguma mudança, como já tivemos
ocasião de ver.

—Passava—disse ele, sorrindo-se—da sala para a oficina, vi-as juntinhas e
disse: Vamos ver de que se ocupam as duas amigas.

Antonia fez sinal á sua amiga para que principias-se a conversa, Dôres
compreendeu-a, e disse ao sr. João, rindo-se:—Realmente quer saber do que
estavamos falando?

—Sim, senhora.

—Mas se lhe custar cara a sua curiosidade?

—Ah! então vocês vão pôr a preço o seu segredo?

—Sim, senhor. Não o vendemos por menos de seis libras.

—Nesse caso, eu vol-as darei sem regatear.

—E nós—disse Antonia—confiamos na sua palavra.

Dôres, deixando o seu ar alegre e tomando outro mais serio, disse:

—Sr. João, deve estar muito agradecido a Deus, que lhe restituiu a sua
filha. Tambem deve estar crente de que, terminando a doença de Antonia,
terminaram as consequencias da vespera e do dia de Santo Antonio; porém
realmente não terminaram.

—Mas a que vem esse discurso—perguntou o sr. João, acrescentando:—De
vagar, de vagarinho.

—Então já que assim o quer, lá vae. Na vespera de Santo Antonio, na
ocasião da dança, cairam ao chão alguns pares. Antonia tambem caiu, como
sabe, e na queda perdeu um brinco de diamante, cuja compostura valia
precisamente as seis libras que valia o nosso segredo.

Dôres em seguida calou-se. Mestre João ficou pensativo, e depois
perguntou:

—Onde está o brinco?

—Em casa do ourives—respondeu Dôres.

—Porém tua mãe sabe-o?

—Não, meu pae; eu dei a guardar o brinco a Dôres para que o entregasse
a vocemecê, se eu morresse, e, se me restabelecesse, pensava mandal-o
concertar, sem dizer-lhe nada, e por meio do meu trabalho arranjar a
quantia precisa para a compostura, porém Dôres aconselhou-me a que
dissesse isto mesmo a meu pae.

—Bom conselho; vou dar-te o dinheiro, e eu direi a tua mãe o que se me
oferecer sobre o caso; ou ela pega no santo e o põe onde eu o não veja,
ou queimo-o para aquecer a cola. Não quero cá em minha casa mais santos
de tal natureza. Tua mãe que vá com o santo e quantos desgostos nos tem
causado. Nada, nada, para fóra de minha casa idolos de madeira. Não quero
que haja aqui outra coisa senão a Biblia; isso me basta.

O carpinteiro e sua filha meteram-se em casa, e poucos momentos depois
apareceu Antonia ao limiar da porta para dar o dinheiro a Dôres.

As duas amigas separaram-se sem reparar numa pessoa que as escutava, e
que exclamou quando elas desapareceram:

—Que descoberta! Corro a ver se encontro o P.ᵉ Francisco para dizer-lhe o
que vi e ouvi. Suas palavras eram muito misteriosas. Não, não as esqueço,
e logo... lhe deu muito dinheiro, muito, muito.

Aquela que assim falava subiu as escadas com a agilidade que lhe
permitiam os seus muitos anos.

Como havemos de encontrar esta personagem, vamos descrevel-a a largos
traços.

Era a comadre Claudina, uma mulher que andava pelos seus setenta anos
de edade. O nome com que vulgarmente era conhecida no bairro era o da
_tia dos enredos_, e realmente que assim era. O seu prazer era falar
duns e outros, e não poucas dissenções tinha causado em muitas casas.
Sustentava-se esta mulher de esmolas que lhe davam.

Não implorava a caridade publica, porém sabia perfeitamente levar a vida
para arranjar donativos da Sociedade de S. Vicente e outras; além disso,
nunca faltava ás festas de egreja, e ali se colocava junto da pia da
agua benta, que oferecia ás senhoras da fidalguia, recebendo em troca,
como esmolas, algumas moedas. Além disso, fazia quantos recados lhe
mandavam, levando sempre o rosario na mão. Eterna bisbilhoteira, nada se
sabia da sua vida, senão o que ela dizia: que era de muito boa familia, e
que nunca quiz casar-se, apezar de se lhe oferecerem vantajosas ocasiões.
Deste ser tão repugnante serviu-se o P.ᵉ Francisco para se pôr ao facto
da vida intima das duas familias, a de mestre Julião e a de mestre João.

A velha ouviu a conversa, e, sem saber do que se tratava, correu a casa
do P.ᵉ Francisco para dizer-lhe o que muito bem lhe pareceu, porém
mentindo, e por tal modo que bem se pode dizer que a ela estava reservada
a condenação descrita no Apocalipse, cap. 21: 8: «e... a todos os
mentirosos, a sua parte será no lago ardente de fogo e enxofre, que é a
segunda morte.»

Assim que chegou a casa do P.ᵉ Francisco, disse-lhe:

—Senhor, descobri uma coisa espantosa. Esta tarde, quando vinha da
egreja, de assistir á festividade das _Quarenta horas_, vi á porta a
filha do carpinteiro com a mulher do vidraceiro. Estavam tão absortas na
conversa que não repararam em mim. Eu aproximei-me, quanto pude, delas, e
ouvi que Antonia dizia á sua amiga: «Ahi tens o dinheiro, e arranja tudo
isso depressa. Tenho dó de meus paes! Oh! se minha mãe soubesse!...» E
passou-lhe para a mão uma certa soma de dinheiro.

O sacerdote ficou pensativo por alguns instantes, dizendo por fim:

—E quanto dinheiro julga que Antonia deu a Dôres?

—Pelos modos vinte libras—respondeu a velha.

—Tanto!

—Sim, senhor, deu-lhe até oiro, que eu bem vi.

O padre despediu a velha, recomendando-lhe o maior segredo, e dando-lhe
uma peseta.

Claudina esperava maior recompensa do que esta, pelo que, quando chegou
á porta da rua, começou a murmurar do padre, e fez comsigo o firme
proposito de contar tudo ao mestre carpinteiro.

Logo que a velha saiu, o P.ᵉ Francisco mandou chamar Brigida, e dentro de
poucos momentos estava esta sentada ao lado do sacerdote, que lhe dizia:

—Acabaram de dizer-me que viram sua filha dar dinheiro á mulher do
vidraceiro, uma soma bem boa.

—Minha filha! Ah! senhor! isso é uma calunia.

—Muito folgarei que assim seja.

—Sim, senhor, assim é, pois que minha filha não é uma ladra.

—Eu não disse tanto. Porém donde tirou Antonia o dinheiro que deu a Dôres?

—Tel-o-hia dado á minha filha a mulher de Julião para que o guardasse.

Esta razão de Brigida pareceu transtornar o padre. Aquilo podia ser
verdade. Comtudo, disse á mulher do carpinteiro:

—Creio que não me enganaram quando me disseram isto; porém, pelo sim pelo
não, será bom que vocemecê conte o dinheiro que tem em casa, para ver
se lhe falta algum. Eu—acrescentou—não digo que sua filha de proposito
e caso pensado a roubasse, mas podia dar-se o caso de que o fizesse
aconselhada pela mulher de Julião, que é um agente dos protestantes.

Brigida despediu-se do sacerdote, e saiu em direcção de casa. Quando lá
chegou, seu marido tinha saido e sua filha estava em casa de Dôres.

Sobressaltada com o que o P.ᵉ Francisco lhe havia dito, dirigiu-se á
comoda, abriu uma das gavetas e tirou uma saquinha em que marido e mulher
guardavam o fruto das suas economias. Despejou depois todo o dinheiro
sobre a comoda e começou a contal-o.

Quando acabou, uma palidez mortal cobria o seu rosto.

—Ter-me-hia enganado!—disse ela comsigo; e tornou a contar.

Por fim, depois de contar duas, tres e quatro vezes o dinheiro, guardou-o
na mesma saquinha, pôl-o no mesmo sitio, e deixando-se cair, quasi
desfalecida, numa cadeira, exclamou:

—Parece-me um sonho!... Seiscentos reales! Não; Antonia não foi... ela
tão boa, tão... porém D. Francisco sabe mais do que eu... sim, sim,
enganaram-na. Ah! tratantes! Logo que venha João, dar-se-ha parte á
autoridade, e cadeia com eles... Ah!—exclamou meio sobressaltada—e as
joias que ela trazia na noite de Santo Antonio?... Onde as terá? Sim, já
sei que ela me disse que as tinha na gavetinha do toucador.

A pobre mulher, meio louca, entrou na alcova de sua filha, abriu a
gavetinha do toucador, e procurou com a maior anciedade. Encontrou o
colar, porém faltavam os brincos.

—Mais esta ainda—exclamou.—Oh! Santo Antonio bemdito! Virgem do Amparo!
Que fazer agora?... Vou já a casa do sr. padre Francisco pedir-lhe o seu
conselho.

Brigida saiu, sem dizer nada em casa, em direcção da morada do padre
Francisco.

Emquanto Brigida subia as escadas da casa do padre Francisco, chegava
Antonia á sua, com os brincos que já Dôres havia trazido do ourives.

Seu pae já vinha perto de casa. Chegava á porta no mesmo momento em que a
comadre Claudina sahia da sua.

—Guarde-o Deus, senhor João—disse a velha.

—Que Ele a acompanhe—respondeu o carpinteiro, dirigindo-se para dentro de
casa.

—Senhor João—gritou a velha,—ouça uma coisa.

—Que é que tem para me dizer?

—Nada, senão que sinto muito a desgraça que acaba de o ferir.

—A mim?

—Sim, senhor... porém... já sei, vocemecê, como é tão bom, não quererá
fazer-lhe mal algum... De resto, eles bem o mereciam.

—Senhora Claudina—exclamou o carpinteiro com impaciencia,—peço-lhe o
favor de falar claro, que tenho pressa.

—Porém não sabe o que sucedeu em sua casa?

—Não, senhora; como vê, chego agora de fóra e...

—Pois já tenho pena de ter principiado; mas emfim... Ouvi dizer na
visinhança que Dôres aconselhou sua filha a que lhe désse dinheiro, e
esta tarde viram Antonia dar dinheiro a Dôres. Eu, no seu caso, metia na
cadeia Julião, sua mãe e sua mulher.

O carpinteiro encarou com desprezo a velha, e dirigiu-se a casa,
deixando-a á porta.

Entrando, deu as boas tardes aos seus oficiaes, e subiu logo á sala, onde
achou sua filha lendo.

—Boas noites, filha—disse ele.

—Boas noites, meu pae—respondeu Antonia.—Aqui estão os brincos, que Dôres
já me trouxe.

—A proposito—interrompeu-a seu pae, pegando nos brincos,—sabes que te
viram dar o dinheiro a Dôres, e diz-se pela visinhança, sem duvida com má
intenção, que Dôres te aconselhou a que lhe dês dinheiro.

—Santo Deus!—exclamou Antonia;—pode ser isso verdade?

—Sim, agora mesmo acaba de mo dizer a velha Claudina.

—O pae já sabe quem é essa mulher.

—Sim, já o sei; porém, quer seja ou não verdade o que ela diz, é bom
estar prevenido. E tua mãe?

—Não sei; quando cheguei a casa, não estava cá.

—Parece-me que em todo este negocio anda a mão do padre Francisco.
Tua mãe não está em casa, porém a roupa com que costuma sair está ali
pendurada.

—Talvez que esteja aqui perto falando com alguma visinha.

—Ou então em casa do padre Francisco... Espera, vou subir lá acima ao
ultimo andar, onde mora o padre Francisco, para ver se tua mãe lá está...
Oh! se ela lá estiver...

—Meu pae, peço-lhe que não se deixe levar do seu genio; tenha mão em si.

—Descança, que não farei mais do que dizer a tua mãe que desça cá para
baixo.

Antonia ficou orando em silencio para que Deus tivesse compaixão de sua
mãe, emquanto o carpinteiro subia as escadas que conduziam ao ultimo
andar, que era a morada do padre Francisco, para ver se sua mulher estava
lá ou não.

Efectivamente, estava ali chorando a pobre Brigida, e escutando os
conselhos do padre Francisco.

Assim que este viu o marido de Brigida, levantou-se para o receber, e,
apezar da resistencia que ele opoz, obrigou-o a entrar.

O padre, quando ele entrou, fechou a porta por dentro, e, quando mestre
João se sentou, disse-lhe:

—Deus certamente que lhe inspirou a idéa de vir aqui. Provavelmente
ignora o que sucedeu em sua casa.

O carpinteiro num instante formou o seu plano, e disse num tom fingido:

—Vim aqui em procura de minha mulher; e estranho que ela esteja aqui,
quando o seu logar era em sua casa.

Brigida não se atrevia a olhar para o marido; o sacerdote disse:

—Sua esposa veiu aqui procurar, no seio da verdadeira religião, remedio
para os seus males.

—E porque, se tem algum pezar, mo não comunica a mim primeiro? Com que
direito vem confiar os seus desgostos a um homem que não é o seu marido?

—Parece-me, sr. João, que duvida de sua esposa e de mim.

—De minha esposa não duvido, porém de si duvido.

—Talvez preferisse antes que sua mulher fosse aconselhar-se com o
vidraceiro, não é verdade?

—Certamente; ele é um homem casado, e como pae de familia conhece o que
são os pezares que muitas vezes nos torturam.

—Bom hipocrita é o tal Juliãosinho! Forte maroto.

João não pôde conter-se por mais tempo, e, erguendo-se, bastante
excitado, disse:

—P. Francisco, se não estivesse em sua casa, tel-o-hia ensinado a ter
cuidado com a lingua. Diga-me, o senhor que se chama ministro de Jesus
Cristo: Em que pagina do Evangelho aprendeu a insultar assim uma pessoa
que não está presente? Onde estão essa caridade e amor que devem revestir
um ministro do Senhor? P. Francisco, muito pouco sei ainda do Evangelho,
porém digo-lhe que o senhor será um ministro do papa ou do arcebispo, mas
não é um ministro de Jesus.

—Repito o que ha pouco disse. Sofrerei com paciencia tudo o que disser.
Com que então, porque não sou casado, não sirvo para dar conselhos a uma
mulher casada? Então não pode haver religião, porque nenhum ministro é
casado nem nunca o foi.

—Perdão... O senhor sabe perfeitamente que na primitiva egreja os
sacerdotes eram casados, e a noite passada ouvi ler uns versiculos da
Biblia a Julião, os quaes dizem que os bispos e diaconos devem ser todos
casados.

O carpinteiro voltou-se para sua mulher e disse-lhe:

—Vá, vamos daqui para fóra.

—Espere um pouco, mestre; ouça lá uma historia. Ha em Madrid uns aldeãos
que teem uma filha. Esta filha cae doente, muito doente. Uns visinhos,
muito amigos do pae, entram-lhe em casa e aproveitam-se da confiança que
depositam neles para abrir as gavetas e roubar o que encontram. Sucede,
porém, que a pobre enferma... passemos por alto alguns pormenores... a
enferma tem na gaveta do seu toucador umas joias que lhe são roubadas por
uma sua amiga; e, como se isto não fosse bastante, apenas se restabelece,
a sua amiguinha a seduz para que roube seus paes, e hoje os visinhos da
casa em que vivem viram a joven, ainda mal convalescente, entregar á sua
amiga uma boa soma. Conhece as personagens desta historia?

—Sim, senhor.

—Continuará a crêr na sinceridade religiosa de Julião e sua familia?

—Mais do que nunca—exclamou com exaltação o carpinteiro.

Brigida e o P.ᵉ Francisco entreolharam-se, possuidos de grande surpreza.

—Mais do que nunca—prosseguiu mestre João,—porque conheço o infame
caluniador que sómente trata de perder um honrado pae de familia.

—Senhor João!...

—Senhor P.ᵉ Francisco, prudencia, e escute-me como eu o tenho escutado.
Na vespera da festa que tantas desgraças acarretou a minha familia,
minha esposa adornou minha filha com as joias que eu lhe dei no dia do
nosso casamento. Quando minha filha dançava perdeu uns diamantes dos seus
brincos, e, prescindindo eu tambem dalguns pormenores, direi que minha
pobre filha entregou esses brincos a Dôres para que os mandasse concertar
se ela se restabelecesse, e para que mos entregasse, se morresse. Minha
filha julgava que Dôres adeantava o dinheiro, pagando-lhe ela a pouco e
pouco. Dôres, porém, por ser sua amiga, aconselhou-a a que me contasse
tudo.

«Assim o fizeram, e esta mesma tarde lhes entreguei o dinheiro que custou
a compostura. Veja como tão cruelmente caluniaram uma familia honrada,
tão sómente porque o senhor ou outra qualquer pessoa viu minha filha dar
o dinheiro á sua amiga. Sabe agora qual é o seu dever? Quer cumprir com o
dever que o seu ministerio lhe impõe?

—Eu o que creio é que vocemecê está contando uma historia para salvar o
vidraceiro. Aposto que não aparecem os brincos.

Mestre João, já meio fóra de si, levantou-se de novo, e, tirando do bolso
um pequeno embrulho, disse:

—E chama-se ministro do Senhor! Não, e mil vezes não. Não o é.

Abriu o embrulho, tirou de dentro uma caixinha, abriu-a, e mostrou
os brincos, cujas pedras, sob a acção da luz do candieiro, brilharam
intensamente, ferindo a vista dos circunstantes. Então o carpinteiro,
voltando-se para sua mulher, disse-lhe:

—São estes os teus brincos?

—São—respondeu Brigida, depois de os ter examinado.

—Então, P.ᵉ Francisco, sabe agora qual é o seu dever?

—Qual?

—Como cristão, como sacerdote, deve descer e pedir perdão a Julião, a
Dôres e a minha filha, que tão cruelmente caluniou.

—Pedir perdão! Vocemecê está louco! Quem são eles para me perdoarem?

—Não quer pedir perdão ás pessoas ofendidas?

—Não.

—Pois ámanhã terá de ser chamado á presença do juiz.

João guardou as joias, e, voltando-se para sua mulher, disse-lhe:

—Já vês que classe de gente é esta. Eles exigem aos outros o que eles não
querem fazer. Espero que terás emenda.

Dito isto, saiu atraz de sua mulher.

P.ᵉ Francisco ficou sem saber o que dizer.



CAPITULO IX

Novos acontecimentos


Logo que chegaram a casa, João, dirigindo-se a sua filha, disse-lhe.

—Vês como não me enganei? Vês como a mão do padre andava metida neste
negocio?

—O que se passou?—perguntou Antonia a seu pae, deixando o livro que
estava lendo.

O carpinteiro contou a sua filha tudo o que tinha sucedido, e ao terminar
disse:

—Se tua mãe não tomar emenda com isto, digo-te que não tem juizo. Com
relação ao padre, vamos chamal-o á presença da autoridade.

—Meu pae—disse Antonia,—grande é o poder de Deus, e, como Ele disse, a
mentira não pode permanecer. A respeito de fazer mal ao padre Francisco,
creio que Julião não permitirá isso, pois Jesus perdoou na cruz e orou
mesmo pelos Seus proprios algozes, e Ele mesmo disse: «Abençoae aqueles
que vos amaldiçoam; _e orae por aqueles que vos caluniam_.

Dito isto, saiu mestre João.

Brigida permaneceu calada, e Antonia deu razão ao que seu pae acabára de
dizer, exprimindo-se assim:

—Sim, minha mãe não seja insensata, procurando a salvação por um outro
caminho, que certamente a conduzirá á perdição. Como pôde escutar, sem se
exaltar, a voz que lhe disse: «Sua filha é uma ladra»?

—Ai! minha filha! Eu nunca cri nisso, porém já vês que me faltava o
dinheiro, faltavam-me os brincos, e já podes calcular que desconfiava de
que alguem nos tivesse roubado. Porém tu me perdoarás, não é verdade?

—Como!—exclamou Antonia—eu perdoar-lhe! Demos graças a Deus e peçamos-Lhe
que, do que acaba de suceder, resulte um grande beneficio para a sua alma.

Entremos agora em casa de Julião.

Deve ter ali sucedido alguma coisa de extraordinario, e, para nos
inteirarmos do que se está passando, escutemos o que mestre João diz ao
seu visinho:

—Mas o que ha?—perguntava João ao seu visinho.

—Que minha mãe tem uma pneumonia.

—Porém que diz o medico?

—Diz que por emquanto não pode emitir opinião segura: porém disse-me que
estivesse preparado para tudo.

—Não faça caso; os medicos dizem sempre isso.

—Cumpra-se a vontade de Deus.

Depois dalguns momentos de silencio, o carpinteiro disse:

—Não sabe o que sucedeu?

—O que foi?

João contou a Julião tudo o que havia sucedido, e tudo o que dele se
havia dito.

Quando Julião ouviu que o visinho tratava de levar o assunto aos
tribunaes, respondeu:

—De modo nenhum, sr. João. Jesus, meu Mestre, jámais fez tal coisa; ao
contrario, em vez disso, manda que eu peça por aqueles que me caluniam e
dizem mal de mim. O P. Francisco poderá lançar mão de tudo para fazer-me
mal, mas se Deus está comigo quem será contra mim?

—Foi isso mesmo o que disse Antonia; porém isso não é para o meu
caracter; pela minha parte, o meu desejo e a minha vontade eram castigar
o P. Francisco.

—Diga-me, sr. João: sabe o Padre Nosso?

—Sim, senhor.

—E costuma rezal-o?

—Pelo menos todos os domingos na egreja.

—Pois no proximo domingo não o reze; pois que, quando chegar áquelas
palavras, «Perdôa-nos as nossas dividas, assim como nós perdoamos aos
nossos devedores», pedirá a Deus, a quem vocemecê é devedor, que lhe
perdoe como está disposto a fazer ao P. Francisco. Jesus disse: «Mas,
se não perdoardes aos homens as suas ofensas, tão pouco o vosso Pae vos
perdoará as vossas».

—O visinho tem sempre maneira de me convencer.

—Não, meu amigo, a palavra de Deus é que o convence.

—Agora vou pedir-lhe um favor, e é que me permita que eu ponha á sua
disposição tudo o que houver em minha casa e de que sua mãe precise.

—Muito obrigado, em breve nós o incomodaremos. Todavia ainda não chegou
a ocasião de incomodar ninguem, a não ser o ministro da nossa egreja, a
quem já mandámos chamar.

—Como! Tão perigosa está sua mãe!

—Não, senhor; porém não devo aguardar que ela esteja nos paroxismos da
morte para que lhe falem de Jesus, seu Salvador.

João saiu, e Julião fechou a loja.

Assim que o carpinteiro contou em sua casa o que se estava passando em
casa do visinho, Antonia, que se ia deitar, mostrou desejos de ir a casa
de Dôres, e, como não houvesse ninguem que podesse dissuadil-a de tal,
pois que ainda não era de todo bom o seu estado de saude, ela e seus
paes, depois de fechada a loja, foram visitar Josefa.

Quando iam a entrar, chegava tambem um sujeito que batia á porta.

Julião foi abrir, e, ao ver esse sujeito, tirou o _bonet_, que costumava
trazer em casa, e saudou-o respeitosamente, dizendo-lhe:

—Boas noites, sr. ministro.—E em seguida aos seus visinhos:—Boas noites,
senhores.

Entraram todos, e chegados á sala, depois de trocados os primeiros
cumprimentos, o ministro, dirigindo-se a Julião, disse-lhe:

—Então que ha, amigo Julião?

—Minha mãe tem uma pneumonia, e desde que caiu doente não cessa de chamar
pelo senhor.

—E posso vêl-a?

—Sim, senhor; tenha a bondade de entrar na alcova.

Entraram todos.

O ministro, chegando-se junto do leito e inclinando-se um pouco para a
doente, disse em voz baixa:

—«A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja comsigo, irmã.»

—Ah! é o sr. ministro?—exclamou a enferma, procurando erguer a cabeça.

—Sim, sou eu, porém esteja quietinha. Como está?

—Muito mal e muito bem.

—Vejamos; queira explicar-se.

—Senhor ministro; sinto-me bem, porque creio que muito em breve irei ver
o meu Jesus, e sinto-me mal, porque sofro muitissimo no corpo.

Seguiram-se alguns momentos de silencio, findos os quaes disse o ministro:

—Diga-me, querida irmã, se o Senhor a chamasse á Sua presença neste
momento, estaria preparada para se apresentar diante d’Ele?

—Oh! sim, senhor. Eu sou uma grande pecadora, porém sei que o sangue de
Jesus purifica de todo o pecado. Uma coisa me aflige, sr. ministro, e é o
saber que tenho sido ingrata desprezando o amor e a graça de Deus.

—Senhora, o perdão de Deus não tem limites, e Jesus morreu no Calvario,
dando a Sua vida pelos proprios ingratos. Agora o que é preciso é que
confie no que Ele disse: «Não temas; crê sómente, e serás salva».

—Assim o faço, senhor.

—Pois então esteja certa de que aquilo que agora sofre não é mais do que
a preparação para uma coisa melhor.

—Assim o creio; morrer é viver, porque é passar para uma outra vida em
que não haverá mais morte.

—Se é do seu agrado, vou ler-lhe alguns versiculos da Palavra de Deus.

—Sim, sim.

O ministro tirou do bolso uma Biblia, e, folheando-a, disse.

—Leiamos o cap. 11 do Evangelho segundo S. João, desde o versiculo 1 até
ao 45.

Todos estavam suspensos dos labios do bom servo de Deus.

As cinco pessoas que estavam presentes pareciam nem sequer respirar. A
enferma, essa parecia não sentir as dores que a torturavam; seguia até o
movimento dos labios do ministro.

Era evidente que o Espirito Santo estava naquela alma.

O ministro, quando acabou de ler, disse:

—Meus amigos, e minha irmã enferma, pouco posso acrescentar áquilo que
acabei de ler; sómente desejo que fixem a sua atenção, e especialmente
a querida irmã Josefa, nos versiculos 4 e 25; em que Jesus diz: «Esta
enfermidade não é para morte, mas para gloria de Deus, para que o
Filho de Deus seja glorificado por ela.» «Disse-lhe Jesus: Eu sou a
ressurreição e a vida; aquele que crê em Mim, ainda que esteja morto,
viverá.» A estas palavras, o Senhor ressuscitou a Lazaro, precisamente
porque Jesus é a ressurreição e a vida. Nós estavamos mortos em nossos
delitos e pecados, porém veiu Jesus, que é a vida, e cada um que crê
n’Ele é um Lazaro levantado do sepulcro. Por essa mesma razão S. Paulo
exclama: «Onde está, ó morte, o teu aguilhão?... Graças sejam dadas a
Deus, que nos deu a vitoria por Nosso Senhor Jesus Cristo.»

—Ah!—exclamou a senhora Josefa—quanto bem derramou o senhor, com essas
palavras, na minha alma!

—Então demos graças a Deus.

Todos tomaram uma atitude reverente, e, ao cabo dalguns segundos,
ouviu-se a voz do ministro, que dizia:

«Oh! Senhor, nosso Deus! Tu dás a saude, e Tu dás a enfermidade. Tu dás a
morte, porém tambem depois da morte uma vida que nunca acabará. Senhor,
acabamos de escutar as palavras consoladoras de Teu Filho Jesus; concede,
Senhor, que elas dêem consolação á tua serva que está doente. Sara-a,
Senhor, abençôa-a, aumenta a sua fé em Jesus, e o amor para comtigo,
e, se fôr do Teu agrado chamal-a a Ti, prepara-a para isso. Ouve-nos,
Senhor, pelo amor de Jesus Cristo, _Amen_.

_Amen_—repetiram todos.

A enferma começou a delirar, em virtude da intensidade da febre.

Neste momento, Julião, inclinando-se para sua mãe, perguntou-lhe:

—Como está, minha mãe?

—Dentro em pouco não haverá para mim nem dôr, nem aflição, nem morte...
Tudo estará acabado... e eu com Jesus no céu, e Jesus comigo...

—Não falem com ela—disse o ministro;—está sob o dominio da febre.

Fez-se um profundo silencio, e depois ouviu-se a enferma, que com voz
debil dizia:

—Vejo um logar magnifico... ali ha um Cordeiro... vêdel-o? vêdel-o? É o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.

A enferma, depois duma breve pausa, exclamou:

—Tenho sêde.

Dôres embebeu uma pequena esponja num liquido que tinha num copo, e
chegou-lha aos labios, chupando ela com avidez.

Seguiu-se outra pausa; o delirio aumentava, e tornou a ouvir-se a voz da
enferma:

—«A Jehovah chamei, estando em angustia, e Ele me respondeu...» «Jehovah,
ouve a minha oração e chegue o meu clamor á Tua presença...» «No dia
da minha angustia Te chamarei, porque Tu me respondes...» «Porque a
minha alma está cheia de males... e a minha existencia... proxima do
sepulcro...» «Agora, pois... nenhuma condenação ha... para os que estão
em Cristo Jesus.»

—Feliz delirio—exclamou Julião em voz baixa;—ele te faz gozar
antecipadamente da presença de Jesus, teu bemdito Salvador!

Dôres e Antonia choravam em silencio.

—Senhor!—disse com voz debil a enferma, dirigindo-se ao ministro:—Sinto
que morro.

—Bemaventurados—disse o ministro—os que morrem no Senhor.

—Eu sou uma grande pecadora.

—Pois precisamente porque todos somos grandes pecadores é que morremos...
O estipendio do pecado é a morte... Porém o bom Deus, que não quer a
morte do pecador, mas sim que ele se arrependa e viva, eis que á raiz do
pecado promete um perdão, dizendo: «Se o Meu povo se humilhar, e orar e
procurar o Meu rosto, e se converter dos seus maus caminhos, então Eu o
ouvirei desde os céus e perdoarei os seus pecados.» «Se os vossos pecados
fôrem da côr da escarlata, ficarão brancos como a neve; se fôrem roxos
como o carmezim, ficarão como a branca lã.»

—Eu tenho sido muito pecadora—disse Josefa, profundamente comovida.

—Jesus Cristo—continuou o ministro—veiu salvar os pecadores. Ele mesmo
disse: «Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores.»

Vou ler o capitulo 5 da Epistola de S. Paulo aos Romanos.

O ministro leu-o, e tal impressão produziu, tanto nos circunstantes como
na enferma, que era profundissimo o silencio que reinava ali.

Evidentemente o Espirito do Senhor estava ali. Os textos que mais
chamaram a atenção de Josefa foram: «Justificados, pois, pela fé, temos
paz com Deus por meio de Jesus Cristo, porque, sendo ainda pecadores,
morreu Cristo por nós; logo muito mais agora, que somos justificados pelo
Seu sangue, seremos salvos por Ele da ira; porque, se, sendo inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais, estando
reconciliados, seremos salvos por Sua vida.»

—Oh!—exclamou a enferma—confio em Ti, bom Jesus, confio em Ti. Tu me
salvas, Tu me redimiste para Deus com o Teu sangue.

—Deseja que oremos?—perguntou o ministro.

—Sim, sim, senhor, oremos.

O ministro levantou-se da cadeira, no que foi imitado pelas pessoas
presentes, ficando os visinhos bastante surpreendidos, por ser a primeira
vez que presenciavam semelhante coisa.

—Oh Senhor!—exclamou o ministro com voz solene.—Perante um espirito
prestes a abandonar a materia, perante um corpo que vae descançar, porém
cuja alma vae viver, não podemos deixar de louvar e bemdizer o Teu nome.
Senhor, ainda que Tu não tenhas necessidade disso, nós vamos recordar-Te
as Tuas promessas, pois que nisso encontramos grande consolação. Tu
enviaste Jesus Cristo ao mundo, para que todo aquele que n’Ele crê não
pereça mas tenha a vida eterna. Oh bom Deus, cumpre esta promessa na
pessoa enferma por quem Te suplicamos. Teu Filho Jesus disse: «Eu sou a
ressurreição e a vida; aquele que crê em Mim, ainda que esteja morto,
viverá». Senhor, infunde a fé de Jesus Cristo na enferma por quem Te
rogamos. Tu prometeste arremessar para as profundidades do mar os pecados
daqueles que confiam em Jesus; que isto seja assim para comnosco, e em
especial para com a nossa irmã enferma. Dá-lhe fé, para que ela tenha
animo para o tranze por que está passando; saude, se lhe convem, e
sobretudo uma abundante efusão do Teu Santo Espirito. Oh! Deus, pelos
merecimentos de Jesus, concede-nos isto... _Amen._

—_Amen_—repetiram todas as pessoas ali presentes, verdadeiramente
impressionadas.

—Senhor—exclamou Josefa, em voz fraca,—tenho a certeza de que Jesus está
á cabeceira do meu leito, com os braços abertos, aguardando a minha alma.

—Sim, minha irmã—disse o ministro.—Jesus está aguardando-a para a
conduzir á presença de Seu Pae, para receber a corôa de justiça que Ele
adquiriu para si por meio do Seu sangue. Não esqueça que Jesus disse:
«Não vos hei de deixar orfãos; virei ter comvosco. Eu sou a ressurreição
e a vida; aquele que crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá.»

E, tendo dito isto, fez sinal de se retirar.

—Vá com Deus, senhor ministro—disse Josefa, procurando erguer a
cabeça:—que o Senhor o abençôe, assim como a sua congregação; se quando
voltar já tudo tiver acabado para mim..., recomendo-lhe meus filhos...

Josefa não poude continuar. Um ataque de tosse não lhe permitiu falar,
e, quando socegou, o ministro, depois de dirigir algumas palavras de
consolação á familia, saiu.

Depois dalguns momentos de silencio, Josefa chamou.

—Que deseja, minha mãe?—perguntou Julião.

—Traze-me cá o menino—respondeu ela com voz quasi ininteligivel;—quero
dar-lhe o ultimo beijo.

—Minha mãe, socegue. Para que afligir-se se todavia...

—Não, meu filho, esta lampada vae apagar-se; não trateis de infundir-me
esperanças. Para que quero viver, se Jesus me espera?... Trazei-me o meu
neto.

Dôres entrou na alcova, levando nos braços o menino adormecido.

Ajudaram a levantar a enferma, que ficou por alguns momentos encostada a
umas travesseiras, e tomou o menino nos braços.

Extraordinario contraste! A vida nos braços da morte!

—Está a dormir—disse Dôres.

—Não importa—respondeu Josefa;—traze-me... traze-me cá uma luz, quero
vêl-o bem á vontade... a lamparina não dá bastante luz.

Uma das pessoas presentes foi buscar um candieiro.

A enferma ficou durante alguns momentos contemplando o menino.

—Oh!—exclamou—assim devia dormir Jesus quando era menino... Desejaria
vêl-o acordado, e que se risse para mim. É tão doce o sorriso duma
creança!

Naquele instante o menino abriu os olhinhos, cujas finissimas palpebras
haviam sido feridas pela forte luz do candieiro.

O pequeno Paulo olhou para um lado e para outro e começou a sorrir-se.

—Oh!—exclamou Josefa.—Que bom é Deus, que me concede até as consolações
dos pequeninos!

Em seguida beijou Paulo, dizendo:

—Senhor, abençôa este menino e prepara-o para o Teu serviço por meio de
Jesus.

Tornou a beijal-o e entregou-o a Dôres.

Ás quatro horas da manhã a febre havia desaparecido.

A enferma, mais aliviada, chamou seus filhos, que entraram na alcôva.

—Chamo-vos—disse ela—porque vou para a minha morada.

Julião e Dôres choravam em silencio.

—Porque choraes?—perguntou ela.—Vou viver com Jesus, e ali vos espero.
Podereis desejar-me coisa melhor do que esta?

—Minha mãe—disse Julião,—minha querida mãe, nós amamol-a tanto que não
podemos deixar de sentir a sua falta.

—Não tendes nada que sentir... Escutae os meus ultimos conselhos.

A enferma tinha entre as suas mãos as mãos de seus dois filhos.

Depois duma curta pausa, Josefa falou assim:

—Meus queridos filhos, lembrae-vos de mim... Sêde fieis á fé do bom
Jesus, para que vejaes vir a morte com a mais completa tranquilidade.
Educae o vosso filho no amor de Deus... Ah!... todo o carinho que me
tendes a mim transferi-o para ele... Amae-vos muito, muito, muito. Orae
ao Senhor, e agora recebei a minha benção.

Julião e sua mulher ajoelharam-se, e a velha, voltando-se, ainda que com
custo, para o lado em que eles estavam, estendeu a mão sobre a cabeça
deles e disse:

—Senhor, por amor de Jesus, rogo-Te que abenções meus filhos. Que o amor
de Deus, a graça de Jesus Cristo e a comunicação do Espirito Santo seja
comvosco. _Amen._ A morte começa a vir... já a sinto. Sim, sim, minha
amiga, vem, vem, aproxima-me de Jesus... Dizem que a morte é horrivel...
Oh! não! Quão bela me parece!

Todos choravam.

A moribunda prosseguiu:

—Não choreis, mas alegrae-vos... Julião, meu filho, não te aflijas...
Hoje é domingo: no domingo vou para o céu; oh! que domingo mais ditoso
vou passar ao lado de Jesus!... Quando tinha saude, reunia-me com os
irmãos na egreja... Hoje me reunirei com os anjos e santos no céu... Ouvi
o meu ultimo desejo... Quando pela manhã vier o ministro, rodeae o meu
corpo e fazei aqui um pequeno culto. Agora dae-me um beijo.

Julião e sua mulher beijaram a enferma.

Depois, com as mãos de seus filhos entre as suas, disse:

—Já está aqui; vejo a Jesus, que estende para mim os Seus braços... Vou
para Ti, doce esposo da minha alma. Adeus, amigos... Adeus, Dôres...
Adeus, meu filho... Jesus... rece...be... meu espiri...to...

A enferma, que havia erguido a cabeça, pousou-a de repente sobre a
travesseira.

Um grito unanime ressoou na habitação.

—Adeus, minha mãe—exclamou Julião com o coração partido de dôr.—Adeus,
minha querida mãe. Goza em paz o descanço eterno... O Senhor o deu, o
Senhor o tirou... bemdito seja o nome do Senhor.



CAPITULO X

De corpo presente


Passados os primeiros momentos de confusão, que sempre sucedem num caso
como o que acabamos de presenciar, Julião, com uma tranquilidade de
espirito admiravel, principiou a dispôr tudo o que era preciso para as
ultimas homenagens que devia tributar áquela que fôra sua mãe.

Ás oito horas da manhã, um grupo de mulheres estava conversando num dos
corredores, e, antes de entrarmos no quarto mortuario, escutemos o que
dizem.

—Sabem vocês o que sucedeu?—dizia uma das mulheres.

—Sim—respondeu uma delas;—morreu a mãe de mestre Julião.

—Sim, morreu! exclamaram todas, menos uma que disse:

—Pois não senti vir o _Viatico_.

—É claro—disse outra—que não veiu o _Viatico_; pois que a defunta não se
confessou nem sequer recebeu a _extrema unção_.

—Jesus, Maria, José!—exclamaram todas em côro.

—Pois não sabem vocês que ela era protestante?—disse a primeira que
falou.

—Ah!!...

—Os protestantes não comungam nem se confessam.

—Então morrem como cães?

—Sim, senhora.

—Sabe a visinha o que fazem?—disse uma;—eu presenciei-o quando Antonia
esteve doente. Lêem um livro a que chamam a... a... Biblia. E na verdade
que esse livro tem coisas muito bonitas: fala de Deus, de Jesus Cristo
e...

—Por muito bom que isso seja—interrompeu outra,—não se confessar a gente
e não comungar é mau. Pelo menos deviam fazel-o á hora da morte. Eu,
pela minha parte, não sou daquelas que comem com os santos; desde que me
casei, e já lá vão vinte anos, que não tornei a confessar-me; porém á
hora da morte não passarei sem o fazer. Deve forçosamente ficar com cara
de excomungada, essa gente, depois de morta!

—Sim, sim, ficam negros como o carvão.

—Porém ainda não sabe o melhor—acrescentou outra.

—O que é?—perguntaram as outras com interesse de o saberem.

—É que, se não comungam, não querem, em compensação, que os seus mortos
morram á fome.

Uma ruidosa gargalhada soou no corredor.

—Porém, se estão mortos—disse uma,—como hão de morrer de fome?

—Pois ouça—disse um tanto irritada a outra;—eles crêem que depois de
mortos comem, e por isso põem-lhes no caixão um pouco de presunto, uma
garrafa de vinho e dois pães.[1]

—Ah!—exclamou uma—isso não é verdade. Quando o padre protestante veiu
ajudar a sr.ª Josefa a bem morrer, eu estava em sua casa, e ouvi-lhe
dizer umas coisas muito bonitas... e... por tal modo o disse que nos fez
chorar.

—Isso não é motivo para que eles não creiam que os mortos comem; olhe a
visinha: no outro dia leu meu marido um livro intitulado _O monstro das
sete cabeças_, que dizia que ha uma nação, lá muito longe, em que se
crê que os mortos veem do outro mundo a este chupar o sangue dos vivos;
chamam-lhe lam... lam... vampiros.

—Sim, sim, eu não os vi, porém sei que os protestantes metem no caixão do
morto o que já disse.

—Porém—disse uma—para que mais questões sobre este assunto? Vamos ver a
morta e dissiparemos estas duvidas.

—Sim, sim—exclamaram todas.

No mesmo instante dirigiram-se a casa de Julião.

Vamos nós tambem com elas.

Quando alguem se aproxima do logar onde ha um cadaver, parece que se
respira uma certa atmosfera glacial. Ao mais indiferente e ao mais
frivolo oprime-se-lhe o coração.

Quando as mulheres entraram na sala, havia nela varias pessoas, entre as
quaes estavam Antonia, sua familia, Julião e Dôres.

Um profundo silencio reinava ali.

No meio da sala, e sobre uma mesa coberta com um pano de baeta negra,
estava um caixão, e dentro dele o cadaver de Josefa vestido de preto, o
que fazia ressaltar a brancura dum lençol que havia de servir de sudario,
e que estava agora estendido ao lado do caixão.

O cadaver tinha na cabeça uma touca engomada e adornada com uma linda
renda, o que lhe dava ao rosto um aspeto agradavel.

Nenhum sinal havia imprimido a morte naquele rosto, que estava branco
como o arminho, sulcado de veneraveis rugas, com os olhos naturalmente
fechados, os labios ligeiramente entreabertos, como se ainda respirasse,
e, a não ser pela falta de movimento no peito, qualquer pessoa teria dito
que Josefa estava dormindo um sono tranquilo.

Em suas mãos, estendidas naturalmente, tinha uma _sempre-viva_, e em seu
peito seus filhos haviam colocado um _amor-perfeito_, como a ultima e
eterna recordação que os acompanharia durante toda a sua vida.

Entretanto as mulheres que tinham ido ali com o proposito de ver o
presunto, o pão e o vinho esforçavam-se inutilmente por descobrir aqueles
objetos. Porém tudo foi em vão.

Mas, se não viam a comida nem a bebida, descobriram em troca outra coisa
não menos importante. A sr.ª Josefa não tinha luzes!!!

Uma nova personagem entrou na sala, acompanhada duma mulher, um homem e
uma creança—uma familia das relações intimas de Julião e sua mulher.

Quando apareceu na sala, passou-se uma scena de lagrimas que não
tentaremos descrever.

Depois de darem desafogo ás lagrimas, aproximou-se do caixão essa pessoa
que havia entrado, e que era o ministro. Depois de contemplar por alguns
instantes o cadaver, disse:

—Ditosa tu, que estás agora gozando as delicias eternas na presença do
Senhor.

—Não é verdade, sr. ministro—disse Julião—que o rosto de minha mãe não
ficou desfigurado?

—Não; parece melhor do que quando estava doente. A que horas morreu?

—Ás cinco.

—Quaes foram as suas ultimas palavras?

—Jámais as esquecerei!... «Senhor Jesus, recebe o meu espirito.»

Houve uma pequena pausa. Por fim, o ministro disse:

—Vamos agora celebrar um pequeno culto, deixando os que já dormem no
Senhor para nos ocuparmos de nós, que ainda peregrinamos pelo mundo. Meus
amigos—acrescentou, dirigindo-se aos circunstantes—vamos celebrar o dia
do Senhor.

Depois, tirando do bolso um livro de hinos, com não pouca surpreza da
maior parte das pessoas presentes, cantaram tres estrofes do seguinte
hino:

    Olha a linda violeta!
    Dá na sombra seu odor;
    Não se queixa, não deseja
    Ser notavel, nem maior.

    Para a violeta humilde,
    Para a mais soberba flôr,
    Sopra a mesma brisa amena,
    Vem do sol egual calor.

    Deus a toda a creatura
    Marca o proprio logar;
    Dá riqueza, dá pobreza,
    Tudo como apraza dar.

    Jesus ama e convida
    Todos para os mesmos céus:
    Ricos, pobres, jovens, velhos,
    Poderão reinar com Deus.

As vozes do cantico atrairam para a casa de Julião as atenções da
visinhança, e por tal modo que se encheu a sala, e era grande o numero de
pessoas que escutavam á porta e no passeio aquilo que para eles era uma
grande novidade.

Como temos de falar do culto que se celebrou quando tiraram o cadaver de
casa, passamos por alto este que ali se realisou, contentando-nos apenas
com dizer que todos os que ouviram ficaram extremamente comovidos, e
realmente aquela morte serviu para a vida de muitos que até então nada
sabiam do nome de Jesus.

Terminado o culto, o ministro saiu, os visinhos foram-se retirando,
fazendo comentarios, porém tão grande é a ignorancia que, todavia, não
faltavam mulheres que dissessem:

—Não lhe pozeram no caixão nem o presunto, nem o vinho, nem os pães, mas
certamente que o farão quando o cadaver sair de casa.



CAPITULO XI

Um culto funebre


Ao cair da tarde do domingo de que nos ocupámos no capitulo anterior, um
grande numero de pessoas sahia da casa do nosso amigo Julião.

A maior parte das pessoas que foram ver o cadaver, depois que sahiam,
ficavam á porta ou na rua, formando pequenos grupos.

Quasi todos os que ali estavam reunidos eram membros da egreja a que
Julião e sua familia pertenciam.

O ministro, ao terminar o culto daquele dia na sua egreja, anunciou do
pulpito que tinha falecido uma irmã em Cristo; disse onde morava, a hora
a que devia realizar-se o enterro, e por isso se achavam ali tantas
pessoas reunidas.

A aglomeração de gente chamava a atenção e atrahia um grande numero de
pessoas.

Como era muito natural, entre a multidão não havia conformidade de idéas
ou de crenças, e por isso não era raro ouvirem-se dialogos mais ou menos
burlescos ou sérios, mas que denotavam a mais completa ignorancia ácerca
das Escrituras, e o fanatismo por parte duns e o conhecimento mais ou
menos profundo delas por parte doutros.

Ouçamos alguns desses dialogos.

—Que enorme quantidade de gente que vem ao enterro da
_protestante_!—dizia uma mulher a outra.

—Sim—respondeu ela.—Vem muita gente. Serão todos amigos de Julião?

—Não; veem para fazer numero e para que se diga depois que ha muitos
protestantes em Madrid.

—Ouçam lá—interrompeu outra mulher das que estavam no portal, e que
ouvira a conversa,—nós que estamos aqui não viemos para fazer numero, mas
sim porque nos amamos uns aos outros, como Cristo nos amou.

As duas visinhas ficaram por um momento silenciosas, fitando de alto a
baixo a mulher que havia interrompido a conversa. Por fim uma delas disse:

—E diga-me, minha senhora: neste enterro dão velas?

—Não, senhora, porque não precisamos de velas.

—Como se meteu na nossa conversa julguei...

—Quê?

—Que davam velas.

—Pois já fica sabendo que não.

—Parece-me que a senhora é uma dessas agentes do protestantismo que andam
a arranjar pessoas para a seita; porém advirto-lhe que aqui perde o seu
tempo, porque, pelo que respeita a nós, nem a senhora nem ninguem nos
engana. Vá, amigasinha, vá divertir-se no enterro, e passe muito bem.

Entretanto, um homem, já de edade avançada, discutia na rua com varios
jovens que o rodeavam.

—Sim, senhores: entre nós, quando um irmão morre, somos nós mesmos que o
conduzimos e o enterramos com as nossas proprias mãos, sempre na terra,
porque nos cemiterios evangelicos não ha _nichos_, nem _galerias_,
para os cadaveres, e que custam dinheiro; de modo que quem entra num
cemiterio catolico pode muito bem figurar-se que está lendo os preços dos
logares dum teatro, onde o rico se assenta num camarote, e o pobre vae
para a _geral_.

—Isso é muito natural—disse um.

—Não o julgo assim; pois, ensinando-nos os padres que uma das obras de
misericordia é enterrar os mortos, são eles proprios que levam dinheiro.

—Ouça lá—interrompeu outro,—tambem muitas vezes enterram de graça.

—Sim!—exclamou o velho—bonito enterro, não tem duvida! Comparemos.
Morre qualquer pessoa que deixa, por exemplo, uns dois mil duros. Então
a egreja, que é de todos, se converte no patrimonio dum. Ao longo das
naves colocam bancos cobertos de pano preto; acendem-se todos os altares;
as luzes, em volta da eça, não teem numero; no côro cantam-se os hinos
proprios, acompanhados por uma orquestra, que á noite terá de servir no
teatro; os sacerdotes trajam as suas mais ricas vestes e... que sei eu
quantas coisas mais; os padres cantam com toda a força dos pulmões, os
meninos do côro correm alegres dum lado para o outro: o sacristão anda
numa roda viva: o defunto é _gordo_ e... tanto basta... Porém morre
um pobre. Pois então a coisa muda completamente de figura. Uma mulher
miseravelmente vestida dirige-se a casa do pároco, e diz-lhe, entre
lagrimas e soluços, que lhe morreu seu marido, seu pae ou seu irmão; o
padre toma nota das indicações que a mulher lhe dá, porém quando vem a
saber que é pobre e que tem de fazer o enterro por _caridade_, diz-lhe
que se retire, e que á hora aprasada lá irão buscar o cadaver. Ora,
porque o padre tem que fazer, não vae a casa do defunto; os doridos
pedem aos visinhos que o acompanhem ao cemiterio; estes assim o fazem,
e, quando lá chegam, aproxima-se o padre, que diz um tal latinorio
qualquer, deita-lhe uma _hissopada_ de agua, a que chamam benta, e
retira-se. Ora diga-me: É isto uma obra de misericordia? Onde está aqui a
caridade?

—Que divertido é o velho!—disse um daqueles jovens.

—Que divertido! que divertido!—gritavam outros _bons catolicos_.

Neste momento ouve-se dizer: «Ahi vem o ministro.»

Efectivamente no meio do grupo que discutia apresentou-se um cavalheiro
vestido de preto, que disse.

—«Recebei o fraco na fé, e não para contendas de disputas.»

Em meio do silencio repentino que produziram as palavras desta personagem
os jovens criticos desapareceram.

Entretanto o ministro disse-lhes como o haviam informado do sucedido e
aconselhou prudencia, entrando depois na casa mortuaria, seguido dum
grande numero de pessoas.

Um silencio profundo, sómente interrompido pelos soluços entrecortados
dalgumas pessoas, reinava na sala onde estava depositado o cadaver de
Josefa.

Junto á janela do pateo estava apinhado um grande numero de pessoas,
tanto visinhas como estranhas, e diz-se que o proprio Padre Francisco,
que morava no andar superior, estava entre o povo, vestido á secular, com
o fim de perturbar a ordem. O corredor e o portal estavam atulhados de
pessoas.

Depois que o ministro proferiu algumas palavras, disse:—Agora vamos
celebrar um culto ao Senhor, e para isso vamos pedir-Lhe o Seu auxilio.

Todos os circunstantes se descobriram, e a voz do ministro se elevou em
tom solene, dizendo:

«—Em nome do Pae, do Filho e do Espirito Santo. _Amen._

—Cantemos o hino seguinte:

    Tu és a minha esperança,
    Achou minha alma em Ti
    A paz e segurança
    Que carecia aqui.

    Desde que a Ti conheço,
    Desde que Te abracei,
    Receios mais não sinto
    Nem tremo mais da lei.

    A espada da justiça
    Suspensa sobre mim,
    Foi já descarregada,
    Meu Salvador, em Ti.

    O golpe que levaste
    Foi só em meu logar,
    Porquanto, assim quizeste
    Por fiador ficar.

    Ah! quanto amor sentias,
    Meu Salvador, Jesus!
    Quando por mim morreste
    Na ensanguentada cruz.

    E quanto não me cumpre
    A vida consagrar
    A Ti, que Te ofereceste
    Minha alma resgatar.

Terminado o hino, que produziu opiniões desencontradas nas pessoas
presentes, o ministro, abrindo a sua Biblia, disse:

Escutae, meus irmãos e amigos, o que está escrito na Palavra de Deus, na
primeira Epistola de S. Paulo aos Corintios, cap. 15.

       *       *       *       *       *

Quando o ministro terminou a leitura, disse:

Meditemos agora sobre o versiculo 22 do capitulo que acabamos de ler.

Amados irmãos e amigos: Deus, por um ato da Sua infinita misericordia,
reuniu-nos hoje aqui em redor dum cadaver para obrigar-nos a pensar no
que somos e quando e como morreremos. Com relação ao primeiro ponto, o
que é a vida do homem, as Escrituras nos dizem que é vaidade, e que os
seus dias passam como a sombra. No livro do Eclesiastes lemos: «Quem sabe
qual é o bem do homem na vida? Todos os seus dias são vaidade, os quaes
passam como sombra.» Agora na presença deste cadaver, que é um dos muitos
testemunhos sagrados que existem, o homem perguntará: «Nasci eu tão
sómente para sofrer e morrer?» Não, certamente. O homem não foi creado
para sofrer e morrer, o homem foi creado para gozar e ser feliz; porém o
homem, por um ato do seu livre arbitrio, atraiu a morte sobre si e sobre
toda a terra.

Pouco a pouco foram-se todos retirando, e muitos daqueles que ali tinham
ido por curiosidade ou por espirito de critica sairam, dizendo o que
disse a mulher que foi ver se descobria no caixão o presunto, o vinho e
os pães:

—Não se pode dizer nada em presença disto. O que é certo é que isto é
mais serio e ha nisto mais verdade do que em tudo o que vêmos na nossa
egreja. Desde hoje, ainda que eu o não seja, defenderei os protestantes,
e ámanhã... ámanhã, quem sabe?...

O enterro de Josefa, ou, antes, a sua morte, foi um acontecimento para os
visinhos da casa que já conhecemos.

[Illustration: «Então como vae o trabalho?»

Pag. 100.]

Faziam-se os mais singulares comentarios; e na visinhança falava-se
animadamente disto. Para podermos apreciar a sensação que aquele ato
causou, ouçamos alguma coisa do que se diz.

Estamos no corredor do terceiro andar da mesma casa em que morava Julião.

—Diga-me cá, senhora Francisca. Esteve hontem no enterro _protestante_?

—Sim, senhora Amalia, estive, e creia que o que diziam do pão e do vinho
é mentira.

—Como?

—É o que lhe digo, e, se não se fia em mim, pergunte-o á senhora Vitoria,
que foi comigo.

—Filha—disse Vitoria,—o que lhe sei dizer é que aquilo é mais serio do
que o que imaginei, e que nada se parece com os nossos enterros. No
enterro dos protestantes ha mais caridade do que nos nossos.

—Pode muito bem ser—replicou Amalia—que os padres falem mal dessa
religião porque não lhes convenha que ela se estabeleça entre nós.

—Senhoras—disse Vitoria,—proponho que vamos á egreja protestante para
vermos o que aquilo é.

—Sim, sim, iremos.

—Porém, amigas—disse Francisca,—não teem observado que caracter tão bom é
o da familia de Julião?

—Sim, sim—respondeu Vitoria,—não negam um favor a ninguem. Olhe, quando
meu marido caiu enfermo, Dôres foi a primeira que veiu perguntar se
era preciso alguma coisa, e ao sair deixou-me um duro, que eu lhe quiz
restituir, e que ela nunca quiz receber. São muito caritativos.

Assim continuam falando; porém deixemol-as para irmos ouvir dois amigos
nossos.

—Creio, querida Brigida, que já estarás convencida, e que se antes
julgava mal era porque me haviam dito o contrario do que tenho visto.

—Minha mãe, não resista ás verdades do Evangelho. Viu como morreu a mãe
de Dôres. Que fé não manifestou até ao seu ultimo suspiro! E, como vê,
ela não se confessou nem comungou, e no emtanto recebeu a morte com a
alegria que todos presenciámos.

—É verdade, é verdade!

—Creia-me, minha mãe, no que lhe digo. Venha comnosco á capela, e verá
como ali se fala de Jesus. Tenha fé para ter vida em sua alma. Jesus é
tudo, e sem Jesus não ha nada. Jesus é amor, como Seu Pae é amor; e se
o amor do Pae se demonstra duma maneira tão manifesta, em dar Seu Filho
para morrer por nós, não foi menor o amor de Jesus em dar-Se a Si por nós.

—Bom, bom; irei á capela, e verei. A verdade é que tenho visto coisas que
me teem agradado.

Taes eram as disposições em que esta familia se achava. Em casa de Julião
reinava a mais completa tranquilidade. A loja foi aberta no outro dia
á hora do costume, e tudo voltou a seguir o seu curso ordinario. A fé
daqueles dois esposos havia resistido áquela durissima prova.



CAPITULO XII

Intrigas do confessionario


Passado um mez depois da morte de Josefa, estava Julião uma manhã
trabalhando á sua banca, quando uma joven se apresentou na loja, dizendo:

—Senhor mestre, meu amo manda dizer que venha comigo para pôr uns vidros
que se quebraram.

Julião olhou com bastante surpreza para a rapariga, e por fim
respondeu-lhe:

—Diga a seu amo que dentro dalguns minutos lá irei.

A rapariga saiu, e Julião dirigiu-se imediatamente á sala onde estava sua
mulher, para lhe dizer:

—Não sabes, Dôres, quem me chamou para me dar trabalho?

—Se tu ainda mo não disseste...

—Pois acaba de estar na loja a creada do P.ᵉ Francisco, que me mandou
chamar para lhe ir pôr uns vidros. Que julgas disto?

Dôres ficou um tanto pensativa, e depois disse:

—Penso que esse homem te chama para fazer-te mal.

—A mim?

—Sim, a ti, ou, antes, a nós.

—Confio em Deus, e isso me basta.

Julião saiu, e dentro de poucos momentos estava no gabinete do sacerdote.

Depois de se saudarem mutuamente, o P.ᵉ Francisco disse:

—Certamente que ha de estranhar que eu o mandasse chamar, não é verdade?

—Com franqueza—respondeu Julião,—nem estranho, nem deixo de estranhar.

—É que eu estou convencido de que o senhor é um homem de bem, mas um
pouco exaltado em assuntos de religião; um dia virá, porém, em que caia
em si e se arrependa; finalmente, eu rogarei á Virgem para que assim
suceda. Agora cumpra a missão para que o mandei cá chamar.

—Sim, senhor, tomarei a medida e irei em seguida colocar os vidros.

Julião saiu; e o padre, passeando pela casa, dizia, falando comsigo mesmo:

—Já está lançada a rêde, e o peixe cairá nas suas malhas.

Julião entrou em seguida, e, emquanto punha os vidros, disse-lhe o P.ᵉ
Francisco:

—Tome lá um cigarro, sr. Julião.

Julião aceitou o cigarro que o padre lhe ofereceu, e em seguida foi
ocupar-se do seu serviço.

Passados alguns momentos, o P.ᵉ Francisco disse:

—Então, como vae o trabalho?

—Bem, graças a Deus.

O sacerdote não sabia como principiar a conversa que tinha por fim
averiguar quem eram os que com Julião frequentavam a capela evangelica.
Assim é que, com uma refinada sagacidade, disse:

—Eu não vejo um grande movimento de obras em Madrid. Não ha construções;
quem tem dinheiro guarda-o, e isso não é bom sinal.

—Pois agora vae ter logar um grande numero de edificações, e eu espero
tomar de arrematação tudo o que diz respeito á minha arte, num novo
bairro que se vae abrir.

Os olhos do padre faiscaram raios de alegria, porém dissimulou quanto
pôde, e, com ares de indiferença, disse ao vidraceiro:

—E quem é o capitalista que vae empreender essas construções?

—O conde de X...—respondeu Julião, emquanto colocava um vidro no caixilho
da janela.

O padre saltou de alegria. Se Julião o tivesse visto, desde logo teria
suspeitado de alguma coisa; porém, felizmente para o sacerdote, e
infelizmente para ele, estava de costas, ocupado no seu trabalho, e não
pôde notar coisa nenhuma.

—Isso é bom, mestre, isso é bom—disse o P.ᵉ Francisco—ter bons freguezes;
agora o que é preciso é não os deixar fugir.

—É casa que paga muito bem aos operarios e artistas a quem dá trabalho.

—Diga-me agora: no caso de que seu filho viva, que modo de vida pretende
dar-lhe?

—Ele é ainda muito pequenino para falarmos disso; porém, sem embargo, o
que eu lhe afirmo é que não violentarei a vocação de meu filho; ofereci-o
ao Senhor, e teria muito gosto em poder vêl-o um ministro d’Ele.

—Porém, homem, se me permite, dir-lhe-hei que não pode haver um fiel
ministro do Senhor fóra da egreja romana.

—Perdõe, sr. P.ᵉ Francisco; porém, se um individuo prega o Evangelho com
fidelidade, esse tal é um fiel ministro do Senhor.

—Bem, não nos metamos em discussão; porém creia-me, e é só isso o que lhe
digo, que se não muda de idéas a mão de Deus retirar-se-ha de si.

—Pois eu creio exactamente o contrario, porque Deus me ama.

Nisto Julião terminou o trabalho da colocação dos vidros, e em seguida
despediu-se do P.ᵉ Francisco, que lhe disse que lhe mandaria, dahi a
momentos, a importancia da obra.

Quando Julião saiu, o P.ᵉ Francisco exclamou:

—Anda, imbecil; vendeste-te a ti mesmo. Então queres que essa creança
cresça, para que ámanhã seja uma vibora para os catolicos?! Antes disso
morrerás tu de fome! A guerra está declarada... Ou eu te reduzo á
miseria, ou tu renegas o protestantismo. A senhora do conde de X... é
confessada dum amigo meu, e já podes, miseravel vidraceiro, contar com a
freguezia perdida. Agora mais do que nunca, vou ser seu amigo, e veremos.

Entretanto, Julião chegou ao portal onde se encontrou com mestre João, o
qual disse ao vêl-o:

—Olá, sr. João, como vamos?

—Eu—respondeu o carpinteiro—vou bem, graças a Deus. Porém donde vem o
visinho?

—Aposto que não atina.

—Eu não.

—Pois venho do andar de cima, de pôr uns vidros.

—De casa do P.ᵉ Francisco?—perguntou mestre João, surpreendido.

—Sim, senhor, de casa do P.ᵉ Francisco mesmo. Mandou-me chamar, subi e
portou-se comigo muito bem.

—Pois sabe você o que vejo em tudo isso? É que o padre trama alguma coisa
contra si.

—Isso mesmo me disse Dôres; porém não deixa de ser um mau pensamento,
tanto da sua parte como da parte dela. Não abrigue em si maus
pensamentos, sr. João, pois já sabe que Jesus disse: «Não julgueis para
não serdes julgados, pois que com a medida com que medirdes vos medirão a
vós tambem».

—É verdade isso, amigo; porém tambem deve saber que no mesmo capitulo
Jesus disse: «Pelos frutos os conhecereis». Já vou aprendendo alguma
coisa da Biblia.

—Alegro-me muito com isso, sr. João, alegro-me muito. Até logo.

Ambos os visinhos se separaram, indo cada qual para sua casa.

       *       *       *       *       *

Estamos no interior da egreja de ..., em Madrid.

Á direita da porta da entrada ha um canto escuro, e nele uma especie de
guarita, mais ou menos artistica, que é aquilo a que a egreja romana
chama um _confessionario_.

Ali dentro senta-se uma personagem mais sombria ainda; junto á grade do
confessionario está uma senhora elegantemente vestida. Não podemos saber
se é nova ou velha, porque tem o rosto coberto com um véu negro.

Aproximemo-nos silenciosamente, e, ainda que nos alcunhem de indiscretos,
escutemos a confissão desta senhora, a qual pode interessar-nos alguma
coisa. Neste momento fala o padre.

—Quanto tempo tem V. Ex.ª deixado passar desde que se confessou pela
ultima vez?

—Quinze dias, meu padre—respondeu a penitente;—mas não me dê esse
tratamento, peço-lhe.

—Quinze dias! Porque esteve todo esse tempo sem vir ao tribunal da
penitencia?

—Meu padre, não tenho podido, porque... nos foi necessario, umas vezes,
receber em nossa casa, outras ir ao Paço, e ainda outras ocuparmo-nos de
coisas similhantes.

—Isso não é desculpa, mas, emfim, sente-se arrependida de ter deixado
decorrer todo esse tempo sem vir lavar a sua alma?

—Sinto-me, sim, senhor.

—Passemos a outro assunto. Cumpriu a ultima penitencia?

—Sim, padre, e acrescentei tres missas no altar de S. Sebastião.

—A Virgem lhe recompensará essa acção.

—Ah, meu padre, tenho tanto de que acusar-me! Sou uma tão grande pecadora!

—Animo, filha, animo! Entregue todos os seus cuidados ao confessor, que
acha sempre disposto a perdoar, pois que lhe foi conferido esse poder por
Jesus Cristo, quando Este disse: _Et quodcumque ligaveris super terram
erit ligatum est in coelis, et quodcumque solveris super terram, erit
solutum est in coelis._ Comecemos agora a confissão pelos mandamentos.

—Acuso-me de não amar a Deus, pois que, se O amasse, não O teria ofendido.

—Adeante.

—Posto que não tenha muito o costume de jurar, creio que o fiz.

—Quantas vezes por mez?

—Não me lembro, meu padre.

—Quantas vezes por dia?

—Não posso tambem dizer.

—Quantas vezes por hora, ao menos?

—Não sei, já disse.

—Em resumo, não sabe coisa alguma... É natural. Tanto tempo sem se
confessar! E com respeito ao terceiro mandamento, o de guardar os dias
santificados?[2]

—Acuso-me de, na quarta-feira da semana passada, que era dia de festa,
não ter ido á missa.

O padre fez um movimento brusco, e exclamou numa voz a custo reprimida:

—Isso é demais, senhora condessa. Não posso tolerar que caia em
similhantes faltas, e se V. Ex.ª...

—Meu padre—murmurou, aterrada, a dama,—não me dê esse tratamento. Quando
me trata por condessa, fico a tremer, porque é para mim um sinal de que
está zangado.

—E estou-o, com efeito, minha senhora; não assistir á missa em dia de
preceito é uma coisa horrivel. Não posso perdoar-lhe. Chore, chore, mas
lembre-se de que o que é necessario são atos e não lagrimas.

—Imponha-me a penitencia que quizer; estou disposta a cumpril-a; por
minha parte mandarei hoje dizer duas missas no altar das almas.

—Bem, bem, é preciso emendar-se, porque o diabo, oh! o diabo é muito
sagaz, e, como sabe que a senhora condessa é tão boa, quer distrail-a do
cumprimento dos seus deveres, e isso é obra de Satanaz. Vá, continue.

—O quarto, honrar pae e mãe; mando dizer muitas e muitas missas por alma
de meus paes, e assim os honro; amo e respeito os _ministros do altar_.

—Tem rezado pelo nosso pae espiritual, o Sumo Pontifice?

—Sim, padre; tenho rogado a Deus para que aumente os seus dias e a sua
_infalibilidade_, para bem da egreja.

—Isso é muito louvavel, minha filha, e a Virgem vê com agrado tudo o que
fazemos.

Passemos ao quinto mandamento.

—Disso não tenho que acusar-me.

Não é estranho que a condessa de X... não sentisse remorsos na sua
consciencia em face deste mandamento; pois ela, como a maior parte dos
catolicos, ignorava que não mata o seu similhante só aquele que dá um
tiro ou uma punhalada, cometendo peor acção aquele que mata a honra do
individuo; pois que a calunia é peor do que um punhal.

Porém continuemos escutando a confissão, pois que, absorvidos nas nossas
reflexões, deixámos de ouvir um mandamento. O padre diz:

—Tem alguma coisa de que acusar-se com respeito ao setimo mandamento?

—Não, padre; pelo menos que eu me lembre.

—E com respeito ao oitavo?

—Padre, algumas vezes tenho mentido.

—Quantas?

—Não me lembro, padre.

—Porém, mentiras graves ou leves?

—Não, senhor; não são graves.

—Nada diremos do nono; porém o que me diz ácerca do decimo mandamento?

—Digo, padre, que desejo servir a Deus e amal-O sobre todas as coisas.

—Deseja servir e amar a Deus?

—Sim, padre.

—Pois essa é a tarefa mais dificil e, portanto, a mais meritoria nestes
tempos. A heresia tem invadido tudo; hoje diz-se mal de tudo; põe-se em
duvida o poder da Virgem, e fazem-se esforços inauditos para destruir a
religião que recebemos dos nossos paes.

A condessa deu um suspiro.

—Sim—continuou o padre,—é preciso desagravar a tão fortemente agravada
Virgem Maria, e os maiores inimigos que tem a religião são os
protestantes.

—E quem são essas pessoas?

—É uma canalha, senhora condessa, uma canalha; inimiga do clero e da
nobreza... Porém são de uma sagacidade pasmosa, metem-se em toda a parte
e, como pertencem ás mais infimas camadas da sociedade, necessitam de
trabalhar para comer, e não se lhes importa comer o pão daqueles proprios
a quem odeiam... Oh! aquelas pessoas que teem operarios devem ser muito
cautelosas em saberem a gente que empregam no seu serviço!

—Hoje mesmo falarei ao administrador da minha casa, e, se houver lá algum
operario nessas condições, será imediatamente despedido.

—Pois era ahi que eu queria chegar, sr.ª condessa. V. ex.ª tem muito
perto de sua casa um protestante.

—Jesus! Maria Santissima!

—Sim, senhora, é o mestre vidraceiro a quem o sr. conde vae dar trabalho
no novo bairro que projeta mandar edificar. Certamente que todo o
dinheiro que ganha o empregará contra os padres, e em favor dos da sua
seita.

—O vidraceiro é protestante!

—Sim, senhora; tão protestante como o foi sua mãe, a qual morreu sem se
confessar, exatamente como se fosse um cão.

—Pois nas poucas vezes que o vi pareceu-me bom homem. O outro dia vi-o
falar com os creados, e chamou-me a atenção o interesse com que o
escutavam.

—Provavelmente estaria prégando as suas perversas doutrinas.

—E que devo fazer?

O confessor figurou uma grande surpreza e exclamou:

—Pergunta v. ex.ª o que deve fazer? E v. ex. diz que serve a Deus?

—Padre, padre—interrompeu a condessa, chorando copiosamente,—não me
atormente; perdão, senhor, perdão... Aconselhe-me o que devo fazer...

—É de todo o ponto preciso que v. exª e o sr. conde chamem esse homem, e,
se ele não abandonar o seu erro, devem despedil-o e retirarem-lhe toda a
protecção.

—Porém, padre, ele pode dizer que não é protestante ou que deixa de o
ser; e nesse caso que fazer?

O padre ficou pensativo, e depois respondeu:

—Em qualquer dos casos, v. ex.ª não o despede até que eu a avise; porém,
se teima em confessar as suas idéas e é pertinaz, então rua com ele no
mesmo instante.

—Assim o farei, meu padre; porém permite-me uma pergunta?

—Sim, senhora.

—Como soube isso do vidraceiro?

—Senhora, nós, os ministros da religião, velamos pelas almas que nos
estão confiadas. Vamos, porém, adeante. Tem mais alguns pecados de que
acusar-se?

—Sim, mas não me lembro deles.

—Bom; eu perdôo-lhe todos os pecados, tanto os confessados como os
esquecidos, _sub conditione_.

—Como?

—Com a condição de que ha de fazer o que lhe tenho dito.

—Sim, padre, sim.

—Pois agora vou dar-lhe a seguinte penitencia: jejuar durante sete
dias, rezando em cada dia, á hora a que devia almoçar, um rosario, tres
salvé-rainhas e tres crédos; além disto, deve ouvir sete missas, sendo
quatro pagas por v. ex.ª, em desagravo de Maria Santissima e pelas
bemditas almas do purgatorio; isto como justa expiação de ter ficado sem
missa no dia preceituado pela egreja como dia de guarda.

—Agora, pergunto-lhe: sabe de alguma esmola que eu possa fazer?

—As freiras de A. precisam dum sino maior do que aquele que teem.

—Pois bem, eu me encarregarei disso. Far-lhes-hei presente dum sino cujo
som seja claro e se ouça distintamente ao longe.

—Bem, filha, muito bem; isso é muito meritorio, pois que o sino é a voz
de Deus. (Pobres visinhos dos arredores do convento!).

—Agora—continuou o padre,—prepare-se para eu a absolver.

A condessa curvou-se, dizendo o acto de contrição, emquanto que o
sacerdote pronunciava algumas palavras em latim. Depois deu a mão
a beijar á condessa, e saiu do confessionario, emquanto que ela se
levantava pensando na penitencia que tinha de cumprir.

Agora tres perguntas e tres respostas:

Quem perdeu nessa confissão?

O nosso amigo Julião e os visinhos do convento de A.

Quem ganhou?

As freiras do convento de A. e outros.

É esta a confissão que Nosso Senhor Jesus Cristo e os apostolos
ordenaram, em Seu nome?

Os leitores que respondam.



CAPITULO XIII

Frutos do confessionario


Julião estava um dia com sua mulher, com a mulher do carpinteiro e com
Antonia, celebrando um culto de familia.

O texto que estudavam era aquele que se acha escrito nos Proverbios,
que diz: A maldição de Jehovah está sobre a casa do impio, porém Ele
abençoará a morada dos justos.

Julião dizia:

—Deus não pode faltar ás Suas promessas; portanto, confiemos na Sua
divina misericordia, que Ele certamente não poderá deixar de nos
socorrer. Se o Senhor nos causa hoje aflições, aceitemol-as como uma
benção dele; se nos manda alegrias, recebamol-as egualmente, porque dele
dimanam.

Depois que oraram, Julião veiu para a loja e principiou o seu trabalho.

Cerca das nove horas da manhã, apresentou-se na loja um individuo que
saudou afavelmente o mestre, dizendo-lhe em seguida:

—Mestre, o sr. conde mandou-o chamar.

Julião foi imediatamente.

No momento em que Julião foi introduzido na sala, o conde, recostado numa
cadeira, fumava tranquilamente, emquanto que a condessa estava sentada
numa outra, entretida a folhear um _album_.

—O mestre vidraceiro—disse o administrador, inclinando-se na presença dos
seus amos.

Julião saudou-os com um movimento de cabeça. O conde falou assim:

—Vocemecê foi sempre quem fez o trabalho cá da casa; porém, agora...
agora..., finalmente, agora a sr.ª condessa lhe dirá o que tem a dizer;
eu não posso ocupar-me de nada; tenho muito em que pensar; fala tu,
condessa.

—Vocemecê é que é o vidraceiro da casa?

—Sim, sr.ª condessa.

—Pois amigo, eu não posso, ainda que me pese, deixar de lhe dizer que não
estamos satisfeitos comsigo.

—Então em que ofendi eu os senhores condes?—perguntou Julião,
surpreendido.

—Quero que todos os nossos operarios tenham uma irrepreensivel conduta
religiosa, que cumpram fielmente todos os preceitos da egreja; do
contrario, serão despedidos, e não poderão contar comnosco para coisa
alguma. Diga-me uma coisa: costuma ouvir missa?

—Contando com a benevolencia de V. Ex.ª, atrevo-me a dizer que isto tem
toda a aparencia de uma confissão, e desde já declaro que só a Deus é que
me confesso. V. Ex.ª pergunta-me se vou á missa; mas eu pergunto, por
minha vez: «Para que hei de assistir á missa, se não compreendo o que o
padre diz?»

—Não estou para discussões: disseram-me que vocemecê era protestante, e
eu não quero negocios com essa gente.

—Sou cristão, minha senhora.

—Nesse caso, não tenho nada a dizer. Mas que vem a ser isso de não
entender a missa?

—E V. Ex.ª entende-a, porventura?

—Entendo.

—Pois pela minha parte, como desconheço a lingua de que se faz uso na
missa, nada daquilo tem significação alguma. Peço licença para lhe
observar uma coisa. S. Paulo, escrevendo aos Corintios, diz: «Dou graças
a Deus, que falo todas as linguas que vós falaes, mas eu antes quero
falar na egreja cinco palavras da minha inteligencia, para instruir
tambem os outros, do que dez mil palavras em lingua estranha».

—Nós não temos nada com o que S. Paulo disse ou deixou de dizer; os bons
catolicos devem guiar-se por aquilo que a egreja estabeleceu, e seguirem
o conselho dos seus confessores. A missa é o sacrificio de Cristo na
cruz, e os fieis podem, lá no seu intimo, aplical-a a este ou áquele fim.

—Senhora condessa, V. Ex.ª está num lamentavel erro. O sacrificio de
Cristo não se pode repetir.

—Não trato agora dessas questões, e o que desejo é que me diga
claramente: é catolico ou protestante? crê na Virgem? crê no Papa?

—Creio em Jesus Cristo, e só nele confio; se isto é ser protestante,
então sou-o, de facto.

—Ouves, conde?

—Ouço—respondeu este, e acrescentou:—De hoje em deante não quero mais
negocios comsigo, sr. Julião. Queira retirar-se, para não mais pôr os pés
nesta casa.

—Senhor conde, estou persuadido de que cumpri sempre com a minha
obrigação, e, se o ser cristão obsta a que eu entre em sua casa, não me
convem de fórma alguma estar aqui. Logo que terminar o trabalho que tenho
entre mãos, deixará de os incomodar a minha presença.

—Não, não—exclamou a condessa;—retire-se quanto antes.

—Mas é que, minha senhora, dispendi em aviamentos para a restauração
desta sala uma quantia para mim bastante elevada, e se não concluo a obra
sofro um grande prejuizo.

—E que tenho eu com isso? Vá ter com os seus amigos protestantes que lhe
paguem.

—Senhora—exclamou, indignado, Julião,—os protestantes, meus amigos, ou,
para melhor dizer, meus amados irmãos, nada me devem; quem fez com que eu
empregasse em materiaes o fruto dos meus labores foram os condes de X,
que teem obrigação de me pagar.

—Pois bem—disse o conde,—paga-se-lhe tudo, para que se vá embora.

—Não—gritou a condessa,—não se lhe paga coisa alguma; se comprou
material, não o comprasse. Ou renega a sua religião, ou põe-se já na rua.

—Renegar Cristo!—exclamou Julião;—não, senhora condessa, isso é que não.
Cristo deu a Sua vida por mim, e não O vendo por um punhado de oiro. A
Escritura fala dum Judas, não fala de dois. Fique com o dinheiro, e faça
de conta que lho dei de presente.

—Não sei como me contenho—exclamou o conde;—se não fosse por sujar a mão,
fazia calar essa boca. Ponham este homem lá fóra—ajuntou ele, chamando
pelos creados.

—Não é necessario, que eu sei onde é a porta. Que Deus lhes perdôe o
prejuizo que me causaram.

Julião retirou-se. O palacio dos condes era situado na Castelana, e o
vidraceiro, assentando-se num banco que ficava á sombra duma arvore,
tirou a sua Biblia da algibeira, e, enxugando algumas lagrimas rebeldes,
leu estas consoladoras palavras: «_Nenhum te poderá resistir todo o tempo
que viveres: como fui com Moisés, assim serei comtigo; não te deixarei
nem te desampararei_». (Josué, 1:5).

Depois entrou em casa, e contou a sua mulher o que se havia passado.

—E que vaes tu fazer com esse material perdido?—perguntou lhe a esposa.

—Procurar—respondeu Julião—quem o compre, ainda que seja por menos preço.

—Ai, Julião! Não sei que estranho pressentimento me diz que o P.ᵉ
Francisco tem parte neste negocio.

Julião foi para a loja e poz-se a trabalhar. De tarde, o P.ᵉ Francisco
apareceu na loja, dizendo-lhe:

—Venho pagar-lhe uma divida.

O padre tirou um _porte-monnaie_ e, dando-lhe o dinheiro, disse-lhe:

—Parece-me que não está bom. A sua cara, pelo menos, indica que vocemecê
está mal de saude.

—Graças a Deus, não estou; porém tive hoje um grande desgosto.

—Vamos lá; questões domesticas, não é verdade?

—Não, senhor—respondeu Julião,—desgostos com os freguezes.

O padre compreendeu imediatamente tudo, pois o seu amigo, o confessor da
condessa de X... já lhe havia dito que Julião ia ser despedido. O P.ᵉ
Francisco conheceu que não devia dizer palavra, e ia a retirar-se quando
uma nova personagem entrou na loja de Julião.

—Boas tardes—disse ele ao entrar.

Todos responderam á saudação, acrescentando Julião:

—Como! O senhor por aqui?

—Homem—respondeu o recem-chegado em tom familiar,—venho ralhar comsigo.

—Ora essa!

—Encurtando razões. Quero abrir o café no dia primeiro. —Pois olhe, sr.
Mariano, como vê, já comprei o zinco e estão trabalhando nele; porém para
estar pronto para esse dia, é impossivel.

—Porém, faltando ainda quatro dias até lá, parece-me...

—Desculpe, mas são apenas tres dias!

—Como? Quinta, sexta, sabado, domingo, são quatro.

—Não, senhor, não deve contar o domingo.

—Já principiamos com exquisitices, não é verdade? Não seja doido nem
fanatico. Essas preocupações significam o retrocesso de oitenta anos.

—Será o que quizer, porém Deus é mais antigo do que o senhor; portanto,
entre Ele, que me manda não trabalhar, e o senhor, que manda que eu
trabalhe, devo obedecer antes a Ele do que ao senhor.

—Porém, não conhece que Deus não se intromete nessas coisas? Que lhe
importa a Deus que vocemecê trabalhe ou não? Não faça mal a ninguem, que
trabalhar não é pecado, não é verdade, sr. padre Francisco?

—Deus quer—respondeu o padre Francisco—que se santifiquem os dias de
festa. No domingo e mais dias preceituados pela egreja deve-se ouvir
missa... depois... se é preciso trabalhar, pode-se fazer mediante
licença. Julião, porém, como é protestante...

—Quê! vocemecê é protestante?—exclamou o freguez.

—Sou cristão evangelico—respondeu Julião.

—Pois, mestre, assim não está bem. Não vê que todos os freguezes o vão
deixar? Protestante é a coisa peor que pode haver! porque é não ser
hespanhol.

—O que é ser protestante—exclamou Julião, já um pouco exaltado—é ser
mais hespanhol do que muitos; protestante é ser bom filho, bom pae,
bom esposo, bom amigo e um bom crente em Jesus. Os catolicos romanos
desprezam os mandamentos de Deus e submetem-se ao capricho dos homens;
chamam doidos e fanaticos áqueles que os guardam, taes quaes se encontram
na Biblia, e crêem em milagres, em bulas, em reliquias, em infernos com
caldeiras de pez, em diabos grandes e diabos pequenos, em serpentes que
se enroscam, em um purgatorio de que Jesus não teve a menor noticia, em
um _limbo_, em bulas a gosto do comprador... em tudo, menos em Jesus e no
Evangelho.

—Julião, Julião—disse o sacerdote,—não fale de tal modo, porque não faz
mais do que dizer blasfemias.

—Ao catolico romano pouco se lhe importa ir á missa e dali ao baile; isto
no dia do Senhor. E que proveito tira da missa?

—Ouve o Evangelho, ou uma parte dalguma epistola.

—Sim? Pois peço-lhe ao senhor, que é catolico romano e que certamente ha
de ter ouvido alguma missa, que nos diga o que sabe do Evangelho que tem
ouvido na egreja?

—Senhores—respondeu ele,—a falar a verdade, costumo ir poucas vezes á
missa, porém eu não sei o que o sacerdote diz... Está disposto a fazer a
obra para o dia que indiquei?

—Estou, sim, senhor—respondeu Julião,—porém, pelo que diz respeito a
trabalhar no domingo, não trabalho.

—Quer dizer que pelas suas exquisitices vou ser prejudicado, não abrindo
o estabelecimento no dia que quero. Vamos, Julião, seja razoavel,
deixe-se de protestantismos e trabalhe, que é isso o que lhe dá de comer.

—Sr. Mariano, é completamente inutil que se empenhe em fazer-me trabalhar
ao domingo, pois por todo o dinheiro do mundo não o farei.

—Nesse caso, ponto final na questão. Não o incumbirei de mais trabalhos.

—Bem, como quizer; obedeço a Deus, e é quanto basta.

O padre Francisco quiz aparentemente harmonizar a questão, porém foi tudo
em vão. A voz de Deus, que ordenava ao nosso amigo o guardar o dia de
descanço e santifical-o, teve mais força do que tudo.

Minutos depois, o freguez de Julião saiu, e juntamente com ele o padre
Francisco.

Julião entrou no seu quarto para orar, dizendo:

—Jesus, Tu me dizes: «E todo aquele que não traz a sua cruz e não vem
apoz mim não pode ser meu discipulo.»



CAPITULO XIV

Da loja á agua-furtada


A desgraça pairava sobre a casa de Julião.

Em pouco tempo aquela casa, antes tão feliz, veiu a ser a casa da dôr e
da aflição. Já se não ouvia na loja o bater do martelo nem as alegres
canções dos operarios.

Por todas as partes se havia espalhado a noticia de que o vidraceiro era
protestante, e, por consequencia, o descredito foi geral.

Em vão Julião sofria tudo com paciencia; em vão visitava os seus antigos
freguezes; em vão, na aparencia, clamava ao Senhor: parecia que o céu e a
terra o haviam abandonado.

Para maior desgraça, sua esposa, torturada pelos sofrimentos, tinha
decaido da fé, e isto era o que mais o atormentava.

Até o seu proprio amigo, o mestre João, que era o unico que poderia
ajudal-o, estava fóra de Madrid, ocupado numas obras; tudo, pois, como já
dissemos, se pronunciava contra ele.

Assim chegou o dia em que Julião teve de deixar a loja da casa que
habitava, indo alugar a agua-furtada da mesma, para onde foi trabalhar
como simples oficial.

Faltavam tres dias para fazer a mudança. Julião não estava em casa, e
Dôres estava só, dando o peito a seu filho, quando sentiu abrir a porta
da loja.

Levantou-se para ver quem entrava, e dirigindo-se á porta deu de rosto
com o padre Francisco, que, depois de a cumprimentar, lhe disse:

—Julião está em casa?

Sabido é que Dôres olhava desde ha muito com certa desconfiança para o
padre, pois que julgava que ele era o causador das suas desgraças, e
assim é que com grande reserva e muito secamente lhe respondeu:

—Não, senhor; saiu.

O padre compreendeu o que se passava no espirito daquela mulher, e num
momento concebeu o seu plano.

—Pois realmente sinto-o—disse o sacerdote,—pois que vinha falar com ele,
afim de ver se queria encarregar-se duma obra.

—Pois não posso dizer-lho, porém parece-me que actualmente lhe será
dificil, pois que não temos os meios necessarios para comprar os
materiaes.

—Não importa isso; se seu marido quizer, os donos da obra lhe adeantarão
tudo o que seja preciso. Porém, estranho vê-los nesse estado, sem terem
nada que fazer, quando tinham tão boa freguezia!...

—Pois olhe—disse Dôres com intenção,—alguem tem a culpa disto.

—Não me parece que alguem possa ter culpa, ou se compraza com os males
que sofrem. O unico culpado de tudo isso é o seu esposo, por causa
dessas idéas que tem e que tão desprezadas são de todos. Se seu marido
não tivesse a insensatez de se fazer protestante... Ora veja lá,
protestante... uma coisa que não tem razão de ser... que acabará em breve
e que... finalmente... consta lhes que muitos clerigos tenham passado
para essa seita?

—Sim, senhor; sei dalguns.

—São aqueles que não quizeram sujeitar-se aos seus votos e para quem
a religião era uma coisa pesada. Finalmente, Dôres, creia-me, o que
lhe está sucedendo não é mais do que um aviso de Deus, um preludio de
acontecimentos mais graves; não me admiraria se ámanhã lhes morresse o
seu filho.

—Cale-se, senhor!

—E era um grande favor que a Virgem lhes fazia, pois que seria melhor
para ele morrer do que ficar eternamente condenado.

—E porque ha de o meu filho ser condenado?

—Porque a educação religiosa que lhe derem não pode ser boa.

—Nós o educaremos na fé do Salvador e nas maximas do Evangelho.

—Sim, porém dum Evangelho corrompido, e mostrando-lhe um Salvador que o
não poderá salvar, porque lhe falta a autorização de Sua bemdita Mãe.

—Padre Francisco, Jesus não necessita de autorização de ninguem, pois que
«salva quem quer».

—Que lhe pedirá seu filho que a senhora não lhe faça? Pois tambem Jesus
não pode fazer senão o que Sua bemdita Mãe manda. Emfim, noutra ocasião
falaremos mais detidamente sobre este assunto. Queira dizer a seu esposo
que esta tarde virei falar-lhe, e que a obra, de que o venho encarregar,
lhe fará ganhar uma boa quantia. Passe bem, sr.ª Dôres; medite em tudo o
que temos falado, e creia-me: sem Maria, nem o céu seria céu. Tome esta
estampasinha e reze deante dela umas Avé-Marias, pois de cada vez que o
fizer ganhará cem dias de indulgencia.

O padre Francisco saiu, mas ainda Dôres estava com a tal estampasinha na
mão quando Julião, abrindo a porta, e observando que sua esposa tinha um
papel na mão, aproximou-se, perguntando-lhe o que era.

—Uma imagem da Virgem Maria que me deu o padre Francisco—respondeu ela.

—E como ou com que fim te deu o padre Francisco esse papel?

Dôres contou a seu marido o sucedido, e depois disse:

—Que pensas fazer?

—O que penso fazer?—respondeu Julião.—Dizer ao padre Francisco que não
torne a falar-te de religião, e, pelo que respeita á obra, far-lha-hei se
podér, mas que não venha cá falar-me em condições, porque...

—Julião, chega-te á razão e pensa no nosso filho. Além disso, o padre
Francisco apresentou-me umas razões de bastante peso, ácerca da Virgem.

—Para grandes provas me tem reservado o Senhor, e a mais dura é ver a tua
falta de fé. Escuta-me, Dôres, e jámais duvides da palavra d’Aquele que
disse: «Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão...»

—Julião, a minha fé vacilou alguma coisa, porém eu rogarei a Deus para
que a aumente.

—Bem, oremos a Deus.

Ambos os esposos ajoelharam, e pouco depois ouviu-se a voz de Julião, que
pronunciou esta singela oração:

«Senhor, aumenta a nossa fé; agora mais do que nunca, necessitamos de
crêr para sermos fieis... Não sabemos até onde nos provarás, porém
estamos seguros de que Tu nos ajudarás. Sim, Pae Eterno, se temos sido
fieis no tempo da prosperidade, justo é que o sejamos no tempo da
adversidade.

Agora dá-nos a Tua benção, pelo amor de Jesus. Amen.»

Chegou por fim o dia destinado para que o nosso amigo Julião desocupasse
a loja.

A senhora Brigida e Antonia estão em casa de Dôres.

—O caso é—disse Brigida—que, se meu marido estivesse em Madrid, daria o
dinheiro a teu esposo e não havia necessidade de fechar a loja.

—Julião—respondeu Dôres—certamente que não aceitaria dinheiro, não tendo
probabilidade de o pagar.

—Que coisas tens, Dôres!—exclamou Antonia.—Se meu pae emprestasse
dinheiro a Julião, não fecharias a loja, e pode ser que com o andar do
tempo melhorasseis de situação. Eu sei que a Biblia prohibe ter dividas;
porém é claro que, entre irmãos, e quando é por uma precisão, não é
prohibido, pois que a palavra de Deus manda que os irmãos se socorram
entre si.

—Dize-me, Dôres—perguntou a mulher do carpinteiro,—não poderia ser que
Julião pedisse alguns dias de espera, e entretanto eu escrevia a meu
marido? Oh! se nós chegassemos a saber isto a tempo, teriamos escrito a
João sem vós o saberdes, e tudo se arranjaria...

—Direi isso mesmo a Julião—disse Dôres,—e logo lhes participarei a
resolução dele.

Assim continuaram conversando, emquanto que Julião, que se achava na loja
empacotando as ferramentas, falava com o padre Francisco.

—Porém que é isso?—dizia o padre.—Então muda de casa?

—Não, senhor—respondeu Julião,—deixo a loja.

—Deixa a loja?

—Que quer? Algumas pessoas não vêem outra coisa mais senão aquilo que os
seus olhos alcançam, e querem que os outros façam o mesmo. Amigo, o sr.
conde de X... e outros hão de algum dia experimentar o que está escrito:
«Não oprimirás o teu proximo, nem o roubarás; não retenhas o trabalho
do jornaleiro em tua casa—até ámanhã». Sim, aqueles que procedem como
o conde de X..., que me fez comprar um material que depois para nada
me serviu, não compreendem que o Senhor, um dia, lhes pedirá estreitas
contas, pois que Ele disse: «Não negarás a paga a teu irmão indigente e
pobre, ou ao peregrino, que mora comtigo na terra, e está de tuas portas
para dentro; mas pagar-lhe-has no mesmo dia o preço do seu trabalho antes
do sol posto, porque é pobre, e disso sustenta a sua vida; não suceda que
ele clame contra ti ao Senhor, e isto se te impute a pecado» (Deut. 24:
14 e 15).

—Julião—disse o padre Francisco,—não deve admirar-se de que todos lhe
voltem as costas; as suas idéas religiosas não são de molde a atrair-lhe
as afeições do mundo.

—Sim, a mim não me admira que o mundo me aborreça, quando Jesus, o meu
Salvador, disse: «Se o mundo vos aborrece, sabei que primeiro do que a
vós me aborreceu Ele a mim. Se vós fosseis do mundo, amaria o mundo o
que era seu; mas porque vós não sois do mundo, antes eu vos escolhi do
mundo, por isso é que o mundo vos aborrece» (S. João 15: 18, 10). Aquilo
que realmente me admira é que pessoas que aparentam um tal escrupulo não
sintam remorsos em sua consciencia em roubar a um pobre, como eu, o fruto
do seu trabalho, e não hesitem em lançal-o na miseria.

—Julião, deixemos de parte essa questão. O senhor pode adquirir do conde
X... mais do que aquilo que perdeu. Renuncie por um momento a essas
preocupações, abra os olhos á luz, e creia em si. Eu venho encomendar-lhe
uma obra, que pode dar-lhe alguns lucros; quer fazel-a?

—Sr. padre Francisco, não posso empreender obra alguma, por pequena
que seja, pois não tenho dinheiro para material nem para as ferias dos
oficiaes.

—Não lhe importe isso—disse o padre;—eu ofereço-lhe aquilo de que
necessite. A pessoa que encomenda a obra lhe adeantará o dinheiro preciso
para os materiaes e para as ferias.

—E que obra é essa?—perguntou Julião.

—Tudo o que pertence á sua arte, na egreja de S. N., notando que tem
muito que fazer; é obra que durará muitos mezes.

—Muito bem; não tenho nisso o menor inconveniente. E não me imporá
condição alguma que me torne impossivel o aceitar a obra?

—Não, nenhuma; pois que a condição imposta para todos aqueles que ali
trabalham é tão simples que ninguem até hoje deixou de a aceitar.

—Qual é?

—O paroco diz missa ás nove horas da manhã, á qual deseja que assistam
todos os artistas que ali trabalhem.

—E assistem todos?

—É natural. Quem se recusará a isso?

—Suponhamos, sr. padre Francisco, que o paroco me impõe essa condição, e
que me nego a assistir á missa, o que me sucederá nesse caso?

—Nesse caso não poderá continuar a trabalhar na egreja.

—Pois então é inutil que tornemos a falar mais nisso; pela minha parte
não assisto á missa.

—Porquê?

—Creio inutil repetir-lhe aquilo que já por tantas vezes lhe tenho dito
sobre o assunto. Não tendo a missa para mim o valor que vós lhe daes, não
posso nem devo assistir a ela.

—Porém pense bem que está na maior miseria, e não sómente vocemecê, como
sua mulher e seu filho.

—Pois o Senhor, que tem cuidado das avesinhas e dos lirios dos campos,
cuidará de mim, de minha mulher e de meu filho.

—Vamos; quer encarregar-se?

—Sim, senhor.

—Nesse caso, espero que vá á missa.

—Não, senhor, eu não posso assistir a um acto que a minha consciencia
reprova.

—Então não estranhe que a fome bata á sua porta: será um castigo de Deus,
que o avisa por minha boca.

—Não, não é um aviso; diga antes uma tentação de Satanaz, permitida por
Deus, para provar a minha fé.

—Julguei que podia valer-lhe em alguma coisa, porém enganei-me. É dificil
deter em sua carreira o homem que marcha a passos agigantados para o
precipicio. Que a Virgem tenha misericordia de si.

—Folgo imenso com que tenha falado da Virgem, pois que me esquecia de
dizer-lhe duas coisas: a primeira é que me faça o favor de não falar
a minha mulher ácerca de religião; a segunda é que não lhe torne a
dar estampas de santos ou de virgens, pois que, como pode muito bem
compreender, não deve meter-se onde não o chamam.

—Se eu dei a sua esposa alguns conselhos, foi porque a encontrei triste e
aflita. Eu, na minha qualidade de sacerdote, tenho o dever de consolar os
tristes.

—Muito bem: porém aquilo que disse a minha esposa, em vez de servir
para a consolar, devia servir para acender em seu peito a duvida, e
estabelecer em minha casa uma guerra religiosa; portanto, que não torne a
suceder uma tal coisa.

—Quer isso dizer—respondeu o padre Francisco—que me prohibe de falar com
sua esposa, não é verdade?

—Sim, senhor: sobre assuntos de religião prohibo-lhe terminantemente que
lhe fale.

—Nesse caso é impossivel que Deus o ajude.

—Padre Francisco, parece-me que o culpado de que me tenham tirado o
trabalho em casa dos condes X... foi vossa senhoria.

—Pois fui eu, é verdade, que influi para que fosse despedido da casa.

—Então teve valor para perder desse modo um pae de familia?

—Basta, basta, Julião; estou cançado de lutar; venho oferecer-lhe o bem,
e o senhor rejeita-o; ha-de, por conseguinte, sofrer-lhe as consequencias.

—Padre Francisco: nem V., nem Roma, nem a fome, nem as ameaças são
suficientes para apartar-me do amor que ha em Cristo Jesus.

—Nesse caso, guerra e guerra sem treguas.

O padre saiu furioso da loja, e Julião, elevando os olhos ao céu,
exclamou:

—«Julga, Senhor, aos que me fazem dano, expugna aos que me combatem».
(Sal. 34: 1).

Emquanto isto sucedia, dialogavam assim Antonia e sua mãe na carpinteria:

—Sim—dizia Brigida,—escreve a teu pae, contando-lhe os apuros do nosso
amigo, e que imediatamente nos mande dinheiro.

—Quanto lhe peço?

—Não sei; porém explica-lhe o caso, e ele poderá calcular quanto é
preciso.

Antonia começou a escrever, e, depois dalguns instantes, leu a sua mãe a
seguinte carta:

                                                         «Madrid...

    «Querido pae, muito me alegrarei que ao receber esta esteja de
    saude; nós estamos boas.

    «Escrevemos-lhe para referir-lhe uma coisa que muito o
    entristecerá. Julião, o nosso amigo, deixa a loja, por manejos
    dos seus inimigos, que quasi o reduziram á miseria.

    «Deixaremos o nosso amigo sem auxilio?

    «Não. Espero que meu pae atenderá aos rogos de sua esposa e
    filha.

    «Esperamos que aproveitará a ocasião de fazer alguma coisa por
    amor de Jesus, tendo em conta que «Deus ama aquele que dá com
    alegria».

    «Sem mais, receba o carinho destas que o amam

                                                _Brigida e Antonia_.

    P. S.—Lembre-se daquilo que Dôres fez por mim quando estive
    doente, e de que os desgostos que isso lhe ocasionou, e aquilo
    que agora está sofrendo, tudo isso é consequencia do que
    fez por mim. Os nossos amigos perdem-se se de pronto não os
    socorremos».

—Bem, bem, filha—exclamou Brigida ao ouvir a leitura da carta;—escreves
melhor do que um ministro. Anda, vae deitar a carta no correio.



CAPITULO XV

Já começa!...


No dia seguinte ao dos acontecimentos referidos no capitulo anterior, os
tranzeuntes da Rua dos Embaixadores, ao passarem por certa casa, poderam
ler—JULIÃO, VIDRACEIRO, CHUMBEIRO, CHOCOLATEIRO—e colocado sobre a porta
um papelinho escrito pelo porteiro da casa, em pessima ortografia, com os
seguintes dizeres: «_Aluga-se esta loja; o porteiro tem as chaves e dirá
as condições_».

Sim, Julião tinha deixado a loja por não poder pagar o aluguer, e agora
vive na agua-furtada n.º 12, da mesma casa.

Como é costume entre amigos mostrar a casa em que vivem, Julião o faz a
todos os que se interessam na sua historia.

Depois de se subirem cento e quinze degraus, chega-se a uma galeria, ou,
melhor, a um corredor, em que fica a morada de Julião.

Consta de tres compartimentos—sala, cosinha e alcova.

Agora que estamos dentro da casa, ouçamos o que dizem o nosso amigo e sua
mulher.

—Crê-me—dizia Julião,—o Senhor tirou-nos a loja, fazendo-nos vir viver
para aqui. Por alguma coisa foi que o Senhor fez isto.

—E para que o fez Ele?

—Olha, Dôres, não crês que neste corredor se pode anunciar o Evangelho a
mais de duzentas pessoas?

—Creio, Julião, que não terás necessidade de chamar o ministro para isso.

—Não, realmente. Porque hei de ceder a outro as bençãos que eu posso
receber? Por certo que seria uma loucura.

—E que tencionas fazer?

—Uma coisa muito simples. Hoje mesmo convidas as visinhas para uma
reunião religiosa. Dizes que todo aquele que deseje ouvir as novas do
Evangelho pode vir aqui esta noite, ás oito horas em ponto.

—Bem, farei o que tu desejas, e que o Senhor nos abençôe.

Julião saiu de casa, e em poucos momentos Dôres estendia no corredor
algumas peças de roupa que tinha lavado.

—Bons dias, visinha—disse-lhe uma mulher do corredor em frente.

—Bons dias, senhora—lhe respondeu Dôres.

Dentro de si sentia uma coisa que lhe dizia: «Começa a trabalhar para
Jesus.»

—Está hoje um bonito dia!—disse a visinha.

—Realmente está um dia muito bonito. Veja que formoso está o céu! Quem
seria capaz de fazer um céu similhante a este? E ainda dizem que não ha
Deus!

—E quem se atreve a sustentar similhante disparate?

—Não faltam, infelizmente, pessoas que o façam; pessoas que não teem
religião nem consciencia.

—A proposito, Dôres, permite-me que entre em sua casa para lhe perguntar
umas coisas?

—Com muito gosto.

—Vou ver se fervem as panelas que deixei ao lume, e depois irei ter
comsigo.

Quando Dôres se viu sósinha, exclamou:

—Senhor, dá-me forças e aumenta a minha fé, se queres que faça alguma
coisa por Ti. Por amor de Jesus, concede-me o Teu santo Espirito. Amen.

—Posso entrar?—disse uma voz do lado de fóra.

—Entre—respondeu Dôres.

No mesmo momento entrou a mulher que tinha falado com Dôres.

Esta ofereceu-lhe uma cadeira, e ela, depois de tomar assento, disse-lhe:

—Então porque deixou a loja?

—Que quer a visinha—respondeu Dôres.—Caprichos da sorte, ou, melhor,
azares da vida.

—A mim disseram-me que foi por vocemecês serem protestantes que os
despediram da casa.

—Pois não é verdade: fomos nós que nos despedimos, porque o meu esposo
perdeu de repente o dinheiro que tinha, e bem assim a freguezia, por
causa das suas idéas religiosas.

—Porém, Dôres, perdôe-me que lhe diga. Eu não entendo uma palavra ácerca
das suas crenças religiosas. A mim disseram-me que os protestantes não
crêem em Deus, nem na Virgem, nem nos santos. Quando morreu sua mãe, ouvi
tudo o que o padre disse, e pareceu-me que no que dizia tinha razão;
assisti ao enterro, e fiquei impressionada: mas porque é que todos são
contra vocemecês?

—Por que razão foram todos contra Jesus? Eis aqui a causa: os que crêem
em Jesus são perseguidos porque o seu Divino Mestre o foi.

—Porém vocemecês crêem em Deus e na Santissima Trindade?

—Sim, senhora; nós cremos em tudo isso, e mais ainda cremos em tudo o que
está escrito na Biblia.

—Muito desejaria tornar a ouvir falar algum dos que pensam como vocemecês.

—Pois olhe, se tem esse desejo, Julião vae fazer algumas reuniões neste
mesmo quarto, e pode assistir a elas.

—Não sabe quanto me alegro em saber isso. Não faltarei; porém diga-me:
Quando é que seu marido principia?

—Esta mesma noite ás 8 horas, e, visto que a senhora é a primeira
moradora da casa que o sabe, peço-lhe que...

—Não diga nada? Descance que...

—Pelo contrario, peço-lhe que o diga a todas as pessoas que muito bem
lhe parecer. Seria um grande prazer para nós que todos os moradores e a
visinhança ouvissem o Evangelho.

—Pois então eu lhe asseguro que toda a visinhança o saberá.

Em poucos momentos, todos os moradores da casa sabiam que Julião ia
dar reuniões protestantes, e todos se dispozeram a ir ouvil-o, uns por
curiosidade e outros por zombaria.

Quando o padre Francisco soube isto, exclamou:

—Já começa! e eu que julgava que esse homem cederia á fome e á miseria!
Na minha vida não tenho visto pessoa mais teimosa! Que fazer? Ah! se se
promovesse um escandalo, podia suceder que o senhorio os despedisse da
casa; e o escandalo, sim, ha de dar-se. Parece mentira que os homens se
obcequem a este ponto... No emtanto, isto faz-me supôr que Julião recebe
alguma paga.

Assim continuou o padre, falando comsigo.

Por fim veiu a noite, e, ainda que alguma coisa fria por ser outono,
a gente apinha-se nos corredores, por não caberem todos os que haviam
concorrido dentro do quarto.

Ás oito horas em ponto da noite, Julião entrou no quarto, saudando todas
as pessoas.

Depois dirigiu-lhes a palavra da seguinte maneira:

—Amigos, bastante embaraçosa é para mim a situação em que me encontro ao
dirigir-vos a palavra. Falo-vos por duas razões: a primeira porque a isso
Deus me envia, para que vos anuncie as novas de salvação que se encontra
em Jesus Cristo; a segunda, a menos importante, para me justificar do
que dizem, pois que, na opinião de muitos, duvida-se do meu caracter e
da minha honra. Parece que muitos dos que estão presentes estranharão
que um protestante vá falar do cristianismo, quando, segundo dizem por
ahi, nós os protestantes somos uns herejes, uns incredulos, que duvidam
de tudo. Se isto é ou não verdade, ides vós julgal-o ouvindo dos meus
labios a minha profissão de fé, na qual eu, bem como todos os cristãos
evangelicos, a quem vós chamaes protestantes, cremos. Para que bem o
compreendaes, escutae com atenção.

«Creio em Deus Pae Todo Poderoso, Creador do céu e da terra. Creio em
Jesus Cristo seu Unico Filho, Nosso Senhor; O qual foi concebido por
obra do Espirito Santo; Nasceu de Maria Virgem; Padeceu sob o poder de
Poncio Pilatos; Foi crucificado, morto e sepultado; Desceu aos infernos;
Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos; Subiu ao céu; Está sentado á mão
direita de Deus Pae Todo Poderoso; Donde ha de vir a julgar os vivos e os
mortos.

Creio no Espirito Santo; Na Santa Egreja Catolica; Na comunhão dos
santos; Na ressureição da carne; Na vida eterna. Amen.»

Um murmurio de vozes de aprovação e surpreza rompeu de todos os labios.
As vozes que mais se distinguiram foram:

—Esse Credo é egual ao nosso!

—Crêem em Deus!

—E na Virgem!!!

—E em que Cristo foi concebido pelo Espirito Santo!!!

—Sim, meus amigos—continuou Julião,—nós, isto é, os cristãos do
Evangelho, cremos em tudo o que está escrito na palavra de Deus. Quanto
dizem de nós é uma completa calunia. Jámais duvidámos da virtude de
Maria, mãe, não de Deus, porque Deus não teve pae nem mãe, porém sim mãe
de Jesus, emquanto homem como nós. Nós não confiamos em ninguem senão em
Cristo, porque sabemos que em nenhum outro ha salvação; _porque do céu
abaixo nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual os homens devem
ser salvos_ (ATOS 4:12). Não confiamos nas obras que possamos fazer,
pois que, por melhores que elas sejam, não são mais do que «trapos de
imundicie». Não nos submetemos ao jugo de Roma, porque na palavra de Deus
não se ordena que o cristão esteja sujeito a tal ou qual egreja, mas sim
a Cristo, e porque esta egreja tiranisa as consciencias, obrigando a crer
em dogmas taes como a infalibilidade, que nos faz ver a figura do papa
retratado na segunda Epistola de S. Paulo aos Tessalonicenses, cap. 2.º,
ver, 3 e 4, onde se diz, falando da segunda vinda do Senhor: _«Ninguem de
modo algum vos engane; porque não será sem que antes venha a apostasia,
e sem que tenha aparecido o homem do pecado, o filho da perdição, aquele
que se opõe, e se eleva sobre tudo o que se chama Deus, ou que é adorado,
de sorte que se sentará no templo de Deus, ostentando-se como se fosse
Deus»._ Nós, os protestantes, não fazemos caso dos dias de jejum, porque
S. Paulo diz: «_Ninguem vos julgue pelo comer nem pelo beber_» (Col.
2: 16). Tambem sabemos, para que nos acautelemos deles, que «_alguns
prohibirão casar-se, e mandarão abster-se das coisas que Deus creou
para que com acção de graças participassem delas os fieis e os que teem
conhecido a verdade_» (1.ª a Tim. 4: 3). Não fazemos caso algum dos
mandamentos romanos, no que diz respeito a dar dinheiro ou velas, ou
coisas similhantes para o culto, pois que na Palavra de Deus achamos
escrito: «_Ninguem vos desencaminhe, afectando parecer humilde, e dar
culto aos anjos, que nunca viu no estado de viador, inchado vãmente no
sentido da sua carne_» (Col. 2: 18).

Algumas vozes de aprovação sairam dentre os ouvintes.

—Sim, meus amigos—prosseguiu Julião,—dos protestantes dizem-se muitas
coisas que assim não são.

«Nós, os protestantes, cremos na Virgem dos Evangelhos, mas não na Virgem
da egreja romana, porque a Virgem desta egreja em nada se parece com
aquela. Não lhe rezamos por duas razões: a primeira porque não sabemos
rezar; sabemos sim orar a Deus; e a segunda porque nem os apostolos, nem
as tres Marias, nem nenhuma das personagens do seu tempo o fizeram. E
que diremos ácerca das bulas? As bulas! Famosa chave romana que abre e
fecha as portas do céu, desde o minimo preço de dois reales[3] até somas
um tanto consideraveis. Roma tem bulas para todos, já vêdes—acrescentou
em tom ironico.—Roma tem bulas até para defuntos. Emfim, Roma não perde
ocasião de tirar dinheiro. Desde que uma pessoa nasce até que morre,
paga dinheiro e mais dinheiro para os cofres da egreja. Dinheiro para
baptizar, dinheiro para casar, dinheiro para enterrar, dinheiro para
missas, dinheiro para tudo. Ah! os sacerdotes desta egreja não teem em
conta que S. Paulo vivia á custa do trabalho de suas mãos, e que nem
S. Pedro nem os demais apostolos foram subvencionados pelo Estado: não
tiveram pé de altar, nem direitos paroquiaes, nem casulas batidas a oiro,
nem calices de prata, nem baculos do mesmo metal, nem tiara, nem mitra,
nem chapéu cardinalicio, nem foram abades, nem conegos... Porém, se não
tinham nada disto, em troca recebiam, para administral-o, o dinheiro dos
ricos, e com isso a egreja vivia com algum desafogo. Este era o costume
apostolico, e por ser este costume que nós defendemos acusam-nos de
herejes e nos excomungam, e não fazem mais porque Deus não lhes permite.
Meus amigos, já vos são conhecidas em parte as doutrinas dos cristãos
evangelicos; agora julgae por vós mesmos. Ámanhã á mesma hora de hoje,
se vos dignardes vós escutar-me, falaremos dalgum ponto do Evangelho;
porém, antes de vos retirardes, sabei duas coisas: primeira, que «_de tal
maneira Deus amou o mundo que lhe deu o Seu Filho Unigenito, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna_» (S. João 3:
16). A segunda é que «_nenhuma condenação ha para os que estão em Cristo
Jesus_» (Rom. 8: 1). Que o Senhor nos abençôe. Amen.

Julião retirou-se para a alcova, e a gente tambem saiu, discutindo entre
si; alguns foram felicital-o.

O padre Francisco, que havia estado observando tudo, dizia a sós comsigo:

—E não houve escandalo! E esse homem que vae convencel-os! Como evitar
isso?

O bom do padre trazia a cabeça numa braza viva, pensando como havia
de inutilizar o seu inimigo, sem se lembrar de que era melhor tomar o
parecer que o fariseu Gamaliel deu no conselho de Jerusalem, celebrado
contra os apostolos, em que disse: «_Não vos metaes com estes homens, e
deixae-os; porque, se este conselho, ou esta obra, vem dos homens, ela se
desvanecerá; porém, se vem de Deus, não a podereis desfazer, para que não
pareça que até a Deus resistis_» (Atos 5: 38-40).



CAPITULO XVI

Um sermão, um desafio, e uma hora de fé


Os visinhos da casa de Julião estavam alvoroçados. Entre eles tinha-se
despertado um movimento religioso como poucas vezes se tem visto.

Merecia a pena ás oito horas da noite o ir ver o interior da casa; pateo,
corredor, janelas, tudo estava atulhado de pessoas, que levantavam a
cabeça para olhar para um corredor do quarto andar, donde um homem lhes
falava.

Tinham decorrido cinco noites desde que Julião pela primeira vez falára
no corredor, e coisas maravilhosas tinham acontecido.

Na sexta noite do culto, achava-se Julião prégando, e tinha tomado para
texto as palavras de Jesus: «_Porque onde estão dois ou tres reunidos em
Meu nome, ahi estou Eu no meio deles_» (S. Mat. 18: 20).

O nosso amigo estava quasi no fim da sua prégação, depois de ter exposto
aos seus ouvintes quão grande era o amor do Salvador, que, depois de ter
dado a vida pelos pecadores, estava disposto a recebel-os, pois que,
só com invocal-O, Ele Se aproximava dos corações. Depois de tudo isto,
disse:

«Temos, pois, que onde se reunem dois ou tres em nome do Senhor, ali está
a egreja. Portanto, meus amigos, não é necessario ir a tal ou tal egreja,
nem escutar esta ou aquela pratica, não; se dois ou tres cristãos se unem
em um caminho ou num deserto, e ali elevam os seus corações para orar, ou
antes para falar de Jesus, ali está a Egreja com o seu divino Esposo no
meio.

«Mais facil é que o Senhor habite em uma pobre agua-furtada, onde uma
familia faz a sua oração matutina, do que num templo onde os sentidos se
deleitam e o espirito se distrae com o som do orgão, o espectaculo do
luxo e os perfumes do incenso. Sabei que o Senhor «não habita em templos
feitos por mãos de homens», como diz o profeta: «_O céu é o Meu trono,
e a terra o estrado dos Meus pés. Que casa Me edificareis vós, diz o
Senhor, ou qual é o logar do Meu repouso? Não fez, porventura, a Minha
mão todas estas coisas?_» (Atos 7: 49—50). Assim fala o Senhor. Não são,
pois, as afilagranadas cupulas duma catedral, ou os sumptuosos tetos
dum templo, nem os canticos latinos, nem o incenso, nem as luzes, nem o
luxo, os objetos que fazem com que o espirito de Deus desça das mansões
celestes onde habita; antes pelo contrario, essas coisas afugentam o
Espirito de Deus.

—As suas malditas idéas, sim, que o conduzirão a si e áqueles que o
escutam aos infernos—disse uma voz do fim do corredor.

Todos os olhares se dirigiram para o sitio donde havia saido a voz, e
deram com o padre Francisco, que, aceso em ira, apostrofava o vidraceiro.

Taes insultos lhe dirigiu que os assistentes começaram a gritar:

—Fóra, corvos! Fóra, corvos! Não queremos latinorios.

—O Evangelho é claro, e os padres não querem que a gente o leia, para que
se não venham a descobrir os seus embustes.

—Fóra, fóra o padre!

—Silencio, meus amigos—gritou Julião.

A vozeria cessou, e então o vidraceiro, dirigindo-se ao padre Francisco,
disse-lhe:

—Podia não interromper a nossa reunião por um modo tão pouco delicado.
Não sei porque seja tratado assim aquele que diz a verdade.

—Você nem diz nem conhece a verdade—exclamou o padre Francisco.

E acrescentou com concentrado odio:

—Você é um miseravel que recebe dinheiro dessas malditas sociedades
inglezas para perder a Hespanha, para subjugal-a...

—Sr. padre Francisco—disse Julião num tom veemente—O senhor é um
caluniador. Certamente que a si é que eu devo o prégar o Evangelho; pois
saibam todos que, por causa desse senhor, perdi a minha loja e a minha
posição. Tão caritativo, fez quanto pôde para a minha miseria e para a
miseria da minha familia.

—Fóra, fóra o padre!—gritaram de novo as pessoas presentes.

—Silencio!—tornou a exclamar Julião—O sr. padre Francisco é um dos padres
de mais talento da freguezia; tem estudos, e diz que estou no erro; eu,
pelo contrario, não sou mais do que um pobre artista sem estudos, e,
mais ainda, com um futuro bem triste. Pois apezar disso, eu desafio-o a
discutir comigo na vossa presença.

—Bem, bem—exclamaram os circunstantes.

—Senhores—disse o padre Francisco, um tanto embaraçado,—eu não posso
discutir com este homem sem licença dos meus superiores; portanto não lhe
aceito o repto, antes o desprézo.

—Parece-me—disse Julião—que isso é uma evasiva; o senhor, se é, como diz,
ministro do Evangelho, não pode deixar de combater o erro onde quer que
se encontre; a sentinela que vê como o inimigo se aproxima da brecha que
ela guarda não espera que os seus chefes lhe mandem fazer fogo: assim o
senhor deve colocar-se em frente do erro sem aguardar licença de ninguem.

—Este—exclamou furioso o padre Francisco—não é logar proprio para
discutir. A casa é propriedade do senhorio, e não para que você venha com
o seu palavriado escandalizar os visinhos com suas corrompidas doutrinas.

—Fóra! fóra o padre!—disse uma voz.

—Fóra?—repetiu o padre.—Ámanhã vou dar parte ao senhorio de tudo quanto
aqui se está passando, e veremos se se lhes prohibe ou não amontoarem-se
nas escadas e no corredor, interrompendo a passagem.

—Pois senhores—gritou um dos moradores—em minha casa, de ámanhã em
deante, ha logar para nos reunirmos. Se o sr. Julião quizer, podem todos
juntarem-se ali sem escrupulo, e assim deixaremos as escadas livres, para
que o sr. padre Francisco possa descer e subir, sem que a sua sotaina se
amarrote.

Todos os moradores aplaudiram, emquanto que o padre Francisco entrou em
sua casa aceso em colera.

Julião concluiu o sermão, e, depois de ficar convencido de que na noite
proxima se celebraria culto em casa do visinho, que a tinha oferecido,
cada qual foi para sua casa, e meia hora depois o socego e silencio
reinavam em todas as habitações.

Julião e sua esposa estavam sentados em casa, conversando.

—E que vaes fazer?—disse-lhe a esposa.

—Não sei—respondeu Julião,—não sei; todas as portas se fecham; hontem
esperava trabalho, porém o mestre não ficou com a obra e não me pôde
admitir. Bem sabe Deus, querida esposa, que sómente sinto isto por
ti e por nosso filho. Os recursos esgotaram-se, e não vejo de pronto
como poderemos obter remedio. Eu sei que «Deus providenciará», sim,
indubitavelmente tem que o fazer. Fui vender a ferramenta, porém querem
valer-se da ocasião, e por aquilo que me custou duas libras sómente me
dão uma.

—Julião, já te disse que não vendas a ferramenta; se ámanhã nos
estabelecermos de novo, far-te-ha falta.

—Certamente, e não sei que estranho pressentimento me diz que tornaremos
para a loja que deixámos.

—Muito me alegraria com isso—disse Dôres,—porque foi naquela casa que
morreram os nossos paes. Sabes—acrescentou—que ámanhã tenho de ir ao
_Monte dos socorros_ empenhar alguns objetos.

—Ah! Dôres!—exclamou Julião—se tu tivesses fé! Dize: crês com todo o
coração o que está escrito na palavra de Deus?

—Sim, Julião.

O vidraceiro pegou na Biblia, que estava em cima da meza, e disse:

—Dôres, não temos dinheiro para comprar pão ámanhã, e, se não vaes
empenhar alguns objetos, nem mesmo umas tristes sopas podes dar ao nosso
filho, não é verdade?

Estas palavras arrancaram silenciosas lagrimas dos olhos de Dôres, que
apertou ao peito o filhinho, que ela beijou sofregamente, entretanto que
a creancinha se sorria, indiferente aos pezares daquela que a estreitava
em seu seio.

—Não chores—continuou Julião,—o Senhor mesmo nos ensinou a dizer: «Dá-nos
o pão nosso de cada dia»; pois bem, vamos orar, pedindo-Lhe esse pão.

Julião abriu a Biblia no Evangelho de S. João, cap. 16, e leu os
versiculos 23 e 25, dizendo:

—Escuta esta preciosa promessa feita por Jesus; «_Na verdade, na verdade,
vos digo: se vós pedirdes a Meu Pae alguma coisa em Meu nome, Ele vol-a
ha de dar. Vós até agora nada pedistes em Meu nome; pedi e recebereis,
para que o vosso gozo seja completo». «Tudo o que pedirdes em oração,
crendo, o recebereis»._ Agora, com tão ricas promessas, e tão bom
Intercessor, prostremo-nos deante de Deus.



CAPITULO XVII

O dinheiro do diabo e o dinheiro de Deus


Ás onze horas do dia seguinte áquela noite de que acabamos de falar,
achavam-se Julião e Dôres em sua casa, dialogando assim:

—Com que, nada encontraste?—dizia Dôres.

—Nada, Dôres, nada absolutamente.

—E vamos ficar assim todo o dia? Não temos dinheiro para comer, e nem
ainda acendi lume por não ter que cosinhar. O menino mama muito, e eu
sinto-me cair de fraqueza. Que vamos fazer?

Julião permaneceu em silencio por alguns momentos, e em seu rosto via-se
retratada a luta que atormentava a sua alma.

Nunca a tentação o havia perseguido com mais força. Via sofrer sua
esposa, e tudo o levava a perder a sua confiança em Deus. Por fim, depois
dum breve espaço de tempo, abanou a cabeça, como se quizesse afastar dela
alguma idéa que mais o atormentava, e disse em resposta a sua esposa:

—O que faremos? Esperar.

«Esperar que Deus responda á nossa oração.

Neste momento o padre e outro sacerdote apareceram á porta.

—Bons dias, senhores—disseram eles ao verem o vidraceiro e sua mulher.

—Bons dias—responderam eles, e Julião acrescentou:—Que pretendem?

—Vimos—respondeu o padre Francisco—falar comsigo.

—Nesse caso entrem.

Ambos entraram, e, emquanto Julião fechava a porta, Dôres ofereceu uma
cadeira a cada um deles.

O padre Francisco tomou a palavra, e disse a Julião:

—Julião, certamente estranhará a minha vinda a sua casa, não é verdade?

—E a que devo eu a honra da sua visita?

—Vimos ver se afinal nos harmonizamos.

—Não entendo.

—Pois olhe, a loja que ocupava está ainda por alugar; quer tornar a
ocupal-a?

—Não, senhor, porque para isso parece-me que seria preciso fazer alguma
coisa que nem sequer desejo que se me proponha.

O amigo do padre Francisco tomou a palavra e disse:

—Apezar de não ter a honra de o conhecer, fui convidado por este amigo
para lhe falar.

O padre calou-se, e depois duma breve pausa continuou:

—Eu sou o confessor da sr. condessa de X... e tenho bastante influencia
sobre ela. O amigo trabalhava naquela casa, e por suas exquisitas idéas
perdeu o trabalho. Porém, é a coisa mais simples eu falar com a condessa
e imediatamente poderá de novo ser readmitido ao trabalho no palacio. Já
falei com o sr. padre Francisco sobre aquilo que poderemos fazer por si,
e se abandona o mau caminho que trilha pode ainda ser feliz.

[Illustration: ...uma carta e uma letra de dezoito libras

Pag. 146.]

—Senhor padre—respondeu Julião,—agradeço o interesse que a minha
situação lhe desperta, porém é inutil que fale por mim á condessa. Hoje
é um dia em que ainda não almoçámos; porém, antes morrer de fome do que
negar o meu Salvador.

—Vamos, está resolvido a continuar a prégar aqui na casa?

—Mais do que nunca, respondeu Julião.

—Bonita prégação ha de fazer, se ainda não comeu.

—O Senhor me alimentará com a Sua palavra, pois que está escrito: «_Não
sómente o homem viverá do pão, mas de toda a palavra que sae da boca de
Deus_».

—Muito bem; pois agora mesmo lhe daremos duas libras se não prégar.

—Não prégar? Ora sempre os senhores teem coisas! O seu dinheiro pereça
com os senhores, que julgam amordaçar com ele a palavra nos meus labios.
O Senhor dá-me alguma coisa que vale mais do que algumas libras. Cristo
deu-me uma coisa, a minha salvação, a qual, apezar de os senhores
julgarem vendel-a a tanto por _missa_, não é comprada com todo o dinheiro
do mundo. Não prégar!

—Porém—disse o confessor dos condes de X...—se o não faz por si, faça-o
ao menos por sua esposa e filho. Vocemecê é senhor da sua vontade para se
deixar morrer á fome, porém não deve obrigar os outros a que o façam.

—Julião—disse o padre Francisco—é tão credulo que julga ver entrar por
aquela porta o corvo de Elias com um pão no bico.

—Sr. padre Francisco, eu não estranharia ver entrar um corvo com pão;
pois Aquele que o mandou a Elias vive ainda e é todo poderoso para
mandar-me a mim, não um corvo, mas sim um anjo, que me conforte.

—Vá lá—disse o padre Francisco, levantando-se—apezar de não querer
ceder, e para que veja que não somos tão maus como julga, ahi tem essa
libra para que se remedeie; entretanto pense bem na sua situação.

O padre Francisco dirigiu-se a Dôres para dar-lhe a libra, mas, antes de
lha deixar cair no regaço, Julião suspendeu o braço do padre, dizendo-lhe:

—Agradeço-lhe do coração a esmola, porém guarde o seu dinheiro, pois que
nós para nada o queremos.

O padre Francisco, sem poder responder uma palavra, e metendo o dinheiro
no bolso, saiu furioso do quarto, seguido do outro sacerdote.

Quando os dois esposos ficaram sós, Julião exclamou:

—_Até quando, Senhor, Te esquecerás de mim? para sempre? Até quando
afastarás de mim a Tua face?_

«_O nosso Deus é refugio, e esforço, favorecedor nas tribulações_» (Sal,
12:1; 45:1).

—Dôres, o Senhor põe á prova a nossa fé; e sabe que o Senhor prova até ao
ultimo momento. Tem fé, que «Deus providenciará».

Passados uns momentos, durante os quaes Julião esteve exortando sua
esposa, bateram de novo á porta. Julião foi abril-a, e um carteiro
apareceu com uma carta para o vidraceiro.

Julião fechou a porta, e, dirigindo-se a sua esposa, disse-lhe:

—Será esta carta a resposta á nossa oração de hontem á noite?

Antes que Dôres respondesse, rasgou o _envelope_, e tirou de dentro dele
uma carta e uma letra de dezoito libras. Julião leu em voz alta:

     «Povoação de ***

                                                   Querido visinho

    «Desejo do coração que ao receber esta passe sem novidade
    em companhia de sua mulher e seu filhinho. Eu gózo saude e
    alegria, graças a Deus.

    «Porém, como teve coragem para sofrer tanto sem...? Vamos,
    digo-lhe que eu não tenho paciencia, e que o padre Francisco
    não faria o que fez se eu ahi estivesse.

    «Pensando bem, eu devia zangar-me comsigo, porque estar em
    necessidade e não me pedir nada é coisa que não compreendo, e
    que não é de amigo. Porque não me escreveu?

    «Emfim, agora nada se remedeia do que deixo dito, visto o mal
    já estar feito.

    «Remeto-lhe essa letra para que torne para a sua loja, e
    continue no seu negocio.

    «Não se aflija com a idéa de que tem de me pagar essa quantia;
    somos amigos e irmãos em Jesus; assim é que, emquanto não tiver
    dinheiro de sobra, não mo pagará. Falei com o administrador
    das obras onde estou trabalhando, e pode vir esta assinar a
    escritura, cujas condições lhe remeto, para tomar a empreitada
    da obra de pintura; é um bom negocio...»

    Daqui em deante a carta falava de coisas relativas ao negocio
    de ambos, e por fim dizia:

    «Não o incomodo mais, senão para dizer-lhe que aqui não
    trabalhamos aos domingos, e que o trabalhador que solta más
    palavras eu o despeço.

    «E minha mulher e minha filha continuam de saude?

    «Faça-me muito recomendado a Dôres, á minha Brigida e á minha
    filha; tambem me fará lembrado aos meus oficiaes, muitos beijos
    no seu filhinho, e o visinho receba o carinho deste que deseja
    muito vêl-o.

                                                           _João._»

Quando Julião acabou de ler a carta, olhou durante alguns momentos para
sua esposa, que parecia estar imersa num sonho, e por fim exclamou:

—«_Quando me via atribulado clamei ao Senhor, e Ele me respondeu_» (Sal.
19: 1). Eis aqui, Dôres, a resposta á nossa oração de hontem á noite.
Crês que Deus sempre providenceia?

—Sim, Julião, e peço perdão a Deus pela minha falta de fé.

—Este dinheiro é mandado por Deus, e devemos aceital-o; agora demos
graças ao Senhor por Sua misericordia.

Ambos os esposos se ajoelharam, e a voz de Julião se fez ouvir, dizendo:

—«Louva, ó alma minha, ao Senhor; eu louvarei ao Senhor durante a
minha vida; cantarei salmos ao meu Deus por quanto tempo eu viver. Não
queiras confiar nos principes, nem nos filhos dos homens, em quem não
ha salvação. Sairá o seu espirito e tornará á sua terra; naquele dia
perecerão todos os pensamentos deles. Ditoso aquele de quem é protector o
Deus de Jacob e cuja esperança é no Senhor seu Deus, o qual fez o céu e
a terra, o mar e todas as coisas que neles ha; o que guarda verdade para
sempre, faz justiça aos que sofrem injuria; dá sustento aos famintos.
O Senhor desata os que estão em grilhões; o Senhor alumia os cegos; o
Senhor levanta os oprimidos; o Senhor ama os justos; o Senhor guarda
os peregrinos, ampara o orfão e a viuva, e destruirá os caminhos dos
pecadores. O Senhor reinará pelos séculos; o teu Deus, oh Sião, reinará
por todas as gerações».

(Sal., 145). Senhor, graças Te damos por tudo o que tens feito para nós,
em nome de Jesus. _Amen._»

Depois duma curta pausa, Dôres disse:

—Senhor, aumenta a nossa fé e perdôa os nossos momentos de duvida, por
amor de Jesus. _Amen._»

Quando se levantaram de orar, Julião correu a dar noticias de João a
Brigida e a Antonia, e em seguida foi ao banco receber a letra. Uma hora
depois Julião e Dôres almoçavam, e duas horas mais tarde já Julião tinha
falado com o senhorio, ficando outra vez senhor da loja, pelo que foi
tirado o papel que anunciava que a loja se alugava.

O padre Francisco notou aquilo, e disse comsigo, esfregando as mãos de
alegria:

—Olá! Então já está alugada a loja! Agora, se o vidraceiro quizer
estabelecer-se, terá que ir procurar outra. Sinto com isto um grande
prazer. Oh! como estou alegre!...



CAPITULO XVIII

Pobre padre Francisco


Depois dum dia em que a Providencia de Deus havia tão misericordiosamente
tirado a Julião dos apuros em que se achava, este, com o coração inundado
de gozo, preparou-se para prégar na casa que o visinho, por um impulso
espontaneo, lhe havia cedido para lá falar de Deus.

O padre Francisco não podia levar a bem estas coisas. Sagaz e manhoso,
media a grandes passos o soalho do seu gabinete, vestido de habitos
talares, com um barrete de veludo preto na cabeça, e o cigarro na boca;
passeava ali, meditando no modo de exterminar Julião e com ele a _má
semente_, quando umas ligeiras pancadas soaram na porta.

—Entre—disse o padre Francisco.

A creada foi dizer-lhe que a sr.ª Joana desejava vêl-o.

—Que entre—disse o padre.

Momentos depois entrou uma mulher, que saudou o padre, beijando-lhe a
mão, e dizendo-lhe:

—Disseram-me que vossa senhoria deseja falar-me, e por isso venho aqui
para saber o que deseja.

—Os meus agradecimentos. Diga-me: hontem á noite foi ouvir o vidraceiro?

—Sim, senhor; agora já não fala no corredor, mas sim em casa do sr.
Hipolito. Á noite foi lá muita gente; e olhe que disse coisas muito boas;
falou de Deus, das tentações de Jesus, quando o diabo Lhe disse que
convertesse as pedras em pães, e quando o Senhor lhe disse que a Deus
sómente se deve adorar... A este respeito disse que era um grande pecado
a gente pôr-se de joelhos deante dos santos... finalmente, falou muito
bem...

—Basta, basta—exclamou o padre Francisco.—Senhora Joana, aquilo que
Julião disse não foi mais do que uma serie não interrompida de erros,
condenados pela egreja, pelo papa, pelos concilios e por todos aqueles
que teem sido reconhecidos por santos. Aposto que não falou bem dos
padres?

—Nem bem, nem mal.

—Aposto que não falou bem da egreja romana?

—Não disse nem uma palavra.

—Não importa, esse silencio é um pecado. Disse alguma coisa de Maria
santissima?

—Não, senhor.

—Já se vê; pois se os protestantes não crêem nela!... Todos esses
propagadores de nova especie não são senão pessoas que teem por oficio
enganar os outros, a troco duma certa quantia que recebem para isso.

—E com que interesse?...

—Oh!—interrompeu o padre Francisco—Vocemecê não pode compreender o
interesse que teem, nem o fim que teem em vista. Se não fossem os
sacerdotes, já teria desaparecido a religião dos nossos paes! Para socego
da sua alma, eu peço-lhe que não vá ouvir essas más doutrinas.

—Muito bem, senhor padre Francisco—respondeu a mulher, farei tudo o que
mande.

—Porém é mister, em troca, ajudar a egreja.

—Sim, senhor, sim, eu a ajudarei.

—Bem; pois pode fazer com que nessa casa não se préguem mais heresias, e
eu a recompensarei.

—Como?

—A habitação onde mora fica pelo lado de cima do quarto onde préga esse
doido. Agora o que podemos fazer é arranjarmos gente para fazer muito
barulho, correr dum lado para o outro, assobiar, arrastar as cadeiras,
etc. etc. Deste modo, como o ruido os distrairá, não poderão entender-se,
e acabará por não ir ninguem á reunião. Eu darei duas pesetas por cada
noite em que haja reunião.

—Será servido, senhor padre Francisco, não pelo interesse do dinheiro,
mas sim para agradar a Deus, e esta mesma noite começaremos a tarefa;
asseguro-lhe que esta noite não se entenderão. Porém o meu quarto é muito
pequeno, e não alcança senão uma parte da sala onde eles se reunem: seria
bom dizer áquele que vive no quarto do lado para que faça o mesmo.

—Bem; arranje tudo e faça o que bem lhe pareça, comtanto que consigamos o
fim desejado: interromper as reuniões.

—Bem; assim se fará.

O padre Francisco deu tres pesetas á mulher, que hipocritamente não
queria recebel-as; porém por fim aceitou-as e saiu.

Poucos momentos depois de ficar só, o padre Francisco tornou a encetar o
monologo interrompido pela chegada da sr.ª Joana.

—Deste modo—dizia comsigo—não poderão durar muito as reuniões, porém o
caso é que todos falam bem do que dizem essas pessoas. Não, pouco tempo
lhes durará o passatempo; agora já é outra coisa: se o meio de fazer
barulho não surtir efeito, vou ter com o senhorio, ofereço-lhe cinco
pesetas mais do que Julião lhe dá, e com certeza que o despede.

De repente olhou para o relogio de parede e exclamou:

—Com a bréca! Dez horas menos vinte, e ás dez tenho de dizer missa!...
Vamos!

Em seguida poz a capa, e, depois de recitar algumas orações em latim
deante dum crucifixo de marfim, saiu.

—Terão já aberto a loja que pertenceu a Julião?—pensava ele ao descer a
escada;—sendo assim, entro e direi ao novo inquilino que deite bastante
agua benta em todos os cantos para afugentar o diabo.

Nisto chegou á rua, e efectivamente a loja do vidraceiro estava aberta,
se bem que nas estantes não houvesse nada e os vidros estivessem sujos.
Evidentemente o novo inquilino estava-se mudando.

O padre Francisco foi pôr por obra o seu pensamento; chegou á porta da
vidraça, levantou o fecho, abriu, e um grito saiu de sua boca. No meio da
loja estava um homem dando ordens para a colocação dos objetos, e esse
homem era... era... Julião.

A surpreza não permitiu que o padre Francisco dissesse uma palavra.
Voltou a fechar a porta, e, palido e convulso, entrou outra vez no portal
para perguntar ao porteiro como é que Julião estava na loja, donde dias
antes havia sido despedido.

—Porque voltou de novo a alugal-a—respondeu o porteiro.

Tal abalo produziu esta noticia no sacerdote que, cambaleando, como se
estivesse ébrio, subiu com custo os degraus da escada, recolheu-se em
casa, e naquele dia não disse missa.



CAPITULO XIX

Evangelicos e romanos


Ao aceitar o dinheiro que tão generosamente lhe mandou o seu visinho
João, Julião aceitou tambem as condições das obras que ele lhe ofereceu
para tomar de empreitada. Por este motivo foi forçado a sair de Madrid,
mas, como não queria que se suspendessem as reuniões, encarregou delas
um joven evangelista, o qual continuou prégando durante o tempo em que
Julião esteve ausente.

O joven a quem Julião deu o encargo de continuar a obra por ele
principiada fêl-o apezar de quantos obstaculos lhe pozeram para o
dissuadir disso o padre Francisco e os seus.

Entretanto, os costumes duma grande parte dos visinhos iam-se reformando
notavelmente, graças á poderosa influencia do Evangelho.

—Bons dias, senhora Dôres—diziam á esposa do nosso amigo.

—Bons dias—respondeu ela—; então como vamos?

—Muito bem. Diga: haverá esta noite culto?

—Sim, senhora; esta noite, como todas as outras.

—Alegro-me muito com isso, porque não quero que meu marido perca um.
Não sabe que desde que ouviu o Evangelho está mudado? Não sabe que já no
domingo não foi jogar á bola?... Nem se embebedou. Saiu pela manhã, ás
dez e meia; e eu desde logo voltei-me para Deus para pedir-Lhe: «Senhor,
permiti que o meu José não se embebede hoje». Á meia hora depois do
meio-dia disse-me: «Francisca, prepara-te e prepara o pequeno, que vamos
dar um passeio». Acredite-me, Dôres, que julguei que estivesse sonhando.
Quando fui para a alcova para vestir-me, pulava de alegria.—Imagine, ha
doze anos que estamos casados e ha onze que não sahia com ele. Vesti-me,
arranjei o pequeno, e quando chegámos á porta da rua, sabendo o seu
costume de, logo que sahia, se dirigir para o jogo da bola, encaminhei-me
para esse lado, mas ele disse-me: «Vamos por este lado, pois que odeio
o sitio onde se joga a bola: quantas bofetadas te dei por ir ali!».
Interroguei-o ácerca do caso, e disse-me que desde uma noite em que o
seu marido leu e falou sobre um texto que diz, «Não vos enganeis, porque
nem os que se dão a bebedices entrarão no reino de Deus», essas palavras
gravaram-se-lhe de tal modo no coração, produzindo-lhe tal impressão, que
desde então até agora não tornou a embebedar-se.

—Muito me alegro pelo que me diz ácerca da mudança de seu marido—disse
Dôres—; pelo que deve dar graças a Deus, não a meu marido; pois só Deus é
o que pode mudar os corações, e Ele é quem mudou o coração de seu marido.

—Diga-me, senhora Dôres: sendo tão bom aquilo que o seu marido diz,
porque é que os padres lhe fazem tanta guerra?

—Pois a razão é clara: emquanto eles, por exemplo, dizem que ha um
purgatorio, meu marido e todos os que crêem na Biblia, que é a Palavra
de Deus, negam a existencia de tal logar; porque na Palavra nada se diz
a tal respeito. Emquanto os padres, dizendo que são os sucessores dos
apostolos, asseguram que praticam o que aqueles praticaram, nós, os
cristãos evangelicos, lhes perguntamos com a Biblia na mão em que logar
disse missa algum dos apostolos, ou lhes pedimos que nos mostrem as
indulgencias concedidas por S. Pedro ou S. Paulo.

—Tem toda a razão. Até depois.

Entretanto, os visinhos partidarios do catolicismo, ou, antes, aqueles
que, sendo indiferentes a toda a denominação religiosa, eram cegas
maquinas do padre Francisco, faziam os maiores esforços, já que não
podiam impedir as reuniões, ao menos para estorvar a tranquilidade que
deve reinar nelas.

Para que os nossos leitores possam formar uma idéa do que costumam fazer
os inimigos do Evangelho, referiremos o que se passou um domingo á noite
em casa do sr. Hipolito, emquanto se celebrava o culto.

Como dissemos, era domingo.

Ás oito horas da noite, a habitação do sr. Hipolito estava cheia de
gente. Num dos extremos da sala ha uma mesa, e por detraz dela está um
joven de vinte a vinte e cinco anos de edade, vestido modestamente: fala
sobre o que está escrito no Evangelho de S. Mateus, cap. 7:16. _«Pelos
seus frutos os conhecereis»._

Emquanto ele se esforçava por demonstrar aos seus ouvintes como cada um
mesmo podia conhecer-se e dar a conhecer aos outros se era cristão, o
teto da sala parecia vir abaixo.

Pancadas no soalho, gargalhadas, cantigas em altas vozes, ruido de
objetos que rodavam em direcções opostas, um barulho similhante ao duma
habitação de loucos, e não dum aposento onde vivessem creaturas racionaes.

Além do incomodo que isto causava, distraindo aqueles que escutavam, não
pode dizer-se o mal que isto causava ao prégador, distraindo-o tambem e
obrigando-o a levantar a voz e a não descançar um momento afim de manter
a atenção do auditorio.

—Sim—dizia ele,—pelos frutos bons ou maus de cada um, isto é, por meio
das nossas obras na vida diaria, é que conhecemos e damos a conhecer se
somos cristãos...

Neste momento uns fragmentos de gesso cairam do teto, emquanto que se
sentia um ruido infernal.

Alguns dos que estavam escutando sairam e dirigiram-se á habitação do
visinho de cima para pedir-lhes que fizessem menos barulho.

Penetremos nós ali para ver em que se ocupam aqueles servos de Roma.

Em uma pequena habitação acham-se umas vinte pessoas de ambos os sexos,
que ao som duma guitarra desafinada saltam, pateiam, correm, vão e veem.

Sobre uma mesa suja e imunda está um grande jarro com vinho.

A desordem que reinava era medonha. Ao principiar a festa, a dona da casa
havia-lhes dito que o objeto da reunião era impedir, por meio do barulho,
os cultos protestantes que se celebravam no quarto que ficava pelo lado
de baixo. Para melhor os animar, disse-lhes um sem numero de desatinos
que devemos calar, e por fim declarou-lhes que o padre Francisco lhes
pagava aquele jarro de vinho, pão e queijo, para passarem agradavelmente
aqueles momentos.

Quando souberam que o fim com que ali se reuniam era para dar escandalo,
fizeram-no com a maior alegria.

Cantavam as mais grosseiras canções, misturadas com freneticos _morras_
dados aos protestantes; e não é de estranhar que fizessem tudo aquilo em
nome da religião, visto que era um sacerdote quem pagava a despeza, e
tudo era feito por inspiração sua.

As pessoas que se dirigiam a este foco de infamia chegaram por fim. Ao
aparecerem, cessou o barulho, e um deles, que vivia na casa, disse á
senhora Joana:

—Vimos pedir-lhes que façam menos barulho, pois aquilo que estão fazendo
é indicio de má creação, que não podemos tolerar.

—Nós—replicou a senhora Joana—estamos em nossa casa, onde ninguem manda,
e onde podemos fazer o que muito bem nos der na vontade.

—Sim, menos incomodar os visinhos; é esta uma casa em que vivem muitos
moradores, e portanto não ha que atender á comodidade particular, mas sim
á geral.

—Sabe o que lhe digo?—respondeu, desagravando-se, a senhora Joana—pois
se nós os incomodamos com o barulho do baile, bailem vocês tambem:
e incomodar-nos-hemos dessa maneira mutuamente e... Além disso, se
vocês não estivessem fazendo bruxarias, não teriam dado logar a isto.
Sobretudo, estou em minha casa... e o que disse está dito.

—Olá!—acrescentou, dirigindo-se aos seus amigos,—toca a bailar. Viva a
religião! Morram os protestantes!

Era quasi certo que romanos e protestantes viriam ás mãos, se não se
apresentasse a autoridade do logar, acompanhado do dono da casa em que se
celebrava o culto evangelico.

A dita autoridade foi presenciar a reunião evangelica, e foi testemunha
ocular de tudo o que se passou; pelo que, chegando á porta do quarto, no
momento mesmo em que Joana pronunciava as palavras que já conhecemos,
disse:

—Boas noites, senhores.

Aquelas «boas noites» fizeram com que o socego se restabelecesse.

—Parece-me que é demasiado o barulho que vocês fazem, e venho dizer-lhes
que isso incomoda os visinhos.

Um dos homens, que estava tocando a guitarra, levantou-se e, dirigindo-se
ao recemchegado, sem saber quem era, disse-lhe:

—Quem é você para falar assim? Creia que já me aborrece tanto palavriado,
e, se me chega a mostarda ao nariz, nem você nem nenhum dos protestantes
que estão lá em baixo fica com um cabelo na cabeça.

—Parece-me que o vinho faz com que fale desse modo, aliás...

—Se não se cala—interrompeu o homem,—arremesso-lhe daqui mesmo onde estou
com... Já lhe disse, quem é você? É porventura algum protestante?

—Sou quem agora mesmo o leva para a casa de detenção; sou o regedor da
freguezia.

E ao ouvir isto todos ficaram como estatuas.

—Senhor regedor—disse, passados alguns momentos, a dona da casa, com
uma entoação tão servil agora como antes tinha sido insultante—senhor
regedor; eu lhe confessarei por que razão estamos fazendo o que vê, se
nenhum mal nos fizer.

—O escandalo sempre é escandalo, e o meu dever é castigal-o; porém queira
dizer.

—O padre Francisco, que vive no andar superior, dá-nos algumas pesetas
para fazermos barulho e interrompermos as reuniões protestantes que se
celebram lá em baixo, e nós sem saber... pois... o faziamos.

—Bom; vamos ter com o padre; porém venha a senhora comigo.

Todos desceram, e, ao passarem pela porta, aberta de par em par, da
casa do sr. Hipolito, ouviam a voz do prégador, que, terminando o culto,
orava, dizendo naquele proprio instante:

—«Senhor, perdôa aos nossos visinhos lá de cima, que em sua cegueira
profanam o Teu santo dia, dando escandalo. Senhor, eles crêem que desse
modo abafarão a Tua palavra; já vês o seu erro. Entretanto faze que nós
demos frutos que manifestem a diferença que ha entre os que Te conhecem e
os que Te não conhecem.



CAPITULO XX

O Cristo das Completas e um lignum crucis


Como acabamos de ver, o regedor, acompanhado da senhora Joana, entrou
na casa do padre Francisco. Não nos dizem os nossos apontamentos o que
se passou entre eles, porém o que sabemos é que as reuniões evangelicas
continuaram com toda a regularidade.

O mesmo padre Francisco parecia ter perdido o seu antigo ardor, e agora
nada fazia contra aqueles a que ele chamava seus inimigos, se bem que não
cessasse de pensar e tornar a pensar comsigo sobre o caso.

Depois de pensamentos desencontrados, acabou por desejar ter uma
conferencia com o joven que dirigia os cultos.

Esta solução pareceu-lhe a melhor de todas.

—Sim—disse ele comsigo,—esse joven é muito creança ainda, e com
habilidade poderei informar-me por ele do que realmente ha nessas
sociedades. Ao mesmo tempo poderei convencel-o dos seus erros, e não me
será impossivel conseguir dele que uma noite, em vez de celebrar o culto,
como eles dizem, faça uma retractação das suas doutrinas; nesse caso eu
triunfava, e acabava com essa maldita obra, e depois...

O padre esfregou as mãos de contente, e depois tratou de indagar onde e
como poderia dirigir-se ao joven evangelista.

Cheio de alegria, pegou na pena e escreveu a seguinte carta:

                                     «Madrid... Embaixadores n.º...

    Sr. Mateus N.

    Se bem que não tenha a honra de o conhecer, senão por tel-o
    visto algumas vezes, peço-lhe me conceda o especialissimo favor
    de aceitar um talher á minha meza, ás tres horas da tarde do
    dia de ámanhã, ou do dia que designe.

    Espero que não verá nisto qualquer traição: estou disposto a
    dar-lhe quantas provas de segurança julgue convenientes, pois
    tenho sómente por objectivo falar-lhe sobre religião.

                        Seu afectuosissimo

                                      _Francisco Maria dos Anjos_.»

Ao anoitecer daquele mesmo dia, o padre Francisco recebeu uma carta nos
seguintes termos:

                                                         «Madrid...

    Sr. P.ᵉ Francisco Maria dos Anjos

    Aceito a honra que me concede, e ámanhã ás tres horas da tarde
    estou á sua disposição. Nada receio, porque Deus irá na minha
    companhia; sómente peço a V. que, se vamos tratar de assuntos
    da religião, seja com a Biblia na mão.

    Seu afectuosissimo servo, que deseja ser seu irmão em Jesus,

                                                       _Mateus N._»

No dia seguinte, poucos minutos antes das tres, o joven evangelista
batia á porta do padre Francisco, que veiu logo receber o seu hospede,
estendendo-lhe a mão com a expressão mais afectuosa, e dizendo-lhe:

—Seja bemvindo, senhor Mateus; entre, entre na minha habitação, onde
descançará e jantará comigo.

Entraram juntos na sala, e, passados alguns momentos de silencio, disse o
padre Francisco:

—Queira desculpar que, sem o conhecer, lhe oferecesse um talher á minha
meza.

—É para mim subida honra—respondeu o joven—o receber uma tal prova da sua
bondade para comigo.

Seguiram-se alguns momentos de silencio, durante os quaes o joven não
desviava os olhos dum precioso armario de pau preto, que o padre tinha em
frente da meza de jantar.

—Bonito movel!—exclamou Mateus.

—Realmente—exclamou o padre Francisco—é uma bonita peça, porém o que é
mais bonito e tem mais valor é o que está dentro.

O padre Francisco levantou-se, dirigindo-se ao armario, e poz o dedo num
botão amarelo, o que deu logar a que as portas se abrissem, deixando ver
uma especie de capela com o seu altar, imagens e uma lampada de prata,
cuja luz ardia continuamente. Ao abrir-se o armario, o padre Francisco
tirou o _solideo_, fez uma reverencia ao altar e, voltando-se para
Mateus, disse-lhe:

—Venha ver, que ha aqui coisas esplendidas.

O joven aproximou-se do altar, sem se inclinar nem fazer o menor sinal de
reverencia.

—Veja—prosseguiu o padre Francisco—o meu pequeno tesouro. Essa Virgem do
Pilar, que é de prata, tem um merito artistico extraordinario. Aquele
crucifixo de marfim é tambem muito bom, e custou-me, quando estive
em Roma, trinta e cinco libras. Vê aquele S. Pedro? Foi presente da
minha madrinha de baptismo, que mo deu quando cantei missa, e então meu
padrinho, para que eu tivesse o par completo, mandou-me fazer aquele S.
Paulo. São ambos de oiro. Meu tio mandou-me do Brazil, quando era mordomo
do arcebispo daquele paiz, esta reliquia: é um pedacinho dum dos degraus
da casa de Anás. Porém ainda não lhe mostrei o melhor, que é aquele
Cristo.

O padre Francisco apontava para uma téla, onde estava pintado um Nazareno
com a cruz ás costas: representava-O de meio corpo e quasi do tamanho
natural.

—_É o Cristo das Completas_, imagem muito milagrosa. Saiba que já falou.

—Já falou, esse pedaço de linho!—exclamou Mateus.

—Sim, senhor; queira ouvir a historia. Essa imagem achava-se exposta á
veneração dos fieis num convento; nesse convento havia uma freira tão
enamorada dela que cada vez que se ajoelhava para adorar passava ali
horas esquecidas. Sucedia com isto que, ainda que o sino tocasse para as
rezas, aquela esposa do Senhor não o ouvia e faltava sempre a elas.

«Uma tarde achava-se a freira em adoração á imagem e tocou o sino para
as _Completas_, porém ela não ouviu o toque, e então a divina imagem,
abrindo os seus divinos labios, avisou a sua amiga, dizendo-lhe: _Olha
que tocam para Completas_.

—Pois sr. padre Francisco, não posso acreditar no que diz. Falar um
pedaço de pano pintado!

—Como? Acaso não falou a burra de Balaão?

—Sim, senhor, porém aquele caso foi muito diferente, pois...

—Falaremos nisso depois do jantar. Veja outra preciosidade. Este _Lignum
crucis_ trouxeram-mo de Jerusalem. Cresceu tanto emquanto o trouxe ao
pescoço que tive que o cortar tres vezes durante um ano.

O joven, sem poder conter-se, soltou uma ruidosa gargalhada, mas,
reprimindo-se em seguida, disse ao padre Francisco:

—Espero que me desculpe este imprudente riso, que me veiu sem querer aos
labios; e logo que fechar o armario lhe contarei o motivo por que me ri
quando me contou a historia do _Cristo das Completas_.

O padre fechou o armario e sentou-se numa cadeira em frente do joven, que
disse:

—Ha pouco tempo achava-me eu numa loja de ourives desta capital; o dono,
que é meu amigo, deu a um aprendiz, para que o limpasse, um relicario que
ali tinham levado para esse fim. O relicario era nada mais nada menos do
que um _Lignum crucis_, e, ao dal-o o meu amigo ao aprendiz, disse-lhe
que tivesse todo o cuidado; porém o rapaz, apenas lhe pegou, deixou-o
cair. Oh dôr! pegaram no relicario, olharam para dentro, e a reliquia
havia desaparecido. Em vão a procuram, mas como é uma coisa sumamente
pequena não pôde ser encontrada. Em tal situação que fazer? Pois, senhor,
um oficial da casa cortou um pedacinho da cadeira em que estava sentado
e colocou-o no sitio em que devia estar a reliquia. Passado pouco tempo,
disse-me o meu amigo que a dona do relicario o procurara para lhe
arranjar uns brincos; então perguntaram-lhe pelo seu _Lignum crucis_, e
toda alvoroçada exclamou: «Cresceu extraordinariamente desde que o mandei
compôr, pois que já o cortaram duas vezes.»

—Pois bem—continuou Mateus,—o fenomeno compreende-se: a tal senhora levou
o relicario ao peito, e, como a caixinha era de papelão forrado de seda,
penetraram nela facilmente a humidade e o calor, o que fez com que o
pedacinho de madeira aumentasse de volume, obrigando-o assim a sair do
pequenissimo orificio destinado para a reliquia, pelo que foi necessario
cortar duas vezes o tal fingido _Lignum crucis_, que já dava de si
material para outros novos.

—Porém isso—exclamou o padre Francisco—foi uma acção má, um sacrilegio.

—Eu não quero nem pretendo agora julgar se a acção foi boa ou má; porém
quem disse a V. que a sua reliquia não é egual ao pedacinho de madeira de
que temos falado?

—Não, senhor; este foi trazido da Terra Santa.

—Bem, nesse caso será um pedacinho de madeira de Jerusalem, da Terra
Santa, e sempre é alguma coisa. Note que uma das coisas que deram logar
á Reforma foi o abuso das reliquias. Por todas as partes encontramos
ossos deste ou daquele santo, e o peor é que não é raro encontrar o mesmo
osso dum santo em quatro pontos distintos, e, se não, diga-o a celebre
queixada de Santa Apolonia.

—Isso...

—Desengane-se, senhor padre Francisco, Jesus é tudo. O ensino da egreja
romana consiste em não prégar. Se em vez de fanatizar com reliquias e
outras coisas, se ensinasse ao povo a palavra de Deus, e o que disse
Jesus: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguem vem ao Pae senão
por mim», e estas outras: «Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo»,
o povo não estaria tão cego e não fiaria a sua salvação de reliquias
ridiculas e falsas, e que só servem para nos apartar de Jesus e
conduzir-nos ao inferno.

Umas pancadas dadas na porta vieram interromper a conversação.

—Entre—disse o padre Francisco.

A creada entrou na sala, anunciando que a comida estava na meza.

—Vamos, sr. Mateus, vamos para a meza, e emquanto comemos teremos ocasião
de conversar.

E o padre Francisco, tomando o joven pelo braço, encaminhou-se para a
sala de jantar.



CAPITULO XXI

A conferencia


Ás tres e meia horas da tarde, o padre Francisco e o seu hospede estavam
sentados á meza. Quando já tinham comido algumas colheres de sopa, o
padre Francisco, numa voz meliflua, disse ao joven:

—Amigo Mateus, desejei vivamente falar comsigo, movido da melhor boa
vontade, e peço-lhe que ponha de parte as nossas diferenças religiosas,
para que conversemos como se fossemos alheios ás questões que vamos
tratar.

O joven manifestou com a cabeça um sinal de assentimento, e o padre
Francisco, continuando o seu discurso, disse:

—Sempre me chamou a atenção a propaganda tão tenaz que os protestantes
fazem em Hespanha, sem embargo de que pouco podem adeantar. Vocês
espalham livros, pagam a missionarios, pagam o aluguer das casas onde
prégam, as quaes, apezar de estarem sempre vasias, custam bom dinheiro...
Quem paga para tudo isto e qual o fim que teem em vista?

—Eu, por minha vez, devia perguntar-lhe: Quem enche as chamadas arcas
de S. Pedro? Donde saem essas somas que vão engrossar os tesouros do
pontifice italiano?

—Os bons catolicos é que...

—Desculpe-me, senhor padre Francisco, já sei qual a resposta; essas somas
saem, em sua grande maioria, da nobreza, que, em logar de socorrer as
necessidades do seu proprio paiz, manda dinheiro para uma coisa de que
não quero ocupar-me.

«Pois bem: existem fóra daqui homens que crêem em Cristo; estes homens
sabem que sómente nesse nome é que podemos ser salvos; compreendem que
uma parte do que o Senhor lhes dá devem empregal-a no serviço do mesmo
Deus, e em vez de darem a um homem para que o empregue á sua vontade,
sustentando soldados e outras coisas, enviam aos paizes onde o Evangelho
é ignorado missionarios que préguem o nome de Jesus, custeiam a despeza
dos livros que falem d’Ele, e sobretudo dedicam somas enormes á impressão
da Biblia na lingua de cada povo.

—O maior de todos os males!—exclamou o padre Francisco.—Isso é o peor de
tudo.

—Como?—disse o joven, surpreendido.—Diz que a vulgarisação da Palavra de
Deus entre o povo é a coisa peor da propaganda evangelica?!...

—Sim, senhor—afirmou o padre Francisco, acrescentando:—Supondo mesmo que
a tradução está feita com a melhor boa fé, quem se lembra de pôr nas mãos
dum povo ignorante um livro tão profundo como a Biblia? Eu mesmo não me
atrevo a estudar a Biblia, nunca a leio, com medo de extraviar-me. A
Santa Biblia foi sómente escrita para homens doutos e instruidos, e não
se deve mostrar ao povo, e muito menos deixal-a em suas mãos, pois que
isso serviria tão sómente para o perder.

—Não tem razão no que diz—disse Mateus,—e no que afirma vae de encontro
ao que está escrito, pois recordo-me perfeitamente de que o Salmista diz:
«_Tocha resplandecente para os meus pés é a tua palavra, e luz para o
meu caminho..._» (Sal. 118: 105).

—Pode dizer o que quizer, porém não ha provas suficientes que autorizem o
povo a que leia a Biblia.

—Como assim, se a palavra de Deus está cheia dessas autorizações? A
Biblia era lida publicamente na sinagoga. Moisés recebeu ordem do
Senhor para a ensinar ás pessoas adultas, ás creanças, e até mesmo aos
estrangeiros que habitavam entre o povo de Israel.

—Porém observe, Mateus, que então era outra coisa, pois ainda não tinha
vindo Jesus Cristo, e era preciso recorrer á profecia; mas hoje, que
Cristo já veiu, de modo nenhum devemos recorrer ao Antigo Testamento,
para nos inspirarmos nas antigas praticas.

—Se bem que não me conformo com essa opinião—replicou o joven,—no emtanto
recorramos, pelo menos, ao Evangelho, e...

—Isso mesmo fazemos nós—disse o padre Francisco,—pois que todos os dias
na egreja se lê o Evangelho e alguns trechos das Epistolas.

—Sim? E diga-me em que lingua são lidos o Evangelho e esses trechos das
Epistolas.

—Em latim, por ser o idioma universal da egreja.

—Como diz que o latim é a lingua universal da egreja, quando a egreja é
composta de italianos, hespanhoes, portuguezes, francezes, inglezes, e de
outras nações, e cada qual fala a sua lingua particular? Quem fala hoje
em dia latim? Á excepção do clero, creio que ninguem. Então é preciso
falar a cada um na sua propria lingua.

«Que significa o facto de, quando os apostolos receberam o Espirito
Santo, começarem a falar diversas linguas? Significa certamente que
deviam contar as maravilhas de Deus a cada povo, na sua propria lingua,
para que ele podesse entender. Os apostolos falavam diversas linguas,
depois de terem recebido o Espirito Santo, e, segundo alguns crêem, sem
saberem eles mesmos que falavam lingua estranha: mas seja como fôr, se o
Senhor obrou tal milagre é porque convem que o Evangelho seja prégado ao
povo na sua propria lingua, para que ele o possa entender. Assim S. Paulo
diz, na sua primeira Epistola aos Corintios, cap. 14: 18 e 19: «_Graças
dou ao meu Deus, que falo todas as linguas que vós falaes; mas eu antes
quero falar na egreja cinco palavras da minha inteligencia, para instruir
tambem os outros, do que dez mil palavras em lingua estranha._»

O padre Francisco ficou silencioso, sem saber que responder, vencido
pelos argumentos do joven. Porém acrescentou logo:

—Sim, tudo o que diz parece verdadeiro, porém eis ahi o que resulta de
ler a Biblia sem os comentarios da egreja.

—Pois eu digo a V. que, lendo a Biblia com as notas do padre Scio, se
encontram os mais solidos argumentos em favor da minha asserção.

—Bem—disse o padre Francisco,—acabemos de comer, e, visto que o senhor
assim o deseja, iremos consultar a Biblia.

—Se lhe parece—disse Mateus,—discutiremos se as Sagradas Escrituras devem
ou não ser lidas pelo povo.

—Sim, discutamos—respondeu o padre,—porém, antes disso, permita que
lhe apresente os argumentos que tenho a meu favor, pois que, se eles o
convencerem, pouparemos palavras inuteis. O primeiro argumento que posso
apresentar é a tradição—coisa esta muito digna de se ter em conta. Porque
é que nenhum bispo tem permitido até hoje que a Biblia circule livremente
nas mãos do povo?... O segundo é que, ao instituir Cristo a familia
sacerdotal, como pode dizer-se em hipotese, claro está que foi só para
que os sacerdotes, e sómente estes, sejam depositarios e interpretes
da Biblia... Depois... Depois... Os concilios!... Essas assembleias de
homens doutissimos! Poços de sabedoria humana e divina!... Os papas!...
Essa cadeia não interrompida de homens cheios do Espirito Santo, que vem
comunicando-se duns para os outros desde o primeiro que teve o primado!
Todos estes são concordes em que a Biblia deve ser prohibida para aqueles
que, alterando a sua significação ou dando-lhe uma interpretação forçada,
podem extraviar as almas, precipitando-as no inferno. Mateus, seja
franco; o senhor mesmo não experimentou duvidas ácerca do dogma cristão
ocasionadas pela leitura da Biblia sem notas? Responda-me, porém faça-o
com franqueza, dizendo o que realmente sente.

—Vou responder-lhe com a franqueza que deseja. Principio pela sua ultima
pergunta. Não, senhor; jámais experimentei duvidas ácerca do dogma
cristão quando principiei a ler a Biblia; o que, sim, senti desde logo
que possui o sagrado livro foi uma sensação de temor e respeito, que
não posso explicar. Ao ler as manifestações do amor de Deus, fiquei
assombrado; depois, com as Epistolas, aprendi uma porção não pequena
de doutrina, e por ultimo o livro dos _Atos dos Apostolos_ me ensinou
a evangelizar. Eis aqui do que me serviu a Biblia. Hoje em dia, que me
acho familiarizado com a sua leitura, esquadrinho o Antigo Testamento,
estudo as profecias, a minha alma canta lendo os Salmos, sofre com Job e
goza com José, aprendendo quaes são os juizos de Deus, que Se serve de
tantos meios para fazer bem ao homem. Sim, padre Francisco, a leitura
da Biblia enche o espirito de santas emoções, demonstra a enormidade do
pecado, tornando-o odioso á nossa alma, e nos faz ver antecipadamente
os inefaveis gozos que a misericordia dum Deus de amor nos prepara nos
logares que hoje nos são desconhecidos.

Depois dalguns momentos de silencio, durante os quaes o padre Francisco
se mostrou muito pensativo, o joven evangelista prosseguiu:

—Agora passemos a outra coisa, da qual falarei pouco, pois que quero
falar com a Biblia. Diz V. que nunca na antiguidade houve quem lesse a
Biblia, querendo, sem duvida, dar a entender que até ao seculo XVI não
houve quem se ocupasse na tradução do sagrado texto em lingua vulgar.

«Contra esta asserção fala o bispo Ulfilas, que viveu no seculo IV, o
qual, quando os godos invadiram a Hespanha, havia já traduzido para o
gotico as Sagradas Escrituras; levanta-se Recesvinto, que viveu no ano
de 650-672, rei dos godos, que entre as suas virtudes contava um desejo
insaciavel de conhecer os misterios das Escrituras, no que respeitava á
sua salvação; levanta-se um João, bispo de Sevilha, que no seculo III
traduziu a Biblia para o arabe, afim de que os arabes que tinham invadido
a Hespanha podessem lêl-a e instruir-se nas verdades cristãs; D. Jaime
I, que reinou nos anos de 1213 a 1276, e que tão pouco está conforme com
V., padre do seculo XIX, pois, emquanto que V. crê que a interpretação da
Biblia pertence aos sacerdotes, aquele rei, dizem as cronicas, possuia
um conhecimento profundo das Sagradas Escrituras, as quaes explicava e
prégava como o mais consumado mestre de teologia, em qualquer cidade onde
se achasse. Este rei não sómente prégou ao povo, senão que no concilio
de Lyon, e perante o Papa Gregorio X e mais prelados, tomou para texto
as palavras de Isaias: «Levanta-te; resplandece, etc., etc.,» as quaes
desenvolveu com notavel admiração de todos. Outro hespanhol, Luiz de
Gusmão, mestre de Calatrava, mandou traduzir a Biblia, no ano de 1432,
ao sabio judeu Moisés, e, como este opozesse algumas dificuldades,
conseguiu o nobre mestre, á força de dinheiro e ameaças, convencer o
judeu; a tradução fez-se, e numa nota do Moisés lê-se: «Até hoje tenho
gasto mil dobrões, desde que se principiou, até ao estado em que a
vêdes.» Devo advertir-lhe, sr. padre Francisco, que os mil dobrões de
então correspondem a umas 2500 libras esterlinas de hoje. Agora julga
ainda que não houve reis, bispos e nobres que lessem a palavra de Deus?
Como se atrevem os senhores a afirmar coisas que não conhecem nem sabem?
Porém, vamos ao texto.

—Vejamos; eu acho na palavra de Deus o mandamento de ensinar a Biblia ás
creanças, e aqui, no livro chamado o Deuteronomio, cap. 6, vers. 6-9,
leio o seguinte:

    E as palavras que eu hoje te intimo estarão gravadas no teu
    coração; e as referirás a teus filhos, e as meditarás assentado
    em tua casa, e andando pelo caminho, ao deitar-te para dormir
    e ao levantar-te; e as atarás como sinal na tua mão; e elas
    estarão e se moverão deante dos teus olhos, e as escreverás no
    limiar e nas portas da tua casa.

—A primeira coisa que tenho que opôr a isso—respondeu o padre Francisco—é
que esse texto pode estar alterado, ou não ser exato, pois o senhor diz
que esse livro é uma Biblia completa, o que não pode ser, pois que tão
extensa materia não pode estar contida em tão pequeno volume; e, visto
que não está anotado, não podemos nós interpretal-o.

—Muito bem—replicou o joven;—nesse caso faça favor de trazer a Biblia.

O padre Francisco dirigiu-se a um armario, e tirou de lá tres grandes
volumes.

Procurou entre eles, e por fim disse:

—Aqui está o texto que você cita; vou lêl-o.

O padre leu:

    E estas palavras que eu hoje te intimo estarão em teu coração,
    e as contarás a teus filhos, e as meditarás sentado em tua
    casa, e andando pelo caminho, ao deitar-te para dormir, e ao
    levantar-te: e as atarás como sinal na tua mão, e elas estarão
    e se moverão deante dos teus olhos, e as escreverás no limiar e
    portas da tua casa.

—Diga-me que diferença ha entre o que está na minha Biblia e o que está
na sua?—perguntou Mateus.

—Realmente nenhuma, respondeu o padre; porém aqui ha algumas notas, e
estou certo de que elas discordam da opinião dos senhores. Vejamos. E
onde diz: «E as contarás a teus filhos» ha uma nota que explica este
texto, dizendo:

«_Instruirás nelas a teus filhos, pois a isto se reduz a perfeição do
homem._»

O padre Francisco ficou sem saber o que dizer, e Mateus, aproveitando
aqueles momentos, disse:

—Pois, longe de discordar da nossa opinião, é esse mesmo o nosso sentir.
Já vê, pois, que estamos de perfeito acordo.

—Mas diga-me—disse o padre Francisco,—não tem nenhuma nota na sua Biblia
sobre esse texto?

—Não; nem precisa é; na Biblia não queremos opiniões de homens.

Neste ponto houve alguns momentos de silencio, depois dos quaes o padre
Francisco, como iluminado por uma ideia, disse:

—Porém, Mateus, não estamos nós divagando? Não lhe dizia eu que esse
livro extravia os ignorantes? Pense, e veja bem que estamos tratando a
questão num terreno falso. Nos tempos de Moisés devia-se ler e meditar
nestas coisas; porém veiu Jesus Cristo e encerrou a Antiga Aliança; de
modo que estes mandamentos são inuteis, porque não nos pertencem a nós.

—Certamente—respondeu Mateus.—Vamos agora ao Novo Testamento. No
Evangelho de S. João, cap. 5, ver. 39, lemos:

«_Examinae as Escrituras, pois julgaes ter nelas a vida eterna, e elas
mesmas são as que dão testemunho de mim._»

—Aqui, como vê,—acrescentou o joven—é Cristo que fala.

—Sim—replicou o padre,—porém fala ácerca dos judeus que não queriam
reconhecel-O como Messias. Este texto nada tem que ver comnosco, os
cristãos.

—Eu não creio assim, mas recorreremos a outros. Na segunda Epistola de S.
Paulo a Timoteo, cap. 3, ver. 14 a 17, lemos:

    «Mas _tu persevera_ nas coisas que aprendeste, e que te
    foram confiadas, sabendo de quem as aprendeste, e que _desde
    a infancia foste educado nas Sagradas Letras, que te PODEM
    INSTRUIR para_ a salvação, pela fé que é em Cristo Jesus. Toda
    a Escritura divinamente inspirada é util para ensinar, para
    repreender, para corrigir, para instruir na justiça, afim de
    que o homem de Deus seja perfeito, ESTANDO PREPARADO PARA TODA
    A OBRA BOA.»

—Peço-lhe, sr. padre Francisco, que examine este texto na sua Biblia e
veja que instruções dá S. Paulo a um seu discipulo que está á frente duma
egreja.

O padre Francisco quasi tinha medo de pegar na Biblia; por fim, depois de
muito instado pelo evangelista, tomou o livro, percorreu o texto, leu-o
para si e disse:

—Sim, o texto é egual ao que leu.

E, ocultando o rosto entre as mãos, calou-se; parecia que o seu espirito
estava como que envolvido em terriveis lutas.

Depois dum breve espaço de tempo, o sacerdote ergueu a cabeça e disse ao
joven:

—Meu amigo, se soubesse o que me vinha a acontecer, isto é, que havia de
ter este desassocego de espirito que agora sinto, jámais teriamos falado
a tal respeito; finalmente, deixemos de discutir, e separemo-nos para não
nos vermos mais.

—Separarmo-nos!—exclamou, comovido, o joven—Separarmo-nos! De modo
nenhum, sr. padre Francisco; agora mais do que nunca desejo que a nossa
amizade principie. Sim, sr. padre Francisco; estudaremos juntos a palavra
de Deus. Lendo a Biblia, conhecerá Cristo, tal como Ele é; lendo a
Biblia, beberá no manancial da agua pura, que refrescará a sua alma,
apagando-lhe o fogo das obras vãs em que hoje se engolfa. Nos Atos dos
Apostolos achará qual foi a constituição e o regimen da Egreja primitiva,
e verá como a egreja em que milita, apezar de se chamar apostolica, não
conserva nada dos apostolos. Ali verá que Pedro não teve primado algum.
Pelas Escrituras jámais poderá provar que aquele apostolo estivesse
em Roma. Ali, finalmente, encontrará que nem os apostolos nem aqueles
que com eles se juntavam renderam culto á Virgem, nem a nenhuma outra
creatura, nem tinham confessionarios nem confissão feita ao ouvido do
sacerdote.

—Pois, sr. Mateus—disse o padre Francisco depois duma breve pausa,—aquilo
que diz parece ser verdade, porém falaremos noutra ocasião; deixe-me
meditar e pensar, porque creio que... emfim... não me declaro vencido.

—Bem, não quero incomodál-o mais—acrescentou o joven,—porém ámanhã,
quando vá dizer a sua missa, recorde-se de que no Novo Testamento está
escrito que Jesus, com UM SÓ SACRIFICIO, fez perfeitos aqueles que
santificou; assim que, se foi com um só sacrificio, aquele que o senhor
celebre é completamente inutil. Agora, rogo-lhe em nome de Jesus que leia
a Biblia; ela lhe fará conhecer o erro em que está; e não quizera sair
daqui sem que me désse a sua palavra de ler os capitulos 5, 6, 7, 8 e 9
da Epistola aos Hebreus.

Depois de cinco horas de discussão, o joven saiu daquela casa e, ao
despedir-se, disse ao sacerdote;

—Não tornaremos a ver-nos?

—Não sei—respondeu o padre,—veremos; se Deus quizer, sim; senão cada qual
seguirá o seu caminho.

Ambos, depois de se apertarem a mão, se separaram.



CAPITULO XXII

Temor, inquietação e duvidas


Quando o sacerdote ficou só, fechou-se no seu quarto, depois de dar ordem
á creada de que por ninguem nem por coisa nenhuma o fosse incomodar.

O padre Francisco sentou-se á mesa do escritorio, sobre o qual poz o
candieiro e a Biblia.

Depois apoiou os cotovelos na mesa, ocultou o rosto entre as mãos, e
nesta posição esteve muito tempo.

Durante este intervalo só se ouvia o oscilar da pendula do relogio, que
vinha perturbar o profundo silencio que ali reinava.

Por fim, o padre Francisco, mudando de posição, disse:

—Ah! Que revolta confusão de idéas surgem no meu espirito... Sim, sinto
uma sêde insaciavel de saber a verdade do assunto... Esse joven é mais
sabio do que eu julgava, seus argumentos são de peso, e suas palavras
teem tal expressão de verdade que, se não me convenceram, pelo menos
fizeram penetrar a duvida no meu espirito.

O sacerdote calou-se, e depois duma breve pausa continuou comsigo:

—As citações que fez, e que lemos nesse livro—dizia, apontando para a
Biblia,—tão gravadas ficaram na minha mente que jámais as esquecerei...
Oh! receio ter cometido um pecado, lendo este livro! Porém... Porventura
não li eu as notas e não vi que estão conformes com a explicação e até
mesmo com a aplicação que delas fez o joven?... E, no fim de tudo, os
Evangelhos e as Epistolas que nós lemos á missa... Ah! a missa! Parece
que tão pouco acredita nela! Não, pois neste ponto não lhe concedo nada;
eu sei que Jesus instituiu a missa quando instituiu o sacramento da
Eucaristia, e sei que os apostolos tambem disseram missa...

Novamente o padre Francisco se calou, porém ao cabo dalguns momentos
continuou:

—Emfim, vou ver o que é a verdade... Lerei os capitulos que me disse da
Epistola aos Hebreus... Certamente que lerei as notas; e assim não haverá
receio de que o meu espirito se extravie.

O padre Francisco abriu a Biblia, procurou a Epistola e principiou a ler
o capitulo 4, depois de ter recitado uma breve oração em latim.

Diversas foram as impressões que o padre Francisco recebeu durante a
leitura; impressionavam-no sobremaneira os versiculos 14 e 15 do cap. 4;
o 20 do cap. 6; porém sobretudo surpreendeu-o o que estava escrito nos
versiculos 24 e 28 do cap. 7, e não poude passar mais adiante.

Ali, viu clara e terminantemente a falsidade de que a missa seja o
sacrificio de Cristo.

No versiculo 21 do citado cap. 7, leu ácerca de Cristo:

«_Que não tem necessidade, como os outros sacerdotes, de oferecer todos
os dias sacrificios, primeiramente pelos seus pecados, depois pelos do
povo, porque isto o fez uma vez, oferecendo-Se a Si mesmo._»

Recorreu o sacerdote ás notas, desejoso de que elas lhe fizessem
compreender outra coisa distinta daquilo que ele compreendia, isto é, que
depois do sacrificio de Cristo teria havido alguma razão poderosa para se
celebrar a missa. Ancioso, cravou os olhos no livro e leu:

    «Ofereceu-Se a Si mesmo, não por pecados proprios, como
    impiamente disse Socino, pois que o Apostolo lhe chama Santo,
    Inocente, Imaculado, senão que satisfez ao Pae por nós. O
    ter-Se _oferecido uma vez_ não exclue os sacrificios da _Egreja
    Cristã_, porque o mesmo que se efectuou cruento sobre a cruz
    está expresso no incruento dos nossos altares». (Conc. Trid.
    Sessão 22, cap. 11).

O padre Francisco deu um murro em cima da mesa e exclamou:

—Claro que a missa é uma representação do sacrificio de Cristo, porém
esta nota do Concilio de Trento está abertamente em oposição com aquilo
que nós ensinamos, isto é, que na missa sacrificamos a Cristo real e
verdadeiramente, pois que temos em nossas mãos um Cristo real, material e
verdadeiro. Não posso compreender isto, porém creio que o sacrificio de
Cristo não se repete mais... Oh! que está dando entrada no meu coração a
heresia!... Nada, nada... porém, sim, a olhos vistos se pode observar que
existe uma contradição entre os nossos ensinos e as nossas praticas...

O sacerdote, cançado por uma luta tão prolongada, decidiu ir refugiar-se
no leito, esperando encontrar repouso no sono.

Fez as suas orações do costume, porém podemos afirmar que nessa noite
os seus labios mais do que o seu espirito tomaram parte nos exercicios
piedosos, pois que o espirito, esse achava-se bastante perturbado.

Todavia, contra as suas esperanças, passou aquela noite preza de
pezadelos que o não deixaram dormir.

Impossivel nos seria descrever os sinaes de terror que se desenhavam
no rosto do padre Francisco ao levantar-se do leito, ao romper do dia.
Tremulo e agitado, principiou a vestir-se com uma precipitação desusada,
e exclamou:

—Oh Santissima Virgem do Pilar! Tu és boa, tu és pura, tu não quererás
que eu, que te amo até ao ponto de ter-te aqui encerrada nesta arca
santa, para que nem o proprio ar te dê; tu, oh flôr de Nazaré, oh estrela
da manhã, não quererás que eu me perca... Não sou eu sacerdote? Não te
amo mais do que a minha vida?... Não daria até o meu proprio sangue por
ti? Porque, pois, não me ouves?... Acaso já me não amas a mim? Em que te
ofendi? Oh Virgem Santissima, não te mostres indiferente quando eu te
oro; pelo contrario, concede-me o que te peço!... Agora vou dizer missa;
a ti a ofereço, excelsa Senhora; prepara-me tu, e perdoa-me todos os meus
pecados, que na tua presença confesso.

E o sacerdote, cruzando as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça e disse
em voz baixa:

—Eu, pecador, me confesso a Deus[4] e á bemaventurada sempre Virgem
Maria, e ao bemaventurado S. Miguel Arcanjo, e ao bemaventurado S.
João Baptista, e aos santos Apostolos S. Pedro e S. Paulo e a todos os
Santos... que pequei gravemente por pensamentos, palavras e obras, por
minha culpa... por minha culpa... por minha gravissima culpa. Portanto,
rogo á bemaventurada Virgem, ao bemaventurado S. Miguel Arcanjo, ao
bemaventurado S. João-Baptista, e aos santos Apostolos S. Pedro e S.
Paulo, e a todos os Santos... que rogueis por mim a Deus, Nosso Senhor...
Amen... Jesus, Maria, José, perdoae-me o grave pecado de ler o que não
devia ter lido, e falado com quem não devia falar, que me fez sonhar
aquilo que eu não queria. Senhor, Maria, Santos que habitaes as mansões
celestes. Sumo Pontifice, Arcebispo da diocese, perdoae-me... _Amen._

O sacerdote, depois de se ter persignado tres vezes, levantou-se, e,
fechando o armario, dirigiu-se ao seu quarto; uma vez ali, poz a capa e,
tomando o gorro, saiu.

Emquanto ia a caminho da egreja, novos pensamentos se lhe cruzaram pelo
espirito, inquietando-o muitissimo.

Via em sua imaginação a Virgem do Pilar, deante da qual se tinha
ajoelhado, tão resplandecente, tão formosa... então, por uma
transformação, viu-a negra, sem aquela expressão de bondade no rosto que
sempre tinha, tal qual como quando estava nas mãos do artista; depois,
viu-a no cadinho derretida, e por ultimo acabou por perguntar a si mesmo:
«Ter-me-ha ouvido esse pedaço de prata?»

Como nesta luta estava interessada a cabeça e o coração, tornava-se ainda
mais amarga, porque o que aquela aprovava este rejeitava, e vice-versa;
assim que, depois da pergunta anterior, veiu-lhe ao espirito o seguinte
pensamento: «Porém, se eu me prostrei deante daquela imagem, não foi para
a adorar a ela, mas sim aquilo que representa».

Por fim chegou á egreja, e, depois de tomar uma pouca d’agua benta, com
que fez uma cruz na testa e na corôa, dirigiu-se para a sacristia.

A sacristia desta egreja é digna de ser observada.

Quasi todas, com pequenas excepções, são eguaes. Um compartimento maior
ou menor, com um armario a um dos lados, que serve ao mesmo tempo de
meza, o qual é de madeira e duma construção pesada. Nos seus gavetões
guardam-se os paramentos, a cera, etc.

Na parede lateral do lado oposto, ha uma especie de banco corrido, que
oculta um caixão a todo o comprimento, onde os sacerdotes guardam as
capas, quando se preparam para celebrar a missa.

Quadros misticos, um crucifixo, uma pequena taça de pedra com agua, onde
o sacerdote lava as mãos antes e depois da missa, compõem todo o adorno
daquele logar.

Devemos fazer especial menção duma antiquissima mesa, por detraz da qual
ha uma cadeira de couro, não menos antiga.

Fazemos menção especial destes dois objectos, que não faltam em nenhuma
egreja paroquial, não por sua antiguidade nem por sua beleza artistica,
mas sim porque naquela cadeira e por detraz daquela mesa senta-se um
sacerdote. Vejamos de que se ocupa ele.

Uma mulher entra na sacristia, dizendo que deseja mandar dizer uma missa
em tal ou qual altar; mandam-na ter com o sacerdote que está sentado á
mesa, o qual recebe o dinheiro e escreve num livro, respondendo depois:
«Pode-se ir embora, que a missa cá se dirá...»

Depois chegam duas senhoras, com um recem-nascido. Veem mandar dizer uma
_missa de parida_, como vulgarmente se chama. O clerigo recebe dinheiro
e diz: «A primeira que agora se fôr dizer é a missa que deseja». Costuma
suceder que alguma pessoa entra na sacristia pedindo o _Viatico_ para
algum enfermo, e então não falta sacerdote que não murmure:

—Não podem vir á noite? A esta hora tão impropria! Assim está em perigo o
doente?

E deste modo, ainda que o sacerdote se revista com as vestes proprias,
ainda que o sino dê o sinal do estilo, numa palavra, ainda que se
vá desempenhar aquele oficio no _mesmo instante_, não se faz sem
primeiramente se haver murmurado ácerca da hora, do frio, do calor, dos
muitos degraus que ha para subir, se o enfermo é pobre e habita nas
aguas-furtadas dum quinto andar. Em resumo, para aquele que vae com o
dinheiro na mão tudo está muito bem; para o pobre, porém, é outra coisa;
tudo se faz, mas sempre de má vontade.

Para terminar esta descrição, diremos que na sacristia, geralmente, reina
o melhor humor. Os sacristães, rodeados por seis ou oito meninos do côro
que olham com inveja para a sotaina, e aspiram chegar a serem sacristães
quando _haja logar_, ralham sobre a repartição mal feita dalguma propina,
ou sobre o dever de ajudar ou não á missa. Porém que ha a estranhar em
que os meninos do côro façam isto, quando os sacerdotes lhes dão tal
exemplo?

Numa palavra, se os nossos leitores querem inteirar-se a fundo e conhecer
as miserias da egreja romana, vão estudal-as no interior dalgumas
sacristias paroquiaes, na certeza de que verão com surpreza e escandalo o
que o autor destas linhas tem tido ocasião de ver.

Porém, voltando ao padre Francisco, achava-se sentado e absorto em suas
meditações, quando um dos sacristães se aproximou dele para lhe dizer que
era a hora de dizer missa.

O padre Francisco principiou a paramentar-se, recitando em latim, durante
esse ato, as rezas do ceremonial.

Recordou-se então de que nenhum dos apostolos havia usado aquelas vestes,
e, a seu pezar, olhava para elas agora com uma certa indiferença que lhe
seria impossivel explicar. Por fim tomou o calix e saiu para a egreja.
Ao subir os degraus do altar-mór, sentia esvaecimentos de cabeça; porém,
apezar disso, continuou.

Segundo o costume, recitou as primeiras orações, e, ao chegar ao
_confiteo deo_, etc; quiz concentrar-se comsigo para fazer uma confissão
digna, porém naquele momento assaltou-o este pensamento: Primeiramente
pensou que nem S. Paulo nem S. Pedro deviam ter celebrado missa
recitando aquela oração, pois, de contrario, eles mesmos se pediriam
perdão dos seus proprios pecados; segundo, se, como é de supôr, esta
oração não se dizia no tempo dos apostolos, claro é que era um remendo
deitado depois, e em tal caso a missa não era como a celebraram os
apostolos.

Imediatamente o assaltou outro pensamento:

—Que nescio sou em pensar assim! Claro é que nem S. Pedro nem nenhum
apostolo disse esta oração; porém nem por isso a missa está alterada,
visto que desde o _introito_ até ao Evangelho não são senão orações
preliminares, que não formam parte da missa. Deixemos, pois, de pensar
nestas coisas.

Continuou na celebração. Por fim chegou ao Evangelho; o menino do côro
que ajudava á missa mudou o missal da esquerda para a direita do altar, e
o sacerdote principiou a ler o Evangelho, que naquele dia era o cap. 4 de
S. João, ou a passagem de Jesus com a samaritana.

O sacerdote lia rapidamente; porém ao chegar aos versiculos 21, 22 e 23,
uma luz penetrou no seu espirito, e por um momento parou na leitura, até
que com muita atenção e pausa tornou a ler:

«_Vós adoratis quod nescitis..._»

—Sim—pensou o padre Francisco—«Vós adoraes o que não sabeis». Isso
sucede á maioria dos catolicos. Que sabe ácerca de Deus essa gente que
se ajoelha atraz de mim? Como pode estar orando com recolhimento, se
está olhando para mim com toda a atenção, para se ajoelhar quando eu me
ajoelho, e levantar-se quando eu me levanto?

«_Ced venit hora—prosseguiu lendo—et nunc est, quando veri adoratores
adorabund Patrem in spiritu et veritate. Nam et Pater tales quoe rit, qui
adorant eum, in spiritu et veritate oportet adorare._»

—Oh—disse o padre—eis aqui uma doutrina na qual nunca havia posto
a atenção. «Os verdadeiros adoradores adorarão o Pae em espirito e
verdade, porque Ele é Espirito e verdade; além disso, porque tambem o
Pae busca taes adoradores para que O adorem.» O Senhor, pois, deseja um
culto espiritual, porém certamente que o culto que nós, os catolicos,
Lhe rendemos tem muito pouco de espiritual, é antes externo e material.
Jámais pensei nisto.

O sacerdote continuou a missa, e concluiu-a, saindo da egreja sem falar a
ninguem.

As devotas que costumavam ouvir a missa que ele dizia sahiam, dizendo:

—Hoje sim, que o padre Francisco disse uma missa bem comprida!

Ao chegar a casa escreveu a seguinte carta:

                                           Madrid... Embaixadores...

    Meu caro Sr. Mateus N.

    Apezar de ter resolvido não incomodal-o mais, sinto muito ter
    de o fazer, pedindo-lhe que venha por esta sua casa quando lhe
    seja possivel, tendo em conta que uma alma que sofre necessita
    da sua presença.

                        Seu afectuosissimo,

                                        _Francisco Maria dos Anjos_.



CAPITULO XXIII

Romano e evangelico


Passaram dias terriveis para o padre Francisco. Nestes dois dias comeu
pouco, dormiu menos e permaneceu encerrado em casa, sem sair á rua, nem
mesmo para dizer missa.

No fim destes dois dias bateram á porta. A creada veiu abrir, e anunciou
logo:

«O sr. Mateus.»

—Que entre! que entre!—disse o padre, que não poude conter-se, indo ele
mesmo á porta.—Bemvindo, bemvindo seja, senhor Mateus.

Saudaram-se mutuamente e entraram logo no escritorio.

Depois de tomarem assento, disse Mateus:

—Hontem á noite, ás onze e meia, recebi a sua carta, pois que estive numa
povoação prégando, e, como lhe disse, cheguei hontem a essa hora; por
isso apressei-me hoje em vir, e aqui me tem ás suas ordens.

—Meu amigo, é impossivel dizer-lhe as angustias que sofro. O meu espirito
luta, e mesmo de noite não posso descançar. No dia em que lhe escrevi,
não pude dizer a missa com a tranquilidade de espirito necessaria: á
noite, antes de me deitar, li a Biblia, e fui acometido de horriveis
pesadelos.

E o padre Francisco contou ao joven os sonhos que teve durante a noite, e
tudo o mais que lhe sucedeu na missa. Depois continuou:

—Que significa tudo isto? Porque sofre tanto a minha alma? Eu lhe peço,
sr. Mateus, que me diga franca e lealmente se o que crê o crê do coração;
se assim é, qual é a base da sua fé, porque difere das crenças da Egreja,
porque tem em pouca conta a missa... numa palavra, desejo que me diga
sinceramente se obedece á sua consciencia, ou se, tanto o senhor como
os da sua seita, estão filiados para, sob a capa do Evangelho, destruir
a Egreja catolica, e substituil-a pelo seu protestantismo. Fale-me com
toda a franqueza, na certeza de que ninguem saberá esta nossa conversa,
e em troca terá restituido a tranquilidade e o repouso á minha alma.
Finalmente, sr. Mateus, ou me demonstra clara e terminantemente as
erradas crenças que eu confesso, ou diz-me que os protestantes obedecem a
planos duvidosos, pois de contrario porque protestam?

O padre Francisco calou-se; o seu olhar estava fito no semblante do
evangelista, como se quizesse magnetisal-o. Passados alguns segundos,
disse Mateus:

—Senhor padre Francisco, tenho-o estado escutando com toda a seriedade
de animo, e compreendi que a sua alma necessitava dum tal desafogo.
Agora vou responder á primeira das suas perguntas, pois que, para
melhor inteligencia, vou dividil-as em dois grupos. Deseja saber qual
é o caracter do protestantismo. Bem; aqui, em nome do Senhor, a quem
desde que sou convertido jámais invoco em vão, lhe asseguro que os
protestantes, ou, antes, os cristãos evangelicos, não obedecem, em
materias religiosas, a planos duvidosos; que por nenhuma causa desejam
que o mundo se perca, que não odeiam os ministros, nem os fieis da Egreja
romana, antes pelo contrario teem compaixão deles, e, por ultimo, que os
protestantes desejam que o Evangelho, em toda a sua pureza, se estabeleça
em toda a superficie da terra, e que, conforme as palavras do Senhor, o
mundo seja cheio do conhecimento do Seu nome. Agora, a segunda parte da
minha resposta é que a unica regra de fé dos protestantes é a palavra de
Deus, conforme se acha contida nos livros do Antigo e Novo Testamentos;
que acatamos tudo quanto a Biblia diz; que nos submetemos aos seus
ensinos e rejeitamos pela base tudo aquilo que está em contradição com as
Escrituras ou que não achamos nelas estabelecido. Isto posto, e antes de
passarmos a outro ponto, devo perguntar-lhe se depois disto, e do mais
sobre o que vamos falar, o Senhor, pelos meus labios, lhe pozer á vista
os erros dos romanistas, promete não resistir por mais tempo ao Espirito,
antes pelo contrario obrar conforme ele lhe dite?

—Sim, senhor—respondeu o sacerdote.

—Pois bem, observe, á face do Evangelho, os erros da Egreja de que é
ministro. Mas para proceder com metodo, tratemos da questão pessoalmente,
quero dizer, como se V. fosse o fundador do romanismo e eu do
protestantismo.

—Bem, muito bem—disse o padre Francisco;—principiemos pela missa. Eu
digo, e a Egreja o confirma, que Jesus foi quem instituiu a missa, quando
instituiu o sacramento da Eucaristia.

—E eu—disse Mateus—digo que, antes de mais nada, precisamos de definir a
missa. Pergunto, pois: o que é a missa?

—A missa—respondeu o sacerdote—é um sacrificio, no qual o sacerdote
oferece a Deus, em sacrificio incruento, a Jesus Cristo, Filho de Deus.
Este sacrificio pode aplicar-se em beneficio dos defuntos cujas almas se
acham no purgatorio, por algumas faltas que cometeram neste mundo.

—Perfeitamente—replicou o evangelista.—É assim como o entende a Egreja
romana; no emtanto, eu digo-lhe que não ouvi jámais tantos erros em tão
poucas palavras. Em primeiro logar, como procederam os apostolos em
relação ao partir do pão? No cap. 2 dos Atos, ver. 42 a 46, leio que
eles, com as pessoas convertidas, participavam da comunhão entre si,
celebrando o partir do pão nas casas, e todos com alegria glorificavam a
Deus.

«Agora, pois, sabemos que os apostolos não se serviram desta especie de
obreia, que a egreja romana emprega na comunhão, senão que comiam o pão
como Jesus lhes ordenou; tambem bebiam vinho, não sómente os apostolos,
como todos quantos participavam da comunhão, coisa contraria ao que faz o
sacerdote romano, que priva do calix o povo, o que me dá direito de lhe
perguntar: Quem instituiu o sacramento, o sacerdote ou Cristo?

«O Senhor, falando do calix, diz: «BEBEI TODOS DELE». Quem é V. para
opôr-se á vontade do Fundador, que quiz que todos se aproveitassem do
Seu sangue? Em segundo logar, a missa não foi instituida por Cristo, nem
por Seus apostolos, porque um papa, Damaso, bispo de Roma, no ano de
368, instituiu o _confiteor_; Gelasio, no ano de 492, compoz os _Hinos_,
_Coletas_, _Responsorios_, _Graduaes_, _Prefacios_, e tambem acrescentou
o _Vere dignum et justum est_. Simaco, no ano de 512, decretou que nos
domingos e festas principaes dos martires se cantasse a _Gloria in
excelsis Deo_. Pelagio, pelo ano de 556, acrescentou a comemoração dos
defuntos. Gregorio I, pelo ano de 600, fez as _Antifonas_ e o _Introito_,
ordenando que a _kirie-eleyson_ se cantasse nove vezes, e do mesmo modo o
_Aleluia_. Além disso, tambem ordenou este papa que o _Pater Noster_ se
cantasse em alta voz, e sobre a hostia consagrada; tambem acrescentou ao
canon: _Dies que nostres in tua pace disponas_.

O padre Francisco estava verdadeiramente assombrado, o que deixava ver
claramente pelo gestos com que acompanhava as palavras de Mateus, que
continuou assim:

—Sergio, que morreu em 701, ordenou que o _Agnus Dei_ se cantasse tres
vezes antes de partir a hostia. Gregorio III acrescentou á secreta
missa: _Quorum solemnitas hodie in conspectu tuae magestates celebratur,
domine deus noster, in toto orbe terrarum_. Nicolau I acrescentou as
_sequencias_. Não me negará V. que Sixto I acrescentou o Sanctus, Sanctus
Dominus Deus Sabaoth. Inocencio I, pelo ano de 405, acrescentou o osculo
de paz. Leão I inventou o _Orate, frates_, o _Deo gratis_, e acrescentou
ao canon _Senatum sacrificium_, _immaculatam hostiam_, e o _Hanc igitur
oblationem_. E, depois de tudo isto, não vê V., meu caro amigo, que
Cristo não instituiu a missa, mas sim que esta foi obra em que muitos
colaboraram?

O padre continuou silencioso. Mateus prosseguiu:

—Existe outra prova maior do que todas, que demonstra claramente a
extraordinaria mentira de que Cristo instituiu a missa. O grande _Te
igitur clementissime Pater_ é uma parte da missa, na qual se faz menção
do papa, do bispo e do rei, o que é uma prova irrecusavel de que nem
instituiu a missa, nem tão pouco a disse, pois que no Seu tempo ainda não
havia papas nem bispos. No _Communicates_ faz-se menção da Virgem e dos
muitos santos que não existiram senão muitos anos depois dos apostolos,
como S. Cipriano, S. Lourenço, S. Crisostomo, S. Cosme, Damião e outros.
Ora isto prova a verdade da minha asserção. Agora convem observar a
subtileza romana. Não põem no canon a S. Pedro, porque, se o pozessem,
poderia dizer-se que aquele apostolo tinha procurado a nossa propria
gloria. Com isto convenço o mais pertinaz ou cego de que nem Cristo nem
nenhum dos apostolos disseram missa, nem conheceram o que isso era.

O sacerdote deu um suspiro e disse:

—Triste coisa é a gente encontrar-se em presença da fria verdade que
esmaga! Oh! que Deus perdôe a todos.

O evangelista continuou:

—Agora passemos ás Escrituras. V. apresenta-me como razão das suas
crenças a autoridade dos homens; e eu aceito-a para confundir essa
autoridade com a de Deus. A essencia, o fundamento, da missa, está
contida no artigo V. do Credo do Papa Pio IV, que diz assim: «Confesso,
eu mesmo, que na missa se oferece a Deus um verdadeiro, proprio e
propiciativo sacrificio pelos vivos e defuntos, e que no santissimo
sacramento da Eucaristia estão _verdadeira, real e substancialmente_
o corpo e o sangue, _juntamente_ com a alma e a divindade, de Nosso
Senhor Jesus Cristo, e que se verifica uma _conversão_ de toda a
substancia do vinho no Seu sangue, á qual conversão chama a Egreja Romana
TRANSUBSTANCIAÇÃO. Tambem confesso que sob qualquer das duas especies se
recebe Cristo total e completamente, e que são um verdadeiro sacramento.»
Este artigo, ensinado aos catolicos, obriga-os a crêr em varias coisas;
porém as duas principaes são: primeira, que na missa se oferece a Deus
um sacrificio de propiciação pelos vivos e pelos mortos; segunda, que
na missa, e sob as especies do pão e do vinho, está real, verdadeira e
substancialmente Cristo, com a Sua alma e divindade.

Depois disto, e dado o caso de que alguem ousasse levantar-se contra tal
impiedade, ou não podesse admitir uma tal crença, vem-nos o concilio de
Trento decretar em sua sessão 22, canon III, o seguinte:

«Se alguem disser que o sacrificio da missa é sómente um sacrificio
de louvor e acção de graças, ou uma mera comemoração do sacrificio
feito sobre a cruz, e que não é propiciatorio, ou que aproveita sómente
áquele que o recebe, e que não deve ser oferecido pelos _vivos_ ou pelos
_mortos_, por seus pecados, castigos, penitencias mal cumpridas e outras
necessidades, seja _anatema_.»

Todo o catolico romano está obrigado a calar-se e a acatar esta doutrina,
esteja ou não conforme com ela, sob pena de ser fulminado pelo anatema.

O ensino, pois, desta egreja é que, cada vez que um sacerdote celebra
missa, oferece a Deus um sacrificio proprio e propiciatorio pelos vivos
e pelos mortos. Quem é o sacrificado neste sacrificio? Cristo, o mesmo
Cristo do Golgota, o Jesus de Belem.

Quando principiámos esta discussão, disse-lhe que, tal como a queda e o
caido, assim tinha que ser a redenção e o Redentor. Agora—acrescentou,
tirando do bolso a Biblia—contra a doutrina de que o sacrificio de Cristo
possa repetir-se ou renovar-se, temos o cap. 6, vers. 9 e 10 da Epistola
de S. Paulo aos Romanos.

    «_Sabendo que, tendo Cristo ressurgido dos mortos_, JÁ NÃO
    MORRE, NEM A MORTE TERÁ SOBRE ELE MAIS DOMINIO. _Porque,
    emquanto a Ele morrer pelo pecado, Ele morreu uma só vez; mas,
    emquanto a viver, vive para Deus._»

Escute tambem o que dizem os textos seguintes:

    «Cristo _uma vez_ morreu pelos nossos pecados; o Justo pelos
    injustos, para nos oferecer a Deus (1.ª de Pedro 3:18).»

    «E não entrou para se _oferecer muitas vezes_ a si mesmo,
    como o Pontifice cada ano entra no santuario com o sangue
    alheio; doutra maneira lhe seria necessario padecer muitas
    vezes desde o principio do mundo, mas agora aparece uma só
    vez na consumação dos seculos, para destruição do pecado,
    oferecendo-se a si mesmo por vitima. Assim como está decretado
    aos homens que morram uma vez, e que depois disto se siga o
    juizo, assim tambem Cristo foi UMA SÓ VEZ imolado para esgotar
    os pecados de muitos; e a segunda aparecerá sem pecado aos que
    o esperam, para a salvação (Hebreus, 9:25—28).»

    «Mas este, havendo oferecido _uma só_ hostia pelos pecados,
    está _sentado para sempre_ á dextra de Deus, esperando o que
    resta, até que os seus inimigos sejam postos por escabelo dos
    seus pés» (Hebreus, 10:12 e 13).

Estes textos do Novo Testamento, que acabo de ler, demonstram claramente
que a missa, ou, melhor, a pretenção de sacrificar a Cristo todos os
dias, e em muitos logares ao mesmo tempo, é contraria á vontade de
Deus, que quer um só sacrificio. Disto deduzo uma consequencia, e é a
seguinte—que os anatemas de Roma são contra Deus.

Agora é claro que para haver sacrificio é necessario haver vitima, e
desta aproveita-se a egreja romana por meio da sua transubstanciação,
porém tenha V. em conta «que sem derramamento de sangue se não faz
remissão». Ora, onde está na missa o derramamento de sangue? De que
instrumentos cortantes se serve o sacerdote nesse sacrificio? Quem
derrama ali o sangue? E que não digam os romanos que tudo ali se faz em
figura e memoria, porque em tal caso cae sobre eles o anatema tridentino;
é preciso crer, ainda que não se veja, que Cristo desce ás mãos do
sacerdote, e que este O oferece em sacrificio ao Eterno. Ah! Roma faz
muito bem em se servir, para representar a fé, duma matrona com os olhos
vendados.

Compreendo a razão por que Roma não quer o livre exame, pois que odeia a
luz! Pois bem, padre Francisco, o senhor é sacerdote romano, permita que
lhe diga que está nas trevas; não está em Deus, «porque Deus é luz.»

O joven calou-se, e o sacerdote disse:

—Ainda que a minha alma receba uma dulcissima consolação, ainda que
desejaria confessar-lhe tudo o que sinto, pode descançar. Porém, se não
quer, continue.

—Não estou cançado—respondeu o joven, acrescentando:—Além disso, desejo
terminar a questão que nos ocupa. Que Cristo, material ou corporalmente,
está na missa, que a Sua presença é verdadeira e real, no dizer da egreja
romana, não resta duvida, pois no canon I, sessão 13 do referido concilio
de Trento, diz-se: «Qualquer que negar que no sacramento da Eucaristia
se contém verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue de
Nosso Senhor Jesus Cristo, juntamente com Sua alma e divindade, e por
consequencia Cristo todo, mas afirmar que está ali em simbolo ou figura,
ou por Sua propria virtude, SEJA ANATEMA.

Torno, pois, não já a dizer que Roma anatematiza o Deus que ela adora,
senão que se opõe com seus decretos á vontade soberana de Deus. Como
pode estar Cristo no sacramento, ou na missa, duma maneira corporal? A
Escritura, em oposição a isto, diz:

«_Pelo que, se ressuscitastes em Cristo, buscae as coisas que são de lá
de cima, ONDE =Cristo= estará sentado á dextra de Deus_» (Col., 3:1).

«_Ao qual (Jesus) certamente é necessario que o céu receba até aos tempos
da restauração de todas as coisas, as quaes Deus falou por boca dos Seus
santos profetas, desde o principio do mundo._» (Atos, 3:21).

«_Mas Este (Jesus), havendo oferecido uma só hostia pelos pecados, ESTÁ
SENTADO PARA SEMPRE á dextra de Deus._» (Hebreus, 10: 12).

Como, pois, se atrevem os senhores a sustentar que Cristo desce a este
mundo, quando é preciso que esteja á dextra de Deus até que se cumpram
todas as profecias? Como podem sacrificar ou renovar o sacrificio
d’Aquele que com _um só_ sacrificio fez perfeitos os que santificou?

Porém vou fazer-lhe uma pergunta, á qual, se responder satisfatoriamente,
prometo crer, não digo na transubstanciação, mas em tudo o que de mim
exija o _infalivel_ romano. A pergunta é esta: Que Cristo é que Roma
sacrifica—o glorificado dos céus ou o terreno do Golgota? O primeiro,
atendendo ao que diz S. Paulo, «ha corpos celestes e corpos terrestres»,
é celestial, ou seja o Cristo glorificado; a esse tal é impossivel
sacrificar, porque já está glorificado, e portanto, além da Sua natureza,
que a isso se opõe, seria necessario fazer baixar um ser dum logar
de gloria a um mundo de padecimentos e a sofrer dôres. Se me dizem
que sacrificam o corpo de Cristo como está cá no mundo antes de ser
glorificado, digo que não pode ser, porque não existe, e porque o Cristo
que o sacerdote sacrifica não corresponde, nem em peso nem em tamanho,
ao Cristo que nasceu em Betlehem. Que Cristo é glorificado, e que o Seu
corpo é um corpo celestial, nós o sabemos, por aquilo que está escrito na
primeira Epistola de S. Paulo aos Corintios, cap. 15: 45-48, e ainda mais
pela leitura de todo o capitulo em que se diz que os que habitam nos céus
teem corpos celestiaes.

Depois duma breve pausa, o joven continuou:

—Se alguma crença eu tivesse ácerca da transubstanciação, bastar-me-hia,
para abandonal-a, ter lido no missal romano as regras sobre os defeitos
da missa, que V. conhecerá perfeitamente. Ha uma pagina de que eu
me recordo muito bem, e que diz: «Se uma hostia consagrada chegar a
desaparecer, por qualquer acidente, pelo vento, ou por milagre, ou fôr
devorada por um animal, consagre-se então outra». Como é possivel que
Aquele a quem os crentes obedecem, esteja exposto a ser levado pelo
vento? Como dizer que um milagre pode fazer desaparecer outro milagre?
Como dizer que Cristo está exposto a ser devorado pelos ratos, que se
dão perfeitamente nos retabulos carunchosos das egrejas? Como sei que
não ignora o que deverá fazer o sacerdote se uma mosca ou uma aranha
cair no vinho consagrado, que deve ser bebido, se da parte do sacerdote
não houver nauseas, não lho repetirei, porém, sim, direi alguma coisa da
famosa regra que diz: «Se no inverno se GELAR O SANGUE no calix, deve
envolver-se este em panos quentes; se isto não fôr bastante, coloque-se
dentro de agua quente perto do altar, até que se DERRETA O SANGUE, tendo
o cuidado de que não entre agua no calix.»

Pode haver, meu amigo, maior cumulo de impiedades? O sangue de Cristo
gelado! Então que Cristo é que sacrificam?

—Meu amigo—disse o sacerdote, profundamente comovido,—desde que me
ordenei notei algumas coisas que não compreendia, porém em que cri, pela
obediencia passiva, a que somos obrigados. Hoje tenho ouvido algumas que
julgo serem verdadeiras, porém desejo ficar só para me ajoelhar deante de
Deus, e pedir-Lhe que mostre o que devo fazer. Tudo o que neste momento
podesse dizer-lhe não seria ditado por uma consciencia livre, pois
que me encontro sob a influencia dos seus argumentos. Todavia, eu lhe
prometo obrar conscienciosamente, e, para que tenha uma prova disso, vou
fazer-lhe uma promessa e um pedido.

O joven prestou toda a sua atenção, e o sacerdote prosseguiu:

—A promessa é esta: não tornarei a dizer missa até que Deus me convença
de que é um erro tudo quanto o senhor acaba de me dizer; o pedido é que
me deixe a sua Biblia para que eu possa lêl-a e confrontal-a com a minha.
Uma coisa mais: se o Senhor me disser que a egreja da qual sou sacerdote
não é de Cristo, renunciarei ás ordens e me separarei dela.

O joven e o padre Francisco combinaram o dia em que se veriam outra vez,
e, depois duma breve oração que o evangelista fez, este saiu da casa do
sacerdote, pedindo a Deus a sua conversão.



CAPITULO XXIV

As duas cartas


Os nossos leitores certamente que ainda não perderam de memoria a
personagem principal da nossa historia, o mestre Julião.

Este, bem como o seu amigo, o mestre João, continuam em M., e, se bem que
amiudadas vezes escrevam ás suas respectivas familias, nada temos dito a
esse respeito, porque tambem nada digno de especial menção tem ocorrido.

Alguns dias depois da entrevista do padre Francisco com o evangelista,
achava-se Dôres costurando a um canto da loja, quando um aprendiz se
dirigiu a ela e lhe disse:

—Mestra, está aqui uma carta.

Dôres ergueu de repente a cabeça e tomou a carta das mãos do rapaz; com a
rapidez do relampago, abriu-a, e, vindo sentar-se numa cadeira, começou a
ler a carta, que era concebida nestes termos:

                                                    Povoação de M...

    «Querida esposa. Que, quando esta chegue ás tuas mãos gozes
    saude em companhia do nosso filho, são os desejos de teu esposo.

    «João e eu passamos sem novidade.

    «Recebi a tua ultima, e, inteirado do que me dizes, agradeço-te
    as noticias que me dás de tudo, porém especialmente ácerca dos
    negocios do nosso estabelecimento; não esperava outra coisa do
    sr. Mateus, que é um bom cristão.

    «Saberás que já concluimos aqui as obras (o que falta agora
    para fazer é pouco) e podemos ir a Madrid passar alguns dias
    para comprar materiaes e descançarmos, emquanto os arquitetos
    principiam outros trabalhos. Depois d’ámanha, pois, terei o
    prazer de ver-te e de beijar o nosso querido Paulo.

    «Dou graças ao Senhor, porque aqui ficam alguns que já conhecem
    o Evangelho, os quaes se reunem todos os domingos e passam uma
    hora e meia lendo a palavra da vida.

    «Alegro-me tambem com o que me participas ácerca das visitas de
    Mateus a casa do padre Francisco, e peço ao Senhor que converta
    esse infeliz sacerdote.

    «O sr. João diz-me que tenhas cuidado de observar, todas
    as vezes que Mateus sobe as escadas do padre, se torna a
    descel-as, pois que diz que não tem confiança nos catolicos,
    porém eu digo que Deus é maior do que todos e que Ele guardará
    Seus filhos de todo o mal.

    «Hontem recebemos a ultima importancia do trabalho, e, como
    já te disse, paguei ha tempos ao sr. João o dinheiro que nos
    emprestou, e ainda temos uma economia dalgumas libras. Para
    concluir, te direi que de saude vou bem. Pois até o sr. João
    diz que estou muito gordo, o que não admira, porque quando aqui
    cheguei quasi cahia de fome.

    «Pobre esposa, quanto tens sofrido! Porém, repara como o bom
    Deus nos tem abençoado!

    «Sem mais, dá lembranças aos oficiaes, á familia do nosso
    amigo, beijos ao menino, e tu recebe o amor de teu esposo.

                                                         _Julião._»

Dôres deu graças a Deus pela carta que tinha recebido, e depois saiu
precipitadamente pela porta que dava para o corredor, em direcção á casa
da familia de João.

Dôres levava a carta na mão, e, ao abrir a porta, encontrou-se com
Antonia, que, com outro papel na mão, vinha para sua casa.

—Carta!—exclamaram ao mesmo tempo as duas jovens assim que se viram.

—De meu marido—disse Dôres.

—De meu pae—respondeu Antonia.

—Pois vamos para tua casa—respondeu Dôres—ali as leremos; não é bom que
tua mãe fique só.

—Como queiras—respondeu Antonia.

Ambas entraram na carpinteria, onde estava a senhora Brigida chorando de
alegria.

Antonia começou a ler.

                                                  «Povoação de A...

    Querida esposa e filha. Muito me alegrarei que ao receber esta
    gozeis a mais perfeita saude, que é o que eu mais desejo; eu
    estou bom, para o que queiraes mandar.

    «Brigida e Antonia, estou certissimo de que ides receber um
    alegrão, quando receberdes estas curtas letras.

    «Sim, certamente que vos alegrareis.

    «Sabereis que depois d’ámanhã chegamos a casa, pois que por
    agora concluimos aqui o trabalho.

    «Vou dar-vos um abraço, forte, muito forte; sois vós as duas
    pessoas a quem mais quero neste mundo.

    «Tambem quero muito a Dôres e a seu filho, sem falar em seu
    marido, que é o melhor homem que debaixo do céu existe. Está
    sempre a prégar e com a Biblia na mão. Eu tenho-lhe dito
    muitas vezes:

    «Oh homem, não vê que se riem de si nas suas proprias
    barbas?—Porém ele tem mais paciencia do que Job, que, segundo
    creio, foi o homem mais paciente do mundo.

    «A mim faz-me sofrer muito, porque quando vejo que ha alguem
    que se ri das nossas crenças não sei que faria; porém Julião
    sempre me está a repreender, dizendo: «Senhor João, Jesus diz:
    Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração:—veja que
    os discipulos de Jesus não hão de ser homens colericos: veja
    que, porque não somos do mundo, por isso nos aborrece o mundo.»
    Com estas e outras razões faz de mim tudo quanto quer.

    «Outra coisa: O padre Francisco ainda vos molesta por causa
    dos cultos? Que vontade tenho de ir, para o confundir a ele e
    á gente! Todas as manhãs oramos por ele, Julião e eu; porém,
    se Deus não faz um milagre, deixará esse senhor de ser padre
    romano quando eu deixar de ser carpinteiro. Aquele é o seu
    oficio, como este é o meu; emfim, eu, para não ocupar-me dele,
    não quero outra coisa mais senão que nos deixe em paz.

    «Não vos incomodo mais; saudades a Dôres, beijos a Paulo,
    lembranças aos oficiaes da casa, aos aprendizes e a todos os
    que perguntem por mim. Recebei saudades de Julião.

    «E agora disponde, no que vos aprouver, deste que vos estima e
    deseja ver,

                                                            _João_.»

—Vês?—disse Brigida.—Nada nos diz meu marido das obras nem dos ganhos;
sómente tem na imaginação o padre, de quem não gosta, pelo mal que a
todos nos tem feito.

—A mim—exclamou Antonia—pouco me importam as noticias com respeito a
interesses; o principal é saber que teem saude e que veem breve.

—Claro—respondeu Brigida,—porém repito-vos que o seu eterno pesadelo é o
padre.

—Meu pae—insistiu Antonia—tem um coração nobre. Homem rude, sabe amar
com toda a sua alma, e odeia menos do que parece. Estou certa de que, se
ámanhã o padre Francisco se visse em alguma dificuldade e meu pae podesse
tiral-o dela, fal-o-hia com grande prazer, pois que é este o seu costume.

—Amigas—disse Dôres, interrompendo a conversa,—recebemos boas noticias, e
por isso devemos dar graças a Deus.

Em seguida todas se pozeram de joelhos em oração a Deus, rogando-Lhe por
aqueles dois seres que tão queridos eram ás tres mulheres.

No aposento em que oravam estava o altar com Santo Antonio; porém nem uma
palavra houve para o santo.



CAPITULO XXV

O regresso


No dia marcado nas cartas por Julião e o sr. João, chegaram ambos a
Madrid.

Suas familias foram esperal-os á estação do caminho de ferro, e agora
todos juntos se acham na loja de Julião, conversando, e entre outras
pessoas se encontra o joven Mateus, pois terminado o culto daquela noite,
como soubesse que o seu amigo Julião chegava, foi tambem esperal-o.

Depois das primeiras saudações, e no momento em que os achamos sentados
conversando em casa de Julião, Mateus falava assim:

—Pois sim, meus amigos, durante a vossa ausencia aconteceram muito boas
coisas nesta casa.

—Pelo que diz—perguntou Julião,—o culto continuou a fazer-se sem
interrupção?

—Sim, senhor.

—E continúa a vir gente?

—Já se vê que sim.

—E diga-me—interrompeu o sr. João,—o padre tem-os incomodado?

—Ah!—exclamou o evangelista.—Pobre padre Francisco! Neste momento a sua
alma passa por uma luta terrivel;—a luta entre o bem e o mal, entre a
verdade e o erro, entre o seguir as verdades do Evangelho e as praticas
romanas. Tal é a sua situação; o pobre sacerdote luta, porém creio que
essa luta lhe será proveitosa.

—Sim, sim, pensem no padre—disse o carpinteiro—e verão o que lhes sucede.

—Não sei—disse Mateus,—porém parece-me que o padre Francisco deixará os
erros de Roma.

—Pois senhor—insistiu o sr. João,—muito desejarei que assim suceda,
porém...

—Nada, senhores—interrompeu Julião,—a obra não é nossa, a obra é de Deus.
Ele tem que obrar; nós, com as nossas duvidas e com a nossa falta de fé,
fazemos o que fizeram as multidões no tempo de Jesus:—impossibilital-O,
com as nossas incredulidades, de que obre maravilhas.

Depois dalgumas palavras mais, Mateus manifestou intenção de se retirar
para que os dois recem-chegados descançassem. Julião propoz que se
tivesse um pequeno culto de acção de graças ao Senhor, pelo regresso dos
dois ao seio de suas familias, e, feito isto, cada qual retirou-se para
sua casa.

No dia seguinte, assim que circulou a noticia da chegada de Julião, quasi
todos os visinhos foram visital-o e apertar-lhe a mão.

As mulheres não cessavam de falar sobre a vinda de Julião, e tanto assim
que muito depressa chegou a noticia aos ouvidos do padre Francisco, que
permanecia em sua casa, sem sair dela e sem querer receber ninguem.

O pobre sacerdote lia sem cessar a Biblia, orava continuamente, e a sua
alma ia-se abrindo cada vez mais para recolher nela a verdade.

O padre Francisco havia envelhecido dez anos. Estava palido, com os olhos
encovados, e tanto assim que a sua governante, assustada, lhe tinha
proposto, por vezes, que se chamasse um medico, ao que ele se havia
recusado abertamente.

No momento em que soube da chegada do vidraceiro, um raio de alegria
iluminou o seu palido semblante, e imediatamente mandou chamar Julião, o
qual, recebido o recado, dirigiu-se a casa do sacerdote, emquanto Dôres
foi dar a noticia ao sr. João e á sua familia.

—Ah!—exclamou o carpinteiro—já começamos de novo? Pois eu asseguro-vos
que, se acaso trama alguma coisa contra vocês, lhes mostrarei o que vale
este velho.

Entretanto, o padre Francisco, frente a frente de Julião, contava-lhe os
seus temores, as suas duvidas, descobria-lhe, emfim, o estado de sua alma.

—Pois para mim—disse-lhe o vidraceiro depois de o ouvir—a coisa é clara e
a solução desta questão é simples; V. antes não conhecia a verdade, pelo
que procedia julgando servir a Deus; hoje a verdade lhe foi revelada por
meio da Palavra da Vida; agora, pois, não tem mais do que dois caminhos a
seguir: ou ter a fé dos anjos, ou ter a fé do demonio.

—Não compreendo—disse o padre.

—Pois creio que me explico bem—disse Julião.—Os demonios crêem em Deus,
e, comtudo, tremem; os anjos crêem em Deus e se deleitam n’Ele. Se V. viu
a luz, Cristo, e não a segue, por esta unica razão está no caminho da
perdição; e devo advertil-o de que o Evangelho já lhe foi anunciado, e
Jesus já Se lhe manifestou. Se teme mais aquilo que dirão de si, se teme
a anciedade, se receia perder a sua posição aqui no mundo, se não teme a
ira de Deus para com aqueles que rejeitam a Jesus, resiste ao Espirito
Santo, e é este o mais terrivel pecado que o homem pode cometer.

Julião calou-se, e o sacerdote, que se achava numa grande agitação
nervosa, passados alguns instantes, disse:

—No caso de que eu me decidisse pelo Evangelho, como V. o compreende, que
deveria fazer?

—A primeira coisa era crêr no Senhor Jesus, como o unico Salvador e
Intercessor entre Deus e os homens; a segunda coisa era abandonar
completamente as praticas romanistas, resignar todos os cargos que
exerce no seio da sua Egreja e fazer a sua profissão publica da sua fé
na presença duma congregação de cristãos evangelicos, dedicando-se em
seguida a prégar a verdade, com o mesmo afinco e zelo com que antes
prégava o erro. Finalmente, se quer ver o que deve fazer, se é convertido
ao Senhor, veja e estude o que fez S. Paulo quando deixou de ser Saulo.

—Sim—exclamou o padre Francisco—é preciso que eu prefira o bem a tudo, a
verdade ao erro. Porém o mais dificil para mim, o que mais me tortura, é
a idéa «do que dirão de mim os meus colegas.»

—Por muito que digam, esteja certo de que nenhum deles vae responder por
V. no dia do juizo. Se tem medo _do que dirão_, do mundo, tema antes _o
que dirá_, do sangue de Jesus, tema o que dirá aquele manso Cordeiro,
quando Ele se levantar para lançar-lhe em rosto o desprezo que tem do
Seu sacrificio já feito. «_Eu_—disse o Senhor—_eu mesmo vos consolarei_.
_Quem és tu para teres medo dum homem mortal, e do filho do homem, que
assim como o feno se secará? E te esqueceste do Senhor, teu opifice, que
estendeu os céus e fundou a terra, e todo o dia tremeste continuadamente
á vista do furor daquele que te atribulava e se tinha disposto para te
perder; onde está agora o furor do que te atribulava?_» (Isaias, 51: 12 e
13) Desgraçado daquele que pelo mundo abandona a Deus.

—Não falemos mais; creio em meu coração que devo fazer o que diz, porém
ha alguma coisa que mo impede; dentro de poucos dias terá noticias minhas.

Depois duma breve oração, Julião despediu-se do padre Francisco,
profundamente convencido de que Deus trabalhava no coração do sacerdote.

Quando chegou a sua casa, estava lá o mestre João, que ao vêl-o disse:

—Aposto em que o padre mais uma vez o enganou!

—Senhor João—respondeu Julião,—oremos ao Senhor pelas almas que trabalham
por abandonarem o mal, e ás quaes Satanaz persegue e põe mil obstaculos
para as impedir de se acercarem do Senhor. A conversão dum sacerdote
romano é para Satanaz um verdadeiro desespero.



CAPITULO XXVI

O padre Francisco


Já haviam decorrido oito dias desde que Julião tinha regressado a Madrid,
e quatro desde que ele havia falado com o padre Francisco.

Julião tornou a encarregar-se do culto que se celebrava em casa.
Uma noite, depois de prégar, anunciou aos concorrentes que na noite
seguinte um novo prégador desejava dirigir-lhes a palavra, e taes coisas
disse e por tal modo encareceu o assunto, chamando a concorrencia dos
assistentes, e especialmente dos visinhos, que na noite de que vamos
falar a sala do culto, corredor e mais dependencias, donde se podia
ouvir, estavam atulhadas de gente.

No semblante de todos via-se desenhados os desejos mais veementes de
conhecer o novo prégador.

Chegou, por fim, a hora de principiar o culto, e a curiosidade ia
satisfazer-se.

Julião ocupou a cadeira que ficava pelo lado detraz da meza, invocou o
auxilio do Senhor, cantou-se como de costume um hino, fez-se oração, e em
seguida Julião leu o cap. 55 de Isaias.

Em logar de tomar o texto para prégar, Julião afastou-se para um dos
lados da meza, quando acabou de ler. Neste momento abriu-se uma porta de
vidraça, que ficava pelo lado de traz dele, e entrou um individuo, que
veiu ocupar o logar do prégador.

Este individuo, vestido de preto, fez com que todos os concorrentes
exclamassem, possuidos de profunda admiração:

—Oh! O padre Francisco!!!

Houve uns momentos de assombro geral, durante os quaes foram sentar-se a
ambos os lados da meza Julião e o joven evangelista Mateus.

Passados aqueles momentos, o padre Francisco disse:

—«Sim, amigos meus, é o padre Francisco, que, tendo ouvido na palavra de
Deus o convite a «todos os sedentos para virem ás aguas», cheio de sêde
acode pressuroso a esse manancial de aguas divinas; o padre Francisco,
que ouviu ainda a tempo o aviso de Deus: o padre Francisco, emfim, que,
impelido hoje por uma força desconhecida, por uma voz que lhe grita:
«para deante» vem para fazer aqui, e depois em outra parte, uma confissão
dos seus erros, e uma profissão de fé. Todos sabeis quem eu sou, todos me
conheceis: e por isso mesmo a vós outros, antes do que a ninguem, venho
dizer-vos que creio no milagre portentoso do Santo, porque dos meus olhos
tambem cairam as escamas do erro.

«Eu era cego, guia de cegos; e ai! sem o pensar, a quantos precipitei eu
no barranco!

«Nescio de mim que, tendo o Evangelho em minhas mãos, jámais estudei as
verdades nele contidas, fiando-me sómente na interpretação rotineira que
me haviam ensinado nas cadeiras de teologia que cursei.

«Porém, graças a Deus, vim ao reconhecimento da verdade que ha em Cristo
Jesus, e hoje abandono o erro que está na Egreja de Roma. De hoje em
deante serei cristão de Cristo, porém não cristão do Papa; serei prégador
do Evangelho, porém não serei sacerdote; perderei com isso a minha
reputação, o meu credito, tudo; porém não me importa; ganhei a Cristo; é
quanto basta; e a todos quantos julguem ver no meu procedimento um fim
interesseiro, emprazo-os para deante do Tribunal Supremo, naquele dia em
que «todo o oculto será manifesto.»

«Sim, separo-me dos erros de Roma, porque aprendi no Evangelho qual é o
caminho onde se serve a Deus, e o meio que existe para entrar no céu.
Se me separo da Egreja de Roma, é porque esta egreja dá ao homem um sem
numero de intercessores, ao passo que a Palavra de Deus me ensina «que ha
um Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem.»

«Separo-me da Egreja de Roma, porque ela diz que o homem se salva por
suas boas obras, fazendo deste modo que ele tome parte em sua salvação, e
isto em menoscabo de Cristo, o unico Salvador, porque está escrito ácerca
dele: «_Em nenhum outro ha salvação, porque do céu abaixo nenhum outro
nome foi dado aos homens pelo qual possamos ser salvos_», e em menoscabo
da Palavra, que diz:

_«Pela graça sois salvos pela fé, e isto não de vós, pois é dom de
Deus.»_ Separo-me da Egreja Romana, porque nela tudo é material e nada
espiritual, fazendo um vil negocio das coisas mais santas; pois que do
mesmo modo vende tanto os sacramentos, como as bulas, como as missas,
como as indulgencias, etc., etc., sem ter em conta que foi dito por
Jesus: «_De graça recebestes, de graça dae._»

«Não posso por mais tempo permanecer no seio da Egreja Romana, que conta
entre os seus dogmas o da _Transubstanciação_. Meus amigos, estudei
essa questão ha poucos dias, e estou intimamente convencido de que
Jesus e Seus apostolos nada disseram ácerca da missa, nem tão pouco a
instituiram, nem, e ainda muito menos, a disseram.

«Separo-me da Egreja Romana, porque vi que ela alterou as praticas
estabelecidas por Jesus e os apostolos, aumentando, tirando ou
modificando sacramentos, como vou passar a expôr: O baptismo que a
egreja ministra não é o que ministraram nem João, nem Paulo, nem nenhum
dos apostolos. Em primeiro logar, faz o seguinte: exorcismo do sal, que o
sacerdote põe nos labios da creança; o exorcismo da creança, soprando-lhe
sobre o rosto, por tres vezes; outro exorcismo de sal; o presbitero põe
saliva no nariz e nos ouvidos do recem-nascido, e tambem o unge nos
hombros e no peito, com o oleo dos catecumenos. Como já disse, procurei
com todo o cuidado na Palavra de Deus, para ver se ela autorizava taes
praticas, e não achei sequer a menor sombra destas superstições. Filipe,
Paulo e Pedro, e todos quantos administraram o baptismo, sómente exigiam
a fé em Cristo, sem usarem exorcismos, nem velas, nem unturas. Baptizavam
em qualquer ponto onde havia agua, tendo presente o mandamento de Cristo:
«Ide e ensinae, baptizando em nome do Pae, do Filho e do Espirito Santo.»
Depois do baptismo cobram-se 24 reales, o que indica que por esta quantia
Roma introduz na familia cristã um ser qualquer.

«Protesto contra a confissão romana, e aceito a Biblia. Pela primeira, o
homem se confessa ao homem, a quem não ofendeu, e esquece o verdadeiro
ofendido; o penitente envergonha-se dum homem e não se envergonha de
Deus. Eu fui confessor, e conheço os segredos do confessionario, pelo que
vos digo que fujaes dele. O homem deve confessar-se a Deus.

«Declaro que adiro ao Evangelho em toda a sua pureza; que o prohibir
aos homens a leitura da Palavra de Deus é uma pratica que tem por fim
levar os homens a que não vejam o erro em que vivem e o abandonem, com
menoscabo da autoridade de Deus, que ordena em muitas passagens da sua
Palavra que esta seja lida, sabida e estudada por todos os homens. Roma,
porém, prohibe ao povo a leitura das Escrituras, e manhosamente procede
do mesmo modo para com os sacerdotes, para que tanto uns como outros não
vejam as adulterações e corruções que essa egreja tem feito, alterando
umas coisas e introduzindo outras.

«Confesso tambem que a Egreja de Roma comete uma grande maldade,
alterando o mais respeitavel de todos os sacramentos; falo da sagrada
Eucaristia. A egreja romana, querendo corrigir o que Jesus fez, prohibe
o calix aos fieis no ato da comunhão, ao passo que o Senhor diz: «_Bebei
todos dele_» referindo-se, não sómente aos discipulos, mas a quantos
depois deles haviam de comemorar «_a morte do Senhor até que venha_.»

«Finalmente, protesto contra tudo o que Roma faz, por duas razões: ou
porque tudo está viciado, ou porque está em contradição manifesta com as
práticas apostolicas e com a vontade de Deus.

«Confesso que, emquanto fui sacerdote (pois desde hoje deixo de o ser),
procedi impelido pelo zelo e fanatismo, de que estava possuido, e porque
cria fazer um serviço a Deus! Quanto me enganei! Deus me perdôe!

«Confesso que procurei fazer muito mal a este amigo—e apontava para
Julião—em seus interesses; confesso que, a solicitações minhas, o capelão
duma familia nobre influiu sobre certa dama, de quem era confessor, e
Julião perdeu, não sómente o trabalho de certa casa, como tambem as
economias que havia empregado em materiaes para aquele trabalho; d’ahi
principiou a decadencia da casa de Julião, e por isso teve ele que
fechar a sua loja, e aqui cometi outro pecado maior. Quando se achava
na miseria, fui oferecer-lhe recursos em troca da sua consciencia.
Confesso que por minha parte empreguei todos os esforços para impedir a
celebração dos cultos aqui nesta casa, valendo-me de quantos meios bons
ou maus estavam ao meu alcance; confesso que chamei este joven—disse ele,
apontando para Mateus—com má intenção, e confesso, por fim, que fui tão
grande pecador que sómente pela maravilhosa misericordia de Deus estou
convencido de que Ele me perdoará, pois que lho peço em nome de Jesus
Cristo, e vós todos a quem ofendi me perdoareis egualmente, porque sois
cristãos e porque vol-o peço pelas entranhas misericordiosas de Cristo.»

Havia nas palavras do padre Francisco tal convicção e tal acento de
verdade que, ao ouvil-as, algumas vozes se ouviram, dizendo:

—Sim, sim, está perdoado.

E a todas estas vozes sobressaiu uma, que disse:

—Bem, bem, senhor padre Francisco, V. é um bom sacerdote, liberal,
honrado e honesto; perdôo-lhe tudo e estimo-o.

Foi mestre João quem disse isto.



CONCLUSÃO


Não se pode descrever a sensação que a profissão do ex-sacerdote romano
fez no auditorio. Profundamente impressionado, não pôde prosseguir no
discurso, pelo que Mateus, levantando-se e fazendo sinal de silencio,
disse:

—Irmãos e amigos. Acabamos de escutar as palavras de quem, tendo militado
sob as bandeiras do erro, abriu os olhos á luz, e hoje acode pressuroso a
refugiar-se em Cristo.

«Fez uma confissão de todos os seus atos assim como da sua fé, pelo que
nós devemos recebel-o. O Senhor não desprezou nenhum dos que iam ter com
Ele, o Senhor não desprezou o ex-padre romano; nós, portanto, não devemos
desprezal-o, mas sim amal-o. Agora oremos ao Senhor.

Depois que fizeram oração e cantaram um hino, todos os ouvintes foram
apertar a mão ao novo convertido, dirigindo-lhe as palavras mais
afectuosas. Ele, por sua parte, respondia a todos carinhosamente, e por
ultimo os ouvintes retiraram-se.

No dia seguinte, o padre Francisco devolveu ao seu superior as suas
licenças e a renuncia do seu titulo de sacerdote, e nunca mais, apezar de
quanto fizeram os seus antigos companheiros para o convencerem, tornou a
dizer missa; cresceu-lhe o cabelo, que cobriu a corôa, e dentro de poucos
mezes ninguem conhecia aquele que pouco tempo antes tinha sido padre
catolico.

A imagem de santo Antonio foi destruida; os cultos continuaram na casa em
que Julião vivia; Julião e João continuaram á frente das suas oficinas; o
padre Francisco, segundo é fama, fez-se missionario evangelico; por meio
dele Deus anuncia o Evangelho da paz a muitos hespanhoes sepultados no
erro.

O Senhor permita que sejam muitos os que assim conheçam a verdade e a
sigam!



NOTAS


[1] Não estranhem isto os leitores. Não se pode assinalar a origem desta
e outras absurdas crenças, porém é certo que o povo baixo as tem.

[2] Os leitores devem lembrar-se de que é um padre romano quem fala, e de
que os mandamentos foram deturpados por essa egreja.

[3] Cerca de 2 escudos.

[4] Note-se que nesta formula de confissão faz-se menção de tudo, menos
de Jesus Cristo.



INDICE


                                                             Pag.

         I—A benção de Deus                                    5

        II—Devoção e... vinho                                 10

       III—No dia de Santo Antonio                            20

        IV—Consequencias                                      27

         V—Tlim... tlim... tlim... tlim...                    32

        VI—Manda-o minha filha, e é quanto basta              40

       VII—A visita                                           49

      VIII—A calunia                                          59

        IX—Novos acontecimentos                               72

         X—De corpo presente                                  85

        XI—Um culto funebre                                   91

       XII—Intrigas do confessionario                         99

      XIII—Frutos do confessionario                          110

      XIV—Da loja á agua-furtada                             118

       XV—Já começa!                                         128

      XVI—Um sermão, um desafio, e uma hora de fé            137

     XVII—O dinheiro do diabo e o dinheiro de Deus           143

    XVIII—Pobre padre Francisco                              150

      XIX—Evangelicos e romanos                              154

       XX—O Cristo das Completas e um lignum crucis          161

      XXI—A conferencia                                      168

     XXII—Temor, inquietação e duvidas                       179

    XXIII—Romano e evangelico                                188

     XXIV—As duas cartas                                     200

      XXV—O regresso                                         205

     XXVI—O padre Francisco                                  210

    Conclusão                                                216





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