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Title: Idyllios á beira d'agua - Romance original
Author: Pimentel, Alberto
Language: Portuguese
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IDYLLIOS Á BEIRA D’AGUA



                            ALBERTO PIMENTEL

                         Idyllios á beira d’agua

                            ROMANCE ORIGINAL

                   (_2.ª edição revista pelo auctor_)

                             [Illustration]

                                 LISBOA
                               «A EDITORA»
                             Conde Barão, 50
                                  1903

                   Typ. d’«A EDITORA», Conde Barão, 50



Prologo da 1.ª edição


Subi em julho d’este anno á montanha umbrosa do Bom Jesus do Monte e
repousei o meu espirito, d’umas fadigas em que andava trabalhado, á
sombra d’aquellas arvores seculares que ou não envelhecem nunca ou
remoçam cada noite para verdejar novas galas ao romper da madrugada...

Quando o romeiro crava o seu bordão n’algum relvoso céspede do ermo
sagrado, e sente subitamente embriagados os ouvidos n’aquella primavera
inextinguivel chilreada de maviosos trinados, experimenta a influencia
benefica d’um elixir mysterioso que se lhe está filtrando no coração, e
vae acalmando como por encantamento as tempestades que lá se revolviam
momentos antes. Este dulcissimo consôlo experimentei-o eu e experimentam
n’o todos os que, na solidão amena, vão desfadigar-se de canseiras
intimas.

Na solidão amena disse eu, e quero demorar-me um momento n’este ponto. A
solidão profundamente triste e silenciosa quer-me parecer um como remedio
heroico para organisações robustas, e só para ellas.

Para as almas que não podem disputar com estas extremos de coragem, e não
saem incolumes d’uma procella, a solidão medonha dos desertos seria o
mesmo que a morte lenta e desesperada d’um criminoso recluso em carcere
cellular.

Subi, pois, a montanha e ia procurando com a vista as arvores que já
me tinham dado sombra em romagens anteriores, as fontes cujo suspirar
cadenciado eu já tinha escutado, e umas e outras encontrei, as arvores
bracejando as mesmas frondes, as fontes suspirosas como d’antes, e
concentrei-me então para vêr a minha alma retratada no espelho interior.

Mezes antes, á hora em que eu, longe d’alli, sentia fugir-me a vida e a
mocidade, e lançava um como olhar de despedida ás arvores que sacudiam
as ultimas folhas, a essa hora, dizia, murmuravam as fontes do Bom Jesus
as saudosas queixas de que me lembrava ainda, tranquillas como sempre, e
diziam os troncos annosos da montanha ao outomno que se approximava:

«Amarellece, devasta, anniquila, que não entrarás aqui...»

Fui subindo, subindo e remoçando a cada passo que dava, a cada momento
que fugia.

Demorei-me tres dias na estancia suavissima do Bom Jesus do Monte, que
tanto era preciso para lograr um remoçamento completo, e, na tarde do
segundo dia, afigurou-se-me vêr, a distancia, na alameda da Mãe d’Agua,
um homem que me inspirara a maxima sympathia quando pela primeira vez
lhe falei em Braga—o padre Eduardo Valladares.

O leitor, que não exige que o romancista venha expôr a face do martyr á
luz do sol, para que todos o conheçam e o apontem, permitte-me decerto
este pseudonymo com que me corre obrigação de velar a verdadeira
personagem do mundo real.

Ia o padre Valladares caminhando placidamente, absorto em seus
pensamentos, quando commetti a indiscreção de lhe bater no hombro. O
padre voltou-se de golpe e extendeu-me os braços alegremente, posto
que eu conhecesse que a minha approximação havia quebrado uma serie de
pensamentos dolorosos...

Fomos juntos conversando pela alameda acima, até que veiu de geito o
dizer-me elle:

—Por que não ha de escrever do Bom Jesus do Monte? Estas arvores sabem
tantos segredos, que, se as interrogar, tirará assumpto que farte para
muitos livros verdadeiros. Já li o que escreveu do Bussaco[1] e casos
tristes, como aquelle, não ha em toda esta montanha um unico torrão que
os ignore...

Ia-se alterando a pouco e pouco o semblante do padre, e a sua figura,
respeitavel e distincta, parecia contrahir-se como se um espinho
agudissimo lhe estivesse atravessando o coração.

Demorou em mim o seu olhar por um momento, e rompeu n’esta apostrophe:

—Se não lamenta ter de perder algum tempo debruçado sobre o abysmo do
passado, confie á sua memoria os apontamentos que lhe vou dar.

Até aqui o padre Valladares. Agora duas palavras mais:

O leitor que gostar do romance trabalhosamente architectado, feche o
livro e não leia. Aqui não se referem casos tenebrosos, nem se borda a
teia, de si mesma singella, com debuxos artisticos. Opulencia, se ha
n’este romance, é toda da natureza. O proscenio, o estrado scenico onde
as personagens se nos devem mostrar, na maxima parte das vezes outro
não ha de ser senão o saudosissimo retiro da Mãe d’Agua assombreado de
carvalheiras seculares, cujo sussurro se casa saudosamente com o murmurar
da agua que desliza.

Não se reclinam pois os actores em suaves frouxeis; ottomanas não as
ha ahi, como todos sabem. Contentem-se com dois canapés rusticos, dois
bancos de pedra, que guarnecem a mesa, de pedra tambem.

Alli, na amenidade dulcissima d’um arvoredo frondente, á beira d’agua, a
coberto do sol, haveis de encontrar as personagens scismando embevecidas
nos idyllios ora tristes ora radiosos do coração e do amor.

D’aqui o titulo do romance.

    Porto, 1870.



Prologo da 2.ª edição


Foi este o meu primeiro romance. É pois um fructo verde, uma tentativa,
um ensaio, e mais nada.

Mas quero-lhe como a uma doce recordação do passado, que conservasse um
tenue aroma de _sachet_ antigo.

Havia n’elle alguma esperança, alguma promessa de futuro? Esse futuro
que eu esperava, cheio de fé, e que já hoje é tambem passado, pode ter
produzido cousa melhor, mas eu com certeza a estimo menos do que este
romance quasi infantil.

Com que saudade o reli eu agora, sem poder reprimir um affectuoso sorriso
de desdem!

É que eu, como todos os novos, presumia-me velho quando era moço.

Parecia-me que vinha de longe, cansado de viver, muito instruido na
sciencia do mundo.

E, comtudo, iniciava apenas a minha jornada de escriptor, com a cabeça
doudejante de illusões e de sonhos.

Depois... trabalhei e soffri.

Mas a felicidade que me trasbordava do coração quando escrevi este
romancesinho, nunca mais voltou.

É que a mocidade não volta.

    Lisboa—1903.



I


Sebastião Valladares tinha carta de bacharel em leis pela Universidade
de Coimbra e abrira banca no Porto ao tempo de contrahir casamento com
uma senhora bracharense. E certo é que os créditos juridicos de Sebastião
Valladares estrondearam em Coimbra durante os cinco annos do seu curso de
leis.

Manda, porém, a verdade dizer que a nomeada do talentoso advogado não
encontrou entre os demandistas portuenses o écho que remurmurava ainda
nos salgueiraes do Mondego. A levada dos clientes, sempre tumultuosa, não
affluira á banca do moço bacharel.

João Nicolau de Brito, proprietario em Braga, conheceu que á mediania
suada do genro pesava a educação do unico filho que tinha, e chamou á sua
companhia o neto, de dezeseis annos d’edade.

—Parece que já não estamos tão sós! dizia João Nicolau de Brito a sua
mulher D. Maria d’Assumpção, revendo-se jubiloso no rapazinho de dezeseis
annos.

—Pois que! respondia D. Maria d’Assumpção. É sempre consoladora a
companhia d’uma pessoa da nossa familia, ainda que seja uma creança.

—Creança! atalhava o esposo. Já não é tão creança como isso. Olha que tem
dezeseis annos!

—O que é preciso, porém, é tratar de alliviar ao rapaz as saudades dos
paes. Ou elle de si é triste ou se resente da ausencia.

—Tens razão, accrescentava João Nicolau.

—Isso tenho. Já me lembrou combinarmos com as Machados um passeio ao Bom
Jesus para o distrahirmos.

—Lembras bem.

—Se lembro! E ellas que hão de gostar. O Eduardo precisa realmente d’uma
distracção qualquer. Esta rua do Carvalhal é só e triste. O rapaz passa
as tardes á janella por não querer sahir. Tambem tem razão. Não conhece
ninguem!

—É isso. Não conhece ninguem—concordou João Nicolau, muito reflexivo.

E accrescentou passados momentos:

—Olha cá! Dá-me da secretária a carta que o pequeno nos trouxe. Ha n’essa
carta do Sebastião um periodo que me inquieta. É aquelle em que nos diz
que o Eduardo lhe sahira com sua tendencia á poesia!...

—Ora!—proferiu D. Maria d’Assumpção, abrindo a secretária e entregando a
carta ao marido.

João Nicolau de Brito montou os oculos, endireitou-se na cadeira e
começou a lêr em voz alta:

«... O Eduardo ahi vae; penso que lhes não será rebelde, porque é
humilde de si. Amolda-se ás vontades de quem o dirige e parece attentar
gravemente no que lhe dizem. Ensinei-lhe tudo o que sabia e podia. Creio
que com mais um anno d’estudos preparatorios estará habilitado para
entrar n’um curso superior. O destino de meu filho já me não pertence,
porém. Pesa me todavia que me sahisse poeta aos dezeseis annos e como
por magia! Conheci em Coimbra um rapaz de muitissimos talentos e de
seu natural poeta, que por se dar do coração á leitura d’amenidades e
aborrecer de morte os alfarrabios da sciencia, teve que luctar com a
vontade da familia, que o obrigava a estudar, e com a sua natureza, que
o fazia detestar os compendios. Como, porém, não pudesse renunciar á
espontanea inclinação, e como não tinha bens de fortuna, succumbiu a uma
gravissima affecção moral, que o levou á sepultura, com grande magua de
todos os que sabiam aquilatar-lhe a alma e a intelligencia. Desvaneçamos,
porém, estas suspeitas; não quero que me chamem visionario. Ahi vae,
pois, o pequeno...»

João Nicolau de Brito abanou a cabeça com um gesto solemne e descahiu a
scismar.

Atalhou-o, porém, a esposa, batendo lhe no hombro e dizendo ao mesmo
tempo:

—Deixa-te de visões! Tratemos de distrahir o rapaz. Iremos domingo ao
Senhor do Monte.

—Olha! disse de subito João Nicolau de Brito, como se houvesse despertado
d’um somno momentaneo. Ha, porém, um inconveniente n’esse passeio...

—Qual?

—A convivencia com as Machados.

—Ora!

—Ora que!? Tu parece que não sabes o que é ser novo! Eu não me refiro
á Rosa Machado. Falava da Maria Luiza, da irmã, que é outra doida por
versos, que ha de conversar de poesia com o rapaz, e que por fim ha de
vir a falar d’amor como quem se deixa ir ao som d’agua corrente...

—Ora ahi está o que eu approvo, atalhou D. Maria d’Assumpção. Essas
práticas lyricas entre os dois ajustavam-se á occasião e vinham de geito.
Ainda que o lyrismo do espirito descambasse em lyrismo do coração, ainda
que a poesia se transformasse em amor, que inconvenientes poderiam vir
d’ahi? Eram verduras da mocidade, que distrahiam o rapaz e que por fim
de contas haviam de acabar no momento em que elle se aborrecesse.

—Tambem me parece... Que lá padre, dê por onde der, quero eu que elle
seja. Sahiu dado a poesias? Melhor! Será um prégador de fama.

—Ha de ser tudo o que tu quizeres... Mas supponhamos até que o Eduardo
começava a arrastar a aza á Maria Luiza. Travava-se o namorico, carta
d’aqui, versos d’alli, uma semana d’ataque, outra semana d’aborrecimento,
e por fim o rapaz curado da sua nostalgia em quinze dias.

—Mas não falaste ahi em aborrecimento? ponderou gravemente João Nicolau
de Brito.

—Falei, respondeu com convicção a sogra de Sebastião Valladares. Mas
refiro-me ao aborrecimento que de si mesmos trarão uns amores pueris.
Depois, para curar esse aborrecimento, principia-se novo galanteio a nova
estrella, e ahi começa a chrysalida a tornar-se borboleta e a perseguir
as flores.

—Olha que as flores teem espinhos... atalhou João Nicolau de Brito
meneando a cabeça.

—Cala-te! replicou D. Maria. Os espinhos das mulheres são... os
alfinetes. Em nome do sexo, agradeço-te a amabilidade.

—Não tens que agradecer, disse João Nicolau rindo e batendo as palmas de
contente.—Sim, senhora! Vossa excellencia está hoje espirituosa! Receba
os meus parabens. Iremos ao Bom Jesus quando quizer e mande convidar as
familias do nosso conhecimento para nos fazerem companhia esta noite.
Solemnizemos a recepção do rapazinho. Se queres que te diga—accrescentou
mudando de tratamento—tive hontem pena d’elle. Eram dez horas e já tinha
somno. Tambem não sei o que fazes do piano! Já és avó, é verdade, mas a
velhice ainda não te immobilisou os dedos. Pois venham lá as Machados, e
haja ao menos musica uma noite...

—Então queres?

—Quero. Manda convidar. Que lá padre ha de elle ser. Ainda lhe hei de
ouvir um sermão...

—Se não fôr seccante, disse D. Maria d’Assumpção sahindo da sala.



II


Thomaz Ignacio Machado tinha sido um homem dinheiroso. Abriu, em Lisboa,
os salões do seu palacete á flor da aristocracia olyssiponense, deu
bailes esplendorosos, pompeou em cavallos e trens, teve aventuras com
dansarinas de S. Carlos, jogou o _monte_ com a sobranceria d’um homem
que não joga para ganhar e... achou-se arruinado no dia em que pensou no
futuro que o estava esperando.

O Creso, apeado do seu pedestal de ouro, emboscou-se nas moitas
verdejantes d’uma quinta proxima a Braga, e ahi veiu descansar das
saturnaes esplendidas de Lisboa com o intuito de bemfeitorisar as
propriedades obrigadas ao dote da mulher e de velar por tres innocentes
meninas, suas filhas, salvas da tormenta na arca sagrada do coração
materno.

Chamava-se Emilia a mais velha, que morreu aos vinte e dois annos tisica,
se não victima d’uns amores desventurosos, que não fazem ao nosso
proposito.

Rosa e Maria Luiza viviam ainda, como o leitor inferiu do capitulo
anterior.

A custo de muitas economias pôde Thomaz Machado rehabilitar a casa
consideravelmente esbanjada e obter os rendimentos necessarios, não para
a vida faustosa de Lisboa, mas para uma decencia estimavel então, e
invejavel ainda hoje.

Veiu, pois, Thomaz Machado residir em Braga, e, após dois annos de
apartamento na quinta do Prado, alugou casa na rua de Santo André.

A mallograda Emilia morrera na quinta do Prado, ao cabo d’um anno de tão
melancholico exilio.

Rosa, no tempo a que somos obrigados a remontar, tinha vinte e um annos;
Maria Luiza, dezenove.

Rosa não era uma belleza. Tinha, porém, um trato tão suave e delicado,
um quê de meiguice e de ternura, que diffundia encanto. Maria Luiza, ao
contrário da irmã, era um demonio bonito. Conversava com os homens mais
do que com as senhoras, valsava com delirio, tinha a ironia prompta e o
epigramma certeiro, tocava piano e recitava versos, cantava _seguidillas_
e desvelava um vaso d’alecrim do Norte que tinha ao canto da janella.
Era trigueira e possuia uns olhos negros que nadavam em luz. Parecia
que não andava; voava. Ouvia-se um ruflar de azas; olhava-se... era
ella. Não houve ainda mulher mais flexivel, nem mais elegante. Era quasi
uma columna de fumo, que ondulava no espaço e que desapparecia com um
sôpro. Lembra-me comparal-a áquella creatura aerea, vaporosa, que nós
conhecemos d’um livro d’Octavio Feuillet. Maria Luiza tinha seus laivos
da _condessinha_ do escriptor francez. Era porém mais intelligente e
menos desenvôlta. Ainda assim com que _salero_, puramente andaluz, não
batia ella as mãos, correndo do seu alecrim para o seu piano e entoando a
meia voz um fragmento de _seguidilla_:

    El amor que te tengo
          parece sombra;
    quanto mas apartado
          mas cuerpo toma.
    La ausencia es aire
    que apaga el fuego chico
    y enciende el grande.

Depois, se a irmã se sentava ao piano e voejavam ao longo da sala notas
de suavissima tristeza, como um bando de rôlas viuvas que se andassem
carpindo, Maria Luiza, para se furtar á impressão dolorosa da musica,
batia o pésinho no chão e começava, saltando, a cantar.

Havia só um nome, só uma palavra, que a fazia entristecer subitamente.
Era o nome de sua irmã Emilia. Tinham sido duas irmãs extremosas, que
viviam uma para a outra.

Ás vezes, n’um momento de dolorosissima saudade, dizia a inquieta
donzellinha:

—Quem sabe se virei a morrer da morte de minha irmã? Talvez. Eramos tão
amigas!...

Estavam na quinta do Prado, como já se disse, quando Emilia morrera. Os
tisicos enganam até ao ultimo momento; ninguem esperava que ella passasse
n’aquelle dia. Rosa tocava, na sala proxima, umas _variações_ da _Norma_;
Maria Luiza falava com a doente a respeito das andorinhas e do sol, das
flores e das borboletas, das noites de luar e dos rouxinoes. De repente a
irmã interrompera-a, para segredar-lhe:

—Ouves? É a musica do noivado. O meu noivo espera-me. Has de me dar
um ramo de lirios para levar no seio. Eu gosto tanto dos lirios! Os
rouxinoes são meus amigos. Esperava este momento com anciedade; _elle_
já me espera ha dois annos e devia ter saudades de mim. Morreu tão novo!
Ouves, minha irmã? A musica continua. São as andorinhas, que chilriam...
Dá-me um beijo; as borboletas são irmãs das flores e tambem se beijam.

Ouviu-se o frémito d’um beijo e o som agudo d’um grito. Era a voz
de Maria Luiza. Sua irmã tinha morrido a beijal-a, como se quizesse
transmittir-lhe a vida n’um beijo.

Ao grito de Maria Luiza acudiu o pae, a mãe e a irmã. Já chegavam tarde,
porém.

Desde aquelle dia, Maria Luiza entristecia-se quando lhe falavam d’essa
hora amargurada. Tornou-se amiga de todos os que eram amigos de sua irmã
e ia todos os domingos ao cemiterio d’aldeia poisar um ramo de flores
sobre o tumulo fechado havia pouco tempo. Quando vieram habitar em Braga,
Maria Luiza soffreu muito com a falta da visita ao cemiterio, ou com
a _ausencia de sua irmã_, como ella dizia. Aos domingos, todavia, era
quando mais cantava o

    El amor que te tengo
          parece sombra...

e dizia a Rosa que se via obrigada a cantar para reprimir as lagrimas no
seio.

Thomaz Ignacio Machado morreu em Braga, dezoito mezes depois de ter
sahido da quinta do Prado. Chorou-o a esposa, choraram-n’o as filhas
estremecidas e choraram-n’o todos os que viam n’elle um homem remido das
faltas do passado por um longo soffrimento.



III


João Nicolau de Brito e sua mulher receberam, como tinham combinado.
Concorreram á _soirée_ as familias de mais intimo trato n’aquella casa.
Abriu-se o piano, n’essa noite, e desterrou-se o _loto_, que era já então
o maximo divertimento dos serões bracharenses e continua a ser para
eterna semsaboria das noites de Braga.

A dansa, a alegria, a musica tomaram a vez ao jôgo. Eduardo era a
machina motora de tão notaveis reviramentos na casa de dois velhos
amolestados de rheumatismo e outros gravames da velhice. Abriu-se a
_soirée_ com uma quadrilha. Eduardo fez o milagre de tentar a avó e
conseguiu que a pobre senhora figurasse no—_en avant_—a par de tres
raparigas, incluindo as irmãs Machados. João Nicolau de Brito jubilou
com a delicadeza do neto e apresentou-o, finda a dansa, como poeta, ás
pessoas que estavam na sala.

O amor proprio tem d’estes paradoxos. João Nicolau desestimou a qualidade
de poeta na pessoa do neto; agora, lisonjeado da muita delicadeza d’elle,
folga de que o rapaz se extreme dos outros com merecimentos distinctos.

As senhoras festejaram a denuncia de um talento precoce, que não tinham
avaliado ainda, do filho do bacharel.

Correu n’esse momento ao longo da sala um sussurro de vozes: era o
cochichar de meia duzia de raparigas tentadiças com poetas, sob o
commando de Maria Luiza, idealista por excellencia.

—É dever teu, Eduardo—disse de golpe D. Maria d’Assumpção—comprovares a
opinião antecipada, que de ti formamos. Recita-nos alguma coisa.

—De boa vontade, minha senhora—respondeu elle—se não receasse a
indelicadeza d’incommodar v. ex.ᵃˢ e não me conhecesse com o vezo de ser
horrivelmente desmemoriado.

—Vá o que lembrar—accrescentou João Nicolau.

—Mas coisa da tua lavra—tornou D. Maria d’Assumpção.

—Folgamos d’ouvil-o—disse Maria Luiza.

Eduardo percebeu que seria indelicadeza imperdoavel o desculpar-se mais.

—Ahi vão, disse elle, seis quadras que não valem nada. Intitulam-se:

    Frémitos

    Quando tu vaes á janella,
    Á noite, e pensas em mim,
    Ha uma voz que diz—Ella!
    —São os lirios do jardim...

    Se d’um livro sobre a folha
    Te pende a cabeça e o véo,
    Ha uma voz que diz:—Olha!
    —É o mar chamando o céo...

    Quando esse teu olhar mede
    Todo o horizonte do sul,
    Ha uma voz que diz:—Vêde!
    —Talvez seja a voz do azul...

    Se, ao fim da tarde, á janella,
    Olhas, nem sabes o que,
    Ha uma voz que diz: Bella!
    —É a voz do que se não vê...

    Mysterios que eu não abranjo!
    No jardim, ao pôr do sol,
    Ha uma voz que diz:—Anjo!
    —A voz d’algum rouxinol...

    Quando ha luar e te chamo
    Entre as moitas d’alecrim,
    Se ha uma voz que diz:—Amo!
    Penso que a voz sae de mim...

Estrondearam na sala freneticos applausos.

O moço poeta, de dezeseis annos, agradecia a ovação espontanea e unanime
com mostras de modestia e ingenuidade estimaveis.

Merecidos eram sem dúvida taes applausos.

Nos versos do filho do bacharel Valladares havia poesia, se poesia se
pode chamar este alar-se da alma para um mundo phantastico onde se ama
já uma mulher que ainda se não viu.

Os que entendem que a poesia é uma coisa que elles mesmos não entendem, o
nebular a phrase de modo a encobrir a carencia d’uma idéa aproveitavel,
esses, apostolos do germanismo transmontado, rir-se-hão da futilidade
d’um poetar singello cadenciado na lyra incorrecta dos dezeseis annos.

Maria Luiza Machado, como enthusiasta por versos, pediu ao poeta a cópia
dos seus. Isto bastou a travar-se conversação.

—Bem me parecia—disse ella—que o seu coração devia, para cantar mavioso
aos dezeseis annos, sentir um raio de sol que o inspirasse.

—Peço desculpa para redarguir a v. ex.ᵃ Os meus versos são talvez uma
prophecia. A alma, ainda não adestrada para luctar com as procellas do
mundo real, cria para si uma região phantastica.

—Seja como fôr, tornou ella. Desejo possuir os seus versos. Quando m’os
dá?

—Amanhã.

Pactuou-se, no fim da _soirée_, o primeiro passeio ao Bom Jesus, no
domingo proximo.

Recordações d’essa noite ficaram muitas e immarcessiveis na alma de
Eduardo Valladares. Depois da ultima quadrilha, quando os convidados
retiraram e a sala ficou deserta, é que foi o escurecer-se subitamente
aquella alma, que mergulharia em profundas trevas, se a imagem esplendida
de Maria Luiza lhe não rareasse, a instantes, as sombras interiores. Um
olhar e uma phrase d’ella fôram as ultimas impressões d’essa noite.

—Seja como fôr. Desejo possuir os seus versos, disse-lhe ella.

E abriram-se-lhe os labios n’um sorriso de fada.

—Mas, dizia de si para si o filho do bacharel Valladares, tenho apenas
dezeseis annos e deixo-me assim embalar nos braços de uma esperança
dulcissima que me pode fugir amanhã!

Durante os dois dias que decorreram desde essa noite até o domingo
seguinte, annuviou-se o semblante de Eduardo a ponto de João Nicolau
fazer reparo na extranha tristeza do rapaz. Quedou-se o velho a scismar
no visivel desgôsto do neto e não lhe rasteou origem. Isto inquietara-o
sobremaneira. Revelou á esposa as suspeitas e dúvidas que o embaraçavam;
conchavaram-se os dois no proposito de dar finalmente com a chave
mysteriosa do enigma.

Passadas algumas horas depois d’este secreto colloquio dos dois velhos,
D. Maria da Assumpção foi dar com o neto emboscado na ramaria d’uma
olaia que sombreava o angulo do quintal. Estava o moço d’olhos pregados
no horizonte recortado pelas arvores verdejantes dos quintaes da rua de
Santo André.

D. Maria d’Assumpção seguiu por alguns momentos a direcção do olhar do
neto e o mesmo foi despeitorar-lhe os mais intimos segredos do coração.
Subiu as escadas precipitadamente e chamou o marido a uma das janellas
sobranceiras ao quintal.

—Olha, disse-lhe ella apontando para o neto. O coração—o coração dos
dezeseis annos sobretudo—ha de ter sempre d’estas contradicções. O
excesso da felicidade acarreta d’estas maguas. O que elle deseja é o
momento de tornar a vêl-a... São chuveiros d’abril, que não inspiram
cuidado.

—Olha que a mocidade d’agora começa muito cedo a tresnoitar-se! O amor
dos dezeseis annos! Lêsse-se este caso n’um livro a ver se alguem o
acreditava! No nosso tempo não se vivia tanto em tão poucos annos.

—Ahi estás tu a denunciar a edade que tens! É sestro dos velhos andar a
reprehender os novos, e o que elles pensam e fazem. Não se vivia tanto em
tão poucos annos! disseste tu. Já te não lembras da historia d’uns amores
em que falas quando vem de geito citar façanhas da mocidade...

—É uma historia que tem graça. Da janella do meu quarto, no collegio onde
me eduquei, andava eu a espreitar nas horas de recreio para a janella
d’um terceiro andar onde morava uma costureirinha d’olhos negros...

—Uma costureirinha! O teu neto revela mais fidalgos e poeticos
instinctos. Ama romanescamente. Tu andavas mais terra a terra. Não tens
que vêr. Iremos domingo ao Bom Jesus.

—Iremos se quizeres. Não sei que systema teem ás vezes as mulheres!

—O meu systema é o do jardineiro experimentado. É preciso cuidar da flor,
dar-lhe sol, para que desabrochem depois todas as galas que a Providencia
lhe der.

—Anda lá, anda lá, quero ver se a theologia lhe ha de dar tempo para
andar com a cabeça á roda!



IV


Batiam sete horas da manhã nas torres do Bom Jesus do Monte, quando João
Nicolau de Brito, sua mulher, Eduardo e as duas meninas Machados subiam
em alegre caravana o escadorio do santuario. Pelo que diz respeito aos
dois velhos, em cujo grupo faltava a viuva Machado, iam cansados da
subida; não assim os companheiros, que saltavam alegremente d’escada em
escada, como tres avesinhas que voltassem no mesmo dia á liberdade do ar,
depois d’uma reclusão asperrima, e fôssem chilreando de fronde em fronde
pela encosta acima.

Affluiram, n’esse dia, ao Bom Jesus muitas familias de Braga, de sorte
que se augmentara consideravelmente a ruidosa caravana.

Demoraram-se na hospedaria João Nicolau, sua mulher e os outros velhos,
seus conhecidos, trôpegos de rheumatismo; o resto da caravana errava pela
montanha ao sabor de cada um.

Eduardo Valladares sentiu por momentos necessidade de conversar com a sua
alma em jubiloso dialogo. Subiu ao largo dos Evangelistas, e embrenhou-se
na matta sombria da Mãe d’Agua.

Estava elle escrevendo a lapis na carteira, quando casualmente descobriu,
através da folhagem, um vulto indistincto.

Encobriu-se com o muro posterior á mina e ficou d’atalaia, a coberto da
parede. Passados alguns momentos reconheceu ser Maria Luiza e sentiu
bater-lhe o coração vertiginosamente.

Vinha ella, pensativa, subindo a alameda. Depois sentou-se n’um banco de
pedra e descahiu a scismar, encostada á mesa, que tambem era de pedra[2].

Eduardo Valladares espreitava-a silencioso. Ora sentia estuar-lhe o
sangue nas arterias escandescentes ora esfriar-se com esvahimentos de
moribundo anciado. Maria Luiza quedara-se a scismar com os olhos fitos no
vago e o rosto descansado na mão. É um mysterio que se não comprehende,
um enigma que se não decifra—o que seja este vago d’uns olhos
contemplativos, o ponto indistincto e nebuloso onde se fita o olhar, a
não ser que esse ponto seja a lente que reflicta o olhar de si mesmo
namorado. Pois em que mais se pode extasiar uma alma venturosa a não ser
na intima contemplação da primavera interior? Dizem pois, e dizem bem,
os que entendem do coração, que os olhos são o espelho da alma e o olhar
a muda expressão do sentimento que a domina. Tudo isto nos vae levando
insensivelmente a uma conclusão provavel. Pois se o olhar é o reflexo
da alma, se a alma está absorta em júbilo, e se a vista se concentra
n’um ponto unico, quem poderá duvidar de que esse ponto seja a lente
mysteriosa que está espelhando o fogo do nosso olhar, o fogo da nossa
alma? Ora se não é isto o vago d’uns olhos contemplativos, não sei eu bem
o que seja o vago. O que sei, porém, é que todas as almas placidamente
inebriadas teem d’estas horas de arroubo em que os olhos se embellezam no
azul d’um horizonte desconhecido aos outros.

Estava, pois, Maria Luiza extasiada n’estes ineffaveis enlêvos, quando
sentira cahir-lhe aos pés um papel, que mão invizivel impellira.
Despertou de subito d’aquelle dulcissimo _far niente_, que é o sonhar
accordado da alma. Pegou no papel e desdobrou-o precipitadamente;
desdobrou-o e leu-o.

Dizia assim:

    «Disse a rosa á borboleta:
    —«Abre uma aza, inquieta,
    Faze-me d’ella um docel...»—
    Volveu ella:—«Flor dos valles,
    Dá-me, em paga, do teu calix
    A seiva, o licor, o mel...»—
    Assim nós tambem. N’um dia
    Sob a aza da poesia
    Dormiste e sonhaste, ó flor.
    Eu, namorado e poeta,
    Hei de ser a borboleta,
    Tu a rosa; o mel, o amor...

Voltou-se surprehendida Maria Luiza como a procurar nas sombras do
arvoredo o apaixonado fauno que furtivamente viera requestar com
incendidos madrigaes a nayade formosa; o mesmo foi encarar no moço
enamorado, que procurava lêr nos olhos d’ella a impressão dos versos, e
que sentira esvahidas as fôrças quando tentou fugir d’aquella suavissima
prisão que alli o tinha como galvanisado.

—Aqui? disse-lhe ella. Pensei que tinha acompanhado o resto da caravana.

—Idealista, como v. ex.ᵃ—volveu elle convulsamente e como querendo
dominar uma impressão violenta—procuro ás vezes a solidão. Não temos que
extranhar o encontrarmo-nos aqui.

—De mais extranheza será, porém, dizer-lhe eu que se occultam n’estas
sombras da Mãe d’Agua faunos poetas, que sabem escrever bonitos versos
ao sabor de madrigaes. Aqui tenho eu uns que me parecem maviosos; ou me
vieram da mão d’um fauno, que, por engano, me tomara á conta de nayade,
ou cahiram por acaso da aza d’uma andorinha, que era correio d’amantes.

Eduardo Valladares empallidecia extremamente.

—E comtudo esta lettra não me é extranha, continuou Maria Luiza. Notavel
coincidencia! Parece-se muito com a sua, com a dos versos que teve a
gentileza de me enviar ante-hontem. Ora veja...

N’este momento ouviu-se ao fundo da alameda uma voz de mulher.
Quedaram-se os dois á escuta. Passados instantes, porém, descobriu-se
através das arvores o vulto já distincto da irmã de Maria Luiza.

Chamava para o almôço, que esperava por elles na mesa da hospedaria.



V


Tres dias depois do primeiro passeio ao Bom Jesus do Monte escrevia
Eduardo Valladares a sua mãe:

«Escuso de lhe dizer que me resenti da falta do carinho materno, da
mudança de terra e de casa, da differença de costumes, de tudo isto
finalmente que a gente conhece desde os primeiros annos da vida. Devo
dizer-lhe, porém, minha mãe, que sahi da minha familia para encontrar
outra familia que tambem é minha, e onde, para ser a felicidade completa,
apenas me falta o livro sagrado do seu coração que eu sabia delettrear e
comprehender.

«Da cidade—e não sei se para isto contribuirá o ter nascido aqui minha
mãe—da cidade, que é em verdade pittoresca, dir-lhe-hei que não desgosto
e que se me afigura melhor do que o Porto para se respirar ar saudavel e
morrer a gente com uma gordura fradesca.

«A falta de movimento que se nota em Braga, procedente da exiguidade da
população, é uma garantia de commodidade, longe de ser um defeito. Pode
a gente dormir á vontade, até altas horas do dia, que não corre perigo
d’accordar sobresaltada pelo estrepito das ruas. Só os sinos... Ai! os
sinos de Braga, minha mãe, badalejam que é de qualquer pessoa ensurdecer
dentro de quarenta e oito horas. Isso sim, que é horroroso!

«A esta praga dos sinos só acho comparavel em semsaboria a extensão das
noites de Braga.

«Desde que vim, só uma noite me pude esquecer de que não, estava no
Porto. Quiz a avó convidar algumas familias das suas relações, cuido que
para festejar a minha chegada, e passou-se o serão alegremente, mais
alegremente do que era de esperar.

«Das senhoras que concorreram, apenas merecem especial menção as meninas
Machados, que são muito estimaveis e sympathicas. Em companhia d’estas
senhoras passamos o dia de domingo no Bom Jesus do Monte, a mais formosa
paizagem que tenho visto em vida minha. Aquillo sim, que é bonito e
suave! N’aquellas sombras deliciosas sente a gente abrir-se o coração
para sentimentos novos. Minha mãe, que decerto alli viveu alguns dos dias
da sua mocidade, deve comprehender que impressões dulcissimas recebi.
Quando desci da montanha, vinha saudoso, preciso confessal-o. Saudoso de
quê? Da montanha, que posso visitar quando me aprouver? Não sei Saudoso
talvez d’umas horas agradaveis que lá vivi.

«E depois no Bom Jesus do Monte nem os homens andam embuçados em capotes,
como na cidade, nem as senhoras espreitam os transeuntes a coberto das
rotulas das janellas. Alli ha completa liberdade, principiando pelas aves
que se desenfadam de tronco em tronco sem que ninguem as persiga.»

A carta do filho do bacharel Valladares merece-nos reparos.

Pelo que diz respeito ao seu estado moral, cumpre fazer notar estas
phrases involuntariamente significativas:

«... para ser a felicidade completa, apenas me falta o livro santo do
seu coração que eu sabia delettrear e comprehender.»

«Desde que vim, só uma noite me pude esquecer de que não estava no Porto.»

«Das senhoras que concorreram, merecem especial menção as meninas
Machados, que são muito estimaveis e sympathicas.»

Referindo-se ao Bom Jesus do Monte dissera Eduardo Valladares, como o
leitor viu, que «n’aquellas sombras deliciosas sente a gente abrir-se o
coração para sentimentos novos.»

Quereria elle dizer que a sua alma se estava enflorando para exuberantes
primaveras e auroras ainda não conhecidas?

O futuro nol-o dirá.

No attinente á apreciação de Braga, corre-nos obrigação de lembrar ao
leitor que o filho do bacharel Valladares escrevia n’um tempo em que
Braga conservava ainda os biocos d’uma verdadeira provinciana.

Vão hoje, em pleno anno de 1870, visitar a capital do Minho e dir-me-hão
se não enlevaram os olhos nas graças das damas bracharenses que passeiam
a sua elegancia por entre os alegretes do campo de Sant’Anna.

Homens de capote só os ha lá... quando está frio, o que se me afigura uma
prova irrecusavel do bom senso da população masculina d’aquellas paragens.

Diz um adagio «Deus dá o frio conforme a roupa». Quer-me parecer, porém,
que seria muito mais verdadeiro e sensato dizer se «Deus deu a roupa por
causa do frio.»

Quanto aos sinos, ainda em 1870, como então, são egualmente detestaveis
os de Braga e os... do Porto.

Chateaubriand escreveu algures que o christianismo conseguiu dar suspiros
ao bronze.

Sem querer desvirtuar a poetica idéa do auctor do _Genio do
Christianismo_, sou a dizer que me não quer parecer «suspirar», um
martelar continuo de toadas populares nos sinos das cidades. A musica das
ruas invadiu a egreja.

Suspirar é o do sino da aldeia, que nos viu nascer, quando vibra sonoro
ao pôr do sol, no meio da solidão.

Acceito de melhor sombra estas palavras do mesmo Chateaubriand no _René_:

«Tudo se encontra nas encantadas meditações que em nós desperta o sino
natal: religião, familia, patria, o berço e o tumulo, o passado e o
futuro.»



VI


Depois do primeiro passeio ao Bom Jesus do Monte, Eduardo Valladares só a
furto vira Maria Luiza ao declinar da tarde, durante nove dias.

Quando o sol inclinava para o occaso, sahia elle em direcção a Guadelupe.
Ao passar na rua de Santo André, sempre os seus olhos se encontravam com
os de Maria Luiza como por magnetismo. Seria um acaso? Quem diria a ella,
da primeira vez, que elle ia passar? Amal-o-hia? Se o amava, se sentia
que o ia amar, dizia-lhe uma voz interior que elle viria? Mas pareceu
fital-o tranquilla, sem revelar um indicio de commoção... Não o amaria,
zombaria de um sentimento celestialmente puro? Mas nem que o coração lhe
estivesse adivinhando a hora a que elle viria! Nem um só dia deixaram de
se ver...

Era a furto, é verdade; que o timido moço não sabia que impressões
conservaria Maria Luiza do passeio ao Bom Jesus. Erguia o seu olhar para
ella, e desviava-o subitamente...

Os versos, pensava elle, fôram pouco menos d’uma indiscreção. Quem
lhe dera motivo para alimentar uma esperança? Ella, Maria Luiza? Que
lhe dissera que deixasse entrever os primeiros clarões d’uma aurora? E
todavia arriscara-se elle a escrever:

    Eu, namorado e poeta,
    Hei de ser a borboleta,
    Tu a rosa; o mel, o amor...

Estas dúvidas alanceavam-lhe o espirito. Que devia fazer? Conformar-se
com a incerteza, fugir á luz, áquella luz que o estava attrahindo,
a elle, a mariposa dos dezeseis annos? Mas fugir-lhe era morrer,
que se podia viver longe do ninho querido, do carinho materno, das
recordações da sua infancia, era porque a tinha visto, era porque a tinha
encontrado...

E—pensamento cruciante!—quem lhe dizia que ella era livre, que se
não deixava embalar nas dulcissimas esperanças d’um amor feliz? Este
pensamento infernava-lhe a alma e, n’esses momentos dolorosamente
attribulados, lembrava-se de sua mãe, e parecia que o invocar o nome
materno valia tanto como sentir calmarem-se as tempestades interiores.

N’aquella solidão de Guadelupe era que Eduardo Valladares gostava de se
deixar atormentar por estas dúvidas queridas. Aquella agitação tinha
alguma coisa de pungente e alguma coisa de deliciosa... E depois,
alongando o olhar, via extender-se ao sopé de Guadelupe a rua de Santo
André... E para o outro lado, ao nascente, avultava no horizonte a
montanha do Bom Jesus onde tinha sentido os primeiros enlêvos, onde um
anjo mysterioso, de azas brancas talvez, lhe segredara docemente uma
palavra de esperança...

Era lá, onde a coma do arvoredo frondejava mais espessa, no alto da
serra, que Maria Luiza lêra os seus versos, e parecia que a amenidade
melancholica da floresta santa lhe entrava no coração... Seria aquella
montanha o seu Gethesemani? O futuro era mudo. Na serra campeava a cruz,
phanal salvador dos náufragos da existencia, e elle tinha ainda na
memoria as doces orações que sua mãe lhe ensinara a balbuciar.

E as sombras da noite pareciam emergir d’entre o arvoredo, e serra, e
floresta, e cruz desappareciam envôltas na escuridão.

Quando Eduardo Valladares descia de Guadelupe, era sempre noite cerrada;
um unico pensamento o occupava—ver Maria Luiza no dia seguinte.



VII


Dez dias volvidos disse D. Maria Assumpção, de manhã, ao neto:

—Vamos hoje passar a noite a casa das Machados. É preciso fazeres-te
homem. As mulheres é que vivem encerradas dentro de quatro paredes.
Passas a manhã em casa a ler, e apenas saes de tarde um boccadinho! Onde
vaes tu?

—Sento-me em Guadelupe e gosto d’aquelle sitio, respondeu Eduardo
procurando ler a impressão da resposta no olhar da avó.

—É bonito... mas triste. Precisas de procurar relações e de afastar de
ti uns ares improprios da tua edade. Domingo, havemos de tornar ao Bom
Jesus. É preciso divertir e passear emquanto é tempo, rapaz, que o mez
de outubro está ahi á porta e depois, cursando o lyceu, não tens remedio
senão deitar-te aos livros.

—Estou preparado para isso e cuido que hei de saber corresponder á
dedicação de meus avós.

—Assim deve ser. Põe o teu chapéo e vae sahir, anda, mysanthropo.

—Agora... estou tão bem em casa...

—O que tu quizeres, teimoso! Já te disse que depois de abertas as aulas
hão de ser poucas as distracções.

—E não iremos mais ao Bom Jesus? ousou perguntar Eduardo.

—Iremos; menos vezes. Eu tambem gosto d’aquelle passeio, e sinto que me
faz bem. Mas não se cifram no Bom Jesus os sitios bonitos dos arrabaldes.
Has de gostar tambem das margens do Cávado.

—Mais que do Bom Jesus?

—Não sei.

—Ah! mais que do Bom Jesus acho que não posso gostar.

D. Maria d’Assumpção foi ter com o marido e disse-lhe:

—Este rapaz é magico, não quer sahir!

—Deixa-o lá, elle se aborrecerá d’estar em casa.

—Não é tanto assim, homem de Deus! É preciso distrahil-o, aconselhal-o
com brandura, que é filho de nossa filha. Domingo havemos de tornar ao
Bom Jesus.

—Mas que empenho tens tu em andar a passear o rapaz?

—Quero amenizar-lhe esta passagem repentina da vida em que foi creado
para outra vida completamente nova. Depois, abrindo-se as aulas, é que eu
não quero que elle passeie. Já lhe disse que, em chegando outubro, era
preciso estudar como um homem.

—E elle que respondeu?

—Deu mostras de querer desempenhar cabalmente. Mas não comeces tu depois
a opprimil-o demasiadamente com as tuas asperezas. Olha que o espirito,
cansado do estudo, precisa d’um refrigerio.

—Livremol-o de relações estreitas com estudantes, que são, por via de
regra, rapazes que vivem em liberdade pouco digna.

—Eis ahi por que me parecia que um namorito...

—Vocês, as mulheres, ligam-se tamanha importancia, que julgam que o
render-vos preito é a suprema salvação de qualquer. O rapazinho se
começar a desmandar-se torna pelo mesmo caminho por onde veiu. Tu sabes
que eu não sou muito para graças. Este anno ha de acabar os preparatorios
e para o anno ha de cursar o Seminario. Isto é se quizer; se não quizer,
que volte para a companhia do pae.

—Mas tambem que proposito é esse de assentar com tamanha antecipação o
destino do rapaz? Estás dominado do espirito religioso de Braga e achas
que ser padre é caminhar proveitosamente pela estrada social em direcção
ao Céo! Não sei como te não ordenaste?

—Temos em mim um exemplo da efficacia dos namoritos. Meu pae queria me
ordenar, porque era meu amigo. Vi-te, comecei a desorientar me e casei...

—Olha que perdeste muito! Estavas agora arcebispo, pelo menos, se
obtivesses absolvição, para os teus burguezes devaneios com a costureira
do terceiro andar.

E como D. Maria d’Assumpção caminhasse para a porta da saleta, chamou a o
marido com a brandura de quem deseja reconciliar-se:

—Olha cá. Pelo que disse a meu respeito, sabes que não passa tudo de
graça. Lá quanto a ordenar-se o rapaz, é coisa assente e proposito firme.
Que queres tu que elle seja? Queres que o mande para Coimbra gastar-nos
rios de dinheiro para o vermos ao cabo de cinco annos a caçar môscas como
o pae?



VIII


Eduardo Valladares, quando soube que n’essa noite poderia vêr Maria
Luiza, sentiu no coração uma alegria subita que de momento a momento era
obscurecida por umas sombras ligeiras... Dir se-hia que n’aquella alma
de dezeseis annos se travara lucta entre os lampejos d’uma esperança
e as nuvens d’uns receios que são attributo da timidez procedente da
inexperiencia.

N’aquella alma, digamol o pois, preparava-se uma aurora: luctava a luz
com as trevas.

Ver Maria Luiza era levantar o espirito a páramos celestiaes ante
gostados em horas de dulcissima meditação; era voejar nas azas da
esperança até onde a felicidade pudesse subir uma creatura absorta em
sonhos do Céo. Mas vêl-a não seria despenhar-se em abysmos insondaveis,
se nos labios d’ella não desabrochasse um sorriso equivalente a uma
promessa? Todas as dúvidas, que até ahi o haviam salteado dia e noite,
como que se levantaram em tropel e deliciosamente lhe pungiram o coração
amoroso.

O filho do bacharel entrou na sala da viuva Machado com a timidez de
quem arriscasse um passo n’um estrado sobreposto ao boqueirão d’um
despenhadeiro. O mesmo porém foi entrar e cegar-se deante d’aquella visão
aerea, tentadora, que parecia encher a casa d’alegria e esplendores.

A aurora da felicidade, que a cercava, afigurou-se porém a Eduardo
Valladares o clarão sinistro d’um incendio que lhe vinha requeimar o
coração.

A elle, que se sentia triste, porque amava, a elle, que luctava com
a incerteza, porque esperava, a elle pareceu pois que só a estrema
despreoccupação d’espirito podia dar a tranquilla alegria que Maria Luiza
revelava no gesto e no olhar.

Ó deliciosas illusões dos dezeseis annos, que sois a verdadeira
felicidade, quem pudera rehaver-vos, uma só vez que fôsse, depois de
transposta a barreira que separa o mundo das chimeras do mundo das
realidades!

A experiencia é fria como tudo o que é positivo, material e immutavel.
Ultrapassada a linha divisoria, sabe-se que o coração freme em
tempestuosa lucta quando aos labios apontam sorrisos de felicidade. Ó
experiencia, ó escalpello das coisas mundanas, queres rasgar, decompor,
retalhar, para saber!

Aos dezeseis annos contentam-se os olhos com vêr a superficie d’este
mar chamado—coração humano. E não se sabe então que o oceano, cuja face
se azuleja como o céo nas regiões polares, e disputa negruras com a
tempestade na costa das Maldivas, não se sabe que o oceano, diziamos,
occulta sob uma superficie crystallina ou sombria um mundo sempre cheio
dos mesmos mysterios e da mesma escuridade... Ó abençoada ignorancia, que
tamanhas saudades deixas para toda a vida!

Aos dezeseis annos ignora-se ainda que ha certas organizações robustas,
que não só chegam a dissimular os proprios sentimentos, mas até
logram manifestar commoções differentes das que lhe estão deliciando
ou corroendo o coração. Já dissemos que Maria Luiza era uma d’essas
organisações de rija têmpera, e o leitor sabe como ella modulava um
trecho de _seguidilla_ no momento em que mais lhe vergava o espirito sob
o consolador gravame das saudades de sua irmã.

Amaria ella Eduardo Valladares? Amal-o, na verdadeira accepção d’esta
palavra, talvez não. Mas sentia-se impellida por uma onda alegre e
suave, que lhe embalava o pensamento e o levava a paragens tão formosas
como desconhecidas. Alli encontrava o vulto sympathico do filho do
bacharel, aureolado d’extranhos esplendores, e não sabia bem se tamanha
claridade partia d’elle ou se era apenas o reflexo cambiante d’uns astros
desconhecidos que illuminavam o céo de um mundo novo. Mas d’aquella
felicidade que a embriagava, guardava o segredo no coração; e era
apparentemente a mesma creatura alegre e descuidosa. Como quer porém que
elle, de desejoso, andasse evitando falar-lhe, Maria Luiza approximou-se
e disse-lhe:

—Olhe que um rapaz-velho é tão irrisorio como um velho-rapaz.

—Minha senhora! balbuciou Eduardo tomando o dito á conta d’uma pungente
zombaria.

—Ainda não dansou hoje, e como supponho que se esquiva á dansa para se
furtar ao desprazer de me aturar durante uma valsa, venho sacrifical-o
nas aras da minha ousadia, e convidal-o para meu... par.

Eduardo Valladares ia a responder, nem elle sabia o que, mas o preludio
d’uma valsa salvou-o d’uma conjunctura estremamente difficil.

Depois, o piano passou d’uma cadencia maviosa para uma vertigem febril, e
o mesmo aconteceu aos corações que, de tão juntos, pareciam permutar-se
as pulsações...

Meia hora volvida, Eduardo Valladares e Maria Luiza conversavam
debruçados á janella...



IX


Estamos, outra vez, no Bom Jesus do Monte.

O leitor conspira, porém, contra o poder de ubiquidade que o romancista
possue e deseja saber que maviosos dialogos suspiraram Eduardo Valladares
e Maria Luiza, ao clarão saudoso das estrellas. O que disseram não o
repetiram os échos da noite. Suppomos, todavia, que elle conservara
a mesma timidez e que ella não se apartou da alegre tranquillidade
que momentos antes revelava. Mas se assim foi, n’aquelle dialogar,
apparentemente frivolo, insensivelmente se iam alliando duas almas, a
julgar pela leitura das seguintes linhas.

Vamos encontrar Eduardo Valladares e Maria Luiza subindo ambos a alameda
sombria da Mãe d’Agua.

—Parece-me hoje mais triste que da primeira vez que estivemos aqui! disse
Maria Luiza.

—Creio que não tem v. ex.ᵃ razão para se admirar. É que hoje já vou
procurando recordações por entre estas sombras deliciosas.

—Recordações? Ah! recordações da visão mysteriosa que inspirou o seu
madrigal.

—Se fôra assim, a presença de v. ex.ᵃ dissiparia essas recordações, ousou
pronunciar Eduardo Valladares.

—Eu!

—V. ex.ᵃ mesma. Ha de perdoar-me, continuou elle com a voz extremamente
trémula, mas resolvi-me, ao cabo de muitas horas de hesitação, a usar
d’uma sinceridade que não pode e não deve melindrar v. ex.ᵃ. Que hei de
fazer eu senão pensar, meditar, eu que vivo aos dezeseis annos longe
da terra que me viu nascer, dos sitios que recordam as horas alegres
da minha infancia, dos meus amigos queridos, do conchego da familia,
das consolações de minha mãe, do braço protector de meu pae? Ah! se v.
ex.ᵃ comprehendesse como tudo isto é profundamente triste, e se depois
se lembrasse tambem de que venho acceitar um futuro que me offerece
a generosidade d’um parente, porque o trabalhar constante de meu pae
não basta para abrir á felicidade a porta da nossa casa, se v. ex.ᵃ
comprehendesse tudo isto, ouvir-me hia como se ouve um amigo que vem
entregar ao nosso coração o segredo das suas maguas.

—Jesus! Como me entristece!

—Ah! V. ex.ᵃ tem soffrido tambem, é verdade, porque conserva ainda na
alma os vestigios d’uma longa saudade. Hoje, que é domingo, o dia em que
v. ex.ᵃ costumava ir depôr um ramo de flores sobre o tumulo de sua irmã,
ouvir-me-ha, pois, como se eu lhe estivesse falando á beira d’esse tumulo
querido...

—Despedaça-me o coração... Tenha piedade.

—Supponha que o repellido da fortuna poz um dia os olhos n’uma esperança,
e que vêl-a tornada realidade seria o mesmo que subitamente enriquecer de
tudo o que lhe falta agora, de tudo o que deixa na alma d’elle um vácuo
tão profundo como sombrio. Supponha que o desventuroso peregrino pedia
gasalhado ao seu coração, e que via pendente dos labios de v. ex.ᵃ toda a
sua vida, toda a sua felicidade, todo o seu futuro... Mas...

—Fale, fale...

—Mas quem me diz, quem me prova que o coração de v. ex.ᵃ tem ainda a
liberdade de entregar-se? Quem me diz, quem me prova que v. ex.ᵃ não deu
já a outrem a felicidade que eu lhe estava pedindo? Mas quem me diz,
quem me prova que v. ex.ᵃ tem a abnegação de ligar o seu destino a um
destino incerto e sombrio como o que me espera talvez amanhã? Ah! não
fala, não responde... Que está lendo v. ex.ᵃ na veia d’agua, em que fixou
o seu olhar? Talvez esteja lendo o meu futuro, que é decerto o futuro de
todos os desgraçados... Nasce a agua entre estas sombras queridas que
pendem dos troncos seculares. O destino impelle-a para longe. Ella lá
vae, descendo de fonte em fonte, afastando-se cada vez mais do seu berço
querido, até que se some, ao sopé da montanha, nos abysmos da terra. Quer
v. ex.ᵃ que lhe desenhe melhor o quadro d’uma vida obscura e triste como
ha de ser a minha? Oh! diga, diga, que estava lendo o meu destino na
corrente d’esta floresta sagrada...

—Quer saber o que estava pensando? respondeu Maria Luiza no tom firme
d’uma resolução inabalavel. Não pensava no seu destino, pensava no meu.
Olhe como a agua corre livre vencendo o dique d’aquella folha verde que
encontrou no caminho. Pois bem. A agua da montanha é tão livre como eu.



X


Fez-se a luz.

Descerraram-se de par em par as portas d’esse olympo esplendido aonde só
podem subir duas almas identificadas n’uma unica aspiração.

Eduardo Valladares sentiu n’um momento dissiparem-se todas as dúvidas,
todos os receios, todas as angustias. Maria Luiza deixara-se fascinar
pelos clarões rutilantes d’esse mundo que entrevira em sonhos e, irmã da
mariposa, lançava-se á chamma sem curar de saber se encontraria a morte.
São realmente dignas de estudo naturezas como a sua.

Ha certas creaturas que entraram no mundo com o coração a trasbordar
d’alegria.

As scenas variegadas da vida absorvem-nas e enlevam-nas, como as
cambiantes d’um caleidoscopo enlevam e absorvem uma creança.

Tudo as namora, tudo as fascina. Seguem com estremecimentos de jubilo as
choreas caprichosas das borboletas e das aves; parecem querer luctar com
a perfidia da onda, quando estão á beira mar, e deixar-se-hiam morrer
se soubessem que a morte era... alegre. Mas—singular contradicção!—um
ligeiro incidente as commove; derrubae um ninho e vel-as-heis chorar.

São porém nevoas que se dissipam com um sôpro. A alegria impelle-as, e
ellas, as venturosas creaturas, deixam se deslizar suavemente por uma
estrada de rosas...

Um dia quer Deus que lhes embargue o passo o leito d’um moribundo,
permittam-me o exemplo. Admirae-as então. Sabeis o que são estremos de
dedicação inegualavel? Se não sabeis, vinde apprendel-os com ellas. De
tudo se esquecem, tudo alienam, a propria vida, a felicidade, a alegria
para se absorverem n’um unico pensamento e n’uma unica afflicção.

É por isso que fomos encontrar Maria Luiza á beira do leito da pobre irmã
como a mais solicita e dedicada enfermeira que jámais houve.

É por isso que pudemos vêl-a, a ella, a inquieta toutinegra, ajoelhada
sobre o tumulo querido, como o anjo da saudade, orvalhando-o de
abundantissimas lagrimas.

É por isso que a admiramos no momento de confiar o seu coração,
immaculado e puro, ao homem que revelava, nos éstos d’uma paixão
impetuosa, um coração egualmente puro e immaculado.

É por isso que teremos de contemplal-a...

Corre-nos obrigação de deixar a phrase incompleta. O romancista não pode
accelerar a marcha dos acontecimentos com uma especie de velocidade
electrica. Tem o dever de ser methodico e nós, que tentamos o primeiro
passo no caminho do romance, devemos respeitar as tradições até hoje
seguidas pelos fazedores de novellas veridicas e não veridicas.

O que devemos dizer é que Eduardo Valladares e Maria Luiza se carteavam
quasi diariamente.

As dulcissimas phrases que se mutuavam adivinha-as o leitor.

Os namorados—especialmente os namorados como Maria Luiza e Eduardo
Valladares—fazem lembrar aquelles celebres habitantes de que fala Camões:

    Contam certos auctores
    Que, junto da clara fonte
    Do Nilo, os moradores
    Vivem do cheiro das flores
    Que nascem n’aquelle monte.

De que vivem os namorados? Embriagam-se nos celestiaes aromas das
flores que desabrocham nos rosaes escondidos no coração. O que elles
sabem dizer é um como frémito de rosas baloiçadas por uma viração
suavissima;—linguagem quasi mysteriosa apenas entendida por duas almas.
Em que é que pensam? Em que é que sonham?

Pensam e sonham nas amenidades do seu vergel encantado, nas flores do seu
canteiro intimo, nas harmonias que uns desconhecidos rouxinoes gorgeiam
por entre os invisiveis rosaes.

«Tenho dó dos demonios; pois se elles não amam!» creio que escreveu
algures Santa Thereza, _toda delirante de ternura_, como notou o mais
vernaculo dos nossos escriptores contemporaneos.

Oh! espiritos beatificos, que nascestes fadados para os arroubos
asceticos, ó santos e santas da côrte celestial, até vós prelibastes as
doçuras que resumbram do favo do amor!

Quero lembrar-me tambem agora de que S. Francisco de Salles disse «que o
amor tem o primeiro logar entre as paixões da alma»; e não sei ao certo
quantos mais santos discretearam ácêrca do amor. Que admira, porém?
Não se resumia a doutrina e philosophia do vosso divino Mestre n’este
dulcissimo preceito: «Amae-vos uns aos outros»?



XI


—Nota que estamos a dezenove de setembro... disse João Nicolau de Brito,
n’esse mesmo dia, a sua mulher.

—Oh! homem! Felicidade como eu tive! Tu dispensas um repertorio! replicou
D. Maria d’Assumpção.

—Nota que estamos a dezenove de setembro. Isto quer dizer que faltam
poucos dias para chegar outubro.

—Ah! temos rabugice! Falas do Eduardo, pois não falas?

—Falo do Eduardo, sim, senhora, falo do Eduardo. Ando cá desconfiado...

—Desconfiado de que?

—De que pegou o namorico com a Maria Luiza.

—Deixal-o pegar.

—Ora que tu não has de querer nunca desviar as tempestades imminentes...

—Quaes tempestades imminentes? Deixa namorar o rapaz, que está no seu
tempo. Que queres tu que se faça?

—O peor é em se abrindo as aulas. Estou com receio de que gaste mais
tempo a lêr nos olhos da Machado do que nos livros.

—Deixa que lhe ha de chegar o tempo para tudo, se assim fôr. E depois
quem te disse que elles se namoram? Que provas tens? Sabemos apenas que
elle gosta d’ella; mais nada. O que é certo é que tudo isto tem sido uma
felicidade. Olha como o rapaz está acclimado, como parece outro, como
revê alegria!...

—Por isso mesmo... Dize cá. Tu sabes se elles conversaram no Bom Jesus
nos dois domingos que lá passámos?

—Eu sei lá isso! Tu não viste que não sahi de ao pé de ti?

—Pois domingo sou eu que quero ir ao Bom Jesus.

—Para que? Para os veres conversar? Olha que vale a pena, na verdade!

—Eu cá tenho tambem o meu systema...

Seja-nos licito saber o que estava fazendo Eduardo Valladares ao tempo em
que n’uma das salas contiguas ao seu quarto dialogavam d’esta maneira D.
Maria d’Assumpção e João Nicolau de Brito.

O que estaria fazendo? Escrevia. Transmittia ao papel as harmonias que
lhe resoavam na lyra do coração: escrevia a Maria Luiza. E tão ligeira
esvoaçava a penna sobre o papel, que, se o visseis, dirieis que eram
pensamentos sem nexo, caprichos e devaneios d’um espirito radioso o que
estava escrevendo:

«Vinde e subamos ao monte do Senhor», escreveu o propheta.

«E fomos, e subimos. Entrei na floresta sagrada e para logo senti
inebriar-se a minha alma n’uma vaga e dulcissima esperança. Fui subindo
e, á medida que subia, perpassavam no meu espirito as melodias que
parece sahirem d’entre o arvoredo sombrio. Tudo é doce, tudo é inefavel
na montanha do Senhor. Ha no interior d’aquella esplendida cathedral de
verdura um como longinquo e continuo suspirar d’um orgão vibrado por mãos
invisiveis.

«Para aquelle concerto perenne da floresta contribue tudo quanto se
esconde em tão deliciosas sombras: o arvoredo que murmura, as fontes que
suspiram, as aves que chilriam dialogos maviosos, e os corações que se
expandem na linguagem suavissima do amor...

«Foi na montanha do Senhor que as nossas almas se identificaram para
sempre n’uma unica existencia.

«Foi lá que tu recebeste no teu coração as queixas do romeiro e lh’as
devolveste em ridentissimas esperanças depois de purificadas no crisol
d’um amor celestial.

«E a tua voz sobrelevava todos os murmurios e todas as melodias da
floresta e soou aos meus ouvidos como um hymno cadenciado na harpa d’um
cherubim.

«E eu repeti as palavras que momentos antes se me tinham deparado na
legenda da _Esposa dos cantares_ e disse:

    A tua voz murmure a meus ouvidos[3]

e deliciei-me nas cadencias inimitaveis que a tua bôcca jorrava ao
murmurar: «A agua da montanha é tão livre como eu».

«É pois certo? A tua alma é tão livre como a onda prateada que desliza
por entre as verduras da serra e cae em chuva de perolas na amphora de
cada fonte? A tua alma é tão livre que possa juncar de flôres a estrada
dos meus dezeseis annos á semelhança da corrente da montanha que vae
orvalhando as boninas da encosta?

«Estavamos no _monte do Senhor_, na _santa Jerusalem_ e os teus labios
falaram a linguagem do teu coração... Os échos da montanha guardam o
segredo da nossa felicidade. Que as nossas esperanças todas se desatem em
florecimentos perpetuos como os da primavera que cada dia enche de vida
nova e nova opulencia a floresta sagrada.

       *       *       *       *       *



XII


Estava n’esse dia, como sempre, cheia de amenidade a alameda da Mãe
d’Agua.

—Que felicidade! dizia Eduardo Valladares apertando entre as suas as mãos
de Maria Luiza. Que felicidade! Abençoado o teu amor que me dá confôrto
e alento para ir procurar a realidade dos meus sonhos, dos nossos,
devia dizer, onde quer que ella esteja... E todavia eu d’antes era
triste, tão triste, que nem tu sabes! Meu pae, quando me surprehendia a
escrever, dizia para minha mãe:—Este rapaz ha de ser desgraçado! Por que?
perguntava ella com terna inquietação. Porque começa a sonhar muito cedo,
concluia meu pae. Oh! dize-me que era falsa esta prophecia. Por que não
havemos de ser felizes? Tu amas-me muito, pois não amas?

—Que transformação completa na minha vida, Eduardo! As minhas amigas
tinham-me á conta d’um coração que nasceu para ser livre como a aguia, e
só para isso. Eu, porém, consultando-me a mim mesma, conhecia-me muito
outra do que me suppunham. E não me enganei; bem sabes tu que me não
enganei. Havemos de ser felizes. Sabes o que é ter no Céo um anjo que
vela por nós a toda a hora? Lembra-te de minha irmã, que era um anjo,
e fortalece-te com essa esperança. Se porém o Céo da nossa felicidade
tem de se annuvear com tempestades invenciveis, se temos de separar-nos
um dia para tomar cada um por differente caminho, se tudo isto tem
d’acontecer, então que a alma de minha irmã me chame para o pé de si, que
eu prefiro morrer a vêr-me sem ti no mundo...

—Oh! Cala-te, cala-te, que me sinto morrer. Afasta da tua alma esses
presentimentos sombrios, que são meras visualidades. Não somos nós
felizes? Olhemos em redor de nós. Tudo placido e ameno como hontem e
como ámanhã. E, no meio d’esta tranquillidade do ermo, não hão de sonhar
as nossas almas em leito de rosas e esperanças? Para que havemos d’ir
procurar os espinhaes que nos não vedam o passo? Põe de parte esses
pavores imaginarios. Consulta antes a tua alma e pergunta-lhe se é tão
firme que sacrifique todo o futuro a um affecto, se é tão corajosa que
possa dizer ao desprotegido da fortuna: «Sei que és pobre, mas quero
soffrer metade das tuas amarguras.»

—Pois duvidas ainda! Pela alma de minha irmã te juro que o meu amor será
eterno. Por que é falares de pobreza? Acaso eu, egualmente desprotegida
da fortuna, podia levantar o meu espirito a desmedidas ambições? Que
importa o valor da riqueza, quando se trata do valor da felicidade?
Promette que não mais falarás d’um assumpto que magôa dolorosamente a
minha alma. É tamanha a nossa esperança que ella só nos deve absorver...

—Oh! perdôa-me...

De repente uma voz conhecida, denunciando sobresalto, viera interromper o
caloroso dialogo.

O leitor vae saber o que se passou.

João Nicolau de Brito, D. Maria d’Assumpção, e a viuva Machado ficaram-se
a conversar, sentados nos poucos degraus que dão entrada para a
hospedaria denominada hoje da Boa-Vista, com pessoas das suas relações
que tinham procurado as sombras da floresta do Bom Jesus para se furtarem
ás calmas de setembro.

O sogro do bacharel Valladares, quando julgou opportuno espionar o neto,
segredou á mulher:

—Viste para que lado fôram as Machados com o rapaz?

—Olha que está alli a mãe...

—Pergunto-te se viste para que lado fôram as filhas. Não tenho nada que
ver com a mãe.

—Fôram por ahi acima e acho que estarão na Mãe d’Agua.

João Nicolau de Brito levantou a voz e apostrophou:

—Ora fiquem em santa paz, que eu já estou aborrecido d’estar sentado
n’estes degraus. Vou por ahi acima espairecer um pouco.

Sentada nos degraus do chafariz, que fica ao centro do largo dos
Evangelistas, estava, absorta na leitura de não sei que romance, a
menina Rosa Machado. Como quer que levantasse casualmente os olhos de
cima do livro e reconhecesse ao fundo da avenida João Nicolau, correu
pressurosa a dar rebate aos enamorados interlocutores da Mãe d’Agua. O
que é certo é que quando João Nicolau chegou ao largo, depois de ter
trilhado vagarosamente a longa avenida que parte do templo, já as duas
irmãs Machados estavam sentadas nos degraus d’uma das capellas, e como
que ambas embevecidas na leitura do mesmo livro.



XIII


—Sósinhas? exclamou João Nicolau ao vêl-as, dando assim largas á sua
extrema admiração.

—Nunca estão sós duas irmãs, respondeu de golpe Maria Luiza.

—A ler, não é verdade?

—A matar o tempo.

—Que é do meu neto, que assim as deixa sem lhes fazer companhia?

—O seu neto continua a ser poeta. Desde que chegámos aqui, embrenhou-se
por essa alameda da Mãe d’Agua e lá está talvez devaneando a desafiar os
rouxinoes.

—Olhem que para boa lhe havia de dar!

—Tambem acho que sim!... replicou Maria Luiza.

—Se não era melhor estarmos aqui todos a conversar! accrescentou Rosa.

—É que estes poetas gostam d’andar a conversar comsigo mesmos. Toda a
minha vida ouvi dizer que se deve desconfiar de pessoas que falem sós.

—Os poetas não falam sós, tornou Maria Luiza. Não posso deixar de
censurar o procedimento de seu neto, sr. João Nicolau; mas quero levantar
a luva que lançou a quantos versejam n’este mundo de Christo. Os poetas
pensam como o sr. João Nicolau, como eu, como toda a gente. Se procuram,
ás vezes, a solidão, é de certo para que os rumores do mundo lhes não
interrompam os maviosos pensamentos.

—Ande lá, que não pode negar que é affeiçoada á poesia...

—Admiro-a, e mais a admiraria se pudesse comprehendel-a. Ora de poetas
que teem seu tanto de mysanthropos, como o sr. Eduardo, é que eu não
gosto. Quero a poesia que transige com os deveres sociaes. O Camões,
segundo dizem, emquanto a fortuna lhe luziu, usava de boa cortezia com as
damas da côrte.

—E de que valeu ao Camões ser poeta? interrogou João Nicolau apoiando-se
no braço de Maria Luiza e fazendo menção de voltar á hospedaria.

—Valeu muito, respondeu ella, tomando pela avenida, de braço dado com
João Nicolau. Valeu-lhe estarmos agora nós falando d’elle.

—Sempre é ligarmo-nos muita importancia, pois não acha?

—Tem razão. Eu devia ser menos vaidosa e mais verdadeira. Valeu-lhe
a admiração de todo o mundo, porque todo o mundo admira o genio
deslumbrante d’um homem que soube exaltar n’uma epopêa as glorias da
patria que o deixou morrer de miseria.

—Bravo, minha cara menina! Gostei d’ouvil-a!

—O sr. João Nicolau está gracejando. Mas a verdade é que o genio de
Camões conseguiu muito, na minha opinião. Deu a conhecer ao mundo
civilisado o quadro das velhas glorias portuguezas, para que ficasse
de pé a chronica nobilissima d’um povo quando as convulsões sociaes
subvertessem a nossa individualidade historica. Uma epopêa é muitas vezes
um epitaphio levantado sobre o tumulo d’uma nação que foi. Tenho ouvido
dizer que os poemas de Homero e Virgilio representam hoje a Grecia e
Roma. Quem sabe se os _Lusiadas_ serão a unica recordação que sobreviva
ás ruinas de Portugal?

—A modo que tem razão... Ora deixe-me ver se me lembro d’uns versos do
José Agostinho, que vinham agora a proposito. Olhe que o José Agostinho é
um poeta que me enche as medidas! Tem ouvido falar d’elle?

—Ah! bem sei. Do José Agostinho não gosto.

—Não gosta! Pois já leu?

—O José Agostinho não tem sentimento nem inspiração.

—Ora não diga isso!

—São opiniões. O certo é que meu pae tinha algumas obras do José
Agostinho e eu algumas folheei. Mas vamos aos versos, que os desejo ouvir
recitados pelo sr. João Nicolau.

—Deixe ver se me lembram. São do epicedio á morte do Bocage:

    Voando o tempo os seculos ajunta
    E co’as immensas incansaveis azas
    Cobre os vestigios da grandeza humana:
    Na Historia, os deixa só, e á vista os furta.
    De Esparta, a mãe d’heroes, mãe da virtude,
    Hoje occupa o logar mesquinha aldeia;
    De Epaminondas...

Ora deixe vêr como é o resto... Ah!

          ...d’Aristides pisam
    Incultos Scythas barbaros os lares...

O resto é que me não lembra.

—Ora ainda bem que o sr. João Nicolau não é tão inimigo da poesia como se
mostra!

Chegavam finalmente ao extremo da avenida. João Nicolau, logo que pôde,
chamou de parte a mulher e disse-lhe:

—A rapariga lá doutora é e sabe mais do que eu, mas por emquanto não
temos nada a recear...

—Eu bem t’o dizia, homem de Deus, respondeu D. Maria d’Assumpção.

—Sabes de quem devemos temer?

—De quem é?

—Das musas, mulher, das musas, que transtornam a cabeça ao rapaz!



XIV


João Nicolau de Brito assentou de si para si que não tinha ainda sido
traspassado pelas frechas cupidinias o coração do neto, e em confidencia
com a mulher lamentava que o cerebro d’um rapaz de dezeseis annos se
deixasse eivar de semelhante monomania poetica, como elle dizia.

D. Maria d’Assumpção escutava o marido com a maxima paciencia e, podemos
dizel-o tambem, com a maxima reserva.

—Lá que elle é um estudante distincto, isso é! exclamava João Nicolau,
frequentes vezes, depois de abertas as aulas do lyceu bracharense. Os
professores elogiam-n’o e dizem que o rapaz pode ser considerado, sem
favor, o melhor do curso. Mas a dizer-te a verdade, mulher, não me parece
que gaste muito tempo a estudar...

—Ora por que dizes tu isso? Quem sabe é porque estuda. Não t’o elogiaram
os mestres? Que mais queres? É preciso ter paciencia de santo para viver
comtigo!

—Não sabes por que razão digo isto? É por que o vejo ir todas as tardes
para Guadelupe. Provavelmente vae para lá falar só e fazer versos. Ora um
estudante não pode sahir todos os dias ou chova ou faça sol...

—Oh! homem, quem te diz que elle não vae para lá estudar?

—Qual estudar! Estudar o que? Em que livros? Só se fôr nas palmas das
mãos... Que lá do namôro com a Machado acho que não temos a recear...

—Pois ainda te não desenganaste!... O rapaz é um genio excentrico,
e genios assim não são muito para amores... Quem sabe lá! Deixal-o
versejar, que talvez chegue a ser como esse Castilho, de Lisboa, que,
apesar de ser cego, é um poeta de fama, segundo dizem.

—Qual poeta de fama! O meu poeta era o José Agostinho. Ainda não li nada
do Castilho, mas vou jurar que não chega aos calcanhares do frade.

—Pois não deves julgar de nada pelo que te parecer.

—Deixemo-nos de rhetoricas. Com versos não se ganha a vida. Padre é que
elle ha de ser. Disse e está dito. Lá como o tal estudantinho de Coimbra,
de que falava o Sebastião na carta, é que me não ha de fazer. Se gostar
da theologia, melhor para elle; se não gostar, que se aguente; e se
morrer, que o leve a breca; a gente não nasce para outra coisa.

—Estás hoje com instinctos sanguinarios. Olha que eu tenho medo de
mata-mouros, homem!

Chegou dezembro. Alvejavam, cobertos de neve, os cimos do Sameiro e da
Falpêrra. As férias do Natal chamavam os filhos ausentes ao lar paterno.
Eduardo Valladares veiu ao Porto consoar, e seis dias antes de terminarem
as férias, estava já em Braga. João Nicolau ficou sobremodo admirado; D.
Maria d’Assumpção comprehendeu tudo, mas conservou-se, como sempre, na
defensiva.

—Ó mulher! dizia João Nicolau na sinceridade da sua admiração. Pois elle
chegou aqui, da primeira vez, com cara de ter perdido na renda, a tal
ponto lhe entrou o mal das saudades, que foi preciso que lhe receitassem
passeios ao Bom Jesus. Chega o Natal, vae ao Porto e rebenta-nos á porta
seis dias antes de acabarem as férias! Eu declaro-te que não entendo nada
de tudo isto!

—Pois olha que tudo isto é claro como agua. É uma delicadeza do rapaz.
Não quiz dar-nos campo a suppormos que estava aborrecido de nós. Repartiu
as férias com os paes e comnosco. Quem fôsse menos desconfiado do que tu,
só tinha motivo para se lisonjear.

—Nada. Não vou para ahi, mulher. Rapazes não teem delicadezas com ninguem
e muito menos com parentes. Aqui anda mysterio.

—Mas tu bem vês que este rapaz não parece que o é. É preciso respeitar
as suas esquisitices, para que não diga que lhe vendemos muito caro o
beneficio que lhe estamos fazendo.

—Pois sim, sim. Mas olha que o rapazinho é finorio e sabe muito bem o que
faz.

—Por isso mesmo é que nos quiz captivar com esta delicadeza. E depois
pode ser que se lembrasse de que, vindo no ultimo dia de férias, talvez
tu dissesses que tinha voltado a cumprir os seus deveres por de todo em
todo não poder ficar no Porto...

—Lá isso é que pode ser...

—Isso é o que foi. O rapaz por emquanto porta-se dignamente e não
descubro coisa que nos faça arrepender de o termos chamado á nossa
companhia. É preciso não ser impertinente com gente nova, e sobretudo
impertinente sem motivo...

—Isto tambem já é velhice, mulher!



XV


Sebastião Valladares fez egualmente reparo na partida precipitada do
filho e consultou o coração da mulher, que por ser de mulher e de mãe
devia adivinhar e lançar luz sobre o que aos olhos do bacharel se
afigurava mysterio. D. Adozinda serenou o ánimo do marido com estas
placidas palavras:

—Desvarios nem o genio lh’os tolerava, nem os podia ter que lh’os não
soffria meu pae. Quando Deus quer, temos amores, e não vejo n’uns amores
dos dezeseis annos sombra de tempestade que possa inquietar-nos.

—Talvez seja isso, respondeu o bacharel. Olha que receio todavia por este
rapaz, cujo temperamento, por demasiadamente ardente e delicado, se me
afigura perigoso. O nosso filho tem grande inclinação á poesia e, como
se não bastasse versejar, dá indicios de vir a sentir como verdadeiro
poeta. Ha certas almas que, em vez de se repartirem pelo mundo exterior,
tiram de si mesmas, á semelhança do pelicano, a seiva com que alimentam a
propria vida. Ora o Eduardo, que me parece ter nascido fadado para eguaes
destinos, precisava de ter a seu lado um conselheiro mais eloquente e
menos severo que teu pae.

—Dizes bem.

—Até já me lembrei d’escrever ao Rodrigues, que é meu amigo desde a
emigração, e que tem coração e intelligencia de sobra para mentor d’um
espirito febricitante.

São precisas algumas palavras d’explicação. Sebastião Valladares, natural
de Vianna, havia completado o curso universitario quando, perseguido por
suas idéas politicas, teve d’emigrar em 1828. A esse tempo contava elle
vinte e cinco annos e tinha, sacrificado o coração, nas aras do amor, á
senhora que, annos depois, desposara. João Nicolau de Brito possuia uma
quinta, sombreada de copado arvoredo, á ourella do rio Lima; foi ahi que
o bacharel Valladares vira, em dezembro de 1827, a formosissima dama
bracharense, e foi d’ahi que se amaram.

Compellido a emigrar, Sebastião Valladares vizinhou em Rennes de Almeida
Garrett e de Manuel Rodrigues da Silva e Abreu. Ahi, nas angustias do
destêrro, se estreitaram os laços que os deviam prender toda a vida. Em
1832 voltaram á patria os saudosos emigrados: Manuel Rodrigues da Silva
e Abreu era nomeado official do governo civil de Braga; Almeida Garrett
voltava á politica e á litteratura; e Sebastião Valladares casava e abria
banca d’advogado no Porto.

João Nicolau era affeiçoado á causa absolutista e n’isto vae a razão
da sua entranhada sympathia por José Agostinho de Macedo. Aos ouvidos
do proprietario bracharense soavam continuamente aquelles dois
enthusiasticos versos da _Viagem extactica_:

    No meio do clarão veio no throno
    Cercado d’esplendor Miguel Primeiro.

João Nicolau apenas consentiu no casamento quando as instancias da
esposa, estremosa pela filha, e o caracter decisivo da lucta civil não
lhe permittiram resistir por mais tempo. Quando porém admittiu á sua
presença o bacharel, disse-lhe de sobr’ôlho carregado:

—Pode levar minha filha, se a quizer sem dote. Não sou rico e os meus
padecimentos obrigam-me a despesas constantes; não posso desviar o que
tenho. Em eu morrendo, e minha mulher tambem, levem tudo, que tudo lhes
pertencerá então.

Com o decorrer do tempo foi-se diminuindo a distancia respeitosa
que separava sogro e genro, a ponto de João Nicolau tomar sob sua
responsabilidade a educação do neto.

Postas estas explicações, voltemos ao anno de 1851 em que se passa este
caso que vimos historiando.

Sebastião Valladares conservava com os seus dois amigos e
correligionarios os estreitos laços d’amizade vinculados ao coração nas
horas melancholicas do exilio. Almeida Garrett escrevia-lhe frequentes
vezes. O bacharel, quando abria as cartas assignadas por _João Baptista_,
costumava dizer:

—Os amigos que se adquirem na desgraça são os verdadeiros.

Manuel Rodrigues da Silva e Abreu estava a esse tempo exercendo o cargo
de primeiro bibliothecario da Bibliotheca de Braga[4]. Dos tres amigos
era o bacharel Valladares o menos favorecido da fortuna, mas não era
o menos venturoso. Recusou sempre a protecção que os seus amigos lhe
offereciam, nomeadamente Almeida Garrett. Costumava dizer o bacharel:

—Trabalho todo o dia para viver, mas adormeço á noite tranquillo, e vivo
escondido do mundo. O Garrett, tanto o Garrett politico como o Garrett
litterato, tem soffrido que farte. Não lhe invejo a sorte.

Tres annos depois, em 1854, expirava o reformador da litteratura
portugueza; e só então, cerrado o tumulo, principiava a ser julgado como
devia, no tribunal da posteridade, o que tanto merecera da patria e
tamanhas injustiças colhêra na sua esplendida carreira.



XVI


O bacharel Valladares escreveu a Manuel Rodrigues da Silva e Abreu
solicitando a graça de allumiar com bom conselho a estrada em que o
inexperiente estudante arriscava os primeiros passos da sua mocidade.

O bibliothecario de Braga, coração sem mancha e intelligencia
distinctissima, acolheu o moço com a amenidade de tracto que lhe era
peculiar. Eduardo Valladares, terminadas as aulas, subia ordinariamente
á bibliotheca onde o velho amigo de seu pae estava labutando em azafama
continua, e sobremodo se deliciava á sombra d’aquella arvore vetusta meio
tombada para o chão.

O auctor d’este livro reiteradas vezes teve a felicidade de, na sala
da bibliotheca bracharense, ouvir a palavra sempre fluente e amena
de Rodrigues Abreu. Infundia respeito ver levantar-se aquelle busto
venerando, coberto de cans, d’entre montões de livros a que elle chamava
_a sua familia_. Uma vez bibliothecario, empenhou-se afanosamente
pela causa da bibliotheca. Não se cansou de pedir os indispensaveis
melhoramentos materiaes, dos quaes o primeiro era inquestionavelmente
maior espaço para a conveniente arrumação de preciosos livros que jaziam
a monte. A sua voz clamou no deserto e nem a palavra auctorisada de tão
respeitavel varão nem repetidos artigos da _Revista Universal Lisbonense_
lograram obter despacho favoravel.

Como se este constante e baldado empenho não fôsse canseira de sobra,
Rodrigues d’Abreu entregava-se a trabalhos de bibliotheconomia e chegou
a publicar sobre este assumpto um opusculo que denominou _Novidades
bibliotheconomicas_.

Para daguerreotyparmos o homem, que já hoje é da historia, aproveitemos
os traços caracteristicos que nos offerece o sr. Soares Romeu Junior:
«... Era alto de estatura, rosto claro e comprido, nariz proeminente,
olhos escuros e a fronte espaçosa, coroada de alvissimas cans.»

Do escriptor diremos apenas que trasladou o _Eliezer_, de Florian, a
versos portuguezes, dos quaes o leitor pode avaliar o sabido quilate pela
apreciação que de tão notavel obra fez no _Panorama_[5] o sr. Alexandre
Herculano.

Consagradas estas poucas linhas á memoria de Rodrigues d’Abreu,
prosigamos em a nossa narrativa.

Eduardo Valladares refez o seu espirito, nas horas feriadas de canseiras
amorosas, em proficua leitura que lhe ministrava Rodrigues d’Abreu.
Se levantava os olhos dos livros era para os fitar na imagem radiosa
que lhe flammejava auroras no coração; e como quer que os livros
substanciosamente doutrinarios tenham o seu tanto de agri-doces, Eduardo
repousava da leitura nas amenidades do amor.

O bibliothecario bracharense, quando escrevia ao bacharel Valladares,
costumava dizer-lhe: «O teu filho é uma perola, mas receio pela
felicidade d’um espirito que, em tão verdes annos, tamanhos merecimentos
revela. Já que me arvoraste em medico espiritual, direi que o seu
temperamento requer brandura.»

No fim do anno lectivo de 1851 a 1852, Rodrigues d’Abreu abraçou jubiloso
o estudante que sahia premiado das aulas preparatorias.

Decorrido tempo, no fim de setembro de 1852, Eduardo Valladares subiu á
sala da bibliotheca evidentemente sombrio, a ponto de inspirar sobresalto
ao seu velho e dedicado amigo.

—Recebi ordem terminante de meu avô para me ir matricular no Seminario,
e o meu coração não pode resistir ao supplicio que esta resolução lhe
impõe, disse com accento melancholico Eduardo Valladares.

Na casa da rua do Carvalhal ouvia-se a esse tempo a voz atroadora de João
Nicolau clamando:

—Amanhã vae o rapaz matricular-se no Seminario. Lá o Rubicon do lyceu,
vencido está. Agora vamos a vêr como se sae da theologia, que sempre é
coisa mais séria...

—É pois chegada a occasião de reflectires maduramente, respondia D. Maria
d’Assumpção. D’esta decisão depende o futuro de teu neto, e não deves ser
precipitado. É conveniente pensar.

—Já pensei e tornei a pensar. Está dito, está dito. Vae matricular-se no
Seminario.

—Sondaste lhe porventura a vocação? Quem sabe se lhe repugnará o futuro
que tu despoticamente lhe preparas, homem?

—Despoticamente! Essa agora é muito boa! Pois é despota quem faz um
beneficio?

—Não digas beneficio. De quem ha de vir a ser tudo o que nós temos, pouco
ou muito, senão d’elle ou dos paes?

—Quem sabe o que Deus fará, mulher? O que é que nós temos? Algumas
propriedades em Braga e uma quinta em Vianna! Olha a riqueza! E se vier
uma doença prolongada não havemos de gastar quanto fôr preciso? Lá do
Sebastião tenho pena, por que não é mau rapaz, á parte o ter desembarcado
em 32 com não sei quantos outros _mindelleiros_ que vinham estropeados a
ponto de mal poderem com a arma ás costas! Por isso é que mandei vir o
rapazinho, e já que o pae m’o confiou posso pôr e dispôr á minha vontade.

—Reflexiona, homem de Deus, reflexiona.

—Mas que destino queres tu que se dê ao rapaz? Pensas que temos dinheiro
para o mandar a Coimbra? Olha que um patrimonio fica em conta, mas
uma formatura compra-se a peso d’ouro. E demais a mais fica-nos aqui
debaixo da vista, e pouco será o que houvermos de gastar em livros. Está
decidido. Amanhã vae matricular-se no Seminario.



XVII


Estamos em novembro de 1852.

Na alameda da Mãe d’Agua respira-se no ar balsamico a suavidade d’uma
primavera perpétua.

Após dias de cerrada invernia, mostra se no formoso céo do norte este sol
esplendido de Portugal, que é a delicia de nacionaes e extrangeiros.

Esperava-se por um dia alegre e sereno para remoçar o espirito, cansado
da monotonia da chuva.

D. Maria d’Assumpção tinha falado n’um passeio ao Bom Jesus logo
que o tempo estiasse; as meninas Machados receberam, por escripto,
participação do alvitre e applaudiram-n’o sobremodo.

Lampejaram n’um domingo clarões de formosissima aurora; deu-se rebate e
preparou-se alegremente o rancho.

João Nicolau subiu a montanha abordoado á sua bengala de canna da India,
galhofando com ares de sincero e expansivo contentamento. Eduardo
Valladares parecia, ao contrário de todos, entre concentrado e triste. O
avô olhava para elle de soslaio e dizia de si para si:—«Lá vae o rapaz
com a maldita poesia!»

D. Maria d’Assumpção, que de sobra conhecia as angustias do neto, pensava
compadecida:—«Pobre martyr!»

Maria Luiza reprimia no coração dolorosas tempestades, e desabrochava nos
labios um sorriso que daria fel bastante para muitas lagrimas.

Cêrca do meio dia, Eduardo Vallares e Maria Luiza puderam encontrar-se na
Mãe d’Agua.

Foi dolorosamente triste o mudo dialogo d’uns olhos que, n’um momento de
silencio, resumiram as mais pungentes expansões.

Olharam-se, e não puderam articular uma unica palavra. Decorreram alguns
momentos que valiam seculos d’angustia. O filho do bacharel Valladares
pôde alfim dominar a commoção que lhe estrangulava a voz na garganta.

—Esperava por este momento anciosamente, disse elle. Escrevi-te, procurei
no écho da tua alma um allivio para os meus infortunios, mas escrever-te
não bastava. Era preciso ver-te, ouvir-te, escutar-te. Ha dois mezes
que eu abafo no coração a procella do desespêro. Oh! Dá-me um raio
d’esperança para eu não morrer, dize-me ao menos que me amas para que
eu tire das tuas palavras a coragem que me falta. Ha dois mezes que eu
esperava a hora de poder escutar a tua voz como a alma condemnada aos
tormentos do purgatorio deve esperar o momento de subir, expurgada das
suas culpas, á bem-aventurança do Céo. Oh! isto é horrivel, meu Deus!

A pobre menina tremia agitada pela convulsão dos nervos, e sentia
fugir-lhe a voz e a vista.

—Dilacera-me o remorso, continuou elle com violenta commoção—dilacera-me
o remorso de ter acorrentado a tua alma angelica ao poste da minha
desgraça. Sacrifiquei a tua alegria, a tua tranquillidade, o teu futuro,
a tua vida ao egoismo do meu coração. Amar-te não bastava? Quiz tambem
ser amado, e despenhei-te, anjo innocente, das paragens remançosas onde
te libravas descuidosa e tranquilla. Quiz tambem ser amado e impuz á tua
alma o sacrificio de exgottar o calix da amargura ao tempo que o teu
amor dulcificava os filtros celestiaes que me embriagavam. Perdôa-me,
oh! perdôa-me, por que o meu amor era immenso, indomavel, e eu preferia
morrer, a ver desfeita a minha esperança, a ver desabar o meu sonhado
paraiso...

—Se te perdôo! murmurou maviosamente Maria Luiza. Perdôa-me tu, que é por
mim que tu soffres...

—Ah! interrompera a elle de golpe. Pois é certo que me perdôas? Que
importa então que imponham á minha alma um futuro que ella não pode
acceitar! O escravo, o humilde, o servo de gleba ha de erguer-se soberbo
da riqueza da sua alma, e repellir a mão que ao mesmo tempo empresta
um futuro que nos repugna e exige como hypotheca a felicidade de duas
existencias consubstanciadas n’uma unica. Irei trabalhar para onde a
sorte me levar; procurarei em toda a parte o que me vendiam aqui a trôco
de lagrimas, mas terei no meu coração a dulcissima alegria da esperança,
da esperança que me queriam roubar para me garantirem a felicidade
material da vida, como se a vida sem a esperança não fôsse uma ironia
cruel e deshumana! Irei, é preciso fugir...

—Fugir! fugir! Dize antes que me queres roubar a consolação de
compartilhar as tuas angustias. Fugir e deixar-me sósinha, entregue á
minha saudade, á minha desventura, ao meu desespêro! Dize antes...

—Cala-te, por alma do anjo que morreu beijando-te, cala-te. Peço-t’o eu.

—Fugir! E querias assim despedaçar as ternas cadeias que nos prendem um
ao outro, só para alimentares no coração a esperança de reatal-as um dia?

—Perdôa-me, que eu fui cruel, porque me enlouqueceu a dôr. Não te ver,
não te ouvir! E poderia eu viver? Iria morrer longe de ti, anjo do meu
coração, sem ouvir na hora derradeira, á beira do meu leito, o murmurio
das tuas orações...

—E depois, com que profundissimas dôres não irias despedaçar o coração
estremoso de tua mãe! com que maldito tormento não irias infernar a
velhice de teu pae e levar a desgraça á serenidade alegre da tua casa!

—Comprehendo a nobreza da tua alma, anjo. Agradeço-te por mim, por minha
mãe, por meu pae, por Deus. Ficarei. Acceitarei resignado o sacrificio
que me impõem e appellarei para a Providencia, que vela por todos os
desgraçados. Juro-te que serei submisso.

—Obrigada. Pertence-me metade das tuas afflições e como poderia eu luctar
com o destino se me faltasses tu a dar-me alento nas horas attribuladas
da nossa commum desventura?

—E has de soffrer tu, santa do martyrio, que merecias a felicidade na
terra? E hei de eu ser teu algoz, eu, que te amo até á loucura? E hei
de eu ser teu algoz e sacrificar a tua alma immaculada, exigindo que
soffras, que chores, que morras na lenta agonia dos desgraçados, só por
que eu tambem agoniso, e choro e soffro? E não ha de Deus escutar-nos e
não ha de o céo condoer-se das nossas afflicções! Oh! sinto na minha alma
a labareda maldita do inferno!...



XVIII


Não tinham decerto escutado ainda mais doloroso idyllio as arvores
sombrias da _Mãe d’Agua_.

Eduardo Valladares esperava com febril anciedade, como dissera, aquelle
momento que se lhe afigurava decisivo. Durante dois mezes, apenas pudera
entregar ao papel as pungentes confidencias da sua alma.

Quando, nos ultimos dias de setembro, João Nicolau de Brito o chamou á
puridade para ordenar-lhe, severo e inexoravel, que immediamente fôsse
abrir matricula no Seminario, escutou o submissamente, abafando no
coração a tempestade revôlta que, n’aquelle momento, fibra a fibra lh’o
estava despedaçando.

Sahiu da sala para correr á Bibliotheca, onde lhe ouvimos o brando
queixume que o coração amigo de Rodrigues d’Abreu recolhera compadecido.

João Nicolau, matriculado Eduardo no primeiro anno do curso de theologia,
jubilava com o bom rumo que os seus planos tomavam hora a hora.

Esperava talvez resistencia da parte do neto e cabalmente se enganou.
Todos os dias o observava com olhos perscrutadores; via-o triste e
sombrio, mas não extranhava.

Não era elle de natural melancholico?

Estas investigações quotidianas levaram-n’o a modificar as suas
conjecturas. «O rapaz, dizia de si para si, acceita com boa disposição
a vida ecclesiastica, esperançado talvez em alliar a poesia com o
sacerdocio. E d’ahi quem sabe? Pode ser um vulto distincto em eloquencia
sagrada.»

E, uma vez possuido d’esta idéa, empenhava-se pelo destino do neto, no
intuito de o ver ainda prégador da Real Capella, no que n’esse tempo
consistia e ainda hoje consiste a maxima distincção com que podem ser
galardoados os oradores sagrados portuguezes.

Já é incentivo!

João Nicolau não curava de razoar sobre a mesquinhez ou exorbitancia do
galardão, nem cuidava de tirar a limpo que proventos e honras importava.
N’isto se assemelhava com os mil e um pretendentes que sollicitam mercês
honrosas actualmente; querem a venera seja qual fôr e custe o que custar.
Com João Nicolau acontecia exactamente o mesmo. Firme no seu designio,
declarou solemnemente á mulher e ao neto a suspensão temporaria de
visitas com o proposito de não distrahir o espirito do futuro prégador da
Real Capella. Queria-lhe parecer que esta medida de segurança attingia
dois fins egualmente appeteciveis:

_Primo_: Concentrar a attenção do novel seminarista nas materias
theologicas.

_Secundo_: Afastar cuidadosamente as distracções mundanas, que não só
prejudicariam a regularidade do estudo mas até insinuariam na alma do
neto philtros que não devem perturbar o espirito d’um sacerdote.

D. Maria d’Assumpção andava sobremodo condoída das angustias do pobre
Eduardo. Vira nascer a chamma do amor e confiava na brevidade com que
usam levantar-se e morrer labaredas em corações que desabrocham.

Era este o segredo da sua medicina. O amor passageiro dos dezeseis annos
esperava ella que fôsse antidoto efficaz ás asperezas d’uma vida nova, e
sobremodo aborrecida, em que o neto ia entrar.

O que porém não pensou aquella boa alma foi que poderia tornar-se
incendio o que se lhe afigurava chamma e que o coração dos dezeseis
annos, como o coração de todas as edades, tanto procura o sol para
aquecer-se n’uma hora de desconfôrto como para inflammar-se n’um momento
de febril anciedade.

Em Eduardo Valladares o amor não era devaneio; era a paixão intensa, a
paixão que perde ou que salva.

Estão-me agora cahindo dos bicos da penna uns certos dizeres de D.
Francisco Manuel, que veem de geito: «Persuado-me que esta cousa a que
o mundo chama amor, não é só uma cousa, porém muitas com um proprio
nome. Poderá bem ser, que por isto os antigos fingissem haver tantos
amores no mundo, a que davam diversos nascimentos; e tambem pode ser
venha d’aqui, que ao amor chamamos amores: pois se elle fôra um só,
grande impropriedade fôra esta. Eu considero dois amores entre a gente.
O primeiro é aquelle commum affecto com que, sem mais causa que sua
propria violencia, nos movemos a amar, não sabendo o que, nem por que
amamos. O segundo é aquelle, com que proseguimos em amar o que tratamos,
e conhecemos.»

Eduardo Valladares amava Maria Luiza antes de a vêr. Em horas de
dulcissimos arroubos creara a sua phantasia uma visão aerea, formada
de perfumes e de estrellas, meio anjo meio mulher, meio do céo meio da
terra... Este era o primeiro amor de que fala D. Francisco Manuel, o
amor do ignoto e do intangivel. Depois, um dia, por acaso, encontrara
a consubstanciação de todas essas particulas aereas, deixem-me assim
dizer, encontrára na terra a realidade dos seus sonhos queridos e
absorvera n’aquelle sentimento impetuoso toda a vida de que uma
organisação extremamente delicada pode dispor.

Para aquella alma ardente e sonhadora o amor não podia ter a serenidade
das estrellas n’uma noite d’estio: devia de ser violento como as
convulsões do vulcão que levanta ao céo as lavas encandescentes.

D. Maria d’Assumpção enganava-se pois, como todas as almas que nasceram,
dedicadas e boas, para o remanso dos affectos vulgares.

Rodrigues d’Abreu, coração aquecido ao fogo da poesia posto que duramente
provado pelas amarguras do mundo real, Rodrigues d’Abreu é que se não
enganava assim, nem se deixava cegar pela tranquillidade apparente do
filho do bacharel.

O bibliothecario de Braga, que tinha tanto de poeta como de christão,
andava sobremodo inquieto com os soffrimentos d’aquella alma cujos
soffrimentos devassava. Lembrou-se de escrever a Sebastião Valladares com
a rude franqueza de homens que choraram juntos as lagrimas do exilio.
Escrever-lhe seria, porém, mostrar ao pae a profundidade do abysmo
em que se debatia a alma do filho. Este alvitre rejeitou-o o honrado
bibliothecario por demasiadamente impiedoso e cruel.

Rodrigues d’Abreu bem comprehendera que Eduardo Valladares amava, e sabia
que era coagido a seguir a carreira ecclesiastica. Não bastava todavia
comprehender e saber isto; era preciso mais.

Era preciso ao medico espiritual ouvir a exposição circumstanciada do
doente. Receava porém provocar as labaredas do incendio latente, e este
receio acobardava-o. Mas como deixaria consumir-se lentamente aquella
alma cuja pureza aquilatara tantas vezes, elle, que era bom, dedicado e
nobre? O velho bibliothecario, n’essas horas de attribulada incerteza,
pedia ao Céo a luz da inspiração.



XIX


Rodrigues d’Abreu costumava abraçar-se, quando a sua alma carecia de
confôrto, ao esteio d’um coração amigo, que era urna de balsamos para
todas as afflicções.

Frei Domingos do Amor-Divino, o conselheiro, o arrimo, o cyreneu do
bibliothecario bracharense, tinha purificado o seu coração nas asperezas
da disciplina conventual, nas tribulações da miseria e nas lagrimas
choradas na solidão, deante d’um crucifixo.

Carmelita descalço, foi sempre modêlo e exemplo nos cargos que teve de
exercer em hospicios differentes por decisão do definitorio geral da sua
ordem.

Na rigorosa observancia do regimen monastico e na prática constante da
virtude lentamente se mundificara a alma do religioso carmelita, já de
natural propensa ao bem.

O convento foi-lhe sempre chrysol desde que solemnemente professou no
convento de Nossa Senhora dos Remedios, em Lisboa, até que, silencioso
e compungido, sahira com o resto da communidade do convento do Carmo de
Braga, dizendo para sempre adeus á casa que lhe devia ser tumulo.

Nunca Frei Domingos do Amor-Divino se entrincheirou com as reixas do
mosteiro para, a coberto de perseguições, accender odios partidarios
e soprar injurias a qualquer das duas facções que por longo tempo se
degladiaram em accêsa lucta civil.

Não lhe ouviram nunca razoamento, nem sequer monosyllabo, que denunciasse
o rumo das suas inclinações politicas.

Quando chegava ás cellas do convento um echo das tempestades exteriores,
costumava dizer Frei Domingos do Amor-Divino:

—Não curemos de profundar essas negruras. A porta que se fechou sobre
nós é uma como barreira que nos separa das desgraças que pesam sobre
Portugal. Que o espirito do Senhor desça sobre nós e seja comnosco,
irmãos.

Retumbou finalmente aos ouvidos do carmelita um como trovão que parecia
abalar os alicerces do convento: era a voz de debandada que se repercutia
ao mesmo tempo no seio de todos as ordens religiosas de Portugal. Frei
Domingos do Amor-Divino cruzou com os seus confrades um olhar afogado em
lagrimas e desceu á claustra para se despedir da lage sob a qual esperava
dormir o somno eterno. N’esse momento, voltavam umas andorinhas que
tinham fabricado o ninho no friso da crasta.

Foi dilacerante aquelle lance. As andorinhas, ficavam e a communidade...
sahia.

Frei Domingos do Amor-Divino foi um dos religiosos portuguezes que
emmudeceram na sua dôr, e procuraram na solidão o refugio que não podiam
encontrar em qualquer outra parte.

Dissolvida a grande familia monastica portugueza e serenadas as tormentas
politicas que mergulharam em rios de sangue as decantadas boninas das
varzeas de Portugal, Frei Domingos do Amor-Divino assentou residencia em
Braga.

—Quero vêr a toda a hora o ninho das andorinhas, dizia elle referindo-se
ao convento do Carmo. Ali lhes escutei o alegre chilrear e alli esperava
morrer com ellas. O meu coração precisa d’este consôlo.

Sua grande affeição á casa onde tinha vivido, esquecido do mundo, levou
o a escolher cubiculo d’onde ao menos pudesse espreitar as torres do
seu convento. Recolheu se Frei Domingos a uma pobre mansarda da rua do
Carvalhal e ahi viveu a vida angustiada da miseria e da solidão. Muitas
pessoas, que ajoelharam a seus pés com o coração requeimado, levantaram
se do confessionario com os olhos marejados de lagrimas.

Isto diz-se para até certo ponto se explicar o respeito com que os
vizinhos o olhavam e cumprimentavam quando sahia e entrava.

João Nicolau, se acertava vêl-o, dizia ordinariamente:

—Ó mulher, estes pobresinhos dos frades, sem casa e sem pão, fazem
realmente despedaçar a alma a quem os vê. E olha como o nosso vizinho
vive resignado, que até se lhe rie o semblante! Deus perdôe a quem...

E deixava quasi sempre a phrase incompleta para não evocar recordações
pungentes que tinha recalcadas no coração.

Um dia uma viuva desvalida, mãe de quatro filhos, ajoelhou supplicante
aos pés de Frei Domingos.

O virtuoso carmelita levantou-a compassivo e disse-lhe:

—Se na minha mão estivesse remediar a vossa miseria, remediada estava.
Não desanimemos porém. «Pedi e dar-se-vos-ha, buscae e achareis, batei
e abrir-se-vos-ha» disse o Divino Mestre no sermão da Montanha. Sigamos
pois o conselho de quem nol-o podia dar.

E foi-se de porta em porta, seguido da viuva e das creancinhas, esmolando
para a mãe e para os filhos.

Rodrigues d’Abreu foi um dos não muitos corações que se enterneceram a
lagrimas deante d’aquelle edificante e extranho espectaculo. Desde então
nunca na alma do bibliothecario bracharense passava uma dôr intima, que
elle não fôsse desafogal-a no coração de Frei Domingos do Amor-Divino.

A sorte desventurosa do filho do bacharel Valladares trazia trabalhado
de crueis angustias o espirito do bibliothecario bracharense. Foi pois
n’umas das horas de doloroso cogitar a tal respeito, que na alma de
Rodrigues d’Abreu passou um lampejo d’esperança, ao lembrar-se do muito
que podia fazer, em tão apertado caso, Frei Domingos do Amor-Divino.

Não hesitou um momento. Tinha pedido ao Céo a luz da inspiração e á conta
d’inspiração celeste tomara elle o pensamento que o impellia para o
religioso carmelita.

Foi procural-o, falou-lhe, desdobrou-lhe o quadro das afflicções que eram
d’outrem e que sentia como suas. Frei Domingos attendeu-o e escutou-o
humilde e compassivo, respondendo finalmente:

—É grave e trabalhoso demover o proposito d’um ánimo resoluto. Operemos e
esperemos todavia. _Deus autem noster in cælo; omnia quæ cumque voluit,
fecit._[6]

Depois que Rodrigues d’Abreu sahiu do cubiculo da rua do Carvalhal, Frei
Domingos do Amor-Divino ajoelhou-se deante do seu crucifixo invocando as
graças do Céo. Durante a oração illuminou-se-lhe o espirito, e quando
o carmelita se levantou, tinha já traçado o plano da obra espinhosa
que tomara sobre si, esperançado no auxilio divino, como revelam estas
palavras que murmurara ao oscular o crucifixo:

—_In tribulatione mea invocavi Dominum, et ad Deum meum clamavi._[7]

Depois desceu as escadas com extranhavel vigor, atravessou a rua e
aldravou á porta de João Nicolau de Brito.



XX


Eduardo Valladares e Maria Luiza, na impossibilidade de fallar-se,
viam-se apenas. Triste correspondencia era essa escripta com lagrimas
de dois corações que se deviam estar inflorando, n’aquella sazão, em
jubilosas primaveras. Não acontecia assim, porém.

As cartas de Maria Luiza principiavam por palavras de resignação e
fechavam com outras d’esperança; as de Eduardo Valladares tinham longo
prefacio de desalentos e terminavam com assomos de mal contido desespêro.

Demoremo-nos um momento a medir a profundeza de dois abysmos.

Maria Luiza, alma que se desatara em perfumes e amores ao sôpro virginal
do primeiro affecto, conhecia de sobra os despenhadeiros que lhe estava
cavando um amor desventuroso, e resignadamente se deixaria despenhar
só para não arrastar na queda outra alma que vivia sob o influxo d’uma
estrella commum.

Por isso, com o coração despedaçado, aconselhava a medicina da resignação
e deixava entrever diluculos d’esperança através de uma chuva de lagrimas
que não podia reprimir.

Os vestigios das lagrimas choradas desvelariam a um espirito
desassombrado o segredo que o coração de Maria Luiza com tamanho empenho
recatava; bastariam para eloquentemente denunciar os soffrimentos crueis
que ella procurava dissimular trocando em flores o orvalho dos seus olhos.

Eduardo Valladares, moralmente sobreexcitado, lia as cartas e, diga-se
a verdade, encontrava n’ellas um como refrigerio ministrado por mão do
anjo da guarda; por momentos se tranquillisava com as esperanças a que o
estava convidando o ánimo apparentemente tranquillo de Maria Luiza.

Durava apenas momentos, como dissemos, a acção benefica da leitura. Após
aquelle instantaneo repouso, rugiam de novo as mesmas tempestades e era
então o revolver se no mesmo leito de Procusto, em desesperadora ancia.
O que elle claramente via n’esses angustiosos momentos era o infernal
dilemna que comprimia a sua vida entre dois estiletes rubros de fogo
maldito:—Succumbir ou rebellar se.

Succumbir era amortalhar se na batina do sacerdote; dilacerar o coração,
dia a dia, hora a hora; despenhar em abysmo insondavel as mais formosas
visões do céo da sua mocidade; separar-se d’ella, da mulher adorada, para
nunca mais aspirar o perfume dos seus labios, e não só separar-se mas
tambem infelicital-a; e depois passar sereno e tranquillo, aconselhando
esperança, por entre os que se ajoelhassem para beijar-lhe a fimbria da
batina. Rebellar-se era ter de fugir, levando para toda a parte o remorso
de haver envenenado a tranquillidade do lar paterno; era ter de abandonar
o anjo que na linguagem dulcissima do Céo lhe pedia que ficasse; era
dar á sociedade o direito de insultar as suas dores mais santas; era
finalmente faltar á promessa, que fizera, de esperar resignado o momento
em que chovesse do Céo o refrigerio que só o Céo podia ministrar em tão
difficil conjunctura.

Ficou pois; como havia promettido.

Approximam-se as férias do Natal de 1852 e Eduardo Valladares denunciou
vontade de não vir ao Porto, pretextando trabalhos escholares,
especialmente o de redigir duas dissertações.

É que se não via com a coragem precisa para abeirar-se de sua mãe sem
revelar os segredos que lhe corroíam o coração, sem lhe dizer que tudo
quanto parecia sujeição voluntaria era sacrificio de victima impotente,
e sem lhe attribular para sempre as horas que á boa senhora corriam
remançosas ao lado do marido.

Em meado de dezembro, n’uma quinta-feira que amanhecia radiosa como
para descoalhar as neves que alvejavam nas agulhas das serranias,
especialmente no Gerez, Eduardo Valladares deixou-se ir, de rua em rua,
absorto nos pensamentos que lhe preoccupavam o espirito.

Ao desemboccar no Campo de Sant’anna, sahiu-lhe ao encontro um
seminarista seu condiscipulo, um tal Mendonça, natural de Guimarães,
talento contubernal de homens devassos nos alcouces bracharenses, brigão
de emboscadas nocturnas, que seguia a carreira ecclesiastica para
acobertar com a batina as ulceras d’uma alma devastada pelo vicio.

A approximação d’este sujeito façanhoso, que apregoava, chanceando-se,
as repugnantes aventuras de sua chronica, entediava sobremodo Eduardo
Valladares, o qual pensava, ao vêl-o, na maneira por que a sociedade
costuma encarar o padre que sacrifica a propria felicidade aos pés de
Deus, e o padre cujos dedos empeçonhados da lepra do crime devem macular
a alvura do amicto.

Eduardo Valladares pensava n’isto e conhecia que a sociedade não
levantava entre um e outro barreira que pudesse distancial-os, para que
a lama, levantada na passagem do mau padre, não fôsse salpicar a face do
sacerdote exemplar.

Esta distancia conservava-a Eduardo Valladares no seu espirito, que
é unicamente onde se pode distinguir vicio e virtude quando é uso
confundil-os e tomal-os um pelo outro só para se não castigar o vicio nem
premiar a virtude.

N’aquella dolorosa introversão do seu espirito, via se Eduardo Valladares
já sacerdote, offerecendo todos os dias a Deus no calix do sacrificio a
vida que lentamente lhe arrancavam e, como se isto não fôsse provação de
sobra, via-se tambem exposto aos chascos da sociedade que insulta um raro
exemplo de virtude, quando elle apparece, por estar habituada a encontrar
a torpeza, a cada hora, nas praças como nos templos.

Corroendo a arvore sacrosanta do evangelho, regada pelo suor dos
virtuosos cultores e mimosa dos cuidados d’elles, descobria o ominoso
áspide, o verme da reacção, que contramina a obra piedosa e envenena
com a baba immunda os fructos que puderam ser opimos, damnificando a
colheita. Quando apparece o modêlo das verdadeiras virtudes evangelicas,
quando surge, de longe a longe, um Frei Domingos do Amor-Divino,
a sociedade, na maxima parte, repelle-o e vitupera-o e apedreja-o
irreverentemente.

No dia em que o religioso carmelita sahira a mendigar de porta em
porta para a viuva e para os quatro orphãos, não muitos, como já
dissemos, foram os corações que se abriram ao benefico influxo d’aquelle
espectaculo edificante. Muitos o repelliram com desamor e remoques d’esta
laia:

—Que peça para um, que já não é pouco. A gente não tem obrigação de
sustentar as familias dos frades pobres e devassos...

E Frei Domingos sahia, com a sua velhice e com a sua humildade, chamando
mentalmente o medico divino para o coração empedrenido.

O seminarista de Guimarães abeirou se de Eduardo Valladares com rude
familiaridade:

—Ó homem! estava longe de te encontrar aqui! Tão recatado vives, que não
ha pôr-te a vista senão á hora da aula! Ora dize-me uma coisa. Tu levas
isto a sério ou usas de santimónias de Tartufo?

O filho do bacharel fitou com admiração o de Guimarães e ponderou entre
delicado e digno:

—Não comprehendo, como desejava, a referencia da palavra _isto_. Tens a
bondade de m’a explicar?

—Isto, replicou Mendonça desfechando uma gargalhada, isto, é a alienação
do direito de ser homem, que a sociedade nos quer impor, a nós, os que
seguimos a vida ecclesiastica; isto, é a investidura ridicula da batina;
isto, é a tonsura com que nos cerceiam os cabellos emparelhando-nos
aos scelerados que estigmatisavam nos logares publicos; isto, é este
assentamento de praça na milicia sagrada, que não pode deixar de ter as
liberdades de todas as milicias...

—E isso, o que tu disseste, replicou Eduardo Valladares, é a linguagem
desbragada do soldado que veste as armas, não para militar pela causa que
jurou, mas unicamente para ter direito á pilhagem...

—Santimónias de Tartufo, bem dizia eu! Olha que nem tu nem eu havemos
d’enriquecer com a pilhagem. E d’ahi, pode ser que tu chegues a fazer
casa... Quantas missas tencionas dizer por dia?

Eduardo Valladares ia denunciar o asco que lhe estava causando
aquelle falar licencioso, quando um maltrapilho, que passava, bateu
familiarmente no hombro de Mendonça e apostrophou:

—Ó homem! eu dormi quatro horas e tu não havias de dormir muitas mais!
Perdi tudo... A sorte negou-se, e deixou-me a tinir!

Eduardo Valladares foi seguindo seu caminho, sobremodo entendia da
approximação d’aquelle repulsivo caracter. O de Guimarães e o maltrapilho
ficaram conversando e revendo provavelmente as paginas ascorosas da
historia d’uma noite passada em qualquer espelunca de jôgo.

O filho do bacharel foi seguindo sempre pelo Campo de Sant’Anna adeante
e, transposta a egreja de S. Victor, sentou-se no caminho desfrequentado
a olhar para o arvoredo que ao de leve ondulava na encosta do Bom Jesus.
Ahi, n’esse cogitar em si mesmo, passou duas horas que tanto tiveram de
tribulação como de doçura. N’aquelle seu ermar havia um misto d’esperança
e desespêro, que praza a Deus que os que hoje se julgam felizes nunca
possam comprehender.

O leitor, que se defrontou já com o perfil respeitavel de Frei Domingos
do Amor-Divino, ponha os olhos no reverso da medalha, n’este seminarista
de Guimarães, que já cem vezes ou mais deve ter levantado com mãos
impuras o calix que Frei Domingos offerecia a Deus todos os dias, e
depois volte a pagina e leia o capitulo seguinte para restituir á sua
alma as doçuras religiosas que os labios de nossa mãe coáram aos nossos
ouvidos quando nos ensinaram as primeiras orações.



XXI


João Nicolau vinha, com uma braçada de flores, de jardinar nos seus
canteiros, quando ouviu bater á porta. Foi elle mesmo abrir e entre
admirado e contente se mostrou ao dar de rosto com Frei Domingos do
Amor-Divino. Não teve mão em si que, ao conduzir para a sala o carmelita,
não fôsse gritando com alegre alvoroço:

—Anda cá, Maria, anda cá. Está aqui o nosso vizinho Frei Domingos; não te
demores, anda de pressa...

D. Maria d’Assumpção acudiu pressurosa ao clamoroso chamamento e, quando
encarou no marido que embraçava ainda as flores, pediu desculpa após
desculpa de tão descerimoniosa recepção.

Frei Domingos respondeu com jovialidade:

—Com flores me receberam; não pode haver mais galhardo acolhimento.
O snr. João Nicolau está-me fazendo recordar agora d’uma passagem de
Salomão. Ora lá vae e tenham paciencia; isto é veso incuravel de frade
velho: «Desci ao jardim das nogueiras para vêr os pomos dos valles e para
examinar se a vinha tinha lançado flor e se as romãs tinham brotado». Foi
o sr. João Nicolau vêr as flores do seu jardim e mimosas as encontrou, a
julgar pelas que trouxe. Não ha, pois, razão para desculpas e não falemos
mais n’isso.

—Ó sr. Frei Domingos, replicou João Nicolau, nunca eu desço ao quintal
que não sinta um peso na alma ao deitar os olhos para as torres do Carmo.
Ai que tristes recordações!...

—Não podes falar n’outra coisa! atalhou D. Maria d’Assumpção.

—Não me molesta, antes me consola o assumpto, respondeu Frei Domingos.
É sempre doce para o coração d’um filho ouvir falar da casa paterna; e
tanto eu quero ainda áquelle tecto, que me fiquei por aqui para o estar
namorando a toda a hora...

—Perseguirem os frades! regougou João Nicolau. Que mal lhes faziam? Não
houve delicto de que os não accusassem!...

—Não sejamos tão severos, não sejamos. Nos conventos, como em todas as
sociedades, havia trigo e joio.

—Isso assim é, acudiu João Nicolau. Lá diz o que escreveu _Os frades
julgados no tribunal da razão_[8], curioso livrinho que tenho alli, lá
diz elle: «A primeira familia do mundo teve um Caim».

—Bem disse o auctor e com verdade falou. No convento havia homens e
por tal razão idéas e sentimentos diversos. Mas entre tantas cabeças
e tantos corações alguma cabeça haveria que pensasse reflectidamente,
algum coração haveria propenso ao bem e ao justo. A obra d’esse varão
aproveitaria ao mundo. Muito melhor o diz o livro sagrado: «Pequena é a
abelha entre os animaes volateis, e com tudo isso logra o seu fructo a
primazia da doçura»[9].

D. Maria d’Assumpção escutava enlevada e ao mesmo tempo compadecida das
angustias do frade.

—Tudo quanto havia de bom, fora e dentro dos conventos, tudo a guerra
nos levou, ponderou João Nicolau. Perderam-se vidas, correram rios de
sangue, consumiu-se, matou-se, espoliou-se... As consequencias fôram
tristes como os factos.

—Sou extranho a tudo o que respeita a politica; no convento desconheci-a
sempre; fora do convento egualmente a desconheço.

—Ler a historia da guerra civil, disse João Nicolau, é doloroso; feliz
quem se puder forrar a semelhante leitura.

—D’essa historia, respondeu Frei Domingos, sei apenas que o sr. D. Pedro
era um principe portuguez, que já morreu e que o sr. D. Miguel, seu
irmão, é outro principe que vive em terra extranha.

—Pobre e saudoso, elle, o sr. rei, o rei legitimo, como provou José
Agostinho, como provou Frei Matheus da Assumpção, e como provaram tantos
outros!

—Pobre e saudoso se me afigura que deve viver. Mas, exclamou Frei
Domingos com ar prazenteiro, fechemos as chronicas nacionaes que estão
ainda a rever sangue. É tempo de expor o motivo que me levou a entrar na
casa desconhecida...

—Muito prazer nos deu a sua visita, sr. Frei Domingos, apostrophou D.
Maria d’Assumpção.

—Não sabe quanto me apraz relacionarmo-nos! accrescentou João Nicolau.
Espero que continuará a dar-nos o gosto de o vermos e ouvirmos. E depois
tenho cá um meu neto que anda no Seminario e que precisa de pedir sombra
a boa arvore. O sr. Frei Domingos sei eu que não se recusa a uma obra
piedosa.

—Nada sou e nada valho. Se não é molesta a minha presença, virei. Não
ha melhor asylo do que o aposento do varão honesto e honrado. Ah! mas
reatando a conversa... Costumam alguns corações piedosos encarregar-me,
n’esta grandissima festa do Nascimento, de distribuir esmolas por
pessoas realmente carecidas. Sempre é bom prevenir, e mais sabem tres do
que um. Não tem o snr. João Nicolau pessoa de suas relações que se veja
em estado d’acceitar a moeda abençoada da caridade?

—Oh! sr. Frei Domingos! A sua lembrança penhora-nos! exclamou D. Maria
d’Assumpção. Temos, sim, senhor. A Joaquina, que fez em tempo os recados
da nossa casa, está pobre e entrévada ha dois annos e, se lhe não valesse
o auxilio da caridade, já teria morrido de doença e miseria.

—É verdade, a Joaquina! bem empregada esmola! confirmou João Nicolau.

—Pois esperemos o Natal, e da colheita repartiremos pela entrevada
Joaquina, perorou Frei Domingos, levantando-se para sahir.

Á despedida, João Nicolau e D. Maria d’Assumpção reiteraram instancias
que demovessem o frade a prometter nova visita e, quando elle transpunha
o limiar, ficaram ambos dizendo:

—Frei Domingos é uma santa alma!

As mesmo tempo ia monologando o carmelita:

—_Dominus Deus auxiliator meus_[10]. Deus me guiará pelo caminho
appetecido.



XXII


—Temos passado as férias,—disse D. Maria d’Assumpção a João Nicolau, sem
darmos um unico passeio! Eu acho que já estou trôpega. Nada! É preciso
aproveitar estes dois dias. Em se abrindo as aulas, começa a gente a
cabecear com somno como se a casa fôsse de ermitões. E agora, que são
férias, parece que tambem era prohibido falar em passeios para não
distrahir o nosso estudante!...

—Ó mulher! tu não tens lembrado... Eu estou por tudo.

—Pois não vês que este rapaz, de genio triste, não pode supportar
semelhante viver de velhos?

—Olha que é preciso educal-o para a vida que ha de levar. A vida do bom
sacerdote deve ser a vida do descanso e da meditação... Põe os olhos em
Frei Domingos...

—Pois quando elle fôr padre, falaremos. Guiemol-o por bom caminho, mas
não o opprimamos. A oppressão dá causa, por via de regra, á reacção.

—Reagir, elle! Não se reage contra as proprias inclinações. Em tempo
pareceu-me que era avesso á carreira ecclesiastica. Hoje estou
completamente convencido de que sonha com as glorias do pulpito e com o
renome conquistado pelas suas homilias futuras. É que o chama para alli o
coração, e esta coincidencia de encontrar o animo do Eduardo affeiçoado á
minha vontade, só a Deus a posso agradecer. Por isso, para satisfazer aos
deveres que me aconselha a consciencia, é que já lhe comprei outro dia os
sermões do Padre Antonio Vieira...

—Por mais audaciosas que sejam as aspirações do rapaz, por maior que seja
a sua tendencia para a vida ecclesiastica, sempre te direi que a leitura
de sermonarios deve ser muito indigesta para um espirito de dezesete
annos.

—Sim! hei de talvez dar a ler essa praga de romances, que se introduziu
em Portugal ha poucos annos, a um rapaz que eu educo para ser um padre
digno dos respeitos da sociedade! Que mau padre não o quero eu. Prefiro
vel-o morrer. Frei Domingos é o typo que eu escolho como padrão do bom
clerigo.

—Ora essa! Pois tu imaginas que ha muitos Frei Domingos?! Uma alma assim
manda-a Deus á terra para allivio dos infelizes.

—Não digo que seja egual, que eu sou o primeiro a reconhecer em Frei
Domingos virtudes excepcionaes. Ninguem tem por elle mais respeito e mais
dedicação do que eu. Quero porém que o exemplo do nosso vizinho aproveite
á sociedade; bem sabes que deve ser de bençãos a sombra d’aquella arvore
veneranda.

—Disseste «sociedade» e querias referir-te ao Eduardo. Percebi a tua
intenção. Pois se tu dissesses a Frei Domingos: «Tenho aqui encarcerado a
sete chaves este rapaz de dezesete annos, só para que não se acalente ao
sol do mundo» verias como elle te havia de responder: «Deixe-o entregue
ás alegrias castas da sua idade, e não opprima o coração delicado.»

—Ó mulher! pois eu opponho-me? Valha-me Deus! Passeiemos. Já agora
encarreiramos para o Bom Jesus. Pois vamos lá; e se queres ir para outro
sitio, dize.

—Vamos ao Bom Jesus que é mais commodo e menos dispendioso. Vamos lá
depois d’amanhã passar o dia. Visto que está em costume, mando dizer ás
Machados.

—Pois manda. Depois não me chames ermitão...

D. Maria d’Assumpção vingára o seu proposito. O que ella queria era
alliviar por um momento as sombras espessas que ennoiteciam dia a dia,
cada vez mais, a alma do neto. Tanto lhe bastava, e para isso era preciso
não dissipar as illusões do marido, o que seria o mesmo que fazer
subitamente estalar uma tempestade. João Nicolau, inimigo figadal do
romantismo, andava acumulando de velharias mysticas a estante de Eduardo.

A pobre senhora conhecia a inconveniencia, mas nem se oppunha, nem sequer
mostrava desagrado. Esperava em Deus. Era para o Céo que ella appellava
na impossibilidade de suster a marcha de acontecimentos a que era
contraria.

A antipathia de João Nicolau pelo romantismo, aquelle odio explosivo
votado ao romance tal qual o architectára Garrett no _Arco de Sant’Anna_
e principalmente na historia da Joanninha das _Viagens_, póde explicar se
ainda pela cega dedicação a José Agostinho de Macedo e á seita litteraria
seguida pelo auctor da _Viagem extatica_.

Tudo o que não fosse a declamação emphatica vasada nos velhos moldes
aristotelicos, era somenos para João Nicolau. Bem se lembrava elle
de que o seu auctor favorito escrevera: «Depois da praga gazetal o
_romancismo_ é a peste litteraria, que mais tem grassado por toda a
Europa. Assim que W. Scott, e o Byron em Inglaterra, e em França seus
macaquinhos, Lamartine, d’Arlincourt, Victor Hugo e outros de igual jaez
publicaram seus monstruosos delirios, logo houve em Portugal quem os
imitasse.» Estas palavras, e as mais que se seguem, e não nos permittimos
transcrever, acepilhadas de quejandas blasphemias, eram doutrina corrente
e moente para o velho absolutista.

D’aqui, e da esperança de vêr o neto prégador da real capella, provinham
as frequentes compras de sermonarios e chronicas milagreiras para a
estante, dia a dia enriquecida, do filho do bacharel.

No quarto de Eduardo Valladares havia, porem, um livro não recheado de
erudição fradesca nem modelado pelos velhos paradigmas litterarios.
Esse era o livro querido, o livro sempre lido, sempre veneno e sempre
balsamo: era o _Eurico_, do sr. Alexandre Herculano. João Nicolau,
indifferente senão adverso aos applausos que esta obra notavel
despertara, suppunha o neto, por via de regra, absorvido em leituras
devotas, á hora em que elle aliás estava vendo a sua alma no espelho em
que se projectava o perfil do presbytero de Carteia.

Não era Eurico um desgraçado como elle ou elle um desgraçado como Eurico?

Ambos amavam, ambos soffriam, ambos choravam, e ambos podiam perguntar a
si mesmos: «Que fôra a vida se n’ella não houvera lagrimas?»[11]

A viuva Machado, convidada de vespera para tomar parte no passeio ao _Bom
Jesus_, respondeu que gostosamente iria se, d’um dia para o outro, se
não aggravassem uns leves incómmodos que todavia a não deixavam sahir.
D. Maria d’Assumpção ficou muito contrariada, mas não era conveniente
transferir o passeio, e foi.

Eduardo Valadares chegou á floresta do Bom Jesus com o coração
despedaçado. Era a primeira vez que alli entrava sem Maria Luiza, e a
folhagem verde da encosta, quando elle passava, parecia murmurar este
nome; d’aqui o olhar para si mesmo e fugir apavorado da solidão dolorosa
da sua alma. Mas o que era isto, esta saudade ao mesmo tempo suavisada
pelas doces recordações que lhe eram socias, o que era esta triste
solidão a par da solidão perpetua a que a sua alma se via condemnada;
das infinitas dores curtidas nas longas horas das noites de vigilia, das
lagrimas choradas, das esperanças para sempre perdidas, das lacerantes
recordações que elle em vão tentaria abafar, e que de si mesmas
resurgiriam, umas após outras, no espirito do presbytero?

Insensivelmente foi procurando o trilho da Mãe d’agua; ia-o guiando o
coração, sem que elle désse por isso.

Era aquella a mesma alameda, aquella a mesma cupula de verdura, o
mesmo cedro em cujo cortix entalhara as iniciaes M. L., o mesmo ar
cheio de murmurios, a mesma corrente suspirosa, a mesma sombra e a
mesma suavidade. Mas faltava ella, a doce companheira, a visão formosa
d’aquella tão doce estancia, e a solidão era triste, pesada, esmagadora.

Um livro, o livro de todos os dias, de todas as horas, fôra mais uma vez
aberto no momento em que mais era preciso.

Eduardo Valladares folheava o _Eurico_, e os seus olhos deletreavam estas
palavras:

«Outras noites, em que mais tranquillo podia a sós comigo engolfar-me
nos pensamentos de Deus, a tua imagem vinha interpôr-se entre mim e a
lampada mortiça que me allumiava, e o hymno do presbytero de Carteia, que
devia talvez escrever-se nos livros sagrados das cathedraes de Hespanha,
ficava incompleto, ou terminava por uma blasphemia secreta; porque te
via tambem sorrir, mas a outrem, mas a homem feliz com o teu amor, e eu
tinha então sêde... sêde de sangue... Era uma lenta agonia! E sempre tu
ante mim: nas solidões das brenhas, na immensidade das aguas, no silencio
do presbyterio, nos raios esplendidos do sol, no reflexo pallido da
lua, e até na hostia do sacrificio... sempre tu!... e sempre para mim
impossivel!»

—Impossivel! repetia Eduardo Valladares. Impossivel!

E no seu hombro pousára a mão d’alguem que elle não vira.

Quem era?



XXIII


Era ella, Maria Luiza.

Eduardo Valladares, por um momento, julgára sonhar. Todavia o seu
anjo adorado, entre o qual e elle se ia cavar o abysmo insondavel do
impossivel, estava alli, soluçante, convulso, com os olhos merejados de
lagrimas.

A viuva Machado, restabelecida da ligeira indisposição da vespera,
accedera ás instancias das filhas e resolvera ir, posto já não pudesse
acompanhar D. Maria d’Assumpção.

O moço seminarista, na violenta sobreexcitação que o agitava, deixara
assomar aos labios a tempestade que lhe refervia na alma.

—Impossivel! murmurava elle. E sabes tu o que é o impossivel? Sabes o
que é a distancia infinita que separa o reprobro da estrella polar que
elle vê através das reixas do carcere? Sabes o que é morrer abafado na
propria dôr, na dôr que não tem linitivo, que não tem cura, que não tem
um só momento de repouso, um só instante d’esquecimento? Pois bem, entre
nós que nos amamos e que vivemos a mesma vida, vai abrir-se a voragem do
impossivel, como se dissesse que vai sentar-se o espectro da morte, para
o vêrmos a toda a hora em glacial immobilidade, sem querer condoer-se
das nossas afflicções. Morrer! Que influxo benefico não coaria a morte
aos nossos corações calcinados por metal candente! Que felicidade não
sorri na morte ao desgraçado! Será fraqueza pedil-a? Pois se o coração
trasborda de lagrimas como o oceano na tormenta, pois se a alma foge de
si mesma amedrontada, como do espectaculo sombrio d’um tumulo aberto,
porque não hade perdoar o Deus de misericordia a quem fica prostrado
na via dolorosa exclamando: Senhor! os meus olhos cegaram de chorar;
illuminae em troca a minha alma com o resplendor das vossas eternas
auroras?! Não sabes tu que o Salvador da humanidade, alanceado o coração
de supremas angustias, elevava o seu espirito attribulado ao Deus das
alturas, cujo filho era, exclamado exhausto: «Meu Deus, meu Deus, porque
me desamparastes?» E não havemos nós, corações terrenos, pedir ao Céo, na
cerração da vida, que nos aproxime do tumulo, da porta que se abre sobre
nós dando passagem aos fulgores inextinguiveis da eternidade?

Maria Luiza, pendida sobre o hombro de Eduardo Valladares, orvalhava-lhe
as faces de lagrimas abrasadoras.

Sentira-as elle, e procurara dominar os impetos da sua alma,
envenenando-a com o trago das lagrimas reprimidas.

—Choras! E sou eu, e é o meu amor que te enche os olhos de pranto! Tremo
da justiça dos Céos, Maria! Quem me deu a mim o insolito direito de te
lembrar que tambem és desgraçada? Como ouso eu arrancar as flores da tua
esperança, para calcal-as aos pés, sem me lembrar de que estou calcando
com ellas o teu amantissimo coração. Oh! sim, tu esperas, não é verdade?
Não é certo que tens no thesouro da tua alma a esperança que me offereces
e queres repartir comigo? Enganares-me tu... Não, não, perdoa-me o que ha
de injustiça n’estas palavras. Se a esperança ou se Deus, que tudo vem a
ser o mesmo, te houvesse desamparado, não ousarias insinuar-me nova fé
com receio de que eu descobrisse a verdade, a verdade negra e terrivel,
sob os teus hymnos de mentirosa crença... Tu esperas, não é verdade?
Deus, que formou de essencia divina as almas dos anjos como tu, não podia
roubar-lhes a esperança, condemnando-as ao desespêro dos réprobos... Não
chores...

—Não choro. Promette tu dominar a exaltação do teu espirito, que eu
prometto não provocal-a de novo com as minhas lagrimas. Chorar eu! Passou
acaso no nosso coração o sôpro devastador da descrença? Só os que não
esperam, os que não crêem, é que choram, por que esses devem ser muito
desgraçados, pois não devem?

E rolavam-lhe pelas faces copiosas lagrimas, como se Maria Luiza nem
sequer soubesse que estava chorando e desvendando os dolorosos segredos
da sua alma.

—Ah! pois tu choras! Estás involuntariamente denunciando com as tuas
lagrimas que tambem és desgraçada, porque não esperas, porque não crês...

—Meu Deus! Eu enlouqueço! Dizes-me que choro e não sinto as lagrimas!...

—É que a tua alma verga n’este momento ao peso d’um presentimento que a
domina, e que ella está revelando sem que tu mesma tenhas consciencia da
propria existencia. Ah! como nós somos ambos infelizes, meu amor. Bem m’o
dizia o coração, bem m’o disse ainda ha pouco, antes d’abrir este livro,
n’um momento que não sei se foi de sonho se de meditação. Meditação, não;
não foi. Eu estava quasi adormecido... Meditação, não. Queres que te
conte o meu sonho, como o estou recordando n’este instante?

—Oh! conta, conta...

—Um camponez, que tinha vivido expatriado em longes terras, privado dos
carinhos da esposa, saudoso dos filhos que deixara no berço, do torrão
que o vira nascer, da cabana onde amara e vivera, das serras da sua
patria, de tudo o que é doce e consolador, voltava em demanda do tugurio
querido, e a todas as horas recordado, após os lacerantes soffrimentos
d’um longo exilio. Quando vinha transpondo a serra do tôpo da qual se
avistava a sua cabana, coberta de colmos como a tinha deixado, desciam
do céo as sombras da noite e, quanto mais veloz elle caminhava, mais o
arvoredo se perdia n’um fundo negro. Era a noite que descia. Fumegavam ao
longe as casas d’aldeia disseminadas na encosta; a sua tambem. Áquella
hora devia estar repartindo a triste mãe com as desmimosas creanças o
pão da ceia amassado nas lagrimas de todos os dias. Elle, o caminheiro,
vinha descendo a encosta, offegante e quasi exhausto. A sua choupana
ficava na vertente fronteira. Entre a aldeia e a serra corria um rio,
largo e caudaloso, que mugia no valle engrossado pelas chuvas torrencias
do inverno. Era preciso chegar á ribeira antes do barqueiro ter amarrado
a barca do outro lado. «Depressa!» dizia o caminheiro a si mesmo. E não
corria, voava. A meia encosta, chamou. Ninguem respondeu. Brilhou-lhe nos
olhos um clarão de desespero. A barca da passagem estava decerto amarrada
a um salgueiro da outra margem, e já o barqueiro devia ir em caminho do
seu palheiro que ficava ao centro da povoação. Afflicto, desesperado,
chamou, gritou.

O sussurro da corrente impetuosa abafava a sua voz, tanto mais debil,
quanto maior era a commoção. Depois...

—Depois?

—Via fumegar ainda no tôpo da serra fronteira o tecto do seu lar, e
uma voz interior lhe estava dizendo que no coração de sua pobre mulher
passava, n’aquelle instante, o presentimento de que nunca mais o tornaria
a vêr. Como ella havia de reprimir a sua dôr, para que as pobres
creanças a não vissem chorar e lhe perguntassem: «Virá hoje, virá?» Que
alegria, que felicidade se elle os pudesse ouvir, e vêr, e abraçar para
dizer-lhes: «Aqui está o vosso pai; eil-o aqui está». E a escuridão da
noite era cada vez mais profunda e o estrepito das aguas tinha um não
sei que de lugubre que punha medo. O fumo branco das casas d’aldeia foi
rareando a pouco e pouco. Dissipou se lentamente a coluna ondulante que
sahia do seu tecto. Acabava a ceia. Iam adormecer as crianças, sem terem
sido abençoadas pela mão paterna. E, recolhidos os pequenos, deitava-se
a mãe para desvellar as horas da noite em mil tumultuosos pensamentos. E
elle separado de tudo isto, dos seus filhos, da sua mulher, do seu lar,
por uma barreira que não podia transpôr e que se não abria para lhe dar
passagem, como as aguas do mar Vermelho, por mais dolorosos que fossem
os seus gritos, por mais impias que fossem as suas blasphemias! Aqui
tens o impossivel, Maria; o impossivel é tudo isto, este desespero, este
abrasar da alma em lavas incandescentes. Um genio mau desenhou decerto
este quadro d’incomparavel afflicção para que eu experimentasse o duplo
martyrio de vêr e sentir, deixando ao meu espirito, meio adormecido,
o trabalho de, quando despertasse, procurar a relação que para logo
denuncía que este desespero é o seu proprio desespero, que este inferno é
o seu mesmo inferno.

Maria Luiza soltou um grito d’angustia; Eduardo Valladares ficou
extremamente prostrado d’aquella dolorosa excitação.

—Meu Deus! murmurára ella vendo-o com a cabeça febril mal amparada nos
braços tremulos.

—Meu Deus! repetia elle em brando echo. Não fujas de mim, doce amor,
e pede ao teu Deus, que é tambem o meu, que me perdoe estes desvarios
d’uma alma atormentada. Enlouqueceu-me a dor. Perdôa-me tu; que Elle, o
Senhor de misericordia, me perdoará tambem. Não fugas de mim como se
foge do precito. Desde que minha mãe infiltrou na minha alma o balsamo
sacratissimo das doces orações da infancia, conheço e amo Deus. Depois,
desde que sigo o rumo da minha desventurosa estrella, sempre o invoco em
horas de desconfôrto e afflicção. Vale-me, Tu, Senhor! que abençôas os
que choram.



XXIV


Frei Domingos do Amor-Divino anciosamente esperava os óbolos da caridade
para repartil-os pelos pobres, no numero dos quaes devia incluir-se a
cega designada por D. Maria d’Assumpção.

Chegou o Natal, e o virtuoso carmelita recebeu, de procedencia
anonyma, duas cartas contendo dinheiro destinado a enxugar por alguns
dias as lagrimas de dois indigentes. Frei Domingos rasgou o primeiro
involucro com intima satisfação, que no doce fulgor dos olhos se estava
manifestando. O papel que continha a moeda consagrada á beneficencia,
trazia esta restricção:—_Para uma viuva_. Aberto o segundo involtorio,
que encerrava um _soberano_ inglez, leu Frei Domingos o seguinte:—_Um
cego, que deve á Providencia o não ser tambem necessitado, pede que seja
entregue a outro cego, mais infeliz do que elle_.

Estas palavras commoveram a lagrimas o carmelita, que relanceou ao seu
Christo de marfim um olhar afogado em pranto, murmurando ao mesmo tempo:

—Abençoado seja o nome do Senhor, que por tal modo e com tamanhos dons
abastece a colheita dos pobres! É ao Céo que eu peço me ensine o
trilho por onde possa ir direito á mais necessitada cegueira, e á mais
desamparada viuvez.

Ajoelhou, com as mãos postas, e por largo tempo ficou a orar.

Depois sahiu, indagou, examinou e, ao cabo de dois dias de trabalhosas
investigações, depositou nas mãos d’um cego e d’uma viuva, que mais
carecidos lhe pareceram, o dinheiro da caridade.

Quando recolheu ao cubiculo da rua do Carvalhal, era noite cerrada.
Acudiu a recebel-o, com a sua habitual expressão de estima e
reconhecimento, uma velhinha que lhe cosinhava a frugal collação e que,
se não fôra o amparo de Frei Domingos, teria morrido de fome pouco depois
de cahir varado por um pelouro nas linhas do Porto o filho que lhe era
esteio.

O carmelita encarou n’ella, viu-a radiosa como sempre, e apostrophou com
semblante prazenteiro:

—Alegre a vejo sr.ᵃ Gertrudes, e a Deus agradeço o encontral-a em
disposição d’ánimo que favorece o meu designio.

A velhinha quedou se a olhal-o com surpreza; Frei Domingos continuou:

—Que me responderia a boa Gertrudes, se eu houvesse de dizer-lhe:
«Precisamos de dar metade do nosso pão, durante alguns dias, a quem mais
carece d’elle do que nós?»

Gertrudes achegou-se do carmelita e disse com tanta alegria quanta
commoção:

—Olhe que não sabia o que o snr. Frei Domingos queria dizer! Eu feliz
vivo, e a minha felicidade chamou-a do Céo para a menos merecedora das
creaturas o sr. Frei Domingos. Do pão que recebo e que me aproveita mais
do que a riqueza aos ricos, sempre cresce e, se não crescesse, todo o
daria para alliviar miserias que, Deus louvado! não conheço.

—Nós somos ricos, sr.ᵃ Gertrudes, nós somos ricos, porque desconhecemos
a pobresa. «Mais vale um pequeno boccado de pão sêcco com alegria
que uma casa cheia de victimas com pelejas»[12] são palavras santas,
que não falham. Esta é a verdadeira riqueza. Tudo o mais é cuidado e
inquietação. Façamos pois economia durante alguns dias e, passados elles,
verá como havemos de sentir-nos mais contentes. É que realmente estamos
esperdiçando, e não é assim que se agrada a Deus. Repartamos, pois, com
os pobres, e aproveitemos em vez de esperdiçar.

No dia seguinte, foi Frei Domingos abrir a gaveta depositaria das
mealhas que lhe pareciam sobejas ás suas necessidades. Montava o peculio
a novecentos e sessenta réis, um thesouro de dois cruzados novos
embrulhados em papel branco. Tirou-os da gaveta para o bolso, pôz o
chapéo, desceu as escadas e entrou no portal de João Nicolau.

O sogro do bacharel Valladares e D. Maria d’Assumpção receberam Frei
Domingos com sincero contentamento, lamentando apenas que tivessem
decorrido alguns dias sem que lhe aprouvesse visital-os.

—É que eu queria dar boa conta de mim e dos meus negocios, respondeu
o carmelita. Depois receava que a presença d’um intruso fosse de mais
n’estas festas que commemoram os grandes acontecimentos do christianismo
e servem ainda, e sempre servirão, para estreitar os laços de cada
familia reunida no seu lar. N’este quadro de intimas alegrias era de
certo importuno um frade velho como a Sé da nossa Braga, perorou,
sorrindo Frei Domingos.

—Estou capaz de dizer... pronunciou a medo D. Maria d’Assumpção.

—Pois dize, dize, e com isso responderás aos infundados receios do nosso
vizinho, atalhou do lado João Nicolau.

—Visto que me auctorisas, sempre ousarei fazer uma confissão. Pode
acreditar o sr. Frei Domingos que tivemos ambos a lembrança de lhe pedir
que viesse honrar a nossa modesta consoada. Receamos incommodal-o, e não
nos atrevemos...

—Beijo lhes as mãos pela immerecida attenção; confesso-me penhorado como
se tivera recebido e acceitado o convite.

Mas por que não ha de vir mais a miude, replicou João Nicolau, por que
não ha de, visto que estamos tão perto, vir tomar o chá comnosco? Nem o
nosso Eduardo viu ainda o sr. Frei Domingos!

—Infiro d’ahi que tem sido feliz o neto de v. s.ᵃ. Olhe que realmente
parlandas de frade não são para se ouvir a pé quedo, e muito menos por
gente nova.

E, galhofando sempre, entregou a D. Maria d’Assumpção os novecentos
e sessenta réis, que para elle e para a velha Gertrudes eram pecunia
sufficiente para o passadio de alguns dias.

João Nicolau não o deixou sahir sem que primeiro aprazasse nova visita.
Frei Domingos prometteu voltar em dia determinado, e desempenhou a sua
palavra. Á terceira visita encontrou se com Eduardo e lera-lhe nos olhos,
sempre banhados em melancholia, as muitas amarguras que faziam noite
escura n’aquelle coração de dezesete annos.

O filho do bacharel, por sua parte, esqueceu-se de si mesmo enlevado na
suavidade que recendiam as palavras de Frei Domingos. O desaffrontar-se
por um momento da cerração que lhe opprimia o peito, foi para Eduardo
Valladares consolo que deixou após si gratissimas impressões. Livrára-o
a Providencia de lembrar se de que aquelle homem, cuja serenidade d’alma
se reflectia no olhar, tinha vestido o habito de frade e poderia ter
amortalhado n’elle um coração ferido pelas desgraças da terra. Não
lhe lembrou isto, e por tanto não rompeu clamoroso contra a voz da
oppressão que diz «Morre, despedaçando-te» ao coração opulento de seiva
e esperança. No que pensou foi na serena alegria d’aquella alma, que em
vez de se sentir retransida pela nortada do tumulo, já proximo, refloria
em amenidades bafejando lenitivos ás pallidas flores d’uma primavera
desconfortada. Aquelle homem entremostrou-lhe Deus—o Deus a quem
invocavam as doces orações da sua infancia, o Deus que adorava no templo
e em toda a parte onde podia vêr o Céo, o Deus que elle chamava quando
mais se condensavam as trevas no horizonte da sua mocidade.

Viu-o, examinou-o com olhar perscrutador e disse de si para si:

—Se eu fôsse assim, não era decerto tão desgraçado.

Amiudáram-se as visitas de Frei Domingos. Rodrigues d’Abreu perguntou-lhe
d’uma vez se tinha esperança de restituir a um coração de dezesete annos
as alegrias proprias da sua edade.

Frei Domingos sorriu placidamente e disse:

—Tenho. A si devo e a Deus o sentir ainda no coração o influxo benefico
d’uma esperança: a de procurar a felicidade para quem a não tem.



XXV


Eduardo Valladares tinha em 1852 dezesete annos.

Estou a lembrar-me d’isto, e a perceber que uns sujeitos maiores de
trinta annos, e umas senhoras que devem á acção do fluido transmutativo o
envelhecer com os cabellos pretos, lançam um olhar de desdem para a futil
historia do filho do bacharel Valladares.

Para estes corações apodrentados, se é que para taes creaturas o coração
é mais alguma cousa do que o centro das funcções sanguineas, o amor
dos dezesete annos deve ser uma creancice piegas apenas admissivel na
conversação de meninas da mesma edade, que andam delineando os poemas do
coração suspensas entre as saudades das bonecas e os receios de não serem
convidadas para a valsa que redemoinha na sala.

Não sei agora ao certo que idade tinha Romeu quando levantou olhos para
Julieta; do Paulo, de Saint-Pierre, lembro-me que tinha a mesma altura
de Virginia; o Simão Botelho, do _Amor de perdição_, do nosso Alexandre
Dumas, vamos encontral-o aos dezeseis annos; o Pedrinho, dos _Contos ao
luar_, de Cesar Machado, é uma creança.

Achei que estes modelos eram bons. Procurei no coração humano, para
estudal-a, a fibra menos corroida, e deparou-se-me uma unica—a que
resumava a seiva dos dezeseis annos.

Um sujeito de vinte, que andava suspirando no violão serenatas á mulher
adorada, e se dizia capaz de comprehender o que no amor póde haver
d’ethereo, dias depois de resvalar ao tumulo o anjo querido que elle
desposara, garbosamente refreava os galões d’um cavallo comprado com as
economias provaveis do primeiro anno de viuvez. O coração dos vinte annos
fazia isto, dispendia na farta ração d’um cavallo de raça o que faltara
talvez á gentil esposa tão longo tempo requestada.

A viscera amorosa dos cincoenta annos affigurou-se-me gangrenada ao
estremo de inspirar terror. A historia do cynismo, que arremessa á
face da innocencia a moeda doirada da corrupção, é revoltante para se
offerecer a todos os paladares.

Determinei os extremos—os vinte e os cincoenta annos. A estrada
interposta a estes dois marcos, recortada de charcos immundos, deve
deixar enlodados os pés do que a percorrer com o vagar indispensavel a
quem tiver de fazer relatorio da trabalhosa peregrinação.

Não invejo a gloria de certos romancistas victoriados pelas multidões.
Só elles sabem o que ha de doloroso em vencer a repugnancia natural que
leva o espirito, iriado da luz das suas auroras, a fugir do esterquilinio
que vapora exhalações mephiticas. E que improficuo trabalho! A humanidade
vê no espelho do romance o que ella mesma tem de hedionda, e não cora
nem se rehabilita; passa adeante, deixando ao desfortunoso trabalhador a
consolação de labutar noite e dia para não morrer de fome.

Não serei eu que vá mergulhar nas trevas que ennoitecem os hypogeus
sociaes para dizer á humanidade: «Aqui estão as tuas nodoas, lodo; aqui
está a tua negrura, sombra!»

No mais profundo antro sempre entra um raio de sol a cujo esplendor
scintillam as concreções vitreas da abobada. Em vez de medir a extensão
do antro, quero sentar-me á entrada, onde chegue a luz, e onde possa vêr
o cristal das stalactites rutilar em formosas cambiantes.

Poderão dizer: A humanidade não é só isso, a humanidade não é apenas o
cristal que se doira. Certo é. Mas a humanidade tambem não é só o que vós
pintaes, ó pintores de quadros negros; a humanidade não é só o cynismo, a
dobrez, e o lodo.

E eu entrei no antro escuro da humanidade, e tive medo das sombras que
se condensavam ao fundo. Parei. O sol que tremeluzia nos cristaes da
rocha, era limpido e formoso. Deslumbrou-me. Não arrisquei mais um passo;
quedei-me a contemplal-o.

Coração dos dezeseis annos, não és tu puro como os relevos crystallinos
que resaltam do tecto anfractuoso d’uma gruta?

Os que já se internaram na escuridade, os que perderam a memoria com o
coração e com a consciencia, esses, cadaveres condemnados ao supplicio da
vida, já não comprehendem o que seja o estremecer das rosas no roseiral
ao bafejo da viração matutina.

Uma coisa que sobremodo me admira é que os rapazes de hoje suffoquem
a voz do coração, que está modulando o poema dos vinte annos, para
raciocinarem friamente, sentados em ruinas como Volney, até chegarem ao
scepticismo, á duvida, ao nada; até murmurarem com Voltaire na satira a
Luiz XIV:

    _J’ai vu ces maux et je n’ai pas vingt ans._

Quem é que aos vinte annos não vae depôr a sua mocidade, como novello
de espuma, na mão rosada d’uma mulher, que a pode desfazer, comprimindo
os dedos, ou que tem o capricho de a fazer brilhar com as esplendidas
fulgurações de um cristal, se lhe deu um raio d’amor?

Creio que todos. Os que não fizerem isto são anomalias. Deus me livre de
homens que não teem de homens nem o coração.

O amor é o sol e eu sou como todos os fructos verdes: preciso de sol para
amadurecer.

É por isso que leio e releio, sem me cansar, o _Raphael_ e a _Graziella_,
de Lamartine; a _Chave do enygma_, de Castilho; o _Livro d’Elisa_, de
João de Lemos; o _Paulo e Virginia_, de Saint-Pierre; os _Idyllios da
rua Plumet_, dos _Miseraveis_; a _Menina dos rouxinoes_, das _Viagens_,
de Garrett; o _Thomas dos passarinhos_, de Rodrigo Paganino, e muitos
outros poemas de amor que consolam a alma, e que se nos dão o seu tanto
de tristeza, é uma tristeza tão suave, que chega a ser deliciosa. Estes
livros, que são balsamo e crença, quero lel-os e compraria a trôco da
vida a gloria de os escrever.

Namora-me esta litteratura que delicía a alma. Ha livros que deixam
remorsos de se haverem lido. Esses não os quero eu. Para que hei de
sentir ferida a consciencia nos poucos momentos que destinava para
descanço do espirito? Livros dos que retalham o coração lê-os a gente
por ahi nos passeios e nas praças publicas a toda a hora do dia; são
uns certos homens que encadernaram a negrura da alma em pergaminhos de
illicita riqueza, e certas mulheres que escondem a deshonra em brochuras
de velludo.

Sabe-lhes a gente da vida e anda cheia d’aquellas historias vivas, que
se abrem á luz do sol, para que elle bata em cheio no escandalo, e o
mostre á claridade do dia. Quando o espirito precisa de um momento de
tranquillidade para se desanojar d’estas e quejandas leituras sociaes,
devem pôr se de parte os livros igualmente desagradaveis.

Os contos, ainda que se perfumem na doce poesia da infancia, _contes de
fées_ ou _contes bleus_, como dizem os francezes, embriagam-me o espirito
como o suspirar longinquo de um piano n’uma noite de luar. A historia
licenciosa, _conte gras_, repugna-me, aborrece-me. A litteratura deve
ter um não sei que de ethereo irmão da inspiração. Tudo o que não fôr
assim, é verdadeiramente terreno e vulgar.

O homem que entra em casa com um livro de pessima doutrina, tem o cuidado
de escondel-o como a um frasco de acido prussico, se occultasse o
proposito de se suicidar. Esconde o livro como esconderia o veneno: para
dissimular a sua vergonha e o segredo humilhante da propria fraqueza.

A sua mãe, alma toda amor e toda luz, que lhe ensinara a deletrear
nos livros santos, a ella, coração de ouro, haveria de dizer, se uma
imprevista circumstancia descobrisse a licenciosa brochura: «Perdôa-me;
bem sei que não foi para isto que me ensinaste a ler.»

Vae longa a dissertação. Cumpre pôr ponto final. _Dissertation, ennui_;
sirva para alguma coisa o dito de Bastiat.



XXVI


Retrogrademos.

Maria Luiza desceu a montanha do Bom Jesus do Monte apoiada no braço da
outra menina sua irmã.

Quando vinham encosta abaixo havia na floresta, através da qual se viam
scintillar as chammas do occidente, a doçura inexplicavel com que o dia
desliza ao abysmo da eternidade...

A viuva Machado revelava certa inquietação—talvez prophecia de coração
materno—pelos symptomas de repentino soffrimento claramente desenhados na
face pallida da filha.

João Nicolau animava-a com palavras banaes, attribuindo a excitação
nervosa um incommodo que, a seu vêr, não podia ter outras consequencias
além d’um ligeiro abatimento.

Maria Luiza procurava sorrir para dar alento aos dois mais desconfortados
corações—o de sua mãe e o de Eduardo—mas o sorriso desabrochava triste e
de pressa morria á flôr dos labios.

D. Maria d’Assumpção vinha suspeitosa e concentrada. Adivinhava-lhe o
coração tudo quanto se passara na alameda da Mãe d’Agua. Estava-lhe
dizendo uma voz interior por que abysmos tinham resvalado, n’um momento
de commum desespêro, aquellas duas amorosissimas almas.

Eduardo Valladares vinha ao lado das duas irmãs Machados. Que dolorosa
ancia lhe comprimia o peito adivinha-a o leitor, se é que alguma vez se
sentiu avergado ao peso da sua cruz.

No sopé da montanha, antes de transporem o portico de cantaria, curvou-se
Maria Luiza para colhêr uma flôr silvestre, que se debruçava sobre
ervagens verdes. A alguns passos de distancia ficava a capella do Horto,
que representa Jesus em Gethsemani, quando desce o anjo a offerecer o
calix da amargura. Maria Luiza relanceou os olhos á inscripção latina e
murmurou:

—Deve ser triste a legenda d’esta capella...

—«Agonisante, orava profundamente,» traduziu Eduardo Valladares, deixando
ver lagrimas que de subito lhe embaciaram o olhar.

—Decora-a, peço-t’o eu, e guarda esta flôr com a perpetua recordação do
meu pedido.

—Que dizes?...

—Que não esqueças aquella legenda, Eduardo.

Aproximavam-se João Nicolau, D. Maria d’Assumpção e a viuva Machado.

Ficou interrompido o dialogo apenas escutado pela melancolica Rosinha,
que sentiu o perpassar d’uma nuvem que a cegara. Eram lagrimas... Maria
Luiza empallideceu até á lividez do cadaver e, quando lhe perguntaram
se se sentia recobrada de forças, respondeu affirmativamente, e deixou
esvoaçar nos labios o mesmo sorriso breve e melancholico.

Pelo caminho, veio João Nicolau galhofando a proposito de quanto lhe
lembrava com o piedoso intuito de serenar a inquietação da viuva Machado
e de distrahir Maria Luiza. Não ousamos asseverar se era escutado; o
certo é que vinha fallando.

—Dia de Reis! disse elle depois d’um momento de silencio. Este dia é
d’alegres recordações para mim. Era eu solteiro. Vai isto ha um bom par
d’annos, e estou agora a vêr tudo como se se passasse hoje! Tinhamos sido
convidados, alguns rapazes de Braga, para jantar em Guimarães n’este dia.
Alegremente cavalgamos e seguimos jornada com o enthusiasmo expansivo dos
vinte annos. Foi opiparo o banquete e divertidissima a odysséa. Ao fim
da tarde, batemos os cavallos para Braga. Era já noite quando chegamos
aos _Quatro irmãos_, um logar historico que fica ao sopé da Falpêrra. É
verdade! Nunca ouviram falar da lenda dos _Quatro irmãos_?

—Sabes lá se a gente está de paciencia para te ouvir? respondeu D. Maria
d’Assumpção, que de sobra conhecia quanto o marido vinha sendo incómmodo
n’aquelle momento.

—Estejam que não estejam. Eu é que sempre a vou contar, replicou João
Nicolau insistindo no proposito de distrahir os companheiros. Diz-se
que um parocho da freguezia proxima ao logar dos _Quatro irmãos_ vivia
em companhia d’uma sobrinha, rapariga de formosura capaz de trazer
alvoroçados todos os pintalegretes montezinhos d’esse tempo. O caso é
que o abbade precisou de sair da residencia por alguns dias, e levou
uma noite inteira a fazer eleição de casa onde, com mais socego do seu
espirito, poderia deixar em deposito a donairosa sobrinha. Lembrou se
d’uma viuva do logar, mulher idosa e d’exemplares costumes. Se esta
lembrança foi tentação do demonio ou não, dir-m’o-hão depois que souberem
que a pobre mulher tinha quatro filhos, quatro rapagões da boa raça
minhota. Não sem difficuldade acceitou a viuva o encargo, depois de muito
instada. Entrou a rapariga na casa da mulher escolhida para depositaria
do thesouro querido do abbade e logo os mocetões começaram a requestal-a
porfiadamente. Sempre ouvi dizer que «amigos, amigos, negocios á
parte». Cahiu de chofre o pomo da discordia entre os quatro filhos da
viuva. Desvairou-os o ciume. Reptaram-se. Como valentões que eram, não
se recusaram o cartel. Pouco depois, zuniam os varapaus fratricidas a
certa distancia do tecto commum. Trez dos contendores cahiram exanimes;
e o outro ficou gravemente ferido. O abbade regressava n’aquelle dia e
passara ali. Estava moribundo, no logar da lucta, o que sobrevivera, mas
teve ainda voz para contar ao velho sacerdote a lamentosa façanha. Depois
debateu-se nas vascas d’afflictiva morte, e expirou. O povo, quando o
successo se espalhou, negou aos quatro irmãos sepultura em sagrado.
Enterrou-os ao sopé da Falpêrra, no mesmo logar, e levantou sobre as
vallas quatro pedras ainda hoje pregoeiras da tradição. Ora aqui teem a
historia. Não acha bonita? perorou João Nicolau voltado á viuva Machado.

—É interessante... Não sabia a lenda...

—Mas eu trazia isto a proposito do jantar de Guimarães... O Falcão
Osorio, que deve estar velho como eu, cavalgava na vanguarda. Ao chegar
aos _Quatro irmãos_ susteve o cavallo e veio, sobresaltado, segredar-nos
que tinha visto umas sombras, as quaes sombras lhe pareceram bandidos.
Não pensamos se a apprehensão era sensata. Acautelamo-nos subitamente
para a defensiva e mettemos a passo dando-nos ares de valorosos
cavalleiros. A Falpêrra d’aquelles tempos era covil de salteadores; o
coração, a julgar por mim, batia-nos desordenadamente. Ainda a julgar por
mim, posso dizer que era... de medo. Mas ó soprema irrisão que o destino
nos preparára, nivelando-nos com o cavalleiro de Mancha ao esgrimir
contra os moinhos! Os bandidos... eram arvores!

D. Maria d’Assumpção, ouvindo agora a centessima edição d’este conto,
sorriu ainda pela centessima vez. A viuva Machado simulou ter achado
graça; Eduardo e as duas meninas, se é que tinham ouvido, não sorriram.

João Nicolau fez reparo n’isto e apostrophou, dirigindo-se aos tres:

—Olhem que parecem uns velhos carrancudos! A menina Maria Luiza, porque
os nervos se lhe desafinaram, imagina-se em artigos de morte. A menina
Rosa vai silenciosa por não ver alegre a irmã, e o meu Eduardo, ao
lembrar-se de que terminam hoje as férias, perdeu a voz!...

—Como são muitos os divertimentos que elle tem em tempo de férias!...
objectou D. Maria d’Assumpção.

João Nicolau não esperava o remoque e replicou meio irritado:

—Tem os que quer ter.

—Não vale a pena agastares-te. O defeito, já t’o tenho dito, é de todos
os velhos, e por isso é de crer que tambem seja meu. A gente, quando é
velha, desassisadamente teima em moldar a vontade das pessoas novas,
que nos cercam, pela nossa, e não nos lembramos de que já não ha para
nós novidade nem surpresa. Lembro-me agora só d’uma excepção: a da mãe
d’estas meninas, que apesar de estar hontem indisposta, não se recusou a
dar-nos hoje o prazer de nos acompanhar. Isto é que é ser condescendente.

—É verdade, acrescentou por delicadesa João Nicolau.

—Que será da velhice dos rapazes de hoje, tornou D. Maria d’Assumpção
relanceando um olhar de benevolencia a Eduardo e a Maria Luiza, se se não
divertirem? Nem sequer terão para contar aos contemporaneos o caso... de
haverem tomado arvores por bandidos.

João Nicolau sorriu, porque D. Maria d’Assumpção lhe bateu amigavelmente
no hombro.

       *       *       *       *       *

Ao despedirem-se as duas familias, Maria Luiza segredou a Eduardo,
estendendo-lhe a mão convulsa e ardente:

—Eu sinto-me tão triste, que só o teu amor me póde dar coragem. Lembra-te
de mim, e sê forte.



XXVII


Foi profunda a prostração que sopitou Maria Luiza durante a noite. Ao
entreluzir da manhã, sobreveio certa agitação febril.

Chamado o facultativo, absteve-se de diagnosticar. Escrupulosamente
inquiriu porém se a doente tinha revelado soffrimento anterior ou se
havia experimentado uma sensação violenta que provocasse excitação do
systema nervoso.

A viuva Machado respondeu negativamente e pediu ao facultativo, com os
olhos banhados em lagrimas, que lhe não occultasse a verdade. Serenou-a
o medico dizendo que os temperamentos excessivamente nervosos tinham
caprichos especiaes que muitas vezes ludibriavam a medicina e que
podia bem ser que a febre desapparecesse depois d’um breve periodo de
intensidade.

A outra hypothese occultou-a elle para não ferir o coração materno todo
receios e afflicção: vinha a ser que podia a febre prolongar-se, e tomar
o caracter typhoide.

Trez dias depois, realisava-se a fatal hypothese. Sobreveiu o delirio e
Maria Luiza balbuciava palavras sem nexo:

—Impossivel... Disseste que chorava... Na capella do Horto... Não sentia
as lagrimas...

Outras vezes curvava-se a melancholica Rosinha sobre o leito e recolhia
este murmurio:

—O sol por entre as arvores... Sempre impossivel... Uma tristeza immensa.
Emilia... Deus...

A doze de janeiro escrevia Rosinha a Eduardo Valladares estas palavras:

«Hontem á noite delirou e tornou a fallar da capella do Horto e do sol
que scintillava através das arvores. Felizmente ainda não pronunciou o
seu nome. Não desespere, que eu ainda não desesperei tambem, e peça a
Deus por ella e por nós.»

Foram decorrendo os dias e nos ultimos do mez raiou um vislumbre
d’esperança.

Tendo passado a noite tranquilla, perguntou Maria Luiza, de madrugada, á
irmã, a que horas tinham vindo na vespera do Bom Jesus.

Rosinha respondeu, reprimindo impetos d’alegria:

—Viemos á noitinha, não te lembras?

—Não me lembrava, disse a doente. O que sei é que foi hontem. Foi tão
comprida esta noite!

Quando veiu o medico, jubilou com a boa nova da doente ter dado accordo
de si e perguntado a que horas vieram do Bom Jesus, suppondo que tinham
lá estado no dia antecedente.

—Ella tem razão, disse o doutor. Desde que veio de lá não tem vivido...
Todavia é uma grande esperança.

No dia seguinte, a viuva Machado e Rosinha choraram d’alegria ao ouvir
este prognostico do facultativo:

—Creio que posso dizer que está salva, apesar de ter ainda doença para
longo tempo. Cumpre haver o maximo cuidado no tratamento. Não lhe
dissipem sobretudo o engano a respeito do dia em que esteve no Bom Jesus.

Momentos depois recebia Eduardo Valladares as seguintes linhas:

«Diz o medico que está salva. Agradeçamos a Deus, meu amigo».

Estendeu-se pelo mez de fevereiro a longa convalescença de Maria Luiza.
Eduardo Valladares recebia todos os dias palavras da mão de Rosinha
convidando-o a confiar da misericordia de Deus a solução d’uma crise que
Elle visivelmente favorecia com as melhoras de sua irmã.

O filho do bacharel Valladares lia as cartas e redigia sobre as paginas
d’um livro intimo as longas meditações das noites de insomnia:

«Vão engrinaldar-se de flôres as arvores do valle e tapetar-se de
verduras os declives dos outeiros. Só a minha primavera não chega,
Senhor. Só não voltam com as andorinhas as minhas esperanças de um dia.
Embora. Deixaste que o anjo ficasse ainda na terra, e deixa tambem que
se abrandem as angustias que não merece. Eu creio em ti, Senhor, mas
choro nas trevas da minha noite, como tu choraste na cruz. Eras Deus e
foste homem. Bem sabes o que é soffrer e chorar. Não me exaspero nem te
maldigo. Tu eras filho do Eterno e soffreste; tu eras Deus e choraste
lagrimas de sangue. Como ha de o homem, cuja vida custa dores, eximir-se
ao pêso da sua cruz, se tu vergaste sob o madeiro? como não ha de chorar,
se os tens olhos orvalharam o sudario da piedosa mulher?

«Perdoa-me, se choro, Senhor Deus de misericordia.

       *       *       *       *       *

«Agonisante, orava profundamente», _Factus in agonia prolixius orabat_,
dizia a inscripção da capella do Horto. E pediste-me tu, anjo e martyr,
que entregasse á memoria o verbo das Escripturas!

«Querias dizer-me que me abraçasse á cruz nas horas de tribulação da
minha alma, ou significavas que o teu espirito olhava para Deus na lenta
agonia do teu supplicio?

«Era um incentivo ou um exemplo o que me apontavas?

«Se era incentivo, sabe que a minha alma só adormece quando sobe
ás alturas, embalada na religião de meus pais. Se era exemplo,
repetir-te-hei que comprehendo a extensão do teu soffrimento, que te
vejo sempre ajoelhada deante do teu crucifixo e que abraçaria a tua fé,
balsamo para todas as chagas, se desde o berço não houvesse apprendido a
balbuciar o nome de Deus.

«Choro, e por me vêres lacrimoso não acredites na minha descrença.

«Devo dizer-te que me não abandona a fé.

«Só a Deus peço que enxugue as lagrimas dos teus olhos, que restitua
ao teu coração as alegrias que eram d’elle. Este é o fito da minha
esperança, o alvo da minha fé immensa.

«Entrou commigo o remorso de te haver amado. Fui injusto quando fiz
estalar sobre a tua cabeça a tempestade das minhas desventuras. Choro a
minha culpa, a minha injustiça, e peço a Deus que não complete a obra da
tua abnegação.

       *       *       *       *       *

«Levantas-te do leito quando as flores se levantam no pendor da serra.
Põe os olhos no Céo, que ainda lá encontrarás a estrella confidente das
serenas alegrias da tua infancia. Desvia-os da terra para me não vêres
chorar. Não choro de desespero; choro porque tu choraste. As orações
d’alguem, de minha mãe talvez, trouxeram do Céo balsamo para a minha
alma. Se Frei Domingos soubesse das minhas amarguras, acreditaria que
tinha orado por mim.

       *       *       *       *       *

«E amo-te muito, mas porque te amo, Maria, não quero que os teus olhos
chorem as minhas lagrimas. Que te esqueças de mim ou que succumbas,
este é o meu pedir. E não ha impiedade na minha súpplica. Morrer não é
soffrer, é renascer. Eu é que preciso de viver para chorar. Renasce tu
para as auroras da tua patria ou foge dos espinhaes do meu caminho que
rasgariam de certo as tuas azas. Como havias de restituil-as depois ao
Senhor que t’as deu?»

       *       *       *       *       *

Uma noite, estava Eduardo Valladares escrevendo no seu livro intimo,
quando sentiu alvoroço na sala proxima. Acudiu a saber o que era.

Frei Domingos, que se não tinha ainda retirado, approximou-se e disse-lhe:

—Animo, filho. Espero que pedirá ao Céo a coragem que precisa para lêr...

E apresentou-lhe um telegramma, que João Nicolau recebera do Porto. O
telegramma dizia:

«Morreu repentinamente Sebastião Valladares. A viuva pede providencias
com a menor demora possivel».

Eduardo rompeu em afflictivo chôro. Frei Domingos encostou ao seu peito
a cabeça do orphão e afastou-o da sala onde D. Maria d’Assumpção e João
Nicolau choravam.

Ao romper da manhã vinham em caminho do Porto avô e neto, em caleça
alugada expressamente.

É breve a historia do passamento do bacharel. Sahiu do escriptorio, onde
estava trabalhando, estremamente anciado. D. Adozinda acudiu sobresaltada
ao chamamento de um escrevente. Sebastião Valladares inclinou a cabeça
sobre o hombro da esposa, e morreu. Disseram os medicos que tinha
succumbido a uma lesão do coração. O que os medicos disseram pouco faz ao
nosso proposito.

Dias depois do funeral, annunciou-se leilão da modesta mobilia e,
concluido isto, voltou João Nicolau a Braga, levando em sua companhia o
neto e a filha, cobertos do mesmo luto.



XXVIII


O bacharel Valladares, momentos antes de morrer, estava escrevendo ao
filho um carta que deixou incompleta.

Os mais significativos periodos d’essa carta diziam assim:

«Faze por ser humilde, e sujeita-te respeitoso aos conselhos das pessoas
que t’os podem dar, nomeadamente á vontade de teu avô, em quem eu vejo,
além d’um dedicado amigo, o pae de tua mãe. Não ponhas os olhos n’umas
alturas em que o commum da humanidade fita a vista, se queres ser
feliz. Se eu te posso servir d’espelho em alguma coisa, é no que toca a
desambição e a serenidade d’espirito e de consciencia. Vivo tranquillo
para os affectos da minha casa; se tu estivesses n’esta hora ao pé de
mim e de tua mãe, julgar-me-hia em plena posse da verdadeira felicidade.

«Quando saio a nossa porta, sinto-me triste. É que entro no mundo, não no
mundo em que vivo, mas no mundo em que vivem todos. Os olhares dos que
vão passando, não me offendem por desdenhosos, mas incommodam-me porque
não são doces e sinceros como os de tua mãe. Realmente não me sinto bem
no meio da turbamulta.»

«A idéa da morte, se me entristece, é porque me faz lembrar que tenho de
separar-me de tua mãe para sempre...»

N’este relanço levantara se anciado o bacharel para não mais se sentar
á sua banca. Morreu como viveu: serenamente. Um momento d’agonia não se
lhe afigurou decerto o resvalar para o tumulo, e não teve por isso tempo
de sentir estalar os élos que o prendiam á felicidade. Encostou ao seio
amigo a cabeça para descansar. Queria talvez adormecer... Cerrou os olhos
e não accordou.

Rezaram-se os responsos de sepultura na egreja dos extinctos carmelitas
do Porto. Antes de chegar o feretro, appareceu na sacristia um sacerdote
que entrou, curvado de velhice, relanceando um olhar saudoso para um e
outro lado.

Era Frei Domingos do Amor-Divino.

Durante os officios, foi notorio que o mais edoso dos padres não podia
reprimir as lagrimas. Os raros amigos de Sebastião Valladares affirmavam
não o ter visto uma unica vez em casa do bacharel. Correu porém voz de
ser carmelita, e logo se explicou a razão de suas copiosas lagrimas,
lançando-as á conta de saudades do hábito, evocadas pela entrada n’um
templo da sua ordem.

Frei Domingos, depois de terminados os responsos, solicitou licença do
sacristão para vêr o cadaver. Largo tempo o esteve contemplando com os
olhos afogados, em lagrimas.

—Dizem que era um homem honrado, apostrophou o sacristão.

—Oiço dizer que sim, respondeu Frei Domingos. E, vendo-o, acredito que o
foi.

—Pois... não eram amigos?

—Nunca lhe falei, nem sequer o vi.

—Deixou-lhe talvez alguma coisa? replicou o sacristão affeito a vêr
copiosamente chorar nos enterros as pessoas contempladas com verbas
testamentárias.

—Deixou-me... sincera pena de o não haver conhecido, respondeu Frei
Domingos agradecendo e retirando-se.

Ás seis horas da manhã, entrava Frei Domingos na diligencia de Braga.
Ninguem no Porto soube como se chamava e d’onde era. Os amigos do
bacharel noticiaram a João Nicolau e a Eduardo Valladares que, na egreja,
um dos sacerdotes, frade carmelita segundo se disse, estivera chorando
a ponto da commoção lhe embargar a voz. Outrosim perguntaram se este
frade era relação da casa, parente ou amigo. Eduardo Valladares deteve-se
um momento a consultar a memoria e respondeu negativamente. João
Nicolau, como porém tivesse ouvido falar em frade carmelita, sentiu se
impressionado, e sem pensar que fosse elle, lembrou-se n’aquelle momento
de Frei Domingos do Amor-Divino.

Quando o velho egresso voltou ao seu cubiculo da rua do Carvalhal, a
trémula Gertrudes sahiu a recebel-o mais jubilosa que nunca.

—Ó sr. Frei Domingos, exclamou ella, como me disse que tinha de fazer
jornada, sempre estava inquieta. V. s.ᵃ já não está muito para andar
pelos caminhos!

—Ó boa mulher! com o auxilio de Deus vae-se bem para toda a parte. Mal
sabe a sr.ᵃ Gertrudes d’onde eu venho. Pois oiça lá: fui ao Porto.

—Ao Porto! acudiu admirada a velhinha.

—Ao Porto, sim. E olhe que me não succedeu mal nenhum. Jornadeei em
diligencia pela primeira vez na minha vida. E sempre lhe direi que isto
de diligencias não foi a peor cousa que o progresso nos trouxe.

—Oura-se muito, pois não oura?

—Não se oura nada, mulher. A gente acostuma-se aos solavancos, e depois
vae menos mal. Comparado isto com as jornadas a cavallo, d’outros tempos!

—Acho que ha lá por fora muitas coisas novas. Eu é que não tenho visto
nada, nem quero vêr. «Boa romaria faz quem em sua casa vive em paz.»

—Assim é, mulher, mas ha casos que podem mais do que as leis. Tambem me
chegou a minha vez d’andar em diligencia.

O medico assistente de Maria Luiza dera-lhe licença de sahir pela
primeira vez, justamente no dia em que se enterrava no Porto o bacharel
Valladares.

Era um formoso dia dos ultimos de fevereiro.

—Ora vá, disse-lhe o facultativo. Não tardam a desabrochar as flores;
v. ex.ᵃ deve apparecer tambem. Tome porém cuidado com o passeio. Não vá
longe.

—É que realmente não sei para que lado hei de ir.

—Convem que se não exponha. Vá para o lado de Infias, mas não se demore
muito.

Quando o facultativo sahiu, Maria Luiza sentou-se a escrever a Eduardo
Valladares as seguintes linhas:

«Tenho licença para sahir hoje pela primeira vez. Emfim! Vou com minha
mãe e com Rosinha. Ao meio dia apparece, como quem anda passeando, perto
da quinta de Infias. Não faltes.»

Maria Luiza chamou a irmã para fazer chegar o bilhete ao seu destino.
Rosinha ficou inquieta. Tinha occultado a morte do bacharel e a sahida de
Eduardo para o Porto. Revelar a verdade era alancear o coração de Maria
Luiza; continuar a occultal-a seria o mesmo que não explicar a falta de
Eduardo no passeio a Infias.

—Está decerto agora nas aulas e talvez o não possa receber...

—Não me disseste outro dia que elle tinha recebido bilhetes teus no
Seminario?

—Sim... disse. Mas se estiver nas aulas... Eu vou mandal-o... oxalá que
ainda vá a tempo.

Quando sahiram, Rosinha levava o coração opprimido.

—Vaes triste? notou Maria Luiza.

—Não vou; ir calada não é ir triste.

—Tens razão.

Chegaram a Infias.

O coração de Maria Luiza pulsava vertiginosamente—d’esperança; o de
Rosinha batia tambem agitado—d’afflicção.

A estrada estava deserta. Decorreram minutos. Ninguem. Maria Luiza
relanceou á irmã um olhar de eloquente interrogação. Rosinha simulou não
dar tento, e fitou os olhos n’um ponto que ella nem sequer via...

Decorreram mais alguns minutos de completo silencio.

—Não vaes boa? perguntou a viuva Machado a Maria Luiza, inquieta pela vêr
extremamente pallida.

—Vou boa, minha mãe. Não é nada...

—Talvez seja longo o passeio. Voltemos, se querem.

—Não, vamos até alli mais adeante, e voltemos depois, respondeu Maria
Luiza.

Era a ultima esperança.

Fôram um pouco mais adeante. Não appareceu ninguem. Maria Luiza voltou-se
e disse abruptamente:

—Vamos embora; agora é que me não sinto boa.

E depois, segredando á irmã:

—Não veiu!

Então Rosinha achou que devia dizer meia verdade. Contou que Eduardo
Valladares tinha ido ao Porto por motivo imprevisto.

Maria Luiza sorriu doloridamente e disse:

—É possivel que fosse ao Porto, mas é impossivel que não estivesse hoje
aqui se já me não tivesse esquecido.

E, tão agitada como incredula, repelliu todos os protestos que lhe fazia
a irmã de haver dito a verdade quanto á ida ao Porto.

—Fez-te mal sahir! disse a viuva Machado com o coração opprimido por um
torturante presentimento.

—Não é nada, minha mãe; socegue. Vêl-a inquieta, é que me incommoda.

Maria Luiza, a mariposa alegre d’outros tempos, alma creada para as
flores e para o sol, era, bem o sabeis, uma d’essas creaturas que
se deixam ir embaladas no ambiente da felicidade e que um dia, ao
encontrarem a chamma que as namora, ou a atravessam impunemente ou
crestam n’ella as azas iriadas. São estas frageis creaturas as que mais
podem luctar com as tempestades da vida, mas se uma vez succumbem,
deixam-se morrer lentamente, abraçadas, permittam-me que diga assim, ao
pensamento que lhes envenena o coração.

Maria Luiza julgou-se esquecida pelo homem a quem amava. Esta ingratidão
suffocava-a. «Por que não iria elle, perguntava a si mesma na sua
afflicção, porque não iria vêr-me, depois de me não ter visto ha tanto
tempo? E os meus pensamentos todos eram seus! Se sonhava... via-o no meu
sonho. Dizia-me o coração que não morria, porque o amava... E elle não
foi!»...

Á noite, queixou-se de extrema inquietação. Chamou-se á pressa o
facultativo.

Antes d’elle chegar, Maria Luiza levantou-se de golpe, disse que uma
nuvem vermelha lhe tirava a vista, e bolçou sangue.



XXIX


Moralmente, Rosinha soffrera tanto ou mais que Maria Luiza.

O seu amor, a sua dedicação pela irmã estremecida levou-a a occultar a
morte do bacharel Valladares.

—Sabendo-o, soffrerá metade das dores que dilaceram o coração luctuoso de
Eduardo. Peorará decerto, pensara Rosinha nos extremos do seu carinho.

Depois, acercou-se de sua mãe e disse:

—Não lhe parece que será melhor não dizermos que morreu o genro do João
Nicolau?

—Sim... talvez.

—É sempre desagradavel a noticia d’um fallecimento. Agora, porém,
tão impressionavel a tornou a doença, que parece-me que seria melhor
occultarmos...

—Pois sim, não digamos nada.

Quando Maria Luiza lhe entregou o bilhete, Rosinha ficou sobresaltada.
Exprimiu o receio de Eduardo Valladares o não receber a tempo, para ir
dispondo o ánimo da irmã. Não previu as tristes consequencias que vieram
surprehendel-a. Suppoz que o adeantado da hora seria razão sufficiente
para explicar a ausencia de Eduardo, e que Maria Luiza diria de si para
comsigo «não pôde vir» em vez de «não quiz vir.»

Para acalmar a irmã, resolveu-se, como vimos, a dizer ao menos meia
verdade.

Não foi acreditada.

É inexplicavel o que em algumas horas soffreu a boa alma, toda dúvida e
receio, toda amor e afflicção...

Em casa, no regresso d’aquelle triste passeio, Rosinha, muito atribulada,
disse á irmã:

—Socega, por Deus. Amanhã te explicarei toda a verdade.

Maria Luiza olhou-a com fixidez, e sorriu um breve sorriso que tinha
tanto de tristeza como de incredulidade. E continuou a luctar com a mesma
ancia, cada vez maior.

O facultativo ficou surprehendido do estado em que veiu encontrar Maria
Luiza e não pôde deixar de o attribuir a hemorrhagia da membrana mucosa
pulmonar. A hemoptyse estava manifesta. O sangue era acompanhado de tosse
violenta e no meio da ancia, que a suffocava, queixava-se Maria Luiza de
intenso calor sobre o peito.

Quando a doente socegou algum tanto, o facultativo disse em particular á
viuva Machado:

—Sua filha, comquanto fôsse clara certa predisposição que infundia
receio, enganou-me, e eu vou dizer em que. Fiei muito d’uma convalescença
remançosa, que ella devia ter e que, rigorosamente observada, seria
barreira á obra da destruição. N’isto foi que me enganei. Sei que estou
dilacerando o coração da mãe, mas devo usar d’esta franqueza para com a
enfermeira. Tiremol-a d’aqui, quanto antes, o mais breve possivel. Para
que não vae v. ex.ᵃ para a quinta do Prado? Está á porta a primavera;
appellemos para ella.

—Para a quinta do Prado... Mas para lá...

—Diz v. ex.ᵃ?...

—Ha o inconveniente de a approximarmos do tumulo da irmã, por quem morria
d’amores...

—Ah! Fez v. ex.ᵃ bem em me informar d’essa circumstancia, que eu
desconhecia. Não sabia onde repousava a filha de v. ex.ᵃ; sabia
apenas que tinha succumbido a uma tisica pulmonar. É pois conveniente
escolhermos outro local.

—Lembro-me do Bom Jesus, que é o seu passeio favorito. Podiamos requerer
aposento na _Casa da mesa_. Que lhe parece, sr. doutor?

—Sabe v. ex.ᵃ que de todos os sitios affluem numerosos doentes ao Bom
Jesus. É difficil encontrar mais salutar atmosphera. Mas ainda assim,
pelo que toca a condições hygienicas, não pode comparar-se com a quinta
do Prado. Torna-se, porém, indispensavel atalhar o mal obstinadamente, e
haver rigorosa observancia de prescripções. Convem livral-a sobretudo do
nevoeiro da serra, de certa viração perfida que sopra de manhã e de tarde
no Bom Jesus.

—Oh! mas diga-me se tem esperanças de a salvar, sr. doutor, lembre-se
n’este momento de que sou mãe.

—Socegue, minha senhora. Empenharemos todos os esforços e
restituil-a-hemos á vida.

Sahiu o medico, dissipando com as exhalações d’um charuto as esperanças
de salvar Maria Luiza.

Ha só uma coisa comparavel á consciencia dos medicos: é a consciencia
dos ministros. Esta relação de semelhança deve lisonjear os homens da
sciencia...

Na manhã do dia seguinte, Rosinha curvou-se sobre o travesseiro de Maria
Luiza e murmurou:

—Se me podes ouvir, ou se estás para isso, queria dizer-te uma coisa...

—Dize.

—Perdôa-me, por Deus, perdôa-me. Hontem não te disse toda a verdade.
Pobre de mim, que não previ o mal que ia fazer!

—Eu sabia que me enganavas. Comprehendi, porque sei quanto és minha
amiga, Rosinha...

—Tu sabias?

—Sabia. Sabia que querias justificar a ingratidão, o esquecimento d’elle,
só para não me magoares.

—Enganas-te. O amor desvaira-te. Elle não pôde ir, porque...

—Por que?...

—Socega. Vejo-me, porém, obrigada a fazer-te esta revelação. Pesa-me de
não a ter feito hontem. Quando a mamã estiver presente, mostra que não
sabes...

—Dize, dize.

—O Eduardo está realmente no Porto.

—Quiz fugir-me?

—Não. Foi chamado á pressa. Sebastião Valladares... morreu.

—Morreu! E por que m’o não disseste? Receavas que me fizesse mal, bem
sei, minha boa irmã. Morreu! Como elle terá soffrido! E eu accusava-o,
Rosinha, accusava-o porque me dilacerava o coração a lembrança de me não
ter ido vêr, a mim, que me levantava do leito depois de tantos dias de
soffrimento... Como eu fui injusta...

—Socega. Que não te vá fazer mal...

—Não faz, não. Pobresinho d’elle, que parece ter nascido sob o influxo
d’uma estrella funesta. Não lhe bastava o que soffria por minha causa!
Ainda mais isto! Soffre-se tanto quando se fica sem pae! Lembras-te do
que nós sentimos e chorámos, quando nos faltou o nosso, Rosinha?

—Cala-te, minha amiguinha, cala-te. Pode ouvir a mamã. Não fales
mais. Hontem de tarde, se t’o dissesse para remediar o mal que
involuntariamente fiz, talvez não acreditasses.

—Talvez não.

—Hoje, porém, tenho provas.

—Tens provas?

—Promette que te não alvoroças, se não...

—Ah! escreveu-te! Deixa-me ver, deixa-me ver.

—Eu leio...

—Não sejas cruel, Rosinha. Deixa-me ler, que já tenho saudades de ver a
sua lettra...

Rosinha entregou a carta que tinha recebido, do Porto momentos antes.
Maria Luiza leu:

«Minha boa amiga:

Escrevo-lhe do Porto. Sabe já decerto que meu pae morreu. Occulte-o a
ella, por quem é, occulte-lh’o. Como sentiria as dores que eu só devo
sentir, se ella o soubesse! Podia talvez peorar.

«Quando olho em mim, e conheço que levei a minha desgraça áquella alma,
que não a merecia, sinto remorsos de a ter amado. Que Deus me perdôe, e
a salve a ella. Não posso ser mais extenso. Basta dizer-lhe que meu pae
baixa hoje á sepultura. Voltarei dentro de pouco dias.»

—Rosinha, minha irmã, reza commigo a Nossa Senhora. Rezemos por elle, que
é muito infeliz; por mim, não, que eu sinto-me boa.

E brilharam-lhe lagrimas nos olhos. Sobreveiu um frouxo de tosse, e após
a tosse uma lufada de sangue...

Passadas horas, respondia Rosinha a occultas da irmã:

«Occultamos-lhe a morte de seu pae. Procuramos, porém, afastar um mal,
e approximamos outro. Mando-lhe o bilhete que ella me dava hontem para
eu lh’o fazer entregar, na supposição de estar, em Braga. Continuei
ainda a occultar a cruel verdade sem pensar nas consequencias funestas
da minha dedicação. Á conta de esquecimento tomou ella a sua ausencia.
Era manifesto que soffria muito quando recolhemos, mas foi-me então
impossivel remediar o mal, revelando toda a verdade. Ás nove horas da
noite, sentia-se muito incommodada e momentos depois abafava-lhe a voz
uma onda de sangue. Pobre irmã! Venha depressa, que eu sinto que me falta
o ánimo. Hoje confessei-lhe tudo. Quiz lêr a sua carta, e lamentou-o
muito com os olhos cheios de lagrimas. Vamos amanhã para o Bom Jesus.
O facultativo aconselhou ares mais puros sem perda de tempo. Venha
depressa, sim? A precipitação com que lhe estou escrevendo explicará o
laconismo destas linhas.»

Quando Rosinha voltou ao quarto, disse-lhe Maria Luiza:

—Tu respondes hoje?

—Eu! Não tenciono.

—Quero então pedir-te um favor.

—Dize o que é.

—Se me deixavas escrever...

—Escrever! Mas se te vae fazer mal...

—Não faz, eu sei que não faz.

—Com uma condição: quatro palavras, apenas.

—Pois bem. Quatro palavras apenas, respondeu Maria Luiza.

E escreveu com bastante difficuldade para sustentar a penna na mão
convulsa:

«Sei o que terás soffrido, meu pobre Eduardo!... Que o meu amor te dê
coragem. Não receies por mim, não? Eu estou boa. Queria que viesses,
porque vamos ámanhã para o Bom Jesus, e não sei como hei de estar lá sem
ti. Já não te vi ha tanto tempo...»

Rosinha interrompeu-a para dizer-lhe:

—Já escreveste muito. Se te faz mal... Se vem a mamã.

E ouviram-se passos no corredor.

—Ella ahi vem, não ouves?



XXX


João Nicolau e Frei Domingos estavam conversando um dia e naturalmente
veiu a declinar o dialogo sobre o futuro de Eduardo, que parecia mais
triste do que nunca.

—É pois resolução assente o sacerdocio? perguntou o carmelita.

—Assente, respondeu João Nicolau. Foi sempre desejo meu encarreiral-o por
este caminho. Ao principio receei que o meu proposito o contrariasse. Ha
tempos a esta parte, cuido perceber que lhe não desagrada o futuro que
lhe dou gostosamente.

—Hade o sr. João Nicolau lançar á conta da amizade com que me trata
as impertinencias d’um velho. Deixe-me todavia ser franco—disse Frei
Domingos do Amor Divino com os olhos marejados de lagrimas. Entrei n’esta
casa supplicando a Deus que me preparasse um dia este momento, em que eu
pudesse dizer ao homem honrado: «Aqui estão os meus cabellos brancos;
ouve-me, se elles te inspiram compaixão.»

João Nicolau sentia-se perplexo e commovido.

Frei Domingos continuou:

—Um dia, um homem velho como eu, coração sem mancha, como prouvera ao
Senhor que fôra o meu, bateu á minha porta e disse: «Desgraças communs
prenderam o meu coração ao coração d’outro homem, cujo filho se abeira
hoje de mim, a instancias do pae, para pedir conselho á minha velhice,
não á minha discreção. Descobri sombras na fronte que se devia illuminar
com o clarão da mocidade. Vi curvada com melancholico pendor a roseira
que se devia erguer attrahida pelas flechas do sol. Sondei. Desci
cautelosamente ao coração de dezeseis annos e encontrei-o traspassado
por um espinho. A pobre alma confrangia-se deante d’um futuro que se
approximava dia a dia, e que ella queria remover, ou porque estivesse
embalada nas castas doçuras da sua edade, ou porque a apavorasse a
austeridade do sacerdocio.» Disse-me isto o ancião com voz trémula de
commoção e velhice. Depois, voltando-se de novo para mim, accrescentou:
«A missão do levita é supplicar e esclarecer. Vá: supplique e esclareça.
Fale ao coração piedoso do homem que chamou a si o neto desprotegido
da fortuna para lhe aplanar o caminho da vida. Vá e diga-lhe curvado
de respeito: «Venho desafogar comtigo, porque sei que o teu coração é
brando; ouve-me e Deus te agradecerá». Era eloquente e justa esta voz.
Obedeci e vim. Aqui estou, sr. João Nicolau, para lhe pedir que me oiça.
Direi o que a razão me fôr suggerindo; depois terminarei com o dito da
Escriptura: «Se eu errei, corrige-me tu; se eu falei com iniquidade, não
accrescentarei mais.[13]»

—Oh! sr. Frei Domingos... exclamou João Nicolau sem poder concluir a
phrase.

—O melhor futuro não é o que nos parece melhor; é o que Deus nos prepara.
O coração affectuoso pode enganar-se ao talhar felicidades que nunca
cheguem. Não digo que venha a ser assim; quero dizer que o coração do sr.
João Nicolau, estremoso e bom, pode enganar-se em sua mesma bondade. Um
dia as lagrimas de seu neto podiam amargurar-lhe os remanços da velhice.
O sr. João Nicolau choraria a sua e a alheia desgraça ao ver despida
de flores a arvore do seu amor. Não me pesa a mim a batina, porque a
procurei e a vesti eu mesmo. Prouvera ao Senhor, porém, que conhecesse
menos hombros avergados sob ella, que era então certo conhecer menos
infelizes. O sacerdote que não tem o ánimo despreoccupado, serve mal a
Deus e á sua alma. Não me quero engrandecer, nem aos que voluntariamente
abraçam o sacerdocio. Quero dizer que não poderia curar promptamente
as dores alheias, se todos os dias tivesse de pensar a chaga incuravel
do meu desespêro. Toda a vida tem espinhos; o sacerdocio tambem. O
marinheiro que voluntariamente embarca, corajoso lucta com as tempestades
do mar e todo se delicia na contemplação do azul purissimo das aguas,
quando céo e mar estão serenos. O que navega coagido nem desteme a
tormenta nem se consola com a suavidade da paizagem. Para tal marinheiro,
o mar é sempre um abysmo, ou durma ou se encapelle. Que cada um procure
o rumo da sua derrota. Depois, quando já tiver embarcado, digamos assim
ao nauta querido do nosso coração: «Filho, deixa-me guiar o teu batel, em
quanto o teu braço fraqueja».

Frei Domingos parou um momento, fatigado pela commoção. João Nicolau
approximou-se e disse com olhos humidos de pranto:

—Sr. Frei Domingos, as suas palavras convencem me. Pensei que meu neto
não ia sacrificado ao destino que lhe eu dava. Suppuz a principio que a
idéa da solidão do presbytero lhe pusera medo. Chegada, porém, a hora de
lhe indicar um caminho, vi-o calar se sereno e...

—Agradeçamos a Deus que lhe não endureceu o coração; é humilde. O filho
d’aquelle homem, cuja face gelada era serena como a superficie d’um lago,
devia compartilhar das virtudes enthesouradas no coração do pae. Eu vi o
cadaver de seu genro...

—O sr. Frei Domingos! Ah! pois era o carmelita?...

—Fui ao Porto, que me dizia a consciencia que devia ir. Entrei aqui, e
fui recebido, sob este tecto, como não merecia. D’esta grande divida
que tenho em aberto, e que decerto não posso saldar, procurei pagar a
centesima parte dos juros, amontoados. Á volta do feretro d’um parente
intimo d’esta casa, reuniam-se sacerdotes; era lá o meu logar; fui
tomal-o. Não faltavam á viuva e ao orphão consolações d’amigos; as
minhas seriam menos prestantes. Foi por isso que não appareci á familia
annojada. Na egreja senti uma extranha commoção: chorei. Talvez fôsse
fraqueza o chorar; talvez. São percalços da velhice. Estava-me lembrando
das desgraças que poderiam fulminar o orphão, se a minha voz fôsse
impotente para convencer o sr. João Nicolau. E olhe que não vae n’isto
offensa ao seu coração. Não receava por elle; receava por mim. Da palavra
do conselheiro depende a efficacia do conselho. O bom terreno, por mal
semeado, pode deixar de fructificar. Enganei-me, sr. João Nicolau,
enganei-me. Não é verdade? Não é verdade que veiu Deus em nosso auxilio,
porque o seu entendimento adivinhou o que eu deixei de dizer? Diga-me que
sim, que é esta a maior alegria de ha trinta annos. O sr. João Nicolau
é bom... Bem vejo que está chorando. «Fazei justiça ao necessitado e ao
orphão»[14] diz o _Psalterio_. O sr. João Nicolau é religioso, e ha de
fazel-a. Dê-me um abraço, meu amigo, que eu leio nas suas lagrimas a
resposta que a commoção lhe não permitte dar-me...»

Foi edificante aquelle lance em que dos olhos dos dois velhos brotaram
copiosas lagrimas. Por longo tempo nem um nem outro pôde falar. O
silencio dava certa grandeza ao quadro.

Decorreram minutos, após os quaes Frei Domingos conseguiu dizer:

—Bemdito seja o nome do Senhor! Vou d’aqui rejuvenescido. Vou dizer a
Rodrigues d’Abreu...

—Tinha adivinhado logo que era elle. Em Braga, não podia ser outro. Bom
coração aquelle!

—Bom coração é, realmente. A elle devemos esta alegria, que veiu
illuminar a nossa velhice. Vou dizer-lhe: Permittiu Deus que eu visse a
realisação de tamanha esperança. Receei uma vez, e chorei. O Senhor das
alturas perdoou-me, cobriu-me com a Sua grandeza, depois de ter inspirado
o coração a que me dirigi.

Passados dias, João Nicolau chamou o neto á sua presença e disse-lhe:

—Estamos sós, e espero que me falarás com a lizura com que falarias a teu
pae.

—Responderei com a voz do coração.

—Cabe-me o dever de dirigir a tua educação, e não quero violentar-te a
acceitares um futuro que te repugne. Se até hoje fiz mal, determinando-te
uma carreira, dir-m’o-has agora. Responde-me com franqueza. Da resolução
que tomares depende tudo e, depois de consummada a obra, é impossivel a
emenda. A tua recusa não me desgosta, nem me contraria. Se assim fôsse,
não te chamaria para me expores a tua vontade.

Eduardo Valladares levantou para o avô os olhos tristes, e respondeu com
firmeza:

—Agradeço do fundo do coração, meu avô, o sentimento que o levou a
querer ouvir-me sobre este ponto. Respondo, abrindo-lhe a minha alma. O
sacerdocio, a que me destinava, apavorava-me quando eu sentia enflorar-se
o peito com as primaveras que são apanagio dos primeiros annos da vida.
Entre mim e a minha esperança, via levantar se a barreira do sacerdocio.
Chorei, exasperei-me, e levei o écho das minhas amarguras aos ouvidos de
quem entrava no mundo com direito a sahir d’elle sem rasgar o coração
na minha corôa d’espinhos. Quiz rebellar-me, no meu desespêro, contra a
vontade de meu avô. Suspendeu-me sempre á beira do precipicio um braço
amigo, apontando-me para o Céo. Esperei do Céo o balsamo, o confôrto. Sem
deixar de crer em Deus, via porém crescer hora a hora o meu desespêro.
Era horrivel viver assim, meu avô! Fui vivendo uma vida d’esperanças e
de lagrimas, de fé e de descrença... Só sabe comprehender isto, quem
viveu assim. Era delicado de mais para tamanhas procellas o coração que
eu amei. Despedaçou-o aquella agonia lenta. Despedacei-o eu, meu avô.
A martyr succumbiu ás minhas dores. Amava-me de mais para me esquecer.
Chorei de desespêro; choro agora de remorso. Encherei com as minhas
lagrimas o calix do sacrificio. Na expiação de todos os dias supplicarei
o perdão de Deus. Quero e devo expiar assim, meu avô, se a pessoa a quem
me refiro adormecer no tumulo para accordar no Céo.



XXXI


«As arvores tanto as tenho para mim como para os passaros» escreveu
Lamartine no formoso livro _Pedreiro de Saint-Point_.

Ó alma sublime de poeta, tu não levavas o teu egoismo ao extremo de
quereres as arvores unicamente para te envolverem em mysteriosa sombra
nas tardes meditativas do estio. Tu sabias que esse mundo de folhas
verdes, sussurrante e oloroso, se pode servir de cupula ao homem em horas
de profunda meditação, é tambem das aves que se deixam absorver nos
seus extasis d’amor, e querem esconder-se nas sombras da floresta, para
cantar, sem que ninguem as veja.

Deixemol-as entoar os seus modilhos emquanto nós pensamos.

Ellas estão no seu mundo, nós estamos no nosso.

O universo é para todos.

Faz-me tristeza ver que os homens as perseguem, a ellas, que tornam
alegre a solidão dos campos e que traduzem em musicas suavissimas os mais
delicados pensamentos do amor e da saudade. Nós, quantas vezes nos não
embriagamos nos mais delicados pensamentos, nos mais mimosos affectos,
sem que possamos encontrar na palavra o prisma que reproduza as formosas
cambiantes do nosso espirito! Ellas, as aves, teem uma inflexão para
cada idéa, uma harmonia para cada sentimento. Merecem mais respeito as
pobresinhas, se não fôr por outra coisa, ao menos por isto—que já é muito.

A creança d’hoje ha de ser homem amanhã e, se lhe ensinarem a disparar
a sua clavina, irá desfechal-a contra o seio offegante d’uma andorinha,
que commetteu o unico delicto de querer procurar alimento para a sua
pequenina familia. Não digamos pois á creança que se embriaga nas
innocentes alegrias da sua edade: «Amanhã, visto que estás homemzinho,
faze-te caçador. Pega n’esta espingarda e vae pelo caminho fora. Rompe
através do matto, salta córregos, galga montanhas, que todos esses
sacrificios serão pagos pelo prazer sanguinario de matar. Se vires um
bando d’aves, ainda que seja uma caravana de passarinhos alegres, que
vão cruzando o espaço, como uma tribu nómada que atravessa o deserto,
faze pontaria e atira. Se ferires a mãe, fecha o coração á magua de
teres levado a orphandade e a viuvez a uma familia inteira, cerra os
ouvidos aos saudosos lamentos de quem fica viuvo e orphão n’esse deserto
dos céos! Se ferires o filho, esquece-te de que roubaste a alegria d’um
coração de mãe, de que a ave é tanto mãe, ou mais ainda, do que a mulher,
esquece-te, oh esquece-te... d’isto tudo e... desfecha a tua espingarda».

Apraz-me entrar n’um cerrado onde as aves vivem em plena liberdade sem
recearem da clavina do caçador, nem das redes da creança. Ahi cantam,
amam e noivam sem emmudecer de sobresalto uma unica vez. Se o bosque fica
perto d’uma corrente murmurosa, diremos que estamos no jardim do amor, ao
ouvir os rouxinoes. Se fica n’um retiro formosamente triste, diremos que
estamos na estancia da saudade, ao escutar as rôlas.

As aves da floresta do Bom Jesus do Monte seriam verdadeiramente ditosas,
se não as perseguissem as creanças—os unicos inimigos que ellas lá podem
ter. Quem quer ouvil-as, sobe á montanha sagrada; as creanças ouvem-n’as,
namoram-se de suas toadas alegres e querem prender as proprias aves, para
que já lhes não fuja aquella doce musica.

Maria Luiza e Eduardo Valladares estiveram na alameda da Mãe d’Agua, no
dia trinta de março, dia em que a floresta toda se levantava em jubilos e
canticos para saudar a primavera.

Maria Luiza, meio inclinada para o tumulo, parecia sorrir á amenidade
d’aquelle dia.

Tinha nas faces a pallidez da morte, mas descerravam-se-lhe os labios
n’um sorriso sereno como o da esperança. Esperaria ainda ella a
felicidade terrena? Cremos que sim. Dizia tranquillamente a Eduardo
Valladares, que no Céo havia um écho para cada desgraçado, e que lhe
segredava o coração que não estava longe a felicidade. Queria vêl-o
queria falar-lhe, queria ouvil-o a miude, e o pobre moço, desenganado
pela voz da medicina, amparava-a nos braços, na afflictiva ancia que
precedia quasi sempre uma nova hemoptyse. Muitas vezes dissera Maria
Luiza, quando ainda era alegre:

—Quem sabe se virei a morrer da morte de minha irmã? Talvez... Eramos tão
amigas!...

Depois que começara a soffrer, especialmente depois que foi para o Bom
Jesus, dizia a Rosinha:

—Eu hei de melhorar. Aqui amei e aqui soffri. Mas a gente gosta tanto
dos sitios onde soffre, amando, que é como se tivesse vivido n’elles sem
nunca ter chorado... Não posso morrer aqui, bem vês. Tudo são recordações
a chamar-me á vida. Não posso morrer, não.

—Pois não morres, não, respondia Rosinha, abafando a sua dôr.

N’esse dia, trinta de março, estavam Maria Luiza e Eduardo Valladares na
alameda da Mãe d’Agua. Acompanhara-a elle, dando-lhe o braço. Rosinha
sentou-se a distancia.

Á sombra das copadas arvores andavam armando aos passarinhos umas
creanças, filhas de duas familias inglezas, que do Porto, onde ainda hoje
residem, tinham ido passar alguns dias no Bom Jesus do Monte.

Andavam estas creanças folgando em commum divertimento. Quando uma
avesinha incauta descia a pousar na varinha traiçoeira, e ficava presa
no visco, sahiam os pequenos de trás dos troncos afastados, chalrando
alegremente n’uma linguagem que a plumosa victima devia entender, visto
ter dito Carlos V que o inglez é para se falar aos passaros.

Depois de prêsa a ave, armavam de novo, tornavam a esconder-se, e
trocavam-se ordinariamente no esconderijo estas phrases com intervallos
sempre deseguaes:

—_Be silent..._

—_It is coming..._

—_It has perched..._

—_It is caught!_

O mysterioso dialogo das impiedosas creanças orça por isto em portuguez:

—Sciu...

—Chegou...

—Pousou...

—Está preso!

Maria Luiza tinha dito a Eduardo Valladares, quando entraram na alameda:

—Trouxe-te hoje papel e lapis. Tenho saudades... dos teus versos, meu
amor! Desapprendeste a cantar nas tuas afflicções, mas hoje quero que
escrevas ao pé de mim para me certificar de que a tua alma está serena
como a minha...

Eduardo Valladares, coração afogado em lagrimas, acceitara o lapis e o
papel para não a contrariar.

Como porém o alvorôto das creanças distrahisse por momentos Maria Luiza e
Rosinha, não sem que revelassem assomos de compaixão, Eduardo Valladares
foi escrevendo ao correr do lapis.

—Escreveste? perguntou com alegria Maria Luiza.

—Escrevi; cumpri... o teu desejo, respondeu elle.

Diziam os versos:

    Ide embora, meninos, que é peccado,
          Armar aos passarinhos.
          Indiscretos brinquedos,
    Que levam lucto á paz de tantos ninhos
    Se toda a gente andasse a perseguil-os,
    Não tornaria ninguem mais a ouvil-os
          Nos densos arvoredos.
    Deixae-os modular doces modilhos,
          A musica do ar.
    Ao pé do berço, em quanto ereis creanças,
    Cantavam vossas mães plantando esp’ranças
    No cuidado jardim dos seus amores...
          Deixae-os vós cantar,
    Emquanto arrulham embalando os filhos
          Que dormem sobre flores...

    Posta que fôr a perfida varinha,
    Anceaes por vêr a saltitar no chão
          Descuidosa andorinha,
    Que se não lembra da infantil traição.

    Ninguem se move... Comprimis no seio
          O ardente respirar,
    Para que não ponhaes em sobresalto
          O bom do passarinho
          Que tentaes algemar.
    Se vos ouvisse respirar mais alto,
          Mudaria o caminho
    Por fugir aos pequenos salteadores,
    Que o estão esp’rando como vis traidores!

    Eil-o que se approxima embevecido
    Na tarefa que tem todos os dias.
    Vem cheio d’incerteza e d’alegrias...
    Se pudesse voltar tão bem provido
    Como hontem voltou! Mas se lhe falha
          A fortuna que teve,
          E não acha migalha
          Que, venturoso, leve!...
          Entretanto descobre
    A farta refeição—uma riqueza
          Para quem é tão pobre...
          Venturosa surpresa!
    Olha em roda... Ninguem... Escuta... ousou.
    E mal que toca a ração indefesa,
          Prisioneiro ficou...

    Surde de toda a parte a vozeria,
          O febril alvorôço,
    Conjunto de mil vozes d’alegria...
          O passarinho é vosso,
          Podeis emfim leval-o.
    Mas se já vos lembrou tel-o captivo,
          É bem melhor... matal-o.

—Ah! impressionaram-me estes versos. Tens razão... Fazer mal ás avesinhas
que são do ar! Lembras-te da primeira vez que viemos ao Bom Jesus? E dos
teus versos?... Atiraste-m’os ao regaço aqui, foi mesmo aqui...

Rosinha, que por um momento receou que Eduardo Valladares não pudesse
reprimir, ao escrever, as dores profundas que lhe torturavam a alma,
trocou com elle um olhar d’approvação, que a doente não surprehendeu.

N’este momento andavam as creanças, a distancia, mostrando-se com
estrepitoso jubilo uma avesinha que tinha ficado prisioneira.

Maria Luiza chamou uma, e vieram todas de tropel, orgulhosas da victoria.
Pediu-lhes que soltassem aquelle passarinho, que lhes não tinha feito
mal nenhum. O pequenito, que entendera perfeitamente, olhou para Maria
Luiza com desdem, mas uma inglezita de cabello loiro, talvez sua irmã,
voltou-se para o companheiro, pequeno como ella, e disse:

—_She is so ill! Do what she wished._

Felizmente Maria Luiza não sabia inglez; a pequenita tinha dito: «Ella
está tão mal! Faze-lhe a vontade...»

A avesinha, restituida á liberdade, desferiu vôo, e as creanças seguiram
n’a com a vista até que desappareceu através das arvores.

       *       *       *       *       *

Quantas vezes, ao despregarmos os olhos do azul purissimo em que se
esbatem os contornos d’uma paizagem deliciosa, não sentimos passar no
espirito uma tristeza subita, acompanhada do receio de não tornarmos
áquelle sitio?

Maria Luiza não se despedia das arvores da floresta, porque devia a Deus
o esquecer-se da realidade da vida, á beira do tumulo, embalada n’uma
esperança que o seu espirito em outra occasião não teria acceitado. Esta
doce tranquillidade, quando a vida lhe fugia veloz a cada momento que
passava, tomemol-a á conta de prodigioso effeito d’uma extranha causa.
Eu, de mim, elevo o meu pensamento a Frei Domingos do Amor Divino...

Maria Luiza não se lembrou, pois, n’aquelle dia, de que poderia ser o
ultimo em que tremessem sobre os seus cabellos as sombras ondulantes do
arvoredo da serra. Mas nós—os que furtivamente a acompanhamos, os que sob
o toldo sonoro da alameda a vimos amar e soffrer, os que nos costumamos
a querer áquellas arvores como ella mesma queria—nós digamos adeus aos
mil encantos que se escondem no crepusculo perpétuo da floresta, que não
sabemos se o destino nos deixará acompanhar outra vez a pallida visão,
avergada pela morte.

Adeus, sombras e murmurios, aves e ninhos, fontes e arvores. Adeus,
flores silvestres e borboletas que vos amaes. Adeus, folhas verdes que
sois namoradas dos seixos côr de rosa; adeus. Quem sabe? Talvez para
sempre—adeus.



XXXII


São de Eduardo Valladares estas palavras:

«No dia 5 de abril, fui chamado á pressa ao Bom Jesus por um creado da
viuva Machado que, ao romper do dia, batera á porta da casa de meu avô.

«Vesti me com precipitação e sahi immediatamente. Tão violentas eram as
pulsações do meu coração, com tamanha velocidade caminhava eu, que tinha
de parar a cada momento, suffocado, para poder respirar. Esta demora mais
augmentava a minha sobreexcitação.

«Eu tinha passado a noite, até ás onze horas, no Bom Jesus. Para evitar
assumptos inopportunos, adoptei o costume de lêr. Maria Luiza, que só
a custo podia falar, e que tinha sido obrigada pelo medico a estar
silenciosa, applaudiu a minha idéa, e gostava muito de me ouvir. Quando
se me deparava alguma passagem que não convinha lêr, por ter maior ou
menor relação de semelhança com a nossa dolorosa situação, passava-a em
claro continuando a leitura. Maria Luiza, que conservava um admiravel
vigor de faculdades intellectuaes, notava a incoherencia, e obrigava-me a
voltar atrás para justificar a censura.

«Assim passavamos as noites, e assim passámos a de quatro d’abril. Quando
desci a montanha, havia um formosissimo luar que tremia em scintillações
na concha das fontes. O silencio, o grande silencio das noites da serra,
era apenas quebrado pelo murmurio cadenciado e monotono das aguas.

«Em baixo, no valle, lampejavam os reverberos da cidade. Tudo o mais era
silencio e luar.

«A minha alma vinha entregue ás tribulações de todas as horas, mas não me
atravessava no coração o presentimento de tão proxima desgraça.

«Maria Luiza tinha estado a ouvir-me lêr, alegre, tranquilla, sem
denunciar maior soffrimento. Ás onze horas sahi, para voltar na noite
seguinte. O dia gastava-o eu nas aulas, e a estudar. Só os dias feriados
os passava todos no Bom Jesus.

«A verdade é que, depois de eu sahir, se queixara d’insomnia, e de
frio de pés. Logo lhe purpurearam as faces duas rosetas escarlates que
denunciavam accesso de febre. Sobreveiu a agitação, a impaciencia.
Perguntava anciada se já era dia, se eu não chegava, porque queria ir
commigo á Mãe d’Agua para respirar livremente. Mandou que lhe abrissem as
janellas para reconhecer a claridade da manhã. Abriram-lh’as. Como visse
o luar e as estrellas, contorceu-se febricitante. Foi então que expediram
o creado que me chamou. Durou bastante tempo o frenesi, após o qual veiu
uma violenta hemoptyse.

«Ficou extenuada a pobresinha, sem poder respirar. Era a prostração que
precede a morte...

«Quando eu cheguei, quando me ouviu a voz, descerrou os olhos, deu aos
labios o geito d’um sorriso, e murmurou com extrema difficuldade: Não
posso... Queria ir comtigo... Não te esqueças de mim... Morro decerto...»

Eduardo Valladares deteve se suffocado pelas lagrimas. Esperei que
pudesse continuar:

«Queria vir á Mãe d’Agua, não talvez para respirar melhor, mas para se
despedir, porque só então conheceu que morria. Foi no dia trinta de março
de 1853 que pela ultima vez estivemos aqui, na Mãe d’Agua. O medico,
receoso da extrema frescura da alameda, não consentia que viesse.

«Aqui tem como ella morreu... Que ella morreu, não... que deixou a
terra... O seu derradeiro pensamento foi para mim e para o sitio querido
dos nossos amores...

«Está sepultada no mesmo cemiterio onde jaz a irmã, ao pé da mesma sebe
engrinaldada de flores silvestres. O seu corpo está lá, na valla coberta
de boninas, mas sinto aqui, na Mãe d’Agua, alguma coisa que me denuncía o
perfume da sua alma. Dir-se-hia que respiro aqui a essencia da flôr que
se engastou nas constellações do Céo.

«Deixe-me abreviar esta narrativa, porque vou sentindo que me faltam as
fôrças. Resta-me resumir o que se passou desde 5 de abril de 1853 até
hoje, 15 de julho de 1870.

«Da minha familia resta apenas minha mãe, que vive da minha dôr, e é o
unico esteio a que me abraço, quando mais desconfortado me sinto.

«Frei Domingos do Amor Divino morreu em 1860.

«Ao entrarmos na egreja do Carmo, onde se rezaram os reponsos por alma
do virtuoso _Fradinho_, hoje santificado pela opinião publica, disse-me
Rodrigues d’Abreu:—Vamos, meu amigo. Devemos ambos muito á memoria d’esta
boa alma. E olhe que não sabe ainda tudo quanto lhe deve...

«Estas palavras despertaram a minha curiosidade. Quando sahimos, o sabio
bibliothecario circumstanciadamente me contou como Frei Domingos se
empenhara pela minha felicidade. Fiquei surprehendido. Rebentáram-me
lagrimas em jôrro. Depois que nos despedimos, voltei á egreja do Carmo.
Já estava fechada. Entrei em casa e orei por longo tempo. Levantei-me
tranquillo e fui buscar a velha Gertrudes, que sobrevivera a seu velho
amo. Estava inconsolavel. Dei-lhe abrigo em minha casa durante os oito
mezes que ainda teve de vida. Do que a Gertrudes contou e do que Frei
Domingos revelara, coordenei os apontamentos que sei da sua vida.

«Rodrigues d’Abreu, o coração nobilissimo, expirou, como sabe, ha sete
mezes, a 6 de dezembro de 1869.

«Resta-me falar da familia de Maria Luiza.

«A viuva Machado, avisada do risco que corria a vida da unica filha
que lhe restava, se não procurasse melhor clima, sahiu para a ilha da
Madeira. Rosinha casou no Funchal, cuido que por inclinação, onde vive em
companhia da mãe e do marido.

«E eu?...

«Contei-lhe a minha vida, revelei-lhe as paginas mysteriosas do meu livro
intimo, deixei-lhe vêr as minhas lagrimas... Que lhe posso dizer mais?
Não pensei no suicidio, não me atirei ao abysmo da morte para extinguir
as minhas dores, e adormecer.

«Procurei o balsamo onde o podia encontrar.

«Cada dia apparecem livros que abrem por blasphemias, e terminam pela
negação de tudo o que ha de defeso á razão limitada do homem. Eu, se um
dia escrevesse a minha historia, havia de terminar por esta palavra—DEUS.»

FIM

_Nota._—A estampa que illustra a capa d’esta edição reproduz fielmente o
antigo aspecto da alameda da Mãe d’Agua, no Bom Jesus do Monte.



NOTAS


[1] CONTOS AO CORRER DA PENNA—_No Bussaco_.

[2] Tudo isto está hoje mudado no Bom Jesus do Monte. Diogo Forjaz
descreveu assim, e com exactidão, o antigo aspecto do sitio da Mãe
d’Agua: «Deixando o terreiro dos Evangelistas, subindo alguns metros pela
matta na direcção de sueste, encontra-se um comprido passeio tapisado
de verdura, o qual conduz por debaixo de copado arvoredo a um tôsco
reservatorio d’agua, que lhe fica ao fim com assentos e mesa de pedra.»
(_Nota da 2.ª edição._)

[3] Sonet vox tua in auribus meis. Cant. II.

[4] Temos conhecimento do opusculo denominado _Manuel Rodrigues da Silva
e Abreu_. Apontamentos biographicos por Soares Romeu Junior; opusculo
publicado, em Lisboa, n’este anno de 1870.

O sr. Soares Romeu não pôde precisar a data do decreto que nomeou
bibliothecario o illustre biographado; averiguámos porém que elle fôra
despachado por carta régia de 26 d’agosto de 1842.—(_Nota Da 1.ª edição._)

[5] Vide IV volume, pag. 72.

[6] O nosso Deus, porém, está no Céo; tudo quanto quis, fez. Ps. CXIII.

[7] Na minha tribulação invoquei o Senhor, e chamei ao meu Deus. Ps. XVII.

[8] Diminuta era a livraria de João Nicolau, reduzida ás obras completas
de José Agostinho de Macedo e a uns tantos opusculos, inspirados na causa
absolutista e na conservação das ordens religiosas, que vieram a lume em
Portugal e no extrangeiro. O opusculo citado sahiu da Imprensa Regia, em
1814.

[9] Eccles. Cap. XI.

[10] O senhor Deus é o meu auxiliar.—Isaias, 4.

[11] Eurico o Presbytero, pelo sr. Alexandre Herculano.

[12] Prov. XVII.

[13] Job. XXXIV.

[14] Ps. LXXXI.



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