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Title: A capital federal : impressões de um sertanejo
Author: Coelho Netto, Henrique
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A capital federal : impressões de um sertanejo" ***


                           A CAPITAL FEDERAL

                     [Illustração: Coelho Netto]



                              COELHO NETTO

                          A _CAPITAL_ FEDERAL

                      (Impressões de um Sertanejo)

                               4.ᵃ EDIÇÃO

                             [Illustração]

                                 PORTO
                  Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
                   editores--Rua das Carmelitas, 144

                                  1915



                           _DO MESMO AUCTOR_


  Esphynge, 1 vol.                   6$0
  Sertão, 1 vol.                     $60
  Agua de Juventa, 1 vol.            $70
  A bico de penna, 1 vol.            $70
  Romanceiro, 1 vol.                 $50
  Jardim das Oliveiras, 1 vol.       $50
  Fabulario, 1 vol.                  $50
  Miragem, romance, 1 vol.           $60
  Theatro, vol. 1.ᵒ, 1 vol.          $80
  Theatro, vol. 2.ᵒ                  $40
  Quebranto (Theatro), vol. 4.ᵒ      $50
  Theatro, vol. 5.ᵒ             no prélo
  Apologos, 1 vol.                   $50
  Mysterio do Natal, 1 vol.          $50
  Inverno em flor                    $70
  O Morto, 1 vol.                    $60
  Banzo, 1 vol.                      $50
  A Conquista                        $70
  Rei Negro                          $80
  A Tormenta                    no prélo


No prélo, a seguir em novas edições:

  O Rei Phantasma                 1 vol.
  O Paraiso                       1 vol.
  O Turbilhão                     1 vol.

 A propriedade litteraria e artistica está garantida em todos os paizes
 que adheriram á convenção de Berne--(Em Portugal, pela lei de 18 de
 março de 1911. No Brasil pela lei n.ᵒ 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.)

_Ao Revm. padre Ambrosio Coriolano d’Annunciação Louzada, vigario em
Tamanduá, como humilde testemunho de gratidão, pelos severos conselhos
com que fortaleceu o meu espirito e pelos cascudos com que me abriu a
cabeça para que nella entrassem as regras de concordancia e os versos
de Virgilio, offereço este livro._

                                      _Tamanduá, em Minas--Janeiro, 93._



  Meu tio,


_Ha neste livro paginas que vos pertencem, porque eu nunca as teria
escripto se a minha Bôa Sorte me não tivesse guiado para o retiro de
ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato socego, praticando a moral
divina de Epicuro e cuidando flores; outras ha, e profusas, derivadas
da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos;
outras, finalmente, que seriam dedicadas á Jesuina se o escrupulo não
existisse na moral privada._

_Offereço, porém, as minhas primeiras letras ao padre Coriolano,
porque, sem elle, meu tio amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o
Venancio Dias, do rancho de Santa Engracia, ou como o José Taborda, da
cordoaria._

_Outros livros virão, nitidos e pensados; e, dentre elles, escolherei
o mais digno dos vossos merecimentos._

_Não alastro as paginas com dedicatorias: a meu pai, á minha mãi,
nos meus parentes e amigos, vivos e finados, para que se não diga
de mim o que por aqui se propalou a respeito do Brites, que encheu
quatorze folhas da sua these sobre o «cryptococus xantogenico», com
offerecimentos, envois e uma reclame a certa modista da rua d’Ajuda._

_Outros livros virão, meu tio amado._

                                                           _Affectuoso_,
                                                           Anselmo.



                                   I


Para estar de acôrdo com o horario dos trens deviamos chegar ás oito
horas e alguns minutos á estação, e estou certo de que assim teria
acontecido se não fosse o folgado e paciente atrazo de duas horas e
meia, que tivemos de aturar dentro dos compridos wagons de primeira
classe, nada inferiores ao _carcere duro_.

Desde as quatro da manhan, quando deixei o tecto paterno, sahindo
para a nevoa dos campos frios, até áquella hora, andava meu pobre
corpo aos solavancos, primeiro no dorso nédio da ruana, mais tarde
nos bancos do expresso, tendo por fronteiros dois homens terriveis,
de idéas contrarias--um rotundo, conservador e catholico, saudoso do
monarcha, bramando contra a indifferença do povo, que deixara partir
para o exilio o velho soberano, sem um protesto, sem um tiro ao menos;
o outro, de pêra, esgalgado e nervoso, livre pensador, formidavel
em theorias republicanas, contando que, nos muros da sua casa, na
Januaria, havia despojos de escaramuças contra sebastianistas: chuços,
arcabuzes, facas, fazendo panoplias e cercaduras em volta dos retratos
dos martyres mineiros: e discorria sobre as revoluções, reclamando um
baptismo de sangue, como o de 89, em França, sem o que a republica
nunca chegaria á consolidação perfeita.

O conservador pacato, abrandando o diapasão, atacava o procedimento
dos revolucionarios de Novembro, que haviam banido os altares,
rechassando os santos--a Virgem, a consoladora, a misericordiosissima
Conceição, Mãi de Deus e Amparo dos Afflictos. Podiam ter feito tudo,
mas deixassem a crença de cada um.

--A crença é a republica. A Conceição é a Patria. Qual Deus! Qual
Igreja, meu caro... o tempo dessas coisas passou. Havendo Constituição
e Justiça, para que diabo queremos nós santos? Deixemo-nos de
sentimentalismos piégas!

Veiu á questão o militarismo. O conservador impugnava a farda, queria o
civil. O esgalgado investiu.

--Mas onde encontral-o? Mostre-me um homem capaz de tomar a
responsabilidade do governo... Mostre-me, entre os casacas, um
cidadão á altura de exercer esse cargo. E, escancarando os braços,
escancellando a boca, os olhos esbogalhados: Não ha! Vamos muito bem
assim, não acha o senhor? Era commigo. Encolhi os hombros para fugir á
discussão. Elle tomou de uma botelha e offereceu.

O conservador, com um gesto nobre, rejeitou; eu rejeitei; e uma mocinha
triste, que vinha derreada, a olhar melancolicamente a paisagem, como
se por ali lhe ficassem pedaços do coração, teve um sorriso adoravel,
rejeitando, por sua vez. Seus olhos castanhos, entre grandes cilios,
alumiaram-me, e travámos palestra, em tom subtil e discreto, vindo eu
a saber, pelo cicio dos seus labios, que era professora em Sabará,
na fazenda de um tal Souza Gordo. E disse-me a sua patria--a Italia,
e o seu nome, já celebre no idyllio--Graziella. E eu, a ouvir-lhe as
suaves palavras, via as arvores passarem vertiginosamente, como se
os campos e os montes assustados fugissem diante do comboio rapido.
Emquanto andámos, não lhe percebi um movimento, um olhar que não
fossem do mais candido recato. Lia--um livrinho minusculo, capa de
percaline roxa e letras de ouro. Em Juiz de Fóra, offerecendo-lhe uma
corbelha de figos, aproveitei a sua distracção para surprender o nome
do poeta favorito--Leopardi. Era pessimista com tão angelico sorriso!
Amargo seculo em que as deusas trazem philtros no bolso e seguem a
seita sombria dos desesperados. Era, de certo, a idéa da morte que
lhe punha nos serenos olhos tanta melancolia. Na Barra, porém, tive
uma surpresa--voltando ao wagon, encontrei-a sem luvas, o véusinho
levantado, trincando, com voracidade, uma côxa de frango. Corou ao
ver-me, mas a fome venceu-a; e, até Mendes, fartou-se regaladamente,
escorropichando, por uma calha de papel, a farofia de manteiga e ovo.

Trevas de tunneis, verduras de campos, rampas, viaductos,
desfiladeiros, tudo vencemos em corrida vertiginosa, aos trancos, ás
vezes beirando abysmos, ou rolando sobre pontilhões, por cima d’aguas
encachoeiradas. Passavamos pelas estações num ápice; mal se podiam
ver as luzes dos lampiões e os vultos na platafórma. Quando, atravéz
da tela lucida dum aguaceiro copioso, avistámos os primeiros fogos
da cidade, bonds, carros, todos se puzeram de pé, arranjando malas,
espanando chapéus. O esgalgado respirou, safando o guarda-pó. O
conservador dormia beatamente e foi preciso que o sacudissem para que
despertasse.

--Chegámos, senhor barão.

Empoados, como nos tempos galantes dos Luizes, puzemos pé na platafórma
da estação, claramente alumiada pelas grandes lampadas foscas que
dão ao sitio uma luz de luar, pallida e triste. Dizem que os cães
que ali vão errar, á noite, estacam, levantam o focinho e uivam
lamentosamente. Pierrot seria capaz de enganar-se se não tivesse,
como eu, prevenido o espirito com uma leitura sobre a cidade e as
suas maravilhas. Entretanto, deixando o meu wagon, assoalhado de
cascas de frutas e de queijo, copiosamente cuspinhado, uma variedade
infinita de pontas de cigarros, algumas estripadas pelos pés barbaros e
entorpecidos dos viajantes que sapateavam, despindo o guarda-pó, senti
deslumbramento tal, que tive de fechar os olhos. Se eu sahia de uma
sombra propicia e somnolenta para esse plenilunio de Jabloskoff! Quando
abri os olhos, assombrado, estava entre homens de blusa parda e boné
branco, marcados no peito com algarismos negros, que me empolgavam,
que me berravam numeros e nomes, procurando arrebatar-me das mãos a
bengala e a maleta. Tive um assomo de energia e repelli com um murro um
«12» que se aferrara a mim, teimosamente, propondo-se. O repellão e o
socco valeram-me algumas palavras más, que resolvi deixar sem resposta
para tranquillidade de todos. Os homens abalaram em tumulto, correram
a outro ponto. Quando vi perdidas na multidão as blusas pardas,
resfolguei e, corajosamente, deitei a caminho, á luz lactescente
das lampadas, bem melhores do que as da minha villa, pobre terra de
barbaros, alumiada ainda pelas estrellas de Deus e pelas candeias de
colza que a intendencia manda pendurar em postes, para que as estradas
tranquillas não fiquem de todo abandonadas á treva, propicia aos
duendes e aos ladrões de gallinhas.

Quasi á porta alguem, debruçando-se amorosamente sobre o meu
hombro, segredou-me palavras doces, mas tão intimas, tão leves,
que me passaram, ficando-me apenas, no lobulo da orelha, o calor
acariciante do sopro que as trouxera. O que pensei em um segundo!...
Quantos sonhos idyllicos passaram pelo meu espirito!... Que vasta e
interessante aventura imaginou minh’alma nesse tempo rapido!... «a
mocinha de Italia a dar-me o seu endereço, ou outra linda mulher...»
Mas uma idéa feriu-me violentamente--o conto do vigario. Levei a mão
ao relogio e voltei-me rapidamente. Era um latagão de barba ruiva e
oculos: tinha a cabeça núa, uma grande fronte tostada, com um calombo
ao meio, purpureo e estriado. Curvou-se com a cartola nos joelhos, um
sorriso affavel no grande rosto picado de bexigas, e balbuciou, com
enternecimento, como se effectivamente dissesse coisas ternas:

--Quer o patrão um carro fechado?

Tive impetos de o repellir, mas lembrei-me de que, para chegar ao meu
destino, era mais prudente confiar-me ás bestas de um cocheiro do que á
providencia do acaso em horas tão adiantadas.

E, aqui na intimidade inviolavel deste canhenho, confesso que admirei
o homem vigilante que sahira ao meu encontro com tanta affabilidade,
offerecendo-se para conduzir-me á casa. Calculei que toda a gente
devia estar enfronhada no morno leito, gozando a delicia incomparavel
do somno, nessa noite fresca e de chuva. Além, nesse eremiterio onde
repousa o meu umbigo, ás dez horas, a não ser em casa de Marianno
Gomes, onde se cartêa impudentemente o lansquenet, com pequenos
intervallos de maledicencia e gole, toda a povoação, beatamente ceiada
e rezada, dorme. De longe em longe, uma luzinha treme, traçando no
pó soalheiro dos caminhos uma risca luminosa--é algum jogador, que
se recolhe despojado e tropego, ou o sanctissimo padre Coriolano,
que anda a correr o aprisco, a ver se alguma ovelha bale, roída pelo
arrependimento do peccado, que é uma chaga terrivel que a gente cura
com as drogas da philosophia ou com a boa e sadia camponia, que, mais
do que os santos, sabe levar os seus eleitos ao Paraiso, por um caminho
bem differente desse que a igreja conspicua e austera manda que se
trilhe--ninguem mais.

Ás dez horas o somno parece cahir do céu sobre todas as cabeças justas.

E não é só o homem que dorme no leito antigo, largo e raso, de columnas
torcidas, com flores e folhagens classicas, forrado d’alvos lençóes,
que trescalam como moutas de hervas de cheiro ou na palha secca e
crepitante, entre os milhos, com o cão aos pés e os grillos cantando
perto; é o gado forte e é a ovelha mansa, é a ave meiga, é a mesma
arvore, é a mesma agua, é a mesma estrella, é o mesmo luar porque, se a
agua murmura e se as folhas sussurram, bem se póde dizer que são vozes
do sonho das coisas. Velam apenas o caboré piando no tronco secco
ou cruzando os ermos e as feras bravas que descem para velar, ou a
farandulagem que assalta gallinheiros ou outros sitios de maior recato
e perigo.

Imaginem o meu espanto, a minha surpresa quando o cocheiro, fazendo
uma zumbaia e rastejando um gesto para que eu passasse, deixou-me ver
uma fila de carros molhados, reluzentes, e, em todas as boléas, sob
guardas-chuva lustrosos, braços que acenavam para mim, num delirio, e
gente, gente a valer, como eu jámais vira na villa onde passei o grosso
da minha vida, nem mesmo nos dias de feira. Imaginem o pasmo que me
tomou!

Deixei-me levar pelo cocheiro, que correu a abrir a portinhola, vindo
buscar-me debaixo do seu guarda-chuva, amplo como uma tenda. Quando
afundei nas almofadas atirando ao homem o numero da casa de meu tio,
na praia do Russell, sahiu-me dos labios tremulos esta exclamação
profana, mas que exprime admiravel e eloquentemente o assombro dos meus
olhos, diante de tanto guarda-chuva, de tanta luz, sem falar no rumor
que me ensurdecia:

--Com seiscentos diabos! isto é que é terra! E com força puxei a
portinhola. O ruivo cacarejou ás bestas e rodámos.

No toldo a chuva torrencial rufava.



                                  II


A casa de Serapião Ribas, meu tio, melancolica e discreta, sem vizinhos
lateraes, porque a isola um florido jardim de rosas e, em frente, o mar
espumeja rolando e chofrando por entre pedras negras, é um confortavel
chalet suisso, de boa construcção--pedra e cal, com lambrequins e
agulhas, pintado de verde. Penetra-se esse retiro, socegado e pudico,
seguindo as sinuosidades de um caminho de saibro, onde os passos
crepitam, por entre o perfume sensual das roseiras, que fazem ao meio
um bosque ameno em torno de uma casinhola rustica, feita de troncos
entrelaçados, com um tecto afunilado, de colmo, onde meu tio, á tarde,
bebe o seu aperitivo, lendo os jornaes, com as pernas esticadas sobre o
banco de pedra.

Dá accesso á varanda uma pequena escada de marmore--tres degráus,
polidos e claros como pedras de um movel fino, porque a gente, antes
de pisal-os, raspa as solas dos sapatos na lamina de um apparelho, que
arranca tudo quanto se levar collado á palma do calçado. Além disso
estira-se em cima, no limiar, um capacho de coco, cerdoso e duro, para
completar o asseio. Raspado e brunido, o hospede atravessa os umbraes
da sala nobre onde os passos afôfam-se sobre um tapete amplo, ainda
carregado de lans e de pelles de feras que, d’olho acceso e guela
escancarada, esparrimam-se ao peso dos moveis em inercia voluptuosa.

O interior, obscuro e abafado, cheira a verniz e a fardos novos.
Entretanto o asseio accusa-se immediatamente pela disposição e pelo
luzimento das molduras dos quadros, porque a mobilia, que deve ser
faustosa, está fresca e claramente vestida de housses brancas. Despido
só um tamborete de setim azul, com um bordado de ouro, representando um
corvo marinho, pensativo, num pé só, com um peixe no bico.

Enriquecido de um dia para outro em transacções felizes, meu tio que,
em moço, curtiu a mais faminta miseria, regala-se gozando pacatamente
as delicias da fortuna. Aferrolhou mil e tantos contos em apolices,
comprou varios predios, e, estirado agora, resfolga na sua voltaire
ampla, esperando, com um sorriso, o amanhan e o depois, sem a dura
preoccupação do fim do mez e do caderno das compras. Tem o pão e
o tecto garantido podendo, de vez em quando, extraviar-se por um
extraordinario de bombance, sem risco para os dias da sua velhice
amparada e serena.

É solteiro, não porque deteste o casamento--aconselha-o a toda a gente
como um meio honesto e digno de aperfeiçoar a especie e consolar o
espirito. É solteiro porque, no seu entender, no «seu modo de ver»
o casamento é uma loteria, e, infeliz como sempre foi nos kiosques,
receia que a sorte o persiga até junto do pretor e do sacerdote. Vive
com dois criados de serviço, mais um cozinheiro.

Recebeu-me na sua grande sala de jantar de carvalho, forrada de
encerado inglez--um lugar de gosto pelos ornatos dos moveis carregados
de corymbos e de cachos de frutas, entalhados nos espaldares das
cadeiras, nos florões do enorme guarda-prata, dos bofétes e dos
trinchadores de marmore escuro. Pratos raros pelas paredes, naturezas
mortas, iguarias a oleo e faianças de Delft e de Caldas--lagostas, uma
enfiada de perdizes, uma penca de frutas, e, venerando e respeitavel,
entre o luzir da louça, um relogio escuro, monotono, moroso que, de vez
em vez, range e profundamente bate uma pancada soturna.

Serapião, meu tio, nessa noite da minha inesperada apparição, vestia um
radiante robe de chambre de seda. A calva, nua e polida, resplandecia
ao fulgor do gaz. Tinha diante do papo guloso um copo cheio de morangos
e um calice de Madeira secco.

Ao ver-me, com a mala e o guarda-pó, parado no solar da sala, recuou a
cadeira e, com as bochechas tremulas, como um bolo de creme, roxo de
vinho e de gozo, avançou para receber-me nos braços protectores, com
tal effusão, que desfez todo o meu vexame, pondo-me logo á vontade
junto a um peito largo e generoso solidamente reconstituido pelos
debentures.

Houve uma corrente de phrases sympathicas. Por fim, arrastando-me para
a mesa, carregada de porcellanas e soante de crystaes, que echoavam ao
minimo balanço do soalho, disse: que não contava commigo; e estranhou
que eu não lhe houvesse telegraphado da Barra ou de Belém, para que
elle mandasse á estação, receber-me, o seu landau. Dei um salto por
dentro. Pois o tio Serapião... tinha um landau!

Diante de mim, um rigido criado collocou vagarosamente uma garrafa de
cognac e um calice. Bebi.

O tio arregalava os olhos immensos; de vez em quando chupava o labio
inferior, soprava espalmando as mãos ambas na alva toalha da mesa. Os
crystaes tremiam. E eu falava da roça, da viagem, dos companheiros, da
paisagem accidentada de serra abaixo.

O mesmo criado que me servira o cognac trouxe uma chavena de café, que
o tio tremulamente recebeu. O servidor prudente aparou com a salva, por
baixo do queixo triplice do meu obeso parente, as gottas que escorriam.
Sorvido o ultimo gole, meu tio roncou de fartura e escorregou na
cadeira, para baixo da mesa, deixando apenas, para contemplação dos
meus olhos, o seu busto de Vitellio, apopletico e gordo.

Tentou dizer algumas palavras, mas os seus labios purpureos tremiam,
deixando apenas fugir um sopro flebil. Cravei os olhos nelle, quiz
sacudil-o, a pouco e pouco, porém, o sopro foi crescendo e já era um
rosnar--a boca descerrou-se, a cabeça enorme tombou para o peito e um
ronco sonoro, que encheu toda a sala, apaziguou o meu espirito. Não
era a apoplexia fulminante, não, não era... Meu tio dormia o somno
cibarico.

O criado do cognac, com um guardanapo ao hombro, andando na ponta
dos pés, veiu annunciar-me em segredo que o banho estava prompto.
Procurei a mala: havia desapparecido. Quiz interrogar, mas já o
homem, arrepanhando um reposteiro, mostrava-me um corredor claramente
alumiado, de paredes luzidas, pintadas a oleo, com medalhões
representando idyllios.

--Por aqui, senhor.

Baixei a cabeça, e, voltando-me para falar ao criado, notei que todo
luxo da sala de jantar desapparecera sob uma treva brusca, onde apenas
restavam dois pingos de luz, e vi um vulto que se esgueirava como uma
visão. O criado soprou-me:

--É ao fundo, senhor.

Agradeci com um gesto, para evitar o rumor das palavras.

Da sala escura vinha, num diapasão formidavel, o ronco do meu generoso
tio que o vinho adormecera.



                                  III


Oh meu tio!

Esta exclamação quasi infantil escapou-me dos labios quando penetrei o
santuario da limpeza. Que asseio e que fausto! As thermas da cidade por
excellencia deviam resplandecer assim.

Quem te dera, Lucano, um tanque como este para nelle abrires as veias!
Quem te dera, altivo poeta, um interior assim, de tanta claridade e
tão sonora acustica, para reboar com os versos da Pharsalia com que
recebeste a Morte! Infelizmente a Arte não alcançara o requinte que
hoje possue. Á vista do tanque de meu tio--onde podia nadar, folgada e
livremente, uma familia de nereidas, se ainda as houvesse--que figura
faria a banheira do teu suicidio, ó victima da tyrannia, ó voluptuoso e
languido patricio...!

A sala vasta é toda de mosaico miudo, talhado em triangulos brancos e
vermelhos; o tanque, de bordas altas, tem tres metros de comprido e
dois de largo, e a gente afunda em um metro e 25 d’agua. O chuveiro é
uma grande cupola de zinco, pintada de branco, com duas correntes de
metal que imitam prata. A agua jorra copiosamente das guelas de dois
leões de nickel--uma entorna agua fria, outra vomita agua a ferver. As
paredes, forradas de marmore italiano, completamente núas. A um canto,
um cabide de bronze para as toalhas felpudas e o jupon, e, em frente,
numa prateleira, tambem de marmore, negro e fosco, a bateria d’oleos
e de perfumes; os sabonetes, as esponjas, escovas e essencias tonicas
para hygiene da pelle e lavagem das gorduras do couro cabelludo. Ao
centro um espelho de nitido crystal, alto e grosso, onde se pode
admirar a nudez das fórmas.

Para um canto, recatado por um biombo japonez, uma especie de ádyto,
com um divan de couro, repousando em um encerado onde a gente estira
longamente os membros emquanto os leões inundam o tanque. Para aquecer
ha uma mesinha com um serviço de crystal: whisky, cognac, old-brandy e
curaçáu. Um mono de bronze carregando ás costas um cesto atochado de
charutos e brochuras de um frescor irritante (a mais pudica que meus
olhos viram abria com uma esplendida mulher núa, de costas para quem
olhava, os braços roliços passados por cima da cabeça farta e negra de
cabellos) na capa um distico: _Le nu au salon._

Ao fundo, num retiro velado por um panno de linho escuro, que
corria num varão de ferro, uma caixa envernizada. Abri e pasmei
silenciosamente--era tambem um objecto indispensavel ao asseio. Ao
lado, numa caixa menor, um maço de papeis finos. Aclarava esse interior
de gozo um lustre de seis globos côr de rosa.

Feita a visita fechei-me por dentro e, ouvindo o rumor d’agua que
cahia, levantando um vapor fino como o orvalho, fui despindo a fatiota,
lenta e preguiçosamente, ante-gozando a delicia da immersão tépida
depois da fadiga de todo um dia em wagon.

Safando a camisa lembrei-me do ribeiro poetico da minha villa onde
todos nós da familia, do mais velho ao mais novo, um depois do outro,
por decencia, vamos, todas as manhans, limpar o corpo e endurecer os
musculos sob a folhagem viçosa dos cajueiros em flôr.

Nú, como um grego do tempo juvenil da graça olympica, mirei-me ao
grande espelho que, indecorosamente, me reflectiu da cabeça aos pés--e
achei-me perfeito e forte e masculo, um modelo rijo e gracioso de Marte
desnudado, um inteiriço e reforçado exemplar de homem, digno herdeiro
dos Ribas. Sorri com vaidade para o crystal que começava a empanar-se
com o vapor das fauces do leão fervente.

A sala estava como uma estufa--era um banho russo. Corri a refugiar-me
atráz do biombo e estirei-me no divan fresco e macio servindo-me, em um
calice, da garrafa vermelha que trazia, pendente do gargalo, uma chapa
denunciando: cognac. Bebi e regalei-me esticando as pernas núas no
couro frio.

De papo para o ar comecei a pensar na delicia da vida e achei mesquinha
a casa paterna, taciturna e calada, entre arvores murmurantes,
invadida pelas moscas e pelos gafanhotos, com os corredores sombrios,
atravancados de sellins, ás vezes visitada pelos bacorinhos que vêm
familiarmente grunhir em baixo da mesa de jantar, catando os restos
do almoço. Pareceu-me triste e acanhada a existencia que eu levara
nesse valle melancolico sem agitação e sem conforto, ignorante de
tudo, longe de imaginar que o mundo podia proporcionar delicias
de tal ordem--delicias como aquella sala de jantar, delicias como
aquelle banheiro, onde meu tio tonificava as suas banhas e onde eu ia,
emfim, lavar-me para entrar limpo e lepido na vida nova, buliciosa e
surprehendente, que eu sentia rumorejar ao longe, nessa grande cidade
atravessada, amollecida e somnolentamente, nas almofadas fôfas do
carro do ruivo. Ia emfim ver o mundo.

Aquelle banheiro que ali estava era a pia onde o mais novo, o mais
esperançoso rebento dos Ribas ia, contricto e nú, receber o baptismo da
civilisação, deixando nagua morna a poeira dos caminhos e a barbarie da
sua alma ignorante e insaciada.

Confesso que tive inveja da sorte de meu tio e lastimei profundamente
os meus que lá haviam ficado chocando pintos e debulhando o grão.
Que vale uma ninhada diante de uma mesa como esta que meus olhos
contemplam, carregada de crystaes rutilantes? Que valem as colheitas
comparadas ao gozo de um mergulho nesta piscina de marmore que me
espera? Decididamente a grande sciencia do viver não consiste em saber
accumular fortuna, mas em saber dissipal-a. O ideal do homem moderno
é o filho prodigo. Estou certo de que a moral não condemna Harpagon
senão porque o miseravel não tinha noção da sciencia elegante e fina de
dissipar.

Para que ser rico sem um banheiro assim?...

Serapião, meu prospero tio, ronca, deslisa para baixo da mesa farta do
teu salão de abundancia, porque estás dando ao mundo, e especialmente
ao teu sobrinho e herdeiro, uma lição de _savoir vivre_!

Enchi de novo o calice e bebi, mas engolindo o sorvo, percebi que
me enganara na garrafa: não era a vermelha, eu havia tomado a azul:
old-brandy.

Desde, porém, que havia quatro, porque insistir na vermelha? O acaso
dirigira o meu braço e o acaso algumas vezes opéra sabiamente e governa
como uma bussola. Repentinamente lembrei-me do banho e não foi sem
pena que deixei a minha posição em decubito, a mais propria do homem,
segundo ouvi dizer a um sybarita das minhas relações campestres.

Puz-me de pé e, estirando os braços, todo retorcido como o Laocoonte,
afastei-me do ádyto das libações. Na sala era tão espesso o vapor,
que meus olhos nada distinguiram a principio--movia-me, como um deus,
dentro de nuvens tenues. Por fim, sentindo nos pés uma humidade
tépida, notei que a agua transbordava alagando o mosaico do santuario.
Desci precipitadamente as alças fechando as copiosas guelas leoninas,
mergulhei o braço, puxei pela corrente do escoadouro e a agua, que me
escaldara, começou a baixar silenciosamente até que ficou em nivel para
que eu pudesse molhar-me todo regaladamente, mergulhando e nadando.
A fauce fria jorrou ainda alguns litros para abrandar a temperatura
e o nevoeiro diluiu-se. Apanhei sobre o marmore negro um sabonete
de Corydalis, uma grande esponja macia e saltei no tanque. A agua
abriu-se para receber-me e fechou-se ficando apenas a flux a minha
cabeça, fluctuando como uma boia.

Que delicia! Como senti, nesse momento suave da minha vida, não possuir
os dotes de Simão Carreira, que tudo canta, que tudo rima: os olhos
castanhos da Bemvinda e os repolhos planturosos da horta do Segurado.
Elle, de certo, em meu lugar, acharia uma estrophe sonorosa e nova
para louvar e divinisar a agua benigna desse tanque; elle, o sempre
inspirado, saberia pagar com um punhado de heroicos a lixivia e o
conforto.

Eu, porém, sem estro, incapaz da mais insignificante imagem poetica,
limitei-me a esfregar a cabeça, não para acordar a inspiração
adormecida, mas simplesmente para tirar a poeira... e mergulhei. Quando
vim á tona trepei á borda do tanque e, á falta de quem me esfregasse,
resolvi fazer eu mesmo a operação e vesti-me todo de espuma. Tive
impetos extravagantes de correr ao espelho para admirar-me sob esse
aspecto _mousseux_, mas recuei porque, Ribas anadyomay, comprehendi que
não me seria facil abrir os olhos--a espuma escorria em floccos pelo
meu rosto.

Atirei-me, de novo, ao banheiro e refocilei voluptuosamente. A
temperatura baixara sensivelmente quando sahi gottejante para o pequeno
estrado. Enfiei o jupon, calcei as chinelas de feltro e arrastei-me
até junto da mesinha, onde experimentei a garrafa verde--whisky. Ia
deitar-me quando bateram á porta. Acudi com pressa lembrando-me de meu
tio que ficara na imminencia de uma apoplexia. Indaguei, e uma voz
disse-me de fóra--que a ceia estava servida, ajuntando:

--Aqui tem vosmecê o robe de chambre para sahir.

Abri devagarinho a porta e estiquei o braço, que derreou ao peso da
investidura com que eu me devia apresentar á mesa. Era uma especie de
cabaia de seda, debruada a cairel de prata, com bordados extravagantes
e alamares; mangas immensas e uma gola almofadada, com forro de setim
côr de perola. Admirei-a e com ella recolhi-me ao biombo para vestir os
primeiros linhos indispensaveis e calçar os sapatos.

Sobre a camisa e as ceroulas abotoei a cabaia que, sentindo a falta
das protuberancias do meu tio, cahiu em dobras molles ao longo do meu
corpo, menos fornido e mais baixo. Por compostura apertei a cinta com
o cordão de seda. Dividi o cabello, alisei os bigodes e, derramando na
palma da mão algumas gottas de Cherry Blossom, plantei-me diante do
espelho, revendo-me sob esse trajo que me dava a figura classica de um
veneziano, como os que eu vira em gravuras, dentre os quaes me ficara
eterno na memoria o typo veneravel de Brabantio, pai da incomparavel e
abnegada Desdemona, tão cruelmente immolada pelo mouro negro.

Cheiroso e fresco sahi para o corredor, onde me esperava o criado.
Seguimos.

A sala de jantar estava de novo illuminada... mas sem meu tio.
Recolhera-se de certo. Sentei-me só e em silencio.

Havia no ar um cheiro apetitoso de frituras e de flôres. Dos pratos
cobertos sahia um fumego tenue rescendendo a temperos. Toda a porcelana
florejada tinha o monogramma do proprietario--S. R. em ouro fosco.

O criado serviu-me a sôpa e verteu em um calice de crystal verde um
vinho claro, que bebi com avidez antes da primeira colherada; e comecei
a jantar desordenadamente, servindo-me de um lombo, com petits-pois, no
momento justo em que o criado me apresentava um badejete, que repudiei
com desprezo.

Mas o meu ataque mais sério foi á garrafeira.

Não sei dar a razão desse delirio bacchico, tão singular, tão novo
em meus habitos de sobriedade. Os vinhos attrahiam-me. Depois de uma
aza de frango, que apenas trinquei, fui sedentamente ao Bourgogne e
enxuguei dois copos. Mas quando appareceu o Champagne, uma meia garrafa
deitada sobre crystaes de neve em uma geladeira de prata, tive impetos
de fazer ali assim, para o criado impassivel, um improviso sobre esse
precioso vinho, que é a alma do festim, o remate requintado do gozo, o
companheiro do amor. Vinho alambreado que parece cantar nas taças um
dithyrambo de ouro, vinho impaciente que ferve e espuma, vinho que tem
as coleras do oceano--ambrosia da nova éra, vinho vivo e intelligente,
vinho que tem alma... e que eu jámais provara. Bebi sofrego.

Subitamente notei que me sentara na cadeira abbacial do meu tio. Estava
explicada a minha sêde insaciavel. Os moveis adquirem os vicios de quem
os possue. Aquella cadeira estava inveterada. Era repousado em seus
braços que meu tio dormia o seu primeiro somno digestivo.

E foi esse confortavel movel que fez com que eu sómente readquirisse
as minhas faculdades de ser ás 10 horas da manhan seguinte, quando me
vieram trazer ao quarto o café e os jornaes.



                                  IV


Lembra-me ter visto em um livro erudito este conceito:--«A embriaguez
é a poesia da vida digestiva» e, se ainda me é fiel a memoria, o sabio
que assim se exprime é Letourneau. Penso que tem razão o philosopho,
porque Simão Carreira, que cultiva, com tanto esmero, a Arte divina
de Apollo, não despreza as garrafas e os seus melhores heroicos, os
versos intrepidos do seu poema _Os Pincaros da Mantiqueira_ foram
escriptos emquanto durou um quinto de Cartaxo com que o brindou o
padre Coriolano. Eu, porém, de imaginação escassa e tão perro para a
cadencia, soffri profundamente os effeitos da poesia estonteante, que
me poz no espirito uma nuvem densa e na lingua uma saburra espessa.

Confesso que senti o pudor subir-me ás faces quando dei com o ar sisudo
e grave do criado, que me apresentava cerimoniosamente um taboleiro
de xarão. Puxei o lençol até o queixo e, de olhos baixos, tomei a
chicara e, a pequeninos goles, fui chuchurreando até á ultima gotta.
Por fim, no intuito de quebrar aquella serenidade fleugmatica do homem,
aventurei sorridente:

--Bem bom café! Decididamente não ha bebida como esta.

Mas o bruto, impassivel e frio, recebendo a chicara que eu lhe
entregava, sempre sisudo e grave como um preceptor, perguntou
seccamente se eu queria o banho morno ou de chuva?

--De chuva, respondi humilhado e corrido. Que vergonha tive! Parecia-me
que aquelle imperturbavel servidor viera ao quarto apenas para
exprobrar, com o seu silencio inquebrantavel, o meu procedimento da
vespera. E tinha justas razões esse criado, porque afinal... que
indecencia para um homem da minha casta, herdeiro de uma tradição
sem mancha, principalmente de vinhos, porque na familia o unico que
bebe é meu tio, os mais, desde o meu intemerato bisavô, implicado nas
conspirações patrioticas do Xavier, até meu pai, nunca foram além do
côco do pote ou da calha da nascente. A adega dos Ribas, inesgotavel
e pura, foi sempre a limpida fonte dos «Suspiros» numa chanfradura
de rocha, velada por um bosquesinho de tayobas, fonte cujas aguas
historicas mataram, em tempos, a sêde do grande Dirceu quando a paixão
e a politica o arrebatavam para os ermos. E ha ainda hoje fanaticos
do poeta que affirmam distinguir no murmurio da agua o nome suave de
Marilia.

Cheio de vergonha saltei da cama, enfiei a cabaia e, sem olhar para a
alcova faustosa, desci acompanhando o criado que me deixou á porta do
banheiro.

Lavado e vestido, apresentei-me na sala de jantar, clara de sol e
cheia de um festivo canto de passarinhos. Accendi um charuto e, de
mãos enfiadas nos bolsos, comecei a passear de um lado para outro,
assobiando uma aria rustica.

Ia admirar tranquillamente um quadro de frutas, quando o criado veiu
dizer-me, muito teso, estendendo um gesto nobre para o exterior:--que
meu tio estava á minha espera no jardim.

Respirei alliviado! Ia emfim fugir aos olhos daquelle Argos da
moralidade. Atirei fóra o charuto e desci.

Meu tio, todo de branco, com um gorro de seda á cabeça, agachado,
examinava os canteiros. Sentindo o rumor dos meus passos no saibro, que
scintillava ao sol, voltou o rosto purpureo e nas suas bochechas nedias
perpassou um sorriso fugitivo. Ergueu-se resfolgando, com as mãos
papudas cheias de terra, de sorte que não me atrevi a beijal-as para
não macular os meus bigodes lustrosos e rescendentes.

--Meu tio passou bem a noite?

--Como um abbade. E tu?

--Maravilhosamente...

Elle mirou-me dos pés á cabeça e pareceu satisfeito com o meu terno de
brim pardo, não desdenhando os sapatos amarellos, que eu trouxera para
«surrar em casa», como dizia pittorescamente minha santa mãi quando
prégava sobre economia domestica.

--Que tal o alojamento, Anselmo?

Gabei sem reservas a belleza e o conforto do tecto hospitaleiro,
creio até que o teria comparado aos palacios maravilhosos de
Aladino e á soberba vivenda de Sindbad se um homem, com dois enormes
regadores vermelhos, não viesse interromper o nosso colloquio. Era
o Jeronymo, jardineiro. Parou um momento para dar a meu tio a boa
nova do desabrochamento das camelias e, radiante, limpando com o
braço o suor da testa, disse que já havia dois botões das rajadas.
Meu tio felicitou-o e, como o Jeronymo retomasse os regadores,
accrescentou--que as violetas estavam encharcadas.

--Não ha duvida... não ha duvida, senhor; ahi vem o sol, disse o homem.
Quem dirá que hontem choveu como choveu...? A terra está secca e a
planta carece d’agua. Olhe, se eu fosse outro, deixava as _purpuras_
sem agua... mas vá Vossoria ver... a terra está mirrada, parece que a
seccaram ao fogo. É verdade que ali não chove por causa do telheiro.

--E de cravos, como vamos?

--Ainda não os ha, disse o Jeronymo, consternado, e derreando-se ao
peso dos regadores, foi-se, bradando a um gato que raspava a terra fofa
de um taboleiro.

--Gostas de flores, Anselmo?

--Loucamente, meu tio.

E fomos caminhando para a casinhola rustica. Sobre o colmo cantava uma
cigarra.

--Bom tempo, presagiou meu tio.

Haviamos chegado ao retiro do aperitivo, onde nos esperava o alcool
matutino, a gotta confortavel que aquecia o estomago preparando-o para
receber o almoço. Meu tio subiu pesadamente a elevação que dava accesso
ao retiro, e achatou-se no comprido banco de pedra, que imitava um
tronco d’arvore... e d’ahi, como Satan na montanha mostrando a Jesus as
riquezas da terra, disse-me--que ali assim estavam enterrados para mais
de tresentos contos.

Eu sacudi a cabeça admirado e murmurei:

--Bem empregado dinheiro!

--Não bebes? Acenei--que bebia e elle serviu-me. Virámos.

O vasto mar azul, em frente, resplandecia ao sol. Velas de barcos
fugiam, muito brancas, afflorando a vaga que, ás vezes, se desfazia
numa fita de espuma que vinha rolando, rolando e desmanchava-se. Aves
pairavam e, subitamente, como se tivessem sido fulminadas, cahiam
nagua serena. O céu limpido, de uma côr fina e translucida, estava
radiosamente claro. A aragem fresca vinha cheirando á salsugem e
balouçava as roseiras, perfumando-se de um novo aroma de jardins,
mais delicado do que a maresia da costa. Dois pequenotes nús, muito
luzidios, iam garrulamente rompendo o mar, atirando os braços; subiam
na vaga inchada e alterosa, desciam no cavamento d’agua e riam como
dois jovens tritões que se andassem adestrando no seio glauco do
mar perfido. E, mais longe, varios cavallos, quasi afundados nagua,
de cabeça alta e inquieta, eram esfregados por moços que riam ás
gargalhadas; um mesmo, montado, como um centauro aquatico, obrigava a
alimaria a fazer voltas, nadando, a lembrar o hippocampo das antigas
lendas. Ao fundo o recorte accidentado e escuro das montanhas.

A cigarra, na grande luz tepida que dourava o colmo da casinhola,
entrou a cantar e meu tio, encolhendo as pernas e servindo novos
cognacs, enternecido e lyrico, disse poeticamente para attrahir a minha
attenção, toda entregue ao mar infinito:

--Ouve, Anselmo, a cigarra... está chamando o sol. E eu, para dar mais
força ao lyrismo, ajuntei, voltando os olhos para o alto:

--Sim, meu tio: é a cigarra que chama a primavera.

Ali ficámos muito tempo, num farniente aprazivel, beberricando, até que
o criado nos veiu annunciar o almoço. Descemos lentamente. Eu vinha
alquebrado de preguiça e sem apetite, sedento. A agua de um repuxo,
que esguichava, iriada e cantante, excitou ainda mais a sêde do meu
estomago abrasado. Parei um momento para admirar a elegancia de um
cysne que circulava com garbo, abrindo, de vez em quando, ao borrifo
fresco, as grandes azas alvadias, iguaes ás que, outr’ora, Jupiter
lascivamente tomou, em uma das suas metamorphoses, para cingir o corpo
esplendido de Leda. Atravéz da agua limpida viam-se as palmouras
rosadas remando com lentidão.

Meu tio, que havia chegado á varanda, chamou-me. Não quiz partir sem
acariciar a ave airosa e adiantei-me estendendo a mão para amaciar-lhe
o pescoço formoso; o cysne, porém, selvagem e arisco, entrou a
espadanar com as azas e, escancarando o bico, a grasnar, poz-se em
attitude ostensiva, atirando-me bicadas. Deixei-o. Vendo-me partir
veiu precipitadamente até a borda da bacia e, a grasnar, parecia
desafiar-me. Longe, no fundo do jardim, levantou-se um alarido terrivel.

--São os gansos! disse-me o tio Serapião... e deixando a balaustrada da
varanda:

--Anda dahi que o almoço esfria.

A sala rescendia. A mesa pantagruelica, alva, nitida e farta
encantou-me pela profusão de flores em jarrões, por entre os finissimos
copos de mussellina, espalhadas pela toalha e de um aroma tão intenso
que mal deixava sentir o cheiro dos acepipes. Sentei-me á direita do
meu tio e começamos por um prato que me pareceu feito de ouro liquido.
O criado que m’o serviu nomeou baixinho:--Mayonnaise. Fartei-me.

Meu tio, com a boca cheia, olhou-me de certo modo e percebi que o seu
olhar de epicurista, humedecido e languido, queria dizer alguma coisa;
fitei-o até que engolisse o bolo que rolava na sua boca de gastronomo,
inchando-lhe as bochechas:

--Um petisco, hein, Anselmo? e passou o guardanapo pelos beiços
reluzentes. Eu, sem dizer palavra, arregalei os olhos, sacudi a cabeça
e enchi de novo a boca. Quando bebi o vinho, que rutilava num calice
diante de mim, pronunciei-me francamente:

--Com effeito, meu tio... é um prato! e elle, attrahindo uma lata de
sardinhas, tambem arregalando os olhos, concordou: É um prato! A um
gesto seu o criado içou os transparentes; o sol inundou a sala de uma
grande claridade--crystaes e faianças scintillaram. Os canarios,
deslumbrados, entraram a voar tontos, agarrando-se ás grades das
gaiolas, mas a pouco e pouco, habituando-se, voltaram á tranquillidade
e foi bastante que um cantasse para que o chilreio irrompesse
estridulo. Pedi agua e o criado, inclinando-se, indagou baixinho se eu
preferia Vichy ou Apollinaris.

--Do pote, tornei ao solicito.

--Experimenta Apollinaris. Apollinaris com um pouco de Bordéus,
aconselhou meu tio e, voltando-se para o criado, com o garfo erguido e
cheio de sardinhas: Abre Apollinaris...

Resignei-me. Momentos depois um estampido atroou e logo um jorro
fervido inundou meu copo.

--Bebe! Bebe emquanto está quente. Levei o copo á boca e bebi...
mas com que ancias...! Um effluvio de thermas subia-me ao nariz.
Subitamente acudi com um guardanapo á boca, mas não tão rapido que
pudesse evitar um escandalo.

--Perdão, meu tio! murmurei corado.

--Não sou inglez. Eu cá não faço cerimonias. Havias de engulil-o? disse
a rir.

As carnes não me tentaram, mas fui forçado a mastigar uma febra de
roast-beef e uma fatia de presunto. O tio devorava tranquillamente, sem
levantar os olhos do prato.

Ao fim do almoço, saciado d’agua, afastei-me para a varanda. Fazia
calor--as folhas murchavam á luz caustica e ouvia-se a voz fina do
Jeronymo, que cantava aparando a grama.

Debruçado para o jardim, olhando vagamente, numa abstracção de todo o
meu ser, comecei a sentir-me invadido por uma tristeza que me cahia
nalma, suave e melancolica como um crepusculo.

Uma sombra interior velava a radiosa alegria do meu espirito e sem
causa visivel, porque diante de mim havia a vívida e resplandecente
claridade do sol, o immaculado azul e todo o verdor viçoso dos arbustos
que as borboletas corriam, sentia como a aproximação de uma tormenta,
as primeiras ancias da lagrima.

Indecifravel phenomeno o da visão da ausencia!...

Um véu espesso passou-me pelos olhos. Tudo que a minha vista alcançava
desappareceu num momento e vi, como em scenario, num longinquo
horizonte nebuloso, aereo, a paisagem silenciosa da minha terra, no
valle fresco e verde, no fundo do qual escorre, quasi sem bulha, o
corrego das Almas, que vai de sitio em sitio, abeberando as hortas e os
rebanhos, sempre manso e sempre claro, que não o toldam senão as flores
dos espinheiros que o margeiam, e essas, pobresinhas! com um leve
fremito d’agua, desfazem-se, desapparecem e passam quasi invisiveis
como um pollen subtil.

E a minha casa, além! bem visivel, branca no verdejante pomar, e
gente na eira e gente pelos caminhos, os meus com as suas feições tão
nitidas, tão perfeitamente accentuadas, que eu os fui reconhecendo a
um e um, como se os visse, não atravéz da miragem meiga de minh’alma,
mas na verdade fiel da vida que além vivem. Repentinamente a visão
diluiu-se. Alguem chamava-me baixinho--voltei-me. Era o criado:

--O senhor seu tio pergunta se não quer ir á cidade?

--Dize-lhe que vou... e, dissimulando, passei rapidamente o lenço pelos
olhos.



                                   V


Quando desci, aprumado e airoso no meu terno de cheviot claro, meu tio
roncava na casinhota do jardim, com a cabeça descahida sobre o recosto
do banco, o papo em evidencia, todo molhado de suor e rubro, a boca
aberta, os braços pendentes num abandono flaccido. A cartola repousava
sobre a mesa e o precioso unicornio, encastoado de ouro, jazia aos seus
pés como um cajado vulgar.

A impaciencia e a temperatura da hora tepida, macia e somnolenta
haviam, por assim dizer, narcotisado o pobre homem. Da janella do meu
quarto para onde, de instante a instante, elle levantava os olhos
anciosos, eu o via caminhar ao sol, com enormes bocejos, riscando
a areia com a ponta da bengala. Subiu e desceu lentamente as áleas
do jardim, por fim perdeu-se e só o vi depois nessa posição pacata,
refestelado, a dormir á sésta como as roseiras dormiam no silencio
canicular desse meio-dia abrasado, murchas, enlanguecidas, emquanto
a terra incançavel infundia-lhes a seiva vivificante para que, mais
tarde, ao frescor vesperal do crepusculo, os botões despertassem e
distendessem as petalas, abrindo-se.

Á porta estacionava uma victoria. O alto cavallo, negro e luzidio,
escarvava fogosamente, picado pelo sol. Meu tio grugrulejou como se
sorvesse uma golfada quente e esfregou os olhos.

--Boa sésta, meu tio. Elle ergueu-se molle, com os braços abertos em
cruz, o ventre empinado e falou espremendo-se:

--Boa estafa é que foi. Que diabo estiveste fazendo até agora? Sacou o
relogio e mostrou-me: Uma hora da tarde.

--Um trabalho para descobrir a roupa, meu tio. Arranjaram-me de tal
modo a mala que, para encontrar um par de meias, tive de despejal-a.

Meu tio mirou-me detidamente e, com satisfação e vaidade, li no seu
olhar--que me achara digno. Tomou a cartola e eu apanhei o unicornio
para poupar-lhe o sacrificio de abaixar-se.

--Está quente! disse limpando a fronte.

--Um dia de fogo, mas lindo!

--Lindissimo! Deu um puxão ás calças olhando o céu.

--Vamos, Anselmo.

Durante o caminho parou diante de todos os canteiros examinando
carinhosamente as flores, decepando galhos seccos, com uma solicitude
bondosa. O criado correra a abrir o portão. Sahimos.

Ah!

As interjeições são pequeninas syntheses. Como em um atomo o olho
do sabio descobre todo um mundo de complexidades, nas interjeições
o arguto espirito de um grammatico descobriria todo um romance,
se quizesse, e facilmente o reconstituiria. As grandes emoções
manifestam-se pelo laconismo monosyllabico dos oh! e dos ah! Concisas,
como são, dizem mais do que os periodos e supprem, com vantagem, o
complicado artificio de que lançam mão os escriptores, artificio
que nem sempre é bastante para exprimir o que sentem e raras vezes
auxilia a externar o que pensam. Ah! e Oh! hiatos insignificantes, mas
analysai-os, profundos mestres.

Diante de um quadro de Rubens--ah! e nada mais, alguns manifestam
deste modo o seu pasmo; diante de uma mulher formosa oh!--oh! soturno
e commovido, que o agudo só tem applicação nos momentos de terror.
A tragedia do panico tem a sua clave: uh! Othello: oh! Macbeth: uh!
Ophelia... ah! suspiroso; os Sete Infantes: ôooh! Mesmo no amor
encontrareis um ah! tremulo e doce. O suspiro é um ah! isolado e,
como dizem os pessimistas que o riso é ainda uma fórma da tristeza, a
gargalhada é um rosario de suspiros.

Ah! e nada mais foi o que me fugiu da garganta quando me sentei nas
almofadas de damasco côr de vinho da victoria de meu tio. Que regalo!
E, em verdade, que podia eu dizer que désse exactamente a impressão
de aconchego que senti quando me aprofundei mollemente no macio
assento? Que podia eu dizer que traduzisse o gozo, quasi sensual, que
experimentei senão o que veiu espontaneamente aos meus labios: ah! um
doce e demorado ah! que me ficou muito tempo a brincar na boca e que eu
acompanhei com uma mimica fantastica--olhos arregalados, braços abertos
como se me balouçasse em ondas... Ah!

E meu tio comprehendeu porque voltou-se immediatamente dizendo:

--Molas excellentes, hein?

--Excellentes, concordei hilariante e baboso; excellentes, meu tio, e,
sem que elle percebesse, levantei-me um poucochinho e deixei-me cahir
para ter o gosto de afundar como afundei.

O cocheiro, um inglez, magro, raspado, retezou-se na boléa tenteando as
redeas para soffrear o cavallo negro que pinoteava.

--S. Francisco, disse seccamente meu tio e logo rodámos.

Estiquei as pernas mergulhando os pés no pellego felpudo.

--Não fumas, Anselmo? E as mãos papudas offereciam-me charutos.
Esgazeado e hirto de espanto entalei-me no fundo do carro. Pois meu
tio... a offerecer-me charutos...! É uma cilada, disse commigo. Meu
pai, com a sua moral primitiva, entende que fumar é um vicio execrando
para os moços, principalmente em presença dos mais velhos. Em casa,
quando me tenta o desejo de tragar uma fumaça, corro ao meu quarto
e fecho-me ou desço ao pomar para não ir de encontro ao preceito
paterno, que é uma herança dos maiores. Educado em principios de tanta
austeridade, agradeci os charutos. Meu tio, porém, insistiu:

--Fuma, homem; já não és criança, disse num tom cheio de sinceridade
que varreu do meu espirito o resto de escrupulos. Fuma--e entregou-me
um charuto. Ainda assim, senti certo vexame, elle, porém, insistiu
novamente, animando-me.

--Não tens phosphoros?

--Sim, meu tio; tenho aqui. Accendi o charuto e baforei para o mar a
primeira fumaça dando as primicias do meu havana ao respeito, como os
antigos pastores offereciam a Deus as primicias dos seus rebanhos,
depois recostei-me, fumando ante as barbas grisalhas do irmão de meu
pai.

O Rio começava a apparecer-me. A victoria corria cruzando-se com
outros carros elegantes, onde iam senhoras faustosamente vestidas.
Dos bonds espiavam-nos com interesse curioso. Eu encolhia-me para que
me não vissem, ia ali assim como um deus num nicho, apenas visivel
para os que, como eu, passavam luxuosamente em carruagens e que nos
procuravam reconhecer. Meu tio, habituado ao luxo, ia indifferente,
todo preoccupado com o seu charuto; eu não, mostrava-me, queria que
as mulheres olhassem para o meu rosto rosado e fresco, para os meus
olhos femininos, para os meus labios purpureos e carnudos, para os meus
bigodes sedosos, para o meu largo peito forte, e que reconhecessem
em mim um modelo de homem, um remanescente da idade morta, quando a
força era divinisada e o musculo merecia poemas; um solido e masculo
exemplar de sertanejo capaz de amal-as com mais ardencia e com mais
impetuosidade do que esses rapazes pallidos, de olhos tristes, que
passavam acabrunhados e exhaustos, sem viço, sem enthusiasmo, frouxos e
melancolicos, sugados pelo vampiro da anemia, derreados pelas vigilias
devassas.

A victoria parou. Saltámos e eu, curioso de vêr e de admirar
maravilhas, olhei em volta. Era uma grande praça quadrada e clara,
murada pelos edificios que reverberavam á luz radiante do sol. Ao
meio, sobre um pedestal negro, a estatua tosca de um homem, numa
attitude cheia de solemnidade, a mão estendida num gesto classico de
tribuna, como a allegoria iconica do meeting que é, em nossos dias
cultos e morigerados, o escoadouro da inoffensiva indignação das
massas. Meu tio, indicando-me a effigie escura, disse:

--José Bonifacio, o patriarcha da nossa independencia e da tribuna dos
comicios.

Admirei reverente o patriarcha, rijo, inflexivel, immovel no seu molde
perpetuo de bronze, como a imagem do patriotismo isolada na vasta
ágora, para exemplo das gerações. Meu tio, descrevendo com o seu
unicornio um hemicyclo no ar, falou para despertar o meu civismo:

--Olha, Anselmo, de um lado a religião, Deus e o mysterio. É a ala
santa do perimetro do nosso patriota--e levantou a bengala. Meus olhos
seguiram a sua indicação e viram no alto da torre um gallo rutilante.
Tive impetos de pedir a significação da emblematica... Seria, por
acaso, a figuração do bicho que cantou tres vezes despertando a
consciencia de Pedro na grande noite triste de Gethsemani? Mas meu tio
já havia baixado a bengala.

--Aquillo que ali vês ao fundo, Anselmo, é a sciencia.

Um casarão alvadio com um terraço á frente. Mal tive tempo de admirar
porque a voz grave do cicerone já pronunciava:

--Á esquerda, o commercio, a industria, o movimento... Com effeito a
vida parecia decorrer do ponto indicado--bonds chegavam despejando
gente, partiam cheios; carros cruzavam-se: era um vozear confuso,
indistincto--pregões, appellos, silvos, tilintar de campainhas,
brados. Olhei atordoado. Meu tio voltara-se para a estatua e
contemplava-a extatico.

--Grande homem! disse eu.

--Grande patriota! accrescentou meu tio e voltou-se com a bengala em
riste, risonho, mostrando-me uma rua em frente:

--Conheces?

--Não, meu tio, mas noto que está cheia de gente--parece que vem por
ahi abaixo um oceano popular para revindictas.

--É sempre assim, disse e, com lentidão, abriu a sobrecasaca e tirou
do bolso profundo um maço de papeis. O sol abrasava pondo-me pruritos
na carne e meu tio, calmo e tranquillamente, suando e resfolgando,
consultava os papeis. Por fim atafulhou com o maço no bolso e,
vagarosamente, desdobrou diante de meus olhos uma folha de papel azul
e, indicando-me uma phrase com o dedo grosso, sorriu mirando-me.
Era uma carta minha e o que ali estava debaixo do pesado e humido
indicador, era apenas isto--«ver a rua do Ouvidor». Sem ler mais,
estremecendo, cravei os olhos na rua... e, sem uma palavra, mudo,
abatido, como se me tivessem dado uma noticia de morte, suspirei.

--Uma surpresa, hein?

--Uma desillusão, meu tio, disse eu, murcho. Mas o sol ardia. Quasi
torrados fomos caminhando para a desillusão, porque ali, ao menos,
havia sombra e fresco. Eu ia consternado.

--Mas então... que te parece?

--A mim?

--Sim...?!

--Ah! meu tio... Póde ser que esta rua seja uma maravilha, mas
infelizmente, antes de vel-a, antes de pisal-a, eu a sonhara... e o
sonho, que é uma visão do mysterio, vai sempre além da realidade.

--Então... que esperavas tu?

--Eu? uma avenida como as que tenho admirado em gravuras, como as
que tenho visto descriptas: com grandes casas apalaçadas, ruas
cuidadosamente calçadas de marmore... architectura e gosto, arte e
elegancia, e largueza sobretudo, meu tio; largueza, muita largueza...
Um velhinho magro, esgrouviado, com um amplo casaco côr de castanha,
surrado, tomou a frente a meu tio estendendo-lhe ambas as mãos,
pallidas como as de um cadaver. Encostaram-se a uma vitrina. O
velho sacou do bolso uma enorme carteira e foi desdobrando papeis,
cochichando, com risinhos. Meu tio approvava com ar digno, coçando
o papo. Parado em meio da rua, olhando, eu sentia cahirem dentro em
mim, um a um, todos os meus sonhos ingenuos de roceiro. A multidão
cruzava-se num formigamento activo; grupos chocavam-se. Havia
constantemente um chapinhar de solas, fru-fru de sedas e, de longe,
como um hausto perenne e sofrego, vinha um aáah surdo... De vez em
vez parecia-me ouvir o rumor cadenciado e longinquo do desfilar de um
exercito.

Sentia-me attrahido pelo luxo dos mostradores. Meus olhos esmerilhavam,
rebuscavam, examinando as casas, da soleira á cimalha, penetrando-as,
varejando-as indiscretamente com uma ganancia de imprevistos, com
uma avidez de novidades... mas desciam desenganados porque a rua que
eu antevira, a rua que eu sonhara... Ó divinos jardins suspensos! ó
avenidas de loureiros e de anemonas! como estais longe da esplendida
passagem que meus olhos viam em arroubos, quando me punha a pensar
nesta viagem ao Rio e realizava, embevecido, de olhos fechados, deitado
na relva, tamborinando no ventre, o meu passeio elegante pela calçada
de marmore branco, refrescada, duas vezes ao dia, com esguichos d’agua
de rosas. Não, decididamente eu não tinha razão--o que eu estranhava
não era a rua do Ouvidor... todo esse pungitivo sentimento que me
opprimia vinha da morte de uma illusão. Para os que não viram, para os
que não sonharam coisa melhor, a rua é admiravel; mas para os que podem
estabelecer confrontos, perdoa-me, arteria da civilisação patricia,
perdoa-me, avenida da elegancia e do espirito fluminense, não passas de
uma viela atarracada e sordida. O velhinho inclinou-se de novo com as
mãos estendidas e meu tio voltou a occupar junto a mim o seu posto de
elucidario.

--Então, Anselmo?

--Estou procurando o encanto, meu tio.

--Descança, descança, disse tomando-me o braço, elle é que ha de
procurar-te. E estacando mostrou-me a rua com o mesmo gesto com que,
em casa, do alto da casinhola, me havia mostrado o seu jardim: Então
_isto_ não te impressiona?

--Não, meu tio... e digo com sentimento.

--Esperavas alguma coisa como o boulevard des Italiens, como a calle
Florida? acudiu Serapião, versado em guias.

--Coisa melhor! muito melhor!

O elucidario lançou-me um olhar carregado de pasmo.

--Contaram-me tantas maravilhas desta rua que não é muito que eu me
confesse desilludido, porque o sentimento que, em verdade, subjugo
é de indignação, a mais justa indignação contra todos quantos me
atordoaram o espirito com exageradas fantasias e soberbas descripções
de um fastigio incomparavel. Em casa de Marianno Gomes, o Dr.
Gusmão, promotor, que parava, de vez em quando, alguns nickeis, no
seu feminino palpite--a sota, durante uma longa noite de azar e de
chuva, encurralando-me no vão de uma janella, falou-me, com a sua
eloquencia de jury, longamente, calorosamente, ácerca da rua do
Ouvidor, contando-me aventuras que havia gozado em companhia de um
desembargador, homem culto e de gosto. Foi quem mais alarmou o meu
espirito ingenuo, foi esse orgão da justiça publica o mais perverso e
cruel dos mystificadores. O padre Coriolano que, de longe em longe, vem
gozar no Rio um mez de inverno, disse-me, uma vez, em casa da Maria
Balbina, que _isto_ era como a Suburra de que fala Horacio: um lugar de
vicios. Marianno Gomes, mais franco, explicou-me numa phrase sobria e
devassa: «Que para a pandega não havia igual...!»

Mentiram todos: a lei, a religião e a batota. Isto é uma miseria! Nem
aventuras, nem Suburra, nem pandega!

--Espera, attende, acalma a furia, Anselmo. Se ainda não a conheces!
disse meu tio com um sorriso malicioso. A rua do Ouvidor tem o seu
segredo de attracção e de enlevo como certas mulheres que, apezar
de feias e avelhantadas, vivem perseguidas pelos adoradores. Has de
concordar: ha mulheres taes; a razão? o motivo? dize... Dei de hombros
e meu tio explicou com arreganho--um encanto particular, Anselmo,
coisas... Depois, recompondo-se, voltou a falar com gravidade,
fitando a rua: Não é bella, concordo. Vê-se que não foi traçada por
um Haussmann, mas lá encantos isso tem ella... É preciso viver,
conhecel-a, penetrar-lhe o segredo. Não estou longe de pensar comtigo.
Isto é um becco.

--Um becco! corroborei com desprezo.

--Mas queres saber a razão principal da sua nomeada? inclinou-se
olhando-me vesgo. É que ella é o centro da vida nacional. Descolámo-nos
para respirar, elle, porém, puxou-me de novo: Todos os grandes
factos da nossa politica e da nossa litteratura derivam da rua do
Ouvidor--ella é o estuario que recebe todas as correntes, o centro para
onde convergem todas as forças activas da nação e donde se escoa a
seiva intellectual...

--A seiva intellectual!... exclamei recuando, e meu tio, impassivel,
acastellado na sua convicção, repetiu abanando com a cabeça:

--Pois não... pois não, seiva intellectual. E continuou: Tens ali a
imprensa, e levantou a bengala para uma sacada onde havia uma comprida
taboleta negra com grandes letras brancas--e, passeiando a bengala como
um ponteiro, proseguiu: o commercio, a industria. Firmou-se passando o
lenço pela fronte gottejante: O cambio, as leis, tudo quanto orienta e
desorienta o Brasil sahe daqui...

--É o laboratorio, commentei com ironia, e meu tio aceitou:

--O laboratorio, pois não. Mais ainda, vou mais longe. A meu ver a
nossa fórma de governo é a rua do Ouvidor, a nossa religião é a rua
do Ouvidor--as constituições, os figurinos e os actos de fé sahem
deste becco. Isto é a pia lustral que consagra os factos e os homens.
Esta rua echôa todos os successos do mundo como na vida physiologica
o cerebro, por um phenomeno de repercussão nervosa, reflecte todas as
sensações do corpo. Meu tio, cançado do rasgo scientifico, aspirou
largamente e tossiu, mas a facundia voltou: As mulheres, para imporem
a sua formosura, descem e sobem a rua varias vezes. Ha um talento
prodigioso por ahi além... quem o conhece? Ninguem! Quantos poetas
vivem ignorados por esses recantos, sem jámais alcançarem a gloria da
publicidade?

--O Simão Carreira...

--Sim, o Simão... Ha por acaso alguem que conheça o Simão?

--Eu, meu tio. Conheço-o e admiro a sua inspiração, sempre nova e
fertil.

--Mas... tu és uma parcella insignificante. Para immortalisar um
homem só o suffragio collectivo, e a urna aqui está. Tenho certeza de
que o Simão, com um dia de rua do Ouvidor, faria mais pela gloria do
seu estro do que tem feito com 28 annos de trabalho modesto no canto
obscuro de Tamanduá, entre os milhos. Bastava que recitasse dois ou
tres sonetos. E meu tio alongou o braço: O caminho da gloria é este,
Anselmo.

--Não é feito de rosas, meu tio.

Davam tres horas e o calor escaldava. Meu tio propoz um _grog_ gelado,
no Paschoal. Iamos caminhando lentamente quando dei com os olhos em
uma esplendida mulher loura, alva e rosada, de preto. Nos cabellos
dourados uma especie de diadema régio, com duas cristas de pennas
vermelhas, como no gorro do Mephistopheles, que eu vira, em tempos,
numa illustração de Natal.

--Linda mulher, meu tio!

--Divina! concordou elle estacando para admirar. A loura aproximava-se
coleando por entre a multidão, attrahindo os olhos lubricos, altiva,
indifferente, com um andar soberbo de rainha, o collo farto escondido
por um grande leque de plumas escuras, que ella agitava com languidez,
como uma grande aza. Passou por nós e tive apenas o tempo de vêr a
côr innocente e doce das suas pupillas azues, mais claras do que a
celagem da altura e ainda mais suaves, a boca, pequenina e vermelha,
uma curva sanguinea e humida. E o aroma que ficou á sua passagem, que
delicioso!... Linda mulher! tornei voltando-me para admirar o airoso
passo cheio de magestade e graça.

--É uma esculptura...

--Uma esculptura, meu tio. E, trincando o beiço, nervoso, tornei á
phrase: Linda mulher! com effeito... Mas meu tio, que adiantara alguns
passos, vendo-me parado a olhar, absorvido no vulto que desapparecia,
chamou-me:

--Vem dahi. Vamos ao _grog_, que está quente a valer.



                                  VI


Fomos descendo com vagar por entre a turba, ora collando-nos ás
paredes, ora desviando-nos para o meio da rua para dar passagem ao
feminino. Meu tio, apezar da sua corpulencia anafada, esgueirava-se
sorrateiro e agil, sem perder a linha correcta que lhe dava o ar
distincto de um diplomata em férias. Eu, porém, atordoado e zonzo,
parava de instante a instante, evitando os esbarros e as collisões.

Uma rotunda senhora, de roxo, o rosto placido e sumarento, côr de
goiaba madura, olhos fundos, de um brilho fulvo e máu, estacou diante
de mim, ameaçadora e terrivel, inchando as bochechas molles, suffocada
de ira. Precipitei-me para lhe dar caminho, mas com tal desazo, que nos
encontrámos, frente a frente, numa umbigada tremenda. Foi horrivel!
O vexame tirou-me de todo a calma. Dei um salto para a esquerda e
encontrei a senhora, fugi para a direita, e ella... Assim estivemos
um bom par de segundos num balancé ridiculo, até que fui repellido
para o meio da rua, exhausto e com o chapéu na mão. E a senhora passou
como uma avalanche, resmungando coisas atrozes contra mim. Ó divino De
Maistre, queria que visses esse exemplar nedio e colerico do teu «bello
animal», queria que o tivesses um minuto diante dos olhos para que me
dissesses depois em que casta dos belluinos o classificarias.

Livre, respirei um momento, enxugando o suor que rolava copiosamente
pelo meu rosto e, ancioso, perdido, alonguei os olhos procurando meu
tio.

A multidão... a multidão... a promiscuidade terrivel... todas as
variadas escamas desse camaleão--o povo (como disse uma vez em discurso
o verboso promotor Gusmão, referindo-se ás mutabilidades da opinião
popular, á versatibilidade da alma collectiva)... tonteava-me e meu
tio, a preciosa escama celibataria e farta, sumida, longe da minha
vista... Dei alguns passos attonito, desvairado, julgando-me perdido no
oceano tumultuoso da populaça que me aturdia: os homens, com os seus
cotovellos, as mulheres, com os seus olhos, com os seus cabellos, com
o aroma que deixavam ficar no ambiente, como um pollen invisivel para
fecundar o amor. Por fim, reconheci a voz de meu tio:

--Ó Anselmo!

Voltei-me ancioso e descobri-o á porta de uma casa, acenando-me.

Corri pressuroso e, mal nos encontrámos, desabafei: Que rua, meu tio!
Que garganta! Que inferno!

Elle sorriu, sacudindo com um piparote alguma coisa que trouxera da
multidão na golla do casaco, e, naturalmente, puxando-me pelo braço,
collocou-me junto de umas caixas de biscoutos, ao lado de prateleiras
carregadas de puddings e de frascos bojudos de geléas inglezas.

--Vamos ficar por aqui. Não ha mesa por emquanto. Lancei um olhar
de exame á casa. Era uma sala vasta, dividida ao meio por uma linha
resplandecente de columnas, de quatro faces, forradas de espelhos. O
fundo era um grande espelho corrido do solo á linha branca do estuque,
reflectindo, aprofundando o interior, rumoroso e cheio. As paredes,
de alto a baixo, carregadas de garrafas; por dentro de um balcão
de marmore e nickel, dois homens, em mangas de camisa, sacolejavam
cocktails; ao centro, uma comprida mesa de serviço. A outra parte
da sala era reservada á pastelaria e aos confeitos. Pelas vitrinas,
frascos de compotas, latas de conservas; sobre o balcão pratos de
fios d’ovos, bolos, tortas; nos mostradores semi-abertos alfenins e
doces miudos, loiros: de creme; escuros: de chocolate, polvilhados de
amendoas; pastilhas em bocaes enormes.

As portas estavam entulhadas de queijos, de salames e de linguiças
e nos armarios de exposição os finos bombons em caixas artisticas,
ornadas de chromos e polichinellos empanturrados de amendoas, sacolas e
outras coisas de formas extravagantes--tartarugas, caixas de phosphoros
e um Bismarck pançudo com o nome _Boissier_ no retrospectivo lugar das
palmadas na infancia, dos pontapés na virilidade.

Um grande aquecedor de empadas, rodeado de homens que mastigavam
gulosamente. Do tecto, presas por fios negros, pendiam lampadas
electricas.

Não havia uma mesa--todas cheias. Grupos de rapazes, os cotovellos
fincados no marmore negro, gesticulando, falando alto, riam espremendo
siphons. Senhoras cerimoniosas, com o véu levemente arregaçado,
chuchurreavam sorvetes. Em uma mesa um rapaz loiro, imberbe, inclinado
para o companheiro, pallido, de pince-nez, lia baixinho umas tiras
de papel, levantando o braço direito em gestos supremos, todo
arregaçado--o companheiro tinha os olhos perdidos no fundo do copo.
Caixeiros azafamados passavam com bandejas carregadas, abriam garrafas,
serviam pratos. Havia um rumor confuso e, de quando em quando, um
berro: cognac! um nome: Barroso! e estouros de garrafas desarrolhadas,
estrepito de louça, tinir de talheres...

Meu tio, que se voltara, disse-me confidencialmente:

--Tens aqui o Paschoal!

--É soberbo...!

--É chic.

De repente abandonou-me e foi-se precipitadamente, de esguelha.

--Com licença! Com licença! para a direita, para esquerda, porque era
preciso incommodar os que faziam pacatamente a sua hora de lunch ou de
vermouth, para dar passagem ao seu prodigioso ventre; e foi seguindo
até o fundo da casa, junto ao grande espelho.

--Temos aqui uma! Temos aqui uma! disse, chamando-me. Já havia tomado
duas cadeiras quando um sujeito magro, de cavaignac, avançou com um
petiz ao collo, babujado de creme. Falou com a boca cheia: «Se lhe
podia ceder uma cadeira?» Mas meu tio, com um sorriso, voltou-se,
designando-me ao do cavaignac, como se lhe quizesse significar: «Bem vê
que não é possivel, tenho aqui meu sobrinho.»

O homem agradeceu e foi-se com o petiz que chalrava, pedindo coisas,
com os braços estendidos. Sentámo-nos. Uf!

--Uma estafa, hein, Anselmo?

--Uma estafa, meu tio!

--É sempre assim. E a um caixeiro que passava com uma bandeja de
sorvetes:

--Ó Barros...

--Volto já, senhor commendador. Volto já. Foi-se, equilibrando os copos
e meu tio, descançando o chapéu numa vara de metal que corria ao longo
do espelho, bufou esbaforido:

--Está quente!...

--Um forno!

--Amigo commendador, disseram, e eu, pelo espelho, avistei um rapagão
de fartos bigodes loiros, pince-nez, sobrecasaca e calça clara, que
arriava a cartola cumprimentando meu tio. Falava a umas senhoras dando
palmadinhas de carinho nas bochechas de um pimpolho, que amuava ao
collo de uma negra retinta, com uma touca de seda, donde pendiam até os
pés duas largas fitas cinzentas. Meu tio correspondeu com affabilidade
offerecendo-lhe a mesa, onde, até então, sómente havia as nossas
bengalas cruzadas. Elle espalmou a mão--que esperasse.

--Quem é, meu tio?

--O Dr. Gomes de Almeida, advogado. Moço de talento e rico.

--Bello rapaz.

--Boa prosa. Has de ouvil-o. Voltei-me, porque meu tio afastara a
cadeira e já estava de pé. O Dr. Gomes, radiante e de braços abertos,
apertou-o com intimidade.

--Meu sobrinho Anselmo... O Dr. Gomes de Almeida, meu amigo, apresentou
meu tio. Trocamos um aperto de mão e sentámo-nos. O caixeiro, que
voltava, inclinou-se passando pelo marmore uma toalha felpuda:

--Que ha de ser, Sr. commendador?

--Tres grogs.

--Não, não, acudiu o doutor--para mim, um cocktail. É a minha hora e em
questão de habitos não transijo.

--Dois grogs e um cocktail, repetiu o caixeiro, deixando sobre a
mesa um cartão minusculo. Meu tio, dirigindo-se ao doutor, disse
indicando-me:

--É a primeira vez que vem ao Rio.

--A primeira vez! exclamou elle, cravando em mim os olhos claros.

--Estive aqui em janeiro de 72, cinco dias apenas, em um hotel.
Grassava a febre amarella e meu pai, que viera para matricular-me em um
collegio, ao fim de tres dias, resolveu abalar, aterrado, preferindo
conservar-me ignorante, mas vivo, a seu lado, para governo das suas
terras. Fugimos, e justamente no dia da nossa partida, no quarto
proximo ao que habitaramos, faleceu um jovem americano electricista,
que viera ao Rio por conta de um syndicato, tratar de uma empreza de
campainhas. O correspondente, que nos escreveu, felicitando-nos pela
retirada prudente, falou do pobre forasteiro dizendo que na agonia
entrara a declamar em inglez umas coisas gementes, que mais tarde
soube, pelo Dr. Azambuja, serem versos de Longfellow. Esse americano
agonisando solitario entre os tabiques de um quarto de hotel, revendo
na agonia as paisagens da _Evangelina_, nostalgico na suprema angustia,
nunca mais me deixou o espirito. Apezar de o ter visto apenas uma
vez, á mesa, não esqueci os traços femininos do seu rosto, de uma tez
dourada e rosea, macia e branca como a de uma mulher. E tomei em tal
horror o Rio que, apezar das reiteradas instancias de meu tio, fui-me
deixando ficar entre as minhas arvores, onde não chega a peste.

--E ainda receia? inquiriu o doutor, sorrindo.

--Não tanto, mas na multidão parece-me ver passar, de vez em vez,
o americano pallido, desvairado e hirto. Para mim essa visão de
allucinado é como um presagio de peste e, sempre que me falam de alguma
victima do terrivel mal, vejo immediatamente levantar-se diante dos
meus olhos o desgraçado moço recitando:

  In the Acadian land...

--É extravagante, disse o doutor. É um bello caso de
impressionabilidade.

O caixeiro fez deslisar pela mesa uma bandeja carregada de copos.

--Dois grogs e um cocktail...

O doutor sorveu um trago e, depois de chupar os bigodes, perguntou com
interesse:

--E como tem achado a cidade?

--Pouco tenho visto: cheguei hontem... Mas meu tio interrompeu com uma
expressão concludente:

--Não gosta. Sonhara coisa melhor.

--É geralmente o que succede. Deu-se commigo o mesmo facto, disse o
doutor. E voltando-se para mim: Imaginava o Rio uma cidade artistica,
monumental e nobre, com abundancia de marmores, avenidas, longos
passeios abrigados sob toldos, palacios de estylo e o fausto classico.
A cruzarem-se pelas ruas carros, cavalleiros; o luxo incomparavel do
sonho, a sumptuosidade da fantasia, o espirito, a elegancia, a belleza,
e encontrou uma cidade vulgar, sem nada absolutamente do que lhe
emprestara a sua imaginação, não é exacto? Sorri, mexendo lentamente o
meu grog.

--Commigo succedeu exactamente a mesma coisa. Quando daqui parti, em
80, para ter o prazer de pisar o solo trilhado pela humanidade nas
suas marchas atravéz do tempo, desde a éra aryana até o periodo em
que se moveram da terra de França, para as campanhas ambiciosas, as
legiões que seguiam a aguia altiva de Napoleão, fui perdendo illusões a
pouco e pouco. Era já com tristeza que descia a escada do navio quando
chegavamos a algum porto, porque levava de antemão a intima certeza de
que ia ver aluir-se um dos meus sonhos--e era fatal.

Paris, por exemplo--é um assombro, incontestavelmente... um assombro!
Infelizmente, porém, o Paris que eu imaginara era o antigo, que eu
vira descripto nos primeiros romances que me entretiveram as horas de
mocidade--Paris dos duellos, Paris dos lansquenets, Paris das tascas
romanticas, Paris das vielas escusas, onde, á noite, á luz fumarenta
das lanternas, tiniam as finas e flexiveis espadas dos pagens rebatendo
a _rapière_ dos burguezes, Paris de Ponson, Paris de Dumas... É
ridiculo, não é? mas infelizmente é um facto geral.

Essas impressões das primeiras leituras que nos ensinaram a devaneiar,
que nos tomaram pela mão para nos mostrar a estrada azul da fantasia,
não esmorecem facilmente. É debalde que procuramos suffocar esse
residuo de infancia ou de imbecilidade que fica em nossa alma, lendo
solidas e doutas philosophias, espanando os preconceitos com o vasculho
da critica e da analyse, destruindo, com as verdades da historia, as
fabulas que adquirimos na novella e no conto. Esse sedimento subsiste
como germen abafado de onde, longe em longe, espontaneo e violento,
rebenta um broto de sentimentalismo.

A verdade é que nós temos duas divisões--a do mundo real e a do mundo
imaginario, e esta é a primeira que buscamos. É atravéz della que a
Poesia entrevê o céu, ella é que torna o mundo possivel, variando
constantemente a sua face. Porque é que os astros são eternamente
bellos? É porque nós os olhamos com um pouco de imaginação. O
Oriente, por exemplo... que decepção, meu amigo! Quando desembarquei
em Beyrouth, que é, por assim dizer, a porta da Syria, senti tal
aperto d’alma que a minha vontade foi voltar para a cabine, a bordo
do paquete, que ainda se balouçava no porto. Tudo quanto eu julgara
encontrar nessa terra ancestral estava entulhado pela civilisação,
aluido pelo progresso: A industria fincara os obeliscos das chaminés,
que fumegavam como em Londres, como em Bruxellas, como em Amsterdão, a
patria da genebra e dos organistas. O beduino, em vez de traçar, como
nos tempos historicos, o albornoz listrado, encolhia-se sentado a um
canto, fumando um cachimbo Cambier, raspando com as unhas as pernas
magras, vestido com um paletó côr de cinza, de golla de velludo. O
degenerado que me deu cêrco pedindo solicitamente o guarda-sol e o
binoculo vinha assim vestido. É verdade que encontrei um filho do
deserto, authentico, mas apezar do seu trajo pittoresco de scheik,
apezar do yatagan e do cinto vermelho, ruminava um francez duro,
offerecendo umas pedrinhas claras de uma fonte milagrosa citada pelo
Propheta.

A Palestina... uma miseria! Mas o que jámais esquecerei é o que lhe
vou dizer seccamente, em quatro palavras. Quer saber o que encontrei
no alto do Calvario, justamente no sitio santo em que foi crucificado
o Christo? Inclinou-se todo para mim olhando-me, fixando-me como se
quizesse magnetisar-me, por fim disse com um gesto, sacudindo o punho
e deixando cahir palavra por palavra com força e furia:--um grande
mastro com um cartaz annunciando um leilão de jumentos... Um leilão de
jumentos, é exacto! E virou de um trago o cocktail.

Que quer? os homens entendem que podem encerrar todas as tradições
das raças nas vitrinas dos museus, já dispensam os sitios santos da
religião, porque a Luz é a sciencia. Deus começa a ser analysado como o
_bacillo-virgula_.

Meu tio, que se sentia ferido nos seus melindres religiosos, inquiriu
com uma ponta de incredulidade:

--Mas, doutor, era mesmo um leilão de jumentos? Talvez fossem
reliquias...

--De jumentos, vi-os eu no Calvario. Jumentos! E arreganhando os
dedos: Quatro patas, commendador. Quatro patas e orelhas! affirmou.

--Cães! rusgou meu tio mostrando o copo ao caixeiro para que lhe
servisse outro grog.

--Não se incommode, commendador, não se incommode, acudiu
tranquillamente o doutor apaziguando a furia de zelo do meu beato
parente. A religião ha de vencer, apezar de todas as guerras que
contra ella movem obstinadamente os pseudo-reformadores. Isso, longe
de destruir a crença, augmenta-lhe o prestigio. Que era a cruz antes
do martyrio do Homem? um vilissimo instrumento de supplicio e é
hoje um symbolo de misericordia, é a ancora com que nos prendemos á
Esperança. O azorrague, a corôa de espinhos, o sceptro de canna, a
tunica de byssus, tudo quanto foi para Jesus opprobrio, é hoje objecto
de respeito e de veneração. Esse mesmo poste, alçado como um ludibrio,
no santissimo lugar, acabou commovendo-me e não dobrei os joelhos
devotamente, creia o senhor, não ajoelhei, repito, de vergonha, porque
andavam por ali umas mulheres que não tiravam os olhos de mim.

--Ajoelhar-se diante do poste dos jumentos, doutor!

--Pois não, commendador, diante do poste porque elle estava fincado no
Calvario, que é a montanha por excellencia, santificada pelas gottas do
sangue do Cordeiro. O que eu ali via não era um poste de annuncio, era
um mastro espetado no lugar em que estivera a cruz. Ali devia tremular
a bandeira branca da Paz Universal. Tinha um annuncio, isso, porém, não
era bastante para desmerecer o sitio aos olhos de um verdadeiro crente.
O maldito reclamo, inventado pela ambição yankee, é que tem polluido os
legados preciosos dos seculos.

Em Epheso, por exemplo, nas soberbas ruinas do templo de Diana onde,
á noite, ao luar triste, a gente julga ouvir os latidos da matilha
feroz e os gritos das nymphas perseguindo o misero e formoso Endymião,
num fuste de esplendido marmore, entre folhas de acantho, avistei uma
inscripção em letras negras--corri a decifrar e era um annuncio de
capsulas de sandalo.

O commercio affixa em toda parte, escolhendo, de preferencia, os
lugares celebres... O Passado vai desapparecendo sob cartazes de côres.
Não ha mais antiguidades, não ha mais tradições, o que hoje ha é uma
avidez sordida de dinheiro.

É preciso andar para conhecer-se o caracter do homem. Vende-se tudo
nos mercados do mundo: innocencias impuberes e aguas mysteriosas que
fazem voltar a mocidade, consciencias e homens. Em caminho encontrei
de tudo, comprei de tudo para humilhar o semelhante. Em uma aldeia
de Constantinopla, perto de um cemiterio todo em flor, ajustei, por
uma bagatela, uma formosa rapariga que me agradeceu, cantando uma
ballada turca, emquanto eu contava as moedas; em Smyrna abalou com um
caixeiro que negociava em pannos, deixando-me, como lembrança, uma
lata de contas e uma rosa de Jerichó! Tenho em casa, no meu gabinete
de trabalho, reliquias preciosas compradas por ahi além, desde o monte
Athos, onde subi para avistar o celebre convento d’Aghios-Dionysios,
até Paris: o dedo com que S. Thomé tocou a ferida aberta no peito
de Jesus pela lança de Longuinhos, um pouco da palha mastigada pelo
burrico que carregou a Virgem para o Egypto, uma madeixa de João
Baptista, o ciborio de cophen com que polia as unhas Maria de Magdala,
um prego da cruz, uma prova da legenda que foi pregada no tope
do aviltante madeiro e um dos suspiros do Bom Ladrão; e reliquias
profanas--a clava com que Atila aterrou o Occidente, o tinteiro onde
Carlos Magno molhava a penna para escrever os Capitulares, os oculos de
Milton e os famosos sapatos com que o Alighieri andou pelas calçadas
do inferno. Guardo tudo como recordação dos lugares que visitei para
provar a vileza da alma do homem venal e torpe.

--Outro cocktail, doutor, offereceu meu tio.

--Não, obrigado, commendador; basta. E voltou-se de novo para mim
offerecendo-me cigarros turcos:

Depois que vi o mundo estou convencido de que o Rio de Janeiro é
uma bella cidade. E o meu amigo, dentro em pouco, ha de concordar
commigo. Não é tão máu como parece. Demais, para um moço como o senhor,
intelligente e forte, ha sempre uma aventura á espreita. Descahiu um
pouco para o meu lado e disse-me, em tom mysterioso, apinhando os dedos
nos labios para colher um beijo: O Rio tem mulheres esplendidas! e
atirou o beijo com um estalinho. Ainda não as viu, garanto...?

--Pois não. Passou por nós uma loura lindissima!

--Uma...! Mas o Rio tem milhares, meu amigo. É preciso vel-as,
conviver com ellas no meio em que vivem. Não é na rua do Ouvidor,
creia: é nos salões, nos boudoirs... nos boudoirs...! Ah! as mulheres,
as mulheres...! foram a minha perdição em viagem. Antes de ver os
edificios, as bellezas naturaes e artisticas de um paiz, tratava de ver
as mulheres e estou convencido de que é a mais bella coisa da Creação.

--Primeiro as hespanholas! aventurou meu tio com os olhos brilhantes
de volupia, recostando-se no varão de metal que corria ao longo do
espelho.

--Não sei, commendador, não sei. Olhe que as inglezas são
lindissimas...!

Meu tio fez um momo.

--Espere, commendador, eu tambem pensava assim; mas em Londres
convenci-me do contrario. Lembro-me sempre de uma noite em que se
cantou o _Ruy-Blas_, no Covent-Garden... Commendador, não se descreve,
creia, não se descreve. Imagine o senhor uma assembléa de estatuas,
qual mais formosa, alvas de fascinarem, immoveis, numa attitude
hieratica, com grandes aureolas feitas dos proprios cabellos louros. E
os olhos azues, commendador, os olhos azues das miss! quem os cantará
como elles merecem! A impressão que tive em presença dessas donzellas
da antiga nobreza foi a que teria um pobre civilisado de hoje vendo
subitamente abrir-se o céu pagão e apparecerem todas as deusas, todas
as graças num zodiaco como aquelle hemicyclo de camarotes do theatro
inglez. Que sei eu, commendador... Não havia uma mulher feia! Nem uma!

E espetou o dedo com convicção.

--Mas não têm vida, tornou meu tio, cruzando as pernas. São umas
estatuas, como disse o doutor... E depois--que andar!

--Engana-se ainda, commendador. Decididamente o senhor precisa sahir do
Rio. Londres é a patria das mulheres, convença-se, commendador. Não ha
louras como em Londres.

--Não gosto de louras.

--Ah! então italianas: as morenas de olhos abrasados. Ha bellissimas
mulheres em Roma, em Florença, em Veneza... A Zanelli... Meu tio piscou
um olho discretamente; eu, porém, surpreendi-lhe a mimica no espelho
fronteiro. O doutor calou-se um momento e logo continuou: Em Roma...

--Cá para mim não ha como a hespanhola. É a mulher que me agrada. Quem
é que traz com mais graça a mantilha do que uma andaluza? Quem agita
com mais arte um leque? E depois... é outra coisa! Cá para mim não ha
como a hespanhola, insistiu.

--Quer saber onde encontrei bellissimos typos femininos? Na Russia. É
exacto, lindas mulheres.

--E as turcas, doutor?

Fez um momo e balançou a cabeça negativamente:

--Não gosto...

Um caixeiro aproximou-se e disse-lhe alguma coisa em segredo. Voltou-se
de golpe e, apanhando a bengala: Com licença: vou ali á porta ouvir um
amigo. Volto já.

--Pois não, doutor.

Levantou-se e partiu com os dedos na aba da cartola, a sorrir.

--Que tal, Anselmo?

--Intelligente. Lembra-me o padre Coriolano que, por haver decorado o
livro de Ruth, repete, sem omissão de uma virgula, todos os periodos do
idyllio. O doutor, falando, não deixa no espirito a impressão de uma
palestra, mas de uma leitura: tem paginas magnificas. Mas, francamente,
parece-me exagerado.

--Mentiroso, mentiroso é que é... E carrancudo: Ha lá quem acredite na
tal historia dos jumentos? Leilão de jumentos no Calvario... Ora bolas!
Mas recahindo em tom brando e resignado: Dahi, quem sabe! do modo
por que vão as coisas tudo é possivel. E com ar triste e tedio: Que
miseria! Até a religião! e engoliu um sorvo.

Pelo espelho eu seguia todos os movimentos do doutor, que falava a um
rapazola pallido, de olhos miudos talhados á chineza, bigode fino, uma
singular physionomia de mascara de seda com uns toques de imbecilidade.
O assumpto devia ser grave porque, de vez em vez, a fronte do doutor
franzia-se e a sua cabeça douta pendia para o peito, scismadora
e apprehensiva. O rapazola, com gestinhos femininos, enfeixando
os dedos, fazendo beiços, dedilhando no ar, pronunciava baixinho,
precipitadamente, puxando, de vez em quando, o doutor para soprar-lhe
um segredo ou recuando de braços cruzados, a cabeça á banda, mudo e
fito.

Por fim o doutor irrompeu com uma bolachinha entre os dedos, exaltado,
frenetico, agitando o braço com violencia e furia; os labios
tremiam-lhe, os olhos chispavam e o seu bigode fulvo estava arrepiado
de colera.

Encolheu-se e, de improviso, atirando a bolachinha á rua, impoz
gravemente a mão direita sobre o hombro do interlocutor e, meneando
com a cabeça, disse alguma coisa de responsabilidade porque o outro
tomou uma attitude cheia de mysterio para ouvir, mas subitamente,
descahindo, prorompeu em rinchavelhada estridente sacudindo-se.

O doutor recuou um passo sorrindo e cofiando o bigode que amaciara.
Como o pallido estendesse a mão, o doutor disse-lhe alguma coisa em tom
intimo, elle esticou-se um pouco e espiou-nos com ar curioso, mas fez
uma careta de desgosto calcando o ventre, alongando o beiço. O doutor
sacudiu-lhe a mão num shakehand, disse-lhe uma phrase que elle acolheu
com outra rinchavelhada e partiu. O doutor voltou immediatamente com um
resto de sorriso e, sentando-se, disse para meu tio, em confidencia:

--Revolução em Matto-Grosso, commendador.

--Como! Ainda? exclamou meu tio saltando.

--É exacto, disse-me agora o Lyrio.

--Aquelle rapaz?...

--Sim, trabalha num jornal, é o debulhador dos crimes. Viu um
telegramma.

--Isto é o diabo! exclamou meu tio espalmando as mãos nas coxas e
derreando o busto.

--Qual, commendador: revoluções inoffensivas. Nós somos um povo
bem fadado... todas as nossas revoluções são incruentas. Somos
sufficientemente anemicos e é talvez por isso que nos vamos arranjando
a secco. O sangue só escorre no noticiario, a carnificina só existe
na local. Temos dado ao mundo o exemplo mais perfeito da harmonia
dos poderes--as nossas lutas intestinas são uma blague de bom humor
para alimento do artigo de fundo. Toda a nossa evolução social tem
sido feita, não á custa de sangue, mas á custa de foguetes. Para
dar-se ganho de causa a uma ideia basta collocal-a sob a protecção de
uma banda de musica. Só ha dois factores de revolução no Brasil--a
chirinola e o foguete de lagrimas. A semente da arvore genealogica da
brava gente, commendador, é D. Quixote... A sciencia ha de confirmar
mais tarde o que lhe digo hoje em palestra: nós descendemos em linha
directa do heróe manchego. Até na mania das concessões temos o traço
indelevel da alma do cavalleiro errante que promettia a Barataria
quando Sancho, desalentado e moído, pedia para voltar á sua tranquilla
aldeia. Não creia em revoluções, commendador, são moinhos de vento...
moinhos de vento e nada mais.

--Creio bem, creio bem, mas não é pela revolução de Matto-Grosso. Que
tenho eu com Matto-Grosso, não me dirá?

--Nada.

--Nada, certamente, não tenho nada; o que me preoccupa é outra coisa.
Não imagina como essas historias fazem mal á praça. Basta o telegramma
de uma aldeia qualquer, historia de um caudilho que se poz á frente
de um lote de homens, para que o commercio soffra. E escancarando os
braços: Senhor, correu um dia destes que iam depôr a intendencia de
Maxambomba, pois não lhe digo nada: os titulos cahiram. Eu sei bem
que o sangue de Abel, de que falam os jornalistas, é uma figura de
rhetorica.

--Simples figura de rhetorica e já estafada e innocua, accrescentou o
doutor.

--Mas os papeis soffrem, soffre o commercio, soffre o povo. E
indignado, fechando o punho: Que diabo, dêem cabo de tudo, rebentem,
estourem, mas não compromettam o credito do paiz! Isto é que é
patriotismo. Agora estar a gente todo o dia a ouvir: revolução aqui,
e cahiu para a direita; revolução ali, e cahiu para a esquerda;
governador deposto, e apontou o tecto, revolta nos quarteis, fez um
gyro-gyro com ambas as mãos fechadas. É horroroso... é uma vergonha!

Uma voz estrugiu em plena sala stentorosa e indignada.

«Vá ao _Paiz_... Vá ao _Paiz_, lá está o boletim...» Era um homemzarrão
barbado, intonsamente barbado, uma cara terrivel de propheta,
embrulhado numa sobrecasaca enorme, rapada e lustrosa, com um grande
chapéu molle no alto da cabeça calva, côr de marfim antigo.

O doutor encolheu-se e murmurou:

--Fujamos, commendador, antes que o Braz nos venha falar da podridão
moral. Baixámos a cabeça e meu tio fez um aceno ao caixeiro que nos
servira e fomos sahindo sorrateiramente para que não nos visse o homem.
Já haviamos chegado á porta, quando elle berrou indignado, caminhando
para a mesa que deixáramos:

--Menino, dá cá um cognac!

Á porta, em um grupo, um rapaz moreno, de pince-nez, discutia assomado,
aos pinchos para a direita e para a esquerda, avançando e encolhendo os
braços num recúo athletico, a cabeça enterrada nos hombros ou espichado
nas pontas dos pés, olhando por cima das lentes, com rugidos surdos.
Segurando a bengala pelo meio sacudiu-a e, num salto de acrobata, rugiu
numa voz espremida, descrevendo rapidamente um circulo no soalho:

--É o zodiaco do amor, é a escala chromatica do affecto, mas não se
aproximem! ululou, encolhido, com os olhos chammejantes,--não se
aproximem, porque a pomba, muitas vezes, fere como as aguias bravas. E
calmo, calcando sobre a mola do pince-nez: É um mulherão!



                                  VII


Não sei ao certo quanto tempo nos demorámos abancados junto do grande
espelho, ao fundo do Paschoal, bebendo grogs e ouvindo a palavra
pittoresca do Dr. Gomes, mas quando sahimos, a rua tinha outro
aspecto--via-se-lhe toda a sordidez do lagedo e, quasi deserta,
sem a densa multidão que a cobria quando a deixámos, mostrava-se
impudicamente a meus olhos esboroada e suja.

Eram outros os grupos que subiam--homens em mangas de camisa,
tisnados, arrastando, com estardalhaço, solidos tamancos; alguns
traziam, além da marmita de lata, pequenos feixes de lenha miúda.
Poucas senhoras e, correndo de um para outro lado sobraçando maços
de jornaes, meninos que apregoavam a revolução em Matto Grosso e um
assassinato barbaro. Em uma esquina era tal a profusão de flores
que o ar rescendia. Meu tio escolheu tres ramilhetes de violetas e
offereceu-nos. O doutor immediatamente cravou a unha na botoeira da
sobrecasaca florindo-se e eu, emquanto arranjava a malva sobre a
lapella, communiquei-lhe a minha impressão:

--Parece-me outra a rua do Ouvidor...

--Exactamente, fez elle; é que ella tem varios aspectos--este é
um delles, o mais interessante, talvez. Caminhámos e o doutor,
para falar com mais intimidade, tomou-me o braço. É a hora dos
operarios. As modificações desta rua accusam-se pelos seus typos;
são elles, por assim dizer, que lhe formam a physionomia e, o que é
mais notavel--a cada um dos aspectos corresponde um cheiro especial.
Olhei-o... e elle affirmou: Sim, meu amigo, um cheiro. Talvez não
tenha observado que todos os homens, como todas as coisas, têm o seu
aroma caracteristico... Pode-se perfeitamente distinguir as raças
pelo cheiro, como um conhecedor distingue facilmente, apenas pelo
olfacto, um genuino Xerez de uma falsificação. Chego a levar a minha
mania a ponto de emprestar aroma ás coisas abstractas--á côr, ao som,
ao sentimento. O branco é inodoro como a camelia; o vermelho cheira
a cravo, o azul é o heliotropo. Ha trechos na _Aida_ de uma tal
intensidade suggestiva que, ouvindo-os, não só nos remontamos á vida
sensual do Egypto pharaonico, como sentimos (note que me refiro aos
temperamentos puros, faço excepção do imbecil, que não tem o olfacto
esthetico) sentimos um fugitivo aroma de chrysanthemas. Não conheço
a chrysanthema, mas o que senti, uma vez, ouvindo a Borghi cantar _O
fresche valli..._ devia ser forçosamente o aroma da flor do Oriente. A
saudade tem o aroma da violeta, que tanto dura. A innocencia trescala
a bogari, que é o lirio do monte, o crime tresanda á mandragora, que
amedronta, atordôa e mata. Mas o povo, insisto, tem o seu cheiro
especial--_odor populi_--e a rua do Ouvidor varia de aspecto e de aroma
conforme a hora, conforme a gente. Ás quatro da manhan, com as ultimas
estrellas, descem por este esophago, que vai dar ao estomago do Rio,
que é a Praia do Peixe, grandes carroças atulhadas de verduras e de
frutas, a lenha, os ovos, o pão e, algumas vezes, não raras, rebanhos.
Uma manhan tive de refugiar-me em um vão de porta para evitar a furia
de um garrote que tresmalhara. Passam carrocinhas levando pilhas de
jornaes--é o pão da curiosidade que se vai espalhar pelo interior
socegado levando á simpleza e á ingenuidade das cidades pacatas a bilis
dos articulistas salvadores da Patria. Cheira a curraes e a hortas, a
pão quente e a artigos de fundo.

Ás seis começa a vida do mercado--bandos de cozinheiros passam
chalrando, com samburás empanturrados; cestos carregados de viveres,
carros de mão cheios de legumes--tudo quanto sacía a fome fluminense,
desde o ramo tenro de salsa até o quarto de vacca sangrento, que
vai bambo, flaccido e gottejante, á cabeça dos carregadores. Cheira
acremente a matadouro e a salsugem.

Mais tarde fede a lixo quando os grandes carroções da limpeza começam a
asseiar as casas e a sujar as ruas. Ás seis e meia atrôam os pregões
dos jornaes e apparecem as primeiras caras femininas--menagères
economicas que vêm ao mercado, costureiras a caminho das officinas e as
desgrenhadas e pallidas anemicas que vêm das aguas do mar exhaustas da
caminhada, queixando-se das ondas que lhes maceraram o corpo delicado;
passam tristes, somnolentas e molles, com uma cestinha, os cabellos
soltos espalhados por cima de uma toalha, que trazem forrando as costas
para resguardal-as da friagem perfida d’agua salgada. Ha um cheiro
estranho de maresia, de sabonete Windsor e de bocejos.

Começa a descer o commercio: caixeiros apressados, em grupos,
commentando as bambochatas da vespera, com grandes ares. O primitivo
cheiro vai desapparecendo e espalha-se um apetitoso aroma de acepipes,
um almiscar suave de molhos.

Ás dez os patrões, pesados do almoço, arrotando, empanzinados
e fartos, descem; em seguida os capitalistas e as dyspepsias
melancolicas. Vem subindo o cheiro caracteristico, o cheiro «meridies»,
como já alguem lhe chamou--mixto de fumo, de essencias e de
guarda-roupa: sedas novas e camphora.

Ao meio-dia a primeira vaga polychromica, desde a elegante impaciente,
que vem estrear um chapéu, até o mendigo que surge lentamente, com
um realejo ao peito, gemendo palavras de piedade por elle e pelos
filhos, em nome do Senhor. Começa o rumor e o cheiro mixto vai subindo.
As portas ficam entulhadas, vão-se formando grupos e o commentario
principia até gerar o primeiro boato que corre rapido augmentando
sempre, de porta em porta, de circulo em circulo, como outr’ora
passavam, nos campos gaulezes, as noticias de guerra, de trigal em
trigal, de leira em leira.

Das tres ás cinco é a desfilada--a elegancia, o espirito, o trabalho,
o vicio, a miseria: o Rio manda a sua embaixada diurna que passa
numa promiscuidade fantastica de roda concentrica de lanterna magica
baralhando-se, confundindo-se.

É nessa onda que passa lento e cabisbaixo, admirando a lealdade dos
sapatos, que vão resistindo á marcha sem destino, o bohemio dessa
familia eterna de Gringoire, com a alma cheia de sonhos, os labios
borbulhantes de rimas, relembrando enternecidamente uns olhos azues
que o fitaram na vespera, casta e santamente, mas estacando subito
para reflectir na miseravel condição da materia que não vive, como o
espirito, da contemplação do ideal, mas sordidamente, gulosamente do
bife. Ás cinco essa onda vai desapparecendo.

--E o cheiro caracteristico, doutor? interrompi curioso.

--O cheiro?... sim--alguma coisa que se pode imaginar entre estes dois
pólos: Guerlain e a Sapucaia. Só ás cinco, dizia eu, essa onda vai
desapparecendo para dar passagem ao operario que vem dos arsenaes e das
fabricas: tresanda a suor e a resina.

--A resina... porque?

--Francamente, não sei. E começou a farejar. Experimente, ha ainda um
cheiro leve. Não sente? Não quiz entristecel-o, disse que sentia.

Elle, então, continuando: Demais, a hora é das flores. Ao crepusculo a
rua do Ouvidor perfuma-se: toda a gente cheira bem. Á noite é insipida:
cheira á comida como uma casa de pasto. Á meia-noite cheira á poeira e
ás cinco recomeça.

--Hesiodo não subiu tanto no seu livro ambrosiaco, disse eu,
lisonjeando-o e mostrando que tambem possuia os meus conhecimentos e
elle sorriu vaidoso, encolhendo os hombros.

Chegaramos ao fim da rua. Escurecia. O céu, de um doce azul fino e
nitido como o das porcelanas, tinha algumas estrellas; rodavam carros
e um pelotão de soldados marchava pesadamente ao toque de uma corneta
fanha. Voltámo-nos; no outro extremo da rua, apparecia uma nesga de céu
abrasado como em chammas--uma boca de forja.

--Lindo crepusculo! E ficamos um momento contemplando. De repente o
doutor sacudiu-me:

--E o commendador?...

--É verdade! meu tio...

Rindo ambos e de braço, como antigos camaradas, subimos a rua a grandes
passos. Uma harpa gemia ao fundo de um café sombrio.

--O café e a musica, as duas forças vitaes deste paiz, disse o doutor
com ironia. E curvámo-nos para marchar á cata de meu tio. Em menos
de cinco minutos de marcha esbaforida chegámos ao Largo. A estatua
do patriota, á luz mortiça do crepusculo, resplandecia com uns tons
vivos de ouro polido. Havia um ajuntamento em volta de uma bandeirola
vermelha; aproximámo-nos. Um homem barbado, de blusa, com uma casquete
de lontra, apregoava panacéas exaltando as excellencias de um sabonete
maravilhoso contra nodoas e tomando em dois dedos um pacotinho berrava:
que até as manchas da reputação desappareciam com algumas fricções do
invento mais notavel do seculo.

Grave e religiosamente soou na alta torre o primeiro dobre vesperal
da Ave Maria. Algumas cabeças descobriram-se e o homem abaixou a
voz. Houve um doce silencio mystico, rapido como um voto d’alma em
desespero e casto como uma oração. Pequenos, de mãos ás costas, pernas
abertas, levantavam os olhos para a torre onde o grande sino emborcava
lentamente, de espaço a espaço, soturno. De longe, na aragem da tarde,
vinham toques militares, finos, estridentes, com uma vaga saudade,
fazendo pensar em acampamentos guerreiros, á hora santa do baixar
da noite, congregando para a reza todos os regimentos exhaustos das
batalhas. O doutor, que sahira do grupo limpando o rosto, falou-me:

--Não sei se deva attribuir ao meu temperamento ou se a um resto de
crença que guardo na alma, esse estranho sentimento de religião que
em mim despertam os sinos. Não ouço sem commoção o toque da tarde:
Parece-me sempre que é uma voz antiga que vem do fim dos seculos
atravéz dos espaços evangelisar na terra. A igreja quiz conservar o
diapasão da palavra tremenda dos prophetas e creou o sino, que é, ao
mesmo tempo, meigo e terrivel, consolador e implacavel. Agora, por
exemplo, nesta meiga tranquillidade, este sino a soar não é bem uma
oração do templo pela humanidade, em doces threnos sonoros que vão
ondulando, ondulando, de lar em lar, de nuvem em nuvem a todas as almas
e a Deus...? Não é uma doce elegia sobre a morte da luz? A mim, e
desconto todo o meu romantismo, parece sempre que as estrellas esperam
a voz da atalaia santa para sahir. Ha muezzin em minarete que valha
um sino em campanario? Deixe lá falar, a nossa religião é divinamente
poetica, divinamente humana, porque é a que mais se dirige ao coração.
O _Dies irae..._ ah! _O Dies irae..._ o dobre a finados... _o tocsin_
de alvoroto, o rebate em tempo de calamidade... É divino sinceramente,
é divino!... Para as bocas de pedra das cathedraes só mesmo essas
poderosas linguas de bronze.

Outro dobre cahiu e o echo foi rolando demoradamente.

--Conhece o _La bàs_ de Huysmans?

--Não, doutor.

--Deve ler. É um livro interessantissimo. Livro de nevrotico, obra
de enfermo, mas de excellente factura, arte magnifica. Ha lá umas
doutrinas admiraveis sobre o sino, pregadas em um cubiculo, no
alto da torre de Saint-Sulpice, pelo sineiro Carhaix, um catholico
intelligente, profundamente versado em doutrinario antigo, de uma
erudição de velharias que pasma. Esse homem obscuro reserva em um canto
da sua lura volumes preciosos sobre a arte difficilima de tanger os
sinos: «De Tintinabulis» «Essai sur le symbolisme de la cloche» e prova
irrefutavelmente que é necessario, não sómente um perfeito conhecimento
da arte, como muita alma para que se consiga tirar do metal sons
symbolicos, se assim ouso exprimir-me:--para as cerimonias gloriosas
do rito, para as duas horas extremas da luz, para o gloria meridiano,
para os que nascem, para os que morrem, porque, infelizmente, o
sentimento artistico vai desapparecendo--a democracia reduziu tudo a
comesinho, a vulgar. Não ha muito, ouvimos no fundo de um café uma
triste harpa gemendo sambas. Creia que me faz pena, são como pedaços
de puro classicismo espesinhados pela multidão ignara. A harpa que
David tangia! a harpa que foi o kinnor levitico; a harpa que vem
embalando por essas idades remotas os sentimentos e as paixões, desde
a ira de Saul até ás tristezas de Ossian, é isto hoje: um chamariz de
bodega, que os dedos grossos de um maltrapilho ferem, não docemente,
não enamoradamente, com os olhos no céu como Wolfram, mas abjecta e
indignamente com um pires ao lado, pensando na colheita e indifferente
á corda que estala, ao compasso que se precipita!

Dá-se o mesmo com os sinos. Não ha mais sineiros... isso foi para
o tempo das cathedraes, quando o _Dies irae_ era cantado por
populações de crentes. Isso foi para o tempo em que se ia á Roma
pedir misericordia cantando por todo o caminho louvores ao Deus
Vivo, acordando aldeias ao som dos gloriosos choraes santissimos.
Isso foi para o tempo em que se acreditava em Deus; hoje não... não
ha mais nada--a civilisação vai estabelecendo mecanismo para tudo
e a philosophia abafa com uma analyse o que era mysterio, pondo um
principio onde havia um dogma, pondo a razão a patrulhar o sentimento
para que não aconteça perder-se de novo a humanidade em extases.

Para que sineiros, se temos o carrilhão, que é o piano das torres? Hoje
os poucos sineiros que restam são bimbalhadores, moleques apanhados no
meio da rua e içados ao campanario por cinco tostões para soar a aria
pastoral de reunir ovelhas. Ahi tem o amigo o que nos resta. Eu ainda
hei de ver o orgão em saráus, e é justo, porque as bandas militares
já invadiram os córos ecclesiasticos. Não temos mais nada, mais nada.
A civilisação vai extinguindo tudo. Espero ler ainda nos jornaes que
um sujeito qualquer pediu privilegio para illuminar as igrejas a luz
electrica ou para fazer santos mecanicos: um Christo que diga do
alto da cruz, deixando pender a cabeça meiga: _Consummatum est!_ e
em verdade estará tudo consummado. Estacou e olhando em frente disse
sorrindo:

--Olhe, ahi vem o commendador.

Era meu tio, com effeito, que vinha dando com os braços e a sacudir a
cabeça.

--Onde se metteram vocês?

--Na rua do Ouvidor, commendador, á sua procura.

--Á minha procura!... É boa!

--Á sua procura, meu tio, affirmei.

--Então foi de tanto procurar que não nos achámos. E, sem mais dizer,
foi impellindo o doutor para a victoria:

--Vamos, vamos...

--Mas, commendador...

--Perdão... Hoje temos que conversar. Entrámos. Sentei-me num banquinho
baixo em frente aos dois. Edgar fez estalar o chicote e partimos.

Começavam a acender os lampiões das ruas.



                                 VIII


O mundo é dos epicuristas, disse o doutor, ao fim do jantar, trincando
uma amendoa para melhor saborear o kirsch. A vida psychologica tem a
sua preoccupação: o ideal; a vida physiologica tem a sua avidez: a
fome. O ideal é a ancia pelo absoluto--fome insaciavel, por isso os
gastronomos são mais felizes do que os poetas.

Meu tio, affectando conhecimentos, deu com a cabeça meio toldada, em
signal de affirmação.

--Eu comprehendo a sumptuosa antiguidade com os seus banquetes
colossaes em que eram servidas rezes inteiras e grandes javalis com
os colmilhos vinham ornar o centro da mesa illuminada a candelabros
de ouro. Esses homens que nós outros, em assomos pueris de vaidade,
chamamos barbaros, conheciam e praticavam com mais requinte a sciencia
delicada do gozo fino. Nós hoje comemos para manter em equilibrio as
funcções da vida, raramente sentimos prazer, tratamos de encher o vacuo
materialmente, azafamadamente. As nossas refeições não têm solemnidade,
não têm apparato, são feitas, como todos os outros actos da vida
material, com tédio, com tristeza, funebremente.

Ah! os antepassados magnificos!... Para elles a mesa era um altar onde
se celebrava, com dignidade e volupia, o rito do estomago. Comprehendo
o orgulho de Lucullo e as extravagancias excentricas de Apicius
mandando apparelhar um navio para buscar ostras nas costas africanas.
O triclinio era o aediculo do supremo gosto, o ádito do regalo. A
civilisação rudimentar desses tempos era dictada pela esthetica. A
propria politica, sempre avessa aos retoques esmerilhados da Arte,
tinha a sua feição sympathica, tinha o seu cerimonial, exigindo
para a primeira ala de representação a velhice sensorial e grave
dos senadores, tão augustos na magestade impassivel da ancianidade,
tão veneraveis na hieratica e silenciosa attitude de pais da patria
que os barbaros da Gallia recuaram atemorisados, vendo-os immoveis
e alvadios, sentados nas curúes do Capitolio. A cozinha tinha a sua
esthetica especial. O cozinheiro romano era um artista. Para merecer
os applausos de um patricio não era bastante saber temperar o môlho
ou córar o peixe, era necessario conhecer o segredo de manter, para
que não se evolasse, o perfume da vianda ou do pescado e mais ainda,
commendador, era indispensavel saber vestir os pratos. Todas as peças
tinham a sua toilette caracteristica, variando de tempos a tempos,
conforme os caprichos da moda ou a imaginação do chefe das cozinhas.
Uma ave exotica trazida, entre os despojos de uma conquista, de
remotas paragens da Asia, era servida com a propria plumagem para
que, antes da satisfação do paladar, a vista se regalasse; um cabrito
montez vinha do forno entre folhagens frescas e verdoengas; havia
pratos perfumados, outros que primavam pelo luxo maravilhoso e vario
da verdura ornamental. Entre nós esse luxo, conservado por alguns
retrogrados, não vai além das espetadas de rosas e de limões no costado
dos bacoros de forno, as azeitonas que vão morar nas orbitas vasias e
o classico ovo cozido cravado na dentuça. É verdade que os francezes
pretendem resuscitar esse fausto elegante, mas como, commendador?
montando _gateaux_ de gelatina diaphana, refolhando massas, facetando
tortas de foie gras... Mas isso é infimo. Sabe, meu amigo, tenho uma
nostalgia estranha--a nostalgia do passado. Quanto eu daria para ser
commensal de um chefe barbaro, mesmo um bruto, como o huno que andou a
murchar a herva dos campos com as patas do seu cavallo da steppe...!
Quanto eu daria para estar no acampamento, depois da batalha, á hora do
rancho, para ver cahirem ao peso das clavas, ainda molhadas de sangue
inimigo, as rezes pacientes que vinham acompanhando o exercito; e com
que delirio eu cercaria as fogueiras colossaes em que ellas fossem
lançadas! Quanto eu daria, commendador! Trinchar um boi! Cravar-lhe no
ventre uma faca, grande como uma espada de guerra e comer no concavo
de um escudo! Estou enfarado da mesquinharia subtil do vol-au-vent. Um
bom pedaço de carne sangrenta a rechinar na ponta de uma lança, hein,
commendador?

--Não temos estomago para taes coisas, doutor.

--Isto sei eu. A humanidade vai degenerando miseravelmente. Não é
sómente á mesa que ella confessa o seu abastardamento--é em tudo.
Veja a Arte de hoje... Quem ha por ahi que ouse tentar um poema
epico? Ninguem! A poesia moderna é effeminada e languida--vai pelas
minuciosidades porque lhe falta a suprema força victoriosa dos antigos
vates que punham num canto de epopéa exercitos de homens e legiões
de deuses, todo o furor ardido das pelejas e toda a sensualidade: os
troantes armistrondos das catapultas e as doces palavras meigas dos
namorados.

Vêde na Iliada os contrastes--Achilles e Agamenão invectivando-se,
Diomedes rompendo as hostes troyanas com a sua lança formidavel,
Thersyto giboso, a injuriar e a rir como uma satyra errante; Ulysses,
a enredar traças, os deuses esvoaçando, uns pelos gregos, outros
pelos priamides e, mais que tudo, esse episodio de um tão original e
inaudito sensualismo: Paris salvo da lança aguda e bruta de Meneláu
por Aphrodite que o retira do campo de duello, levando-o aconchegado
ao seio ardente para dar-lhe repouso nos braços claros de Helena.
Isto sim! isto é poesia! Hoje a preoccupação do poeta é o rhythmo,
a sonoridade. São os discipulos de Apelles, commendador, são os
discipulos de Apelles: fazem-na rica por absoluta impossibilidade de a
fazerem bella. Os grandes deslocaram a montanha e a geração de hoje,
anemica e enfezada, anda a respigar destroços para brunir bibelots
que, ao mais leve contacto, quebram-se e desapparecem. Commendador,
nós, os contemporaneos, polidos por dezenove seculos de civilisação,
não valemos os errantes que sahiram dos valles acceitosos da India
cantando, ao sol, pelas margens das aguas claras, os doces versos
mysticos dos aryas. Virou o resto do licor que havia no calice e
continuou no silencio attencioso:

--Á nossa litteratura falta o caracter de originalidade. Não é
propriamente uma litteratura nacional porque, por infelicidade,
ninguem se preoccupa com a terra. Os olhos dos nossos poetas vêem as
constellações de outros céus, as aguas de outros rios, a verdura de
outras selvas. Quando trazem para o descante uma mulher, de preferencia
rustica, porque a Poesia, por um resto de bucolismo, só comprehende
o amor fiel na deveza campestre, vestem-a á moda da aldeia européa,
como uma pastora de Alsacia, como uma montezina dos Alpes, porque
a Musa indigena não se atreve a apresentar na estrophe a sertaneja
patricia, mais linda do que a Amaryllida das eglogas de Virgilio, mais
casta, se é possível, do que Miranda ou do que Agnés. Se é um homem,
desce das montanhas frias da Suissa tocando a _ranz_ das vaccas dos
companheiros de Winkelried. A paizagem é inverosimil, as aves que nella
desferem são todas exoticas e muitas vezes até encontram-se no fundo
de um parque, á luz da lua de maio, o rouxinol que canta e o cormoran
que sonha. O cormoran... ora, francamente! A causa de tal aberração
não é a ausencia do ideal plastico, porque ahi temos a natureza sempre
nova e cheia de imprevistos; não é tambem a ausencia do ideal poetico
porque, a meu ver, não ha paizagem mais suggestiva do que a nossa,
cheia ainda do rumor da vida priméva, selvas, valles e montes, onde
a lenda põe um mysterio em cada talisca, uma yara em cada regato,
uma balada em todas as corollas, uma pastoral em todos os valles, um
idyllio de amor em toda gruta, ardencia nos corações e inspiração nas
almas. A causa é outra--é a difficuldade, porque é incomparavelmente
mais difficil descrever a verdade do que colorir fantasias e sobretudo
porque o nosso genio artistico é um producto immigrante: trabalha em
nosso espirito como um colono labora nos campos e podemos dizer que as
messes do sólo e da intelligencia nesta terra pauperrima são devidas ao
elemento adventicio. Basta uma simples analyse da vida litteraria. Veja
o commendador--somos ainda um povo em formação, começamos a encarar a
vida e, na idade em que a Grecia foi lyrica, na idade juvenil em que
todos os homens trataram de compôr poemas de religião e de esperança
para abrigo da alma, nós desesperamos, somos pessimistas... Por
convicção? por soffrimento? absolutamente não, por imitação apenas.
Praguejamos no berço e pedimos a morte, o Nirvana. Começamos a ler pelo
poema de Job. Mostre-me o periodo romantico, que é, por assim dizer,
a adolescencia da Arte, na sua segunda phase, depois do renascimento?
não tivemos. Saltámos para o naturalismo, que é a analyse, a rabugice
caduca da litteratura e já vamos caminhando para a cachexia do
decadismo, arrastados, inconscientemente, pelo habito inveterado
da irresponsabilidade. Vamos no tropel dos allucinados escabujar
na _charogne_, profanar tumulos para evocar procissões macabras,
depravando o coração, depravando a benção. Peladan institue o erotismo,
os eroticos emergem. Huysmans entra pela Idade-Média folheando as
chronicas poentes dos archivos, apparecem aqui os satanicos; o mahatma
apregôa as excellencias do budhismo, toda gente é budhista, como foi
hypnotista na phase mais irritante das experiencias de Charcot, como
foi cumberlandista quando aqui esteve Pedro Vals.

Somos um povo incaracteristico; defeito de origem--não tivemos lutas,
não conseguimos formar um periodo historico, habituámo-nos a receber
o que nos davam, dahi a passividade desidiosa do nosso temperamento.
Nossa alma varia de instante a instante, é por isso que somos tão
faceis de adaptação. Forçaram o nosso altar, deixaram-nos sem crença
e sem Deus, aluiram todo o passado meigo das tradições christans, que
foram o conforto dos nossos pais e o incentivo que nos trouxe pelo
caminho da Moral, abateram a cruz e mostraram á Virgem a Via Dolorosa
para que ella partisse, e que fizemos nós, os christãos? assistimos
impassiveis á hegira, vimos sahir dos altares os santos venerados
pelas nossas mãis e sorrimos. Chamam a isso evolução... é possivel--eu
chamo-lhe indifferença. E é assim em tudo. Em politica dizem que
fazemos revoluções sem sangue. Ora, commendador... francamente, chega a
ser ridiculo!

--Mas é a verdade, doutor.

--Uma triste verdade. Para mim a politica do brasileiro não vai além
da urna. Dêem-lhe todas as fórmas de governo com a urna e elle estará
contente. E essa dedicação ao vaso do suffragio, só comparavel á dos
hebreus pela arca, não significa a confiança que o povo deposita no
voto, porque toda a gente sabe que o voto, entre nós, é uma palavra.
Mas a eleição é uma tradição de motim, por isso é que ella perdura;
tanto é verdade que tenho certeza de que o Brasil politico cessará de
existir no dia em que morrer o ultimo cabalista. Outro facto ainda,
que attesta eloquentemente a nossa tendencia imitativa--é a mania
que temos da applicação de meios administrativos, economicos e ainda
politicos usados em casos normaes em outros paizes de condições bem
differentes das nossas, de systema de organisação diverso, á anomalia
da situação que atravessamos. É querer curar uma febre eruptiva com um
sedativo que fez cessar a cephaléa do vizinho. Ridiculo, commendador,
ridiculo e triste. E vertendo mais algumas gottas de kirsch:

--Que me diz o senhor da moda? a moda por exemplo, esse supplicio
imposto á mulher brasileira pela elegancia parisiense?

--Eu acho-a divina... Gosto immenso da variedade, affirmou meu tio.

--Tambem eu. Mas refiro-me aos disparates da mania vestiosa. Quando
o inverno inteiriça Paris, nós aqui, nesta fornalha dos tropicos,
desfazemo-nos em suor, estalamos, e as nossas mulheres, que se vestem
pelos moldes da _Saison_ e do _Coquet_, embrulham-se em pelles,
revestem-se de _arminhos_, trazem pesadas cachemiras e capas com que
um groenlandez zombaria do mais duro inverno, na sua toca de neve.
E nós outros apertamo-nos em cheviots felpudos, torrados, suando,
simplesmente porque seria ridiculo para a senhora apresentar-se na
calçada da rua do Ouvidor com uma toilette clara, de um panno fresco
e leve e um simples chapéu de palha cercado de flores, e nós seriamos
corridos a apupo se ousassemos affrontar o povo com um terno de
linho e um chapéu panamá. Ha de convir, commendador, é ridiculo, é
soberanamente ridiculo!

Gravemente, com a repercussão profunda de um sino longinquo, o
veneravel relogio interrompeu a facundia do doutor soando as dez horas.

--Dez horas! exclamou elle sacando do bolso o seu chronometro.
Perdôe-me, commendador, mas não acredito nas palavras da pendula
domestica--e baixou os olhos para consultar: É estranho! dois relogios
de accordo: dez horas justas! E, pondo-se de pé, a passar as mãos pelas
pernas para alisar as calças: Vou deixal-os, disse.

--Ainda é cedo, doutor. Vamos tomar um punch de champagne.

--Oh! Acha então que tenho bebido pouco? Mas meu tio já havia acenado
ao criado indicando um vaso bojudo, de crystal ceruleo, a cratéra, como
lhe chamara o doutor, descobrindo-o entre os pesados jarrões da China,
carregados de rosas.

--Dê treguas ao theatro por uma noite, doutor.

--Treguas! Mas eu não faço outra coisa. Ha mais de quatro mezes que não
ponho os pés em theatro. Desde que d’aqui partiu a companhia lyrica,
a não ser um ou outro concerto, uma ou outra soirée, passo as noites
a ler ou a jogar o pocker. Oh! o theatro! exclamou com um risinho,
passeiando ao longo da sala.

--Não gosta? indaguei.

--Adoro! mas o theatro, meu amigo, o theatro... não isto que por
aqui ha com esse nome. Porque, afinal, penso eu, Arte não é a chufa
banal que faz estourar a braguilha, nem a nudez de maillots que aguça
o apetite erotico. O fim da Arte é mais nobre do que o da chalaça.
Não foi com auxilio de rondós obscenos que Sophocles foi coroado
vinte e tantas vezes. Shakespeare não teve necessidade de sumptuosas
scenographias para vencer em Blackfriars--a lua era feita por um homem
que atravessava a scena com uma lanterna. Molière não mantinha a seu
serviço córos femininos convenientemente cevados para embasbacarem a
volupia. Ah! meu amigo, as mulheres que iam ouvir Eschylo abortariam
de novo visitando os nossos theatros... mas abortariam de tanto rir,
as pobres mulheres, de tanto rir! E sentando-se: Sinceramente, vale
a pena emparedar-se um homem entre dois desconhecidos em uma platéa
asphyxiante para ouvir cantarolas e admirar meneios sensuaes de alméas
sarapintadas? Vale a pena deixar-se o canto do gabinete e a companhia
de um bom livro para ir ouvir as imprecações de um fidalgo furibundo,
que vem á scena, com uma grande capa, alongando as pernas, evocar os
manes dos avós e reconhecer um filho? Em geral esse homem, que durante
cinco longos actos estropêa inimigos, é de tão perverso instincto
que nem a syntaxe consegue, na maioria das vezes, escapar á sua
furia. Que é que nos offerecem os theatros? o vaudeville que nos vem
trazer, desnaturado pela traducção, o espirito de Paris e o dramalhão
pretencioso e bufo, onde ha invariavelmente a luta das paixões--o filho
reconhecido ou... outro disparate qualquer. De Arte nacional, que
temos? absolutamente nada.

--De quem a culpa? dos poetas, doutor, dos poetas que não trabalham.

--Perdão; nem dos poetas nem dos emprezarios, commendador--a culpa
é da Fatalidade, falo agora como Seneca, disse a rir, a culpa é da
Fatalidade. Nisard, se bem me lembro, diz que Roma não teve drama
porque não teve povo, o verdadeiro povo, porque o drama é a obra
litteraria mais indigena e mais original de um paiz--não póde ser
feita sem o concurso directo da massa popular, porque é ella que
a consagra no theatro. E para que exista o drama é necessario que
existam factos, que haja uma historia, subsidio que, infelizmente, não
possuimos. Demais, o nosso povo, na sua collectiva densidade, é uma
massa heterogenea, na qual o elemento adventicio faz desapparecer o
elemento autochtone, absorvendo-o como uma cellula mais forte absorve
a mais fraca. Somos victimas de uma conquista organica--talvez não me
exprima bem, mas a phrase parece-me exacta e perfeita. Os factores que
nos parecem revigorar debilitam-nos, tirando-nos toda a autonomia e
repulsando-nos lentamente... Somos nós os estrangeiros na patria. Essa
massa forasteira é que impõe o theatro, é que concorre ás casas de
espectaculo para rever os seus costumes, para recordar trechos das suas
primitivas glorias.

Vêde os dramas--ou são portugueses, para o elemento que é, por assim
dizer, a grande força activa do paiz, ou traduzidos do francês e
agradam pela universalidade do assumpto, porque são as paixões modernas
que existem em toda a parte; ou as operetas que são a nota viva e
saltitante, que acarretam a nudez, o saracoteio, a bambochata e acendem
a sensualidade... do Brasil nada. As poucas tentativas fallecem porque
quem as podia levantar esquece-as e a razão é simples, commendador: é
que nestes dramas não ha um fundo que impressione a collectividade: o
povo, que é a patria na sua mais completa manifestação. É que o drama
no Brasil não é fundado em uma these nacional, em um caso historico
desses que exprimem uma gloria commum e que são a recordação de
um momento ou de um facto. Não temos um heroe que encha com o seu
prestigio todo o corpo de uma tragedia. E d’onde viemos nós? que
epopéas demarcam a nossa victoria inicial? que altares relembram a
religião primitiva? em que meandro ficam os tumulos dos que lutaram
pela nossa liberdade e pela nossa crença? ha algum campo semeado
de ossos do bravos que tivessem sahido em defesa da patria? não ha
nada... não conhecemos a nossa origem, somos um povo do acaso com tres
periodos de servidão--a servidão de colonia, a servidão do eito e a
servidão do espirito.

Só póde ter theatro um povo livre. Como havemos de rir se somos por
temperamento tristes e melancolicos? E nem chorar podemos. Os antigos
choravam pelos seus heroes, eram lagrimas que recordavam glorias
épicas, e nós havemos de chorar! porque?... de que?... de vergonha? mas
para isso ainda é preciso que appareça um audaz que escreva o drama dos
pusillanimes.

Não ha assumpto, commendador, não póde haver poetas. Ha um povo
promiscuo, é para esse povo que os emprezarios trabalham, porque o
brasileiro, como o romano da decadencia, contenta-se com os ursos
sabios e com os saltimbancos.

O criado, que chegava com a cratéra, poz remate á imprecação
patriotica, e meu tio, servindo uma taça, passou-a delicadamente ao
doutor exclamando:

--Parece estar divino!

Tocámos as taças e sorvemos demoradamente o punch que, em verdade,
estava delicioso, porque o criado, perito em segredos de buvette,
perfumara o champagne com alguma coisa que rescendia como a
baunilha. Por fim, pousando a taça, interrompi o silencio com uma
objecção subtil, não tanto para refutar os conselhos do doutor, como
principalmente para arrancal-o á mudez em que se reservara, bambaleando
a perna, a tamborilar com os dedos no bojo da cratéra.

--Doutor se, como affirma, a causa da miseria litteraria em que jazemos
vem da ausencia absoluta de factos, da esterilidade historica, somos um
povo fadado ao silencio e á immobilidade: nem Arte escripta, nem Arte
cinzelada. Jámais teremos a consolação suprema de rasgar um horizonte
para que nelle possa refulgir um vulto de marmore ou para que nelle
fique, eterna como a Odysséa, a constellação de um poema patrio.

--É um engano. Isso que o meu amigo préga é o desalento, doutrina do
desespero, propria das raças nullas. Somos um povo que começa, não
temos um só periodo, um só estadio ainda, mas isso não quer dizer que
sejamos um povo morto. Ainda não começámos a viver, esta é a verdade;
ainda não começámos a viver. Temos elementos para vir a ser um povo
artistico como foram os gregos: o meio, o caracter, o sentimento e
até a providencia dos mares que nos distanciam do resto do mundo,
isolando-nos no equador como para obrigar-nos a agir exclusivamente
por influxo directo da zona que creia, ao mesmo tempo, a temperatura
physica e a temperatura moral. O brasileiro não é um povo rudimentar
sob o ponto de vista psychologico, não é. E, a proposito, permitta-me
que faça aqui, muito á puridade, a minha profissão de fé. Tenho uma
extravagante doutrina sobre a psychologia, que, em verdade, já me
tem valido apupos. Retrahi-me e hoje apenas deixo presentir alguma
coisa, assim em intimidade como estamos, por que não quero que vejam
mais em minhas palavras pretenções a dogmas: são ligeiras idéas que
desapparecem com a palestra.

--Fale, doutor! Pedi com interesse.

--Ah! meu caro, sou um «solitario». Vai achar ridiculas as minhas
palavras... Em todo caso...

Tomou uma attitude severa e falou.

--Creio profunda e convencidamente nas phases de dynamisação
psychica--a alma é um fluido perenne e immortal, activo e autonomo,
que circula mysteriosamente pousando de corpo em corpo, como a abelha
circula, pousando de flor em flor. Como uma suga o mel das flores,
a outra absorve o mel da intelligencia, que é um producto complexo
de funcções do cerebro isolado: a imaginação; cerebro-cardiacas: o
sentimento; do instincto: a avidez; e da vontade: a ambição que é a
tenacidade do desejo. Essas funcções só se manifestam na materia com
o contacto da Alma, como as forças magneticas apenas se desenvolvem
com a incidencia dos dois polos extremos. De longe em longe, colhendo
em differentes vidas qualidades de um e qualidades do outro, a
Alma encerra-se em um ser, immensamente farta, immensamente cheia,
produzindo os genios, que são como grandes colmeias que reunem toda
a essencia de multiplas variedades, todo o mel colhido atravéz
de multiplas e variadas metempsychoses. É uma doutrina de louco,
decididamente, e eu sou o primeiro a convir nisso, mas actualmente
todas as doutrinas têm um fundo de insania, não é muito que surja
uma inteira e completamente louca. Mas creia o amigo que é só assim
que consigo comprehender e explicar o apparecimento dos homens
cyclicos--Homero, que é a synthese de todo o drama épico desde o
periodo pelasgico; Hesiodo, que é o mytho, a theogonia; Eschylo e
Sophocles, que são a tragedia; Dante, que é o astro neutro posto
no céu sombrio da Idade-Média, terrivel e tragico como Saturno,
alumiando entretanto a manhan triumphal do renascimento; Shakespeare,
que é o ponto de encontro das paixões humanas. Homens-collectivos
que apparecem em uma éra determinada quando ha um espirito perfeito.
Commendador, o futuro não contará a idade do homem pela data do seu
nascimento, mas pelo numero de éras que tiver atravessado o espirito
que o escolher e a lenda de Mathusalem será ridicula, porque haverá
homens dez, vinte vezes millenares. Não é hoje uma verdade scientifica
o atavismo? A humanidade é uma redundancia: evolução é um synonimo de
substituição--progresso quer dizer: aperfeiçoamento. O povo tem uma
expressão que define admiravelmente o principio cerebrino da minha
psychologia: «As crianças de hoje nascem velhas.» É uma verdade: a vida
repete-se. Demais, sendo a Alma uma essencia perfeita, virgem, original
e fecunda e sendo ella a força concurrente para a vida do ser, era
justo que nós outros fossemos produzindo constantemente idéas novas,
novos principios, entretanto ahi está, de longo tempo, o aphorismo do
Ecclesiaste como uma verdade: «_Nil novum sub sole._» Razão formidavel
em favor da minha escola exclusiva--não póde produzir actos novos o
que é de natureza antiga: repete, varia ampliando ou aperfeiçoando.
Sendo _uma_ a causa, os effeitos serão invariavelmente os mesmos, mais
ou menos aperfeiçoados pela combinação dualista: materia, espirito,
impulso e meditação, acção e reacção.

--O doutor é spirita? indagou meu tio com um leve tremor na voz.

--Não, commendador... Spirita, eu! Sorriu com desdem, tomou um charuto
da caixa, acendeu-o e continuou reclinado, com as pernas estendidas:

--Mas, dizia eu, o brasileiro não é um povo rudimentar. Sem recorrer ás
idéas expostas tenho uma observação que, posto não seja muito original,
presta-se magnificamente. A nostalgia, que é o avesso da esperança, é
a saudade na sua expressão mais nobre, porque é a saudade do absoluto,
quasi que posso dizer assim, saudade da terra, do céu, dos rios, da
selva, do homem, do ar, do rumor, de tudo que se amou, de tudo que se
viu e sentiu além. Ora, commendador, para que exista a nostalgia, que
é um effeito, é necessario que tenha existido uma causa.

--Forçosamente, corroborou meu tio.

--E qual é ella? Entretanto o brasileiro é nostalgico. Nostalgico de
que? porque? pergunto. Que vida no Aquem viveu elle para que tenha
saudade tão intensa? que outros astros o alumiaram? que outras selvas
trilhou senão as do seu paiz? Meu tio deu de hombros. E o doutor, num
impeto, pondo-se de pé como inspirado, disse:

--Tenho, para mim, que Colombo conhecia a America antes de a ter
visto--conhecia-a inconscientemente, porque nella vivera a Alma que o
animava. A fé que elle tinha nos mares immensos era certeza, e essa
doce melancolia que o acabrunhava quando avistava o oceano, póde ser
que fosse um resultado de desanimo, porque era forçado a sopitar a sua
paixão aventureira, mas no fundo, penso eu, era nostalgia da terra que
era Ideal para a sua imaginação, que era verdade para a sua Alma.

Meu tio escutava boquiaberto, com ligeiros fremitos, como se o doutor
lhe estivesse revelando coisas de um mysterio absconso; arfava cançado,
como se as phrases, que jorravam copiosas num catadupejar sonoro, dos
labios facundos desse erudito moço, não lhe dessem tempo para respirar.
A cabeça approvava machinalmente e os olhos, que traduziam profundo
abalo de crenças e de convicções, abriam-se, cerravam-se, parecendo,
ás vezes, querer saltar das orbitas onde rolavam arregaladamente,
desatinados e aturdidos.

--Realmente, doutor, disse cabeceando com enthusiasmo, realmente...
e tomou a taça de punch engulindo gulosamente um sorvo. A sua
philosophia, deixe lá, tem alguma coisa de verdade. Commigo tem-se
dado o facto que citou. Ha occasiões em que parece que me recordo de
uma outra existencia.

--E ha de ter reconstituido pequenos episodios, commendador.

--Pois não... Pois não...

--E os casos de sympathia e de antipathia? bem querer a alguem que se
vê pela primeira vez, detestar uma creatura que se encontra, ao acaso
da travessia e que nos vem receber affavel e meigamente, toda bondade
e blandicias? Que é isso senão uma prova evidente e cabal de que houve
relações entre os espiritos encerrados em nosso corpo e no corpo da
pessoa que se nos depara--relações de amor e de amizade, de despeito ou
de odio, no impenetravel e nebuloso Aquem? Causas estranhas, phenomenos
do incognoscivel.

Luciano, o ironico, fartou-se de rir da doutrina de Pythagoras, mas
deixem lá... deixem lá. Sacudiu um gesto como para afugentar idéas
e disse: Mas deixemos divagações que não têm fundamento senão em
conjecturas. O Mysterio seduz, mas o Mysterio é a Sphinge. Deixemos
o caminho de Thebas, deixemos o enigma, vamos pelo terreno firme. E
tocando-me delicadamente no hombro: Voltemos ao nosso thema. Dizia eu
que possuimos elementos para vir a ser um povo artista como os gregos.
É uma verdade, posto que desmentida diariamente pela improductividade
e pela inercia esteril. Porque? porque não temos educação de ordem
alguma. Physicamente, somos um povo hybrido, sem raça discriminada,
sem antecedentes firmes; nascemos da amalgama, somos os epigonos de
Babel. Essa miseria de origem reflecte-se no organismo. Dizem que o
brasileiro é preguiçoso, languido e contemplativo. Ha quem lance esses
vicios congenitos á conta do clima, é verdade, em parte, mas esquecem
inteiramente a etiologia--que é a origem.

O sangue que circula em nossas veias é uma mistura heterogenea de
globulos que se destroem reciprocamente para que um sobrepuje e vença:
o globulo africano dá-nos o banzo; o que herdámos dos navegadores
dá-nos a actividade, a tenacidade arguta e trefega de investigação e
o egoismo, que é um euphemismo de avareza; e, finalmente, o globulo
virginal do sangue indigena. Em uns vence a saudade--é a vida do
coração, são os sentimentaes; em outros supera o germen europeu
e são os activos: homens de sciencia e de commercio, bem raros,
infelizmente; nos ultimos, a força indigena prevalece e são os bravos
e os sonhadores. Ha, entretanto, casos excepcionaes de fusão--a
luta constante dos tres globulos: são os desorientados, homens
indecisos, dubios, de existencia incerta, de vontade vária, sem
idéa firme, sem iniciativa. Sobram-nos, por desgraça, esses casos de
excepção--a maioria do nosso povo é constituida de anomalias. Não
nos nacionalisaremos emquanto o tempo não fizer a differenciação
necessaria. Além disso o clima torrido amollece, entibia, tornando
o povo languido e nostalgico. Ha, todavia, um meio de combater essa
teratologia organica--é a educação. Educação physica, o sabio artificio
de que lança mão a Humanidade para aperfeiçoar a obra natural,
enrijando os musculos, reforçando os ossos e concorrendo para vitalisar
a intelligencia, garantindo a saude e o bom humor. Educação moral,
que é a confortavel armadura do espirito que o premune e defende
contra as ciladas constantes da vida de sociedade, porquanto fornece
ao homem os conhecimentos praticos do bem e do util, creia o amor
altruista estabelecendo a unidade entre os seres--um por todos, todos
por um--formúla noções geraes sobre o destino na vida, mostrando as
relações que devem existir entre os individuos e os fins de todos para
o bem da communidade; estabelece as bases irreductiveis da familia e da
sociedade dando a mais o vasto appendice da crença, que é a caixa de
Pandora de onde a sciencia póde arrancar todos os dogmas, porque ha de
sempre ficar no fundo, immarcessivel e consoladora, a Esperança.

A educação moral, para mim, deve comprehender a educação civica--o
culto dos maiores e o respeito pelos factos da tradição que levam
o homem ao absoluto amor, o amor da Patria. Não temos. Nas escolas
desconhecem de todo essa hygiene de espirito. Educação intellectual...
O nosso povo, na sua maioria, é ignorante. Ha uma pequena parte de
selecção que lê, outra parte que ouve e outra que não lê, nem ouve: o
patricio, o plebeu e o servus, eis as tres castas. A primeira impõe,
a segunda transmitte, a terceira executa--d’ahi a inconsciencia de
todas as nossas manifestações collectivas. O povo, propriamente dito, é
uma massa rude que serve de instrumento aos privilegiados. Essa casta
superior, que podia impôr as letras e as Artes, é indifferente, porque
não se educa na patria, educa-se no estrangeiro ou nas suas doutrinas,
é lida em livros de fóra, visita museus na Europa, fala sobre exotismo
e sente e pensa atravéz do sentimento e do pensamento dos seus
educadores--são automatos do Occidente; d’ahi a impossibilidade de
dilatação litteraria e artistica.

Se se cuidasse da educação da Patria com elementos proprios,
tratando-se de formar espiritos nacionaes, genuinamente nacionaes,
dentro em breve teriamos Arte, porque o povo, ligando-se á terra pelo
espirito, sentiria necessidade de conhecer-lhe os segredos e viria
disso, talvez, a noção de patriotismo que ainda não existe entre nós.
Antes de fazer Arte tratemos de fazer povo, eis o principio. Somos
um grande coração... já alguem disse. Oh! a caridade proverbial do
brasileiro, a sua hospitalidade só comparavel á dos arabes... Somos
um grande coração, mas sem systole: recebemos a vida no que nos
transmittem, mas não transmittimos absolutamente nada. Somos um coração
sem systole, empanturrado de sangue como um odre, mas na analyse de um
coagulo das nossas arterias um sabio paciente descobriria atomos de
todo o sangue universal. Germens de todas as raças do mundo circulam
dentro em nós e é justamente por isso que não somos nada, porque não
temos identidade. Só ha um meio de tirar dessa miscellanea um povo--é
educal-o, mas educal-o na escola austera do amor da Patria de modo que
elle se converta a nacional, vivendo para sua terra, que bem merece
que por ella vivam. Alma antiga em corpo antigo, eis o brasileiro--um
povo macrobio no berço. Poz-se de pé d’um impeto e voltou-se para o
relogio:

--Como! onze horas! É estranho! Sacudiu-se todo, deu um puxão á
sobrecasaca e, accendendo novo charuto: Até amanhan, commendador...

--Já?! disse meu tio, com a voz cançada, suffocando um bocejo.

--É muito tarde. E rindo: e o senhor está a cahir de somno. Até
amanhan! Até amanhan! disse interrompendo meu tio, que ia provar que
não estava absolutamente a cahir de somno.

O criado entregou-lhe a cartola e a bengala. Levantámo-nos para
acompanhal-o. Á porta, despedindo-se, vedou-nos a passagem para que não
apanhassemos o sereno da noite e, apertando-me valentemente a mão:

--Perdoe-me e não guarde resentimentos das minhas doutrinas--são
inoffensivas. Rimos ambos e quando elle partiu ficámos a olhar e a
vel-o seguir pelo jardim calado, alvissimo do luar, girando a bengala e
cantarolando:

  _La gondola nera fuggiva..._

De longe atirou-nos o ultimo adeus:

--Até amanhan...

--Boa noite, doutor! dissemos ambos. E meu tio ajuntou atravéz de um
bocejo sonoro:

--Conversa bem, mas é meio doido... é meio doido...

E, arrastando os passos, foi cahir mollemente na cadeira abbacial das
refeições e do primeiro somno.



                                  IX


O dia amanheceu baço e humido. Chovera pela madrugada.

Meu tio, em candidos linhos, estirado num pliant de lona, com um jornal
sobre os joelhos, olhava da varanda os rosaes ainda gottejantes.
Saudando-me, interessou-se pela minha noite, indagando se não me
assustara com os tremendos trovões da madrugada e, dizendo-lhe eu que
nem os ouvira, lançou-me os olhos, admirado da valentia do meu somno
de chumbo, affirmando--que o céu viera abaixo em raios e em agua.
Sahimos ao jardim para ver os descalabros da tempestade nas roseiras
e nas moutas de cravos e compungimo-nos, mais de uma vez, diante das
esfolhadas de petalas ou á vista de um canteiro que a torrente da chuva
escavacára. Mas já o jardineiro andava a recompor, pondo esteios,
fincando espeques, ligando galhos, ajustando ramos, e meu tio, como se
visitasse uma enfermaria de desastre, ia de arbusto em arbusto, sempre
com uma phrase terna e cheia de condolencia, lastimando o botão que os
ventos haviam arrancado ou a begonia pendida para a terra encharcada,
quasi a morrer dos embates fataes da noite tempestuosa.

Almoçámos tristemente--repasto funebre de exequias, sem palestra, com
poucos vinhos. Os canarios, como se participassem da agonia das rosas,
estavam encolhidos nos poleiros, mudos. Sahimos logo depois do almoço,
porque meu tio não queria demorar-se mais a olhar a devastação do seu
jardim, mas como o Jeronymo lhe promettesse «arranjar tudo», recompoz a
physionomia e, quando entrámos para a victoria, já elle levava o rosto
transfigurado e dizia a rir «que as almondegas estavam coriaceas»,
cravando nos dentes um resto de palito.

Em caminho falámos do Dr. Gomes.

--A proposito, meu tio, de que vive elle?

--Tem uns predios, ganhou alguma coisa na praça á minha custa,
accrescentou com superioridade. Deve possuir uns trezentos contos. Mas
gasta muito, é um dissipador: o dinheiro foge-lhe das mãos como entrou.

--É solteiro?

--Solteiro. Vive com uma italiana bailarina, uma Denzi, Emilia Denzi.
Bella mulher, boa voz, mas... E meu tio, num gesto eloquente,
derreando a cabeça, entornou o polegar na guela e, com lastima, os
olhos em branco: É uma pena!

--E elle?

--Tem theorias. Diz que é nevrose, que a culpa não é della, que
aquillo é um mal hereditario e dá-lhe coisas a cheirar, e deita-a. É
preciso vel-o. Já uma vez, lá em casa, foi um trabalho para conter a
italiana. Entrou a beber e deu, a principio, para cantar ao piano,
elle acompanhava-a tremulo, já desconfiado prevendo o desfecho. Cantou
a _Traviata_ e uma barcarola; mas, de repente, poz-se a achincalhar
a musica e, sem mais, apanhou as saias e saltou para o meio da sala
atirando as pernas ao ar num can-can furioso. Por fim tomou de uma
peanha a mais linda estatueta que eu possuia, partiu-a e atirou-me os
cacos á cara; elle, porém, com um heroismo generoso, poz-se á minha
frente, recebendo no peito o que a furia me arrojara. É um perigo! Um
perigo, mas mulher bella e de carnes.

Chegaramos ao largo, ao mesmo ponto em que, na vespera, haviamos
estacionado, e meu tio impelliu-me para a rua, dizendo ao imperturbavel
Edgar: Ás cinco!

Iamos caminhando em direcção á rua do Ouvidor quando meu tio, parando
repentinamente, perguntou-me:

--Ó Anselmo, dize-me cá: tens dinheiro? Machinalmente levei a mão
ao bolso, mas recolhi o gesto a tempo, respondendo, entre vexado e
cubiçoso:

--Pouco, meu tio, creio que duzentos ao todo... tenho ainda umas
compras a fazer: lan e talagarça para Marocas, uma Senhora de Lourdes
para a _velha_ e as obras do Casimiro para o Simão Carreira. Sem dizer
palavra, meu tio sacou do bolso a enorme carteira empanturrada e tirou
um macinho nitido, de notas largas, dobrou-o e deu-m’o sorrateiramente.
Nem me preoccupei com a carteira, foi mesmo no bolso da calça que as
guardei profundamente, acariciando-as.

--Precisas conhecer o Rio... tens ahi a chave de todos os mysterios.
Acolhi com respeito a peroração sentenciosa do meu generoso parente,
e do mais intimo de minha alma elevou-se, como num suspiro subtil e
estremecido, toda a minha gratidão: Obrigado, meu tio. Elle, porém, ou
porque não ouvisse, ou para affectar indifferença á dadiva, estendeu-me
a mão liberal com estas palavras: Deixo-te aqui. Tenho ás 3 horas
assembléa geral da _Companhia Fomento Agricola_. Não te vás perder, vê
lá! Anda como quizeres, mas não saias da rua do Ouvidor e, ás cinco, no
Paschoal. Sabes onde é?

--Pois não; sei.

--Vê lá!

--Vá descançado: Ás cinco horas no Paschoal.

Separámo-nos.

Fiquei algum tempo indeciso, sentindo-me mal na liberdade, receioso,
timido, sem animo de atravessar sósinho a rua do Ouvidor. Parecia-me
que toda aquella gente, que subia e descia, mirava-me achando-me
desageitado e ridiculo, o ar tolo, os modos desalinhados. Meu terno
tão perfeito, tres vezes provado e retocado por mestre Thomé Caminha,
parecia-me largo e fofo, sem gosto, fazendo dobras nas costas, curto
de mangas, curto de pernas, todo elle curto e largo, sem geito.
Sentia-me mal e estive para correr ao alcance de meu tio, pedindo-lhe
que me levasse á assembléa do _Fomento_, tal era o desanimo que de
mim se apoderava ao ter de atravessar, sem companheiro, a rua que eu
via diante dos olhos, atulhada de gente, apezar da ameaça sombria das
nuvens que rolavam no céu, turgidas e tumidas de aguaceiros. Diante de
uma vitrina lancei um rapido olhar de analyse e achei-me escorreito
e liso, apenas o chapéu havia tombado para a esquerda; puxei-o e,
estacando, a enrolar um cigarro, o olhar errante como se procurasse
alguem, deixei-me estar algum tempo a invocar coragem para vencer a
cobardia do meu espirito acanhado. Por fim atrevi os primeiros passos
e fui caminhando vagarosamente, cauteloso, para não ir de encontro
aos que vinham azafamados, indifferentes, abrindo caminho á força de
hombros e cotovellos.

A minha idéa era o Paschoal. Ali, ao menos, sentado a uma das mesas,
ninguem daria por mim e poderia ficar até ás cinco á espera de meu tio,
livre daquelles olhos que me pareciam despir, livre daquelles sorrisos
que pareciam criticar os meus gestos selvagens e o meu lento e medroso
caminhar de rustico. Mas, subitamente, como se despertasse dentro em
mim uma nova energia, senti-me desembaraçado e altivo. Parti, pisando
forte, a olhar d’alto a gente; mas ao cabo de alguns passos, um grupo
de senhoras garrulas colheu-me num encontro amigo, no enleio expansivo
de uma intimidade affectuosa, o fiquei collado á parede a ouvir beijos
chochos trocados com precipitação e risinhos, emquanto um pequeno,
vestido á maruja, mettia-se pelas minhas pernas empurrado pelas
amistosas damas.

Atroz menino! atrozes senhoras! Uf!

Esbaforido e suado consegui desentalar-me do aperto intimo, maldizendo
as minhas patricias que andam pelas ruas, como as formigas pelos
trilhos da roça, esbarrando os labios em beijinhos. Afastei-me da
calçada para evitar nova collisão e segui lançando os olhos adiante na
esperança de descobrir o doutor que, segundo a affirmação peremptoria
do meu tio, devia andar pela rua do Ouvidor digerindo o almoço e
commentando os nossos erros politicos e os ultimos livros de França.
Infelizmente, porém, cheguei ao Paschoal sem ter sequer divisado a
sua sombra e conjecturei que se deixara ficar em casa amarrotando as
housses dos divans em longos espreguiçamentos de tedio, com os seus
poetas, em solidão ou tendo a seu lado a italiana, em toilette tenue de
cambraia e rendas, mexendo grogs de cognacs, com um romance de Tosti
nos joelhos.

Um homem como o doutor não abandonaria o lar num dia como esse de
spleen e de nevoa. Que viria fazer á rua senão chapinhar na lama e
ouvir as queixas indignadas dos politicos, que presagiavam, com grande
cópia de argumentos, um futuro tragico de assassinios e de roubos,
de violencias e crimes barbaros? Que viria fazer á rua quando podia
estar no tepido aconchego do seu «home» arrulhando nesse doce toscano,
que foi o idioma dos amores, no tempo em que a humanidade, menos
civilisada, amava? Não, meu tio errara na sua affirmação: o doutor não
andava pela rua do Ouvidor, devia estar nas Laranjeiras, a reler poemas
para distrahir a paixão bacchica da italiana iconoclasta, ou a traduzir
os sabios conselhos de Martial sobre a felicidade, onde o poeta
escreveu este hemistichio sobrio que, de per si, constitue um elemento
de paz e de ventura: _nox non ebria..._ talvez nunca experimentado pela
bailarina.

Apezar de pensamentos taes, não me abandonava a esperança de o ver
surgir de repente, muito correcto na sua toilette justa, espalhando em
sorrisos o seu bom humor e a sua graça.

Da porta do Paschoal estive longo tempo a contemplar o meio corpo de um
homem que ficara á esquina, parado. Via-lhe apenas um lado: meia aba
do frack, uma perna, metade do chapéu. Tive impetos de partir para
reconhecel-o; mas, evitando-me os passos em vão, o homem voltou-se--era
um sujeito moreno, abaçanado, com grandes bochechas molles picadas de
bexigas--um bigodinho ralo descia-lhe pelos cantos da boca em duas
gotteiras. Cançado, resolvi entrar. Havia uma mesa junto á porta,
encostada a uma das columnas. Tomei-a.

Pouca gente. Rapazes, o ar entediado, bebiam. O que eu vira no primeiro
dia, lá estava abancado a ler a mesma tira, creio, a um pequenote de
olhos espertos que bebia, sedentamente, a grandes goles, uma agua
effervescente dando com a cabeça loura em signal de approvação. O da
tira levantava gestos que deviam exprimir coisas de subido alcance ou
guindava, com os dedos em feixe, tremulamente, numa ascensão olympica,
a imagem ou a estrophe, e o outro, radiante, como um auditor romano dos
que ouviam Estacio, sorria, acompanhando com um olhar ineffavel os
dedos, que já iam pelo ar subindo, subindo sempre, á proporção que a
voz se ia tornando cava e profunda com um rumor longinquo de trovões de
estio.

Quando o caixeiro veiu ter commigo, ouvi distinctamente o ultimo ronco
e logo em seguida a voz infantil e clara do auditorio.

--Bonito! Bonito! Delicioso, Mendes! Delicioso! e docemente, numa
lisonja amavel, repetiu o verso final:

  Neste cymbio de prata...

O resto do verso, que devia ser divino, perdeu-se no estouro de uma
nova garrafa d’agua aberta para o pequeno enthusiastico e sedento. O da
tira dobrou-a com indifferença e guardou-a no bolso interno do casaco
atirando para cima da mesa uma nota.

Na mesa contigua uma virago de luto mastigava gulosamente com um
triturar famelico de mandibulas, diante de um velhote casmurro,
que meditava levando, de vez em vez, á boca, escondida por trás
da barba curta e amarellada, o copo de cerveja. A mulher devorava
atabalhoadamente e elle, taciturno, parecia muito longe d’ali, com os
olhinhos fitos no vago, em algum sonho de saudade, talvez na imagem
sempre viva de quem se fôra e por quem elle trazia a cartola enrolada
em crepe e a mulher insaciavel o merinó de luto. O caixeiro acudiu
ao meu appello. Encommendei um grog. E voltei o olhar para os dois
rapazes. O da tira tomara uma attitude de abandono, as pernas cruzadas,
cahido sobre a bengala, cujo castão perdia-se-lhe na axilla; o pequeno
accendera um cigarro e baforava, farto.

Trouxeram-me o grog.

Um tlim-tlim ao lado attrahiu-me a attenção. O caixeiro acudiu num
salto. O velhote, sempre triste, passou a mão por sobre os destroços,
responsabilisando-se por tudo, e empinou-se para sacar o dinheiro
do bolso. A virago chupava os dentes com estrepito endireitando a
capota ao espelho. Levantaram-se os dois. O velho dava pelos hombros
da mulher e, magrinho, engelhadinho, fazia dó vel-o humilhado pela
abundancia daquella Eva formidavel, de seios enormes, que o arrastava
soberanamente como a cauda do seu vestido arrastava os palitos do
chão. Fazia dó ver aquelle homem diminuto e franzino ao lado daquella
fartura--e foram-se, ella adiante chupando os dentes, elle seguindo-a,
com o guarda-chuva debaixo do braço, contando as notas do troco.

Acompanhando com o olhar o pobre velho, que desapparecia no rasto da
poderosa Cybele, passou-me pelo espirito este pensamento estranho:
Esse homem apanha da mulher.

E ri, ri francamente, imaginando o homunculo, em camisa de dormir,
descalço, a saltar, a correr perseguido pela mulher possante que lhe
atirava varadas ás pernas seccas e guedelhudas.

Enfastiado de estar ali sósinho, resolvi tomar rumo, e como o caixeiro
passasse, atirei-lhe dinheiro. Elle inclinou-se esfregando a mesa com
um guardanapo e indagou:

--Foi um grog?

--Sim, um grog, disse-lhe e, lembrando-me de que era assiduo na casa,
tive a feliz inspiração de interrogal-o:

--Não esteve por aqui o Dr. Gomes de Almeida?

--Sim, senhor; esteve aqui, mais um outro, um de barbas louras, e puxou
das bochechas duas suissas imaginarias.

--Ha muito tempo?

--Ás onze e meia, mais ou menos.

Retirou-se depois de perguntar-me se queria mais alguma coisa.

Levantei-me para sahir: não havia, porém, chegado á porta quando alguem
poz-se a bradar:

--Ó senhor! Ó senhor! Voltei-me; era o caixeiro que me perseguia
sorridente e apressado:

--Olhe ali em baixo o Sr. doutor Gomes...

--Onde? indaguei ancioso.

--Acolá, ao fundo.

Ainda não conseguira descobrir o paradeiro do illustre moço e já a sua
voz clamava por mim de longe, festivamente:

--Bemvindo seja o meu amigo!

Avancei pressuroso e radiante, esgueirando-me por entre as cadeiras
para cahir nos braços do meu recente amigo. Apertámo-nos e, em poucas
palavras rapidas, contei a minha peregrinação pela rua nesse dia
obscuro e inerte. O doutor, com um gesto vago, lançou apodos ao clima
e, arrebatando-me para a mesa, apresentou-me a uma formosa mulher
loura, em cujo rosto reconheci promptamente as pupillas azues mais
claras do que a celagem, que tanto me haviam seduzido quando, pela
primeira vez, palmilhei o lagedo da rua do Ouvidor.

--Mlle. Marie, ou simplesmente Marion, a divina Marion... E á loura,
com distincção: Dr. Anselmo Ribas, meu amigo. Curvei-me ao peso do
titulo e diante da belleza. A divina Marion desabrochou um sorriso
adoravel, todo doçura e graça, á flor dos labios finos e offereceu-me
a pequenina mão apertada em uma luva côr de perola que lhe subia ao
cotovello, enrugada e cheia de pulseiras. Commovido e tremulo tomei a
mão leve de mademoiselle e que de esforços empreguei para não a levar
aos labios!

--_Mettez-vous ici..._ disse-me ella afastando-se com um rumor de
sedas, comparavel ao que fazem os bandos de pombos bravos quando
levantam o vôo das margens dos rios, na minha terra.

Sorri e balbuciei com uma pronuncia tosca: _Je vous remercie bien._

O doutor affixou com habilidade e graça:

--Meu amigo, exprima-se em vernaculo, sem cerimonia. Marion é de Paris,
mas fluminense pelo coração. Mademoiselle asseverou galantemente com a
cabeça loura. Sorri.

--Iamos por um champagne e pela moral de Philetas. Falavamos do amor
na accepção terna do termo, tão vilmente abastardado pelos actos civis
e religiosos do casamento e bebiamos Clicquot frappé. Veja o amigo se
está pelo thema e se aceita a bebida, que nesta casa é detestavel,
valha a verdade.

--Perfeitamente, disse voltando-me logo para os olhos doces de Marion.

O doutor ergueu a garrafa esgotada e impoz ao caixeiro:

--Outra e uma taça. E logo tornou: Para um celibatario de gosto, meu
amigo, não ha actualmente no Rio melhor emprego de capital e, com a
mão aberta, estendida, indicou-me Marion. Fala tres linguas e com uma
voz... Não é esta que o amigo ouve, não, é bem differente--modulada em
bemóes languidos. Ó Marion, dize alguma coisa no tom intimo, fala como
se estivessemos no teu ninho. E mademoiselle, rolando os olhos, pipilou:

--_Mon p’tit’!_ O doutor, em veia alegre, derreou-se perdido.

--Ouviu? e ainda não é tudo! Quando ella diz: _Mon amour!_ e apertou o
proprio peito estremecendo e demorando a exclamação. Ah! meu caro! _Mon
amour!_ hein, Marion? Mademoiselle baixou as palpebras maliciosamente.
E o doutor continuou: Executa Chopin e tem uma estante de classicos. E
mais do que tudo isto--dezoito annos.

--_Dix-neuf_, emendou Marion, dando com o leque uma pancadinha no
hombro do doutor. _Dix-neuf_, Gomes. _Quand j’avais dix-huit ans
j’connaissais pas encór’ l’amour..._ arrulhou endeixosa.

--Pois sim, dezenove; mais um, que não apparece ainda á flor do rosto.
Ah! porque os annos realisam o eterno principio da gotta d’agua, já
citado por Montaigne--accumulam-se, accumulam-se sem que a gente se
aperceba e, ás vezes, basta um dia para que a velhice transborde em
rugas e em cabellos brancos. Não achas, Marion?

O caixeiro serviu o champagne.

Mademoiselle tomou a sua taça e, erguendo-a, cumprimentou-me: _M’sieur!_

--Mademoiselle! correspondi; e os crystaes tiniram. Mas (e aqui
faço a confissão da perfidia covarde de que me tornei culpado) não
foi só isso, por baixo da mesa senti que um pésinho roçava pelo meu
carinhosamente e, num movimento allucinado, calquei tambem, com toda
a violencia do meu amor e com todo o peso dos sapatos inglezes.
Mademoiselle, sem um protesto, impassivel, bebia; e eu, num delirio
indomavel, baixava os olhos attrahidos pela alvura do seu collo
esgargalado, de uma tez fina onde passavam fremitos dourados.

--Demora-se no Rio? indagou a divina Marion, rilhando as palavras.

--Pouco, mademoiselle.

--De onde é?

--De Minas.

--Ah! de Minas... Recolheu-se um instante e, pouco depois, perguntou-me
com a sua voz mysteriosa, a encantadora voz de que falara o doutor:

--Conhece em Juiz de Fóra, Amancio...?

--Amancio! Amancio de que, mademoiselle? E os nossos pés trucidaram-se
cruelmente.

--Amancio de... Tocou os labios com o leque, elevou as pupillas num
olhar extatico e nervosa: não sei de que... É um gordo, tem uma fazenda
com muitos bois, faz queijo...

--Não, mademoiselle, não conheço.

Calámo-nos. O doutor, pensativo, desfazia os crystaes de gelo no
champagne, balançando a taça. Mademoiselle tornou-se de novo extatica.

De improviso o doutor chamou-me.

--Tem algum compromisso para amanhan, Sr. Anselmo?

--Nenhum, doutor.

--Quer vir almoçar commigo?

--Com todo gosto.

--Podemos fazer uma ascensão ao Corcovado? Ainda não conhece o
Corcovado?

--Ainda não.

--É bello! E dá-se commigo um caso estranho--sinto, de vez em quando, a
necessidade da altura, tenho a mania satanica de contemplar da montanha
as coisas inferiores. Já experimentou a delicia vaidosa de ver toda uma
cidade a seus pés em nivel humilde? É delicioso, meu amigo. Demais,
recebe-se o ar em primeira mão, fresco e puro, sem os toxicos da vida
rasteira e certos de que a golfada que respiramos não andou pelas
cavernas de pulmões enfermos.

--Aceito com prazer, doutor...

--Queres ser do bando, Marion?

--Não é possivel, disse com lentidão mademoiselle trincando os labios.

O doutor encarou-a e por fim sacudiu a cabeça resignado:

--Pois iremos nós...

Calquei o pésinho para ver se por meio delle conseguia vencer a
caprichosa, mas com surpreza senti que me fugia esquivo. Insisti
amoravel:

--Então porque não vem comnosco, mademoiselle?

--_Pas possible..._ disse com um momo abrindo e fechando com
estardalhaço o leque. E pondo-se de pé, num impeto:

--_Eh! bien... j’m’en vais..._

O doutor mirou-a. Mademoiselle estendeu-me a mãosinha:--_M’sieur..._ e
friamente, dando as pontas dos dedos ao doutor:--_Au revoir!..._

--_Au revoir, Marie_; disse com lentidão cruzando as pernas e, quando
a viu sahir, passando nervosamente a mão pelos cabellos, exclamou
entediado. Idiota!

--Zangou-se? indaguei com interesse.

--Ciumes... Que quer o meu amigo? não ha um ser perfeito. Veja essa
mulher divina... é ciumenta. Ciumenta a ponto de fazer tolices.
Bolas...! E casmurro: Eu sei como tudo isto acaba: vão ambas para a
rua! não ha que ver. Vão ambas para a rua... E recuperando o natural:
Então está combinado?

--Perfeitamente.

Trincou um charuto e irrompeu assomado:

--Um dia magnifico, não ha duvida... magnifico! enguliu um pouco de
champagne e continuou: Não sei se o meu amigo cultiva a volupia do
somno matinal, o somno das seis ás dez? É uma delicia! O somno da noite
dorme-o todo o ser--o operario e o poeta, a agua gemente e a flor, mas
o _extra_ languido, o somno tepido da indolencia, esse é exclusivo dos
privilegiados que conhecem a vigilia--esse é incomparavel, porque,
não sendo um acto normal, é um vicio e, como todo vicio, encanta. Eu
penso assim. Difficilmente deixo os lençoes antes das dez. Acho que
um homem de gosto deve encontrar o dia pleno, em viva luz, passaros
cantando e tudo em ordem para recebel-o porque, sahir pela manhan, á
hora em que a natureza se arranja, quando o sol nasce e os passaros
acordam, produz em mim a mesma sensação de desgosto que experimento
quando entro em uma sala de jantar no momento em que o copeiro estende
a toalha. É odioso! Sou um commodista extremado--gosto de achar tudo
prompto, limpo e nitido--o céu todo em sol, a mesa já florida. Haverá
coisa mais ridicula para os olhos de um homem do que surprender a
mulher amada diante do espelho, em penteador, sem meias, amaciando
a cutis ou trançando os cabellos, ainda com os olhos empapuçados de
somno? É desolador! Levanto-me tarde, desço para a ducha, visto-me--uma
grande hora de trabalho lento, mirado e caprichoso--e ganho a frescura
do jardim, uns metros de terra onde brotam cravos e bogaris, sob
a copa frondosa de uma amendoeira amiga. Ahi leio pausadamente os
jornaes e bebo o café e o cognac, ouvindo os meus canarios. Sem essas
minudencias sou um homem inutil. Recolhi-me tarde, muito tarde, e sem
somno. Reli uns capitulos de psychologia experimental e confesso que
fiquei impressionado. Eram talvez quatro horas da manhan, cantavam
gallos pela visinhança, quando consegui conciliar o somno. Pois ás seis
fui violentamente acordado, porque um intimo carecia do meu auxilio
para resolver uma questão magna. Note o meu amigo que sempre tive uma
decidida vocação para a gynecologia, recuei diante do forceps e dos
outros apparelhos de viabilidade fetal simplesmente porque as senhoras
preferem dar á luz á noite... Se não fosse a hora incommoda preferida
pela genese, eu seria hoje um parteiro notavel. Sou advogado,
homem de leis e de rhetorica. Desci desesperado. Borrifei-me com um
pouco d’agua, sorvi, ás pressas, um gole de café e, ainda em jupon,
bocejando, recebi o intimo na minha sala de estudo. Quer saber o
motivo da visita do meu illustre despertador? a crise de transportes.
Baniu-me do leito para pedir-me um artigo violento contra a Central.
Escrevi, deve sahir amanhan. É um horror! resente-se terrivelmente do
meu estado de espirito. O intimo collaborou dando-me a assignatura,
que é um mysterio de que elle faz segredo: _A alma de Frei Góes._ Não
sei que quer dizer, mas presumo que ha dentro disso coisas de subido
alcance. Mas agora, entre nós, que diabo tenho eu com a crise de
transportes? Cruzou os braços e encarou-me. Que tenho eu com tudo isso?
As cargas que apodreçam ao sol, pouco se me dá que haja ou não sal em
Matto Grosso e sapatos em Goyaz. Que se arranjem, deixem-me em paz,
deixem-me dormir. Que tenho eu com a crise? Houve uma pausa curta e o
doutor tornou: Depois do artigo uma scena de ciumes. Uma mulher idiota
que se revoltou porque um intrigante qualquer lhe foi dizer que andei
seguindo os passos de uma hespanhola, no Polytheama. Virou o resto do
champagne. Eu sentia-me meio atordoado--ardiam-me os olhos amortecidos
de somno.

--Mas, meu amigo, voltando á minha leitura da noite: confesso que estou
deveras impressionado. Tem lido os modernos estudos psychicos?

--Alguns.

--E... que pensa da alma? indagou.

--É uma hypothese, aventurei.

--Como! uma hypothese? Não crê?

Sorri, e entrei a falar como se dictasse: As minhas idéas sobre
psychologia estacam diante dos tumulos: depois da lapide mais nada. Não
posso comprehender essa verdade suprema dos philosophos romanticos--a
vida posthuma. Alma é o atomo, alma é a monéra, alma é a cellula,
alma é o sangue. Das causas puras, doutor, só podem derivar iguaes
effeitos, entretanto o odio germina dentro em nós, o ciume, a aversão,
a antipathia, abjecções proprias da materia, naturalmente affecta
á podridão pela sua propria essencia--o verme. O nosso corpo é um
thermometro, de que o sangue é o mercurio. Nos periodos pacificos
e normaes marcamos os gráus baixos da tranquillidade; um pouco que
o sangue ascenda ao cerebro, como o mercurio sobe, ao calor dos
fortes estios ou das febres, temos a exaltação, o delirio, todos os
horrores do desequilibrio mental, todas as concepções extravagantes
e allucinadas. Creio no Nirvana porque adoro o silencio. Ao céu, ao
promettido paraiso, falta a primeira condição: variedade. A vida
eterna deve ser monotona. O meu ideal é o fim absoluto. Isto de vida,
doutor, é um phenomeno de attracção de moleculas. O homem vem ao mundo
pela mesma razão porque vem á arvore o fruto, o fio d’agua á rocha:
fatalidade, sympathia, cohesão, tudo quanto quizerem, da vida physica,
da vida material; mas de alma, espirito invariavel e eterno, sopro
de Deus, etc., etc.... não percebo. Alma como conjunto dos sentidos,
admitto. O beijo é uma premissa do amor, o amor é uma manifestação da
alma.

Doutor, estude a psychologia em uma criança: é um brutinho, incapaz de
pensar, incapaz de outra coisa que não seja vagir e chupar tetas. A
primeira manifestação é toda material: o choro, manifestação positiva
do soffrimento ou do tedio, que é innato, e a fome manifestação do
instincto--a alma mysteriosa não dá signal de si. Com o correr dos
annos chegam os sentimentos, isto é, o aperfeiçoamento das sensações.
É por meio delles que as fibras delicadas do cerebro e do coração
vibram; essas vibrações formam a vida complexa do amor, do ciume,
do desespero, do pensamento, etc. Para a velhice, com o declinio do
corpo, todo o organismo definha e a alma, immortal e forte, em vez de
sustar a queda da carne, auxilia-a porque os sentimentos affluem todos
para a saudade, que é a velhice das paixões; ella é que vive até á
caducidade, até á bestialisação, até á regressão ao primitivo estado
de inconsciencia. Alma é a vibração da mocidade, alma é a ardencia do
sangue. Infelizmente nós outros oscillamos entre dois crepusculos--a
ignorancia da primeira idade e o pavor do fim dos annos. Não creio,
doutor; em alma, não creio.

--Mas, pelo amor de Deus, meu amigo... acudiu elle, vejo, pela
prelecção que acaba de fazer, que é um materialista intransigente;
isso, porém, não impede uma observação singela. Abriu um parenthesis
para propôr mais champagne; recusei e elle continuou firmando-se nas
minhas palavras: Vivemos entre dois crepusculos, disse o meu amigo,
mas os crepusculos succedem-se numa eterna continuidade--as almas
têm o occaso em um corpo, mas resurgem em outro. A alma existe como
existe a luz e ha de existir até á ultima dynamisação. O corpo é um
casulo. Como já lhe disse, creio firmemente na vida eterna das almas.
A civilisação é o resultado da longa pratica do espirito humano: a
carne é uma especie de alambique, mediador plastico entre a concepção
e o movimento. Os homens que fizeram as primeiras obras, os donos das
idéas iniciaes, são esses mesmos que as continuam. A morte é apenas uma
solução de continuidade.

Nós não fazemos outra coisa senão aperfeiçoar o que dantes fizemos. As
idéas tem o seu alpha na antiga era. Ha uma estranha connexão entre o
pensamento moderno e o modo de ver dos antigos--a synthese de hoje vem
da analyse de hontem. Nós, a civilisação, estamos continuando a nossa
obra barbara. Somos os mesmos. A alma de Lucrecio resurgiu em Virgilio
e a de Pythagoras, antes de metter-se no corpo do sophista, animou
Euphorbio, filho de Panthous. Quem sabe se dentro do meu amigo não vive
a alma sceptica de Zenon?

--Não, doutor, a alma que se aloja em meu corpo nunca perscrutou
mysterios transcendentes--é a mais ingenua das almas, contenta-se com
um pouco de sonho e com um pouco de amor. Como disse, as minhas idéas
estacam diante dos tumulos. Depois da morte mais nada.

--Mas, meu caro amigo, note que já os egypcios pensavam que «a morte é
um meio e não um fim»--um meio de perpetuar a vida. A sciencia moderna
vai desbravando o mysterio da immortalidade: o zaimph de Isis cahiu
deixando a grande deusa descoberta, e são tão fortes e peremptorios os
argumentos em favor da existencia perenne, que é hoje quasi um absurdo
a negação da Eternidade da Alma.

--É possivel, doutor.

--É de uma arvore que murcha que se colhe a semente para as
florescencias futuras. As suas idéas estacam á beira do tumulo, porque
encontram o silencio completo? não; porque encontram a realização
perfeita do absoluto? não; um cadaver, posto que vasio, existe. Nada se
perde, nada é inutil. O espaço é o nada e o espaço existe. Que tem o
espaço? constellações; a morte tem tambem os seus astros, o fogo fatuo,
por exemplo, é uma estrella funeral.

Demais se, como diz, as suas idéas estacam diante dos tumulos, devem
igualmente estacar diante dos leitos.

--O doutor maneja adoravelmente o paradoxo.

--Perdão, não é o paradoxo, é a analogia. Diante de um dormitorio
tem-se o exemplo perfeito, o symbolo, devo dizer, de uma pequena
necropole: o leito é um esquife. Reza-se para dormir e reza-se para
morrer; a lampada serve tanto para os mortos como para os que dormem.
Uns e outros têm a mortalha...

--Doutor, mas isto é francamente o que nós outros, pobres rusticos,
chamamos Poesia.

--Perdão, todo mysterio tem um fundo poetico. Mostre-me uma religião
sem prophetas e os prophetas são os poetas esotericos. Mas continuando:
o sonho não será a iniciação de uma outra existencia? O sonho não será
uma previdencia?

O corpo adormecido roja-se; parece que tem a nostalgia da terra; e a
alma? paira, fica de vigilia como ficava, segundo o pensamento dos
padres de Osiris, de guarda á mumia em que havia habitado. O somno é o
tunnel por onde a alma atravessa. Meu caro amigo, não ha morte: Sisypho
é o symbolo da vida.

--Confesso, meu caro doutor, que apezar da belleza da sua doutrina, o
meu espirito repelle-a. Escreva um poema com essas idéas, um poema de
mysterio no gosto dos _Versos Dourados_.

--Pudesse eu, meu caro! Sacou o relogio e poz-se de pé: Vamos sahir?
Isto está funebre.

--Tenho um encontro para as cinco.

--Feminino?

--Não, meu tio.

--Ah! Então demoro-me mais alguns minutos. É cruel deixar um amigo
abandonado nesta triste sala em um dia como o de hoje. E de repente: E
se jantassemos juntos...?!

--Onde? indaguei.

--Por ahi, em uma baiúca qualquer. Pretexto para conversarmos. Temos a
ameaça de uma noite terrivel, podemos atravessal-a queimando _punchs_
em algum gabinete, em companhia de alguem que nos ajude a arrastar o
tedio até a madrugada.

--Aceito, mas com a condição de impôr alguma coisa: iremos a um
theatro, não para o espectaculo, pouco me preoccupo com o que se canta
em palcos, mas confesso, em intimidade, que tenho um desejo louco de
ver a caixa de um theatro... Dizem-se tantas coisas...

--É horrivel, meu amigo, mas não pense que me recuso, póde dispôr de
mim. E mais ainda, sei que não conhece o Rio á noite, proponho-me a
mostrar-lhe, em uma noite, todos os mysterios desta cidade que começa a
ter vicios. Joga?

--Pouco.

--Conhece a roleta?

--Conheço. E o doutor percebeu pela expressão dos meus olhos que eu não
era de todo indifferente á tavola.

--Pois ha um meio de conciliarmos tudo; vamos jantar ao club.
Voltando-se, o doutor deu com os olhos em meu tio, que assomára á
porta, sempre jocundo, já acenando para o nosso lado. Levantámo-nos
para recebel-o.

--Meu caro doutor... e logo, dirigindo-se a mim: Então? como te
arranjaste?

--Perfeitamente.

--Bem... e de improviso: Vem jantar comnosco, doutor?

--Hoje não é possivel, e indicando-me: Vou mostrar ao amigo Anselmo o
Rio de Janeiro, á noite.

--Então, até amanhan.

--Até amanhan, meu tio.

--E não te cances muito, ajuntou com um sorriso: amanhan á noite temos
a festa do Bessa, em Botafogo. E ao doutor: Lá nos encontraremos.

--Não garanto.

--E cuidado, Sr. Anselmo, cuidado! O Rio, á noite, é um perigo para os
que vêem pouco.

--Descance, commendador: eu vejo admiravelmente.



                                   X


Em caminho o doutor, compenetrado da minha ignorancia das coisas do
mundo, disse-me algumas palavras de conselho, expondo-me, em claros
periodos, cheios de sinceridade, os riscos da afouteza quando não se
está de sorte, e a profunda sciencia da roleta, que se resume em saber
acompanhar a banca. Propoz-me um sector sempre feliz que, uma noite,
em casa de certa Elisabeth Blayn, uma escosseza, lhe dera cinco contos
e tanto. Falou-me da roda que frequentava o club--gente da melhor
escolha: alto commercio, a magistratura, as letras, medicos. Podia-se
estar á vontade e o banqueiro, um homem de moral intransigente,
correcto e austero--tão digno a dar a bola como um juiz presidindo um
conselho.

Tomámos o bond. A tarde triste escurecia e o céu, pluvioso e grosso,
pulverisava uma neblina tenue, finissima, como a garôa de Junho nos
campos. Durante a viagem falámos rapidamente da _Débâcle_ e de uma
loura franzina, de waterproof, que se acolhera a um canto e cruzara
modestamente as mãos no collo sobre uma brochura ingleza. Iamos em
corrida suave, por um leve declive, em frente ao mar, quando o doutor
fez signal para que parassem. Descemos e eu, numa attracção amorosa,
volvi os olhos mandando adeuses tristes á loura, que parecia embebida
num sonho, tão distrahido tinha o doce e azulado olhar.

--É ali! segredou-me o doutor, mostrando-me, num gesto subtil, uma
larga porta, alta e nobre, onde rondava melancolicamente, com as mãos
para as costas, um severo criado de casaca. Quando nos viu curvou-se
gravemente. Subimos por uma escada de volta e, em cima, num vasto
salão, forrado por um tapete fôfo, semeado de moveis, numa desordem
encantadora, um moço magro, de oculos verdes, tirava tristonhamente de
um Gaveau accordes melancolicos.

--Guedes! O do piano voltou-se inopinado; mas, como o doutor
desapparecera numa saleta cercada de cabides, mirou-me fazendo um leve
cumprimento e baixou a cabeça terna, correndo os dedos pelo teclado
numa escala sentimental.

--Venha guardar o chapéu, amigo Anselmo. E na saleta o doutor
preveniu-me: Esse typo que ahi está tirando gemidos ao piano é um
famoso cábula. Teve uma charutaria e hoje vive a executar trechos de
sentimento e valsas nas batotas e nos saráus dos bairros. Inculca um
eterno palpite: o 9. Muito cuidado! Sahimos para a sala. O doutor,
esfregando as mãos, aproximou-se do piano.

--Chopin...? O dos oculos ergueu a cabeça exclamando:

--Oh! doutor, bons olhos o vejam. Sacudiu-se todo como para espanar a
tristeza d’alma e estendeu a mão affectuosamente.

--Dr. Anselmo Ribas, meu amigo, apresentou o doutor e intimamente: O
nosso Guedes.

--Muito prazer, doutor, e estendeu-me a mão dos accordes, humida e
molle e, logo, apressado, traquinando: Vamos para a sala, vamos... Já
devem estar á mesa. Tomou-nos a frente, abriu uma porta e meus olhos
cahiram sobre uma calva polida que reluzia, balançando, de leve, muito
regular, como certas pendulas de relogios iconicos.

Entrámos. Jantavam.

O doutor, muito conhecido na casa, foi recebido com um extenso oh! de
todos que cercavam a mesa ampla, de carvalho, arranjada como para um
banquete, com grandes ramos de flores e puddings tremulos em pratos de
porcelana.

A mobilia, toda de carvalho, dava uma feição distincta e séria á sala,
forrada de encerado inglez, com grandes reposteiros que pareciam descer
do tecto. Creados celeres passavam sem rumor, de um lado para outro.
O homem da calva agitava-se, com um guardanapo ao pescoço, esticando
os braços para apanhar pedaços de pão numa corbelha de christofle,
sempre a mastigar. Mirou-nos e sorriu para o doutor com a boca cheia.
Sentámo-nos e logo foi-nos servida a sôpa.

--Que tem feito, doutor? Por onde tem andado? indagou um homemzinho
engelhado.

--Negocios, meu caro.

--Não imagina como tem sido lamentada a sua ausencia. Um gordo soprou
ao doutor: «O 7 deu hontem tres vezes seguidas. O Monteiro lembrou-se
logo do amigo.» E voltando-se para a esquerda: Hein, Monteiro?

Uma voz balofa indagou: Que é?

--O 7, hontem...

--Homem, é exacto: tres vezes! E derreando-se sobre a mesa: Tres vezes,
Gomes.

--Sim, justamente porque eu não estava. E o 29?

--Não foi mal, disse com circumspecção o gordo; creio que repetiu.
Espere lá... Sacou do bolso uma tira crivada de numeros e, acavallando
o pince-nez, consultou--13, 22... ahn... ahn... 29! disse com voz
forte... ahn... 29! e... 29! Tres vezes! Dobrou discretamente as notas
e guardou-as.

--Vamos ver hoje.

Da ponta da mesa uma voz esganiçada pediu vinho. E travou-se uma
palestra viva, cruzada, em que os numeros entravam ás porções,
atropelando-se. Discutia-se e, mais uma vez, ficou provado que á
roleta não se podia applicar principio algum, porque não havia uma
lei que se pudesse dizer exacta,--tudo dependia do acaso. Um rapazola
citou Pascal, afiançando que o methodo do illustre autor das _Cartas
provinciaes_ era de incontestavel merecimento. Entreolharam-se pasmados
e o gordo, cuspindo o palito, indagou:

--E você porque não segue os conselhos do tal Pascal?

--Mas sigo, como não?

--Ah! Então percebo: Pascal tem um methodo excellente para ensinar a
ficar limpo. Houve uma gargalhada estrepitosa e o rapazola, corrido,
procurou desculpar-se com o temperamento:--Que era um precipitado, sem
paciencia, sem calma.

--Qual, menino: só ha uma sciencia--é a sorte. Manda-me para cá a
Escola Polytechnica em peso e quero ver se ella arranja alguma coisa
com os calculos.

--Esta é a verdade, disseram.

--Qual Pascal, qual carapuça! Olha o Monteiro: tem horror ás
mathematicas, é incapaz de sommar duas fracções...

--Incapaz! affirmou o Monteiro sacudindo a mão diante dos olhos como
para afugentar a visão da sciencia exacta.

--Entretanto, perorou o gordo, é o que se vê--os numeros procuram-no. O
jogo é como a mulher: quanto mais perseguido mais esquivo. Qual Pascal
nem meio Pascal--a bola é que regula.

--Está quente aqui, soprou uma voz.

--Horrivel! ajuntou outra, esbaforida.

--Vamos subir, convidou o calvo, e todos, concordando, já anciosos pelo
primeiro golpe, accederam.

--Sim, vamos subir. Ha pelo menos ar lá em cima.

O doutor accendeu um charuto e, emquanto os grupos desappareciam por
uma porta baixa, que abria sobre um largo patamar de cimento, entre
duas escadas, uma que descia para o jardim, outra que subia para um
novo corpo do edificio, estabelecemos as condições restrictas do jogo.

--Nunca mais de duzentos mil réis...

--Nunca mais! affirmei.

E caminhámos por onde haviam desapparecido os grupos, ganhámos uma
larga escada que levava a um terraço, ao fundo do qual havia a sala
occupada exclusivamente pela comprida banca da roleta, já cercada
de pontos anciosos. Justamente na ocasião em que assomámos a uma
das portas, o calvo, sentado numa alta cadeira, ao centro da mesa,
annunciava com solemnidade:

--Cincoenta golpes, meus senhores.

O Guedes já havia tomado posto junto ao rapazola que citara Pascal.
O seu olhar cúpido atravessava a espessa bruma das lentes verdes
e cravava-se no monte de fixas que o neophyto acariciava cheio de
esperança, recapitulando baixinho os sabios principios do mestre. O
gordo passeiava semeando fixas com calculo; ás vezes demorava sobre um
numero, trincando o grosso beiço rubro, com as sobrancelhas repuxadas
por uma meditação profunda e retirava-as, num accesso de palpite,
recuando ou avançando para outro numero.

Aproximámo-nos. O doutor, sempre supersticioso, não quiz entrar na
primeira parada para jogar com segurança na sorte do banqueiro. O calvo
atirou a bola que começou a gyrar, num silencio de anciedade--ouvia-se
apenas o leve rumor que ella fazia circulando á borda da roleta,
como um satellite minimo em torno de um grande astro, por fim foi
amortecendo, amortecendo. O gordo, que acompanhava com ancia o gyro da
bola, exclamou:

--Está dormindo! e inspirado: é o 19! disse e precipitadamente atirou
sobre o numero tres fixas.

--É o 13, disse o Monteiro, carregando, com a cara á banda, um olho
pisco, para evitar o fumo do cigarro.

--Feito o jogo! annunciou o banqueiro. Recolheram-se todos e o calvo,
gravemente, espalhando pelo tapete um olhar de exame, cantou. Duplo
zero.

Houve uma exclamação desabrida: o numero estava livre. O _rateau_
recolheu todas as fixas e já outras cahiam atabalhoadamente, algumas
rolavam. Cruzavam-se braços afflictos. Os de uma ponta pediam
obsequiosamente que lhes puzessem duas fixas no 3 ou no 8 e entregavam
espichando-se; outros consultavam o _mostrador_ compenetrados, sisudos.
O Guedes escrevia numa tira de papel.

--100 fixas! exclamou o doutor e eu, sacando do bolso o dinheiro que me
dera meu tio, dei a troco de outras tantas fixas uma nota de duzentos
mil réis.

--Quer o troco em cartões ou em dinheiro?

--Em dinheiro, soprou-me o doutor. E eu, immediatamente:

--Em dinheiro...

Deram-me fixas brancas e ao doutor _sangue de boi_ e começámos a cobrir
os numeros: elle seguindo o sector sempre feliz, eu indifferentemente,
á discrição do acaso, atirando como quem semeia num campo, confiado
na terra fertil. Já a bola gyrava quando o Guedes segredou-me em
confidencia:

--Olhe o 9, doutor; está vasio.

--Sim, o 9, e atirei para o numero tres fixas. A minha largueza fez
pasmar o Guedes. Olhou-me com enternecimento e gratidão como se me
quizesse dizer na sua linguagem humilde: «que me agradecia a confiança
depositada no seu palpite tão desconceituado, já ridiculo entre os
pontos.» E sahiu da melancolia com palavras confortativas:

--O doutor fez um jogo admiravel, vai ver. Mas já o banqueiro
annunciava, com a sua gravidade de magistrado, oppondo embargos ao
rapazola, que despejava fixas ás tontas: em pleno, nos esguichos, a
cavallo, no grande, na terceira duzia, como se quizesse, de uma só vez,
chamar ao seu bolso os cinco massos de notas que ali estavam accendendo
a cobiça:

--Jogo feito.

--Prompto! Prompto... disse o retardatario, sem arredar os olhos do
tapete.

--18, cantou o calvo e o homem do _rateau_ começou a contagem: 35
amarellas.

--Minhas, disse o rapazola coçando a nuca frenetico.

--35 azues...

O gordo, com a voz cheia, accusou: Do dégas.

--105 brancas... eram minhas. O resto foi raspado. O Guedes, corrido,
não disse palavra, limitou-se a molhar o lapis nos beiços para annotar
e o rapazola, enxugando o suor da fronte, já sulcada de rugas,
lastimava: «que sahira justamente o numero em que menos jogara.»

O doutor, vendo-me carregado de fixas, felicitou-me, ajuntando em tom
discreto--que não me precipitasse.

--Descance...

--Deve ser agora o 36, disse o Guedes timido.

--Como o 36? porque?

--É a somma de 18.

--Vá lá o 36... Jogo por sua conta, e atirei sorrindo.

O gordo, engasgado, a tossir, seguiu o meu palpite dizendo--que os
estreantes são sempre felizes e atirou duas fixas sobre o 36. Tive
impetos de declarar que jámais pensara em tal numero, que o palpite
era do Guedes, mas o pobresinho voltara para o meu rosto os oculos
verdes e, atravéz das lentes, pareceu-me que os seus olhinhos tristes
imploravam. Calei-me. Deu o 15.

--Apre! bradou o de Pascal. Que sorte!

--15...! é do sector! disse o Monteiro sentenciosamente recolhendo
140 fixas--e com ironia, puxando o rapazola pela manga do veston:
Applique-lhe os principios, homem. Applique-lhe os principios.

--Qual! E agitando uma nota: Mais vinte fixas! Entrara um novo
ponto--um velho moreno, magro, de cavaignac. Deu uma volta distribuindo
apertos de mão e acercou-se do Guedes.

--Que numeros têm dado? O Guedes entregou-lhe o papel.

--Jogo feito! annunciou o banqueiro. Prompto! Prompto! disseram vozes
e, grave, como sempre, o calvo annunciou: 33. Foi a minha sorte--280
fixas. O Monteiro felicitou-me:

--Lindo golpe!

O rapazola sorria batendo as mãos e, sem que eu lhe perguntasse,
disse-me esticando o beiço:

--Estou limpo!...

--Nove horas, meu amigo; avisou-me o doutor.

--Sim, sim; vamos já. É a minha ultima parada. E espalhei a esmo um
punhado de fixas afastando-me, em seguida, para dar lugar ao novo
ponto, que acompanhava todas as peripecias do jogo com vivissimo
interesse. A roleta girou mais uma vez e o calvo, com a gravidade
habitual, cantou: 18.

--Em branco, disse o doutor puxando-me pelo braço. Os outros,
arrebatados, iam arrumando novas camadas, atulhando as casas, com
uma gana que seria para receiar se ali não estivesse, na presidencia
fatal, o calvo com a sua serena impassibilidade. O rapazola, sacando do
collete uma nota amarfanhada, berrou:

--Jogam duas fixas no 17, e acamou a cedula sobre o numero com um murro.

Quando me apresentei ao calvo para receber o valor das fixas, elle
sorriu com ar augusto e dignou-se dirigir-me a palavra:

--Então já?

--Tenho compromissos...

--Appareça, disse entregando-me o bolo. E o Guedes, solicito, sahindo
ao meu encontro: Appareça, doutor. Venha jantar comnosco.

--Pois sim, pois sim. Mas o doutor do terraço acenou-me, bradando
sonoramente: «Boa noite, meus senhores!» Descemos.

Quando passámos a volta do patamar, entrando na passagem que
communicava com a sala, alguem, que se balançava numa cadeira, na
penumbra humida de um socavão, indagou com um timbre feminino: se não
queriamos tomar alguma coisa--cerveja, cognac?

--Obrigado, agradeceu o doutor, e como eu lhe perguntasse quem era:

--Hebe, disse elle sorrindo maliciosamente.

Atravessámos a sala deserta, tomámos os chapéus e sahimos. A noite
estava radiosamente estrellada. A chuva cessara de todo, deixando no
ar uma frescura humida. No mar tranquillo estendia-se tremulamente
o rastro diaphano do luar e sobre o muro do caes um grupo de homens
cantava em vozeirada um rondó de opereta.

--Apre! respira-se finalmente.

--É verdade! Que forno esta casa!

--Para mim principalmente: queima-me todo o dinheiro. E num tom
convincente: Mas a gente é de escolha.

--Pois não: roda magnifica. O proprio Guedes é excellente rapaz.

--Excellente. Um admiravel companheiro, meio desconfiado... Vai
ás nuvens quando alguem o chama de cábula. Sinto que não tivesse
visto o Balduino, o _Pai_ 13, como é conhecido nas batotas. Jogador
incorrigivel. Affirma que desde os 14 annos faz ronda ao _tapis vert_.
Com 15 annos perdeu a legitima materna e anda agora a transviar o fruto
amargo da labuta caseira--magros mil réis que a mulher e as filhas
retiram da loja para onde cosem calças e colletes de brim. Mas é um
excellente pai de familia, o Balduino! adora a sua gente, é tão amigo
dos filhos como da roleta, é tão fiel á mulher como ao seu numero. Se
consegue fazer uma feriasinha razoavel, que lhe dê para um mez, entra
pela casa carregado de embrulhos, enche á farta a dispensa, paga as
contas, resgata as joias, veste o rancho e accende uma vela de libra
aos pés da Conceição para que lhe dê um pleno volumoso. Ao jantar
levanta um brinde commovido ao magnifico numero, e toda a familia
acompanha-o com religiosidade, tocam-se as taças e Balduino desenrola
mais uma vez o seu grande plano de felicidade que elle mesmo, uma
noite, contou-me ceiando commigo num gabinete do Bragança: «Entra com
20$, atira-os em pleno sobre o numero e ganha; deixa todo o lucro...
e repete. Affronta a sorte, num accesso de coragem louca, e ganha
ainda... é uma fortuna--não ousa arriscar mais, retira o bolo e, no dia
seguinte, entra em ajuste de compra com um fazendeiro--fica-lhe com as
terras e estabelece uma criação de gallinhas em grande escala. Novos
calculos: tantas gallinhas, tantas posturas e faz-se exportador de
frangos e de ovos, conseguindo accumular em 10 annos quantia superior
a 5 mil contos. Apparecem então as ambições politicas--é outro jogo,
porque Balduino, apezar de retirado, não póde esquecer, por gratidão,
o seu inicio. Apresenta-se candidato, ganha a eleição, entra na camara
com o diploma, faz o diabo, até que um dia, inopinadamente, cahe-lhe em
casa uma pasta. Mas Balduino, sempre fiel, não entra em exercicio senão
num dia 13--vai protelando, ha tantos meios de protelar: enfermidade,
arranjos, coisas, até que chegue o dia... Ah! então o Brasil viverá
em regalada paz com a sua administração cabulosa». Eis o seu romance.
O certo é que Balduino tem feito Africas: teve camarote no Lyrico e
apresentou-se com dignidade. Dizem que, em certos dias, passa como
Lucullo.

--Dava alguma coisa para ver esse typo.

--Ora espere... hoje é...?

--8.

--Então podemos partir descançados--não vem cá.

--Como sabe?

--É que elle só joga nos dias impares: tem a superstição ás avessas.

Caminhamos lentamente, em silencio; por fim observei ao meu amigo:

--O senhor joga friamente.

--É um engano, meu amigo; apparento.

--Mas não se distrae. Parece que não acha prazer...

--No jogo? muito! Penso com os modernos que dizem que o jogo
é um prazer esthetico. O gozo do jogador, pela tenacidade da
emoção prolongada e forte, pela ausencia do sentimento, porque é
um phenomeno todo material de sensação, excede o do artista que
contempla embevecido, por longo tempo, uma obra de genio. Os
sentidos, no jogador enfebrecido, atrophiam-se e tornam-se uma
especie de abstracção, algumas vezes excessiva, a ponto de o deixar
em immobilidade de hypnotico, emquanto corre o azar da bola ou
das cartas. O jogo opera como a morphina--excitando e abatendo: é
um estupefaciente. A emoção é cruel sem deixar, por isso, de ser
agradavel. Se não educa o gosto, educa as paixões: a luta com o acaso
torna o homem indifferente, quasi stoico. Habituado ás contrariedades
não soffre com os revezes, acha-os naturaes, aceita-os sem protesto,
passivamente, como aceita as sortes da banca. Alguem descobriu que o
jogo era uma manifestação da hysteria, foi talvez por isso que a sabia
Europa instituiu para os hystericos dessa mania, o grande hospital de
Monte-Carlo. Mas olhe o bond... vamos!

E deitamos a correr em direcção ao bond.



                                  XI


--Vamos refocilar na devassidão, disse o doutor quando nos apeamos.
Infelizmente a besta que trazemos em nós exige esse mergulho de quando
em quando. Os hygienistas não se aperceberam desta grande verdade: o
homem espoja-se. O corpo exige, com a mesma tenacidade, o exercicio
e a insania, a tensão dos musculos e o enervamento, como o espirito
requer o real e o ideal. O vicio mantem em silencio a carne: é um
repasto material. É preciso satisfazer o animal. Estudei profundamente
o organismo do homem e cheguei á convicção de que a vida serena é um
absurdo impraticavel. A vida deve sujeitar-se ás leis do movimento--a
variedade é um facto. Confesso ao meu amigo que sou avesso ao deboche,
detesto a vida de _noceur_; mas sinto, de longe em longe, necessidade
de atravessar uma noite desfolhando rosas em champagne, no fundo de
um gabinete discreto, com uma grisette que me recite a léria do amor,
trincando lascas de fiambre e queimando cigarrilhas. Acho prazer,
prazer perverso, porque sou um detestavel instincto. Estacou e disse-me
de novo: um detestavel instincto.

Se pudesse viver como me inspira o temperamento, garanto-lhe, meu
amigo, que as chronicas terriveis de Gilles de Rais desappareceriam
como banaes e pueris. Depravar a humanidade!... deve ser um prazer
magnifico. Ver todo um mundo no vicio, numa orgia sardanapalesca, ao
sol, cantando. O vinho a correr pelo leito dos rios. Em vez de barcas,
grandes cantaros fluctuando; e gente a beber, a cambalear, a cahir,
besuntada e tropega, crianças e velhos, virgens, monjas, tudo, a babel
terrivel do satyrismo, num diluvio roxo escoado de todas as torneiras e
de todas as vinhas... que delicia! E calmo: O vicio é uma necessidade,
affirmo-lhe.

Jogo e depravo-me como empanturro o estomago, como ingiro a medicina.
Para mim a pilula e a esphera da roleta pertencem á mesma therapeutica,
operam diversamente, mas operam. Para os males do figado calomelanos,
para o tedio uma parada commovedora. As mulheres interessam-me pela
estranheza do typo: adoro a mulher de amor, não pelo seu beijo, mas
pelo seu estudo, porque é curioso ver como esses animaesinhos sabem
attrahir. Algumas, pobres camponias, ainda com as mãos grossas do
cajado com que andaram a pastorear nos campos, conhecem melhor a
arte de agradar, as delicadas minudencias do amor que interessam,
que prendem, que sensualisam, do que as eruditas educadas em finos
_boudoirs_, lendo brochuras ardentes. Acho adoravel a cocotte--é um
sexo neutro--alguma coisa de homem, a tactica commercial, alguma coisa
de mulher, a hypocrisia. De resto, é uma valvula de segurança social.
Um contemporaneo da academia, rapaz de finissimo espirito e talento não
vulgar, dizia-me sempre: que sentia, de tempos a tempos, necessidade de
embriagar-se. Encerrava-se e bebia. Era uma medicina.

Aventurei citando Simão Carreira, que, nos momentos em que a musa lhe
foge, vai ao pucarinho e derreia bebedo acordando, no dia seguinte,
dyspeptico e amarrotado, mas com a imaginação fulgurante e provida
para um novo canto do seu poema ou para meia duzia de sonetos, que
immediatamente registra para o _Correio da Serra_, orgão superiormente
litterario para as alturas em que vê a luz.

--Mas é assim, meu amigo. A castidade atrophia, deprime, suffoca
o espirito. O amor é um derivativo. Não o amor sentimento: o amor
sensação. Afinal, que vamos nós buscar no fundo de um theatro, prazer?
distracção? arte? não absolutamente: vamos cevar o animal. No meu
programma de educação, inaplicavel, porque não tenciono perpetuar a
minha crise de spleen, dando ao mundo um representante de meu tedio e
das minhas desillusões, entraria, como curso fundamental--o vicio. O
vicio, pois não. O epigono constitue o seu caracter com mais vigor nos
camarins e nas tascas do que nas escolas. Que diabo ensina o mestre?
ensina a evitar o vicio, o que vale dizer--mostra outro vicio. É uma
verdade o que Comte deixou escripto: «Não se destroe senão o que se
substitue.» Afinal a vida é uma constante marcha e a natureza tem as
suas leis. Para seguir é preciso tomar rumo. O mestre diz que não se
vá pela direita; então o caminho da moral é o da esquerda e ahi vai
o pimpolho arrebatado pelo temperamento e induzido pela logica do
pedagogo para peior deveza. E por fim a educação inutilisa um homem que
podia ser perfeitamente aproveitado. Meu amigo, os primeiros ciumes
fazem os futuros bravos, os primeiros amores fazem os futuros poetas. A
moral é uma palavra van; toda a gente a pronuncia e poucos a praticam.
Qual moral, qual nada!... o corpo exige. Emmudeceu de repente.

Haviamos chegado a um largo, e na parte fronteira á rua por onde
seguiramos, uma grande cauda de luz electrica alastrava o passeio
argentando as arvores e, ás vezes, ganhando o céu como uma esteira de
luar.

--Variedades, disse-me o doutor. Mas se fossemos ao Sant’Anna?

--Como quizer...

E seguimos. O doutor, depois de um silencio, avisou-me: Mas não se
illuda--olhe que a caixa de um theatro é um pouco peior que a caixa de
Pandora...

--E a esperança, doutor?

--Fica á entrada, como no distico do Dante. Vai ver de perto a illusão,
que é uma triste realidade. E voltando a rua: Eis-nos chegados, disse.

Á porta do theatro formigava uma multidão impaciente. Logo que
nos aproximámos, dois sujeitos avançaram pressurosos, offerecendo
bilhetes:--que eram os melhores, que na casa só havia da ultima fila
e perseguiam-nos tomando-nos o caminho, embaraçando-nos o passo,
sofregos, afflictos. Safámo-nos briosamente e ganhámos a bilheteria.
Tomei a frente ao doutor e, enfiando a mão pelo guichet, bradei:

--Duas cadeiras!

--Uma! Uma só, disse elle.

--E o senhor?

--Não preciso; tenho entrada.

--Uma, emendei; uma cadeira. E, recebendo o papelucho das mãos do
bilheteiro, examinei-o: Lettra L... que tal?

--No inferno...! Mas como não tencionamos assistir, qualquer coisa
serve. Vamos.

O doutor encaminhou-se vaidosamente e confesso que, pela primeira
vez em minha vida, senti picar-me a inveja vendo-o passar entre os
porteiros grave, sem uma palavra, como se entrasse por sua casa. A mim
tomaram o papelucho e rasgaram uma nesga entregando-me o resto; ao
doutor disseram com respeito: Boa noite!

Achei-me num estreito pateo de terra humida. Para um lado, um
correr de portas verdes com um oculo ao alto; para outro lado, mais
adiante, um balcão de bebidas--na mesma direcção um tablado coberto,
cheio de mesas de zinco entre as quaes passavam atarefados caixeiros
carregados de copos. Mulheres subiam e desciam opulentamente vestidas,
saracoteando, com grandes leques de plumas, deitando olhares, franzindo
sorrisos; outras tagarelavam em grandes rodas de rapazes, com
gargalhadas estridentes; e uma velhusca, de preto, com uma barbicha
no queixo, como as feiticeiras de Macbeth, estremecia, mostrando as
gengivas desertas, rindo estridulamente aos galanteios de um meninote
de chapéu de palha e terno de flanella branca.

--Vê este seculo, meu amigo?

--É a propria velhice...

--É Venus ancestral. Essa mulher é o centro do mundo equivoco--é
ella quem dirige as neophytas e dizem que tem um curso admiravel
de sciencia. Dá lições diarias ás que pretendem fazer carreira pelo
caminho que Laïs trilhou arrastando poetas e o tonel de Diogenes. É uma
mulher digna de consideração: sem ella não haveria novos encantos, nem
os languores imprevistos. A sabedoria está com os velhos, meu amigo.
E, baixinho, soprou-me: Olhe a Marion, evitemol-a. Era, em verdade,
a loura, a formosa loura ciumenta e aspera, que acariciara os meus
sapatos com o pésinho minusculo.

--Se a convidassemos para a ceia, doutor?

--Não... não... Excede-se e dá para chorar a sua infelicidade, porque
essa divina mulher tem saudades da patria e da honestidade e, quando
bebe vinhos de França, lamenta não ter um filho e fica de tal modo
nostalgica que, ao cabo da lamentação saudosa, é sempre necessario que
venham tres homens para leval-a ao carro. Não... não...! Evitemol-a.

Marion bebia e tão entretida estava com a sua garrafa de Apollinaris
que não deu por nós.

--É sobria, entretanto: bebe agua, á grega.

--Sobria? quem...? Marion...?! porque está bebendo Apollinaris? Conheço
muito essas medidas preventivas: é que ella conta ceiar, meu amigo, e
está recompondo o estomago para um diluvio de Bourgogne. Mas vamos.
Tomámos por uma das alas do theatro e, justamente quando voltei os
olhos para a scena, entrava um grande diabo, brandindo um facho, a
bradar coisas terriveis, ao clarão purpureo de fogos de bengala. A
orchestra ia num crescendo infernal--quasi se não ouvia a declamação
do maldito quando surgiu uma legião de diabos vermelhos, truculentos,
dançando em torno do rei a berrar, a bramar, á proporção que os
musicos, num delirio satanico, sopravam com furia, batiam com gana,
dando ao espectador pasmado a idéa aproximada do que deve ser a musica
nesse reino negregado de chammas, onde as almas penam torrando-se em
labaredas inextinguiveis, sob abobadas de granito em brasa. Felizmente,
porém, houve uma pancada vibrante e os demonios sumiram.

Cahiu um novo panno: Uma aldeia risonha sob um ceu de azul, com uma
igrejinha branca a um alto e na eira da herdade, no primeiro plano,
entre médas de palha e instrumentos agrarios, camponios a espadellarem
linho, cantando um villancico meigo.

--Vê aquella velhota que ali vem por entre arvores...? É a Jesuina.

--Por Deus! mas é uma antigualha!

--Engana-se. É uma bella mulher. Vai convencer-se...

Os homens, que se apertavam á minha frente, pouco me deixavam ver.
Puz-me nas pontas dos pés, já interessado pela velhota quando,
subitamente, vi surgir o demonio, sem archote, os braços cruzados, numa
attitude hostil, e berrar:

--Fada... não sei que... e uma infinidade de palavras que deviam ser de
insulto, porque a velha poz-se tambem de entono e avançou hysterica,
vociferando:

--Ainda não!... Cahiram-lhe os andrajos, o cajado transformou-se em
sceptro enramado de folhas de ouro e eu vi uma esplendida mulher, de
fórmas admiraveis, resplandecente na sua toilette feerica.

--Linda, com effeito, doutor! disse maravilhado.

--Ah! é esplendida! E languido, com os olhos em alvo, trincando o
beiço: E que mulher! A scena atroou aos berros dos camponios, que
deitaram a correr espavoridos. Ficaram sós, desafiando-se--o diabo
negro e a fada. Houve uma troca de palavras e novo _tchaan_! Pannos
cruzaram-se acima e abaixo. Nova scena. Jardim florido, entre grutas.
Mulheres: nymphas, disse-me o doutor, tangendo lyras e cantando.
Cahiam do céu, como na lenda de Danae, palhetas de ouro. O diabo,
estortegando, vencido, urrava com os joelhos em terra, e a fada, com
um gesto cheio de magestade, mantinha-o subjugado e immovel. Romperam
palmas e o panno veiu descendo lentamente.

--Vamos falar á Jesuina.

--Pois não, doutor. Pois não... E partimos atravéz da multidão que
recuava.

O doutor bateu á porta da caixa, e appareceu ao postigo uma cara ossea,
macilenta, hispida de pellos, indagando soturnamente: Quem é?

--Abre, Amaro.

O cérbero sumiu-se batendo o postigo e logo abriu meia porta, por onde
nos esgueirámos rapidamente. Ambiente de estufa--mal se podia respirar.
Não haviamos ainda caminhado dois passos quando vi surgir a uma porta o
truculento diabo, abanando-se, com um charuto nos beiços, muito ancho.
O doutor acenou com os dedos um cumprimento intimo. Entre os bastidores
torvelinhava a gente do movimento arrastando peças accessorias, içando
nuvens, pregando sarrafos. Dois homens, agachados junto de uma rocha
sarapintada, ajustavam cordeis, e um moreno, de sobrecasaca, a cara
rapada, berrava para as bambolinas:

--Ó Candido! ó Candido! desce mais essa vista! mais! mais, homem! Que
diabo... mais! e bateu uma patada formidavel.

--Mais á frente...! ordenava um outro, alto, de cavaignac, aos homens
que collocavam a rocha... ahi...

Um soldado, com o capacete atirado para o sinciput, passeava de um
para outro lado, cantarolando. Um pequenote passou por mim esbaforido,
arrastando uma carapaça de saurio com grandes escamas.

Era difficil atravessar-se, porque de toda a parte surgiam genios,
demonios, soldados, mulheres, atropelando-se, azafamados, lançando
appellos, a correr, empurrando-se.

O doutor avançou e, mostrando-me uma escada larga por onde desciam
coristas trauteando, disse:

--Vamos subir... Isto aqui em baixo é impossivel. E galgámos os
degráus, ganhando um passadiço por onde andavam actores, refrescando-se
com ventarolas. Um, em trajo de principe, vociferava no camarim,
sacudindo uma gaforinha loura:

--Que aquilo era uma vergonha, um nojo! E sahiu bradando: Ó Ferreira! ó
Ferreira! Vocês não viram por ahi o Ferreira! Ah! grandissima besta!...

--Mas que é? indagou um escudeiro acaçapado e ventrudo, arrastando a
durindana ferrugenta.

--Olha p’ra isto... e tomou a cabelleira nas pontas dos dedos. Isto é
decente? Pois eu hei de entrar em scena com esta peruca?! Não entro,
nem que me rachem! E berrou de novo: ó Ferreira! ó Ferreira! Outro
assomou á porta de um camarim, em ceroulas, todo sarapintado:

--Ó Ferreira! Onde é que se mette esse pedaço d’asno, não me dirão? Ó
Ferreira!

Passámos atravéz do alarido e, como olhasse por uma porta entreaberta,
surprendi um lindo braço nú, de esbelto contorno e avisei o doutor.

--Ahi? é uma certa Clotilde... detesta-me; de resto não vale um olhar:
é mulher de banhas fofas. Vamos á nossa Jesuina. É aqui. Parou diante
de uma porta e bateu:

--Quem é.

--Eu, Jesuina.

--Eu, quem? Estou occupada.

--O Gomes...

--Ah! Espera... E a voz, mais proxima, indagou: Estás só?

--Não, mas é como se estivesse: trago commigo o Amor que tem os olhos
vendados.

--Oh! filhinho... não estou em estado de receber. Mas a chave rangeu na
fechadura, a porta descerrou-se e eu vi o rosto adoravel da fada.

--Como vais? indagou lançando para o meu lado um olhar obliquo, e
baixinho: Espera um momento, abro já, sim?

Recolheu-se e voltámos a passear. Ainda gritavam pelo Ferreira.
Debruçámo-nos á balaustrada: em baixo andavam soldados antigos, com
grandes escudos rutilantes, jacarés arrastando caudas enormes, monos,
demonios e camponezes, uma promiscuidade mirabolante, gente e animaes,
em intimidade só comparavel á que existiu entre esse troço de salvados
que andou pelas aguas do diluvio dentro da arca, para perpetuar as
especies. Fios de luzes tremeluziam ao alto, por trás dos pannos.
Subiam vistas, arrastavam-se bastidores--havia um grande rumor de
faina. De repente uma voz fanha entoou

  Nu... unca percas a esp’rança

e outra violenta e desesperada esbravejou:

--Quem diabo tirou daqui as minhas botas? Isto é uma pocilga! Ah! seu
Alvaro!... Quem diabo tirou daqui as minhas botas?

  Foi, foi, foi...

outro cantarolou em tom de troça. Travou-se um dialogo azedo atravéz do
tabique divisorio de dois camarins e riamos dos palavrões, quando uma
velhota nos veiu dizer que--«madama estava prompta».

Fomos immediatamente e, á porta, o doutor, lisonjeiro, indagou com
ternura:

--Dás licença, Titania?

Entrámos. O doutor apresentou-me como «favorecido das musas.» Jesuina
sorriu e mostrou-me um divan forrado de damasco vermelho. A velhota,
que nos acompanhara, tomou de uma prateleira um par de sapatinhos
brancos debruados á sarja, agachou-se e, com os pésinhos de Jesuina ao
collo, calçou-os sem esforço, suavemente. E ella, delicada e meiga,
voltando para o meu rosto os olhos admiraveis:

--Desculpe-me, doutor. Vou concluindo a minha «toilette», porque,
infelizmente, esse maldito contra-regra é de uma impaciencia feroz. A
velhota levantou-se e foi ao canto.

--Agora é que são ellas! disse Jesuina a rir. Vamos ao peior. E,
franzindo a fronte serena: Que calor, hein?

--Muito, disse eu, bufando.

A velha voltou com uma cotta de seda imbrincada de ouro e deu-lh’a
a vestir, primeiro um braço, outro depois, e as duas, a velhota de
joelhos, Jesuina, muito direita, firme, obrigada pela pressão das
barbatanas, começaram a abotoar, uma da fimbria para cima, outra da
gola até á cinta, apressadas, magoando os dedos.

Depois uma tira de filó em diagonal ao peito, cahindo em duas pontas
soltas sobre um dos flancos; duas pulseiras em cada braço e, á cabeça,
comprimindo os cabellos, um diadema altissimo com um brilhante á frente.

--Prompta! exclamou a velhota levantando-se.

--Graças a Deus! suspirou Jesuina sorrindo. E a vara?

--Está aqui...

--Estás divina! disse o doutor abraçando-a e beijando-lhe a nuca.

--Oh! oh! É terrivel este seu amigo, disse-me. E o doutor, tomando a
frente, impoz:

--Hoje vens ceiar comnosco.

--Hoje...?!

--Hoje, e não admitto desculpas.

--Se assim é, disse ella com um momo... que hei de fazer...? Verteu
algumas gottas de perfume na palma da mão e esfregou-as dando-me depois
a aspirar:

--Delicioso! sussurrei, fungando.

--Agradavel, não é? Mas a sineta vibrou e um mulatinho appareceu á
porta:

--D. Jesuina...

--Vou já.

--A que horas acaba esta rigolade? perguntou o doutor.

--Meia-noite.

--Pois até lá. E vai ter com Satanaz, que te espera.

Despedi-me tambem e descemos.

A orchestra executava os primeiros compassos de uma marcha infernal,
quando, de novo, ganhámos a frescura do jardim.

--Então, meu amigo?

--Divina, disse eu. O diabo é que isto demora. Que havemos de fazer...?

--Vamos á cerveja; não ha outro meio de fugir á insipidez.

E abancámos.

--E dizer que toda essa gente goza, ponderou o doutor, num tom
melancolico de lastima. Isto que me enfada, que me provoca bocejos,
faz as delicias de uma multidão. Olhe ali aquelle homem debruçado á
balaustrada... Quanto eu daria para poder rir como elle! Decididamente
esse casal do paraiso levou-nos o melhor da vida--a innocencia,
deixando-nos em troca o tedio. Felizes os simples!

Não imagina como invejo um desses homens que são specimens raros do
animal primario, que se destacam, entre os civilisados, como um grande
cedro num campo raso. Ás vezes, quando passo por uma dessas casas de
pasto, onde o grosso povo de trabalho se ajunta para comer, tenho
impetos de entrar, sentar-me no mesmo banco, acotovellando estivadores
e canteiros, fascinado pela voracidade pantagruelica desses brutos que
devoram pratos enormes, com mais apetite do que um de nós, em dias de
fome, trincaria uma fatia de caça. Nós somos os degenerados. Que mais
pode ambicionar um homem que já experimentou todas as sensações e que
leu os materialistas? Que ideaes pode ter um ser esgotado? Nem riso
nem pranto. Sinto-me vasio e inutil. Já não existem imprevistos para
mim. Tudo dimana de causas naturaes, diz a philosophia, e acham os
evolucionistas que feliz é o homem que conhece todos os phenomenos da
natureza, que sabe dizer, sendo preciso, por que razão a pedra deriva
a gotta d’agua, para onde caminham as correntes dos rios, quantos
millenios tem Syrius, porque é pallida a lua, quaes são as causas
que presidem aos fluxos dos mares, a origem do homem e tudo mais que
a sciencia investigou para esterilisar os productos mais delicados
do espirito que, a meu ver, são--a imaginação e a esperança. Felizes
são esses pobres homens que crêem nas boas fadas dos caminhos e nos
genios dos campos. Felizes são esses que vêem na Via Lactea o caminho
sagrado dos reis magos, attribuindo a pulverisação das nebulosas ás
patas dos dromedarios que vieram do Oriente parar á entrada da lapa em
que Jesus dormia. Felizes são os que podem ainda imaginar mysterios...
Oh! os crentes, os religiosos! esses é que são os bemaventurados, não
no céu, aqui mesmo, na terra, porque esperam, porque não duvidam.
Aquelle homem que ali está desfeito em gargalhadas nunca leu um
aphorismo, desconhece a syntaxe e as causas finaes, nunca atravessou
uma noite acotovellado á banca do jogo, nem de certo poliu os seus
beijos procreadores--é um simples. Trabalha e crê, conhece o _Ave_ e
respeita a Lei, ama e quando chega á casa, estafado e moído, o seu
primeiro cuidado é para o filho mais novo--toma-o nos joelhos e brinca
com elle a rir. E dorme em paz, porque não tem problemas a resolver nem
gazes de dyspepsia. É um animal amoroso e puro... E sinceramente, não
é preferivel levar a vida assim materialmente, em ignorancia beata,
abençoando as estrellas cadentes e commungando, de vez em vez, a andar
pelo mundo empanturrado de pessimismo, repetindo com o «Ecclesiaste»
que tudo é vaidade?

O homem não nasceu para maldizer sómente, creio eu. «A resignação é o
heroismo da desgraça.» Um moralista exprimiu-se mais ou menos nestes
termos, mas eu devo confessar que não tenho absolutamente o sangue
heroico--sou um pusillanime. Dêem-me novidades, imprevistos, qualquer
coisa que me commova: um grande amor, um grande odio. Infelizmente,
porém, o amor adquiro-o como adquiro as luvas e os plastrons, por um
preço, por outro, mas sempre a dinheiro... É sordido! É vil! Não foi
para mealheiro que Deus, ou não sei quem, fez o coração. O amor é uma
permuta de affectos e não um mercado. Mas que quer? comprar um beijo,
pagar um sorriso, subornar uma meiguice... eis em que consiste a
civilisação; isso é requinte, é espirito.

Duas mulheres passaram por nós discutindo em dialecto aspero,
esgrimindo com os leques, frementes, terriveis. As vozes subiam, já da
platéa reclamavam silencio com prolongados «psios».

Os homens, que cercavam a balaustrada, interessados no escandalo,
vieram aproximando-se. Descia gente em tropel e as duas, uma
em frente da outra, ameaçadoras, mirando-se roxas de furia,
vociferavam com grandes gestos. Repentinamente brandiram os leques e
engalfinharam-se--os chapéus rolaram para o chão, as fitas voaram e,
apezar da immediata intervenção de alguns rapazes, as duas lutavam, já
com os leques partidos, numa algazarra bravia. Na platéa havia gente
de pé. Os actores, em scena, emmudeceram e o grande diabo, curioso,
coçando o queixo agúdo, alongava os olhos procurando ver á distancia
as heroinas. Os coristas, amontoados sem ordem, cochichavam. O regente
voltara-se e varios musicos, de pé, olhavam curiosamente; um deixou-se
estar sentado, aproveitando a balburdia para afinar o seu violino.
Trilaram apitos, mas já haviam apartado as belligerantes. Appareceram
praças e o povo foi descendo, em onda compacta, em direcção á porta.
Ouvia-se ainda, de vez em vez, um guincho colerico. Por fim irrompeu
uma assuada tremenda e gargalhadas estrepitosas abafaram as phrases
violentas de uma das mulheres.

Já no palco haviam recomposto a scena, o diabo carregara de novo o
sobr’olho e, quando avançou para o ponto, sustentando uma nota grave,
de novo o povo reclamou silencio e, pouco a pouco, foi recahindo a
tranquillidade.

--Foram presas, doutor?

--Não, fazem-n’as sahir simplesmente. Estalaram palmas estrepitosas,
olhámos: o panno vinha descendo lentamente sobre uma scena flammejante.

--Falta-nos ainda um acto, suspirou o doutor. E não ha infelizmente
duas outras mulheres ciumentas.

Ao fim do espectaculo, depois de uma fulgurante apotheose no
reino das perolas, de grandes pylonos côr de opala, regado d’aguas
lactescentes, floridas de nelumbos por onde andavam cysnes alvadios,
reino administrado pela magia dos olhos de Jesuina e pelos cordeis do
machinista, veiu abaixo o panno ao som abemolado do côro triumphal
das nymphas, que exaltavam o poder da soberana. O diabo, corrido e
humilhado, estarrecido ao fundo, entre columnas gyratorias rugia,
rolando os grandes olhos chammejantes e orlados de malacachetas. O
povo, em delirio, prorompeu em gritos, victoriando a boa fada pelo seu
nome humano, mais doce, talvez, que o da magica:

--Á scena, Jesuina! Bravos a Jesuina! E uma voz isolada accrescentou
num berro agudo:

--Jesuina na ponta!

E tudo desappareceu.

A retirada foi rumorosa e lenta. O povo escoava aos empurrões como
uma grossa e pesada torrente contida muito tempo pela comporta de uma
represa. As luzes minguavam e, pouco a pouco, veiu cahindo a sombra; o
silencio substituiu o rumor. O panno levantou-se de novo sobre um fundo
de andaimes e de sarrafos. Fóra andava um meninote assobiando baixinho,
com a bengala ao hombro, passeiando ao longo da varanda.

--Vamos esperal-a á porta da caixa. E, em segredo, indicando-me o
rapazito solitario, disse-me o doutor:

--Ali está um que não nos perdoará a aventura de hoje. É um terrivel
amoroso. Governa o partido da Jesuina. Só em flôres gasta todas as
noites para mais de cinco mil réis. Já fez tirar uma polyanthéa
glorificando a actriz que, incontestavelmente, tem um lindo collo, mas
que desafina soffrivelmente e no terreno da concordancia é como um
louco diante de um taboleiro de xadrez: baralha tudo. Emfim, como o
fim utilitario da mulher é o amor, Jesuina cumpre admiravelmente o seu
destino na vida, porque, sem encomios, é um bello exemplar do sexo.

Começavam a sahir os actores; alguns com embrulhos debaixo do braço.
Uma mulher, de mantilha, passou por nós ninando um pequerrucho.
Um sujeito magricela, de longas pernas e farto bigode, com agudas
saliencias de ossos, deu-nos boa noite em tom amigo.

--Quem é? indaguei.

--É o diabo; pois não conheceu...? é o diabo. Chama-se Silveira.

Voltei-me para ver ainda uma vez o vencido, elle lá ia, murcho e
sorumbatico, mascando uma ponta de charuto, triste, desmanchado, já
sem os arreganhos terriveis, sem a attitude audaciosa e ostensiva com
que surgira entre os seus sequazes, bradando pelas furias do Averno
e arrancando gritos ás crianças. Ia abatido e não era, de certo, o
poder da vara de Jesuina que o derreava, não, deviam ser preoccupações
communs. Talvez tivesse um filho doente, sogra de perfeita saude ou,
quem sabe se o pobre diabo não estava ameaçado de ser lançado á rua
pelo senhorio feroz...? Fosse o que fosse, achei-o mais sentido dentro
do frak e nas calças de brim do que na farpella purpurina de rei dos
demonios, anniquilado pela magia das pupillas de uma mulher, tres vezes
mais forte com as suas nymphas do que elle com a legião de bruxos
negros e diabretes.

Em seguida um casal, muito aconchegado, cochichando--a mulher, com uma
indignação mal contida, elle calmo, grave, respondendo com pequenas
phrases. Depois uma onda tumultuosa, com alarde, achincalhando
coplas--os coristas.

--Está demorando, disse o doutor impaciente. Mas no mesmo instante a
porta abriu-se e Jesuina appareceu no patamar, seguida da velhota.

--Salve a formosa apsara! saudou o doutor.

--Estão cançados de esperar? indagou sorridente.

--Nem por isso.

Jesuina pareceu-me menos formosa no seu vestido marron e com a cabeça
coberta por uma capota de veludo. Confesso--e vai nisto uma ingenua
franqueza--confesso que a Jesuina que meus olhos aguardavam anciosos
e desinsoffridos era a outra, a que eu vira no palco, entre nymphas,
na nudez artistica do maillot, afoufada em rendas, com os cabellos
soltos e á fronte o diadema régio. Era assim que eu esperava vel-a, de
sorte que tive uma pequena desillusão quando ella assomou á porta, em
toilette vulgar, como todas as mulheres, ella, que para mim não era
outra senão a propria, a verdadeira fada das perolas, que apparecera
em scena, affrontando o Demonio. O doutor sussurrou-lhe:

--Aceita o braço que te offerece o meu amigo, tenho de dar um pulo
á Maison para desfazer um compromisso. É um instante. Comprehendi a
delicadeza do pretexto e adiantei-me pressuroso e ella, voltando para o
meu rosto os olhos incomparaveis, ainda assim menores do que os que me
haviam seduzido, indagou:

--Onde vamos?

--Onde quizer, disse-lhe.

--Ao Bragança, não é?

--Ao Bragança, sim, affirmou o doutor. E venham vindo porque já os
encontro no Rocio. E até já. Partiu como uma frecha.

--Thereza, podes ir, disse Jesuina á velhota.

--Boa noite, meu senhor. Então até logo.

--Adeus! E a velhota partiu compondo o chale. Sahimos. Á porta havia
um homem de gorro, que nos offereceu um carro.

--Sim, vamos, disse eu.

--Oh! não vale a pena. Tomar um carro para ir ao Bragança! Não, vamos
andando. E já intima, maliciosa, apertando-me o braço: É preguiçoso
assim?...

--Não, gosto de andar, faço leguas a pé, mas... E não me atrevi a
dizer-lhe a verdade: eu não sabia onde era o Bragança. Felizmente,
porém, o doutor surgiu a uma porta.

--Oh! pois ainda vêm ahi...? E adiantando-se: Os corações já se fizeram
amigos? E ella, repousando no meu braço, com um languido olhar e um
doce sorriso: Creio que sim.

--Creio que sim, corroborei sorrindo.

Mas o doutor deteve-se para dizer em tom sentencioso:

--Devo observar aos meus amigos que o amor é um sentimento digno, que
deve ser cultivado como uma flor preciosa, mas acima do amor ha alguma
coisa que é preciso não esquecer...

--Deus! disse ella com beatitude.

--Não, filha: o estomago. Temos um gabinete no Bragança á nossa espera.
Depois do champagne gelado os beijos têm mais calor. É a reacção. Cá
por mim, como pretendo passar a noite como Santo Antão, comerei alguma
coisa solida...

--Você só!?

--Sem duvida. Quando se vai á Cythera é perigoso levar farnel.

--Pois sim... E, com um muchocho, Jesuina achegou-se a mim. Senti-lhe
as carnes... Que carnes!



                                  XII


Triste manhan.

Bocejei espreguiçando-me e estirei-me na cama, mas com que
alquebramento! Sentia uma fadiga de longas jornadas, como se tivesse
viajado sem repouso estiradas leguas ao sol, curtindo fome e sêde.
Doíam-me as pernas, e que saburroso gosto, Deus meu! e que dormencia de
idéas! Tentei, por vezes, saltar da cama, mas a energia abandonara-me.
O corpo, apezar do esforço, abatia amollecidamente. Deixei-me estar
deitado com os olhos no docel e, nessa attitude inerte, recapitulei as
scenas da noite da vespera.

A ceia! Regalado repasto! Lembro-me que começou por uma salada de
lagosta, que o doutor acolheu com uma prelecção sobre os molluscos
e Jesuina com palmas e gritinhos. O que veiu em seguida não sei bem
e não me seria facil recordar porque, emquanto o criado substituia
pratos e talheres, emquanto o doutor recitava dythirambos exaltando
a excellencia dos vinhos de França e do Rheno, eu extasiava-me nos
olhos de Jesuina que, de vez em vez, abrindo sobre as nossas cabeças o
leque de pennas, como a aza do amor, protectora e discreta, dava-me um
beijo, mais doce do que o vinho, oh Sunamita! mais doce do que os favos
deliciosos das abelhas, Aristêu!

A palestra erudita, finamente colorida e nobremente elegante do
doutor, perdeuse. Era em vão que elle recapitulava as orgias primévas
e os festins colossaes dos antigos. Que me importavam, a mim, as
dionysiacas! Que me importavam os brodios de Roma e de Carthago se eu
tinha ali, ao alcance da boca, a vinha por excellencia, que eram os
labios da Jesuina. Que falasse o doutor, que não estancasse nunca a
fluencia doutissima das suas palavras, Jesuina, com o seu arrulho de
pomba mansa, prendia-me, absorvia-me todo e eu não tinha ouvidos senão
para o que ella dizia e só aos seus beijos respondiam meus labios.

Vinhos diversos subiram da adega preciosa do Bragança e da adega á
minha cabeça. Provei de todos, porque Jesuina queria que eu bebesse á
nossa felicidade, ao nosso amor eterno, á estrella que nos illuminara
o encontro, aos seus olhos, á sua boca... e eu, vencido, bebia sem
murmurar até que, por fim, o doutor, sempre fecundo em idéas,
encommendou um punch em chammas, ardente como o nosso amor.

Veiu numa grande terrina fulgurante e alumiou a mesa com um clarão
tábido. O doutor, num assomo, ergueu a sua taça e pronunciou um brinde
em que passaram, lembro-me vagamente, as gerações que adoravam Agni, o
immortal, o lume eterno, e veiu pelos caminhos difficeis da historia,
parando em todos os templos para mostrar, no mais reservado do ádyto, a
chamma sempre vigilante, que é o symbolo da fé. E bebemos.

Findam ahi as minhas memorias dessa noite. Do que mais houve não
sei--tenho o estomago abrasado como se houvesse emborcado a terrina,
engulindo vorazmente o punch em chammas.

Meu tio, surgindo á porta do quarto, com uma physionomia grave e
carregada, fulminou-me com o olhar.

--Bom dia, meu tio.

--Bom dia, disse-me elle, puxando uma cadeira para junto da cama.

Compuz as cobertas, enfiei os dedos pelos cabellos para alisal-os e
esperei grandes coisas porque, certamente, iam cahir grandes coisas da
boca de meu tio.

--Então, que foi isso hontem?

--Isso que, meu tio...?

--Ali! meu sobrinho, razão tem teu pai--elle é que está no caminho da
verdade. Na carta que me escreveu disse-me que não te désse liberdade,
que te trouxesse sempre debaixo das minhas vistas, porque és ainda uma
criança, apezar dos bigodes que tens. Decididamente és ainda muito
criança, concluiu meu tio, baixando a cabeça como fulminado por um
pezar profundo.

--Mas que houve, meu tio?

--Que houve? ainda perguntas...! Disse e levantou-se. Foi a um canto
e, tomando de cima de uma cadeira um casaco, que eu reconheci
immediatamente, abriu-o diante de meus olhos. Estava enlameado e roto.

--Que é isto, Anselmo...?

Baixei os olhos e não tive uma palavra, mas confesso que eu mesmo não
poderia dar o motivo daquellas nodoas nem daquelles rasgões.

--Não sabes...? foi a ceia de hontem.

--A ceia de hontem!

--Sim, ficaste enlevado nos olhos de uma actriz e foste demais ao
cantaro; finalmente, esquecendo as bôas regras da educação e do
cavalheirismo, desmentindo o teu caracter e manchando o nome dos Ribas,
quizeste... Mas tu estavas doido? indagou meu tio, assomado, agarrando
a cabeça com ambas as mãos. Tu estavas doido, rapaz!

--Não sei, meu tio.

--Que diabo, eu tambem bebo...

--Mas eu não bebo, meu tio, foi uma vez... um incidente...

--Sim, um incidente, que teria funestas consequencias se, em vez do
doutor, que é um cavalheiro, fosse outro homem.

--Mas que houve?! Fale, pelo amor de Deus!

--Que houve! Pois não te lembras que esmurraste o doutor num gabinete
do Bragança!?

--Eu! bradei saltando da cama. Eu...!

--Tu?!

Emmurcheci de vergonha e só levantei a voz para declarar
peremptoriamente que partia á tarde, pelo nocturno.

--Hoje?

--Sim, meu tio: hoje mesmo e para o sempre!

--Pois então avia-te, porque são quatro e meia.

--Quatro e meia! Eu então estou dormindo...?

--Ha doze horas, senhor meu sobrinho; ha doze horas! E solemne, sem
mais dizer, retirou-se do quarto.

Foi morrendo o rumor dos passos de meu tio e achei-me só com o meu
remorso. Baixei os olhos para o pellego amarello e vi as minhas
botinas manchadas como o nome immaculado e probo dos Ribas, que eu
arrastara, sem escrupulo, pelos canaes do vicio, como um podengo
estrafega e arrasta pelas sargetas um trapo. Tentei aturados esforços
para reconstituir a scena nefanda que tanto me rebaixara aos olhos do
meu digno tio, mas a embriaguez correra um denso véu sobre o passado.
Sentei-me na cama como um bonzo e meditei sobre os acontecimentos dessa
noite de depravação e delirio, mas só consegui lembrar-me dos olhos
de Jesuina--divinas pupillas de mulher, supercilios divinos! Por fim
o raciocinio foi desbastando, pouco a pouco, a densidão alcoolica e
deduzi, com profunda logica que, se eu esmurrara o doutor, não fôra sem
motivos, a menos que o punch illuminado me não tivesse enlouquecido por
momentos. Mas do fundo do meu amor levantou-se o espectro terrivel do
ciume--ah! fôra de certo o ciume o movel desse crime.

O doutor, apezar das doutrinas que expende, é azevieiro como D. Juan
e Jesuina não é mulher que se despreze, principalmente depois de uma
terrina de punch em chammas, e assentei que quem armara o meu braço,
quem fechara o meu punho para os murros fôra esse mesmo sentimento
que fez do mouro apaixonado um estrangulador e que, em nossos dias,
na cidade tranquilla do meu sertão, armou uma scena de escandalo na
sacristia da igreja parochial em que me lavei dos peccados e ganhei
o nome de Anselmo, entre o padre Coriolano e o sapateiro Gaudencio,
afinador de pianos e trombone da philarmonica.

O ciume...! Jesuina! devo-te a triste desgraça de ter molestado o meu
illustre e douto cicerone. Se algum dia o domares com os teus olhos
doces e crueis, arranca-lhe do fundo do odio o perdão para os murros
que por teu amor lhe dei, lembrando-lhe que Jesus tambem perdoou,
invocando piedosamente, com a santissima resignação de martyr, a
clemencia do Pai para os legionarios: «Perdoai-lhes, meu Pai! elles não
sabem o que fazem!»

Eu tambem não sei que fiz, palavra de honra, posso mesmo ajuntar que
não foi por querer.

Que fazer? Correr á casa do doutor para pedir-lhe que relevasse a
brutalidade do meu vinho brigão, confessar a minha fraqueza...? não.
Decididamente só me restava um alvitre--voltar á minha terra e esconder
entre as arvores, que me viram criança, boas arvores amigas que me
carregaram tantas vezes nos seus braços verdes, a minha vergonha, o
meu opprobrio. Era, de certo, a resolução mais acertada e mais digna.
Saltei da cama e enfiei as calças, adiantando-me para o espelho,
curioso de ver a devastação da minha physionomia e não foi sem pasmo
que reconheci todos os meus traços intactos--apenas a barba, que
apontava, punha-me uma orla azul pelo queixo e, em volta dos olhos
radiados um halo roxo--no mais era eu mesmo, fresco e forte, com as
minhas cores de serrano, com os meus cabellos negros, em bucres, como
os do Apollo.

Vendo-me, esqueci por momentos a estroinice e admirei-me e pensei com
vaidade que Jesuina, no silencio do seu boudoir, quando se lembrasse de
mim, havia de lastimar a minha ausencia e quem sabe se aquelles olhos
formosos não humedeceriam lenços por minha causa, quando eu, já em
caminho, de volta ao lar, fosse revendo esses campos monotonos e essas
varzeas de uma eterna verdura por onde caminham rebanhos, mugindo, á
luz de ouro das manhans.

Pobre Jesuina...! suspirei commovido. Mas, de novo, appareceu-me a idéa
da partida. Lancei os olhos a um canto e vi a minha maleta aberta, como
se tambem quizesse demonstrar-me a necessidade imperiosa e inadiavel
de seguir. Resignei-me e, mollemente, descalço, fui ao cabide buscar o
jupon para retemperar-me no banheiro, lavando abundantemente o corpo,
já que não podia fazer o mesmo á reputação. Desci.

Meu tio, debruçado á varanda do jardim, extasiava-se no crepusculo, já
prompto para jantar. O criado taciturno arranjava a mesa. Nas gaiolas
os canarios cantavam estridulamente. Passei de leve como uma sombra; o
criado lançou-me um olhar malicioso e baixou a cabeça.

Refrescado e vestido vim tomar o meu lugar á mesa. O tio recebeu-me
sem azedume, mais cordial e mais meigo e, quando provou o polme de
ervilhas, com os beiços a escorrerem, arregalou-me os olhos como se me
quizesse dizer que atacasse, porque estava delicioso! E até a hora dos
badegetes não falámos. Foi justamente quando o criado poz diante de mim
os peixes que descerrei os labios.

--Não, meu tio, disse repudiando o vinho que elle me servia.

--Como! peixe sem vinho...? estás doido! E, teimoso, verteu no meu
calice verde as gottas de Chablis. O vinho é um reactivo, disse-me.
Lá porque hontem houve aquella historia queres deixar de beber...?
Historia!... O vinho é um tonico poderoso. Atiça-lhe! e piscou-me o
olho. Corei e bebi umas gottas.

--Então embarcas amanhan?

--Impreterivelmente!

--Mas que diabo vais fazer a Minas?...

--Preciso. Meu pai chamou-me e meu tio bem sabe...

--Ora, teu pai! Teu pai pensa que no Rio de Janeiro não ha outra coisa
senão febre amarella. Deixa-te estar, homem... Goza a mocidade emquanto
é tempo.

--Não, meu tio, sigo amanhan.

--Já sei, é por causa da scena do hotel. Pensas que o doutor tomou a
sério as tuas bravatas? deixa-te disso. Elle tem criterio bastante para
julgar essas coisas. Queres saber, sentiu-se tanto que até te trouxe á
casa ao collo.

--Como! Ao collo, meu tio!

--Ao collo, sim, porque quando aqui chegaste foi um trabalho para que
te tirassem do carro. Vinhas lacrimoso, soluçando, abraçado com o
doutor, lamentando a perda da mulher amada e recitando emphaticamente
versos do Simão Carreira. Esmurraste o doutor, mas, que diabo! murros
de bebedo... E desatou a rir espalmando a mão larga e dadivosa sobre
o meu hombro. Ora, o Anselmo! onde diabo foste achar tantas lagrimas?
Teus olhos eram como duas torneiras abertas... Mas deixemos o que
houve: aguas passadas... Vamos ao que serve: Temos hoje, á noite, a
festa do Bessa. Esperam-te...

--A mim, meu tio?

--Então? Has de ir para a roça sem uma noção do grande mundo, do que
chamam high-life? Não, senhor...

E emborcou o copo de Bourgogne.



                                 XIII


O baile do Bessa... (Commendador Saturnino Pecegueiro Bessa, 52 annos,
da ordem de Christo, alguns gráus maçonicos, varios predios e duas
filhas; viuvo.) O baile de 4 de Setembro, data do natal memoravel da
beneficencia encarnada... como descrevel-o neste tempo curto que me
resta emquanto arranjam a minha bagagem? Como descrevel-o assim asinha
e de afogadilho sem retocar o estylo? Arte exige, e muita, a pintura de
tão encantador e selecto convivio de damas e de cavalheiros.

Não, não descrevo, tenho tempo de sobra para commettimento que demanda
esmero e argucia, esmero para fazer com que brilhem, na fórma ingrata
das letras, a graça das senhoras e o sorriso das senhoritas, sorriso
que affixa o reclamo de um coração disponivel, sorriso com que a
garridice poz em reserva obsoleta a quadra da cantiga que começa:

  Meu coração está vasio... etc.,

e argucia para penetrar o pensamento dos homens e as entrelinhas de
uma certa viuva prematura, tão habil na seducção que... não é exagero
dizer que essa notavel dama insinou em meu coração a mais inabalavel
certeza da victoria dos meus olhos, pronunciando durante uma valsa de
Strauss (o _Danubio azul_, que tem arrastado nas suas ondas harmoniosas
muitos pares ao altar) duas phrases simples, mas de uma intenção clara
e escandalosa que me fez corar. Simão Carreira, em uma ode immortal,
explica que o pudor no homem é uma tolice... para as mulheres. Eu fui
tolo durante os compassos de Strauss e a viuva acabou a noite nos
braços de um estudante de pharmacia, mais lepido nas danças e mais
desembaraçado em colloquios. O estudante, depois da quadrilha final,
sabia o endereço da viuva e eu aqui estou amarfanhando o enxoval para a
viagem de amanhan.

Dançou-se até meia noite com orchestra, dessa hora para a madrugada
senhoras revesaram-se ao piano. As filhas do commendador, gentis e
conversadas, entretiveram-me com algumas observações de fina e atilada
analyse--falaram-me, com enthusiasmo, das pelouses lamentando apenas
a falta de fiscalisação e os tribofes. Asseguro que esse termo feio e
desgracioso «tribofe» não é uma invenção cerebrina, cahiu dos labios
de Mlle, como uma lesma cahe das petalas de uma rosa. Os diccionarios
não o inserem por escrupulo e, em verdade, «tribofe» é horrivel.
Falaram-me da opera lyrica e, como eu indagasse se tinham ouvido
Wagner, uma affirmou--que sim! Mlle. Alice. A irman, porém, não se
lembrava e foi preciso que a outra recordasse a estréa de um vestido
de faille para que a doce e angelica Delphina sorrisse achando a vaga
reminiscencia dum cavalleiro e dum cysne.

Mlle. Delphina, romantica, durante uma languida habanera, falou-me,
enternecida, do _Serge Panine_ e criticou a toilette exagerada da viuva
que girava, com o busto em nudez, enlevada nas phrases therapeuticas do
seu amoroso par.

Do que ouvi, no vão de uma janella, emquanto D. Brites, contralto,
cantava ao piano um melancolico romance de Tosti, ficaram-me as
palavras do Dr. Silverio Torres, deputado da opposição, socialista.
Explicou-me, entre outras coisas, que a miseria é um resultado da
abundancia, como a lama é o resultado do excesso da chuva. O mundo,
no seu rudimento, não conhecia a miseria, disse-me---ella appareceu
com a primeira moeda. E teve este pensamento, que deve ficar eterno
como um dogma de economia politica: «Quereis ver um paiz de fome?
entrai num paiz de millionarios», e estendeu o braço para o jardim
procurando mostrar-me além, na grande noite, esse paiz de fome: Lá
está, é a Inglaterra. Olhei machinalmente e vi as estrellas do céu.
O Rio, disse-me mais, vive sitiado pelo varegista. Nós não temos
esquinas, temos vendas, barreiras onde o pobre vai diariamente pagar
o seu imposto. O taverneiro occupa os extremos da rua e, ás vezes,
assalta o centro--e esse excesso de mercado é uma das causas da luta
de contingencia. A luz é a vida, o excesso de luz é a chamma, é o
incendio, é a morte. O taverneiro estabelecido torna-se, em pouco
tempo, o senhor do quarteirão. Por intermedio do caixeiro, que vareja
o mais intimo recesso da casa e espia e ouve emquanto conduz a lenha,
levando para o patrão, conjuntamente com o dinheiro, o segredo da vida
privada do pobre, o taverneiro torna-se uma especie de suzerano--elle
fia, elle sabe. É das vendas que vêm os grandes desesperos para o
proletario, é das vendas que partem as diffamações mais crueis.
Dirão:--mas o pobre podia libertar-se desse jugo fugindo ao balcão do
taverneiro. Infelizmente assim não é--nem sempre o mealheiro tine na
casa do operario, o amanhan é tenebroso e no dia em que elle, baldo
de recursos, por molestia ou por desemprego, tentasse o credito para
o alimento dos filhos, o taverneiro, que não desconhece o prazer
dos deuses, vingar-se-ia. A venda é o terror do pobre porque é o
escoadouro do seu trabalho e, muitas vezes, a causa das suas lagrimas.
Concordei. Elle ainda me fez saber o que eu, até então, ignorava--que
essas casas de penhores são uma instituição do luxo. E demonstrou
com sabedoria: Esses estabelecimentos de recurso prompto só recebem
joias e objectos de alto valor. O pobre, quando muito, possue o collar
que enfeita o pescoço do filhinho, as bixas modestas da esposa, um
relogio de prata para marcar a hora do trabalho--tudo isso que vale?!
Entretanto vá o senhor a um dos leilões das casas de emprestimos e ha
de ver--braceletes preciosissimos, solitarios offuscantes, diademas,
chuveiros, toda a joalheria fidalga e cara, porque a outra nem sequer
é apreçada. O pobre vai aos belchiores e não empenha, vende: o casaco
dos domingos, a cama em que lhe nasceram os filhos, o oratorio dos
santos protectores. Logo: quem empenha? os remediados, os ricos,
para manutenção da apparencia. E perorou iracundo: o prego é uma
instituição do luxo, fomenta o vicio e a hypocrisia. Iamos entrar em
outras analyses quando o commendador Bessa, a conselho de meu tio, veiu
tirar-me para uma valsa com a Ex.ᵐᵃ Snr.ᵃ D. Adelaide Fogget, esposa de
um importador. Dancei e suei. E chamaram-nos para a ceia.

Lauta e facunda, bons vinhos e tropos. Falaram todos, menos eu, que
fujo á exhibição. D’entre os muitos discursos inspirados ficou-me o de
um Bartholomeu de tal, gordo e curto, homemzinho redondo, um frasco.
Louvou e bebeu com emphase; ao fim da terceira taça, rematou: que o
commendador era da massa de D. João de Castro e explicou o parallelo.
Perdi, infelizmente, a explicação porque Mlle. Delphina, que distribuiu
os lugares, fez com que eu ficasse entre a contralto e o deputado
opposicionista, de modo que, durante o transbordamento da facundia,
os arroubos melomanicos da direita e as invectivas da esquerda
distrahiram-me, ella que me dizia, com os olhos em alvo, que depois do
_Vorrei morire_, só a morte, e elle que soprava maliciosamente aos meus
ouvidos: Que áquillo só faltava o retrato a oleo.

Uma balburdia chamou a nossa attenção applicada á ironia--era entre as
senhoras. Todas as damas pediam ao deputado que respondesse por ellas
ao brinde do pharmaceutico, que saudara na mulher a joia mais delicada
sahida das mãos do Creador. E o deputado, mastigando, ás pressas, uma
febra de presunto, empunhou a taça e disse coisas lindas, agradecendo
em nome do sexo feminino. Depois da ceia (dezoito brindes e duas taças
quebradas para que nunca mais concorressem a elevação dos dotes de um
mortal, á mesa) voltámos ás danças.

Grande coisa a vida! Já não baixo á terra fria sem o supremo gozo de
ter passado uma noite em sociedade. Como é divertido um baile... Oh!
simplicidade do meu campo, oh! cateretês da minha serra ingenua...! Ó
noites no rancho, á beira da estrada, com a luz do luar, o bom cheiro
dos bogaris abertos e a cantilena do serrano, ao som da viola, emquanto
os curiangús contentes saltam piando na estrada lisa...

Recolhi-me com a noite--ella a desapparecer no céu, eu a mergulhar nos
lençoes, estafado e triste. Acordei ás tres da tarde, moído. Meu tio,
mal soube que eu abrira os olhos, subiu ao meu quarto para dizer-me
que o doutor estivera com elle; e deu-me um cartão. Li; era laconico e
generoso.

  «Meu caro:

Vim trazer-lhe o abraço de despedida. Parto para Belém no comboio da
tarde. O meu caseiro escreveu-me, relativamente á venda de uma porcada
(é o termo). Vou á verdade da vida--o interesse. Tenho um sitio e
consolo-me das durezas e dos desenganos deste mundo cultivando rosas
e criando porcos: o perfume e a linguiça, a floricultura amada dos
atticos e o suino repellido pelo Koran. Levo commigo um livro seu que
achei sobre um dunkerque: Eschylo. É um scaphandro para garantir o
espirito. Boa viagem.

                                                       Sempre affectuoso
                                                       _Gomes_.»

--Então, meu tio, exclamei radiante, elle não levou a mal os murros...?

--Ora... A italiana não me atirou ao rosto _Amor e Psyché_, e eu?...
Deixa-te disso. O mundo é um jogo de concessões. Deste-lhe um murro,
amanhan ou depois elle t’o restituirá. Isto é assim. E, sem transição,
cravou os seus olhos empapuçados no meu rosto: estava terno como uma
mulher amorosa:

--Anselmo, porque não te formas? Não temos na familia um homem de
sciencia...

Arrisquei o nome de meu tio padre--Cleofano Ribas...

--Cleofano... nem para missas! Temos aqui uma academia livre, estás
prompto em humanidades, sabes latim, que é a palavra de honra de
convicção nas tribunas; porque não te matriculas? Em dois annos podes
estar formado. Ficas commigo. Que diabo! é preciso que eu faça alguma
coisa pela patria--quero deixar-lhe um bacharel.

--Mas meu pai é contrario ás cartas. Desde que lhe receitaram tartaro
para uma congestão hepatica tem horror aos homens formados.

--Teu pai é um misanthropo.

--Alceste, comparei sorrindo.

--Qual Alceste, nem meio Alceste. E serio: Que Alceste?

--De Molière, meu tio.

--Ah! pensei que era o das loterias, esse é um excellente homem. Mas
voltou logo á questão: Se queres escrevo a teu pai?

--Tente, meu tio.

Fiquei só na varanda emquanto Serapião Ribas, no seu gabinete, tratava
de converter o irmão com uma longa epistola sobre o meu futuro.

E o resto da ultima tarde foi de inenarravel tristeza. Os passaros
pareciam chorar adeuses e havia no rumor vesperal dos ramos do jardim e
na agua da rega, que jorrava sobre os canteiros, o suave e blandicioso
timbre de uma voz conhecida que me dizia, queixosa:

--Porque partes, ingrato? E eu? e o nosso amor?...

--É impossivel, Jesuina, comprei passagem de ida e volta, disse
enlevado.

--Que é isso, rapaz? estás falando só?

--Não, meu tio, falo com a minha illusão.

E a noite veiu funebre, mas rutilante de astros.

Ás quatro da manhan, cantavam os gallos pelos quintaes, quando o criado
bateu á porta do meu quarto avisando-me--que o carro estava prompto.

A lua viu-me atravessar o jardim e ella que conte os adeuses que
fiz, mais tristes do que os de Boabdil á Granada. E emquanto durou a
corrida, só tu, Jesuina, só tu, doce amor, mereceste os meus suspiros.



                                  XIV


Tu, imprudente moço da parabola messianica, tu, de certo, sentiste,
voltando ao lar, desilludido e pobre, a mesma impressão que me feriu o
espirito quando, abrindo os olhos á luz clara da manhan, reconheci o
meu quarto modesto, alvo como uma cella monastica, ornado singelamente
com os meus instrumentos de caça. Ao fundo, num velho armario tosco, os
livros das minhas leituras ao lado da mesa ampla e pesada das minhas
meditações.

Coisas minimas para as quaes raramente se voltavam meus olhos, como
as mirei extasiado! E que prazer em folhear brochuras, em reler
fragmentos, em passar a mão pelos couros estirados nos muros claros!
E quem diria que eu, tão exigente outr’ora, achando infecto esse
jornalesco patricio o _Phanal de Tamanduá_, havia de ler, desde o
artigo de fundo sobre a questão do casamento do Braz Lamenha, infenso
ao pretor e á lei, redigido pelo meu venerando mestre o reverendo
Coriolano, até o annuncio do bazar do Pindella. Decididamente não ha
nada para revigorar o amor como a saudade.

Os rumores deliciavam-me e enterneciam-me--deixei-me estar muito tempo
a ouvir o chofrar das aguas do moinho, perto do meu quarto, e descobri
um encanto divino no balido das ovelhas que erravam pelos caminhos.

Leve, longinquo, soava o sino da parochia, ora brando, ora forte,
conforme a brisa e nasceu-me uma estranha curiosidade de saber se
aquelles toques, que vinham pela manhan limpida, sonoros e festivaes,
eram por algum santo ou pelo baptismo de mais um sertanejo. Mas,
acalmando-me, entrei por uma duvida incoercivel recapitulando a vida
fantastica desses oito dias aventurosos, que tão depressa correram.
Pareceu-me que jámais passara além das montanhas levemente esfumadas no
horizonte, reduzi essa viagem da minha imaginação a uma simples sortida
de caça--a mesma fadiga que eu sentia era natural depois de tantas
escaladas atrevidas, depois de tantos saltos temerarios, ravinas acima,
penhascos abaixo.

Que trazia eu que me demonstrasse ter vivido nessa cidade de luxo e
de vicio, tão celebrada entre serras pelos que, uma vez, pisaram as
suas ruas e admiraram o seu fausto? Que trazia eu como documentos
affirmativos? a carta de meu tio...? Sim, era uma verdade a carta,
tanto que arrancara a meu pai estas profundas palavras cheias de
sabedoria: «Que eu me deixasse de sonhos. Que me dedicasse á terra,
que é uma fonte perenne de riqueza, porque neste paiz a lavoura é que
rende, e citou a phrase do estadista--isto é «um paiz essencialmente
agricola» aconselhando-me que não a perdesse de memoria. Tudo mais,
vaidade das vaidades.» E ajuntou: «que mais valia ter uma junta de
bois e uma charrua para sulcar o solo do que todas as cartas das
congregações. E, por fim, lembrou que a terra não produz perfidias nem
calumnias e que viver entre as arvores é bem melhor do que viver entre
os homens.» Convenci-me e decidi ficar no campo, lavrando.

Sonha-se tanto! Já uma vez sonhei que era amante de Cleopatra. Vivi
dois longos mezes felizes, de amor lascivo e de festas com a formosa
rainha que me chamava: Ri-Ri.

Com ella enlaçado subi o Nilo muitas vezes, numa barca de cedro, que
tinha um cysne de ouro á prôa. Charmion sempre mimosa, cuidava dos meus
cabellos lavando-os em essencias que vinham da Ethiopia e, até hoje,
guardo a physionomia simiesca de um retinto nubio de nome André, (coisa
estranha, nome exotico na terra de Isis), que era o encarregado de
encher o rython de prata por onde bebiamos, Cleopatra e eu, e descia a
comprar-me cigarros quando me faltavam.

André...! é uma figura indelevel na minha memoria. Entretanto foi tudo
sonho; porque, se a propria rainha, desligando-se das tiras com que os
embalsamadores a prenderam, quebrando o seu sarcophago, viesse dizer-me
que me pertencera um dia, eu lhe diria brutalmente na face: Mentes
como uma bruxa, filha dos Pharaós! Sonho, puro sonho. Com o Rio não
se teria dado o mesmo phenomeno? Porque a verdade é que todos quantos
caminharam pelas ruas da cidade excelsa gabam-lhe as maravilhas e de
todos ouvi narrações de aventuras que eu, nem mesmo em sonho, concebi:
mulheres que desciam a entregar-se, arrulhando entre limoeiros em
flor; outras, mais abrasadas, que, em furor de ciume, ameaçavam com
escandalos e punhaes, e noites delirantes e mil coisas que os persas
imaginosos não incluiram nos contos de Scherazada.

Eu só não vivi: atravessei o Rio como uma sombra perdendo o fio do
prazer quando já o tinha seguro e vendo differentemente de todos,
atravéz do meu tedio e do meu sonho.

Assim foi que achei a rua do Ouvidor infima e acanhada; assim foi que
abandonei o jogo no momento em que começava a accumular; assim foi
que apenas provei o beijo de Jesuina e perdi a viuva. Todos os factos
experimentados, sem remate, interrompidos em meio, justamente como
nos sonhos. Seria embriaguez?... Teria eu atravessado toda uma semana
bebedo como Pedro _Macaco_, que confunde os dias com as noites e não
tem, desde muito, a noção exacta do tempo? Não creio. Sonhei, foi sonho
decididamente. É assim quando sonho, sempre ha de vir uma mulher para
suppliciar-me: foi Cleopatra primeiro, amei-a muito e passou; agora
Jesuina.

A vida é um sonho. Quem sabe se não sonhei? Mas lá fóra ha uma voz que
indaga--se cheguei do Rio. É Simão Carreira, sempre rouco, o mavioso
lyrico. Então não, não é sonho.

Não ha nada mais real do que um poeta e Simão que pergunta se cheguei é
porque sabe que parti. Então os sonhadores são outros que me fizeram
a descripção do Rio, sonhadores ou mentirosos, sonhadores, em summa,
porque a mentira é um producto de sonho. Mas Jesuina!? Foi sonho como
Cleopatra, como Charmion, como o nubio André. _Dreams! Dreams! Dreams!_

E a vida é isto: sonho ou tedio. Antes sonhar.



*** End of this LibraryBlog Digital Book "A capital federal : impressões de um sertanejo" ***


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