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Title: Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas e minas : com varias noticias curiosas do modo de fazer o assucar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descubrir as da prata; e dos grandes emolumentos que esta conquista da America Meridional da' ao Reino de Portugal, com estes, e outros generos, e contratos reaes Author: Antonil, Andre Joao Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas e minas : com varias noticias curiosas do modo de fazer o assucar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descubrir as da prata; e dos grandes emolumentos que esta conquista da America Meridional da' ao Reino de Portugal, com estes, e outros generos, e contratos reaes" *** POR SUAS DROGAS E MINAS *** CULTURA E OPULENCIA DO BRAZIL, POR SUAS DROGAS E MINAS. TYP. IMP. E CONST. DE J. VlLLENEUVE E COMP., RUA D’OUVIDOR, N. 65. CULTURA E OPULENCIA DO BRASIL, POR SUAS DROGAS E MINAS, COM VARIAS NOTICIAS CURIOSAS DO MODO DE FAZER O ASSUCAR; PLANTAR E BENEFICIAR O TABACO; TIRAR OURO DAS MINAS, E DESCUBRIR AS DA PRATA, E DOS GRANDES EMOLUMENTOS QUE ESTA CONQUISTA DA AMERICA MERIDIONAL DÁ AO REINO DE PORTUGAL COM ESTES, E OUTROS GENEROS E CONTRATOS REAES; Obra de André João Antonil, OFFERECIDA AOS QUE DESEJÃO VER GLORIFICADO NOS ALTARES AO VENERAREL PADRE JOSÉ ANCHIETA, Sacerdote da Companhia de Jezus, Missionario Apostolico, e novo Thaumaturgo do Brazil. IMPRESSO EM LISBOA, NA OFFICINA REAL DESLANDERINA COM AS LICENÇAS NECESSARIAS, NO ANNO DE 1711, NOVAMENTE REIMPRESSO NO RIO DE JANEIRO. VENDE-SE EM CASA DE SOUZA E COMP., RUA DOS LATOEIROS, N.º 60. 1837. O EDITOR AO PUBLICO. O defunto Conselheiro Diogo de Toledo Lara e Ordonhes possuia hum livro, que estimava tanto, que não o tinha entre os outros na sua estante, mas sim na gaveta pequena de huma commoda. Pedio-se-lhe muitas vezes, que o désse á bibliotheca, hoje publica, ao que nunca se pôde resolver mesmo dando outros, tanto era a estimação em que o tinha. Procurou-se o livro pois desde o começo do anno de trinta, algum tempo depois da morte do mesmo conselheiro, e não se descobrindo no Rio de Janeiro recorreu-se a seu irmão, e herdeiro, o General Arronches em S. Paulo, o qual contestou que não lhe havia sido remettido. Ha tres annos pois que, segundo ordens, se fizérão pesquizas em Lisboa, aonde em fins do anno passado se encontrou hum exemplar, declarando o possuidor, que o não venderia por cem mil cruzados, tal he a estimação, em que o tem! mas como homem generozo permittio que se copiasse. No mesmo tempo destas pesquizas em Lisboa, escreveu-se ao Porto ao celebrado sabio antiquado portuguez João Pedro Ribeiro, o qual depois de varias contestações asseverando o máo resultado das suas indagações, por fim escreveu, e a sua carta chegou com o manuscripto, declarando o nome de quatro pessoas, que possuião exemplares, e entre elles o nome de hum Major, ha pouco chegado alli do Rio de Janeiro; quem sabe se não he o do defunto conselheiro! acrescentando que por sete mil e duzentos réis talvez se obteria hum exemplar, e que o livro fôra prohibido no tempo de El-Rei D. João V pelo governo portuguez. Este livro he pois a cultura e riqueza do Brazil, etc. etc. etc., no anno de 1711. Do titulo inferiráõ os leitores quanto elle he util a todos os estudiosos de economia politica, e em geral a todos os Brazileiros, que alli acharáõ a certeza de que o seu abençoado paiz já então era a mais rica parte da America em quanto a productos ruraes. He este rarissimo e interessante livro que se reimprime, contentando-se o editor com a gloria, que lhe toca, de quasi ressuscitar huma joia tão preciosa. Rio, 1º de Agosto de 1837. O EDITOR. INDICE. Pag. Aos Senhores de engenho, etc. 1 PRIMEIRA PARTE. Proemio 3 Licenças 5 LIVRO PRIMEIRO. CAPITULO I. Do cabedal que hade ter o senhor de hum engenho real 7 CAPITULO II. Como se hade haver o senhor de engenho na compra, e na conservação das terras, e nos arrendamentos dellas 11 CAPITULO III. Como se hade haver o senhor do engenho com os lavradores, e outros visinhos, e estes com o senhor 14 CAPITULO IV. Como se hade haver o senhor do engenho na eleição das pessoas, e officiaes que admittir ao seu serviço, e primeiramente da eleição do capellão 17 CAPITULO V. Do feitor mór do engenho, e dos outros feitores menores, que assistem á moenda, fazendas, e partidas da canna, suas obrigações, e soldadas 21 CAPITULO VI. Do mestre do assucar, e soto-mestre a quem chamão banqueiro, e do seu ajudante, a quem chamão ajuda-banqueiro 25 CAPITULO VII. Do purgador do assucar 28 CAPITULO VIII. Do caixeiro do engenho 29 CAPITULO IX. Como se hade haver o senhor de engenho com seus escravos 31 CAPITULO X. Como se hade haver o senhor do engenho no governo de sua familia, e nos gastos ordinarios da casa 38 CAPITULO XI. Como se hade haver o senhor do engenho no recebimento dos hospedes, assim religiosos, como seculares 40 CAPITULO XII. Como se hade haver o senhor do engenho com os mercadores, e outros seus correspondentes na praça, e de algum modo de vender e comprar o assucar, conforme o estylo, e uso do Brazil 42 LIVRO SEGUNDO. CAPITULO I. Da escolha da terra para plantar cannas de assucar, e para os mantimentos necessarios, e provimentos do engenho 45 CAPITULO II. Da planta, e limpar das cannas, e a diversidade que ha nellas 47 CAPITULO III. Dos inimigos da canna, emquanto está no cannaveal. 50 CAPITULO IV. Do córte da canna, e sua conducção para o engenho. 52 CAPITULO V. Do engenho, ou casa de moer a canna; e como se move a moenda com agoa 56 CAPITULO VI. Do modo de moer as cannas, e de quantas pessoas necessita a moenda 63 CAPITULO VII. Das madeiras de que se faz a moenda, e todo o mais madeiramento do engenho, canôas e barcos; e do que se costuma dar aos carpinteiros, e outros semelhantes officiaes 66 CAPITULO VIII. Da casa das fornalhas, seus apparelhos, e lenha que ha mister: e da cinza, e sua decoada 69 CAPITULO IX. Das caldeiras, e cobres, seu apparelho, officiaes, e gente que nellas ha mister; e instrumentos de que usão 73 CAPITULO X. Do modo de alimpar, e purificar o caldo da canna nas caldeiras, e no parol de coar, até passar para as taxas 77 CAPITULO XI. Do modo de coser e bater o melado nas taxas 80 CAPITULO XII. Das tres temperas do melado, e sua justa repartição pelas fôrmas 82 LIVRO TERCEIRO. CAPITULO I. Das fôrmas do assucar, e sua passagem do tendal para a casa de purgar 85 CAPITULO II. Da casa de purgar o assucar nas fôrmas 87 CAPITULO III. Das pessoas que se occupão em purgar, mascavar, secar e encaixar: e dos instrumentos que para isso são necessarios 89 CAPITULO IV. Do barro que se bota nas fôrmas do assucar: qual deve ser, e como se hade amassar: e se he bom ter no engenho olaria 91 CAPITULO V. Do modo de purgar o assucar nas fôrmas: e de todo o beneficio que se lhes faz na casa de purgar até se tirar 93 CAPITULO VI. Do modo de tirar, mascavar e secar o assucar 97 CAPITULO VII. Do peso, repartição, e encaixamento do assucar 100 CAPITULO VIII. De varias castas de assucar, que separadamente se encaixão: marcas das caixas, e sua conducção ao trapiche 102 CAPITULO IX. Dos preços antigos, e modernos do assucar 106 CAPITULO X. Do numero das caixas de assucar, que se fazem cada anno ordinariamente no Brazil 108 CAPITULO XI. O que custa huma caixa de assucar de trinta, a cincoenta arrobas, posta na alfandega de Lisboa, e já despachada: e do valor de todo o assucar que cada anno se faz no Brazil 110 CAPITULO XII. Do que padece o assucar, desde o seu nascimento na canna até sahir do Brazil 114 SEGUNDA PARTE. CAPITULO I. Como se começou a tratar no Brazil da planta do tabaco; e a que estimação tem chegado 117 CAPITULO II. Em que consiste a lavra do tabaco: e de como se semêa, planta e alimpa; em que tempo se hade plantar 119 CAPITULO III. Como se tirão e curão as folhas do tabaco; como dellas se fazem e beneficião as cordas 122 CAPITULO IV. Como se cura o tabaco depois de torrado em corda 124 CAPITULO V. Como se enrola e encoura o tabaco: e que pessoas se occupão em toda a fabrica delle, desde a sua planta até se enrolar 125 CAPITULO VI. Da segunda e terceira folha do tabaco; e de diversas qualidades delle, para se mascar, cachimbar e pisar 128 CAPITULO VII. Como se pisa o tabaco: do granido, e em pó; e como se lhe dá o cheiro 129 CAPITULO VIII. Do uso moderado do tabaco para a saude, e da demasia nociva á mesma saude, de qualquer modo que se use delle 131 CAPITULO IX. Do modo com que se despacha o tabaco na alfandega da Bahia 134 CAPITULO X. Que custa hum rolo de tabaco de oito arrobas, posto da Bahia na alfandega de Lisboa, e já despachado, e corrente para sahir della 136 CAPITULO XI. Da estimação do tabaco do Brazil na Europa, e nas mais partes do mundo, e dos grandes emolumentos que delle tira a fazenda real 137 CAPITULO XII. Das penas dos que levão tabaco não despachado nas alfandegas; e das industrias de que se usa para se levar de contrabando 139 TERCEIRA PARTE. CAPITULO I. Das minas de ouro que se descobrirão no Brazil 141 CAPITULO II. Das minas de ouro que chamão geraes, e dos descobridores dellas 143 CAPITULO III. De outras minas de ouro no Rio das Velhas e no Caeté 145 CAPITULO IV. Do rendimento dos ribeiros; e das diversas qualidades de ouro que delles se tira 146 CAPITULO V. Das pessoas que andão nas minas e tirão ouro dos ribeiros 149 CAPITULO VI. Das datas ou repartições das minas 151 CAPITULO VII. Da abundancia de mantimentos, e de todo o usual que hoje ha nas minas: e do pouco caso que se faz dos preços extraordinariamente altos 153 CAPITULO VIII. De diversos preços de ouro vendido no Brazil, e do que importa o que cada anno ordinariamente se tira das minas 157 CAPITULO IX. Da obrigação de pagar a El-Rei nosso senhor a quinta parte do ouro que se tira das minas do Brazil 160 CAPITULO X. Roteiro do caminho da villa de S. Paulo para as Minas Geraes e para o Rio das Velhas 173 CAPITULO XI. Roteiro do caminho velho da cidade do Rio de Janeiro para as Minas Geraes dos Cataguas, e do Rio das Velhas 177 CAPITULO XII. Roteiro do caminho novo da cidade do Rio de Janeiro para as minas 178 CAPITULO XIII. Roteiro do caminho da cidade da Bahia para as minas do Rio das Velhas 181 CAPITULO XIV. Modo de tirar o ouro das minas do Brazil e ribeiros delles, observado de quem nellas assistio com o governador Artur de Sá 183 CAPITULO XV. Noticias para se conhecerem as minas de prata 188 CAPITULO XVI. Modo de conhecer a prata, e beneficiar os metaes 191 CAPITULO XVII. Dos damnos que tem causado ao Brazil a cobiça, depois do descobrimento do ouro nas minas 194 QUARTA PARTE. CAPITULO I. Da grande extensão de terras para pastos cheios de gado, que ha no Brazil 197 CAPITULO II. Das boiadas, que ordinariamente se tirão cada anno dos curraes, para as cidades, villas, e reconcavos do Brazil, assim para o açougue, como para o fornecimento das fabricas 201 CAPITULO III. Da conducção das boiadas do sertão do Brazil: preço ordinario do gado que se mata, e do que vai para as fabricas 203 CAPITULO IV. Que custa hum couro em cabello, e hum meio de sola beneficiado até se pôr do Brazil na alfandega de Lisboa 205 CAPITULO V. Resumo de tudo o que vai ordinariamente cada anno do Brazil para Portugal, e do seu valor 209 CAPITULO ULTIMO. Quanto he justo que se favoreça o Brazil por ser de tanta utilidade ao reino de Portugal 208 FIM DO INDICE. AOS SENHORES DE ENGENHOS, E LAVRADORES DO ASSUCAR, E DO TABACO, E AOS QUE SE OCCUPÃO EM TIRAR OURO DAS MINAS DO ESTADO DO BRAZIL. Deve tanto o Brazil ao Veneravel Padre José de Anchieta, hum dos primeiros, e mais fervorosos missionarios desta America Meridional; que a boca cheia o chama seu grande Apostolo, e novo Thaumaturgo, pela luz evangelica, que communicou a tantos milhares de Indios, e pelos innumeraveis milagres, que obrou em vida, e obra continuamente invocado para beneficio de todos. Porém confessar estas obrigações, e não cooperar as glorias de tão insigne bemfeitor, não basta para hum verdadeiro agradecimento, devido justamente, e esperado. Para excitar pois este piedoso affecto nos animos de todos os que mais facilmente podem ajudar como agradecidos obra tão santa, como he a canonisação de hum Varão tão illustre, procurei acompanhar esta justa petição com alguma dadiva, que podesse agradar, e ser de alguma utilidade aos que nos engenhos do assucar, nos partidos, e nas lavouras do tabaco, e nas minas do ouro experimentão favor do Céo com notavel augmento dos bens temporaes. Portanto com esta limitada offerta provoco aquella generosa liberalidade, que não consente ser rogada, por não parecer que dando quer vender beneficios. E ao mesmo Veneravel Padre José de Anchieta peço encarecidamente, que queira alcançar de Deos centuplicada remuneração, na terra e no Céo, a quem se determinar a promover com alguma esmola as suas honras, para que publicadas nos templos, e celebradas nos altares, accrescentem tambem maior gloria áquelle senhor bemfazejo. PRIMEIRA PARTE. CULTURA, E OPULENCIA DO BRAZIL NA LAVRA DO ASSUCAR ENGENHO REAL, MOENTE, E CORRENTE. TRATA-SE Do senhor do engenho de assucar, dos feitores, e outros officiaes, que nelle se occupão, suas obrigações, e salarios.--Da moenda, fabrica, e officinas do engenho, e do que em cada huma dellas se faz.--Da planta das cannas, sua conducção, e moagem: e de como se faz, purga, e encaixa o assucar no reconcavo da Bahia no Brazil para o Reino de Portugal, e seus emolumentos. PROEMIO. Quem chamou as officinas, em que se fabrica o assucar, engenhos, acertou verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê, e considera com reflexão, que merecem, he obrigado a confessar, que são huns dos principaes partos, e invenções do engenho humano, o qual como pequena porção do Divino, sempre se mostra no seu modo de obrar, admiravel. Dos engenhos huns se chamão reaes, outros inferiores vulgarmente engenhocas. Os reaes ganhárão este appelido, por terem todas as partes, de que se compoem, e todas as officinas perfeitas, cheias de grande numero de escravos, com muitos cannaveaes proprios, e outros obrigados á moenda: e principalmente por terem a realeza de moerem com agoa, á differença de outros, que móem com cavallos, e bois, e são menos providos, e apparelhados: ou pelo menos com menor perfeição, e largueza, das officinas necessarias, e com pouco numero de escravos, para fazerem como dizem, o engenho moente, e corrente. E porque algum dia folguei de ver hum dos mais afamados, que há no reconcavo á beira-mar da Bahia, á quem chamão o engenho de Sergipe do Conde; movido de huma louvavel curiosidade, procurei no espaço de oito, ou dez dias que ahi estive, tomar noticia de tudo o que o fazia tão celebrado, e quasi rei dos engenhos reaes. E valendo-me das informações, que me deu, quem o administrou mais de trinta annos com conhecida intelligencia, e com accrescentamento igual á industria: e da experiencia de hum famoso mestre de assucar, que cincoenta annos se occupou neste officio com venturoso successo; e dos mais officiaes de nome, aos quaes miudamente perguntei o que a cada qual pertencia; me resolvi a deixar neste borrão tudo aquillo, que na limitação do tempo sobredito apressadamente, mas com attenção ajuntei, e extendi com o mesmo estilo, e modo de fallar claro, e chão, que se usa nos engenhos: para que os que não sabem o que custa a doçura do assucar a quem o lavra, o conheção, e sintão menos dar por elle o preço que vale: e quem de novo entrar na administração de algum engenho, tenha estas noticias praticas, dirigidas a obrar com acerto; he o que em toda a occupação se deve desejar, e intentar. E para maior clareza, e ordem, reparti em varios capitulos tudo o que pertence a esta droga, e a quem por ella, e nella trabalha; começando, depois de relatar as obrigações de cada qual, desde a primeira origem do assucar na canna, até sua cabal perfeição nas caixas, conforme o meu limitado cabedal; que pelo menos servirá, para dar a outros de melhor capacidade, e penna mais ligeira, e bem aparada, algum estimulo de aperfeiçoar este embrião. E se alguem quizer saber o autor deste curioso, e util trabalho; elle he hum amigo do bem publico chamado: _O Anonymo Toscano_. LICENÇAS. DO SANTO OFFICIO. Ill.ᵐᵒ Sr.--Revi este livro intitulado CULTURA, E OPULENCIA DO BRAZIL, mencionado na petição acima, e sendo a obra de engenho, pela boa disposição, com que o seu autor o compôz, he muito merecedora da licença, que pede: porque por este meio saberáõ os que se quizerem passar ao estado do Brazil, o muito que custão as culturas do assucar, tabaco, e ouro, que são mais doces de possuir no Reino, que de cavar no Brazil. Não contém este livro cousa, que seja contra a nossa santa fé, ou bons costumes, e por isso se póde estampar com letras de ouro. Este he o meu parecer, que ponho aos pés de Vossa Illustrissima, para mandar fazer o que fôr servido. S. Anna de Lisboa, em 8 de Novembro de 1710.--_Fr. Paulo de S. Boaventura._ * * * * * Não contém este tratado cousa suspeitosa contra a nossa santa fé, e pureza dos bons costumes, e assim sendo Vossa Illustrissima servido póde conceder a licença, que pede o autor. Trindade, 30 de Novembro de 1710.--_Fr. Manoel da Conceição._ * * * * * Vistas as informações, póde-se imprimir o livro intitulado, Cultura, e Opulencia do Brazil, e impresso tornará para se conferir. Lisboa, 5 de Dezembro de 1710.--_Moniz._--_Hasse._--_Monteiro._--_Ribeiro._--_Fr. Encarnação._--_Rocha._--_Barreto._ DO ORDINARIO. Póde-se imprimir o livro intitulado, Cultura, e Opulencia do Brazil, e impresso torne para se conferir, e dar licença que corra, e sem ella não correrá. Lisboa, 12 de Dezembro de 1710.--_B. de Tagaste._ DO PAÇO. Senhor, vi o livro, que Vossa Magestade foi servido remetter-me, seu autor André João Antonil; e sobre não achar nelle cousa, que encontre o real serviço de Vossa Magestade, me parece será muito util para o commercio: porque despertará as diligencias, e incitará a que se procurem tão faceis interesses. Julgo-o muito digno da licença que pede. Vossa Magestade ordenará o que fôr servido. S. Domingos de Lisboa, 15 de Janeiro de 1711.--_Fr. Manoel Guilherme._ * * * * * Que se possa imprimir, vistas as licenças do Santo Officio, e Ordinario, e depois de impresso tornará á Mesa para se conferir, e taxar, e sem isso não correrá. Lisboa, 17 de Janeiro de 1711.--_Oliveira._--_Lacerda._--_Carneiro._--_Botelho._--_Costa._ LIVRO PRIMEIRO. CAPITULO PRIMEIRO. Do cabedal que hade ter o senhor de hum engenho real. O ser senhor de engenho, he titulo, a que muitos aspirão, porque traz comsigo, o ser servido, obedecido, e respeitado de muitos. E se fôr, qual deve ser, homem de cabedal, e governo; bem se póde estimar no Brazil o ser senhor de engenho, quanto proporcionadamente se estimão os titulos entre os fidalgos do Reino. Porque engenhos há na Bahia, que dão ao senhor quatro mil pães de assucar, e outros pouco menos, com canna obrigada á moenda, de cujo rendimento logra o engenho ao menos a metade, como de qualquer outra, que nelle livremente se móe: e em algumas partes ainda mais que a metade. Dos senhores dependem os lavradores, que tem partidos arrendados em terras do mesmo engenho, como os cidadãos dos fidalgos: e quanto os senhores são mais possantes, e bem apparelhados de todo o necessario, affaveis, e verdadeiros; tanto mais são procurados, ainda dos que não tem a canna captiva, ou por antiga obrigação, ou por preço que para isso recebêrão. Servem ao senhor de engenho em varios officios, além dos escravos de enchada, e fouce, que tem nas fazendas, e na moenda, e fóra os mulatos e mulatas, negros e negras de casa, ou occupados em outras partes; barqueiros, canoeiros, calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores. Tem mais cada senhor destes necessariamente hum mestre de assucar, hum banqueiro, e hum contra-banqueiro, hum purgador, hum caixeiro no engenho, e outro na cidade, feitores nos partidos, e roças, hum feitor mór do engenho: e para o espiritual, hum sacerdote seu capellão; e cada qual destes officiaes tem soldada. Toda a escravatura (que nos maiores engenhos passa o numero de cento e cincoenta, a duzentas peças, contando as dos partidos), quer mantimentos, e fardas, medicamentos, enfermaria, e enfermeiro; e para isso são necessarias roças de muitas mil covas de mandioca. Querem os barcos, velames, cabos, cordas, e breo. Querem as fornalhas, que por sete, ou oito mezes ardem de dia, e de noite, muita lenha; e para isso he mister dous barcos velejados, para se buscar nos portos, indo hum atraz do outro sem parar, e muito dinheiro para a comprar; ou grandes matos, com muitos carros, e muitas juntas de boi para se trazer. Querem os cannaveaes tambem suas barcas, e carros com dobradas esquipações de bois. Querem enchadas, e fouces. Querem as serrarias machados, e serras. Quer a moenda de toda a casta de páos de lei de sobrecelente, e muitos quintaes de aço, e de ferro. Quer a carpintaria madeiras selectas e fortes para esteios, vigas, aspas, e rodas; e pelo menos os instrumentos mais usuaes, a saber; serras, trados, verrumas, compaços, regoas, escropros, enchós, goivas, machados, martelos, cantins, e junteiras, pregos, e plainas. Quer a fabrica do assucar pharóes, e caldeiras, tachas e bacias, e outros muitos instrumentos menores, todos de cobre; cujo preço passa de oito mil cruzados, ainda quando se vende, não tão caro, como nos annos presentes. São finalmente necessarias além das sanzallas dos escravos, e além das moradas do capellão, feitores, mestre, purgador, banqueiro, e caixeiro, huma capella decente com seus ornamentos, todo o apparelho do altar, e humas casas para o senhor do engenho com seu quarto separado para os hospedes, que no Brazil, falto totalmente de estalagens, são continuos; e o edificio do engenho, forte e espaçoso, com as mais officinas, e casa de purgar, caixaria, alambique, e outras cousas, que por miudas aqui se escusa aponta-las, e dellas se fallará. O que tudo bem considerado, assim como obriga a huns homens de bastante cabedal, e de bom juizo, a quererem antes serem lavradores possantes de canna com hum, ou dous partidos de mil pães de assucar, com trinta, ou quarenta escravos de enchada, e fouce; do que senhores de engenhos por poucos annos com a lida, e attenção que pede o governo de toda essa fabrica; assim he para pasmar como hoje se atrevem tantos a levantar engenhocas, tanto que chegárão a ter algum numero de escravos, e achárão quem lhes emprestasse alguma quantidade de dinheiro para começar a tratar de huma obra, de que não são capazes por falta de governo, e diligencia; e muito mais por ficarem logo na primeira safra tão empenhados com dividas, que na segunda, ou terceira já se declarão perdidos: sendo juntamente causa, que os que fiárão delles, dando-lhes fazenda e dinheiro, tambem quebrem, e que outros zombem da sua mal fundada presumpção, que tão depressa converteu em palha seca aquella primeira verdura de huma apparente, mas enganosa esperança. E ainda que nem todos os engenhos sejão reaes, nem todos puxem por tantos gastos, quantos até aqui temos apontado: comtudo, entenda cada qual, que com as mortes, e com as secas que de improvizo apertão, emirrão a canna, e com os desastres, que a cada passo succedem, crescem os gastos mais do que se cuidava. Entenda tambem, que os pedreiros, e carapinas, e outros officiaes desejosos de ganhar a custa alheia, lhe facilitaráõ tudo de tal sorte, que lhe parecerá o mesmo levantar hum engenho, que huma sanzalla de negros; e quando começar a ajuntar os aviamentos, achará ter já despendido tudo quanto tinha antes de se pôr pedra sobre pedra, e não terá com que pagar as soldadas, crescendo de improvizo os gastos, como se fossem por causa das enxurradas dos rios. Tambem se não tiver capacidade, modo, e agencia que se requer na boa disposição e governo de tudo, na eleição dos feitores, e officiaes, na boa correspondencia com os lavradores, no trato da gente sujeita na conservação, e lavoura das terras, que possue, e na verdade e pontualidade com os mercadores, e outros seus correspondentes na praça, achará confusão, e ignorancia no titulo de senhor de engenho, donde esperava acrescentamento de estimação, e de credito. Por isso, tendo já fallado do que pertenceu ao cabedal, que ha de ter, tratarei agora de como se ha de haver no governo; e primeiramente da compra, e conservação das terras, e seus arrendamentos aos lavradores que tem; e logo da eleição dos officiaes que hade admittir ao seu serviço, apontando as obrigações, e as soldadas de cada hum delles, conforme o estilo dos engenhos reaes da Bahia, e ultimamente do governo domestico da sua familia, filhos, e escravos; recebimento dos hospedes, e pontualidade em dar satisfação a quem deve; do que depende a conservação do seu credito, que he o melhor cabedal dos que se presão de honrados. CAPITULO II. Como se hade haver o senhor de engenho na compra, e na conservação das terras, e nos arrendamentos dellas. Se o senhor de engenho não conhecer a qualidade das terras, comprará salões por massapés, e apicús por salões. Por isso valha-se das informações dos lavradores mais entendidos, e attente não sómente a barateza do preço, mas tambem a todas as conveniencias, que se hão de buscar para ter fazenda com cannaveaes, pastos, agoas, roças e matos; e em falta destes, commodidade para ter a lenha mais perto que puder ser, e para escusar outros inconvenientes, que os velhos lhe poderão apontar, que são os mestres a quem ensinou o tempo, e a experiencia, o que os moços ignorão. Muitos vendem as terras que tem, por cançadas, ou falta de lenha; outros porque se não atrevem a ouvir tantos recados semelhantes aos que se davão a Job, do partido queimado, dos bois atolados, dos escravos mortos, e do assucar perdido. Outros obrigados a vender contra vontade por causa dos acredores, que os apertão, bem póde ser que offereção terras novas, e fortes; porém o comprador corre então outro risco de comprar demandas eternas pelas obrigações, e hypothecas, a que estão por repetidas vezes sujeitas. Por tanto, nesse caso falle o comprador com os letrados; pergunte aos acredores, que he o que pretendem, e se fôr necessario com autoridade do Juiz, cite a todos para saber o que na verdade se deve, nem conclua a compra, antes de ver com seus olhos, que he o que compra, que titulos de dominio tem o vendedor, e se os ditos bens são vinculados, ou livres; e se tem parte nelles orfãos, mosteiros, ou igrejas, para que se não falte ao fazer da escriptura a alguma condição, ou solemnidade necessaria. Veja tambem as demarcações das terras, se forão medidas por justiça, e se os marcos estão em ser, ou se ha mister avivental-os; que taes são os cohereos, a saber se amigos de justiça, de verdade e de paz, ou pelo contrario trapasseiros, desenquietos, e violentos, porque não ha peior peste que hum máo visinho. Feita a compra não falte a seu tempo a palavra que deu, pague e seja pontual nesta parte, e se attende a conservação, e melhoramento do que comprou, e principalmente use de toda a diligencia para defender os marcos e as aguas de que necessita para moer o seu engenho; e mostre aos filhos, e aos feitores os ditos marcos para que saibão o que lhes pertence, e possão evitar demandas, e pleitos, que são huma continua desenquietação d’alma, e hum continuo sangrador de rios de dinheiro, que vai a entrar nas casas dos Advogados, Solicitadores, e Escrivães, com pouco proveito de quem promove o pleito, ainda quando alcança, depois de tantos gastos, e desgostos, em seu favor a sentença. Nem deixe os papeis, e as escripturas que tem na caixa da mulher, ou sobre huma mesa exposta ao pó, ao vento, á traça, e ao cupim; para que depois não seja necessario mandar dizer muitas missas a Santo Antonio, para achar algum papel importante que desappareceu, quando houver mister exhibi-lo. Porque lhe acontecerá que a criada, ou serva tire duas, ou tres folhas da caixa da senhora, para embrulhar com ellas o que mais lhe agradar: e o filho mais pequeno tirará tambem algumas da mesa, para pintar carretas, ou para fazer barquinhos de papel, em que naveguem moscas, e grillos, ou finalmente o vento fará que vôem fóra da casa sem pennas. Para ter lavradores obrigados ao engenho, he necessario passar-lhes arrendamento das terras, em que hão de plantar. Estes costumão fazer-se por nove annos, e hum de despejo, com a obrigação de deixarem plantadas tantas tarefas de canna: ou por desoito annos, e mais, com as obrigações, e numero de tarefas, que assentarem, conforme o costume da terra. Porém ha de se advertir, que os que pedem arrendamento, sejão fazendeiros, e não destruidores da fazenda; de sorte que sejão de proveito, e não de damno. E na escriptura do arrendamento se hão de pôr as condições necessarias: v. g., que não tirem páos reaes, que não admittão outros em seu lugar nas terras, que arrendão, sem consentimento do senhor dellas, e outras que se julgarem necessarias, para que algum delles mais confiado de lavrador, se não faça logo senhor. E para isso seria boa prevenção, ter huma formula, ou nota de arrendamento, feita por algum Letrado dos mais experimentados, com declaração de como se haverão, despejando, ácerca das bemfeitorias; porque o fim do tempo do arrendamento não seja principio de demandas eternas. CAPITULO III. Como se hade haver o senhor do engenho com os lavradores, e outros visinhos, e estes com o senhor. O ter muita fazenda cria, commummente, nos homens ricos, e poderosos desprezo da gente mais pobre, e por isso Deos facilmente lh’a tira, para que se não sirvão della para crescer em soberba. Quem chegou a ter titulo de senhor, parece que em todos quer dependencia de servos. E isto principalmente se vê em alguns senhores, que tem lavradores em terras do engenho, ou de canna, obrigados a moer nelle, tratando-os com altivez, e arrogancia. Donde nasce o serem malquistos, e murmurados dos que os não podem soffrer, e que muitos se alegrem com as perdas, e desastres que de repente padecem, pedindo os miseraveis, opprimidos a cada passo, justiça a Deos, por se verem tão vexados, e desejando ver os seus oppressores humilhados, para que aprendão a não tratar mal os humildes; assim como o medico deseja, e procura tirar fóra a malignidade, e abundancia do umor peccante, que faz o corpo indisposto, e doente, para lhe dar desta sorte não sómente vida, mas tambem perfeita saude. Nada pois tenha o senhor de engenho de altivo, nada de arrogante, e soberbo: antes seja muito affavel com todos, e olhe para os seus lavradores, como para verdadeiros amigos; pois taes são na verdade quando se desentrenhão para trazerem os seus partidos bem plantados, e limpos, com grande emolumento do engenho, e dei-lhes todo o adjuctorio que poder, em seus apertos, assim com a autoridade como com a fazenda. Nem ponha menor cuidado em ser muito justo, e verdadeiro, quando chegar o tempo de moer a canna, e de fazer, e encaixar os assucares, porque não seria justiça tomar para si nos dias de moer, que deve dar aos lavradores por seu turno, ou dar a hum mais dias que a outro, ou misturar o assucar que se fez de hum lavrador, com o da tarefa de outro, ou escolher para si o melhor, e dar ao lavrador o somenos. E para evitar estas duvidas, e qualquer outra suspeita semelhante, avise ou mande avisar com tempo a quem por direito se segue, para que possa cortar, e carrear a canna, e tê-la na moenda ao seu dia, e haja nas formas seu signal, para que se destingão das outras. Nem estranhe que os lavradores queirão ver no tendal, e casa de purgar, no balcão, e casa de encaixar ao seu assucar; pois tanto lhes custou chegal-o a pôr nesse estado, e tanta amargura precedeo a esta limitada doçura. Tambem seria signal de ter ruim coração, fazer má visinhança aos que moem a canna livre em outros engenhos, só porque não moem no seu, nem ter boa correspondencia com os senhores de outros engenhos, só porque cada qual delles folga de moer tanto, e como outro, ou porque a algum delles lhe vai melhor, e com menos gasto, sem perdas. E se a inveja entre os primeiros irmãos, que houve no mundo, foi tão arrojada, que chegou a ensanguentar as mãos de Caim com sangue de Abel, porque Abel levava a benção do Céo, e Caim não, por sua culpa; quem duvida que se poderia chegar a renovar semelhantes tragedias ainda hoje entre os parentes? pois ha no Brazil muitas paragens, em que os senhores de engenho são entre si muito chegados por sangue, e pouco unidos por caridade, sendo o interesse a causa de toda a discordia, e bastando talvez hum páo que se tire, ou hum boi que entre em hum cannaveal por descuido, para declarar o odio escondido, e para armar demandas e pendencias mortaes? O unico remedio pois para atalhar pesados desgostos, he haver-se com toda a urbanidade e primor, pedindo licença para tudo, cada vez que fôr necessario valer-se do que tem os visinhos, e persuadir-se que, se negão o que pede, será porque a necessidade os obriga. E quando ainda se conhecesse que o negar-se he por desprimor, a verdadeira, e mais nobre vingança será, dar logo a quem negou o que se pedio, na primeira occasião, dobrado do que pede, para que desta sorte cahia por bom modo na côta de como devia proceder. Sobre todos porém os que se devem haver com maior respeito para com o senhor do engenho, são os lavradores, que tem partidos obrigados á sua moenda, e muito mais os que lavrão em terras, que os senhores lhes tem arrendado, particularmente quando desta sorte começárão sua vida, e chegárão por esta via a ter cabedal; porque a ingratidão, e o faltar ao respeito e cortesia devida, he nota digna de ser muito estranhada, e hum agradecimento obsequioso cativa os animos de todos com correntes de ouro. Porém, este respeito nunca ha de ser tal que incline á obra contra justiça, principalmente quando forem induzidos a fazer cousa contraria á lei de Deos; como seria, a jurar em demandas crimes ou civeis contra a verdade, e pôr-se mal com os que com razão se defendem. E o que tenho dito dos senhores do engenho, digo tambem das senhoras, as quaes, posto que mereção maior respeito das outras, não hão de presumir que devem ser tratadas como rainhas, nem que as mulheres dos lavradores hão de ser suas criadas, e apparecer entre ellas como a lua entre as estrellas menores. CAPITULO IV. Como se hade haver o senhor do engenho na eleição das pessoas, e officiaes que admittir ao seu serviço, e primeiramente da eleição do capellão. Se em alguma cousa mais que em outra ha de mostrar o senhor do engenho a sua capacidade e prudencia, esta sem duvida he a boa eleição das pessoas, e officiaes que ha de admittir ao seu serviço, para o bom governo do engenho. Porque, sendo a eleição filha da prudencia, com razão se arguirá de imprudente quem escolher pessoas, ou de ruim vida, ou ineptas para o que hão de fazer. Claro está que huns, com a ruim vida, desagradaráõ a Deos, e aos homens, e seráõ causa de muitos e bem pesados desgostos; e outros, com a ineptidão, causaráõ damno não ordinario á fazenda. E isto lhe poderáõ extranhar com razão, não só os de casa, por mais chegados a queimar-se, ou a chammuscar-se com o seu trato, mas tambem os de fóra, e principalmente os lavradores, obrigados a experimentar sem culpa os prejuizos, que se seguem ao seu mallogrado suor, do não saberem os officiaes o que requer o seu officio. O primeiro que se ha de escolher com circunspecção, e informação secreta do seu procedimento e saber, he o capellão, a quem se ha de encommendar o ensino de tudo o que pertence á vida christã, para, desta sorte, satisfazer á maior das obrigações que tem, a qual he doutrinar, ou mandar doutrinar a familia e escravos, não já por hum crioulo, ou por hum feitor, que, quando muito, poderá ensinar-lhes vocalmente as orações, e os mandamentos da lei de Deos, e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão de crer, o que hão de obrar, e como hão de pedir a Deos aquillo, de que necessitão. E para isso, se fôr necessario dar ao capellão alguma cousa mais do que se costuma, entenda que este será o melhor dinheiro que se dará em boa mão. Tem pois o capellão obrigação de dizer missa na capella do engenho nos Domingos, e dias santos, ficando-lhe livre a applicação das missas nos outros dias da semana por quem quizer, salvo se se concertar de outra sorte com o senhor da capella, recebendo estipendio proporcionado ao trabalho. E nos mesmos Domingos, e dias santos, ou pelo menos nos Domingos, se se admittir com esta obrigação, explicará a doutrina christã; a saber, os principaes mysterios da Fé, e o que Deos, e a Santa Igreja mandão que se guarde. Quão grande mal he o peccado mortal; que pena lhe tem Deos aparelhado nesta, e na outra vida, aonde a alma vive, e vivirá immortalmente. Que remedio nos deu Deos na encarnação, e morte de Jesus-Christo, seu santissimo filho, para que se nos perdoassem assim as culpas, como as penas, que pelas culpas se devem pagar. De que modo havemos de confessar os peccados, e pedir a Deos perdão delles, com verdadeiro arrependimento, e proposito firme de não tornar a commettê-los, ajudados da graça divina. Em que consiste fazer penitencia de seus peccados. Quem está no Santissimo Sacramento do Altar; porque está ahi, e se recebe; com que disposição se ha de receber em vida, e por viatico na doença mortal. Quanto importa ganhar as indulgencias, para descontar o que se deve pagar no Purgatorio. Como cada qual se ha de encommendar a Deos, para não cahir em peccado, e offerecer-lhe pela manhã todo o trabalho do dia. Quanto são dignos de abominação os feiticeiros, e curadores de palavras, e os que a elles recorrem, deixando a Deos, de quem vem todo o remedio; os que dão peçonha, ou bebidas (como dizem), para abrandar, e inclinar vontades; os borrachos, os amancebados, os ladrões, os vingativos, os murmuradores, e os que jurão falso, ou por malignidade, ou por interesse, ou por respeitos humanos. E finalmente, que premio, e que pena ha de dar Deos eternamente a cada qual, conforme obrou nesta vida. Procurará tambem a approvação para ouvir de confissão aos seus applicados, e para que, sendo sacerdote e ministro de Deos, lhes possa servir frequentemente de remedio; não se contentando só com acudir no artigo da morte aos doentes. Mas advirta, na administração deste sacramento, que não he senhor delle, por muita autoridade que tenha; porque, se o penitente não fôr disposto, por causa de estar amancebado, ou andar com odio do proximo, ou por não tratar de restituir a fama, ou a fazenda que deve, ainda que fosse o mesmo senhor do engenho, o não ha de absolver; e nisto poderia haver, por respeito humano, grande encargo de consciencia, e culpa bem grave. Corre tambem por sua conta pôr a todos em paz, atalhar discordias, e procurar que na capella, em que existe, seja Deos honrado, e a Virgem Senhora Nossa, cantando-lhes nos Sabbados as Ladainhas, e nos mezes em que o engenho não móe, o terço do Rosario; não consentindo risadas, nem conversações e praticas indecentes, não só na capella, mas nem ainda no copiar, particularmente quando se celebra o sacrificio da missa. Advirta, além disto, de não receber noivos, nem baptizar, fóra de algum caso de necessidade, nem desobrigar na Quaresma pessoa alguma, sem licença _in scriptis_ do Vigario, a quem pertencer da-la; nem fazer cousa que toque a jurisdicção dos Parochos, para que não incorra nas penas e censuras que sobre isso são decretadas, e debalde se queixe do seu descuido, ou ignorancia. Finalmente faça muito por morar fóra da casa do senhor do engenho porque assim convém a ambos; pois he sacerdote, e não criado, familiar de Deos, e não de outro homem, nem tenha em casa escrava para seu serviço, que não seja adiantada em idade, nem se faça mercador ao Divino, ou ao humano, porque tudo isto muito se oppõe ao estado clerical, que professa, e se lhe prohibe por varios Summos Pontifices. O que se costuma dar ao capellão cada anno pelo trabalho quando tem as missas de semana livres, são quarenta, ou cincoenta mil réis, e com o que lhe dão os applicados, vem a fazer huma porção competente, bem ganhada, se guardar tudo o que acima está dito. E se houver de ensinar aos filhos do senhor do engenho, se lhe accrescentará o que fôr justo, e correspondente ao trabalho. No dia em que se bota a canna a moer, se o senhor do engenho não convidar ao vigario, o capellão benzerá o engenho, e pedirá a Deos, que dê bom rendimento, e livre aos que nelle trabalhão de todo o desastre. E quando no fim da safra o engenho pejar, procurará que todos dêem a Deos as graças na capella. CAPITULO V. Do feitor mór do engenho, e dos outros feitores menores, que assistem á moenda, fazendas, e partidos da canna, suas obrigações, e soldadas. Os braços, de que se vale o senhor do engenho para o bom governo da gente, e da fazenda, são os feitores. Porém, se cada hum delles quizer ser cabeça, será o governo monstruoso, e hum verdadeiro retrato do cão Cerbero, a quem os poetas fabulosamente dão tres cabeças. Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores, digo que esta autoridade ha de ser bem ordenada, e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajão com subordinação ao maior, e todos ao senhor a quem servem. Convém que os escravos se persuadão que o feitor mór tem muito poder para lhes mandar, e para os reprehender, e castigar quando fôr necessario; porém de tal sorte que tambem saibão, que podem recorrer ao senhor, e que hão de ser ouvidos como pede a justiça. Nem os outros feitores por terem mando hão de crer que os seus poderes não são restringidos, nem limitados, principalmente no que he castigar, e prender. Portanto, o senhor ha de declarar muito bem a autoridade, que dá a cada hum delles, e mais ao maior; e se excederem, ha de puxar pelas redeas com a reprehensão que os excessos merecem, mas não diante dos escravos para que outra vez se não levantem contra o feitor, e este leve a mal de ser reprehendido diante delles, e se não atreva a governa-los. Só bastará que por terceira pessoa se faça entender ao escravo, que padeceu, e alguns outros dos mais antigos da fazenda, que o senhor estranhou muito ao feitor o excesso que commetteu, e que, quando se não emende, o ha de despedir directamente. Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres, que andão pejadas, nem dar com páo nos escravos, porque na colera se não medem os golpes, e podem ferir mortalmente na cabeça a hum escravo de prestimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo. Reprehendê-los, e chegar-lhes com hum cipó ás costas com algumas varancadas, he o que se lhes póde, e deve permittir para ensino. Prender os fugitivos, e os que brigárão com feridas, ou se embebedárão, para que o senhor os mande castigar como merecem, he diligencia digna de louvor. Porém, amarrar, e castigar com cipó até correr o sangue, e metter em tronco ou em huma corrente por mezes, (estando o senhor na cidade), a escrava que não quiz consentir no peccado, ou ao escravo que deu fielmente conta da infidelidade, violencia, e crueldade do feitor, que para isso armar delictos fingidos, isto de nenhum modo se ha de soffrer, porque seria ter hum lobo carneceiro, e não hum feitor moderado, e christão. Obrigação do feitor mór do engenho he governar a gente, e reparti-la a seu tempo, como he bem para o serviço. A elle pertence saber do senhor, a quem se ha de avisar, para que corte a canna, e mandar-lhe logo recado. Tratar de aviar logo os barcos, e os carros para buscar a canna, formas, e lenha. Dar conta ao senhor de tudo o que he necessario para o apparelho do engenho, antes de começar a moer, e logo acabada a safra, arrumar tudo em seu lugar. Vigiar que ninguem falte a sua obrigação, e acudir de pressa a qualquer desastre, que succeda, para lhe dar quanto puder ser o remedio. Adoecendo qualquer escravo deve livra-lo do trabalho, e pôr outro em seu lugar, e dar parte ao senhor para que trate de o mandar curar, e ao capellão para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os mais sacramentos para morrer. Advirta que se não mettão no carro os bois, que trabalhárão muito no dia antecedente, e que em todo o serviço, assim como se dá algum descanço aos bois, e aos cavallos, assim se dê, e com maior razão por suas esquipações, aos escravos. O feitor da moenda chama a seu tempo as escravas, recebe a canna, e a manda vir, e metter bem nos eixos, e tirar o bagaço, attendendo que as negras não durmão, pelo perigo que ha de ficarem presas, e moidas, se lhes não cortarem as mãos, quando isto succeda, e mandando juntamente divertir a agoa da roda para que pare. Procura que de vinte e quatro, a vinte e quatro horas se lave a moenda, e que o caldo vá limpo, e se guinde para o parol. Pergunta quando o caldo ha mister nas caldeiras, para que saiba com este aviso se ha de moer mais canna, ou parar até que se dê vasão para que se não azede o que está no parol. Os feitores, que estão nos partidos, e mais fazendas, tem á sua conta defender as terras, e avisar logo ao senhor se há quem se metta dentro das roças, cannaveaes, e matos para tomar o que não he seu. Assistir aonde os escravos trabalhão para que se faça o serviço como he bem. Saber os tempos de plantar, e cortar a canna, e de fazer roças. Conhecer a diversidade das terras que há para servir-se dellas, para o que forem capazes de dar. Tomar a cada escravo a tarefa, e as mãos que he obrigado entregar. Attentar para os caminhos dos carros, que sejão taes, que por elles se possa conduzir a canna, e a lenha, de sorte que não fiquem na lama, e que tambem os carros se concertem quando fôr necessario. Ver que cada escravo tenha fouce, e enchada, e o mais que he mister para o serviço. E esteja muito attento que se não pegue o fogo nos cannaveaes por descuido dos negros boçaes, que ás vezes deixão ao vento o tição de fogo, que levárão comsigo para usarem do caximbo; e em vendo qualquer lavareda acuda-lhe logo com toda a gente, e corte com fouces o caminho á chamma, que vai crescendo com grande perigo de se perderem em meia hora muitas tarefas de canna. Ainda que se saiba a tarefa de canna, que hum negro ha de plantar em hum dia, e a que ha de cortar, quantas covas de mandioca ha de fazer, e arrancar, e que medida de lenha ha de dar, como se dirá em seu lugar, comtudo bom he attentar os feitores a idade, e as forças de cada qual para diminuirem o trabalho aos que elles manifestamente vêem, que não podem com tanto, como são as mulheres pejadas depois de seis mezes, e as que ha pouco que parírão, e crião, os velhos, e as velhas, e os que sahírão ainda convalescentes de alguma grave doença. Ao feitor mór, dão nos engenhos reaes sessenta mil réis. Ao feitor da moenda, onde se móe por sete, a oito mezes, quarenta, ou cincoenta mil réis, particularmente se se lhe encommenda algum outro serviço; mas aonde há menos que fazer, e não se occupa em outra cousa, dão trinta mil réis. Aos que assistem nos partidos e fazendas, tambem hoje aonde a lida he grande, dão quarenta ou quarenta e cinco mil réis. CAPITULO VI. Do mestre do assucar, e soto-mestre a quem chamão banqueiro, e do seu ajudante, a quem chamão ajuda-banqueiro. A quem faz o assucar com razão se dá o nome de mestre, porque o seu obrar pede intelligencia, attenção, e experiencia, e esta não basta que seja qualquer, mas he necessaria a experiencia local, a saber; do lugar, e qualidade da canna aonde se planta, e se móe porque os cannaveaes de huma parte dão canna muito forte, e da outra muito fraca. Diverso çumo tem as cannas das varzeas, do que tem as dos outeiros, as das varzeas vem muito agoacentas, e o caldo dellas tem muito que purgar nas caldeiras, e pede mais decoada; a dos oiteiros, vem bem assucarada, e seu caldo pede menos tempo, e menos decoada para se purificar, e clarificar. Nas taxas há melado, que quer maior cozimento, e há outro de menor; hum logo se condensa na batedeira, outro mais devagar. Das tres temperas, que se hão de fazer para encher as fôrmas, depende purgar-se o assucar bem, ou mal, conforme ellas são. Se o mestre se fiar dos caldeireiros, e dos taxeiros, humas vezes cançados, outras sonorentes, e outras alegres mais do que convém, e com a cabeça esquentada, acontecer-lhe-ha ver perdida huma, e outra meladura, sem lhe poder dar remedio. Por isso vigie em cousa de tanta importancia: e se o banqueiro, e o ajuda-banqueiro não tiver a intelligencia, e experiencia necessaria para supprirem em sua ausencia, não descance sobre elles: ensine-os, avise-os, e, se fôr necessario, reprehenda-os, pondo-lhes diante dos olhos o prejuizo do senhor do engenho, e dos lavradores, se se perder o melado das taxas, ou se fôr mal temperado para as fôrmas. Veja que o feitor da moenda modere de tal sorte o moer, que lhe não venha ao parol mais caldo do que he mister, para lhe poder dar vasão antes que se comece a azedar, purgando-o, cozendo-o e batendo-o quanto he necessario. Antes de se botar a decoada nas caldeiras do caldo, experimente, que tal ella he; e depois veja, como os caldeireiros a botão, e quando hão de parar: nem consinta, que a meladura se cóe antes de ver se o caldo tem boa purificação, como ha de ser: e o mesmo digo da passagem de huma para outra taxa, quando se ha de cozer, e bater: sendo a alma de tudo o bom successo a diligente attenção. A justiça, e a verdade o obrigão a não misturar o assucar de hum lavrador com o do outro: e por isso nas fôrmas, que manda pôr no tendal, faça, que haja sinal com que se possão distinguir das outras, que pertencem a outros donos, para que o meu, e o teu, inimigos da paz, não seja causa de bulhas. E para que a sua obra seja perfeita, tenha boa correspondencia com o feitor da moenda, que lhe envia o caldo; com o banqueiro, e soto-banqueiro, que lhe succedem de noite no officio; e com o purgador do assucar; para que vejão juntamente donde nasce o purgar bem, ou mal, em as fôrmas: e sejão entre si como os olhos que igualmente vigião; e como as mãos que unidamente trabalhão. O que até agora está dito, pertence em grande parte ao banqueiro tambem, que he o soto-mestre, e ao soto-banqueiro seu ajudante. E além disso pertence a estes dous officiaes ter cuidado do tendal das fôrmas, do tapar-lhes os buracos, cavar-lhes as covas de bagaço com cavadores, endireita-las, e botar nellas o assucar feito com as tres temperas, das quaes se fallará em seu lugar: e depois de tres dias envia-las para a casa de purgar, ou sobre paviolas, ou ás costas dos negros para que o purgador trate dellas. Devem tambem procurar, que se faça a repartição justa dos claros entre os escravos, conforme o senhor ordenar, e que nesta casa haja toda a limpeza, e claridade, agoa, decoada, e todos os instrumentos, dos quaes nella se usa. E ao mestre pertence ver, antes de começar o engenho a moer, se os fundos das caldeiras e das taxas tem necessidade de se fazerem; e se os assentos dellas pedem novo, e mais firme concerto. A soldada do mestre do assucar nos engenhos, que fazem quatro ou cinco mil pães, particularmente se elle visita tambem a casa de purgar, he de cento e vinte mil réis: em outros dão-lhe só cem mil réis. Aos banqueiros nos maiores, quarenta mil réis; nos menores, trinta mil réis. Ao soto-banqueiro, (que commummente he algum mulato ou crioulo escravo da casa) dá-se tambem no fim da safra algum mimo, se servio com satisfação no seu officio; para que a esperança deste limitado premio o alente novamente para o trabalho. CAPITULO VII. Do purgador do assucar. Ao purgador do assucar pertence ver o barro, que vem para o girão a secar-se para o cimeiro, se he qual deve ser, como se dirá em seu lugar: olhar para o amassador, se anda como deve, com o rodo no cocho, forrar os pães nas fôrmas, e levanta-las. Conhecer quando o assucar está enchuto, e quando he tempo de lhe botar o primeiro barro; como este se ha de estender, e quanto tempo se ha de deixar, antes de se lhe botar o segundo: como se lhe hão de dar as humidades, ou lavagens, e quantas se lhe hão de dar; quaes são os sinaes de purgar, ou não purgar bem o assucar, conforme as diversas qualidades, e temperas. A elle tambem pertence ter cuidado dos meles, ajunta-los, corrê-los, e fazer delles batidos; ou guarda-los, para fazer agoardente. Deve juntamente usar de toda a diligencia para que se não sujem os tanques do mel; e de alguma industria para afugentar aos morcegos, que commummente são a praga quasi de todas as casas de purgar. Ao purgador de quatro mil pães de assucar, dá-se soldada de cincoenta mil réis. Aos que tem menos trabalho dá-se tambem menos, com a devida proporção. CAPITULO VIII. Do caixeiro do engenho. O que aqui se dirá não pertence ao caixeiro da cidade, porque este trata só de receber o assucar, já encaixado, de o mandar ao Trapiche, de o vender ou embarcar, conforme o senhor do engenho o ordenar, e tem livro da razão de dar e haver, ajusta as contas, e serve de agente, contador, procurador, e depositario de seu amo; ao qual, se a lida he grande, da-se soldada de quarenta ou cincoenta mil réis. Fallo aqui do caixeiro que encaixa o assucar, depois de purgado. E sua obrigação he mandar tirar o assucar das formas, estando já purgado, e enxuto, em dias claros e de sol; assistir quando se mascava, e que o reparte com fidelidade entre os lavradores e o senhor do engenho; e tira o dizimo, que se deve a Deos, e a vintena, ou quinto que pagão os que lavrão em terras do engenho, conforme o concerto feito nos arrendamentos, e o estilo ordinario da terra, o qual em varios lugares he diverso; e tudo assenta, para dar conta exactamente de tudo. A elle tambem pertence levantar as caixas, e manda-las barrear nos cantos, encaixar e mandar pilar o assucar, com a divisão do branco, macho, batido, e mascavado; fazer as caras e os fechos, quando assim lh’o encommendarem os donos do assucar; finalmente, pregar e marcar as caixas, e guardar o assucar que sobejou, para seus donos, em lugar seguro e não humido, e os instrumentos de que usa. Entrega as caixas, quando se hão de embarcar, com ordem de quem as arrecada, ou como dono dellas, ou porque as alcançou por justiça, como muitas vezes acontece, fazendo os credores penhora no assucar dos devedores, antes que sáhia do engenho, e de tudo pedirá recibo e clareza, para poder dar conta de si a quem lh’a pedir. A soldada do caixeiro, nos engenhos maiores, he de quarenta mil réis, e se feitoriza alguma cousa na parte do dia ou da noite, dão-se-lhe cincoenta mil réis: nos engenhos menores, dão trinta mil réis. CAPITULO IX. Como se hade haver o senhor de engenho com seus escravos. Os escravos são as mãos, e os pés do senhor do engenho; porque sem elles no Brazil não he possivel fazer, conservar, e augmentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, com que se ha com elles, depende tê-los bons, ou máos para o serviço. Por isso he necessario comprar cada anno algumas peças, e repartî-las pelos partidos, roças, serrarias, e barcas. E porque commummente são de nações diversas, e huns mais boçaes que outros, e de figuras muito differentes, se hade fazer repartição com reparo, e escolha, e não ás cegas. Os que vem para o Brazil são Ardas, Minas, Congos, de S. Thomé, d’Angola, de Cabo Verde, e alguns de Moçambique, que vem nas náos da India. Os Ardas, e os Minas são robustos. Os de Cabo Verde, e S. Thomé, são mais fracos. Os d’Angola criados em Loanda são mais capazes de aprender officios mecanicos, que os das outras partes já nomeados. Entre os Congos ha tambem alguns bastantemente industriosos, e bons não só para o serviço da canna, mas para as officinas, e para o meneo de casa. Huns chegão ao Brazil muito rudes, e muito fechados, e assim continuão por toda a vida. Outros em poucos annos sahem ladinos, e expertos, assim para aprenderem a doutrina christã, como para buscarem modo de passar a vida, e para se lhes encommendar hum barco, para levarem recados, e fazerem qualquer diligencia das que costumão ordinariamente occorrer. As mulheres usão de fouce, e de enxada, como os homens: porém nos mattos, só os escravos usão de machado. Dos ladinos se faz escolha para caldeireiros, carapinas, calafates, taxeiros, barqueiros, e marinheiros, porque estas occupações querem maior advertencia. Os que desde novatos se mettêrão em alguma fazenda, não he bem que se tirem della contra sua vontade, porque facilmente se amofinão, e morrem. Os que nascêrão no Brazil, ou se criárão desde pequenos em casa dos Brancos, affeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si; e levando bom cativeiro, qualquer delles vale por quatro boçaes. Melhores ainda são para qualquer officio os mulatos; porém muitos delles, usando mal dos favores dos senhores, são soberbos, e viciosos, e prezão-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E comtudo elles, e ellas da mesma côr, ordinariamente levão no Brazil a melhor sorte; porque com aquella parte de sangue de Brancos, que tem nas veias, e talvez dos seus mesmos senhores, os enfeitição de tal maneira, que alguns tudo lhes soffrem, tudo lhes perdoão; e parece, que se não atrevem a reprehendê-los, antes todos os mimos são seus. E não he facil decidir, se nesta parte são mais remissos os senhores, ou as senhoras; pois não falta entre elles, e ellas, quem se deixe governar por mulatos, que não são os melhores; para que se verifique o proverbio, que diz:--Que o Brazil he Inferno dos Negros, Purgatorio dos Brancos, e Paraizo dos Mulatos, e das Mulatas--; salvo quando por alguma desconfiança, ou ciume, o amor se muda em odio, e sahe armado de todo o genero de crueldade, e rigor. Bom he valer-se de suas habilidades, quando quizerem usar bem dellas, como assim o fazem alguns; porém não se lhes hade dar tanto a mão, que peguem no braço, e de escravos se fação senhores. Forrar mulatas desinquietas he perdição manifesta; porque o dinheiro, que dão para se livrarem, raras vezes sahe de outras minas, que dos seus mesmos corpos, com repetidos peccados; e depois de forras continuão a ser ruina de muitos. Oppoem-se alguns senhores aos casamentos dos escravos e escravas, e não sómente não fazem caso dos seus amancebamentos, mas quasi claramente os consentem, e lhes dão principio, dizendo: Tu Fulano a seu tempo casarás com Fulana: e d’ahi por diante os deixão conversar entre si, como se já fossem recebidos por marido, e mulher: e dizem, que os não casão, porque temem que enfadando-se do casamento, se matem logo com peçonha, ou com feitiços; não faltando entre elles mestres insignes nesta arte. Outros, depois de estarem casados os escravos, os apartão de tal sorte por annos, que ficão como se fossem solteiros: o que não podem fazer em consciencia. Outros são tão pouco cuidadosos do que pertence á salvação dos seus escravos, que os tem por muito tempo no cannaveal, ou no engenho, sem baptismo: e dos baptisados muitos não sabem, quem he o seu Creador; o que hão de crer; que lei hão de guardar; como se hão de encommendar a Deos; a que vão os Christãos á igreja; porque adorão a igreja, que vão dizer ao Padre, quando ajoelhão, e lhe fallão aos ouvidos; se tem alma; e se ella morre, e para onde vai, quando se aparta do corpo. E sabendo logo os mais boçaes, como se chama, e quem he seu senhor; quantas covas de mandioca hão de plantar cada dia; quantas mãos de canna hão de cortar; quantas medidas de lenha hão de dar; e outras cousas pertencentes ao serviço ordinario de seu senhor: e sabendo tambem pedir-lhe perdão, quando errárão; e encommendar-se-lhe, para que os não castigue, com promettimento da emenda: dizem os senhores, que estes não são capazes de aprender a confessar-se, nem pedir perdão a Deos, nem de rezar pelas contas, nem de saber os dez mandamentos: tudo por falta de ensino, e por não considerarem a conta grande, que de tudo isto hão de dar a Deos; pois (como diz S. Paulo) sendo Christãos, e descuidando-se dos seus escravos, se hão com elles peor do que se fossem Infieis. Nem os obrigão os dias santos a ouvir missa; antes talvez os occupão de sorte, que não tem lugar para isso: nem encommendão ao capellão doutrina-los, dando-lhe por este trabalho, se fôr necessario, maior estipendio. O que pertence ao sustento, vestido, e moderação do trabalho, claro está que se lhes não deve negar; porque a quem o serve deve o senhor de justiça dar sufficiente alimento; mezinhas na doença, e modo, com que decentemente se cubra, e vista, como pede o estado de servo, e não apparecendo quasi nú pelas ruas: e deve tambem moderar o serviço de sorte, que não seja superior ás forças dos que trabalhão, se quer que possão aturar. No Brazil costumão dizer, que para o escravo são necessarios tres P. P. P. a saber, pão, páo, e panno. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que he o páo; comtudo provera á Deos, que tão abundante fosse o comer, e o vestir, como muitas vezes he o castigo, dado por qualquer cousa pouco provada, ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos; de que se não usa nem com os brutos animaes, fazendo algum senhor mais caso de hum cavallo, que de meia duzia de escravos: pois o cavallo he servido, e tem quem lhe busque capim, tem panno para o suor; e sela, e freio dourado. Dos escravos novos se hade ter maior cuidado; porque ainda não tem modo de viver, como os que tratão de plantar suas roças, e os que as tem por sua industria, não convém que sejão só reconhecidos por escravos, na repartição do trabalho; e esquecidos na doença, e na farda. Os domingos e dias santos de Deos, elles os recebem: e quando seu senhor lhos tira, e os obriga a trabalhar, como nos dias de serviço, se amofinão, e lhe rogão mil pragas. Costumão alguns senhores dar aos escravos hum dia em cada semana, para plantarem para si, mandando algumas vezes com elles o feitor para que se não descuidem: e isto serve, para que não padeção fome, nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem; e querer que sirvão de sol a sol no partido, de dia, e de noite com pouco descanço no engenho, como se admittirá no tribunal de Deos sem castigo? Se o negar a esmola á quem com grave necessidade a pede, he nega-la a Christo senhor nosso, como elle o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? E que razão dará de si, quem dá serafina e seda, e outras galas, ás que são occasião de sua perdição; e depois nega quatro ou cinco varas de algodão, e outras poucas de panno da serra, a quem se derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo para buscar huma raiz, e hum carangueijo para comer? E se em cima disto, o castigo fôr frequente, e excessivo; ou se iráõ embora, fugindo para o mato; ou se mataráõ por si, como costumão, tomando a respiração, ou enforcando-se, ou procuraráõ tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se fôr necessario) a artes diabolicas, ou clamaráõ de tal sorte a Deos, que os ouvirá, e fará aos senhores o que já fez aos egipcios, quando avexavão com extraordinario trabalho aos Hebreos; mandando as pragas terriveis, contra suas fazendas, e filhos, que se lêem na Sagrada Escriptura: ou permittirá que assim como os Hebreos forão levados, cativos para Babilonia em pena do duro cativeiro, que davão aos seus escravos: assim algum cruel inimigo leve estes senhores para suas terras, para que nellas experimentem, quão penoza he a vida, que elles dérão, e dão continuamente a seus escravos. Não castigar os excessos, que elles commettem, seria culpa não leve; porém estes se hão de averiguar antes, para não castigar innocentes: e se hão de ouvir os dilatados; e convencidos castigar-se-hão com açoutes moderados, ou com o metter em huma corrente de ferro por algum tempo, ou tronco. Castigar com impeto, com animo vingativo, por mão propria, e com instrumentos terriveis, e chegar talvez aos pobres com fogo, ou lacre ardente, ou marca-los na cara, não seria para se soffrer entre barbaros, muito menos entre christãos catholicos. O certo he que, o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessario para o sustento, e vestido, e algum descanço no trabalho, se poderá tambem depois haver com o senhor: e não estranharáõ, sendo convencidos das culpas, que commettêrão, de receberem com misericordia o justo, e merecido castigo. E se depois de errarem como fracos, vierem por si mesmos a pedir perdão ao senhor; ou buscarem padrinhos, que os acompanhem: em tal caso he costume no Brazil o perdoar-lhes. E bem he, que saibão, que isto lhes hade valer: porque de outra sorte, fugiráõ por huma vez para algum mocambo no mato, e se forem apanhados poderá ser, que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açouta-los, ou que algum seu parente tome a sua conta a vingança ou com feitiço, ou com veneno. Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o unico alivio do seu cativeiro, he querê-los desconsolados, e melancolicos, de pouca vida, e saude. Portanto não lhes estranhe os senhores o criarem seus reis, cantar, e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do anno, e o alegrarem-se honestamente á tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de N. S. do Rozario, de S. Benedicto, e do orago da capella do engenho, sem gasto dos escravos, acodindo o senhor com sua liberalidade aos juizes, e dando-lhes algum premio do seu continuado trabalho. Porque se os juizes, e juizas das festas houverem de gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes, e offensas de Deos por serem poucos os que podem licitamente ajuntar. O que se hade evitar nos engenhos he o embriagarem-se com garapa azeda, ou agoardente; bastando se lhes conceda a garapa doce, que lhes não faz damno; e com ella fazem seus resgates, com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipins, e batatas. Ver que os senhores tem cuidado de dar alguma cousa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos, he causa de que os escravos os sirvão de boa vontade, e que se alegrem de lhes multiplicarem servos, e servas. Pelo contrario algumas escravas procurão de proposito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que ellas padecem. CAPITULO X. Como se hade haver o senhor do engenho no governo de sua familia, e nos gastos ordinarios da casa. Pedindo a fabrica do engenho tantos, e tão grandes gastos, quantos acima dissemos, bem se vê a paciencia, que he necessaria nos particulares de casa. Cavallos de respeito mais dos que bastão, charameleiros, trombeteiros, tangedores, e lacaios mimosos não servem para ajuntar fazenda, para diminui-la em pouco tempo, com obrigações, e empenhos. E muito menos servem as recreações amiudadas, os convites superfluos, as galas, as serpentinas, e o jogo. E por este caminho alguns em poucos annos do estado de senhores ricos chegárão ao de pobres, e arrastados lavradores, sem terem que dar de dotes ás filhas, nem modo para encaminhar honestamente aos filhos. Máo he ter o nome de avarento: mas não he gloria digna de louvor o ser prodigo. Quem se resolve a lidar com engenho, ou se hade retirar da cidade, fugindo das occupações da republica, que obrigão a divertir-se: ou hade ter actualmente duas casas abertas, com notavel prejuizo aonde quer que falte a sua assistencia, e com dobrada despeza. Ter os filhos sempre comsigo no engenho, he crea-los tabarcos, que nas conversações não saberáõ fallar de outra cousa mais do que do cão, do cavallo, e do boi. Deixa-los sós na cidade, he dar-lhes logo liberdade para se fazerem logo viciosos, e encher-se de vergonhosas doenças, que se não podem facilmente curar. Para evitar pois hum, e outro extremo, o melhor conselho será pô-los em casa de algum parente, ou amigo grave, e honrado, onde não haja occasiões de tropeçar, o qual folgue de dar boa conta de si, e com toda a fidelidade avise do bom, ou máo procedimento, e do proveito, ou negligencia no estudo. Nem consinta, que a mãi lhe remetta dinheiro, ou mande secretamente ordens para isso ao seu correspondente, ou ao caixeiro: nem crêa, que o que pedem para livros, não possa ser tambem para jogos. E por isso avise ao procurador, e ao mercador, de quem se valle, que lhes não dê cousa alguma sem sua ordem. Porque para pedirem seráõ muito especulativos, e saberáõ excogitar razões, e pretextos verosimeis, principalmente se forem dos que já andão no curso, e tem vontade de levar tres annos de boa vida á custa do pai, ou do tio, que não sabem o que passa na cidade, estando nos seus cannaveaes, e quando se jactão nas conversações de ter hum Aristoteles nos pateos, póde ser que tenhão na praça hum Asinio, ou hum Apricio. Porém se se resolverem a ter os filhos em casa, contentando-se com que saibão ler, escrever, e contar, e ter alguma tal ou qual noticia dos successos, e historias, para fallarem entre gente, não se descuidem em vigiar sobre elles, quando a idade o pedir: porque tambem o campo largo he lugar de muita liberdade, e póde dar abrolhos, e espinhos. E se se faz cercado aos bois, e aos cavallos, para que não vão fóra do pasto; porque se não porá tambem algum limite aos filhos, assim dentro como fóra de casa, mostrando a experiencia ser assim necessario? Com tanto que a circunspecção seja prudente e a demasia, não accrescente a malicia. O melhor ensino, porém, he o exemplo do bom procedimento dos pais: e o descanço mais seguro, he dar a seu tempo estado ás filhas, como aos filhos, e se se contentarem com a igualdade, não faltaráõ casas, aonde se possão fazer troca, e receber recompensas. CAPITULO XI. Como se hade haver o senhor do engenho no recebimento dos hospedes, assim religiosos, como seculares. A hospitalidade he huma acção cortez, e tambem virtude christã: e no Brazil muito exercitada, e louvada: porque faltando fóra da cidade as estalagens, vão necessariamente os passageiros dar comsigo nos engenhos, e todos ordinariamente achão de graça o que em outras terras custa dinheiro: assim os religiosos, que buscão suas esmolas, que não são poucos, e os missionarios, que vão pelo reconcavo, e pela terra dentro com grande proveito das almas, a exercitar seus ministerios; como os seculares, que ou por necessidade, ou por conhecimento particular, ou por parentes buscão de caminho agasalho. Ter casa separada para os hospedes, he grande acerto; porque melhor se recebem, e com o menor estorvo da familia, e sem prejuizo do recolhimento, que hão de guardar as mulheres, e as filhas, e as moças do serviço interior occupadas no apparelho do jantar, e da cêa. O tratamento não hade exceder o estado das pessoas, que se recebem; porque no decurso do anno são muitas. A criação miuda, ou em alguns peixes do mar, ou rio visinho, com alguns mariscos dos mangues, e o que dá o mesmo engenho para doce; basta para que ninguem se possa queixar com razão. Avançar-se á mais (salvo em hum caso particular por justos respeitos) he passar os limites, e impossibilitar-se á poder continuar igualmente pelo tempo futuro. Dar esmolas, he dar a juro á Deos, que paga cento por hum; mas em primeiro lugar está pagar o que se deve de justiça; e depois extender-se piamente ás esmolas, conforme o cabedal, e o rendimento dos annos. E nesta parte nunca se arrependerá o senhor do engenho de ser esmoler: e aprenderáõ os filhos á imitar ao pai; e deixando-os inclinados ás obras de misericordia, os deixará muito ricos, e com riquezas seguras. Para os vadios, tenha enxadas, e fouces: e se se quizerem deter no engenho, mande-lhes dizer pelo feitor, que trabalhando, lhes pagaráõ seu jornal. E desta sorte ou seguiráõ seu caminho, ou de vadios se faráõ jornaleiros. Tambem não convém que o mestre do assucar, o caixeiro, e os feitores tenhão em suas casas por tempo notavel pessoas da cidade, ou de outras partes, que vém passar tempo ociosamente; e muito mais se forem solteiros, e moços; porque estes não servem senão para estorvar aos mesmos officiaes, que hão de attender ao que lhe pertence; e para desinquietar as escravas do engenho, que facilmente se deixão levar de seu pouco moderado apetite a obrar mal. E isto se lhes deve intimar ao principio, para que não acarretem atraz de si sobrinhos, ou primos, que com seus vicios lhes dêem dobrados desgostos. Os missionarios que desinteressadamente vão fazer seus officios, devem ser recebidos com toda a boa vontade; porque vendo esquivação não venhão a entender que o senhor do engenho, por pouco affeiçoado ás cousas de Deos, ou por mesquinho, ou por outro qualquer respeito, não folga com a missão, em a qual se ajustão as consciencias com Deos, se dá instrucção aos ignorantes, se atão inimizades, e occasiões escandalosas de annos, e se procura que todos tratem da salvação de suas almas. CAPITULO XII. Como se hade haver o senhor do engenho com os mercadores, e outros seus correspondentes na praça, e de alguns modos de vender, e comprar o assucar conforme o estilo, e uso do Brazil. O credito de hum senhor de engenho funda-se na sua verdade, isto he na pontualidade, e fidelidade em guardar as promessas. E assim como o hão de experimentar fiel os lavradores nos dias, que se lhes devem dar para moerem a sua canna, e na repartição do assucar, que lhes cabe; os officiaes na paga das soldadas; e os que dão a lenha para as fornalhas, madeira para a moenda, tijolos, e fôrmas para a casa de purgar, taboas para encaixar, bois, e cavallos para a fabrica: assim tambem se hade acreditar com os mercadores, e correspondentes na praça que lhe dérão dinheiro, para comprar peças, cobre, ferro, aço, enxarcias, breu, vélas, e outras fazendas fiadas. Porque se ao tempo da frota não pagarem o que devem; não teráõ com que se apparelharem para a safra vindoura; nem se achará quem queira dar o seu dinheiro, ou fazenda nas mãos de quem lha não hade pagar, ou tão tarde, ou com tanta difficuldade, que se arrisque a quebrar. Há annos em que pela muita mortandade de escravos, cavallos, egoas, e bois, ou pelo pouco rendimento da canna, não podem os senhores do engenho chegar a dar satisfação inteira do que promettêrão. Porém não dando se quer alguma parte, não merecem alcançar as esperas, que pedem; principalmente quando se sabe que tivérão para desperdiçar, e para jogos, o que devião guardar para pagar aos seus acredores. Nos outros annos de rendimento sufficiente, e com perdas moderadas, ou sem ellas, não ha razão para faltar aos mercadores, ou commissarios, que negocêão por seus amos, aos quaes devem dar conta de si, e por isso não he muito para se estranhar, se experimentando faltar-se por tanto tempo á palavra, com lucro verdadeiramente cessante, e damno emergente, levantão com justa moderação o preço da fazenda, que vendem fiada, e que Deos sabe quando poderáõ arrecadar. Comprar anticipadamente o assucar por dous cruzados, _verbi gratiâ_, que a seu tempo commummente vale doze tostões, e mais, tem sua difficuldade; porque o comprador está seguro de ganhar: e o vendedor he moralmente certo, que hade perder, principalmente quando o que dá o dinheiro adiantado, não o havia de empregar em outra cousa, antes do tempo de o embarcar para o Reino. Quem compra, ou vende anticipadamente pelo preço, que valerá o assucar no tempo da frota, faz contracto justo; porque assim o comprador, como o vendedor, estão igualmente arriscados. E isto se entende pelo maior preço geral, que então o assucar valer, e não pelo preço particular, em que algum se accommodar, obrigado a vendê-lo. Comprar a pagamentos, he dar logo de contado alguma parte do preço, e depois pagar por quarteis, ou tanto por cada anno, conforme o concerto, até se inteirar de tudo. E poderá pôr-se a pena, de tantos cruzados mais, se se faltar a algum pagamento: mas não se poderá pretender, que se pague juro dos juros vencidos; porque o juro só se paga do principal. Quem diz: vendo o assucar cativo; quer dizer: vendo-o com a obrigação de o comprador pagar todas as custas; tirando os tres tostões, que se pagão na Bahia, porque estes correm por conta de quem o carrega. Vender o assucar livre a dez tostões, _verbi gratiâ_, por arroba, quer dizer, que o comprador hade dar ao vendedor dez tostões por cada arroba, e hade fazer todos os gastos a sua custa. Quem comprou o assucar cativo, e o despachou, o vende depois livre, e o comprador faz os gastos, que se seguem. Comprar o assucar por cabeças, quer dizer, comprar as caixas d’assucar pelo numero das arrobas, que tem na marca, com meia arroba de menos na quebra. Quando se pesa huma caixa d’assucar, para pagar os direitos: se o pesador pesa favoravel, diz, _verbi gratiâ_, que a caixa de trinta arrobas tem vinte e oito. E isto El-Rei o soffre, e consente de favor. Porém esta caixa não se vende por este peso, mas pelo que na verdade se achar, quando vai a pesar-se na balança fóra da Alfandega, que ahi está, para se tirar toda a duvida. Vender as terras por menos do que valem, com a obrigação de se moer a canna, que nellas se plantar, no engenho do vendedor; he contracto licito, e justo. Comprar hum senhor de engenho, a hum lavrador, que tem canna livre para moer aonde quizer, a obrigação de a moer no seu engenho, em quanto lhe não restituir o dinheiro que para isso lhe deu, quando comprou a dita obrigação; pratica-se no Brazil muitas vezes: e os letrados o defendem por contracto justo: porque isto não he dar dinheiro emprestado com obrigação de moer; mas he comprar a obrigação de moer no seu engenho, para ganhar a metade do assucar, ficando a porta aberta ao lavrador para se livrar desta obrigação, todas as vezes que tornar a entregar ao comprador o dinheiro que recebeu. LIVRO SEGUNDO. CAPITULO PRIMEIRO. Da escolha da terra para plantar cannas de assucar, e para os mantimentos necessarios, e provimentos do engenho. As terras boas ou más, são o fundamento principal para ter hum engenho real bom, ou máo rendimento. As que chamão massapés, terras negras, e fortes, são as mais excellentes para a planta da canna. Seguem-se atraz destas os salões, terra vermelha, capáz de poucos córtes; porque logo enfraquece. As areiscas, que são huma mixtura de arêa, e salões, servem para mandioca, e legumes; mas não para cannas. E o mesmo digo das terras brancas, que chamão terras de arêa, como são as do Camamú, e da Saubára. A terra que se escolhe para o pasto ao redor do engenho, hade ter agua, hade ser cercada, ou com plantas vivas, como são as de Pinhóes; ou com estacas, e varas do matto. O melhor pasto he o que tem grama, parte em outeiro, e parte em varzea: porque desta sorte em todo o tempo, ou em huma, ou em outra parte, assim os bois, como as bestas, acharáõ que comer. O pasto se hade conservar limpo de outras hervas, que matão a grama, e no tempo do inverno se hão de botar fóra delle os porcos, porque o destróem foçando. Nelle hade haver hum ou dous curraes, aonde se mettão os bois para comerem os olhos da canna, e para estarem perto do serviço dos carros. E tambem as bestas se recolhem no seu curral, para as não haver de buscar espalhadas. Andão no pasto, além das egoas e bois, ovelhas, e cabras: e ao redor do engenho a criação miuda, como são perús, galinhas, e patos, que são o remedio mais prompto para agasalhar os hospedes, que vem de improviso. Mas porque as ovelhas e cavallos chegão muito com o dente á raiz da grama, são de prejuizo ao pasto dos bois: e por isso se o destes fosse diverso, seria melhor. Os mattos dão as madeiras, e a lenha para as fornalhas. Os mangues dão caibros, e marisco. E os Apicús (que são as coroas, que faz o mar entre si e a terra firme, e as cobre a maré) dão o barro, para purgar o assucar nas formas, e para a olaria, que na opinião de alguns se não escusa nos engenhos reaes. De todas estas castas de terras tem necessidade hum engenho real; porque humas servem para cannas, outras para mantimento da gente, e outras para o apparelho, e provimento do engenho, além do que se procura do Reino. Porém nem todos os engenhos podem ter esta dita: antes nenhum se achará, a quem não falte alguma destas cousas. Porque aos que estão a beira-mar commummente faltão as roças, e a lenha: e aos que estão pela terra dentro, faltão outras muitas conveniencias, que tem os que estão a beira-mar no Reconcavo. Comtudo, de ter, ou não ter o senhor do engenho, cabedal, e gente, feitores fieis, e de experiencia, bois, e bestas, barcos, e carros, depende o menear, e governar bem, ou mal o seu engenho. E se não tiver gente para trabalhar, e beneficiar as terras a seu tempo; será o mesmo, que ter matto bravo com pouco, ou nenhum rendimento: assim como não basta para a vida politica, ter bom natural; se não houver mestre, que com o ensino trate de o aperfeiçoar ajudando-o. CAPITULO II. Da planta, e limpas das cannas, e a diversidade que ha nellas. Feita a escolha da melhor terra para a canna, roça-se, queima-se, e alimpa-se tirando-lhe tudo o que poderia servir-lhe de embaraço; e logo abre-se em regos, altos palmo e meio, e largos dous com seu camalhão no meio, para que nascendo a canna não se abafe: e nestes regos ou se plantão os olhos em pé, ou se deitão as cannas em pedaços, tres ou quatro palmos compridos: e se fôr canna pequena deita-se tambem inteira, huma junto á outra, ponta com pé; cobrem-se com terra moderadamente. E depois de poucos dias brotando pelos olhos começão pouco a pouco a mostrar sua verdura á flôr da terra, pegando facilmente, e crescendo mais, ou menos conforme a qualidade da terra, e o favor, ou contrariedade dos tempos. Mas se forem muito juntas, ou se na limpa lhes chegarem muito a terra, não poderáõ filhar como he bem, e o que se deve evitar. A planta da canna nos lugares altos da Bahia começa desde as primeiras agoas no fim de Fevereiro, e nos principios de Março, e se continua até o fim de Maio, e nas baixas, e varzeas (que são mais frescas, e humidas) planta-se tambem nos mezes de Julho, e Agosto, e por alguns dias de Setembro. Toda a canna, que não fôr seca, ou viciada, nem de canudos muito pequenos, serve para plantar. De ser a terra nova, e forte, segue-se o crescer nella a canna muito viçosa; e á esta chamão canna brava: a qual a primeira, e segunda vez, que se corta, não costuma fazer bom assucar, por ser muito agoacenta. Porém dahi por diante depois de esbravejar a terra ainda que cresça extraordinariamente, he tão boa no rendimento como formoza na apparencia, e destas se achão algumas vezes algumas com sete, oito, e nove palmos, e tambem postas no cannaveal, como os capitães nos exercitos. A melhor canna he a de canudo comprido, e limpo; e as que tem canudos pequenos, e barbados, são as peiores. Nascem o terem canudos pequenos, ou da seca, ou do frio, porque huma e outra cousa as apertão: e o terem barbas procede de lhes faltar com alguma limpa a seu tempo. Começa-se alimpar a canna, tanto que tiver monda, ou herva de tirar. No inverno a herva, que se tira, torna logo a nascer; e as limpas mais necessarias são aquellas primeiras, que se fazem, para que a canna possa crescer, e o capim a não afogue: porque depois de crescida, vence melhor as hervas menores. E assim vêmos, que os primeiros vicios são os que botão a perder hum bom natural. As cannas que se plantão nos outeiros, são ordinariamente mais limpas, que as que se plantão nas varzeas: porque assim como correr a agoa do outeiro, he causa que se não criem nelle tão facilmente outras hervas, assim o ajuntar-se ella na varzea he causa de ser esta sempre muito humida, e conseguintemente muito disposta para criar o capim. Por isso em humas terras ás vezes não bastão tres limpas, e em outras com duas o lavrador descança conforme os tempos, mais ou menos chuvosos. Assim como ha filhos tão doceis, que com a primeira admoestação se emendão, para outros não bastão repetidos castigos. As socas tambem (que são as raizes das cannas cortadas a seu tempo, ou queimadas por velhas, ou por cahidas de sorte que se não possão cortar, ou por desastre) servem para plantar; porque se não morrerem pelo muito frio, ou pela muita sêca, chegando-lhes a terra, tornão a brotar, e podem desta sorte renovar o cannaveal por cinco ou seis annos, e mais. Tanto vale a industria, para tirar proveito, ainda do que parecia inutil, e se deixaria por perdido. Verdade he, que cançando a terra, perde tambem a soca o vigor, e depois de seis, ou sete annos, a canna se acanha, e facilmente se murcha, até ficar seca, e arougada. E por isso não se hade pretender da terra, nem da soca mais do que puder dar, particularmente se não fôr ajudada com algum beneficio, e a advertencia do bom lavrador consiste em plantar de tal sorte successivamente a canna, que cortando-se a velha para a moenda, fique a nova em pé para a safra vindoura, e desta sorte alimente com a sua verdura a esperança do rendimento, que se prepara, que he o premio de seu continuado trabalho. Plantar huma tarefa de cannas, he o mesmo que plantar no espaço de trinta braças de terra em quadra. Finalmente porque a diversidade das terras, e dos climas pede diversa cultura; he necessario informar-se, e seguir o conselho dos velhos, aos quaes ensinou muito o tempo, e a experiencia, perguntando em tudo o que se duvidar, para obrar com acerto. CAPITULO III. Dos inimigos da canna, em quanto está no cannaveal. As inclemencias do céo são o principal inimigo, que tem as cannas, assim como os outros frutos, e novidades da terra, querendo Deos com muita razão, que se armem contra nós os elementos por castigo das nossas culpas, ou para exercicio da paciencia, ou para que nos lembremos que elle he o autor, e o conservador de todas as cousas, e a elle recorramos em semelhantes apertos. Os cannaveaes nos outeiros resistem mais ás chuvas, quando são demasiadas; porém são os primeiros a queixarem-se da sêca. Pelo contrario as varzeas não sentem tão depressa a força do excessivo calor; mas na abundancia das aguas chorão primeiro suas perdas. A canna da Bahia quer agua nos mezes de Outubro, Novembro, e Dezembro, e para a planta nova em Fevereiro, e quer tambem successivamente sol, o qual commummente não falta, assim não faltassem nos sobreditos mezes as chuvas. Porém o inimigo mais molesto, e mais continuo, e domestico da canna, he o capim; pois máis, ou menos, até o fim a persegue. E por isso tendo o plantar, e cortar seus mezes certos; o limpar obriga os escravos dos lavradores, a irem sempre com a enxada na mão, e acabada qualquer outra occupação fóra do cannaveal, nunca se mandão debalde limpar. Exercicio, que deveria tambem ser continuo nos que tratão da boa criação dos filhos, e da cultura do animo. E ainda que só este inimigo baste por muitos, não faltão outros de não menor enfado, e molestia. As cabras, tanto que a canna começa a apparecer fóra da terra, logo a vão investir: os bois, e os cavallos ao principio lhe comem os olhos, e depois a derrubão, e a pisão: os ratos, e os porcos a roem: os ladrões a furtão a feixes; nem passa rapaz, ou caminhante, que se não queira fartar, e desenfadar á custa de quem a plantou. E posto que os lavradores se accommodem de qualquer modo a soffrer os furtos pequenos dos frutos de seu suor, vêem-se ás vezes obrigados de huma justa dôr a matar porcos, cabras, e bois, que outros não tratão de divertir, e guardar nos pastos cercados, ou em parte mais remota, ainda depois de rogados, e avisados que ponhão cobro neste damno: donde se seguem queixas, inimizades, e odios, que se arrematão com mortes, ou com sanguinolentas, e affrontosas vinganças. Por isso cada qual trate de defender os seus cannaveaes, e de evitar occasiões de outros se queixarem justamente do seu muito descuido, medindo os damnos alheos, com o sentimento dos proprios. CAPITULO IV. Do córte da canna, e sua condução para o engenho. Começando o engenho a moer (o que no reconcavo da Bahia costuma ter seu principio em Agosto) começa tambem o tempo de metter a fouce na canna, que disso he capaz; e para bem, antes de se cortar, hade estar dezesete, ou dezoito mezes na terra: e dahi por diante, se a muita seca a não apertar, póde seguramente estar na mesma terra outros sete, ou oito mezes. Tanto pois que estiver de vez, se mandará pôr nella a fouce, tendo já certo o dia, em que se hade moer, para que não fique depois de cortada a murchar-se no engenho, ou se não seque exposta ao sol no porto, se este fôr distante da moenda: preferindo o lavrador, que avisado trouxe primeiro a canna para o engenho, até se acabar inteiramente a sua tarefa, e perdendo o vagarozo o lugar que lhe cabia, se por seu descuido deixou passar o dia assignalado. E o senhor do engenho he que reparte os dias, assim para moer a sua canna, como a dos lavradores, conforme cabe a cada qual por seu turno, e manda o aviso pelo feitor a seu tempo competente. Quando se corta canna, se mettem doze até dezoito fouces no cannaveal, conforme fôr a canna grande, ou pequena. E a que se manda a moer de huma vez chama-se huma tarefa, que vem a ser vinte, e quatro carros, tendo cada carro justa medida de oito palmos de alto, e sete de largo, capaz de mais ou menos feixes de canna, conforme ella fôr grande ou pequena: porque menos feixes de canna grande bastão para fazer a tarefa; e mais hão de ser necessarios se fôr canna pequena, pois a pequena occupa menor lugar assim no barco, como no carro; e a grande occupa, em huma e outra parte maior espaço, pelo que tem de maior comprimento, e grossura. Raro porém será o carro, que traga mais de cento, e cincoenta feixes de canna: e os senhores dos partidos, pelos córtes antecedentes sabem muito bem, quantas tarefas tem nos seus cannaveaes. A primeira canna, que se hade cortar he a velha, que não póde esperar: costume que não guarda a morte, cuja fouce corta indifferentemente moços, e velhos. E esta córte a tempo, que se não faça prejuizo á soca, conforme as terras, mais ou menos frias, e os dias de maior ou menor calor, e sem chuva. E disto procede não se poder cortar a canna em humas terras depois do fim de Fevereiro; e em outras corta-se ainda em Março, e Abril. Quanto ao córte da canna nova: se o lavrador fôr muito ambicioso, e desejoso de fazer muito assucar, cortará tudo em huma safra, e achar-se-ha com pouco, ou nada na outra. Por isso o córte da nova hade ter sua conta: e se hade attentar ao futuro, conforme o que se tem plantado, usando de huma repartição considerada, e segura, que he o que dicta em qualquer outra obra, ou negocio a boa economia, e prudencia. Assim os escravos, como as escravas se occupão no córte da canna; porém commummente os escravos cortão, e as escravas amarrão os feixes. Consta o feixe de doze cannas: e tem por obrigação cada escravo cortar em hum dia, sete mãos de dez feixes por cada dedo, que são trezentos, e cincoenta feixes; e a escrava hade amarrar outros tantos com os olhos da mesma canna: e se lhes sobejar tempo, será para o gastarem livremente no que quizerem. O que se não concede na limpa da canna: cujo trabalho começa desde o sol nascido, até ao sol posto: como tambem em qualquer outra occasião, que senão dá por tarefa. E o contar a tarefa do córte, como está dito, por mãos, e dedos, he para se accommodar á rudeza dos escravos boçaes, que de outra sorte não entendem, nem sabem contar. O modo de cortar he o seguinte: pega-se com a mão esquerda em tantas cannas, quantas póde abarcar, e com a direita armada de fouce se lhe tira a palha, a qual depois se queima, ou pela madrugada, ou já de noite quando acalmando o vento der para isso lugar; e serve para fazer a terra mais fertil: logo levantando mais acima a mão esquerda, botão-se fóra com a fouce os olhos da canna, e estes dão-se aos bois a comer: e ultimamente tornando com a esquerda mais abaixo, corta-se rente ao pé, e quanto a fouce fôr mais rasteira á terra, melhor. Quem segue ao que corta (que commummente he huma escrava) ajunta as cannas limpas, como está dito, em feixes a doze por feixe, e com os olhos dellas os vai atando, e assim atados vão nos carros ao porto; ou se o engenho fôr pela terra dentro, chega o carro a moenda. A condução da canna, por terra faz-se nos carros, e para bem cada fazenda hade ter dous; e se fôr grande, ainda mais. Por mar vem nas barcas sem véla, com quatro varas, que servem em lugar de remos nas mãos de outros tantos marinheiros, e o arraes, que vai ao leme: e para isso ha mister duas barcas capazes, como as que chamão rodeiras. O lavrador tem obrigação de cortar a canna; e de a conduzir á sua custa até ao porto, onde o barco do senhor a recebe, e leva de graça até a moenda por mar: pondo-a no dito barco os escravos do lavrador, e arrumando-a no barco os marinheiros. Mas se fôr engenho pela terra dentro, toda a condução por terra até a moenda corre por conta do dono da canna, quer seja livremente dada, quer obrigada ao engenho. Conduzir a canna por terra em tempos de chuvas, e lamas, he querer matar muitos bois, particularmente se vierão de outra parte magros, e fracos, extranhando o pasto novo, e o trabalho. O que muito mais se hade advertir na condução das caixas, como se dirá em seu lugar. Por isso os bois que vêem do Sertão cançados, e maltratados no caminho, para bem não se hão de pôr no carro, senão depois de estarem pelo menos anno, e meio no pasto novo, e de se acostumarem pouco a pouco ao pasto novo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho mais leve, começando pelo tempo do verão, e não do inverno, de outra sorte succederá ver, o que se vio em hum destes annos passados em que morrêrão só em hum engenho duzentos, e onze bois, parte nas lamas, parte na moenda, e parte no pasto. E se moendo com agoa, usando de barcos para a condução da canna, he necessario ter no engenho quatro, ou cinco carros, com doze, ou quatorze juntas de bois muito fortes; quantos haverá mister quem móe com bestas, e bois, e tem canna propria para se conduzir de longe á moenda? Advirta-se muito nisto, para se comprarem a tempo os bois, e taes quaes são necessarios; dando antes oito mil réis por hum só boi manso, e redondo, do que outro tanto por dous pequenos, e magros, que não tem força para aturarem no trabalho. CAPITULO V. Do engenho, ou casa de moer a canna; e como se move a moenda com agua. Ainda que o nome de engenho comprehenda todo o edificio, com as officinas, e casas necessarias para moer a canna, cozer, e purgar o assucar; comtudo, tomado mais em particular, o mesmo he dizer casa do engenho, que casa de moer a canna com o artificio, que engenhosamente inventárão. E tendo nós já chegado a esta casa com a canna conduzida para a moenda, daremos alguma noticia do que ella he, e do que nella se obra, para espremer o assucar da canna; valendo-me do que vi no engenho real de Sergipe do Conde, que entre todos os da Bahia he o mais afamado. Levanta-se a borda do Rio sobre dezesete grandes pilares de tijolo, largos quatro palmos, altos vinte e dous, e distantes hum do outro quinze, huma alta, e espaçosa casa, cujo tecto coberto de telha assenta sobre tirantes, frechaes, e vigas de páos, que chamão de lei, que são dos mais fortes, que há no Brazil, a quem nenhuma outra terra leva nesta parte vantagem; com duas varandas ao redor: huma para receber canna, e lenha, e outra para guardar madeiras sobrecellentes. E a esta chamão casa de moenda, capaz de receber commodamente quatro tarefas de canna, sem perturbação, e embaraço dos que necessariamente hão de lidar na dita casa, e dos que por ella passão, sendo caminho aberto para qualquer outra officina, e particularmente para as casas immediatamente contiguas das fornalhas, e das caldeiras; contando de comprimento todo este edificio, cento e noventa e tres palmos, e oitenta, e seis de largo. Móe-se nesta casa a canna com tal artificio de eixos, e rodas, que bem merece particular reflexão, e mais distincta noticia. Tomão para mover a moenda do rio acima, aonde faz a sua queda natural, a que chamão levada, que vem a ser huma porção bastante de agua do açude, ou tanque, que para isso tem, divertida com prezas de pedra, e tijolo, do seu curso, e levada com declinação moderada por rego capaz, e forte nas margens, para que a agua vá unida, e melhor se conserve; cobrando na declinação cada vez maior impeto, e força: com seu sangrador, para a divertir, se fôr necessario, quando por razão das chuvas, ou cheias viesse mais do que se pretende; e com outra abertura para duas bicas, huma que leva a agua para a casa das caldeiras, e outra que vai a refrescar o aguilhão da roda grande dentro da moenda; servindo-se para a communicar a outro aguilhão, de huma taboa; e assim vai a entrar no cano de páo, que chamão caliz, sustentado de pilares de tijolo, e na parte superior descoberto, cujo extremo inclinado sobre os cabos da roda se chama feridor; porque por elle vai a agua a ferir os ditos cubos, donde se origina, e continua o seu moto. Assentão os aguilhões do eixo desta roda, hum pela parte de fóra, e outro pela parte de dentro da casa da moenda, sobre seus chumaceiros de páo, com chapa de bronze; e a estes sustentão duas virgens, ou esteios de fóra, e duas de dentro, com seu brinquete, que he a travessa, em que os aguilhões se encostão. E sobre estes, como dissemos, vai sempre cahindo huma pequena porção de agua, para os refrescar, de sorte que pelo continuo moto não ardão, temperando-se com agua sufficientemente o calor. As aspas da roda larga, e grande sustentão aos arcos, ou circulos della, e dentro apparecem os cubos, ou covas feitas no meio da roda, e unidos hum a outro, com o fundo fechado do forro interior da mesma roda entre os dous arcos della assegurados com muitas cavilhas de ferro, e com suas arruellas, e chavetas mettidas, e atravessadas, para enchavetar as pontas das cavilhas; causas de não bolirem os arcos, nem os cubos ao cahir da agua, e de ir a roda suas voltas seguras. Perto da roda pela banda de fóra estão dous esteios altos, e grossos, com tres travessas, asseguradas tambem de outra parte, huma das quaes sustenta a extremidade do caliz, duas ao feridor, e outra ao pejador do engenho. He o pejador huma taboa, pois mais larga que a roda, de dez ou doze palmos de comprimento, com suas bordas, semelhante á hum grande taboleiro, debaixo do feridor, com huma cavilha chavetada, de sorte que se possa jogar, e bolir com ella sem resistencia; e por isso se faz o buraco da cavilha bastantemente largo, e na parte inferior tem no lado, que se vai a encostar á parede da moenda, hum espigão de ferro, preso tambem com huma argola de ferro, que entrando por huma abertura pela dita parede, sua mão, ou cabo, em o qual se encavilha sobre hum esteio, que chamão moirão á maneira de engonços, fica á disposição de quem está na moenda o manda-la parar, ou andar como quizer, empurrando, ou puxando pelo pejador; o qual pondo-se sobre os cubos, impede ao feridor o dar-lhe o moto com a queda da agua; e tornando a descobrir os cubos, torna-se a mover a roda, e com a roda a moenda. E isto he muito necessario em qualquer desastre, que póde acontecer, para lhe acodir de pressa, e atalhar os perigos. E chamão a esta taboa pejador; porque tambem ao parar do engenho chamão pejar: por ventura, por se pejar hum engenho real de ser retardado, ou impedido, ainda por hum instante; e de não ser sempre, como he de razão, moente, e corrente. E isto quanto á parte exterior da moenda, donde principia o seu movimento. Entrando pois na casa interior; o modo com que se communica o moto por suas partes á moenda, he o seguinte. O eixo da roda grande, que como temos dito, pela parte de fóra se mette dentro da casa do engenho, tem no seu remate interior, chegado aonde assenta o aguilhão sobre o brinquete, e esteios, hum rodete fixo, e armado de dentes, que o cerca: e este virado ao redor pelo caminho do dito eixo, apanha successivamente na volta, que dá com seus dentes, outros de outra roda superior, tambem grande, que chamão volandeira, porque o seu modo de andar circularmente no ar sobre a moenda, se parece com o voar de hum passaro, quando dá no ar seus rodeios. Os dentes do rodete, que eu vi, erão trinta, e dous; e os da volandeira, cento, e doze. E porque as aspas da volandeira passão pelo pescoço do eixo grande da moenda; por ellas se lhe communica o impulso: e este recebido do dito eixo grande, cercado de entrozas, e dentes, se communica tambem a dous outros eixos menores, que tem de ambas as ilhargas, dentados, e abertos igualmente, com suas entrozas do mesmo modo, que temos dito do grande: e com estes dentes, e entrozas se causa o moto com que uniformemente o acompanhão. As aspas da volandeira são oito, quatro superiores, e quatro inferiores, e as inferiores tem suas contra-aspas para maior segurança. Os tres eixos da moenda são tres páos redondos de corpo espherico, alto nos menores sinaes cinco palmos e meio; e no maior, que he o do meio, alto seis palmos, e tambem de esphera maior que os outros, que nas ilhargas continuamente o apertão, gasta-se mais que os outros: e por isso por boa regra os menores tem nove dentes, e o maior onze, e só este (por fallarmos com a lingoa dos officiaes) tem seu pescoço, e cabeça alta, conforme a altura do engenho, e commummente ao todo vém a ter o dito eixo doze palmos de alto: cuja cabeça de dous palmos e meio, mais delgada que o pescoço, entra por hum páo furado, que chamão porca, sustentado de duas vigas, de quarenta e dous palmos, as quaes assentão sobre quatro esteios altos de dezesete palmos, e grossos quatro, com suas travessas proporcionadamente distantes. E ainda que os outros dous eixos menores não tem pescoço, comtudo pela parte de cima entrão quanto basta, com sua ponta, ou aguilhão, por huns páos furados, que chamão mesas, ou gatos, com que ficão direitos, e seguros em pé. Os corpos dos tres eixos da metade para baixo são vestidos igualmente de chapas de ferro unidas, e pregadas com pregos feitos para este fim com cabeça quadrada, e bem entrante, para se igualarem com as chapas: debaixo das quaes os corpos dos eixos são torneados com tornos de páo de lei, para que fique a madeira mais dura, e mais capaz de resistir ao continuo aperto, que hade padecer no moer. Sobre as chapas apparece, hum circulo, ou faixa de páo, que he contra a parte do corpo dos mesmos eixos, despida de ferro: e logo immediatamente se segue o circulo dos dentes de páo de lei, encaixados no eixo com suas entrozas (que são humas cavaduras, ou vãos repartidos entre dente, e dente) para entrarem, e sahirem dellas os dentes dos outros eixos collateraes; que para isso são em tudo iguaes os dentes, e as entrozas, a saber: os dentes na grossura, e na altura, e as entrozas na largura, e profundeza do encaixamento, ou vasio, que commummente sahem do corpo do eixo, comprimento de cinco, ou seis dedos, de largura de huma mão, e de quatro, ou cinco dedos de costa, de fôrma quasi chata, e nos extremos redonda. E ainda que entre dente, e dente dos eixos menores, haja espaço medido por compasso de igual medida, que he hum palmo grande; os do eixo maior tem de mais a mais tanto espaço, além do palmo, quanto occuparia a grossura de huma moeda de dous cruzados: e isto se faz, para que estejão em sua conta, e não entrem no mesmo tempo os dentes dos eixos collateraes; mas hum se siga atraz do outro, e desta sorte se continue em todos os tres o moto, que se pretende. E por isso tambem os dentes, e as entrozas de hum eixo se hão de desencontrar dos dentes, e entrozas do outro, a saber: ao dente do eixo grande hade corresponder a entroza do pequeno; e ao dente do pequeno a entroza do grande. São os dentes (como dizia) na parte que sahe fóra do eixo algum tanto chatos, e no fim quasi redondos, largos quatro ou cinco palmos, e outro tanto grossos: e então quasi outros quatro dedos pela sua raiz do eixo, aonde se assegurão, além da parte, com que fazem parede ás entrozas, que são na mesma conta quatro ou cinco dedos profundas. Sobre os dentes dos eixos menores fica a terceira parte do páo descoberta, e se remata a modo de degráos em dous circulos menores, vestidos de duas argolas de ferro de grossura de hum dedo, e meio, largura de tres dedos; e na ponta do páo se vara de tal sorte, que entre nelle huma buxa quadrada de dous ou tres palmos, de sapupira merim: a qual buxa tambem em parte se vaza, e nella se encaixa o aguilhão de ferro, comprimento de tres palmos, grossura de hum caibro, á força de pancadas com hum vaivem de ferro. E para melhor segurança do aguilhão, e da buxa, se abre na cabeça dos quatro lados da buxa, com huma palmeta de ferro, á força de pancadas de vaivem; e se lhes mettem humas palmetas, menores de páo de lei, para não abrir. E pelo mesmo estilo de degráos, e argolas, buxa, e aguilhão com que temos dito se remata a parte superior dos dous eixos menores, se rematão tambem as partes inferiores de todos tres, ajuntando de mais a cada aguilhão seu pião de ferro, calçado de aço da grossura de huma maçã, que tambem se encaixa pela parte superior até dous dedos dentro do aguilhão; e pela parte inferior põe a ponta sobre outro ferro chato, que chamão manchal, de comprimento de hum palmo, tambem calçado de aço, para que senão fure com o continuo virar, que sobre elle faz o pião. E todos estes tres eixos, ou corpos de moenda, aonde chega o pião ao manchal, assentão sobre hum páo, que chamão ponte, de comprimento de quinze, ou dezeseis palmos: e para sustentar toda a moenda forte, e segura, servem quatro virgens, que são quatro esteios, altos da terra nove palmos, e grossos sete, semelhantes no seu officio de suster aos que sustentão as virgens grandes, e a porca, ou páo furado, por onde passa a ponta do eixo grande, que sobre os outros collateraes se levanta até a dita altura, como parte principal da moenda. Sobre estas virgens de ponta, a ponta vão huns páos, que chamão mesas, quasi hum palmo de grossura, e vinte de comprimento, sobre as quaes descanção as travessas, que chamão gatos; em que se movem os eixos pela parte superior; e sobre estas vai outro andar ao comprimento, de taboas que chamão agulhas, as quaes servem para segurar as unhas, com que se aperta a moenda. O lugar aonde se poem os feixes de canna, que immediatamente hade passar para se espremer entre os eixos, são dous taboleiros, hum de huma parte, e outro da outra, que tem seus encaixos, ou meios circulos ao redor dos eixos da moenda, afastados delles tanto, quanto basta para não lhes impedir suas voltas. E o estarem os taboleiros chegados aos eixos he para que não caia a canna, ou o bagaço della perto dos aguilhões, e retarde de algum modo aos piões; e para que se não suje o caldo, que sahe da canna moida. CAPITULO VI. Do modo de moer as cannas, e de quantas pessoas necessita a moenda. Moem-se as cannas, mettendo-se algumas dellas limpas da palha, e da lama (que para isso, se fôr necessario, se lavão) entre dous eixos, aonde apertadas fortemente se expremem, mettendo-se na volta, que dão os eixos, os dentes da moenda e nas entrozas para mais as apertar e espremer entre os corpos dos eixos chapeados, que vém unir-se nas voltas, e depois dellas passadas, torna-se de outra parte a passar o bagaço, para que se exprema mais, e de todo o çumo, ou licor, que conserva. E este çumo (ao qual depois chamão caldo) cahe da moenda em huma cocha de páo, que está deitada debaixo da ponte dos aguilhões, e dahi corre por huma bica a hum parol mettido na terra que chamão parol do caldo, donde se guinda com dous caldeirões, ou cubos para cima com roda, eixo, e correntes, e vai para outro parol, que está em hum sobradinho alto, a quem chamão guinda; e para dahi passar para a casa das caldeiras, aonde se hade alimpar. No espaço de vinte e quatro horas moe-se huma tarefa redonda de vinte e cinco até trinta carros de canna; e em huma semana das que chamão solteiras (que vem a ser, sem dia santo) chegão a moer sete tarefas, e o rendimento competente he huma fôrma, ou pão de assucar por fouce, a saber; quanto corta hum negro em hum dia. Nem o fazer mais assucar depende de moer mais canna, mas de ser a canna de bom rendimento, a saber; bem assucarada, não aguacenta, nem velha. Se metterem mais canna, ou bagaço, do que se convém, haverá risco de quebrar o rodete, e a moenda dará de si, e rangerá da parte de cima, e poderá ser, que se quebre algum aguilhão. Se a agua, que move a roda, fôr muita, moerá tanta canna, que se lhe não poderá dar vasão na casa das caldeiras, e o caldo azedará no parol de coar, por senão poder cozer em tanta quantidade, nem tão de pressa nas tachas. E por isso o feitor da moenda, e o mestre do assucar hão de ver o que convém, para que se não perca a tarefa. O lugar de maior perigo, que ha no engenho, he o da moenda: porque se por desgraça a escrava, que mette a canna entre os eixos, ou por força do somno, ou por cançada, ou por qualquer outro descuido, metteu desattentadamente a mão mais adiante do que devia; arrisca-se a passar moida entre os eixos, se lhe não cortarem logo a mão, ou o braço apanhado, tendo para isso junto da moenda hum facão, ou não forem tão ligeiros em fazer parar a moenda, divertindo com o pejador a agua, que fere os cubos da roda, de sorte, que dêem de pressa a quem padece de algum modo o remedio. E este perigo he ainda maior no tempo da noite, em que móe igualmente como de dia; posto que se revezem as que mettem a canna por suas esquipações: particularmente, se as que andão nesta occupação forem boçaes, ou acostumadas a se embriagarem. As escravas, de que necessita a moenda, ao menos são sete ou oito, a saber; tres para trazer a canna, huma para a metter, outra para passar o bagaço, outra para concertar, e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para alimpar o cocho do caldo (a quem chamão cocheira, ou catumbá), e os aguilhões da moenda, e refresca-los com agua para que não ardão, servindo-se para isso do parol da agua, que tem debaixo da rodete, tomada da que cahe no aguilhão, como tambem para lavar a canna enlodada, e outra finalmente para botar fóra o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se fôr necessario bota-lo em parte mais distante, não bastará huma só escrava mas haverá mister outra que a ajude; porque de outra sorte não se daria vazão a tempo, e ficaria embaraçada a moenda. Sobre o parol do caldo, que como temos dito, está mettido na terra, ha huma guindadeira, que continuamente guinda, para cima com dous cubos o caldo: e todas as sobreditas escravas, tem necessidade de outras tantas, que as revezem, depois de encherem o seu tempo, que vem a ser a ametade do dia, e a ametade da noite: e todas juntas lavão, de vinte e quatro, em vinte e quatro horas com agua, e vasculhos de piassaba toda a moenda. A tarefa das guindadeiras he guindar cada huma tres paroes de caldo, quando fôr tempo, para encher as caldeiras, e logo outros tres, succedendo desta sorte huma á outra, para que possão aturar no trabalho. E para o bom governo da moenda, além do feitor, que attende á tudo, neste lugar mais que em outros, parte de dia, e parte de noite, ha hum guarda, ou vigiador da moenda: cujo officio he, attentar em lugar do feitor, que a canna se metta, e se passe bem entre os eixos, que se despeje, e tire o bagaço, que se refresquem, e alimpem os aguilhões, e a ponte; succedendo algum desastre na moenda, elle he o que logo acode, e manda parar. CAPITULO VII. Das madeiras, de que se faz a moenda, e todo o mais madeiramento do engenho, canôas, e barcos; e do que se costuma dar aos carpinteiros, e outros semelhantes officiaes. Antes de passar da moenda para as fornalhas, e casa das caldeiras: parece-me necessario dar noticia dos páos, e madeiras, de que se faz a moenda, e todo o mais madeiramento do engenho, que no Brazil se póde fazer com escolha, por não haver outra parte do mundo tão rica de páos selectos, e fortes: não se admittindo nesta fabrica páo, que não seja de lei; porque a experiencia tem mostrado ser assim necessario. Chamão páos de lei aos mais solidos, de maior dura, e mais aptos para serem lavrados, e taes são os de sapucaia, e de sapupira, de sapupira-capi, de sapupira-merim, de sapupira-acis, de vinhatico, de arco, de jetay amarello, de jetay preto, de messetaûba, de massarandûba, páo brazil, jacarandá, páo de oleo, e picahi, e outros semelhantes a estes. O madeiramento da casa do engenho, casa das fornalhas, e casa das caldeiras, e a de purgar, para bem hade ser de massarandûba; porque he de muita dura, e serve para tudo, a saber: para tirantes, frechaes, sobrefrechaes, tesouras, ou pernas de asna, espigões, e terças: e desta casta de páo há em todo o reconcavo da Bahia, em toda a costa do Brazil. Os tirantes, e frechaes grandes, valem tres, e quatro mil réis, e ás vezes mais, conforme o seu comprimento, e grossura, assim toscos como vém do mato, só com a primeira lavradura. Os eixos da moenda se fazem de sapucaia, ou sapupira-cari: a ponta ou cabo do eixo grande, de páo de arco, ou de sapupira, os dentes dos tres eixos da moenda, do rodete, e da volandeira são de messataûba. As rodas de agua, de páo de arco, ou de sapupira, ou de vinhatico. Os arcos do rodete, e volandeira, e as aspas, e contra-aspas, de sapupira; as virgens, e mais esteios, e vigas de qualquer páo de lei. Os carros de sapupira-merim, ou de jetay, ou de sapucaia. O caliz, de vinhatico. As canôas de vinhatico, joairana, jequitiba, utunica, e angali. As cavernas, e braços dos barcos de sapupira, ou de ladim carvalho, ou de sapupira-merim, a quilha de sapupira, ou de paroba: os forros, e custados de utim, paroba, buragem, e unhuiba; os mastros de inhuibatan: as vergas de camassari; o leme de averno, ou angeli, as curvas, e rodas da prôa, e pôpa de sapupira, com seus coraes mettidos; as varas de mangue branco, e os remos, de lindirana, ou de genipapo. As caixas em que se mette o assucar de jequitiba, e camassari, e não havendo destas duas castas de páo, quanto basta, se poderáõ valer de burissica para fundos, e tampos. E estas taboas para as caixas vém da serraria já serradas, e no engenho só se levantão, endireitão, e aparão: e hão de ter nos lados, para bem, dous palmos e meio de largo, e sete e meio, ou oito de comprido. Valia huma caixa nos annos passados, dez, ou doze tostões, agora subírão a maior preço. Hum eixo da moenda tosco no mato, e torado só nas pontas, ou ainda oitavado, vale quarenta, cincoenta, e sessenta mil réis, e mais conforme a qualidade do páo, e a necessidade, que há delle. Os que vém de Porto Seguro, e Palippe, são somenos por serem creados em varzeas: os melhores são os que vém de Pitanga, e da Terra Nova, acima de Santo Amaro. Toda a moenda importa em mais de mil cruzados; além da roda grande de agua, que por ser cheia de cavilhas, e cubos vale mais de duzentos mil réis. Ao carapina da moenda, se dão cinco tostões cada dia a secco: e se lhe derem de comer, dá-se-lhe hum cruzado, e ainda mais nestes annos em que todos os preços subírão. Quasi o mesmo se dá aos carapinas de obra branca. Aos carapinas de barcos, e aos calafates se dão a seco sete tostões e meio: e seis tostões, ou duas patacas, se lhes der de comer. Hum barco velejado para carregar lenha, e caixas, custa quinhentos mil réis: hum barco para conduzir canna, trezentos mil réis: e huma rodeira, quatrocentos mil réis. As canôas vendem-se conforme a sua grandeza, e qualidade do páo. Por isso sendo as de que commummente se usa nos engenhos, humas pequenas, e outras maiores; maior, ou menor tambem será o preço dellas, a saber; de vinte, trinta, quarenta, e cincoenta mil réis. Cortão-se os páos no mato com machados no decurso de todo o anno, guardando as conjuncções da lua, a saber; tres dias antes da lua nova, ou tres dias depois della cheia: e tirão-se do mato diversamente, porque nas varzeas huns os vão rolando sobre estivas, outros os arrastão a poder de escravos, que puxão: e nos outeiros, de alto a baixo se decem com socairo; e para cima dos mesmos outeiros, tambem se arrastão puxando. Isto se entende aonde não há lugar de usar dos bois, por ser a paragem ou muito apique, ou muito funda, e aberta em covões. Mas aonde podem puxar os bois, se tirão do mato com tiradeiras, amarrando com cordas, ou com cipós, ou couros a tiradeira segurada bem com chavelhas: e na lama em tempo de chuva, dizem que se arrastão melhor, que em tempo de seca; porque com a chuva mais facilmente escorregão. CAPITULO VIII. Da casa das fornalhas, seus apparelhos, e lenha, que há mister: e da cinza, e sua decoada. Junto á casa da moenda, que chamão casa do engenho, segue-se a casa das fornalhas, bocas verdadeiramente tragadoras de matos, carcere de fogo, e fumo perpetuo, e viva imagem dos vulcões, vesuvios, etnas, e quasi disse do purgatorio, ou do inferno. Nem faltão perto destas fornalhas seus condemnados, que são os escravos bobentos, e os que tem corrimentos: obrigados a esta penosa assistencia para purgar com suor violento os humores gallicos; de que tem cheios seus corpos. Têem-se ahi tambem outros escravos facinorosos, que presos em compridas, e grossas cadeias de ferro, pagão neste trabalhoso exercicio os repetidos excessos da sua extraordinaria maldade com pouca, ou nenhuma esperança da emenda para o futuro. Nos engenhos reaes costuma haver seis fornalhas, e nellas outros tantos escravos assistentes, que chamão mettedores de lenha. As bocas das fornalhas são cercadas com arcos de ferro não só para que sustentem melhor os tijolos; mas para que os mettedores no metter da lenha não padeção algum desastre. Tem cada fornalha sobre a boca dous boeiros, que são como duas ventas, por onde o fogo resfolega. Os pilares, que se levantão entre huma, e outra, hão de ser muito fortes, de tijolo, e cal: mas o corpo das fornalhas faz-se de tijolo e barro para resistir melhor á vehemente actividade do fogo, ao qual não resistiria nem a cal nem a pedra mais dura: e as que servem para as caldeiras, são alguma cousa maiores, que as que servem para as taxas. O alimento do fogo he a lenha, e só o Brazil com a immensidade dos matos, que tem, podia fartar, como fartou por tantos annos, e fartará nos tempos vindouros, a tantas fornalhas, quantas são as que se contão nos engenhos da Bahia, Pernambuco, e Rio de Janeiro, que commummente moem de dia, e de noite; seis, sete, oito, e nove mezes no anno. E para que se veja quão abundantes são estes matos, só os de Jaguaripe bastão para dar lenha á quantos engenhos há á beira-mar no reconcavo da Bahia: e de facto quasi todos desta parte só se provem. Começa o cortar da lenha em Jaguaripe nos principios de Julho; porque os engenhos começão a moer em Agosto. Tem obrigação cada escravo de cortar, e arrumar cada dia huma medida de lenha, alta sete palmos, e larga oito, e esta he tambem a medida de hum carro; e de oito carros consta a tarefa. O cortar, carregar, arrumar, e botar a lenha no barco pertence a quem a vende: o arruma-la no barco, corre por conta dos marinheiros. Há barcos capazes de cinco tarefas, há de quatro, ha de tres; e custa cada tarefa dous mil e quinhentos réis, quando o senhor do engenho a manda buscar com seu barco: e se vier no barco do vendedor, ajuntar-se-ha de mais o frete conforme a maior, ou menor distancia do porto. Hum engenho real, que móe oito, ou nove mezes, gasta hum anno por outro dous mil cruzados na lenha: e houve anno, em que o engenho de Sergipe do Conde gastou mais de tres mil cruzados, por moer mais tempo, e por custar a lenha mais cara. Vem a lenha em barcos a véla, com quatro marinheiros, e o arraes: e para bem o senhor do engenho hade ter dous barcos, para que, em chegando hum, volte o outro. O melhor sortimento da lenha he aquelle, cuja metade consta de páos grandes, e travessos, que são menores; e outra de lenha miuda: porque a grossa serve para armar as fornalhas, e para cozer o assucar nas taxas, onde he necessario maior fogo para se coalhar: a mediana serve para fazer liga com a grossa; e a miuda serve para alimpar o caldo da canna nas caldeiras; porque para se levantar bem a escuma, demandão continuamente lavaredas de chammas. E por isso a grossa se chama lenha de taxas, e a miuda lenha de caldeiras. Chegada a lenha ao porto do engenho, arruma-se na sua bagaceira: e sempre he bem, que diante, ou perto das fornalhas estejão arrumadas cinco, ou seis tarefas de lenha. Gastão dous barcos de canna, ordinariamente hum de lenha, se fôr lenha sortida: porque se fôr miuda, não basta. O primeiro apparelho da lenha, para se botar fogo á fornalha chama-se armar: e isto vém a ser, empurrar rolos, e estendê-los no lastro (o que se faz com varas grandes que chamão trasfogueiros), e sobre elles cruzar travessos, e lenha miuda, para que levantada chegue mais facilmente com a chamma aos fundos das caldeiras, e taxas. E o mettedor hade estar attento ao que lhe mandão os caldeireiros, botando precisamente a lenha, que os de cima conhecem, e avisão ser necessaria: assim para que não transborde o caldo, ou melado dos cobres, como para que não falte o ferver; porque senão ferver em sua conta, não se poderá alimpar bem da immundice, que hade vir acima, para se tirar, e escumar das caldeiras. Porém, para as taxas quanto mais fogo melhor. A cinza das fornalhas serve para fazer decoada: e esta para alimpar o caldo da canna nas caldeiras, e para que saia o assucar mais forte. Para isso arrasta-se com rodo de ferro até a boca das fornalhas pouco a pouco a cinza, e borralho, e dahi com huma pá de ferro se tira, e se leva sobre a mesma para o cinzeiro, que he hum tanque de tijolo, sobre pilares de pedra, e cal, de figura quadrada, com suas paredes ao redor: e quasi se conserva quente, e assim quente se põe nas tinas que para isso estão levantadas da terra sobre huns esteios de tres palmos. Ahi depois de bem caldeada, e arrumada, se lhe bota agua tirada de hum taxo grande, que está fervendo sobre a sua proporcionada fornalha perto do cinzeiro. E para isso serve a agua, que passa pela bica, que vai a casa das caldeiras: e coando esta agua pela cinza, até passar pelos buracos que tem as tinas nos fundos, cobra o nome de decoada, e vai cahir nas fôrmas, ou vasilhas enterradas até a metade, e dahi se tira com hum côco, e se passa em hum taxo para a casa das caldeiras, aonde se reparte pelas fôrmas, que estão postas entre as caldeiras, e serve para os caldeireiros ajudarem com ella ao caldo, como se dirá em seu lugar. Hade-se porém de advertir, que nem toda a lenha he boa, para se fazer decoada: porque nem os páos fortes, nem a lenha seca servem para isso. E a razão he; porque os páos fortes fazem mais carvão, do que cinza: e a lenha miuda dá pouca cinza, e sem força. A melhor he a dos mangues brancos, e de páos molles, a saber; a de cajueiros, aroeiras, e gamelleiras. E para se conhecer, se a decoada he perfeita, hade se provar, tocando a lingua com huma pingadella sobre a ponta do dedo: e se arder, será boa; se não arder, será fraca. Tambem se sobejar cinza de hum anno para outro nas caixas, aonde a costumão guardar, antes de se pôr nas tinas, deve-se aquentar no cinzeiro, ou misturar-se com a primeira que se tirar das fornalhas com burralho: porque, se antes enfraqueceu, com este beneficio torna a dobrar seu vigor. CAPITULO IX. Das caldeiras, e cobres, seu apparelho, officiaes, e gente, que nellas ha mister: e instrumentos de que usão. A terceira parte deste edificio superior ás fornalhas, he a casa dos cobres: porque ainda que a esta se chame commummente casa das caldeiras, não são ellas só, que tem lugar nesta parte: mas outros grandes vasos de cobre, como são paroes, bacias, e taxas; e destes vasos tem os engenhos reaes dous ternos sempre em obra, porque de outra sorte não poderião dar vasão ao caldo, que vém da moenda. Estão estes cobres postos sobre a abobeda das fornalhas em assentos, ou encostadores de tijolo, e cal ao redor, abertos de tal sorte, que com o fundo, que mettem dentro da mesma fornalha, tapa cada qual a abertura em que se recebe, e entra por ella proporcionadamente ao corpo, que tem, a saber; menos as taxas, e muito mais as caldeiras, e assim como tem sua parede que divide huma da outra; e outra parede, que divide esta casa da outra contigua do engenho, assim tem diante de si hum, ou dous degráos, por onde se sobe a obrar nelles com os instrumentos necessarios nas mãos, e com bastante espaço, para dominar sobre elles com ajustada altura, e distancia, com caminho desafogado no meio, está o tendal das fôrmas, em que se bota o assucar já cozido a coalhar, e he capaz de oitenta, e mais fôrmas. Consta hum terno, ou ordem de cobres, além do parol do caldo, e do parol da guinda, que ficão na casa da moenda, de duas caldeiras, a saber; da do meio, e da outra de melar: de hum parol da escuma: de hum parol grande, que chamão parol do melado, e de outro menor que se chama parol de coar: de hum terno de taxas, que são quatro, a saber; a de receber, a da porta, a de cozer, e a de bater: e finalmente de huma bacia, que serve para repartir o assucar nas fôrmas. E de outros tantos cobres de igual, ou pouco menor grandeza, consta outro andar semelhante. Leva o parol do caldo de hum engenho real vinte arrobas de cobre: o parol da guinda, outras vinte arrobas: as duas caldeiras, sessenta arrobas: o parol da escuma, doze arrobas: o parol do melado, quinze arrobas: o parol de coar, oito arrobas: o terno das quatro taxas, a nove arrobas cada huma, trinta, e seis arrobas: a bacia, quatro arrobas: que em tudo são cento, e sessenta, e cinco arrobas de cobre, o qual vendendo-se lavrado, quando he barato, a quatrocentos réis a libra, importa em dous contos, duzentos, e quarenta mil réis, que são cinco mil, e seiscentos cruzados. E se accrescentar outro terno de cobres menores, ou iguaes, crescerá proporcionadamente seu valor. A parte, em que as caldeiras, e as taxas mais padecem, he o fundo: e se este fôr de ruim cobre, e não tiver grossura necessaria, não se poderá alimpar o caldo, como he bem, nas caldeiras: e o fogo queimará nas taxas ao assucar, antes de o cozer e bater. Por isso nos engenhos reaes, que móem sete, e oito mezes do anno, se tornão a refazer todos os fundos das caldeiras, e taxas. As pessoas, que assistem nesta casa, são o mestre do assucar, o qual preside a toda a obra: e corre por sua conta julgar se o caldo está já limpo, e o assucar cozido, e batido, quanto pede, para estar em sua conta: assiste ás temperas, e ao repartimento dellas nas fôrmas; além do que lhe cabe fazer na casa de purgar, de que fallaremos no seu proprio lugar. A sua assistencia principal he de dia; e ao chegar de noite entra a fazer o mesmo o banqueiro, que he como o contramestre desta casa: e da intelligencia, experiencia, e vigilancia de hum, e outro depende em grande parte o fazer-se bom, ou máo assucar. Porque ainda que a canna não seja, qual deve ser, muito póde ajudar a arte, no que faltou a natureza. E pelo contrario pouco importa que a canna seja boa, se o fructo della, e trabalho de tanto custo se botar a perder por descuido, com não pequeno encargo de consciencia para quem recebe avantajado estipendio. Tem mais por obrigação o banqueiro repartir de noite o assucar pelas fôrmas, assenta-las no tendal, e concerta-las com cipó. E para lhe diminuir o trabalho nestas ultimas obrigações, tem hum ajudante de dia, á quem chamão ajuda-banqueiro, o qual tambem reparte o assucar pelas fôrmas, assenta-as, e concerta-as, como está dito. Revezão-se nas caldeiras oito caldeireiros, divididos em duas esquipações, hum em cada huma, de assistencia continua, até entrega-la a seu successor, escumando o caldo que ferve, com cubos, e taxos. Obrigação de cada caldeireiro, he escumar tres caldeiras de caldo, que chamão tres meladuras; lhe hade dar a guindadeira meladuras; e a ultima se chama de entrega; porque a deve dar meia limpa ao caldeireiro, que o vém render. E para estas tres meladuras, lhe hade dar a guindadeira o caldo, que ha mister a seu tempo, a saber; acabada de escumar, e alimpar huma meladura, dar-lhe outra. Nas taxas trabalhão quatro taceiros por esquipações de assistencia, hum em cada terno de taxas: e tem por obrigação cada hum delles, cozer, e bater tanto assucar, quanto he necessario para se encher huma venda de fôrmas, que vém a ser quatro, ou cinco fôrmas. Serve finalmente para varrer a casa, e para concertar, e acender as candeias (que são seis, e ardem com azeite de peixe), e para tirar as segundas, e terceiras escumas do seu proprio parol, e torna-las a botar na caldeira, huma escrava, a quem chamão por alcunha a calcanha. He tambem esta casa lugar de penitentes; porque commummente, se vêem nellas huns mulatos, e huns negros crioulos exercitar o officio de taxeiros, e caldeireiros amarrados com grandes correntes de ferro a hum cepo, ou por fugitivos, ou por insignes em algum genero de maldades; para que desta sorte, o ferro, e o trabalho os amansem. Mas entre elles há as vezes alguns menos culpados, e ainda innocentes; por ser o senhor ou demasiadamente facil a querer o que lhe dizem, ou muito vingativo e cruel. Os instrumentos de que se usa na casa das caldeiras são escumadeiras, pombas, reminhões, cubos, passadeiras, repartideiras, taxos, vasculhos, batedeiras, bicas, cavadoures, espatulas, e picadeiras. Das escumadeiras, e pombas grandes usão os caldeireiros; servem as escumadeiras para alimpar: as pombas para botar o caldo de huma caldeira para outra, ou da caldeira para o parol, e por isso os cabos, assim de humas, como de outras tem quatorze, ou quinze palmos de comprido para se poderem menear bem. Os reminhões servem para botar agua, e decoada nas caldeiras; e para ajudar aos taxeiros a botar o assucar na repartideira, para ir ás fôrmas. Das escumadeiras mais pequenas, batedeiras, e passadeiras, picadeiras, e vasculhos usão os taxeiros, da repartideira, cavador, e espatulas, o banqueiro, e o ajuda-banqueiro; e dos taxos, cubos, e bicas usa a calcanha, para tirar a escuma do seu primeiro parol, e para torna-la a pôr na caldeira. Serve o vasculho para tirar alguma immundice ao redor das taxas, a picadeira para tirar o assucar, que está como grudado nas mesmas taxas e o cavador, para fazer no bagaço do tendal as covas aonde se poem as fôrmas. CAPITULO X. Do modo de alimpar, e purificar o caldo da canna nas caldeiras, e no parol de coar, até passar para as taxas. Guindando-se o çumo da canna (que chamão caldo) para o parol da guinda, dahi vai por huma bica a entrar na casa dos cobres: e o primeiro lugar, em que cahe, he a caldeira que chamão do meio, para nella ferver, e começar a botar fóra a immundicia, com que vém da moenda. O fogo faz neste tempo o seu officio; e o caldo bota fóra a primeira escuma, a que chamão cachaça: e esta por ser immundicia vai pelas bordas das caldeiras bem ladrilhadas fóra da casa, por hum cano bem enterrado, que a recebe por huma bica de páo, mettida dentro do ladrilho, que está ao redor da caldeira, e vai cahindo pelo dito cano, em hum grande cocho de páo, e serve para as bestas, cabras, ovelhas, e porcos; e em algumas partes tambem os bois a lambem; porque tudo he doce, e ainda que immundo, deleita. E para que o fogo não levante a escuma mais do que he justo, e dê lugar de se alimpar o caldo, como he bem: botão-lhe os caldeireiros de quando em quando agua com hum reminhol, e desta sorte se reprime a demasiada força da fervura, e o caldo ainda immundo se alimpa. Sahida a primeira escuma per si mesma, começão os caldeireiros com grandes escumadeiras de ferro a escumar o caldo, e ajuda-lo: e chamão ajudar o caldo, ou botar-lhe de quando em quando já hum maminhol de decoada, já outro de agua, que ahi tem perto: a agua nas tinas, e a decoada nas fôrmas. Serve a agua, para lavar o caldo, e a decoada para que toda a immundicia, que resta na caldeira, venha mais de pressa arriba, e não assente no fundo. Serve tambem para condençar o assucar; e fazê-lo mais forte; encorporando-se com o caldo, de modo que se encorpora o sal com a agua. Esta segunda escuma se guarda, e cahe para outra bica da mesma borda do ladrilho, para o parol mais baixo, e afastado do fogo, que se chama parol da escuma: e dahi com cubo, e taxo torna a bota-lo a negra calcanha, que tem isto por officio, na mesma caldeira, para se purificar, que chamão repassar: e vai por huma bica de páo, encavilhada sobre hum esteio de igual altura das caldeiras (a que chamão viola, por imitar no feitio a este instrumento), larga no corpo, ou parte, em que recebe a escuma; e estreita no cano, por onde cahe na caldeira. E tanto que o caldo apparece bem limpo (o que se conhece pela escuma, e pelos olhos, e em polas, que levanta, cada vez menores, e mais claros), com huma pomba grande, (que he hum vaso concavo de cobre com seu cabo de páo comprido doze, ou quinze palmos), o botão na segunda caldeira, que chamão de melar, e aqui se acaba de purificar, com o mesmo beneficio de agua, e decoada, até ficar totalmente limpo. Deixa-se alimpar o caldo na caldeira do meio commummente pelo espaço de meia hora: e já meio purgado passa a cahir na caldeira de melar por huma hora, ou cinco quartos, até acabar de se escumar: e nunca se tira todo o caldo das caldeiras, por razão dos cobres que padecerião detrimento do fogo, mas se lhes deixa dous ou tres palmos de caldo, e sobre este se bota o novo. A escuma tambem desta segunda caldeira vai ao parol da escuma, e dahi torna para a primeira, ou segunda caldeira até ao fim da tarefa; e desta escuma tomão os negros, para fazerem sua garapa, que he a bebida, de que mais gostão, e com que resgatão de outros seus parceiros, farinha, bananas, aipins, e feijões; guardando-a em potes até perder a doçura, e azedar-se; porque então dizem que está em seu ponto para se beber: oxalá com medida, e não até se embriagarem. A derradeira escuma da ultima meladura, que he a ultima purificação do caldo, chamão claros, e estes misturados com agua fria, são huma regalada bebida para refrescar, e tirar a sede nas horas, em que faz maior calma. Finalmente, tanto que o mestre do assucar julgar que a meladura está limpa, o caldeireiro com huma pomba bota o caldo, a que já chamão mel, no parol grande, que chamão parol do melado, e está fóra do fogo, mas junto á mesma caldeira; donde o coão para outro parol mais pequeno, que chamão parol de coar, com panos coadores estendidos sobre huma grade. E para que não caia alguma parte delle na passagem de hum parol para outro, e se perca, botão-lhe huma telha de fôrma de purgar, que com o seu arco, e volta a barca aos beiços de ambos os paroes, por onde corre o caldo, que cahe no passar da pomba, e vai dar em hum, ou em outro parol: e desta sorte nem huma só pinga se perde daquelle doce licôr: que bastante suor, sangue, e lagrimas custa para se ajuntar. CAPITULO XI. Do modo de cozer, e bater o melado nas taxas. Estando já o caldo purificado, e coado passa a cozer-se nas taxas, ajudadas de maior fogo, e chamma da que hão mister as caldeiras, com tanto que os fundos tenhão a grossura bastante, para resistir á maior novidade, que neste lugar se requer. E se o melado se levantar de sorte, que ameace transbordar; botando-lhe hum pouco de sebo, logo amaina, e se calla. O que talvez tambem faria huma boa razão, se houvesse quem a suggerisse no tempo, em que a indagação quer sahir fóra dos seus limites. Dizem que se se botasse qualquer licôr azedo nas caldeiras, ou nas taxas, como _verbi gratiâ_, çumo de limão, ou outro semilhante; o melado nunca se poderia coalhar, nem condensar, como se pretende: e allegão casos seguidos. Porém isto não parece ser certo, fallando de qualquer casta de licôr azedo, senão do de limão: porque já houve quem botou no caldo caxaça azeda em quantidade bastante, ou por fazer peça, ou por enfado, e impaciencia; e comtudo coalhou muito bem a seu tempo. Só de alguns animos se verifica, que por hum leve desgosto botão a perder hum grande cumulo, e não de quaesquer beneficios. O certo he, que em passando o melado, ou mel para as taxas, pede maior vigilancia, e attenção dos taxeiros, banqueiros, e soto-banqueiro, e mestre: porque este propriamente he o lugar em que obra como mestre intelligente, e aonde he necessario todo o cuidado, e artificio. Passando pois o melado do parol de coar para o terno das taxas, corre por cada huma dellas ordenadamente; e para em cada huma, quanto fôr necessario, e não mais, para o fim, que em cada qual se pretende. Na primeira taxa, que se chama a de receber, ferve, e começa a cozer-se, e se lhe tirão as escumas mais finas, que chamão netas, e se botão com huma pequena escumadeira em huma fôrma, que ahi está posta, e se as quizerem aproveitar, como he bem, faráõ della no fim da sismaria hum pão de assucar somenos: porque esta escuma não torna á taxa, como torna a do caldo ás caldeiras. Da taxa de receber, aonde está pouco tempo, passa-se o melado com huma passadeira de cobre (que he do feitio de huma pomba pequena) para a segunda taxa, que chamão da porta: e aqui continuando a ferver, e engrossar, se lançar de si para a borda alguma immundice, tira-se, e alimpa-se ao redor com hum vasculho, que he como hum pincel, ou escova de embira, amarrado na ponta de huma vara, e nesta taxa se deixa estar mais tempo até ficar já meio cozido. Daqui com a mesma passadeira, se bota na terceira taxa, que chamão de cozer: porque ainda que nas outras tambem se coza: comtudo aqui acaba-se de cozer, e de se condensar perfeitamente, até estar em seu ponto, para se bater: e isto o hade julgar o mestre, ou em seu lugar o banqueiro, pelo corpo, e grossura, que tem. E estando desta sorte, chama-se mel em ponto, grosso sufficientemente, e compacto, e já disposto para passar á quarta taxa, que chamão taxa de bater, aonde se mexe com huma batedeira, que he semelhante á escumadeira, mas com beiço, e sem furos, e bate-se, para se não queimar: e quando o tem bem batido, e com bastante cozimento, o levantão com a mesma batedeira sobre o taxo ao alto, que póde ser: e a isso chamão desafogar, no que os taxeiros mostrão destreza singular: e continuão assim, mais ou menos, conforme pedem as tres temperas, que se hão de fazer do assucar, que hade ir para as fôrmas. Das quaes temperas, por serem tão necessarias, e differentes, será bom fallar no capitulo seguinte. CAPITULO XII. Das tres temperas do melado, e sua justa repartição pelas fôrmas. Antes de passar o melado para as fôrmas, estando ainda na taxa de bater, se hade ajustar o cozimento ás temperas, que pede a lei de bem repartir. E tres são ellas, e entre si differentes, e cada huma leva cozimento diverso. Assim por diversos modos, e com repetidas razões, procuramos temperar os animos alterados de qualquer paixão vehemente. Chama-se a primeira tempera de principiar, ou tempera de bacia: a qual consta de mel solto, porque tem menos cozimento; e he o primeiro que se tira da taxa de bater logo no principio, e se bota em huma bacia fóra do fogo a par das taxas com a batedeira, aonde se meche com espatula, ou com reminhol virado com a boca para baixo. E tendo já o banqueiro, ou o ajuda-banqueiro apparelhado quatro, ou cinco fôrmas no tendal, dentro de humas covas de bagaço, com seu buraco fechado, e igualmente altas, ás quaes chamão venda; se passa esta tempera com reminhol dentro de huma repartideira, e a reparte pelas ditas quatro, ou cinco fôrmas, o banqueiro, ou o ajuda-banqueiro, ou algum taxeiro, porém com ordem do mestre; botando igualmente em cada huma dellas a sua porção de sorte que fique lugar, para receber as outras duas temperas, que logo se hão de seguir. A segunda chama-se tempera de igualar: e tem maior cozimento; porque o mel, que traz, esteve mais tempo na taxa de bater, e ahi mexido, e engrossado foi mais batido. E esta tambem tirada da taxa, e posta, e mexida com reminhol na bacia, para as ditas quatro fôrmas na repartideira, e com igual porção se reparte por ellas, aonde com espatulas se mexe mais que a primeira. Segue-se por ultimo a terceira, que chamão tempera de encher; a qual tem já todo o cozimento, e grossura necessaria: e com ella passada para a bacia, e mexida ainda mais com reminhol, e levada na repartideira para o tendal, se enchem as fôrmas, continuando com a espatula a mexer nellas todas as tres temperas, de sorte que perfeitamente se encorporem, e de tres se faça hum só corpo. Este beneficio he tão necessario; que sem elle o assucar posto nas ditas fôrmas, não se poderia depois branquear, e purgar. Porque se se botasse nas fôrmas só a tempera, que tem cozimento perfeito; coalharia, e se condensaria de tal sorte, que não poderia passar por elle a agua, que o hade lavar, depois de ser barreado. E se a tempera fosse totalmente solta, escorreria todo o assucar das fôrmas na casa de purgar, e se desfaria todo em mel. E assim com a mistura das tres temperas se coalha de tal sorte, que fica lugar a agua de passar pouco a pouco, conservando-se o assucar denso, e forte; e recebe o beneficio de branquear, sem o prejuizo de se derreter, senão quanto basta para perfeitamente se purgar. E achar este meio, com acertar bem nas temperas, he a melhor industria, e artificio do mestre: assim como esta he a maior difficuldade no exercicio das virtudes, que estão no meio de dous extremos viciosos. O melado, que se dá em pratos, e vasilhas para comer, he o da primeira, e segunda tempera. Do da terceira bem batido na repartideira se fazem as rapaduras tão desejadas dos meninos: e vem a ser melado coalhado sobre hum quarto de papel, com todas as quatro partes levantadas, como se fazem paredes, dentro das quaes endurece esfriando-se, de comprimento e largura da palma da mão. E bem aventurado o rapaz, que chega a ter hum par dellas, fazendo-se de mais boa vontade lambedor destes dous papeis, do que escrivão no que lhes dão para trasladar alphabetos. Com isto se entenderá donde nasce o ter esta doce droga tantos nomes diversos, antes de lograr o mais nobre, e o mais perfeito do assucar; porque conforme o seu principio, melhoria, e perfeição, e conforme os estados diversos, pelos quaes passa, vai tambem mudando de nomes. E assim na moenda chama-se çumo de canna: nos paroes do engenho até entrar na caldeira do meio, caldo: nesta, caldo fervido: na caldeira de melar, clarificado: na bacia, coado: nas taxas, melado: ultimamente tempera: e nas fôrmas assucar: de cujas diversas qualidades fallaremos quando chegarmos a vê-lo posto nas caixas. Os claros, ou ultima escuma das meladuras, que como temos dito, servem para a garapa dos negros, se lhes reparte alternadamente por esta ordem. No fim de huma tarefa se dão aos que assistem nas casas das caldeiras, e nas fornalhas: no fim de outra tarefa se dão ás escravas, que trabalhão na casa da moenda: e depois desta se dão aos que buscão caranguejos, e mariscos, para se repartirem: e aos barqueiros que trazem a canna, e a lenha ao engenho. E se sempre se repete a distribuição com a mesma ordem, para que todos os que sentem o peso do trabalho, cheguem tambem a ter o seu pote, que he a medida, com que se reparte este seu desejado nectar, e ambrosia. Quando se manda parar, ou pejar o engenho aos domingos, e dias santos, tira-se dos fundos das taxas, com huma picadeira de ferro, o melado, que ficou nelles grudado; porque com este não poderião esfriar-se, e além disto se lhes bota agua, para que se não queimem os cobres; e serve juntamente para os lavar; e assim se deixão as ditas taxas, até entrar nellas o mel, que se hade cozer. LIVRO TERCEIRO. CAPITULO PRIMEIRO. Das fôrmas do assucar, e sua passagem do tendal para a casa de purgar. São as fôrmas do assucar huns vasos de barro queimado na fornalha das telhas, e tem alguma semelhança com os sinos, altas tres palmos e meio, e proporcionadamente largas, com a maior circumferencia na boca, e mais apertadas no fim, aonde são furadas para se lavarem, e purgar o assucar por este buraco. Vendião-se por quatro vintens, salvo se a falta dellas, e o descuido de as procurar a seu tempo lhes accrescentasse o valor. O serem de ruim barro, e mal queimadas, he defeito notavel, como tambem o serem pequenas. As boas são capazes de dar pães de tres arrobas e meia. Tem na casa das caldeiras seu tendal cheio de bagaço de canna, que vem da bagaceira, o qual cavado com hum cavador de ferro, ou de páo, serve de cama, ou cova, para nelle se assentarem as fornalhas direitas em duas fileiras iguaes; e como temos dito acima, de cada quatro, ou cinco fôrmas consta huma venda. Antes de botar nellas o assucar, se lhes tapa o buraco, que tem no fundo, com seus tacos de folha de banana, e se assegurão com arcos de cipó, e canna brava, para que com a demasiada quantidade do assucar não arrebentem. Logo se lhes bota o assucar por temperas, como já temos dito; o qual no espaço de tres dias endurece diversamente, hum mais, outro menos: e ao que mais se endurece, e difficultosamente se quebra, chamão assucar de cara fechada, e ao que facilmente com qualquer pancada se quebra, chamão assucar de cara quebrada. Metaphoras, que tambem exprimem as diversas naturezas, e condições dos homens: huns tão vidrentos; outros tão tolerantes. E de ser bom, ou máo o assucar, depende o fazer as vendas de mais, ou menos fôrmas. Porque para o bom, que coalha de pressa, basta tomar quatro fôrmas: e para o que coalha mais de vagar basta seis, sete, ou oito fôrmas, para que crie com o maior tempo, que he necessário para as encher todas mais grão. Dahi passa ás costas dos negros, ou sobre paviolas para a casa de purgar da qual logo fallaremos. Faz hum engenho real de dous ternos de taxas, se a canna render bem, cada semana solteira perto, e passante de duzentos pães de assucar: mas se não render, apenas dá cento, e vinte. E o render pouco, nasce de ser a canna muito velha, ou de ser muito aguacenta, prova bem clara de serem os extremos, quaesquer que sejão, viciosos. CAPITULO II. Da casa de purgar o assucar nas fôrmas. A casa de purgar he commummente separada do edificio do engenho: e a melhor de quantas ha no reconcavo da Bahia, he sem duvida a do engenho de Sergipe do Conde, fabricada de pedra, e cal, emmadeirada com páos de massarandûba, e coberta com todo o aceio de telhas, de comprimento de quatrocentos, e quarenta, e seis palmos, e oitenta, e seis de largura, dividida em tres carreiras de andainas, com vinte, e seis pilares de tijolo no meio, altos quinze palmos, e meio, e largos quatro, para sustentarem o tecto, que assenta ao redor sobre paredes largas, e fortes. Recebe esta casa a luz, e ar necessario por cincoenta, e duas janellas, altas oito palmos, e largas seis, vinte e tres de cada banda, tres na fachada com sua porta, e tres na testada. Repartem-se as andainas por quarteis de taboas abertas em redondo sobre pilares de tijolo, altos da terra sete palmos; e leva cada taboa dez destas aberturas, para receber outras tantas fôrmas; de sorte, que por todas são capazes de purgar commodamente no mesmo tempo até a dous mil pães. Debaixo das ditas taboas, assim abertas, ha outras tantas taboas do mesmo comprimento, cavadas á maneira de regos, e inclinadas na parte dianteira, que servem de bicas, ou correntes, por onde corre o mel, que dos buracos das fôrmas, em que se purga o assucar, aos tanques enterrados, e ha no fim huma fornalha, para o cozer, e tornar a fazer delle assucar, com seu tendal, capaz de quarenta fôrmas. Ha tambem na entrada á mão esquerda da porta huma casinha de madeira, para nella guardar o assucar, que sobejou ao encaixar; e quantos instrumentos são necessarios para barrear, mascavar, secar, e encaixar: e o primeiro espaço da casa de purgar, capaz de trezentas caixas, antes de chegar ás andainas das fôrmas, serve de caixaria mais resguardada, e segura, com a porta ao poente, para que gozando toda a tarde do sol, defenda com o seu calor ao assucar do maior inimigo, que tem depois de feito, e encaixado, que he a humidade! Diante da porta da casa de purgar, levanta-se sobre seis pilares, hum alpendre de oitenta, e dous palmos de comprimento, e vinte e quatro de largo, debaixo do qual está o balcão de mascavar; e da outra parte está o cocho, para amassar o barro, que se bota nas fôrmas, para purgar o assucar: e mais adiante o balcão para o secar, comprido oitenta palmos, e largo cincoenta e seis, sustentado de vinte e cinco pilares de tijolo, mais alto no meio, e com bastante inclinação nos lados para excorrer a agua, que cahir do Céo, e ser de mais dura. E para isso serve tambem ser feito tambem de páo de lei, a saber; de massarandûba, de vinhatico, capaz de setenta toldos, e de secar no mesmo tempo outros tantos pães de assucar. CAPITULO III. Das pessoas, que se occupão em purgar, mascavar, secar, e encaixar: e dos instrumentos que para isso são necessarios. Aonde não há purgador (que sempre seria bom tê-lo), preside tambem na casa de purgar o mestre de assucar, a quem pertence julgar, como se hade botar o primeiro, e o segundo barro nas fôrmas; quando se hade humedecer, e borrifar mais ou menos, conforme a qualidade do assucar; e quando se hade tirar o barro, e o assucar das fôrmas. Mas, ainda que haja purgador distincto com sua soldada; sempre será bem, que este se aconselhe com o mestre, para obrar com maior acerto, e que tenhão ambos entre si toda a boa correspondencia, para que fiquem melhor servidos assim o senhor do engenho, como os lavradores, e elles mais acreditados em seus officios. Preside ao balcão de mascavar, e de secar, e ao peso, e ao encaixar do assucar o caixeiro: e corre por sua conta, repartir, e assentar com toda a verdade, e fidelidade o que cabe a cada qual de sua parte: pregar, e marcar as caixas, e entrega-las a seus donos. Trabalhão na casa de purgar quatro escravas, e são as que entaipão, e botão barro nas fôrmas do assucar, e lhe dão suas lavagens. No balcão de mascavar, assistem duas negras das mais experimentadas, que chamão mãis de balcão; e com outras o mascavão, e apartão o inferior do melhor huns negros, que trazem, e aventão as fôrmas, e tirão dellas os pães de assucar, e o amassador do barro de purgar, que he tambem outro negro. No balcão de secar trabalhão as mesmas duas mãis com as suas companheiras, que são até dez, estendendo os toldos, e cobrando com toletes as lascas, e os torrões grandes em outros menores a traz dos quebradores dos pães; e na caixaria ajudão ao caixeiro no peso, e encaixamento do assucar as negras, e negros, que são necessarios; como tambem no pilar, igualar, pregar, e marcar. Os instrumentos, de que se usa na casa de purgar são furadores de ferro, para furar os pães em direitura do buraco das fôrmas: cavadores tambem de ferro, para cavar o pão no meio da primeira cara, antes de lhe botar o primeiro, e o segundo barro; e macetes, para o intaipar. No balcão de mascavar usão de couros, para aventar sobre elles as fôrmas; de facões, e machadinhos, para mascavar; e de toletes, para quebrar o assucar mascavado. No balcão de secar são necessarios facões, toletes, e rodos, e o páo quebrador de quatro lados de costa para quebrar os pães de assucar. No peso, balanças, pesos de duas arrobas, e outros menores, com o da tara; pas, e passacús. Na caixaria, pilões, rodo, páo de assentar, ao qual huns chamão moleque de assentar, e outros juiz; enxo, verrumas, martelos, e pregos; pé de cabra, para tirar pregos das caixas; e o gastalho, que serve para unir as taboas raxadas, ou abertas, mettendo suas cunhas entre os lados das taboas, e os dentes ou buracos do gastalho, que a abraça por cima, e desce pelas ilhargas; e as marcas de ferro, com que se marca, e declara a quantidade do assucar, o numero das arrobas, e o signal do engenho, em que se fez, e encaixou. E desta sorte, qualquer arte se vale de seus instrumentos, para facilitar o trabalho, e sahir com suas obras perfeitas, o que sem elles não poderia alcançar, nem esperar. CAPITULO IV. Do barro, que se bota nas fôrmas do assucar: qual deve ser, e como se hade amassar: e se he bom ter no engenho olaria. O barro, com que se purga o assucar, tira-se dos apicús, que como temos dito, são as corôas, que faz o mar entre si, e a terra firme, e as cobre a maré. Vem este em barcos, canôas, ou balças, que são duas canôas juntas com páos atravessados, e sobre elles taboas, nas quaes se amontoa o barro. Chegado ao engenho, põe-se em lugar separado, e dahi passa a secar-se dentro das fornalhas, sobre hum andar de páos segurado com esteios, que chamão girão, sobre o cinzeiro, quando tem seu borralho, que he a cinza misturada com brazas. E ainda que se seque em quinze dias; com tudo ahi se deixa, tomando a seu tempo a quantidade, que fôr necessaria, para barrear as fôrmas já cheias, como se dirá em seu lugar. Seco se desfaz com macetes, que são páos para pisar; e dahi se bota em huma canôa velha, ou cocho grande de páo, e se vai desfazendo com agua, movendo-o, e amassando com seu rodo o negro amassador, que se occupa neste triste trabalho; pois os outros escravos, que cortão e trazem canna, e os que na moenda, nas caldeiras, nas taxas, na casa de purgar, e nos balcões, sempre tem em que petiscar: e só este miseravel, e os que mettem lenha nas fornalhas, passão em seco. E ainda que depois todos tenhão sua parte na repartição da garapa; comtudo sentem muito o trabalho sem este limitado alivio entre dia. Mas não faltão parceiros, que se compadeção de sua sorte, dando-lhes já huma canna, já hum pouco de mel, ou de assucar: e quando faltasse nos outros a compaixão: não faltaria a elles a industria para buscarem seu remedio, tirando donde quer quanto podem. O signal de estar bem amassado o barro, he não ter já godilhões, que são huns torrãosinhos ainda não desfeitos: e então está em seu ponto, quando botando-lhe hum pedaço de telha, ou hum caco de fôrma, se sustem na superficie, sem ir ao fundo. Do cocho se tira com huma cuia, e se bota em taxos de cobre, e nelles o levão para a casa de purgar: aonde com hum reminhol de cobre se tira dos taxos, e se reparte pelas fôrmas, quando fôr tempo, do modo que se dirá mais abaixo. Ter olaria no engenho, huns dizem, que escusa maiores gastos, porque sempre no engenho, há necessidade de fôrmas, tijolo, e telha. Porém outros entendem o contrario: porque a fornalha da olaria gasta muita lenha de armar-se, e muita de caldear: a de caldear hade ser de mangues: os quaes tirados, são a destruição do marisco, que he o remedio dos negros. E além disto a olaria quer serviço de seis, ou sete peças, que melhor se empregão no cannaveal, ou no engenho: quer oleiro com soldada, roda, e apparelho: e quer apicús, ou barreiro, donde se tire bom barro: e tudo isto pede muito gasto, e com muito menos se comprão as fôrmas, e as telhas, que são necessarias. O melhor conselho he metter hum crioulo em alguma olaria: porque este ganha a metade do que faz; e em hum anno chega a fazer tres mil fôrmas, das quaes o senhor se póde valer com pouco dispendio. Tendo porém o senhor do engenho muita gente, lenha, e mangues para mariscar de sobejo; poderá tambem ter olaria, e servirá esta officina para grandeza, utilidade, e commodidade do engenho. CAPITULO V. Do modo de purgar o assucar nas fôrmas: e de todo o beneficio, que se lhes faz na casa de purgar até se tirar. Entrando as fôrmas na casa de purgar, se deitão sobre as andainas, e se lhes tira o taco, que lhes mettêrão no tendal: e logo com hum furador agudo de ferro, de comprimento de dous palmos e meio, se furão os pães á força de pancadas, usando para isso do macete: e furados se levantão, e endireitão as fôrmas sobre as taboas, que chamão de furos, e entrando por elles quanto basta para se susterem seguras: e assim se deixão por quinze dias sem barro, começando logo a purgar, e pingando pelo buraco que tem, o primeiro mel: o qual recebido debaixo nas bicas, corre até dar no seu tanque. Este mel he inferior, e dá-se no tempo do inverno aos escravos do engenho, repartindo a cada qual cada semana hum taxo, e dous a cada casal, que he o melhor mimo, e o melhor remedio, que tem. Outros porém o tornão a cozer, ou o vendem para isso aos que fazem delle o assucar branco batido, ou estillão aguardente. Passados os quinze dias, dahi por diante se póde barrear seguramente: o que se faz deste modo. Cavão primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da cara da fôrma (que he a parte superior) o assucar já seco; e logo o tornão a igualar, e entaipar muito bem com macetes: botão-lhe então o primeiro barro, tirando-o com hum reminhol dos taxos, que viérão cheios delle do seu cocho, estando já amassado em sua conta; e com a palma da mão o extendem sobre toda a cara da fôrma, alto dous dedos. Ao segundo, ou terceiro dia, botão em riba do mesmo barro meio reminhol, ou huma cuia, e meia de agua: e para que não caia no barro de pancada, e cahindo faça covas no assucar; recebem sobre a mão esquerda, chegada ao barro, a agua, que botão com a direita igualmente sobre toda a superficie; e logo com a palma da mão direita mechem levemente ao barro, de sorte que com os dedos não cheguem a bolir na cara do assucar. E a este beneficio chamão humedecer, borrifar, e dar lavagens, ou tambem dar humidades: e destas o primeiro barro não leva mais que huma; e está na fôrma seis dias, donde se tira já seco, e cava-se outra vez o assucar no meio, como se fez ao principio, e entaipa-se; e com a mesma diligencia se lhe bota o segundo barro, o qual está na fôrma quinze dias, e leva, seis, sete, e mais humidades, conforme a qualidade do assucar: porque o que he forte, quer mais humidades, resistindo á agua, que hade correr por elle purgando-o, ás vezes até nove, e dez humidades. E se fôr fraco, logo a recebe, e fica em menos tempo lavado: mas disto não se alegra o dono do assucar: porque antes o quizêra mais forte, do que tão de pressa purgado. Tambem no verão he necessario repetir as lavagens mais vezes, a saber; de dous em dous, ou de tres em tres dias, conforme o calor do tempo: advertindo de lhe dar estas lavagens, antes que o barro chegue a abrir-se em gretas por seco. No tempo do inverno tambem se deixa o primeiro barro seis dias: e alguns não lhe dão outra humidade mais que a que traz comsigo; principalmente se forem dias de chuva. Porém tirado o primeiro, e posto o segundo, dão-lhe seis, sete, e oito humidades, de tres em tres dias, conforme a qualidade do assucar, e conforme obedecer ás ditas lavagens. Como o assucar vai purgando, assim se vai branqueando por seus gráos, a saber; mais na parte superior, menos na do meio, pouco na ultima, e quasi nada nos pés das fôrmas, aos quaes chamão cabuchos, e este menos purgado he o que se chama mascavado. Tambem como vai purgando, vai descendo o barro pouco a pouco dentro da fôrma: e se purgar bem de vagar, descendo só meia mão, que chamão medida de chave, e vem a ser desde a raiz do dedo polegar, até a ponta do dedo mostrador, a purgação será boa, e de rendimento de mais assucar, e forte, mas se purgar apressadamente renderá pouco. O purgar-se mais de pressa, ou mais de vagar o assucar nas fôrmas, nasce, parte da qualidade da canna boa, ou má; e parte do cozimento feito, e temperado em seu ponto. Porque se o cozimento fôr mais do que he justo, ficará o assucar empanturrado, e nunca se poderá purgar bem, resistindo ás lavagens não por forte, mas por demasiadamente cozido, e isto se conhecerá de não purgar, e de não descer o barro nas fôrmas. Pelo contrario, se o assucar levar pouco cozimento e a tempera fôr muito solta, irá pela maior parte desfeito em mel para as correntes. O fazerem os pães de assucar olhos, isto he, terem entre o assucar branco vêas de mascavado; huns dizem, que procede de botar mal as humidades no barro das fôrmas, e outros das temperas mais ou menos quentes, ou desigualmente botadas. O mel, que cahe das fôrmas depois de lhes botar barro torna a cozer-se, e abater-se nas taxas, que para isso estão destinadas, com sua bacia, e se faz delle assucar, que chamão branco batido; e dá tambem seu mascavado, que chamão mascavado batido. Ou se estilla delle aguardente, que nunca eu aconselharia ao senhor de engenho; para não ter huma continua desinquietação na sanzala dos negros: e para que os seus escravos, e escravas não sejão com a aguardente mais burrachos do que os faz a cachaça. O primeiro barro, que se pôz na fôrma alto dous dedos, quando se tira já seco, tem só altura de hum dedo, que he depois de seis dias: quando se tira o segundo (que se botou com a mesma altura de dous dedos) depois de quinze dias, tem só meio dedo de altura. Acabando o assucar de purgar, parão tambem as lavagens, e tres, ou quatro dias depois da ultima, tira-se o segundo barro já seco; e depois do barro fóra, dão-lhe mais oito dias, para acabar de enxugar, e escorrer: e então se póde tirar. Nem carece de admiração, o ser o barro, que de sua natureza he immundo, instrumento de purgar o assucar com suas lavagens: assim como com a lembrança do nosso barro, as almas se purificão, e branqueão as almas, que antes erão immundas. CAPITULO VI. Do modo de tirar, mascavar, e secar o assucar. Chegado o tempo de tirar o assucar das fôrmas, se passaráõ em hum dia muito claro tantas, quantas póde receber o balcão de secar: e passão ás costas dos negros, ou em paviolas, da casa de purgar para o balcão de mascavar. E quanto ao ser o dia muito claro, he ponto de grande advertencia: porque se o assucar se humedecer, ainda que o tornem a pôr ao sol, nunca mais tornará a ser perfeito, como era: assim como o que ficou de hum anno para o outro, perde de tal sorte o vigor, e alvura, que nunca mais a torna a cobrar: propriedade tambem da pureza, que huma vez offendida, nunca torna a ser o que foi. Preside a todo este beneficio o caixeiro; e corre por sua conta, o que agora direi. Ao pé do balcão, que chamão de mascavar, se aventão as fôrmas sobre hum couro; que vem a ser, bolir nellas de vagar, com as bocas viradas para o dito couro, para que saião bem os pães: os quaes postos successivamente por hum negro sobre hum toldo, que está estendido sobre hum balcão por mão de huma negra (a qual chamão mãi do balcão), se lhes tira com hum facão todo aquelle assucar mal purgado, e de côr parda, que tem na parte inferior, e isto se diz mascavar, e ao tal assucar chamão depois mascavado. E entretanto outra sua companheira, que he das mais praticas, tira com huma machadinha do mesmo mascavado, o mais humido, que chamão pé da fôrma, ou cabucho, e este torna para a casa de purgar em outras fôrmas, até se acabar de enxugar, e logo outras negras quebrão com toletes os torrões do mascavado sobre hum toldo, que tambem hade ir ao balcão de secar. A perfeição dos pães consistem em ter pouco mascavado, e darem duas arrobas e meia de assucar branco; que conforme a medida das fôrmas da Bahia, he muito bom rendimento. Se quizerem fazer caras de assucar para mimos, o caixeiro cortará aqui mesmo com hum facão a primeira parte do pão, de sorte que endireitada, e aplainada tenha huma arroba de peso: e estas depois de estarem ao sol, empalhão-se ou encourão-se, e vão para o reino. Tambem se quizer fazer lascas, cortará ao pão (depois de se lhe tirar o mascavado) em seis, ou oito partes, e as endireitará todas de quatro cantos em quadra; para irem tão vistosas, como doces. E querendo fazer fechos, ou caixas de encommenda, escolherá da parte do assucar, que couber a quem as manda fazer, o mais fino, que he o das caras das fôrmas, até doze arrobas por fecho, e trinta, até trinta e cinco por caixa. E do que temos dito até agora se entenderá bem o que querem dizer estes nomes, que significão varias repartições do assucar, a saber: caixa, fecho, pão, cara, lasca, torrão, e migalhas; guardando para outro capitulo o dar noticia de varias qualidades, e differenças de assucar. Passando pois do balcão de mascavar, para o balcão de secar, levão-se em primeiro lugar para elle tantos toldos, quantos são necessarios para o assucar, que naquelle dia se hade secar. E se fôr de diversos donos, se conhecerá a repartição, que cabe a cada qual, pelos toldos continuados na mesma fileira, se pertencerem ao mesmo; ou descontinuados, se forem de diversos senhores: e o que se diz do assucar branco, se hade dizer tambem do mascavado, repartido pelo mesmo estilo nas suas proprias fileiras. Isto feito, levão os pães para os toldos, e com hum páo grande, e redondo no cabo, em que se pega, e no remate do feitio chato, como huma lança sem ponta (ao qual chamão quebrador, ou molete de quebrar) quebrão em quatro partes aos pães, e cada huma destas em outras quatro: e logo outros com facões dividem as mesmas em torrões; e estes successivamente se tornão a partir com toletes, em outros torrões menores: e finalmente depois de estarem já por algum tempo ao sol, acabão-se de quebrar em torrãozinhos pequenos. E guarda-se de proposito esta ordem em quebrar o assucar, para que tendo dentro alguma humidade, quebrado, pouco a pouco se interne, e não se faça logo em migalhas, ou em pó. Estando assim extendido, pegão nas pontas dos toldos, e levantando-as fazem em cada toldo hum montão, e entretanto aquentão-se as taboas, e os toldos, e logo tornão a abrir aquelles montes com rodos; e desta sorte as partes, que erão interiores, ficão expostas ao sol, e as outras extendidas sobre as pontas dos toldos, sentem o calor, que elles, e as taboas ganhárão. Espalhado torna-se a mexer com rodos de camboa, como elles dizem, a saber; hum de huma banda, e outro de outra, empurrando cada hum de sua parte o assucar, e puchando por elle por modo opposto, ao que faz no mesmo toldo o negro fronteiro, até acabar de secar. E se de repente apparecer alguma nuvem, que ameace dar chuva, logo acode toda a gente, ainda (se fôr necessario) a que trabalha na moenda; pejando o engenho, até se recolher nos mesmos toldos o assucar dentro da casa de encaixar, ou em outra parte coberta, e daqui torna outra vez para o balcão em outro dia claro, estando as taboas enxutas. Que se o tempo der lugar de enxugar perfeitamente o assucar no mesmo dia no balcão, passará logo (do modo que agora direi) ao peso, e se encaixará com sua regra. CAPITULO VII. Do peso, repartição, e encaixamento do assucar. Do balcão de secar vai o assucar em toldos ao peso, estando presente o caixeiro, que tudo assenta com fidelidade e verdade, para que se dê justamente a cada hum o que he seu. E para isso ha balanças grandes, de pesos de duas arrobas, e outros menores de libras, com o peso tambem da tara do Passacú, em que vai o assucar ao peso: usando de pá pequena, para tirar o que sobeja, ou ajuntar o que falta. E assim como as duas mãis do balcão ajudão ao peso, para dar lugar ao caixeiro, que está assentando o que pesa, assim dous negros levão o assucar pesado para as caixas enxutas, e bem apparelhadas, a saber; barreadas por dentro nas juntas com barro, e folhas secas de bananeira sobre o barro; pondo igualmente tanto assucar na caixa do senhor do engenho, quanto na caixa do lavrador, cuja canna se moeu no mesmo engenho, sendo lavrador de suas proprias terras, e não das do engenho: porque, se as terras forem do engenho, paga tambem o lavrador vintena ou quinto, que vem a ser além da ametade, de cada cinco pães hum, ou hum de cada vinte, conforme o uso das terras: porque em Pernambuco paga quinto, e na Bahia vintena, ou quindena, que vem a ser de quinze hum, conforme o que se ajustou nos arrendamentos, por serem as terras já de rendimento, ou por necessitarem de menos limpas. E assim como se pesa, e reparte igualmente o branco, assim se pesa, e reparte do mesmo modo o mascavado entre o senhor do engenho, e o lavrador, que móe, como temos dito, de meias, e só ficão os meles por em cheio ao senhor do engenho, por razão dos muitos gastos que faz. Tira-se tambem o dizimo, que se deve a Deos, que vem a ser de dez hum: e este fica no engenho, e põe-se nas caixas, que anticipadamente manda o contratador dos dizimos ao caixeiro vazias, e delle as torna a cobrar cheias. O assucar, que se bota nas caixas, ao principio sómente se iguala com rodo, e pilões, e não se pila, para que se não quebrem as caixas. Porém depois de se botar nellas dous, ou tres pesos, que vem a ser quatro, ou seis arrobas, então se pila com oito, ou dez pilões, quatro ou cinco de cada banda, para que assente unido igualmente. E ainda que a derradeira porção do assucar, que se chama cara da caixa, he bem que seja do mais escolhido, comtudo seria grande descredito do engenho, engano, e manifesta injustiça, se no meio se botassem batidos, e na cara assucar mais fino, para encobrir com o bom o ruim, e fazer tambem ao assucar hypocrita. Acabada de encher a caixa, iguala-se com rodo, e com hum páo chato, e grosso, que huns chamão-lhe moleque de assentar, outros juiz: e logo se prega usando de verruma, pregos, e martelo, e do gastalho, ou gato para apertar alguma taboa rachada, do modo que acima está dito. Leva huma caixa oitenta e seis pregos, e ultimamente se marca do modo que diremos conforme a differença do assucar, que agora se hade explicar. CAPITULO VIII. De varias castas de assucar, que separadamente se encaixão: marcas das caixas, e sua conducção ao trapiche. Antes de marcar as caixas, he necessario fallar de varias castas de assucar, que separadamente se encaixão; porque tambem nesta droga ha sua nobreza, ha casta vil, ha mistura. Ha primeiramente assucar branco, e mascavado; o branco toma este nome da côr que tem, e muito se louva, e estima no assucar, mais admiravel, por quanto se lhe communica do barro. O mascavado de côr parda he o que se tira do fundo das fôrmas, a que chamão pés, ou cabuchos. Do branco ha fino, ha redondo, e ha baixo, e todos são assucares machos. O fino he mais alvo, mais fechado, e de maior peso, e tal he ordinariamente a primeira parte, que chamão cara da fôrma. O redondo he algum tanto menos alvo, e menos fechado, e tal he commummente o da segunda parte da fôrma: e digo commummente; porque não he esta regra infallivel, podendo acontecer, que a cara de algumas fôrmas seja menos alva, e menos fechada, que a segunda parte da outra fôrma. O baixo he ainda menos alvo, e quasi trigueiro na côr: e ainda que seja bem fechado e forte, comtudo por ter menos alvura, chama-se baixo, ou inferior. Além destas tres castas de branco, ha outro, que chamão branco batido feito do mel, que escorreu das fôrmas do macho na casa de purgar, cozido, e batido outra vez; e sahe ás vezes tão alvo e forte, como o macho. E assim como ha mascavado macho, que he o pé das fôrmas do branco batido. O que pinga das fôrmas do macho, quando se purga, chama-se mel, e o que escorre do batido branco, chama-se remel. Do mel huns fazem aguardente estillando-o: outros o tornão a cozer, para fazerem batidos, e outros o vendem a panellas aos que o estillão, ou cozem: e o mesmo digo do remel. Vista a diversidade dos assucares, segue-se fallar das marcas, que se hão de pôr com a mesma distincção nas caixas. Marcão-se as caixas com ferro ardente, ou com tinta: e tres são as marcas que hade levar cada caixa, a saber; a das arrobas, a do engenho, e a do senhor, ou mercador, por cuja conta se embarca. A marca de fogo do numero das arrobas se põe em cima na cabeça da caixa, junto ao tampo, começando do canto da banda direita, de tal sorte que abarque juntamente a cabeça da caixa, e o tampo. E isto se faz para que, se depois abrirem a caixa, se conheça mais facilmente pelas partes da marca, que estão na cabeça, e não correspondem ás outras partes, que estão na borda do tampo. A marca do engenho, tambem de fogo, se põe na mesma testa da caixa, junto ao fundo, no canto da banda direita; para que se possão averiguar as faltas, que poderião haver no encaixamento do assucar. Porque assim como ás vezes nas pipas de breu, que vem de Portugal, se achão pedras breadas, e nas peças de pano de linho fino por fóra, no meio se acha pano de estopa, ou menor numero de varas, que as que apontão na face da peça: assim se poderião marcar nas caixas menos arrobas das que se apontão na marca; e, no meio da caixa, assucar mascavado por branco, como tem já acontecido por culpa de algum caixeiro infiel. A marca do senhor do assucar, ou do mercador, por cuja conta se embarca, se fôr de fogo, se põe no meio da dita testa da caixa, e, se não fôr de fogo, põe-se no mesmo lugar com tinta o seu nome; o qual se poderá tirar com huma enxó, quando se vender a caixa a outro mercador, pondo na dita parte o nome de quem a comprou. Leva a marca do branco macho hum só B., o branco batido dous B. B., o mascavado macho hum M., o mascavado batido hum M., e hum B. A marca _verbi gratiâ_ do engenho de Sergipe do Conde leva hum S., da Pitanga hum P. E., a marca _verbi gratiâ_ do Collegio da Companhia de Jezus leva huma cruz dentro de hum circulo desta figura [**imagem 🕀]. Nos engenhos á beira-mar, levão-se as caixas ao porto desta sorte. Com rodos e espeques, passão huma a traz de outra da casa da caixaria para huma carreta, feita para isso mesmo mais baixa; e sobre esta se leva cada caixa até ao porto, puxando pelas cordas os negros de quem a manda embarcar por sua conta. Dos engenhos pela terra dentro, vem cada caixa sobre hum carro com tres, ou quatro juntas de bois, conforme as lamas, que hão de vencer: e nisto custa caro o descuido; porque por não as trazerem no tempo do verão, depois no inverno estafão-se, e matão-se os bois. Do porto passa sobre taboas grossas a pique para o barco; e, ao entrar, hão de ter mão nella com socairo, para que não caia de pancada, e padeça algum detrimento. No barco se hão de arrumar as caixas muito bem, para que vão seguras, nem se mettão mais, antes menos, das que o barco póde receber, e levar: e seja forte, e bem velejado, e com arrais pratico das corôas, e pedras, e com marinheiros não aturdisados de aguardente, sahindo com bom tempo e maré. Do engenho até o trapiche, ou até a náo em que se embarca, paga cada caixa, que vem por mar, huma pataca de frete. Ao entrar, e sahir do trapiche, meia pataca. No primeiro mez, quer começado só, quer acabado, ainda que não fossem mais do que dous dias, paga dous vintens: nos outros mezes seguintes, hum vintem cada mez. E se o trapicheiro, ou o caixeiro do trapiche vender por commissão do dono algum assucar, ganha huma pataca por cada caixa. E com isto temos levado o assucar do cannaveal, aonde nasce, até aos portos do Brazil, donde navega para Portugal, para se repartir por muitas cidades da Europa. Falta agora dizer alguma cousa dos preços antigos, e modernos delle, e das causas, porque são hoje tão excessivos. CAPITULO IX. Dos preços antigos, e modernos do assucar. De vinte annos a esta parte mudárão-se muito os preços assim do assucar branco, como do mascavado, e batido. Porque o branco macho, que se vendia por oito, nove, e dez tostões a arroba, subio depois a doze, quinze, e dezaseis, e ultimamente a dezoito, vinte, e vinte dous, e vinte e quatro tostões, e depois tornou a dezaseis. Os brancos batidos, que se largavão por sete, e oito tostões, subirão a doze, e a quatorze. O mascavado macho, que valia cinco tostões, vendeu-se por dez, e onze, e ainda mais. E o mascavado batido, cujo preço era hum cruzado, chegou a seis tostões. A necessidade obriga a vender barato, e a queimar (como dizem) o assucar fino, que tanto custa aos servos, aos senhores do engenho, e aos lavradores da canna, trabalhando e gastando dinheiro. Tambem a falta de navios he causa de se não dar por elle o que vale. Mas o ter crescido tanto nestes annos o preço do cobre, ferro, e pano, e do mais que necessitão os engenhos; e particularmente o valor dos escravos, que os não querem largar por menos de cem mil réis, valendo antes quarenta, e cincoenta mil réis os melhores; he a principal causa de haver subido tanto o assucar, depois de haver moeda provincial, e nacional, e depois de descobertas as minas de ouro, que servírão para enriquecer a poucos, e para destruir a muitos: sendo as melhores minas do Brazil os cannaveaes, e as malhadas em que se planta o tabaco. Se se attentar para o valor intrinseco, que o assucar merece ter pela sua mesma bondade, não há outra droga, que o iguale. E se tanto sabe a todos a sua doçura, quando, o comem, não há razão, para que se lhe não dê tal valor extrinseco, quando se compra, e vende, assim pelos senhores do engenho, e pelos mercadores, como pelo magistrado a quem pertence ajusta-lo; que possa dar por tanta despeza algum ganho digno de ser estimado. Portanto, se se reduzirem os preços das cousas que vem do Reino, e dos escravos que vem da Angola e costa de Guiné, a huma moderação competente; poderáõ tambem tornar os assucares ao preço moderado de dez, ou doze tostões: parecendo á todos impossivel o poderem continuar de huma e outra parte tão demasiados excessos, sem se perder o Brazil. CAPITULO X. Do numero das caixas de assucar, que se fazem cada anno ordinariamente no Brazil. Contão-se no territorio da Bahia ao presente cento e quarenta e seis engenhos de assucar, moentes e correntes: além dos que se vão fabricando, huns no reconcavo á beira-mar, e outros pela terra dentro, que hoje são de maior rendimento. Os de Pernambuco, posto que menores, chegão a duzentos e quarenta e seis, e os do Rio de Janeiro a cento e trinta e seis. Fazem-se hum anno por outro nos engenhos da Bahia quatorze mil e quinhentas caixas de assucar. Destas vão para o Reino quatorze mil, a saber, oito mil de branco macho, tres mil de mascavado macho, mil e oitocentas de branco batido, mil e duzentas de mascavado batido: e quinhentas de varias castas se gastão na terra. As que se fazem nos engenhos de Pernambuco, hum anno por outro, são doze mil e trezentas. Vão doze mil e cem para o Reino, a saber; sete mil de branco macho, duas mil e seiscentas de mascavado macho, mil e quatrocentas de branco batido, mil e cem de mascavado batido: e gastão-se na terra duzentas de varias castas. No Rio de Janeiro fazem-se hum anno por outro dez mil e duzentas e vinte. As dez mil e cem vão para o Reino, a saber; cinco mil e seiscentas de branco macho, duas mil e quinhentas de mascavado macho, mil e duzentas de branco batido, oitocentas de mascavado batido, e ficão na terra cento e vinte de varias castas, para o gasto della. E juntas todas estas caixas de assucar, que se fazem hum anno por outro no Brazil, vem a ser trinta e sete mil e vinte caixas. CAPITULO XI. Que custa huma caixa de assucar de trinta, a cincoenta arrobas, posta na alfandega de Lisboa, e já despachada: e do valor de todo o assucar que cada anno se faz no Brazil. Do rol, que se segue, constará primeiramente com exacta distincção o custo, que faz huma caixa de assucar branco macho de trinta e cinco arrobas, desde que se levanta em qualquer engenho da Bahia, até se pôr na alfandega de Lisboa, e pela porta della fóra, e logo o que custa huma de mascavado macho, huma de branco batido, e huma de mascavado batido. Em segundo lugar o resumo do valor de todo o assucar, que cada anno se faz nas safras da Bahia, Pernambuco, e Rio de Janeiro. Custos de huma caixa de assucar branco macho de trinta e cinco arrobas. Pelo caixão no engenho ao menos 1$200 Por se levantar o dito caixão 50 Por 86 pregos para o dito caixão 32 Por 35 arrobas de assucar a 1$600 réis 56$000 Por carreto á beira-mar 2$000 Por carreto do porto do Maratí ao trapiche 320 Por guindaste no trapiche 80 Por entrada no mesmo trapiche 80 Por aluguer do mez no dito trapiche 20 Por se botar fóra do trapiche 160 Por direitos do subsidio da terra 300 Por direito para o forte do mar 80 Por frete do navio 11$520 Por descarga em Lisboa para alfandega 200 Por guindaste na ponte da alfandega 40 Por se recolher da ponte para o armazem 60 Por se guardar na alfandega 50 Por cascavel de arquear por cada arco 80 Por obras, taras, e marcas 60 Por avaliação, e direitos grandes a 800 réis, e a 20 por cento 5$600 Por consulado a 3 por cento 840 Por comboy a 140 réis por arroba 4$900 Por maioria 600 ------ O que tudo importa em Rs. 84$560 Custos de huma caixa de assucar mascavado macho de trinta e cinco arrobas. Por 35 arrobas do dito assucar a 1$000 réis 35$000 Por avaliação, e direitos a 450 réis, e 20 por cento 3$150 Por consulado a 3 por cento 472 Por todos os mais gastos 22$120 ------ O que tudo importa em Rs. 60$742 Custos de huma caixa de assucar branco batido de trinta e cinco arrobas. Por 35 arrobas do mesmo assucar a 1$200 réis 42$000 Por avaliação, e direitos a 600 réis, e a 20 por cento 4$720 Por consulado a 3 por cento 648 Por todos os mais gastos 22$120 ------ O que tudo importa em Rs. 69$488 Custos de huma caixa de assucar mascavado batido de trinta e cinco arrobas. Por 35 arrobas do dito assucar a 640 réis 22$400 Por avaliação, e direitos a 300 réis, e 20 por cento. 2$100 Por consulado a 3 por cento 315 Por todos os mais gastos 22$120 ------ O que tudo importa em Rs. 46$935 Caixas de assucar, que ordinariamente se tirão cada anno da Bahia: e o que importa o valor dellas a 35 arrobas. Por 8,000 caixas de branco macho a 84$560 réis 676:480$000 Por 3,000 caixas de mascavado branco a 60$742 réis 182:226$000 Por 1,800 caixas de branco batido a 69$488 réis 125:078$400 Por 1,200 caixas de mascavado batido a 46$935 réis 56:322$000 Por 500 caixas que se gastão na terra a 60$200 réis 30:100$000 ------------- São 14,500 caixas que importão em Rs. 1,070:206$400 Caixas de assucar, que ordinariamente se tirão cada anno de Pernambuco, e o que importa o valor dellas a 35 arrobas. Por 7,000 caixas de branco macho a 78$420 réis 548:940$000 Por 2,600 caixas de assucar mascavado macho a 54$500 réis 141:700$000 Por 1,400 caixas de branco batido a 63$200 réis 88:480$000 Por 1,100 caixas de mascavado batido a 39$800 réis 43:780$000 Por 200 caixas que se gastão na terra a 56$200 réis 11:240$000 ----------- São 12,300 caixas, e importão em Rs. 834:140$000 Caixas de assucar que ordinariamente se tirão cada anno do Rio de Janeiro, e o que importa o valor dellas a 35 arrobas. Por 5,600 caixas de branco macho a 72$340 réis 405:104$000 Por 2,500 caixas de mascavo macho a 48$220 réis 120:550$000 Por 1,200 caixas de branco batido a 59$640 réis 71:568$000 Por 800 caixas de mascavo batido a 34$120 réis 27:296$000 Por 120 caixas para o gasto da terra a 52$320 réis 6:278$400 ----------- São 10,220 caixas, e importão em Rs. 630:796$400 Resumo do que importa todo o assucar. O da Bahia 1,070:206$400 O de Pernambuco 834:140$000 O do Rio de Janeiro 630:796$400 ------------- Somma tudo em Rs. 2,535:142$800 CAPITULO XII. Do que padece o assucar desde o seu nascimento na canna até sahir do Brazil. He reparo singular dos que contemplão as cousas naturaes, ver que as que são de maior proveito ao genero humano, não se reduzem á sua perfeição sem passarem primeiro por notaveis apertos: e isto se vê bem na Europa no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, fructos da terra tão necessarios, enterrados, arrastados, pizados, expremidos, e moidos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vêmos na fabrica do assucar, o qual desde o primeiro instante de se plantar, até chegar ás mesas, e passar entre os dentes a sepultar-se no estomago dos que o comem, leva huma vida cheia de taes e tantos martyrios, que os que inventárão os tyrannos, lhes não ganhão vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao Imperio do Creador, deu liberalmente canna, para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens; estes, desejozos de multiplicar em si deleites e gostos, inventárão contra a mesma canna, com seus artificios, mais de cem instrumentos, para lhe multiplicarem tormentos e penas. Por isso primeiramente fazem em pedaços as que plantão, e as sepultão assim cortadas na terra. Mas ellas tornando logo quasi milagrosamente a resuscitar, que não padecem dos que as vêem sahir com novo alento, e vigor? Já abocanhadas de varios animaes; já pizadas das bestas, já derrubadas do vento; e em fim descabeçadas e cortadas com fouces. Sahem do cannaveal amarradas: e oh quantas vezes antes de sahirem dahi, são vendidas! Levão-se assim presas, ou nos carros, ou nos barcos á vista das outras, filhas da mesma terra, como os réos que vão algemados para a cadeia, ou para o lugar do supplicio padecendo em si confusão, e dando á muitos terror. Chegadas á moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de sustancia? Com que desprezo se lanção seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimão sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor sahio de suas vêas, e quanta substancia tinhão nos ossos: tratea-se, e suspende-se na guinda: vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada: feito quasi lama no cocho, para fartar ás bestas e aos porcos; sahe do parol escumando, e se lhe imputa a bebedice dos burrachos. Quantas vezes o vão virando, e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por assadores, o batem com batedeiras, experimentando elle de taxa em taxa o fogo mais vehemente; ás vezes quasi queimado; e ás vezes desafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas: multiplica-se a agitação com as espatulas: deixa-se esfriar como morto nas fôrmas: leva-se para a casa de purgar sem terem contra elle hum minimo indicio de crime; e nella chora furado, e ferido a sua tão malograda doçura. Aqui dão-lhe com barro na cara: e para maior ludibrio, até as escravas lhe botão sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lagrimas, por tantos rios, quantas são as bicas, que as recebem; e tantas são ellas, que bastão para encher tanques profundos. Oh crueldade nunca vista? As mesmas lagrimas do innocente se poem a ferver, e a bater de novo nas taxas: as mesmas lagrimas se estallão á força do fogo em lambique: e quando mais chora sua sorte, então tornão a dar-lhe na cara com barro, e tornão as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sahe desta sorte de purgatorio, e do carcere, tão alvo, como innocente; e sobre hum baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhes cortem os pés com facões: e estas não contentes do lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgão de lhes fazer os mesmos pés em migalhas. Dahi passa ao ultimo theatro de seus tormentos, que he outro balcão maior, e mais alto; aonde exposto a quem o queira maltratar, experimenta o furor de toda a gente sentida, e enfadada do muito que trabalhou andando a traz delle: e por isso partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes, quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas: mas os seus tormentos gravissimos, assim como não tem conta, assim não ha quem possa bastantemente pondera-los, ou descrevê-los. Cuidava eu, que depois de reduzido elle a este estado tão lastimoso, o deixassem: mas vejo, que sepultado em huma caixa, não se fartão de o pisarem com pilões, nem de lhe darem na cara, já feita com hum páo. Pregão-no finalmente, e marcão com fogo ao sepulcro, em que jaz: e assim pregado, e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido, e revendido, preso, confiscado, e arrastado: se se livra das prisões do porto, não se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições, e tributos, tão seguro de ser comprado, e vendido entre christãos, como arriscado a ser levado para Argel entre Mouros. E ainda assim, sempre doce, e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saude nas mezinhas aos enfermos, e grandes lucros ao senhor de engenho, e aos lavradores, que o perseguírão, e aos mercadores que o comprárão, e o levárão degradado, nos portos; e muito maiores emolumentos á fazenda real nas alfandegas. SEGUNDA PARTE. CULTURA, E OPULENCIA DO BRAZIL NA LAVRA DO TABACO. CAPITULO PRIMEIRO. Como se começou a tratar no Brazil da planta do tabaco: e a que estimação tem chegado. Se o assucar do Brazil o tem dado a conhecer, a todos os reinos, e provincias da Europa; o tabaco o tem feito muito mais afamado em todas as quatro partes do mundo: em as quaes hoje tanto se deseja, e com tantas diligencias, e por qualquer via se procura. Ha pouco mais de cem annos, que esta folha se começou a plantar, e beneficiar na Bahia: e vendo o primeiro, que a plantou, o lucro, posto que moderado, que então lhe dérão humas poucas arrobas, mandadas com pequena esperança de algum retorno a Lisboa, animou-se a plantar mais, não tanto por cobiça de negociante, quanto por se lhe pedir dos seus correspondentes, e amigos, que a repartião por preço accommodado, porém jamais levantado. Até que imitado dos visinhos, que com ambição a plantárão, e enviárão em maior quantidade: e depois de grande parte dos moradores dos campos, que chamão da Cachoeira, e de outros do sertão da Bahia: passou pouco a pouco a ser hum dos generos de maior estimação, que hoje sahe desta America Meridional para o reino de Portugal, e para os outros reinos, e republicas de nações extranhas. E desta sorte huma folha de antes desprezada, e quasi desconhecida, tem dado, e dá actualmente grandes cabedaes aos moradores do Brazil, e incriveis emolumentos aos erarios dos principes. Desta pois fallaremos agora, mostrando primeiramente como se semea, e planta: como se alimpa, e colhe; como se beneficia, e cura: como se enrola, e despacha na alfandega. Segundo: como se pisa, e se lhe dá o cheiro: qual he melhor para se mascar; qual para o caximbo, e qual para se pizar: e se em granido, ou em pó. Terceiro: do uso moderado delle para a saude, e do immoderado, e vicioso na quantidade, no lugar, e no tempo. Quarto: dos rolos, que cada anno ordinariamente se embarcão do Brazil para Portugal: do valor na Bahia, e no Reino: das penas para se não mandar, ou introduzir sem despacho: e dos artificios para se passar de contrabando, não obstante as vigilancias dos guardas, assim dentro, como fóra de Portugal. E finalmente do rendimento deste contracto, e da repartição do tabaco por todas as quatro partes do mundo. Tudo conforme as noticias certas que procurei, e me dérão os mais intelligentes, e mais versados nesta lavra; aos quaes, no que direi, me reporto. CAPITULO II. Em que consiste a lavra do tabaco: e de como se semea, planta, e alimpa; em que tempo se hade plantar. Toda a lavra e cultura do tabaco consiste por sua ordem em se semear, plantar, alimpar, capar, desolhar, colher, espinicar, torcer, virar, ajuntar, enrolar, encourar, e pizar: e de tudo iremos fallando nos capitulos seguintes. E começando neste pela planta: semea-se esta em canteiros bem estercados; ou em queimadas feitas nos matos, aonde ha terra conveniente para isso, e apparelhadas no mesmo anno, em que se hade semear. O tempo, em que commummente se semea são os mezes de Maio, Junho, e Julho: e depois de nascida a semente, nasce tambem com ella algum capim vicioso á planta innocente o qual se tira com tento, que se não arranque por descuido com o capim vicioso a planta innocente. Tendo a planta já palmo, ou pouco menos de altura, se passa dos canteiros aonde nasceu, para os cercados, ou curraes, aonde se hade criar: cuja terra, quanto mais estercada, he melhor. Mas se nos ditos curraes morou por muito tempo o gado; hade se tirar antes alguma parte do esterco, para que a força delle ainda não cortido do tempo, não queime a planta, em vez de ajudar. Distribue-se a dita terra em regos com riscador, para que a planta fique vistosa. A distancia de hum rego de outro he de cinco palmos: e das plantas entre si he de dous palmos e meio, para que se possão extender, e crescer folgadamente, sem huma ser de embaraço á outra. Planta-se em covas de hum palmo, quanto cava a enxada mettida, e estas se enchem de terra bem estercada: e, com vigilancia, e cuidado, se corre a dita planta todos os dias, para ver se tem lagarta; e esta logo se mata para a não comer sendo tenra. Os inimigos da planta são ordinariamente além da lagarta, a formiga, o pulgão, e o grillo. A lagarta em pequena corta-lhe o pé, ou raiz debaixo da terra: e em crescendo corta-lhe as folhas. O mesmo faz tambem a formiga: e por isso se poem nos regos, aonde esta apparece, outras folhas de mandioca, ou de aroeira; para que dellas comão as formigas, e não cheguem a cortar, e comer as do tabaco, que sendo cortadas desta sorte não servem. O pulgão que he hum mosquito preto, pouco maior que huma pulga, faz buracos nas folhas; e estas assim furadas, não prestão para se fazer dellas torcida. O grillo, em quanto a planta he pequena, a corta rente da terra; e sendo já crescida, tambem se atreve a cortar-lhe as folhas. Sendo já a folha bastantemente crescida, se lhe chega ao pé aquella terra, que se tirou das covas em que foi plantada, daquella parte, que ficou arrumada mais alta; porém, em tempo de inverno, não se aperta muito, porque toda está humida; no verão, aparta-se mais para que a terra a defenda, e a humidade, posto que menor, lhe dê o primeiro alimento. E isto faz quem a planta. Estando a planta em sua conta, com oito, ou nove folhas, conforme a força com que vem crescendo, se lhe tira o olho de cima, ou grelo, antes de espigar: o que por outra phraze chamão capar. E porque faltando-lhe este olho, nasce em cada pé das folhas outro olho; todos estes olhos se hão de botar fóra; (e a isto chamão desolhar) para que não tirem a sustancia ás folhas. E esta diligencia se faz pelo menos de oito em oito dias: e mais frequentemente se visitão, e correm os regos, para tirar o capim, até estarem as folhas sazonadas: o que se conhece por apparecer nellas humas nodoas amarellas, ou por estar já preto por dentro o pé da folha, o que commummente succede ao quarto mez depois de postas em suas covas as plantas. CAPITULO III. Como se tirão, e curão as folhas do tabaco; como dellas se fazem, e beneficião as cordas. Quebrão-se as folhas da hastea como talo, e juntas em casa se deixão estar assim por vinte e quatro horas, pouco mais ou menos: e logo, antes de se esquentarem e secarem, se dependurão duas a duas pelo pé, mettidas entre a palha (de que constão as casas, em que se beneficião) e as varas, ou em outra parte, aonde lhes dê o vento, mas lhes não chegue o sol: porque se este lhes chegasse, logo se secarião, e perderião a sustancia. E tanto que estiverem enxutas em sua conta, que pouco mais ou menos será depois de estarem assim dependuradas dous dias; se botão no chão, e se lhes tira a maior parte do talo pela parte inferior, com o devido cuidado, para que se não rasguem com o desvio do talo: e a isto chamão espinicar. E então se dobrão pelo meio as melhores, que hão de servir de capa para a corda, que se hade fazer de todas as mais folhas. E advirta-se que as folhas, que se tirárão em hum dia, não se hão de misturar se não com as que se tirarem no dia seguinte; para que sejão igualmente sazonadas: e, se não forem assim, humas prejudicaráõ ao bom concerto das contas. Curadas as folhas, e tirado já o talo como está dito; dellas se faz huma corda da grossura quasi de tres dedos. E para isso haverá roda, e hum torcedor entendido, para que a corda fique unida, igual, e forte, e a traz delle estará outro colhendo a torcida sobre hum páo, ou sobre o apparelho, como qualquer outra corda simples, e não como as que se fazem de cordões, e junto do torcedor são os rapazes, que dão as folhas para se torcerem em corda. CAPITULO IV. Como se cura o tabaco depois de torcido em corda. Feita a corda do comprimento, que quizerem, e enrodilhada em hum páo, se desenrola cada dia, a saber, pela manhã, e a noite, e passa-se a outro páo, para que não arda: e na passagem se vai torcendo, e apertando brandamente, para que fique bem ligada, e dura. E tanto que ficar preta, vira-se só huma vez cada dia: e como se vai aperfeiçoando, se diminuem as viraduras, até ficar em estado, que se possa recolher sem temor de que apodreça. E commummente este beneficio costuma durar quinze, ou vinte dias, conforme vai o tempo, mais ou menos humido, ou seco. Segue-se a traz disto o que chamão ajuntar, que vem a ser, pôr tres bollas de corda de tabaco em hum páo, aonde fica, até que chegue o tempo de enrolar. E entre tanto guardão-se estas bollas no tendal, que he como hum andaime alto, com seus regos embaixo, para receberem a calda, que botão de si as bollas; e esta se ajunta, e guarda, para depois usar della, quando fôr tempo de enrolar. O ultimo beneficio, que se lhe faz, he o seguinte: tempera-se a calda do mesmo tabaco com seus cheiros de herva doce, alfavaca, e manteiga de porco, e quem faz manojos de encommenda, bota-lhe almiscar, ou ambar, se o tem: e por esta calda misturada com mel de assucar (quanto mais grosso, melhor) se passa a mesma corda de tabaco huma vez, e logo se fazem os rolos do modo seguinte: CAPITULO V. Como se enrola, e encoura o tabaco: e que pessoas se occupão em toda a fabrica delle desde a sua planta até se enrolar. Para enrolar o tabaco dobrão a corda já curada, e melada, de comprimento de tres palmos, sobre huma estaca, não muito grossa, e leve, que nas extremidades tem quatro taboazinhas: sobre as quaes dobrada, e segurada, de huma á outra parte a dita corda, se vai enrolando até ao fim: puxando sempre bem, e unindo huma dobra com outra, de sorte que não fique vão algum entre as dobras. E para que as cabeças fiquem sempre direitas; além das cruzetas, que levão, lhes vão mettendo folhas de uricurí nos vãos, para que fiquem bem unidas com as dobras de dentro. Acabado o rolo, se cobre primeiramente com folhas de caravatá secas, amarradas com embira, e depois se lhe faz huma capa de couro da medida do rolo: a qual cozida, e apertada muito bem, marca-se com a marca de seu dono. E desta sorte vão os rolos por terra em carros, e por mar em barcos, a serem despachados na alfandega, antes de se metterem nas náos. E cada rolo pesa commummente oito arrobas. Vindo agora a fallar das pessoas, que se occupão na fabrica, e cultura do tabaco; ella he tal, que a todos dá que fazer: porque nella trabalhão grandes, e pequenos, homens, e mulheres, feitores, e servos. Mas nem todos servem para qualquer ministerio dos que acima ficão referidos. Para semear, e plantar a folha, he necessario, que seja pessoa que entenda disso, para que se guarde bem o modo, a direitura, a distancia assim dos regos, como das covas. O cavar as covas pertence aos que andão no serviço com enxada: os rapazes botão os pés da planta, a saber; hum em cada huma das covas, que ficão feitas. E o que planta, aperta-lhe a terra ao pé, mais ou menos conforme a humidade della. Toda a gente se occupa em catar a lagarta duas vezes no dia, a saber; pela madrugada, e depois de estar o sol posto: porque de dia está debaixo da terra, e o sinal de estar ahi he o achar-se alguma folha cortada de noite. Chegar-lhe a terra com enxada, he trabalho dos grandes. Capar a planta já crescida, isto he, tirar-lhe o olho, ou grelo na ponta da hastea, he officio de negros mestres. Desolhar, que vem a ser, tirar os outros olhos, que nascem entre cada folha, e a hastea, fazem pequenos, e grandes. Apanhar, ou colher as folhas, he de quem sabe conhecer quando he tempo, pelo sinal, que tem as folhas, aonde se pega com a hastea, que he o ser ahi de côr preta. Toda a gente de serviço se occupa em dependurar as folhas nos altos: e isto se faz commummente de noite. Pinicar, ou espinicar, que tudo he o mesmo, e vem a ser tirar o talo ás folhas do tabaco; he trabalho leve de pequenos, e grandes. Torcer as folhas fazendo dellas a corda, encommenda-se a algum negro mestre: e o que anda com a roda ou engenho de torcer, hade ser negro robusto: e tambem botar a capa á corda, para que fique bem redonda, he obra de negro experimentado. Os rapazes dão ao torcedor as folhas, e tambem as capas ao que vai cobrindo com as melhores a corda: e o mesmo que bota as capas, he o que enrola. O passar as cordas de hum páo para outro páo, corre por conta de dous negros: dos quaes hum está no virador, e outro vai desandando a corda enrolada no páo. Os que virão, ou mudão a corda de hum páo para outro páo, são negros mestres; e a cada virador são necessarios tres: hum que largue a corda, outro que a colha, e outro que ande no virador. Ajuntar, que he pôr a corda de tres bolas em hum páo, he obra dos negros mais dextros: e são tres, e ás vezes quatro; porque não basta hum só no virador, mas ha mister dous, para que apertem bem a corda. Enrolar finalmente he occupação de bons officiaes, para que fique a obra segura. CAPITULO VI. Da segunda, e terceira folha do tabaco; e de diversas qualidades delle, para se mascar, cachimbar, e pisar. Tudo o que está dito até aqui do tabaco, que chamão da primeira folha, e vale o mesmo, que o da primeira colheita, se ha de entender tambem do da segunda, e terceira folha; se a terra ajudar para tanto, e fôr para isso ajudada com o beneficio do tempo, e do esterco. Por tanto tiradas todas as meias folhas, corta-se a haste menos de hum palmo sobre a terra, para que brote ás segundas: e crescendo ellas, se lhes tirão (como está dito acima) os olhos do tronco, e o capim dos regos: e o mesmo beneficio, que se fez ás primeiras folhas, se faz ás de segunda colheita. E se a terra fôr forte, faz-se á terceira, e multiplicão-se os rolos. O tabaco da primeira folha he o melhor, o mais forte, e o que mais dura: e este serve para o cachimbo, e para se mascar, e pisar. O fraco, para se mascar não serve, e só presta para se beber no cachimbo. Os que o quizerem pisar hão de ajuntar ao melhor aquelles talos, que se tirão das folhas, depois de estarem bem seccos: porque estes pisados com as folhas fazem ao tabaco forte, e de boa côr. E para o tabaco em pó, o das alagôas de Pernambuco, e dos campos da Cachoeira he o melhor. CAPITULO VII. Como se pisa o tabaco: do granido, e em pó; e como se lhe dá o cheiro. Para se pisar o tabaco, ha de ser bem seco, ou ao sol, ou em bacias, ou fornos de cobre, com attenção para que se não queime; e por isso se ha de mexer continuamente: e os pilões, em que se pisa, hão de ser de pedra marmore, com as mãos de pisar de páo. Pisado, peneira-se: e o que estiver capaz, se tira á parte, e o mais grosso se torna a pisar, até reduzir em pó. E este he o que commummente mais se procura, e se estima. Do granido se usa muito em Italia: e faz-se desta sorte. Toma-se o tabaco já feito em pó, e põe-se em hum alguidar vidrado: e bota-se-lhe em quantidade moderada algum mel, ou calda de tabaco; e se esta fôr muito grossa, se fará liquida com hum pouco de vinho. Depois, para que se vá encorporando, se mexe muito bem, e mechido se levanta, e menea-se entre as mãos como quem faz bolinhos: e, estando assim humido, se passa por huma eropêma fina: e nesta passagem pelos boraquinhos da eropêma se formão os granitos, como os da polvora fina, e fica o tabaco granido. E o que não passa pela eropêma, por ser ainda grosso, torna-se a menear, como está dito, entre as mãos, até ser capaz de passar. Passado, se secca ao sol sem se mecher, para que não torne a amassar-se, e perca o ser de granido. Depois do tabaco granido estar seco, se lhe quizerem dar algum cheiro, borrifa-se com agua cheirosa: ou põe-se no mesmo vaso, em que se recolheu, huma vasilha inteira, ou alguma quantidade de ambar, ou de algatia, ou de almiscar. Porém o tabaco em pó não he capaz de ser borrifado com agua cheirosa; porque com ella se amassaria, e não ficaria, como se pretendeu, solto em pó. O tabaco que se pisa no Brazil, vai sem mistura, singelo, e legitimo em tudo; e por isso tanto se estima. Mas o que se pisa em algumas partes da Europa, vende-se tão viciado, que apenas merece o nome de tabaco, pois com elle até as cascas de laranjas se pisão. CAPITULO VIII. Do uso moderado do tabaco para a saude, e da demasia nociva á mesma saude, de qualquer modo que se use delle. Os que são demasiadamente affeiçoados ao tabaco, o chamão herva santa: nem ha epitheto de valor que lhe não dêem, para defender o excesso digno de reprehensão, e de nota. Homens ha, que parece não podem viver sem este quinto elemento; cachimbando a qualquer hora em casa, e nos cachimbos; mascando as suas folhas, usando de torcidas, e enchendo os narizes deste pó. E esta demasia não sómente vive nos maritimos, e nos trabalhadores de qualquer casta, forros, e escravos, os quaes estão persuadidos, que só com o tabaco hão de ter alento, e vigor; mas tambem em muitas pessoas nobres, e ociosas; nos soldados dentro do corpo da guarda; e em não poucos ecclesiasticos, clerigos, e religiosos: na opinião das quaes toda a demasia se defende, ainda quando se vê manifestamente, que se não usa por mesinha, mas por dar gosto a hum excessivo, e mal habituado prurito. Eu, que de nenhum modo uso delle, ouvi dizer, que o fumo do cachimbo, bebido pela manhã em jejum moderadamente, desseca as humidades do estomago; ajuda para a digestão, e não menos para a evacuação ordinaria; alivia ao peito, que padece fluxão asmatica, e diminue a dôr insuportavel dos dentes. O masca-lo não he tão sadio: porém assim como fumado pela manhã em jejum moderadamente, serve para dessecar a abundancia dos humores do estomago, assim o uso immoderado o relaxa: e pela continuação obra menos, altera o gosto; faz grave o bafo, negros os dentes, e deixa os beiços immundos. Usão alguns de torcidas dentro dos narizes, para purgar por esta via a cabeça, e para divertir o estillicidio, que vai a cahir nas gengivas, e causa dor de dentes: e postas pela manhã, e á noite, não deixão de ser de proveito. Só se encommenda aos que usão dellas, o evitarem a indecencia, que causa o apparecer com ellas fora dos narizes, e com huma gota de estillicidio sempre manente, que suja a barba, e causa nojo a quem com elles conversa. Sendo o tabaco em pó o mais usado, he certamente o menos sadio: assim pela demasia, com que se toma, que passa de mesinha a ser vicio; como por impedir o mesmo costume excessivo os bons effeitos, que se pretendem, que talvez causaria, se o uso fosse mais moderado. Deixando pois de reparar esta viciosa superfluidade, só lembro quanto dous summos Pontifices, Urbano VIII, e Innocencio X, extranhárão usar delle nas igrejas, pela grande indecencia, que reparárão, e julgárão ter este intoleravel abuso, digno de se notar, e estranhar nos seculares e mais nos ecclesiasticos pouco acautelados, ainda quando assistem no côro aos officios divinos; e muito mais nos religiosos, que devem dar exemplo a todos (e maiormente nos lugares sagrados) de gravidade, e modestia. E por isso ambos os sobreditos pontifices chegárão a prohibi-lo com excommunhão maior: o primeiro, com hum breve de 30 de janeiro do anno de 1642, o prohibio na igreja de S. Pedro em Roma, e no adro, e alpendre do dito templo: o segundo com outro breve, debaixo da mesma pena, aos 8 de janeiro de 1650, nas igrejas de todo hum arcebispado, em que se ia introduzindo esta demasia com escandalo. E em algumas religiões mais observantes se prohibio o uso publico do tabaco nas igrejas, com privação de voz activa e passiva, isto he, sob pena de não poderem ser eleitos os transgressores, nem poderem escolher a outros para superiores, e para outros officios da ordem. CAPITULO IX. Do modo com que se despacha o tabaco na alfandega da Bahia. Beneficiado, e enrolado o tabaco, e pago o seu dizimo a Deos, que he de vinte arrobas huma (e rende este dizimo hum anno por outro dezoito mil cruzados, como consta do arrendamento do dizimo, que se tira da cachoeira da Bahia, e suas freguezias annexas, fóra o que se lavra pelas mais partes do sertão della em Sergipe d’El-Rei, Continguiba, rio Real, Inhambupe, Montegordo, e Torre, que apartado do rendimento do dizimo do assucar, e mais miunças, rende dez até doze mil cruzados), vem pagando nos carretos e fretes para a cidade da Bahia, até se meter em huma sua propria alfandega, aonde se despachão para Lisboa, hum anno por outro, de vinte e cinco mil rolos para cima, os quaes pagão, por hum contracto da camara, a setenta e seis réis por cada rolo; e destes tem El-Rei a terceira parte: e as duas são para o presidio da mesma cidade, que importão cinco mil cruzados. Pagão mais a huma balança, a tres réis por arroba, que a camara arrenda na mesma forma já dita, e importa mil e duzentos cruzados. Deste tabaco se permitte a extração de treze mil arrobas para a navegação da costa de Mina, que se arrumão em cinco mil rolos pequenos de tres arrobas; os quaes tambem pagão setenta réis por cada rolo para o sobredito contracto da camara, e importa mil cruzados. Destas tres mil arrobas se pagão por dizimo a El-Rei quatro vintens por arroba, e pagão-se na casa dos contos: o que importa tres mil cruzados. Vão para o Rio de Janeiro todos os annos, tres mil arrobas: as quaes nada pagão na Bahia, mas vão a pagar no dito Rio de Janeiro, vinte cinco mil cruzados cada anno por contracto d’El-Rei, o qual pouco mais ou menos por tanto se arrenda. E tudo o que neste capitulo do despacho do tabaco está dito, importa em sessenta e cinco mil e duzentos cruzados. CAPITULO X. Que custa hum rolo de tabaco de oito arrobas posto da Bahia na alfandega de Lisboa, e já despachado, e corrente para sahir della. O rolo de tabaco 8$000 O couro, e o enrolo nelle 1$300 O frete para o porto da Cachoeira 550 O aluguer do armazem na Cachoeira 40 O frete para a cidade da Bahia 80 A descarga no armazem da cidade 20 O aluguer do armazem na cidade 40 O chegar á balança do peso 10 O pesar a 10 rs. por rolo, e deitar fóra 10 O peso da balança, a 3 rs. por arroba 24 Direito e fretes, e mais gastos em Lisboa 2$050 ------ O que tudo importa em Rs. 12$124 Dão ordinariamente cada anno da Bahia vinte e cinco mil rolos de tabaco: e a 12$124 rs. 303:100$000 Dão ordinariamente cada anno das Alagôas de Pernambuco dous mil e quinhentos rolos: e a 16$620 rs. por ser melhor o tabaco 41:550$000 ----------- Importa todo este tabaco em Rs. 344:650$000 E reduzidos a cruzados, são 861,625 cruzados. CAPITULO XI. Da estimação do tabaco do Brazil na Europa, e nas mais partes do mundo, e dos grandes emolumentos, que delle tira a fazenda real. Do que até agora se tem dito, facilmente se póde entender a estimação, e valor a que tem chegado o tabaco, e mais particularmente o do Brazil. Pois (como disse ao principio) havendo pouco mais de cem annos, que se começou a plantar, e beneficiar na Bahia, forão as primeiras arrobas, que se mandárão a Lisboa, como huma sementeira de desejos, para que cada anno se pedissem logo, se mandassem mais e mais arrobas. E passando de mimo a ser mercancia: hoje apenas os tantos milhares de rolos, que levão as frotas, são bastantes para satisfazer ao apetite de todas as nações, não só da Europa, mas tambem das outras partes do mundo, donde encarecidamente se procurão. Vale huma libra de tabaco pizado em Lisboa, de vinte até vinte e quatro tostões, conforme he mais ou menos fino: e o que El-Rei tira deste contracto cada anno, são dous milhões, e duzentos mil cruzados. Nem hoje tem os Principes da Europa contracto de maior rendimento, pela muita quantidade de tabaco, que se gasta em todas as cidades, e villas. Sirva de prova o que conta Engelgrave no primeiro tomo da Luz Evangelica, na dominga quinta depois de Pentecostes, ao paragrapho primeiro, allegando por testemunho do que diz ao historiador Bernabé de Ryc-Ke, como certamente informado. Diz pois este autor que, na cidade de Londres, cabeça da Gram-Bretanha, povoada de mais de oitocentas mil almas, passão as vendas de tabaco o numero de sete mil: e dando, que cada huma destas não venda mais cada dia, que hum florim e meio de tabaco; importará o que se vende cada dia, dez mil e quinhentos florins: os quaes reduzidos á moeda portugueza, em que cada florim são dous tostões, importão cinco mil e duzentos, e cincoenta cruzados. E consequentemente o que se vende só em Londres em hum anno, que consta de trezentos e sessenta e cinco dias, importa hum milhão, nove centos, e dezasseis mil, duzentos e cincoenta cruzados. E a que somma chegará o que se vende cada anno em toda a Gram-Bretanha, em Flandres, em França, em toda a Hespanha, e em Italia? Para não fallar de outras partes, e do que vai para fóra da Europa, particularmente ás Indias Oriental, e o Occidental: procurando-se o do Brazil, por mais perfeito, melhor curado, em maior quantidade da que se lhe póde mandar, por não faltarem os comissarios aos mercadores, que tratão de prover as partes mais proximas. CAPITULO XII. Das penas dos que levão tabaco não despachado nas alfandegas: e das industrias de que se usa para se levar de contrabando. Qualquer descaminho do tabaco, por qualquer destas partes do Brazil, fóra do registo, e guias, debaixo do que tudo vai despachado, tem por pena a perda do tabaco, e da embarcação, em que se achar, e mais cinco annos de degredo para Angola ao autor desta culpa. Porém muito maiores são as penas, que tem os transgressores do bando em Portugal. E em outros reinos são tantos, e tão graves, que a cada passo são causa da ruina de muitas familias. E quanto mais rigorosas são estas penas, tanto maior prova são do muito a que subio o contracto, e do grande lucro, que tem delle todos os Principes. Mas ainda maior prova do grande valor e lucro, que dá o tabaco, he o perderem muitos, por ambição, o temor destas penas; arriscando-se a ellas com desprezo do perigo de se verem comprehendidos nas mesmas miserias, a que outros se reduzirão, por serem tão confiados. E para isso parece, que não ha industria, de que se não use, para o embarcar, e tirar das embarcações ás escondidas, á vista dos mesmos ministros, que, como Argos de cem olhos, vigião, quando não são juntamente Briaréos de cem mãos para receber, e mais mudos, que os peixes, para calar. Para apontar algumas destas industrias, direi por relação dos casos, em que se apanhárão não poucos; que huns mandárão o tabaco dentro das peças de artilheria; outros dentro das caixas, e fechos do assucar; outros arremedando as caras tambem do assucar muito bem encouradas. Servirão-se outros dos barris de farinha da terra, dos de breu, e dos de mellado, cobrindo com a superficie mentirosa o que hia dentro em folhas de Flandres, outros valerão-se das caixas de roupa, fabricadas a dous sobrados, para dar lugar a escondrijos: e de frasqueiras que estão á vista, pondo entre os frascos de vinho outros tambem de tabaco. Quanto foi, e vai cada anno nas obras mortas, e nos forros das camaras, e nas varandas das náos? Quanto nas curvas, que para isso nas partes mais escuras se forrão? e não faltou quem lhe désse lugar até dentro de humas imagens occas de santos; assim como huns carpinteiros de navios o escondêrão em páos occos, misturados entre os outros de que costumavão valer-se. Deixo o que entra e sahe em algibeiras grandes de couro dos que vão, e vem das náos para os portos, com repetidas idas, e voltas, debaixo de lobas, e tunicas: e o que se arrasta debaixo dos bateis, e das pipas de aguada pelas ondas do már. Nunca acabariamos se quizessemos relatar as invenções, que suggerio a cautela ambiciosa: porém sempre arriscada, e muitas vezes descoberta, com sucesso infeliz. O que claramente prova a estimação, o apetite, e a esperança do lucro, que ainda entre riscos acompanha o tabaco. TERCEIRA PARTE. CULTURA, E OPULENCIA DO BRAZIL PELAS MINAS DE OURO. CAPITULO PRIMEIRO. Das minas de ouro que se descobrirão no Brazil. Foi sempre fama constante, que no Brazil havia minas de ferro, ouro, e prata. Mas tambem houve sempre bastante descuido de as descobrir, e de aproveitar-se dellas: ou porque, contentando-se os moradores com os frutos, que dá a terra abundantemente na sua superficie, e com os peixes, que se pescão nos rios grandes e apraziveis, não tratárão de divertir o curso natural destes, para lhes examinarem o fundo, nem de abrir aquellas entranhas, como persuadio a ambição insaciavel a outras muitas nações; ou porque o genio de buscar Indios nos matos os desviou desta diligencia, menos escrupulosa, e mais util. Na villa de S. Paulo ha muita pedra usual, para fazer paredes e cercas; a qual, com a côr, com o pezo, e com as veias que tem em si, mostra manifestamente, que não desmerece o nome, que lhe derão de pedra ferro; e que donde ella se tira, o ha. O que tambem confirma a tradição, de que já se tirou quantidade delle, e se achou ser muito bom para as obras ordinarias, que se encommendão aos ferreiros. E ultimamente na serra Ibirasojaba, distante oito dias da villa de Sorocaba, e doze da villa de S. Paulo, a jornadas moderadas, o capitão Luiz Lopes de Carvalho, indo lá por mandado do governador Artur de Sá, com hum fundidor estrangeiro, tirou ferro e trouxe barras, das quaes se fizerão obras excellentes. Que haja tambem minas de prata, não se duvida: porque na serra das columnas, quarenta legoas além da villa d’Outú, que he huma das de S. Paulo ao leste direito, ha certamente muita prata, e fina. Na serra de Seboraboçú tambem a ha. Da serra de Guarume defronte do Ceará tirárão os Hollandezes quantidade della no tempo, em que estavão de posse de Pernambuco. E na serra de Itabajana, ha tradição que achou prata o avô do capitão Belchior da Fonseca Doria. E em busca d’outra foi além do rio de S. Francisco Lopo de Albuquerque, que faleceu nesta sua malograda empreza. Mas deixando as minas de ferro e de prata, como inferiores, passemos ás do ouro, tantas em numero, e tão rendosas aos que dellas o tirão. E primeiramente he certo, que de hum outeiro alto, distante tres leguas da villa de S. Paulo, a quem chamão Jaraguá, se tirou quantidade de ouro, que passou de oitavas a libras. Em Parnahiba, tambem junto da mesma villa no serro Ibituruna, se achou ouro, e tirou-se por oitavas. Muito mais, e por muitos annos se continuou a tirar em Parnaguá, e Coritiba, primeiro por oitavas, depois por libras, que chegárão a alguma arroba, posto que com muito trabalho para ajuntar, sendo o rendimento no catar limitado; até que se largárão, depois de serem descobertas pelos Paulistas as minas geraes dos Cataguas, e as que chamão do Caeté: e as mais modernas no rio das Velhas, e em outras partes, que descobrírão outros Paulistas: e de todas estas iremos agora distinctamente fallando. CAPITULO II. Das minas do ouro que chamão geraes, e dos descobridores dellas. Ha poucos annos que se começárão a descobrir as minas geraes dos Cataguas, governando o Rio de Janeiro Artur de Sá: e o primeiro descobridor dizem, que foi hum mulato, que tinha estado nas minas de Parnaguá, e Coritiba. Este indo ao sertão com huns Paulistas a buscar indios, e chegando ao serro Tripui, desceu a baixo com huma gamella, para tirar agua do ribeiro, que hoje chamão do Ouro Preto: e metendo a gamella na ribanceira para tomar agua, e roçando-a pela margem do rio, vio depois que nella havia granitos da côr do aço, sem saber o que erão: nem os companheiros, aos quaes mostrou os ditos granitos, souberão conhecer, e estimar o que se tinha achado tão facilmente: e só cuidárão, que ahi haveria algum metal, não bem formado, e por isso não conhecido. Chegando porém a Taubaté, não deixárão de perguntar, que casta de metal seria aquelle. E sem mais exame, vendêrão a Miguel de Souza alguns destes granitos, por meia pataca a oitava, sem saberem elles o que vendião, nem o comprador que cousa comprava, até que se resolvêrão mandar alguns dos granitos ao governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá, e fazendo-se exame delles, se achou que era ouro finissimo. Em distancia de meia legua do Ouro Preto, achou-se outra mina, que se chama a do Ribeiro de Antonio Dias: e, dahi a outra meia legua, a do ribeiro do Padre João de Faria: e, junto desta, pouco mais de huma legua, a do ribeiro de Bueno, e a de Bento Rodrigues. E, dahi tres dias de caminho moderado até o jantar, a do ribeirão de N. S. do Carmo, descoberta por João Lopes de Lima; além de outra, que chamão a do ribeiro Ibupiranga. E todas estas tomárão o nome de seus descobridores, que todos forão Paulistas. Tambem ha huma paragem no caminho para as ditas minas geraes, onze, ou doze dias distante das primeiras, andando bem até ás tres horas da tarde: a qual paragem chamão a do rio das Mortes, por morrerem nellas huns homens que o passavão nadando, e outros, que se matárão ás pelouradas, brigando entre si sobre a repartição dos indios gentios que trazião do sertão. E neste rio, e nos ribeiros, que delle procedem, e em outros, que vem a dar nelle, se acha ouro: e serve esta paragem como de estalagem aos que vão ás Minas Geraes, ahi se provêem do necessario, por terem hoje os que ahi assistem, roças e criação de vender. Não fallo da mina da serra de Itatiaya (a saber, do ouro branco, que he ouro ainda não bem formado), distante do ribeiro do Ouro Preto oito dias de caminho moderado até ao jantar: porque desta não fazem caso os Paulistas, por terem as outras de ouro formado, e de muito melhor rendimento. E estas geraes, dizem que ficão na altura das capitanias do Espirito Santo. CAPITULO III. De outras minas de ouro no rio das Velhas, e no Caeté. Além das minas geraes dos Cataguas, descobrirão-se outras por outros Paulistas no rio que chamão das Velhas: e ficão como dizem, na altura do Porto Seguro, e de Santa Cruz. E estas são, a do ribeiro do Campo descoberta pelo sargento mór Domingos Rodrigues da Fonseca: e a do ribeiro da Roça dos Penteados: a de N. S. do Cabo, da qual foi descobridor o mesmo sargento mór Domingos Rodrigues da Fonseca: a de N. S. de Monserrate; a do ribeiro do Ajudante: e a principal do rio das Velhas he a do serro de Seborabuçú, descoberta pelo tenente Manoel Borba Gato, Paulista, que foi o primeiro, que se apoderou della e do seu territorio. Ha mais outras minas novas, que chamão do Caeté, entre as minas geraes, e as do rio das Velhas, cujos descobridores forão varios: e entre ellas ha a do ribeiro, que descobrio o capitão Luiz do Couto, que da Bahia foi para essa paragem com tres irmãos, grandes mineiros; além d’outras, que secretamente se achão, e se não publicão, para se aproveitarem os descobridores dellas totalmente, e não as sujeitarem á repartição: e as que ultimamente descobrio o capitão Garcia Rodrigues Paez, quando foi abrir o caminho novo detraz da cordilheira da serra dos Orgãos, no districto do Rio de Janeiro por onde corta o rio Parahyba do Sul. CAPITULO IV. Do rendimento dos ribeiros: e das diversas qualidades de ouro, que delles se tira. Das minas geraes dos Cataguas as milhores, e de maior rendimento forão até agora a do ribeiro d’Ouro Preto; a do ribeiro de N. S. do Carmo: e a do ribeiro de Bento Rodrigues, do qual em pouco mais de cinco braças de terra se tirárão cinco arrobas de ouro. Tambem o rio das Velhas he muito abundante de ouro, assim pelas margens, como pelas ilhas, que tem, e pela madre, ou veio d’agua; e delle se tem tirado, e tira ainda em quantidade abundante. Chamão os Paulistas ribeiro de bom rendimento, o que dá em cada bateada duas oitavas de ouro. Porém assim como ha bateadas de meia oitava, e de meia pataca; assim ha tambem bateadas de tres e quatro, cinco, oito, dez, quinze, vinte, e trinta oitavas, e mais: e isto não poucas vezes succedeu na do ribeirão, na do Ouro Preto, na de Bento Rodrigues, e na do rio das Velhas. Os grãos de maior peso, que se tirárão, forão hum de noventa e cinco oitavas; outro de tres libras, que repartirão entre si tres pessoas com hum machado, outro que passou de cento e cincoenta oitavas, em forma de huma lingua de boi, que se mandou ao governador da nova colonia: e outro maior de seis libras. Quanto ás qualidades diversas de ouro: sabe-se, que o ouro, a quem chamão preto, por ter na superficie huma côr semelhante á do aço, antes de ir ao fogo, provando-se com o dente logo apparece amarello vivo, gemmado, e he o mais fino, porque chega quasi a vinte e tres quilates, e quando se lhe põe o cunho na fundição, faz greta na barreta, como se arrebentasse de todas as partes; e por dentro dá taes reflexos, que parecem raios do sol. O do ribeirão he mais miudo, e mais polme, e compete na bondade como ouro preto, por chegar a vinte e dous quilates. O ouro do ribeiro de Bento Rodrigues, posto que seja mais grosso, e palpavel, e bem amarello, comtudo não tem a perfeição do ouro preto, e do ouro do ribeirão, mas quando muito, chega a vinte quilates. O ouro do ribeiro do Campo, e o do ribeiro de N. S. do Monserrate he grosso, e muito amarello, e tem vinte e hum quilates e meio. O ouro do rio das Velhas he finissimo, e chega a vinte e dous quilates. O ouro finalmente do ribeiro de Itatiaja, he de côr branca, como a prata, por não estar ainda bem formado, como dissemos acima, e deste se faz pouco caso, posto que alguns digão, que indo ao fogo ás vezes por mais formado, foi mostrando a côr amarella. Houve anno, em que de todas estas minas, ou ribeiros se tirárão mais de cem arrobas de ouro; fóra o que se tirava, e tira escondidamente d’outros ribeiros, que os descobridores não manifestárão, para os não sujeitarem logo á repartição. E se os quintos d’El-Rei chegárão a dezesete, e a vinte arrobas, sonegando-se tanto ouro não quintado; bem se deixa ver, que o ouro, que cada anno se tira, sem encarecimento algum, passa de cem arrobas: e que nestes dez annos passados se tem tirado mais de mil arrobas. E se nos primeiros annos não chegárão a cem arrobas, nos outros certamente passárão. E continuando ao presente o rendimento com igual, e com maior abundancia, por razão do maior numero dos que se empregão em catar; só os quintos devidos a Sua Magestade se forão notavelmente diminuindo, ou por se divertir por outras partes o ouro em pó, ou por não ir á casa dos quintos, ou por usarem alguns de cunhos falsos, com engano mais detestavel. Mas ainda assim não deixou Sua Magestade de ter grande lucro na casa da moeda do Rio de Janeiro: porque comprando o ouro a doze tostões a oitava, e batendo-se em dous annos tres milhões de moeda nacional, e provincial de ouro: foi lucrando seiscentos mil cruzados de avanço. CAPITULO V. Das pessoas que andão nas minas, e tirão ouro dos ribeiros. A sêde insaciavel do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras, e a meterem-se por caminhos tão asperos, como são os das minas, que difficultosamente se poderá dar conta do numero das pessoas, que actualmente lá estão. Comtudo os que assistirão nellas nestes ultimos annos por largo tempo, e as corrêrão todas, dizem, que mais de trinta mil almas se occupão, humas em catar, outras em mandar catar nos ribeiros do ouro; e outras em negociar, vendendo, e comprando o que se ha mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar. Cada anno vem nas frotas quantidade de Portuguezes, e de estrangeiros, para passarem ás minas. Das cidades, villas, reconcavos, e sertões do Brazil vão brancos, pardos, e pretos, e muitos Indios de que os Paulistas se servem. A mistura he de toda a condição de pessoas: homens, e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos: nobres e plebeos, seculares, clerigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quaes não tem no Brazil convento nem casa. Sobre esta gente quanto ao temporal não houve até ao presente coacção, ou governo algum bem ordenado: e apenas se guardão algumas leis, que pertencem ás datas, e repartições dos ribeiros. No mais não ha ministros, nem justiças, que tratem, ou possão tratar do castigo dos crimes, que não são poucos, principalmente dos homicidios, e furtos. Quanto ao espiritual, havendo até agora duvidas entre os prelados á cerca da jurisdicção, os mandados de huma, e outra parte, ou como curas, ou como visitadores, se achárão bastantemente embaraçados: e não pouco embaraçárão a outros, que não acabão de saber a que pastor pertencem aquelles novos rebanhos. E quando se averigue o direito de provimento dos parochos, pouco hão de ser timidos e respeitados naquellas freguezias moveis de hum lugar para outro como os filhos de Israel no deserto. Teve El-Rei nas minas por superintendente dellas ao Desembargador José Vaz Pinto, o qual, depois de dous outros annos, tornou a recolher-se para o Rio de Janeiro com bastante cabedal: e delle supponho ficaria plenamente informado do que por lá vai: e que apontaria desordens, e o remedio dellas, se fosse possivel a execução. Assiste tambem nas minas hum procurador da corôa, e hum guarda mór com seu estipendio. Houve até agora casa de quintar em Taubaté, na villa de S. Paulo, em Paraty, e no Rio de Janeiro: e em cada huma destas casas ha hum provedor, hum escrivão, e hum fundidor, que fundindo o ouro em barretas, lhe põe o cunho real, signal do quinto que se pagou a El-Rei desse ouro. Havendo casas de moeda, e dos quintos na Bahia, e no Rio de Janeiro (por serem estes os dous polos, aonde vai parar todo o ouro), teria Sua Magestade muito maior lucro, do que até agora teve: e muito mais se nas casas de moeda, bem fornecidas dos apparelhos necessarios, houvesse sempre dinheiro prompto para comprar o ouro, que os mineiros trazem, e folgão de vender sem detença. Agora soubemos que Sua Magestade manda governador, ministros de justiça, e levantar hum terço de soldados nas minas, para que tudo tome melhor fórma, e governo. CAPITULO VI. Das datas, ou repartições das minas. Para evitar a confusão, e tumulto, e as mortes, que haveria no descobrimento dos ribeiros do ouro, se assentou o que pertence ás repartições desta sorte. Tem o descobridor a primeira data, como descobridor, outra como mineiro: segue-se a que cabe a El-Rei; e atraz desta a do guarda mór: as outras se distribuem por sortes. As que chamão datas inteiras, são de trinta braças em quadra, e taes são d’El-Rei, do descobridor, e guarda mór. As outras que se dão por sortes, tem a extensão proporcionada ao numero dos escravos, que trazem para catar; dando duas braças em quadra por cada escravo, ou Indio, de que se servem nas catas: e assim a quem tem quinze escravos, se dá huma data inteira de trinta braças em quadra. Para ser admittido á repartição por sortes, he necessario fazer petição ao superintendente das ditas repartições, ao qual se dá pelo despacho da petição huma oitava de ouro, e outra a seu escrivão: e ás vezes acontece offerecer-se quinhentas petições, e levarem o partidor, e o escrivão mil oitavas, e não tirarem todos os mineiros juntos outro tanto de taes datas, por falharem no seu rendimento, e por isso procurão outras datas, havendo descobrimento de novos ribeiros. A data d’El-Rei logo se vende a quem mais offerece: e póde tambem qualquer vender, ou trocar a sua data, e nisto se vírão, e vêem a cada passo varios, e differentes successos, tirando hum mineiro de poucas braças muito ouro, e outros de muitas pouco: e já houve quem por mais de mil oitavas vendeu a data, da qual o comprador tirou sete arrobas de ouro. Pelo que se tem por jogo de bem, ou mal afortunado o tirar, ou não tirar ouro das datas. CAPITULO VII. Da abundancia de mantimentos, e de todo o usual, que hoje ha nas minas: e do pouco caso que se faz dos preços extraordinariamente altos. Sendo a terra que dá ouro esterilissima de tudo que se ha mister para a vida humana, e não menos esteril a maior parte dos caminhos das minas, não se póde crer o que padecêrão ao principio os mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com huma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento. Porém tanto que se vio a abundancia do ouro, que se tirava, e a largueza, com que se pagava tudo o que lá hia; logo se fizerão estalagens, e logo começárão os mercadores a mandar ás minas o melhor que chega nos navios do reino, e de outras partes, assim de mantimentos, como de regalo, e de pomposo para se vestirem, além de mil bugiarias de França, que lá tambem forão dar. E a este respeito, de todas as partes do Brazil se começou a inviar tudo o que dá a terra, com lucro não sómente grande mas excessivo. E não havendo nas minas outra moeda mais que ouro em pó; o menos que se podia, e dava por qualquer cousa, erão oitavas. Daqui se seguio mandarem-se ás Minas Geraes as boiadas de Paranaguá, e as do Rio das Velhas, as boiadas dos campos da Bahia, e tudo mais que os moradores imaginavão poderia apetecer-se, de qualquer genero de cousas naturaes, e industriaes, adventicias, e proprias. E ainda que hoje os preços sejão mais moderados, comtudo porei aqui hum rol, feito sinceramente por quem assistio nas Geraes tres annos, dos preços das cousas, que por commum assento lá se vendião no anno de 1703, repartindo-o em tres ordens, a saber: os preços que pertencem ás cousas comestiveis; os do vistuario e armas; e os dos escravos e cavalgaduras, que são os seguintes. Preços das cousas comestiveis. Por huma rez, oitenta oitavas. Por hum boi, cem oitavas. Por huma mão de sessenta espigas de milho, trinta oitavas. Por hum alqueire de farinha de mandioca, quarenta oitavas. Por seis bolos de farinha de milho, tres oitavas. Por hum paio, tres oitavas. Por hum presunto de oito libras, dezeseis oitavas. Por hum pastel pequeno, huma oitava. Por huma libra de manteiga de vacca, duas oitavas. Por huma galinha, tres ou quatro oitavas. Por seis libras de carne de vacca, huma oitava. Por hum queijo da terra, tres ou quatro oitavas, conforme o peso. Por hum queijo flamengo, dezeseis oitavas. Por hum queijo do Alemtejo, tres ou quatro oitavas. Por huma boceta de marmelada, tres oitavas. Por hum frasco de confeitos de quatro libras, dezeseis oitavas. Por huma cara de assucar de huma arroba, trinta e duas oitavas. Por huma libra de cidrão, tres oitavas. Por hum barrilote de aguardente, carga de hum escravo, cem oitavas. Por hum barrilote de vinho, carga de hum escravo, duzentas oitavas. Por hum barrilote de azeite, duas libras. Por quatro oitavas de tabaco em pó com cheiro, huma oitava. Por seis oitavas de tabaco sem cheiro em pó, huma oitava. Por huma vara de tabaco em corda, tres oitavas. Preços das cousas que pertencem ao vestuario e armas. Por huma casaca de baeta ordinaria, doze oitavas. Por huma casaca de pano fino, vinte oitavas. Por huma veste de seda, dezeseis oitavas. Por huns calções de pano fino, nove oitavas. Por huns calções de seda, doze oitavas. Por huma camisa de linho, tres oitavas. Por hum par de meias de seda, oito oitavas. Por hum par de çapatos de cordovão, cinco oitavas. Por hum chapéo de castor fino, doze oitavas. Por hum chapéo ordinario, seis oitavas. Por huma carapuça de seda, quatro ou cinco oitavas. Por huma carapuça de pano forrada de seda, cinco oitavas. Por huma boceta de tartaruga para tabaco, seis oitavas. Por huma boceta de prata de relevo para tabaco, se tem oito oitavas de prata, são dez, ou doze de ouro conforme o feitio della. Por huma espingarda sem prata, dezeseis oitavas. Por huma espingarda bem feita, e prateada, cento e vinte oitavas. Por huma pistola ordinaria, dez oitavas. Por huma pistola prateada, quarenta oitavas. Por huma faca de ponta com cabo curioso, seis oitavas. Por hum canivete, duas oitavas. Por huma tesoura, duas oitavas. E toda a bugiaria, que vem de França, e de outras partes, vende-se conforme o desejo, que mostrão ter della os compradores. Preços dos escravos, e das cavalgaduras. Por hum negro bem feito, valente, e ladino, trezentas oitavas. Por hum molecão, duzentas e cincoenta oitavas. Por hum moleque, cento e vinte oitavas. Por hum crioulo bom official, quinhentas oitavas. Por hum mulato de partes, ou official, quinhentas oitavas. Por hum bom trombeteiro, quinhentas oitavas. Por huma mulata de partes, seiscentas ou mais oitavas. Por huma negra ladina cozinheira, trezentas e cincoenta oitavas. Por hum cavallo sendeiro, cem oitavas. Por hum cavallo andador, duas libras de ouro. E estes preços tão altos, e tão correntes nas minas, forão causa de subirem tanto os preços de todas as cousas, como se experimenta nos portos das cidades e villas do Brazil, e de ficarem desfornecidos muitos engenhos de assucar das peças necessarias; e de padecerem os moradores grande carestia de mantimentos, por se levarem quasi todos, aonde vendidos hão de dar maior lucro. CAPITULO VIII. De diversos preços do ouro vendido no Brazil, e do que importa o que cada anno ordinariamente se tira das minas. Varios forão os preços do ouro no decurso destes annos: não só por razão da perfeição de hum, maior que a do outro, por serem de mais subidos quilates; mas tambem a respeito dos lugares, aonde se vendia: porque mais barato se vende nas minas, do que na villa de S. Paulo, e de Santos: e muito mais vale nas cidades do Rio de Janeiro, e da Bahia, do que nas villas referidas. Tambem muito mais vale quintado, do que em pó: porque o que se vende em pó, sahe do fogo com bastantes quebras: além do que vai por differença por razão do que se pagou, ou não se pagou de quintos. Huma arroba de ouro em pó pelo preço da Bahia a quatorze tostões a oitava, importa em quatorze mil trezentos e trinta, e seis cruzados. Quintado, pelo preço da Bahia, a dezeseis tostões a oitava, importa em dezeseis mil trezentos, e oitenta, e quatro cruzados. Huma arroba de ouro em pó pelo preço do Rio de Janeiro, a treze tostões a oitava, importa em treze mil trezentos, e doze cruzados. Quintado, a quinze tostões a oitava, importa em quinze mil trezentos, e sessenta cruzados. Donde se segue, que tirando-se cada anno mais de cem arrobas de ouro, a quinze tostões a oitava, preço corrente na Bahia, e no Rio de Janeiro, sendo quintado, vem a importar cada anno em hum milhão quinhentos, e trinta e seis cruzados. Das quaes cem arrobas, se se quintarem, como he justo, cabem a Sua Magestade vinte arrobas, que importão em trezentos e sete mil, e duzentos cruzados, mas he certo, que cada anno retirão mais de trezentas arrobas. E com isto não parecerá incrivel, o que por fama constante se conta haverem ajuntado em diversos tempos assim huns descobridores dos Ribeiros nomeados, como huns mais bem afortunados nas datas: e tambem os que mettendo gado, e negros para os venderem por maior preço, e outros generos mais procurados, ou plantando, ou comprando roças de milho nas minas, se forão aproveitando do que outros tirárão. Não fallando pois do grande cabedal, que tirou o governador Artúr de Sá, que duas vezes foi a ellas do Rio de Janeiro, nem dos que ajuntárão huma, duas, e tres arrobas, que não forão poucos. Tem-se por certo, que Balthazar de Godoy, de roças, e catas, ajuntou vinte arrobas de ouro. De varios Ribeiros, e da negociação com roças, negros, e mantimentos, fez Francisco do Amaral mais de cincoenta arrobas. Pouco menos Manoel Nunes Vianna, e Manoel Borba Gato: e com bastante cabedal se recolheu para S. Paulo José Goes de Almeida; e para o caminho novo Garcia Rodrigues Paes, e João Lopes de Lima tirárão do seu ribeirão cinco arrobas: os Penteados de sua lavra, e industria, sete arrobas: Domingos da Silva Moreira, de negocio, e lavra, cinco arrobas: Amador Bueno da Veiga, do rio do Ouro-Preto, do ribeirão, e de outras partes, oito arrobas. E finalmente deixando outros muito bem aproveitados: Thomaz Ferreira abarcando muitas boiadas de gado, que hia dos campos da Bahia para as minas, e comprando muitas roças, e occupando muitos escravos nas catas de varios ribeiros, chegou a ter mais de quarenta arrobas de ouro, parte em ser, parte para se cobrar. Mas tratando de cobrar o ouro, que se lhe devia, houve entretanto quem lhe deu por desgostos humas poucas de balas de chumbo, que he o que succede não poucas vezes nas minas. Tambem com vender cousas comestiveis, aguardente, e garapas, muitos em breve tempo accumulárão quantidade consideravel de ouro. Porque como os negros, e os Indios escondem bastantes oitavas, quando catão nos ribeiros, e nos dias santos, e nas ultimas horas do dia tirão ouro para si; a maior parte deste ouro se gasta em comer, e beber: e insensivelmente dá aos vendedores grande lucro, como costuma dar a chuva miuda aos campos, a qual continuando a rega-los sem estrondo, os faz muito ferteis. E por isso até os homens de maior cabedal não deixárão de se aproveitar por este caminho dessa mina a flôr da terra, tendo negras cozinheiras, e mulatas doceiras, e crioulos taverneiros, occupados nesta rendozissima lavra, e mandando vir dos portos do mar tudo o que a gula costuma appetecer, e buscar. CAPITULO IX. Da obrigação de pagar a El-Rei Nosso Senhor a quinta parte do ouro, que se tira das minas do Brazil. De dous modos se póde tratar este ponto, a saber: ou pelo que pertence ao foro externo pelas leis, e ordenações do reino; ou pelo que pertence ao foro interno, attentando á obrigação em consciencia. Quanto á primeira parte, consta pela ordenação de Portugal, livro 2º, titulo 26, § 16, que entre os direitos reaes, se contão os vieiros, e minas de ouro, e prata, e qualquer outro metal. E no titulo vinte e oito do mesmo livro segundo, expressamente se declara: que nas datas, ou doações feitas, nunca se entendêrão comprehendidos os vieiros, e minas. Por quanto (diz a ordenação) em muitas doações feitas por nós, e pelos reis nossos antecessores, são postas algumas clausulas muito geraes, exuberantes; declaramos, que por taes doações, e clausulas nellas conteudas, nunca se entende serem dados os vieiros, e minas, de qualquer sorte que sejão; salvo se expressamente fôrem nomeadas, e dadas na dita doação. E para a prescripção das ditas cousas, não se poderá allegar posse alguma, posto que seja immemorial. Podendo pois El-Rei tirar á sua custa das minas, que reserva para si, os metaes, que são o fruto dellas; attendendo aos gastos, que para isso são necessarios, e querendo animar aos seus vassallos ao descobrimento das ditas minas, e a participarem do lucro dellas: assentou, como se diz no titulo 34 do dito livro 2º das ordenações, que de todos os metaes, que se tirarem, depois de fundido e apurado, paguem o quinto, em salvo de todos os custos. E para segurar que se lhe pagasse o dito quinto, mandou que os ditos metaes se marcassem, e que se não podessem vender antes de serem quintados, nem fóra do Reino, sob pena de perder a fazenda, e de degredo por dez annos para o Brazil; como consta do dito titulo 34, § 5º, e o que vender os ditos metaes antes de serem marcados, ou em madre antes de fundidos, perderá a fazenda, e será degradado por dez annos para o Brazil. Até aqui a ordenação. E os doutores, que fallárão nesta materia, assim portuguezes, como de outras nações, affirmão concordemente serem de tal sorte as minas de direito real, por razão dos gastos, que El-Rei faz em prol da Republica; que por esta causa não os póde alienar. Veja-se entre outros portuguezes Pedro Barboza _ad L. divortio_ §. _Si vir ff. soluto matrimonio a n. 17, usque ad_, 21. E Cabedo, _parte 2ª, dias 55, de venis metallor_. Pegas, _ad Ord. Regni Port. lib. 2, tit. 28, n. 24_, com os autores de outros reinos, que allegão particularmente a Lucas da Penna L. _Quicumque desertum col. 2, post principium Cod. de omni agro deserto_, e Rebuffo _tom. 2º, ad Leges Galliæ tit. ut beneficia ante vacationem art. 1º, glossa ult. post medium pag. 326_. E além destes veja-se Solorzano _de Indiar. Gubern. tom. 2º, lib. 1º, cap. 13, n. 55, et lib. 5º, cap. 1º, n. 19_, com outros muitos, que traz: o qual diz, ser este o costume de todas as gentes. _Quâ de causâ_ (diz dicto n. 55), _metallorum fodiendorum jus ipsi Romani, et post modum aliæ gentes inter Regalia computarunt, et propriè ad locorum supremos Principes pertinere sanxerunt_. E porque nesta materia bem he ouvir tambem aos Theologos, seja o primeiro o P. Molina de _Justit. et Jure disp. 54_, tão versado no direito, como na Theologia, e muito particularmente no direito de Portugal. _Regulariter_ (diz elle) _de jure civili, vel communi, vel particularium Regnorum, ubicumque venæ metallorum fuerint repertæ, merito solent esse deputatæ Principi, aut Reipublicæ, ad sumptus publicos oneraque Reipublicæ sustinenda: unde § 16, tit. 26, lib. 2º, Ord. Lusitaniæ Regni sic habet: item_ direito real he os vieiros, e minas de ouro, e prata, ou qualquer outro metal. _Ut tamen lucri spe homines alliciantur ad eas in bonum publicum querendas, et aperiendas, statui solent variæ leges pro temporum et locorum varietate, quibus vel pars aliqua eorum, quæ inde fuerint extracta, vel præmia aliis inventoribus constituuntur._ E _in terminis_ pela ordenação de Portugal diz: _concessum, et statutum est, ut deductis expensis, quinta metallorum pars, quæ inde extracta fuerint, regi persolvatur_. O Padre Vasques _in Opusculis moralibus de restitutione, cap. 5º, § 4º, dub. 2_, fallando do Reino de Castella diz: _in nostro regno applicata sunt_ patrimonio regio _quæcumque Mineralia, ubi metalla fiunt argenti vivi per 1.6, recop. tit. 13, 1.4. Sed quo jure_ (diz elle) _Rex potuerit sibi applicare Mineralia omnia, in fundis etiam privatis procreata, nullus auctorum dixit, quos citavi. Mihi videtur ad hæc dicendum quod, quamvis Mineralia jure naturali sint domini ipsius agri, potuit hoc jus Mineralium ab antiquo esse, potuerunt hujus regni terræ et prædia distribui, ut tamen Mineralia regibus reservata manerent suo patrimonio annumerata._ E a mesma razão dá Molina, de _Just. et Jure disp. 56, § ult._, por estas palavras: _Licet enim stando in solo gentium jure ea inventa, quæ domino carent, sint primo occupanti; nihilominus, quemadmodum jus civile statuere potuit, ut qui casu thesaurum in agro alieno inveniret, in interiori et exteriori foro teneretur tribuere illius dimidium domino agri; qui vero illum de industria inveniret, teneretur tribuere eidem totum: cur etiam non poterit simili modo statuere, ut, ad sustinenda Reipublicæ onera, thesauri, qui deinceps invenientur, pertineant integri ad regem, aut ut in illis certam aliquam habeat partem? Neque enim id est statuere aliquid contra jus gentium; sed rationabili ex causâ impedire, ne dominium thesauri inventi sit alicujus, cujus esset, stando in solo naturali ac gentium jure: efficereque ut sit alterius: id quod potest optimè Respublica facere; non secus ac efficere potest, ut venatio aliqua illicita sit, quæ, stando in solo jure naturali ac gentium, esset licita, ut disp. 43, ostensum est._ E pela mesma razão se hade de dizer o mesmo das minas, ainda que forem achadas em terras de particulares. E quando não bastasse esta razão, que certamente he forçoza; o Cardeal de Lugo _in tractatu de Justitiâ et Jure tom. 1º, disp. 6, sect. 10, n. 108_, mostra, que El-Rei póde reservar para si as minas (ainda que se achem em terra de particulares), por modo de tributo, e tributo muito bem posto, mandando que se lhe pague alguma parte do que se tirar dellas, para os gastos da Republica. _Et de facto_ (diz) _jure humano solent husjus modi Mineralia, quod aliquam saltem partem, maiorem vel minorem, Principi applicari; quoad aliam vero inventori: quod quidem fieri potuit, vel quia ab initio agri eâ lege singulis in eâ provinciâ distributi fuerunt, ut Mineralia Principis dispositioni reservarentur, ut vult Vasques de restitutione cap. 5º, § 4º, dub. 2, n. 17, vel certè per modum tributi; sicut potest Princeps ad subsidium et sumptus publicos alia tributa exigere. Aliunde verò justificatur non parum ille modus tributi ex eo, quòd, cùm aurum et argentum sint potissimæ Reipublicæ vires, non expedit, quòd in iis Princeps ipse et tota Respublica dependeant a duobus, vel tribus privatis, qui soli ea metalla in suis prædiis colligant, ac collecta reservent, et ad nutum distribuant._ Ou se considerem pois as minas como parte do patrimonio real, ou como justo tributo para os gastos em prol da Republica, he certo que se deve a El-Rei o que para si reservou, que he a quinta parte do ouro, que dellas se tirar, puro, e livre de todos os gastos: e que o que se manda nas ordenações, acima referido, está justamente ordenado: e que, prescindindo de qualquer pena, o quinto, _ex naturâ rei_, se lhe deve, não menos, que outro qualquer justo tributo, ordenado para bem da Republica; ou como cobra a pensão, que impõe sobre qualquer outra parte do seu patrimonio, como he a que se lhe deve, e se lhe paga dos feudos. E se alguem disser que de outra sorte se hade julgar das minas do Brazil, que das do Reino de Portugal, por ser mais certo o direito do dominio, e posse que compete a El-Rei do Reino de Portugal, que o das conquistas do Brazil; se se examinar a sua origem, merecerá como temerario a mesma resposta, que, fallando das conquistas das Indias Occidentaes, dadas aos Reis de Castella pelo Summo Pontifice Alexandre VI, dérão, depois de tratarem esta materia com singular doutrina e attenção, varões doutissimos em seus tratados, trazendo as bullas, e ponderando e examinando a autoridade do Summo Pontifice para semelhantes doações, e os justos motivos de as fazerem; dizendo ultimamente, que já se não devia permittir o pôr-se isto em duvida, por ser sentença do vigario de Christo na terra, dada, e publicada legitimamente, depois de maduro conselho, e grande attenção, como pedia a materia, e defendida, por justa, valida e licita, de tantos e tão insignes doutores. _Ita_ Solorzano, _de Indiarum gubernatione tom. 1º, lib. 2º, cap. 24, n. 41_. Avendanho, _in thesauro Indico t. 1º, tit. 1º, cap. 1º, per totum, et præcipue, § 4º, n. 17_, aonde tambem diz, que Mascardo, _in tractatu de Judæis et infidelibus, part. 1ª, cap. 14º_, não duvida affirmar, que o poder do Papa para tal doação he tão certo, que dizer o contrario parece que tem sabor de Heresia: o que o mesmo Avendanho explica em que sentido se deve entender. E que mereça a mesma resposta quem disser o mesmo da conquista do Brazil, ninguem o poderá negar com razão: possuindo os Reis de Portugal pelos mesmos titulos o Brazil e as outras conquistas, pelos quaes todos esses autores, Solorzano, e Avendanho, e outros doutissima e solidissimamente provão o legitimo dominio e posse, que compete aos Reis de Castella, das Indias Occidentaes, como consta pelas bullas dos Summos Pontifices, Calisto III, Nicoláo V, e Alexandre VI, que se achão no mesmo cap. 24 de Solorzano, desde a pag. 344 até a pag. 355, em todo o lib. 2, do dito primeiro tomo de _Indiar. Gubern._ que consta de 25 cap., e no terceiro, que consta de 8, aonde com singular erudição prova unicamente a justiça, com que se adquirio e se conserva o dominio, e posse destas conquistas. E fallando o mesmo Solorzano, no segundo tomo, lib. 5, cap. 1, em particular das minas, e dos metaes, que dellas se tirão, n. 19, diz que, assim nas Indias, como em qualquer outra parte, pertencem ao direito de El-Rei, como seu patrimonio, e parte do seu supremo dominio, quer se achem em lugar publico, quer em terras ou fazendas dos particulares: de sorte que nunca se entendem comprehendidas nas datas, e doações, ainda que geralmente feitas, se se não fizer especial menção dellas. E para confirmar o que diz, traz vinte e quatro autores, que tratárão de _regalibus, de metallis, et de Jure Fisci_; ou interpretárão o cap 1º. _Quæ sint regalia_, ou a lei 2, _cod. de Metallor_. Diz tambem n. 20, que por razão dos gastos, que são necessarios para tirar os metaes das minas destas conquistas, contentão-se os Reis com que se lhes pague a quinta parte do metal, que se tirar; prohibindo usar delle até não ser marcado com o cunho real, para que conste, que se pagou a quinta parte. E porque podia haver duvida, se esta quinta parte de metal se havia de entender como vem da terra não limpo, e se se havião de comprehender nella os gastos, ou se se havião de dar livre delles; traz no n. 16, a ordem d’El-Rei de 1604, que decidio ambas as duvidas por estas palavras. _El quinto neto, y sin descuento de custas, puesto en poder del maestro tesorero, ó receptor_, que he o que tambem diz a ordenação de Portugal tit. 34, do liv. 2. Depois de fundido e apurado, paguem o quinto em salvo de todos os custos. Nota mais Solorzano n. 27 do dito cap. 1, do liv. 5, que quando se falla de fructos da terra, se entendem tambem os metaes: allegando para isso a João Garcia _de expensis cap. 22, n. 47._ Lazarte _de Gabelliis cap. 19, n. 59_; Barboza, _indicto §. Si vir, L. Divortio ff. soluto matrimonio_; Marquech, _de divisione bonorum lib. 2, cap. 11, n. 23, et seq_; Cabedo, _decis. 81, n. 2, part. 2_; Gilken, _de expensis metallorum in L. Certum cod. de rei vindicat, cap. 5, pag. 722_; Farinac, _quest. 104, n. 62 e 63_; Tash, _verbo min. concl. 237, et verbo præventio_, aonde trata de como as minas, de quem quer que se occupem, sempre passão com sua obrigação. Nævius, _in system. ad L. 2, cod. de Metallor_; Pancirolus, _in thesaur. lib. 3, cap. 31, pag. 214, 327 e 372_; Marsil, _singul. 531_, e Menoch, _cons. 793, a n. 16_. E que consequentemente, como os outros fructos da terra estão sujeitos ao dizimo, que os Papas concedêrão aos Reis de Portugal e aos de Castella: _ut ex L. cuncti Cod. de Metallor_. Butrius, _et alii in cap_. _Pervenit de decimis_, Rebuffus, _quaest 10, n. 24, et 25_, _et_ Solorzano _de Indiar_. _Gubern. tom. 2, lib. 3. cap. 21, n. 10_, posto que os Reis (como diz o mesmo Solorzano) não tratem de cobrar estes dizimos dos mineiros, contentando-se por razão dos gastos com que lhe paguem a quinta parte do ouro, e prata, que tirão de suas minas, que são parte do seu patrimonio, e parte sempre reservada, como está dito. Passando agora ao outro ponto, em que se pergunta, se esta lei de pagar a El-Rei a quinta parte do ouro que se tira das minas, obriga em consciencia: digo, que a resolução desta duvida depende de tirar huma falsa imaginação de alguns menos attentos, e accelerados em resolver: os quaes, por verem que esta lei he acompanhada da comminação da pena da perda da fazenda, e do degredo por dez annos, e de outras pelo novo regimento ácerca das minas do Brazil, cuidão que he lei meramente penal, e que como tal não obriga em consciencia, nem antes da sentença do juiz, aos transgressores della, conforme o commum sentir dos theologos, e moralistas, que tratão das leis, e em particular das penaes. Porém o P. Francisco Soares, examinando mais profundamente (como costuma) este ponto no _L. 5 de legibus. cap. 13 a n. 2_, resolve, que as imposições e pensões, que se pagão aos Reis e Principes por cousas suas immoveis, e fructos dellas, são tributos reaes, e naturaes, fundados em justiça; porque se cobrão de cousas proprias dos ditos Principes, aos quaes se dérão para a sua sustentação; e elles as dérão aos seus vassallos com obrigação de lhes pagarem estas pensões; e que por isso as leis que mandão pagar estas pensões, ou tributos, ainda que se lhes acrescente alguma pena, sem duvida não se podem chamar, nem são puramente penaes, mas dispositivas, e moraes: assim como são as convencionaes entre partes, que para maior firmeza admittem pena entre os contrahentes, para que se guardem os contractos, e as promessas de fazer, ou pagar qualquer divida, que aliunde de justiça se deva. E que consequentemente estas leis obrigão em consciencia a pagar taes pensões, e tributos inteiramente, espontaneamente, e sem diminuição alguma, ou engano, ainda que se não peção; porque se devem de justiça commutativa, que traz comsigo esta intrinseca obrigação, se não houver pacto em contrario. Até aqui o P. Soares n. 4, he o citato. E deste fundamento certissimo se infere tambem certamente, que os quintos do ouro, que se tira das minas do Brazil, se devem a El-Rei em consciencia: e que a lei feita para segurar a cobrança delles, não he meramente penal, ainda que traga annexa a comminação da pena contra os transgressores; mas he lei dispositiva, e moral, e que obriga antes da sentença do juiz em consciencia. Porque sendo El-Rei (como está provado na primeira parte desta questão) senhor legitimo das minas por doação, que lhes fez dellas com a conquista do Brazil o Summo Pontifice, e por todos os outros titulos, que traz Solorzano em todo o L. 2, do t. 1, _de Indiar. Gubern._ commum aos Reis de Portugal como aos Reis de Castella: e sendo as ditas minas do direito real, e parte do seu patrimonio, como quaesquer outros bens, que se lhes dérão para sua sustentação, e gastos que faz em prol da Republica, e para conservação, e augmento da fé: e reservando-as para si em todas as datas, nem dando licença de tirar ouro dellas, se não com condição, que quem o tirar pague a quinta parte do que tirar, puro e deseccado, e livre de todos os gastos: e podendo pretender isto (prescindindo dos outros titulos) por justo e bem ordenado, como está provado com as razões, e autoridade de tantos doutores acima allegados: claro está, que esta obrigação está fundada em justiça commutativa, como a de quaesquer outros pactos, e promessas de qualquer outro justo contracto, que costumão admittir os contrahentes em suas convenções: e que, ainda que a lei não acrescentasse pena aos transgressores, sempre devião pagar estes quintos, por ser obrigação intrinseca: e que o pôr-lhe a pena, he para facilitar mais a cobrança do que se lhe deve, e não para fazer huma lei meramente penal. _Nam adjectio pœnæ_ (diz Soares n. 10) _non tollit obligationem, quam eadem lex, præcise lata sine poenâ, induceret in conscienciâ: ergo licet illi addatur pœna, obligata per se ad tributum, persolvendum, vel restituendum, (si contra justitiam non sit solutum) absque ullâ condemnatione, vel sententiâ, etiamsi tunc nemo obliget ad pœnæ solutionem ante sententiam, juxta generalem doctrinam datam de lege pœnali._ E declarando isto, diz mais, que esta lei he mixta, ou quasi composta de tributo, e de pena; e que se ordenão a diversos fins a imposição da pensão, ou tributo, e a pena, que se lhes acrescenta: porque o tributo se ordena á sustentação d’El-Rei, ou a satisfazer a obrigação natural, que tem os vassallos de dar justo estipendio a El-Rei, que trabalha em prol da Republica: e a pena se ordena a que se cumpra esta obrigação, e se castigue quem a não cumprir como deve: logo ainda que o tributo, ou pensão seja justa, e adequada ao seu fim, e a obrigação fique inteira, justamente se lhe acrescenta a comminação da pena, e justamente se executa, se houver culpa, além da inteira cobrança do tributo. Assim como nas penas, que de commum consentimento se poem pelos contrahentes em algum justo contracto, se póde justamente obrigar o violador da promessa feita no contracto a que pague a dita pena, além do interesse e damno, que da transgressão se seguio. E diz que o mesmo succede no nosso caso: porque se faz como hum contracto entre El-Rei, e seus vassallos, para que El-Rei os governe, e os subditos os sustentem com pensões, e tributos. E para segurar que se paguem, póde acrescentar-se-lhe a pena; a qual não diminue a força, e obrigação do contracto; mas sirva de huma nova convenção para que os subditos paguem o que por justiça lhe devem. Até aqui o P. Soares no dito cap. 13, n. 10. E isto parece que bastára para mostrar, que os quintos do ouro, que se tirão das minas do Brazil, se devem em consciencia, e antes da condemnação, ou sentença, a El-Rei Nosso Senhor de justiça, e não por huma lei meramente penal como alguns erradamente imaginão. Acrescentarei porém outros motivos para estabelecer mais esta resolução. E seja o primeiro, que esta lei dos quintos (como advertio Avendanho _in Thesauro Indit. 1, tit. 5, cap. 8, n. 43_), he muito racional pela razão que traz Molina _disp. 56 de Just. e Jure, § ult._ e vem a ser: porque está posto em razão, que o principe tenha alguma parte mais que os outros particulares em cousas de preços singulares, como tem em outros bens; ainda quando pareceria ser melhor dá-las ao publico. E assim, faltando os parentes até certo gráo, os bens dos que morrem _ab intestato_ vão ao fisco real: e em pena de alguns crimes, logra El-Rei os bens confiscados, que se alguem por parente, ainda que muito chegado do réo, os tirasse ao fisco, peccaria contra a justiça, com obrigação de os restituir. Logo quanto mais se hade dizer do mesmo, quando reservar os quintos do ouro se ordena não sómente á sustentação d’El-Rei, mas tambem os gastos em proveito da Republica, e para a conservação, e augmento da fé, ficando aos mineiros o mais do ouro, de que retirão os quintos? Segundo, porque Filippe II, Rei de Castella, depois de ter ouvido o parecer dos theologos, e conselheiros da India, escreveu resolutamente ao Vice-Rei do Perú o Conde de Villar, no anno de 1584, desta sorte: _I pudiera-yo cobrar enteramente el quinto de todo ello_: (a saber) do ouro, e pratas lavradas, _y las personnas, que le deben, estan obligadas en consciencia a me lo pagar_. O que não diria de sua cabeça, contra o parecer dos ditos theologos, e conselheiros, se assim o não tivessem entendido, como refere Avendanho no dito cap. 8, n. 44, e traz logo em confirmação disto a lei de Portugal pela qual (como diz o P. Rebello) se devem os quintos a El-Rei antes da condemnação ou sentença. Diz mais Avendanho em prova de que se devem os quintos em consciencia, que assim o tem mais de vinte autores que allega: entre os quaes são Vasques, Molina, Lugo, Rebello, Azor, Lessio, Castilho, Fragozo, e outros quinze, todos da mesma opinião. E de algum quero citar as palavras, para que melhor conste da verdade, e da autoridade das pessoas, que assim sentem. Vasques _in tract. de restitutione cap. 5, n. 30 ast.: arbitror, quod prædictæ leges non fundentur in præsumptione, nec pœnales sint: et ita nullâ expectatâ sententiâ sunt observandæ. Et n. 29, citat Covarruviam, Caietanum, et Navarrum, ita sentientes._ Lugo _t. 1, de Justitia, et Jure disp. 6, sect. 11, n. 131_, diz: _Aliæ autem Leges, quæ penales non sunt, potuerunt quidem transferre dominium in fiscum: et ideo videntur in conscientiâ obligare ante omnem sententiam judicis_. Molina _dicta disp. 56 de Justitia, et Jure § ult. ibi: In interiori, et exteriori foro_. Terceiro, porque do ouro, e da prata se deve pagar o dizimo, do mesmo modo que dos outros fructos da terra, como está provado acima com os autores que traz Solorzano tom. 2, lib. 3, cap. 21, n. 10, e o prova tambem o P. Soares t. 1, de _religione lib. 1, de divino cultu, cap. 34, n. 3 e 6_, e o P. Tancredi _tract. 1, de religione lib. 2, disp. 11, n. 7, ex omnium mente: et se inferre ex generali dispositione in cap. Non est, de decimis, ubi illa habentur verba: de omnibus bonis decimæ sunt ecclesiæ tribuendæ: et ex cap. transmissa, et ex cap. tua nobis._ Tendo pois os Summos Pontifices dado os dizimos do Brazil, e de outras conquistas aos Reis de Portugal, pelas despezas que fazião, e fazem nas mesmas conquistas, e pelos outros motivos, que allegão em suas bullas (o que podião fazer e de facto o fizerão aos outros Reis e Principes, pelas razões, e autoridades, que traz eruditamente Solorzano, com as mesmas bullas, t. 2, de _Indiar. Gubern. lib. 3, cap. 1_), segue-se, que tambem lhe dérão, e se lhes hão de pagar os dizimos do ouro, e prata, que das minas do Brazil se tirarem: e que assim estes, como os dizimos dos outros fructos da terra, se lhes devem em consciencia. E que, sendo as minas dos Reis, attentando aos gastos, que se fazem em tirarem os metaes, não tratem de cobrar o dizimo, e se contentem com a opinião, ou tributo do quinto; não se podem dizer rigorozos; mas antes benignos, como notou Avendanho no lugar citado a n. 45, com Fragozo tom 1, pag. 265, § _alii addunt_. De tudo isto se segue, que o dizer que os quintos do ouro se devem a El-Rei em consciencia, he a opinião verdadeira, mais provavel, e mais segura, assim pelos motivos intrinsecos dos seus fundamentos, particularmente pelos que traz o P. Soares acima referidos; como pelos extrinsecos da autoridade dos doutores allegados, que são theologos de grande doutrina, e religião; deixando a opinião contraria muito duvidosa, muito fraca; e nada segura. E que os officiaes deputados por El-Rei á cobrança dos quintos, e a cunhar o ouro, tem a obrigação grave em consciencia, de fazer bem, e fielmente o seu officio: e que não podem dissimular os gravissimos prejuizos, que se fazem ao patrimonio real, defraudado por culpa delles, de muito lucro; recebendo estipendio do mesmo Rei, que tem a sua tenção bem fundada, para que com fidelidade fação seu officio. _Ita_ Avendanho n. 48. O qual porém n. 56, he de opinião, que a prohibição de negociar com ouro em pó, não obriga em consciencia, como obriga a lei de pagar os quintos: mas que o dito ouro em pó passa com a mesma obrigação de ser quintado a quem quer que vai, até se satisfazer a esta intrinseca obrigação. E com isto mais se confirma o que está dito da lei dos quintos, por ser dispositiva, e penal: porque em quanto he dispositiva do que se deve de justiça a El-Rei, que são os quintos, obriga em consciencia: e em quanto he penal, faz que a pena dos transgressores não se deva em consciencia, senão depois da sentença. Em huma palavra: o quinto sempre se deve de justiça; e a perda da fazenda, e o degredo, só _post sententiam_. CAPITULO X. Roteiro do caminho da villa de S. Paulo para as Minas Geraes, e para o Rio das Velhas. Gastão commummente os paulistas desde a villa de S. Paulo até as Minas Geraes dos Cataguás pelo menos, dous mezes; porque não marchão de sol a sol, mas até o meio dia; e quando muito até huma, ou duas horas da tarde: assim para se arrancharem, como para terem tempo de descançar, e de buscar alguma caça, ou peixe, aonde o ha, mel de páo, e outro qualquer mantimento. E desta sorte aturão com tão grande trabalho. O roteiro do seu caminho desde a villa de S. Paulo, até a Serra de Itatiaya, aonde se divide em dous; hum para as minas do Caité, ou ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, e do Ouro Preto; e outro para as minas do Rio das Velhas; he o seguinte, em que se apontão os pousos, e paragens do dito caminho, com as distancias que tem, e os dias que pouco mais ou menos se gastão de huma estalagem para outra, em que os ministros pousão, e se he necessario descanção, e se refazem do que hão mister, e hoje se acha em taes paragens. No primeiro dia sahindo da villa de S. Paulo vão ordinariamente pousar em Nossa Senhora da Penha, por ser (como elles dizem) o primeiro arranco de casa: e não são mais que duas legoas. Dahi vão á aldêa de Tacuaquisetuba, caminho de hum dia. Gastão da dita aldêa até a villa de Mogi, dous dias. De Mogi vão as Larangeiras, caminhando, quatro ou cinco dias até o jantar. Das Larangeiras até a villa de Jacarey, hum dia até as tres horas. De Jacarey até a villa de Taubaté dous dias até ao jantar. De Taubaté a Pindamonhangaba, freguezia de Nossa Senhora da Conceição, dia e meio. De Pindamonhangaba até a villa de Guiratinguetá, cinco ou seis dias até o jantar. De Guiratinguetá até o porto de Guaipacare, aonde ficão as roças de Bento Rodrigues, dous dias até ao jantar. Destas roças até ao pé da serra afamada de Amantiquira, pelas cinco serras muito altas, que parecem os primeiros morros, que o ouro tem no caminho, para que não cheguem lá os mineiros, gastão-se tres dias até ao jantar. Daqui começão a passar o ribeiro, que chamão passa vinte, porque vinte vezes se passa; e se sóbe as serras sobreditas: para passar as quaes, se descarregão as cavalgaduras, pelos grandes riscos dos despinhadeiros que se encontrão: e assim gastão dous dias em passar com grande difficuldade estas serras; e dahi se descobrem muitas, e aprasiveis arvores de pinhões, que a seu tempo dão abundancia delles para o sustento dos mineiros, como tambem porcos montezes, araras, e papagaios. Logo passando outro ribeiro, que chamão passa trinta, porque trinta e mais vezes se passa, se vai aos pinheiros: lugar assim chamado, por ser o principio delles: e aqui ha roças de milho, aboboras, e feijão, que são as lavouras feitas pelos descobridores das minas, e por outros, que por ahi querem voltar. E só disto constão aquellas, e outras roças nos caminhos, e paragens das minas: e quando muito, tem de mais algumas batatas. Porém em algumas dellas hoje, achão-se, criação de porcos domesticos, galinhas, e frangões, que vendem por alto preço aos passageiros, levantando-o tanto mais, quanto he maior a necessidade dos que passão. E dahi vem o dizerem, que todo o que passou a serra de Amantiquira, ahi deixou dependurada, ou sepultada a consciencia. Dos Pinheiros se vai á estalagem do Rio Verde, em oito dias, pouco mais, ou menos, até o jantar, e esta estalagem tem muitas roças, e vendas de cousas comestiveis, sem lhe faltar o regalo de doces. Dahi caminhando tres, ou quatro dias pouco mais, ou menos, até ao jantar, se dá na afamada Boa Vista; a quem bem se deu este nome, pelo que se descobre daquelle monte, que parece hum mundo novo, muito alegre: tudo campo bem estendido, e todo regado de ribeirões, huns maiores que outros, e todos com seu mato, que vai fazendo sombra, com muito palmito, que se come, e mel de páo, medicinal, e gostoso. Tem este campo seus altos e baixos; porém moderados: e por elle se caminha com alegria; porque tem os olhos que ver e contemplar na perspectiva do Monte Caxambú, que se levanta as nuvens com admiravel altura. Da Boa Vista se vai á estalagem chamada Ubay, aonde tambem ha roças, e seráõ oito dias de caminho moderado até ao jantar. Do Ubay, em tres ou quatro dias vão ao Ingay. Do Ingay, em quatro ou cinco dias se vai ao Rio Grande; o qual quando está cheio, causa medo pela violencia com que corre, mas tem muito peixe, e porto com canôas, e quem quer passar, paga tres vintens, e tem perto suas roças. Do Rio Grande se vai em cinco dias, ao Rio das Mortes, assim chamado pelas que nelle se fizérão: e esta he a principal estalagem aonde os passageiros se refazem, por chegarem já muito faltos de mantimentos. E neste rio, e nos ribeiros, e corregos, que nelle dão, ha muito ouro, e muito se tem tirado e tira: e o lugar he muito alegre, e capaz de se fazer nelle morada estavel, se não fosse tão longe do mar. Desta estalagem vão em seis, ou oito dias ás plantações de Garcia Rodrigues. E daqui, em dous dias chegão á Serra de Itatiaja. Desta serra seguem-se dous caminhos: hum que vai a dar nas Minas Geraes do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, e do Ouro Preto; e outro, que vai a dar nas minas do Rio das Velhas: cada hum delles de seis dias de viagem. E desta serra tambem começão as roçarias de milho e feijão a perder-se de vista, donde se provém os que assistem, e lavrão nas minas. CAPITULO XI. Roteiro do caminho velho da cidade do Rio de Janeiro para as Minas Geraes dos Cataguas, e do Rio das Velhas. Em menos de trinta dias, marchando de sol a sol, podem chegar os que partem da cidade do Rio de Janeiro ás Minas Geraes; porém raras vezes succede poderem seguir esta marcha, por ser o caminho mais aspero que o dos paulistas. E por relação de quem andou por elle em companhia do Governador Artúr de Sá, he o seguinte. Partindo aos 23 de Agosto da cidade do Rio de Janeiro forão a Paraty, de Paraty a Taubaté, de Taubaté a Pindamonhangaba, de Pindamonhangaba a Guaratinguetá, de Guaratinguetá ás roças de Garcia Rodrigues, destas roças ao ribeirão. E do ribeirão com oito dias mais de sol a sol chegárão ao Rio das Velhas aos 29 de Novembro: havendo parado no caminho oito dias em Paraty, dezoito em Taubaté, dous em Guaratinguetá, dous nas roças de Garcia Rodrigues, e vinte e seis no ribeirão. Que por todos são cincoenta e seis dias. E tirando estes de noventa e nove, que se contão desde 23 de Agosto até 29 de Novembro, viérão a gastar neste caminho não mais que quarenta e tres dias. CAPITULO XII. Roteiro do caminho novo da cidade do Rio de Janeiro para as Minas. Partindo da cidade do Rio de Janeiro por terra com gente carregada, e marchando á Paulista, a primeira jornada se vai a Irajá; a segunda ao engenho do Alcaide Mór, Thomé Corrêa; a terceira ao porto do Nobrega no Rio Iguassú, aonde ha passagem de canôas, e saveiros; a quarta ao sitio, que chamão de Manoel do Couto. E quem vai por mar e embarcação ligeira, em hum dia se põe no porto da Freguezia de Nossa Senhora do Pilar: e em outro, em canôa, subindo pelo Rio de Morobai acima, ou hindo por terra, chega pelo meio dia ao referido sitio do Couto. Deste se vai a cachoeira do pé da serra, e se pousa em ranchos. E daqui se sóbe á serra, que são duas boas legoas: e descendo o cume, se arrancha nos pousos, que chamão Frios. No dito cume faz hum taboleiro direito em que se póde formar hum grande batalhão: e em dia claro, he sitio bem formozo, e se descobre delle o Rio de Janeiro, e inteiramente todo o seu reconcavo. Dos pousos frios se vai á primeira roça do Capitão Marcos da Costa: e della em duas jornadas á segunda roça que chamão do Alferes. Da roça do Alferes, em huma jornada se vai ao Páo Grande, roça que agora principia, e dahi se vai pousar no mato ao pé de hum morro, que chamão Cabarú. Deste morro se vai ao famozo Rio Parahyba, cuja passagem he em canôas. Da parte d’áquem está huma venda de Garcia Rodrigues, e ha bastantes ranchos para os passageiros: e da parte d’além está a casa do dito Garcia Rodrigues, com larguissimas roçarias. Daqui se passa ao Rio Parahibuna em duas jornadas: a primeira no mato, e a segunda no porto, onde ha roçaria, e venda importante, e ranchos para os passageiros de huma e outra parte. He este rio pouco menos caudaloso que o Parahiba: passa-se em canôa. Do Rio Parahibuna fazem duas jornadas á Roça do contraste Simão Pereira, e o pouso da primeira he no mato. Da roça do dito Simão Pereira se vai á de Mathias Barboza: e dahi á roça de Antonio de Araujo: e desta á roça do Capitão José de Souza: donde se passa á roça do Alcaide Mór Thomé Corrêa: e desta á de Manoel de Araujo. E em todas estas jornadas se vai sempre pela visinhança do Parahibuna. Da roça do dito Manoel de Araujo, se vai a outra rocinha do mesmo. Desta rocinha se passa á primeira roça do Sr. Bispo: e dahi á segunda do dito. Da segunda roça do Sr. Bispo fazem huma jornada pequena, á borda do campo, á roça do Coronel Domingos Rodrigues da Fonseca. Quem vai para o Rio das Mortes, passa desta roça á de Alberto Dias: dahi á de Manoel de Araujo, que chamão da Resaca, e desta á ponta do morro, que he arraial bastante, com muitas lavras, donde se tem tirado grande copia de ouro: e ahi está hum fortim, com trinheiras, e fosso, que fizérão os Emboabas, no primeiro levantamento. Deste lugar se vai jantar ao arraial do Rio das Mortes. E quem segue a estrada das Minas Geraes, da roça sobredita de Manoel de Araujo da Resaca do Campo vai á roça, que chamão de João Baptista: dahi á de João da Silva Costa, e desta á roça das Congonhas, junto ao Rodejo da Itatiaja: da qual se passa ao campo do Ouro Preto, aonde ha varias roças, e de qualquer dellas he huma jornada pequena ao arraial do Ouro Preto, que fica mato dentro, onde estão as lavras do ouro. Todas as referidas marchas faráõ distancia de oitenta legoas a respeito dos rodeios, que se fazem em razão dos muitos, e grandes morros, e por rumo de Norte a Sul, não são mais que dous grãos de distancia ao Rio de Janeiro: porque o Ouro Preto está em vinte e hum grãos, e o Rio das Velhas estará em vinte, pouco mais ou menos. E todo o dito caminho se póde andar em dez até doze dias, indo escoteiro quem fôr por elle. Do campo do Ouro Preto ao Rio das Velhas, são cinco jornadas, pousando sempre em roças. CAPITULO XIII. Roteiro do caminho da cidade da Bahia para as minas do Rio das Velhas. Partindo da cidade da Bahia, a primeira pousada he na Cachoeira; da Cachoeira vão á Aldêa de Santo Antonio de João Amaro: e dahi á Tranqueira. Aqui divide-se o caminho: e, tomando-o á mão direita, vão aos curraes do Filgueira logo á nascença do Rio das Rãs. Dahi passão ao curral do Coronel Antonio Vieira Lima, e deste curral vão ao arraial de Mathias Cardozo. Mas se quizerem seguir o caminho á mão esquerda, chegando á Tranqueira, mettem-se logo no caminho novo e mais breve que fez João Gonçalves do Prado, e vão adiante até á nascença do Rio Verde. Da dita nascença vão ao Campo da Garça: e dahi subindo pelo rio acima vão ao arraial do Borba, donde brevemente chegão ás Minas Geraes do Rio das Velhas. Os que seguírão o caminho da Tranqueira, á mão direita, chegando ao arraial de Mathias Cardozo, vão longo do Rio de S. Francisco acima, até darem na barra do Rio das Velhas: e dahi como está dito, logo chegão ás minas do mesmo rio. Mas porque nesta jornada da Bahia huns caminhão até ao meio dia, outros até ás tres da tarde, e outros de sol a sol: pôrei a distancia certa por legoas destes dous caminhos da Bahia para as minas do Rio das Velhas, que he o seguinte: Da cidade da Bahia até á Cachoeira, doze legoas. Da Cachoeira até á Aldêa de João Amaro, vinte e cinco legoas. Da Aldêa de João Amaro até á Tranqueira, quarenta e tres legoas. Da Tranqueira caminhando á mão direita até ao arraial de Mathias Cardozo, cincoenta e duas legoas. Do Arraial de Mathias Cardozo até á Barra do Rio das Velhas, cincoenta e quatro legoas. Da Barra do Rio das Velhas até ao Arraial do Borba, aonde estão as minas, cincoenta e huma legoas. E são por todas, duzentas e trinta e sete legoas. Tomando o caminho da Tranqueira, á mão esquerda, que da Bahia até ahi consta de oitenta legoas: são da Tranqueira até á nascença do Rio Guararutiba, trinta e tres legoas. Da dita nascença até ao ultimo curral do Rio das Velhas, quarenta e seis legoas. Deste curral até o Borba, vinte e sete legoas. E são por todas, cento e oitenta e seis legoas. Este caminho da Bahia para as minas he muito melhor, que o do Rio de Janeiro, e da villa de S. Paulo: porque, posto que mais comprido, he menos difficultoso, por ser mais aberto para as boiadas, mais abundante para o sustento, e mais accommodado para as cavalgaduras e para as cargas. CAPITULO XIV. Modo de tirar o ouro das minas do Brazil, e ribeiros dellas, observado de quem nellas assistio com o Governador Artur de Sá. Pôrei aqui a relação, que o mesmo autor me mandou, e he a seguinte. Conforme as disposições, que vi pessoalmente nas minas do ouro de S. Paulo, assim nas lavras de agoa dos ribeiros, como nas da terra contigna a elles: direi brevemente o que póde bastar, para que os curiosos indagadores da natureza mais facilmente conheção em suas experiencias, que terra, e que ribeiros possão ter, ou não ter ouro. Primeiramente, em todas as minas, que vi, e em que assisti, notei que as terras são montuosas, com serros e montes, que se vão ás nuvens; por cujos centros correndo ribeiros de bastante agoa, ou corregos mais pequenos, cercados todos de arvoredo grande, e pequeno, em todos estes ribeiros pinta ouro com mais ou menos abundancia. Os sinaes, por onde se conhecerá se o tem, são, não terem areas brancas á borda da agoa, se não huns seixos miudos, e pedraria da mesma casta na margem de algumas pontas dos ribeiros: e esta mesma formação de pedras leva por debaixo da terra. E começando pela lavra desta, se o ribeiro depois de examinado com socavão faiscou ouro, he sinal infallivel, que o tem tambem a terra: na qual dando ou abrindo catas, cavando-a primeiro em altura de dez, vinte, ou trinta palmos, em se acabando de tirar esta terra, que de ordinario he vermelha, acha-se logo hum pedregulho, a que chamão desmonte, e vem a ser seixos miudos com arèa, unidos de tal sorte com a terra, que mais parece obra artificial, do que obra da natureza: ainda que tambem se acha algum desmonte deste solto, e não unido, e com mais ou menos altura. Este desmonte rompe-se com alabancas: e se acaso tem ouro, logo nelle começa a pintar, ou (como dizem) a faiscar algumas faiscas de ouro na batêa, lavando o dito desmonte. Mas ordinariamente, se pintar bem o desmonte, he sinal, que a piçarra terá pouco, ou nenhum ouro; e digo ordinariamente, porque não ha regra sem excepção. Tirado fóra o desmonte, que ás vezes tem altura mais de braça, segue-se o cascalho: e vem a ser huns seixos maiores, e alguns de bom tamanho, que mal se podem virar; e tão queimados, que parecem de chaminé. E tirado este cascalho, apparece a piçarra, ou piçarrão, que he duro, e dá pouco, e este hum barro amarello, ou quasi branco, muito macio; e o branco he o melhor: e algum deste se acha, que parece talco, ou maracacheta; a qual serve de cama aonde está o ouro. E tomando com almocafres nas batêas esta piçarra, e tambem a terra, que está entre o cascalho, se vai lavar ao rio: e botando fóra a terra com a mesma batêa, andando com ella á roda dentro d’agua pouco a pouco; o ouro (se o tem) vai ficando no fundo da batêa: até que, lavada toda a batêa da terra, pelo ouro, que fica, se vê de que pinta he a terra. Alguma terra ha, que toda pinta; outra só em partes: e a cada passo se está vendo que as catas em huma parte pintão bem, e em outras pouco, ou nada. Já se a terra tem vieiros, que he hum caminho estreito, e seguido, por onde vai correndo o ouro; certamente não pinta pelas mais partes da cata, e se vai então seguindo o vieiro atraz do ouro, e estas de ordinario são as melhores lavras, quando o ouro pega em vieiros, onde se encontrão com grandeza; e he sinal, que toda a data da terra, para onde arremete o vieiro, tem ouro. As catas ordinarias, que se dão em terra, são de quinze, vinte, e mais palmos em quadra; e podem ser maiores, ou menores, conforme dá largura a terra. E se junto dos ribeiros a terra faz algum taboleiro pequeno (porque ordinariamente os grandes não provão bem), esta he a melhor paragem para se lavrar. Posto que o commum do ouro he estar ao nivel da agua, vi muitas lavras (e não das peiores), que não guardão esta regra, senão que do ribeiro ião subindo pelos outeiros acima com todas as disposições que temos dito, de cascalho, etc., mas não he isto ordinario. Até aqui o que toca ás lavras da terra junto da agua; porém as dos ribeiros, se elles são capazes de se lhes poder desviar a agua, divertindo esta por huma banda do mesmo ribeiro, com cerco feito de páos mui direitos, deitados huns sobre outros com estacas bem amarradas, feito em forma de cano por huma e outra parte, para que se possa entupir de terra por dentro, do modo que aqui se vê. [Illustration: Margens. +--+--+--------------+--++--+-------------+--+-------------+ | \ \ / / \ \ / / | | \ \ CATA. / / \ \ CATA. / / | | \ \ / / \ \ /CERCO. | | \ +------+ / \ +-----+ / | | \ CERCO. / \ / | | +--------+ +-------+ | | +-------+ | | RIBEIRO. / CERCO. \ | | / +-----+ \ | | / / \ \ | | / / CATA. \ \ | | / / \ \| +--------------------------------------+--+-------------+--+ Margens.] Isto se entende, quando se não póde desviar todo o ribeiro para outra parte: para o que raras vezes dão lugar os serros. Divertida e esgotada a agua com as batêas, ou cuias, se tira o cascalho, ou seixos grandes e pequenos, que na agua não he mui alto, e se dá com a piçarra: vê-se se o ouro demanda para a terra depois de lavada a cata, e se busca a terra, entrando por ella, e se vai seguindo, e abrindo catas, huma sobre outras. E ordinariamente se deve provar sempre em primeiro lugar o ribeiro dentro da madre antes de lavrar na terra, para ver se tem ouro: porque se o tem, quasi sempre o ha de haver em terra com mais, ou menos abundancia. E muitas vezes acontece (como se vio nas mais das lavras de Carabuçú), que pintando mui pouco, na agua ou madre, em muitas lavras fóra da agua se deu com muito ouro. Por tanto, para se examinar se hum ribeiro tem ouro, vendo-lhe as disposições que temos dito, entre a agua e a terra, se dará hum socavão de sete, ou oito palmos em quadra, até chegar ao cascalho e piçarra, e se faiscar, he sinal que em terra, e na agua ha ouro: e pelas pintas destes socavões se conhecerá, se são de rendimento. Nem nestas minas se repartem ribeiros, sem serem primeiro examinados com estes socavões junto d’agua. Nos ribeiros, onde ha arêa pelo meio, e a não ha nas barranceiras, tambem se acha ouro, havendo cascalho: assim tambem nos ribeiros, onde ha arêa por entre pedras, se acha. O esmeril acha-se com arêa preta entre o ouro; e em qualquer parte que se acha esmeril, tendo o ribeiro cascalho, ha ouro. Quando o ouro corre em vieiro, de ordinario corre direito do ribeiro para a terra dentro: e no mesmo ribeiro se succeder acharem-se muitos vieiros, serão distantes huns dos outros: e supposto que perto do vieiro se ache formação: comtudo só nos vieiros se acha mais ouro. Tambem se achão muitos seixos com granitos de ouro. Estas são algumas das cousas, que se podem dizer destas minas, para que se possa por aqui fazer exame em alguns ribeiros, aonde se suspeita, que haverá ouro. Não deixarei comtudo de referir aqui tambem o que vi no famoso rio das Velhas; porque parece fóra de toda a regra do mineral. Em huma Peninsula, que da terra entra no rio, quasi até o meio em que com as cheias fica toda cuberta de agua, vi lavrar dous corregos pequenos, junto d’agua: os quaes abrindo-se com alavancas, erão todos de hum piçarrão duro, e claro: e por entre elles sem se ir lavar no rio, foi tal a grandeza do ouro, de que estavão cheios, que se estavão vendo em pedaços e granitos nas mesmas batêas. E bateada houve, em que se tiravão de cada vez quarenta, cincoenta, e mais oitavas; sendo as ordinarias em quanto se lavrão de oito e mais oitavas. Ainda que lavrando-se depois pela terra dentro na mesma Peninsula, foi diminuindo cada vez mais a pinta; e forão logo apparecendo as disposições todas, que temos dito de terra, desmonte, cascalho, e piçarra; que não ha regra como já disse, sem excepção: e muitas vezes não dá com ouro quem mais cava, senão quem tem mais fortuna. Tambem se acha muitas vezes huma disposição de desmonte, que se chama Tapanhuacanga, que vale o mesmo que cabeça de negro, pelo teçume das pedras, tão duro, que só a poder de ferro se desmancha: e não he máo sinal; porque muitas vezes o cascalho que fica em baixo dá ouro. De algumas particularidades mais destas minas, por serem menos essenciaes, não fallo, e porque são mais para se verem, do que para se escreverem; e estas são as que bastão para o intento dos que, ou por curiozidade, ou para acertar na lavra as procurão. CAPITULO XV. Noticias para se conhecerem as minas de prata. Primeiramente, pela maior parte se achão as minas de prata em terras vermelhas e brancas, limpas de arvores, e de poucas hervas: e sempre se hão de buscar no cume dos outeiros, ou serros, que he aonde arrebentão as betas a modo de paredes velhas, que correm sempre direitas; ou a modo de alicerces, que estão debaixo da terra; ou como hum marachão de muitas pedras unidas em roda: e se se achão muito juntas, busque-se sempre a mais larga, ou a que está mais no meio do outeiro. Em havendo cavado huma vara, ou braça seguindo sempre a beta, se póde fazer experiencia dos generos de metal, que tiver; porque ha betas, que tem cinco ou seis generos de pedras, a que chamão os Castelhanos metaes. As ditas betas costumão ter de largo huma braça, ou quatro palmos, ou tres, ou dois, ou hum. Pela maior parte entre a beta se acha terra de varias côres; e ás vezes tudo he pedra maciça; e então costuma ser negra, e branca a dita pedra a modo de seixos: e, quando ha terra entre a pedra, pedra e terra, tudo tem prata. Esta beta ordinariamente está metida entre penhasco agreste; e desde a superficie da terra até ao fundo, sempre vai encaixonada. A pedra he de varias côres, differente das outras, e muito alegre: branca, negra a modo de maracaxeta que se lança nas cartas, côr de ouro amarella, azul, esverdeada, parda, de côr de figado, laranjada, leonada; e ordinariamente tem oucos onde se costuma crear prata como em cubellos. Outras pedras são todas prateadas; e outras com veias de prata: e só estas se conhecem logo que tem prata. Porém as acima nomeadas só quem tem muita experiencia, ou quem a souber fazer, virá em conhecimento que a tem. Tambem as vezes se acha huma maracaxeta negra, a qual toda tem prata: e de ordinario huma libra desta maracaxeta rende duas onças de prata. Pela maior parte na beta de prata, que junto a ella se não acha maracaxeta branca, ou amarella; ou em pedras agrestes, ou em terra. A todas estas pedras chamão os castelhanos, metaes: e a algumas dão estes nomes. Metal cobriso: e he huma pedra que tira a verde, mui pesada, salgada ao gosto, estica, e frange os beiços pelo acre do antimonio, e vitriolo, que tem misturado. Metal polvorilho; e he huma pedra hum tanto amarella, e de mais lei, que o acima, e as vezes para o fundo costuma dar em prata massiça. Metal negrilho da primeira qualidade, he pedra negra com resplandores de limaduras grossas de ferro: he de pouca lei; porém, porque sahe misturado com o metal negro da segunda qualidade, que he com resplandores de arêa miuda, e com o da terceira qualidade, que he aquelle que feito pó, a sua arêa não tem resplandor algum; he o melhor, e deve-se fazer caso delle. Metal rocicler he huma pedra negra, como metal negrilho, melhor d’arêa, como pó escuro sem resplandor: e se conhece ser rocicler, em que lançando agua sobre a pedra, se lhe dá com huma faca, ou chave, como quem a móe, e faz hum modo de barro, como ensanguentado; e quanto mais corado o barro, tanto melhor he o rocicler: e he metal de muita riqueza e facil de se tirar: e dando em parte que haja desague ao serro, não ha mais que pedir: dá em caixa de barro como lama, e pedrinhas de todas as côres. Metal paco he tambem como o rocicler, o qual he huma pedra quasi parda, como o panno pardo, ou defumado, e mui pesada. Seria extender-se muito, se se houvesse de pôr seus generos de caixa, de qualidade, e beneficios; porque he, e se faz de muitos modos segundo os generos dos paizes. Porém, sendo a pedra sem gosto algum ao mastigar-se pizada, será de boa lei para a fundição: e este genero de metal e o negrilho são os mais abundantes nas minas, sem se perderem, nem mudarem; e, quando muito, mudão de pacos a negrilhos, e de negrilhos a pacos. Metal plomo ronco, he huma de pedra côr de chumbo, porém mais escura, mui dura e pesada. He riqueza de fundição: e desta pedra affirmão alguns, que fazem bolas de bolear as indias charruas, que vizinhão, ou vizinhavão com os portuguezes da nova Colonia do Sacramento. CAPITULO XVI. Modo de conhecer a prata, e de beneficiar os metaes. Se houver lenha (e melhor he bosta de gado, por ser mais activo o fogo delle) far-se-ha huma fogueira; e no meio della se lancem as pedras do genero, que tiver a mina: e as deixaráõ queimar, até que se ponhão vermelhas, como se põe o ferro. E estando vermelhas, se lancem em agua fria, cada huma em diversa parte, para se conhecer qual das cores tem mais prata; que logo se mostrará na agua: porque, se tem prata, brotão por toda a pedra como cabeças de alfinetes, ou como grãos de munição. Tambem se podem reconhecer com chumbo, nesta fórma. Quando os metaes são negros, com poucas vêas brancas (que, se são muitas, faz-se com azougue), sendo mui pesados, se moeráõ, de sorte que o grão maior fique como o de trigo: e em huma furna, como as que se fazem para derreter metaes de sinos, se botará chumbo, e se lhe dará fogo com folle, até que aquelle chumbo se derreta, e ponha corado; e então se lhe botará a pedra moida, a saber: em meia arroba de chumbo se poderáõ beneficiar seis libras de pedra nesta fórma. Estando derretido, e corado o chumbo, se lhe lançaráõ duas libras de pedra, extendendo-o por cima do chumbo: e estando tudo encorporado com o chumbo, a modo de agoa; se vai lançando a mais terra, até que se acabem as seis libras. E em se acabando a pedra, ou metal, se continue com dar fogo ao chumbo, até que o fogo o consuma, ou converta em hum farello, que vai criando por cima; o qual se irá tirando com a escumadeira, e apartando aos lados do vaso, até que a prata por ultimo se dispa de huma teagem, que tem por cima: e antes que de todo o faça, faz primeiro tres ou quatro acontecimentos, como quem abre, e serra os olhos, a modo de ondas; até que de todo se abre, e fica a prata liquida, sem fazer movimentos. E então se pára com o fogo; e, estando hum pouco dura, se mette a escumadeira por hum lado e outro, para a desapegar do vaso, e se tira fóra. Se quizerem fazer ensaio por azougue, far-se-ha dos metaes, que não forem negros: ou se forem negros, queimar-se-hão primeiro em fôrno de reverberação, até que se lhes tire a maldade de cousas acres, que tem os metaes, ou pedras negras. E esta queima se faz, depois de moidos: e se algum dos outros metaes tiver acridades, se deve primeiro queimar tambem. O que posto: digo, que todos os metaes, ou pedras se devem moer, e peneirar, de sorte que fiquem como farinha de trigo: a peneira hade ser de pano, e pesar-se-hão os metaes. Se forem seis libras, se lhes botará hum punhado de sal; e tudo junto se molhará com agoa como quem mistura a cal com arêa. Depois de bem unido, se faz hum montinho, de sorte que esteja brando com a agoa, para que se encorpore com elle o sal: e nesta fórma se deixará estar sobre huma taboa quatro ou cinco dias ao sol. E passados estes dias, se desfará o montinho, e se pisará mui bem aquella terra: e em hum pano fino de linho se botaráõ duas onças de azougue vivo, e com o mesmo pano se espremerá por cima da dita terra, que estará espalhada, e bem fina: e junta se amassará com a mão, por tempo de huma hora; e se estiver mui seco, se molhará com agoa, até que fique como barro de fazer telha. Depois disto se tornará a fazer monte, e a pô-lo ao sol outros dias; no cabo dos quaes, se tem prata alguma mostrará nesta fórma: e vem a ser que o azougue e a prata se converteráõ em hum farello branco. E estando assim, se lhe lançará mais azougue, e se tornará a amassar, como está dito, e a pô-lo ao sol outros tantos dias; e depois se torne a molhar, e a amassar. Isto feito, se bote em huma cuia envernizada hum pedacinho daquella terra, do tamanho de huma noz, e com agoa limpa se irá lavando, até que fique limpa a arêa na cuia, para conhecer se o azougue ha colhido toda a prata: e se estiver ainda com farello, se lance mais azougue, como acima. Havendo colhido o azougue toda a prata, já não fará farello na cuia; e estará toda incorporada. Então se lave todo o monte com muito cuidado, e se lance em hum pano de linho novo, e se esprema: e aquella bolla, que ficar, se queimará, até que se queime todo o azougue; e ficará liquida a prata: e se conhecerá, se são os metaes de rendimento ou não. Se o azougue estiver frio (o que se conhecerá, estando mettido dentro em hum saquinho negro, que de si mesmo forma), se lhe botará mais sal ou magistral: e se estiver quente (o que se conhecerá de estar mui negro o farello da prata), se lhe botará cinza molhada, e se misturará tudo, como fica dito acima. Alguns dizem que a sobredita massa se hade revolver, e amassar todos os dias duas vezes, por espaço de quarenta dias; e que a cada quintal de pedra se lança hum almude de sal de compaz, e dez libras de azougue na fórma acima. Ultimamente dão estas regras geraes. As minas de Norte ao Sul fixo são permanentes. As minas de ouro cabeceão de Oriente a Poente; e dão em seixo branco, ou negro, ou em barro vermelho, se são boas. Não havendo sal de pedras junto das serras de minas de prata, he sinal que não são minas de permanencia: e a este chamão os Castelhanos sal de compaz. Só á vista de quem tem experiencia se podem dar a conhecer fixamente os metaes; porque ha outros generos de pedras como elles, que não são de prata. CAPITULO XVII. Dos damnos, que tem causado ao Brazil a cobiça depois do descobrimento do ouro nas minas. Não ha cousa tão boa, que não possa ser occasião de muitos males, por culpa de quem não usa bem della. E até nas sagradas se commettem os maiores sacrilegios. Que maravilha pois, que, sendo o ouro tão formoso e tão precioso metal, tão util para o commercio humano, e tão digno de se empregar nos vasos e ornamentos dos Templos para o Culto Divino, seja, pela insaciavel cobiça dos homens, continuo instrumento e causa de muitos damnos? Convidou a fama das minas tão abundantes no Brazil homens de toda a casta, e de todas as partes: huns de cabedal, e outros vadios. Aos de cabedal, que tirárão muita quantidade delle nas catas, foi causa de se haverem com altivez e arrogancia, de andarem sempre acompanhados de tropas de espingardeiros, de animo prompto para executarem qualquer violencia, e de tomarem, sem temor algum de justiça, grandes e estrondozas vinganças. Convidou-os o ouro a jogar largamente, e a gastar em superfluidades quantias extraordinarias sem reparo, comprando (por exemplo) hum negro trombeteiro por mil cruzados; e huma mulata de máo trato por dobrado preço, para multiplicar com ella continuos e escandalozos peccados. Os vadios, que vão ás minas para tirar ouro, não dos ribeiros mas dos canudos, em que o ajuntão, e guardão os que trabalhão nas catas, usárão de traições lamentaveis, e de mortes mais que crueis: ficando estes crimes sem castigo; porque nas minas justiça humana não teve ainda tribunal, nem o respeito, de que em outras partes goza, aonde ha ministros de supposição, assistidos de numeroso e seguro presidio; e só agora poderá esperar-se algum remedio, indo lá o governador e ministros. E até os Bispos, e Prelados de algumas religiões, sentem summamente o não se fazer conta alguma das censuras, para reduzir aos seus bispados e conventos não poucos clerigos, e religiosos, que escandalosamente por lá andão ou apostatas, ou fugitivos. O irem tambem ás minas os melhores generos de tudo o que se póde desejar foi causa que crescessem de tal sorte os preços de tudo o que se vende, que os senhores de engenhos e os lavradores se achem grandemente empenhados, e que por falta de negros não possão tratar do assucar, nem do tabaco, como fazião folgadamente nos tempos passados, que erão as verdadeiras minas do Brazil e de Portugal. E o peior he que a maior parte do ouro, que se tira das minas, passa em pó e em moedas para os reinos estranhos: e a menor he a que fica em Portugal e nas cidades do Brazil: salvo o que se gasta em cordões, arcadas, e outros brincos, dos quaes se vêem hoje carregadas as mulatas de máo viver e as negras, muito mais que as senhoras. Nem ha pessoa prudente que não confesse haver Deos permittido que se descubra nas minas tanto ouro, para castigar com elle ao Brazil, assim como está castigando no mesmo tempo tão abundante de guerras aos europeos com o ferro. QUARTA PARTE. CAPITULO PRIMEIRO. Da grande extenção de terras para pastos cheios de gado, que ha no Brazil. Estende-se o sertão da Bahia até á barra do Rio de S. Francisco, oitenta legoas por costa; e indo para o rio acima até á barra que chamão de agoa grande, fica distante a bahia da dita barra, cento e quinze legoas: de Santunse, cento e trinta legoas: de Rodellas por dentro, oitenta legoas: das Jacoabinas, noventa legoas: e do Tucano, cincoenta legoas. E porque as fazendas, e os curraes de gado se situão aonde ha largueza de campo, e agoa sempre manente de rios, ou lagôas: por isso os curraes da parte da Bahia estão postos na borda do Rio de S. Francisco, na do Rio das Velhas, na do Rio das Rãs, na do Rio Verde, na do Rio Peramerim, na do Rio Jacuipe, na do rio Itapicurú, na do Rio Real, na do Rio Vaza-Barris, na do Rio de Sergipe; e de outros rios, em os quaes, por informação tomada de varios, que corrêrão este sertão, estão actualmente mais de quinhentos curraes: e só na borda d’áquem do Rio de S. Francisco, cento e seis legoas. E na outra borda da parte de Pernambuco, he certo que são muito mais. E não sómente de todas estas partes e rios já nomeados vem boiadas para a cidade e reconcavo da Bahia, e para as fabricas dos engenhos; mas tambem do Rio Iguassú, do Rio Carainhaem, do Rio Corrente, do Rio Guaraira, e do Rio Piagui-grande, por ficarem mais perto, vindo caminho direito, á Bahia, do que indo por voltas á Pernambuco. E posto que sejão muitos os curraes da parte da Bahia, chegão a muito maior numero os de Pernambuco; cujo sertão se estende pela costa desde a Cidade Olinda até o rio de S. Francisco, oitenta legoas: e continuando da barra do rio de S. Francisco até á barra do Rio Iguassú, contão-se duzentas legoas. De Olinda para Oeste até o Piagui, Freguezia de Nossa Senhora da Victoria, cento e sessenta legoas, e pela parte do Norte estende-se de Olinda até ao Ceará Merim, oitenta legoas, e dahi até o Açú, trinta e cinco legoas, e até ao Ceará Grande, oitenta legoas: e por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte, quasi duzentas legoas. Os rios de Pernambuco que, por terem junto de si pastos competentes, estão povoados com gado (fóra o Rio Preto, o Rio Guaraira, o Rio Iguassú, o Rio Corrente, o Rio Guarignae, a Lagôa Alegre, e o Rio de S. Francisco, da banda do Norte) são o Rio de Cabaços, o Rio de S. Miguel, as duas Alagôas com o Rio do Porto do Calvo, o da Parahiba, o dos Kariris, o do Açú, o do Podi, o de Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajau, o Jacaré, o Kaninde, o de Parnahiba, o das Pedras, o dos Camarões, e o Piagui. Os curraes desta parte hão de passar de oitocentas legoas: e de todos estes vão boiadas para o Recife, e Olinda, e suas villas, e para o fornecimento das fabricas dos engenhos desde o Rio de S. Francisco até ao Rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piagui até á barra de Iguassú, e de Pernagna, o Rio Preto; porque as boiadas destes rios vão quasi todas para a Bahia, por lhes ficar melhor caminho pelas Jacoabinas, por onde passão, e descanção. Assim como ahi tambem párão, e descanção as que ás vezes vem de mais longe. Mas quando nos caminhos, se achão pastos, porque não faltárão as chuvas, em menos de tres mezes chegão as boiadas á Bahia, que vem dos curraes mais distantes. Porém se por causa da seca fôrem obrigados a parar com o gado nas Jacoabinas: ahi o vendem os que o levão, e ahi descança seis, sete, e oito mezes, até poder ir á cidade. Só no rio de Iguassú estão hoje mais de trinta mil cabeças de gado. As da parte da Bahia se tem por certo, que passão de meio milhão, e mais de oitocentas mil hão de ser as da parte de Pernambuco; ainda que destas se aproveitão mais os da Bahia, para onde vão muitas boiadas, que os Pernambucanos. A parte do Brazil, que tem menos gado, he o Rio de Janeiro, porque tem curraes sómente nos campos de Santa Cruz, distante quatorze legoas da cidade; nos campos novos do Rio de S. João, distantes trinta, e nos Goitacazes, distantes oitenta legoas: e em todos estes campos não passão de sessenta mil as cabeças de gado, que nelles pastão. A Capitania do Espirito Santo se provê limitadamente da Moribeca, e de alguns curraes áquem do Rio Parahiba do Sul. Na villa de S. Paulo matão as rezes, que tem em suas fazendas, que não são muito grandes: e só nos campos de Coritiba vai crescendo, e multiplicando cada vez mais o gado. Sendo o sertão da Bahia tão dilatado, como temos referido, quasi todo pertence a duas das principaes familias da mesma cidade, que são a da Torre, e a do defunto Mestre de Campo Antonio Guedes de Brito. Porque a casa da Torre tem duzentas e sessenta legoas pelo Rio de S. Francisco acima, á mão direita, indo para o Sul; e indo do dito rio para o norte, chega a oitenta legoas. E os herdeiros do Mestre de Campo Antonio Guedes possuem, desde o morro dos Chapéos até á nascença do Rio das Velhas, cento e sessenta legoas. E nestas terras, parte dos donos dellas tem curraes proprios; e parte são dos que arrendárão sitios dellas, pagando por cada sitio, que ordinariamente he de huma legoa, cada anno dez mil réis de fôro. E assim como ha curraes no territorio da Bahia, e de Pernambuco, e de outras capitanias, de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e mil cabeças: assim ha fazendas, a quem pertencem tantos curraes, que chegão a ter seis mil, oito mil, dez mil, quinze mil, e mais de vinte mil cabeças de gado; donde se tirão cada anno muitas boiadas, conforme os tempos são mais ou menos favoraveis á parição, e multiplicação do mesmo gado, e aos pastos, assim nos sitios como tambem nos caminhos. CAPITULO II. Das boiadas, que ordinariamente se tirão cada anno dos curraes, para as cidades, villas, e reconcavos do Brazil, assim para o açougue, como para o fornecimento das fabricas. Para que se faça justo conceito das boiadas, que se tirão cada anno dos curraes do Brazil, basta advertir que todos os rolos de tabaco que se embarcão para qualquer parte, vão encourados. E sendo cada hum de oito arrobas, e os da Bahia, como vimos em seu lugar, ordinariamente cada anno pelo menos, vinte e cinco mil arrobas, e os das Alagôas de Pernambuco, dous mil e quinhentos arrobas; bem se vê quantas rezes são necessarias para encourar vinte e sete mil e quinhentos rolos. Além disto, vão cada anno da Bahia para o Reino até cincoenta mil meios de sola; de Pernambuco quarenta mil; e do Rio de Janeiro (não sei se computando os que vinhão da nova Colonia, ou só os do mesmo rio, e outras capitanias do Sul) até vinte mil meios de sola: que vem a ser por todas, cento e dez mil meios de sola. Outro he, que não sómente a cidade, mas a maior parte dos moradores do reconcavo mais abundantes se sustentão nos dias não prohibidos da carne do açougue, e da que se vende nas freguezias e villas: e que commummente os negros, que são hum numero muito grande nas cidades vivem de fressuras, bofes, e tripas, sangue, e mais fato das rezes: e que, no sertão mais alto, a carne e o leite he o ordinario mantimento de todos. Sendo tambem tantos os engenhos no Brazil, que cada anno se fornecem de bois para os carros, e os de que necessitão os lavradores de canna, tabaco, mandioca, serrarias, e lenhas; daqui se poderá facilmente inferir, quantos haveráõ mister de anno em anno, para se conservar este trabalhoso meneio. Portanto deixar isto á consideração de quem ler este capitulo, julgo, que será melhor acerto, do que affirmar precisamente o numero das boiadas: porque nem os mesmos marchantes, que são tantos, e tão divididos por todas as partes povoadas do Brazil, o podem dizer com certeza, e dizendo-o temo que não parecerá crivel, e que se julgue encarecimento fantastico. CAPITULO III. Da conducção das boiadas do Sertão do Brazil: preço ordinario do gado que se mata, e do que vai para as fabricas. Constão as boiadas, que ordinariamente vem para a Bahia, de cem, cento e sessenta, duzentas, e trezentas cabeças de gado; e destas quasi cada semana chegão algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito legoas, aonde tem pasto, e aonde os marchantes as comprão: e em alguns tempos do anno ha semanas, em que cada dia chegão boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos, e pretos, e tambem Indios, que com este trabalho procurão ter algum lucro. Guião-se, indo huns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vem atraz das rezes tangendo-as, e tendo cuidado, que não sahião do caminho e se amontoem. As jornadas são de quatro, cinco, e seis legoas, conforme a commodidade dos pastos, aonde hão de parar. Porém, aonde ha falta d’agua, seguem o caminho de quinze, e vinte legoas, marchando de dia e de noite, com pouco descanço, até que achem paragem, aonde possão parar. Nas passagens d’alguns rios, hum dos que guião a boiada, pondo huma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra ás rezes o vão, por onde hão de passar. Quem quer que entrega a sua boiada ao passador, para que a leve das Jacoabinas v. g. até a Capoame, que he jornada de quinze, ou dezaseis até dezasete dias, lhe dá por paga do seu trabalho hum cruzado por cada cabeça da dita boiada: e este corre com os gastos dos tangedores e guias; e tira da mesma boiada a matalotagem da jornada. De sorte que, se a boiada constar de duzentas cabeças de gado, dão-se-lhe outros tantos cruzados, se com todas chegar ao lugar destinado. Porém se no caminho algumas fugirem, tantos cruzados se diminuem, quantas são as rezes que faltão. Aos Indios, que das Jacoabinas vem para Capoame, se dão quatro até cinco mil réis: e ao homem que com seu cavallo guia a boiada, oito mil réis. Sendo as distancias maiores, cresce proporcionadamente a paga de todos. E por isso, do Rio de S. Francisco acima vindo para Capoame, alguns dos que tomão á sua conta trazer boiadas alhêas querem seis ou sete tostões por cada cabeça, e mais se fôr maior a distancia. Huma rez ordinariamente se vende na Bahia por quatro ou cinco mil réis: os bois mansos, por sete para oito mil réis. Nas Jacoabinas vende-se huma rez por dous mil e quinhentos até tres mil réis. Porém nos curraes do Rio de S. Francisco, os que tem maior conveniencia de venderem o gado para as Minas, o vendem na porteira do curral pelo mesmo preço, que se vende na cidade. E o que temos dito até aqui das boiadas da Bahia, se deve tambem entender com pouca differença das boiadas de Pernambuco e do Rio de Janeiro. CAPITULO IV. Que custa hum couro em cabello, e hum meio de sola beneficiado até se pôr do Brazil na alfandega de Lisboa. Vale cada couro em cabello 2$100 De o salgar e seccar 200 De o carregar ao cortume 40 De o cortir 600 ----- Importa tudo Rs. 2$940 Hum meio de sola vale 1$500 De o carregar á praia 10 De frete do navio 120 De descarga para a alfandega 10 Por todos os direitos 340 ----- Importa tudo Rs. 1$980 Os meios de sola, que ordinariamente vão cada anno do Brazil para o Reino, importão no seguinte: Da Bahia, cincoenta mil meios de sola a 198 réis 99:000$000 De Pernambuco, quarenta mil meios de sola a 1$750 réis 70:000$000 Do Rio de Janeiro e outras Capitanias do Sul, vinte mil meios de sola a 1$640 réis 32:800$000 ----------- O que tudo importa em Rs. 201:800$000 CAPITULO V. Resumo de tudo o que vai ordinariamente cada anno do Brazil para Portugal: e do seu valor. Por ultima demonstração da Opulencia do Brazil em proveito do Reino de Portugal, pôrei aqui agora o resumo do que nestas quatro partes tenho apontado; que por junto não deixará de causar maior admiração, do que póde ter causado por partes. Importa pois todo o assucar em réis 2,535:142$800 Importa o tabaco em réis 544:650$000 Importão cem arrobas de ouro em réis 614:400$000 Importão os meios de sola em réis 201:800$000 Importa o páo brazil de Pernambuco em réis 48:000$000 ------------- O que tudo somma em Rs. 3,743:992$800 Aos quaes se se acrescentar o que rende o contracto das baleas, que por seis annos se arrematou ultimamente na Bahia, por cento e dez mil cruzados, e no Rio de Janeiro por tres annos, por quarenta e cinco mil cruzados; o contracto annual dos dizimos reaes, que, na Bahia, nestes ultimos annos, fóra as propinas, chegou a perto de duzentos mil cruzados: no Rio de Janeiro, por tres annos, por cento e noventa mil cruzados: em Pernambuco, por outros tres annos, por noventa e sete mil cruzados: em S. Paulo por sessenta mil cruzados: fóra os das outras capitanias menores, que em todas notavelmente crescêrão; o contracto dos vinhos, que na Bahia se arrematou por seis annos em cento e noventa e cinco mil cruzados: em Pernambuco, por tres annos, em quarenta e seis mil cruzados; e no Rio de Janeiro, por quatro annos, por mais de cincoenta mil cruzados; o contracto do sal na Bahia, arrematado por doze annos, a vinte oito mil cruzados cada anno; o contracto das agoas-ardentes da terra, e de fóra, avaliado por junto em trinta mil cruzados; o rendimento da casa da moeda do Rio de Janeiro, que fazendo em dous annos tres milhões de moedas de ouro, deu de lucro a El-Rei, que o compra a doze tostões a oitava, mais de seiscentos mil cruzados; além das arrobas dos quintos, que cada anno lhe vão; os direitos que se pagão nas alfandegas dos negros, que vem cada anno de Angola, S. Thomé, e Minas em tão grande numero aos portos da Bahia, Recife, e Rio de Janeiro, a tres mil e quinhentos réis por cabeça; e os dez por cento das fazendas no Rio de Janeiro, que importão hum anno por outro oitenta mil cruzados; bem se vê a utilidade, que resulta continuamente do estado do Brazil á fazenda real, aos portos, e reino de Portugal; e tambem ás nações estrangeiras, que com toda a industria procurão aproveitar-se de tudo o que vai deste estado. CAPITULO ULTIMO. Quanto he justo que se favoreça o Brazil por ser de tanta utilidade ao Reino de Portugal. Pelo que temos dito até agora, não haverá quem possa duvidar de ser hoje o Brazil a melhor e a mais util conquista, assim para a fazenda real, como para o bem publico, de quantas outras conta o Reino de Portugal, attendendo ao muito que cada anno sahe destes portos, que são minas certas, e abundantemente rendozas. E se assim he, quem duvida tambem que este tão grande e continuo emolumento merece justamente lograr o favor de Sua Magestade e de todos os seus ministros no despacho das petições que offerecem, e na aceitação dos meios que, para allivio e conveniencia dos moradores, as camaras deste estado humildemente propoem? Se os senhores de engenhos, e os lavradores do assucar e do tabaco, são os que mais promovem hum lucro tão estimavel, parece que merecem mais que os outros ser preferidos no favor, e achar, em todos os tribunaes, aquella prompta expedição que atalha as dilações dos requerimentos, e o enfado, e os gastos de prolongadas demandas. Se cresce tão copioso o numero dos moradores, naturaes de Portugal, que cada vez mais povoão as partes, que antes erão desertas, ficando muito distantes das igrejas, he justo que estas se multipliquem, para que todos tenhão mais perto o necessario remedio de suas almas. Pagando-se tão pontualmente á soldadesca, que assiste nas praças, e nas fortalezas maritimas, não poderião deixar de sentir os que para isso concorrerem, se com serviços iguaes não fôrem adiantados nos postos. Se pelo seu trabalho tanto crescêrão os dizimos, que se offerecem a Deos, pede a razão que os seus filhos idoneos sejão propostos nos concursos, e provimentos das igrejas vacantes do estado. E sendo commummente tão esmoleres com os pobres, e tão liberaes para o Culto Divino, merecem ter a Deos propicio na terra, e remunerador eterno no Céo. FINIS LAUS DEO. Rio de Janeiro. Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Cª.--1837. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas e minas : com varias noticias curiosas do modo de fazer o assucar; plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descubrir as da prata; e dos grandes emolumentos que esta conquista da America Meridional da' ao Reino de Portugal, com estes, e outros generos, e contratos reaes" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.