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Title: Principios e questões de philosophia politica (Vol. 1 of 2)
Author: Costa, António Candido Ribeiro da
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Principios e questões de philosophia politica (Vol. 1 of 2)" ***
PHILOSOPHIA POLITICA (VOL. 1 OF 2) ***



                         PRINCIPIOS E QUESTÕES
                                   DE
                          PHILOSOPHIA POLITICA

                                  POR

                    Antonio Candido Ribeiro da Costa

           LICENCIADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
             E SOCIO EFFECTIVO DO INSTITUTO DA MESMA CIDADE


                                   I

             CONDIÇÕES SCIENTIFICAS DO DIREITO DE SUFFRAGIO

                             [Illustração]


                                COIMBRA
                        IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
                                  1878



                         DISSERTAÇÃO INAUGURAL
                                 PARA O
                       ACTO DE CONCLUSÕES MAGNAS
                                   NA
                          FACULDADE DE DIREITO
                                   DA
                        UNIVERSIDADE DE COIMBRA



                                   AO
                 Illustrissimo e Excellentissimo Senhor
                     DR. JOSÉ JOAQUIM FERNANDES VAZ
         DIGNISSIMO LENTE CATHEDRATICO DA FACULDADE DE DIREITO
                       NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


       EM HOMENAGEM DE RESPEITO E COM PROTESTOS DA MAIOR GRATIDÃO


                                  Off.

                   O SEU DISCIPULO, ADMIRADOR E AMIGO

                  _Antonio Candido Ribeiro da Costa._

_Se a opinião publico não repellir, por inteiramente infructuoso,
este ensaio de philosophia politica, em sequencia á presente obra
outros virão a lume dentro de curto praso. Escripto rapidamente, e em
meio de mil distracções a que o auctor se viu forçado por quefazeres
impreteriveis, este livro não póde deixar de ter defeitos na doutrina
e descuidos na exposição; os que se lhe seguirem hão de ser pensados
mais attentamente e, no attinente á sua fórma, com maior propriedade
redigidos._



INTRODUCÇÃO

 =Summario.=--Concepção da politica como sciencia experimental.
 Origens d’esta concepção em Turgot, Kant e Condorcet. O seculo XVIII
 não era o meio proprio para o desenvolvimento d’esta concepção.
 Razões d’isso.--A sociedade é um phenomeno natural, cognoscivel pela
 observação. Demonstração directa d’esta these.--É inexplicavel a
 evolução social pela philosophia dos _principios absolutos_. Esta
 philosophia na Allemanha. Divisões e subdivisões d’ella. A theologia
 hegeliana. Descredito geral d’essa doutrina.--A influencia dos
 _grandes homens_ não explica a historia. Os grandes homens não dirigem
 o movimento social, apenas influenceiam a sua intensidade. Idéas de
 Herbert Spencer sobre a theoria dos grandes homens. Critica d’essas
 idéas.--A _providencia_, deducção racional da idéa de Deus, não dá
 a explicação scientifica do universo. Doutrina da Egreja Catholica.
 Theodicêa de Kant. O livro de Job e as idéas do philosopho allemão.
 Como H. Spencer concilia a religião com a sciencia. Refutação de
 Spencer por E. Littré. A nossa opinião.--Se existe uma formula, a que
 esteja subordinada toda a sociologia. Resposta negativa.--Augusto
 Comte e a _lei dos tres estados_. Argumentos contra ella de Littré,
 Wyrouboff e Huxley.--A philosophia de Spencer. Exposição e critica
 d’ella. Base hypothetica do systema de Spencer, e caracter empirico
 da sua lei de _evolução_.--O _transformismo_ de Darwin. Esta
 doutrina na biologia e na sociologia. Bagehot e o seu transformismo
 applicado á historia. A porção de verdade que ha na hypothese
 transformista.--Fundo commum dos systemas criticados: a experiencia é
 o methodo da sociologia; esta sciencia tem a biologia por antecedente
 necessario.--Situação politica e social do Occidente. Pangermanismo
 e panslavismo. A _lei da extensão das raças_, applicada á Russia
 e á Allemanha. Perigos para as nações neo-latinas. A constituição
 scientifica da sua politica é o unico meio de os evitar. Conclusão.


Á politica, utilisação definitiva de toda a sociologia, pertence,
na serie hierarchica das sciencias, o logar supremo e culminante.
Disciplina custosissima de organisar, porque os factos de que infere
as suas leis são extremamente complexos e cambiantes, e, por isso,
só a grande esforço classificaveis, as suas difficuldades sobem de
ponto logo que se pensa em applicar os processos da deducção logica
ás observações e analyses realisadas. E sem essa deducção claro
está que seriam infructuosos os trabalhos sociologicos, porque, sem
possibilidade de previsão, não ha sciencia social.

Póde dizer-se moderna esta comprehensão da politica como doutrina
regida por leis experimentalmente determinaveis. Segundo as indagações
criticas de E. Littré[1], não vae além do seculo XVIII, sendo
Turgot[2] o primeiro que traçou com um grande talento generalisador
os lineamentos d’aquella concepção. A pequena distancia de tempo
attingiram o mesmo resultado Kant[3] e Condorcet[4]: o insigne
philosopho allemão demonstrando _a priori_ a possibilidade d’uma
historia universal referida á existencia da nossa especie, e o grande
escriptor francez esboçando genialmente o seu quadro dos progressos do
espirito humano.

Turgot e Condorcet demonstrando que ha successão natural nos periodos
da humanidade e perfeita continuidade no trabalho moral das gerações,
e Kant derivando esta mesma verdade, não da observação objectiva
dos factos, mas da consideração metaphysica de que a nossa especie
deve realisar o inteiro desenvolvimento das faculdades do espirito,
impossivel nas sós forças e condições do individuo,--assentaram
definitivamente no grande facto sobre que se basea toda a sciencia
social: a universal solidariedade do genero humano, a existencia da
sociedade como entidade sujeita, na sua evolução, a leis proprias e
determinaveis.

O seculo XVIII, porém, apesar da sua prodigiosa fecundidade
especulativa, não era ainda o meio proprio para estas concepções
fructificarem inteiramente. O espirito desenvolvia-se com espantosa
celeridade; o kosmos desvelava os seus mais importantes segredos aos
olhos da philosophia natural; a astronomia chegava, graças aos calculos
de Newton e de Laplace e ás descobertas de Herschell, á triumphante
conclusão dos principios de Galileu e de Descartes; a physica procedia
com muitissima felicidade nas suas experiencias, libertando das velhas
entidades metaphysicas o som, a luz, o calor; a chimica recebia de
Lavoisier a palavra dos seus factos e a lei das suas combinações;
Buffon traçava a historia verosimil do planeta; Lamark, secundado
por Gœthe e Saint-Hilaire, punha em solo firme os fundamentos da
zoologia, e preparava assim o advento da moderna theoria de Darwin, se
inacceitavel como lei universal, em todo o caso mais ou menos valida
como hypothese scientifica nos dominios da biologia. Por outro lado a
mais larga erudição, o mais consciencioso encyclopedismo e uma ou outra
tentativa de generalisação entravam de apparecer no espirito d’aquelle
seculo. É sabido que Voltaire expoz e verificou as theorias physicas
e mathematicas de Newton, que Montesquieu se mostrou grandemente
versado nos mais intrincados problemas da botanica, da acustica e da
physiologia, que Rousseau reflectiu nas suas obras moraes as ultimas
conclusões da philosophia cosmologica[5].

Esta é a gloria d’aquelle seculo. N’elle assumiu a maxima intensidade
o movimento destruidor, a negação scientifica, a critica social
principiada no seculo XVI. Este espirito critico utilisou, para
realisar o seu proposito, todos os meios de acção intellectual, desde
as graças picantes de Rabelais, as duvidas scientificas de Montaigne
e o empirismo politico de Machiavel, até ás ultimas convulsões
dialecticas da doutrina carteziana, aos fugazes explendores do
criticismo allemão e aos excessos exclusivistas do experimentalismo
inglez.

A lucta foi desordenada, vertiginosa, incoherente, mas indefessa. A
Encyclopedia, julgada com um criterio systematico, é um monstro, é um
cahos: é conjunctamente athea, deista, pantheista. O furor critico, em
todos os dominios que invadiu, foi á ultima extremidade: Kant, á força
de apurar as faculdades intellectuaes, negou-as; Rousseau, no proposito
de apurar o que de máu existia nas relações politicas e civis da
humanidade, negou primeiro a civilisação e alluiu depois os fundamentos
da sociedade!

Emquanto não estivesse concluida esta obra de decomposição universal,
emquanto não acalmasse esta febre de que estavam possessos todos os
espiritos, emquanto não desapparecessem de vez as velhas concepções da
edade-media que luctavam desesperadamente, na politica e na sciencia,
contra a _ideia nova_, que vinha na superficie d’aquelle grande mar
imponente e revolto,--claro está que não era possivel construir
calmamente, serenamente, os elementos organicos da moderna sociedade.
As concepções de Turgot, de Kant, de Condorcet não podiam ser mais que
uma fulgentissima aurora: allumiavam, é certo, uma ou outra das mais
elevadas consciencias, mas, para a grande multidão dos que liam e dos
que pensavam, não podiam deixar de passar inteiramente despercebidas.
Eram hypotheses uteis, mas incomprehensiveis naquelle tempo.

Por outro lado, o movimento scientifico, religioso e politico
dirigia-se num sentido claramente individualista, e chegava-se, por
esse modo, a altear a unidade humana em criterio absoluto de toda a
philosophia social. Ora a unidade humana, elemento principalissimo
da unidade social, não é a só base da sociologia. Como já dissemos,
esta grave sciencia tem por verdadeiro fundamento a comprehensão dos
agrupamentos humanos como corpos distinctos, naturaes e perfeitamente
evolucionaveis; e tal comprehensão era impossivel emquanto as sciencias
não copiassem na sua hierarchia didactica a perfeita serie dependente
da phenomenologia natural, e se assentasse d’uma vez para sempre em que
as forças do homem são impotentes para deduzir _a priori_, das puras
condições da consciencia, todas as verdades da natureza e todos os
principios da sociedade.

A sciencia da natureza foi a primeira a entrar afoitamente n’aquelle
caminho. As vãs entidades com que a escolastica pretendia explicar
todas as relações naturaes foram desapparecendo umas após das
outras, fortemente perseguidas pelo genio de Bacon, e dando logar á
consideração das leis physicas e chimicas como forças immanentes ao
kosmos.

Parallelamente a este movimento vivificador, a philosophia social,
descendo raras vezes das regiões verdadeiras mas incompletas do ideal
e do especulativo, provava em cada arrojo a sua impotencia; e, a par
e passo que as sciencias cosmologicas caminhavam com segurança de
hypotheses verificaveis para theorias assentes, aquella philosophia,
differente para cada periodo de tempo e para a indole de cada povo, ia
dispondo nos espiritos o germen do scepticismo, que é o mais grave,
o mais horrivel de todos os males de que póde ser accommettida a
humanidade.

A astronomia depois de Laplace, a chimica depois de Lavoisier, a
biologia depois de Bichat, estavam constituidas, tinham principios
incontestaveis, senhoreavam em plena prosperidade os seus dominios
independentes, e ainda na Allemanha, onde, desde meado do seculo
passado, parecia estar o mais amplo laboratorio das especulações
scientificas, dois homens eminentissimos, Hegel e Schelling, intentavam
deduzir racionalmente a philosophia da natureza, desprezando, para
o estudo d’ella, todo o proposito de analyse, todo o processo de
observação!

A estas ousadas e infelizes tentativas de _crear_, philosophando,
a natureza, chamou Humboldt, com muitissima razão, _les courtes
saturnales d’une science purement idéale de la nature_[6].

Parodiando a phrase do illustre sabio prussiano, diremos tambem que as
especulações d’aquelles e outros philosophos da mesma escola sobre os
fundamentos do direito e da moral, e sobre a verdadeira significação da
historia eram as _breves saturnaes d’uma sciencia puramente ideal da
sociedade_.

       *       *       *       *       *

Mas existe realmente uma sciencia social? N’outros termos, os
phenomenos sociaes, no que teem de especifico, são susceptiveis de
observação e de classificação? Observados e classificados que sejam, é
possivel utilisar os seus resultados, deduzindo, applicando, prevendo?

Entendemos que sim. O que não quer dizer que a sciencia social esteja
inteiramente organisada. Não está. Sendo, como é, a mais particular
e a mais difficil de todas, dista ainda enormemente da perfeição que
attingiram algumas das que a precederam.

O que está é _constituida_; o que conseguiu, foi delimitar os
seus dominios, precisar os seus processos, conhecer a sua indole
propria; o que não póde disputar-se-lhe já, é a posse d’um fundamento
rigorosamente scientifico. Assim como a chimica se constituiu desde
que se descobriu a affinidade e suas leis; do mesmo modo que a
biologia adquiriu os fóros da sua independencia logo que se verificou
a existencia d’uma vitalidade inherente aos tecidos;--a sociologia
surdiu do chaos em que estava quando se liquidou o facto da transmissão
hereditaria das civilisações, e se começou de tentar a explicação
d’esse facto por leis mais ou menos hypotheticas, mas inspiradas da
observação historica.

Contra esta comprehensão da sciencia social sabemos nós que se
levantam ponderosissimas objecções. A existencia do livre arbitrio e a
infinita variabilidade dos actos humanos são a materia forçada d’esses
argumentos. A liberdade do homem, dizem, annulla toda a previsão
sociologica; se os factos sociaes não são jámais repetidos, não é
possivel fazer applicação de leis d’essa ordem.

Herbert Spencer, considerando devidamente n’um dos seus melhores livros
aquellas objecções, responde-lhes satisfactoriamente, demonstrando
em primeiro logar que, se em alguns casos, a vontade humana escapa
ao calculo, á previsão, em muitos outros, em quasi todos, cedendo a
motivos de consideração determinavel, póde incluir-se nas condições
d’uma lei; e notando em seguida que, se a variedade dos actos humanos
fosse argumento valido contra a sociologia, seriamos forçados a negar
logo, por um motivo analogo, a todas as doutrinas existentes o seu
caracter scientifico. «Na geologia, na biologia, na psychologia as
previsões são, pela maior parte, apenas qualitativas; quando são
quantitativas, são-no d’um modo vago, sem grande precisão. Apesar
d’isso não hesitamos em as considerar scientificas. O mesmo devemos
fazer relativamente á sciencia social. Os seus phenomenos, muito mais
complexos que os das outras sciencias, são, menos que todos esses,
susceptiveis de ser tractados com precisão... Mas, desde que póde haver
generalisação, e sobre esta generalisação basear-se uma interpretação
legitima, ha sciencia[7].»

A sociologia não é, não póde vir a ser uma disciplina exacta, mas teem,
mas podem ter valor provavel as deducções d’ella, e tanto basta para se
lhe não poder negar o fôro de verdadeira sciencia.

Todos os dias estamos nós fazendo applicação, embora muitas vezes
inconsciente, de leis devidas á experiencia, e exteriorisando assim
a convicção de que ha causalidade natural nos factos humanos. Nas
luctas da politica, como nos phenomenos da economia social, está-se
evidenciando isso a cada momento. Os esforços empregados para a
realisação d’um programma; as batalhas feridas em defesa d’uma
instituição; os sacrificios feitos á conservação d’um principio; as
revoluções operadas em serviço d’um pensamento qualquer, traduzem a
forte convicção em que está toda a gente de que, dados certos factos,
se modificam as condições sociaes, e sobe ou desce o nivel intellectual
e moral dos povos. «Se não ha causalidade natural nas acções dos homens
reunidos em sociedade, são cousas absurdas um governo e uma religião.
Podem, querendo, fazer depender os Actos do parlamento d’uma tiragem
á sorte, e até prescindir d’elles: visto que as condições sociaes não
seguem uma ordem determinavel, nenhum máu effeito ha a temer com isso;
fica tudo no chaos[8].»

A lei da offerta e da procura, a lei da divisão do trabalho, a
lei dynamica do trabalho ou a formula da sua productividade, e
tantas outras de que a industria e o commercio fazem frequentissima
applicação, são mero producto da experiencia. E ninguem por isso
deixará de as considerar inteiramente scientificas.

De tudo isto infere-se que a evolução economica e politica obedece
á influencia de leis naturaes cognosciveis pela observação, e não á
cegueira do acaso nem ao imperio de leis mysteriosas e indeterminaveis.

Para que a verdade d’aquella proposição ressaia do confronto com as
theorias adversas, vamos passal-as em revista, com a exactidão precisa,
mas com a rapidez demandada pela indole especial d’este capitulo.

       *       *       *       *       *

Vigorou por muito tempo nas escolas uma theoria eminentemente
especulativa, que ainda tem partidarios decididos nas mais altas
regiões do saber official: a theoria que considera a sociedade,
no seu desenvolvimento historico, como acção fatal de principios
irresistivelmente fecundos, não em fórma mudavel, contingente e
progressiva, mas com um caracter de todo o ponto imperativo e absoluto.
N’este systema de idéas a sociedade é uma pura deducção da consciencia.

Este pensamento recebeu na Allemanha as suas mais solemnes fórmas
scientificas. A evolução d’elle, quanto á sua derivação logica, vem
desde o _formalismo_ de Kant até ao _pessimismo_ de Schopenhauer. Esta
ultima doutrina é o mais grave symptoma pathologico do idealismo
transcendental d’alem do Rheno. Aquillo morreu, ou vae morrer.

A moderna evolução philosophica da Allemanha tem, sem embargo dos seus
excessos e desvarios, manifesta utilidade. A extrema _individualisação_
de Kant preparou o _objectivismo absoluto_ de Hegel e de Schelling, e
estes dois philosophos, mas principalmente Hegel, são os precursores
das idéas correntes sobre evolução historica, que, posto não soffram
ainda coordenação systematica, dão com certeza uma forte direcção nova
e util ás especulações da sociologia.

Como os individuos teem caracter e temperamento proprios, as raças
produzem-se com qualidades especificas que as differençam notavelmente
das outras communhões sociaes. Ora uma das mais caracteristicas
qualidades da raça germanica é o seu irresistivel pendor para as
altas especulações metaphysicas e subtis. Nem os seus mais insignes
naturalistas escapam á força d’essa lei. Sirva de exemplo o _monismo_
de Haeckel. É a influencia indiscutivel do primitivo caracter aryano
nestes seus directos e legitimos representantes; é tambem, n’uma certa
proporção, a consequencia natural do meio geographico d’aquelle povo.

Aquelle caracter assume o _maximum_ de intensidade no labor
intellectual dos seus philosophos. Citaremos um facto. O movimento,
litteraria e scientificamente individualista, do espirito francez,
que produziu a revolução de 89, foi parallelamente correspondido na
Allemanha pela doutrina de Kant e seus discipulos; mas que differença,
que enormissima differença entre as faceis demonstrações practicas
e claras da philosophia franceza e a selva cerrada de deducções
e raciocinios de toda a ordem, que entumecem e difficultam as
especulações allemãs!

Longe de nós o querermos com isto offender a memoria do insignissimo
critico allemão, e muito menos ainda amesquinhar a importancia da sua
patria no movimento intellectual da Europa. Não. Sabemos muito bem
que, sendo a ultima a libertar-se das esterilisadoras influencias da
escolastica, em pouco tempo chegou, graças aos esforços geniaes de
Leibniz, de Lessing, de Wolf, de Kant e seus successores, a acompanhar
e, por vezes, a exceder as nações muito anteriormente despertadas por
Bruno, Bacon e Descartes.

Esta theoria dos principios absolutos, logicamente pantheista nos
homens mais notaveis da escola, decáe a olhos vistos. Ninguem se
entende neste chaos. Sem um criterio seguro e invariavel, transferindo
quasi sempre para o mundo fallaz da imaginação os principios da
sciencia, os philosophos d’esta escola divergem infinitamente uns dos
outros, dividem-se e subdividem-se, desacreditam-se por isso mesmo,
e ficam, a final, com toda a responsabilidade da lamentavel anarchia
intellectual de que tanta gente esta possessa! A fortissima dóse de
scepticismo, que tem envenenado muitas consciencias, não tem outra
causa....

Segundo uns, os _formalistas_, o espirito e a natureza não teem
realidade, não passam de phantasmas inapreciaveis e inconsistentes;
segundo outros, os _objectivistas_, a consciencia é um dos infinitos
tabernaculos do absoluto, do absoluto real, de Deus, ao mesmo
tempo pessoal e impessoal, perfeitissimo e progressivo! Damos isto
como amostra: «_Dieu est immanent non-seulement dans l’ensemble de
l’univers, mais dans chacun des êtres qui le composent. Seulement
il ne se connaît pas également dans tous. Il se connaît plus dans la
plante que dans le rocher, dans l’animal que dans la plante, dans
l’homme que dans l’animal, dans l’homme intelligent que dans l’homme
borné, dans l’homme de génie que dans l’homme intelligent, dans Socrate
que dans l’homme de génie, dans Boudha que dans Socrate, dans le Christ
que dans Boudha._

«_Voila la thèse fondamentale de toute notre théologie. Si c’est bien
là ce qu’a voulu dire Hegel, soyons hégéliens[9]._»

Sinceramente, não os comprehendemos.

Mas a divergencia dos resultados é que annulla inteiramente a
competencia do processo. Basta um exemplo: Dos que, seguindo
Hegel, procuram nos factos da historia a confirmação das suas
deducções ontologicas, uns, como Renan, vêem a humanidade ascender
successivamente para a suprema perfeição, clarificando-se cada vez mais
na sua consciencia o espelho em que se reflecte Deus; outros, como
Schopenhauer, consideram o nihilismo, a destruição propria pela negação
absoluta da vontade, como o verdadeiro ideal das almas; ha quem veja a
felicidade social nas fortes organisações economicas e politicas; em
sentido contrario, não falta quem sustente que a direcção do espirito
humano é no caminho do mais rasgado individualismo!

Disse já alguem que toda a heresia procurava na Biblia os seus
argumentos de auctoridade. É certo isso, como é egualmente certo que
ainda não appareceu concepção mental alguma, que não tenha obtido
da historia, por aquelle modo interpretada, apoio e fundamento. São
objecto das mesmas infidelidades o livro de Deus e o livro dos homens.
Bem certo que as cousas apparentam sempre as côres do prisma, através
do qual são vistas!

       *       *       *       *       *

A theoria dos _grandes homens_ considerados como a principal, senão a
unica causa impulsora da evolução social, tambem não resiste á critica.

Este criterio de philosophia da historia, se tal designação merece, é
comtudo uzualissimamente empregado não só pelo vulgo ignorante, o que
não é para estranhezas, mas até pelos mais festejados escriptores,
pela _élite_, aliás muito restricta, dos nossos sabios e pensadores.
Basta, para nos convencermos d’isso, lançar os olhos pelos compendios
adoptados nos estabelecimentos de instrucção secundaria, e por quasi
todos os nossos livros sobre historia. E todavia um breve momento de
reflexão seria sufficiente para annullar em quaesquer consciencias,
medianamente esclarecidas, a influencia d’aquelle nefasto preconceito...

A direcção do movimento social não depende dos grandes homens. Não.
A historia não é, como geralmente se crê, a só lição do que foram os
heroes, os sabios, os grandes reis e os grandes martyres; a historia
é a consciencia do continuo desenvolvimento da humanidade por effeito
de leis immanentes ao seu organismo social. Os grandes homens não são
mero improviso da natureza; são, na maior parte da sua obra, verdadeiro
producto de estados sociaes anteriores, e os seus talentos, para que
vinguem, hão de necessariamente ser postos ao serviço do seu tempo.

Crê alguem que seria hoje possivel um Gregorio VII, ou um Innocencio
IV? Com outro rei que não fosse D. José, e noutras circumstancias que
não fossem as de Portugal no seculo XVIII, poderia o marquez de Pombal
fazer o que fez? A revolução franceza era possivel sem a precedente
desorganisação moral do velho regimen politico a datar de Luiz XIV,
sem o lento mas continuo effeito das descobertas scientificas e dos
descobrimentos geographicos, sem a decomposição das velhas concepções
a puros golpes da philosophia critica? Napoleão nas suas glorias, nas
suas conquistas, nos seus erros e na sua desgraça não foi o verdadeiro
reflexo da França nas suas relações com o mundo? Bismarck o que é senão
a alta personificação intellectual e diplomatica do actual momento da
raça germanica? Os elementos com que tem jogado, não os preparou o
tempo, não os produziu a historia?

Não amontoemos exemplos.

Os grandes homens podem influir, e têm influido, de feito, sobre a
intensidade do movimento social; mas não influem, mas não podem influir
sobre a direcção d’elle. São, em parte, causa do futuro, mas são
totalmente effeito do passado.

Herbert Spencer reduz claramente a questão a estes poucos termos: «A
origem do grande homem é natural ou sobrenatural. N’este caso,
é um verdadeiro missionario de Deus, e então ahi estamos nós caídos
no principio theocratico... Se a origem do grande homem é natural,
importa classifical-o sem hesitação, como todos os outros phenomenos
da sociedade, entre os productos dos estados anteriores d’essa mesma
sociedade[10].»

Sobre a genese d’esta theoria, H. Spencer produz algumas observações
cheias de interesse. Não concordamos inteiramente com ellas, e vamos,
por isso, modifical-as no sentido do nosso pensamento.

Eil-as, em summa, as suas observações:

Considera elle a theoria dos grandes homens como um legado moral
e physiologico dos tempos primitivos. Reunidos em volta da sua
fogueira, á noite, os selvagens celebram os acontecimentos do dia
findo, e as varias peripecias da caça realisada, e ahi votam louvores
ao que se mostrou mais dextro ou mais agil; se se consummou alguma
expedição guerreira, a força d’uns, a coragem d’outros eis o assumpto
mais versado n’aquellas suas práticas frequentes. Quando escaceiam
acontecimentos importantes na propria tribu, os das mais vizinhas
fornecem objecto para as narrações do costume, e, se isso não
convem, recontam-se mais uma vez os successos reaes ou lendarios dos
antepassados.

Assim se conserva a tradição moral da tribu, e «pois que taes
commemorações se referem á existencia e prosperidade da tribu, a ellas
ligam os selvagens o mais vivo interesse.[11]»

E não é isto privativo da vida nomada; dá-se egualmente nas primeiras
raças historicas. «Os frescos dos Egypcios, as pinturas muraes
dos Assyrios, representam as acções dos seus grandes homens; as
inscripções, como as da pedra Moabita, não rememoram senão os factos
dos reis. Só por uma inducção difficil é que se póde colher outro
ensinamento d’estes documentos primitivos, pinturas, hieroglyphos e
inscripções[12].»

Estamos, pois, sob a pressão terrîvel d’esta herança, segundo o
pensador inglez, e não é verdade que a especie humana tenha eliminado,
nos seus incessantes progressos, esta tendencia, aliás muito veneravel
pela sua antiguidade.

Effeito de se não acceitarem as heranças a beneficio de inventario!...

Muitas causas favorecem grandemente a conservação d’aquelle
preconceito: a universal predilecção pelas personalidades que, sendo
uma qualidade activa do homem selvagem, é ainda, nas gerações actuaes,
uma qualidade dominante; os encantos, as seducções que nos prendem ás
anecdotas, ás aventuras dos homens celebres; e, finalmente, a infinita
facilidade de, por este meio, se adquirir uma _grande sciencia_, sem as
muitas fadigas, sem as custosas lucubrações que por outro processo se
exigem.

Eis, muito por alto, a explicação de Spencer a respeito da origem
d’aquella inclinação da nossa especie, e sobre a sua permanencia
no entendimento humano. Aproveitando da theoria o que ella tem de
acceitavel, diz: «É mister reconhecer que ha alguma verdade na theoria
dos grandes homens. Limitada ás sociedades primitivas, cuja historia
apenas se constitue dos esforços feitos pelos homens para se destruirem
e subjugarem uns aos outros, podemos admittir que tal theoria se
harmonisa perfeitamente com os factos, mostrando-nos o chefe da tribu
na plena posse d’uma grande importancia,--posto seja muito pequena a
parte attribuida áquelles que obedecem ao commando d’esse chefe... Mas
o seu erro capital consiste em suppôr que o que foi verdadeiro outr’ora
é sempre verdadeiro, e que relações entre governantes e governados,
possiveis e uteis n’uma certa epoca, são uteis e possiveis em todo o
tempo[13].»

As nossas duvidas referem-se ao modo por que Spencer explica a
conservação da theoria dos grandes homens, e tambem á porção de verdade
que tal theoria encerra.

A natureza produzindo homens com faculdades extraordinarias e
distinctissimas, e a sociedade desenvolvendo-se desegualmente nas
differentes camadas de que se constitue, explicam o que ha de legitimo
n’aquella theoria, e dão, ao mesmo passo, a verdadeira razão por que o
habito intellectual dos selvagens se tem conservado, com maior ou menor
energia, na consciencia universal.

A constituição politica e social dos povos, obedecendo ás leis da
sua evolução, tem collocado á frente do movimento geral familias e
classes com os mais amplos poderes e os mais largos privilegios.
Só os Estados Unidos, pelas circumstancias muito peculiares da sua
formação, estão fóra d’essa lei. Aquellas familias e aquellas classes
teem necessariamente preponderado nos acontecimentos de maior vulto,
em parte pela sua posição hierarchica que as habilitou a tomarem o
primeiro e mais importante logar nas differentes phases da evolução;
em parte porque, se ellas attingiram aquella eminencia social, foi isso
devido ás suas mais felizes disposições nativas, e, como é sabido, no
concurso de todas as forças prevalecem sempre as mais validas. Tem
applicação aqui, restrictamente n’este ponto, a lucta pela existencia e
a selecção natural da doutrina biologica de Darwin.

Reduzida a estes termos, a theoria dos grandes homens é um exaggero,
não é uma falsidade. É inquestionavel que as desegualdades da
natureza e as desegualdades da sociedade teem permittido até agora,
e continuarão a permittir o predominio de algumas individualidades
nos mais importantes negocios dos povos; e, se assim é, n’esse facto
natural, legitimo, constante, está a razão do culto prestado, em todos
os tempos, aos esplendores da intelligencia e aos heroismos da vontade.

O que a theoria tem de falso é a idéa de que os grandes homens influem
na direcção geral do movimento humano, quando é apenas liquido que
elles influenceiam a sua intensidade.

Sem Thiers e sem Gambetta, a França appellaria das desgraças do segundo
imperio para as auspiciosas experiencias da democracia; o que poderia
acontecer, sem o serviço d’esses dois insignissimos patriotas, seria
retardar-se por alguns annos, infamados por fugazes restaurações e por
cruentas convulsões civis, o advento d’aquelle regimen politico. Sem
a acção pessoal do principe de Bismarck, a Allemanha realisaria a sua
unidade, para que tende visivelmente ha mais de meio seculo, do mesmo
modo que, sem o genio diplomatico do principe de Gortschakoff, a Russia
procuraria por todos os modos realisar o sonho panslavista, de que ha
muito está possessa; sómente aconteceria, na falta dos dois famosos
chancelleres, que as cousas seguiriam por outro caminho para aquelle
mesmo fim, ou teriam de realisar-se mais tarde.

Mas faziam-se, mas realisavam-se.

       *       *       *       *       *

Para a maior parte dos espiritos, para quasi todos, a sociedade traduz
na sua evolução um plano da providencia, e, por isso, os esforços da
philosophia devem tender todos a procurar na phenomenologia humana
os vestigios d’essa poderosa acção constante e sobrenatural. Bossuet
julgou com este criterio a historia universal; Vico subordinou a este
pensamento os seus mais importantes trabalhos; Bunsen quiz determinar,
na sequencia das gerações, as linhas precisas da revelação moral, e
reduzir a esse facto todas as causaes do progresso historico.

É tão verdadeiro o principio fundamental d’esta theoria, como são
falsas as conclusões deduzidas d’elle. Se repugna á consciencia que,
sendo creações de Deus a natureza e a sociedade, elle as desampare
inteiramente estranho á sua obra,--repugna-lhe egualmente que o nosso
entendimento possa surprehender, nos varios factos observados, a
verdadeira intenção de Deus. O que é razoavel, o que é logico é isto:
elevar-se o espirito, pela analyse paciente dos factos, ás leis geraes
que os dominam, systematisal-as com ordem, e á medida que se forem
obtendo resultados incontestaveis e seguros, referir então á causa
suprema, na hypothese de se haver acertado, as idéas que fructeou
o estudo da sociedade, as verdades que se liquidaram no estudo da
natureza. O grande Newton, que descobriu a lei da gravitação universal,
não pronunciava o nome de Deus sem um forte sentimento de reverencia e
uma commoção profundissima...

Por este modo, a natureza e a sociedade dão-nos o pensamento da
providencia; não é esta, definida ontologicamente, que nos dá
a explicação do mundo. A providencia deduz-se _a priori_, mas
determina-se _a posteriori_, como se diz na linguagem da escola.
_Deus escreve direito por linhas tortas_, affirma o nosso povo. Esta
phrase, profundamente conceituosa, envolve conjunctamente a crença
na providencia divina e a completa ignorancia dos processos por
que ella actua no universo. Como vencer esta ignorancia? Estudando
despreoccupadamente o universo, e não invocando cada um, a seu puro
arbitrio, a auctoridade de Deus para as comprehensões que tem e para
os actos que pratíca. Explicar as cousas pelos designios sabidos da
divindade, afigura-se-nos orgulhoso e risivel.

Á hora a que escrevemos estas linhas, Deus é invocado como impulsor
de todos os movimentos realisados em face da guerra oriental. Na
Russia, manda exterminar a Turquia; na Inglaterra, manda defendel-a e
sustental-a. N’uma obra franceza, publicada depois dos desastres de
Sédan, o seu auctor explica o resultado da guerra franco-prussiana pelo
castigo que o céu quiz inflingir á França; todos sabem que o imperador
Guilherme está intimamente convencido de que os seus feitos politicos e
militares são inspirados pela providencia divina.

Isto não é scientifico, é ridiculo.

A egreja catholica ensina que a providencia é um mysterio insondavel,
e, todo o proposito de a interpretar, uma rematada loucura. É verdade
definida com egual clareza na escriptura e na tradição: _Quis cognovit
sensum Domini_, diz S. Paulo[14], _aut quis conciliarius ejus fuit_?
Sancto Agostinho desenvolve n’uma bella imagem este pensamento de
S. Paulo: _Si in alicujus opificis officinam imperitus intraverit,
videt ibi multa instrumenta, quorum causas ignorat; et si multum est
insipiens, superflua putat. Jam vero, si in fornacem ceciderit, aut
ferramento aliquo acuto, cum id male tractat, se ipsum vulneravit,
etiam perniciosa et noxia ibi existimat esse multa: quorum tamen
usum, quoniam novit artifex, insipientiam ejus irridet, et verba
inepta non curans, officinam suam constanter exercet_[15]. O que este
esplendido luminar da egreja diz dos que referem a Deus os varios casos
desgraçados da vida humana, é egualmente applicavel aos que explicam do
mesmo modo os successos bem afortunados. Quantas vezes nos enganamos
ante a falsa perspectiva d’uma situação, que se nos afigura má e o não
é? Que de vezes a felicidade de hoje é o prefacio do infortunio de
ámanhã? Commentando aquella passagem de S. Paulo, diz Liebermann: _Nos
neque rerum naturas cognoscimus, neque fines, nec quid cujusque naturae
conveniat, aut quibus legibus res quaelibet governari debeat, neque
alia multa viarum et judiciorum Dei inscrutabilia arcana._[16]

N’esta rendidissima humildade está uma philosophia sincera e profunda.
Contra ella braveja baldadamente a estolida immodestia dos Prometheus
da escola, que, julgando ter roubado ao céu o fogo das eternas
verdades, a final só teem no espirito a fugaz phosphorescencia das
proprias illusões.

Este modo de considerar a providencia recebeu de Kant a mais brilhante
consagração scientifica. Willm[17] resume d’este modo o pensamento
do grande philosopho: «O universo, considerado como manifestação
da vontade de Deus, é para nós um livro quasi sempre sellado; é-o
inteiramente para todos que procuram n’elle os seus designios
absolutos. É impossivel interpretar as vistas moraes da providencia
pelas apparencias do mundo phenomenal. Isso valeria o mesmo que ensaiar
uma interpretação doutrinal, eterno proposito de toda a theodicea
especulativa. Ha outra theodicea: a que responde a todas as objecções
contra a sabedoria divina, fundando-se n’uma decisão authentica e
dictatorial do proprio Deus, ou então n’uma decisão da razão, pela qual
a idéa de Deus, como ser moral e sabio, nos é dada necessariamente e _a
priori_...»

Kant viu uma interpretação d’esta ordem no livro de Job. Sapiencial ou
historico, este livro é um thesouro de philosophia.

Todos conhecem mais ou menos a moralissima narrativa d’elle. Job era
feliz e rico; o seu lar, abençoado e puro. A mais larga e reverente
consideração acompanhava a toda a parte o sou nome. A consciencia
esmaltava-se-lhe justamente nas suaves perspectivas da virtude propria.

Assim lhe corria a vida.

Um dia, inesperadamente, a desgraça vibrou contra elle todos os seus
raios. Empobreceu, a morte levou-lhe uma a uma as pessoas da familia,
accommetteu-o a mais horrorosa das molestias, e tudo revestiu para o
pobre do homem as sinistras côres da maldição. Foram visital-o alguns
dos seus amigos, e todos procuraram explicar aquelle reviramento na
fortuna de Job pela acção directa de Deus. Da hypothese passaram á
these. A maior parte d’elles pronunciou-se pelo systema que considera
castigos do céu todos os males do mundo; Job, pela sua parte,
curvando-se humillimamente perante os decretos divinos, consagrava o
systema da vontade divina absoluta n’esta profunda phrase: _Ipse enim
solus est, et anima ejus quodcumque voluit, hoc fecit_[18]. Outra vez
saíam-lhe dos labios estas palavras: _Dominus dedit, Dominus abstulit;
sit nomen Domini benedictum_[19].

Os seus amigos, como finamente observa Kant, preoccupavam-se menos
com a verdade do que com o desejo de agradar a Deus. Ao contrario de
Job, não tinham sinceridade alguma. A final, Deus interveio, premiou
a crença viva de Job, confirmou o seu modo de ver, indignou-se contra
os hypocritas que o haviam tentado, e só lhes perdoou por mediação do
varão justo e sincero, que foi restituido á felicidade que desejava e
merecia.

Kant deu ao pensamento de Job os fóros d’uma verdade scientifica; nós
acceitamol-o tambem como um perfeito principio especulativo, e, sobre
tudo, como fundamento prático da verdadeira moralidade humana.

Como é claro, o nosso pensamento dista infinitamente da ingenhosa mas
falsa theoria com que H. Spencer, no seu livro intitulado--_Primeiros
principios_, procura conciliar a sciencia com a religião. Eis, muito
resumidamente, a sua idéa[20]:

Importa distinguir o _cognoscivel_, objecto das sciencias, do
_incognoscivel_, objecto das religiões, não para negar o incognoscivel,
mas para o restringir aos dominios em que é legitimo como facto da
consciencia. A religião, phenomeno constante da historia da humanidade,
é a expressão d’um facto eterno; por outro lado, a sciencia é um grande
systema de factos e de leis, recrescente e progressivo com o movimento
da historia. Duas cousas legitimas de que é necessario tomar conta,
e que importa harmonisar devidamente. A tarefa será difficil, mas é
possível. _É inadmissivel_, diz elle[21], _a hypothese da existencia de
duas verdades em absoluta e perpetua opposição._ Spencer dedica a este
problema de conciliação os primeiros capitulos da sua obra, fortemente
encorajado pela convicção de que _da fusão de idéas antagonicas,
cada uma das quaes encerra uma parte da verdade, resulta sempre um
desenvolvimento superior_.[22] Parece que ha n’esta phrase de Spencer
reminiscencias de Kant e de Hegel.

Qual ha de ser, porém, a synthese conciliadora da religião e da
sciencia? Se fôr uma verdade religiosa, a sciencia não a acceita;
se fôr uma verdade scientifica, a religião repelle-a. Onde, pois,
encontrar a formula harmonisadora d’essas duas potencias historicamente
inimigas?

Na analyse profunda das religiões e das sciencias, responde o
auctor inglez. Umas e outras hão de contribuir por egual para a
solução do problema. Não sustentam todas as religiões, ainda as mais
diametralmente oppostas, que o mundo, com tudo que contem e tudo o
que o cerca, é um mysterio? Não é este o objecto commum, o objecto
irreductivel de todas ellas, desde o fetichismo até á doutrina
monotheista? Por outro lado, o limite da sciencia não é sempre o
_incomprehensivel_? A essencia das cousas não escapa inteiramente á
observação humana? Desde a hypothese cosmogonica do universo até á
theoria das sensações e das idéas, não ha mysterios a cada passo, a
cada momento? E confessar-lhes a existencia não é uma necessidade
logica? Devem ser respondidas affirmativamente estas perguntas,
e, sendo-o, ahi vemos nós convergirem n’uma formula abstracta e
geral os elementos da desejada conciliação. A religião affirma o
_incognoscivel_, e faz d’elle o seu objecto; a sciencia affirma-o
também, e faz d’elle o seu limite. Seja, pois, a religião a encarnação
do mysterio absoluto, cuja existência a sciencia legitíma; incumba-se
pela sua parte a sciencia de systematisar os factos conhecidos, e as
leis d’esses factos derivadas....

Ahi fica, sem o imponente prestigio d’um sem numero de raciocinios e
demonstrações, o alvitre conciliador proposto por H. Spencer.

É acceitavel? Não.

Em primeiro logar, esta theoria é a apresentação, sob nova fórma, das
velhas idéas de Th. Reid, de D. Stewart e de Hamilton. _A relatividade
do conhecimento humano_ é um dos principios fundamentaes da escola
escoceza. O incognoscivel, que esta confiava á guarda do senso commum,
Spencer transfere-o todo inteiro para os dominios da religião. A
differença é pequena.

O incognoscivel da religião tem realidade objectiva; mas quem não
vê que o incognoscivel da sciencia é o incognito, uma negação, uma
não-existencia? Não sendo uma determinação positiva, póde harmonisar-se
com alguma cousa, póde comparar-se a alguma cousa? Não, evidentemente.

Littré põe esta theoria á prova d’um dilemma esmagador. Eil-o: «Em
todos os tempos a fé determinou o incognoscivel, isto é, ensinou cousas
de origem e de fim. Este ensino ou ha de conservar o seu caracter,
ou perdel-o. Se o conserva, como a sciencia declara indeterminavel o
incognoscivel, haverá, e é isso o que ahi se vê, scisão e conflicto;
a conciliação, que o sr. Spencer suppõe no seio do incognoscivel, não
se realisará. Se, pelo contrario, a fé renuncia ás suas determinações,
o seu ensino perde o caracter proprio, e confunde-se logo com o da
sciencia; haverá, não conciliação, mas absorpção. Então a fé poderá
queixar-se de lhe haverem dado uma designação vazia em vez das
suas realidades, a ponto de não encontrar, n’este limite variavel
que a sciencia chama o incognoscivel, um clarão do que ella crê e
espera[23].»

Aproveitamos contra o pensador inglez a critica de Littré, não
acceitando de modo algum as idéas d’este pensador sobre materias
religiosas. Para elle a religião é um facto legitimo, mas transitorio
da humanidade; é o systema de educação geral, fatalmente usado na
infancia da nossa especie. N’este ponto ainda o positivista francez
dista mais de nós do que o philosopho inglez, o qual, como vimos,
considera a religião uma inspiração eterna da consciencia.

Para nós a religião é um systema de factos e de principios relativos
á origem e aos destinos sobrenaturaes do homem. A realidade d’esses
factos e a auctoridade d’esses principios teem uma demonstração
positiva, embora não comportem uma explicação intima e completa. A
existencia de J. Christo, por exemplo, a realisação das prophecias, a
operação dos milagres e a manifestação de todos os outros caracteres
da sua doutrina, são factos, puramente factos. Toda a discussão
scientifica deve versar sobre a authenticidade d’elles. Reconhecel-os
como reaes, eis a obra da sciencia; acceital-os depois como verdades na
sua significação theologica, eis a obra da fé.

Ora, como entre factos não ha collisão possivel, claro está que só
por este modo é que podem cessar os conflictos da religião com a
sciencia. Aquella rege os dominios da fé apoiada sobre factos; esta
realisa a liquidação dos factos sobre que se fundamenta a fé. Isto nos
pontos em que se encontram; nos outros, inteira diversidade e absoluta
independencia de processos.

       *       *       *       *       *

Se a evolução social não póde explicar-se pela theoria da providencia,
pela theoria dos grandes homens e pela que a faz derivar inteiramente
dos principios eternos da consciencia; se não póde ser mero producto
do acaso; se a observação verificou já o facto fundamental do
progresso,--a transmissão hereditaria do trabalho moral das gerações;
se, n’uma palavra, está _constituida_, quaes são as suas leis, qual é a
sua doutrina geral evolucionavel?

Aqui está o ponto mais difficil; aqui se combatem rijamente as mais
oppostas divergencias. Que, importa dizel-o desde já, dado o facto
da solidariedade humana, universal e perfectivel; demonstrado que
a verdadeira sciencia social assenta directamente, não só sobre
as qualidades do individuo, mas tambem, e principalmente, sobre a
estructura variavel dos agrupamentos humanos; considerado tudo isto
devidamente, já fica indicado o novo caminho a seguir, já ficam
rasgados novos horizontes ao espirito, e, emquanto não apparecer uma
theoria perfeita, emquanto se não formular a lei abstracta, ineluctavel
e completa, que presida á evolução humana, as menos defeituosas
hypotheses, entre as que teem sido offerecidas, poderão servir de leis
provisorias para trabalhos de investigação.

Pela nossa parte, não conhecemos theoria alguma que nos satisfaça
plenamente como formula superior de toda a evolução. Vamos dar a razão
d’isto, passando em revista, ainda que muito por alto, o _positivismo_
de A. Comte, o _evolucionismo_ de Spencer, e o _transformismo_ de
Darwin nas suas applicações á historia.

Como é sabido, os pontos fundamentaes do systema _comteano_ são:
_relatividade_ de todo o conhecimento humano, a lei dos _tres
estados_, que é, segundo elle, a formula fundamental de todo o
desenvolvimento historico; e a _classificação das sciencias_, baseada
na generalidade decrescente e na complexidão progressiva de todos os
generos de phenomenos observados.

A _relatividade_ dos conhecimentos humanos deveu-a a Hume; a _lei dos
tres estados_, se lhe não foi inspirada por Vico, deveu-a com certeza a
Turgot; a _serie_ das sciencias, essa é que representa o grande esforço
de A. Comte, e é, de certo, a sua maior gloria. Não queremos marear a
universal reputação do philosopho francez com isto de darmos aos seus
trabalhos alguns precedentes historicos; elle dizia muitas vezes, e
os seus discipulos repetem a todo o momento que essas precedencias,
essas longas preparações scientificas são uma das maiores glorias da
sua doutrina, e um dos mais valiosos titulos da sua legitimidade.
Reconhecendo n’essa philosophia a sua admiravel condensação de dados
positivos, e votando-lhe por isso o justo louvor que merecem as grandes
systematisações scientificas, declaramos já que, dos principios
essenciaes d’essa philosophia, só acceitamos um: a classificação das
sciencias. Sobre isto nada conhecemos tão perfeito, antes nem depois de
A. Comte. As criticas de Carey e de H. Spencer não fizeram mais do que
avultar-lhe o valor.

Para A. Comte, a formula geral da evolução é a lei dos _tres estados_,
como fica dicto. Copiamos para aqui as suas proprias palavras:
«Estudando o desenvolvimento total da intelligencia humana nas
suas differentes fórmas de actividade, desde os seus mais simples
ensaios até aos nossos dias, parece-me que descobri uma grande lei
fundamental, á qual elle está preso por uma necessidade invariavel, e
que póde ser solidamente estabelecida não só sobre as provas racionaes
fornecidas pelo conhecimento da nossa organisação, mas tambem sobre as
verificações resultantes d’um exame profundo do passado. Consiste essa
lei em que cada uma das nossas principaes concepções, cada ramo dos
nossos conhecimentos passa successivamente por tres estados theoricos
differentes: o estado theologico ou ficticio, o estado metaphysico
ou abstracto, o estado scientifico ou positivo. N’outros termos, o
espirito humano, pela sua natureza, emprega successivamente, em cada
uma das suas investigações, tres methodos de philosophar, cujo caracter
é essencialmente differente e até radicalmente opposto: primeiro o
methodo theologico, depois o methodo metaphysico, e por ultimo o
methodo positivo. D’ahi tres especies de philosophia, ou de systemas
geraes de concepções sobre o conjuncto dos phenomenos, que mutuamente
se excluem: a primeira é o ponto de partida necessario da intelligencia
humana; a terceira, o seu estado fixo e definitivo; a segunda serve
unicamente de transição[24].»

O pensamento do philosopho ahi fica claramente expresso. Vamos
combatel-o com armas da sua escola. Fornecem-n’as dois dos seus
mais devotados discipulos, Littré e Wyrouboff. Ninguem duvidará da
orthodoxia d’elles.

Littré julga insufficiente a _lei dos tres estados_, e propõe-lhe
uma modificação da sua lavra. O maior defeito que lhe encontra (e,
realmente, ninguem o dirá pequeno) é o de não comprehender e explicar
o desenvolvimento moral, industrial e esthetico da humanidade,
ficando assim aquella formula apenas _com a excellente qualidade de
ser relativa ás especulações em que a evolução por filiação é mais
manifesta, e, por isso, a de dar uma noção positiva da marcha da
historia_[25]. Tem além d’isso contra si o ser uma lei meramente
empirica, a _simples expressão abstracta_ d’um facto, e, por isso,
o inconveniente de não prestar á historia mais do que um fundamento
provisorio, puramente hypothetico. Na opinião do seu critico, a lei
dos _tres estados_ necessita racionalisada por uma lei superior que a
comprehenda. Só d’esse modo é que, de _infinitamente provavel_, ella
se póde tornar _absolutamente certa_. Estas phrases sabem um pouco á
metaphysica, mas são de Littré[26].

A modificação de Littré consiste n’isto: O desenvolvimento do genero
humano divide-se em quatro periodos, a que correspondem outros
quatro, perfeitamente semelhantes, no desenvolvimento do individuo.
No primeiro, a humanidade está sob o imperio preponderante das
necessidades; no segundo, a moral desenvolve-se despertando as
primeiras creações religiosas e civis; no terceiro, o sentimento do
bello cria as construcções e os poemas; no quarto, finalmente, a
razão, liberta das precedentes occupações, trabalha por si mesma e
procede á inducção das verdades abstractas. D’este modo a lei dos tres
estados que, segundo Littré, era a simples expressão abstracta d’um
facto, fica com um fundamento racional. Qual? A necessaria relação do
desenvolvimento collectivo com as phases essenciaes do desenvolvimento
individual. Eis as suas palavras: «Pensando em que o desenvolvimento
collectivo devia traduzir nos seus traços principaes o desenvolvimento
individual, fui impressionado pela nenhuma concordancia que ha entre
a analyse mental, que Augusto Comte copiou da hypothese de Gall, e a
lei empirica que elle tinha descoberto em sociologia. Concebi, sob um
outro ponto de vista, essa analyse mental, e, considerando-a como ponto
de partida da analyse sociologica, fui levado a uma lei racional que,
sem tocar na realidade da lei empirica de Augusto Comte, lhe serve de
interpretação, etc.[27]»

N’um livro publicado quatro annos depois das Palavras de Phil. Posit.,
Littré[28] reconhece que foi precedido nas suas vistas sociologicas
por Saint-Simon, e dá-lhe por isso as honras da prioridade; affirmando
logo em seguida que os seus estudos, feitos ulteriormente áquella
publicação, em nada alteraram o seu modo de ver, e insistindo em que
elle encerra os elementos essenciaes d’um tractado de sociologia.

Wirouboff tambem, por sua vez, desprestigia, modificando-a, a lei de
Comte. Levou-o a isso um estudo profundo sobre as civilisações do
extremo Oriente[29].

Como é sabido, Comte dividiu o primeiro periodo, o periodo theologico,
em tres phases successivas: a do fetichismo, a do polytheismo e a
do monotheismo. Wirouboff verificou que no Oriente as cousas se
não passam inteiramente assim. O movimento religioso da Indo-China,
de que primitivamente se inspiraram as duas raças aryana e chineza,
é n’ellas de todo o ponto divergente. Ao passo que a primeira se
desenvolve regularmente _nos tres estados_, segundo a afirmação de
Wyrouboff, a segunda, pelo contrario, escapa inteiramente á influencia
d’essa lei, pois, tendo principiado por um culto astrolatico, tem-se
afastado d’elle pouco a pouco, chegando pela influencia das doutrinas
de Lao-Tseu, de Confucio, de Mencio, e das especulações boudhicas,
á quasi negação de toda a divindade. «O traço saliente de todas as
religiões do extremo Oriente é o _atheismo_, não o atheismo systematico
que nega a existencia de Deus, mas o que raciocina sem se inquietar com
a divindade[30].» Os Mongoes são a unica excepção conhecida áquelle
caracter, o que póde ser plausivelmente explicado pelo contacto
d’elles com os Semitas, que, em tal hypothese, lhes influiram a idéa
do monotheismo arabe. De modo que a divergencia notavel, apontada por
aquelle escriptor, refere-se só á raça no seu estado de pureza.

Wyrouboff, depois de largas considerações sobre este assumpto, e
tendo, em serviço do seu pensamento, invocado a opinião de Renan, tão
combatida por Max Müller, de que o monotheismo é a religião fundamental
primitiva da raça semitica, reune todas as conclusões do seu estudo
n’estas palavras: «Se esta theoria é verdadeira, e eu não sei de facto
algum que a contradiga, a lei dos _tres estados_, formulada por A.
Comte, muda completamente de caracter: em vez de ser a expressão
d’um facto geral, d’uma funcção propria a todas as collectividades
humanas, abandonadas ao curso natural das cousas sociaes, torna-se o
resumo da historia da raça aryana... A lei de M. Comte deixa de ser
uma lei abstracta, e passa ao quadro das leis exactas mas empiricas da
sociologia[31].»

Em conclusão, os dois mais graduados representantes do positivismo
francez não acceitam a lei dos tres estados, consoante a entendeu e
formulou o chefe da escola. Littré sustenta que ella não comprehende o
desenvolvimento total da humanidade, explicando apenas as concepções,
em que a derivação por filiação é mais clara; e, por outro lado, sente
que ella não tem o caracter d’uma lei racional, uma base permanente
para as respectivas deducções. Wyrouboff considera-a como o resumo
da historia da raça aryana, no que está em divergencia com o seu
collaborador, e, alteando a raça a factor principal de todos os
systemas intellectuaes, religiosos e philosophicos, vibra áquella lei o
mais profundo golpe que lhe tem sido dado.

Nós acceitamos plenamente a parte critica d’estes philosophos na
questão sujeita, mas a parte organica, as modificações offerecidas em
substituição á doutrina comteana, essas só as acceitamos a beneficio
de inventario; e terminamos affirmando que não teem resposta plausivel
estas duas objecções capitaes, que, como provou Huxley[32], não
escaparam á penetração de A. Comte: o facto de muitos dos nossos
conhecimentos não terem passado pelos tres estados, e a coexistência
dos tres estados, constantemente realisada em todas as epochas desde os
primeiros clarões da historia.

Está, pois demonstrado que a fórmula geral da sociologia apresentada
por Comte não satisfaz ás exigencias da logica. Seremos mais felizes
com H. Spencer?

       *       *       *       *       *

Eis, em summa, as doutrinas do grande pensador inglez: Para elle, como
para A. Comte, a philosophia é logica e chronologicamente posterior
ás sciencias particulares; é a comprehensão total do kosmos, é uma
grande synthese erguida sobre as analyses realisadas em todas as
repartições do saber humano. «A sciencia, diz elle, tem por objecto
as coexistencias e as sequencias dos phenomenos; tracta de as grupar
para formar generalisações simples do primeiro grau, e eleva-se
depois gradualmente a generalisações mais altas e mais vastas... A
philosophia é o conhecimento do mais alto grau da generalidade de todas
as sciencias... Emquanto se não conhecem as verdades scientificas senão
separadamente; emquanto se consideram independentes, não se póde, sem
sacrificio do verdadeiro valor das palavras, chamar philosophica ainda
á mais vasta de entre ellas. Mas quando, depois de as ter reduzido,
uma a um simples axioma de mechanica, outra a um principio de physica
molecular, outra a uma lei de acção social, se consideram todas
como corollarios d’uma verdade ultima, chega-se então á especie de
conhecimento que constitue a philosophia propriamente dicta.[33]»
Aqui já Spencer nos dá a radicalissima differença que o separa da
philosophia positiva. Esta constituiu-se como tal, na firme convicção
de que não podia subordinar a um principio supremo e unico as verdades
particulares de todas as sciencias.

Para tentar a explicação do universo, é mister partir d’um facto,
d’uma idéa primitiva, d’um elemento irreductivel. Onde encontral-o?
Na consciencia, responde H. Spencer. Só a consciencia nos póde
certificar da concordancia entre a representação das cousas idéas
e a representação das cousas reaes. E não podemos recusar-lhe o
testemunho. A phrase de Hamilton: _é necessario presumir a veracidade
da consciencia, emquanto não houver prova de que ella é fallaz_, é
um contrasenso. O facto de affirmar a concordancia dos dois estados,
o real e o mental, é fatal, é irresistivel. Póde haver engano n’um
d’esses actos desfeito posteriormente, mas isso não invalida a
força auctoritaria do testemunho, e serve sómente de provar que as
manifestações da consciencia mais reflexa são preferiveis ás da
consciencia menos reflexa. O criterio da certeza vem por este modo
a ser: a permanencia no espirito d’uma intuição de semelhança ou de
differença.

Conhecida a operação primitiva e incontestavel do pensamento, é
necessario partir logo d’um producto do pensamento adquirido por
tal meio. «Se a philosophia é o saber completamente unificado,
e a unificação do conhecimento não póde effectuar-se senão pela
demonstração de que alguma proposição ultima encerra e consolida todos
os resultados da experiencia, é claro que esta proposição ultima,
cuja compatibilidade com todas as outras necessita provada, deve
representar um fragmento da consciencia, e não sómente o que constitue
a validade dos actos da consciencia[34].» Posto isto, qual vem a ser
esse producto, esse _fragmento_ da consciencia, na phrase de Spencer? É
evidente que não póde deixar de ser universal. Deve ter toda a extensão
das experiencias realisadas, deve comprehender em si todas as classes
de semelhanças e de differenças de que a consciencia possa ter intuição.

Esse producto da consciencia, essa lei universal é a _força_. Como
a reconheceu Spencer? Por meio d’uma analyse psychologica sobre as
qualidades communs e sobre as qualidades differenciaes de todas as
impressões recebidas, classificaveis em dois grupos: impressões
fortes e impressões fracas, constituindo na consciencia series ou
correntes parallelas. O conjuncto das segundas impressões, eis o
_eu_, o conjuncto das outras, eis o _não eu_. O _eu_ é a força
_que se manifesta nas fórmas fracas_; o _não eu_ é a força _que se
traduz pelas fórmas vivas_. Estas duas series sente-as a consciencia
espontaneamente, conhece-as depois pela reflexão, e, distinguindo umas
das outras, vem assim a separar o sujeito do objecto do conhecimento.

Eis a base psychologica do systema de Spencer. É o sensualismo de
D. Hume sob nova fórma. As manifestações secundarias, copia das
manifestações vivas, são tudo o que existe na consciencia. Por este
modo o homem é _unicamente_ o producto fatal do seu meio. Sentir as
proprias impressões, eis todo o poder da alma, mas poder complexo, que
se desdobra depois em todos os actos _hiper-organicos_.

Resumindo o que fica dicto, temos que a consciencia é a origem de toda
a certeza; o criterio d’essa certeza,--a permanencia das intuições
de relação, unica que ella comprehende; as series ou correntes de
impressões, com as suas qualidades caracteristicas,--o meio de
distinguirmos o sujeito do objecto, o _eu_ do _não eu_, resultados
d’uma só força, que é o principio e a causa de toda a sciencia. Os
principaes elementos derivados d’esse principio são o _espaço_, o
_tempo_, a _materia_ e o _movimento_; são elementos necessarios da
sciencia, mas não no sentido da philosophia kantiana, porque não são
dados _a priori_, mas sim puras abstracções de experiencias de forças.
«A força, tal como nós a conhecemos, não póde ser considerada senão
como um certo effeito _condicional_ d’uma causa _incondicionada_, como
a realidade relativa que nos indica a realidade absoluta, pela qual é
produzida directamente[35].»

Posto isto, e demonstrada (?) a indestructibilidade da materia, a
continuidade do movimento, a transformação e equivalencia de _todas_ as
forças, a lei do movimento e a existencia do seu rythmo,--passa Spencer
a constituir a sua formula da _evolução_. É esta, na traducção franceza
de Cazelles: _L’évolution est une intégration de matière acompagnée
d’une dissipation de mouvement, pendant laquelle la matière passe d’une
homogénéité indéfinie, incohérente, à une hétérogénité définie,_
_cohérente, et pendant laquelle aussi le mouvement retenu subit une
transformation analogue_[36].

A idéa principal d’esta formula, com applicação aos organismos vivos,
tinha-a, havia muito, apresentado Baer na Allemanha. Baer escreveu: _A
serie de mudanças realisadas enquanto um grão se transforma em arvore,
um ovo n’um animal, é sempre a passagem d’um estado de constituição
homogenea para um estado de constituição heterogenea_. Spencer, que,
desde muito, tinha sido impressionado por esse facto, e queria uma lei
physica applicavel a todos os phenomenos, aproveitou aquella, fel-a
sua, estendendo-a a tudo quanto existe desde os seres inorganicos até
aos factos mais complexos da phenomenologia social.

Antes de a conhecer, o que teve logar em 1852, o pensamento de
Spencer tinha outra fórma, que não significava bem as intenções
scientificas d’elle[37]. Era esta: «_O progresso realisa-se quando
partes semelhantes e independentes se volvem em partes dessemelhantes e
dependentes, isto é, quando se individualisam_.» Tinha-lh’a inspirado
Milne Edwards[38], como elle mesmo confessa, mas não o satisfazia
plenamente porque era inapplicavel ás transformações inorganicas,
e elle queria, a toda a força, uma formula superior e completa, a
que sujeitar o universo na total complexidão dos seus phenomenos.
Forneceu-lh’a Baer, e, uma vez de posse d’ella, tratou Spencer de a
applicar á astronomia, á geologia, á psychologia e á sociologia. Na
astronomia, serviu-lhe a hypothese de que o systema solar proveio
d’uma nebulosa; na geologia, a hypothese de que a terra esteve
primitivamente no estado de fusão, etc. Como o que mais nos interessa
são as applicações que elle fez da sua formula á sociologia, vamos,
em poucas palavras, dar uma amostra do modo por que elle realisou na
historia os seus processos experimentaes.

A passagam do homogeneo para o heterogeneo manifesta-se no progresso
geral da humanidade, no progresso parcial de cada tribu, e no progresso
de todos os productos da actividade humana, abstractos e concretos,
reaes e ideaes. A sociedade, quando embryonaria, mostra-nos os homens
em perfeita homogeneidade de qualidades e de funcções: todos exercem
os mesmos officios, todos vivem do mesmo modo; depois apparece-nos
o primeiro facto de differenciação, com o estabelecimento d’uma
auctoridade qualquer, e, portanto, a divisão dos membros da tribu em
governantes e governados; no proprio seio da instituição politica,
assim rude e primitiva, ensaia-se logo uma nova evolução, porque o
chefe, que a principio exercia a mesma profissão que os seus subditos,
volvido pequeno praso, começa a distinguir-se d’elles pela differença
de occupações, até que chega a não fazer outra cousa que não seja
governar; em seguida a isto, a administração religiosa coordena-se
com a administração politica, e concorrem na mesma pessoa o prestigio
necessario a um chefe e as homenagens devidas a um Deus; depois, os
dois poderes destacam-se um do outro, os governados distinguem-se
em seculares e religiosos, e começam a subsistir separadamente o
Estado e a Egreja; o Estado multiplica as suas instituições, a
Egreja complica-se com um sem numero de serviços; pelo seu lado, os
governados experimentam parallelamente a mesma lei das differenciações
successivas, passando da identidade de profissão industrial para
a divisão do trabalho, da insulação economica dentro dos limites
nacionaes para a maxima expansão commercial, etc. O mesmo em qualquer
dos productos do pensamento, que H. Spencer denomina _hiper-organicos_.
A linguagem humana começou por exclamações, passou a um periodo,
historicamente verificavel, em que só dispunha de nomes e verbos, e
d’ahi data já uma clara differenciação progressiva, distinguindo-se
os verbos em activos e passivos, os nomes em abstractos e concretos,
apparecendo os verbos auxiliares, os pronomes, os artigos; depois
multiplicam-se as linguas, derivadas d’um tronco commum, como entendem
Bunsen e M. Müller, ou de varios troncos pertencentes a differentes
raças, como querem outros; mais tarde, as linguas dividem-se em
dialectos. Na palavra escripta a mesma evolução desde as pinturas
muraes dos Egypcios e dos Assyrios até aos hiéroglyphos e aos symbolos,
e desde esta fórma primitiva até aos ultimos aperfeiçoamentos da
escriptura phonographica. Nas bellas artes a mesma fórma de progresso,
desde a confusão da esculptura com a architectura e d’aquella com a
pintura de que é argumento a Grecia, cujos templos ostentavam nos
frisos baixos-relevos pintados, até á modernissima distincção dos
varios géneros de pintura...[39]

Tal é, muito em resumo, a doutrina geral de Spencer, o criterio com que
elle estuda as tres grandes especies de evolução--a _inorganica_, a
_organica_ e a _super-organica_, ás quaes tem dedicado a sua prodigiosa
actividade e o seu talento incomparavel.

Ainda não póde ser devidamente criticada a sua obra, porque está
incompleta. O seu tractado de sociologia, rapidamente esboçado
nos _Primeiros Principios_, ainda não veio a lume. A _Introducção
á Sciencia Social_, publicada em 1873, e o primeiro volume dos
_Principias de Sociologia_, publicado no anno findo e inteiramente
desconhecido fóra da Inglaterra, eis tudo o que ha. Muito para que se
possa admirar as eminentes faculdades do grande pensador inglez, e
para se conhecer que o seu trabalho vai imprimir uma forte direcção
experimental nos estudos d’aquella ordem,--mas pouco para se tentar já
com segurança uma apreciação conscienciosa e completa. No entretanto, e
se comprehendemos bem o que conhecemos d’aquelle escriptor, parece-nos
que podemos desde já oppôr á sua philosophia difficuldades, que se nos
afiguram invenciveis, e defeitos que reputamos da maior gravidade.

Como é que Spencer harmonisa o seu sensualismo puro, perfeitamente
inglez, com a determinação do _absoluto_, elevada á categoria d’um
elemento scientifico? Não se nos afigura muito facil a resposta a esta
pergunta.

Aquella determinação é suggerida pelos objectos externos? Mas por quaes
objectos, e de que modo?... É uma inspiração da consciencia? Não póde
ser, porque, na psychologia de Spencer, a consciencia é puramente uma
dupla serie de impressões, copiadas da natureza. É uma abstracção de
experiencias? É inadmissivel, porque a entidade abstracta não póde ter
natureza diversa das entidades concretas respectivas.

A formula geral da _evolução_, deduzida d’um pequeno numero de factos,
consoante o methodo proprio d’aquelle pensador, e depois applicada
á universalidade da phenomenologia cosmica, emerge de todas estas
provas com a força irresistivel d’uma lei scientifica? Não. Os
varios grupos de factos, a que elle a estende, estão presos entre
si por simples hypotheses. É meramente uma hypothese, embora muito
plausivel, a cosmogonia de Laplace respectiva ao systema solar; teem
o mesmo caracter as theorias cosmogonicas relativas ao nosso planeta;
o principio da transformação das forças, verificado ainda ha pouco
restrictamente nos dominios da physica e da chimica, não chega a ser
uma hypothese muito plausivel logo que se trata das propriedades
vitaes, e assume as proporções d’uma ousadia injustificavel quando
tenta sujeitar a si a explicação de todos os phenomenos mentaes; a
theoria biologica do transformismo está ainda distantissima de ser
uma doutrina inabalavel e assente... Pois é com todos estes dados que
Spencer edifica a sua philosophia!

Mas, concedido que tudo isso satisfaça ás mais escrupulosas exigencias
do methodo, o que vem a ser a formula de Spencer, senão uma formula
empirica, a simples expressão d’um facto, sem nada que lhe imprima
o caracter d’uma lei _racional_? Dado o facto das differenciações
successivas, não resta saber a qual lei obedecem ellas? Resta, sim; e,
emquanto isso se não fizer, toda a deducção é impossivel. «É de receiar
(dizia em 1864 Ernest Laugel, apresentando á França a philosophia
de Spencer), é de receiar que o philosopho se tenha illudido dando
o valor d’uma lei natural ao que não passa de simples enunciado
d’um facto. As cousas desenvolvem-se ao sabor de leis permanentes e
eternas, mas este desenvolvimento merece a qualificação de lei? A força
immanente á natureza produz n’elle necessariamente novos movimentos,
mas a simples successão d’estes movimentos nada nos ensina ácerca
das relações que os prendem. A evolução não produz sempre effeitos
comparaveis, e ora se faz n’um sentido, ora n’outro.... Não se descobre
uma lei só porque se affirma a sua existencia; é mister encontrar a
sua formula. Não basta affirmar que existe uma certa relação entre a
força activa dos corpos, a sua massa e a sua distancia: quero saber
que relação é essa; é necessario que me demonstrem que a attracção
se effectua na razão directa das massas e na inversa do quadrado
das distancias. Egualmente, não basta que se diga que a ordem dos
phenomenos é uma evolução regulada, sem começo nem fim: o que estamos
impacientes de saber, é precisamente o que essa regra seja[40].»

A philosophia de Spencer, verdadeiramente prodigiosa pelo infinito
numero de factos que procura generalisar; muito do nosso tempo pela
importancia que dá a todos os processos de observação scientifica;
cheia de vistas novas e de considerações valiosissimas; forte na
sua systematisação, e perfeitamente comprehensiva de toda a ordem
de phenomenos; esta philosophia soffre, apesar d’isso, o destino de
todas as doutrinas, que, procurando ser completas, se tornam sempre
arbitrarias. Sacrificam ás exigencias da logica a verificação
necessaria de todas as verdades. Algumas philosophias d’essa ordem
valem ao menos como inventario exacto dos conhecimentos possuidos pela
humanidade n’um dado momento. Está n’este caso o _monismo_ de Spencer.
Outras nem para isso prestam.

       *       *       *       *       *

Com a philosophia de H. Spencer está intimamente relacionada a doutrina
de Darwin. Spencer é mais transformista do que Darwin. Este quasi se
preoccupou unicamente com a _evolução_ biologica, ao passo que aquelle
deu ao principio a maxima extensão, fazendo-o entrar, como vimos, na
intimidade do systema sideral, na composição do globo terrestre e nos
reconditos segredos em que está envolvida a genese complicadissima do
pensamento.

Darwin tem discipulos de tres especies. Acceitam uns a sua theoria
biologica, sem procurarem applical-a a phenomenos que não sejam os
da vida. Outros, considerando que a base das sociedades humanas é
perfeitamente biologica, applicam-na ás questões da sociologia. Outros,
como Spencer e como Haekel, estendem-na a tudo, explicam tudo por ella,
inclusivamente as transformações inorganicas.

É dos segundos, dos que entram na historia com aquelle principio,
alteado em criterio decisivo, que vamos, por ultimo, occupar-nos.

Nos dominios da biologia o _transformismo_ é uma hypothese, dissemos
nós acima. Não entra propriamente no objecto d’esta _Introducção_, nem
é dos muito estreitos dominios da nossa competencia, a questão no ponto
de vista das sciencias naturaes; mas, apesar d’isso, e com a timidez
propria de quem assim descobre a sua insufficiencia, vamos tentar a
prova d’aquella affirmativa.

Tracta-se da origem da vida, e da successão dos seres dotados d’ella.
Muito antes de Darwin, Lamark, admittindo a geração espontanea, e
partindo do apparecimento successivo dos seres vivos, verificado por
Cuvier, ensinou que estes seres estavam ligados entre si pelos laços
da descendencia, directa ou indirectamente; e, que, sob a influencia
de varios agentes, que elle especificou, e por virtude da herança, que
servia á transmissão de todas as mudanças, a força vital desenvolvia o
typo por uma serie de planos adaptaveis á sua organisação, d’elle.

Darwin, aperfeiçoando esta doutrina, accrescentou-lhe as duas famosas
leis da _concurrencia vital_ e da _selecção natural_. A primeira
affirma que a vida é uma lucta constante, uma lucta sem treguas, que
se realisa universalmente, em que ha sacrificios enormes, desde a
inutilisação dos germens superabundantes até á extincção completa
de raças inteiras; a segunda affirma que a natureza, supremo juiz
d’aquelle pleito, dá sempre a victoria ás organisações mais fortes,
mais aptas para as pesadas condições da existencia.

A embryogenia e a paleontologia depõem um pouco a favor d’esta
doutrina: aquella, demonstrando que é d’uma cellula primordial que
derivam todos os organismos vivos; esta, affirmando a successão
progressiva dos vegetaes e dos animaes nos periodos paleontologicos.

Se assim é, que falta para que a theoria da descendencia se eleve a um
principio rigorosamente scientifico? Que difficuldade se lhe oppõe?
Esta: a fixidez irreductivel do typo especifico. Diz Littré, de quem
vimos resumindo a exposição da hypothese transformista: «_Jusqu’à
présent, dans les bornes de la durée que nous connaissons, et avec
les moyens dont nous disposons, nous n’avons pas réussi à changer
un type spécifique. Les variations, quelque étendues que nous les
ayons produites, l’on toujours respecté; et d’un chien nous n’avons
jamais fait un loup, ni un âne d’un cheval. Tant que nous n’aurons
pas vérifié, par l’expérience, une mutation dans le type spécifique,
il faudra ne pas prendre la spéculation pour plus avérée qu’elle
n’est_[41].»

Mas não é esta a unica difficuldade da hypothese darwiniana. Como
explicar, n’esta theoria, o facto da perfeita identidade de muitas das
especies actuaes com outras pertencentes ás mais remotas edades?

Quatrefages, referindo-se aos estudos feitos por especialistas sobre
as collecções trazidas do Egypto por G. Saint-Hilaire, estudos que
concluiram pela affirmação d’aquella identidade, e computando em cinco
ou seis mil annos a distancia que separa esses fosseis de muitos
exemplares pertencentes á fauna e á flora actual,--pergunta como é
que se harmonisa _tal constancia de fórmas animaes e vegetaes com as
theorias que admittem a mutabilidade das especies_; e, confessando que
Lamark tem, no ponto de vista do seu systema, uma resposta, coherente
e logica, a tal pergunta, affirma logo que ella é de todo o ponto
irrespondivel na doutrina de Darwin. «_Il en est tout autrement de la
doctrine de Darwin. Ici la variation dépend de la sélection, commandée
elle-même par la lutte pour l’existence. Or, celle-ci ne s’est pas plus
arrêtée sur les bords du Nil que partout ailleurs; elle a régné pendant
et après l’époque glaciaire tout autant que de nos jours. La sélection
n’a pas pu s’arrêter davantage. Si elle n’a rien produit, c’est qu’elle
n’a exercé aucune action pendant les périodes dont il s’agit_[42].»

O mesmo distincto naturalista demonstra muito claramente que as
intercalações de seres vivos ou fosseis entre outros da escala
biologica, tão ardentemente saudadas pelos discipulos de Darwin, estão
longe de ser argumento de força incontrastavel em prol d’essa doutrina.
Confirmam a _lei da continuidade_, é certo, mas confirmam-na, seja qual
for o modo por que ella se explique. Servem ao transformismo de Darwin,
como serviriam ao systema de Blainville, que as faria depôr em defesa
da creação unica[43].

Mas apesar dos enormes trabalhos realisados pelos paleontologistas
modernos, a serie animal tem ainda grandes lacunas a preencher,
grandes espaços em aberto, principalmente no que respeita aos fosseis
das epochas primitivas; e, sendo assim, é mister descontar, na
plausibilidade da hypothese transformista, estes graves defeitos da
inducção que a sustenta. Recomposta a serie animal, ainda não passaria
d’uma hypothese; no estado actual da paleontologia, é uma hypothese,
sim, mas das menos válidas, mas das menos seguras entre as que ahi se
condecoram justamente com o titulo de scientificas.

O facto de que concluimos esta apreciação attesta-o o professor
Kölliker; e Huxley, que é todo darwinista, citando a objecção, não a
remove, deixa-a de pé[44].

Mas, concedido que o transformismo é uma verdade positivamente
adquirida para a sciencia, que alcance philosophico tem? Que nova
resolução fornece ao problema dos destinos do homem? Fica dirimida para
sempre a eterna questão philosophica da distincção entre o espirito
e a materia? Não vemos por que modo isso se consiga; pelo contrario,
os transformistas dão-nos argumento de que outra é a sua intima
comprehensão. Darwin é espiritualista; são materialistas Haeckel e
Büchner...

O transformismo é, pois, um facto indifferente aos grandes interesses
da philosophia. Como algures observa Littré, a transformação successiva
não póde arrogar-se maior importancia n’aquelle sentido, do que
a adquirida pela sciencia, depois de ter verificado que todos os
seres, animaes e vegetaes, teem a mesma composição chimica, subsistem
pela mesma funcção physiologica de assimilação e desassimilação,
reproduzem-se pelos mesmos processos, teem uma embryogenia analoga.

Apesar d’isto, a theoria, ultrapassando os dominios biologicos, tentou
logo explicar toda a evolução historica. A concorrencia vital e a
selecção natural despiram os seus habitos naturalistas e enfronharam-se
na ampla _toilette_ das graves explicações sociologicas. Haeckel, por
exemplo, não duvidou affirmar que a «raça germanica excede todas
as outras na concorrencia do desenvolvimento civilisador... e que a
disposição para receber a theoria da descendencia e a philosophia
unitaria, que n’ella tem a sua base, constitue o melhor criterio para
apreciar os gráus de superioridade espiritual entre os homens.[45]»

Isto é serio? É scientifico este dogmatismo atrevido e irritante?

N’um livro modernamente publicado pelo sr. Bagehot, _Leis scientificas
do desenvolvimento das nações_, procura este escriptor dar uma solução
definitiva ao problema do progresso, problema difficil que, segundo
elle, deve satisfazer ás diversissimas condições em que se encontram os
povos distribuidos pelos varios climas da terra, desde o estacionamento
quasi absoluto em que se encontram os habitantes das ilhas Andeman e os
selvagens da Terra de Fogo, até ao constante movimento progressivo das
sociedades europêas. Para isso formúla e propõe as tres seguintes leis:

1.ª «Em cada estado particular do mundo, as nações mais fortes tendem
a prevalecer sobre as mais fracas; e em certas particularidades
determinadas, as mais fortes tendem a ser as melhores.»

2.ª «Em cada nação, considerada á parte, o typo ou typos de caracter,
que, em certo logar e em certa epocha, são os mais attrahentes, tendem
a predominar; e o caracter mais attrahente, salvas algumas excepções, é
exactamente o que nós julgamos melhor caracter.»

3.ª «A intensidade d’esta concorrencia entre as nações e entre os
caracteres, não é devida, na maior parte das condições historicas, a
forças extrinsecas; mas em certas condições, como, por exemplo, as
que predominam hoje na parte mais influente do mundo, a intensidade
de ambas aquellas concorrencias teem augmentado por effeito de causas
d’essa ordem[46].»

Estas leis teem um grande fundo de verdade, e são abonadas por uma
grande copia de factos. Não são novas. Cremos que ainda ninguem leu a
historia, que não tenha induzido d’ella a consideração de que, na lucta
constante dos povos, das classes e das raças, prevalecem sempre as mais
fortes; e, como no animo de todos o movimento social é progressivo,
egualmente toda a gente tem concluido a legitimidade das victorias
alcançadas pelos elementos mais vigorosos e melhormente constituidos.

Bagehot invoca, como principal argumento da primeira these (unica que
procura demonstrar no livro citado) o progresso militar da humanidade,
desde a edade de pedra até aos ultimos factos da historia contemporanea.

Era talvez possivel objectar-lhe que, se a arte militar tem progredido
visivelmente, ao seu lado se tem desenvolvido muitas outras condições
sociaes incompativeis com o exercicio d’aquella arte; e que sendo a
occupação militar predominante nos povos antigos, as outras foram-se
differenciando e progredindo sobre ella, até que, desde o seculo XVI,
uma só classe foi destinada a esse encargo. Mas, seja esta a causa,
ou seja outra, a verdade é que, estando duas raças ou dois povos de
desegualissima cultura um em frente do outro, a lucta não tarda em
estabelecer-se, e a victoria pertence ao que é superior na escala da
civilisação; a verdade é que, ao passo que os barbaros supportavam
perfeitamente o contacto dos romanos, não obstante a cultura superior
d’estes, hoje os selvagens desapparecem diante dos povos civilisados.
Sirvam de exemplo os Australianos.

Liquidada, porém, esta lei da concorrencia entre as classes e entre
as nações, estabelecido que, no vasto theatro da sociedade humana, só
vivem, só se desenvolvem os organismos bem constituidos, resta saber a
qual lei obedecem estes na adquisição das qualidades vencedoras e no
seu ulterior desenvolvimento.

Talvez nos digam que, pela comparação das qualidades existentes nos
organismos que predominaram com as que tinham os organismos vencidos,
se póde tirar lição util e deduzir um ensinamento proficuo. Mas, em
primeiro logar, qual das qualidades importou o triumpho? Depois,
como essas qualidades não funccionam em meios perfeitamente eguaes,
antes ordinariamente diversissimos, qual o criterio para estatuir as
modificações necessarias?

       *       *       *       *       *

Nenhuma das formulas offerecidas para coordenar e explicar, n’uma
synthese suprema, os movimentos sociaes, satisfaz plenamente ás
exigencias da logica. Não satisfaz a de A. Comte, nem a de H. Spencer,
nem a de C. Darwin. Todas teem alguma verdade, e valem, por essa razão,
como leis empiricas d’um certo numero de factos ou como hypotheses,
mais ou menos plausiveis, no momento actual da sciencia. Mas importa
não as considerar d’outra maneira. Teem todas uma base commum, que, a
nosso ver, ha de resistir aos ataques dirigidos contra ellas, e ficar
como resultado definitivamente obtido para a sciencia pelos esforços de
todo este seculo: referimo’-nos ao methodo de observação que aquellas
escolas professam mais ou menos, e a que devem as suas mais valiosas
conclusões, e á comprehensão da biologia como antecedente necessario de
toda a sciencia social.

A direcção a seguir no estudo da politica afigura-se-nos perfeitamente
determinada. Não está liquidado que a evolução social depende,
em grande parte, de condições biologicas? que se transmittem
hereditariamente as grandes conquistas moraes da humanidade? que
o progresso é um facto natural? Não é á pura observação que se
devem as leis economicas e politicas que a nossa consciencia mais
firmemente acceita? Os systemas, que procuram estudar e resolver os
problemas sociaes por outra fórma logica, não estão irremediavelmente
desacreditados na opinião scientifica de quasi toda a gente culta?
Hartmann e Schopenhauer, por exemplo, toma-os alguem a serio? Ha
ainda alguem que pense em determinar _a priori_, mediante processos
ontologicos, as condições estaveis da felicidade humana? Não sabe toda
a gente que o methodo mixto, o que, deduzindo da consciencia o criterio
supremo d’uma philosophia, vai depois buscar a consagração experimental
d’elle na historia,--sacrifica irresistivelmente á sua preoccupação
mental a apreciação objectiva dos factos?

Das respostas devidas a todas estas perguntas resulta que é necessario,
que é urgente imprimir nos estudos politicos o cunho da mais completa
observação, e acabar por uma vez com o insensato proposito de _salvar_
os povos a puro esforço da imaginação, ou por meio de expedientes
cheios de _habilidade_ muitas vezes, mas sempre faltos de sciencia.

Uma mulher celebre disse que a politica não era, no presente estado
de cousas, mais do _que a arte de subir ao poder_. A definição é,
scientificamente, absurda, mas verdadeira como expressão da prática
politica em quasi todos os povos. Só vivem as nações que teem direito
a viver, e só teem este direito as que se collocam por iniciativa
propria na corrente de idéas e de factos do seu tempo. A lucta para a
existencia, tomada esta formula no seu mais amplo sentido moral, é uma
verdade incontestavel.

Por um astronomo, por um chimico, por um biologista, pullulam em toda
a parte cem politicos. A proporção seria em sentido contrario, se,
na consciencia publica, houvesse estas duas cousas: a comprehensão
scientifica das difficuldades sociologicas, e dignidade moral bastante
para se não assumir tão facilmente a suprema responsabilidade dos
destinos populares.

Hoje já ninguem duvida de que a resultante social tem por componentes
as acções dos individuos, que são reguladas em grandissima parte
pelas leis da vida, e que, para resolver grande numero dos problemas
da politica, importa estudal-as muito, consideral-as devidamente.
E não é este dos menores progressos realisados na sciencia d’este
seculo. A idéa vem de longe; já M. Agrippa, no seu famoso apologo,
comparava o organismo social ao organismo humano; mas a relação entre
os dois organismos passou d’uma analogia, explorada pela oratoria,
para uma determinação positiva, rigorosamente scientifica. A lucta
para a existencia e a selecção natural, que é um facto na historia,
tem uma explicação puramente biologica; a transmissão hereditaria das
qualidades e tendencias, mil vezes demonstrada, é á physiologia que
cumpre explical-a; a acção do meio cosmico sobre o organismo humano,
que, desde Montesquieu, é o logar commum de tantissimos philosophos
da historia, pertence, como these a desenvolver, á mesma sciencia.
A emigração, para citarmos um exemplo bem conhecido, resulta da
desproporção que se dá entre o augmento da população e a producção das
subsistencias, e é impossível comprehender as condições de tal problema
sem os dados fornecidos pela biologia.

Sabemos de alguns escriptores que teem feito d’aquelle principio a
mais antipathica applicação. Spencer reprova, com o tom mais aspero
da sua palavra, a protecção dada, individualmente ou pelo Estado, aos
miseraveis, aos invalidos, aos _máus_, significando por este termo
os inhabeis para o trabalho, os desprovidos das fortes qualidades
necessarias ao tráfego da vida; considera a caridade como uma
loucura e como um grande mal, porque o beneficio feito ao miseravel,
dá-lhe muitas vezes energia, fugaz, sim, mas bastante para crear uma
geração, fatalmente condemnada a soffrimentos de toda a ordem; e a sua
indignação vai ao ponto de affirmar que os que procedem assim, na plena
ignorancia das leis da vida, contrariam criminosamente _este trabalho
de eliminação natural de que a sociedade se serve para se purificar a
si propria_[47].

Esta phrase, ainda que a intelligencia a justifique na sua horrivel e
crua nitidez, dilacera o coração, repugna ao coração. Sobre aquelle
preceito de Lycurgo, que condemnava á morte as crianças aleijadas,
pesam mais de dois mil annos de reprovação geral. Se o sentimento
tem direitos a entrar nos problemas sociaes, é aqui que elle os faz
valer todos. Mas a causa dos desgraçados, seriamente compromettida no
tribunal da moderna sciencia, não está ainda perdida. A intelligencia
tem que oppôr á sentença que os fulmina, quer a decrete Spencer em nome
da biologia, quer a pronuncie Malthus em nome da economia politica.
Porventura a beneficencia bem entendida não póde, em grande numero de
casos, rehabilitar os incapazes, dos preguiçosos fazendo diligentes,
dos criminosos homens dignos, dos physicamente fracos homens válidos
e talvez robustos em toda a extensão d’este termo? Se é verdadeira
aquella doutrina, prova só contra os irremediavelmente incapazes. Mas,
concedido, por hypothese, que estes não devem ser amparados, de qual
criterio hemos de servir-nos para a qualificação das incapacidades?
Em alguns casos, facilmente se distingue; mas em muitos d’elles
toda a distincção é arbitraria. O arbitrario em cousas d’estas, que
incomportavel horror!

Outras applicações d’esta natureza teem sido produzidas. O defeito
commum de todas ellas é o de não considerarem a humanidade sob o seu
duplo aspecto egoista e sympathico ou altruista, como hoje se diz.
Mas os erros de logica na applicação dos principios da sciencia não
destroem estes. Prejudicam-os, mas não os annullam.

       *       *       *       *       *

Para nós, os povos do Occidente, nunca se fez sentir tão vivamente a
necessidade de resolvermos com inteira prudencia o problema da nossa
politica. As condições actuaes da Europa obrigam-nos, sob pena de
perdição inevitavel, a não preterirmos nenhum dos meios modernos com
que se desenvolvem e robustecem as nações. E esses meios só a sciencia
os ensina.

O pangermanismo e o panslavismo são duas ameaças terriveis. A Europa
salvou-se, na edade-media, luctando indefessamente contra as invasões
que a ameaçavam. Não ha hoje menos necessidade de nos premunirmos, as
nações de origem latina, contra a ambição desmesurada e recrescente da
Allemanha e da Russia, nossas naturaes inimigas.

Á hora a que escrevemos estas linhas, os slavos concentram-se em volta
da Russia, claramente indicada para nucleo da sua enorme nacionalidade,
e de certo não passará muito tempo sem que S. Petersburgo seja a
capital de todos elles. A Prussia, essa, reuniu já sob uma só bandeira
todos os povos allemães, á excepção dos que vivem sob o dominio da
Austria, o qual, de certo, não será muito longo,--e tão forte tem sido
a corrente dos allemães para a sua almejada unidade que até lhes não
serviram de embargo as mais radicaes differenças sociaes e religiosas!

A Polonia e a Turquia eram obstaculos á unidade germanica e á unidade
slava; mas que podiam valer dois povos, pessimamente administrados,
contra a torrente quasi invencivel de duas raças, possessas da ambição
de se engrandecerem? Nada. A Polonia acabou; a Turquia está em vesperas
do mesmo destino. A Europa occidental ainda ha de arrepender-se de
não ter obstado ao sacrificio da Polonia, assim como ha de soffrer
mais com a Russia do que soffreu com a Turquia. _Mieux vaut la morsure
d’un léopard que l’étreinte d’un spectre_, disse Victor Hugo. O futuro
dará razão á phrase do grande poeta. Por’ora aquelles dois colossos
preoccupam-se unicamente das suas respectivas nacionalidades; mas,
satisfeito esse plano, acredita alguem que está posto um limite ás
suas expansões, e que a força adquirida na lucta que teem suscitado
não ha de empregar-se no sentido do seu maior dominio, do seu maior
engrandecimento?...

Que póde servir de impedimento á extensão progressiva da raça
germanica, por exemplo? A biologia demonstra que, quando uma raça
não é forçada a conter-se nos limites da sua area geographica por
absoluta incompatibilidade com outras condições climatericas, a sua
força expansiva só póde ser reprimida pela falta de subsistencias, pela
esterilidade do solo. A Prussia comprehendeu isso, graças aos esforços
de Liebig, e, fazendo applicação dos melhores processos scientificos á
sua industria, é hoje a nação mais adiantada na agricultura, tem uma
producção muito superior ao seu consumo, e, uma vez lançada n’este
caminho, não cessa de explorar com admiravel tenacidade todas as suas
fontes de riqueza[48].

Egualmente, não ha obstaculos conhecidos que se opponham ao maior
desenvolvimento da raça slava. A Russia é um paiz essencialmente
agricola. A producção excede muitissimo o consumo, a população cresce
a olhos vistos nas regiões mais ferteis, como o _Tschornosjom_, o paiz
das terras negras, e a civilisação industrial, posto que incipiente,
pouco a pouco vai conduzindo os slavos á via das grandes transformações
sociaes. O meio geographico é excellente. A Russia é uma planicie
enorme, cortada por grandes rios, apta, pela variedade dos seus climas,
para todos os generos da cultura. A sua industria, logo que assuma
a energia, a independencia, a forte iniciativa de que dependem os
grandes emprehendimentos economicos, encontrará, na opulencia mineral
do seu solo, meios de fazer a mais assombrosa concorrencia aos centros
commerciaes do Occidente. «Pelas suas minas, pela sua industria apenas
suspeitada ainda (dizia ha pouco Franz Schrader[49] na _République
Française_), pelo seu ferro, pelos jazigos de carvão que possue e que
de futuro se descobrirem, pela sua situação no meio d’esta irradiação
de paizes, que, posto todos valham mais do que ella, todos d’ella
dependem mais ou menos,--a Russia póde chegar a representar um papel
importante no mundo moderno.»

Por outro lado o communismo russo tende a desapparecer[50], o que
é um claro symptoma de progresso, e, parallelamente a esse facto, a
consciencia slava não perde occasião de protestar contra as imposições,
demasiadamente _paternaes_, da politica do czar. Ainda ha pouco se
manifestou isso por occasião do famoso processo de Vera Zassoulitch. A
apreciação geral d’este processo pela imprensa europêa foi no sentido
de que a Russia estava repleta de vicios e n’uma podridão miseravel.
Não ha criterio mais falso. Vicios, tem-nos a Russia, e muitos, e muito
enraizados. Quem ignora isso?... Agora o que é menos exacto é que
aquelle povo esteja em via de esphacelamento. Não está. Não afaguemos
essa illusão. A philosophia dos ultimos factos, pertinentes á vida
intima d’aquella sociedade, é esta: a Russia agita-se; tanto melhor
para ella, tanto peior para nós...

Ora, á medida que a Russia progride assim nos augmentos physiologicos
da sua raça e na riqueza moral da sua civilisação; ao passo que a
Allemanha se encontra em tão propicias condições economicas, e imprime
nos seus destinos a força invencivel da sciencia, o que fazem as nações
do Occidente?

A França ainda póde oppôr-se a futuras invasões, porque é rica,
trabalhadora, tem uma industria florescente, e está resolvida a
governar-se scientificamente; mas a Italia, a Hespanha e Portugal,
estarão em condições felizes?...

A Italia, a grande nação antiga, que ha pouco emergiu do seu tumulo de
seculos, essa parece empenhada em imprimir na sua politica a nitidez
d’uma concepção artistica; mas nós e os nossos visinhos não queremos
por fórma alguma encravar a roda do nosso infortunio, do nosso longo
infortunio, para que contribuiram, por egual, os excessos do fanatismo
religioso, os exaggeros da monarchia absoluta, e o uso imprudente das
nossas faculdades conquistadoras.

Pois urge que nos resolvamos a romper com esta inercia que tão
tristemente nos caracterisa, com o empirismo politico que nos domina,
com este systema de não pensar no dia de ámanhã, com esta indifferença
por tudo e por todos, que nos está envenenando lentamente, mas
fatalmente.

_Não ha ordem nas idéas, nem prestigio nas pessoas_, dizia-nos ha pouco
um dos mais nobres caracteres que ahi se teem esmaltado na vida publica
d’este paiz.

Triste verdade, mas verdade innegavel!

Poderemos ainda salvar-nos? Não estaremos irremediavelmente perdidos?

Alexandre Herculano, nos ultimos annos da sua veneravel existencia,
descria inteiramente da nossa regeneração nacional. Nós, desalentados,
mas não succumbidos de todo, appellamos ainda para a sciencia. Se ella
não fizer o milagre, não sabemos de onde elle venha.


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] _Auguste Comte et la Philosophie Positive_, cap. 3.º, pag. 38 a
52. Esta opinião de Littré tem sido vivamente discutida, entendendo
muitos escriptores que remonta bem mais além a genealogia d’aquelle
pensamento. Vico, inspirado nos seus trabalhos da divisão, que,
segundo Herodoto, os egypcios fizeram dos seus annaes em _edade dos
deuses_, _edade dos heroes_ e _edade dos homens_, tem sido citado
muitas vezes como precursor de Augusto Comte na organisação da lei _dos
tres estados_. Ainda ultimamente o citou com este proposito o sr. dr.
Theophilo Braga, nos seus _Traços geraes de Philosophia Positiva_, pag.
33 e segg.

Stuart Mill sustenta que para a comprehensão perfeita d’aquella idéa,
que é a base fundamental da sociologia, contribuiram os mais poderosos
espiritos dos ultimos dois seculos. Eis o que elle diz: «Montesquieu,
o proprio Machiavel, Adam Smith, todos os economistas francezes e
inglezes, Bentham e os pensadores da sua escola, tinham a plena
convicção de que os phenomenos sociaes obedeciam a leis invariaveis, e
o seu grande trabalho, como philosophos especulativos, foi descobril-as
e demonstral-as. O que se póde dizer é que estes philosophos não foram
tão longe como A. Comte, descobrindo os methodos mais proprios para
pôr em toda a luz aquellas leis.» (_Stuart Mill_, _Auguste Comte et le
positivisme_, trad. do dr. Clemenceau, pag. 55 e 56).

Esta discussão, muitissimo importante sob o ponto de vista historico, é
interminavel. Todos teem razão e todos deixam de a ter.

Os grandes pensamentos não se improvisam; teem sempre uma genese mais
ou menos longa, mais ou menos lenta, e segundo fixamos de preferencia
um ou outro dos pontos salientes da sua determinação, assim nos vae
parecendo que é esta ou aquella a sua verdadeira origem. Confundimos
vulgarmente o principio com a phase. N’esta ordem de idéas somos
levados a crer que o melhor é datar a origem das leis scientificas,
não dos que remotamente as entreviram, mas dos que, aproveitando os
trabalhos precedentes e criticando-os com prudencia, projectaram sobre
ellas a luz d’uma boa demonstração. Pelo que, acceitamos neste ponto a
opinião de Littré exposta no texto.

[2] Vamos transcrever na integra a passagem de Turgot, que lhe valeu
aquella gloria: «Tous les âges sont enchaînées par une suite de
causes et d’effets qui lient l’état du monde à tous ceux qui l’ont
precede; les signes multipliés du langage et de l’écriture, en donnant
aux hommes le moyen de s’assurer la possession de leurs idées et de
les communiquer aux autres, ont formé, de toutes les connaissances
particulières, un trésor commun qu’une génération transmet à l’autre,
ainsi qu’un héritage toujours augmenté des découvertes de chaque
siècle; et le genre humain, considéré depuis son origine, paraît
aux yeux du philosophe un tout immense qui lui-même a, comme chaque
individu, son enfance et ses progrès. (_Deuxième Discours sur les
progrès successifs de l’esprit humain_, 1750, pag. 52, œuvres, Paris,
1808.)

[3] _Idée d’une histoire universelle au point de vue de l’humanité_
(1874), trad. de Littré. Este opusculo compõe-se de nove proposições
muito concisamente demonstradas. Littré (cit. pag. 53 e segg.) diz
que é desconhecido em França o opusculo de Kant. Esta affirmação foi
feita em 1864, e muito antes deviam ser conhecidas aquellas idéas do
philosopho allemão, ao menos pela exposição que d’ellas fez J. Willm,
na sua _Historia da philosophia allemã desde Kant até Hegel_, tom. 2.º,
pag. 62 e segg., ed. de 1847. Vid. esta obra, e o livro de Littré, de
pag. 53 a 70.

[4] _Tableau des progrès de l’esprit humain._

[5] Henri Taine, _Les origines de la France contemporaine_, tom. 1.º,
pag. 226 e segg.

[6] Cosmos, l. 75, cit. pelo sr. L. Coelho, _Elogio de Humboldt_, pag.
506.

[7] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 47, 48 e segg.

[8] H. Spencer, cit. pag. 49.

[9] Ernest Renan, _Les sciences de la nature et les Sciences
historiques, Revue des deux mondes_, 15 octobre, de 1863.

[10] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 35.

[11] Cit. pag. 31.

[12] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 32.

[13] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 38.

[14] Rom. XI, 34.

[15] Lib. 1.º _de Gen._, cap. XVI, cit. por Liebermann, _Inst. Theol._,
tom. 2.º, liv. 3.º, pag. 145.

[16] Cit. _Inst. Theol._, pag. 135.

[17] _Histoire de la phil. allemande depuis Kant jusqu’à Hegel_, pag.
334 e segg. do vol. 1.º.

[18] Job, XXIII, 13.

[19] Cit. I, 13.

[20] _Les Premiers principes_, trad. de M. E. Cazelles, 1.ª parte, até
pag. 132.

[21] Cit. pag. 20.

[22] Cit. pag. 23.

[23] _Cours de Phil. Posit., d’A. Comte_, préface d’un disciple, pag.
XLIV.

[24] _Cours de Philosophie Positive_, tom. 1.º, pag. 8 e 9.

[25] _Auguste Comte et la Phil. Positive_, pag. 50.

[26] _Fragments de Phil. Positive_, pag. 119.

[27] _Fragments de Philosophie Positive_ (_Paroles de Phil. Posit._),
pag. 119 e 120.

[28] _A. Comte et la P. Posit._, pag. 50 e 51.

[29] _Revue de la Phil. Posit._, tom. X e XI.

[30] _Revue de la Phil. Posit._, tom. XI, pag. 33.

[31] _Revue de la Phil. Posit._, tom. XI, pag. 32.

[32] _Les Sciences Naturelles_, pag. 222 e 223. Huxley traslada para
o seu livro o seguinte trecho de A. Comte (_P. Posit._, pag. 491,
vol. 4.º): «A proprement parler, la philosophie théologique, même
dans notre première enfance, individuelle ou sociale, n’a jamais pu
être rigoureusement universelle, c’est-à-dire que, pour les ordres
quelconques de phénomènes, _les faits les plus simples et les plus
communs ont toujours été regardés comme essentiellement assujettis à
des lois naturelles, au lieu d’être attribués à l’arbitraire volonté
des agents surnaturelles_. L’illustre Adam Smith a, par exemple,
très-heuresement remarqué dans ses essais philosophiques qu’on ne
trouvait, en aucun temps ni en aucun pays, un Dieu pour la pésanteur.
_Il en est ainsi, en général, même à l’égard des sujets les plus
compliqués, envers tous les phénomènes assez élémentaires et assez
familiers pour que la perfaite invariabilité de leurs relations
effectives ait toujours dû frapper spontanément l’observateur le
moins préparé._ Dans l’ordre moral et social, qu’une vaine opposition
voudrait aujourd’hui systématiquement interdire à la philosophie
positive, il y a eu nécessairement, en tout temps, la pensée des
lois naturelles, relativement aux plus simples phénomènes de la vie
journalière, comme l’exige évidemment la conduite générale de notre
existence réelle, individuelle ou sociale, qui n’aurait pu jamais
comporter aucune prévoyance quelconque, si tous les phénomènes humains
avaient été rigoureusement attribués á des agents surnaturels, puisque
dès lors la prière aurait logiquement constitué la seule ressource
imaginable pour influer sur le cours habituel des actions humaines. _On
doit même remarquer, à ce sujet, que c’est, au contraire, l’ébauche
spontanée des premières lois naturelles propres aux actes individuels
ou sociaux qui, fictivement transportée à tous les phénomènes du monde
extérieur, a d’abord fourni, d’après nos explications précédentes,
le vrai principe fondamental de la philosophie théologique. Ainsi,
le germe élémentaire de la philosophie positive est certainement
tout aussi primitif au fond que celui de la philosophie théologique
elle-même, quoiqu’il n’ait pu se développer que beaucoup plus tard,
etc._»

Foi d’estas palavras de Comte que Huxley tirou as conclusões indicadas
no texto. Huxley não se limitou a criticar a lei _comteana_;
quiz tambem, por sua vez, reduzir a uma formula superior todo o
desenvolvimento historico da humanidade. Como Littré, procurou
relacionar as phases do desenvolvimento individual com as da evolução
collectiva, e, por esta fórma, _racionalisar_ a sua theoria historica.

Segundo Huxley, logo desde a infancia a intelligencia humana reflecte
a natureza por dois modos: physicamente e anthropomorphicamente.
Quer dizer que o homem, nas primeiras edades, tem das cousas
uma comprehensão _positiva_, não se soccorre para as explicar a
personificações imaginarias, considera-as como factos ultimos e
contenta-se com isso; e que, ao lado d’esta condição mental, se
desenvolve uma outra, que consiste em suppôr animados d’uma natureza
semelhante á sua os seres humanos que o cercam. Este anthropomorphismo
estende-o depois a criança a outros objectos, menos semelhantes, mas em
algum ponto parecidos com ella. Mais tarde, a intelligencia do homem
reconhece o conflicto apparente entre as suas duas interpretações da
natureza,--a interpretação anthropomorphica e a interpretação physica;
e é então que elle ou adopta inteiramente aquella interpretação, e
desenvolve-se a tendencia theologica, ou acceita unicamente a segunda,
e desenvolve-se n’esse caso a tendencia scientifica, ou fica n’um _meio
termo_, que é o estado metaphysico.

O que é verdadeiro do desenvolvimento intellectual do individuo, tambem
o é, _mutatis mutandis_, do desenvolvimento da especie,--diz Huxley.
E procura demonstral-o. «O fetichismo, o culto dos antepassados e
dos heroes, a demonologia dos selvagens primitivos são para elles
os diversos modos de significar a crença nos espiritos e a sua
interpretação anthropomorphica dos insolitos acontecimentos que
a acompanham. A feitiçaria, a magia, traduzem praticamente estas
crenças... Nos progressos que a especie faz do estado selvagem para uma
civilisação adiantada, o anthropomorphismo, desenvolvendo-se, volve-se
em theologia, e o _physicismo_ em sciencia; mas estas duas tendencias
desenvolvem-se _simultanea_ e não _successivamente_.»

Depois, dilatam-se os dominios do physicismo, o _anthropomorphismo
refugia-se na sua ultima fortaleza, o proprio homem_, e as
philosophias, chegadas a um gráu superior de perfeição, é então que
começam a trabalhar sobre o maior dos problemas especulativos, o
problema ultimo, que póde formular-se d’este modo: _A natureza humana
possue um elemento de liberdade, o livre arbitrio das suas vontades,
condição essencialmente anthropomorphica; ou, em verdade, é necessario
consideral-a apenas como o mais curioso e o mais complicado dos
mechanismos do universo?_

Se nos não enganamos, Huxley não se logrou do seu intento de dar um
fundamento psychologico á lei empirica do desenvolvimento social.
Referir a tendencias psychologicas as differentes phases da evolução
historica, sem precisar d’um modo rigoroso a existencia d’essas
energias innatas, é deixar as difficuldades no pé em que estavam. Já
se sabia antes de Huxley que os factos historicos correspondiam a
_tendencias_ humanas; o que se não sabia, nem por ora se sabe, é o modo
de existencia e o processo de acção d’essas tendencias. Sem a resolução
d’estas difficuldades, é inevitavel o empirismo historico. Como A.
Comte, Huxley não _racionalisou_ a sua theoria, a qual, mesmo no ponto
de vista empirico, se nos afigura menos exacta. (V. _Les Sciences
Naturelles et les problèmes qu’elles font surgir_, de pag. 224 a 231.)

[33] _Les Premiers principes_, pag. 140.

[34] _Les Premiers principes_, pag. 149 e 150.

[35] _Les Premiers principes_, pag. 180.

[36] _Les Premiers principes_, pag. 424.

[37] _Premiers Principes_, Introduction du traducteur, de pag. XXXI a
XLVIII.

[38] Cit. pag. 359, not.

[39] _Les Premiers principes_, de pag. 355 a 378.

[40] E. Laugel, _Révue des deux mondes_, 15 février, 1864.

[41] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IX, pag. 368.

[42] _Charles Darwin et ses précurseurs français, étude sur le
transformisme_, de pag. 176 a 178.

[43] Cit. pag. 187.

[44] _Les Sciences Naturelles et les problèmes qu’elles font surgir_,
pag. 430.

[45] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IX, pag. 368.

[46] _Lois scientifiques du développement des nations_, W. Bagehot,
pagg. 47 e 48.

[47] _Introduction à la Science Sociale, Préparation par la biologie_,
pag. 369 e segg.

[48] André Sanson, _La loi d’extension des races, Revue de la Phil.
Posit._, tom. XIII.

[49] _Feuilleton de la République Française du 15 mars 1878._

[50] Wyrouboff. _Le communisme russe, Revue de la Philosophie
Positive_, tom. VII.



CAPITULO I

 =Summario.=--A questão da _extensão do suffragio_ é actual e difficil.
 Data da revolução franceza de 1848 a sua maior importancia prática,
 mas a origem d’ella, no ponto de vista moderno, vem de 1790. Summula
 da legislação revolucionaria de 1780 a 1793. Napoleão III e o
 suffragio universal. Corrupção politica do segundo imperio. Juizo
 de E. Olivier.--Proudhon e o regimen representativo. Argumentos de
 Proudhon contra elle, e contra os systemas de _legislação directa_,
 propostos por Considérant, Rittinghausen e Ledru-Rollin. Porque não
 discutimos a doutrina de Proudhon.--A metaphysica na questão do
 suffragio: Rousseau, Diderot, Royer-Collard e Guizot. Antimonias
 irreductiveis nos systemas d’estes philosophos. O suffragio é um
 facto, não é uma theoria. Genese historica d’esse facto desde
 a organisação politica de Athenas até aos nossos dias.--Assim
 considerado o suffragio, a que condições deve satisfazer para ser
 valido e legitimo. Se a instrucção resolve opportuna e efficazmente
 o problema. Resposta negativa. Idéas de Laboulaye, S. Mill e
 Littré. Opinião de Spencer sobre os effeitos moraes da educação.--A
 instituição do suffragio só é possivel, dadas estas duas cousas: a
 mais larga descentralisação administrativa, e a sensata combinação
 das duas fórmas do voto, directa e indirecta. Opiniões de Wirouboff,
 de S. Mill e de E. Naville. Valor logico e discussão critica d’estas
 duas objecções: a descentralisação não a improvisa a lei, fórma-a
 a historia,--o suffragio indirecto repugna ao genio da democracia.
 Conclusão.


É difficil encontrar em direito publico instituição mais calorosamente
questionada do que a da _extensão do suffragio_. A ninguem se permitte
que não tenha sobre esta materia uma opinião assente, na beatifica
supposição de que o problema que ella envolve é extremamente simples
e facil. Sobre assumptos d’outra ordem, em geral, sómente julgam os
homens da respectiva especialidade; mas sobre esta, ou sobre outra
qualquer questão politica, ainda a mais complexa, ouvem-se em toda a
parte decisões peremptorias, terminantes, dogmaticas, sempre proferidas
com firmeza, desde a officina do artista até aos salões d’um parlamento.

Ninguem escapa a este maldicto furor de decidir impensadamente
questões sociaes, por mais intrincadas que sejam, por mais delicadas
que pareçam. Os espiritos mais fortemente temperados na rigorosa
educação das sciencias naturaes, esses mesmos, tão prudentes, tão
conscienciosos, tão disciplinados pelo seu methodo, logo que se lhes
depara uma difficuldade de sociologia não podem comsigo que lhe não
dêem immediatamente uma resolução irrevogavel, definitiva!

Como observa H. Spencer[51], um sabio que, para resolver o problema
das manchas do sol e da constituição que elles lhe suppõem, tenha
versado pacientemente todas as theorias, verificando todos os
factos, discutindo todos os pontos, precavendo-se contra todos os
erros,--chamado a dar a sua opinião sobre qualquer questão economica
ou politica, responderá logo, sem hesitar um momento, como se isto
fosse objecto de pura intuição immediata. E todavia é liquido em
boa philosophia que as deducções scientificas se vão difficultando
gradualmente, a par e passo que augmentam de complexidão e de variedade
os factos de que se trata!

É desde 1848 que data a maior importancia especulativa e prática da
_extensão do suffragio_. Como é sabido, a revolução de fevereiro d’esse
anno realisou na França a universalidade do suffragio. A revolução
desencadeou-se aos gritos de _viva a reforma eleitoral_, e os homens
que tomaram a direcção suprema d’aquelle movimento, a primeira cousa
que fizeram foi dar satisfação a essa exigencia popular, que se
manifestava com intensidade correspondente á forte repressão que, por
muitos annos, soffrera da parte da monarchia de julho.

A França tem sido, e provavelmente será ainda por muito tempo, o
laboratorio das primeiras experiencias sociologicas. A sua preeminencia
entre os povos de origem latina, o seu grande desenvolvimento
scientifico, e, sobre tudo, o seu genio revolucionario explicam
sufficientemente esse facto. A França é, essencialmente, o paiz da
revolução.

Antes d’aquelle movimento democratico, que foi uma brilhante negação do
_doutrinarismo_ na politica, e uma vivaz reminiscencia das esquecidas
idéas de Rousseau, o suffragio universal era um thema de discussões
mais ou menos interessantes; depois d’aquelle facto ficou sendo a base
fundamental da politica franceza, e, para todos os outros povos, uma
surgente continua de aspirações e de receios.

Mas a idéa vinha de longe. Em 1848 não tinha menos de 55 annos de
duração. Como era natural, os revolucionarios de 1789 preoccuparam-se
desde todo o principio com o modo de fazer representar o povo, cujos
direitos estavam resolvidos a vingar e defender. O art. 29, da
_Declaração dos direitos do homem e do cidadão_, diz: _Chaque citoyen a
un droit égal de concourir à la formation de la loi, et à la nomination
de ses mandataires ou de ses agents_.

Cousa notavel! De tal intensidade era aquelle pensamento no espirito
dos revolucionarios francezes que, no curto espaço de quatro annos, o
systema eleitoral percorreu quasi todo o cyclo das combinações logicas
a que elle se presta!

Assim a lei de 22 de dezembro de 1789, um dos primeiros actos da
Assembléa Constituinte, estabeleceu o suffragio restricto, em dois
gráus, exigindo para o exercicio do direito eleitoral as multiplas
qualidades de _cidadão activo_, e para a elegibilidade no segundo
gráu uma forte contribuição directa e a posse de alguma propriedade
territorial. Combatida por Grégoire, Péthion, Robespierre, Camille
Desmoulins e outros homens de egual plana, que se insurgiram nobremente
contra a aristocracia do dinheiro, consagrada n’aquelle documento, e
contra a grande comprehensão da _actividade politica_, exigida para
o direito do voto nas assembléas primarias,--a lei de 22 de dezembro
foi depurada das suas maiores imperfeições e, depois, copiada na
Constituição de 1791. Este systema serviu para a formação da Assembléa
Legislativa, reunida em Versailles no 1.º de outubro d’esse anno. A
Convenção, que se lhe seguiu pouco depois, já foi eleita por outra
fórma, constante do decreto de 10 de agosto de 1792. Este novo systema,
supprimindo a distincção dos cidadãos em _activos_ e _não activos_,
acabando com o censo como base para o exercicio do voto, suavisando
muito as condições da elegibilidade, estendendo ás colonias francezas
o direito de suffragio, realisou um grande progresso sobre os systemas
antecedentemente apresentados. Por ultimo, a Constituição de 24 de
junho de 1793, redigida pela Convenção, aproveitando, sobre materia
eleitoral, o que havia de mais avançado no decreto de 10 de agosto,
accrescentou ao suffragio, já estatuido na sua maior extensão, a
qualidade de _directo_, que desde o principio lhe tinha sido negada.

A Constituição de 24 de junho consagra, pela primeira vez na
historia, o suffragio universal directo. Eis o texto respectivo: _Le
peuple souverain est l’universalité des citoyens français. Il nomme
immédiatement ses députés..._ (artt. 7 e 8). Mas esta reforma não
chegou a ser experimentada. Suspensa pelo decreto de 11 de outubro
de 1793, e prejudicada pelos notaveis acontecimentos que se seguiram
áquella data, a Constituição de 24 de junho não passou do papel[52].

Á revolução de 1848 coube a missão de resuscitar o pensamento da
Convenção sobre o direito eleitoral. Nem ella, a revolução de
fevereiro, fructeou, a bem dizer, outra cousa determinada e permanente.
Permanente, sim, porque o pensamento do decreto de 5 de março de
1848, que estabeleceu o suffragio universal e directo para a eleição
da Assembléa Nacional, sophismado pela lei de 31 de maio de 1850,
que, exigindo para o exercicio do voto o domicilio de tres annos,
excluiu da liberdade politica 3 milhões de eleitores; hypocritamente
restituido por Luiz Bonaparte no plebiscito de 20 e 21 de dezembro de
1851, nas eleições e no famoso plebiscito de 1852; esmagado sob a mais
forte pressão durante o imperio, sem as grandes luzes que a liberdade
recebe do comicio e da imprensa; aquelle pensamento, indevidamente
comprehendido e falsamente realisado, ficou comtudo sendo a base
fundamental do direito publico francez.

Da lei de 31 de maio disse Victor Hugo esta phrase celebre: «_Depuis
que l’histoire existe, c’est la prémière fois que la loi donne
rendez-vous à la guerre civile_.» Enganava-se. Atraz d’essa lei estava
o demonio da astucia politica a rir-se das ingenuas affirmações
conservadoras de Thiers e dos outros que a sustentavam de boa fé,
porque sabia, melhor que ninguem, os _habeis_ processos de utilisar em
seu proprio interesse aquelle desgraçado documento legislativo. E foi
o que fez. O auctor do _golpe de Estado_ de 2 de dezembro pretextou,
para justificar-se, a lei de 31 de maio, e, restabelecendo o suffragio
universal, adquiriu auctoridade e força que por outro modo não teria
conciliado. Depois, corrupto até á medulla, facil lhe foi contrastal-o
efficazmente com aquillo que elle chamava, nos documentos officiaes,
_actos protectores da liberdade dos cidadãos_!

Fez escola, e a peor das escolas, este moedeiro falso do suffragio.
A violencia no governo, a perseguição systematica, é um expediente
brutal, mas dura pouco. A reacção não se faz esperar muito. Sirvam
de exemplo a attitude revolucionaria de Portugal contra a dominação
imprudente do conde de Thomar, e o que a Hespanha fez contra o governo
cruel e militarista de D. Isabel de Bourbon. Mas a corrupção, a
compra de consciencias, a traficancia eleitoral, o cynismo politico,
são cousas mais terriveis e mais fataes. Quando um povo respira
n’uma atmosphera assim viciada, ou tem contados os seus dias, ou,
para salvar-se, ha de passar por provas difficillimas, por commoções
violentas, que, sacudindo-o bruscamente, lhe dêem a percepção nitida do
seu estado e a energia necessaria para as firmes resoluções conscientes
e dignas. Póde servir de argumento a regeneração democratica da França
depois do desastre de Sédan.

Ninguem ainda descreveu tão perfeitamente essa phase morbida da
politica como E. Olivier. A auctoridade é insuspeita, porque E. Olivier
é conservador. Eis as suas palavras: _Prefiro a violencia á corrupção;
tremer é menos aviltante do que vender-se. Contra a violencia resistem
as nações; da corrupção, não se erguem, não se salvam nunca. Até para
o poder é menos desastroso o effeito da violencia: quando o governo a
emprega, sabe as contas que tem de dar na camara; quando sómente se
soccorre á corrupção, acaba por se persuadir de que a camara falla em
nome do paiz, esquecendo-se de que ella representa tanto a verdadeira
vontade do paiz, como um thermometro indica o verdadeiro gráu de
temperatura, quando o que o consulta lhe communica calor artificial
pela pressão das suas mãos..._[53]

       *       *       *       *       *

Voltemos ao suffragio universal.

Esta these suppõe resolvida previamente a do systema representativo.
Não queremos decretar foros de axiomatica a esta ultima, visto que
lhe não teem faltado contradictores, mas só muito de passagem a
consideraremos agora, em parte porque ella não soffre importantes
contestações, e em parte porque a indole d’este capitulo nos obriga a
attenção para outros assumptos.

O systema representativo é um mal necessario. Porque o povo não póde
dirigir, elle proprio, todos os negocios da administração publica, tem
de delegar em alguns cidadãos da sua escolha o encargo especial do
seu governe. É o que acontece em todos os paizes cultos, á excepção
dos quatro cantões suissos--Uri, Unterwald, Glaris e Appenzell, que
são regidos por systemas puramente democraticos, exercendo ahi o
povo, em liberrimos comicios, as funcções do seu poder legislativo.
A pequena extensão do seu territorio e o numero insignificante
dos seus habitantes permittem-lhes o exercicio facil e commodo do
_self-government_, em todo o rigor do termo.

Em Unterwald, Uri e Appenzell, os cidadãos approvam ou regeitam
simplesmente as propostas de lei que lhes são apresentadas; mas no
cantão de Glaris, o povo tem o direito de adoptar, modificar ou
rejeitar os projectos de lei, seja qual for o seu objecto.

É o mais perfeito exemplar de democracia pura que conhecemos. É quasi
profanação comparar-lhe o governo de Athenas, que era sómente exercido
por uma pequena parte da sua população, não tendo ingerencia activa
n’elle, além d’uma classe especial de cidadãos livres, os escravos que
sustentavam com o seu trabalho a soberana ociosidade dos seus senhores.
Vinte mil cidadãos tumultuavam na _ágora_ em plena paixão politica,
mas, a puro beneficio d’estes, labutavam indefessamente quatrocentos
mil homens! N’outras condições economicas aquelle regimen não teria
sido possivel.

O systema representativo, ou o governo do povo pelos seus delegados,
foi vivamente combatido por Proudhon. Raramente se encontra uma
instituição social a que elle não applicasse a sua critica profunda e
destruidora. Não lhe escapou aquella fórma politica. Auctor da celebre
phrase: _A republica está acima do suffragio universal_, phrase tão
vivamente discutida em França desde 1850, Proudhon nega abertamente
a utilidade do voto popular[54]. Affirmando o facto das continuas
illusões do povo a respeito dos seus escolhidos, dos quaes apenas
um entre dez procede honestamente, declara a sua absoluta descrença
pelo que elle chama a intuição divinatoria da multidão. Se o cidadão
tem de manifestar a sua vontade, e póde fazel-o por si, porque ha de
recorrer a um intermediario? Previne as objecções que possam fazer-lhe,
inspiradas na consideração da divisão do trabalho e da probabilidade
de acerto n’uma corporação de representantes eleitos pelo povo, e
responde-lhes por este modo: «_L’élection ni le vote, même unanimes,
ne résolvent rien. Depuis soixante ans que nous les pratiquons à tous
les degrès l’un et l’autre, qu’avons nous fini? Qu’avons nous seulement
défini? Quelle lumière le peuple a-t-il obtenue de ses assemblées?
Quelles garanties a-t-il conquises? Quand on lui ferait réitérer,
dix fois l’an, son mandat, renouveler tous les mois ses officiers
municipaux et ses juges, cela ajouterait-il un centime à son revenu? En
serait il plus sûr, chaque soir en se couchant, d’avoir le lendemain
de quoi manger, de quoi nourrir ses enfants? Pourrait-il seulement
répondre qu’on ne viendra pas l’arrêter, le trainer en prison?_»

Eis aqui todo o pensamento de Proudhon. Não quer a representação
politica por estes dois motivos: primeiro, porque os cidadãos podem
intervir directamente na sua propria administração; segundo, porque o
suffragio mais extenso, a prática constitucional mais pura, o systema
mais perfeito de representação são impotentes para acabar d’uma vez
com as grandes privações economicas e moraes do povo. É esta segunda
consideração o que mais o preoccupa, e como, no seu entender, o
principio de auctoridade, transferido historicamente da familia para
o Estado, contraría essencialmente o verdadeiro progresso social da
humanidade, Proudhon conclue por oppôr a todos os planos de governação
politica estes dois pensamentos que são capitaes em toda a sua
philosophia: suppressão completa da auctoridade, que só é legitima na
familia,--substituição, em toda a reforma social, da idéa de governo
pela idéa de contracto.

O systema de _legislação directa_, proposto e definido por
Rittinghausen e Considérant, que queriam a intervenção immediata dos
cidadãos na formação das leis, e a conhecida theoria de Lédru-Rollin,
que sustentava tambem a intervenção legislativa do povo nas questões
geraes, mas deixava os negocios particulares a cargo dos ministros e
da Assembléa,--não satisfaziam ás exigencias logicas de Proudhon. Não
passavam, segundo elle, de doutrinas timidas, confusas, inconsequentes.

Não pertencemos ao numero dos que, expondo uma doutrina boa ou má, uma
doutrina que os enthusiasma ou uma doutrina que os irrita, se limitam
a dizer: «Ella ahi está; conhecel-a é acceital-a ou rejeital-a sem
hesitação. Quando as cousas se apresentam d’este modo, a critica é
inutil.» Isto não é calmo, nem é justo, e a critica, digna d’este nome,
não póde dispensar nenhuma d’estas qualidades. Na hypothese actual,
porém, forçados pela indole d’este trabalho, temos necessidade de fazer
cousa como isso.

Proudhon é a mais poderosa encarnação da logica em todo este seculo.
D’elle disse Sainte-Beuve, _que fazia suar agua e sangue aos seus
adversarios_; podemos accrescentar que o campo das suas luctas, a
sciencia social, ainda tem abertos muitos dos sulcos profundos,
arados pelo seu genio devastador, e que não é talvez para este
seculo o pospôr, a todas as suas formidaveis interrogações criticas,
a resposta que ellas exigem. Pela indole peculiar do seu caracter,
é impossivel arrancar do seu systema uma ou outra idéa parcial, e
analysal-a conscienciosamente, sem considerar ao mesmo tempo a traça
architectonica de toda a sua obra. Na politica, querendo interpretar
e corrigir João Jacques, foi anarchista; na economia politica,
enfeixando no seu methodo, quasi sempre com alguma incoherencia,
os processos logicos de Kant, de Hegel e de A. Comte, invocando a
philosophia, servindo-se da historia, levou a sua doutrina até ao
extremo socialismo egualitario, isto é, conjunctamente anti-capitalista
e anti-governamental.

N’estas condições, Proudhon, combatendo o suffragio universal e ainda
a _legislação directa_, lançando á margem todas as theorias politicas,
estava muito na logica do seu pensamento; o seu pensamento, esse é que
não estava na corrente da historia, nas forças legitimas da sciencia
nem na verdade das cousas. Mas nós não podemos acompanhal-o agora nos
longos e enredados labyrinthos do seu raciocinio, e, tendo formulado as
conclusões extremas a que elle chegou, por esse facto nos desobrigamos
de tudo mais.

Está fóra dos que devem ser ouvidos na discussão do suffragio universal.

       *       *       *       *       *

Entrando no ámago da questão, encontramos logo uma selva immensa de
opiniões, que, posto partam da mesma origem, e se formem pelo mesmo
processo logico, divergem infinitamente umas das outras. Referimo’-nos
ás que procuram inspirar-se da só natureza do homem, e, por isso, são
formadas deductivamente.

O suffragio, diz-se em todas essas escolas, é o exercicio do direito de
_soberania_, e deve reflectir-lhe inteiramente a indole e o alcance.

N’isto, pleno accordo; a divergencia começa logo que procura
liquidar-se o que seja a soberania social. É a vontade geral, como
querem os discipulos de Rousseau? É a egualdade de intelligencia em
todos os homens, como paradoxalmente sustentava Diderot? É a razão
esclarecida, como entendem os doutrinarios, tendo á sua frente Guizot e
Royer-Collard?... Claro está que pomos de parte os systemas que vêem na
soberania uma determinação directa da providencia. Sobre taes systemas
pesam já bons dois séculos de sciencia e de critica. Redivivos nos
esforços de alguns homens, teem sómente o respeito devido á boa fé, que
lhes suppomos.

Os que baseam a soberania na vontade, concluem, e bem, pelo suffragio
universal: onde houver uma vontade, ahi deve haver o direito de
manifestar-se efficazmente a respeito dos assumptos que directa ou
indirectamente a interessam. Os que sustentam que é a razão o unico
fundamento da soberania, bradam que deve restringir-se o suffragio
sob a influencia d’aquelle criterio. Logica, perfeita logica n’uns
e n’outros. Se os principios são verdadeiros, não ha mais legitimas
consequencias.

Mas são verdadeiros os principios? Não. São puramente arbitrarios,
porque a soberania social, tomada na accepção metaphysica que elles lhe
dão, é uma ficção, uma perfeita ficção.

Com a soberania da vontade temos o contrasenso de se estender a
soberania a cidadãos que a não querem, porque a não comprehendem; com
a soberania da razão, decide uma pequena fracção da sociedade dos
destinos de toda ella, sem criterio definido, com poderes illimitados.
Com aquella, põem-se em equação a mais profunda inepcia e a mais
subida cultura intellectual; com esta, que reduz a soberania ás meras
proporções d’um mandato, ha sempre logar a perguntar-se pelo titulo
d’esse contracto, pelo documento que o auctorisa.

A revolução franceza de 1789 traduziu este ultimo systema: Robespierre
e Danton inspiraram-se d’elle nas suas palavras e nos seus actos. A
revolução de fevereiro de 1848, iniciou-se tambem com actos d’essa
mesma ordem; só depois foi que caminhou no sentido do primeiro systema,
até que, explorada e illudida pelos seus inimigos, commetteu as
imprudencias de que lhe resultou o desprestigio e a desgraça.

Os revolucionarios de 1848, que tinham na consciencia a idéa do
suffragio universal, proclamavam a soberania da multidão, e faziam
do numero o criterio da justiça, consultaram porventura o povo e
operaram com consentimento d’elle nos primeiros e mais importantes dias
d’aquelle periodo, quando se apossaram das Tulherias, e castigaram com
o exilio forçado a impenitencia politica do velho rei Luiz Philippe?
Não. Proudhon, que notou esta contradicção, foi até julgar provavel
que, se o povo fosse consultado n’esses dias, o suffragio universal não
seria pela republica.

Ser soberano, segundo a etymologia do termo, é _estar de cima_, é
governar, é mandar; ser soberana uma sociedade vale o mesmo que
governar-se ella, mandar ella em si, dirigir ella propria os seus
destinos.

Porque é soberana a sociedade de hoje, e não se dizia soberana, nem
se tinha por tal a sociedade de ha um seculo? Porque as sociedades
anteriores á revolução franceza, fosse qual fosse a sua instituição e a
fórma do seu governo, faziam da soberania o privilegio d’uma familia ou
d’uma classe, e não o direito de todos os homens independentemente dos
accidentes da riqueza, do nascimento ou da posição.

Hão de responder-nos áquella pergunta do seguinte modo: a profunda
ignorancia das massas populares, e a oppressão exercida sobre ellas
pelos que lhes lucravam fartamente as trevas da intelligencia e o
servilismo da vontade, eis o motivo porque só, transcorridos alguns
mil annos, o povo teve consciencia d’este seu natural e inalienavel
direito; mas a corrente da historia tem sido sempre no sentido da
progressiva libertação da humanidade, e ahi está a confirmação
experimental, irrecusavel, d’aquelle principio.

Pondo de parte esta intenção calculada das classes superiores, que foi
um bom expediente revolucionario, mas hoje, em philosophia da historia,
não se logra de justificação alguma,--parece-nos que não teem melhor
resposta para nos dar, e que nós a não podiamos, a final, desejar
melhor.

Aquellas palavras querem dizer: no actual momento os povos (os povos
d’uma certa cultura, já se vê) entendem que lhes pertence intervir
directamente na sua administração politica, e realmente interveem
n’ella. Muito bem. Acceitamos esse fundamento do suffragio, e, sem
o modificar na sua essencia, vamos dar-lhe esta formula, que se nos
afigura mais clara: O direito de suffragio é uma instituição pratica,
um facto, um phenomeno irrecusavel, que se manifesta nas sociedades
modernas sob variadas fórmas e com differente extensão; é um producto
da historia, desegual nos differentes povos que ella impulsiona e educa.

A razão, a vontade, a educação, o meio, mil causas, emfim, produziram
este estado. Acceitando-o como elle é, tratemos de estudar as melhores
condições do seu mais util exercicio. N’este momento, e posto assim o
problema, não nos preoccupa a maior ou menor extensão do suffragio. A
resolução que meditamos dar-lhe aproveita quer elle seja universal como
na França, na Suissa e nos Estados Unidos, quer elle seja restricto
pelo censo, pela instrucção, ou por uma e outra cousa, como na maior
parte das nações.

Dado o suffragio como um facto positivo e ineluctavel, que interesse
nos vem de questionarmos se elle traduz nas instituições a egual
vontade de todos os homens, a sua egual intelligencia, ou a emancipação
do seu espirito pelas luzes da instrucção? Qual povo consentiria hoje
que lhe tirassem a liberdade politica, ou mesmo lh’a diminuissem por
qualquer fórma? Nenhum. O suffragio, bom ou máu, justo ou injusto, util
ou inconveniente, é um facto adquirido, é um facto consummado; assim é
que é necessário consideral-o, sob pena de nos perdermos n’um dédalo de
diversões phantasticas e estereis.

É um perfeito resultado da evolução historica. Na antiguidade, Athenas
dá-nos o primeiro exemplo d’uma democracia, não moldada pelas fórmas
da democracia actual, mas como a podia produzir o espirito d’aquelle
tempo. Roma, conquistando a Grecia, afogou na sua organisação unitaria
o caracter liberal dos conquistados. O suffragio não apparece lá,
desde a formação do imperio. Nos primeiros tempos da republica, ainda
a liberdade politica tentou alguns ensaios felizes; o _forum_ teve
os seus dias de gloria. Depois, á medida que a conquista dilatou os
dominios d’aquelle povo, a heterogeneidade dos elementos que se lhe
encorporaram foi um obstaculo cada vez maior á solidariedade convicta
de todas as provincias e colonias no interesse commum da politica e,
por isso, fatalmente tiveram ellas de ser regidas pela mais pesada
centralisação administrativa.

Aquella phrase de Galba, citada por Littré[55]: _Dignus eram a quo
respublica inciperet_, ainda que elle ou os seus successores a
quizessem realisar, nunca passaria d’um bom acto de consciencia,
sympathico mas impossivel de effectuar-se.

O christianismo teve a gloria de resolver essa difficuldade, creando
um pensamento novo, e uma nova organisação pratica, cujos traços é
inutil procurar na pura economia social dos romanos. «_La seule issue
que le génie humain trouva dans cette difficile situation fut par le
christianisme et par l’Eglise. Là le suffrage renaquit, et avec lui,
les assemblées. Les conciles donnèrent des lois et un gouvernement
spirituel à un monde qui s’effondrait temporellement._[56]» Depois, na
edade-média, o suffragio assumiu a fórma aristocratica e com ella se
conservou por longo tempo, até que a evolução economica e intellectual,
começada com a introducção na Europa da sciencia grega pelos arabes,
e continuada pela emancipação das communas, acabando com a servidão,
foi pouco a pouco destruindo os privilegios da aristocracia, e
approximando-se cada vez mais da egualação civil de todos os homens.

Da egualdade civil á egualdade politica a distancia é curta. A primeira
levou seculos a realisar-se; a segunda, grandemente favorecida pelo
progresso das sciencias e pelos desacertos do velho regimen, de pouco
tempo necessitou para romper a couraça feudal que a opprimia, e vencer
as ultimas resistencias do passado. Bastou-lhe para isso o curto
periodo da revolução franceza.

Eis ahi como a democracia, e a instituição do suffragio, que é a sua
essencialissima condição pratica, teem vindo até nós. Não são um
improviso da philosophia; são um resultado da historia.

Já acima dissemos que o nosso dever é acceitar o facto da liberdade
politica, e procurar os meios da sua melhor e mais util manifestação.

Para isso, que fazer?

Instruir o povo, levar a educação civil e moral a toda a parte, fazer
do estudo uma obrigação juridica, altear o mestre-escola a verdadeiro
sacerdote da religião politica, etc.

Eis a mais usual de todas as respostas áquella pergunta. A imprensa e
a tribuna apregoam a todas as vozes aquella idéa. Os partidos liberaes
fazem da instrucção obrigatoria um pomposo artigo de programma. Os
miseros professores de aldêa, á mingua d’uma realidade soffrivel,
dão-se aos mais doces devaneios ante a perspectiva de tão bom e tão
annunciado futuro! Os homens mais graduados nas modernas escolas
sociaes professam exactissimamente a mesma doutrina em relação a este
problema: todos querem a instrucção para base do suffragio, todos
entendem que a instrucção largamente diffundida tira á democracia
popular os seus mais duros attritos. Laboulaye, que está bem em
condições de personalisar a metaphysica social, Littré, que é o chefe
do positivismo francez, Stuart Mill, que representa altamente a escola
philosophica ingleza,--estão de pleno accordo n’este ponto.

«Que vem a ser um governo fundado no suffragio universal? Imagina
alguem virtudes magicas no numero, e que basta reunir, congregar
homens, para desde logo os tornar infalliveis? Não tem havido
democracias violentas, injustas, tyrannicas? Não ha mil exemplos de
povos que se serviram do seu voto para arruinarem a liberdade, e se
despedaçarem depois uns aos outros? O suffragio universal só é bom
com esta condição: a de ser a maioria dos cidadãos sabia, moderada,
amiga da justiça e da verdade. D’onde póde vir esta sabedoria, senão
da educação? Onde se hão visto democracias razoaveis, a não ser na
Hollanda, na Suissa, nos Estados Unidos, isto é, nos paizes em que a
instrucção popular é olhada como o primeiro interesse e o primeiro
dever do governo?[57]»

Podiamos observar desde já que, se este distincto escriptor tem a peito
encontrar um processo qualquer para tornar os homens infalliveis; se
só quer o suffragio universal, dada a sabedoria dos povos, não é muito
coherente appellando, no final dos seus argumentos, para a Hollanda,
para a Suissa e para os Estados Unidos. Serão infalliveis esses povos?
Serão, ao menos, sabios?...

Bem sabemos que aquillo é um modo de dizer; mas, descontados os
excessos do enthusiasmo, ainda nos parece pouco logica a conclusão.
A unica a deduzir é esta: pois que a instrucção necessaria para
a pratica sensata do suffragio universal não existe, o suffragio
universal é impossivel. Em tal caso nós, ampliando ao voto restricto
aquella conclusão, como era de justiça, limitar-nos-iamos a dizer: mas
o suffragio mais ou menos extenso não ha forças que o arranquem aos
povos; mas não se trata de estabelecer o suffragio, trata-se unicamente
de regular as condições do seu exercicio; mas o que se deseja saber
é, não o modo ideal de realisar a liberdade politica, mas sim o meio
pratico, immediato, de fazer d’esse facto, que é legitimo porque vem
na corrente da historia, uma condição válida e seria do progresso
social. E esse ideal da instrucção, se é realisavel, vem tão longe!...

Eis como o sr. Littré se exprime sobre este assumpto: «Sem uma educação
proporcional o suffragio universal torna-se inerte, inteiramente falto
de impulsão propria. A par e passo que o suffragio se vá generalisando,
importa que a educação publica se vá egualmente diffundindo. São duas
forças que se completam uma pela outra. Da parte dos homens de 1848
foi, sem duvida, uma grande falta a de não terem posto ao suffragio
universal uma restricção: a de saber ler e escrever, por exemplo[58].»

Stuart Mill pensa como os srs. Laboulaye e Littré. Como elles, sustenta
a exclusão dos analphabetos, julga absurdo dar a um homem totalmente
ignorante a faculdade de governar pelo seu voto os outros, e _põe no
ensino universal a verdadeira base do suffragio universal_[59]. São
muito conhecidas as opiniões e as palavras de Stuart Mill, e, por isso,
não as transcrevemos para aqui.

Não ha theoria mais seductora, mas também a não ha mais enganosa. Vamos
demonstrar isto.

Em primeiro logar, a instrucção de ler, escrever e contar não fructea,
não póde fructear o resultado que d’ella se espera; mas, concedido por
um momento que ella tem essa virtude, quem não vê que só n’um futuro
remoto é que ella póde existir n’aquellas condições, e que o suffragio
universal é já em algumas nações um facto positivo, uma instituição em
exercicio, e, onde não existe o suffragio universal, ha a liberdade
politica n’uma extensão muito proxima da universalidade?

Ora não se trata das condições do estabelecimento do suffragio n’um
futuro mais ou menos proximo; acceitando o facto da sua existencia,
trata-se de regular convenientemente o modo pratico do seu exercicio.
É para nós tão importante esta idéa, que nos não parece demasiada esta
nossa insistencia em a exprimir muitas vezes.

Vamos por partes.

Da instrucção popular esperam-se estes dois resultados: dar
conhecimento sufficiente das doutrinas que se discutem nas luctas
eleitoraes, e influir, nos que recebem aquelle conhecimento, a
moralidade precisa para o cumprimento dos seus deveres. Infelizmente,
nenhuma d’estas duas cousas acontece.

A maxima instrucção que é razoavel exigir do povo habilita-o porventura
a votar, com conhecimento de causa, sobre o valor relativo dos
programmas dos partidos, e a induzir dos factos de cada parcialidade
politica um juizo approximado sobre o merecimento e a sinceridade das
candidaturas debatidas n’uma lucta eleitoral? Se o suffragio se applica
a cousa mais alta, como, por exemplo, a escolha d’uma fórma de governo,
acredita alguem que o votante, só porque sabe ler e escrever, escolhe
em boa consciencia esta ou aquella forma politica? A maior parte dos
homens dados ao commercio, á industria, ás artes, estão, sejamos
francos, perfeitamente habilitados para a formação d’aquelle juizo?
Não estão, é claro. Ora, ninguem quererá que os nossos lavradores
tenham a instrucção media do commercio para então lhes ser permittido o
direito de votar. E se alguem chegar a taes exigencias, o que podemos
affirmar é que lh’as não acceita a nossa burguezia rural.

Mas a instrucção primaria dará ao menos a moralidade, o desejo do
bem, a vontade firme de acertar? Não dá isso. Invocam-se em vão as
conclusões da estatistica, e, com a maior impropriedade, razões
fundadas n’uma supposta relação existente entre a leitura, a que podem
chegar os ultimos cidadãos, e a comprehensão exacta do dever e da honra.

Quantas vezes não temos ouvido dizer que a ignorancia está para o crime
na relação do effeito para a causa?

Pura declamação! O sabio Spencer demonstra que essa relação entre a
immoralidade e a ignorancia não tem maior valia do que a relação que
se verifica, usando os mesmos processos estatisticos, entre a falta de
hygiene e o crime, entre o habito immoderado de bebidas alcoolicas e o
crime, entre a miseria e um certo numero de crimes, e que, se d’essas
verificações parciaes alguma conclusão póde tirar-se, é esta: _que
existe uma relação real entre o crime e um genero de vida inferior;
que este é ordinariamente consequencia d’uma inferioridade original de
natureza; que a ignorancia é apenas uma das causas concomitantes do
crime, mas não uma causa mais poderosa do que as outras_[60].

A confiança nas virtudes redemptoras da instrucção é, pois, muito bem
intencionada, mas vã. Reminiscencia do periodo em que o doutrinarismo
reinou absolutamente nas consciencias, vai-se apagando e desfazendo
gradualmente a par e passo que se aperfeiçoam os processos da
observação social.

Podem ainda dizer-nos que não é a instrucção reduzida aos processos
de ler, escrever e contar a que deve ser requerida para o exercicio
do direito de suffragio, mas sim essa instrucção e mais a educação
moral e politica, que póde diffundir-se largamente pelas classes mais
ignorantes e mais desvalidas.

Não nos seria extremamente difficil mostrar que a educação moral, dada
pelo ensino, é quasi esteril. Sem citarmos a China, que, educada na
boa philosophia pratica de Confucio, nos offerece o espectaculo da
mais profunda degradação moral; sem notarmos o facto de que as mais
horriveis guerras são as determinadas por motivos religiosos, apesar
de quasi todas as religiões recommendarem a maior doçura e suavidade
de sentimentos; sem nos soccorrermos a nada d’isso, não vemos nós ahi,
pelos nossos proprios olhos, que, se n’este paiz ainda ha moralidade,
respeito pela honra, sujeição inquebrantavel á propria palavra, é
exactamente nas classes illetradas que isso se encontra com menos
raridade? Se nas classes infimas apparecem crimes, que, pela maior
parte, podem ser referidos á miseria como causa, nas outras classes
abundam crimes inteiramente desconhecidos nas mais desgraçadas, e
todavia ninguem referirá estes ultimos á falta de instrucção, á falta
de educação.

Os que vêem em taes meios a panacêa universal de todas as nossas
enfermidades moraes deixam transparecer clarissimamente o velho
preconceito da facilidade da sciencia social. O medico, o engenheiro,
o jurisconsulto, estudam sempre, dedicam-se totalmente á sua
especialidade, e, apesar d’isso, se teem de resolver um problema, uma
questão mais importante, redobram de applicação, multiplicam os seus
esforços, consideram particularmente todas as hypotheses possiveis,
e só depois de tudo isto, e muitas vezes ainda com timidez, é que
resolvem a difficuldade proposta; na politica entende-se geralmente
que as cousas se devem passar d’outro modo, e que desde que se saiba
ler e escrever, embora se não leia, embora se não estude, está-se logo
habilitado para julgar sobre as infinitas questões affectas á acção
dos governos. E isto na presente quadra, na febre d’este movimento
scientifico que nos traz cada dia novas exigencias, novos processos,
novas discussões, n’este periodo profundamente revolucionario em que
ha, a todo o momento, necessidade de modificar as opiniões recebidas!

Querem a instrucção necessaria ao exercicio razoavel dos direitos
politicos? Só assim é que entendem que a democracia é justa? Pois então
desesperem completamente da liberdade e da democracia. O povo nunca
terá essa instrucção. Porque? Respondemos com Wirouboff: _porque,
trabalhando com o suor do seu rosto, lhe falta o tempo preciso aos
cuidados da sua educação, e não está nas posses do Estado dar esta
educação ou crear aquelle tempo_[61].

Stuart Mill, no estudo d’esta questão, colloca-se n’um ponto de
vista muito original e muito interessante. Vendo os homens do povo
ignorantes, apathicos, esmagados sob as duras condições do seu
trabalho, pensa que o melhor meio de lhes crear idéas, de os fazer
adquirir a previdencia e a penetração que lhes faltam, de lhes
dar, com a convicção da solidariedade humana, novos horizontes ao
coração e ao espirito, é simplesmente este: lançal-os nas impetuosas
discussões da politica, nos vivissimos interesses da sua administração
e do seu governo, porque isso lhes desenvolve a intelligencia, a
critica, as poderosas faculdades do espirito; porque isso os _torna,
scientificamente, verdadeiros membros conscientes da grande communidade
social_[62].

Isto é uma parcella pequenissima da verdade perdida nas nuvens azues
d’um bom sonho. Stuart Mill, o poderoso e incomparavel publicista, não
era, verdade seja, muito inclinado a devaneios scientificos; mas, assim
como o Homero da lenda dormitava algumas vezes, áquelle grande pensador
chegou tambem a sua vez de sonhar, de devaneiar.

Pois um homem, embrutecido na monotonia dos seus processos de trabalho,
incapaz de qualquer raciocinio alheio á sua occupação quotidiana, é
arrancado aos suados misteres da sua industria, e levado, uma vez cada
anno, a deitar n’uma urna um bilhete que recebeu d’um homem qualquer
de quem depende, ou que elle proprio redigiu com a mais deploravel
orthographia; esse homem é, de quando em quando, aliciado para uma
reunião publica, em que a rhetorica banal e facil dos tribunos de
genero barato assume aos seus olhos as fascinações olympicas d’um
profundo mysterio; esse homem que, consultado sobre os mais graves
negocios, responde como lhe dizem que responda, sem opinião propria,
sem consciencia;--esse homem, só porque se move, porque pratíca o acto
de votar, porque diz _sim_ ou _não_, adquire porventura algumas luzes,
começa a sympathisar com os seus concidadãos, sente elevar-se, pouco
que seja, o nivel da sua intelligencia?

Alliviem o quadro, se quizerem; dêem a esse cidadão as faculdades
de ler, de escrever, de contar muito bem; colloquem-no em posição
independente de vizinhos ricos e influentes,--e digam-nos depois, em
boa fé, se aquella pergunta, ainda em tal caso excepcional, póde deixar
de ser respondida negativamente. Não póde.

Para que a discussão politica fructeie aquellas vantagens é
indispensavel que os que entram n’ella tenham os necessarios
instrumentos de critica e de exame. A discussão não é jogo de desejos
ou de vontades; é lucta, é combate de opiniões. Quem não tem opinião
teima, aggride, póde vencer pelo numero ou pela força; mas discutir,
mas receber na consciencia a scentelha de verdade que resulta sempre do
encontro de dois pensamentos oppostos, isso é que não.

Esta loucura de condecorar o povo com os attributos da soberania, este
proposito, ingenuo ou hypocrita, de o encher de direitos que elle não
comprehende, de direitos que elle não sabe exercer, de direitos que não
ha vontade de tornar praticamente realisaveis,--faz-nos lembrar sempre
as ironias sarcasticas dos judeus a Jesus.

Vestiram ao divinissimo mestre uma tunica miseravel, offereceram-lhe
um sceptro irrisorio, cingiram-lhe a fronte n’uma corôa de espinhos,
e depois acclamaram-no rei, em meio das mais esqualidas visagens, ao
som dos mais torpes dicterios... Jesus, porque era Deus, soffreu,
resignou-se. O povo vai tambem soffrendo em silencio as consequencias
da sua pesada soberania, e apenas d’ora em quando, se apertam muito
com elle para lhe tirarem o que não tem, o que não póde dar, manifesta
desejos de brandir contra os seus _amigos_ o instrumento do seu
trabalho, que é o verdadeiro, que é o unico sceptro da sua realeza.

       *       *       *       *       *

Temos visto que o suffragio é a unica condição pratica da democracia;
que esta é um facto irrecusavel nos povos modernos, perfeitamente
legitimado pela corrente da evolução historica; que, no assumpto que
nos preoccupa, a questão deve versar, não sobre a justiça absoluta
do direito, mas sobre o modo de o realisar nas circumstancias em que
elle apparece; que, ao inverso do que pensam Laboulaye, Mill e Littré,
a resolução das difficuldades não está na instrucção e educação
do povo, em parte porque isso não é immediatamente realisavel, e
em parte porque, ainda depois de obtida a instrucção exigivel nas
actuaes condições economicas dos pequenos proprietarios e das classes
operarias, ella não poderia nunca altear o geral das consciencias
á comprehensão das grandes exigencias da politica; e, finalmente,
dissemos já tambem que o problema é exactamente o mesmo, quer se trate
do suffrario universal, quer se trate do suffragio na extensão que lhe
dão as leis de quasi todos os paizes cultos. As verdadeiras condições
da liberdade politica são outras. Vamos expol-as.

Destruimos; é conveniente, é justo que edifiquemos agora.

O suffragio, universal ou limitado pelo censo ou pela instrucção, só
é possivel n’uma administração inteiramente descentralisada. É esta
a formula que vamos defender; n’ella se inclue, pelo nosso modo de
pensar, a resolução das maiores dificuldades que actualmente offerece
a sciencia politica. É antigo este pensamento no nosso espirito; desde
muito tempo nos preoccupa a idéa de que a centralisação administrativa
é o maior estorvo á realisação das aspirações democraticas d’este
seculo; a comparação do suffragio universal na França, onde elle
sanccionou as aventuras do segundo imperio, com a mesma instituição
nos Estados Unidos e na Suissa, onde tem produzido sempre magnificos
resultados, serviu para radicar em nós aquella convicção. Eliminadas
prudentemente todas as differenças, que podiam ser invocadas para
explicar aquella desegualdade de effeitos, ficava sempre, a nosso ver,
só esta: na França a administração é fortemente unitaria; nas duas
florescentissimas republicas a vida local desenvolve-se regularmente,
desaffrontada e independente nos termos em que o pode ser. Ultimamente
tivemos a satisfação de ver que um dos mais notaveis pensadores da
França contemporanea, G. Wyrouboff[63], punha ao serviço d’aquella
doutrina os admiraveis recursos do seu poderoso entendimento.

É sempre agradavel contemplar uma idéa, a que queremos muito, no claro
esplendor d’uma grande intelligencia alheia.

O principio, ou antes o facto capital da nossa theoria é este: o povo,
inhabil actualmente, e ainda n’um futuro remoto, para se decidir entre
doutrinas de elevada complexidão scientifica, é comtudo competente,
e competente mais que ninguem, para resolver sobre as questões que o
interessam immediatamente, que dizem respeito ás necessidades da sua
vida local, que se accommodam, por isso, ao jogo pouco complicado das
suas funcções intellectuaes. A construcção de estradas concelhias ou
vicinaes, a organisação da fazenda municipal, a fundação e localisação
das escolas primarias, emfim, a administração da parochia e do
concelho, no que tem de essencial, são cousas de que a maior parte
dos seus respectivos habitantes fórma mais facilmente juizo seguro
do que os legisladores das nossas duas camaras e os membros do poder
executivo. Acontece exactamente o contrario se se trata de discutir
programmas politicos, de optar por uma forma de governo, ou cousa assim
muito complexa e muito difficil.

Se isto é assim, e parece-nos que não ha verdade de mais irresistivel
clareza, deve o voto popular recaír directamente sobre as questões
locaes, facillimamente apreciaveis, e só indirectamente, mediante os
corpos gerentes das respectivas localidades, sobre todos os negocios
em que o voto directo, á falta absoluta de conhecimentos, seja sem
significação alguma. Nada nos parece tão racional e tão pratico como
isto. É a applicação do principio da especialisação do saber ao
exercicio do systema liberal. Chega a ser uma verdade de simples bom
senso. «_Croyez-vous_, diz o sr. Wirouboff[64], _qu’un habitant de
la campagne soit moins compétant qu’un conseil de ministres ou une
réunion de députés pour savoir par où un chemin vicinal doit passer,
dans quelle localité un marché doit être établi? Et pourtant les
constitutions sont ainsi faites, qu’elles consacrent juste le contraire
de ce que le plus simple bon sens indique. Nous avons vu le peuple
consulté, par voie plébiscitaire, sur la valeur d’une constitution
nouvelle que l’empire chancellant venait de fabriquer, et nous avons vu
aussi,--chose non moins surprenante,--une Chambre voter solennellement
un crédit de quinze cents francs pour le percement d’un puits dans une
petite commune de Bretagne..._»

Contra esta idéa levantam-se já duas objecções: a centralisação está
nos costumes e na educação de quasi todos os povos, e portanto é
irrealisavel por uma reforma legislativa; a traducção d’esse systema
importa o suffragio em dois gráus, e tal modo de exercer a liberdade
politica é injusto e inconveniente.

Vamos á primeira objecção.

Se estivessemos convencidos de que a descentralisação administrativa,
necessaria para o razoavel exercicio do suffragio, era opposta
radicalmente ás tendencias e habitos dos povos, o argumento inspirado
d’esse facto seria para nós irrespondivel e terminante. Mas tal
convicção não temos. Se qualidades especiaes de raça e exigencias de
_meio_ geographico devem ser invocadas para explicar o systema federal
na Suissa e nos Estados Unidos; se, para implantar esse regimen
politico em paizes que não estão exactamente n’aquellas condições,
seria necessario violentar a tradição e forçar a historia; o mesmo
se não dá, o mesmo não acontece se se trata unicamente de restituir
ás localidades o direito de se administrarem, não com absoluta
independencia do Estado, mas com liberdade sufficiente para que os seus
interesses sejam devidamente tratados, e responsabilidade proporcional
ás attribuições do seu poder.

Ora o nosso modo de resolver a difficuldade proposta satisfaz
bem, muito bem, a estas duas considerações, attendiveis em todos
os problemas d’esta ordem: realidade de preparação historica,
realidade de preparação intellectual. Os povos estão sufficientemente
habilitados para intervirem de modo directo na gerencia dos seus
negocios concelhios, e ainda districtaes ou provinciaes, e todos
estão, desde longa data, na posse mais ou menos desaffrontada, mais
ou menos perfeita, d’essa intervenção. O municipio, como organismo
administrativo, existiu sempre. É um producto necessario da
espontaneidade social. As relações que prendem os habitantes do mesmo
concelho não as creou a lei. Tambem, como entre nós se tem visto muitas
vezes, a lei não póde alteral-as, e muito menos supprimil-as. A. de
Tocqueville disse que o municipio parece ter saído directamente das
mãos de Deus.

O districto, a provincia, o _departamento_, não estão no mesmo caso,
mas em compensação, teem a mais larga e a mais constante consagração
historica. Nascidos da necessidade em que o poder central se viu de
descomplicar a administração publica, ou originados da tendencia
manifestada em alguns grupos de concelhos para se constituirem em
estados independentes, ou filhos do feudalismo, que lhes imprimiu
uma forte vida propria,--os districtos apparecem em toda a parte,
como uma divisão natural á força de muito antiga. Tem-nos a França,
a Inglaterra, a Hollanda, a Hespanha, a Austria, a Italia, etc. Nós
temol-os tambem como creação do poder central desde longa data, e, com
tradições de alguma autonomia, desde 1832[65].

É certo, é innegavel que a fórma politica mais apta ao completo
desenvolvimento da vida local é a federação; mas não será possivel
n’uma organisação politica unitaria estabelecer uma administração
amplissimamente descentralisada? Precisaremos porventura de proclamar
a absoluta independencia dos districtos ou das provincias, para lhes
podermos suppôr o exercicio liberrimo de attribuições correspondentes
ás suas naturaes necessidades?...

Para que a tutela do poder central deixe de se acompanhar do forçado
cortejo de oppressões e espoliações de toda a ordem; para que,
affectando ás unidades administrativas o encargo do seu governo, se
lhes affecte por isso mesmo a responsabilidade dos seus actos, o que
é d’um grande alcance moral; para que se especialisem os trabalhos
administrativos em harmonia com o mais perfeito conhecimento das
respectivas necessidades, e com o maior interesse em provel-as de
remedio; para tudo isto não é necessario quebrar o molde geographico
e tradicional das nacionalidades; basta aproveitar devidamente as
divisões que a natureza creou, e accrescentar-lhes as que, na maior
parte dos estados, a historia tem produzido.

O sr. Ernesto Naville, um dos mais benemeritos campeões da liberdade
moderna, estudando as condições d’uma boa reforma eleitoral em França,
chegou tambem á conclusão de que, _só depois de descentralisada e muito
descentralizada, é que a França poderá ser livre_[66]; e utilisando as
actuaes divisões d’este paiz, propõe uma solução do problema, em que a
unidade politica e a liberdade local estão, a nosso ver, perfeitamente
conciliadas.

No seu entender, a França, actualmente dividida em departamentos, póde
facilmente accommodar-se a uma divisão por provincias, constituindo
provincias os departamentos mais extensos, e reunindo-se, para
esse effeito, em grupos os departamentos de menor extensão. N’esta
hypothese, os eleitores elegem representantes na razão de um por
mil eleitores por exemplo. Os deputados de cada provincia formam,
como corpo distincto, os _parlamentos provinciaes_. Os parlamentos
provinciaes, no seu conjuncto, e considerados como um só corpo, formam
o _parlamento francez_. Uma delegação dos parlamentos provinciaes
constitue em Paris um _corpo legislativo_. Este corpo legislativo
tem a seu cargo os actos necessarios ao movimento da administração,
e, principalmente, a preparação dos projectos de lei que devem ser
submettidos ás deliberações do parlamento francez. Os parlamentos
provinciaes, como corpos distinctos, regulam e dirigem os interesses da
provincia, e, como partes integrantes do parlamento francez, deliberam
sobre os projectos de lei, votam-nos, acceitando-os ou rejeitando-os,
ou os devolvem ao corpo legislativo para que sejam emendados.

Tão simples como completo, este systema póde, feitas as precisas
modificações, ser applicado a Portugal. Não rompe a unidade do paiz, e
descentralisa muitissimo a administração e a politica; tem a vantagem
de reduzir a uma só eleição a escolha dos representantes provinciaes e
dos representantes nacionaes; acaba com o perigo, indicado por Stuart
Mill, de serem os projectos de lei, quando redigidos e emendados n’uma
corporação muito numerosa, prejudicados gravemente pelas influencias da
palavra e pelas preoccupações da politica.

O sr. Wyrouboff põe a sua theoria do suffragio universal á prova
d’uma organisação politica muito parecida com a da Suissa. É esta: as
communas administram-se por si mesmas; os departamentos, formados por
grupos de communas, com o seu pequeno governo local de que apenas são
responsaveis para com os seus eleitores, com o seu orçamento proprio,
dirigem os seus negocios, regulam as condições da producção e do
consumo, decretam a instrucção que julgam necessaria, superintendem nas
relações das differentes egrejas; uma camara, composta de deputados
eleitos pelas corporações departamentaes, occupa-se das questões que
interessam a todo o paiz, resolve os conflictos entre os departamentos,
etc. _Com esta organisação_, diz aquelle escriptor, _desapparecem todos
os defeitos actuaes do suffragio universal, e todos os cidadãos, ainda
os mais incultos e rudes, votam com perfeito conhecimento de causa_[67].

Mas o nosso fim não é apresentar aqui minuciosamente as condições
práticas da descentralisação necessaria ao exercicio do suffragio;
temos apenas em vista indicar o suficiente para que não pareça
irrealisavel o nosso pensamento.

A descentralisação é um principio traduzivel por varias formas.
Sirvam de amostra essas que ahi ficam. Escolha cada nação a que
mais convier aos seus habitos, á sua educação historica, ás suas
condições geographicas, e realise-a se quizer corresponder seriamente
ás exigencias democraticas do nosso seculo. Não nos opponham
dificuldades de _raça_. Os cantões da Suissa não teem, como se sabe,
a mesma procedencia ethnica. A Inglaterra e os Estados Unidos,
devidamente apreciada a sua differença social, são argumento de que a
descentralisação administrativa é accommodavel a povos perfeitamente
deseguaes nas relações das suas respectivas classes. Floresce
egualmente no condado da Inglaterra, que é o paiz da mais forte
aristocracia, e na parochia da America do Norte, que é republicana e
democratica.

A segunda das objecções, que julgamos util prevenir, refere-se aos
inconvenientes das eleições por dois gráus. Não temos pela eleição
indirecta sympathias muito fortes. Conhecemos os seus inconvenientes,
que se reduzem a estes: limitando o numero dos eleitores, torna
facillima a intriga e a corrupção; não interessa o animo do eleitor nas
cousas politicas, e a liberdade politica deixa, por esse modo, de ser
a escola de si mesma; não tem vantagens sobre o systema contrario,
porque o votante, na eleição directa, se não tem capacidade para
resolver por si, e deseja exercer o seu direito em boa consciencia,
póde ouvir o conselho das pessoas em quem confia por seu saber e
probidade.

Em todas estas considerações ha verdade e ha exaggeração. Está no
espirito do nosso tempo e na propria indole da democracia o suffragio
directo, e nós, em regra, queremol-o. Mas o suffragio directo não
tem tambem inconvenientes, e muito grandes? Não é uma irrisão, um
perfeito escarneo, chamar um analphabeto a decidir com o seu voto a
mais intrincada questão social? Da justa combinação dos dois systemas
não resultarão vantagens superiores ao emprego exclusivo de qualquer
d’elles?... Baseando-se na consideração, até certo ponto justa, de que
é mais facil, mais accessivel o raciocinio sobre as qualidades d’um
eleitor de deputados do que sobre as condições requeridas n’estes,
a eleição indirecta não póde deixar de produzir, em alguns casos,
resultados bons. E é certo que os produz. Sirvam de exemplo as eleições
do senado e da presidencia dos Estados Unidos. Stuart Mill, inimigo
jurado da eleição em dois gráus, acceita-a comtudo como vantajosa
sempre que os eleitores do segundo gráu sejam mais alguma cousa do
que simples eleitores, isto é, tenham outras funcções importantes a
desempenhar na administração da communa ou do districto, e cita, em seu
abono, o facto d’aquellas eleições[68].

Ora nós também queremos que, seja qual fôr a fórma dada á
administração publica, a assembléa destinada a deliberar sobre os
altos interesses do estado, seja eleita pelos corpos collectivos das
localidades. Para estes a eleição directa; para aquella, a eleição por
dois gráus.

_Dadas certas circumstancias_, diz o grande publicista inglez, _o
systema do suffragio indirecto é o melhor de todos_[69]. A nós
parece-nos que em caso algum está tão claramente indicada a sua
applicação como na hypothese que temos discutido, e nas condições
intellectuaes do nosso paiz.

       *       *       *       *       *

Em conclusão:

O suffragio, com a extensão que tem na maior parte das nações cultas,
repugna abertamente com a organisação unitaria d’ellas; fóra da mais
larga descentralisação, é impossivel como cousa seria, é prejudicial,
é ridiculo. O povo, ou tem o bom senso de não votar como acontece
em França muitas vezes, e como está acontecendo entre nós, e em tal
caso o regimen liberal é o absolutismo mascarado,--ou exerce aquella
faculdade, e então impõe-se com a sua ignorancia e com as suas illusões
ás legitimas exigencias da razão social, como aconteceu durante o
segundo imperio, desde 1850 até 1870. Esta antinomia é irreductivel por
outra fórma que não seja a que indicamos.

       *       *       *       *       *

Estudadas as condições, a que deve satisfazer o voto individual para
que tenha significação e seriedade, resta ver o modo de utilisar
convenientemente esse voto na representação politica. A transição é
natural. Não basta que o voto seja convicto; é mister que seja válido.

Dedicamos a este pensamento os capitulos que seguem.


NOTAS DE RODAPÉ:

[51] Herbert Spencer, _Introduction à la Science Sociale_, pag. 8 e
segg.

[52] Vid. Jules Clère, _Histoire du suffrage universel, depuis 1789
jusqu’à nos jours_, de pag. 5 a 16.

[53] Le 19 Janvier, _Compte rendu aux électeurs de la 3.ᵉ
circonscription_, par Emile Olivier (1868).

[54] P. J. Proudhon, _Idée générale de la révolution au XIX siècle_,
pag. 156 e segg.

[55] E. Littré, _Du Suffrage universel en France, considéré comme une
expérience sociologique_--_Revue de Phil. Posit._, tom. IV.

[56] E. Littré, _Revue de la Phil. Posit._, tom. IV, pag. 37.

[57] Laboulaye, _L’État et ses limites_, pagg. 202 e 203.

[58] _Du Suffrage universel en France, considéré comme une expérience
sociologique_--_Revue de Phil. Posit._, tom. IV, pag. 38.

[59] _Le gouvernement répresentatif_, par M. J. Stuart Mill, traduit
par M. Dupont White, pag. 191 e segg.

[60] H. Spencer, _Introduction à la Science Sociale_, pag. 388.

[61] Wirouboff, _La Politique qualitative, et la politique
quantitative, Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 12.

[62] _Le gouvernement répresentatif_, par M. J. Stuart Mill, traduit
par M. Dupon White, pag. 189.

[63] _Revue de la Phil. Posit._, de pag. 5 a pag. 23.

[64] _Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 14.

[65] Sr. Joaquim Thomaz Lobo d’Avila, _Estudos de Administração_, pag.
112 e segg.

[66] Ernest Naville, _La réforme électorale en France_, pag. 61 e segg.

[67] _Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 18.

[68] _Le gouvernement représentatif_, pag. 220.

[69] _Le gouvernement représentatif_, pag. 221.



CAPITULO II

 =Summario.=--A representação politica deve ser proporcional.
 Demonstração directa d’esta these pelos principios fundamentaes
 de Direito Publico.--Erro dos que confundem a lei da
 _maioria_, applicavel ás assembléas deliberantes, com a lei da
 _proporcionalidade_, applicavel aos corpos eleitoraes. Este erro
 no nosso parlamento. As minorias, como garantes dos interesses
 nacionaes nas assembléas politicas. Perigos que correm os governos
 exclusivistas com as suas maiorias.--É insensato o argumento dos que
 menospresam a representação proporcional com o fundamento de que as
 minorias _sempre teem alguma representação_. Prova d’isso.--Em muitos
 casos o systema vigente, julgando servir as maiorias, sacrifica-as.
 Demonstração.--Consequencias immoraes do actual systema. É elle a
 causa das abstenções politicas: testemunhos, em relação á França,
 de H. Lasserre, Wyrouboff e Aubry-Vitet. Imprime ao exercicio dos
 direitos politicos o caracter odioso das luctas pessoaes. Sacrifica
 ás mediocridades os homens de valor: o exemplo dos Estados Unidos,
 adduzido por Stuart Mill. Força a colligações deshonrosas: testemunho
 de Borély.--Historia da representação politica proporcional. O estudo
 e a instituição d’este regimen na França, na Suissa, na Dinamarca,
 na Inglaterra, em alguns estados do Norte-Americano, no Brazil, na
 Hespanha e em Portugal. Conclusão.


A representação politica deve ser proporcional. Não satisfazendo a esta
condição, é uma falsidade e é um perigo.

A democracia pura, o governo de todo o povo por todo o povo, é
impossivel fóra de certas condições excepcionaes, como as que se dão
em alguns cantões da Suissa, e, por isso, o systema representativo
impõe-se como unico meio de dar á liberdade politica a realidade que
ella exige no momento actual da evolução humana. Porque a maior
parte dos cidadãos, occupados nos misteres da sua industria, não
podem dedicar-se ao estudo e decisão das questões politicas, e tambem
porque o seu numero d’elles, que é d’alguns milhões em todas as nações
cultas, obsta invencivelmente a que se congreguem e deliberem em
commum,--forçoso é que elles deleguem em poucos o encargo de fazer as
leis, votar os impostos, e prover a tudo o mais que seja necessario
ao regular andamento da administração publica. Esse acto de delegação
realisa-se mediante os systemas eleitoraes.

Vê-se já que a representação politica deve ser a imagem fiel da
sociedade, e não uma corporação gerada pelos interesses e constituida
pelos suffragios d’uma só parcialidade, por mais numerosa e importante
que esta seja. D’outro modo, o systema representativo é um sophisma.
Não é a reducção forçada de todos os partidos ás proporções exigidas
para o governo; é a exploração brutal e monstruosa de todos os grupos
politicos por um só, o qual, para se lograr da sua ambição, basta,
ainda nos casos perfeitamente normaes, que tenha sobre os seus
competidores a simples maioria d’um voto!

Entre nós, como em quasi todos os povos, a politica assenta n’esta
base falsa. Porque? Porque se applica aos corpos eleitoraes a lei da
_maioria_, exactamente como se faz, nem póde deixar de fazer-se a
respeito das assembléas politicas, que teem de decidir as questões
affectas á sua competencia. Mas _eleger_ não é _decidir_. A urna,
inintelligente e impassivel, não póde decidir da bondade e da justiça
dos partidos; o seu unico fim é este: fazel-os representaveis. Todo
o cidadão, que é eleitor, tem direito a ser representado. A este
preceito da lei, que é uma conquista de seculos, não póde oppôr-se a
urna, determinando com um absolutismo incontrastavel quaes eleitores
hão de ser representados, e quaes o não hão de ser. Se o corpo
eleitoral deliberasse sobre questões politicas, a sua decisão deveria
ser tomada á pluralidade de votos; mas tal se não dá, mas elle vai
simplesmente _reduzir-se_, escolher os seus delegados, a quem confere
o direito de julgar aquellas questões, e, por isso, não é á lei da
_maioria_, mas sim á lei da _proporcionalidade_ que a eleição deve
satisfazer.

Que diriamos nós, n’uma democracia pura, se annunciando-se uma questão
qualquer, e notando-se logo divergencia de opiniões, fossem postos
fóra do comicio, immediatamente, sem serem ouvidos, os cidadãos que
discrepassem no seu parecer do maior numero? Não tinhamos palavras
para castigar devidamente tão flagrante attentado contra os direitos
politicos. Pois é isso o que ahi se faz a todo o momento, sem reparo de
ninguem, sem protesto de ninguem!

Como se explica o tão longo reinado d’este erro, d’esta grande confusão
na consciencia humana? Por um habito intellectual muito inveterado, por
uma immemorial associação de idéas. Só estas duas cousas, diz Stuart
Mill[70], podem harmonisar por tanto tempo a razão humana com uma
injustiça inutil.

       *       *       *       *       *

Póde parecer que, elegendo o maior dos partidos militantes um numero
de deputados proporcional á sua importancia, estes decidem sempre
no parlamento as questões por maioria, e que, por isso, é de todo
o ponto indifferente que os outros sejam ou não representados na
proporção das suas forças: é sempre a maioria que triumpha fatalmente,
inevitavelmente.

Este argumento foi produzido na nossa camara electiva pelo sr.
deputado Lopo Vaz de Sampaio e Mello, illustre relator da commissão
eleitoral, em resposta aos srs. Luciano de Castro e Pinheiro Chagas.
Eis as proprias palavras do intelligentissimo relator: «Se as leis
fossem sempre discutidas e votadas directamente pelos cidadãos, seriam
sempre a final decididas pela maioria d’elles; portanto é mister,
para que a soberania nacional não seja uma burla, que as leis sejam
sempre decididas pela maioria parlamentar _constituida pelas maiorias
eleitoraes_. Segundo o nosso actual regimen, todos os deputados podem
intervir na votação das leis sem quebra d’aquelle principio, porque
todos são eleitos pelas maiorias eleitoraes. Ou triumphem n’este casa
as opiniões do partido progressista ou as do partido regenerador, ou as
d’outro qualquer partido ou deputado, triumpha sempre a opinião seguida
pela maioria dos deputados representantes das maiorias eleitoraes.[71]»

Ha n’estas palavras uma grande confusão de idéas. Se as leis fossem
discutidas e votadas directamente pelos cidadãos, seriam a final
decididas pela maioria d’elles, diz o sr. Lopo Vaz. O principio é
incontestavel. Mas como quer s. ex.ª concluir d’ahi que, dada a
representação politica, as leis devem ser discutidas e votadas sómente
pelos representantes da maioria dos cidadãos? Porque não conclue que,
dada a representação politica, as leis devem ser _discutidas_ pelos
representantes de todos os eleitores, e vencidas a final á pluralidade
de votos? É esta a unica consequencia logica, verdadeira, que póde
deduzir-se do principio invocado. N’uma intelligencia tão elevada, tão
culta, tão poderosa como a do sr. Lopo Vaz, um erro d’aquella ordem não
póde resistir a dois momentos de reflexão.

Os parlamentos, as assembléas politicas não teem unicamente a seu
cargo votar leis; votam-nas, sim, mas antes d’isso discutem-nas. Ora é
impossivel sustentar que a minoria, só porque o é, não deve discutir,
não deve oppôr as suas idéas ás dos seus adversarios, e contribuir
assim, pela critica conveniente, para a maior perfeição dos actos
legislativos. Que de vezes triumpha na tribuna o partido menos votado
na urna? A verdade e a justiça não são patrimonio exclusivo de partido
algum; são a aspiração de todos os homens, e, não raras vezes, a
propriedade do menor numero. Chegada a hora da votação, a maioria vence
pelo seu numero, é certo; mas os vencidos d’esse modo são primeiro
ouvidos, defendem o seu programma, significam o seu pensamento quanto
basta para que o paiz possa julgar da sinceridade e do merecimento
de todos. Nos tribunaes civis e criminaes ninguem é condemnado sem
ter dicto de sua justiça; que razão ha para que se não applique este
principio á suprema decisão dos negocios publicos?

O povo, que vai limitar a sua liberdade pelos preceitos d’uma lei e
restringir a sua propriedade pelo pagamento de impostos, tem direito a
que se lhe diga porque se faz aquella lei e porque são votados estes
impostos; e a maioria, havendo de cumprir esta obrigação, tornada
effectiva a exigencias da minoria, terá sempre o cuidado de não
propôr cousa que a sujeite ao vexame da opinião publica e a todos os
consectarios do descredito geral. No nosso desgraçado regimen eleitoral
difficilmente conseguem vingar as suas candidaturas os caudilhos, os
proprios caudilhos da opposição; mas esses poucos, quantas vezes teem
prostrado na arena da discussão, a puros golpes de raciocinio e de
eloquencia, os seus adversarios muitissimo mais numerosos? Não citamos
datas nem nomes, para que isto não pareça o resfolego d’uma paixão
partidaria, quando é simplesmente uma verdade serena e imparcial.
Se isto acontece, apesar dos defeitos do actual systema, de certo
se obteriam resultados incomparavelmente melhores estando as cousas
organisadas de molde a terem representação condigna todos os grupos
politicos d’alguma importancia.

É de observação geral e facil que, quando um ministerio qualquer tem no
parlamento uma maioria muito consideravel, a quasi unanimidade de votos
nas deliberações politicas, esse ministerio arrasta uma existencia
torturada, esteril, quasi sempre indigna, e, sem que isso se espere,
cáe d’um momento para o outro, no meio dos seus partidarios, sem se
saber porque cáe, sem motivo, com um pretexto apenas.

Qual é a causa d’este phenomeno, tantissimas vezes repetido? Esta, a
nosso ver: o grande defeito da sua origem, o ter procurado o governo,
por meios improprios, um excesso de vida em absoluta contradicção com
os legitimos interesses do organismo social.

Sem estimulo, sem lucta, sem necessidade de previsão e de raciocinio,
em plena segurança e plena ociosidade, a camara cuida sómente dos seus
interesses pessoaes; a intriga passa a ser o doce entretenimento das
suas horas; não se discutindo idéas, pleiteam-se preeminencias; a voz
que devia trovejar na tribuna as palavras da dignidade e os accentos
da verdadeira eloquencia, murmura confidencias ou supplica favores
nos gabinetes do ministerio; vão-se rompendo pouco a pouco os laços
que prendem os representantes aos interesses do paiz; o governo,
lisongeado pelos pretendentes, elogiado pela imprensa do seu partido,
abundantemente apoiado na camara, acaba por se convencer de que tem
realmente a opinião publica a seu favor; e as cousas correm assim até
que um pequeno incidente, esclarecendo essa falsa situação, determina
inopinadamente uma crise, de que resulta a morte moral d’esse partido,
se ainda ha no paiz alguns vislumbres de moralidade civica!

O actual systema não é, pois, sómente opposto ao pensamento fundamental
da democracia moderna; é também nocivo á classe exploradora, ao partido
mais numeroso, e castiga sempre a soffreguidão dos governos, que, por
um pendor irresistivel, o levam á sua ultima extremidade.

       *       *       *       *       *

Tem-se dito já que, variando de collegio para collegio a opinião
dominante, a opinião que está em maioria n’um dos circulos está em
minoria n’outro, e que, por esta fórma, sempre se consegue que sejam
representados todos os partidos.

Mas não póde acontecer que um partido, aliás numeroso, esteja
em minoria em todos os circulos? Mas, e que se não dê isso, são
representados _proporcionalmente_? Não. Sel-o-iam apenas na seguinte
hypothese: os deputados eleitos todos por unanimidade, sem abstenção
d’um unico eleitor, em circulos exactamente eguaes. E semelhante
hypothese nunca teve realidade, não póde tel-a.

N’uma memoria, apresentada á camara belga em 1871 pelo sr. Jules
de Smedt, é citado o seguinte facto, claramente significativo da
improporcionalidade da representação politica pelo systema vigente[72]:
Nos Estados Unidos, onde, como é sabido, ha tantas circumscripções
eleitoraes como deputados a eleger, verificou-se que, nas eleições de
1870, 2.000:000 de eleitores obtiveram 128 representantes, ao passo que
1.600:000 eleitores apenas conseguiram 30!

Universalisado o suffragio, e todas as tendencias são para isso, se
as eleições forem feitas pelo systema da maioria, uma só classe, a
classe operaria, desde que tenha a consciencia da sua força, encherá o
parlamento de representantes seus. Nenhuma outra classe os terá. Foi
Stuart Mill quem primeiro considerou a possibilidade d’este perigo. Não
o póde haver maior para a instituição da propriedade e para a ordem
social. A burguezia, que tem actualmente nas suas mãos os destinos da
politica, e que tão hostil se tem mostrado sempre a todo o pensamento
de reforma; a burguezia conservadora e rotineira, ainda póde conjurar
a tempo as tempestades que a ameaçam. Por qual meio? Por este:
modificando o systema eleitoral no sentido da sua proporcionalidade,
e preparando assim para o futuro um meio efficaz de contrarestar a
torrente socialista, que, em vez de ser fertilisadora das condições
sociaes, póde muito bem, no primeiro impeto, levar de roldão os mais
legitimos, os mais sagrados interesses. O que é justo é sempre util.
Infelizmente, em poucas consciencias está radicado este principio.

Os que ora se contentam com que sejam representados os partidos,
ainda que a representação d’estes se não faça proporcionalmente,
terão então ensejo de conhecer e sentir a justiça do nosso principio.
Reclamal-o-hão como uma medida de salvação os que actualmente o
ironisam no bom humor do seu interesse satisfeito!

Concedendo, por um momento, que não podem ter logar os gravissimos
inconvenientes apontados, ainda o systema vigente é de todo o ponto
contrario á verdadeira indole do regimen democratico. Os eleitores
vencidos, posto que os seus correligionarios triumphem dos seus
adversarios politicos n’um ou n’outro circulo, nem por isso ficam tendo
no parlamento os homens da sua immediata confiança. E isto não é de
pequena monta. Como é sabido, não ha perfeita identidade de idéas e de
sentimentos entre eleitores de diversos collegios. No mesmo grupo ha
sempre _nuances_ de opinião, que não podem deixar de ser devidamente
consideradas. Não se organisam partidos como se fundem estatuas.
Se, entre nós, um dado partido é vencido em todos os circulos das
provincias do Norte, ficam porventura satisfeitos, compensados os
habitantes d’estas, só porque aquelle partido conseguiu vencer algumas
candidaturas na Beira ou no Algarve?

Ninguem responderá affirmativamente.

Temos figurado a hypothese das circumscripções isoladas, d’um só
deputado, nas quaes ordinariamente se consegue que triumphe uma ou
outra candidatura; quando, porém, a eleição se faz por escrutinio de
lista em provincias ou districtos, os inconvenientes accentuam-se
mais, e rarissimas vezes a minoria tem representantes. Se não houver
circumscripções, se todos os cidadãos votarem em massa, e a eleição se
fizer por maioria, a minoria não se logrará d’um representante, d’um
unico representante! É ver o que acontece nas eleições municipaes.

Defrontando-se a estas hypotheses, exclama com justissima indignação
Henri Lasserre[73]: _Telle est la logique invencible du faux principe
qui nous gouverne et dont on ne saurait proclamer, ni trop haut, ni
trop souvent, ni sous trop de formes, la profonde iniquité_.

       *       *       *       *       *

Nas considerações precedentes preoccupou-nos a idéa de que o systema
actual servia unicamente aos interesses da maioria do paiz, e, n’esse
supposto, procuramos evidenciar a sua monstruosa injustiça. Mas o
systema é tão mau, é tão falso, é tão iniquo que, em muitos casos, nem
sequer satisfaz áquella condição: consagra os interesses da minoria,
em despeito e com sacrificio dos votos da maioria!

Vamos demonstrar isto, figurando algumas hypotheses:

1.ª Supponhamos que o paiz está dividido em 100 circulos, e que
o quociente eleitoral é de 5:000 votos. Em 90 d’esses circulos
triumpharam os candidatos d’uma certa parcialidade por 50 votos de
maioria cada um, e nos 10 restantes foram eleitos os candidatos da
outra parcialidade por suffragio unanime. Admittindo que todos os
eleitores foram á urna, e que votaram sómente em candidatos d’aquellas
duas parcialidades, temos que--270:500 eleitores ficam representados
por 10 deputados, ao passo que 229:500 teem no parlamento 90
representantes!

2.ª Acceitando as condições expostas na primeira hypothese, supponhamos
que, em cada collegio, não compareceram mais de 4:500 eleitores, e que
o partido mais forte, vencedor em todos elles, apenas obteve a maioria
de 100 votos para cada um dos seus candidatos. Temos cada deputado
eleito por 2:300 votos sobre 2:200; mas addicionando a estes 2:200 os
500 votos dos que se absteem de exercer o direito eleitoral, vem cada
deputado a representar 2:300 eleitores contra 2:700, isto é, a minoria
do seu circulo!

Este calculo, formado sobre outro do sr. Eugenio Aubry-Vitet[74],
basea-se n’um facto muito usual, que importa tomar em consideração.
Referimo’-nos ás abstenções, as quaes de certo diminuirão muitissimo
desde que o systema de representação proporcional, dando ingresso no
parlamento aos grupos politicos, que tenham alguma importancia, deixe
sem razão de ser a profunda indifferença de muitos eleitores.

3.ª É Stuart Mill quem figura esta hypothese. Suppondo que, num paiz
governado pelo suffragio egual e universal, a eleição é disputada em
todos os collegios e, em cada um d’elles, vencida por pequena maioria,
é claro que o parlamento pouco mais representa que a metade da nação. A
maioria é insignificante. Ora se, na discussão das leis, a assembléa se
divide, e as leis são votadas por pequena maioria, é a minoria do paiz
quem impõe leis a todo elle! Pouco menos de metade dos votantes não tem
representação, porque foi vencida na urna; dos que teem representação,
quasi metade vota, pelos seus delegados, contra as leis, e, por esta
fórma, o poder legislativo póde vir a ser exercido unicamente por pouco
mais da quarta parte dos eleitores!

Póde parecer que, muito de proposito, engendramos hypotheses favoraveis
ao nosso pensamento, difficeis de apparecer, violentas; mas nem
aquelles casos são tão raros como á primeira vista parecem, nem, se
o fossem, isso obstaria á sua força provativa. Como disse o grande
publicista inglez, que deixamos citado, _nos casos extremos é que
melhor se conhece o valor dos principios_.

       *       *       *       *       *

Do actual regimen eleitoral resultam sempre as mais deploraveis
consequencias moraes.

Em primeiro logar, um grandissimo numero de eleitores, na
impossibilidade de utilisar os seus votos, não exerce o seu direito
politico, abstem-se d’isso. Resigna-se á soberania honoraria, que a
lei lhe dá. É uma resignação incommoda, involuntaria, forçada, mas
que fazer? Ter o trabalho inutil de deitar na urna votos, que não são
considerados para cousa alguma? Isso é um brinco pueril, que repugna
a muita gente seria. Aproveitar o seu voto, ligando-se a grupos
bastante numerosos para vingarem uma candidatura? Nem todos teem essa
flexibilidade de espinha, essa vontade tão baixamente accommodaticia e
docil.

A abstenção apparece assim como o unico expediente honesto. É um
grandissimo mal, mas não é uma indignidade. E assim vemos nós que a
lei, sempre tão fácil em estender o direito do suffragio, colloca
fatalmente fóra d’elle, pelo vicio original d’este systema, um numero
considerabilissimo de cidadãos probos e honestos!

«Imaginemos, diz Henri Lasserre[75], que na vespera d’uma eleição
geral um tyranno declarava fóra da lei, isto é, fóra do escrutinio,
os cidadãos pertencentes a um dado partido, estatuindo que os votos
offerecidos a elles fossem, por esse simples facto, considerados
nullos, supprimidos summariamente... Havia logo um clamor geral, um
horror espantoso; e, para impedir a execução de tão abominavel decreto,
a tinta burgueza e o sangue popular correriam em ondas. Ora, em vez
de se fazer na vespera, esta abominação consumma-se no dia seguinte á
eleição, e ninguem reclama, e todos acham isso perfeitamente natural!»
Nem todos. Muitos deixam de ir á urna, porque sabem que a lei não dá
validade aos seus suffragios. A razão por que não correm aquellas
ondas de tinta e de sangue, já a dissemos. É esta: o longo habito de
julgar legitimo, normal, imperfectivel o systema vigente. Entre de
vez em todas as consciencias a idéa da representação proporcional, e
ver-se-ha então se as cousas se conservam assim por muito tempo.

É innegavel que as abstenções crescem em toda a parte de dia para dia,
e não póde justamente attribuir-se-lhes outra causa, que não seja o
acervo de vicios que ha na actual fórma de eleição. Relativamente
á França, é esse facto attestado por escriptores seriissimos.
Wyrouboff[76] affirma que a repugnancia a votar augmenta cada vez
mais, e que, se nos conselhos geraes e nos conselhos municipaes, ainda
ha tal qual concorrencia de eleitores, são poucos os que votam para
as eleições da Assembléa, sendo crivel que, consultada a França por
um plebiscito, metade d’ella deixasse de responder. «O numero dos
abstencionistas, diz Aubry-Vitet, cresce de dia para dia. Certo que
muitos d’entre estes obedecem á preguiça e á indifferença; mas quantos
deixam de votar, desanimados pela impossibilidade de triumphar com as
suas proprias forças!»

Podiamos ainda adduzir testemunhos relativos á Belgica e outros paizes,
mas julgamos isto desnecessario. Entre nós é sabido como as cousas se
passam. Havendo em todos os circulos parcialidades politicas oppostas,
na maioria d’elles a opposição não vai á urna. N’estes, em vez de
assembléas eleitoraes animadas, interessadas nos seus direitos, ha o
desanimador espectaculo do desdem mais profundo e da mais glacial
indifferença. Quasi sempre os cidadãos que compõem as mesas fazem
descargas ficticias, para que o candidato não fique envergonhado! Ora
é de saber que desde que as cousas chegam a este estado, a decadencia
politica é grandissima e a regeneração social quasi impossivel.
Se contra a tyrannia dos governos as nações reagem em grandes
manifestações de vida,--da indifferença, da estagnação moral, quando já
muito adiantada, morre-se inevitavelmente.

Tem ainda contra si o actual systema o imprimir nos actos eleitoraes
o caracter d’uma pugna violenta, intransigente, farta de odios e de
paixões. Só quem não tem assistido a eleições é que ignora as pequenas
miserias que se exhibem n’ellas. Todas as dependencias são invocadas
e não ha pressão que se não exerça. A lucta é a todo o transe. Porque
não ha espaço para todos nos ambitos da lei, o dilemma de viver ou
morrer apresenta-se fatalmente a todos os espiritos. Os nomes dos
candidatos apparecem aos eleitores sob esta dupla fórma: vestidos de
luz e cheios de lama. Recontam-se anecdotas, forjam-se calumnias, o
libello diffamatorio dos pretendentes avoluma progressivamente á medida
que se approxima o dia fatal. A divergencia de idéas importa rompimento
de relações, e o sentimento do odio estende-se a familias inteiras. Não
raras vezes a violencia material, o pugilato, o assassinio até, põem
nodoas de sangue n’aquelle acto, que devia ser incruento e pacifico.
Não ha cidadão que saia incolume d’um prelio d’esta ordem: um perdeu
o amparo e a protecção que tinha; outro é logo executado pelas suas
dividas; a vingança toma conta de todos e sacrifica-os cedo ou tarde.
A imprensa, essa augusta tribuna da verdade, demuda-se em pelourinho
de infamias. Finda a lucta, o espaço em que ella foi ferida fica mil
vezes mais repugnante do que um campo de batalha em que se dilaceraram
dois exercitos: n’este alastram-se corpos mutilados, horrivelmente
desformados, com as visagens medonhas em que a morte os surprehendeu;
mas n’aquelle, no espaço em que se digladiaram dois partidos, ha mil
reputações feridas de morte, ha muita dignidade trucidada; e, ao invez
do que acontece depois d’um combate ordinario,--depois da guerra
eleitoral continuam os odios, referve ainda a vindicta, e as paixões
imperam com toda a força, peiores no momento da reflexão do que o eram
no momento primitivo!...

E note-se que suppomos a abstenção da auctoridade. Quando ella
intervem, e intervem quasi sempre, a peleja é mais cruel, porque
é muito mais desegual. Não se ignora a razão d’isso. A corrupção
pela promessa e pela ameaça assume as maiores proporções; pelo seu
lado o partido hostil ao governo não recua diante de meio algum que
possa annullar as influencias contrarias. Isto entende-se com todas
as parcialidades; isto acontece em todos os paizes. Em 1877 dizia á
Constituinte do Estado de New-York Simon Stern, mostrando como as
corrupções são inevitaveis no systema que combatemos: «A lucta de dois
partidos exclusivos não fórça sómente a colligações eleitoraes em que
a independencia é sacrificada, tambem suscita e importa fatalmente
a corrupção. Desde que um dos partidos se soccorre a expedientes
immoraes, o outro julga-se obrigado a proceder do mesmo modo.
Quererieis vós obrigar uma das parcialidades combatentes a não luctar
senão em condições de lealdade? Ninguem vos escutaria. Valeria isso o
mesmo que aconselhar a um exercito a que marchasse com as sós armas da
justiça e da verdade contra outro exercito bem provido de espingardas e
de canhões.»

Ora este é que é o genio das democracias? Isto é inevitavel nos
regimens liberaes? Se o fosse, a democracia seria uma loucura, e a
liberdade uma maldição. Mas não o é. Desde que todos os partidos
possam obter uma representação proporcional, desde que seja possivel
a coexistencia d’elles, o que é soffreguidão será apenas legitima
actividade, e todas aquellas manifestações violentas, explicaveis
pela necessidade de viver, que não obedece a lei alguma, cederão o
logar ás fórmas edificantes d’uma discussão placida, serena, pacifica.
A Dinamarca é muitas vezes citada como o paiz menos accessivel a
corrupções eleitoraes. Porque? Porque a representação politica lá é
proporcional. E isto é naturalissimo. Com este systema ha espaço para
todos os partidos; no regimen opposto, para que um viva é forçoso que
outros deixem de existir. Qual partido póde resignar-se a isso, sem ter
primeiro assumido todas as formas de luctar?

Não acabam aqui os máus resultados d’este systema. Póde ainda dizer-se
em plena verdade que elle sacrifica muitas vezes os homens mais
importantes, mais dignos, mais illustrados a puras mediocridades, logo
que n’ellas concorram certas condições de importancia, aliás muito
secundaria; e tambem que obriga os partidos mais oppostos em pensamento
a colligarem-se por algum tempo, com manifesta indignidade para todos,
e sem verdadeiro interesse para nenhum d’elles.

O primeiro d’estes dois inconvenientes é facillimo de perceber.
Desde que um candidato qualquer, recommendado pelo seu partido, se
apresenta aos eleitores d’uma dada circumscripção, eleitores que o não
acceitariam por bem ponderosos motivos vêem-se forçados a offerecer-lhe
os seus suffragios com receio de divisão no seu grupo, e da vantagem
que d’isso auferiria a parcialidade opposta. Outras vezes acontece que
os chefes de partido propõem e recommendam, já muito de proposito,
candidatos obscuros, sem opinião conhecida, cujo passado não possa
servir de motivo ou de pretexto para fortes opposições. É Stuart Mill
quem põe em relevo este grave inconveniente, citando em seu abono o
exemplo dos Estados Unidos, _onde, para a eleição do presidente, nunca
o partido mais forte propõe os seus homens mais validos, mais notaveis,
com receio de que um d’esses homens, pelo facto de ter estado muito
tempo a toda a luz da opinião, possa provocar contra si, d’uma parte do
publico, objecções que o prejudiquem, e ter assim menor probabilidade
de merecer todos os votos do que uma pessoa qualquer, em que o publico
nunca ouviu fallar_.[77]

As colligações politicas são um mal necessario na actual ordem de
cousas, mas um mal grandissimo. O producto politico d’estas colligações
não póde deixar de ser pouco definido, quasi incolor, inteiramente
incapaz de satisfazer os diversos factores politicos que o produziram.
Não ha sinceridade n’este contracto, inspirado pela necessidade do
momento, e as transacções estipuladas ou se cumprem, o que é máu para
o pensamento fundamental de cada um dos partidos, ou então deixam de
realisar-se, o que é immoral, o que é pessimo como acto de deslealdade.

Tudo isto cessará totalmente, ou, pelo menos, diminuirá d’um modo
consideravel desde que seja proporcional a representação. Os homens
mais importantes serão exaltados pelo suffragio, e os partidos, certos
de levarem ao parlamento os cidadãos em que mais confiam, conservarão
a sua independencia em relação aos outros grupos politicos, o que é
perfeitamente digno.

Diz Borély[78]: «O candidato, exaltado por dois ou mais partidos,
limita-se ao titulo equivoco de independente; não passa da meia luz,
da penumbra, ao passo que o candidato fortemente apoiado pelos seus
correligionarios politicos, accentua-se, define-se, colloca-se a toda
a luz da sua idéa; não é _independente_, menos ainda, catholico,
democrata, liberal segundo a situação em que se encontra;--com a sua
bandeira desfraldada, elle é de si mesmo, totalmente de si mesmo.»

Seria um nunca findar se quizessemos expôr aqui todos os perigos e
todos os inconvenientes do systema que combatemos; os que ahi ficam
são mais que muito sufficientes para lhe desnudar a enorme injustiça
em que elle se basêa, e fazer sentir a todos os espiritos sinceramente
liberaes e honestos a urgencia de acabar com este estado de cousas
que, se actualmente tem tão funestos resultados, de futuro os ha de
produzir muito maiores. O systema desentranhar-se-ha sempre nos
seus fructos naturaes, e cada uma das suas detestaveis consequencias
capitalisar-se-ha em causal d’outras egualmente más. É a agiotagem do
mal, tão terrivel nas suas operações successivas como a usura ordinaria
na sua fatalidade arithmetica.

Esta idéa vai conquistando os dominios da consciencia publica, e
recrutando partidarios convictos e fervorosos em todas as nações e
em todos os partidos. Este ultimo facto deve ser considerado como um
dos mais claros signaes indicativos da sua justiça por aquelles que
não quizerem ou não podérem comprehender as considerações theoricas e
praticas, que ahi ficam expostas. Uma causa defendida com egual ardor
por Luiz Blanc e por Henri Lasserre, por Stuart Mill e pelo marquez
de Castellane, pelo que ha de mais coherente entre conservadores ou
reaccionarios, e pelo que de mais puro tem apparecido no partido
democratico; uma causa em que convergem opiniões de origens tão
oppostas, não póde deixar de ser perfeitamente justa. Não tem o sêllo
discutivel d’uma communhão partidaria; tem o pleno caracter impessoal
d’uma grande verdade scientifica.

       *       *       *       *       *

Não data de muito longe a historia da representação politica
proporcional. Já vimos attribuida a prioridade d’esta idéa ao duque de
Richmond[79], a Condorcet e a Saint-Just[80], mas não tivemos meios
de verificar a verdade d’essas referencias. Nada se perde com isso.
Se aquelles homens tivessem dado ao seu pensamento uma forma lucida e
aproveitavel, as suas idéas seriam geralmente conhecidas, e todos os
escriptores modernos os citariam com o merecido louvor. Porque nada
d’isto se dá, é certo que esta causa lhes não deve serviços dignos de
menção. A probidade historica é, felizmente, uma virtude frequentissima.

A primeira exposição clara e perfeita dos principios da representação
proporcional foi feita por Victor Considérant. Consta d’um folheto
publicado em 1846 com este titulo: _Lettre aux membres du grand conseil
de Genève_. E. Naville, a quem devemos esta indicação, affirma que
_a idéa da representação proporcional está exposta n’essa carta com
uma nitidez irreprehensivel_[81]. Esta carta foi determinada pelas
resistencias oppostas a uma proposta inspirada por V. Considérant
a Hoffmann, e por este offerecida em 1842 á Assembléa Constituinte
de Genebra. As desconsiderações com que foi recebida esta proposta
repetiram-se depois da publicação d’aquella carta, a despeito dos
esforços d’André Alliez, secretario d’aquella Assembléa, no sentido de
ser consagrada nas leis a distincção importantissima de V. Considérant
entre _voto deliberativo_ e _voto representativo_[82].

Deixando para depois a narração da varia fortuna, que tem corrido na
Suissa a idéa da representação proporcional, porque queremos seguir
n’este esboço a ordem chronologica,--diremos já que ella entrou no
espirito francez em 1850, por esforços do eminente publicista E.
de Girardin, que lhe consagrou uma serie de notaveis artigos no seu
jornal, a _Presse_[83]. Não sendo nosso proposito dar uma noticia
bibliographica relativa a esta questão, não podemos comtudo deixar de
mencionar o trabalho d’aquelle brilhante publicista, que projectou
sobre o problema da representação proporcional a luz do seu grande
talento e o prestigio do seu grande nome.

A Dinamarca foi o primeiro paiz que ensaiou praticamente o pensamento
da representação proporcional. Teve isso logar em 1855, por iniciativa
do mathematico Andrae, então ministro da fazenda e presidente do
conselho de ministros. Depois da reforma eleitoral, realisada n’aquelle
paiz em 1849 sob as influencias do movimento revolucionario francez de
1848, o systema das maiorias, exercido n’uma grande extensão, punha em
relevo os seus inconvenientes todos; _foi então que o mathematico_,
diz Lytton, secretario da legação ingleza em Copenhague, respondendo
ás circulares de lord Clarendon e de lord Russel,--_foi então que o
mathematico descobriu um erro de arithmetica no facto de se operar uma
divisão por dois onde era necessaria uma regra de proporção, e que o
homem de Estado viu claramente n’esse erro uma injustiça social das
mais detestaveis consequencias_.

O systema do _quociente eleitoral_ (assim é designado geralmente o
processo eleitoral dinamarquez) foi ensaiado em pequena escala, mas
nem por isso os seus bons effeitos deixaram de manifestar-se logo.
Foi tentada a experiencia para as eleições do Rigsraad, que é o corpo
legislativo da Dinamarca; mas, sendo 80 os deputados a essa assembléa,
só 30 eram eleitos por aquella fórma, porque 30 pertenciam aos Estados
Provinciaes e 20 eram da nomeação da coroa. Apesar d’isso, diz o citado
diplomata, a experiencia serviu para demonstrar que o pensamento da
representação proporcional era realisavel. _Está em prática ha oito
annos_ (isto era escripto em 1863) _sem difficuldade alguma, sem que
cousa alguma haja obstado á sua acção. Praticou-se, logo é praticavel;
realisou-se, logo é realisavel._[84]

A obra do estadista dinamarquez não teve precedentes que a inspirassem.
É certo que havia já os trabalhos de Victor Considérant, a proposta de
Hoffmann, e os famosos artigos de Girardin; mas todos os escriptores
d’esta especialidade são contestes em affirmar que tudo isso era
desconhecido na Dinamarca.

A lei eleitoral dinamarqueza de 1855 foi substituida pela lei de 12
de julho de 1867. Em 1871 affirmava o sr. Naville que se trabalhava
activamente n’aquelle paiz para dar ao systema do quociente eleitoral a
maxima extensão possivel. Ignoramos o resultado d’esses esforços.

Ao nome do ministro Andrae é costume associar sempre o de Th. Hare,
dividindo-se pelos dois a gloria de determinarem o grande movimento
reformador que, a partir de 1860, se tem manifestado, com intensidade
recrescente, na Europa, na America e na Oceania. Parece-nos que é com
toda a razão que isso se faz. Aquelle, antecipando-se á opinião do
seu paiz, consagrou, pela primeira vez, n’uma lei a proporcionalidade
da representação politica; este, publicando a sua grande obra sobre
esse assumpto, provocou as mais vivas e interessantes discussões
sobre o direito eleitoral, e contribuiu poderosamente para que a
Inglaterra, em 1867, pozesse á prova da experiencia o principio que
elle tão notavelmente apostolara. O seu systema, a sua fórma prática
de realisar a representação das maiorias não foi acceito; mas sem a
forte propaganda de Th. Hare não teria sido admittido o systema do
_voto incompleto_, proposto por lord Russell em 1867, nem o do _voto
cumulativo_, proposto por Lowe em 1870. Acceitar o principio era o
essencial; experimentar um ou outro dos processos offerecidos era cousa
secundaria.

A obra fundamental de Th. Hare foi publicada em 1859 com este titulo:
_Treatise on the election of Representatives parliamentary and
municipal._ Stuart Mill sentiu por ella todo o enthusiasmo de que era
capaz o seu genio inglez, e foi até dizer, apreciando aquelle trabalho,
estas notaveis palavras: «São taes e tão numerosas as vantagens
d’este plano que eu, pela minha parte, considero-o como um dos mais
assignalados progressos que até hoje têm sido realisados na theoria e
na prática do governo representativo.»

Depois da publicação d’aquella obra, muitos parlamentos começaram de
preoccupar-se com a idéa da representação proporcional. O primeiro foi
o da Nova-Galles do Sul em 1862. Relatado favoravelmente pela commissão
incumbida de o estudar, o projecto, moldado nas idéas de Th. Hare,
depois de vivamente discutido foi approvado por 24 votos contra 20;
infelizmente, porém, uma mudança ministerial realisada n’essa occasião
obstou a que elle fosse definitivamente convertido em lei do paiz[85].

Em 1863, o parlamento da Victoria, na Australia, admitiu á discussão
uma proposta eleitoral na fórma do voto cumulativo; a proposta foi
rejeitada na votação, mas as discussões foram tão vivas, tão calorosas
que, provavelmente, não passará muito tempo sem que ellas produzam o
seu natural resultado, o resultado que sempre fructeam as idéas justas
e fecundas[86].

A reforma eleitoral foi discutida no parlamento inglez em 1867,
exactamente quando ella começava a ser considerada pela Assembléa
Constituinte do Estado de New-York. Foi Stuart Mill quem primeiro
ergueu a sua voz na camara dos communs em defesa da reforma. Sustentou
a representação pessoal pelo systema do quociente eleitoral, isto é,
o pensamento de Th. Hare, ao qual o incomparavel publicista deu o
prestigio da sua palavra eloquente e o credito do seu nome, venerado
em todo o mundo. As palavras de Mill foram ironisadas na camara e na
imprensa. O _Times_, o proprio _Times_, fez muito espirito á custa
d’ellas...

Na camara dos lords, onde a questão foi posta a toda a luz por lord
Cairns e brilhantemente tratada por lord Russell, a discussão foi
calorosa, viva, fecunda e seriissima, como costumam sel-o sempre as
discussões d’aquella assembléa. O governo oppoz-se energicamente á
proposta de lord Cairns, mas, apesar d’isso, ella teve a seu favor 142
votos contra 51 e na camara dos communs 273 contra 204.

A data da lei, em que foi convertida aquella proposta, é de 30 de
julho de 1867. A lei estatuiu que, em todos os collegios de tres
representantes, a eleição se fizesse por _listas incompletas_. Logo
diremos em que consiste este processo; por’ora basta-nos dizer que
este processo eleitoral foi, pela primeira vez, em 1862, exposto e
sustentado em Genebra por Carteret.

A lei de 30 de julho de 1867 foi uma grande victoria para o principio
da representação proporcional, apesar de serem materialmente pouco
importantes os effeitos immediatos d’ella. Desde aquella decisão
legislativa, o principio ficou tendo por si a auctoridade do primeiro
parlamento do mundo. Esta a sua importancia. De resto, applicando-se
a lei apenas aos collegios de tres representantes, e não havendo mais
de 12 collegios n’essa condição, claro está que foi pequena, muito
limitada a utilidade prática d’esse acto legislativo na Inglaterra. Mas
as idéas, uma vez entradas na consciencia d’aquelle povo, não deixam
de estender-se, de ampliar-se progressivamente, se a experiencia as
sancciona. Com effeito, em 1870 os conselhos d’escola de Inglaterra
foram eleitos pelo systema do _voto cumulativo_, e em 1872 a camara dos
communs applicou aquelle processo á eleição dos conselhos da Escocia.
A opinião publica, que a principio recebera com reservas a idéa da
eleição proporcional, foi perdendo pouco a pouco as suas reservas, e
está hoje inteiramente do lado d’ella. N’uma carta dirigida ao jornal
de Genebra em 16 de janeiro de 1873 pelo veneravel presidente da
associação reformista d’aquella cidade, lemos que o _Times_ em 1871,
em vez das suas insulsas ironias, tinha para esta questão as seguintes
palavras: _Póde discutir-se o melhor processo prático da representação
proporcional, mas o principio em si, esse está já fóra de toda a
discussão._

Dissemos acima que a assembléa constituinte de New-York se tinha
occupado do pensamento da reforma em 1867. Para realisar esta reforma
organisou-se uma sociedade, presidida por David Dudley Field, que
offereceu á Constituinte um relatorio muito importante sobre a questão,
junto a uma memoria notavel redigida por Simon Stern. Em 1872, a
assembléa legislativa e o senado de New-York approvaram uma proposta,
que applicava o _voto cumulativo_ ás eleições municipaes; mas não foi
adiante, porque o governador d’aquelle Estado lhe oppoz o seu _veto_ em
30 de abril d’aquelle anno.

Na America, a primeira decisão legislativa a este respeito data de
1870, e teve logar no Estado da Pennsylvania, a esforços do senador
Buckalew, que, por mais d’um titulo, é benemerito d’esta causa. A 4
de março d’aquelle anno, o corpo legislativo da Pennsylvania approvou
uma proposta de Buckalew para que o processo do _voto cumulativo_
fosse applicado ás eleições municipaes da cidade de Bloomsbourg; os
resultados foram magnificos, e pela lei de 2 de junho d’esse anno
estendeu-se aquelle processo eleitoral a todas as eleições camararias
d’aquelle Estado[87].

Em 12 de dezembro de 1870, o sr. bispo de Vizeu apresentou á nossa
camara electiva um projecto de lei eleitoral, em que traduzia o
principio da _representação proporcional_ pelo systema dinamarquez,
sensatamente modificado em alguns pontos importantes. No relatorio, que
procedeu esse projecto de lei, o sr. bispo de Vizeu, depois de citar
os exemplos da Inglaterra e da Dinamarca, dizia: «Guiado tambem pelos
mesmos elevados principios e por tão insinuante exemplo, e convencido
de que sou fiel interprete do sentimento nacional, favoravel sempre a
tudo quanto tende a ampliar e a garantir as liberdades publicas, não
hesitei em formular e em submetter á sancção do corpo legislativo uma
proposta de lei eleitoral, que tem por fim conseguir a _representação
proporcional_ na constituição da camara electiva, adoptando para esse
fim o processo que melhor póde assegurar esses resultados, se não com o
rigor das mais exigentes theorias, pelo menos com a maxima perfeição,
a que é possivel attingir no meio das innumeras difficuldades, que
embaraçam os trabalhos d’esta ordem[88].»

Infelizmente, o ministerio de que fazia parte aquelle illustrado,
liberal e honradissimo estadista poucos dias viveu depois da
apresentação d’aquella proposta, e, por isso, nem sequer foi esta
discutida no parlamento; mas a opinião publica recebeu-a muito bem, a
imprensa occupou-se largamente d’ella, e, por este motivo, não foram de
todo frustrados os trabalhos do veneravel prelado de Vizeu.

Em 1872, o Estado de Dézaret acceitou um projecto de constituição,
em que, para todas as eleições, é acceito o _voto cumulativo_. No
Illinois, o povo, consultado por um plebiscito sobre a necessidade do
_voto cumulativo_, respondeu affirmativamente por uma grande maioria
(29:005 votos). Em Washington, o senado e a camara dos representantes
deram a esta reforma a importancia que ella merece. O senador Buckalew
defendeu este principio desde 1877; o senado nomeou uma commissão
para o estudar, a qual lhe foi unanimemente favoravel, e, em 1870,
acceitou-o. Não sabemos o que se seguiu depois[89].

O Brazil reformou em 1875 a sua legislação eleitoral, dando
representação ás minorias pelo systema _das listas incompletas_. A
reforma applicou este processo á eleição dos eleitores geraes do
imperio, á dos deputados á Assembléa Geral, e á dos membros das
Assembléas Legislativas Provinciaes. O documento legislativo que
consagra este principio é o decreto n.º 2:675 de 20 de outubro de 1875.

A Hespanha em 1876 applicou tambem aquelle systema ás eleições
municipaes.

Na sessão de 18 de fevereiro d’este anno, a nossa camara electiva
ouviu uma brilhante defesa da representação proporcional no discurso
pronunciado pelo sr. conselheiro J. Luciano de Castro, a proposito do
projecto de reforma administrativa apresentado pelo sr. ministro do
reino A. R. Sampaio, e relatado pelo sr. deputado Julio de Vilhena.
N’essa occasião ninguem mais usou da palavra sobre este assumpto; mas,
a proposito do _projecto de lei eleitoral_, de 9 de março d’este anno,
apresentado na sessão de 18 do mesmo mez, a representação das minorias
foi amplamente discutida na camara. Defenderam-na com notavel vigor
os srs. deputados Sousa Lobo, Pinheiro Chagas e Luciano de Castro, e
foram-lhe hostis o sr. ministro da justiça Barjona de Freitas, e o
relator do projecto eleitoral, o sr. deputado Lopo Vaz.

Na sessão de 18 de fevereiro, o sr. Luciano de Castro offereceu uma
proposta de lei, moldada pelo projecto definitivo da associação
reformista de Genebra, para a representação das minorias nas
eleições municipaes. Não foi discutida. Na sessão de 22 de março
aquelle notavel estadista, que, pelo seu grande talento e pela sua
superior illustração, é uma das mais justas glorias do parlamento
portuguez, desenvolvendo o pensamento da proposta apresentada em 18
de fevereiro, applicou-o, n’um bem elaborado projecto, á eleição
dos deputados. Receiando-se de que o projecto parecesse á camara
excessivamente complicado, apresentou, para essa hypothese, uma outra
proposta, extremamente simples, com applicação restricta a Lisboa e
Porto,--proposta moldada sobre as leis que vigoram no Brazil desde
1875, na Inglaterra desde 1867 e na Hespanha desde 1876. É a traducção
do systema do voto limitado, ou das listas incompletas.

Na sessão de 19 de março, ainda o sr. Luciano de Castro apresentou no
parlamento uma outra proposta para o mesmo fim. Esta proposta tinha
sido redigida pelo sr. José Barbosa Leão, que incumbiu aquelle deputado
de a apresentar na camara. Por proposta d’elle foi publicada no _Diario
das sessões da camara_, de 27 de março.

       *       *       *       *       *

Eis a largos traços esboçada a historia d’esta idéa. É curta pelo
espaço de tempo que abrange, mas importantissima pela natureza dos
factos a que se refere. No momento actual, relançando os olhos
pelas nações mais cultas de todo o mundo, vemos que o principio da
representação proporcional domina os espiritos mais devotados aos
grandes interesses da democracia. Chegou ao periodo da sua maturidade
esta idéa. Podem os partidos insensatamente conservadores oppôr
difficuldades á sua realisação prática, illudindo a consciencia publica
com adiamentos e opportunismos; mas não podem mais nada. Os partidos
mais adiantados honram-se de inscrever nos seus programmas o principio
da reforma eleitoral; em toda a parte surgem associações expressamente
organisadas para a melhor, para a mais forte propaganda d’essa idéa.

E. Naville cita estas sete associações, notaveis e benemeritas pelos
esforços empregados em favor d’esta causa: a de Genebra (1865), a de
New-York (1867), a de Zurich (1868), a de Londres (1869), a de Chicago
(1869), a de Neuchâtel (1869), a de Roma (1871). Não sabemos de mais,
mas é crivel que outras se tenham formado desde 1873, de que é datado
o documento a que nos soccorremos n’esta parte do nosso trabalho.
Dos trabalhos de E. Naville, classicos n’esta materia, o ultimo, que
conhecemos, é d’aquelle anno[90].

Este veneravel publicista, terminando a sua Memoria, dirigida ao
jornal de Genebra, diz estas eloquentes palavras: «Temos visto com a
maior commoção a nossa causa crear para si centros de actividade em
Athenas e em Roma. Dos tres velhos fócos da civilisação do mundo, falta
apenas Jerusalem; mas o espirito vindo de Jerusalem não é estranho á
obra proseguida pelos que vêem, na introducção d’um novo elemento de
justiça, a base da ordem publica, e, na suppressão de luctas, que não
teem razão de ser e desenvolvem sempre paixões hostís, uma applicação
directa dos principios da civilisação christã.»

Quando uma expansão d’esta ordem é precedida de 12 annos de trabalho
indefesso; quando, pela palavra e pela penna, isoladamente e por
meio de associações, se tem feito, d’um pensamento desinteressado e
nobilissimo, o destino d’uma grande parte da vida; quando a causa que
se ha servido tão bem e por tanto tempo, tem um grande cunho social
e humanitario; quando se dá isto, palavras como aquellas são a maior
gloria d’um nome, e traduzem a maior felicidade que a consciencia
humana póde alcançar.

Michelet disse cousa como aquillo ao terminar a sua Historia da França:
despediu-se d’ella com saudade o operario infatigavel, o espirito
amantissimo dos homens e das cousas. E. Naville, ainda em pleno
combate, arranca do coração aquella phrase feita de bondade e de luz.
Quem tem alma para sentir aquillo, está pago de todos os sacrificios
por mais custosos que sejam, porque nada ha comparavel aos intimos
gosos d’uma consciencia em plena certeza de haver feito o bem!


NOTAS DE RODAPÉ:

[70] _Le gouvernement représentatif_, pag. 152.

[71] _Diario da Camara dos srs. Deputados_, sessão de 19 de março de
1878, pag. 697.

[72] _Réforme électorale de la représentation des minorités_, pag. VII.

[73] _De la réforme et de l’organisation normale du suffrage
universel_, pag. 53.

[74] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870.

[75] _De la réforme et de l’organisation du suffrage universel_, pagg.
53 e 54.

[76] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IV.

[77] _Le gouvernement représentatif_, pag. 156.

[78] _Représentation proporcionelle de la majorité et des minorités_,
pag. 44.

[79] Ph. Bourson, _Étude Politique_, pag. 77.

[80] M. de Castellane, _Essai sur l’organisation du suffrage universel
en France_, pag. 147.

[81] _La réforme electoral en France_, pag. 37, not.

[82] E. Naville, cit., pag. 82 e seg.

[83] Ph. Bourson, cit. pag. 77, e E. de Girardin, _Questions de mon
temps_, tom. VIII, pag. 544 e segg.

[84] _Relatorio de Lytton, secretario da legação ingleza em Copenhague,
dirigido ao seu governo em 1863_,--cit. por E. Naville, _La question
électorale en France et en Amérique_, pag. 48 e segg.

[85] _La question électorale en Europe et en Amérique_, par E. Naville,
pag. 54.

[86] Cit. pag. 23 e segg.

[87] E. Naville, _Journal de Genève_, 22 Janvier, 1873.

[88] _Diario das Camaras_, sessão de 14 de dezembro de 1870.

[89] Cit. carta de E. Naville ao jornal de Genebra.

[90] Cit. jornal de Genebra.



CAPITULO III

 =Summario.=--Systemas da representação proporcional. É impossivel a
 sua exacta classificação. A de E. Naville, inacceitavel.--Systema
 da _pluralidade simples_, de E. de Girardin. É irrealisavel.
 Variante d’este systema devida ao sr. de Layre.--Systema eleitoral
 _Hare-Andrae_. Differenças entre a lei dinamarqueza e o projecto de
 Th. Hare; razão d’ellas. Principaes disposições da lei dinamarqueza
 de 1867. Variantes d’este systema por Aubry-Vitet e pelo sr. bispo
 de Vizeu. Principaes disposições do projecto de lei portugueza de
 12 de dezembro de 1870. Objecções contra o systema Hare-Andrae; sua
 discussão critica.--Systema do _voto cumulativo_. Sua perfeição
 theorica e seus defeitos praticos. Alguns factos relativos á pratica
 d’este systema na Inglaterra e na America.--Systema do _voto limitado_
 ou das _listas incompletas_. É arbitrario no seu fundamento;
 confirmação historica dos inconvenientes d’este systema previstos
 por Morin em 1867. Em casos normaes, um terço dos eleitores póde ser
 inteiramente sacrificado. Adduz-se um calculo comprovativo d’isto.
 Este systema no Brazil e na Hespanha. Extractos da lei brazileira
 e da lei hespanhola. Variante do duque d’Ayen.--Systema de _Th.
 Furet_. Exposição e critica. É engenhoso, mas improporcional nos
 seus resultados e arbitrario na sua base.--Systema do _suffragio
 uninominal_. Offerecido para remediar os defeitos do processo
 Hare-Andrae, não os remedeia, aggrava-os. Demonstração.--Indicação do
 systema que acceitamos por mais racional e mais pratico. Transição
 para o capitulo seguinte.


Vamos expôr e criticar os principaes systemas offerecidos para a
resolução do problema eleitoral, de que provamos a urgencia e esboçamos
a historia no capitulo precedente. Seguiremos n’esta exposição critica
a ordem chronologica, certos de que qualquer classificação que
tentassemos fazer d’aquelles systemas seria de todo o ponto arbitraria.

E. Naville dividiu todos os processos eleitoraes, subordinados
á idéa da representação proporcional, em dois grupos: _systemas
empiricos_, que procuram obter a representação das minorias, sem se
preoccuparem com o caracter proporcional d’essa representação,--e
_systemas racionaes_, que, partindo do principio da proporcionalidade,
estabelecem os meios da sua realisação pratica. Incluiu no primeiro
grupo os processos da _pluralidade simples_, do _voto limitado_ e o
do _voto cumulativo_, e, no segundo, os processos da _representação
pessoal_, da _representação proporcional_ e o do _suffragio
uninominal_[91].

Esta classificação é inacceitavel. Em primeiro logar é incompleta, não
comprehendendo muitos processos que não são facilmente reductiveis
a algum d’aquelles dois grupos. Depois, não é verdadeira no seu
fundamento, porque com os _processos empiricos_, com qualquer dos
_processos empiricos_, é possivel, em alguns casos, proporcionalisar
a representação politica; ao passo que, em muitos casos, os processos
racionaes, se dão representação ás minorias, é certo que lh’a não
dão proporcionalmente á sua importancia. O processo da pluralidade
simples é, theoricamente, o mais proporcional de todos; o processo
do voto cumulativo está exactamente nas mesmas condições. Por outro
lado, o processo do _suffragio uninominal_, que é o de E. Naville,
é inteiramente opposto ao verdadeiro espirito da proporcionalidade
eleitoral, porque, em muitos casos, affecta a candidatos os votos dados
a outros, que até podem ser de parcialidade contraria!

Evidenciar-se-hão estes inconvenientes na sequencia d’este capitulo.
Por agora basta o que fica dito.

       *       *       *       *       *

O processo eleitoral da _pluralidade simples_, devido a E. de Girardin,
é o mais antigo e o mais simples de todos.

É certo que antes d’este illustre publicista ter apresentado a sua
idéa, o que teve logar em 1850, Victor Considérant havia proposto, para
a eleição do conselho federal da Suissa, um systema eleitoral animado
das mesmas intenções; mas nem os cantões da Suissa o acceitaram, nem,
apesar de engenhoso, esse systema mereceu impressionar a consciencia
publica.

Eis no que consiste o famoso processo de Girardin, tão vivamente
discutido na França e fóra d’ella: «Nenhum eleitor,--traduzimos as
palavras de Girardin,--nenhum eleitor póde escrever no seu boletim mais
que um nome. Se o boletim contiver muitos nomes, será lido o primeiro
e os outros considerados como não escriptos. É de 10.000:000 o numero
de eleitores francezes, mas o numero dos eleitores effectivos ainda não
passou de 7.500:000. A _unidade eleitoral_ será constituida por 10:000
eleitores, que, vizinhos uns dos outros ou dissiminados por todo o
paiz, tenham perante a urna o mesmo pensamento. Dividindo 7.500:000 por
10:000, temos o _quociente_ de 750, numero dos representantes.

«Por esta fórma o deputado será representante da França, e não mero
delegado d’um _departamento_. O deputado fica livre, respectivamente
ao eleitor, de toda a dependencia, de toda a pressão. Pela sua parte o
eleitor não soffre as impertinencias dos candidatos; não tem que temer
as ameaças, nem que resistir ás seducções que, no actual systema, o
perseguem a toda a parte, o illaqueam por todos os modos.[92]»

Theoricamente, nada mais perfeito, nada mais proporcional; mas na
pratica são tantas as difficuldades d’este systema que podemos dizel-o
de todo o ponto inexequivel. No plano de Girardin entra como elemento
essencial a unidade de collegio. Ora, dada a unidade de collegio,
salta logo aos olhos o seguinte inconveniente: os candidatos populares
attrahem a si um considerabilissimo numero de votos, 5, 10, 20 vezes o
quociente eleitoral cada um, ao passo que uma minoria pouco numerosa,
distribuindo calculadamente os seus suffragios, logra-se d’um bom
numero de representantes, em grande porção de casos superior aos que
a maioria obtem. O problema eleitoral fica invertido. As minorias são
representadas, as maiorias ficam sem representação condigna!

Nas assembléas legislativas o voto d’um deputado que houvesse obtido
400:000 suffragios, por exemplo, seria annullado pelo voto do que
apenas tivesse merecido 20:000 suffragios. É isto proporcional? E
isto justo? Como supprir tão flagrante iniquidade? Alguem[93] se
lembrou já de remediar este inconveniente, propondo que se contasse
o voto do primeiro como valendo (na hypothese figurada) 20 vezes o
voto do segundo; mas isto, como é claro a todas as vistas, seria
inconvenientissimo. Acabaria com a egualdade dos representantes, que
é uma das principaes condições praticas do regimen parlamentar, e,
em muitos casos, reduzindo consideravelmente o numero de deputados,
collocaria nas mãos de poucos homens todos os destinos d’uma nação. Ora
d’este modo falsear-se-ia a indole propria do poder legislativo, em que
se requer a mais extensa discussão das propostas, o encontro de todas
as opiniões, o embate de todas as escolas,--o que só é possivel em
assembléas numerosas e eguaes.

Ha uma variante d’este processo, proposta pelo sr. de Layre. Consiste
em applical-o, não á nação toda formando um só collegio, mas a
circumscripções formadas por districtos ou departamentos, depois de
fixado o numero de votos necessario para se ser eleito. Este processo
é preferivel ao de Girardin, porque attenua consideravelmente o
inconveniente da accumulação de suffragios nos candidatos populares.
Infelizmente, attenua-o sómente, não o extingue de todo.

       *       *       *       *       *

Segue-se o systema eleitoral Hare-Andrae. Aproveitando a idéa de
Ph. Bourson[94], comprehendemos, debaixo d’uma só designação, a
constituição do legislador dinamarquez e o famoso projecto eleitoral
de Thomaz Hare. Por este modo satisfazemos á analogia de idéas d’estes
dois pensadores, e, ao mesmo tempo, evitamos a pouco util pendencia da
prioridade de invenção.

Entre a lei dinamarqueza (1855) e os primeiros trabalhos do escriptor
inglez (1857) medeam dois annos apenas. O ministro da Dinamarca
precedeu o escriptor inglez, mas tudo leva a crer que este, ignorando
inteiramente o que se passava na Dinamarca, se inspirou sómente da sua
propria observação sobre os graves inconvenientes da pratica eleitoral
no seu paiz.

D’estas coincidencias intellectuaes ha exemplos na historia das
sciencias.

Copiamos de Stuart Mill a theoria geral de Th. Hare. Mais explicita do
que a de Naville, e menos extensa e complicada do que a de Bourson,
a exposição de Mill é sufficiente para fazer conhecer o principal
machinismo d’este projecto. «Nos termos d’este plano, a unidade
representativa, isto é, o numero de eleitores com direito a um
representante, seria determinado pelo processo ordinario da tiragem das
medias, dividindo o numero dos votantes pelo numero dos representantes
a eleger: todo o candidato que obtivesse aquelle quociente eleitoral
seria eleito, ainda que os votos d’esse quociente fossem apurados aqui
e além, n’um grande numero de collegios eleitoraes. Os suffragios
seriam, como agora, dados localmente; mas o eleitor teria a liberdade
de votar por qualquer candidato, fosse qual fosse a parte do paiz
em que elle se apresentasse. Por esta fórma, os eleitores que não
quizessem ser representados por nenhum dos candidatos locaes, poderiam
contribuir com o seu voto para a eleição da pessoa, que mais lhes
agradasse, entre as que em todo o paiz se propozessem. Dar-se-ia assim
realidade aos direitos eleitoraes da minoria, que, por outro modo, é
virtualmente despojada d’elles. É, além d’isso, da maior importancia
que, não só os que recusam o seu voto aos candidatos locaes, mas ainda
os que votam n’elles e são vencidos, possam encontrar n’outra parte a
representarão que não conseguiram no seu proprio districto. Por isso se
imaginou obrigar os eleitores a votarem listas de votos contendo muitos
nomes além do nome preferido. O voto do eleitor aproveitaria só a um
candidato; mas se o candidato preferido não vingasse a sua candidatura
á mingua de suffragios, o segundo inscripto seria talvez mais feliz.

«O eleitor inscreveria na lista um grande numero de nomes, pela ordem
da sua preferencia, para que, se os nomes primeiro inscriptos não
obtivessem o quociente eleitoral ou o obtivessem independentemente
do seu voto, este podesse ser empregado em favor de algum candidato,
que d’elle carecesse para a sua eleição. Para obter o numero de
representantes de que se constitue o parlamento, e tambem para obstar a
que nomes muito populares attrahissem a si todos os suffragios, fosse
qual fosse o numero de votos que um candidato obtivesse, nunca se lhe
contariam mais do que os necessarios para a eleição d’elle; os outros
eleitores, que houvessem votado n’elle, veriam contar os seus votos á
primeira pessoa que, nas listas respectivas, necessitasse d’esses votos
e podesse com elles perfazer o quociente determinado.

«Para determinar quaes, de entre todos os votos obtidos por um
candidato, seriam empregados na sua eleição, e quaes seriam dados a
outros candidatos, teem sido propostos varios methodos, de que nos não
occuparemos aqui. Naturalmente um candidato ficaria com os votos de
todos os que não quizessem senão a elle por seu representante; e quanto
aos outros, a tiragem á sorte seria um expediente soffrivel, á mingua
de melhor.

«As listas de votos seriam remettidas a uma repartição central onde
os votos seriam contados, numerados, etc., e o quociente attribuido
aos candidatos que podessem attingil-o, até que se completasse a
camara, sendo preferidos os primeiros votos aos segundos, os segundos
aos terceiros, e assim por diante. As listas e todos os elementos
do calculo seriam collocados em depositos publicos, e accessiveis a
todos os interessados; e se algum candidato, tendo obtido o quociente
eleitoral, não houvesse sido proclamado, ser-lhe-ia permittido
reivindicar o seu direito...[95]»

Stuart Mill teve apenas em vista resumir a theoria de Th. Hare, mas a
sua exposição serve egualmente ao systema de Andrae. As differenças
entre este systema e aquelle projecto são devidas á diversidade de
condições em que estavam a Dinamarca e a Inglaterra ao tempo em que
eram produzidas as idéas do escriptor inglez, e experimentado o
processo do ministro da Dinamarca.

Demos um exemplo:

O legislador dinamarquez teve o pensamento de deslocalisar inteiramente
a representação nacional, sacrificando as localidades. Não o realisou
em todo o paiz, porque lhe prohibiram isso as condições politicas
d’elle. Applicou o seu processo aos districtos eleitoraes de Seeland,
de Lalland-Falster e do Jutland, que elegiam o primeiro 7 deputados,
o segundo 3 e o terceiro 7; não o applicou ao Schleswig, que, por
cada um dos seus districtos, apenas mandava um deputado ao Rigsraad,
nem ao ducado de Holstein, que se recusou invencivelmente a mandar
representantes á assembléa nacional. Mas o pensamento d’Andrae, segundo
a affirmação de Lytton, a quem o legislador dinamarquez significou todo
o seu pensamento, era, se isso fosse possivel, deslocalisar totalmente
a representação politica.

Pelo seu lado, Th. Hare, influenciado pela religião, perfeitamente
ingleza, dos usos inveterados e das velhas tradições, preoccupou-se
seriamente com esta idéa: o parlamento deve ser a imagem da nação, mas
as localidades devem ser devidamente consideradas na representação
nacional.

A lei dinamarqueza de 1855 foi modificada pela lei de 12 de julho de
1867, mas não foi alterado, n’esta ultima, o pensamento fundamental
de Andrae, nem tambem as cousas se dispozeram por forma a ter esse
pensamento toda a extensão legal que elle comporta. O parlamento
dinamarquez (Rigsraad) ficou composto de duas camaras, a camara baixa
e a camara alta, o Folketing e o Landsthing. Para aquella, a eleição
faz-se por maioria; para esta foi adoptado o systema proporcional,
votando directamente os maiores contribuintes do estado, e votando
indirectamente os outros cidadãos[96].

O pensamento fundamental d’este systema consiste em racionalisar
a representação, dando a cada idéa, a cada partido um numero de
representantes proporcional ao numero dos seguidores d’essa idéa ou
dos membros d’esse partido; o seu merecimento sobre o processo de
Girardin é este: ao passo que, no processo de Girardin, haveria sempre
uma grande perda de votos pela accumulação d’elles nos candidatos mais
populares, no systema Hare-Andrae nenhum suffragio se perde, toda a
força eleitoral é aproveitada.

Este systema é um dos mais perfeitos que conhecemos. N’uma sociedade
superior em civilisação á cultura media das sociedades actuaes,
desappareceriam inteiramente as difficuldades d’elle, e, em tal caso,
além de perfeito seria facillimamente exequivel.

Tem-se dito contra o systema Hare-Andrae:

Que elle é impraticavel, por extremamente complicado nas operações que
demanda;

Que, _nacionalisando_ a representação politica, pretere inteiramente os
interesses locaes;

Que a redacção das listas pela ordem da sua preferencia exige nos
eleitores uma grande instrucção politica que elles não teem;

Que não previne o meio de realisar as eleições complementares;

Que é impossivel evitar a fraude no apuramento eleitoral, feito por
complicadas operações successivas;

Que, por esta forma de eleição, as associações religiosas, operarias,
ou destinadas a outro fim qualquer ficariam com um poder excessivo,
capaz de perturbar o equilibrio social, etc.

Eis, em summa, as principaes objecções apresentadas contra este systema.

Umas não teem razão de ser; outras teem fundamento, mas são enormemente
exaggeradas. O systema Hare-Andrae é complicado. Isto é innegavel. Mas
a complicação d’este systema não é d’aquellas que servem justamente
á condemnação dos processos eleitoraes. Porque? Porque a complicação
d’este systema se não manifesta _no exercicio das funcções do eleitor,
mas sómente nas obrigações impostas aos que teem a seu cargo dirigir os
actos eleitoraes_[97]. O eleitor não faz, na hypothese d’este systema,
mais do que é obrigado a fazer em qualquer outro regimen eleitoral.
Lança na urna o seu voto, e retira-se. A complicação começa só a partir
da contagem e apuramento dos votos, operações que ficam ao cuidado d’um
pequeno numero de cidadãos. Entre o dia da eleição e a proclamação
dos eleitos podem mediar alguns dias; mas isso que importa? Que
difficuldades traz? E, depois, não seria possivel dar a este pensamento
uma forma mais simples, mais expedita? A experiencia não facilitaria
progressivamente o jogo d’este machinismo burocratico?

Certamente que sim.

A extincção das influencias locaes é uma das difficuldades mais
vezes apresentadas contra a idéa fundamental d’este systema. Á parte
o exaggero com que a difficuldade tem sido proposta, não se póde
dizer que ella seja totalmente destituida de fundamento. Não que nós
entendamos que o deputado deve ser puramente, unicamente, representante
d’uma certa zona de terra, deputado de campanario, como é costume
dizer-se. O deputado é, antes de tudo, deputado da nação. Para nós,
a difficuldade sujeita tem outra razão de ser. É esta: no estado de
indifferentismo politico em que se encontram, se não todos, alguns
povos pelo menos, os interesses locaes são o unico meio de que se
póde lançar mão para entreter e agitar as forças da opinião publica.
Supprimido este mobil, é de receiar que a indifferença pelas cousas
publicas attinja as proporções d’uma paralysia moral.

Mas o systema da _representação pessoal_ póde ser modificado no
sentido das circumscripções provinciaes de 6 ou 8 deputados, e, feito
isso, a representação não perde inteiramente o seu caracter local. A
unidade de collegio não é, a nosso parecer, condição essencial d’este
systema[98]. Aubry-Vitet esboça o plano da realisação d’este principio
em circulos de 10 deputados; o sr. bispo de Vizeu applicava-o, no seu
projecto de lei de 12 de dezembro de 1870, aos districtos do paiz,
fazendo de cada districto um circulo eleitoral com direito a um numero
de deputados correspondente á sua população, na razão de 1 deputado por
cada 40:000 habitantes[99].

Feita esta modificação, ou outra semelhante, attenuam-se os
inconvenientes, tantas vezes ponderados, de se obrigar cada eleitor a
inscrever no seu boletim muitos nomes, e de inscrevel-os pela ordem da
preferencia, que elles lhe merecem. Estes inconvenientes são graves;
a objecção que se refere a elles é a mais importante de todas. Os
eleitores não teem, pela maior parte, capacidade necessaria para
escolherem e classificarem os seus candidatos, nem meio de harmonisarem
o seu boletim com os dos seus correligionarios ou companheiros de voto.

Os mais apaixonados defensores do systema Hare-Andrae dizem: a
objecção só é valida na hypothese de serem ineptos os eleitores e
lhes faltarem os meios de se instruirem e esclarecerem uns aos outros;
ora a imprensa, as associações, as reuniões eleitoraes ahi estão para
supprirem com a sua lição a ignorancia, a deficiencia intellectual dos
eleitores. A resposta não é triumphante. A hypothese da ignorancia
dos eleitores é verdadeira em todos os paizes. A imprensa, a tribuna,
o meeting instruem sómente os que são capazes de aprender. Aprender
é julgar; julgar é criticar. Que instrumentos de critica teem os
operarios das fabricas e dos campos, os artistas mechanicos, os
pequenos proprietarios ruraes, queremos dizer, a maior parte dos
cidadãos eleitores? Nenhum.

É por este lado que o systema Hare-Andrae se nos afigura mais
vulneravel. Demasiadamente theorico, demanda um estado de cultura ainda
distantissimo de nós.

É facilmente respondivel a objecção relativa ás eleições
supplementares. Para preencher qualquer vacatura bastará estatuir, além
do quociente eleitoral, variavel para cada eleição, o numero de votos
necessarios para ser eleito um deputado, numero que deve ser sempre
inferior á media dos quocientes eleitoraes; e, depois, dada a vacatura,
por qualquer das causas que costumam produzil-a, chamar os candidatos
que, nos collegios a que pertenciam os deputados a substituir,
obtiveram maior numero de votos.

Tambem não tem muito peso o dizer-se que é difficillimo evitar a fraude
nas operações do apuramento. Para a evitar seria sufficiente isto: a
maior publicidade d’essas operações, e pleno direito aos eleitores de
verificarem e examinarem as listas eleitoraes, que, como sensatamente
observou S. Mill, podem ser mandadas para a localidade de que sahiram,
e ahi examinadas pelos interessados n’isso, que são sómente os vencidos.

Ao ultimo argumento produzido contra a _representação pessoal_, e que
é relativo á immensa força das associações organisadas e dos partidos
fortemente constituidos, responde o eminente publicista, acima citado,
pelo modo mais claro e mais concludente: «Os elementos dispersos
não gozam, não podem gozar das vantagens que teem sempre os corpos
organisados. Como o plano do sr. Hare não muda a natureza das cousas,
não póde deixar de esperar-se que os partidos se aproveitem quanto
possivel da sua organisação para augmentarem a sua influencia. Mas com
o systema actual estas influencias são tudo. Os elementos dispersos
não valem cousa alguma. Os votantes que não pertencem a partidos
politicos, grandes ou pequenos, não teem meio de utilisar os seus
votos. O systema do sr. Hare dá-lhes esse meio... Se se affirma que os
interesses mesquinhos e as associações para objectos insignificantes
cuidariam logo da sua melhor organisação, porque hemos de suppôr que o
grande interesse da intelligencia e da honra nacional seria o unico a
desprezar os evidentes beneficios d’uma boa organisação?[100]»

       *       *       *       *       *

Pelo systema do _voto cumulativo_ o eleitor dispõe d’um numero de votos
egual ao numero de deputados a eleger, e póde repartir os seus votos
por outros tantos candidatos, distribuil-os desegualmente, ou dal-os
todos a um só. Este systema foi apresentado e defendido, na Inglaterra,
por James Garth Marshall, e proposto á camara dos communs por Lowe
em 1867, e, no mesmo anno, á camara alta por lord Grey. Rejeitado
pelo parlamento inglez em 1867, foi, em 1870, applicado á eleição dos
conselhos de escola de Londres e d’outras cidades da Gran-Bretanha.

Este systema tem uma grande perfeição theorica. A proporcionalidade da
eleição é mathematica desde que os partidos calculem rigorosamente os
votos de que dispõem, e, portanto, o numero de candidatos a propôr. Um
exemplo:

Circulo de 10:000 eleitores com direito a 10 deputados. Se 1:000
eleitores derem os seus votos a um candidato, este terá 10:000
suffragios, porque, na hypothese figurada, cada eleitor dispõe de 10
votos. Os outros 9:000 eleitores não podem, por fórma alguma, conseguir
mais que 9 deputados, quer votem todos nos mesmos 9 candidatos, quer se
dividam para votarem, estes n’uns certos nomes, aquelles em outros.

Nada mais exacto. Infelizmente, é impossivel fazer o calculo
exactissimo dos votos de cada partido antes da eleição, e, desde que
tal calculo se não faça, o systema póde produzir effeitos totalmente
oppostos á sua intenção. A George de Peyramont[101] devemos o seguinte
calculo comprovativo do que deixamos dito: Circulo de 3 deputados,
elegiveis por 30:000 eleitores, dos quaes 19:000 são conservadores e
11:000 republicanos. Se os conservadores dão os seus votos a um só
candidato e os republicanos os dividem entre si, obteem-se os seguintes
resultados:

 Numero de eleitores                          30:000
 Suffragios dados                             90:000
 Quociente eleitoral, ou numero de votos
   necessario para o vencimento               15:000

 Candidato conservador:    19:000 × 3   = 57:000 v.; el.
 Primeiro cand. rep. mod.: 11:000 × 3/2 = 16:500 v.; el.
 Segundo cand. rep. rad.:  11:000 × 3/2 = 16:500 v.; el.

N’esta hypothese a minoria venceu a maioria. Hypotheses como estas
seriam frequentissimas; seriam inevitaveis sempre que a maioria,
presando muito um nome, e receiando-se de qualquer eventualidade,
accumulasse sobre esse nome muitos votos superfluos.

A hypothese inversa póde dar-se tambem. Se a minoria não for compacta,
se não for animada do mesmo pensamento, se, por qualquer motivo, os
cidadãos que a constituem se não entenderem, a maioria vingará todos os
deputados do circulo.

Em poucas palavras, o systema do _voto cumulativo_, para ter uma
realisação justa, necessita duas condições raras e difficeis: que os
partidos calculem com exactidão a força eleitoral de que dispõem, e que
nos membros d’esses partidos reine a mais apertada obediencia e a mais
stricta disciplina.

Este systema está em vigor na Inglaterra e em alguns Estados do
Norte-Americano, e ahi se póde ver que não são mero producto da
phantasia os inconvenientes apontados. «Nas eleições dos conselhos
de escola de Inglaterra, na circumscripção de Marylebone, havia 7
pessoas a eleger. Miss Garrett obteve 47:858 votos, ao passo que M.
Watson foi eleito por 8:355 votos. Perto de 40:000 suffragios dos que
alcançou Miss Garrett foram perdidos; a opinião que ella representava
não conseguiu, na organisação do conselho, a parte proporcional á sua
importancia[102].»

«Nas eleições municipaes de Bloomsburg, na Pennsylvania, cujo resultado
foi julgado muito satisfatorio, pensou o partido republicano que podia
vingar quatro candidatos dos seis que havia a eleger, por meio d’uma
_habilidade_, que consistia em apropriar-se dois candidatos democratas,
a quem condecorou com as suas insignias. Enganou-se nos seus calculos,
e, a final, apenas obteve dois representantes, dispondo realmente de
suffragios, que, pelo menos, lhe asseguravam tres.[103]»

       *       *       *       *       *

O systema do _voto limitado_, primitivamente offerecido para collegios
de tres deputados, póde ser definido, na generalidade de que é
susceptivel, por esta fórma: systema em que o eleitor inscreve na sua
lista um numero de candidatos menor do que o de deputados a eleger,
sendo proclamados depois os que, no apuramento, obtiverem maioria.
Foi sustentado no parlamento inglez por lord John Russell e por lord
Cairns, adoptado em 1867 para os collegios de tres deputados, e
realisado nas eleições de 1868. Está em vigor no Brazil desde 1875 e na
Hespanha desde 1876[104].

O primeiro grandissimo inconveniente d’este systema é a necessidade
do arbitrario na fixação do numero de representantes a inscrever nas
listas. Na hypothese de collegios de tres deputados, de todas a mais
plausivel e a mais frequente, que razão ha para se suppôr em toda a
parte só dois partidos em lucta, e para os imaginar na proporção de um
para dois?

Mas os inconvenientes praticos são muito maiores. Na maioria dos casos,
o partido menos numeroso fica sem representantes; n’outros casos, a
minoria substitue-se á maioria, vencendo-a pelo calculo e pela manha.

Estes dois inconvenientes previstos por Morin em 1867 teem sido
já evidenciados pela experiencia. Nas eleições inglesas de 1868,
segundo E. Naville[105] a minoria, apesar de consideravel, não teve
representantes em Birmingham e em Glasgow. Em Londres, pelo que nos
diz Aubry-Vitet[106], o barão de Rothschild, que era o mais popular, o
mais querido dos candidatos whigs, foi vencido porque, confiando muito
nas geraes sympathias do seu chefe, os liberaes trataram de concentrar
todos os seus esforços na eleição um pouco duvidosa dos outros seus
candidatos.

Para evidenciar que, em casos perfeitamente normaes, póde ser
inteiramente sacrificado um terço dos eleitores, que é, de certo, uma
minoria muito consideravel, damos o seguinte calculo, na hypothese d’um
collegio de tres deputados:

 Numero total de votos      9:000
 Quociente eleitoral        3:000
 Maioria                    6:000
 Minoria                    3:000

A maioria póde dividir-se em tres grupos de 2:000 eleitores, e votar
assim:

 Nos candidatos A e B, 1.º grupo de 2:000 eleitores.
 Nos candidatos B e C, 2.º grupo de 2:000    »
 Nos candidatos A e C, 3.º grupo de 2:000    »

Feito isto, A, B e C alcançaram 4:000 votos cada um, e o candidato da
minoria não se logra da sua candidatura porque lhe é impossivel, seja
qual for a combinação a que se proceda, attingir mais do que 3:000
votos! O caso da minoria supplantar a maioria dá-se logo que a maioria
se divida, votando n’um numero de candidatos superior á sua influencia,
e a minoria, sabendo-o, calcular rigorosamente a distribuição dos seus
suffragios.

Ha ainda uma variante d’este systema devida ao duque de Ayen. O duque
propõe que cada collegio dê dois deputados á maioria de votos, não
podendo cada eleitor votar senão em um. Na essencia, é o projecto de
lord Cairns e de lord Russell. Não é proporcional nem justo, porque
impossibilita a representação de partidos que não sejam, nos casos
normaes, os dois mais numerosos de cada circulo. Todavia parece-nos
que de todas as variedades dos systemas de _lista incompleta_, esta é
a mais acceitavel. Pelo menos, não tem o inconveniente de deixar sem
representação a terça parte dos eleitores, como acontecerá muitas vezes
nos circulos de tres deputados. No projecto do duque de Ayen é isso
impossivel.

       *       *       *       *       *

No systema _proporcional_ de Th. Furet[107], cada circumscripção
eleitoral ha de eleger pelo menos tres deputados, e cada eleitor tem
de votar em tantos nomes quantos os deputados do seu collegio. Os
eleitores, por si ou por aquelles a quem estão ligados em communidade
de opiniões e de interesses, devem, segundo Th. Furet, fazer o
seguinte raciocinio: «Chamado pela constituição do meu paiz a eleger
uma fracção da representação nacional, reconheço que o homem que, de
preferencia a todos os outros, goza da minha confiança e das minhas
sympathias, e, por isso julgo dever escolher para meu representante, é
A. E porque é possivel que não vingue a candidatura de A, declaro que,
depois d’este candidato, preferiria B. Se nem A nem B fossem eleitos, o
que eu desejaria em logar d’elles seria C; mas na certeza de que, se eu
não tivesse a eleger senão dois representantes, as minhas preferencias
recairiam em A e B.»

Classificados os candidatos pela ordem do seu merito, é justo, pergunta
Th. Furet, attribuir ao suffragio dado a C, que só foi incluido nas
listas porque havia tres representantes a eleger, mas que o não seria
se fosse de dois sómente a eleição a que se procede; é justo attribuir
a esse suffragio a mesma importancia, o mesmo valor que teem os votos
dados a A e B, principalmente os dados a A? Não. Se o suffragio dado
a C vale 1, vale 2 o que foi dado a B, e vale 3 o que foi dado a A.
E assim, por _pontos_, que não simplesmente por votos, é que devem
contar-se os suffragios.

Transcrevemos para aqui o exemplo com que Furet elucida o seu systema.
Supponha-se a existencia d’uma circumscripção de 100:000 eleitores,
tendo direito a eleger 4 representantes. Cada eleitor vota em 4 nomes
graduados na inscripção. O primeiro dos nomes recebe o suffragio no
valor de 4, o segundo no valor de 3, o terceiro no valor de 2, o quarto
no valor de 1. Na hypothese de que a minoria esteja para a maioria na
proporção de 1 para 4, esta tem direito a 3 representantes e aquella
a 1. Conseguir-se-ha isso com este systema? Vejamos. A maioria dispõe
de 75:000 votos, e a minoria de 25:000 votos, e os eleitores votam sem
discrepancia nos candidatos dos seus partidos. Eis o que se apura:

 A terá 75:000 × 4 = 300:000
 B  »   75:000 × 3 = 225:000
 C  »   75:000 × 2 = 150:000
 D  »   75:000 × 1 =  75:000

Isto nas listas da maioria; nas da minoria eis o que liquida:

 _a_ terá 25:000 × 4 = 100:000
 _b_  »   25:000 × 3 = 75:000, etc.

A maioria tem 3 representantes; a minoria 1. Perfeita proporção. Th.
Furet applica o seu processo ao caso de não ser expressa em numero
redondo a relação entre os eleitos da minoria e o numero total dos
eleitos, e defende-a do seguinte modo:

Se, como no exemplo dado, a relação da minoria com a maioria for de 1
para 4, e, com aquelle numero de votantes, houver 5 ou 6 deputados a
eleger, a minoria nem por isso lucrará mais um deputado, o que será
justo, porque, estando para a maioria na relação de 1-1/4 ou 1/2
para 5 ou 6, não tem direito a dois deputados; mas se em vez de 6
forem 7 os representantes a eleger, a minoria estará para a maioria
na relação de 1-3/4 para 7, e, n’esse caso, vingado o primeiro nome
inscripto, ficará com relação ao ultimo, ao setimo, em condições eguaes
ás da maioria, e o empate deverá por lei ser decidido pelo modo mais
conveniente, tendo-se em consideração quaesquer alterações que os
eleitores queiram fazer na composição da sua lista, etc. Se for de
40:000 o numero de votos da minoria, e de 60:000 os da maioria, sendo
7 o numero dos representantes a eleger, por aquelle systema obterá a
minoria 3 deputados, apesar de estar para 7 na relação de 2/5, e 2/5 de
7 não serem exactamente 3.

Este systema é engenhoso, mas arbitrario e improporcional. Obriga
o eleitor a preferencias forçadas, que podem não estar na sua
consciencia, e classifica egualmente as preferencias de todos os
eleitores, quando é certo que, na grande maioria dos casos, as
preferencias são diversamente graduadas por elles. Além d’isso, se a
circumscripção a que pertence um dado eleitor tem de eleger 3 ou 4
deputados, claro está que cada eleitor tem o mesmo direito, que não
direitos deseguaes, relativamente a _todos_ esses. Ora, liquidada esta
verdade, fica sem fundamento racional o systema de Th. Furet, que, se é
apreciavel como exercido mathematico, não o é muito como plano politico.

       *       *       *       *       *

O systema do _suffragio uninominal_ foi apresentado ao parlamento
inglez em 1869 por Walter Baily, exposto e desenvolvido em 1870 pelo
marquez de Biencourt, e, em 1871, recommendado á França pelo veneravel
presidente da Associação reformista de Genebra. D’este benemerito
apostolo da representação proporcional traduzimos os principaes traços
d’aquelle systema: «Forma-se o quadro dos candidatos. Cada candidato
offerece e publica uma lista indicando, pela ordem da sua preferencia,
os outros candidatos a quem quer transferir os suffragios superfluos
ou insufficientes que elle possa obter. O eleitor depõe na urna o nome
d’um só candidato. Estabelece-se o quociente eleitoral, dividindo o
numero de suffragios pelo numero de deputados a eleger. Os suffragios
superfluos, assim como os insufficientes, serão transferidos segundo
as indicações fornecidas pelas listas que os candidatos depozeram. O
resultado da operação é este: são utilisados todos os suffragios e
obtem-se o numero de deputados que se quer, tendo todos, directamente
ou em virtude da transferencia dos votos, um numero de suffragios egual
ao quociente eleitoral.

«Este systema é, na essencia, o da representação proporcional, com a
differença de que o eleitor renuncia a determinar por si o emprego dos
suffragios excedentes ou insufficientes[108]...»

Este systema foi engendrado para remediar o gravissimo inconveniente do
systema Hare-Andrae, que exige de cada eleitor a inscripção graduada de
muitos candidatos; mas, se obsta a esse mal, tem em compensação tantas
e tão consideraveis difficuldades que, parece-nos, se fosse o unico
projecto de representação proporcional, mais valeria a continuação do
actual regimen com o seu acervo de iniquidades do que a substituição
d’elle pelo do _suffragio uninominal_.

Em primeiro logar, os votos d’uma parcialidade politica podem ser
aproveitados para vingar as candidaturas d’uma parcialidade opposta!
Na impossibilidade de se prever o numero de nomes de cada lista,
necessario para, em todos os casos, se operar a transferencia dos
votos, é mister affixar em todas as localidades as listas completas dos
candidatos de todo o paiz e dos cidadãos a que elles querem transferir
os votos superfluos ou insuficientes. Feito isto, e dada a hypothese de
terem pouquissimos votos os primeiros nomes inscriptos, ou a hypothese
inversa, a de terem obtido um numero grandissimo de suffragios,--esses
suffragios, insufficientes ou superfluos, vão accrescer aos nomes
immediatamente collocados, que, em muitos casos, são os adversarios
politicos dos designados antecedentemente!

Esta objecção é irrespondivel, e, vingada ella, annulla quaesquer
vantagens sonhadas pelos apresentantes d’este systema.

E. Naville, prevendo-a, procurou desfazel-a do seguinte modo: O facto
da transferencia dos suffragios para candidatos de opiniões oppostas
ás dos deponentes d’esses suffragios, que n’este systema seria
excepcionalissimo, é regra constante do regimen actual, visto que os
votos das minorias passam hoje ao partido mais numeroso, o qual, por
uma ficção da lei, representa a totalidade dos eleitores; além d’isso
é vantagem para eleitores em numero pequenissimo para vencerem uma
candidatura sua, o poderem accrescer com os seus votos á eleição do
candidato d’outro partido que lhes agrade mais, ou de que se arreceiem
menos[109].

A primeira razão é insufficiente; a segunda, impossível. São cousas
diversas a ficção legal, que faz do eleito da maioria o representante
de todo o circulo, e a eleição d’um candidato á custa de suffragios
dados _directamente_ pelos seus adversarios politicos: mas, e que
fossem analogas estas duas cousas, não seria aquillo resposta
concludente, visto que o systema do _suffragio uninominal_ ficava
assim equiparado aos processos vigentes no mais iniquo, no mais
desastrado dos seus effeitos. A apregoada vantagem de poderem alguns
eleitores, em numero muito minguado para conseguirem a eleição d’um
_seu_ representante, accrescer com os seus votos a uma candidatura
opposta, de que gostem mais, ou que menos lhes desagrade, não sabemos
como possa dar-se, visto que a inscripção dos candidatos ha de
seguir necessariamente uma ordem determinada, a alphabetica ou outra
qualquer, e parece-nos que, só por acaso, recairão os suffragios em
candidatos n’aquellas condições; mas, dado que tal _vantagem_ se
realise, é ella tão falsa, tão contraria ao modo geral de pensar e de
sentir, que, sinceramente, magoa-nos ser esposada semelhante idéa pelo
intelligentissimo presidente da Associação reformista de Genebra!

N’uma eleição, sensatamente disposta, não se discutem sympathias;
discutem-se, pleiteam-se opiniões. Quem tem opiniões definidas,
assentes, não póde associar-se á exaltação de representantes de
opiniões oppostas. Isto é simples e claro.

É exactamente pela falta d’esta comprehensão na maioria das
consciencias, que a politica anda muito alheia d’aquella seriedade
de caracter, d’aquella rigidez moral, que deve ser o esmalte da
democracia, e, sem o que, ella não vale mais do que as fórmas politicas
a que succedeu.

Não param aqui as más consequencias d’este systema. Meditado para
melhorar o processo de Th. Hare, que exige a inscripção de muitos
nomes a cidadãos que, pela maior parte, ou não os conhecem, ou, se os
conhecem, são incapazes de graduar a sua preferencia relativamente a
elles,--o _suffragio uninominal_ vem, a final, a cair exactamente nos
mesmos e, ás vezes, em peiores defeitos.

N’aquelle systema o eleitor não conhece os candidatos e vota n’elles
inconscientemente; n’este, egualmente os não conhece, e, apesar d’isso,
vota n’elles! Apenas se lhe poupa o trabalho material de escrever uns
poucos de nomes. Nada mais.

Depois, é porventura consoante á indole do systema representativo
a existencia de deputados de differentes categorias, uns eleitos
immediatamente pelos eleitores, e outros formados a puro beneficio dos
seus vizinhos de lista?

O suffragio indirecto, como o estabelece este processo, consistindo na
escolha d’um homem para este nomear outro, é acceitavel, ainda para
aquelles a quem não repugna muito o voto em dois gráus?

Não podem deixar de ser respondidas negativamente estas perguntas.

A substituição dos deputados que, por qualquer motivo, deixam o seu
logar na camara, quer E. Naville que se faça pela simples transferencia
dos votos d’aquelles deputados para os nomes inscriptos nas listas em
que elles alcançaram o quociente eleitoral. Ora, dado o caso de ter
obtido poucos votos o nome immediatamente inscripto (póde não ter
obtido voto algum), e de, pelo contrario, em outras listas apresentadas
na mesma circumscripção, terem alcançado muitos suffragios nomes que
não attingiram, apesar d’isso, o quociente estatuido,--póde acontecer
que sejam proclamados cidadãos que alcançaram poucos votos, ou que não
alcançaram algum, preterindo-se, para a representação d’esse circulo,
os nomes que mais se aproximaram do quociente eleitoral pela sympathia
pessoal que mereciam aos eleitores!

Isto não é uma incoherencia d’este systema, mas sim um novo caso da sua
injustiça.

       *       *       *       *       *

O ultimo e, a nosso parecer, o melhor dos systemas offerecidos para a
realisação da proporcionalidade eleitoral é--o _Projecto definitivo da
Associação reformista de Genebra_.

É este o que acceitamos, salvas algumas modificações. Vamos expol-o
e critical-o no capitulo seguinte, que é o final d’este livro. A
preferencia que justamente nos merece tal systema justifica a sua
posição n’um capitulo especial.


NOTAS DE RODAPÉ:

[91] _La réforme électorale en France_, pagg. 76 e 92.

[92] _Questions de mon temps_, tom. VIII, pag. 544 e segg.

[93] Emile Boutmy, _Journal de la Décentralisation_, cit. por Naville,
_La question électorale en France_, pag. 78.

[94] _Système électorale_, proposé par M. Th. Hare., Brux., 1864.

[95] S. Mill, _Le gouvernement répresentatif_, traduit par M. Dupont
White, pagg. 160, 161 e 162.

[96] Eis as disposições textuaes da lei dinamarqueza, tendentes a
proporcionalisar a representação politica:

       *       *       *       *       *

«§ 81.º A reunião eleitoral é publica. É dirigida pelo presidente do
comicio, que deve especialmente recommendar aos eleitores que indiquem
claramente nas suas listas os nomes e a profissão d’aquelles por quem
votam. Todos os eleitores (eleitores do segundo gráu e eleitores
directos) se apresentam em seguida diante do presidente, na ordem
designada por este ultimo, e depois de verificada a sua identidade
pelo comicio, recebe cada um do presidente uma lista contendo tantas
divisões quantos membros do Landsthing ha a eleger. Quando, apesar
do convite feito, não se apresentar mais ninguem a pedir listas,
procede-se immediatamente á votação sem que possa haver discussão a
respeito dos candidatos.

«§ 82.º As eleições do Landsthing fazem-se conforme segue, segundo o
systema chamado proporcional (Forholdstalsvalg).

«Os eleitores procedem á votação enchendo as listas que lhes foram
entregues (§ 81.º), as quaes são validas ainda que só contenham um
nome. Entregam-n’as depois, na ordem determinada pelo comicio, ao
presidente, que as recebe todas e as conta. O numero assim obtido
é dividido pelo dos membros do Landsthing a eleger no circulo, e o
quociente inteiro (Forholdstal) que d’ahi resultar--desprezam-se as
fracções--é tomado para base da eleição.

«Depois de mettidas e misturadas as listas n’uma urna _ad hoc_, o
presidente tira-as a uma por uma, dá-lhes o numero de ordem, e lê em
voz alta o nome que figurar á cabeça em cada uma d’ellas, o qual é ao
mesmo tempo escripto por outros dois membros do comicio. As listas que
contiverem o mesmo nome põem-se juntas, e logo que um nome tiver obtido
numero de votos egual ao quociente acima mencionado, interrompe o
presidente a sua leitura; procede-se depois a uma verificação, contando
novamente as listas, e, feito isto, o candidato em questão é proclamado
eleito. As listas que se tornaram a contar são provisoriamente postas
de lado.

«Continua-se depois a leitura das listas restantes, tendo o cuidado,
cada vez que o nome do membro já eleito fôr o primeiro da lista, de
o riscar e de considerar como primeiro o que se seguir na lista. Em
o segundo candidato obtendo o numero de votos acima determinado,
procede-se como já foi dito, e, terminada essa nova eleição,
continua-se a leitura, riscando sempre os nomes dos candidatos já
eleitos, quando estiverem á cabeça da lista, até já não haver listas.

«§ 83.º Se esta maneira de proceder não der nenhum resultado, ou não
deixe eleger todos os membros do circulo, examina-se quaes são os que
obtiveram maior numero de votos na leitura das listas, e essa maioria
é que decide das eleições que restarem a fazer; todavia, ninguem póde
ser eleito se não reunir um numero de suffragios maior que metade do
quociente mencionado no paragrapho precedente. No caso de divisão egual
dos votos, recorre-se ás sortes.

«§ 84.º Se não se conseguir assim completar as eleições, lêem-se
novamente todas as listas, e d’entre os candidatos collocados em
primeiro logar, que ainda não foram eleitos, tomam-se tantos quantas
eleições ha a fazer. Então decide a simples maioria.

«No caso de egualdade de votos, recorre-se á sorte.

       *       *       *       *       *

«§ 87.º Tudo o que se passar na reunião eleitoral consigna-se n’um
registro visado pelo presidente do comicio, e feito por um dos seus
membros. Esse registro deve em particular conter apontamentos exactos
a respeito do resultado da votação, numero das listas entregues,
candidatos que obtiveram votos, e o numero d’elles dado a cada um, e
tambem indicar se houve listas annulladas, e, n’esse caso, porque, etc.
As listas são depois selladas e conservadas com o registro.

«O presidente do comicio deve informar sem demora os candidatos
eleitos da sua nomeação, convidando-os a declarar se acceitam. Se não
desistirem nos 8 dias seguintes, entende-se que acceitaram.

«O mais tardar 8 dias depois de expirar esse praso, o presidente deve
entregar ao ministro competente uma copia do registro certificada por
elle. Em se reunindo o Landsthing, apresenta-lhe o ministro essas
copias, accrescentando as demais informações necessarias.» (Vide
_Jornal do Commercio_ de janeiro de 1871 desde o n.º 5:171 até 5:180.)

[97] Ph. Bourson, cit. pag. 35.

[98] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870.

[99] Eis as disposições d’este projecto de lei, relativas ao apuramento
dos votos, em que está realisado o principio da representação pessoal:

       *       *       *       *       *

«Art. 45.º Cada districto administrativo constitue um circulo eleitoral.

«Art. 46.º Por cada circulo eleitoral será eleito um numero de
deputados correspondente á sua população, na razão de um deputado por
cada 40:000 habitantes, conforme o mappa annexo a esta lei.

       *       *       *       *       *

«Art. 110.º Collocadas as listas sobre a mesa da assembléa, o
presidente as irá abrindo e entregando successiva e alternadamente aos
escrutinadores, para lerem em voz alta os nomes votados, que serão por
ambos os secretarios escriptos por extenso, com declaração do numero
dos votos que recaírem em cada nome.

«Art. 111.º Em cada lista será lido e apurado sómente o nome escripto
em primeiro logar.

«Art. 112.º São validas as listas que contiverem menor numero de nomes
que o dos deputados a eleger: se os nomes forem em numero superior,
consideram-se não escriptos os ultimos excedentes ao numero dos
deputados.

«§ unico. Ter-se-hão egualmente como não escriptos os nomes dos
individuos, que não reunirem as condições de elegibilidade requeridas
por esta lei, e como taes não estiverem comprehendidos na relação
publicada na folha official do governo na conformidade do disposto no §
2.º do artigo 43.º

«Art. 113.º O numero total das listas do circulo eleitoral dividido
pelo numero de deputados a eleger no mesmo circulo, dará o _quociente
eleitoral_, isto é, o numero de votos preciso para qualquer cidadão
ficar eleito deputado.

«Art. 114.º Logo que algum cidadão obtenha o numero de votos que
constitue o quociente eleitoral, considerar-se-ha o mesmo cidadão
eleito, e o presidente o proclamará deputado ás côrtes.

§ unico. Antes porém da proclamação mandará o presidente verificar, por
meio de contagem, o numero de listas, com que se preencheu o quociente
eleitoral.

«Art. 115.º Proclamado deputado qualquer cidadão, não se tornará a
ler o seu nome, nem se lhe contará mais votos, ainda que o mesmo nome
esteja em primeiro logar nas outras listas que se abrirem, nas quaes
deverá, n’este caso, riscar-se o nome já proclamado, e ler-se sómente o
nome que se lhe seguir na ordem da inscripção.

«Art. 116.º Á medida que se for reunindo em outros nomes o numero
de votos precisos para perfazer o quociente eleitoral, irão sendo
proclamados deputados os cidadãos que obtiverem esse numero de votos,
deixando egualmente de ler-se os seus nomes nas outras listas, e
tomando-se em consideração sómente os nomes dos immediatos na ordem das
listas, tudo como se acha disposto com relação ao primeiro proclamado,
até se concluir o apuramento de todas as listas.

«Art. 117.º As listas que contiverem o mesmo nome no logar de
preferencia, serão reunidas em separado e postas de parte, logo que
esse nome obtenha o numero de votos preciso para ser proclamado.

       *       *       *       *       *

«Art. 132.º Se occorrer alguma vacatura na representação de algum
circulo eleitoral, logo que a mesma vacatura for declarada pela camara
dos deputados, mandará o governo convocar a respectiva junta geral de
districto, n’um praso que não exceda a trinta dias, para que proceda
ao apuramento do deputado ou deputados que forem necessarios para
preencher as vacaturas.

«Art. 133.º Reunida e constituida a junta geral, pela fórma por que
tiver funccionado no apuramento geral, ou constituindo-se na fórma
prescripta no artigo 91.º, se não for a mesma que tiver funccionado
anteriormente, serão presentes as listas por que se fez o ultimo
apuramento geral e complementar, se tiver havido, e pelo seu exame
e leitura se verificará qual o nome ou nomes, que, depois dos já
proclamados, obtiveram maior numero de votos, independentemente da
ordem em que cada um dos nomes estiver inscripto nas listas; e d’entre
estes serão proclamados deputados os necessarios para preencher as
vacaturas occorridas.

«§ unico. N’este apuramento supplementar bastará a maioria relativa,
decidindo a sorte no caso de egualdade de votos.» (_Diario da Camara
dos srs. deputados_, correspondente á sessão de 14 de dezembro de 1870.)

[100] Stuart Mill, _Le gouvernement représentatif_, pag. 118.

[101] Cit. pelo marquez de Castellane, _Essai sur l’organisation du
suffrage universel en France_, pag. 154.

[102] B. Naville, _La question électoral en France_, pag. 87.

[103] E. Naville, _La question électorale en France_, pag. 88.

[104] Transcrevemos as principaes disposições da lei brazileira, e, em
seguida, as da lei hespanhola:

       *       *       *       *       *

«§ 9.º Installada a mesa parochial, começará a chamada dos votantes,
cada um dos quaes depositará na urna uma cedula fechada por todos
os lados, contendo tantos nomes de cidadãos elegiveis, quantos
corresponderem a dois terços dos eleitores que a parochia deve dar.

«Se o numero de eleitores da parochia exceder o multiplo de tres, o
votante addicionará aos dois terços um ou dois nomes, conforme fôr o
excedente.

       *       *       *       *       *

«§ 17. Para deputados á assembléa geral, ou para membros das assembléas
legislativas provinciaes, cada eleitor votará em tantos nomes quantos
corresponderem aos dois terços do numero total marcado para a provincia.

«Se o numero marcado para deputados á assembléa geral e membros da
assembléa legislativa provincial fôr superior ao multiplo de tres,
o eleitor addicionará aos dois terços um ou dois nomes de cidadãos,
conforme fôr o excedente.» (Art. 2.º do decreto n.º 2:675 de 20 de
outubro de 1875.)

       *       *       *       *       *

«DON AFFONSO XII,

«Por la gracia de Dios Rey constitucional de España.

«A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed: que las
Córtes han decretado y Nos sancionado lo seguiente:

«Articulo 1.º La ley municipal de 20 de Agosto de 1870 continuará
rigiendo con las reformas contenidas en las disposiciones seguientes:

«Primera. Las elecciones de Ayuntamientos se ajustarán á la ley
electoral de 20 de Agosto de 1870, sin otras modificaciones que las
expressadas á continuacion.

       *       *       *       *       *

«Se procurará que á cada colegio electoral corresponda elegir cuatro
Concejales, ó el número que más á este se aproxime. Cada elector votará
únicamente dos Concejales quando hayan de elegir-se tres en el colegio
electoral; tres cuando cuatro; cuatro cuando seis, y cinco cuando siete.

«Promulgada esta ley, se procederá a formar las listas electorales con
arreglo á lo prevenido en los párrafos anteriores, sujetándolas en su
formacion, plazos y demás requisitos y trámites á la ley electoral,
segun queda dispuesto.» (_Gaceta de Madrid_, 17 de Diciembre de 1876,
tom. IV, pag. 691.)

[105] _La question électoral en France_, pag. 80.

[106] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870.

[107] _Journal des Économistes_ (Avril à Juin, 1869), pag. 428 e segg.

[108] E. Naville, _La question électorale en France_, pagg. 103 e 104.

[109] E. Naville, _La question électoral en France_, pag. 110.



CAPITULO IV

 =Summario.=--O _projecto definitivo da Associação reformista de
 Genebra_, segundo a exposição que d’elle faz Jules de Smedt.
 Influencia d’aquelle projecto no nosso parlamento. As propostas
 de lei do sr. conselheiro J. Luciano de Castro. Em que consiste,
 fundamentalmente, este systema eleitoral.--Modificações introduzidas
 pelos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. Barbosa Leão no
 projecto da Associação de Genebra; sua discussão critica.--Se o
 eleitor, no systema sujeito, póde escrever menos nomes que os da sua
 _lista typo_, e tambem se póde varial-os. A nossa opinião.--Hypothese
 de apparecer um nome repetido em algumas listas. Se é justo que lhe
 sejam attribuidos sómente os suffragios da lista mais votada.--Apesar
 das suas imperfeições, o projecto da Associação de Genebra é
 acceitavel. Razões d’isso. Conclusão.


Não nos foi possivel obter um exemplar do relatorio em que a
_Associação reformista de Genebra_ apresentou o seu definitivo projecto
de representação proporcional. O conhecimento que temos d’elle veio-nos
da sua exposição feita no opusculo de Jules de Smedt, anteriormente
citado, no qual o publicista belga confessa que lhe introduziu algumas
leves modificações (_sauf quelques légères variantes_)[110].

Este systema impressionou profundamente a Suissa e a Belgica, e,
ultimamente, foi utilisado em duas propostas de lei apresentadas ao
nosso parlamento pelo sr. conselheiro Luciano da Castro[111]: a
primeira, com destino ás eleições municipaes, a proposito da discussão
do projecto de reforma administrativa; a segunda, destinada ás
eleições de deputados, na occasião em que se discutia o projecto que se
converteu na ultima lei eleitoral.

Eis no que consiste, fundamentalmente, o projecto definitivo da
_Associação reformista de Genebra_:

Antes do dia da eleição devem ser entregues ao presidente da eleição,
ou a qualquer outra pessoa designada pela lei, as listas dos candidatos
com um numero de nomes egual ao de representantes a eleger no circulo
eleitoral. As listas devem ser apresentadas por um numero determinado
de eleitores, de modo a evitar-se assim a producção de candidaturas sem
intenções de seriedade. Os nomes dos candidatos são inscriptos pela
ordem alphabetica, e as listas _numeradas_ depois de entregues.

A votação opera-se pelo modo mais simples: o eleitor lança na urna um
boletim que tenha o _numero d’ordem_ da lista que escolheu, e nomes de
candidatos em numero egual ou inferior ao de deputados a eleger no seu
respectivo circulo[112]. Nada mais.

Segue-se o apuramento. O apuramento, em que está a mais ingenhosa
innovação d’este systema, faz-se pela maneira seguinte:

Trata-se de saber, primeiro que tudo, qual o quociente eleitoral.
Determina-se este quociente dividindo o numero de boletins válidos pelo
numero de deputados a eleger. Em seguida são contados, e reunidos em
pacotes separados os boletins pertencentes a cada lista. Cada lista
obtem um numero de deputados proporcional ao numero de suffragios que
alcançou. Se, por exemplo, ha 6 deputados a eleger, duas listas em
lucta, uma, a primeira, que obteve 8:000 votos, e outra, a segunda,
4:000, e o quociente eleitoral é de 2:000 votos, temos: a lista
n.º 1, pois que obteve no numero total de seus suffragios 4 vezes o
quociente eleitoral, alcança 4 deputados; a lista n.º 2, tendo obtido
em suffragios o duplo do quociente, fica com 2 representantes.

Se ha fracções, e é mister recorrer a ellas para eleger alguns
deputados, o processo a seguir é este: a lista que obteve a maior
fracção elege o primeiro dos deputados que faltam; a lista que obteve a
fracção immediata á maior, elege o segundo, e assim por diante. Se duas
listas tiverem fracções eguaes, o deputado será attribuido á que tiver
numero inteiro maior; se tiverem o mesmo inteiro e a mesma fracção, a
sorte decidirá.

Sabido o numero de representantes a que tem direito cada lista,
procede-se á designação individual d’elles. Faz-se entre os nomes
de cada lista á maioria de votos. Não ha, n’este systema, eleições
supplementares. Na falta d’um deputado é chamado o candidato que,
na lista respectiva, estava inscripto immediatamente áquelle.
Referimo’-nos á segunda inscripção, á que se faz depois do apuramento,
em que se segue o numero dos votos obtidos por cada nome,--e não á
primeira que, como dissemos, é feita segundo a ordem alphabetica.

       *       *       *       *       *

O primeiro projecto de lei do sr. Luciano de Castro, relativo ás
eleições municipaes, é inteiramente moldado sobre estas idéas. O
segundo, com destino ás eleições de deputados, assim como o projecto
do sr. J. B. Leão, a que acima nos referimos, separam-se do systema
exposto na parte relativa ás fracções das listas. As modificações
feitas n’aquelle systema referem-se á hypothese de pertencer a fracção
maior a uma lista menos votada, e ao caso de alguma ou algumas das
listas não terem obtido o quociente eleitoral. N’aquelle caso querem
os proponentes dos referidos projectos que se attribua successivamente
a essa lista e a cada uma das mais votadas o deputado que falta; que
se divida a votação total de cada lista pelo numero de deputados que
fica tendo junctando-se-lhe esse; e que o deputado seja definitivamente
attribuido áquella em que cada deputado fique sendo eleito por maior
numero de votantes. Quando, á distribuição dos deputados a eleger pelas
fracções, concorrerem listas de candidatos que não tiverem alcançado
o quociente eleitoral, a votação das listas que attingiram esse
quociente, ha de, no pensamento d’aquellas propostas, decompor-se, indo
essas listas concorrer com as outras que o não attingiram com outros
tantos votos e mais um do que tem a mais votada d’estas. Se a ultima
parcella for egual, decidirá a sorte.

Vamos, com exemplos, pôr a toda a luz a differença entre o systema
da Associação reformista de Genebra, como nol-a expõe J. Smedt, e as
propostas ultimamente offerecidas ao nosso parlamento.

Figure-se um circulo eleitoral de 6 deputados, elegiveis por 18:000
votantes _effectivos_. O quociente eleitoral é de 3:000 suffragios.
Disputam-se na eleição tres listas de candidatos.

1.ª     3:900
2.ª    10:040
3.ª     4:060

Segundo o projecto definitivo da _Associação reformista de Genebra_ a
1.ª lista tem um deputado, a 2.ª tres deputados, e dois a 3.ª A esta
pertencem dois, porque, apesar de não ser a mais votada, a sua fracção
é a maior de todas. Pela proposta do sr. Luciano de Castro, assim como
pelo projecto do sr. Barbosa Leão, á 3.ª pertence sómente um deputado e
a 2.ª fica com quatro, _porque_, segundo o pensar de s. ex.ᵃˢ, _sempre
que houver deputados a eleger pelas fracções, tem de dividir-se a
votação total de cada lista pelo numero de deputados que fica tendo
junctando-se-lhe o que falta, e attribuir-se este depois áquella lista
em cada deputado fique eleito por maior numero de votos_. Ora as
operações dão este resultado:

               Votos     Deputados     Resto     2.º quociente
                         apurados
 1.ª lista    3:900         1           900         1:950
 2.ª   »     10:040         3         1:040         2:510
 3.ª   »      4:060         1         1:060         2:030

Realizando-se inteiramente o processo da _Associação reformista de
Genebra_, a 3.ª lista fica com dois deputados; admittida a modificação
feita pelas propostas apresentadas ao nosso parlamento, a vantagem é
para a 2.ª lista que fica com quatro.

Qual dos dois processos é mais justo? Qual é mais proporcional? Vamos
discutir este ponto.

Attribuindo-se o deputado que falta á 2.ª lista, temos que 4:060
eleitores da 2.ª lista elegem 1,62 de deputado, emquanto que 4:060
da 3.ª lista elegem 1 deputado. Se o deputado fosse attribuido á 3.ª
lista, então 4:060 eleitores da 2.ª lista davam 1,21 de deputado, ao
passo que egual numero da 3.ª lista dava 2 deputados.

Na hypothese figurada, o processo innovado pelo sr. Luciano de Castro é
o mais justo. Mas realizar-se-ha esta justiça em todos os casos a que
se applique aquelle processo?

Figuremos esta nova distribuição:

             Votos    Deputados    Resto    2.º quociente
                      apurados
 1.ª lista  3:900       1           900         1:950
 2.ª   »    9:410       3           410         2:352
 3.ª   »    4:690       1         1:690         2:345

Attribuindo-se o deputado á 2.ª lista (processo do sr. L. de Castro),
4:690 eleitores d’esta lista dão 1,99 de deputado, emquanto que 4:690
eleitores da 3.ª lista elegem apenas um deputado. Se o deputado fosse
attribuido (proj. primitivo) á 3.ª lista, 4:690 eleitores da 2.ª lista
dariam 1,50 de deputado, emquanto que egual numero da 3.ª lista daria
2 deputados. N’esta hypothese, evidentemente, o projecto primitivo
da Associação de Genebra é mais justo. Liquidado isto, eis a unica
conclusão legitima a deduzir:

Depende do modo por que apparecem votadas as listas a justiça d’um ou
d’outro processo.

Não é possivel, segundo nos parece, estatuir uma regra que
proporcionalize em todos os casos a eleição dos deputados produzidos
pelas fracções; e, tendo de optar por um dos dois processos, preferimos
o da Associação reformista de Genebra unicamente porque é mais simples.

Confessamos que esta impossibilidade de levar o principio da justiça
a todas as hypotheses da eleição realizada por este systema é muito
para ser considerada, e diminue bastante o merito da obra, a que por
tanto tempo se consagraram os mais validos talentos da Suissa; mas não
nos parece que isto seja motivo para lançar á margem este systema, que
resgata com muitas virtudes aquella imperfeição.

Tem ainda outras difficuldades, que hemos de apontar e apreciar pelo
seu justo valor; antes d’isso, porém, devemos discutir este processo
eleitoral na hypothese, que será frequentissima, de, havendo deputados
a eleger pelas fracções, concorrerem á eleição listas que não tenham
alcançado o quociente eleitoral.

O projecto da Associação reformista de Genebra é omisso para o caso de
concorrerem á attribuição de deputados a eleger pelas fracções listas
de candidatos que não tenham obtido o quociente eleitoral; mas, pelo
espirito geral do projecto, vê-se que a intenção dos seus auctores
é que, n’esta hypothese, os deputados que faltam sejam attribuidos
ás fracções simples logo que ellas sejam maiores do que as fracções
junctas aos numeros inteiros. Ha perfeita paridade de razão com o modo
por que é feita a attribuição dos deputados no caso acima figurado e
discutido.

Nas propostas de lei, apresentadas na nossa camara, estatue-se para
esse caso a seguinte disposição: a votação das listas que obtiveram
o quociente eleitoral decompõe-se, e vai concorrer com as que o não
obtiveram com outros tantos votos e mais um do que tem a mais votada
d’estas. Se for egual a ultima parcella, ha de a sorte decidir.
Exemplifiquemos[113]:

Circulo de 3 deputados; numero de votos validos 6:000; quociente
eleitoral 2:000 votos.

 1.ª lista    2:850 = 1:581 + 1:269 }
 2.ª   »      1:580                 } A.
 3.ª   »      1:570                 }

ou

 1.ª lista    3:025 = 1:541 + 1:484 }
 2.ª   »      1:540                 } B.
 3.ª   »      1:435                 }

ou

 1.ª lista    3:700 = 1:201 + 1:201 + 1:298 }
 2.ª   »      1:200                         } C.
 3.ª   »      1:100                         }

Pelo pensamento da Associação reformista de Genebra parece-nos que no
caso A pertence á 1.ª lista um deputado, e um a cada uma das outras;
que no caso B cabe egualmente um deputado a cada lista; e no caso C
tocam dois á 1.ª e um á 2.ª.

Pelo criterio dos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. J. Barbosa
Leão, no caso A não ha divergencia d’aquelle processo: cada lista fica
com um deputado; no caso B a 1.ª lista fica com dois deputados, e a 2.ª
com um; e no ultimo caso todos os deputados são attribuidos á 1.ª lista.

Qual dos dois processos é melhor?

Respectivamente a esta hypothese, entendemos que as modificações
introduzidas no projecto da Associação reformista de Genebra pelo sr.
Luciano de Castro são de todo o ponto acceitaveis. Não proporcionalizam
em todos os casos a eleição, porque, sempre que com as listas que
não obtiveram o quociente eleitoral concorrer mais que uma das que o
alcançaram, ha-de haver candidatos eleitos com votação desegual; mas
no caso em que uma só lista tenha attingido o quociente eleitoral,
o processo de que tratamos é inteiramente proporcional nos seus
resultados. N’aquella hypothese ha votação desegual, mas não verdadeira
injustiça, porque as listas mais votadas, comparadas com as outras, em
caso nenhum teem direito a mais deputados do que lhes são attribuidos.

Isto afigura-se-nos claro. Por isso, e tambem para não arripiarmos de
algarismos este nosso trabalho, não produzimos exemplos elucidativos
d’aquellas affirmações.

Deprehende-se do que fica dito a imperfeição d’este systema na parte
relativa ás fracções das listas; a consideração d’este defeito é,
porém, grandemente attenuada se se attender a que, variando de circulo
para circulo a votação das listas, o processo que n’uma eleição é
vantajoso para a lista d’um certo partido, n’outro collegio ser-lhe-ha
provavelmente desvantajoso.

No Cap. III d’este livro[114] combatemos um argumento d’esta ordem,
produzido contra a representação proporcional; mas os casos são
differentes, porque lá a questão era de ser ou não ser proporcional
a eleição, ao passo que aqui, discutindo-se um systema que, em
geral, a proporcionaliza, trata-se de saber o que é mais justo--se
deixar subsistir o regimen actual com todas as suas iniquidades, se
substituil-o por outro que acaba com a maior parte d’ellas, tendo
apenas contra si o ficar, em algumas poucas hypotheses, dependente a
sua exactidão de compensações eventuaes.

Pomos a toda a luz essa differença para que nos não acoimem de
incoherente.

       *       *       *       *       *

Vamos a outros pontos. N’este systema o eleitor tem de votar a sua
lista com o competente _numero de ordem_; mas deverá ser obrigado a
inscrever n’ella os mesmos nomes da lista d’aquelle numero, que foi
entregue antes da eleição á pessoa por lei designada para receber as
participações das candidaturas propostas, ou poderá variar os nomes
á sua vontade? Devem, ou não, ser acceitas listas que tiverem nomes
em numero inferior aos d’aquella a que pelo seu numero de ordem se
referem?

No projecto da Associação reformista de Genebra, qual o apresenta J.
de Smedt, assim como nas propostas do sr. Luciano de Castro, o eleitor
póde escrever menos nomes; não assim no projecto eleitoral do sr.
Barbosa Leão. Quanto a substituir os nomes primeiramente apresentados
por outros, isso seria a subversão completa de todo o systema, porque,
se tal cousa fosse permittida, ficavam sem significação alguma as
_numerações ordenadas_ das listas, que são a pedra angular de todo este
engenhoso edificio.

Facultando-se ao eleitor votar em todos os nomes da sua _lista typo_,
ou em menos, póde dar-se o seguinte gravissimo inconveniente: á sombra
d’um nome muitissimo votado, serem eleitos deputados os candidatos que
apenas obtiveram _pessoalmente_ a quarta ou quinta parte do quociente
estatuido!

Dar-se-ha isto sempre que, nas listas do mesmo numero d’ordem, um dado
nome obtenha duas, tres, quatro ou cinco vezes o quociente eleitoral,
tendo a maior parte dos eleitores riscado nas suas listas os outros
nomes inscriptos. A estes, por muito diminuta que seja a sua votação,
aproveitará sempre o maior numero de votos offerecidos ao seu camarada
de lista.

Isto não é justo. Para se não realizar semelhante inconveniente, deve a
lei declarar nullas todas as listas que se não conformarem com a _lista
typo_ do seu numero d’ordem.

Mas se as listas forem todas a copia exacta da _lista typo_, e,
portanto, os seus respectivos nomes alcançarem todos egual numero de
votos,--como se ha de fazer a escolha dos que teem de ser proclamados?
Á sorte? Pela maior edade? Substituindo-se a inscripção alphabetica
pela inscripção graduada segundo a preferencia que os candidatos
merecerem aos eleitores?

A Associação reformista de Genebra quer que, no caso de egualdade
de votos, sejam preferidos os mais velhos; no pensamento d’ella,
porém, isso raras vezes terá logar, visto que, pelo seu processo, é
facultativo votar em tantos nomes quantos elege o circulo ou em menos.
Mas é razoavel estabelecer semelhante criterio, dada a votação forçada
nos mesmos nomes? Não, evidentemente.

A sorte, como regra de applicação universal, é tambem de todo o ponto
insustentavel.

A inscripção pela ordem da preferencia, que aos eleitores mereceram os
candidatos, parece-nos que supprirá as difficuldades apontadas. Não nos
occorre outro meio mais sensato.

Dir-se-ha, talvez, que a sujeição aos nomes previamente apresentados
importa para o eleitor a suppressão ou, pelo menos, a diminuição da
sua liberdade; mas sem razão. O que isto importa é a necessidade
impreterivel das boas organisações partidarias. Não traz aquelle
inconveniente, fructea mil vantagens. Os povos que não estão divididos
em partidos seriamente organisados não podem tirar da politica liberal
os bons resultados de que ella é fecundissima quando sensatamente
exercitada. Isto já tem os foros de logar commum em sciencia social.
Se o eleitor está fóra dos partidos existentes, não acceitando as
suas idéas nem os seus homens, e não tem em volta de si um numero de
cidadãos sufficiente para poder, pelo menos, apresentar oficialmente
uma lista sua,--que direito tem a queixar-se da sociedade ou da lei?
Nenhum.

       *       *       *       *       *

Sempre que o nome d’um candidato, repetido em algumas listas, em
nenhuma obtenha o quociente eleitoral, esse nome não vingará, e todavia
bem póde acontecer que elle seja o mais votado de todo o circulo
eleitoral. N’este systema, como dito é, apenas lhe aproveitam os
suffragios da lista mais votada. Será isto um gravissimo inconveniente,
como á primeira vista parece? Não, a nosso pensar.

Este systema é a consagração eleitoral do principio das organisações
partidarias; ora se um candidato a nenhum dos partidos militantes
merece a confiança necessaria para ter o seu mandato d’elles, justo é
que não seja eleito. Não se trata da representação pessoal, trata-se
da representação partidaria; póde discutir-se esta base, mas não póde
contestar-se a perfeita coherencia do pensamento fundamental do systema
com a disposição respectiva á hypothese prefigurada.

       *       *       *       *       *

Não acceitamos algumas das mais notaveis modificações feitas no
projecto da Associação de Genebra pelo sr. B. Leão; falta-nos, porém,
o tempo preciso para fazermos largamente a sua critica. Se voltarmos a
este assumpto diremos as razões por que não acceitamos totalmente as
idéas d’este indefesso e illustrado escriptor.

       *       *       *       *       *

Do que fica exposto concluimos que o projecto definitivo da Associação
reformista de Genebra, não sendo perfeito em todas as suas partes,
é comtudo acceitavel, pelo menos como experiencia a tentar. O maior
defeito que lhe conhecemos é este: não ter um processo inteiramente
justo para o caso de concorrerem fracções á eleição dos deputados,
nos dois casos em que isso póde ter logar: disputando-se entre si as
fracções dos numeros inteiros (listas que alcançaram o quociente), ou
havendo listas completas em concorrencia com fracções simples. Quando
uma só lista completa concorrer com as fracções simples, o resultado
será, como já ponderámos, inteiramente proporcional.

Se, pois, este systema não acaba de vez com todas as injustiças do
actual regimen; se, em alguns casos, não póde deixar de inclinar-se
para um dos partidos combatentes na arena politica,--tem comtudo
excellentes qualidades, que justificam plenamente a preferencia com
que o distinguimos. Não é perfeito, mas, a nosso ver, sobrepuja
em excellencias a todos os processos oferecidos para a resolução
do problema eleitoral. Comparal-o com o systema vigente seria uma
impiedade.

Em sciencia social a exactidão absoluta é uma pura miragem da
consciencia; póde ser um ideal prestimoso, nunca será uma realidade
pratica. O bom é o menos máu, o melhor é o menos imperfeito. É assim
que responderemos aos que, em boa fé, manifestarem escrupulos de
acceitar esta innovação por ella não satisfazer inteiramente ás
exigencias logicas do seu espirito; aos que a impugnarem no interesse
do velho systema que nos opprime, aos que se arrecearem d’ella sómente
porque é uma revolução nos habitos e nas instituições vigentes, aos que
a não _quizerem_,--a esses diremos, com o mais intenso desejo de sermos
attendidos:

Reagir contra o progresso das idéas é como querer roubar o fogo do céu:
uma empresa ousada e eternamente infeliz. O pensamento da representação
proporcional é justo, e contra um pensamento justo não ha vontade que
valha, por mais obstinada que ella seja. A historia que o diga...


NOTAS DE RODAPÉ:

[110] _Réforme électorale_, pag. 21, not.

[111] Eis as propostas de lei acima citadas:

«Artigo 1.º No dia designado para a eleição e antes de se abrir o
escrutinio, serão apresentadas ao presidente da mesa eleitoral, por
dez eleitores, as listas dos candidatos aos logares de vereadores das
camaras municipaes, comprehendendo tantos nomes quantos os vereadores
que houver a eleger pelo respectivo concelho ou bairro. Os nomes dos
candidatos serão classificados por ordem alphabetica, e as listas
receberão um numero de ordem, que não poderá ser reproduzido n’outras.

«Art. 2.º No acto da eleição cada eleitor depositará na urna uma lista
contendo:

«1.º O numero de ordem da lista que escolher;

«2.º Um numero de nomes de candidatos egual ou inferior ao dos
vereadores a eleger.

«Art. 3.º Terminada a eleição, proceder-se-ha ao apuramento do seguinte
modo: contam-se as listas validas de todo o collegio eleitoral. O
numero d’estas, dividido pelo numero dos vereadores a eleger, indicará
o numero de votos necessario para ser eleito um vereador (_quociente
eleitoral_). Conta-se depois o numero de votos obtidos por cada lista,
isto é, o numero de listas que tem a indicação do mesmo numero de
ordem. As listas com o mesmo numero de ordem serão separadas para serem
apuradas á parte.

«§ 1.º Cada lista obterá o numero de vereadores proporcional ao numero
de votos que tiver alcançado. Para se conhecer este numero divide-se o
numero dos votos obtidos pelo quociente eleitoral. Se d’esta divisão
resultarem fracções, e faltarem ainda vereadores para eleger, os
restantes vereadores serão attribuidos ás listas pela ordem seguinte:
aquella que tiver a maior fracção obterá o primeiro vereador; a que
tiver a fracção maior immediata obterá o segundo vereador, e assim
successivamente.

«§ 2.º Se duas listas tiverem fracções eguaes, prevalecerá a que tiver
o maior numero inteiro. Se duas listas tiverem o mesmo numero inteiro e
a mesma fracção, a sorte designará a qual d’ellas pertence o vereador
que falta a eleger.

«Art. 4.º Concluido o escrutinio proclamar-se-ha:

«1.º O numero de listas validas;

«2.º O quociente eleitoral;

«3.º O numero de votos que obteve cada lista;

«4.º O numero de votos obtido pelas listas, que teem direito de eleger.

«Art 5.º Para a designação individual dos vereadores serão apuradas em
separado as listas que tiverem os mesmos numeros de ordem, contando-se
o numero de votos obtidos por cada candidato.

«§ 1.º Cada uma das listas será depois restabelecida collocando-se os
candidatos, não por ordem alphabetica, mas segundo o numero de votos
que obtiverem.

«§ 2.º No caso de egualdade de votos serão collocados em primeiro logar
os mais velhos.

«§ 3.º Estas listas terão caracter official, e serão conservadas até
nova eleição.

«Art. 6.º No caso de ser eleito o mesmo candidato em differentes listas
do mesmo ou diverso collegio eleitoral, ou no de recusa, fallecimento
ou renuncia, o vereador que faltar a uma das listas será substituido
pelo candidato, cujo nome se seguir ao seu.--_José Luciano de Castro._»

       *       *       *       *       *

«Artigo 1.º Antes do dia designado para a eleição serão apresentadas ao
juiz de direito da comarca em que fôr a séde do circulo eleitoral as
listas dos candidatos a deputados, comprehendendo tantos nomes quantos
forem os deputados a eleger. Os nomes dos candidatos serão collocados
por ordem alphabetica, e as listas receberão um numero de ordem, que
não poderá ser reproduzido n’outras.

«As listas serão apresentadas pelos candidatos, por seus
representantes, ou por quaesquer eleitores.

«Art. 2.º No acto da eleição, cada eleitor depositará na urna uma lista
contendo:

«1.º O numero de ordem da lista, que escolher;

«2.º Um numero de nomes de candidatos egual ou inferior ao dos
deputados a eleger.

«Art. 3.º Terminada a eleição, proceder-se-ha ao apuramento pela fórma
seguinte:

«Contam-se as listas validas de todo o circulo. O numero d’estas,
dividido pelo dos deputados a eleger, indicará o _quociente eleitoral_,
isto é, o numero de votos necessario para ser eleito um deputado.
Separam-se depois as listas, que teem o mesmo numero de ordem, e
contam-se os votos obtidos por cada uma das listas.

«§ 1.º Cada lista obterá o numero de deputados proporcional ao numero
de votos, que tiver obtido. Para se conhecer quantos deputados cabem
a cada lista, divide-se o numero de votos que alcançou pelo quociente
eleitoral. Se d’esta divisão resultarem fracções e faltarem ainda
deputados para eleger, serão os restantes attribuidos ás listas
votadas pela ordem seguinte: aquella que tiver a maior fracção obterá
o primeiro deputado, a que tiver a fracção maior immediata, obterá o
segundo, e assim successivamente.

«§ 2.º Concorrendo duas fracções eguaes, preferirá aquella lista, cujo
numero total de votos fôr maior. Se este numero fôr egual, decidirá a
sorte.

«§ 3.º Quando a fracção maior pertencer a uma lista menos votada,
attribuir-se-ha o deputado que falta a essa lista, e a cada uma das
outras mais votadas, dividindo-se a votação total de cada lista pelo
numero de deputados que fica tendo, junctando-se-lhe o que falta para
eleger e dando-se áquella, em que cada deputado fique eleito por
maioria, maior numero de votos. No caso de empate decidirá a sorte.

«§ 4.º Quando alguma ou algumas das listas não obtiverem o quociente
eleitoral, a votação das listas que o obtiverem decompõe-se indo
concorrer com as que o não alcançarem com tantos votos como os que tem
a mais votada d’estas ultimas listas. Se a ultima fracção fôr egual
decidirá a sorte.

«§ 5.º Se nenhuma das listas obtiver o quociente eleitoral haverá nova
eleição.

«Art. 4.º Para a designação individual dos deputados, serão apuradas em
separado as listas que tiverem os mesmos numeros de ordem, contando-se
o numero de votos obtidos por cada candidato.

«§ 1.º Cada uma das listas será depois recomposta, collocando-se os
candidatos, não por ordem alphabetica, mas segundo o numero dos votos
que obtiverem.

«§ 2.º No caso do egualdade de votos serão collocados em primeiro logar
os mais velhos.

«§ 3.º Estas listas serão consideradas como officiaes, e deverão ser
conservadas até nova eleição.--_José Luciano de Castro._»

[112] N’este ponto o sr. Barbosa Leão separa-se da Associação
reformista de Genebra e tambem do sr. conselheiro Luciano de Castro.
O artigo 18 do seu projecto diz: «A lista de voto do eleitor conterá
um numero de nomes egual ao numero de deputados a eleger. A lista que
contiver numero maior ou menor, será considerada nulla.»

[113] Este exemplo é tirado do projecto eleitoral do sr. José Barbosa
Leão.

[114] Pag. 111 e segg.

                                  FIM.



                                INDICE


                              INTRODUCÇÃO

                                                                    Pag.

=Summario.=--Concepção da politica como sciencia experimental.
Origens d’esta concepção em Turgot, Kant e Condorcet.
O seculo XVIII não era o meio proprio para o desenvolvimento
d’esta concepção. Razões d’isso.--A sociedade é um phenomeno
natural, cognoscivel pela observação. Demonstração directa
d’esta these.--É inexplicavel a evolução social pela philosophia
dos _principios absolutos_. Esta philosophia na Allemanha.
Divisões e subdivisões d’ella. A theologia hegeliana. Descredito
geral d’essa doutrina.--A influencia dos _grandes homens_ não
explica a historia. Os grandes homens não dirigem o movimento
social, apenas influenceiam a sua intensidade. Idéas de Herbert
Spencer sobre a theoria dos grandes homens. Critica d’essas
idéas.--A _providencia_, deducção racional da idéa de Deus, não
dá a explicação scientifica do universo. Doutrina da Egreja Catholica.
Theodicêa de Kant. O livro de Job e as idéas do philosopho
allemão. Como H. Spencer concilia a religião com a
sciencia. Refutação de Spencer por E. Littré. A nossa opinião.--Se
existe uma formula, a que esteja subordinada toda a sociologia.
Resposta negativa.--Augusto Comte e a _lei dos tres
estados_. Argumentos contra ella de Littré, Wyrouboff e Huxley.--A
philosophia de Spencer. Exposição e critica d’ella. Base
hypothetica do systema de Spencer, e caracter empirico da sua
lei de _evolução.--O transformismo_ de Darwin. Esta doutrina na
biologia e na sociologia. Bagehot e o seu transformismo applicado
á historia. A porção de verdade que ha na hypothese
transformista.--Fundo commum dos systemas criticados: a
experiencia é o methodo da sociologia; esta sciencia tem a biologia
por antecedente necessario.--Situação politica e social
do Occidente. Pangermanismo e panslavismo. A _lei da extensão
das raças_, applicada á Russia e á Allemanha. Perigos para as
nações neo-latinas. A constituição scientifica da sua politica é
o unico meio de os evitar. Conclusão                                1-66


CAPITULO I

=Summario.=--A questão da _extensão do suffragio_ é actual e
difficil. Data da revolução franceza de 1848 a sua maior importancia
prática, mas a origem d’ella, no ponto de vista moderno,
vem de 1790. Summula da legislação revolucionaria de
1780 a 1793. Napoleão III e o suffragio universal. Corrupção
politica do segundo imperio. Juizo de E. Olivier.--Proudhon e
o regimen representativo. Argumentos de Proudhon contra elle,
e contra os systemas de _legislação directa_, propostos por Considérant,
Rittinghausen e Ledru-Rollin. Porque não discutimos
a doutrina de Proudhon.--A metaphysica na questão do suffragio:
Rousseau, Diderot, Royer-Collard e Guizot. Antimonias
irreductiveis nos systemas d’estes philosophos. O suffragio é
um facto, não é uma theoria. Genese historica d’esse facto desde
a organisação politica de Athenas até aos nossos dias.--Assim
considerado o suffragio, a que condições deve satisfazer para
ser valido e legitimo. Se a instrucção resolve opportuna e efficazmente
o problema. Resposta negativa. Idéas de Laboulaye,
S. Mill e Littré. Opinião de Spencer sobre os effeitos moraes da
educação.--A instituição do suffragio só é possivel, dadas estas
duas cousas: a mais larga descentralisação administrativa, e a
sensata combinação das duas fórmas do voto, directa e indirecta.
Opiniões de Wirouboff, de S. Mill e de E. Naville. Valor
logico e discussão critica d’estas duas objecções: a descentralisação
não a improvisa a lei, fórma-a a historia,--o suffragio
indirecto repugna ao genio da democracia. Conclusão               67-104


CAPITULO II

=Summario.=--A representação politica deve ser proporcional.
Demonstração directa d’esta these pelos principios fundamentaes
de Direito Publico.--Erro dos que confundem a lei da
_maioria_, applicavel ás assembléas deliberantes, com a lei da
_proporcionalidade_, applicavel aos corpos eleitoraes. Este erro
no nosso parlamento. As minorias, como garantes dos interesses
nacionaes nas assembléas politicas. Perigos que correm os
governos exclusivistas com as suas maiorias.--É insensato o
argumento dos que menospresam a representação proporcional
com o fundamento de que as minorias _sempre teem alguma
representação_. Prova d’isso.--Em muitos casos o systema vigente,
julgando servir as maiorias, sacrifica-as. Demonstração.--Consequencias
immoraes do actual systema. É elle a causa
das abstenções politicas: testemunhos, em relação á França, de
H. Lasserre, Wyrouboff e Aubry-Vitet. Imprime ao exercicio
dos direitos politicos o caracter odioso das luctas pessoaes. Sacrifica
ás mediocridades os homens de valor: o exemplo dos
Estados Unidos, adduzido por Stuart Mill. Força a colligações
deshonrosas: testemunho de Borély.--Historia da representação
politica proporcional. O estudo e a instituição d’este regimen
na França, na Suissa, na Dinamarca, na Inglaterra, em
alguns estados do Norte-Americano, no Brazil, na Hespanha e
em Portugal. Conclusão.                                          105-136


CAPITULO III

=Summario.=--Systemas da representação proporcional. É impossivel
a sua exacta classificação. A de E. Naville, inacceitavel.--Systema
da _pluralidade simples_, de E. de Girardin. É irrealisavel.
Variante d’este systema devida ao sr. de Layre.--Systema
eleitoral _Hare-Andrae_. Differenças entre a lei dinamarqueza
e o projecto de Th. Hare; razão d’ellas. Principaes
disposições da lei dinamarqueza de 1867. Variantes d’este systema
por Aubry-Vitet e pelo sr. bispo de Vizeu. Principaes
disposições do projecto de lei portugueza de 12 de dezembro
de 1870. Objecções contra o systema Hare-Andrae; sua discussão
critica.--Systema do _voto cumulativo_. Sua perfeição theorica
e seus defeitos praticos. Alguns factos relativos á pratica
d’este systema na Inglaterra e na America.--Systema do _voto
limitado_ ou das _listas incompletas_. É arbitrario no seu fundamento;
confirmação historica dos inconvenientes d’este systema
previstos por Morin em 1867. Em casos normaes, um terço dos
eleitores póde ser inteiramente sacrificado. Adduz-se um calculo
comprovativo d’isto. Este systema no Brazil e na Hespanha.
Extractos da lei brazileira e da lei hespanhola. Variante
do duque d’Ayen.--Systema de _Th. Furet_. Exposição e critica.
É engenhoso, mas improporcional nos seus resultados e arbitrario
na sua base.--Systema do _suffragio uninominal_. Offerecido
para remediar os defeitos do processo Hare-Andrae, não os
remedeia, aggrava-os. Demonstração.--Indicação do systema
que acceitamos por mais racional e mais pratico. Transição
para o capitulo seguinte                                         137-168


CAPITULO IV

=Summario.=--O _projecto definitivo da Associação reformista
de Genebra_, segundo a exposição que d’elle faz Jules de Smedt.
Influencia d’aquelle projecto no nosso parlamento. As propostas
de lei do sr. conselheiro J. Luciano de Castro. Em que consiste,
fundamentalmente, este systema eleitoral.--Modificações
introduzidas pelos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. Barbosa
Leão no projecto da Associação de Genebra; sua discussão
critica.--Se o eleitor, no systema sujeito, póde escrever menos
nomes que os da sua _lista typo_, e tambem se póde varial-os.
A nossa opinião.--Hypothese de apparecer um nome repetido
em algumas listas. Se é justo que lhe sejam attribuidos sómente
os suffragios da lista mais votada.--Apesar das suas imperfeições,
o projecto da Associação de Genebra é acceitavel. Razões
d’isso. Conclusão                                                169-186



                          ERROS MAIS NOTAVEIS


  Pag.    Linh.    Erros                      Emendas

   3       28      [1] Idée                   [2] Idée
  14        8      fondametale                fondamentale
  16       26      No primeiro caso           N’este caso
  40       24      d’uma intenção             d’uma intuição
  55        5      teem                       tem
  57       22      pensa                      pense
  58        1      devida                     devidas
  64        5      Vera Sanoulitch            Vera Zassoulitch
  78       18      paradoxamente              paradoxalmente
  94       14      da França                  na França
  96       22      exercio                    exercicio
  97       15      concelhios e districtaes   concelhios, e ainda
                                                districtaes
 132        3      procedeu                   precedeu
 135       18      (1368)                     (1868)
 154       17      Lord                       lord
 158       14      prcvincial                 provincial



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