By Author | [ A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z | Other Symbols ] |
By Title | [ A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z | Other Symbols ] |
By Language |
Download this book: [ ASCII ] Look for this book on Amazon Tweet |
Title: A triste canção do sul : subsidios para a historia do fado Author: Pimentel, Alberto Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A triste canção do sul : subsidios para a historia do fado" *** SUL *** ALBERTO PIMENTEL A TRISTE CANÇÃO DO SUL Subsidios para a Historia do Fado LIVRARIA CENTRAL DE Gomes de Carvalho EDITOR 158, RUA DA PRATA, 160 LISBOA ALBERTO PIMENTEL A triste canção do sul (SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DO FADO) [Illustration] LISBOA _LIVRARIA CENTRAL de Gomes de Carvalho, editor_ 158--Rua da Prata--160 1904 LISBOA Typ. de Francisco Luiz Gonçalves 80, Rua do Alecrim, 82 1904 I Os romanos incluiam _Fatum_ na sua mythologia como sendo a vontade expressa não só por Jupiter, mas tambem pelos outros deuzes, em relação ao destino dos homens, das cidades e das nações. Os nossos diccionaristas mencionam esta etymologia, mas interpretam-n’a sob o ponto de vista do monotheismo. Assim, o Padre Raphael Bluteau, no _Vocabulario_, diz que, segundo a doutrina de Santo Agostinho e S. Thomaz, Fado é a disposição e providencia divina, que antevê os acontecimentos humanos. Moraes, encostando-se tambem aos theologos, define Fado dizendo: «é a ordenança que se vê em as coisas por divina providencia.» De modo que a differença consiste em admittir a vontade de muitos deuzes ou de um só Deus, mas o facto subsiste o mesmo tanto nas religiões polytheistas como nas monotheistas: acredita-se que o destino humano é regulado por uma auctoridade sobre-natural e tem de ser cumprido com indeclinavel sujeição. Os nossos poetas d’outr’ora (e ainda os modernos) deixaram-se dominar pela crença na fatalidade do destino, cuja infelicidade lamentam como «escravos da sorte.» Bastará citar o exemplo de Bocage: Que eu fosse em fim desgraçado Escreveu do Fado a mão; Lei do Fado não se muda; Triste do meu coração! O nosso povo, á semelhança dos poetas, tem sido sempre fatalista: explica suas faltas e desgraças, e tambem sua boa fortuna, por uma imposição da lei do Fado; no primeiro caso diz: «Estava escripto no livro dos destinos ou «Era Fado; tinha de ser assim»; no segundo caso: «Tive sorte; estou em sorte, etc.» Mas o nosso povo, com ser fatalista, no que alguns querem ver principalmente um vestigio da influencia arabe, como se o homem não tivesse acreditado sempre, mais ou menos, em todos os tempos e em todos os paizes, n’uma predestinação que lhe é imposta por um Arbitro supremo; o nosso povo, crente na fatalidade da sorte a que tem de obedecer, apenas n’um passado relativamente proximo começou a dar o nome de _Fados_ ás canções que celebram as agruras do destino e a crença na lei irrevogavel do Fado. A accepção da palavra _Fado_ no sentido de «canção» é relativamente moderna, ou só modernamente passou do calão para o vocabulario geral da lingua e para a technologia musical. Não apparece era os nossos mais antigos diccionarios: não vem em Bluteau (1712-1721); nem em Santa Rosa de Viterbo (1798). Nem apparece tambem nas primeiras edições do _Diccionario_ de Moraes (seculo XIX) tanto nas duas que foram revistas pelo auctor como em algumas das que se fizeram depois da sua morte. O _Diccionario_ de Faria, cuja 1.ª edição é de 1849, não traz, no vocabulo _Fado_, aquella accepção. É só depois de passada a primeira metade do seculo XIX que a palavra _Fado_ apparece nos diccionarios da lingua com o significado de canção popular, já sanccionado pelo uso commum. Lacerda, na 4.ª edição, que é de 1874, diz: «Fado, cantiga e dança popular, muito caracteristica e pouco decente: o de Lisboa, o de Coimbra». Na 5.ª edição, 1879, não altera a definição, mas substitue a palavra Coimbra pela palavra Cascaes. Na 5.ª edição de Moraes ainda não apparece o vocabulo _Fado_ com a significação de canção ou cantiga. Não pudemos consultar a 6.ª edição. Mas examinamos a 7.ª (1878) e foi n’esta que se nos deparou a accepção que procuravamos: «_Fado_, poema do vulgo, de caracter narrativo, em que se narra uma historia real ou imaginaria de desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida de uma certa classe, como no _fado do marujo_, _da freira_, etc. Musica popular, com um rythmo e movimento particular, que se toca ordinariamente na guitarra e que tem por lettra os poemas chamados _fados_.» Isto pelo que respeita aos diccionarios portuguezes. Quanto aos estrangeiros, tambem não se encontra no _Glossarium_ de Ducange aquella accepção. Apenas Freund, no seu diccionario latino, cita os vocabulos _Fatum_ e _Fatus_ como derivações de uma raiz commum, attribuindo a _Fatus_ tanto a significação de _destino_ como de _discurso_, o que justifica a propriedade com que se chama _Fado_ á cantiga, ao _discurso_ em verso que trata do _destino_, conservando-se ainda no Alemtejo a redundancia de dizer _cantigas do Fado_, para designar todas aquellas a que o _destino_ serve de thema. Nas collecções da Bibliotheca Nacional de Lisboa ha bastantes canções populares, desde 1820 até hoje, mas em nenhuma das mais antigas se encontra a designação de _Fado_. Intitulam-se «cantigas, romances, modas ou modinhas, etc.» O _Diccionario erudito_ de Padre João Pacheco (1734-38) traz todas as designações de musicas, canções e danças do seu tempo, mas não menciona os _Fados_. Nas _Infermidades da lingua, e arte que a ensina a emmudecer para melhorar_, composta pelo dr. Manuel Joseph de Paiva e publicada em 1760, vem arrolado grande numero de palavras e phrases, que o auctor, com excessivo e ás vezes injustificavel escrupulo, pretendia repellir da lingua portugueza, por as julgar indignas e improprias de um vocabulario grave. Não apparece ahi a palavra _Fadista_; nem a palavra _Fado_ no sentido de canção ou de vida dissoluta. Mas vem mencionada a palavra _banza_ que nós recebemos das nossas colonias africanas,[1] e que entrou na linguagem de calão d’onde passou para a litteratura humoristica, como se vê nas _Poesias_ de Costa e Silva (1844): Encostado ás meias portas Na Banza sarrafaçava. No fim do seculo XVIII a _Gazeta de Lisboa_ annunciava, frequentes vezes, _modinhas_ e _minuetes_, á venda nas lojas dos livreiros. Tambem annunciava _sonatas de guitarra_. Havia em 1792 um _Jornal de modinhas_, que se vendia na Real Fabrica e Impressão de Musica no Largo de Jesus, em Lisboa. O maestro Mr. Marchal, que então teve certa voga n’esta cidade, deu á estampa uma collecção de _minuetes_ e _rondós_. Este mesmo maestro explorava a musica das ruas, glosava os pregões das vendedeiras (por exemplo, _Azeitonas novas_, com variações, peça composta sobre o pregão de uma vendedeira de Lisboa: _Gazeta_ de 26 de fevereiro de 1793). Mas a designação _Fado_ não apparece ainda em nenhum dos annuncios que recommendavam as musicas populares. Beckford, nas suas cartas sobre Portugal, apenas se refere ás «modinhas», acompanhadas a guitarra. É que no seculo XVIII a _modinha_ estava em voga no nosso paiz; dominava por toda a parte, até no theatro, onde Antonio José da Silva, o _Judeu_, a aproveitou como elemento essencial das suas composições dramaticas. Theophilo Braga diz que a modinha, comquanto «seja uma creação musical do genio portuguez» se chamava _brazileira_, porque no Brazil se conservou «levada para ali pelos negociantes e colonos, e do Brazil a trouxe na sua inteireza primitiva Antonio José da Silva, que abandonára a patria aos oito annos de idade e achava n’essas cançonetas uma recordação da infancia.»[2]. Stafford, na _Historia da musica_, diz que as arias nacionaes dos portuguezes eram os _lunduns_ e as _modinhas_; Fétis falla de Hespanha, mas não de Portugal. Em toda a graciosa collecção da _Macarronea_, que tão pittorescamente retrata a vida academica de Coimbra no seculo XVIII, não ha noticia do _Fado_, mas sim de outras canções que os estudantes cantavam: _mille trovas_, com diz o _Sabonete Delphico_. Na _Feição á moderna ou logração desmascarada_ vem especificadas algumas d’essas canções, portuguezas e hespanholas: «E logo dareis duas gaitadas, fazendo o compasso com o pé, e seguindo o sonoro com a cabeça. Victor quem canta; lá vae _Bella arma misera_, ou outra da moda; depois entregar a algum curioso o instrumento, sair para o meio com o chapeu na mão a desafiar algum circumstante; dar quatro voltas de pé cambeo, ou bem ou mal, que sempre no fim se-ha de applaudir com catarro. Acabada esta primeira jornada, gritareis dizendo: «Venha doce, que estou esfalfado»; e depois de consolar a barriga comendo doce _usque ad satietatem_, saireis outra vez com o segundo papel lançando uma nesga de relação antiga v. g. do _Mariscal de Viron_, ou _D. Carlos Ozorio_, intimando no furor das acções a valentia, e nos requebros da voz a ternura, cortando o hespanhol como queijo do Alemtejo com faca flamenga, e no fim correspondendo aos vivas com perna trocada.» Nicolau Tolentino, que morreu em 1811, falla no _doce londum chorado_, nas modinhas brazileiras, cita algumas canções populares, taes como _De saudades morrerei_ e a _Comporta_; diz referindo-se á primeira, Cantada a vulgar modinha, Que é a dominante agora; e alludindo á segunda, Que de noite á sua porta Com famosos tangedores, Que o Talaveiras conforta, Lhe manda ternos amores Sobre as azas da _Comporta_; mas nem uma unica vez faz menção do _Fado_. * * * * * Nenhum dos poetas portuguezes que no seculo XVIII e na primeira metade do seculo XIX se tornaram mais populares emprega a palavra _Fado_ na accepção de canção ou cantiga. É certo que alguns estrangeiros que n’aquelles seculos, e ainda no anterior, visitaram Portugal, se mostraram impressionados, como lord Beckford, com o tom plangente da musica do nosso povo. O barão de Lahontan, que esteve em Lisboa no seculo XVII, diz que alta noite vagueavam guitarristas pelas ruas tocando umas _arias funebres como o «De Profundis.»_ Não lhes chama _Fado_, nem podia chamar, porque essa designação não era usada ainda.[3] O erudito escriptor portuense sr. Rocha Peixoto escreveu no periodico _Nova Alvorada_ um artigo a que deu o titulo de _O cruel e triste fado_ e em que synthetisou a relação psychica existente entre o _Fado_, canção, e a orientação historica do povo portuguez. «... o fado--pondera esse escriptor--e o que n’elle se diz de sonho, de sombra, de amor, de ciume, de ausencia, de saudade e principalmente de conformação com o cru e negro imperio do destino, eis o que exprime dramaticamente a feição da alma nacional. O fado é portuguez, é toda uma mentalidade, é toda uma Historia». Apenas o sr. Rocha Peixoto se deixou arrastar por um flagrante anachronismo quando diz que o infante D. Miguel de Bragança _batia o fado_. Oliveira Martins, que muitas vezes se enredou em salientes anachronismos, foi mais cauteloso quando poz a canção _Negro melro_ na bocca da plebe miguelista. Certamente que o povo, poeta das ruas, improvisador espontaneo e inconsciente, costumaria cantar em publico as suas desgraças e as da patria, como faziam, em mais alta graduação de merito litterario, os poetas cultos; ou repetiria as trovas d’estes poetas quando ellas exprimiam as dores da existencia individual ou o luto pelas desgraças e dissabores nacionaes. Sabemos que no seculo XVI se generalisaram na voz do povo as canções que lastimavam a ingente derrota do rei e do exercito em Alcacerquibir. Miguel Leitão de Andrade, na _Miscellanea_, traz uma d’essas canções, lettra e musica, mas dá-lhe o nome de _romance_; e tudo faz crêr na sua origem popular.[4]. A estas «toadas tristissimas» não se chamava _Fados_; nem chamou a nenhuma outra do mesmo genero até depois de 1840. Hoje ainda os viajantes estrangeiros se impressionam profundamente com a melancolia e dolorida doçura das nossas canções populares, mas já todos as designam pelo nome de _Fados_. Madame Adam, no seu livro _La patrie portugaise_ (1896), escreve: «Jovens guitarristas, agrupados em bandos, cantam e acompanham o _Fado_, a canção que se traduz pela palavra «Destino» e que é puramente lusitana. Todos os motivos do _Fado_ são portuguezes. Ha _Fados_ para todos os acontecimentos da vida, para o amor, especialmente; e para a politica tambem.» Tal é o testemunho de uma intelligente e instruida mulher franceza, que reconheceu em os nossos _Fados_ um caracter privativo, uma expressão nacional, a alma de um povo, emfim. Igual impressão recebeu um viajante hespanhol, que em novembro de 1896 escreveu, no jornal _A Voz do Commercio_, a seguinte apreciação: «Nada mejor como la música refleja el caracter y la manera de ser especial de los pueblos. Un filósofo aleman decia: daz-me los adagios de un pais cualquiera y la dictaré leyes. Pues bien, yo dispensaria los adagios y me sobraria con la música. España con sus jotas y sus peteneras y Portugal con su rico _fado_ son y serán siempre dos naciones antitéticas. La jota pide luz, castañuelas y vino en jarro. La petenera pide algomas: abrazos de muger que ahoguen, besos que quemen neurosis debilitantes y por encima de todo esto cañnitas de manzanilla bajo el toldo de una parra. En cambio, «_o fado_» pide silencio absoluto, penumbra misteriosa y una cierta dósis de tristeza en el corazon. Con diferencias tan marcadas antojáseme tarea fácil legislar para los dos paises sin mas que consultar cuadernos de música popular.» Só os escriptores da actualidade, tanto estrangeiros como nacionaes, fazem menção do _Fado_ no sentido de canção popular. Em um livro de memorias, aliás muito interessante,[5] e relativo á primeira metade do seculo XIX, diz o seu auctor fallando do enthusiasmo com que em Lisboa foi recebida a _Polka_: «Não só desthronou o _Solo inglez_, e fez prescrever a _Gavota_, como contribuiu tambem para a emigração do _Pirolito_--da _Maria Cachucha_--do _Beijo á Saloia_--do _Rei Chegou_ e do _Passarinho Trigueiro_. Creio mesmo que só então deixou de cantar-se a antiga e popular romança--_A Nau Cathrineta_, uma especie de--papão vai-te embora--com que os avós, desde o principio do seculo, vinham entretendo os serões e... acalentando os netos.» Nem uma unica palavra de referencia aos _Fados_. Mencionando a litteratura de cordel n’essa epoca, diz o mesmo auctor: «Ali (obras do Arco da rua Augusta) entretinham-me as toscas gravuras, quasi em papel pardo, do _João de Calais_--da _Imperatriz Porcina_--da _Cornelia Bororchia_--e da _Formosa Magalona_, que, á guiza de estendal de roupa, se baloiçavam bifurcadas no cordel que, de lado a lado, se prendia ao tapume com que estava vedada a passagem do Terreiro do Paço para a rua Augusta.» Tambem nenhuma referencia aos _Fados_, que hoje se vendem em folhetos, muitos d’elles com gravuras toscas (especialmente os que se referem a grandes crimes ou outros acontecimentos de sensação) e que são apregoados nas ruas. No romance do Padre João Candido de Carvalho (vulgarmente Padre Rabecão) _Eduardo ou os mysterios do Limoeiro_, publicado em 1849, não obstante ser uma chronica muito interessante dos costumes populares de Lisboa n’aquelle tempo, e começar por uma scena de taberna na Madragôa (hoje rua de Vicente Borga) não apparece a palavra _Fado_, comquanto haja uma referencia a _fadista_. É a seguinte: «Ao canto opposto existia uma outra banca, como para guardar symetria áquella, de que fallei; e sentado a ella estava um mancebo de 19 a 20 annos, de jaqueta, chapeu á christina, cinta de seda enrolada á _fadista_, calça de cotim enlameada, fumando no seu charuto de cinco réis, que accendia repetidas vezes, emquanto acompanhava as fumaças com outros tantos gollos de uma bebida quente que tinha mandado preparar por mais de uma vez, e em cada vez, que a pedia por ter esgotado o copo, repetia--_Oh patrão! dê-me outra Francisquinha._» É o typo do _Fadista_, descripto em 1849, a beber vinho na taberna, usando do calão e do traje da sua classe. Mas o Padre Rabecão, que viu o _Fadista_, não ouviu o _Fado_, nem a elle se refere nunca em nenhum dos quatro tomos do seu romance. Este facto leva-nos a formular uma hypothese, que opportunamente desenvolveremos. Tem-se dito muitas vezes que a origem dos nossos _Fados_ é arabe. Theophilo Braga inclina-se a esta opinião quando diz «que os cantos conhecidos pelo nome de _Huda_, pelo Arcipreste de Hita, são ainda os nossos _Fados_, que usados pelos tropeiros do Brazil coincidem com a descripção feita pelo arabista Caussin de Perceval.»[6] O Arcipreste de Hita, de que Theophilo Braga deu varias composições no jornal litterario _Era Nova_ e de que Amador de los Rios faz menção na _Historia critica da litteratura hespanhola_, compoz cantigas para cegos andantes e para tunas escolares; parecendo que tambem escrevera canções populares em arabe, o que aliás é contestado por alguns escriptores. Mas, como quer que seja, obedeceu manifestamente á influencia arabe, ainda quando se dè por assente que não chegou a escrever n’esta lingua alguns dos seus cantares. Theophilo Braga, filiando nos _Hudas_ os nossos _Fados_, acceita-os, pelo menos, como um vestigio d’aquella mesma influencia. E é ainda mais explicito quando diz: «As danças portuguezas participam dos caracteres provenientes da nossa situação: sensuaes, como os _Fados_, os _Batuques_ recebidos dos arabes e das possessões africanas, e as _Modinhas_ recebidas das colonias do Brazil.»[7] É verdade que nas _Epopeas da raça mosarabe_[8] fallando da xácara, usada pelos _xaques_ ou ciganos (d’onde veio a denominação _xácara_ ou _xacarandina_) diz que o nosso _Fado_ é «uma degeneração da _xácara_, que pelas transformações sociaes veio a substituir a canção de _gesta_ da idade media.» Ora nós seguiremos outro caminho; não nos demoraremos a apalpar hypotheses. Apenas mencionaremos os factos, e o que parece certo é que o _Fado_, tal como hoje o conhecemos, nasceu em Lisboa, depois da primeira metade do seculo XIX, e que d’aqui irradiou para as provincias, apenas com o caracter de «moda» de invenção moderna, o que exclue a hypothese de uma antiga filiação arabe. O erudito professor Ernesto Vieira, no seu _Diccionario musical_, chegou ás seguintes conclusões, que nos parecem exactas: 1.ᵃ O _Fado_ só é popular em Lisboa: para Coimbra foi levado pelos estudantes, e nem nos arredores d’estas duas cidades elle é usado pelos camponezes, que teem as suas cantigas especiaes e muito differentes. 2.ᵃ Nas provincias do sul, onde os arabes se conservaram por mais tempo e os seus costumes e tradições são ainda hoje mais vivos, o _Fado_ é quasi desconhecido principalmente entre a gente do campo. 3.ᵃ Nenhum livro ou escripto anterior ao actual seculo (XIX) faz a menor referencia a esta musica popular. 4.ᵃ A poesia com que, invariavelmente quasi, se canta o _Fado_ é uma quadra glosada em decimas, forma poetica d’uma antiguidade pouco remota, de uma origem nada popular e sem relação alguma com a poesia arabe. Effectivamente, o grande fóco de irradiação do _Fado_ é Lisboa; mas a provincia, tanto ao sul como ao norte, apenas o acceitou como um dictame da moda, que não logrou absorver e substituir os cancioneiros provinciaes. Dá-se com o _Fado_ e com outras canções, que em Lisboa cairam no gosto publico, o mesmo facto que se dá com os figurinos, as _toilettes_, cujo modelo a capital exporta para o interior do paiz: apparecem na provincia alguns exemplares, mas a maneira de vestir propria de cada região continúa subsistindo tradicionalmente. Os _Fados_ chegaram a Coimbra levados pelos estudantes, como diz Ernesto Vieira; e ao Minho, levados, como diz Camillo, pelos jovens fidalgos que mais ou menos frequentavam a capital e queriam ir dar-se ares extravagantes de marialvas e fadistas nas suas terras. Tambem foi Lisboa que exportou o _Fado_ para as provincias ultramarinas. Ha o _Fado de Loanda_, composto sobre motivos de cantos indigenas por um _maestro_ angolense, já fallecido, que veio á Europa estudar musica por conta da sua provincia. Não deve passar sem reparo o facto de Lacerda, na 4.ᵃ edição do seu _Diccionario_, feita em 1874, ter citado o _Fado_ de Lisboa e o de Coimbra; e de na 5.ᵃ edição, de 1879, ter substituido--Coimbra--por--Cascaes. Esta alteração corresponde certamente a um facto chronologico: é que a praia de Cascaes, mais proxima de Lisboa que a cidade de Coimbra, deve ter recebido o _Fado_ por contacto directo com os marialvas e fadistas da capital. Coimbra recebeu-o mais lentamente, levado por um ou outro estudante do sul em gerações successivas. A guitarra e o _Fado_ tiveram que luctar, nas serenatas da academia, com a tradição do «machinho», de que tanto se falla na _Macarronea_, e da viola; e com as canções amorosas ou populares, que estavam arraigadas nos costumes coimbrãos.[9] José Doria ficou celebre como tocador de viola. João de Deus, que era algarvio, e tinha, por isso, que passar algumas vezes em Lisboa, dava lindas serenatas de viola no Penedo da Saudade, cantando improvisos seus ou canções do povo, mas não tinha sympathias pelo _Fado_. Elle mesmo o confessa: «nunca pensei em _Fado_, nunca o apreciei, nem o toquei: liguei-o desde o principio ás mulheres de má vida, e de ahi a minha especie de aversão a tal musica; mas, aqui, ouvindo-o a estudantes, não me repugnou fazer-lhe umas tantas quadrinhas, e continuar-se-ha...»[10] Depois, na vida de Lisboa, familiarisou-se com a guitarra e, portanto, com o _Fado_, a tal ponto que estudou um systema de melhorar a pontuação das guitarras.[11] João de Deus diz, como vimos, ter composto «umas tantas quadrinhas» para serem cantadas com o acompanhamento de algum _Fado_. É certo que os _Fados_ á morte da Severa, e alguns mais, eram em quadras, mas depois o povo adoptou outra forma estrophica. A quadra, no _Fado_, veio modernamente de Coimbra e foi o estudante Hilario que lhe deu grande voga cantando quadras compostas por elle ou outros poetas. A lettra do _Fado_, na tradição popular, como nota Ernesto Vieira, é talhada nos moldes arcadicos do mote em quadras e da glosa em decimas. Esta tradição mantem-se ainda entre o povo de Lisboa nos _Fados_ que se vendem nos kiosques (que substituiram o muro, o cordel e o cego andante) e em alguma livraria, como, por exemplo, a de Verol Junior na rua Augusta. Apenas o _Fado_ litterario admitte a quadra em vez da decima. Mas o _Fado_, apesar da dupla aristocratisação que tem recebido dos poetas e das salas, denuncia a sua origem popular, a alma do povo que o canta. É nas ruas, nas tabernas e nos bordeis que o _Fado_ parece nascer, espontaneamente, como nascem certas flôres nos charcos: a _Pontederia crassula_, por exemplo, que é uma linda flor azul. Em geral a lettra dos _Fados_ justifica a etymologia, porque celebra as desgraças de um individuo ou de uma classe, mas ha casos em que a lettra, por glosar um assumpto alegre ou malicioso, briga com a toada dolente da guitarra. A musica, o acompanhamento, é sempre triste, como um ecco da alma do povo, ingenua e soffredora, que, pela sua rudeza, não sabe procurar difficuldades nos effeitos musicaes, contentando-se com uma toada simples e facil, e que, pela amargura do seu destino, está sempre disposta a carpir-se, a lastimar-se. A lettra do _Fado_ revela a facilidade espontanea da metrificação popular, da redondilha, que é o porta-voz da raça latina da peninsula, e na vivacidade por vezes maliciosa dos conceitos accentua-se a heroica resignação com que nós, os meridionaes, graças á inconstancia do nosso humor, á benignidade do clima e ao azul radioso do ceu, podemos afogar as nossas lagrimas no desabafo redemptor de um sorriso amargo... Assim é que nas cantigas do _Fado_ os assumptos mais tristes são temperados por um sabor picante de ironia, que lhes adelgaça o azedume, como, por exemplo, quando o _marinheiro_ conta a sua vida, ao som da guitarra, sorrindo e zombando do seu proprio destino: Para o almoço feijão, Ao jantar bolacha dura; Nem uma só vez sequer Pode beber agua pura. Comprehende-se que o povo, no meio dos seus prazeres, não esqueça inteiramente a pesada fatalidade com que a sorte o subjuga; mas comprehende-se tambem que ache gosto em saborear o desabafo que a guitarra lhe proporciona, fazendo-o cantar, e dando-lhe pretexto para molhar a palavra com o vinho. D’envolta pois com o sentido esmagador da palavra _Fado_, que representa uma condemnação invencivel, vem associada a ideia da folga na taberna, da merenda nas hortas, do passeio ao luar, emquanto a guitarra vai dizendo da sua justiça. N’esses momentos, o povo, sem esquecer a dureza do destino, porque a sente como o condemnado ás galés sente o peso da corrente de ferro, experimenta os unicos prazeres que lhe são permittidos, e que todos parecem volitar, como um enxame de abelhas, em torno da guitarra: o canto, a dança, o vinho, e o amor. Tudo quanto o _Fado_ inspira É o que só me entretem: Pois quem do _Fado_ se tira Não sabe o que é viver bem. O povo julga-se relativamente feliz na fruição d’esses prazeres que o _Fado_ arrasta comsigo. Assim elle pudesse prolongal-os! E, saboreando-os, encarece-lhes a voluptuosidade tentadora, que seria capaz, julga elle, porque é o melhor que pode gosar, de abalar a santidade do Papa: Se o Padre Santo soubesse O gosto que o _Fado_ tem, Viria de Roma aqui Bater o _Fado_ tambem. O povo de Lisboa, limitado ás ruas e ás tabernas da cidade, e, uma vez por outra, quando muito, ás hortas dos arrabaldes, encontra na guitarra, nas cantigas do _Fado_, a sua melhor distracção. O vinho da taberna pode leval-o até á embriaguez, até ao crime, como não raro acontece; mas quando não vai tão longe, suggere-lhe a vaga melancolia de uma vida contrariada de privações, produz no povo aquillo a que Camillo Castello Branco chamou com feliz propriedade a _sensação nervosa, o soluçado requebro das saudades do Vimioso_. Nas aldeias, especialmente no norte do paiz, a vida dos campos, muito laboriosa e sadia, inspira as canções vivazes, movimentadas, que a viola chuleira acompanha n’um andante batido, repenicado. Só o espirito de imitação, conduzido pelos fidalgos, pelos estudantes e pelos bohemios, principalmente os cegos andantes, tem introduzido o _Fado_ alfacinha nas provincias do norte, que o cantam sem o comprehender, porque as condições de vida são ahi muito differentes. É tambem por espirito de imitação que o _Fado_ se aristocratisou na guitarra dos marialvas e no piano das salas, como um producto exotico violentamente aclimado, uma planta d’estufa, que parece chorar pelo seu clima nativo--o clima dos bairros infamados e das ruas suspeitas. É preciso que o marialva viva fóra da sociedade em que nasceu, identificando-se com o povo, como o conde de Vimioso, para comprehender e sentir o _Fado_; a não ser isto, só o comprehende e sente um bohemio de talento, um poeta torturado como D. José de Almada, de quem Julio Cesar Machado escreveu: «Coisa curiosa: ninguem, a exceptuarmos o conde de Vimioso, cantava o _Fado_ como elle. O _Fado_ é a melancolia. Por baixo dos seus sorrisos, gracejos e gargalhadas d’elle, havia lagrimas sempre...» Só um ou outro homem bem nascido, o Vimioso, o Almada, tem conseguido celebrisar-se de guitarra na mão, por condições especiaes da sua existencia; mas todo o homem do povo é capaz de pôr lagrimas na voz para cantar o _Fado_, porque cada classe, como cada raça, possue uma gamma especial para interpretar as suas paixões, os golpes crueis do seu destino. [Illustration: D. JOSÉ D’ALMADA E LENCASTRE Escriptor e guitarrista primoroso (FALLECIDO EM JUNHO DE 1861)] Já vimos como ainda antes de estabelecida a denominação de _Fados_, os viajantes estrangeiros se impressionaram com as canções dolentes, na lettra e na musica, do povo portuguez. É que sempre temos sido um povo melancolico por effeito das condições da nossa propria existencia e de uma educação tradicional. Vivemos n’um paiz confrangido entre as montanhas e o mar: as montanhas criam as povoações alpestres e os pastores solitarios; o mar educa os marinheiros pensativos e concentrados, que serenamente jogam a vida contra a furia das tempestades na vastidão immensa das aguas. Nascemos de um grupo de lusitanos, que tiveram de soffrer o choque de povos poderosos, de immigrações torrenciaes e, por ultimo, de fazer a guerra contra os mouros, uma guerra de fanatismo, estimulada pelo odio de raça e pelo sentimento religioso, que é a mais cruel e intransigente de todas as guerras. Depois fomos navegadores em mares desconhecidos e conquistadores em plagas remotas, onde a nostalgia cortava o coração saudoso. Ouvimos o canto monotono e languido do preto em Africa. De lá parece havermos trazido o _lundum_, que se coadunou com o nosso genio melancolico, e que tem sido certamente a canção popular mais aproximada do _Fado_ actual. A expressão de Tolentino «o doce londum chorado» dá bem a impressão do _Fado choradinho_ de nossos dias. O excesso de religião pesou sobre nós com todos os seus terrores inquisitoriaes: o carcere, a tortura, o auto de fé. Vivemos mais de meio seculo opprimidos pelo jugo castelhano, a que só alguns fidalgos se mostravam affeiçoados por vil cortezanismo. Soffremos, no principio do seculo XIX, invasões armadas que exigiram um esforço duro para reconquistarmos a liberdade ameaçada. Tivemos violentas luctas partidarias, que accendiam odios figadaes entre os individuos de uma mesma familia. Depois da Regeneração, a vida publica tornou-se mais calma, mas os maus processos de administração trouxeram os desiquilibrios orçamentaes, as difficuldades financeiras, a falta de credito, os embaraços economicos, que dão um mal-estar geral. Como ultima desgraça, empobrecemos. E n’isso estamos. A nossa lingua é triste, exprime melhor a dolencia, o soffrimento moral, do que os pensamentos alegres e vivos. Falta-lhe o colorido e o gorgeio de outros idiomas neo-latinos: do francez, que é uma lingua de passaros; do italiano, que é uma lingua de musicos. Falta-lhe o vigor varonil do hespanhol, lingua aliás menos harmoniosa do que as outras duas, mas que tem a bravura como compensação. Orgulhamo-nos de possuir a palavra «saudade», que exprime melhor do que qualquer outro vocabulo das linguas estranhas o doer da ausencia, isto é, um pensamento triste, consolação unica das almas inconsolaveis por effeito de uma separação dolorosa. Escreveram alguns estrangeiros que somos um povo de namorados. Este conceito sôa como diagnostico de uma psychose nacional; exprime a nossa sensibilidade doentia excessivamente vibratil. Mas o amor dos portuguezes é sempre uma tortura, nos poetas e nos outros. D’ahi vem que toda a nossa poesia lyrica é soluçante e dolorida, desde Bernardim Ribeiro e Camões até Soares de Passos e Antonio Nobre; facto que tambem se reconhece nos poetas bohemios como Bocage, que perde o seu tom alegre e esturdio logo que roça pelo lyrismo subjectivo. O povo pertence á mesma raça dos poetas, vive e respira no mesmo meio geographico e social e, á parte a educação litteraria, soffre como elles. Portanto tambem canta como elles, ferindo a nota da tristeza, queixando-se do seu destino. É ainda mais desgraçado, e por isso é mais triste. Não é preciso, para explicar o estado permanente da alma nacional, exagerar a influencia arabe, nem filiar n’ella, exclusivamente, a melodia plangente do _Fado_. É certo que no Alemtejo o rythmo das canções populares é lento e arrastado, no que pode admittir-se até certo ponto o effeito de uma occupação arabe mais longa do que nas provincias do norte. Mas esse rythmo não chega a ser choroso e cortante como o dos _Fadinhos_, nem tem a mesma expressão de melancolia acabrunhada, esmagadora, que distingue o _Fado_. Em todo o paiz ha vestigios «dos mouros», como diz o nosso povo. São communs a todas as provincias as lendas das mouras encantadas. No norte, ainda apparecem as janellas de rótulas; no Alemtejo e Algarve os biôcos das mulheres. Sem embargo, o _Fado_ não está em todas as provincias de Portugal na alma do povo, nem por intuição, nem por tradição. Vai aonde o levam; e algumas povoações menos progressivas, acreditando aliás nas lendas mouriscas, repellem o _Fado_, preferem-lhe as suas canções locaes,[12] com que foram embaladas desde a infancia, e que traduzem melhor a tranquilla resignação, a paz saudavel da sua lide agricola. O baluarte do _Fado_ continua a ser, além de Lisboa, as tabernas dos seus arredores e as do Ribatejo, frequentadas por maltezes, toureiros, cocheiros e almocreves que estão em constante communicação com a capital. Mas nem ahi mesmo tem entrado na vida dos campos. A guitarra, o instrumento de melhor apropriação ao _Fado_, é que nos veio dos arabes; essa sim. É filha do alaude musulmano, e foi naturalmente conservada pelos jograes mouriscos. Alguns estrangeiros chamam-lhe ainda «guitarra mourisca» para a distinguir do instrumento a que dão o nome de--guitarra--e que não é outra cousa senão o violão ou a viola franceza.[13] Mas não se diga que a guitarra, por via da sua origem, trouxe comsigo a musica arabe, e que a melodia do _Fado_ proveio d’esta dupla origem. Parece ter sido no seculo XVIII que reviveu entre nós a tradição arabe da guitarra: pelo menos foi em 1796 que Antonio da Silva Leite publicou um methodo, considerado hoje como o primeiro que se imprimiu em Portugal, certamente na espectativa de encontrar mercado favoravel. Não padece duvida que n’esse seculo a guitarra serviu entre nós para executar «sonatas» e acompanhar «modinhas», muitas das quaes não glosavam assumptos tristes, nem cantavam a fatalidade amarga do Destino. Instrumento suave e relativamente perfeito, a guitarra adapta-se com facilidade aos requebros e á ternura das canções galantes e sentidas. Fez a sua epoca de «sonatas» e «modinhas» e identificou-se depois com o _Fado_ por um conjunto de disposições favoraveis para os soluços do amor, para os gemidos de desventura. Mas os proprios fadistas, na sua ancia de encontrar um instrumento que exprimisse ainda melhor toda a doçura gemente do _Fado_, abandonaram algum tempo a guitarra quando appareceu o bandolim. Tanto elles não tinham a intuição de que o _Fado_ e a guitarra fossem irmãos gemeos. A guitarra luctou então pela existencia e procurou combater o seu rival bandolim. Alindou-se; tratou de melhorar-se. Mudou a sua afinação, que era de cravelhas e chave, para a elegante chapa-leque; os seus pontos que eram, em algumas, 12 e, em outras, 14, passaram a 17. As cordas tambem de 10 passaram a 12. E foi assim, que vendo em litigio o monopolio do _Fado_, a guitarra se habilitou a executar trechos de operas, como acontecia nas mãos de João Maria dos Anjos. A toada do _Fado_ obedece a um padrão, a um typo musical, descripto segundo a technica pelo erudito professor Ernesto Vieira: «Existe uma grande quantidade de melodias sobre o fado, e a cada momento os cantores populares inventam outras; mas todas vasadas no molde primitivo que é o seguinte: um periodo de oito compassos em ²⁄₄, dividido em dois membros iguaes e symetricos, de dois desenhos cada um; preferencia do modo menor, embora muitas vezes passe para o maior com a mesma melodia ou com outra; acompanhamento de arpejo em semicolcheias feito unicamente com os accordes da tonica e da dominante, alternados de dois em dois compassos.» O fadista chama ao simples acompanhamento do canto: _Fado corrido_. Mas fora d’este caso, quando não ha cantor, o guitarrista «phantasia muitas variações sobre a mesma melodia», abandona-se á inspiração de momento, borda floreios e ornatos. Referindo-se em geral ás nossas canções, diz Theophilo Braga: «A pobreza ou simplicidade da Melodia portugueza provém-lhe da falta de melismos, ornatos, floreios estranhos, como acontece com as melodias hespanholas, muito pittorescas, mas cheias de ornatos dos arabes.»[14] Ora, esta theoria applicada ao _Fado_, na sua mais pura e inicial expressão, que é o canto (porque as variações são artificios que resultam de motivos primarios) exclue por sua vez a cooperação ornamental dos arabes na melodia do _Fado_, que é simples, ingenua, _corrida_. E tanto assim é que o sr. Theophilo Braga, descrevendo em outros logares o typo do _Fado_, mostra-o como sendo «uma longa narrativa, entremeiada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade, com uma forma dolorosa, observação profunda, graça despretenciosa, _monotonia de metro e de canto_, que infundem pesar quando os sons saem confusos do fundo das espeluncas. O rythmo d’este canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros.»[15] [Illustration: FADO DO MARINHEIRO (Este Fado é o mais antigo de que diz ter tido conhecimento o velho guitarrista Ambrosio Fernandes Maia)] A monotonia de metro e de canto no _Fado_, como o douto professor observou, contém-se justamente nos limites de simplicidade de todas as melodias populares portuguezas; vê-se, portanto, que os arabes, que deixaram vestigios de ornato na musica hespanhola, apenas deixariam no rythmo de algumas das nossas canções um tenue vestigio da sua dominação, e que o _Fado_ nasceu independentemente d’essa remota influencia. Quer-nos parecer que os _Fados_ da actualidade estão mais proximos, na indole como no tempo, dos _lunduns_ africanos do que dos _hudas_ arabes. Impressionado pela singela estructura musical do _Fado_ corrido, notou o professor Rœder, director do Conservatorio de Boston, que nos _Fados_ portuguezes a poesia era mais bella do que a melodia. Este auctorisado depoimento testemunha ainda em favor da exclusão do elemento arabe no _Fado_. Theophilo Braga quiz achar uma explicação do facto apontado pelo professor Rœder, e sustentou que acontecia em Portugal o que se dá entre todos aquelles povos, cuja civilisação assenta no municipalismo: uma efflorescencia de lyrismo pessoal, emotivo, que trasborda da alma para o verso. Pela nossa parte não remontaremos tão longe, nem tão alto. O municipalismo trouxe, é certo, uma vida tranquilla, um bem-estar social ás povoações que o acceitaram como regimen administrativo. A organisação municipal no nosso paiz teve o caracter de uma intima aggremiação familial, em que os dirigentes defendiam zelosamente os interesses da communidade, não vacillando, quando era preciso, em bater o pé deante da auctoridade real, ameaçando-a. Os governados, confiando na vigilancia dos governantes, não tinham que pensar na autonomia e defeza do municipio: podiam entregar-se a si mesmos, dar largas aos seus pensamentos de goso pessoal, expansão ás suas emoções e ideaes mais intimos. Era, não ha duvida, uma condição favoravel ao desenvolvimento do lyrismo emotivo. Mas o municipalismo está hoje decadente em Portugal pela absorpção tutelar dos governos e pela indifferença do povo. As franquias municipaes teem sido profundamente cerceadas. E comtudo não corresponde a esse facto uma sensivel depressão do instincto poetico do nosso povo, cuja faculdade de improviso se transmitte de geração em geração. Esta faculdade póde ter explicação na exagerada sensibilidade dos portuguezes, no seu immenso sentimentalismo, que encontra um meio propicio á inspiração nas circumstancias precarias e por vezes dolorosas do paiz. Quem canta seus males espanta, Quem chora seus males augmenta, diz o nosso povo como um axioma de therapeutica prática para curar as doenças da alma. O _Fado_ abre uma valvula de segurança ao desafogo da escória social, tão abundante em todas as capitaes, especialmente em Lisboa, que é uma cidade indolente e pobre. Todo o portuguez é poeta. São numerosos os improvisadores em Portugal, até nas classes menos cultas, e especialmente entre ellas. A lingua parece auxiliar esta predisposição hereditaria, tradicional, não só por ser triste e convidar á cadencia dolente, mas tambem por se adaptar facilmente á metrificação, especialmente á redondilha, que se encontra feita e perfeita em todos os prosadores. Castilho deu-se, com uma paciencia de cégo, ao trabalho de «medir» a prosa de alguns classicos, e achou dentro d’ella a contextura espontanea de varios metros. Os musicos em Portugal não são tão abundantes como os poetas, o que mostra que se repete uma banalidade, com resaibos mythologicos, quando se diz que a musica é irmã da poesia. Aprendemos sem esforço as melodias simples e singellas, como as do _Fado corrido_, porque são como que uma resonancia natural do proprio genio da lingua, uma especie de metrificação musical, parallela á versificação instinctiva do povo. Mas os bons compositores de musica, tanto nas classes illustradas como nas populares, não avultam pelo numero. O _Fado_ das ruas, cujo rythmo é facil, muito adaptavel á memoria e ouvido do povo, póde ter escasso merito litterario e artistico, mas tem sempre um alto valor ethnographico: é a historia cantada das classes e dos individuos inferiores. Não padece duvida que muitos dos nossos _Fados_ populares provéem de pessoas mais instruidas do que o povo; mas são escriptos para elle, que não os assimilará se os não entender. Por isso grande numero dos nossos _Fados_ mira á observação de phenomenos sociaes quotidianos, de interesses e particularidades de classe, ao retrato e biographia de typos da rua, quanto mais despresiveis mais apreciados pelo povo, que os conhece de perto. Outros _Fados_, especialmente os politicos, e os que celebram algum acontecimento grave, são uma exploração de momento, um recurso de occasião, que pretende aproveitar a sensação causada no povo tanto pelas tranquibernias dos governos e dos collegios eleitoraes, como pelos factos de importancia occorridos nas classes superiores. De modo que, póde bem dizer-se, o _Fado_ é em nossos dias um poderoso instrumento de divulgação, que se transmitte facilmente, por meio da imprensa, com uma rapidez electrica. Sob o ponto de vista da satyra e do epigramma, os _Fados_ substituem os mordentes _Pater noster_ de outr’ora, que não encontravam tão faceis meios de circulação como aquelles que a publicidade moderna proporciona. Camillo, referindo-se a um _Pater noster_ castelhano, que satyrisava Clemente VII, diz com razão: «É o que hoje chamaríamos o _Fado do Papa_.» [Illustração: Caricatura do typo fadista no cortejo com que os estudantes da Escola Polytechnica de Lisboa celebraram a publicação do «Decreto do cuspo».] NOTAS DE RODAPÉ: [1] _A lingua portuguesa, noções de glottologia geral e especial portugueza_, por F. Adolpho Coelho. [2] _Historia do theatro portuguez no seculo XVIII_, pag. 153. [3] O sr. visconde de Castilho (Julio) quando, ao descrever uma noite de S. João na quinta da Boa Vista em Carnide, põe Vieira Luzitano, que nasceu em 1699, a arranhar na banza, como outros rapazes, «os accordes lacrimosos e dulcissimos de um fado», dá a esses accordes um nome que se não podia referir á epoca do serão, mas emprega uma designação generica em o nosso tempo, por dar a impressão da indole melancolica que sempre tiveram entre nós as canções populares. Tomada ao pé da lettra, com relação áquella época, a palavra _Fado_ seria um anachronismo. [4] «É um canto plangente, estremamente singelo em estylo de fabordão. Pode-se por isso acreditar na sua origem popular; tem pelo menos esse caracter.» Ernesto Vieira, _A arte musical_, n.ᵒ 79, IV anno. [5] _A ultima nau portugueza_, reminiscencias por Theodoro José da Silva, Lisboa, 1891. [6] _O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições_, vol. I, pag. 62. [7] _O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições_, vol. I, pag. 385. [8] Pag. 321. [9] Ainda em 1886 o sr. Borges de Figueiredo escrevia no seu livro _Coimbra antiga e moderna_: «A viola foi sempre um dos instrumentos mais favoritos dos conimbricenses. Nas serenatas do Mondego e n’outras pelas ruas e suburbios da cidade, reina ella a par da flauta e do violão (viola franceza), já enchendo os ares de suas harmonias, já formando o acompanhamento de graciosos cantares.» [10] _Revista Portugueza_, n.ᵒ 6, 1894-95. [11] No mesmo periodico, n.ᵒ 1. [12] Os nomes d’estas canções variam, segundo o seu genero, de terra para terra: são _cantigas_, _modas_, _lôas_, _reisadas_, _chulas_, _trobos_, _remances_ (nos Açores, _aravias_) _jacras_ (xácaras) etc. [13] Ernesto Vieira, _Dicc. Mus._ [14] _A Tradição_, revista de ethnographia portugueza, IV anno, n.ᵒ 1. [15] _Historia da poesia popular portugueza_, pag. 89, e _Epopeas da raça mosarabe_, pag. 321. II Fadistas O facto de termos encontrado nos _Mysterios do Limoeiro_ a palavra _fadista_ (como termo de calão e por isso graphada em italico) sem que até essa epoca (1849) appareça qualquer vestigio do vocabulo _Fado_ ou _Fadinho_ na accepção de cantiga popular, leva-nos á conjectura de que foi da moderna nomenclatura da classe que derivou o nome da canção, em vez de ser da canção que proviesse o nome á classe. Entende-se por fadista a pessoa que cumpre um mau destino; seja homem ou mulher, prostituta ou rufião. E aqui ha a notar que o vocabulo fado tomou em calão um sentido exclusivamente pejorativo: Vida do fado, a má vida; moça do fado, a rameira. Umas palavras geram outras: de fado (destino) veio fadista; fadistar, levar vida de fadista; afadistar-se, adquirir ares e modos de fadista; fadistagem, a conectividade da gente de mau fado, a pratica de suas tunantadas e proezas; fadistice, a chibança ou prosápia de fadista; _Fado_ ou _Fadinho_ (e _Faduncho_, aliás menos vulgar) canção em que os faditas lastimam o seu destino. «O _Fado_, escreve Palmeirim, é de ordinario a historia veridica e romanesca do homem que de guitarra em punho extasia os ouvintes, narrando-lhes as tribulações da sua vida ou os incidentes e peripécias dos seus amores. O mote, a divisa do fadista é: Eu hei de morrer cantando Pois que chorando nasci.»[16] De cantar _o seu fado_ veio a dizer-se, por generalisação, «cantar o Fado». E esta palavra tomou a accepção de cantiga de fadistas: como em italiano _barcarola_ é a canção dos _barcaiurolos_ (gondoleiros) e no portuguez--_serrana_--é a canção dos habitantes das montanhas (serranos). É claro que em todos os tempos existiram na sociedade portugueza, e nas outras, como escumalha vil da civilisação, os representantes da classe a que hoje se dá o nome collectivo de _fadistas_. Os autos de Gil Vicente e do Chiado deixam uma nitida impressão do que era essa despresivel classe no seculo XVI em Portugal. N’elles apparece a par da boneja (prostituta) o rufião, que a explora; o rascão bebado e desordeiro, ocioso e libertino, trovista e tangedor de taberna; o vaganau, etc. No seculo XVIII encontramos, segundo a lição de Bluteau, «marotos», ganisaros ou janisaros, etc. [Illustração: TYPOS DE FADISTA (Copias de bonecos de barro)] Só desde o fim da primeira metade do seculo XIX nos apparece, porém, a designação _fadistas_, com a de faias,[17] faiantes,[18] bailhões,[19] etc; e a de _Fados_ como nome generico das suas canções. O _Fado_, n’esta accepção, é uma palavra adoptada ha meio seculo ou pouco mais. O _Fadista_, no seu aspecto moderno, tem surgido aos nossos olhos como um typo social que os escriptores contemporaneos observam e descrevem. «Chama-se _Fadista_--diz Theophilo Braga--ao vagabundo nocturno que no meio das suas aventuras modula essas cantigas (_Fados_); no velho francez, _Fatiste_ significa poeta, e Edelestand Du Meril pretende que esta designação vem do scandinavo _fata_, vestir, compor.»[20] Apoiado na chronologia, crêmos, como já exposémos, que não foram as canções que deram o nome aos fadistas; mas que, pelo contrario, d’elles o receberam as canções. Tanto mais que, entre nós, a palavra fadista não tem a significação restricta de tangedor e cantor ou poeta de _Fados_, mas é commum a todos os individuos que vivem no mesmo meio de depravação e libertinagem, sejam de um ou de outro sexo. E n’esta accepção generica parece tel-a já empregado o padre Rabecão em 1849, porque o seu fadista da taberna da Madragôa bebe e não canta. A evidencia do typo--fadista,--de que Lisboa é alfòbre copioso, tem-se imposto, repetimos, á observação dos bellos-espiritos da litteratura moderna, alguns dos quaes, e dos mais brilhantes, o retrataram com uma fidelidade flagrante, como vamos vêr. Ramalho Ortigão, nas _Farpas_, lança uma affirmação demasiado absoluta quando diz: «Em cidade alguma da Europa existe uma palavra de significação analoga a esta--_o fadista_.» É claro que o typo humano não apresenta o mesmo aspecto em todas as raças e nações. O clima e a civilisação modificam-n’o, alteram-n’o. Mas ha um fundo cosmopolita, de equivalencia social, que supprime as distancias e as fronteiras. Assim, pelo que respeita á escoria da sociedade, existe em Hespanha o _chulo_, e em França o _souteneur_, que correspondem ao nosso rufião. Todos elles vivem á custa de mulheres perdidas, cantando e bebendo nas tabernas e nos bordeis, como os fadistas portuguezes. Em Roma ha os _camorristi_, gente de «mala vita», que dão uma facada por gosto, e vivem na devassidão, como os bailhões e faias da fadistagem de Lisboa. Em Napoles o _lazarone_, representando a ultima classe do povo, é um inutil perigoso como o nosso fadista. Fóra da Europa, no Brazil, existe o _capoeira_. Em toda a parte a sociedade tem a sua bôrra immunda, e uma palavra, ou mais de uma palavra, para definil-a. Precisamos, pois, investigar qual seria o pensamento de Ramalho Ortigão, que não desconhece todos estes factos, ao escrever aquella phrase, em que parece conter-se uma affirmação gratuita por demasiadamente extensiva. Quereria, provavelmente, dizer que, apesar do povo ser em toda a parte fatalista, em nenhuma outra lingua ha uma palavra que lance unicamente á fatalidade do destino a responsabilidade dos actos praticados pela ultima classe social. O illustre escriptor lembra que o fadista moderno continua os espadachins populares que, no seculo XVIII, suciavam com os fidalgos em arruaças e espancamentos nocturnos. Depois fixa o perfil do fadista, a seguros traços, dizendo: «O fadista não trabalha nem possue capitaes que representem uma accumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração do seu proximo. Faz-se sustentar de ordinario por uma mulher publica, que elle espanca systematicamente. Não tem domicilio certo. Habita successivamente na taberna, na batota, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da policia. Está inteiramente atrophiado pela ociosidade, pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do alcool. É um anemico, um cobarde e um estupido. Tem tosse e tem febre; o seu peito é concavo, os braços são frageis, as pernas cambadas; as mãos, finas e pallidas como as das mulheres, suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os dedos queimados e ennegrecidos pelo cigarro; a cabelleira fétida, enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de banha. A ferramenta do seu officio consta de uma guitarra e de um _Santo Christo_, que assim chamam technicamente a grande navalha de ponta e triplice calço na mola. É habitado por uma molestia secreta e por varios parasitas da epiderme. Um homem de constituição normal desconjuntar-lhe-hia o esqueleto, arrombal-o-hia com um sôco. Elle sente isso e é traiçoeiro pelo instincto de inferioridade. Não ataca de frente como o espadachim ou o pugilista, investe obliquamente, tergiversando, fugindo com o corpo, fazendo fintas com uma agilidade proveniente do seu unico exercicio muscular--as _escovinhas_. Não ha senão uma defeza para o modo como elle aggride: o tiro ou a bengala, quando esta seja manejada por um jogador estremamente destro. A guitarra debaixo do braço substitue n’elle a espada á cinta, por meio da qual se acamaradavam com a nobreza os pimpões seus ascendentes do seculo XVII. É pela prenda de guitarrista que elle entra de gôrra com os fidalgos, acompanhando-os ainda hoje nas feiras, nas touradas da Alhandra e da Aldea Gallega, e uma ou outra vez nas ceias da Mouraria, onde depois da meia noite se vai comer o prato de _desfeita_, acepipe composto de bacalhau e grão de bico polvilhado de vermelho por uma camada de colorau picante.» Em seguida pormenorisa o traje tradicional do fadista: «a bota fina de tacão apiorrado ou o salto de prateleira, a calça estrangulada no joelho e apolainada até o bico do pé, a cinta, a jaleca de astrakan e o chapeu arremessado para a nuca pelo dedo pollegar, com o gesto classico do grande estylo canalha.» Apenas lhe esqueceu um complemento da _toilette_: o penteado, as melenas cuidadosamente lisas e repuxadas sobre as orelhas. Descreve-o, finalmente, cantando o _Fado_: «A guitarra, seu instrumento de industria e de amor, dedilha-a elle com um desfastio impávido, deixando pender o cigarro do canto do beiço pegajoso, gretado e descahido; com um olho fechado ao fumo do tabaco e o outro aberto mas apagado, dormente, perdido no vago em uma contemplação imbecil; o tronco do corpo cahido mollemente para cima do quadril; a perna encurvada com o bico do pé para fóra; o _cachucho_ da amante reluzindo na mão pallida e suja. Tambem canta algumas vezes, apoiando a mão na ilharga, suspendendo o cigarro nos dedos, de cabeça alta, esticando as cordoveias do pescoço e entoando a melopéa dos fados, em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devoções religiosas á Virgem Maria, com uma voz soluçada, quebrada na larynge, acompanhada da expressão physionomica de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miseravel.» Uma exuberante tatuagem é um dos caracteristicos do corpo do fadista; ás vezes, não só exuberante, mas tambem muito complicada de figurações caprichosas, algumas das quaes, como o signosamão, cuja interpretação ethnographica está por fazer, livram, segundo a superstição tradicional, de maus olhados e de espiritos ruins. Na vida do fado este facto é commum tanto ao homem como á mulher. O rufião tatúa a amante, pacientemente, como se estivesse produzindo, com ternura e enthusiasmo, uma obra de arte; ou se tatúa a si mesmo ou se deixa tatuar pelos seus pares. Luiz Augusto Palmeirim tambem descreveu o fadista. Nota que não tem familia, é engeitado da Santa Casa, para assim ir ao encontro da predestinação, do mau fado, que vem do berço, e com que o fadista pretende desculpar toda a sua existencia de vicio e torpeza. Mas ha muitos que teem familia, paes conhecidos, e que são levados á fadistagem por uma espontanea tendencia de baixos instinctos, pela companhia e convivencia de _faias_, pela desmoralisação do Limoeiro onde foram uma primeira vez expiar qualquer rapaziada leve; ou ainda pela suggestão nociva do bairro em que nasceram e moram. A _Bisnaga escolastica_, «colhida do Campo da Cotovia pelo lavrador do Palito Metrico», conta as brigas e contendas travadas entre os rapazes do Bairro Alto e os de Alfama, a murro e calhau. Estes dois bairros, antigas escolas de fadistagem, habilitavam, assim, praticamente, desde a infancia, os continuadores das suas tradicionaes escarapelas e zaragatas, ainda hoje não extinctas completamente. Alfama e o Bairro Alto vem, pois, educando por suggestão local os fadistas do futuro. Pato Moniz, na _Agostinheida_, querendo mostrar que o padre José Agostinho de Macedo arranchava com faias e bailhões, recebendo d’elles apoio, tambem se refere a essas pugnas, ás vezes cruentas, que preparavam cidadãos para a vida do fado: «Andava n’este tempo accêsa a guerra Entre a malta de Alfama e Bairro Alto, Gingantes campeões afragatados, Miqueletes[21] revéis, cujas façanhas Em macarróneo metro celebradas[22] Tem dado assumpto a um par de gargalhadas. E no sitio da Penha[23] aos dias santos Com poitas,[24] e com fundos de garrafa, A dente, á unha, á bordoada, a ferro, Latindo tão raivosos como um pêrro, Travavam cruentissimos combates; Não que morresse algum, mas abundavam, Entre o furor de punhos e pedradas, Bolas partidas, ventas esmurradas! De uma das taes guerrilhas tinha o mando O _General Luneta_, homem provindo De linhagem illustre, e por seus séstros Entre a mais bréjeiral, çáfia[25] cambada, Entre a relé mais pifia confundido; E por seus capitães eram com elle Claros pimpões, a flor da pangayada.[26]» Pato Moniz illustra o texto com a seguinte nota: «Bem sabida, e bem fallada foi em Lisboa a guerra da rapazia no sitio da Penha de França; e muito mais depois que n’ella entraram o _General Luneta_ (Dom Th. d’A., cujo rival no generalato era um façanhoso Pretalhão)[27] e alguns outros, que, posto serem geralmente havidos em ruim conta, nunca se esperou que chegassem a tanto.» Vê-se mais uma vez que no principio do seculo XIX ainda não eram correntes as palavras fadista e fadistagem. A 1.ª edição da _Agostinheida_ é de 1817. Pato Moniz usa todas as expressões que podem pintar a escumalha social: çáfia cambada, gingantes campeões afragatados, relé mais pifia, flor da pangayada, etc. só lhe faltava ainda a palavra fadistagem. Se já então pudesse dispôr do vocabulo--fadistão, com certeza o haveria atrambolhado ao padre José Agostinho, que alguma coisa teve de isso, em verdade. Casos ha em que os fadistas provéem de pais honestos, de familias decentes e remediadas, e até, facto que já foi mais vulgar do que hoje,--porque as raças nobres tendem a extinguir-se,--tem havido fadistas descendentes de familias illustres. Estes, eram jovens fidalgos que viviam com picadores e cocheiros, toureiros, arruaceiros e espadachins. D. Affonso VI, quando infante, e D. Francisco, irmão de D. João V, viveram com a ralé que hoje se chama fadistagem. D. Miguel de Bragança foi creado no mesmo teor de vida; mas depois, no exilio, regenerou-se completamente. Outros fidalgos houve, porém, que menos felizes chegaram até á facada, ao homicidio, e tiveram de ir cumprir no ultramar uma pena infamante. Para ser fadista é necessario um longo tirocinio: aprender a tocar guitarra e cantar o _Fado_, a fazer «escovinhas», _riscar_, a esconder a navalha na manga da jaleca, a puxar as melenas, a enfiar as calças esticadas, e a fallar o calão. Vemos ás vezes rapazes do povo trabalhando em qualquer officio, mas já vestidos de fadistas: andam na aprendizagem, por vocação e por gosto. Não esperam senão a monção favoravel que os ha de levar definitivamente para a vida do fado. Essa monção é qualquer acontecimento de familia--a morte do pai, da mãe ou de algum outro parente que ainda lhes impunha certo respeito. Partido esse laço, adeus trabalho, adeus honra, adeus dignidade e consciencia. Até o seu appellido perderão: hão de passar a ser conhecidos por um alcunha. Ha só um caso em que o noviço do fado ainda pode salvar-se: é se não conseguiu livrar-se, por debilidade physica, de sentar praça no exercito. Palmeirim nota com razão: «O fadista, feito soldado, deixa de ser homem, é um automato! Os artigos da guerra arrefecem-lhe a inspiração, entibiam-lhe o enthusiasmo pela poesia, sua irmã de infortunio.» Mas isso não acontece sempre, não é regra geral, porque muitas vezes o iniciado na fadistagem, depois de ter sentado praça no exercito ou na armada, conserva os seus amores nos bordeis, frequenta os bairros e botequins suspeitos, arma desordens com a policia e com os soldados da guarda municipal, e chega o ser um heroe... da Mouraria. O marinheiro é muito mais fadista do que o soldado: talvez por que a guitarra de bordo seja o traço de união que o põe em constante communicação espiritual com os outros fadistas. Nos mares da India ou da China o _Fado_, tangido por elle ao luar, no convés do navio, lembra-lhe Lisboa, a Mouraria e Alfama; lembra-lhe a sua terra, se é saloio ou se é natural do Ribatejo. O fadista saloio, diga-se de passagem, tambem tem tanto «caracter de classe», que se conhece pela apparencia: a carapuça ou o chapeu desabado, a melena repuxada, a calça de bocca de sino, o ar gingão e canalha. Traz na carroça a guitarra e toca o _Fado_ nas tabernas da estrada: ás vezes combina, com os maltezes, fazer um crime, assaltar um casal solitario e matar os donos. Ainda outro escriptor portuguez descreveu o fadista: é Julio de Castilho no 1.º volume da sua _Lisboa antiga_. «Deixal-o lá (o _Fadista_) sentado na borda do mocho da taberna, arranhar na banza truanesca os amores do conde de Vimioso, mais os seus; deixal-o ir saracotear-se na espera dos toiros, todo chibante com a sua calça de bocca de sino, e a sua jaleca de alamares; deixal-o ir para as hortas ao domingo, deleitar, com os chistes ambiguos do ultimo fadinho corrido, os bulhentos freguezes da Perna de Pau e do Alto do Pina. «Estou-o a ver encostado a uma ombreira, de chapeu para traz e mãos cruzadas nas costas, com os olhos piscos do fumo azul de um cigarrito engelhado, que de quando em quando lhe pende ao canto da bocca, exprimir no rosto encorreado, na fronte baixa e estreita, na nuca de cão de agua, e na melena recurva, que elle enxota com as costas da mão, todos os segredos ignobeis dos antros que lhe são theatro. A sua voz avinhada e rouquenha come umas palavras, e estropia outras, ao prantear a morte da Severa, n’um tom silvestre de acre melancolia indescriptivel. * * * * * «O fadista do Bairro Alto é o _marialva_ do rés do chão da sociedade, escória das tendencias elegantes de uma cidade grande, producto bastardo da ociosidade e do vicio. É o triste frequentador da galeria das causas crimes; e muita vez o pobre Othello obscuro da parte de policia. O fadista é um aleijão nos costumes; tarde lhe chegará a sua vez de regeneração, lôbrego vadio inconsciente, a quem o Limoeiro fascina, com o magnetismo escancarado de um sapo collossal.» O fadista tem, nos seus bairros, botequins e tabernas especiaes, que frequenta todos os dias ou todas as noites: ahi se discutem os assumptos da classe, rixas, amores, ciumes, crimes da vespera ou do dia seguinte... Fialho d’Almeida, nos _Gatos_,[28] coloriu com duas pinceladas intensamente descriptivas um botequim da Carreirinha do Soccorro: «Ás oito horas, no corredor estreito e comprido que é a sala do botequim de fadistas que lhes disse, todo occupado com duas filas de mesas onde os freguezes abancam, sentados em mochos de pau, para saborear a pequenos goles, uma cerveja que parece feita d’ourina albuminurica, ou qualquer chavena d’esse café negro e pegajoso que a Mouraria designa pelo pittoresco nome de _carócha_; ás oito horas não ha no botequim um unico logar, devoluto. Por um rótula de dois porticos, ao fundo, intercalada de prateleiras de garrafas, d’onde se franjam, por transparencia, fogos de rubis de creme rosa d’aguardente de ginjas, esmeraldas de Kermann, grandes topasios de licor de canella e tangerina, pousa o busto do cafézeiro, em camisola, um gordanchudo, barbaceno e alvar, que trata a freguezia por _gajos_, e coça as piugas nos entreactos da confecção dos capilés. De roda, outros gallegos ajudam, indo do fogão para o balde das lavagens, da gaveta das colhéres para os _trés-fonds_ da baiuca, d’onde nos intervalhos de silencio vem um guinchar d’enormes ratazanas. Nas paredes, quadrinhos de mulheres offerecendo os seios á sucção de quem nas observa--bicos de gaz flambando sob tulipas de loiça pendentes do taboado; e por entre as filas de bancos onde mal cabe a perna do moço que faz o serviço, atravessa de quando em quando uma especie de _rodeuse_ da rua Suja, chuchada, vestida de branco, com tamancos nos pés e lesmas de cabello ruivo sob a testa.» A pintura é fiel, palpitante de realidade, e o scenario dos botequins fadistas não muda essencialmente de bairro para bairro. O publico dá-lhes o nome de botequins de _lepes_; em calão, _lepes_ quer dizer dez réis. Esta designação exprime a miseria dos _habitués_, e está um pouco antiquada, porque hoje a despesa a fazer n’aquelles botequins excede a de outros tempos. Todos elles ou quasi todos elles teem piano e pianista, que exige uma diaria certa; e as _camareras_, que servem as bebidas, vão arteiramente induzindo os freguezes a maiores gastos. De todos os botequins fadistas da actualidade o mais amplo é o do Veiga no largo Silva e Albuquerque, onde aliás ha outro, o do Peres, afamado pela _ginjinha_; na rua d’aquelle mesmo nome o botequim do Ramalho tem uma roda abundante de _habitués_ da Mouraria. No Bairro Alto o botequim da rua da Atalaya, n.ᵒ 100; em Alcantara, o da Praça d’Armas, n.ᵒ 5; em Alfama o da Rosa Maria são os de maior nomeada na fadistagem hodierna de Lisboa. Nas tabernas, onde as iscas vieram desthronar a chanfana, tão decantada no seculo XVIII por Tolentino e pelo Lobo da Madragôa, tambem o fadista tem preferencias especiaes, segundo os bairros. Em Alcantara, na rua do Livramento, a taberna do Otero é conhecida pelo «armazém da meia noite», designação popular que por si mesma dá ideia de um coio de fadistas noctivagos. Na rua da Guia a taberna do _Manuel do Jogo_, na rua da Amendoeira a taberna do _Cego_, no largo do Limoeiro a taberna do Pateo do Carrasco, e na rua de S. Miguel a taberna do Batalha são fócos vulcanicos da vida airada, onde o cheiro das frituras, do tabaco e do vinho condensam uma atmosphera crassa, capaz de congestionar um Hercules. Tanto aos botequins como ás tabernas se liga a tradição do _Fado_ no piano, na guitarra ou na voz soluçante dos «filhos da Desgraça», elles a ellas. O fadista do Bairro Alto dir-vos-ha, se fôr consultado, que a guitarra de Alda Gracinda, rameira da rua do _Diario de Noticias_, vale um thesouro quando ella lhe põe as mãos. Um dos primeiros cantadores do _Fado_, segundo a chronologia e a fama, foi José Norberto, o saloio de Campolide. Em 1848 teria uns 50 annos de idade. Era sympathico: boa cara, physionomia desanuveada. Bulhão Pato conserva de memoria algumas glosas que lhe ouviu, e que são muito caracteristicas da vida tradicional dos _Fadistas_ n’aquella epoca e... ainda hoje. Lembras-te tu, meu bemsinho, De quando eu cantava o _Fado_ Na taberna do Córado? Choviam copos de vinho: Foi dia de S. Martinho. * * * * * Estavas tu a assar castanhas Quando os meus olhos te viram. Quando nós fomos ás hortas, Passeiamos todo o dia. Á noite, ao passar as Portas, Me perguntaram p’la guia. Eu com a piella com que ia, Como ia trocando os passos, Fiz a «banzara» em pedaços E no fim da brincadeira Fui coser a bebedeira Na cadeia dos teus braços. Quando dei co’um matacão N’aquelle gajo á Esperança, Para arranjar a fiança Andaste em passo de cão. Vendestes o teu cordão, Teu capote se empenhou. Se hoje solto e livre estou, A ti o devo em verdade. E por tanta caridade Minha alma presa ficou. Banzara é uma paragoge do calão--banza--synonymo de guitarra. O bom cantador do _Fado_ requebra a voz com «sentimentalidade canalha» e com a «intermissão de uns _oras_ e de uns _ais_ mui langorosos, o _zing_ fadista de cervejarias e botequins de lacaios.»[29] Curvado sobre a guitarra, como para ouvir melhor a voz d’esse instrumento querido e suave, que parece dizer-lhe confidencias, ergue de quando em quando a cabeça e põe os olhos no alto, acompanhando assim as notas agudas que parece fugirem da terra para as regiões do sonho... É um enlevo, um extasi, como podem sentil-o as almas que vegetam no lôdo da crápula; é a «sentimentalidade canalha», de que falla Camillo; a poesia da devassidão; é a mariposa que roçou no monturo e adeja para seccar as azas no ar e na luz do espaço infinito. Outro eximio cantador do _Fado_ foi o Pitalcante, filho do famoso jogador de pau que se chamou José Maria Saloio.[30]. Presava-se de saber musica, pois estudára no Conservatorio. Chegou a ser um Orpheu popular. Encantava as patrulhas com os seus descantes, a ponto de algumas vezes o não prenderem ou de o soltarem depois de preso. Foi verdadeiramente uma celebridade no seu genero, fazendo _pendant_ no sexo masculino á Severa, que foi a mais insigne cantadora do _Fado_ e que, por este e outros motivos, terá capitulo especial. Bulhão Pato esteve para levar o Pitalcante a Alexandre Herculano, quando o grande historiador já residia em Val-de-Lobos. A tysica, fim vulgar nos fadistas e nos bohemios, cujos excessos os consomem rapidamente, foi a doença que victimou o Pitalcante. Devemos agora fallar do Salles _Patuscão_. Era, como quasi todos os fadistas de um e outro sexo, enthusiasta pela tauromachia, grande _aficionado_. Tomou parte n’uma tourada de fidalgos, que se realisou na praça do Campo de Sant’Anna, a 28 de agosto de 1859. N’esta corrida foi cavalleiro o conde de Vimioso, então maior de quarenta annos. Salles era «moço de forcado»; e muito da intimidade do Vimioso. Alto, moreno, bexigoso; pulso rijo: um valentão. Diga-se desde já que foi elle o auctor do _Fado_ da Severa, quando ella falleceu: Chorae fadistas, chorae, etc. Não obstante a sua corpulencia e robustez, o Salles _Patuscão_ morreu tysico, como Pitalcante. O Sousa Casacão (ainda hoje muito lembrado na tradição popular) teve notoriedade como cantador do _Fado_, e conservou essa evidencia até depois de 1870. Um dos seus _Fados_ predilectos fôra-o tambem da Severa; é o que principia dizendo: É pena que o meu José, Sendo um esperto rapaz, Não saiba dizer Thomaz, Não possa dizer Thomé. Dizer nunca pôde o T Quando vem junto com O; O outro dia disse só Todo o _b a ba_ por si, Mas chegou ao _ta, te, ti_, E não pôde dizer _tó_.[31] De 1860 a 1880 figuraram como cantadores do _Fado_: José Borrègo, José Petiz, José Maria Enguia, José Carlos, Saldanha da Porcalhota, José Maior, José Montaurino, Caetano, o _Calcinhas_, João Campanudo, José Bento d’Oliveira, _Patusquinho_, etc. Tambem, continuando as tradições fadistas da Severa, se tornaram notaveis: Maria Cezaria (a quem foi dedicado um _Fado_ pelo guitarrista Ambrosio Fernandes Maia), Luiza Cigana e Maria Paus. Como guitarristas adquiriram renome, além de Ambrosio Fernandes Maia, Antonio Candido, o _Visinho_; Thomaz dos Santos, o _Thomaz do Bairro Alto_; Antonio Casaca, Manuel Casaca e José Casaca; José Gualdino, João da Preta, Augusto Trajano o _Palhetas_ e João Maria dos Anjos. Tanto o Anjos como Ambrosio Fernandes Maia publicaram methodos de guitarra: o do 1.º foi editado pela livraria Pereira; e o do 2.º pelo proprio auctor. O Maia ainda vive e d’elle, por interposta pessoa, colhi interessantes informações, sendo uma d’ellas que o _Fado_ mais antigo que conhece é o do _Marinheiro_.[32] Por isso o reproduzimos n’este livro. Conheci, e ouvi muitas vezes, o João Maria dos Anjos. Era eximio no _Fado_; sem embargo, gostava de tocar, em concertos publicos, peças de maior responsabilidade artistica, como trechos de opera, etc. Uma d’essas composições era a _Marcha funebre de Luiz XVI_; de difficil execução. Sempre lhe manifestei opinião contraria a esta aristocratisação artistica da guitarra; elle respondia-me: --É para mostrar que a guitarra pode dar tudo. Mas na praia da Ericeira (aonde elle ia todos os annos dar um concerto) era encantador ouvil-o, por noites de luar, nas Ribas e nas Furnas, variar prodigiosamente o _Fado_. Diz a seu respeito o professor Vieira no _Dicc. biog. dos musicos portuguezes_: «Entre varias pessoas distinctas que o apreciavam como excellente tocador do instrumento nacional, conta-se a sr.ᵃ duqueza de Palmella, que algumas vezes o mandou chamar para abrilhantar as suas reuniões mais intimas.» Tambem uma vez foi ao Paço no reinado de el-rei D. Luiz. João Maria dos Anjos deixou um filho, que sentou praça no exercito ultramarino. Ainda ha pouco, vindo á metropole, me procurou. O Anjos foi um guitarrista da epoca em que o _Fado_ entrou nas salas; e em que a guitarra passou da mão do povo para a das damas illustres. Diz-se que concorreu muito para esta ascensão nobilitante sua magestade a rainha D. Maria Pia, encantada com a melodia simples e doce, que constitue o fundo nacional dos nossos _Fados_. Manuel Roussado (hoje barão do seu appellido) explorou no theatro a corrente aristocratica do _Fado_, escrevendo a comedia _Ditoso Fado_, que fez carreira na Trindade, representada por Taborda e Rosa Damasceno.[33] O assumpto da comedia é simples: _Violante_ e o _Doutor Saraiva_, pessoas de boa sociedade, descobrem, momentos antes do seu casamento, que são ambos doidos pelo _Fado_, e essa harmonia de pensamentos completa a felicidade das suas almas. Julio Cesar Machado refere-se á epoca da aristocratisação do _Fado_ lamentando-a como adaptação violenta e desnaturada. «O fado é talvez filho bastardo do landum,[34] mas é mais bonito que elle: os filhos bastardos, não se sabe por que, são quasi sempre mais bonitos que os legitimos: este foi mais adiante, e logrou ser mais formoso que o pai. O vagabundo nocturno assenhoreou-se d’elle durante muito tempo; chegou a pensar que era preciso ter desenhos emblematicos na mão, gravados com tinta e polvora, caracoes sobre a orelha e uma morte ás costas para se poder entender bem a poesia d’essa musica, que significa a tristeza das desgraças, amores que hajam tido por capella o Aljube e o Limoeiro, o ciume da faca de ponta, o amargar ventura entre grades, as saudades da patria, o suspirar do degradado... «Isso não impediu que em todo o tempo um ou outro fidalgo tenha querido dar-se a estudar os segredos d’aquella musica tão vaga, que pede a maior parte do seu encanto ao sentimento do tocador e á doçura plangente dos descantes: citam-se o marquez de F.[35], o conde de V.[36]; ultimamente, uns poucos de mancebos, grandemente amadores d’essa musica, e prendados com os dotes mais requeridos para tirarem d’ella effeitos admiraveis, reunem-se ás noites n’alguma quinta dos suburbios da cidade, e não seria facil dizer-se com que inspiração ardente, n’aquelle campo, á luz das estrellas, suspiram as vozes dos cantadores e as cordas maviosas das suas guitarras, poetica, melancolicamente, como raios da lua por entre uma chuva de lagrimas. * * * * * «Mas, desde que os fidalgos e os janotas gostam de ser fadistas, estão os fadistas a querer parecer janotas e fidalgos, e não se pode contar com elles; saiem-se já de casaca, em grande seriedade de _virtuoses_, a dar concertos no Casino e no Circo, e o mais que se alcança d’elles é contarem-nos a vida de Salomão e de David... «Uma massada!»[37] Effectivamente, no Casino do largo da Abegoaria, chegou a haver concertos publicos em que se ouvia o _Fado_, com grande aprazimento do auditorio fidalgo, cantado por algumas coristas dos theatros da capital. O empresario d’estes concertos está ainda vivo e são: era Ernesto Desforges. Quando elle tratou de arrendar o Casino, perguntou-lhe o velho Figueira: --Para que é? Desforges respondeu com lealdade: --Para dar concertos de guitarra. Figueira replicou-lhe: --Isso é um instrumento que se ouve de graça em todas as ruas. Ninguem vai pagar para o ouvir. Enganou-se. Os concertos, sob a direcção de João Maria dos Anjos, tiveram um grande exito. No primeiro tocaram apenas 12 guitarristas; no ultimo eram já 50. Depois um allemão de appellido Gruder, que mais tarde figurou como lithographo n’um processo de notas falsas, tambem foi explorar o _Fado_ e a guitarra para o Gymnasio. A generalisação do _Fado_ explica a apparição de publicações, que lhe diziam respeito, e tinham grande voga. Publicaram-se: _A guitarra_, de Souto Maior Judice. A _Lyra do Fado_, de Manuel Antonio da Luz, que foi morrer a Rilhafolles. _O Piano e a Guitarra_, de Ernesto Cesar dos Santos, que a tuberculose victimou aos 20 annos de idade. _O Fado Liró_ e o _Fado do Marinheiro_, collaborados por Luiz F. da Costa Soromenho (já fallecido), Patricio José de Mattos, a quem uma paralysia atormentou os ultimos annos de existencia, e F. Napoleão da Victoria, que tem hoje uma loja de livros (principalmente theatro) na travessa de S. Domingos. _O Fado Universal_, _A Lyra do Fadinho_, a _Lyra do Cantador_ (todos de 1878) collaborados por Domingos Fernandes (Salazar Guerreiro), fallecido; Patricio José de Mattos, A. Feliciano Corrêa, tambem fallecidos; J. Rodrigues Chaves (actor, ainda vivo), Ernesto Cesar dos Santos, J. Cordeiro (fallecido) e F. Napoleão da Victoria. O _Pianinho_,[38] principalmente redigido pelo sr. José Ignacio de Araujo, que ainda floresce com distincção em todos os generos de poesia popular, apesar da sua idade avançada. _O Cantador Popular_ e o _Fado Novo_, collaborados por P. J. Mattos, A. F. Corrêa, Xavier de Paiva; o Vianna que foi collaborador do _Pimpão_ (_Antonio Vigas_), já fallecidos; e F. Napoleão da Victoria. _Fado Chic_, _Fado Maritimo_, _Fado dos Jesuitas_, glosas de diversos, limadas por F. Corrêa. _O Fado Politico_, em que se apreciava a marcha dos partidos. Ignoro quem fossem os collaboradores. _O Fado exdruxulo_, para piano e guitarra, de Salazar Guerreiro. _Cantigas do Fado_, de Luiz de Araujo. Apenas vi a 3.ª edição, que é de 1881. Outra collecção editada por Casimiro Baptista. Appareceram alguns _Fados_ licenciosos, que a policia apprehendeu. N’este genero tem-se publicado a _Guitarrinha innocente_ (innocente por antiphrase, é claro) e o _Almanach do Fado brejeiro_, _Fado da Padralhada_, etc. Dá perfeita ideia do gosto com que o _Fado_ se ia generalisando, o seguinte mote publicado em um dos folhetos que deixamos mencionados: Se isto assim continuar, Onde irá parar não sei! Veremos andar pela rua De guitarra o proprio rei. Começaram a apparecer almanachs de cantigas do _Fado_, para acompanhar e satisfazer o gosto publico: _Almanach do Cantador_ (1871). Editor, Verol Junior. _Almanach do bom fadista_ (1875), de Joaquim José de Mattos, já fallecido. _Almanach dos bons Fadinhos._ Editor, Verol Junior, Está publicado o de 1902. _Almanach dos cantadores._ Editor, F. Silva, rua de Santo Antão. No 6.º anno. _Almanach dos fados das salas._ Editor, o mesmo F. Silva. Quasi todos os almanachs populares, para obter maior acceitação, não deixam de conter alguns _Fados_. O da _Terra e mar_, para o anno de 1902, insere, por exemplo, o _Fadinho da cerração do mar_ e o das _Duas fragatas_. Tambem o sr. Verol Junior iniciou o _Almanach da Severa_, a que mais de espaço nos referiremos. Os fadistas classificam os _Fados_ segundo os assumptos que n’elles são tratados. Assim dizem: _Fados á terra_ (assumptos terrestres). _Fados ao mar_ (assumptos maritimos). _Fados á campa_[39] (assumptos funebres). _Fados á Escriptura_ (assumptos biblicos). Tambem pertencem ao genero _Fados_ as «Cantigas a atirar», ou de provocação e despique. Conheço uma publicação exclusivamente dedicada a esta especie de _Fados_. Intitula-se _Cantigas a atirar, Fadinhos para quem fôr pimpão_. Por um _fadista de pé leve_. Lisboa, Typographia Luso-Britannica, 1873. E conheço muitas outras cantigas da mesma especie espalhadas pelos diversos almanachs de _Fados_. Exemplo de «cantiga a atirar»: _Venha o diabo á escolha, Não sei qual mais approvar; Que tu a cantar fadinhos És mesmo um gato a miar_. Amigo, por compaixão, Não estafes esta gente, Que sabe perfeitamente Qual a tua presumpção: P’ra nossa satisfação Mette na bôcca uma rolha; Assim escondes a _bolha_ E passas por mais sensato: Entre a tua e a voz do gato _Venha o diabo á escolha_. Quem nos ouvidos soffrer Do teu canto o som bravio, Sentirá um arrepio E febre julgará ter. D’um caldeireiro o bater É custoso de aturar; Inda assim se o comparar Á tua voz desabrida, Não sei por qual me decida, _Não sei qual mais approvar_. Os cães á lua ladrando, Os burros a darem zurros, Os leões soltando urros, Corvos aos mil crocitando; Todos vão atordoando Os ouvidos, coitadinhos! Mas não sei se estes brutinhos (Sem pretenções a encantar) São menos de apoquentar _Que tu a cantar fadinhos_ Deixa essa balda ruim, Não te mettas a finorio, Se não queres que o auditorio Te rogue pragas sem fim. Vae-te já com tal _chinfrim_ De cantigas p’ra enfadar; Não tens voz para cantar, Jamais serás cantador, Porque, sem tirar nem pôr, _És mesmo um gato a miar_ Outro: _Quando ás vezes a mostarda Chegar sinto ao meu nariz, Tenho cá um vinagrinho P’ra os piar no almofariz._ Suas basofias insanas Pôem-lhe os queixos em perigo; Se me conhecesse, amigo, Deixaria essas _lampanas_; Metto-o no rol dos parranas, Apesar de vestir farda... Tambem traz o burro albarda E eu não tenho medo d’ella. É bom fazer-se de vella _Quando ás vezes a mostarda_... Se você, seu borra-botas, De ser valente tem fama, Eu já fiz lá para Alfama, Fugir duzias de janotas; Não sou de soffrer chacotas, Repare bem no que diz: Nem dez policias civis Me põem na casa da guarda Quando cá certa mostarda _Chegar sinto ao meu nariz_! Seu palerma atrevidete, Pergunte aqui e acolá, Depois logo saberá A firma com quem se mette!... Se p’ra traz lanço o barrete E torço um pouco o focinho, Vae tudo por mau caminho, Porque nunca fui dos mansos; E p’ra dar ensino a _tanços_ _Tenho cá um vinagrinho_... Saiba você, seu marau, Meu senhor, rei dos pandilhas, Que vae parar a Cacilhas Se lhe atiro um chimbalau. Vou fazer-lhe o catatau, Se o que disse não desdiz. Se tem dó do seu nariz Perca as basofias insanas, Porque me não faltam ganas _P’ra o pisar no almofariz_. Nas provincias do norte tambem ha certamens poeticos entre a gente do povo, especialmente no Minho. É o que lá chamam «cantar ao desafio.» E nas provincias do sul, fóra da classe dos fadistas, diz-se--cantar á desgarrada. Mas em Lisboa e seus arredores resalta uma profunda differença entre as «cantigas a atirar» e os duellos a verso das outras classes, tanto do norte como do sul. Começa a avultar a differença na propria designação: _a atirar_. Esta expressão dá logo ideia de uma classe bulhenta e desordeira, que deseja «ferir» o adversario, em vez de o vencer apenas. Nos «desafios» e nas «desgarradas» usa-se geralmente a quadra; nas «cantigas a atirar», a décima. É a influencia da fórma estrophica do _Fado_ com seu mote e suas glosas. A disputa assenta sobre a competencia ou incompetencia para cantar _Fadinhos_; póde o adversario ser um rouxinol, mas se não entrar bem no rythmo do _Fado_, é peior do que um cão a ladrar, na opinião dos fadistas seus pares. Toda a pimponice do fadista se arreganha nas «cantigas a atirar.» A si mesmo se exalta, elle, na recordação das suas grandes «zaragatas» em Alfama e Mouraria: Eu já fiz lá para Alfama Fugir duzias de janotas. Desvanece-se de afugentar os janotas e de «resistir á policia»: Nem dez policias civis Me põem na casa da guarda. É a prosapia do «bailhão,» o mais desordeiro e implicante dos fadistas; como quem diz a «quinta essencia» da classe. Tem seus _Fados_ especiaes, o «bailhão». Celebra-se a si mesmo; canta a sua _Odyssea_. Ha familias, dynastias de bailhões, que se fazem temer: dizem-no estas glosas, que são paginas de auto-biographia: Quando as costellas n’um feixe O amigo ao outro fazia, E allumiava a Mouraria A luz do azeite de peixe; (Não é mau que isto se deixe Escripto como passou) Alto nome conquistou Meu avô, pae do barulho; E, eu o digo com orgulho, _Bailhão foi o meu avó_! Pimpões em cantar mil fados Nos sujos becos d’Alfama, Meus manos tiveram fama, Dando baixa de soldados. Mesmo p’la pinga azoinados Ninguem lhes dava _bananos_. Um d’elles fazia abanos, Outro fazia gaiolas, E ambos de finas escolas _Foram bailhões os meus manos_... Com familia tão _honrada_, Seria grande desgraça Que eu desdissesse da raça Que sahiu tão apurada! Mas, sem basofia e sem nada, Direi que mais se apurou. Sabei, de pêtas não sou, E presto culto á verdade, Quando digo á sociedade: _O rei dos bailhões eu sou_. E, quanto ás proprias proezas, continuando as tradições de familia: Tenho armazem de cantigas, O que se chama o _beijinho_, E por mim dão o beicinho As mais bellas raparigas; Não me tem faltado as brigas Em que sempre fui pimpão; Tenho dado ao escrivão Boa quantia em metal... Já disse a um juiz criminal: _Eu sou fadista bailhão_. Quando o _bailhão_, nas «cantigas a atirar», arremessa para a nuca o barrete preto, que no trajo da classe toma a alternativa do chapéu de aba direita, é tremer d’elle: está disposto a ir passar uma temporada ao Limoeiro: Se p’ra traz lanço o barrete E torço um pouco o focinho, Vai tudo por mau caminho. É o caminho da cadeia ou do degredo. As «cantigas a atirar» não se confundem, pois, nem pelo texto, nem pela forma, com os «desafios» do norte e com as «desgarradas» do sul. São o proprio _Fado_ n’uma intenção provocante, de «zaragata» e de facada. NOTAS DE RODAPÉ: [16] _Galeria de figuras portuguezas_, pag. 112. [17] Uma vaga tradição alfacinha diz que o fadista se deu por orgulho de classe a designação de faia, medindo-se, vaidosamente, com o aprumo e elegancia da arvore d’este nome. [18] De faia. [19] Bailarim, por comparação. O que pula jogando a navalha, _risca_, _faz escovinhas_, _bate o Fado_, etc. [20] _Epopeas da raça mosarabe_, pag. 321. [21] Antigos bandidos dos Pyrenéos. [22] Allusão á _Bisnaga escolastica_. [23] A Penha de França, segundo a _Agostinheida_; a Cotovia, segundo a _Bisnaga_. Em ambas estas eminencias, tanto ao oriente como ao poente da cidade, se feriam as batalhas garotaes. A Penha era reducto para os garotos de Alfama; e a Cotovia para os do Bairro Alto. [24] Corpos pesados, ordinariamente pedra ou ferro, que os pescadores empregam para fundear os seus barcos. [25] Sáfea, segundo a graphia de Gil Vicente. Reles, despresivel. [26] Rancho de rapazes inuteis; vadios. [27] N’outra publicação contra o padre José Agostinho, diz Pato Moniz, mais claramente, que o _General Luneta_ era D. Thomaz de Almeida, e que o general do _exercito_ opposto era «um preto caiandeiro.» [28] N.º 2. 1889. [29] Camillo, no _Eusebio Macario_. [30] L. A. Palmeirim, _Os excentricos do meu tempo_, pag. 263. [31] Esta decima, tendo por assignatura trez XXX, appareceu publicada no _Almanach de lembranças_ para 1861. [32] São fornecidas pelo Maia as seguintes relações, aliás um pouco baralhadas chronologicamente, de cultores do _Fado_. Tocadores mais celebres: Palmella, Maggyoli, José Vinagre, Thomaz do Bairro Alto, Francisco d’Alcochete, Antonio dos Fosforos, Constantino Marceneiro, Antonio, Manuel e José Casaca, João Maria dos Anjos, Paulo Pereira, Luiz Petrolino, Thomaz Ribeiro, Robles, Reynaldo Varella, Alberto Lima, Julio Silva Carvalhinho, Chico Padeiro, Carmo Dias, Julio Silva (Ourives), João da Preta, Palhetas. (Não deve esquecer o proprio Maia.) _Cantadores mais celebres_: José Maior, Saldanha, José Carlos, José Borrêgo, José Petiz, Calcinhas, Pae Antonio, Patusquinho, Campanudo, Damas, José Maria Artilheiro, Sapateirinho, Batata d’Adiça, João da Matta, Isidoro Pataquinho, Serrano da Graça, Manuel Serpa, Russo do Chafariz, Manuel da Motta, Jorge Caldeireiro, Eduardo, Brazileiro, Manuel Serpa, Rosa Sapateiro, Carlos Arintho, Sepulveda, José Carlos, Zé Um, Luiz Palhinhas, José Cecilio, Chico Plainudo, Chico Torneiro, Ginguinha. Antigos fabricantes de guitarras: mestre Jeronymo, largo da Annunciada; José Pedro o Mudo, Paço do Bemformoso; Manuel Guitarreiro, largo da Esperança; João Ramella, calçada dos Caldas. [33] «Quando Taborda cantava na comediasita _Ditoso fado_ algumas quadras á viola (aliás guitarra) o publico em altos gritos pedia mais, e mais, e mais, e o grande, o incomparavel Taborda entoava centenas de quadras entre applausos.» Julio de Castilho, _Amores de Vieira Lusitano_, pag. 127. [34] Esta palavra tem-se graphado em portuguez dos seguintes modos: _lundu_, _lundum_, _landum_, _londum_. [35] Marquez de Ficalho. [36] Conde de Vimioso. [37] _Lisboa na rua_, pag. 167 e seg. [38] _Pianinho_ é outro synonymo da guitarra, em calão fadista. [39] Ultimamente publicou-se uma collecção de _Fados infernaes_, em que se encontram «Fados á campa». III Os assumptos do Fado O fadista, como já vimos a respeito do «bailhão», não deixa o seu credito por mãos alheias. Pouco lhe importa que os litteratos o descrevam; descreve-se elle a si mesmo, propagando uma litteratura, que é d’elle ou feita para elle, e que lhe dá celebridade. Essa litteratura é o _Fado_. O fadista canta as outras classes; tão tolo seria elle que não cantasse a classe a que pertence. Ha _Fados_ que o descrevem na vida e na morte, no prazer e no azar, em liberdade e no Limoeiro. A conjugação de todos esses _Fados_, dá, completa e integra, a vida do fadista. Na vida _O fadista na taverna Passa a vida socegada; A um gesto da prostituta Vae dar n’outro uma facada._ Chame-se embora immoral Á vidinha do fadista, Das _boas vidas_ na lista Não se conhece outra igual. Trabalho não lhe faz mal, O andar não lhe cança a perna, Tem ao lado a amante terna Cheia de doce carinho, E tem sempre muito vinho _O fadista na taverna_. Quando diz o fadistinha Que não tem dinheiro, um dia, O tasqueiro logo lhe fia Porque... o medo guarda a vinha. Porque elle usa a navalhinha Sempre de ponta afiada, E a barriguinha adorada Não póde estar no seguro... O fadista, pois, o puro, _Passa a vida socegada_. Do lupanar para a tasca Anda sempre a passeiar, Com a _esbelta_ amante a par, A quem forte e feio _casca_. Ás vezes arma borrasca Por ciumes com que lucta, E arruma pancada bruta, Ou leva p’ra seu tabaco, Só dando parte de fraco _A um gesto da prostituta_. Se a amante não tem dinheiro E deve á contrabandista, Então o heroe, o fadista, Trabalha... de ratoneiro. E se vae p’r’o Limoeiro, Lá vae soccorrel-o a amada; E ao voltar á vida airada, Os bolsos trazendo fracos, Até por quatro patacos _Vae dar n’outro uma facada_. Na morte _Vou despedir-me da vida, Ao som da banza sonora; P’r’a derradeira cantiga Dá-me, ó musa, um quarto d’hora_ Parte alegre o cantador, Ouvindo o estylo do Fado, Para o logar onde é dado, Aos bons o justo valor. Mas antes que o teu rancor, Ó parca vil, destemida, No coração cave a f’rida E d’agonia os tormentos: Ao som de tristes lamentos _Vou despedir-me da vida_. A fragil voz não levanto, P’ra cantar minhas proezas: Não vou relatar emprezas, Que a todos causem espanto. O que ora incita o meu canto Para essa turba que chora, N’esta pequena demora Que peço ao Deus das verdades, É dictar minhas vontades _Ao som da banza sonora_. Não quero sinos plangentes, Nem pompa mal empregada; Só quero em cova apartada Dormir o somno dos crentes. Que um d’esses faias valentes Que Portugal hoje abriga, Empunhando a banza amiga Me faça a necrologia. Bem vêdes. Não ha folia _P’r’a derradeira cantiga_. Na minha campa, gravado. Seja visto este lettreiro: «_--Dorme aqui faia brégeiro_ «_Que soube cumprir o fado._» Sinto-me, ó faias, cançado, Vou partir sem mais demora. Deixem-me só; vão-se embora Sem pranto nem algazarra, Mas p’ra que eu beije a guitarra _Dá-me, ó musa, um quarto d’hora_. Testamento do fadista _Deixo a guitarra á Joanna, Quatro beijos á Francisca, Deixo á Thomazia uma praga E o baralho para a bisca._ ’Stou no ultimo momento, Dentro em pouco... era uma vez. E, portanto, oiçam vocês Qual é o meu testamento --O Constancio, toma assento Á banca que já abana; Não faças lettra parrana Como o teu irmão Calixto, E começa por pôr isto: _Deixo a guitarra á Joanna_. Á Marianna d’Aliça Deixo as de panno mui fino Calças de bocca de sino E o collete de ir á missa. Deixo á Josepha Carriça Um vintem para uma isca; Á Bonifacia Lambisca Deixo-lhe um chapeu de côco; Á Felicia deixo um sôcco, _Quatro beijos á Francisca_. Deixo o gato que anda côxo Á brejeirota Maria, Que sempre quando eu pedia, Não faltava a dar-me um chôcho; Um canapé e um mocho Deixo á Joaquina gaga; Deixo á Brites Bestiaga O meu luzente _cachucho_; Deixo á Anna um ai machucho. _Deixo á Thomazia uma praga._ Á Adelaide do olho torto, Fadista de boa pinta, Deixo a minha linda cinta Que mandei comprar ao Porto; Deixo, para seu conforto, Um litro á Lucia Petisca; Á Cunegundes Arisca, Que canta ás mil maravilhas, Dois tachos, quatro rodilhas _E o baralho para a bisca_. A guitarra é o porta-voz do fadista. O calão é a sua linguagem. O _Fado_ é a sua eloquencia, a sua poesia. Por isso elle se mostra reconhecido ao inventor da guitarra, cuja estatua desejaria erigir na praça publica, como se se tratasse d’um heroe. Mas, não o podendo conseguir, quer ao menos levantar-lhe um monumento com as melhores canções de todos os cantadores do _Fado_, o que faz lembrar a lenda da cortezã Rhodopis, que levantou uma das pyramides do Egypto convidando cada um dos seus amantes a acarretar uma pedra. _Da suavissima guitarra Quem seria o inventor? Qu’ria erguer-lhe um monumento, Uma estatua de primor._ Inventaram-se os pianos, As cornetas e os flautins, As flautas, os cornetins E os orgãos ha muitos annos. Mas o saber dos humanos, Do qual tanto ahi se narra, Deu a prova mais bizarra Do seu poder e magia, Inventando a melodia _Da suavissima guitarra_. Quem se lembrou de fazer As marimbas e as cornetas, Quem inventou as trombetas Não me importa a mim saber: Mas o que me faz arder É não achar um _doutor_, Antiquario sabedor, Em alfarrabios um barra, Que me diga da guitarra _Quem seria o inventor_. Qu’ria metter nas cantigas O nome d’aquelle heroe, Que no peito me destroe As tristezas inimigas. Qu’ria empregar mil fadigas Cantando-o com todo o alento, E nos mil versos que invento E conservo na memoria, Para sua eterna gloria _Qu’ria erguer-lhe um monumento_: Um monumento fundado Em cantigas escolhidas, Que seriam muito qu’ridas Pelos amantes do _Fado_. Pediria em alto brado A todo o bom cantador Que me fizesse o favor De poupar parte do cobre, Para erguer a homem tão nobre _Uma estatua de primor_. Depois da invenção da guitarra, nada parece ao fadista tão admiravel e sublime como o _Fado_ em que elle póde traduzir tudo quanto pensa e sente, toda a expressão da sua alma, toda a synthese da sua existencia. _Quando ouço qualquer pequena Largar uma piadinha, Sinto logo sensações... De fazer uma escovinha._ Eu gosto da castanhola, E deleita-me a _habanéra_, Idolátro a _penetéra_ Cantada por uma hespanhola; Acho pilheria á _manóla_, Se tem graça e é morena, Que na sua _cantilena_ Nos mostra verbosidade: De a imitar tenho vontade, _Quando ouço qualquer pequena_. Mas gosto mais do Fadinho Tocado mui mavioso, Por um typo conscencioso, Que trine no _corridinho_; Não posso estar quietinho, Se ouço uma guitarrinha; Dá-me logo vontadinha De entoar uma canção, Se ouço qualquer ratão _Largar uma piadinha_. Se uma serva de Cupido, Com meiga voz o cantar, Fico-me logo a babar... Mui _peixóla_ e derretido; Sinto-me então decidido, Cá para certas funcções... E n’estas occasiões, Em que o meu ser todo gosa, Cá para coisas ó Rosa... _Sinto logo sensações..._ Decerto, não fica mal Gostar do mavioso Fado, Pois só elle é acclamado, Como o hymno nacional. Gosto do Fado em geral, Tocado por brégeirinha, Que com a nivea mãosinha, O dedilha com primor. Dá-me _ganas_ e furor _De fazer uma escovinha_. Para o fadista, cidadão dos bairros infamados, _habitué_ das espeluncas e dos bordeis, todo o paiz se resume n’esse mundo, que é o seu, a «sua patria», o seu _habitat_. Por isso considera o _Fado_ um «hymno nacional». [Illustração: FADO CORRIDO] [Illustração] Quando a _prima_ e a _toeira_[40] Dão do Fado os sons divinos, Esqueço todos os hymnos Da _Carta_, mais da _Terceira_. Eu despréso a petisqueira De mais fino e bom sabor; Despréso o vinho e o amor; Das magoas fico esquecido: Que ao som do Fado corrido _Não ha tristeza nem dôr_. E lisonjeia-se de que as classes superiores da sociedade executem o _Fado_ no piano, em sumptuosas salas; como um estrangeiro se póde lisonjear de ouvir o hymno da sua nação, apreciado n’uma terra que não é a d’elle. E não me venham dizer Santarrões de idéas tortas Que o Fado é bom para as hortas Entre as furias do beber: Já tive o gosto de o vêr Nos salões muito acatado; Vi-o por vezes cantado, Em beneficio dos pobres, Por senhoras muito nobres, _No piano acompanhado_. Se o Fado ajuda os folgares Da pobre gente do povo, Não deve ser caso novo Louvar-lhe os dons singulares: Triumphem, pois, os cantares Em que a voz d’alma nos falla; Sôe a guitarra que abala O albergue dos desgraçados, E sob tectos doirados _Por’hí se ouve em muita sala_. O _Fado_ é, para o fadista, a melhor de todas as musicas, a mais dôce, a mais terna, a mais estonteadora: o que vale ao Padre Santo, para não ultrajar a dignidade da tiara, é «não saber o gosto que o _Fado_ tem»; o Diabo, nas profundezas do inferno, arde menos no fogo das suas paixões quando se põe a cantar o _Fado_ como um faia da Mouraria: O diabo lá no inferno, Onde nos leva ao chamusco, Tambem o Fadinho canta Como o mais bello patusco. Um _Fado infernal_ descreve a macabra alegria do Averno quando lá sôam os accordes de algum _Fado_ mephistophélico: Satanaz com voz possante, Com sua voz d’estentor, Canta o diabolico amor Da sua infernal amante. Recitam versos do Dante Todas as furias do Averno, E por entre o fogo eterno Que mil almas tem queimado, Os demos tocam o Fado Nos grandes tan-tans do inferno. * * * * * Á gargalhada estridente Succede o tristonho pranto, E os diabos folgam tanto, Que não ha um descontente. Entra o Fado finalmente Na região bacchanal, Faz-se um enorme arraial Que em brilho vae progredindo E o Demo canta, sorrindo, O seu Fadinho infernal. O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece um dialecto, sem o ser rigorosamente. Muito pittoresco, não se limita apenas a alterar phoneticamente as palavras como a giria infantil; além de lhes alterar o som, altera-lhes tambem a forma, e muitas vezes lhes desloca a significação, levando-a para outros objectos, n’um sentido tropologico, fundado na relação de semelhança. Assim, a garrafa preta da taberna é _viuva_; os copos são _filhos da viuva_: uma _viuva_ e dois _filhos_ quer dizer--uma garrafa e dois copos. Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se _sino grande_. O cigarro é _soldado de calça branca_; a navalha, _sardinha_; a faca, _sarda_; o apito, _rouxinol_; a quantia que o rufião recebe da amante, _queijada_; o dinheiro, _painço_; o café com leite, _mulato_; a agua com café, _meio-caiado_; Deus, _juiz do Bairro Alto_; as pernas, _juntas_; a barriga, _folle das migas_; as notas de banco, _filhozes_; enfiar uma guitarra pela cabeça d’outra pessoa é _fazer uma gravata_; a bofetada é _estampa_; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, _avental de madeira_, etc.[41] Nas outras linguas encontra-se um vocabulario correspondente ao calão dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam-lhe _germania_ e chamavam-lhe antigamente _gerigonza_; os francezes _jargon_ e _argot_; os italianos _gergo_ e _lingua furbesca_; os inglezes _cant_, etc.[42] Calão vem de _caló_, nome que os ciganos dão a si mesmos. Portanto significa propriamente «cigano», «lingua de cigano.» A giria portugueza, isto é, a linguagem especial usada pelas classes vis a fim de que as outras classes sociaes a não entendam, é muito antiga: já no seculo XVI Jorge Ferreira de Vasconcellos se refere aos que fallavam _germanía_. No seculo XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos de giria na _Feira dos anexins_, que é, como se sabe, uma galante collecção de equivocos e jogos de palavra. No seculo XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d’aquelles termos, que incluiu no seu _Vocabulario_, e que foi copiada em parte no _Compendio de orthographia_ de Frei Luiz de Monte Carmelo. No mesmo seculo, os _Rasgos metricos_, de Alexandre Antonio de Lima, e as _Infermidades da lingua_, a que já tivemos occasião de referir-nos, fornecem elementos subsidiarios para o estudo do calão. No seculo XIX, a _Historia do captiveiro dos presos d’estado na Torre de S. Julião da Barra_, por João Baptista Lopes; a traducção dos _Mysterios de Pariz_, feita no Porto pelo dr. Pereira Reis; o romance _Fr. Paulo ou os doze mysterios_; o romance _Eduardo ou os mysterios do Limoeiro_ pelo padre Rabecão; os artigos de Candido Landolt na _Revista do Minho_ (1875) e os de Queiroz Vellozo na _Revista de Portugal_, 1890; os _Ciganos de Portugal_, por Adolpho Coelho, abrangendo um importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem copiosas fontes para o vocabulario do calão portuguez. Adolpho Coelho traz o seguinte _Fado_ composto em calão, reproduzido por Alberto Bessa: _Ao fadista chamam faia, Ao agiota intrujão; Ao corcovado golfinho, Ao valente bogalhão._ Entre o povo portuguez Ha calões tão revesados, Que deixam muitos pintados Por mais de cento e uma vez. Lá vão alguns--trinta e trez (Não sei se n’elles dou raia): Á prata chamam-lhe _laia_, Ás nossas cabeças _pinhas_; Aos porcos chamam _sardinhas_, _Ao fadista chamam faia_. Ás nossas mãos chamam _batas_, Ao genio chamam _ralé_; Á esperança chamam _filé_, Ás bruxarias _bagatas_; Ás velhas chamam _cascatas_, Ao poupado _sovelão_; Um _gabinardo_ ao gabão; Ao caldo chamam-lhe _rola_; A um relogio _cebola_, _Ao agiota intrujão_. Ao fugir chamam _raspar_; Chamam á casa _mosqueiro_; Ao ébrio chamam-lhe _archeiro_, Ao comprehender _toscar_. Ao roubo chamam _cortar_, Á guitarra _pianinho_, Ao chapeu _escovadinho_; Ao jogo chamam _batota_, A uma sardinha _aranhota_, _Ao corcovado golfinho_. Á fome chamam _peneira_; Tambem lhe chamam _larica_. Chamam á cara _botica_, Á aguardente _piteira_. Chamam _bico_ á bebedeira, A uma mentira _palão_; E tambem é de _calão_ Chamar-se ao vinho _briol_; Ao nosso bucho _paiol_, _Ao valente bogalhão_. Ha, porém, outros _Fados_ compostos em calão. Conhecemos quatro que não devemos deixar de transcrever, tanto mais que elles contéem alguns termos, como por exemplo _antrames_ e _gamotes_, que não foram incluidos no diccionario do sr. Bessa. _Quem se metter c’um fadista E o ouvir fallar calão, Fica logo a ver navios, ’Té perde a mastreação._ Chamam ao bater _suquir_, Á gazúa uma _retanha_, Á bofetada uma _sanha_; _Roncar_ é estar a dormir; _Esgueirar_ é ter de fugir, Um _arranjo_ é uma conquista, A taverna é uma _modista_, Cemiterio _se-m’entende_; Decerto o não comprehende, _Quem se metter c’um fadista_. Homem honesto e honrado, É um _gajo direitinho_; Bater é _fazer joginho_, Mattar é _deixar espalhado_. Ser pobre _estar desarmado_, _Gamote_ é reunião: Pois quem se chegue a um _bailhão_ Passe-lhe logo as _palhetas_, Quando o vir fazer caretas, _E o ouvir fallar calão_. Elles chamam _laia_ á prata, A um casebre um _cortiço_, Namorar é _um serviço_, A pancada é _zaragata_, Um sôcco é uma _batata_; Chapeus altos são _cepios_, Aos ladrões chamam _larpios_, Ás algibeiras _antrames_: Quem ouvir dizer _arames_, _Fica logo a ver navios_. _Arames_ é o dinheiro; Ao vinho chamam _briol_; Ao apito um _rouxinol_; _Jogador de pau_, cocheiro; Um bebado é um _archeiro_, Um _gabinardo_ um gabão, Dois vintens um _buzilhão_, _Avésa_ quer dizer tem: Quem os não percebe bem, _’Té perde a mastreação_. _Passei os butes[43] á Annica, Pois tinha naifa na liga: Boas noites, meus senhores. Vou cantar uma cantiga._ De _briol_ tinha atirado Duas _viuvas e meia_: Sentou-se uma _centopeia_ Junto onde eu estava sentado. Fiquei mais _envinagrado_, Quiz _dar cabo da futrica_. Já por ser feia e não rica E me negar um _paivante_, Em tempo que é já distante _Passei os butes á Annica_. Puz-me a mirar a _gajona_ E fez-me tanta _arrelia_, Que por pouco a não enfia A minha _naifa_, _intrujona_. Tinha um ar de _marafona_, De mulher que vende em _giga_. Mas não quiz _armar a briga_, Apesar já da _piélla_, Não me quiz _medir_ com ella, _Pois tinha naifa na liga_. A final engole a _isca_ Que tinha mandado vir, E diz-me assim ao sair: «Chamo-me _Nuna Francisca_. Se você se não arrisca A mostrar-me os seus valores, Vá ler co’a Julia Dolores, P’ra nos soccarmos com ella». Vejam lá que _bresundella_! _Boas noites, meus senhores._ Se alguem d’aqui foi capaz De saber o que eu cantei, Uma prenda lhe darei, Seja velhote ou rapaz. Sabem o que aqui me traz, O que a servil-os me obriga? É essa amizade antiga Que por mim lhes é bem dada. Visto que fiz esta entrada, _Vou cantar uma cantiga_. * * * * * _Quando tenho uma carinha, E um charuto a fumegar, Já sou mais que o faroleiro, É dar-lhe, toca a gimbrar._ O meu corpo não foi feito P’ra se ralar...--_isso pára_! P’ra _gozança_ é que esta _cara_ Sempre leve todo o geito. Se _avélo por o direito_, Seja só uma _rodinha_, Já dou mil voltas á _pinha_ A pensar como _estafal-a_, E então isso não se falla _Quando eu tenho uma carinha_! Elle é a bella _murraça_, É a bella _rapioca_, Elle é a gostosa _móca_, Elle é tudo que tem graça. Lá p’ra fazer de _panaça_ Co’as _mondongas a versar_, Nunca me esteve _a calhar_; Prefiro _bater a bisca_, Ou _dar-lhe_ então d’uma isca _E um charuto a fumegar_. Se a cousa _gruda_ ao domingo, Dou _girança_ até ás hortas, E de lá por horas mortas E já _torto_ que me _tingo_: Que eu tambem nunca me _pingo_ Até _perder o carreiro_; Fico só um pouco _archeiro_, A _trez furos de pingado_, E assim _mystico_, _orchatado_, _Já sou mais que o faroleiro_. Todo o _gajo_ que na _orchata_ Nunca _entortou o pescoço_, _Avezando bago grosso_, Tem a _pitorra_ bem _chata_. Devia logo uma data De _camolete_ apanhar, Que era então p’ra se lembrar Que o mundo é uma _fumaça_, E emquanto n’elle se passa _É dar-lhe, toca a gimbrar_. Em calão a atirar _Dê-me a naifa, não se ponha Comigo ás duas por trez. Não passe os butes agora... Que está na mão de má rez._ --Eu _estafo-o_, seu mariola. --E eu cá chego-lhe _amas todas_. --Não se me ponha com modas, «Que o mando já _p’r’o esfolla_. --Olhe que é de _ponta e móla_. «Olhe que esta tem _peçonha_. --Você perdeu a vergonha? --Perdi a vergonha? Hom’essa! --Vamos lá, que tenho pressa; «_Dê-me o naifa, não se ponha..._ --Não me ponho a fazer vistas «De _fadista ou galopim_; «Lá está aberto o _eslarim_ «P’ra quem _rentar_ com fadistas. --Você porque faz conquistas... «Que eu não sei já quantas fez, «Vem cá _fazer-se francez_? «Porque pertence á _gentalha_, «Vem pôr-se aqui, seu canalha, «_Comigo ás duas por trez_!... «--Está _nadando_, meu amigo; «Passe p’ra cá essa _espinha_. --Isso, não; que é muito minha: «Você, chamava-lhe um figo! --Eu se lhe _afinfo_ no _embigo_ «Um sôcco sem mais demora... «Veremos, se você chora «O seu empenho tão cego!... «Eh! onde vai, seu gallego? «_Não passe os butes agora!_ «--Arrede-se já d’aqui... «Já o não vejo, percebe? «--Pois já a _comadre bebe_? «Seu pateta!... _seu cri-cri_!... «--Eu cá logo quando o vi; «Puxei da naifa outra vez: «Vá, marche, seu _montanhez_, «Ou dou-lhe _quatro naifadas_; «Conte co’as guellas cortadas, «_Que está na mão de má rez_. Assim, pois, o fadista creou para si um mundo á parte, onde a linguagem, os usos, os costumes constituem uma vida exótica, de aberração, que se escôa por entre a sociedade portugueza como um enxurro negro e torvo. N’essa vida destragada todos os mais nobres sentimentos da humanidade se abatem e enlameiam, attingindo ás vezes as proporções de um paradoxo. Uma das coisas que mais custam a comprehender na vida do fadista é o ciume que elle tem da mulher perdida, que todos os dias se vende ao primeiro homem que passa. Interesse? affeição? tudo isto talvez, porque o fadista vive á custa da depravação da amante, mas quando o ciume o domina dir-se-ha haver n’esse sentimento o que quer que seja superior ao interesse material. Reconhecendo-se _atraiçoado_, o fadista procura matar a mulher que lhe foi desleal, e desprésa todas as conveniencias pessoaes que d’essa convivencia amorosa lhe resultavam. É então que parece comprehender o amor e sentir o ciume como todos os outros homens. Fóra d’esses lances, encara a prostituição da mulher como um commercio que exclue toda a idéa de sentimentalidade, e que o ajuda a viver. Do que elle tem ciumes não é das caricias que a sua amante vende; é d’aquellas que ella pode dar por um impulso espontaneo do coração. O mobil das grandes desordens entre os fadistas tem quasi sempre origem no ciume--este ciume de contrabando, paradoxal, que tanto custa a comprehender. Nos _Fados_, a mulher perdida é cantada pelo fadista como sendo tambem uma victima da fatalidade do destino: Não me prendeu sempre o vicio, Tambem donzella nasci; Mas meu candor deprimi, N’um criminal desperdicio. Na beira do precipicio, Onde o meu fado me tem, Não vê meus prantos ninguem, Nem minha dor avalia, Privada de quanto havia No collo de minha mãe! * * * * * Tudo p’ra mim se acabou, Beijos de mãe, meus folguedos; Meus innocentes brinquedos, Um sonho foi que passou. O fado meu me votou A toda a triste agonia, Até que p’r’a valla fria Meu corpo seja deitado, Pois que dos bens do passado Nada me resta hoje em dia. Camillo, no _Eusebio Macario_, reproduz dois versos de um _Fado_ da Escarnichia (Escarniche, na pronuncia popular), os quaes dão a impressão rapida da «má sorte» que, segundo a lenda fadista, a arremessou para a desgraça: Nascêra n’um berço de ouro E não teve uma mortalha. Todas as rameiras mais populares, desde a Severa, a Escarnichia, a Joaquina dos Cordões,[44] etc., até á _Borboleta_[45], teem sido choradas pela guitarra e encontrado uma necrologia nas glosas sentimentaes do _Fado_. Além da vida do fadista e da morte das mal-fadadas que viveram entre o povo, o _Fado_ canta ainda outros assumptos, a saber: _a_) O amor, como o fadista é capaz de o sentir; sem delicadeza e sem recato: o amor sensual, que principia por onde nas outras classes acaba. Porém, se é o teu desejo Saber isto mais a fundo, Deixa lá fallar o mundo E passa p’ra cá um beijo: Só então, segundo vejo, Serei grande explicador. Só então, anjo d’amor, Saberás p’la vez primeira, Que te fallo de cadeira, _Que sou n’arte professor_. E muitas vezes o amor é declarado em calão, para ser melhor entendido: Quando eu apenas _tosquei_ Essa _facha_ tão formosa, Senti _coisinhas ó Rosa_, E apaixonado fiquei. Sou feliz que nem eu sei... Minh’alma se desatina Só pôr ver que é papa fina Sua elegante pessoa; Palavra, que é _toda boa_, Minha adorada menina! _b_) Os trabalhos e soffrimentos das classes sociaes que estão em contacto com o fadista ou proximas a elle. _c_) Os aspectos da vida popular e a chronica das ruas, como as _hortas_, os _pregões_, a _noite de Santo Antonio_. _d_) Os grandes crimes e os grandes desastres terrestres ou maritimos, que impressionam a opinião publica. _e_) A morte de personagens celebres. _f_) Os conflictos politicos ou religiosos que provocam discussões na imprensa e no parlamento. _g_) A nomenclatura popular de utensilios de trabalho nas artes e officios ou de animaes, arvores, plantas, flores, etc. _h_) As cidades, seus bairros e ruas, as villas e aldeias do paiz, n’um jogo de metaphora ou de antithese; n’um sentido de orgulho local e patriotico ou de funda nostalgia. _i_) Passagens da Biblia, assumptos religiosos, especialmente relativos á vida eterna, e episodios da historia de Portugal. _j_) Descripção das esperas de touros, peripecias das touradas, triumphos e desastres dos toureiros mais evidentes. _k_) Expressão de malicias e gaiatices, que ou é formulada brutalmente n’uma linguagem obscena ou recorre ao equivoco e ao trocadilho. _l_) Floreios de palavras exdruxulas e arrevezadas que muitas vezes não fazem sentido. Entre as classes sociaes que são cantadas no _Fado_, avulta a dos marinheiros, talvez pela razão, de que o marujo é meio fadista. Já dissemos que, segundo a opinião do velho guitarrista Maia, o _Fado do marinheiro_ é um dos mais antigos. Tornou-se muito popular uma cantiga, que não seguia a metrica tradicional do Fado, mas que entrou logo no genero, a que realmente tinha direito não só pelo assumpto, como tambem pelo seu rythmo plangente: Triste vida a do marujo, Qual d’ellas a mais cansada. Por’môr da triste soldada, Passa tormentos, Passa tormentos, Don, don. Anda á chuva e aos ventos, Quer de verão, quer de inverno; Parecem o proprio inferno As tempestades, As tempestades, Don, don. * * * * * Foi um velho marinheiro Que inventou esta cantiga; Embarcado toda a vida, Sem ter dinheiro, Sem ter dinheiro, Don, don.[46] D’este _Fado_ correm pelo menos duas versões, como se pode reconhecer confrontando a de Coimbra--que vem no _Cancioneiro popular_ de Theophilo Braga--com a (de Lisboa) que vem appensa á _Confissão geral do_ _marujo Vicente_, edição de Verol Junior. No _Almanach da terra e mar_, tambem edição d’este livreiro, vem um novo _Fado do marujo_, decalcado sobre o antigo; além de outros _Fados_ maritimos. É muito original, pelo emprego da technologia nautica n’uma intenção amorosa, o seguinte _Fado_: _Do mar nas aguas salgadas, Mais de trez annos andei A navegar de bolina. ’Té que a final encalhei._ Como chaveco pirata Andei correndo na alheta D’uma velleira corveta, Que me fugia, a ingrata! Toda a manobra m’empata, Virando sempre em bordadas; Ora co’as vellas caçadas, Ora com gávea, e latina; Nunca vi barca mais fina, _Do mar nas aguas salgadas_! Quando largava os estaes, E carregava o traquete, Corria como um foguete, Ou talvez mesmo inda mais! Até os mastros reaes Que tinha d’aço julguei; Nunca por vante a pilhei, Com brisa fresca ou escassa. A dar-lhe sempre assim caça _Mais de trez annos andei_! Nos seus cachorros de proa O meu sentido só tinha; Porém p’ra fóra da linha Da minha esteira ella vôa, Como um safio s’escôa, Que tem a quilha mui fina; Já p’lo redondo a mofina Zomba de toda a coragem, Nem se lhe dá abordagem, _A navegar de bolina_! Senti-me desarvorado, Nas ondas andando aos tombos, O casco tendo com rombos, E todo, emfim, adornado. No tope, o signal içado Pôr de soccorro mandei. Ella então cedendo á lei, Seja quem for que a invoque, Trouxe-me tanto a reboque, _’Té que a final encalhei_. De outros _Fados_ de classe daremos ainda alguns exemplos. Fado dos calceteiros _Nossa arte chega ao apuro, Posso-o dizer com verdade: Vêde os mosaicos de cores Nos passeios da cidade._ Para que os trens de estadão Rodem por modo ligeiro, Passamos o dia inteiro Em difficil posição. Sempre ao rigor da estação, O nosso trabalho é duro; Mas podemos, asseguro, Dizer mesmo aos de Pariz: No lusitano paiz _Nossa arte chega ao apuro_. Com um passadio escasso, Entre o frio e o calor, Trabalham com todo o ardor Os nossos homens de masso: Dando no progresso um passo, Formámos sociedade; Reina entre nós amizade, Detestamos os vis pulhas; Não somos homens de bulhas, _Posso-o dizer com verdade_. Ordens, que do mestre vem, Cumprimos, como é dever, Mas não sabemos soffrer Um insulto de ninguem. Se qu’reis saber onde tem Chegado os nossos primores, Tornae-vos passeiadores Das ruas que são mais vistas, E com olhos, mas de artistas, _Vêde o mosaico de côres_. O estrangeiro em Portugal, De certo fica encantado, Quando vê lá no Chiado Obra boa nacional: Se elle quizer ser leal E não faltar á verdade, Dirá, com ou sem vontade, Que por lá não se apresenta O que em Portugal se ostenta _Nos passeios da cidade_. Fado dos galuchos _Deixei minha cara terra, Minha mãe, o meu amor; Como agora uns vis feijões, E marcho ao som d’um tambor._ Como eu não tinha dinheiro, Nem um empenho por mim, Lavrador, coitado, vim, Servir a patria guerreiro. Não perguntaram primeiro Se eu tinha geito p’r á guerra, «Marcharás por valle e serra, Nunca fugirás á briga» Ai! p’ra tão dura fadiga _Deixei minha cara terra_! Se era duro o meu lidar Em que suei pingo a pingo, Eu tinha sempre ao domingo As festas no meu logar. Ai! já não oiço o cantar Do ceifeiro lidador! Já do bando voador Eu não escuto o gorgeio! Já não aperto a meu seio _Minha mãe, o meu amor_! Obedeço ao capitão, Mesmo ao cabo muito bruto; Ao tenente, que é matuto, E ao sargento aldrabão. Attendidas jámais são As minhas justas razões. D’antes nas minhas funcções Comi coelho guisado. Da patria bravo soldado, _Como agora uns vis feijões_. Não se fartam de dizer: «Defender-se a patria deve.» Mas o diabo me leve Se eu sei quem vou defender! Devo sempre combater, E matar, seja a quem fôr, Sem nunca sentir amor. Isto farei, vil galucho, Que ora triste aperto o bucho _E marcho ao som d’um tambor_. Sobre os aspectos da vida popular e a chronica das ruas: As hortas _Aos domingos, á tardinha, Quem não sae fóra de Portas, Não conhece a felicidade De comer peixe nas hortas._ A gente cá de Lisboa Gosta sempre, aos dias santos, De se metter pelos cantos, Comendo e bebendo á tôa; Petisqueira toda boa Procura a nossa gentinha: Come pescada ou sardinha, Com a maior alegria: P’r’as hortas ha romaria _Aos domingos, á tardinha_. Por debaixo da folhagem Enxuga do branco e tinto; E creiam, que não lhes minto, Bebe com toda a coragem: No fim d’aquella viagem Tudo tem as pernas tortas; Parecem uns moscas-mortas, Mesmo os que tocam a _banza_; Pois só não fica _zaranza_ _Quem não sae fóra de Portas_. Uns ficam inteiriçados Debaixo ali d’umas bancas, Outros vão movendo as _trancas_, Mas bastante atrapalhados. Tantos copos enxugados, Com tal força de vontade, Tiram logo a faculdade De a gente mover as pernas. Mas quem não vê taes tabernas, _Não conhece a felicidade_. Ir ás hortas de passeio, É melhor que ser sultão: Quem precisa distracção, Procure logo este meio. Podem ir lá sem receio De virem co’as pernas tortas; Pois lá por fora de _Portas_ Pouco bebe quem bem pensa; Mas todos teem licença _De comer peixe nas hortas_. Pregões de Lisboa _Merca o tremoço saloio, Merca laranja da China, Saiu agora a dez réis: Quem quer vêr a sua sina?_ Merca a ginja garrafal, Merca a cereja do sacco, Marmello assado, a pataco, Vá la da viva sem sal. Quem merca a uva ferral Que é mesmo trigo sem joio? Quem compra a este maloio Dois casaes de patos novos? Quem me acaba a duzia d’ovos? _Merca o tremoço saloio._ Vá o par de bons melões, Um quarteirão de tomates, Vá peras quasi de _gratis_, Rabanetes e limões. Merca o mólho d’agriões, Tinta fina, tinta fina, Ricas postas de curvina, Quarteirão de pêra parda, Quem merca a couve lombarda? _Merca a laranja da China._ Vá o par de melancias; Quem quer partidas á faca? Merca o figado de vacca, Pevides e alcomonias. Bonitos, bijuterias Dedaes, fitas e anneis, Pentes, broches e paineis, Canivetes com bons cabos _O Pimpão_, _Trinta Diabos_ _Saiu agora a dez réis_. Amola facas, tesouras; Vá capachos e sapatos, Vá lá carapau p’ra gatos; Vá esteiras e vassouras. Merca o mólho de cenouras, Merca a boa tangerina; Vá lá abob’ra-menina, Figos quem quer almoçar? Tam’ra doce p’ra jogar? _Quem quer ver a sua sina?_ Noite de Santo Antonio _Em dia de Santo Antonio, Toda a gente faz banzé; Lá na praça da Figueira Sempre ha socco e ponta-pé._ No Rocio ha bons bailados, Na Praça muito empurrão; Os que andam na multidão Vem para casa estafados Uns guinchos disparatados Da flauta tira o laponio, Sempre me lembra o demonio Quando vejo mil fogueiras E na rua as vendedeiras _Em dia de Santo Antonio_. Muita gente vae sornar Lá p’ras bandas da Trindade; E depois a liberdade Lhe custa reconquistar. Tem as custas de pagar Por ter andado zaré. N’estas noites de filé Da nossa população É jogar o cachação, _Toda a gente faz banzé_. Segue depois outro santo S. João, santo adorado. Novo motim é travado, Ha riso, amor, odio, pranto Á sombra do rico manto Da policia sempre ordeira Lá vae muita bebedeira Parar á casa da guarda, Pois quasi sempre ha bernarda _Lá na Praça da Figueira_. Segue S. Pedro, e o povinho Da lucta não está cansado; Toca a andar muito exaltado Pelo fumo e pelo vinho. Louvam mais a S. Martinho Que a S. Pedro, o rei da fé! Fazem grande fincapé Nos palmitos e assucenas, E por causa das pequenas, _Sempre ha socco e ponta-pé_. Os _Fados_ sobre crimes notaveis são vulgarissimos; como já dissemos, apparecem frequentes vezes, em folhas volantes. Damos, por isso, apenas um _specimen_: O crime do Bemformoso _Em pleno sec’lo das luzes... Chega a par’cer impossivel! N’uma cidade brilhante Commetteu-se um crime horrivel!_ Na rua do Bemformoso (Por mostrar sua alforria) Pôz loja de mercearia Mais um caixeiro brioso; Porém o Fado maldoso, Peior do que os abestruzes, Só por nos lembrar as cruzes Do tempo do feudalismo, Lhe cavou medonho abysmo _Em pleno sec’lo das luzes_. Quando todo mundo préga Contra a pena derradeira, É quando a mão traiçoeira Mais sobre os homens carrega! A vil ambição é cega, Dos vicios, o mais terrivel! Porque faz descer ao nivel Do ladrão e matador; Mas fazel-o ao bemfeitor, _Chega a par’cer impossivel_! Domingues foi tão malvado, Que, além de fazer-lhe o roubo, Por ter entranhas de lobo, Quiz deixal-o estrangulado. Dormindo mui socegado Estava o pobre commerciante, Quando um ferro perfurante Lhe trespassou as guellas! E dão-se scenas d’aquellas _N’uma cidade brilhante_! O desditoso Duarte (Por dar aos homens abrigo) Creou feroz inimigo, Sem culpa da sua parte! Não foi morto a bacamarte, Nem por arma compativel; Que, por tornar despresivel Tanto a dita como o porte, Não só se fez uma morte... _Commetteu-se um crime horrivel!_ Sobre um desastre que impressionou Lisboa--a morte do conde de Camaride: _O conde de Camaride (Por dispensar o cocheiro) Morreu desastrosamente... Sem ser pintor, nem pedreiro!_ Na rua Nova do Almada (Mesmo junto á Boa Hora) Deu-se a scena aterradora, Que jaz na mente gravada. Não só á pobreza honrada Destroe a mundana lide; Como a sorte é quem decide De tudo quanto é mortal, Quiz destruir a final, _O conde de Camaride_. Que importa que fosse nobre, Que tivesse ouro a valer? Não pôde deixar de ter A mesma sorte que o pobre. Se, de finados o dobre, Lhe coube por ter dinheiro, Não teve a gloria do obreiro, Que morre ao som do martello: Nem por isso foi mais bello, _Por dispensar o cocheiro_. Se guiava o tal cavallo Que lhe concorreu p’r’a morte, Não partilhava da sorte Dos que tinham de tratal-o; Sómente por seu regalo Governava o tal vivente, Sem sentir o que se sente Quando o trabalho é forçado: Todavia o desgraçado _Morreu desastrosamente_. O seu famoso corsel (Apesar de fina raça) Foi o motor da desgraça Que lhe deu cabo da pel’. Se gosava o doce mel De, no carrinho ligeiro, Ter o logar sobranceiro Que tanto dava nas vistas, Teve a sorte dos artistas, _Sem ser pintor, nem pedreiro_. Na morte de personagens celebres apparecem sempre _Fados_, que encontram um grande exito na rua entre as classes populares. O que se segue, escripto por occasião da morte de Antonio Feliciano de Castilho, cantou-se na Mouraria, posto accuse uma origem culta: _Chorae, Musas Lusitanas, O nosso dilecto filho; Desceu á estancia da morte O grão poeta Castilho._ Á luz do mesmo astro santo Que lhe sorriu na innocencia, Desfez-se da humana essencia O rei do moderno canto. Destillae amargo pranto, Ó Graças ovidianas, Que as Parcas sempre tyrannas Ceifaram mais um talento. Com profundo sentimento _Chorae, Musas Lusitanas_. Como Milton na Inglaterra Cantou sem ver a natura. Como elle, na sepultura Para sempre Deus o encerra. Extinguiu-se em nossa terra Um esforçado caudilho, Dos trez astros de mais brilho Que nos deram mais auxilio. Chorae, manes de Virgilio, _O vosso dilecto filho_. Com o mau destino humano Nenhum poder se intromette. Perdemos o bom Garrett Ha quasi vinte e um anno. Já só nos resta Herculano D’essa trindade tão forte. Dos grandes genios a sorte Choremos com dor sincera, Que o cantor da Primavera _Desceu á estancia da morte_. Privado na curta edade De ver o grande Universo, Cantava em sonoro verso D’este mundo a magestade. Ensinou á mocidade Da instrucção o bom trilho, Cantou a flôr e o tomilho Como cantar ninguem ousa; E emfim descansa na lousa _O grão poeta Castilho_. Apontemos outro facto mais recente: o suicidio de Mousinho de Albuquerque. Vendeu-se logo um folheto de 8 paginas contendo a noticia da sua vida e morte, glosada em decimas. A catastrophe final é assim descripta: _O destemido guerreiro, Que sempre a morte affrontou, Quando a vida lhe sorria A negra morte chamou._ Contra si erguendo o braço, Que a tantos a morte deu, Encarando a luz do céu, Teve da vida o fracasso. Seu corpo de puro aço Teve o golpe derradeiro, Mas tão fatal, tão certeiro, Que a vida, n’elle, apagou-se; Pois sem fraqueza matou-se _O destemido guerreiro_. A tão notoria coragem Que de louros o cobriu, Não fraquejou nem fugiu N’esta ultima passagem. Decerto alguma visagem Falso p’rigo lhe mostrou, E o bravo não hesitou Em morrer bem dignamente, F’rindo de morte o valente _Que sempre a morte affrontou_. Quem conheceu o soldado Que lembra os passados feitos, Tributa honrosos respeitos Ao luctador denodado: Nenhum mais galardoado Pela sua valentia, Pois nenhum mais merecia O logar que se lhe deu, Mas a vida aborreceu, _Quando a vida lhe sorria_. Quando gosava o descanso, Da morte e do p’rigo ausente, Pensou de modo diff’rente, Buscou o eterno remanso. De bemdizel-o não canso Porque a sua patria honrou; Briosamente luctou Contra os revézes da sorte; E sem ter temido a morte, _A negra morte chamou_. Os acontecimentos politicos e os conflictos religiosos, quando agitam fortemente a opinião publica, tambem encontram écco na poesia popular. A questão do caminho de ferro de Salamanca (vulgarmente, _Salamancada_) inspirou em 1883 este _Fado_: _Casou Dona Salamanca Com Dom José Portugal; Foi padrinho o Dom Antonio De tal... e coisas... e tal._ Zé povinho parvonez! Salta... dança... canta... brinca... Pois, como tu, ninguem chinca Tantos coices d’uma vez: Se o grande cantor de Ignez Te visse, ó _chanca-lha-chanca_, Na sua lyra tão franca Gabaria o teu socego... Que p’ra te fazer gallego, _Casou Dona Salamanca_. Casou a _velha das covas_ D’onde sae a estudantina; Zombando da tua sina, Das tuas ideias novas! Depois de tantas mil provas D’essa verdade fatal... P’ra complemento do mal D’alguns corações sinceros, Casou a tal dos _boleros_, _Com Dom José Portugal_! Casou-se!?... não digo bem; Fizeram-lhe o casamento Com quem já foi o tormento Do Portugal que Deus tem; Assiste lá p’ra Belem Quem o fez andar erroneo: Se tu fizeste o demonio Por causa do syndicato... De tão nojento contrato _Foi padrinho o Dom Antonio_. Se não passas d’uma aranha... P’ra que gritas, Zé-povinho?! Deixa viver o ranchinho, Como melhor lhe convenha; Se querem os ares d’Hespanha... Deixa-os ir, porque, a final, Salamanca e Portugal Hão de ser do homem raro, Que se chama--Antonio Caro...[47] _De tal... e coisas... e tal_. A questão religiosa, ultimamente levantada a proposito do incidente Calmon no Porto, provocou _Fados_ de occasião contra os jesuitas, os conventos e recolhimentos, etc. Trecho de um _Fado_ ironico contra os jesuitas: É injusta a crua guerra, Que contra os _santos_ fazemos, Pois mil _feitos_ lhe devemos. Do palacio até á serra A sua doutrina encerra O que o povo _necessita_: _Instrucção_ que a crença agita, _Conselho_ que o faz feliz; Por isso é que o mundo diz: _Que mal faz o jesuita?_ O _virtuoso_ varão, Tão _respeitado_ e _bemquisto_, Que só prega a lei de _Christo_, Plantando a religião, P’ra que chamar-lhe villão, Se ao contrario é mui _cordato_? _Educador_ e _pacato_, E _devoto_ d’alto lote; Se é um _bello_ sacerdote, _Severo, grave e sensato_! No Porto havia um musico ambulante, de nome Marcolino, que improvisava _Fados_ com caracter satyrico, entrando frequentes vezes pelo dominio da politica. Aos _Fados_ de nomenclatura (como os nauticos) que do caracter popular passaram ao caracter scientifico pela intervenção do famoso bohemio Luiz de Almeida, reservamos menção especial. Exemplo de _Fados_ toponymicos, a começar por Lisboa: _N’este semestre passado, Houve grande confusão: Foi uma familia séria, P’r á rua do Capellão._ Um _dandy_ todo liró Poz escriptos no _Chiado_, E mudou-o sôr _Calado_ P’r’ó _becco do Falla Só_. Um excellente _sol e dô_, Foi p’r’ó _Pateo socegado_ Mudou-se um _trapeiro_ honrado Para o _Collegio dos Nobres_. Viram-se em pancas os pobres, _N’este semestre passado_. P’r á _rua dos Sapateiros_ Mudou-se um _amolador_, E até um _entalhador_, Foi p’r’ó _Largo dos Torneiros_. Foram dois _atheus_ brejeiros, P’ra _rua da Conceição_; Té se mudou o _Paixão_, Para a _Praça d’Alegria_. Foi immensa a berraria, _Houve grande confusão_. P’ra um bello primeiro andar, Sito no _Largo do Rato_, Foi o senhor _João Gato_ Com a familia morar. Foi um de _livre pensar_, Para a _de Santa Quiteria_ E a familia do _Miseria_ P’r’ á _Calçada do Pombeiro_; P’r’ o Arco do Limoeiro _Foi uma familia séria_. Um _céguinho_ se mudou P’r á _rua da Bella Vista_, E uma senhora _modista_ P’r’ós _Ferreiros_ se passou. _N’ Alegria_ casa achou O senhor _Pena Tristão_; Mudou-se um _avarentão_ P’r á _rua da Caridade_, E foi o _Dr. Verdade_ _P’r á rua do Capellão_. Um barbeiro de Bucellas quiz lembrar-se, para me dizer, de certo _Fado_ composto sobre o onomastico locativo do Termo de Lisboa, mas não se recordou senão d’estes quatro versos: Deu Bucellas uma facada Na ribeira do Trancão. Acudiu-lhe a Ponte Nova, Camarate e Appellação. O _Fado_ saloio tem já hoje vida propria e autónoma. Quero dizer que os fadistas do Termo não se limitam a copiar os _Fados_ de Lisboa, mas já por sua vez os compõem sobre assumptos locaes: portanto é natural que lhes dêem um caracter toponymico. N’esta especie de _Fados_ a quadra substitue a decima, que é de mais difficil improvisação; mas já ouvi quadras locaes da Ericeira--por mim recolhidas em outro livro--[48]cantadas no rythmo do _Fado_. Sem embargo tambem ha _Fados_ saloios em décimas, que Lisboa exporta nos almanachs, com o fim de conquistar leitores entre as povoações suburbanas: Fado saloio _Sou saloio, honro-me d’isso, P’ra casacas não sou mau; Os janotas atrevidos Sei correr a varapau._ Que andamos no ramerrão Dizem lá os de Lisboa; Porém entre nós já sôa O brado da illustração: Escolas já cá estão Fazendo bello serviço; Eu cá já tenho toutiço Para entender os jornaes, Tenho ideias liberaes, _Sou saloio, honro-me d’isso_. Aos comicios vou tambem E lá sei fallar em barda Contra quem me põe albarda, E nos deixa sem vintem: É certo que não vou bem Com quem se me faz marau; Mas jámais corro a calhau Quem me sabe respeitar; Se não veem cá namorar _P’ra casacas não sou mau_. P’r’ as madamas que cá veem Com o fim de tomar ares, Temos modos singulares E attenções como ninguem; Nós cantamos muito bem Os doces fados corridos; D’amor mil versos sentidos Sabemos improvisar. E com elles castigar _Os janotas atrevidos_. E saiba qualquer senhor Que eu, saloio esperto e girio, Não soffro manguem co’o cirio A que tenho tanto amor: Se vem com ar zombador Algum janota marau Fazer o _serviço mau_ De quem a crença me ataca, Verá como eu um casaca _Sei correr a varapau_. O Algarve tem o seu _Fado_, que abrange toda a provincia: Fado algarvio _Dos seus fructos abundantes O Algarve se ensoberbece; Graças ao trabalho honrado, De dia a dia enriquece._ Quem é que torceu a venta, Quem fez, acaso, careta, Ao bom vinho da Fuzeta Que o nosso Algarve apresenta? Quem é que se não contenta Co’os nossos figos chibantes? Quem não quer ver quanto antes No prato o atum saboroso? Pasma este solo, orgulhoso, _Dos seus fructos abundantes_. Abundante e variada É no Algarve a pescaria, E quem na vida porfia Mantém sempre a vida honrada; A figueira abençoada Vigorosa aqui floresce; Por parte alguma apparece Outra que lhe seja igual. De n’ella não ter rival _O Algarve se ensoberbece_. É bem formosa Tavira, Villa Nova formosa é, Formosissima Loulé, Gloria a Faro ninguem tira: Galharda brilha Odemira Em o seu torrão fadado; E de pobre ou rico estado, Do Algarve a boa gente Leva a vida alegremente, _Graças ao trabalho honrado_. Salve, pois, terra eminente A que devo chamar nobre, Onde o rico vale ao pobre Tão briosa e christãmente! O Algarve um brado valente De toda a nação merece; E é justo que aqui me apresse Em offerecer a cantiga A quem, graças á fadiga, _De dia a dia enriquece_. Os assumptos biblicos são muitas vezes aproveitados pelo cantador fadista n’um sentido religioso. Por exemplo: A doce mãe de Jesus, Que remiu a humanidade, Sentia a cruel saudade Que ao nada a alma reduz. Nos céus não havia luz Desde o sul até ao norte, Só ella chorava a sorte E o seu tão horrivel trilho, Porque, ali, do querido filho A Virgem chorava a morte. Quão amargo era o seu pranto, Quantas lagrimas vertia Ao pensar que lhe morria Quem na vida amava tanto! Seu coração puro e santo Sentia-se aniquilado, E ora erguia aos céos um brado Repassado de desgosto, Ora olhava o bello rosto Do seu filho idolatrado. Tambem o fadista investe ás vezes com os problemas mysteriosos de alem da campa, como n’este _Fado_: _Satanaz, rei do Averno, Reunindo o seu conselho, Mandou fazer a caldeira Do grande Pero Botelho._ Clara ideia ninguem faz Da sua monstruosidade, Nem de quanta humanidade Em suas fornalhas jaz. Por ordem de Satanaz Foi posta ao meio do inferno, E á ordem do seu governo E ali tudo queimado, Depois de haver decretado _Satanaz, rei do Averno_. As bruxas em volta d’ella Preparam enguirimanços, E os mais negros manipanços Vigiam-n’a, com cautella. Ali cae desde a donzella Ao condemnado mais velho. Ha bem perto um apparelho, Semelhante a uma lousa, Onde o diabo repousa _Reunindo o seu conselho_. Os infernaes feiticeiros Que do demonio são filhos, Cantam tristes estribilhos, Ateiam os seus brazeiros. Horropilam os berreiros Que saiem d’esta lareira! Mas o rei vendo a maneira Como as almas se perdiam, Vendo que mais appar’ciam, _Mandou fazer a caldeira_. É ali que tudo finda, Ali tudo se consome: De Pero lhe deram o nome P’la sua crueza infinda. Quem para o céu se não guinda Attente bem n’este espelho: Pois quem segue mau conselho, Ou caminha com cegueira, Vae acabar na caldeira, _Do grande Pero Botelho_. Quanto á historia de Portugal, tenho ouvido _Fados_ sobre os amores e morte de D. Ignez de Castro e ainda sobre outras epocas e assumptos, como por exemplo: _Fazer nos Lusos matança Muitos tyrannos tentaram; Mas á voz da Liberdade, Elles seus fóros salvaram._ Foi Dom João o primeiro, Quem, por seu punho real, Para livrar Portugal, _Estafou_ o conde Andeiro. Dona Leonor n’um berreiro, Pedia ao povo vingança; Porem fugindo-lhe a esp’rança De recobrar o seu mando, Deu-se á prisão; mas jurando, _Fazer nas lusos matança_. Lá se partiu p’r’as Hespanhas, Pedir ao rei que a vingasse, Que Portugal conquistasse, Contando-lhe outras patranhas. Umas taes artes, e manhas, Sempre o hespanhol abalaram: Logo os seus terços entraram No reino, altivos e bravos; E já fazer-nos escravos, _Muitos tyrannos tentaram_. Mas os famosos montantes De Dom João, formidavel, E do seu grão Condestavel, Deram-lhes rijo, possantes. Eis rôtos já, vacillantes, Os hespanhoes, co’anciedade, Fogem, ou pedem piedade; Triumpham, pois, dos revézes Esses leaes portuguezes, _Mas á voz da Liberdade_! Sempre em continuas batalhas Seu nobre sangue vertendo, Aos inimigos tecendo, Com ferro, as negras mortalhas; Eis como assim das migalhas O reino todo alimparam; Eis como, pois, alcançaram Das nações todas respeito: E á Liberdade com preito _Elles seus fóros salvaram_! Disse-me o sr. Verol Junior tencionar imprimir uma collecção de _Fados_, que abrange todos os periodos da historia de Portugal. A vida do fado está intimamente relacionada com a tauromachia. O fadista não falta a uma espera de touros, com a sua guitarra na mão; o fadista de um e outro sexo, mulheres e homens. Antigamente o enthusiasmo era maior, no tempo da Severa e do Vimioso, quando os fidalgos, «amadores» e «cavalleiros», não perdiam uma espera, nem uma tourada. A tradição tauromachica era então muito mais intensa do que hoje, porque no seculo XVIII tinhamos tido _touros de morte_, e o enthusiasmo pelas luctas cruentas do redondel conservava ainda, no espirito do povo, um rescaldo ardente. No seculo XVIII havia em Lisboa nada menos de quatro praças de touros: a da Estrella, nas terras do Infantado; a da Parada, junto ao Rocio; a do Salitre, e a do Campo de Sant’Anna. Não fallando no Terreiro do Paço, onde se realizavam as touradas de maior pompa. Quem fazia as cortezias era o _neto_[49], (meirinho da cidade); quem as recebia era o rei, o senado da camara, o tribunal da junta da casa do Infantado, e, ás vezes, Nossa Senhora! Assim, no programma de uma corrida _em obsequio da devotissima imagem de Nossa Senhora do Cabo, sendo o producto para os cultos da mesma Senhora_, lê-se o seguinte: «Ás duas horas e meia estará tudo prompto, e feito o signal costumado, entrará o Neto a fazer as suas cortezias á devotissima imagem de Nossa Senhora, que ha de estar collocada em um logar proprio, e depois ao Tribunal». Por esta não esperava de certo o leitor: que a propria imagem de Nossa Senhora, collocada em altar todo florente de galas, fosse quem recebesse as cortezias do cavalleiro. O costume de fazer touradas em beneficio de Nossa Senhora e dos santos, era então vulgarissimo. Em setembro de 1778 effectuou-se na Praça do Commercio um combate de touros, como n’esse tempo se dizia, _a bem do adeantamento das obras da egreja de Santo Antonio d’esta cidade_. Assistiram suas magestades. Em agosto d’esse mesmo anno realizou-se na Praça do Commercio uma tourada em beneficio de Nossa Senhora do Cabo, funcção promovida pelo capitão João Dias Talaia Souto Maior, _como escravo que era, e toda a sua familia_, da mesma Nossa Senhora. Os touros, em numero de 25, afóra os que vinham sobrecellentes, eram offerecidos bizarramente pela casa real. No mesmo anno pediu o padre Emygio José da Costa licença para organizar um combate de touros na Real Praça do Commercio, a fim de adquirir uma avultada esmola destinada aos enfermos particulares da capital. «_Os touros que hão-de morrer_, dizia o programma, _são dezeseis_, que El-Rei N. Senhor e varios fidalgos d’esta Côrte deram para o presente dia.» Aqui temos, pois, as _touradas de morte_, que tanto horrorisam os portuguezes que a ellas assistem hoje em Madrid, Badajoz ou qualquer outra praça hespanhola. _Quantum mutatus ab illo_... o portuguez! Outro programma dizia: «Entrará Nicolau Theodoro, suhiço (sic), vestido á suhiça com uma lança na mão, e sobre uma mesa á porta do touril esperará um touro, e ao tempo que o investir lhe metterá a lança, e repentinamente saltará por sima d’elle; e ficando em pé metterá a mão á espada, e esperará o touro cara a cara, e promette matal-o ás estucadas ou ás cotiladas.» Copio textualmente para conservar toda a feição historica do programma. Pela mesma razão não alterei a orthographia dos seguintes periodos que de outros varios programmas vou transcrever. «Entrará o Neto a fazer as cortezias ao Tribunal, e depois um breve divertimento de algumas danças, em quanto os cavalleiros se põem promptos, e rodeando a praça sahirá tudo para fóra, entrarão os quatro contendores a fazer as cortezias do costume ao Tribunal, em primeiro lugar Theodoro Francisco Ribeiro, o qual já domingo passado entrou tambem em primeiro logar, e mostrou o quanto era destemido; em segundo logar Jacintho Pinto de Moraes, aquelle que domingo passado ficou sem capa, pelo Touro lha tirar dos hombros, e n’este dia a quer restaurar; em terceiro logar Thomaz Cesar, o polvilheiro, que por esta Cidade vende poz (sic), que tendo noticias, que domingo passado os cavalleiros fizeram tantas proezas, quer elle imital-os; em quarto logar Carlos Antonio Canute, Genovez de Nação, com logea defronte do Palacio do Excellentissimo Monteiro Mór, sujeito de muito valor, e forças, e a figura muito especial, tem viajado pela China, e Indias de Hespanha, e quer mostrar como n’estes paizes se tourea, etc.» * * * * * «Seguir-se-ha logo o Contendor Bernardo de Magalhães e Noronha, filho do Capitão Mór de Formoselha, assistente no campo de Coimbra, pessoa bem conhecida n’esta côrte, o qual pelo seu nascimento, e valor, executará acções muito distinctas. Terá para combater 15 touros escolhidos das melhores raças; irá acompanhado de seus criados ricamente vestidos, e capinhas, tudo com igual aceio.» * * * * * «E logo entrarão os contendores, que serão quatro cavalleiros do gosto dos senhores espectadores, em primeiro logar Lourenço Antonio de Moraes Bandeira, o qual desempenhará n’esta tarde o seu logar, pelas valorosas acções que se esperarão do seu animo; em segundo logar Sebastião Antonio de Mendonça, igual ao primeiro no mesmo valor; em terceiro lugar Francisco da Silva Alcantara, por appellido o _fava secca_, este promette á sua parte matar de rojão tres, ou quatro touros, por se obrigar a isso no ajuste que fez; em quarto lugar Thomaz Cesar, pulvilheiro d’esta cidade, e n’ella muito bem conhecido; entrarão estes quatro cavalleiros bem vestidos, e providos de bons cavallos, acompanhados dos seus criados, homens de forcado, e capinhas a fazer as cortezias, e acabadas sairão para fóra a mudarem de cavallos; entrarão novamente, e cada um occupará um angulo da praça, e se irão seguindo cada um quando lhe tocar, esperar o touro á sahida da porta do touril, ficando n’esta forma touriando, sem haver perturbação de logares, somente quando houver duellos os perderão para se desaggravarem.» «Entrará logo o Neto e depois os contadores a fazerem as devidas cortezias ao Tribunal da Junta da Casa do Infantado, os quaes serão Caietano Romão, criado do Excellentissimo Conde de Arcos, e João Gaspar, Allemão de Nação, professor da arte de Cavallaria, de muitas forças e igual valentia, o que pertende fazer certo neste combate; para o que promette pôr-se a pé, e chamar hum touro, que esteja com todas as suas forças, e ao investir pegar-lhe em huma ponta, e passando-lhe o pé dar-lhe huma tão grande cutilada, que, se fôr no pescoço, lho deixará quasi separado; e se fôr no lombo, lhe cortará o espinhaço, de sorte que lhe sáião os intestinos pela ferida; e se pela violencia do touro lh’o não puder fazer da primeira vez, tentará segunda e terceira; e no caso que o não possa conseguir apezar de toda esta diligencia que promette fazer, chamará o touro de cara a cara, e pegando-lhe por ambas as pontas o deitará em terra de pernas assima, tudo com muita ligeireza, e desembaraço: e se não fizer destas tres valentias huma perderá dez moedas de ouro, que tem depositado; e se executar das tres valentias alguma, as ganhará, etc.» Vejamos agora a nomenclatura que tinham os diversos logares occupados pelos espectadores: «Adverte-se que os preços dos camarotes do primeiro andar são a 600 réis a vara, e do segundo andar a 480 réis a vara; e as trincheiras da sombra a 150 réis, e as do sol a 60 réis.» N’outros espectaculos, que não fossem touros, mas que se déssem em qualquer das praças, baixavam os preços consideravelmente. Assim, n’uma exhibição pyrotechnica, feita por um hespanhol de nação, _os preços dos camarotes eram a 300 réis por vara, tanto no primeiro como no segundo andar_, e todos os palanques a 40 réis. Um outro programma, da Praça do Campo de Sant’Anna, diz: «Os camarotes do andar de sima serão com mais comado, (sic).»[50] Comprehende-se que o seculo XIX recebesse do seculo anterior uma viva tradição tauromachica, que enthusiasmava ainda o povo pelas antigas corridas, cujo brilho e perigo não tinham sido menores que nas praças de Hespanha. As mulheres de má vida não ficavam indifferentes a essa tradição; não ficou a Severa, que zombava das suas collegas menos animosas do que ella, e que fez escola. Algumas raparigas do fado chegaram a tomar parte em touradas. Assim aconteceu n’uma corrida realizada em outubro de 1842. A _Revista Universal_, redigida por Castilho, commemorou o acontecimento n’este _suelto_ vernaculo, de que se perdeu já o feitio: «A corrida de touros de domingo ultimo no Campo de Sant’Anna pouca menção merece. Sim eram bravos os animaes; mas, exceptuando algumas quédas, alguns corpos humanos marrados e pisados, e algumas saudes provavelmente arruinadas para sempre, não houve ahi successo por onde a tarde se podesse chamar boa. «Semear morte em vultos de figura humana, é de pequeno interesse dramatico; é preciso dar-lh’a prompta e estrondosa; é doutrina corrente, é aphorismo entre os partidarios do curro. Para descontar porém a semsaboria da festa, houve n’ella a novidade (pomposamente annunciada em todas as esquinas da capital) de uma rapariga a cavallo n’um rossinante, correndo um toiro á vara larga: o toiro, que a podia ter morto, contentou-se fidalgosamente de dar-lhe uma licção; e mettendo os cornos pelos peitos ao cavallo, e arvorando-o a prumo, a despejou da sella, estirada de costas no meio da praça por entre os risos dos circumstantes. «A mulher forte, com razão assomada da descortesia, recavalgou para se desaffrontar; e não duvidamos que o houvera conseguido, se o cavallo não discordasse manifestamente das opiniões da cavalleira: o exame phrenelogico dos dois craneos, se algum curioso de anatomia comparada o tiver de fazer lá para o futuro, deverá, se nos não enganamos, redundar todo em gloria do quadrupede.» O brado de um poeta contra as touradas não encontrava écco; nem as mulheres nem os homens lhe davam ouvidos. Qualquer _Fadinho_ toureiro, como relembraremos no capitulo seguinte, o combatia e supplantava. Resta-nos ainda fallar de duas especies de _Fados_. Aquelles que tratam assumptos pornographicos, mais ou menos desbragados, encontram-se na _Guitarrinha innocente_ e no _Almanach do fado bréjeiro_. Quanto aos _Fados_ exdruxulos, e outros que apenas visam a uma combinação artificiosa de palavras, technicas ou arrevezadas, havemos de incluil-os na secção dos _Fados de nomenclatura_, não porque propriamente o sejam, mas porque melhor ficarão ali do que em qualquer outro grupo. [Illustração: FADO CHORADINHO] NOTAS DE RODAPÉ: [40] Cordas da guitarra. [41] Alberto Bessa, _A giria portugueza_. [42] Adolpho Coelho, _Os ciganos de Portugal_, pag. 56. [43] Bute é uma das palavras que o calão adoptou das linguas estrangeiras. Vem do inglez _boot_, bota, pé. (Adolpho Coelho.) [44] Dos Cordões, por trazer sempre dois ao pescoço. Esta mulher devia ser do norte. Morava na rua das Gaveas. [45] A _Borboleta_ inculcava-se irmã natural do infeliz tribuno Vieira de Castro. Quando ella morreu, cantou-se-lhe um _Fado_ que dizia: Se em seu collo de alabastro Nutrisse conducta sã, Desmentira o _ser_ irmã, Do fraco Vieira de Castro. Estava escripto no cadastro Da sorte que os malfadou, Matar o irmão quem matou; Tornar-se a irmã prostituta, Que d’essa _chamma_ corrupta Tanto á _luz_ se aproximou!... [46] Victor Hussla inspirou-se certamente n’esta lettra quando compoz a ballada «Triste vida do marujo». [47] _Dom Antonio_ ou _Antonio Caro_ era o illustre estadista Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello, chefe do partido regenerador. Este partido estava então no poder, sendo chefe do gabinete, por delegação de Fontes, o conselheiro Antonio Rodrigues Sampaio. [48] _Sem passar a fronteira_, pag. 138. [49] N’um opusculo em que se descrevem as touradas com que o senado da camara de Lisboa celebrou a acclamação da rainha D. Maria I, encontra-se a origem da accepção tauromachica da palavra _Neto_. Diz o folheto. «Seguiu-se a entrar na praça o meirinho da cidade João Marcelino Alvares de Sá (_a que o vulgo n’estas funcções chama Neto, pela tradição de um meirinho de appellido Neto, que assistiu a muitos d’estes festejos_) etc.» É uma nota curiosa, e por isso a registamos. [50] Todas estas noticias foram colhidas n’uma curiosa collecção de programmas, coordenados em volumes de miscellanea, que existem na bibliotheca da Academia Real das Sciencias de Lisboa. IV A Severa e o conde de Vimioso Toda a gente falla ainda da Severa, porque o typo d’essa mulher perdida ficou como que personificando a época famosa do _delirio_ n’uma sociedade de marialvas opulentos, que viviam para a guitarra, para as touradas, para as extravagancias alegres e ruidosas, em que a vida parecia arder como a resina no fogo. De todas as mulheres da mesma estofa, que a tradição tornou celebres, a Joaquina dos Cordões, a Escarnichia, a Amalia Bexigosa, a Conceição Capellista, foi a Severa aquella cuja individualidade parece ter consubstanciado todas as lendas da bohemia fadista, da vida picaresca de Lisboa, das aventuras do _redondel_ e do alcouce, que tiveram um periodo de fascinação capitosa. Mas, se toda a gente falla ainda da Severa, é fóra de duvida que a geração de hoje em dia não tem sobre o assumpto senão uma vaga idea fugitiva, que apenas as cantigas do _Fado_ alimentam ainda, e que tende a apagar-se como uma lenda que morre estrangulada pela corrente de novos costumes e novas proezas. No lapso de cincoenta annos a figura da Severa, a muza plebea do _Fado_, a cuja vida destragada associára a homenagem de fidalgos e populares, a cuja guitarra dolente o conde de Vimioso reconhecia o prestigio de um alaude divino, tem-se diluido como todas as tradições que enchiam de saudade o coração dos velhos que ainda chegamos a conhecer, hoje, na sua maioria, adormecidos para sempre na paz do tumulo. Através do confuso nevoeiro da versão oral, o sr. Julio Dantas desenhou os perfis, empallidecidos pela acção do tempo, da Severa e do conde de Vimioso n’um drama, representado e publicado, e n’um romance tambem publicado; mas o sr. Miguel Queriol, contemporaneo d’essas duas famosas individualidades, acudiu logo, n’um interessantissimo artigo que _O Popular_[51] estampou, a reavivar a physionomia exacta do conde e da Severa, e a esclarecer alguns pontos escuros da biographia de ambos. Para nos guiarmos na reconstituição d’essas duas figuras tradicionaes, devemos dar preferencia ás indicações das trez testemunhas coetaneas que teem escripto sobre o assumpto: Luiz Augusto Palmeirim, já fallecido; Miguel Queriol e Raymundo Antonio de Bulhão Pato, ainda vivos, felizmente. Muitas pessoas suppunham, e eu com ellas, que a Severa pertencia, pela sua origem, a essas hordas de ciganos errantes que, na passagem por Lisboa, faziam outr’ora _quartel general_ no Paço da Rainha, e que atravessavam em grupos a rua da Inveja, de S. Lazaro e o Campo de Sant’Anna. Todavia, como se verá, o sr. Miguel Queriol, com toda a sua auctoridade de contemporaneo, affirma categoricamente que a Severa «nunca foi cigana, mas uma esbelta e infeliz filha de uma megéra, que a explorava, e era bem conhecida na policia pela alcunha de _Barbuda_.» Alguem, certamente por informação que reputou fidedigna, disse já que o conde de Vimioso tambem manteve intimas relações com a mãe da Severa, a qual, mais tarde, viveu com o cavalleiro tauromachico D. H. B.[52]. Nunca ouvi isto a ninguem, mas é possivel, desde que o sr. Queriol affirma que a _Barbuda_ explorava a filha: seria ella propria que a lançára na prostituição, facto abominavel, mas infelizmente vulgar na sua classe. Por aqui se póde ver quão valioso e importante é o testemunho dos coevos, no meio de tantas e tão imprevistas versões, para se chegar a reatar um tenue fio de verdade historica. A lenda até já produziu uma duplicação de Severas. De Evora disseram ao sr. Adolpho Coelho existir ali uma cigana, que foi amante do ultimo conde de Vimioso, _e que é a cantada nos acompanhamentos de viola com o nome de Severa_.[53] Mas a cigana de Evora não se chamava Severa, e o sr. Adolpho Coelho inclina-se a crer que ella teria sido amante de um conde de Vimioso mais antigo que o ultimo. Ora D. Francisco de Paula Portugal e Castro, ultimo conde de Vimioso, florescia no vigor dos 20 annos em 1837. Admittindo que a cigana de Evora andasse pela mesma idade, teria em 1892, quando o sr. Adolpho Coelho publicou o seu livro, 55 annos. Se ella houvesse sido amante do penultimo conde, que falleceu em 1840, deveria ser septuagenaria em 1892. O informador eborense não diz que a cigana fosse de provecta idade, circumstancia que decerto lhe não teria escapado, pois que informa com minuciosidade dizendo que ella vivia na companhia de um filho que era alfaiate, mas usava nome fidalgo; que tinha ainda outro filho, que residia em Lisboa e constava ser rico; que ella, como as demais que aberram dos principios da seita, foi despresada de todos os ciganos e vivia isolada com aquelle filho. Deve ter sido amante do ultimo conde, se o foi, e talvez do facto de ser cigana proviesse, por confusão, o motivo de se haver julgado que a Severa pertencia á mesma raça. N’um apontamento que Bulhão Pato deu a Urbano de Castro, o illustre poeta da _Paquita_ diz sempre «Maria Severa», o que faz crêr que «Severa» era sobrenome, adoptado e popularisado como «nome de guerra.» Palmeirim conheceu a Severa, foi vel-a com o interesse de quem visita uma celebridade. Morava ella então no Bairro Alto. E parece que a encontrou n’um momento de tédio, em que ella o recebeu mal, e elle ficou desagradavelmente impressionado. Conta Palmeirim, textualmente: «Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação do typo vulgar das que habitam as infelizes suas congéneres, estava ella fumando, recostada n’um camapé de palhinha, com chinellas de polimento ponteadas de retroz vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça, e as mangas do vestido arregaçadas até ao cotovello. «Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notavel por uns magnificos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparavel dos seus triumphos; e pendente da parede (sacrilegio vulgar nas casas d’aquella ordem) uma pessima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça! «Antes da minha apresentação, que foi rapida, e sem cerimonia, a Severa que logo conheceu não ser eu um official do officio, isto é um fadista emérito, como quasi todas as pessoas que lhe eram apresentadas, mimoseou-me com uma saraivada de injurias, a que eu repliquei de prompto, dando logar a uma sabbatina pouco edificante, de que me sai como defendente a contento d’ella propria, que não esperava encontrar n’um _liró_ um contendor capaz de lhe replicar ao pé da lettra».[54] Tudo isto se poderá explicar, na Severa, por um irritante orgulho de celebridade e uma longa pratica de impudores de classe. Aquella mulher, que um fidalgo portuguez notára e distinguia, e que, de guitarra na mão, era enthusiasticamente applaudida por muitos outros, vendo crear-se á volta do seu nome uma atmosphera estonteante de vaidade, devia por vezes achar-se contrariada fóra d’esse meio que a celebrisára, e que representava para ella o enlevo, o sonho, a poesia na desgraça; devia achar-se constrangida na presença de pessoas que não eram fidalgos, nem toureiros, nem marialvas, nem guitarristas, nem cantores celebres do _Fado_. E nas horas de aborrecimento, o seu caracter resoluto, o seu orgulho explosivo, a sua lingua solta e ponteira, encontravam como desabafo o vocabulario torpe que ella aprendêra desde pequena, talvez com a propria mãe. Na hora em que Palmeirim a viu e ouviu, não estava ao pé d’ella o conde de Vimioso a exercer a suggestão da grandeza e da fidalguia; faltava ali o prestigio que vinha das noites de luar, das esperas de touros, das serenatas de _Fado_, das aventuras esturdias, dos applausos da multidão. Tambem os grandes actores perdem toda a sua grandeza fóra do palco, quando vistos na realidade da existencia. Falta-lhes o fogo divino, a commoção, a arte; falta-lhes a luz da ribalta que os illumina; a illusão que lhes é emprestada pela caracterisação e pelo scenario; falta-lhes o enthusiasmo do publico, que os admira e que os applaude. A Severa era n’essa hora uma celebridade arregaçada até ao cotovello, mergulhada em silencio como a guitarra que jazia sobre a mesa, abatida na solidão e na ausencia do Vimioso. Comprehende-se a sua revolta, o seu mau humor irritado, como tambem se comprehende, embora pareça paradoxal, que sempre que o conde queria dominal-a como se prende uma ave n’uma gaiola, ella lhe fugisse para saborear a liberdade reles do alcouce, que lhe dava orgulho, porque d’ali subira á celebridade, ali a iam procurar os bohemios fidalgos e famosos, desejosos de ouvir a sua guitarra e a sua voz enternecida soluçando o _Fado_. O sr. Miguel Queriol conta no artigo do _Popular_ quando e como viu a Severa em casa do conde de Vimioso. Foi uma noite, á saida de S. Carlos, que elle Queriol e alguns amigos (Augusto Talone, Frederico Ferreira, Antonio de Serpa, João Blanco e outros) tendo alugado burros no Poço de Borratém, seguiram alegremente, _au clair de la lune_, para o palacio do conde no Campo Grande. Ahi encontraram em partida de jogo, sendo Fidié o banqueiro, uma boa roda de amigos: D. Antonio Galveas, Roberto Payant, D. José de Almeida Mello e Castro «O Cazuza», etc. [Illustração: O Conde de Vimioso] Queriol descreve: «... depois de muita chalaça e folia em que tomaram parte algumas festejadas companheiras de outros amigos que em seges de aluguel se nos haviam antecipado, quebrando a monotonia de uma sociedade composta só de homens, o conde de Vimioso mandando entrar a Severa e pedindo a Roberto Camello que a acompanhasse na guitarra, nos deu uma audição de _Fado_ até então desconhecido da maior parte senão de todos os ouvintes.» Esta declaração é importante, porque vem confirmar tudo quanto havemos dito sobre a data provavel em que principiou a usar-se a palavra _Fado_ como synonymo de canção. Não se contradiz o sr. Queriol quando n’outro relance do seu artigo escreve que o _Fado_ já anteriormente se cantara «na prôa dos navios de guerra á mistura com a vida do marinheiro e outras canções em que a triste sina ou miserias da vida arrastavam ao infortunio». Sim, cantavam-se as canções tristes e fatalistas dos portuguezes, n’um rythmo dolente; mas ainda se não havia dado a esse typo de canções populares a categoria musical e o nome generico de _Fado_. É isso o que temos sustentado n’este livro, é isso o que o sr. Queriol, que hoje conta mais de 70 annos, affirma no seu artigo, quando diz que o _Fado_ era até então desconhecido da maior parte senão de todos os ouvintes. Quanto ao physico da Severa, o sr. Queriol está em accôrdo com Palmeirim: nenhum reconhece que fosse bella, mas ambos dão a impressão de que era elegante; um gaba-lhe os olhos, o outro o cabello; do que resulta que seria, como tantas outras portuguezas, uma mulher attraente, sem formosura, pela sua linha airosa e pelo encanto dos olhos e do cabello. No attinente ao moral, é que parece haver desharmonia entre o sr. Queriol e o fallecido Palmeirim; mas talvez possamos chegar a uma conclusão conciliatoria. Vejamos o que escreveu o primeiro, pois que já vimos o que o segundo escreveu. Diz o sr. Queriol, referindo-se á noite, de que vem fallando, em casa do conde: «Ora a Severa apresentava-se como uma serviçal e não com pretensões a dona de casa. «Se bem me recordo era uma rapariga esbelta, bem apessoada, cabello escuro e farto com um ar de desenvoltura sem ultrapassar as conveniencias da sua posição para com quem a favorecia, trajando limpa mas modestamente sem fazer lembrar a desgraça da classe em que menos o vicio que a miseria a havia precipitado, e que pela sua timidez se mostrava contrafeita no meio social em que ali se achava. «É possivel que a Severa no seu meio ordinario fosse a desregrada fadista da lenda, mas o que _de visu_ posso assegurar, e para confirmação do que appello para os que, ainda vivos, frequentaram as boas e _más_ companhias da nossa mocidade, é que a impressão que conservo da desgraçada heroina, hoje tão celebrada, apenas se limita a uma satisfação passageira e caprichosa do conde, que como o gastronomo saciado do continuo gozo da boa cosinha se deleita com satisfação no apetitoso prato de sardinha ou no enlevo odorifero do acepipe de taberna.» Não lhe nega o sr. Queriol um certo «ar de desenvoltura», o ar _canaille_ da sua profissão provocante. Mas conheceu que a Severa, em casa do conde, perante tão luzida companhia de mulheres que valiam mais do que ella, e de homens que eram os primeiros estroinas elegantes da epoca, se mostrava submissa, quasi timida. Nenhuma d’aquellas pessoas--ou todas ellas--a teria acobardado cara a cara na sua casinha de rameira, onde Palmeirim a viu, quando ella, entregue a si mesma, não era mais do que a Severa da matricula, uma desgraçada como outra qualquer. Mas, no palacio do Campo Grande, acabava a realidade e começava o sonho. Ella era como um actor que vae entrar em scena e que, sempre nervoso e agitado, por maior que seja o seu merito, já sente o calor da ribalta, a respiração do publico, o frémito da sala. Toda a gente sabe que nem os grandes actores escapam á timidez supersticiosa, quando entre bastidores esperam a «deixa.» Todos elles se persignam antes de se defrontar com o auditorio. Mas uma vez em scena, entram n’uma região ideal que os absorve, e ás vezes os divinisa. Já não são timidos, nem supersticiosos; vão affoitamente até onde o seu talento os leva. A Severa, tal como o sr. Queriol a viu, achava-se na situação hesitante, no momento indeciso, do actor que sae da realidade para entrar no mundo do sonho. Depois, tangida a guitarra, ella era como um artista em scena: commovia-se, soluçava, chorava, cantava chorando, arrebatava-se e arrebatava os outros. A guitarra é, pela sua voz maviosa, um dos instrumentos que mais impressionam, talvez o primeiro em produzir effeitos de sentimentalidade; o _Fado_ tem o que quer que seja de simplicidade grandiosa e dilacerante, como toda a expressão de uma dor sincera. O sr. Julio de Castilho n’um dos seus livros confessou de si mesmo esta intima fragilidade: «A bordo de um paquete estrangeiro, uma vez, em viagem do Cabo da Boa Esperança, peguei n’uma guitarra, e sosinho comecei a repetir uns pobres fadinhos da Mouraria. Pois não pude ir ávante; restitui a guitarra ao dono, e tive de me afastar.»[55] Palmeirim diz nos _Excentricos do meu tempo_: «se de longe me chegam aos ouvidos os sons de uma guitarra tocada com sentimento, deixo-me ir atraz d’esses sons aos mundos dos proprios sonhos, agradecido á aragem que m’os trouxe tirando-me por momentos da aridez da vida positiva.»[56] De mim lhes posso dizer que em 1873, quando cheguei a Lisboa, me causaram profunda impressão os primeiros _Fados_ que ouvi na guitarra, de noite. N’um livrinho escripto muito á pressa logo nos primeiros dias, do que resultou ficar imperfeito e ser incompleto, encontro estas palavras que são o testemunho espontaneo da suggestão recebida: «O fado tem a poesia natural das grandes angustias, a tristeza dos que soffrem desamparados. É o hymno da desgraça, o romance das maguas obscuras, a epopêa do povo. Não ha sentimento doloroso que a linguagem melancolica do fado não reproduza desde a saudade do tombadilho até á afflicção do lupanar. É o pensamento dos que não sabem exprimil-o. Para interpretar o fado nenhum instrumento mais de geito que a guitarra. Está costumada a cantar tristezas desde a mais remota antiguidade, e alem d’isso falla tão baixinho que não chega a incommodar os grandes, os felizes, os opulentos. É quasi uma creança que chora ou uma mulher que suspira. Impressiona e não atordoa. Faz-se ouvir, mas não se impõe.»[57] Eu, que trazia os ouvidos cheios das alegres canções populares do norte, da _Canninha verde_, do _Malhão_, do _Vira_, deixei-me subjugar pela triste canção do sul e lembro-me ainda--já lá vão quasi trinta annos!--de que tambem compuz a lettra de um _Fado_, que principiava assim: Hontem a noite era bella. Na guitarra um namorado Tangia sob a janella Um fado triste e chorado. Não me lembra o resto, e importa pouco. Mas, voltando ao ponto, parece que os nossos dois informadores, Palmeirim e Queriol, acabarão por ficar de accôrdo: é que na Severa, como em quasi todas as pessoas de uma sensibilidade doentia, havia duas entidades diversas--a da realidade e a do ideal. E quando a ella lhe faltava a atmosphera do sonho, que principiava a engrandecel-a, e a embriagal-a; quando queria preparar-se para cantar, sem se encontrar n’um meio suggestivo que a levantasse, recorria ao vinho, diz a tradição; embriagava-se a valer. As esperas de touros exaltavam-n’a, faziam-n’a delirar. A paixão tauromachica completava a feição bohemia d’aquelle tempo. O Vimioso era um cavalleiro eximio, o primeiro entre todos. A Severa seguia-o fascinada. Então, no calor da noitada, ao luar e ao relento nas Marnotas, a Severa, excitada, cantava _Fados_ gaiatos, cantigas _a atirar_, ironicas, picantes, contendendo com as outras mulheres menos celebres do que ella. Uma vez desfechou contra a Joaquina dos Cordões este mote trocista: Eu já vi n’uma tourada A Joaquina dos Cordões, Mal viu dar dois trambolhões, Ficar logo desmaiada. O conde de Vimioso affeiçoara-se-lhe, porque reconhecêra na Severa a mais intelligente e espirituosa fadista de Lisboa, a que melhor sabia cantar e bater o _Fado_. Mas, ponhamos de parte a lenda, não se deixou arrastar nunca por uma paixão delirante e degradante. Nunca deixou de ser um fidalgo, um gentilhomem; nunca enlouqueceu por amor da Severa. Foi, na primeira sociedade, um bohemio, mas não perdeu nunca a sua linha aristocratica. Dil-o o sr. Queriol: que o conde, gastronomo saciado de boa cosinha, se deleitava, por extravagancia, saboreando uma sardinha de taberna. Isso foi um tanto moda entre os fidalgos antigos, e ainda o era no tempo do conde. N’elle talvez um pouco mais persistentemente do que em outros; mas só isso. O _Diccionario Popular_, n’um artigo escripto por Pinheiro Chagas, vem em reforço do sr. Queriol: «O conde de Vimioso era um toureador de primeira ordem, e procurava de preferencia uma sociedade menos propria da sua alta ascendencia, _apesar de se apresentar na outra como um verdadeiro fidalgo_.»[58]. Ainda havemos de transcrever passagens do artigo do sr. Queriol, que completarão este juizo. Talvez que o conde de Vimioso pudesse ter-se apaixonado pela Severa, se conseguisse domal-a, arrancal-a á vida que ella arrastava. Se o fizesse, acabaria por aborrecer-se. Ella, intelligente como era, comprehendia esse perigo, e evitava-o. Faltar-lhe-ia então o prestigio da libertinagem, a nota canalha, mas acirrante, da sua existencia de fadista. Antes «sardinha» toda a vida do que «_foie gras_» uma hora. Não ha duvida de que o conde de Vimioso, sem querer descer inteiramente até á Severa, procurou guindal-a até elle, adoptando-a como sua amante. E houve uma occasião em que ella pareceu disposta a deixar-se escravisar. Chegou a estar guardada por criados do conde durante uma noite. Mas o travesseiro aconselhou-a bem, e ella retomou logo o seu bom-senso, ao accordar. De manhã veiu para a janella, e respirou a plenos pulmões o ar livre e fresco da rua. Passavam carroças de lavadeiras, coguladas de trouxas de roupa lavada. A janella era baixa, a Severa pendurou-se do peitoril, deixou-se cair dentro de uma das carroças. Fugiu. De outra vez, havia-se escapado á vigilancia do conde de Vimioso. Ninguem sabia d’ella, em vão a procuravam por toda a parte. Só ao cabo de muitas pesquizas foram encontral-a n’uma taverna do largo dos Inglezinhos sentada a tocar guitarra no meio de um auditorio compacto. Então, um dos amigos do conde, que por ali passara, esgalgando o pescoço por entre o grupo dos ouvintes, cantou ao som da guitarra da Severa: Todos aquelles que são Da nossa sucia effectiva Lamentam a fugitiva Da rua do Capellão. A Severa levantou, contrariada, a cabeça, tendo conhecido aquella voz. Estava apanhada, fôra descoberta; mas esse aventuroso incidente ainda mais augmentára a sua celebridade.[59] Creio que deixo reduzida a biografia da Severa aos seus verdadeiros termos. A lenda é boa; mas a historia é melhor. Não ha duvida que a morte d’esta fadista celebre, que, prematuramente esgotada, falleceu aos vinte e seis annos de idade, em resultado de uma congestão que uma ceia de borrachos assados provocou, foi um acontecimento de sensação nas classes populares e até na bohemia elegante de Lisboa. Appareceu então o seu _Fado_, a que foram ligadas algumas quadras em que a lenda começou a formar-se desde logo. Chorae, fadistas, chorae, Que uma fadista morreu. Hoje mesmo faz um anno Que a Severa falleceu. Chorai, fadistas, chorai Que a Severa já morreu: E fadista como ella Nunca no mundo appar’ceu. O conde de Vimioso Um duro golpe soffreu, Quando lhe foram dizer Que a Severa falleceu. Variante: O conde de Vimioso Terrivel golpe soffreu, Quando lhe foram dizer: «A Severa já morreu». Outra variante: Quando lhe foram dizer: A tua Severa morreu. Corre á sua sepultura, O seu corpo ainda vê: «Adeus, ó minha Severa, Boa sorte Deus te dê.» Variante: Corre á sua sepultura, Seu cadaver inda vê. Disse-lhe: «Adeus, ó Severa, «Melhor sorte o ceu te dê. «Assim como as flores vivem, Minha Severa viveu. Assim como as flores morrem, Minha Severa morreu.» Lá n’esse reino celeste, Com tua banza na mão, Farás dos anjos fadistas, Porás tudo em confusão. Até o proprio S. Pedro, Á porta do ceu sentado, Ao vêr entrar a Severa Bateu e cantou o _Fado_. Levantae-lhe um mausoleo Co’um negro cypreste ao lado. E o epitaphio que diga: Aqui jaz quem soube o _Fado_. Ponde no braço da banza Um laço de negro fumo, E este signal diga a todos Que o _Fado_ perdeu o rumo. Variante: Que diga por toda a parte: O _Fado_ perdeu seu rumo. [Illustração: FADO DA SEVERA] Morreu, já faz hoje um anno, Das fadistas a rainha. Com ella o _Fado_ perdeu O gosto que o _Fado_ tinha. Chorae, fadistas, chorae, Que a Severa se finou. O gosto que tinha o _Fado_, Tudo com ella acabou. Comprehende-se que os fadistas tratassem logo de fazer a lenda, que engrandecia uma heroina da sua classe, associando-lhe o nome ao brazão do conde de Vimioso. Mas, o que parece liquidado e certo é que a Severa foi a «_divette_ do Fado»; que ninguem até hoje o soube cantar e bater melhor; e que o conde de Vimioso, apreciando essa qualidade, frequentou a Severa mais por extravagancia bohemia do que por loucura amorosa. Comtudo, oiçamos a lenda, evidentemente de origem fadista: _O Conde de Vimioso Terrivel golpe soffreu, Quando lhe fôram dizer: «A Severa já morreu»._ Na casinha onde habitava A mundana tão famosa, A turba silenciosa Seu cadaver contemplava. Ali tudo só pensava Em que o seu rosto formoso Não par’cia angustioso; E a companhia que estava Dizia que só faltava _O Conde de Vimioso_. Então um bello rapaz, D’aspecto de cavalleiro, Entra sombrio e altaneiro Buscando quem ali jaz; Febris diligencias faz, Procurando o corpo seu, E quando co’os olhos deu No corpo da sua amante, Sentiu um punhal vibrante, _Terrivel golpe soffreu_. Nos braços seus enlaçou A sua qu’rida Severa, Que era a doce primavera Da paixão que alimentou. Os cabellos lhe beijou Deixando o pranto correr, Nem tentou a voz erguer Suffocado pelos ais, Mas soffreu ainda mais, _Quando lhe foram dizer_. Ali tinha o ente amado D’encontro ao seu coração, Mas na outra occasião, ’Stava longe de seu lado. Quasi louco, desvairado, P’las ruas então correu Buscando um amigo seu Que o ajudasse a soffrer E ao qual pudesse dizer: «_A Severa já morreu_». Do _Almanach da Severa_ para 1902. _Corre á sua sepultura, Seu cadaver ’inda vê. Disse-lhe:--Adeus, ó Severa; Melhor sorte o ceu te dê._ O Conde, qu’rendo prestar Homenagem derradeira Á formosa companheira A quem tanto ouviu cantar; Sem conseguir disfarçar A sua grande amargura, Sente n’alma atroz tortura D’um desgosto bem profundo E sem qu’rer saber do mundo, _Corre á sua sepultura_. Então copioso pranto Em seu bello rosto corre, Ao vêr que já não soccorre Quem na vida elle amou tanto. Levantando um negro manto Um doce allivio prevê, Porque n’um momento crê Que ’inda lhe póde dar vida. E buscando a sua qu’rida _Seu cadaver ’inda vê_. Mas ao vêr tudo acabado Soltou bem fundada praga. Todo o rosto se lh’ alaga E o seu peito é mart’risado. Então a ella abraçado Com a dôr se desespera, E quando se refrigera Co’a doce resignação, Apertando-a ao coração, _Disse-lhe:--Adeus, ó Severa_. «Foste no mundo infeliz E pela sorte engeitada; Mer’cias ser bem fadada, Mas tua sorte não quiz. É minh’ alma quem maldiz A minha insensata fé E pergunto ao céo por que Tão cedo te arrebatou? Mas foi Deus que assim mandou; _Melhor sorte o céo te dê_.» A lenda foi tomando vulto, propagada nas guitarras do povo e nas trovas dos fadistas. Alguns escriptores modernos, com maior pompa de estylo que investigação historica, favoreceram a lenda. Se não pudesse ouvir-se ainda o testemunho de algum raro contemporaneo, o conde de Vimioso passaria definitivamente á posteridade como tendo sido um desvairado e cego amante da Severa, um louco fidalgo apaixonado até ao desatino. Ora o que ha de verdade na origem da lenda é que D. Francisco de Portugal, tendo sido um eximio picador e um destro toureiro, prendas aliás vulgares então na sua classe, tratava sem orgulho com pessoas de inferior condição que prestavam serviços n’esses dois generos de _sport_, e que ou por convivencia com essas pessoas ou por inclinação natural veiu a ser um fanatico _dilettante_ do _Fado_, circumstancia que o aproximára da Severa, a qual não foi nunca sua manceba teuda e manteuda, mas apenas sua parceira nas serenatas de guitarra e nas esperas de touros, com as facilidades que a situação d’ella podia proporcionar a todos os outros homens. Posto isto, resta-me dizer que o sr. D. Caetano de Bragança (Lafões) possue uma guitarra, que se diz ter sido da Severa, e que é designada, em virtude da sua fórma, pelo nome de _Melão_. O ultimo marquez de Angeja, ha pouco fallecido, manifestou-me, porém, duvidas sobre a authenticidade d’esta procedencia. Fallemos agora, um pouco mais detidamente, d’aquelle dos Vimiosos cujo nome foi pela lenda associado ás tradições orgiacas do _Fado_. A casa Vimioso não é, na historia de Portugal, uma familia incolor, nem incaracteristica como a de muitos outros fidalgos que se contentaram em dar frades e freiras aos conventos, esmolas aos santos e almas ao ceu. Bastaria, para que se não afogasse jamais a memoria d’esta casa, o facto honroso de ter ella offerecido o lençol em que foi caridosamente amortalhado Luiz de Camões. Os Vimiosos tambem são distinctos por outros mais predicados, que impõem respeitabilidade. Uns cultivaram as lettras, outros a musica, alguns evidenciaram-se na politica e nas armas. O primeiro titulo de conde de Vimioso concedeu-o el-rei D. Manuel a Dom Francisco de Portugal, filho natural do bispo de Evora, Dom Affonso de Portugal, e neto do primeiro marquez de Valença, primogenito do primeiro duque de Bragança. Por aqui se vê o grau de parentesco existente entre Vimiosos e Braganças. Dom Francisco de Portugal militou em Africa, servindo o rei em Arzilla e Azamor; favoreceu muitos estabelecimentos pios; exerceu o cargo de védor da fazenda; foi varão tão discreto, que lhe deram o cognome de Catão portuguez, e como cultor das muzas collaborou no _Cancioneiro_ de Garcia de Rezende. Succedeu-lhe no titulo seu filho Dom Affonso de Portugal, que na mocidade aventurosamente acompanhou o infante D. Luiz na expedição de Tunes, e na velhice seguiu el-rei Dom Sebastião na desgraçada empresa de Alcacerquibir, levando comsigo trez filhos. Lá morreu captivo, depois de ter visto na batalha cair morto um dos filhos aos pés de el-rei. O seu primogenito, Dom Francisco de Portugal, foi o terceiro conde de Vimioso. Esteve com o pai em Africa, onde se apaixonou por elle uma irmã do xerife de Fez.[60] Resgatou-se, e seguiu devotadamente a causa do Prior do Crato, ficando ferido na batalha de Alcantara. Depois andou por Hespanha e França a manobrar politicamente em favor do seu querido Dom Antonio; por elle se tornou a bater no mar dos Açores; e, finalmente, morreu em consequencia de peçonha que lhe deram para não cair nas garras de Filippe II. Foi poeta, muito dado a damarias, e excellente cavalleiro e toureiro, o que explica, por atavismo, que estas duas prendas resurgissem, seculos depois, no 13.º conde. Não deixou descendencia, motivo por que lhe succedeu no condado Dom Luiz de Portugal, segundo filho de D. Affonso, o segundo conde. Este Vimioso tambem esteve com o pai em Alcacerquibir, e foi resgatado, mas Filippe II, por se vingar da affeição do 3.º conde ao Prior do Crato, sequestrou-lhe a casa. Andou Dom Luiz por Castella mais de trinta annos a requerer o que era seu, e só pôde rehavel-o tarde, e minguado. Com os trabalhos e os annos reavivaram-se-lhe as tendencias para o mysticismo, manifestadas desde a mocidade. E elle e a condessa sua mulher deram ao mundo o singular espectaculo de abandonarem voluntariamente a côrte, a sua casa, os seus filhos, recolhendo-se a condessa ao convento do Sacramento, que ambos fundaram em Lisboa, retirando-se o conde para o mosteiro de Bemfica, do qual passou ao de S. Paulo em Almada, onde professou, vindo a morrer em Evora, e ahi jaz. Na quarta parte da _Historia de S. Domingos_, livro terceiro, conta frei Luiz de Sousa largamente a historia d’este estranho divorcio, que por amor de Deus e sem desamor dos conjuges se effectuou. E Garrett, no seu bello drama, tambem lhe faz referencia, quando Manuel de Sousa Coutinho diz á mulher, no segundo acto: «Olha a condeça de Vimioso, esta Joanna de Castro que a nossa Maria tanto deseja conhecer... olha se ella fazia esses prantos quando disse o ultimo adeus ao marido...» O quinto conde de Vimioso foi D. Affonso de Portugal, primogenito do conde-frade e da condessa-freira. D. João IV, em 1643, creou-o marquez de Aguiar,[61] como premio dos serviços que prestára á causa da Restauração desde os tumultos d’Evora até ás longas campanbas de todo o Alemtejo, onde teve por émulo Mathias de Albuquerque, que o invejava. Foi grande amador de musica, tão desvairado por ella, que em Madrid comprou por seiscentos mil réis duas violas, de bom fabricante, que o proprio Filippe IV achou caras. D’esta paixão musical de Dom Affonso incidiu um reflexo atavico sobre o 13.º representante do titulo. Succedeu-lhe o primogenito, Dom Luiz de Portugal. 6.º conde, que foi capitão de cavallaria (n’essa qualidade fez a campanha do Alemtejo, como seu pai), gentilhomem da camara do principe D. Theodosio, poeta, e helenista apreciavel. Mas a todas as suas prendas fidalgas sobrelevou a da equitação, que exerceu a primor. No famoso «desafio do jogo da péla», em que tomou parte como padrinho de seu cunhado o conde de S. João, foi assassinado por um parcial do outro adversario, quando empregava esforços para impedir a pendencia. Por não deixar successão legitima, passou a representação da casa para seu irmão Dom Miguel de Portugal, setimo conde, a quem Dom Affonso VI nomeou mestre de campo general, conselheiro de guerra, e governador das armas em Evora. Foi estribeiro-mór da rainha Dona Maria de Saboya e védor da fazenda da princeza Dona Izabel. Toda a sua paixão eram cavallos, musica, esgrima e livros. É curioso observar como as tendencias hereditarias se vão reproduzindo n’esta família com pequenos intervallos de tempo. Permittiu el-rei Dom Pedro II que o continuasse no titulo um filho illegitimo, Dom Francisco de Portugal, que foi o 8.º conde, e casou com uma filha dos primeiros marquezes de Alegrete. Houveram um successor que foi Dom Joseph Miguel João de Portugal, 9.º conde, o qual escreveu, para lição e uso de seu filho, a relação da vida e feitos de seus ascendentes. Intitula-se o livro _Instrucçam que o conde de Vimioso Dom Joseph Miguel Joam de Portugal dá a seu filho D. Francisco Joseph Miguel de Portugal, fundada nas acçoens moraes, politicas, e militares dos condes de Vimioso seus ascendentes. Lisboa occidental, 1741._ N’este livro ha uma lacuna importante. O 9.º conde não quiz fallar de seu pai, como por um sentimento de modestia, receioso de que pudessem tomar á conta de affecto filial quanto de elogioso houvesse de dizer. Mas falla por elle o auctor da _Historia Genealogica_, o qual relata que Dom Francisco de Portugal recebeu o titulo de marquez de Valença,[62] que fôra de seu quinto avô, o conde de Ourem D. Affonso, filho do 1.º duque de Bragança. Nós já tinhamos dito que o 1.º conde de Vimioso era neto do 1.º marquez de Valença, por onde vinha aos Vimiosos o parentesco com a casa de Bragança. D. Francisco de Portugal, que foi provedor da Santa Casa da Misericordia, distinguiu-se tanto na piedade como nas bellas-lettras. Foi socio da Academia Real de Historia, em cujas collecções deixou escriptos seus, no genero das composições eruditas que caracterisam aquella academia e aquella epoca. Innocencio, no _Diccionario bibliographico_,[63] traz a resenha de todas as obras compostas por Dom Francisco de Portugal, entre ellas uma que possuo, _Instrucçam que o marquez de Valença D. Francisco de Portugal, do conselho de Sua Magestade, dá a seu filho primogenito D. Joseph Miguel Joam de Portugal_. Lisboa, 1746.[64] Esta _Instrucçam_, que é um compendio de conselhos moraes, com exemplos colhidos na historia universal, foi publicada trez annos antes do marquez de Valença morrer de apoplexia no paço real, e cinco annos depois do primogenito ter publicado aquella outra _Instrucçam_, que já mencionamos. O 9.º conde de Vimioso e 3.º marquez de Valença, Dom Joseph Miguel, alem d’esta _Instrucçam_, e outras obras,[65] compoz a _Vida do Infante D. Luiz_, livro que anda nas mãos de todos os bibliophilos. Casou com D. Luiza de Lorena, filha de seu primo co-irmão Manuel Telles da Silva, 3.º marquez de Alegrete. Succedeu-lhe o 2.º filho varão, Dom Francisco Joseph, porque o primogenito morreu de pouco tempo. Não sabemos o motivo por que este 10.º conde de Vimioso não usou o titulo de marquez de Valença. O 11.º conde foi D. Affonso Miguel de Portugal e Castro, 4.º marquez de Valença, que falleceu a 27 de novembro de 1824. O 12.º conde de Vimioso e 5.º marquez de Valença, D. José Bernardino de Portugal e Castro, par do reino e conselheiro de estado, casou com Dona Maria José de Noronha, 2.ª filha dos 1.ᵒˢ condes de Peniche, e morreu a 26 de fevereiro de 1840. Fallemos agora do seu successor, que mais directamente interessa ao nosso assumpto. O 13.ᵒ conde, D. Francisco de Paula Portugal e Castro, senhor da casa de Valença, com honras de parente, par do reino por direito hereditario, não foi, como continuador da sua familia, uma figura nulla e incolor. A nobreza estava já decadente, em virtude das loucuras ruinosas da maior parte dos fidalgos, e do golpe politico que lhe vibrára a democracia constitucional. Para o marquezado de Valença soara já a ultima hora, mas o condado de Vimioso, muito prejudicado em seus rendimentos pelo regimen liberal, que os ferira na origem, havia de sobreviver ainda alguns annos mais, na pessoa do seu decimo terceiro representante. D. Francisco de Paula nascera a 28 de julho de 1817. Aos vinte annos, isto é, em 1 de abril de 1837 casou por amor com D. Maria Domingas de Castello Branco, filha dos segundos marquezes de Bellas, e viuva do segundo conde de Belmonte, D. José Maria de Figueiredo Cabral da Camara, porteiro-mór da casa real, e capitão de cavallaria. Esta illustre dama tinha mais 12 annos que D. Francisco de Paula, e enviuvára em 1834, ao cabo de 14 annos de casamento com o primeiro marido. Não era rica, e não se preoccupara, desinteressadamente, com a questão de dinheiro ao passar a segundas nupcias. Diz o sr. Queriol: «O conde, novo e esbelto, casara por mutua paixão com uma virtuosa senhora viuva do conde de Belmonte, que tambem por sua parte pouco lhe ficára restando de fortuna propria. «Mais velha do que o conde, a santa senhora limitou-se a ser educadora de seus filhos, libertando o marido do jugo matrimonial, do que elle bem se aproveitou, sendo um dos mais felizes conquistadores em assumptos amorosos. Foi talvez esta sociedade que lhe despertou o appetite da _pouco duradoura_ aventura amorosa com a Severa.» D. Francisco de Paula, impellido pela corrente tradicional da fidalguia portugueza, e desculpado pela bondade tolerante da esposa, entregou-se bem depressa á vida alegre e estouvada dos rapazes nobres do seu tempo e da sua idade. Tornou-se perito exemplar em equitação e tauromachia e, por estes dois caminhos abertos á sua phantasia juvenil, entrou na bohemia elegante, a que tomou gosto, chegando a penetrar nas camadas populares onde a guitarra e o _Fado_, quando bem tangidos, não pediam passaporte, nem folha corrida a ninguem. Era feição do tempo, e da nobreza de então. Foi justamente na ultima classe social que encontrou a Severa, á qual não exigiu pergaminhos, nem credenciaes. Era uma excellente camarada para se fazer ouvir dedilhando a guitarra e cantando o _Fado_. Como tal a acceitou na evidencia em que ella já se tinha collocado por essas prendas, não obstante ter nascido condemnada á desgraça do lupanar. Por sua parte, as classes populares adoravam o conde de Vimioso, que as tratava sem preoccupações hierarchicas, e que se distinguia pela exteriorisação de qualidades que muito deslumbram o criterio pouco intellectual do povo: a valentia, a coragem, o primor da guitarra e do toureio. O unico exemplar notavel d’este genero de fidalgos foi, no meu tempo, o marquez de Castello Melhor. O sr. Queriol reduziu tambem a lenda do conde de Vimioso aos devidos termos, mas ainda assim resulta do seu artigo uma figura sympathica, que foi o conde, distincta por aquellas qualidades, não intellectivas, que o publico aprecia e que ainda hoje constituem a galhardia do moderno _sport_. Desde muito novo que D. Francisco de Paula se notabilisou pelo valor physico e destemida coragem. Creança de 16 para 17 annos, serviu o exercito liberal como aspirante de lanceiros. Com referencia a essa epoca conta o sr. Queriol: «O seu animo corajoso e sua força herculea tornaram-n’o notavel em varias proezas, contando-se entre ellas a de ter nas linhas de Lisboa, em presença do imperador, mettido hombros e arrombado um forte portão de ferro que impedia a passagem de tropas liberaes que tinham de occupar uma posição estrategica e só por ali podiam fazer caminho. «D’esta sua força muscular foi testemunha (e appello para a memoria do então aspirante de artilharia e hoje general Victo Moreira, ajudante de campo de el-rei) quando n’uma tarde, sahindo D. Pedro de Sousa Coutinho, filho mais novo do conde de Linhares, de casa do fallecido conde das Galveias D. Antonio, no seu elegante pháeton puxado por dois poneys hanoverianos de forçosa pujança apesar da diminuta estampa de seus corpos, o conde de Vimioso, segurando com a mão direita o eixo trazeiro do carro e com a esquerda o varão do portão do palacio, embora o elegante D. Pedro se esforçasse em fustigar a parelha e esta se empenhasse em arrancar o trem do logar em que se achava, não puderam os poneys adiantar um passo limitando-se a escarvar a calçada, inutilisadas as suas forças pelas que lhes oppunha o valente titular.» Outro exemplo de pujante denodo conta o auctor do artigo. Foi por occasião da feira do Campo Grande. Dois valentões da provincia tinham se postado junto ao portão de ferro, que então limitava o Campo Grande pelo lado do Lumiar, e não deixavam entrar nem sair ninguem. A que distancia já ficam hoje estas bravas tunantadas portuguezas, e que mal se podem comprehender agora! Raça de Hercules, no acerto ou na loucura, quebramos: agora estamos a pedir funda. O povo levantou celeuma contra os dois pimpões, mas não ouzava affrontal-os, porque algum saloio que investia, recuava ganindo, deslombado. Com o conde de Vimioso estavam almoçando n’essa occasião o sr. Miguel Queriol e João Nunes Vizeu. Ouviram o borborinho que vinha da alameda, informaram-se da occorrencia, e não tiveram um momento de hesitação. Narra o sr. Queriol, sem faltar de si mesmo, mas certamente que não deixou de molhar a sua sopa, porque era muito desembaraçado: «O conde de Vimioso e José Vizeu apenas tiveram tempo de cada um se munir de bons cajados de marmaleiro, e fazendo frente aos dois varredores de feiras os levaram a tombos até junto da feira, onde os soldados municipaes os receberam contusos e confusos da má sorte que em Lisboa veio offuscar a sua valentia provinciana.» Todos estes predicados davam prestigio, faziam lenda ao conde no conceito popular. Pode imaginar-se a ovação de que elle seria alvo n’aquella manhã do Campo Grande, quando varreu os dois alcides que varriam a feira. Como atirador, D. Francisco de Paula foi prodigioso. Depõe o sr. Queriol, cujo artigo diz mais e melhor no seu proprio texto do que o poderiamos fazer em extracto: «O conde de Vimioso era um notabilissimo caçador e em occasiões de falta de dinheiro, de proventos de sua casa, sahia de Lisboa e, provido apenas da sua espingarda, petrechos de caça e dos de _toilette_ de que nunca prescindia, o que obtinha de suas excursões venatorias enviava como qualquer caçador de contracto á Praça da Figueira, para com o producto da venda viver modestamente nos sitios affastados da capital, mas sem recorrer a outros meios que sem verdade lhe attribuem. «Da sua notavel aptidão como atirador ainda invoco o testemunho do actual general Victo Moreira (discipulo do conde em equitação, de que depois foi laureado cursador nos picadeiros em França); alem do que, outras testemunhas podem certificar de que sendo o conde desafiado a matar morcegos, ao anoutecer e em pleno Campo Pequeno, abateu todos os que esvoaçavam a distancia de tiro de espingarda, não obstante a escuridão que em nada lhe prejudicava a certeira pontaria.» A phrase final do primeiro periodo que deixamos transcripto--_mas sem recorrer a outros meios que sem verdade lhe attribuem_--contramina a lenda de que o conde de Vimioso ciganava em cavallos mais que os proprios ciganos. A este respeito temos dois testemunhos dignos de toda a fé: o do sr. Queriol e o de Bulhão Pato. Refere o sr. Queriol que precisando comprar um cavallo, lhe offereceram uma égua, mas por tão baixo preço, que o fez desconfiar. Foi consultar o conde, que lealmente o avisou de que não comprasse a égua, que era doida; e quanto á respeitabilidade do vendedor preveniu-o de que «em negocios de cavallos não havia que confiar em cavalheirismos, por ser essa a norma geral n’estes negocios». Não contente com isto, o conde indicou ao sr. Queriol outro lavrador, que effectivamente o serviu bem, porque lhe vendeu a preço razoavel um cavallo sem resaibo, e muito resistente. Conclue, com razão o sr. Queriol: «Em abono á lealdade com que fui tratado, devo protestar contra a lenda que a muitos tenho ouvido de ser o conde de Vimioso o cigano mais temivel em negocio de cavallos, quando, como deixo acima dito, foi elle proprio a prevenir-me ser norma geral n’estes negocios não se confiar senão na propria experiencia.» Quanto ao testemunho de Bulhão Pato, por igual abonatorio, logo o traremos a lume. O artigo do sr. Queriol teve por fim principal refutar o episodio do drama do sr. Julio Dantas em que o conde (com outro supposto titulo) puxa de uma navalha. Sobre esta phantasia o sr. Queriol protesta categoricamente, dizendo: «O conde de Vimioso do nosso tempo era um excentrico, mas d’ahi a usar de navalha de ponta e molla e a suciar com bolieiros e fadistas da Mouraria, vae a distancia de um extravagante que o era de polpa para um ser inferior que elle nunca foi. «A navalha era por tal fórma alheia aos habitos sociaes em rapazes da época do conde de Vimioso, que uma só vez o que escreve estas recordações a viu brilhar na mão de um pouco conceituado frequentador do Marrare (cujo nome não cito por consideração a pessoas respeitabilissimas da sua familia, que ainda existem e não podem ter responsabilidade em factos degradantes de seus maiores já defuntos)--e que em questão de jogo de bilhar, offendido por um insulto do Lima da Cardiga, puxou de uma luzente catalan que Lima da Cardiga, em furia de leão, lhe arrancou da mão e fez pedaços no sobrado, subjugando sob os joelhos o aggressor, que os circumstantes salvaram de ser suffocado, mas não espesinhado pelo athletico Lima, que foi calorosamente applaudido pelos circumstantes, sendo apupada e envilecida a acção tão extraordinaria na sociedade d’então. «Creio que d’esta scena foi testemunha D. João de Menezes, ainda vivo, mas pelo menos deve d’ella ter tido conhecimento.» Agora é opportunidade de reproduzirmos o testemunho de Bulhão Pato; consta de uma carta dirigida ao sr. Queriol, e publicada no _Popular_ de 8 de abril de 1901: Monte de Caparica, Torre, março, 11, 1901. _Meu..._ Conheci o conde de Vimioso quando tinha eu 15 annos, por que fui da creação do irmão mais novo--D. Pedro de Portugal e Castro. A mãe--marqueza de Valença--era muito minha amiga. Vimioso, como sabes, na praça dos toiros, no palacio e na feira dos ciganos era sempre um fidalgo de raça. Nunca usou faca senão as _facas_ que montava; nunca levou aos beiços um quartilho em tabernas. A graça viva saltava-lhe da physionomia com os ditos originaes, portuguezes e galantes. Fazia os seus alborques de cavallos, não havia cigano que o embaçasse, porém, repito, foi sempre um gentil-homem. N’uma toirada no Campo Grande, no pateo da casa d’elle--em setembro de 88!--quando eu ia a metter um par de ferros n’um garraio--disse elle, alludindo aos meus primeiros versos--_Se coras não conto_--_Se marras não brinco!_ Vivi muito, muito com elle, principalmente em caçadas na Torre Bella, nas lezirias, pelo Alemtejo. Que dias! Abraço-te, a tua santa mulher e a teus filhos. Teu do C.ᵒ _Bulhão Pato._ A maior evidencia do conde de Vimioso foi como cavalleiro tauromachico, prenda que reune duas aptidões distinctas, a da equitação e a do toureio. «Montava com rara elegancia e perfeição--escreve Pinheiro Chagas[66]--e póde dizer-se que foi o Marialva do nosso seculo XIX. Tambem esse grupo de rapazes que se denominam _marialvas_, se não quizessem ir buscar tão longe o seu cognome, podiam denominar-se _vimiosos_ com muita razão, porque assim consubstanciavam n’um nome aristocratico as suas qualidades e os seus defeitos.» Por sua parte diz o sr. Queriol: «Notabilissimo na arte de montar--de uma figura elegante e sympathica--com o seu titulo de nobreza de sangue, o conde foi o escolhido pelos amadores da arte tauromachica, que ia decahindo em abatimento, para rehabilitar a memoria dos antigos lidadores em combate com o feroz animal, sendo unanimemente acclamado o cavalleiro que devia reivindicar a fama do seu antepassado marquez de Marialva. Desempenhou-se o conde do seu encargo com enthusiastico applauso de milhares de espectadores, nas primeiras touradas chamadas de _Fidalgos_ que tiveram logar na praça do Campo de Sant’Anna sob a direcção de João Pereira da Silva da Fonseca «o morgado d’Alcobaça» e em que fizeram de netos D. José, da casa Loulé, e Roberto Camello, um elegante do seu tempo e muito estimado na sociedade lisbonense». Os primeiros ensaios tauromachicos do conde realizou-os elle no pateo do seu palacio, ao Campo Grande. Depois appareceu nas corridas de amadores na praça do Campo de Sant’Anna, ao lado de D. José Maria de Mendóça (Loulé), tambem official de cavallaria, e a opinião publica não duvidou acclamal-o como o primeiro «cavalleiro» do seu tempo. A D. José Mendóça se referia um dos _Fados_ tauromachicos cantados pela Severa, quando dizia: Eu vi em uma tourada Um valente cavalleiro: Era o Dom José Lanceiro, Pae da rapaziada. O conde de Vimioso não se limitou apenas a executar as melhores sortes de toureio estabelecidas pela tradição: inventou uma, a que deu o nome de _cara a cara_. É o que hoje chamamos _á estribeira_. O cavalleiro dirige-se para o touro ladeando o cavallo sobre a direita, e na altura da rez arrancar, passa o cavallo de mão: o touro deve receber o castigo quando mette a cabeça junto ao estribo do cavalleiro. Esta sorte é brilhante e arriscada, requer uma grande certeza. O conde de Vimioso, seu inventor, nem sempre pôde leval-a a effeito, mas enthusiasmava delirantemente o publico quando a realizava. D. Francisco de Paula, como cavalleiro, adoptou um principio, que impunha a si proprio, e recommendava a todos os outros _aficionados_: «O trabalho do toureio a cavallo consiste essencialmente em que o cavalleiro, pela sua destreza e arte, zomba do poder do animal, sem que elle ou o seu cavallo recebam o mais ligeiro contacto, o que constitue sempre desaire». Uma ou outra vez lhe falhou na pratica este preceito, mas o conde desaffrontava-se logo com grande galhardia e brio. Aconteceu isso em Evora, n’uma corrida a que assistiram muitos portuguezes e hespanhoes. O touro saiu com tal rapidez, que nenhum recurso pôde ser efficaz ao cavalleiro. Vimioso foi colhido e derrubado conjuntamente com o cavallo, que ficou muito contuso. Mas, habilmente, o conde tirou-se da sella, montou outro cavallo em sellim razo, e castigou o touro, que o havia desfeiteado, com oito ferros, que levantaram a praça n’uma ovação colossal. Comprehende-se que n’esta e outras occasiões, em que o conde de Vimioso enflorava o seu brazão com tantas provas de coragem, denodo e mestria, visse acenarem-lhe na praça muitos lenços brancos, agitados por mãos femininas, umas em que a brancura patricia era _soignée_ com primor, outras morenas e menos cuidadas, como as da Severa, que, subjugada pela fascinação do cavalleiro prodigioso, o applaudia n’um frémito de enthusiasmo estonteante. «O conde de Vimioso, diz o sr. Queriol, foi sempre o alvo dos mais calorosos applausos e o idolo das mais formosas damas, que lhe disputavam a preferencia em amores». Como era de prevêr, a vida do conde gastou-se rapidamente. O seu organismo ardia em frequentes incendios, que lhe apressaram a morte aos 47 annos de idade. Coincidencia notavel: falleceu no palacio do largo do Metello no mesmo mez em que tinha nascido. A _Revolução de Setembro_ do dia 10 de julho de 1864 noticiava que o conde de Vimioso havia expirado na noite antecedente, depois de um prolongado padecimento, ao qual succedeu um typho. N’esse mesmo dia 10, um domingo, se realizou o funeral. E, coincidencia não menos notavel! á hora em que o funebre cortejo saía do largo do Metello, ali perto, na praça do Campo de Sant’Anna, effectuava o cavalleiro Diogo Henriques Bettencourt o seu beneficio com um curro de 13 toiros fornecido pelo lavrador do Ribatejo Francisco da Silva Falcão. O cortejo funerario d’esse que fôra o primeiro cavalleiro portuguez do seu tempo, e que tantas e tão ruidosas ovações conquistára na arena, contrastava singularmente com o cortejo tauromachico que á mesma hora entrava na praça ao som do hymno real para dar começo á lide. As palmas e os bravos, com que o publico saudava os lidadores, contrapunham-se ás palavras doloridas com que os velhos _aficionados_ lastimavam, caminho do cemiterio, a morte do conde de Vimioso. E quando o ultimo raio de sol poente, n’essa calmosa tarde de julho, se apagava sobre o tumulo que recebera o cadaver do conde, o publico, na praça do Campo de Sant’Anna, levantava-se em massa, fremente de enthusiasmo, a applaudir o grande Sancho, que acabava de _marear_ o ultimo touro da corrida com uma brilhante _navarra_. [Illustração: FADO DO CONDE DE VIMIOSO] O _Fado do Vimioso_ foi publicado no fasciculo 61 do _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_. Acompanham-n’o algumas quadras, de origem manifestamente popular, porque são incorrectas e banaes. O conde é ahi tratado pelo anagramma de Moisivo. A lettra é muito posterior á morte de D. Francisco de Paula, como se vê da seguinte quadra, penultima do _Fado_: Aqui ponho agora ponto, Na lenda que finda está: _Foram casos d’outra era_, São voltas que o mundo dá. O auctor da lettra explora a _lenda_ (elle mesmo emprega esta palavra) da «paixão» do conde pela Severa, cujos encantos avulta com poetica phantasia: Quem lhe vê a face morena, Quem vê seus olhos tyrannos, Nada vê que mais captive Inda que viva mil annos. ............................ Quem uma vez lhe ouviu Sua voz enternecida, Ainda depois da morte Aos seus ais recobra a vida. Quem a vê dançar o fado Com rigor desconhecido, Ao vel-a batendo forte Fica um doido perdido. E, continuando a lenda, falla do conde como de um cego amante que tivesse morrido de amor: Assim Moisivo carpia No auge da desventura. E ao outro dia, já cadaver, Foi levado á sepultura. Chorae, fadistas, chorae, Ah! chorai a mais não ser, Que d’outro tão fino amante Não torna o fado a dizer. O que é certo é que a lenda da Severa e do conde de Vimioso, tal como a musa popular a foi cantando ao sabor das multidões, estimulou a corrente que vulgarisou o _Fado_, especialmente no sul do paiz, e que lhe reforçou um caracter de vaga saudade, de tristeza plangente, em que parece pairar a longinqua memoria de uma supposta allucinação amorosa que um fidalgo bohemio experimentou por uma pobre moça fadista, de chinella de polimento ponteada a retroz vermelho. Todas as mulheres dos bairros infamados, todas as criadas de servir, todas as camareras de botequim cantam de preferencia o _Fado da Severa_ e o _Fado do conde de Vimioso_, dando-lhe uma intenção de aristocracia rehabilitadora pela esperança de que um novo conde, seguindo o exemplo de D. Francisco de Paula, venha enamorado, dedilhar a banza, em honra de uma segunda Severa plebea. «Ainda hoje, diz Pinheiro Chagas,[67] se ouve cantar a deshoras, com acompanhamento de guitarras, por vozes nem sempre da primeira frescura, uma melodia melancolica e plangente, que se denomina o _fado do conde de Vimioso_.» NOTAS DE RODAPÉ: [51] Em os numeros de 7 e 8 de abril de 1901. [52] Estas iniciaes são as do nome de Diogo Henriques Bettencourt. [53] _Os ciganos de Portugal_, pag. 221. [54] _Os excentricos do meu tempo_, pag. 289. [55] Amores de Vieira Lusitano, pag. 129. [56] Pag. 237. [57] Photographias de Lisboa, pag. 64. [58] Vol. 13.ᵒ, vocabulo _Vimioso_. [59] Estes factos foram por mim recolhidos da tradição oral e contados n’um folhetim do _Diario de Noticias_, de 12 de junho de 1893, [60] C. Castello Branco, _Sentimentalismo e historia_, pag. 70. [61] _Hist. Gen._ tomo X, pag. 756-757. [62] Por carta regia de 10 de março de 1716. _Hist. Gen._, tom. X, liv. X, cap. XI. [63] Tom. III, pag. 27. [64] Francisco José Freire escreveu o elogio do 2.º marquez de Valença. Foi publicado em 1749. [65] _Dic. Bibl._ tom. V, pag. 74. Entre as outras obras merece especial menção a _Instrucçam que dá a seu filho segundo D. Manuel José de Portugal, fundado nas acções christãs, moraes e politicas dos ecclesiasticos que teve a sua familia_. Lisboa, 1744. [66] _Dicc. Pop._, vocab. _Vimioso_. [67] _Dicc. Pop._, vocab. _Vimioso_. V Fados de nomenclatura--Fados litterarios Sobre esse fundo de singeleza e espontaneidade, que tanto caracterisa a lettra e a musica da maior parte dos nossos _Fados_, lembraram-se alguns trovistas de bordar complicados floreios de palavras, procuradas com esforço e artificio, laboriosamente. Assim como o rythmo musical foi asiaticamente ornado com variações pretenciosas, que rendilharam de laçarias difficeis a ingenuidade inicial do _Fado_, tambem a lettra, a glosa, se enredou em extravagancias e boleios exoticos de linguagem, parallelamente. O espirito humano parece enfadar-se da simplicidade, que se lhe torna um ramerrão fastidioso, e d’ahi provéem os excessos e requintes com que arrebica as modas e exaggera os figurinos, tanto para vestir o corpo como o pensamento. Os amphiguris, que ainda estavam em voga quando o _Fado_, singelo e corrido, os rechaçou como velharias[68], vieram mais tarde a reproduzir-se, em differente métrica, mas com o mesmo intuito de jogos malabares de phrase, nos _Fados_ exdruxulos, nos _Fados_ enygmaticos, nos _Fados_ de trocadilho e nos _Fados_ tautophonicos (repetição). É claro que toda a naturalidade da poesia popular foi estrangulada n’estas tentativas de habilidosa gymnastica, algumas mais felizes do que outras; mas a alma de um povo não se torce facilmente, como vara tenra, nas manifestações da sua sentimentalidade espontanea e nativa. Essas tentativas passam, e a indole fundamental do _Fado_ permanece a mesma. Os _Fados_ exdruxulos, bem como todos os outros em que o artificio predomina, podem ser admirados quando o mereçam, como esforço de paciencia; mas só isso, porque não encontram ecco dentro do nosso coração, nem affectuosa adhesão no nosso espirito e memoria. Pode achar-se-lhes mais ou menos graça, mas não se lhes encontra sentimento, e a poesia do povo só vive á custa das suas proprias emoções. Exemplo de _Fado_ exdruxulo: _Eu zombo d’homens teutonicos, Eu zombo dos argentarios, Eu zombo dos pythagoricos, Eu zombo dos uzurarios._ Eu zombo dos dialeticos, Eu zombo até dos sophisticos, Eu zombo dos casuisticos, Eu zombo já dos magneticos; Eu zombo dos cynegeticos, Eu zombo dos bons euphonicos; Eu zombo dos sons harmonicos, Eu zombo dos bons topasios, Eu zombo dos taes pascasios, _Eu zombo d’homens teutonicos_. Eu zombo já dos grammaticos, Eu zombo dos elegiacos; Eu zombo d’esses syriacos, Eu zombo dos esquipaticos; Eu zombo até dos didacticos, Eu zombo dos santanarios; Eu zombo dos proletarios, Eu zombo dos economicos; Eu zombo dos pobres comicos, _Eu zombo dos argentarios_. Eu zombo dos privilegios, Eu zombo dos sacrificios; Eu zombo dos artificios, Eu zombo dos sortilegios; Eu zombo dos sacrilegios, Eu zombo dos taes historicos; Eu zombo dos allegoricos; EU zombo até já dos clinicos; Eu zombo dos proprios cynicos, _Eu zombo dos pythagoricos_. Eu zombo dos pathologicos, Eu zombo dos fidelissimos; Eu zombo dos modestissimos, Eu zombo dos mythologicos; Eu zombo dos pedagogicos, Eu zombo dos breviarios; Eu zombo dos perdularios, Eu zombo dos cabalisticos; Eu zombo dos humoristicos, _Eu zombo dos uzurarios_. Exemplo de _Fado_ enygmatico, em que é preciso interpretar o sentido das cacophonias: _Minha T-O-L-A. Só tu és minha nini! Manda carta p’lo correio P’ra o teu querido K-H-I._ Dois é bis, potes bem juntos; Não faças como o judeu... Que por-K, gallos me deu, Em lugar dos taes presuntos. Despresa, pois, os assumptos Da do-O, mais do-H; Bem vês que, muito não ha, Por te ver dias seguidos Me constipei dos ouvidos, _Minha T-O-L-A_. Bem deves conjecturar, Não sou nenhum-O-I-S, Que eu te fiz d’amor a prece, A ti só quero adorar. Não te deixes ingrolar P’lo _francez_ do G-U I; Meu amor é só p’ra ti. Manda á fava o-R-I-R; Muito embora o-M berre, _Só tu és minha nini_. Peço-te que a mal não leves Se te escrevo p’la-B-U; V-A-L conheces tu... Bastantes penas lhe deves. Entre questão d’almocreves, Do teu porte não descreio; Se o-K-I te dá receio, Toma conta no-Q-V; Não o dés ao-D-K-D, _Manda carta p’lo correio_. Põe p’ra amor sómente um-A, P’ra conselhos um-C só, P’ra doçuras põe um-Dó, P’ra lamentos põe um-Lá, P’ra familia põe um-Fá, P’ra o que te respeita-Mi, P’ra situação põe um-Si, P’ra que não te façam-Ré, Põe-n’a com Sol-de-Loulé, _P’ra o teu qu’rido-K-H-I_. Exemplo de _Fado_ em trocadilho de homonymos: _P’ra que sinta bem a cinta Não só no acto em que a ato, No fio d’ella me fio... Pois sou mui fatuo no fato._ Quem aos _sessenta se senta_ (Como a _ama_ que não _ama_) A _chamma_ d’amor não _chama_, Quando aos _setenta se tenta_; Se _venta_, funga-lhe a _venta_ Quando _pinta_ qualquer _pinta_: Se eu fôr, na _quinta_, p’r’a _quinta_ Verei se a _serra_ se _cerra_ _P’ra que sinta bem a cinta_. A _vella_ fez-se p’ra _vella_; De _massa_ se fez a _maça_; Cobre-se a _caça_ com _cassa_, Na propria _cella_ se _sella_: Alguem p’la _péla_ se _pélla_; Eu _cato_ os picos do _catto_. Se _mato_ as lebres no _matto_. Sem _anda_ tambem se _anda_; Pois trago a _banda_ p’r’a _banda_, _Não só no acto em que a ato_. Dou-lhe um _laço_ muito _lasso_, Da _cota_ bem pago a _quota_: E a _bota_ que peso _bota_? _Asso_ o peito em peito d’_aço_; A _passo_ vou par’o _Paço_ Muito _pio_, sem dar _pio_; _Rio_ até do proprio _rio_; Sou como o _cura_ sem _cura_. Se a _dura_ espada me _dura_, _No fio d’ella me fio_. Carece o _lente_ da _lente_, Quando _fita_ qualquer _fita_, Se teve a _dita_ da _dita_ _Patente_, que traz _patente_; Se minha _mente_ não _mente_, O _Tatto_ tem muito _tacto_; _Retrato-o_, e não me _retracto_, Pois _papa_ as honras do _Papa_ Quem me _capa_ mais a _capa_, _Pois sou muito fatuo no fato_! Exemplo de _Fado_ tautophonico sem que a rima seja obrigada a exdruxulos: _Respeito o poder do gallo, Respeito a voz do leão, Respeito as têtas da vacca, Respeito a pelle do cação._ Respeito o ferrão d’abelha, Respeito as pennas do pato, Respeito as unhas do gato, Respeito as cans d’uma velha; Respeito o vello da ovelha, Respeito o nobre cavallo, Respeito o rim-rim do rallo, Respeito o fim da baleia, Respeito a voz da sereia, _Respeito o poder do gallo_. Respeito o mau papagaio, Respeito o bom pintarroxo, Respeito a fórma do mocho, Respeito o verde do gaio, Respeito o fino garraio, Respeito as pernas do anão, Respeito os pés do pavão, Respeito a velha serpente, Respeito a lingua da gente, _Respeito a voz do leão_. Respeito a côr da rolinha, Respeito o zum do bezoiro, Respeito as armas do toiro, Respeito o fel da pombinha, Respeito o pôr da gallinha, Respeito o mal da macaca, Respeito o pello da alpaca, Respeito a tal cegarrega, Respeito o bico da pega, _Respeito as têtas da vacca_. Respeito as azas do grillo, Respeito a feia minhoca, Respeito o berro da phoca, Respeito o vil crocodilo, Respeito o curso do esquillo, Respeito o ser tubarão, Respeito os dentes do cão, Respeito os coices da mula, Respeito o gosto da lula, _Respeito a pelle do cação_. Entre os _Fados_ de repetição merece menção especial o seguinte, que é, no genero, dos melhores e por ventura o mais litterario que conhecemos: _Alecrim é rei das hervas, O ouro, rei dos metaes; Rosa, rainha das flores; Leão, rei dos animaes._ Deus é rei universal; Homem, rei da creação; Rei dos sabios, Salomão; Rei dos sabores o sal; Rei das mattas o pinhal; Capitão, rei das catervas; Virgem, rainha das servas; Romã, rainha dos fructos; O trigo é rei dos productos; _Alecrim é rei das hervas_. É o mar o rei das fontes; Cruz, das armas é rainha; Baccho é rei de toda a vinha; O Sinai é rei dos montes; O navio é rei das pontes; Foi Adão o rei dos paes; Coral rei dos mineraes; Rei de amarguras o fel; Rei dos doces é o mel; _O ouro, rei dos metaes_. Rei da riqueza o trabalho; Aguia, rainha das aves; Dó é rei dos sons suaves; Rei dos martellos o malho; Rei dos dentes é o alho; O vinho, rei dos licores; Cupido, rei dos amores; Rei dos poetas foi Dante; Rei das pedras o brilhante; _Rosa, rainha das flores_. Rei dos ventos é o norte; É o sol o rei dos astros; O traquete é rei dos mastros; Rainha do pranto, a morte; Rei dos dons é o bom porte; Pena, rainha dos ais; O ponto, rei dos signaes; Rei das cannas o alcaçuz; Rainha das cores, a luz; _Leão, rei dos animaes_. Lembrou, naturalmente, aos que procuravam esta estrondosa orchestra de palavras, que os glossarios ou nomenclaturas lhes podiam fornecer uma abundante mina, e trataram de exploral-a com os minguados recursos technologicos de que dispunham. Exemplo de _Fado_ mythologico: _Apollo o jogo talhava N’uma casa de batota; Cupido alugou um trem, E bateu p’ra a Porcalhota._ Baccho estava sem dinheiro, E combinou com _Silvano_ Para irem com _Vulcano_ Visitar qualquer banqueiro; Foi o rancho galhofeiro, Ao que mais perto ficava, E quando na sala entrava O ranchinho reinador, Estendia-se o alvor, _Apollo o jogo talhava_. _Minerva_ um cêrco fazia Sobre um valete d’espadas, _Venus_ dobrava as paradas, _Sileno_ só recebia; _Neptuno_ sempre perdia, _Fauno_ fazia risota, _Marte_ saltou n’uma sôta, _Phebo_ jogava ao acaso. Estava emfim todo o _Parnaso_ _N’uma casa de batota_. _Titão_ joga n’um valete, _Mercurio_ joga no az, _Cliópe_ só cêrcos faz, _Euterpe_ joga n’um sete. _Jove_ uma parada mette, _Plutão_ arrisca um vintem, _Esculapio_ já ganho tem, E abandona a banca logo. E co’o dinheiro do jogo, _Cupido alugou um trem_. _Saturno_ vendo uma quina, Saltou-lhe logo nos pés, E fez cêrco sobre um trez, Que lhe saiu papafina; A _Juno_ como é ladina Não gostava da batota; Deus _Baccho_, todo janota, Contratou uma tipoia, Deu o braço á lambisgoia, _E bateu p’ra a Porcalhota_. Exemplo de _Fado_ botanico: _Nos espinhos d’uma rosa Se feriu meu coração; Não soltei nem uma queixa! Muito póde uma paixão!_ Eu sou bom floricultor, Sou o rei dos jardineiros, Tenho lá, nos meus canteiros, Toda a casta, pois, de flôr. Co’o meu grande regador Lhes dou rega cuidadosa, Quando a noite está calmosa, Sem nenhuma m’escapar, Mas senti-me espicaçar, _Nos espinhos d’uma rosa_. Caso novo foi p’ra mim, Tal descuido desgraçado! Tanta flôr tenho regado, Sem jámais vêr coisa assim! Com meu sangue, do jardim Fui pingando todo o chão; E, com folhas d’ensaião, Estancava a hemorrhagia, Pois, quem visse, julgaria _Se feriu meu coração_! Madre-silvas se sorriam, De me vêr em tantas maguas; E as devassas das anáguas Grande troça me faziam! Os chorões, esses carpiam, Murmurando a sua endeixa, Os geranios buscam reixa Com seu riso impertinente; Porém eu, por mais prudente, _Não soltei nem uma queixa_! Os martyrios suspiravam, Tristes sempre, contrafeitos; E os gentis amor’s-perfeitos, Sempre bons, me lamentavam. Por vingança já esp’ravam Que eu, pegando no alvião, Sem mais dó, nem compaixão, Arrazasse todo o herbario, Porém eu,--bem p’lo contrario! _Muito póde uma paixão._ Exemplo de _Fado_ zoologico: _Faz o pombo--rú, tu, tú!-- Na certã enfarruscada. É preciso ser bem má, Nem me dás uma trombada!_ Todo o gato faz--_miau!_-- Quando chama p’la gatinha, E, p’la fresta da cosinha, Responde ella-- _renhaunhau!_-- Faz na rua o cão--bau, bau!-- O perú faz--gl_ú_, gl_ú_, gl_ú_!-- Só p’ra mim não fazes tu, Por meu fado, e por meu mal, O que á pomba, no pombal, _Faz o pombo--rú, tu, tú!--_ Se a gallinha faz--cró, cró-- Logo o gallo arrasta-lh’ a aza, E co’a crista toda em braza Canta após--kó, kó, ró, kó!-- Dando ao rabo anda o tótó, Atraz da cadella amada, Só a mim não fazes nada, Nem sequer uma omelêta --Por que eu dou a pecholêta-- _Na certã enfarruscada_. Vê tu bem como no estio, Quando chega a noite escura, ’Té no meio da espessura, Faz o triste môcho--pio!-- Espanando-se no rio Faz o pato--quá, quá, quá!-- A perdiz faz--cá, cá, rá!-- Todos cantam seus amores, Tu p’ra mim só tens rigores, _É preciso ser bem má_! Até mesmo o villão burro, Nas manhãs de muita calma, Á jumenta da su’alma, Diz amor co’o triste zurro! O javardo mais casmurro, Chafurdando na enxurrada, Faz--rom, rom!--e a porca amada Animando vae co’a tromba! Só teu peito de mim zomba, _Nem me dás uma trombada_! Esta especie de _Fados_ valorisou-se pela intervenção de um estudante bohemio que, dispondo dos conhecimentos scientificos que ia adquirindo nas aulas, de veia poetica e de graça espontanea, lhes deu um caracter de rigorosa technologia ao mesmo tempo que um sainete espirituoso, alteando-se sobre as composições corriqueiras com que o povo pretendia invadir os dominios da sciencia. Chamava-se Luiz Filippe Ferreira d’Almeida Mello e Castro, e era filho de Bernardino Antonio Ferreira e de D. Maria José d’Almeida Mello e Castro. Nasceu em Lisboa a 21 de abril de 1844. Um seu contemporaneo e amigo, Urbano de Castro,[69] traçou-lhe á penna o seguinte retrato, a meu pedido: «Luiz d’Almeida era de estatura acima do regular; a não ser nos dias de desalento, que não eram muitos para o seu espirito naturalmente despreoccupado e alegre, desempenava a figura, e attraia a attenção das mulheres pelo seu porte garboso. «Os olhos pardos tinham scintillações tão vivas, que muitos olhos negros os invejariam. Graciosissimo o sorriso, onde brincava a ironia. Raras vezes recorria ao sarcasmo. O seu coração era bom de lei. «O bigode, castanho, não era propriamente o que se chama uma bigodeira, mas tinha alguma coisa de petulante, com as suas guias retorcidas, agudas, como pontas de lanças. «A gesticulação era viva como a de um puro meridional. «A voz agradavel, e punha-lhe um _tic_ especial de graça o carregado do _r_. «Quando lhe dava para janota, nenhum official o excedia no brilho do uniforme, na elegancia do porte, etc.» Luiz d’Almeida matriculou-se na Escola Polytechnica em 15 de outubro de 1859. Estouvado e folgasão, deu pouca attenção ao estudo das disciplinas que ali ia buscar para seguir o curso militar na Escola do Exercito. Assim foi que ficou reprovado na 1.ª cadeira (mathematica) e que não fez exame da 5.ª cadeira (physica) nem do 1.º anno de desenho. Sem embargo, tanto os seus professores como os seus condiscipulos reconheceram-lhe desde logo uma intelligencia penetrante e, tambem, um fina graça natural, que o tornava querido e procurado dos outros estudantes, os quaes o acclamaram chefe da bohemia academica. Em 1860 repetiu o anno na Polytechnica, tendo obtido 12 valores em mathematica e 10 em desenho. De physica não fez exame. Em outubro de 1862 matriculou-se na Escola do Exercito, como ordinario, com destino ao curso de infantaria. Em 1863 fez exame da 1.ª cadeira a 22 de junho, e foi approvado com a classificação de sufficiente; exame de topographia, em 11 de julho, com igual classificação; e de sabre em 30 de julho, sendo approvado pela maior parte. Matriculou-se pela segunda vez na Escola do Exercito em 14 de outubro de 1863, na mesma classe de ordinario, e fez exame do 1.º anno de desenho, obtendo a classificação de sufficiente. Em 1865 voltou á Escola Polytechnica, onde se matriculou nas aulas de calculo, chimica mineral e economia politica. O gosto pela bohemia havia-o empolgado completamente. Era o mais endiabrado dos estudantes nas folias do carnaval. E como guitarrista, nas serenatas ao luar, não havia quem o excedesse a cantar _Fados_ de sua mesma composição, _Fados_ scientificos, feitos com a nomenclatura das disciplinas em que se tinha matriculado, e de que elle apenas parecia disposto a colhêr a flor da graça. Perdeu na Polytechnica, successivamente, trez annos lectivos, de 1865 a 1868. Em 1869 pôde finalmente vêr-se livre do calculo, da chimica mineral e da economia politica, ficando approvado com 10 valores em cada uma d’estas cadeiras. Mas não conseguira ainda desembaraçar-se do 2.º anno de desenho, em que ficou reprovado. Relativamente ao anno de 1869, diz a nota que solicitei da Escola Polytechnica: Matricula em 14 de outubro: 3.ª cadeira (mechanica) exame em 6 de julho de 1870: reprovado. 5.ª cadeira (physica) exame em 26 de julho: approvado com 10 valores. Geometria descriptiva (1.ª parte) não fez exame. Analyse e chimica organica, exame em 6 de maio: approvado com 10 valores. Desenho (2.º anno) exame em 30 de julho: approvado com 10 valores. Em outubro de 1871 voltou a frequentar a cadeira da mechanica, ficando approvado com 10 valores. Tambem fez exame da 1.ª parte de geometria descriptiva, sendo classificado com 11 valores. Intencionalmente publicamos estas indicações escolares, porque ellas mostram eloquentemente a feição bohemia de Luiz de Almeida. Quando se propunha dar alguma attenção aos compendios, ainda que pouca, logo conseguia aproveitar o anno lectivo, sem cuidar de que outros menos intelligentes lhe passasem adeante com melhores classificações. Mas, adeus livros, adeus aulas, quando a vida alegre e irrequieta o tentava, e os condiscipulos lhe punham entre as mãos a guitarra para que cantasse os seus _Fados_, que adquiriram grande voga entre todos os estudantes de Lisboa. D’esses _Fados_, que merecem ficar archivados n’este livro, vamos dar trez _specimens_, em que esfusia a graça brilhante de Luiz de Almeida, e que representam a alliança da poesia popular com o vocabulario da sciencia n’uma expressão rigorosamente technica. Fado mechanico A gentil _velocidade_ Pôz-me o peito em _movimento_, Ficando sempre _constante_ N’este _intervallo de tempo_. Andava um _ponto no espaço_, Pela calçada da Gloria, Sem saber da _trajectoria_, Com um V 0[70] pelo braço. Vão ao Terreiro do Paço, Affectando _gravidade_; E encontram, ó f’licidade! No caminho escuro e só, A mulher do v² ρ[71], A gentil _velocidade_. Eis o _plano projectado_! «Se não vem o F¹,[72] N’um dôce impulso lhe imprimo O meu amor _retardado_. Vê lá tu, que _espaço andado_ Ella tem, n’este _momento_! Lá vae... no _prolongamento_ D’aquella _diagonal_! «Que pureza inicial! Poz-me o peito em movimento! «Pára, agora, em _m_...[73] Ah! meu Deus, se ella me vê! Ó cousa! espera um _dt_,[74] Não te affastes d’esta _linha_. «--Senhora, deusa, rainha, D’este amôr, só, _resultante_, Dê-me attenção n’este _instante_!... --Então, senhor! o meu esposo!... Deixe-me estar em _repouso_, Ficando sempre _constante_. «--Ai! meu Deus! que _resistencia_, Que _attracção_, que _força viva_! Gosto de a vêr pensativa... Dá-me um beijo, v. ex.ᵃ? --Senhor _ponto_, que insolencia! De onde parte o seu intento?» «--Senhora, o meu _elemento_ Nunca _mudou de sentido_!» Eis que apparece o marido N’este _intervallo de tempo_! Fado chimico O _H nascente_[75] Decompoz a H²O[76] mãe. Vejam que typo esquisito N’uma familia de bem! Sentiu-se a Ag[77] pejada, E um _sal precipitado_ Quiz matar o namorado Com quem estava combinada; A _K²O_[78] _electrisada_ Diz que o corpo é innocente, O CL,[79] já meio quente Em presença d’uma _hulha_, Faz sair com grande bulha O H[80] nascente. Assim que o gaz maganão Se encontrou livre no ar, Tratou logo de chamar Perna torta a um _syphão_. Houve grande _reacção_ Nos _metaes_, gente de bem! Indo a cousa por além, O que fez o tal demonio? Foi buscar o _Sb_,[81] Decompoz a _H²O_[82] _mãe_. Não parou n’isto o tratante: Com provas de malvadez, N’uma _retorta de grés_ Prende o _gaz oleificante_; Toma o _poder descórante_, Ataca um _hyposulphito_, De um _tubo_ faz, logo, apito, D’uma caldeira faz bumbo, Dissolve as _cam’ras de Pb_[83]... Vejam que _typo_ esquisito! Perguntava o _sal marinho_ «--Quem é este rapazote?» «--É filho do pae _Az_,[84] E tem o rabo em _cadinho_.» «--Não ves n’aquelle focinho A cara do pae, tambem?» «--Mal sabe a prenda que tem, Tendo um filho _comburente_, Que serve de _reagente_ N’uma familia de bem!» Fado mathematico Um polynomio estranho Foi o melhor da _soirée_, No dia do baptisado Da _raiz do P. A. B._ Na funcção ás 10^{¹⁄₂} Apparecia o _infinito_ Vestido como um palmito --Casaca, sapato e meia. Uma _curva_ muito feia Pedia ao _numero inteiro_ Para servir de parceiro Na partida ao voltarete Á mulher do 3 × 7, _Polynomio extrangeiro_. O festim era imponente: Tocava um _factor commum_ _1_, _2_, _3_, n + 1 _Na corda d’arco tangente_. Valsava toda contente A mulher do D. V. D. Por signal passa-lhe o pé, Escorrega e cai no chão. Diz uma nimia _fracção_: --Foi o melhor da _soirée_! --Minha _constante arbitraria_, Diz o _termo_ tão ratão Á gentil dona _Equação_ D’uma _formula imaginaria_: «Que faz aqui solitaria Com esse rosto córado? Eu por si fico _elevado_ Ao _5.º grau de potencia_. Que valor tem Vossa Excellencia No dia do baptisado!» Uma _differença finita_ Polkava com todo o esmero; Fazia _tender p’ra zero_ Um _delta_ todo catita. Uma _esphera_ mui bonita Mostrava a perna e o pé, Emquanto o _T e o Z_, Recostados n’um sophá, Conversavam co’ o papá Da _raiz do P. A. B._ Este _Fado_ appareceu no _Almanach de Lembranças_ para 1890, pag. 472, assignado por José Carlos Lagrange (Lisboa). Mas todos os contemporaneos e amigos de Luiz de Almeida lh’o attribuem. Um d’elles, Urbano de Castro, veiu á imprensa reivindicar para esse inolvidavel bohemio, que tinha a especialidade dos _Fados scientificos_, a paternidade d’este _Fado_. Essa reivindicação foi feita no _Correio da Manhã_, a cuja redacção pertencia então Urbano de Castro, que pessoalmente me confirmou este facto. Luiz de Almeida tambem compoz um _Fado dos vinhos_, de que apenas conheço uma quadra, o mote: O Collares foi-se casar Com a genebra de Hollanda. O Torres, que a namorava, Ficou de ventas á banda Sobre a vida airada de Luiz de Almeida são muito interessantes as informações que me forneceu o illustre professor, e meu amigo, Luiz Feliciano Marrecas Ferreira. Recorto de uma sua carta os seguintes periodos: «Namorou-se de uma rapariga, que andava n’um baile de mascaras, vestida á Luiz XV--a _Peregrina_--levou-a para casa, mas, como o dinheiro, mal chegando para o indispensavel, não era elastico, não lhe pôde dar outro fato, resultando d’ahi o ella ter de ir ao talho, ao vinho... ao diabo! invariavelmente vestida á Luiz XV. «Teve amores com uma outra, que era hespanhola, e, como não soubesse a significação de varias palavras do idioma d’ella, resolveu-se a comprar um diccionario. N’um bello dia a mulher foge, elle quer-lhe ir no encalço, junta o pouco dinheiro que tinha e o que pôde realizar. Lá foi o diccionario para o prégo! «Mostrando aptidão devéras para o estudo das cadeiras, que devia frequentar, pouco estudou durante largos periodos. Chegando a certa altura do anno, abandonava qualquer d’ellas e fazia um fado, onde revelava sempre com bastante espirito algum conhecimento do assumpto, não se lhe tendo nunca apontado um erro. «Inventou a seguinte reacção chimica: «_o alcool em presença do ether vinico perde uma molecula de agua e toma uma de vinho._» Se o alcool realmente toma, ou não, os sabios que digam, elle é que nunca deixava de tomar varias vezes por semana com uma frequencia bem assignalada pela policia e pelos numerosos amigos e companheiros. «Depois de lauta ceia em casa de um titular, bastante conhecido (visconde de Trancoso?) foi passear com um amigo e já de madrugada recolheu a penates. Deu-lhe para molhar toda a gente, que passava pela rua, e da saccada do segundo andar, defronte da Polytechnica, foi deitando agua até que se lhe acabou--n’esse tempo não havia canalisação, vivia-se em pleno regimen de barril e aguadeiro--e elle foi-se resignando a assistir _a sêco_ ao transito da rua. N’isto passa o antigo bando dos toiros: campinos a cavallo, uma charanga de barulho ensurdecedor, arruaça, garotos e não garotos a apanhar cartazes. «Luiz de Almeida lembra-se de que ainda poderia haver alguma agua no fundo do pote, foi n’um pulo á cosinha, tira-o do poial e tral-o para a janella, onde o sacudiu a vêr se deitava alguma coisa, até que se lhe escapa das mãos indo cahir com grande estardalhaço n’um intervallo dos cavallos, partida esta que o levou á Boa Hora. «Felizmente ninguem ficou ferido, e o pote, tambem como a taça do celebre rei de Thule, mereceu as honras de uns versos. «No primeiro andar d’essa casa moravam as _Manas Perliquetetes_, n’essa época gente séria e recatada e só deixaram de o ser quando ao L. de Almeida passou pela cabeça--o que realizou--tornar-se seu perceptor. «Quando não vivia em _faux ménage_, arranjava uma _républica_ de rapazes, sendo então um verdadeiro inferno para os senhorios. «No pequeno largo, entre a R. do Telhal e a de Santo Antonio dos Capuchos, morava n’um primeiro andar com o Alves (que morreu capitão de artilheria); o Anthero, do Porto; e o Thomaz Malheiro (engenheiro civil já fallecido). N’uma manhã põe escriptos nas janellas, apesar de nenhum d’elles ter feito tenção de se mudar; batem á porta, vae abrir a uns sujeitos que não conhecia, mostra-lhes a casa e leva-os para a cosinha depois de longo discurso sobre as vantagens e inconvenientes do que iam vendo, até que pôde fechal-os á chave. Os homens berraram, era uma bulha dos demonios na cosinha, os companheiros d’elle riam a bandeiras despregadas e o Luiz de Almeida vae pôr-se á janella a assoprar n’um apito até que veiu a policia libertar os presos, pregando com estes e com aquelle no Carmo. «Já official de artilheria e no polygono de Vendas Novas deu largas á veia poetica e folgazã fazendo versos a tudo e a todos. «Alli havia por esse tempo um tal Rodarte, com mania de caçador, mas sem a destresa necessaria para esse sport, o qual á volta do campo trazia sempre, ou quasi sempre, alguma caça comprada a um ferrador, que existia no caminho. Fez-lhe um dia varias quadras, sendo a primeira: Ó Rodarte, Rodartinho, Ó Rodarte, ó meu amôr, Quando fôres caçar perdizes Busca á volta o ferrador. Como todos os bohemios, Luiz d’Almeida morreu em plena mocidade, crêmos que pouco depois do verão de 1872, sem que possamos designar com segurança a data do seu fallecimento. Na academia de Lisboa, elle foi o mais completo exemplar do estudante-menestrel, errante de bairro em bairro, de rua em rua, a cantar o _Fado_ ao som da guitarra dolente, por noites de luar, n’umas férias sem fim. Sempre os moços souberam canções, porque amam as mulheres, a liberdade e a alegria, e porque, n’uma palavra, são moços. Os estudantes teem por si a tradição de poetas e namorados, que tambem é uma recommendação suggestiva. Lá diz a trova: Se houver de tomar amores Ha de ser com um estudante: Ainda que não tenha dinheiro, Tem o passear galante. As suas canções (estudantinas), muito sentimentaes, prestam-se facilmente ao rythmo mavioso do _Fado_, para o qual elles compõem quadras de fino sabor litterario, que contrastam, pela elevação dos conceitos e pela belleza da fórma, com o _Fado_ popular. Em algumas localidades ha _Fados_ escolares de classe, como, por exemplo, o _Fado dos estudantes açorianos_, que foi recolhido no _Cancioneiro de musicas populares_[85]. N’outras localidades, principalmente em Coimbra, cada estudante poeta dá largas ao lyrismo individual em quadras de _Fado_, que vão passando de guitarra em guitarra até se generalisarem na classe e depois no paiz. [Illustração: HYLARIO] Hylario foi moderadamente o grande aédo do Fado escolar coimbrão. Depois de Luiz d’Almeida não tinha apparecido ainda entre a classe escolastica de Portugal um mais notavel e mais errante cantor de _Fados_ litterarios. A sua vida foi ephémera, segundo a lei fatal dos bohemios; mas o seu nome ficou ligado indissoluvelmente á tradição nacional do _Fado_. Chamava-se Augusto Hylario Costa Alves; mas o seu nome de guerra foi simplesmente «Hylario». Elle conquistou a celebridade que dispensa appelidos e avós. Era natural de Vizeu e surprehendeu-o a morte quando, através as delongas proprias da vida esturdia, frequentava o 3.º anno da faculdade de medicina em Coimbra[86]. Tinha sido nomeado aspirante a medico do ultramar. Matou-o, na sua terra natal, uma doença do figado, cremos que cyrrhose, aggravada por um ataque de grippe. Falleceu, estando em férias de Paschoa, no dia 3 de abril de 1896. A sua morte causou sensação em todo o paiz, e o seu funeral teve aquella pompa solemne que costuma derivar da celebridade do morto. Dizia um telegramma de Vizeu, dando conta d’esse triste acontecimento: «_VIZEU_, 4, ás 7 h. 35 m. da t.--Hylario, o estudante bohemio que todo o paiz conhece, principalmente pelo seu _fado_ popularissimo, soffria do figado. Foi essa a doença que o matou, consequencia de um ataque de _influenza_. «O seu corpo foi velado em casa da familia, onde morreu, por academicos. «O seu enterro realizou-se ás 6 horas da tarde de hoje. Vestiram-lhe o uniforme de aspirante de medico naval. Acompanharam varias irmandades e a banda de musica de infantaria 14, sendo a chave do caixão entregue ao coronel do mesmo regimento. Ás borlas pegaram os officiaes, sendo o feretro conduzido pelos estudantes do lyceu de Vizeu e dos cursos superiores das differentes escolas do paiz, que aqui tinham vindo passar as ferias da Paschoa. «No cemiterio foram depostas oito corôas, sendo uma da familia, outra do curso do terceiro anno medico e as restantes de varios academicos e pessoas amigas do inspirado guitarrista. «Pronunciaram discursos, quando o corpo baixou á terra, um estudante do lyceu d’esta cidade, dois estudantes de Coimbra e o advogado Alberto Ponces. «A guarda de honra, porque o finado tinha honras militares como aspirante a medico naval, foi prestada á porta do cemiterio por uma força, que deu as trez descargas do estylo. «A morte do pobre rapaz foi muito sentida em Vizeu.»--_M._ Na população de Coimbra, habituada a ouvil-o, a manifestação de sentimento foi ainda maior talvez do que em Vizeu. Um telegramma d’aquella cidade dizia: «O academico Hylario era muito conhecido em todo o paiz pelos seus popularissimos fados. Em Coimbra deixa saudosas recordações. Seu genio jovial e tendencias bohemias deram-lhe grande prestigio e ascendencia na actual mocidade academica. Em Coimbra é sentidissima a sua morte.» Todos os jornaes diarios do paiz se referiram largamente ao Hylario; alguns publicaram o seu retrato, esse conhecido retrato em que elle, de capa e batina, cabeça ao lado, olhos em extasi, dedilha na guitarra um dos seus _Fados_ dolentes. Lisboa conhecia-o, tinha-o ouvido; mas os seus _Fados_ haviam chegado á capital primeiro do que elle. Um jornal da epoca relembrou n’estes termos a sua vinda a Lisboa: «Occorreram as festas em honra do João de Deus. Com a academia de Coimbra veiu Hylario a Lisboa. «O rythmo inédito do seu fado ia então ter o ensejo de lançar o vôo e popularisar-se como se popularisaram os versos do grande poeta. «A poesia e a musica do povo abraçavam-se ali, por um decreto do acaso, tendo surgido com o intervallo de trinta annos. «Todos iriam decorar o fado do Hylario como haviam decorado as quadras adoraveis de João de Deus. «O destino como que quizera tambem consagrar o grande poeta do amor inventando este bohemio legitimo, authentico como os dos lendarios tempos de João de Deus, para fazer perdurar, por uma musica grata ao povo, a lembrança d’aquella festa sympathica da mocidade. «E assim foi. «Durante trez noites Lisboa ouviu, altas horas, os accordes tristes da guitarra do Hylario e a sua voz potente a que elle imprimia um tom de melancolia estranha: «Foge, lua, envergonhada, Retira-te lá do céu; Que o olhar da minha amada Tem mais brilho do que o teu. «Um dia, quando morreres, Ó pomba dos meus anhelos, Consente que eu vá beijar As tranças dos teus cabellos. «Da rua passou ao theatro. A não ser nas peças puramente academicas, estava deslocado n’aquelle meio. Tão legitimamente bohemios eram os seus fados, a sua maneira de cantar, que o effeito falhava todo como falharia um trecho de Mozart tocado n’uma baiuca de camareras.» Em Vizeu sahiu a 12 de junho de 1896 o primeiro numero de um semanario imparcial, intitulado _Hylario_. Declarava no artigo do fundo que o seu programma, alem de ser «uma consagração á memoria do que pode dizer-se o ultimo bohemio portuguez» era, conservando uma feição accentuadamente litteraria, empregar como armas de combate a satyra e a critica, com firmeza, mas com moderação. Estampou o retrato de Hylario na 1.ª pagina, o seu retrato de estudante e de bohemio; e varios artigos commemorativos da sua morte. Não sei se este semanario tem continuado, mas possuo o 1.º numero. Quero ainda referir-me á saudosa necrologia entoada nos jornaes do paiz, para transcrever as palavras com que um d’elles rematava a apologia do mallogrado Hylario: «É menos um doido no mundo, dizem as pessoas graves e de circumstancia. Mas essas pessoas graves não farão verter, muitas d’ellas, á sua despedida d’esta vida, senão lagrimas de cerimonia, ao passo que esse doido é a esta hora sinceramente pranteado por muitos corações juvenis das filhas do Mondego, que, fascinadas pela sereia da sua guitarra, corriam em Coimbra apoz elle como as antigas virgens romanas apoz os seus heroes, offerecendo-lhe o óbolo do seu primeiro amor. «Meu coração é quadrante, Quadrante do meu desejo: Nas horas em que te vejo Não marca mais que um instante.[87] «Vivo de ti separado, Escravo da minha dôr. Com prazer manietado Por élos do teu amor. «Pobre Hylario! Parece que tinhas a previsão do teu fim tão rapido quando perguntavas: «...E passo a vida tristonho A cantar por não saber Se a vida está só no sonho E a realidade em morrer![88] «O destino acaba de te dar resposta.» Hylario cantava quadras suas e de outros poetas, taes como Guerra Junqueiro, Antonio Nobre, Fausto Guedes Teixeira, etc. Proprias ou alheias, avultavam no seu cancioneiro estas lindas trovas galantes: Nossa Senhora faz meia Com linha feita de luz. O novello é a lua cheia, As meias são p’ra Jesus.[89] O mar tambem tem amante, O mar tambem tem mulher! É casado com a areia, Dá-lhe beijos quando quer.[90] A minha capa velhinha Tem a côr da noite escura. N’ella quero amortalhar-me Quando fôr p’ra sepultura.[91] Ave Marias são beijos, Padre Nossos são abraços. Rosario dos meus desejos, A cruz é abrires-me os braços.[92] Tuas mãos são branca neve, Teus dedos são lindas flores; Teus braços cadêas de ouro, Laços de prender amores. Eu queria ser como a hera Pela parede a subir, Para chegar á janella Do teu quarto de dormir. Olhos verdes côr d’esp’rança, Inconstantes, côr do mar. Quem tem amor é creança, Sou creança por te amar. Ao lançar dos olhos meus A rêde dos meus desejos No lago dos labios teus, Eu trago-a cheia de beijos. N’esse teu labio vermelho Ha risos do sol de agosto: A alvorada é um espelho Onde se mira o teu rosto. Um canto ao vento fluctua, Começa a aurora a cantar: Ó vate, vai-te deitar, Rasga o pandeiro da lua.[93] Anda o luar prateando Os ribeiros palradores. O ar é quente, a seara É como um ninho de amores. Foge, lua, envergonhada, Retira-te lá do ceu; Que o olhar da minha amada Tem mais brilho do que o teu.[94] Tem o brilho das estrellas E o fulgor dos arreboes. Quem me dera com dois beijos Apagar tão lindos soes! Não ha saphiras mais bellas Na grande concha dos ceus. Pois se Deus quiz ter estrellas, Roubou-as dos olhos teus! Á porta do Infinito, A traços largos, profundos, A mão de Deus tinha escripto: «Os teus olhos são dois mundos.[95] Os teus olhos são escuros Como a noite mais cerrada. Apesar de tão escuros, Sem elles não vejo nada. Serve-te a madeixa negra De moldura ao rosto franco, Como se uma toutinegra Pousasse n’um lirio branco.[96] A lua tranquilla dorme Na amplidão celestial, Tal como perola enorme N’uma concha colossal. Ouvi dizer ao luar Com trinados na garganta: «Quem canta seu mal espanta.» E eu puz-me então a cantar.[97] Eu quero que o meu caixão Tenha uma forma bizarra: A forma de um coração, A forma de uma guitarra.[98] Guitarra, minha guitarra, Solta teus ais, minhas queixas. És tu a unica amante Que por outro me não deixas. Vai alta a lua, vai alta, Brilha nos ceus, branca lua. Vem tu vel-a, minha amada, Illuminando esta rua. A lua, onde os olhos fito, A face em nuvens recaia, Como lagrima de prata Na palpebra do Infinito.[99] Ás vezes quando, indeciso, Me curvo p’ra o teu olhar, Vem n’uma lagrima um riso: Raio de Sol sobre o Mar. Pequenas da minha terra, Dou-vos canções, dai-me beijos. A quem sua alma descerra, Vai-se-lhe a alma em desejos. Tenho já sêca a garganta. E como é que isto é não sei. _Quem canta seu mal espanta..._ Puz-me a cantar... e chorei! Tu és o pomo vedado Do Éden da minha vida; Triste illusão do passado Ao meu porvir transmittida.[100] Ha malmequeres pelo ceu --Esse azulino canteiro.-- A lua dá-lhes a côr. É o sol o seu jardineiro. Na noite do meu soffrer Cheia de nuvens sombrias, Ha o canto das nostalgias Da minha alma a envelhecer. Uma noite, no theatro do Principe Real, do Porto, Hylario improvisou esta quadra ás damas: Ai! que lindas pombas brancas Ha no Principe Real! Quem me dera ser o pombo Da que não tenha casal! Depois conservou esta quadra no seu cancioneiro, modificando assim o segundo verso: Vejo n’aquelle pombal! Nas quadras que acompanham o _Fado Serenata_, publicado no Porto por Eduardo da Fonseca, vem uma que não é do Hylario, nem dos poetas seus contemporaneos: Os teus olhos negros, negros, São gentios da Guiné: Da Guiné por serem negros, Gentios por não ter fé. Esta quadra é popular, e mais antiga. Já tinha saido no _Cancioneiro_ de Theophilo Braga em 1867. Ouvi cantar o Hylario no theatro da praia de Espinho, no verão, por occasião de uma récita de caridade que ali se organizou. Cabeça pendida sobre o lado esquerdo, como para ouvir melhor o que dizia o coração, a sua voz soluçava requebrada n’uma especie de arroubo illuminado de inspiração. Assistia a esse espectaculo uma menina portuense (J. L. R.) vestida de preto e toucada com uma rosa; Hylario improvisou em sua honra a seguinte quadra: Ao vêr-te meiga e formosa Nas tuas roupagens negras, Eu cuido vêr uma rosa N’um _bouquet_ de violetas. Hylario tencionava colligir as suas canções n’um volume com o titulo de _Guitarrilhas_. É-lhe attribuida a musica de varios _Fados_. O _Catalogo geral alphabetico do Cancioneiro de musicas populares_ dá-lhe a paternidade de cinco, o que me parece exigir alguma correcção. Indica os seguintes: I--_Cancioneiro_, fasc. 16, «As Estrellas» 1.º fado. Recolhido em Coimbra, 1890. II--_Cancioneiro_, fasc. 13, «A filha do Guadalquivir». É com leves alterações o _Fado_ que nós em Lisboa chamamos «do Roldão». O _Catalogo_ diz ser o 2.º _Fado_ do Hylario, mas o _Cancioneiro_ annota a respectiva melodia dizendo: «Parece que a musa teutonica inspirava o melodista, _que não temos o gosto de saber quem é_.»[101] III--_Cancioneiro_, fasc. 23. _Fado serenata_. Traz a designação de: Musica de Augusto Hylario.[102] [Illustração: FADO SERENATA] Foi este que ouvimos ao proprio auctor em Espinho, e o que, de todos que elle indubitavelmente compoz, se tornou mais popular. Reproduzimol-o na pagina anterior. IV--_Cancioneiro_, fasc. 34, «_O Ultimo Fado_», com a designação de--Musica de Augusto Hylario--e a seguinte nota: «Quando nas férias de 1895, Hylario se hospedou em uma dependencia do escriptorio da nossa Empreza, offereceu-nos esta composição dizendo-nos que era o seu _ultimo fado_, mas que tencionava addicionar-lhe algumas variações, e que reservassemos a publicação para quando elle as tivesse composto definitivamente.» Tambem se popularisou este _Fado_, e por isso o reproduzimos. [Illustração: O ULTIMO FADO] V--_Cancioneiro_, fasciculo 68. «Fada pósthumo do Hylario» com a seguinte annotação: «Este fado foi recolhido em Sinfães pelo ex.ᵐᵒ sr. dr. M. M. Castro Côrte Real, que nol-o enviou com a seguinte nota: «Fado do Hylario (ultimo). O fado (IV) que vem no _Cancioneiro_ com a designação de ultimo é anterior a este. Este é que é geralmente conhecido pelo ultimo; sempre assim o ouvi designar aos estudantes coevos do grande bohemio. A lettra é do ex.ᵐᵒ sr. Luiz Osorio.» Ora este _Fado_ é o mesmo que no Porto foi publicado com o titulo de _Fado do 28_. Pessoa auctorisada, por ser muito competente na materia, diz-me d’aquella cidade que o auctor foi o rapaz cego a quem me referirei no capitulo VI quando tratar do _Fado do 28_. No _Cancioneiro_, fasciculo 60, vem outro _Fado_ relacionado com o nome do Hylario: é dedicado á sua memoria e acompanhado da seguinte lettra: Oh! Hylario, oh! Hylario, Teu nome me dá paixão. O teu fado faz vibrar As cordas do coração. Guitarra, minha guitarra, Solta gemidos e ais; Que os dias passam voando E os prazeres não voltam mais. Guitarras andam de luto, Que o Hylario já morreu. Seu corpo guarda-o a campa, Sua alma voou ao ceu. Oh morte, tyranna morte, Eu de ti tenho mil queixas: Quem has de levar não levas, Quem has de deixar não deixas. Diz a nota respectiva: «Este fado acha-se vulgarisado por todo o paiz com diversa lettra.»[103] Na collecção de glosas de _Fados modernos_, vendida em Lisboa nos kiosques, sahiu um _Fado para o Hylario_, pranteando a sua morte. Transcrevemos a ultima quadra: Calem-se os sons da guitarra Porque o Hylario morreu E foi cantar serenatas Ás virgens brancas do ceu. O Hylario deixou escola em Coimbra, onde tem tido distinctos continuadores do _Fado_ academico. Um d’elles é o sr. Candido de Viterbo, que em 1899 compoz a serenatella para o _Auto da sebenta_, impressa (Coimbra, casa da viuva Paula e Silva) com outros _Fados_, a saber: _Fado do Penedo da Meditação_, _Fado da Quinta das Lagrimas_, _Fado do Penedo da Saudade_, _Fado da Lapa dos Poetas_, _Fado da Fonte da Serêa_. O frontispicio, em lithographia, representa, alem de alguns trechos da cidade de Coimbra, o sr. Candido de Viterbo, de capa e batina, dedilhando a sua guitarra, sentado no alto de um penedo. A lettra d’estes _Fados_ pertence aos seguintes academicos: Augusto Gil, Lopes Vieira, Gomes Lopes, Antonio Macieira, Guedes Teixeira (Fausto Guedes), Teixeira de Paschoaes, Severo Portela, Humberto de Bettencourt, Pereira Barata, Marques dos Santos, Alberto Pinheiro, Mario Esteves e Dom Thomaz de Noronha. Vamos dar alguns _specimens_: De Augusto Gil: Teus olhos, contas escuras, São duas Ave-Marias D’um rosario d’amarguras Que eu reso todos os dias. Canta mais devagarinho, Viterbo, ao seu postigo. Não sei porquê, adivinho Que está sonhando comigo... Donzellinhas, tomai tento, Meninas, não vos fieis. Cantigas, leva-as o vento, Cartas d’amor são papeis. Olhos negros de velludo Heis de fazer-me doutor. Sois os meus livros d’estudo Na faculdade do amor. [Illustração: Guitarra de luxo] De Lopes Vieira: Adeus, rio, choupos, serra, Adeus tudo, tudo emfim! Donzellinhas d’esta terra, Lembrai-vos por cá de mim. Cantarei, na despedida, P’ra onde me leva a sorte, O fado da minha vida, O fado da minha morte. De Antonio Macieira: Andam teus olhos perdidos, Dizes, de tanto chorar. Pois eu perdi os sentidos De os andar a procurar. De Fausto Guedes: Deus que nos vê lá de cima, Alma d’esta alma, querida, Juntou-nos: somos a rima Da linda quadra da vida. De Teixera de Paschoaes: Sepulturas de desejos São teus labios ideaes, Onde vão chorar os beijos Mal empregados nas mais. De Severo Portela: A trança que tu me deste É negra como o carvão. De luto tu me vestiste Dos olhos ao coração. De Humberto de Bettencourt: Perdido todo o juizo, Ia morrendo d’amores: Pôde mais um teu sorriso Que a sciencia dos doutores. De Pereira Barata: Não tenho de ti reserva Pelo mal em que me deixas: Por mais que se pise a herva, Nunca á herva se ouvem queixas. De Marques dos Santos: Ó minha santa madrinha, Isabel de Portugal, Heis de me dar a mézinha Que me livre do meu mal. Dos Olivaes Santo Antonio, Lá no alto idolatrado, Fazei com que as lindas moças Me tenham todas de agrado. De Alberto Pinheiro: Ó Senhora da Bonança, A quem eu reso a chorar: Olhai pela minha amada, Que anda sobre aguas do mar. Dos meus anneis o mais lindo Vos darei quando voltar, E em vossa capella branca Com ella me irei casar. De Mario Esteves: Senhora da minha vida, A trança deitai-a ao vento, Que quanto mais desprendida Mais me prende o pensamento. De Dom Thomaz de Noronha: Nos teus seios de luar Derrama-se o teu cabello, Como uma aurora a brilhar Sobre montanhas de gêlo. Foi Coimbra que deu ao _Fado_ a alta cotação litteraria, que elle tem hoje nas serenatas academicas. Muitas d’essas quadras, que ahi ficam relembradas, são poemas encantadores, _doloras_ suavissimas, verdadeiras obras d’arte em miniatura. Não conheço na poesia popular dos outros paizes, e não a conheço mal,[104] perolas de mais subida concepção poetica do que a maior parte d’essas quadras que pareciam sair da bocca do Hylario como um bando de queixumes estonteados, que algum temporal de amor tivesse desaninhado da alma dos poetas. De mais a mais o _Fado_, transplantado litterariamente para Coimbra, não soffreu uma deslocação violenta como quando entrou, producto exotico, nas salas de Lisboa, e passou da guitarra ao piano. Em Coimbra elle tem conservado toda a sua amargura dolente, continua a ser, na voz dos estudantes, o hymno da desgraça, não da que se debate em abysmos de miseria social, mas em tormentos, certamente exagerados, de amor e de saudade. Prevalece integral no _Fado_ de Coimbra a mesma feição psychica de soffrimento e angustia com que nasceu o _Fado_ de Lisboa. Não tem a desnatural-o a garridice frivola das salas, a inconsciencia musical com que elle é martelado nos pianos alfacinhas sem uma parcella minima de senso esthetico e de vibração emotiva. Em Lisboa alguns poetas «novos» teem seguido o exemplo dos de Coimbra, dando ás coplas do _Fado_ uma expressão accentuadamente litteraria. [Illustração: Guitarra commum] Do sr. Ribeiro de Carvalho citarei os seguintes. Fados 1.º Cantigas do Triste Fado, Bemditas pelo Senhor, Só as inventa quem soffre, Canta-as só quem tem amor... 2.º É um passo da Terra ao Céu, Da Vida á Morte é um ai... Só do meu peito ao teu peito Tamanha distancia vae! 3.º Quem espera sempre alcança, Diz um dictado traidor... E eu espero e desespero, Não alcanço o teu amor! 4.º Dou-te amor, tu dás-me penas, Vives só pela traição... Fazes commercio de injurias, Nem Deus te dá o perdão![105] Logo que a litteratura se apropriou do _Fado_, como de um poema curto e profundo, a arte foi procurar n’elle a alma do povo, o caracter nacional, e á semelhança do que fizera Franz Liszt, inspirando-se nos motivos populares da Hungria, começaram a apparecer as rapsodias portuguezas, o rythmo do _Fado_ foi superiormente glosado por alguns compositores, n’uma alta expressão de technica profissional. As _Rapsodias_ de Victor Hussla contéem _Fados_; Munier compoz um arranjo sobre o _Fado corrido_; Rey Colaço já publicou 8 _Fados_, incluindo o _Hylario_ e o _Corrido_; Moreira de Sá deu recentemente a lume o _Fado choradinho variado_, etc. Foi certamente Coimbra que, fazendo entrar o _Fado_ nos dominios da litteratura, chamou para elle a attenção dos artistas portuguezes e dos estrangeiros que, como Victor Hussla, viveram em Portugal. Dos nossos poetas modernos, aquelles que passaram por Coimbra são pois os que melhor revelam nos seus cantares toda a delicada comprehensão esthetica do _Fado_, toda a sua grande doçura maviosa como expressão sentimental. Lembra-me, a proposito, esta quadra de Antonio Nobre: Meu violão é um cortiço, Tem por abelhas os sons, Que fabricam, valha-me isso, Fadinhos de mel, tão bons! Cito de preferencia este poeta ainda pela circumstancia de que a sua morte prematura inspirou o _Triste Fado_, musica de Julio Silva, lettra de Armando de Araujo. Mas não deixarei em silencio outras quadras, de rapazes que passaram por Coimbra. Ellas dão toda a emoção produzida pelo _Fado_ na alma nacional: Não temos musica é a nossa falha! Sabemos a do vento e mais do mar... É a da India e do campo da batalha, Que o proprio fado é um modo de chorar. FAUSTO (GUEDES). Cantador enamorado Á minha porta a cantar, Não cantes, chora-me o fado, Que o fado fez-se a chorar... (LADISLAU PATRICIO). Eu se o meu fado cantar Sineiro m’ hei de fazer: P’ra todo o povo chorar Quando o meu fado souber. (LOPES VIEIRA). Da academia de Coimbra tem partido a publicação de folhas volantes, editadas pelo livreiro França Amado: uma d’ellas intitula-se _Cantigas para o Fado e para as Fogueiras do San João_. NOTAS DE RODAPÉ: [68] Quando o sr. D. Antonio Ayres de Gouvea, hoje bispo de Bethsaida, foi cursar a Universidade em 1850, ainda os estudantes compunham e cantavam amphiguris. Segundo informação de s. ex.ᵃ, appareceu mais tarde o _Fado de Coimbra_ e depois o _da Figueira_. _Fado_ ainda não era então, em Coimbra, uma designação generica, mas apenas especial d’aquellas duas canções. [69] Emquanto este livro esperava o momento de entrar no prélo, falleceu Urbano de Castro, ás 3 horas da manhã de 6 de novembro de 1902. Aqui fica n’esta pagina um clarão do seu espirito tão finamente litterario. É como se eu plantasse aqui uma saudade. [70] Leia-se: Vê zero. [71] Leia-se: Vê dois ró. [72] Leia-se: F (éfe) primo. [73] Leia-se: M linha. [74] Leia-se: Dêtê. [75] Leia-se: Hidrogénio. [76] Leia-se: Agua. [77] Leia-se: Prata. [78] Leia-se: Potassa. [79] Leia-se: Chloro. [80] Leia-se: Hydrogénio. [81] Leia-se: Antimonio. [82] Leia-se: Agua. [83] Leia-se: Chumbo. [84] Leia-se: Azote. [85] Fasciculo 56. [86] Ficára reprovado em alguns preparatorios e no 1.º anno d’esta faculdade. [87] Esta quadra é de Guerra Junqueiro, na _Morte de D. João_. [88] De Fausto Guedes. [89] De Antonio Nobre. [90] Presumo que esta quadra é do Hylario. [91] Tambem attribuo esta quadra ao Hylario. [92] De Francisco Bastos, estudante brazileiro, morto. [93] De Fausto Guedes Teixeira. [94] Repetimos esta quadra por causa do seu encadeamento com as duas seguintes. Suppomos que é do Hylario. [95] É do Hylario. [96] De Fausto Guedes Teixeira. [97] De Fausto Guedes Teixeira. [98] É do Hylario. [99] Esta e as trez quadras seguintes são de Fausto Guedes Teixeira. [100] Supponho que é do Hylario. [101] Ha manifesta contradicção entre o _Cancioneiro_ e o seu _Catalogo_, de modo que o leitor fica hesitante. O _Cancioneiro_ é um vasto e importante repositorio de canções populares, mas carece de algumas rectificações e de muitas aclarações, o que aliás não admira em obra de tanto vulto. Assim, no fasc. 4., diz que o amphiguri _Duzentos gallegos_ appareceu em 1846 e 1847, sendo porem certo que Filinto Elysio já se refere a elle. Reappareceu n’essa epoca, o que faz differença. No fasc. 56 traz sob o titulo _Remar... remar..._ uma barcarola com a seguinte nota: «É esta barcarola, uma das canções orpheonicas do Mondego, hoje vulgarisada por todo o paiz.» Não cita o nome do auctor, e comtudo eu conheço-o muito bem. Sou eu mesmo, que dos 16 para os 17 annos a compuz: é a «Barcarola de Ismael» no poemeto _A nereida_. Mais tarde, quando inclui este poemeto no livro _Cantares_, procurei corrigir algumas infantilidades, que me saltaram aos olhos. Fiz reparo nos dois seguintes versos: Velas ao vento, Remar, remar. No commum dos casos, se o vento sopra não é preciso remar. Por isso modifiquei assim a barcarola: Do mar no fundo, Sobre as areas, Cantam sereas, Quando ha luar. O mar é lindo N’este momento! Repoisa o vento, Remar, remar. Do mar no fundo, Cheios de aljofres, Ha muitos cofres, Que te hei de dar... O mar é lindo E a tarde é calma. Delira a alma! Remar, remar. Do mar no fundo, Sobre as areas, Cantam sereas, Quando ha luar. O mar é lindo! O ceu convida! O amor é vida... Remar, remar. A barcarola, tal como ella vem no _Cancioneiro_, chega a não fazer sentido logo no primeiro verso, que diz: No mar, no fundo, etc. E padece outras alterações, que facilmente podiam ter sido evitadas. [102] Tambem publicado, com a lettra, nos _Cantos populares_ editados no Porto por Eduardo da Fonseca. [103] Tambem vem publicado na 2.ª série de _Cantos populares_, Porto, editor Eduardo da Fonseca. [104] Consegui reunir na minha modesta livraria 24 volumes sobre a poesia popular das nações da Europa. Estimo muito esta collecção, não só porque não é facil juntal-a, mas porque n’ella encontro bellezas que deixam a perder de vista muitos poetas cultos e gloriosos. [105] No jornal _A Chronica_, n.º 68, do 3.º anno. VI Bibliographia musical do Fado É quasi impossivel coordenar um catalogo completo dos _Fados_ (musica) hoje mais ou menos vulgarisados em Portugal. Succedem-se uns aos outros. Apparecem, alguns d’elles gosam de certa popularidade, e demoram-se até que um novo _Fado_ lh’a roube ou pelo menos cerceie; outros não encontram ecco no gosto publico, passam e esquecem rapidamente. O catalogo alphabetico, que em seguida publicamos, abrange, ainda assim, mais de 100 _Fados_. As indicações bibliographicas, que pudemos reunir, são por vezes deficientes, mas algumas não deixarão de ser interessantes. De muitos _Fados_ se ignora o nome do auctor. A este respeito baldamos longas pesquizas e aturados esforços, mas tivemos de resignar-nos a mencionar apenas o titulo dos _Fados_ por não haver meio de descobrir quaes foram os seus auctores. É possivel que, n’uma nova edição, logrêmos preencher algumas lacunas. Sempre que dissermos _Fados_, deve entender-se que são as composições musicaes d’este nome; quando se trata apenas da cantiga ou lettra, temos o cuidado de o fazer sentir para evitar equivocos. Como entre a entrega do manuscripto ao editor e a publicação do livro mediaram largos mezes, pudemos addicionar a este capitulo alguns fados que foram publicados ou reeditados entretanto; bem como a noticia de outros que chegaram ao nosso conhecimento, e varias indicações que encontramos na imprensa relativas ao assumpto. * * * * * Posto isto, segue o catalogo. =Açoriano= (Fado) Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. =Albertina= (Fado) Editor Raul Venancio, rua do Ouro, Lisboa. =Alcantara= (Fado d’) O sr. Fernando Diniz, professor lisbonense de guitarra, recolhe todos os _Fados_ que vae ouvindo. Possue uma collecção de mais de 60, mas não sabe o nome dos auctores de muitos d’elles. Só por este colleccionador é que tive noticia do _Fado d’Alcantara_. =Alegre= (Fado) Auctora, Theodolinda E. Silva. Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Algarve= (Fado do) Musica de Alberto de Moraes; lettra de Bernardo de Passos. Lettra: Meu doce fado, és tão triste Como á noite a voz do mar; Tão triste, que a quem te canta Dás vontade de chorar. Eu não sei quem fez o fado, Mas tenho d’isto a certeza: Quem lhe deu esta tristeza, Amou e não foi amado. Se um dia a trança te ardesse Nas chammas do teu olhar, Nem talvez todo o meu pranto Pudesse o fogo apagar. Nada maior do que o ceu, Que é immenso como o espaço, Pois o ceu cabe em teus olhos E tu cabes n’um abraço. Teu chorar é uma aurora E dizes que soffres tanto... Mais triste do que o teu pranto É meu rir a toda a hora. Nos braços da cruz morreu Por sina o proprio Jesus. E eu morro longe dos teus, Sendo tu a minha cruz. Editores d’este _Fado_: Benjamin & Filgueiras, Lisboa. =Alijó= (Fado de) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Amanhã= (=O=) Fado. Este _Fado_ era cantado pelo actor Queiroz na revista do anno de 1895, _Retalhos de Lisboa_, por Eduardo Schwalbach Lucci. Foi lithographada a musica na officina da rua das Flores, 13, Lisboa. Basta citar uma ou duas copias para dar idéa da intenção do titulo: De navios é preciso Nossa esquadra guarnecer. Amanhã se trata d’isso, Hoje ha muito que fazer. É força tomar juizo, As finanças recompor. Hoje não, oh que maçada! Amanhã, se faz favor. =Amphiguri= (Fado) Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 49. =Anadia= (Fado) Este _Fado_ nem foi composto pelo penultimo conde de Anadia, como muita gente suppõe, nem teve por berço a villa da Anadia. Testemunha contemporanea (o fallecido Severo Ernesto dos Anjos) contou-me uma vez que o titulo d’este _Fado_ lhe adveio de ter sido offerecido em Lisboa áquelle titular por um musico, de que me disse o nome, que infelizmente esqueci. Vem publicado no 5.º fasciculo do _Cancioneiro de musicas populares_, e ahi se diz que «é uma das musicas no estylo moderno, do genero, mais distincta e não monotona.» Incluido nas collecções das casas Lambertini, Sassetti, etc. de Lisboa, e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto. O conde de Anadia viveu na bohemia elegante, mas não cantava o _Fado_, e supponho que não tocava guitarra. =Antonino= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Armada= (Fado da) Este _Fado_ foi aproveitado por Freitas Gazul na revista de Souza Bastos _Sal e pimenta_. Cantava-o actriz Carmen Cardoso, applicando-lhe quadras allusivas aos vehiculos do empresario Jacinto, que então faziam carreiras nas ruas de Lisboa. Por este motivo se lhe ficou chamando tambem _Fado do Jacinto_. Vide _Jacinto_. =Artilheiro= (Fado) Vide _Fado Robles_. =Até Chora!= (Fado) Composição de Julio Neuparth. =Atroador= (Fado) Incluido na 1.ª série de _Fados_ da casa Sassetti, de Lisboa, e na collecção da casa Eduardo da Fonseca, do Porto. =Ballada= (Fado) Original de Militão Lucio Garcia Coelho, professor de piano em Lisboa. =Beira= (Novo Fado da) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra, na sua collecção. =Bohemio= (Fado) De Reynaldo Varella. Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca. Lettra: Guitarra, minha guitarra, Vamos correr esse mundo. Será, vendo-te a meu lado, Meu pesar menos profundo. Quando eu gemer tu suspira, Sorrirás quando eu sorrir. Havemos assim, guitarra, Prazer e dor compartir. Quando a saudade da amante Vier meus olhos turvar, Tu cantarás, e cantando Minha dor has de acalmar. Entre as folhas orvalhadas Dormem as rosas e os lirios. Não dorme quem tem amores, Porque amores são martyrios. =Branco e Negro= (Fado do) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Brazileiro= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Brilhante= (Fado) Canto nacional para piano por N. S. Propriedade do auctor. Lith. R. das Flores--Lx.ᵃ. =Brisa= (=A=) Fado Composição de Francisco Jorge de Sousa Bahia, professor de musica em Lisboa. =Brisa e Rosa= (Fado da) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Campestre= (Fado) Incluido (com o n.º 23) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 33. =Cantadores= (Fado dos) Incluido (com o n.º 22) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. =Carmona= (Fado) Incluido (com o n.º 20) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 62. =Carriche= (Fado de) Pequena povoação da freguezia do Lumiar, arrabalde de Lisboa, Carriche é um sitio muito frequentado por occasião das esperas de touros, posto já o fosse mais, quando ali havia, ao fundo da calçada, o _Hotel de Nova Cintra_, com uma bella horta para comesainas ao ar livre. Hoje o dono do _Hotel_ veio estabelecer-se no Campo Grande. No sitio, apenas restam algumas tascas, que ainda assim fazem bom negocio em noitadas de touros, e que são habitualmente visitadas pelos saloios que ali passam. =Cascaes= (Fado) Muito vulgarisado. Incluido (com o n.º 18) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti, e na collecção de 8 _Fados_ da casa Lambertini. Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 56. Cascaes é a praia aristocratica de Portugal; a praia da côrte. =Cascos de rolhas= (Fado de) Incluido (com o n.º 27) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. =Casino Lisbonense= (Fado do) Original de João Maria dos Anjos. Veja pag. 68 d’este livro. [Illustração: O guitarrista João Maria dos Anjos] =Cega= (Fado da) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Cegos= (Fado dos) Incluido (com o n.º 17) na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. =Celta= (Fado do) Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 72. =Cezaria= (Fado da) Este _Fado_ para guitarra foi dedicado por Ambrosio Fernandes Maia, como já dissemos, a uma rapariga de nome Maria Cezaria, continuadora das tradições fadistas da Severa. A ella se refere a ultima das seguintes glosas de um _Fado_ moderno: Quando a Severa cantava, Dizem os _faias_ antigos Que a pedido dos amigos Grande copasio empinava. Sem isso bem não cantava, Não _trinava_ com paixão; Mas se via um cangirão Dizia, ao som do fadinho: --Venha lá mais um copinho _D’esse vinho de tostão_. E houve ainda outra _canaria_ Que tambem fazia o mesmo E bebia sempre a esmo, De fórma extraordinaria. Chamava-se ella Cezaria E era como a toutinegra, Que canta sempre com regra Tendo vinho ou agua-pé, Pois já dizia Noé: _Só o vinho nos alegra._ (Transcriptas do _Almanach da Severa_ para 1902). Chegou! chegou! O mesmo que _Fado Visconti_. Vide _Visconti_ =Chiado= (Fado do) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra. =Choradinho= (Fado) O _Cancioneiro de musicas populares_ (fasc. 18) traz este popularissimo _Fado_ com a seguinte annotação: «Recolhido em Lisboa, em 1850. Este é um dos fados propriamente ditos, e dos mais antigos, por onde se moldaram outros muitos que posteriormente appareceram.» Não ha duvida que é, chronologicamente, dos primeiros. Mas o primeiro decerto não foi. (Vide _Fado do marinheiro_). Bem podia elle ter estabelecido o typo d’este genero de canções a julgar pela sua grande espontaneidade de sentimento, singela e profunda. Todavia a designação de _Fado choradinho_ parece indicar que já havia outros, e que este se distinguia por um tom ainda mais plangente, d’onde lhe viera o nome. Em verdade, dir-se-ia um rosario musical feito de gemidos e suspiros. O _Cancioneiro_ dá-lhe a lettra de algumas quadras populares, taes como esta: Quem tiver filhas no mundo Não falle das malfadadas: Porque as filhas da desgraça Tambem nasceram honradas. É claro que se lhe póde applicar qualquer outra lettra. Este _Fado_ está vulgarisadissimo. Em Lisboa anda nas collecções das casas Sassetti, Engestrom, Lambertini, etc. No Porto, Moreira de Sá escreveu sobre elle variações para piano, para rabeca, bandolim ou flauta com acompanhamento de piano ou de violão e guitarra. Em Lisboa, Rey Colaço tambem glosou o _Fado choradinho_; dizia o jornal _Novidades_, de 31 de janeiro de 1903: «Foi agora posto á venda mais um trabalho do illustre pianista Rey Colaço, uma das mais poderosas organisações artisticas do nosso paiz. É um fado (choradinho), e, como todas as producções inspiradas na melopeia que é o caracteristico da nossa raça, esta de Rey Colaço é cheia d’uma melancolia de poente do outono, terna e triste como uma despedida. «O delicioso fado, que é dedicado ao sr. Raul Lino e estampa no frontispicio a reproducção da casa portugueza que aquelle architecto anda a construir para Rey Colaço, está á venda em todos os armazens de musica.» =Choramigas= (Fado) Incluido (com o n.º 34) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. =Cigarreiras= (Fado das) Incluido (com o n.º 26) na 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. =Cinira Polonio= (Fado) É o nome da gentil actriz brazileira, que durante muitos annos viveu e representou em Portugal, e que está actualmente na sua patria. Este _Fado_ foi recolhido pelo sr. Fernando Diniz (logar citado). =Cintra= (Fado de) Auctor, A. dos Santos Garcez. =Coimbra= (Fado de) Publicado no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 29. Incluido (com o n.º 8) na 1.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. Collecção de fadinhos (Vide _Fadinhos_). =Corrido= (Fado) O _Cancioneiro de musicas populares_ diz que este _Fado_ já era popularissimo em 1870, e dá-lhe a lettra de algumas quadras que andam na tradição oral. Mas o _Corrido_ não é mais que o simples acompanhamento do canto. Sobre este typo melodico teem sido bordadas muitas variantes por Alexandre Rey Colaço, Reynaldo Varella, Militão e outros, incluindo um compositor extrangeiro, Munier. O _Fado corrido_ anda em todas as collecções. =Cotovia= (Fado da) Não sei o nome do auctor. =Custodia= (Fado da) Auctora, Custodia Maria. É antigo. =Damas= (Fado das) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Desfalque=, =O= (Fado) Cantado na revista do anno, _Agulhas e alfinetes_, de Eduardo Schwalbach Lucci. =Dez mandamentos= (Fado dos) Por uma referencia do livro _In illo tempore_, de Trindade Coelho, sabemos da existencia d’este fado: «um condiscipulo que nós tinhamos chamado Miguel Dias, que era doido por musica, e levava o tempo a tocar violão, e a cantar o fado dos _Dez mandamentos_». =Diario de Noticias= (Fado do) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra. =Dias de Souza= (Fado) O sr. J. Dias de Souza é aspirante dos telegraphos no Porto, collaborador de varios jornaes, auctor de alguns fados e acompanhador, á viola, dos primeiros guitarristas portuenses. Antonio Mouson não gosta de tocar sem ser acompanhado por elle. Nascido no Porto, baixo e extremamente magro, Dias de Souza, que não conta mais de trinta e tantos annos, tem uma physionomia illuminada por uma dupla expressão de intelligencia e bondade. =Domingos de Campos= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Eduardo Silva= (Fados) 1.º, 2.º e 3.º Recolhidos pelo sr. Fernando Silva na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Elegante= (Fado) Nada pude apurar a respeito do nome do auctor. =Elite= (Fado da) Composição do sr. Carlos Stuart Torrie, actualmente residente em Lisboa, mas oriundo de uma familia portuense. Este _Fado_, foi editado pelo proprio auctor, em 1900. Tem segunda edição. A lettra é do sr. Mattoso da Fonseca. Transcrevemos as primeiras trez quadras: Morenas prendem á terra Na graça do seu sorriso. Louras levam-nos ao ceu, Aos sonhos do Paraiso. Tens a candidez dos lirios, A graça das borboletas, A modestia dos martyrios, O pudor das violetas. Através o veu subtil O seu olhar feiticeiro Brilha como o sol d’abril Em manhãs de nevoeiro. =Estoril= (Fado do) É o n.º 25 da 3.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. O Estoril, sobre a linha ferrea de Cascaes, é hoje um dos sitios mais elegantes que a população de Lisboa procura para veranear. Possue lindos e numerosos _chalets_, um estabelecimento thermal, magnifico _hotel_, matta sombria, e uma excellente praia de banhos. Com o Mont’Estoril, S. João do Estoril e Parede, constitue actualmente uma nova serie de estações balneares, que se povoaram dentro de poucos annos, e que fazem grande concorrencia a Cascaes. =Estudante= (Fado do) Do seu auctor apenas sei que tem o appellido Leite. =Estudantes= (Fado dos) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 56. =Fadinho liró= Composição de Francisco Jorge de Souza Bahia. =Fadinhos= (Collecção de) Auctor, Moraes. Esta collecção foi editada pela casa Moreira de Sá, no Porto. =Fadinhos Portuenses= Só a lettra, e sem valor litterario. Collecção publicada no Porto pela _Livraria Portugueza_, de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5. Conheço o fasciculo 2.º, que comprehende: Fadinho Brazileiro, Fado dos Amantes, Fado de S. Martinho, Fado do Caminho de Ferro. Transcrevemos este ultimo: Da estação de _Lisboa_ Ao _Poço do Bispo_ salto, Vi os _Olivaes_ no alto, Mais _Sacavem_, cousa boa; Á _Povoa_ fui dar á tôa, De longe _Alverca_ avistei, De _Alhandra_ me aproximei, _Villa-Franca_ tambem vi, No _Carregado_ desci, Por _Azambuja_ passei; Eu vi do _Reguengo_ a ponte, E de _Sant’Anna_ tambem; Vi o _Valle de Santarem_, Mais de _Santarem_ o monte; _Valle de Figueira_ defronte, _Matto de Miranda_ a par, Fui _Torres-Novas_ passar, Parei no _Entroncamento_; De _Paialvo_ n’um momento A _Chão de Maçãs_ fui dar; De _Caxarias_--que tal? Na _Albergaria_ me puz; De _Vermoil_--catrapuz! Dei co’ os ossos no _Pombal_; A _Soure_ fui menos mal, P’ra _Formoselha_ voei, P’ra _Taveiro_ nem olhei, Em _Coimbra_ quiz descer; Depois de _Souzellas_ ver, Á _Mealhada_ cheguei; P’ra _Mogofores_ segui rumo, Eu vi do _Bairro Oliveira_; De _Aveiro_--que brincadeira! Para _Estarreja_ fiz fumo; Em _Ovar_ me puz a prumo, No _Esmoriz_ quiz saltar, Pelo _Espinho_ ali ficar, Quiz ver a _Granja_ primeiro, P’ra _Valladares_ fui ligeiro, Té que ao _Porto_ fui parar. =Fado= (Novas cantigas do) Por Jayme de Sá. É publicação anterior a 1882, e foi feita no Porto pelos editores Clavel & C.ᵃ, rua do Almada 119-123. =Fado= (Um) Vide Rey Colaço e _Fado plagiario_. =Fado= (Um) Para piano por D. Laura Gentil. Lisboa. =Fado Nocturno= Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. =Fado Novo= Auctor, Raymundo Varella. =Fado Novo= Na revista _Beijos de burro_, representada em abril de 1904 no theatro do Rato em Lisboa. =Fado Serenata= Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. Vide _Sinhá_. =Fados= Rapsodia de _Fados_, para piano, composição do professor da «Tuna do Diario de Noticias», Augusto Machado. Dedicados á sr.ᵃ D. Maria Guerra Quaresma Vianna. Estão impressos, mas já antes haviam sido executados em publico. =Fados= Por Veterano. Só a lettra, publicada no Porto, em 1902. São cinco fados, contendo allusões pessoaes, como os seus titulos indicam. =Fados= Para piano, «escriptos expressamente para o «_Auto de Misericordia_», do Ex.ᵐᵒ Snr. Severim de Moraes, peça representada no Theatro D. Amelia, no sarau dos distinctos estudantes da Escola Polythecnica por A. Mantua». São dois _Fados_. A lettra, como acima se diz, é de Severim de Moraes. Do 1.º Fado: Não te cances a estudar, Toma tento com a morte: Que passar ou não passar É tudo questão de sorte. Do 2.º Fado: Quando em noutes de luar Sósinha cantas o _Fado_, Ouve-se alguem soluçar No velho quarto do lado. Sou eu que sonho acordado, Sou eu que estudo e versejo; Sou eu que em sonhos te vejo, Ó dona do triste _Fado_. =Fados modernos= (Collecção de) Só a lettra, e sem valor litterario. Publicada no Porto pela _Livraria Portugueza_ de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5. Contém: Fado dos janotas (primeira parte), fado do adeus do degredado, fado do verdadeiro amor, fado da velha presumida, fado do pescador, fado do cego e o cão. Fado do meu coração (segunda parte), fado do medo da trovoada, fado do beijo, fado do pastor, fado do meu anjo. Fado da saudade (terceira parte), fado de Lisboa, fado da minha guitarra, fado do engeitado, fado da donzella e o espelho, fado do pastor. Fado do exercito (quarta parte), fado do ramalhete, fado da ultima vontade, fado das tesouras, fado dos ladrões, fado das guitarras. Fado do noivado (quinta parte), fado do meu desejo, fado do amor, fado do escravo, fado d’um baptisado, fado dos padeiros. Fado dos animaes (sexta parte), fado do que eu amo, fado do jantar, fado das cosinheiras, fado das torradinhas. Fado do engeitado (setima parte), fado dos dois esposos, fado da mulher, fado das eleições, fado do casamento, fado do bebado. Fado das aves (oitava parte), fado do leque, fado da desgraçada, fado do desafio, fados das fructas. Não sei se n’esta mesma collecção ou n’outra, da mesma casa, anda a lettra dos seguintes Fados: Do Marquez de Pombal, de Luiz de Camões, da Portugueza, da Deusa Venus, Lisboeta, Bréjeiro, do Exercito, Descriptivo, Tripeiro, da Maia, etc. Estes dois ultimos já se vendiam (1884) na antiga _Livraria Civilisação_, do Porto, rua de Santo Ildefonso. É curioso que no texto de qualquer dos dois _Fados_ não haja nenhuma composição que justifique o titulo. Sob a designação de _Fadinho Tripeiro_ estão incluidos: A joven seduzida, A phylloxera, Não posso deixar de amar, Poucos se affastam do vicio; e sob a designação _Fadinho da Maia_: O mendigo, A miseria, Não chores! As criadas de servir. Vide _Fadinhos Portuenses_. =Fados modernos= Collecção de 99 cantigas sob o titulo--_A Guitarra d’ouro_. Collaboração de Augusto Garraio, Luiz de Athaide, Luiz d’Araujo, Joaquim dos Anjos, Armelindo Veiga, Baptista Diniz, A. Roldão, Carlos Harrigton, Celestino da Silva, Coimbra Lobo, Dupont de Souza, Eduardo Fernandes, Ernesto Varella, Feliciano Correa, J. Rodrigues Chaves, Julio Dumont, J. I. d’Araujo, Penha Coutinho, Salomão Guerra e F. Napoleão de Victoria. =Figueira da Foz= (Fado da) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 28. É o n.º 2, com o epitheto de «rigoroso», da 1.ª serie da casa Sassetti. Tambem publicado pelas casas Engestrom e Lambertini, de Lisboa; e Eduardo da Fonseca, do Porto. =Fonte da Sereia= (Fado da) É o n.º 6 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra. A Fonte da Sereia, que deu o titulo a este _Fado_, pertence á bella Quinta de Santa Cruz em Coimbra. Hoje construiu-se n’essa magnifica vivenda d’outr’ora um bairro novo, mas crèmos que a _Fonte da Sereia_ subsiste de pé. =Furnas= (Fado das) Musica de Alberto de Moraes; lettra de Candido Guerreiro. Este _Fado_ deve ser de inspiração michaelense, porque o valle das Furnas é o sitio mais bellamente pittoresco da ilha de S. Miguel. =Garoto= (Fado do) Lettra e musica de D. Ernestina Leite. D’este _Fado_, bem como do anterior, são editores Benjamin & Filgueiras, Lisboa. =Gato= (Fado do) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 63. É o n.º 6 na 1.ª serie da casa Sassetti. O mesmo que _Fado Taborda_. Vide _Taborda_. =General Boum= O n.º 14 na 2.ª serie da casa Sassetti. _General Boum_ é o nome de uma das personagens da operetta _A Gran-Duqueza de Gerolstein_. =Graça= (Fado) A justificação do titulo está no facto de ter sido dedicada esta composição ao sr. Silva Graça, proprietario e director do jornal _O Seculo_. =Guitarra= (A) =d’Almaviva= Canções da plebe (collecção de _Fados_, cantigas) por Adelino Veiga. Porto, 2.ª edição, 1882. =Hylaria= (Fado da) Publicado pela casa Engestrom; Lisboa. =Hylario= (Fado ao) Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 229. =Hylario= (Fados do) Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 225. =Jacinto= (Fado do) Veja-se _Armada_. Jacinto era o nome do empresario de uns vehiculos, que faziam carreiras nas ruas de Lisboa. Como os _Ripperts_, a empresa resistiu por muito tempo, e ainda mais do que elles, á concorrencia dos carros americanos. Esta resistencia tornou-se celebre pela tenacidade, apesar da pesada contribuição que a camara municipal impoz ao Jacinto. Por fim, a sua empresa seguiu o exemplo dos _Ripperts_ e deixou-se absorver pela companhia dos americanos, com a qual se fundiu. Agora vieram os carros electricos e metteram os americanos n’um chinelo, como estes tinham mettido os _Ripperts_ e os _Jacintos_. É a lei do progresso: _Celi tuera cela_. =Janotas= (Fado dos) Auctor, J. R. Cordeiro. =João Blach= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =João de Deus= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 73. =João e Helena= (Fado) É o n.º 21 na 2.ª serie da casa Sassetti. =João Maria dos Anjos= (Fado) Composto em 1868. =Jorge da Silva= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =José Ricardo= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz. José Ricardo é o actor d’este nome. =Lamparina= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Lapa dos poetas= (Fado da) É o n.º 5 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a viuva Paula e Silva. A Lapa dos poetas é um logar celebre e pitoresco na quinta das Cannas em Coimbra. =Lazarista= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 73. =Leandro= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 69. =Leça= (Fado de) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 59. É o n.º 16 na 2.ª serie de _Fados_ da casa Sassetti. Leça da Palmeira, certamente. Assim se chama a villa que se defronta com a de Mattosinhos (arrabalde maritimo do Porto). O rio Leça, separando as duas povoações, deu o nome a uma d’ellas. Tambem nos suburbios do Porto ha Leça do Bailio, notavel ainda hoje pelo seu templo gothico, que pertenceu á ordem militar de S. João de Jerusalem. O _Fado_ deve ser de Leça _da Palmeira_, terra de marinheiros e, por conseguinte, de guitarras. =Leixões= (Fado de) Este _Fado_ é o n.º 35 na 3.ª serie da casa Sassetti. Leixões, penedia distante meia legua da foz do Leça, deu o nome ao porto artificial que procurou evitar os perigos da barra do Porto para navios de maior tonelagem. Tem um _Fado_, e já teve um poema (heroe-comico) _As viagens a Leixões_, publicado em 1855 por Alexandre Garrett, irmão do visconde de Almeida Garrett. =Limoeiro= (Fado do) Composição do Padre Borba. =Linda-a-Velha= (Fado de) Musica de Alberto de Moraes; lettra de Alfredo Portugal. Editores, Benjamin & Filgueiras, Lisboa. Linda-a-Velha (Ninha-a-Velha se dizia antigamente) é uma graciosa povoação, que se ergue sobre um cabeço, na freguezia de Carnaxide, dominando o largo panorama do Tejo. =Liró= (Fadinho) Vide _Fadinho liró._ =Lisbonense= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 22. É o n.º 5 na 1.ª serie da casa Sassetti. Tambem publicado pelas casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa; e Eduardo da Fonseca, do Porto. Foi seu auctor João Maria dos Anjos. =Livro d’ouro do fadista= Nova collecção de fados para cantar ao piano e á guitarra, escriptos e recopilados por Faustino Antonio da Cunha. Porto, 1878, Editora--Livraria portugueza e extrangeira. =Luar= (Ao) Fado muito facil para piano por Antoine de Ferrière. Editora, a livraria Avellar Machado. Lettra: duas quadras apenas. =Luiz Petroline= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Machado Corrêa= (Fado) Supponho que Machado Corrêa é o jornalista d’estes appellidos, que collaborou na _Tarde, Dia e Novidades_, foi ponto de theatro em Lisboa, auctor dramatico, e que tendo ido para o Pará, como secretario da empresa Sousa Bastos, por lá se deixou ficar, passando depois para o Rio de Janeiro. Ultimamente regressou a Lisboa. =Madrugada= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 27. =Maggioly= (Fado) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 5.º. Maggioly é o appellido de um dos nossos melhores tocadores de guitarra. Veja pag. 63 d’este livro, nota. =Marinheiro= (Fado do) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 68. =Marinheiro= (Fado do) Este Fado é differente do anterior. Parece ser dos primeiros que se vulgarisaram em Lisboa, segundo informa o velho guitarrista Ambrosio Fernandes Maia. Elle não tem ideia de outro qualquer Fado mais antigo. =Maritimo= (Fado) É o n.º 9 na 1.ª serie da casa Sassetti. =Meiguinho= (Fado) Por Alberto Pimenta: Porto, 1901. Lettra de Campos Monteiro. =Meu= (O) =enlevo= Fado muito facil para piano por A. Dourade. Editora, livraria Avellar Machado, Lisboa. Lettra: duas quadras apenas. =Monchique= (Fado de) Lettra e musica de Alberto de Moraes. Editores: Benjamin & Filgueiras, Lisboa. Monchique é, como se sabe, a «Cintra» do Algarve. =Mondego= (Fado) Editor, Raul Venancio; rua do Ouro, Lisboa. =Morenas= (Fado das) Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca. Crêmos que foi recolhido na provincia. Tem lettra, que não pudemos obter. =Mouraria= (Fado da) É o n.º 31 na 3.ª serie da casa Sassetti. Tambem anda nas collecções das casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa; e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto. Mouraria é, como se sabe, um dos bairros fadistas de Lisboa. =Mousão= (Fado) O sr. Antonio Mouson (é assim que o seu appellido deve escrever-se) nasceu no Porto e foi discipulo, em guitarra, de João Maria dos Anjos. O seu nome inscreve-se entre os dos primeiros guitarristas portuenses, que são, além d’elle, Chico Brandão e Guilherme de Campos. Dizem-me d’aquella cidade, a seu respeito: «É o mais fecundo auctor de fados, o mais sentimental na expressão e no canto, fino rapaz de sala, fallando distinctamente o castelhano, o francez e italiano, um dos melhores _vivants_ da _troupe_ bohemia.» Outra informação acrescenta: «De altura regular, robusto e valente, é, a par d’estas qualidades physicas, um excellente rapaz, coração de ouro e alma educada para comprehender e sentir todos os grandes affectos, todas as grandes dores. O Porto inteiro o conhece e estima; tem muitos amigos e admiradores. «É frequentador dos theatros, bailes de mascaras e dos cafés, especialmente do _Portuense_, onde se encontra todas as noites. «Apesar de ter a cabeça quasi branca, não conta mais de 36 annos. «Dedilhando a guitarra, entoa fados deliciosos, que as mulheres escutam com enlevo. «Já se tem feito ouvir nos nossos theatros e nas praias, portuguezas e hespanholas, sempre com vivo enthusiasmo e ruidosos applausos.» =Mulher= (Fado da) Recolhido pelo sr Fernando Diniz, professor de guitarra. =Muller fils= (Fado) Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz. =Nacional= (Fado) Composto por João Maria dos Anjos. Vem incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 54. É o n.º 12 na 1.ª serie da casa Sassetti. =Nazareth= (Fado da) Nazareth, praia de banhos na Extremadura, districto de Leiria. Terra celebre pelo famoso milagre com que ali foi favorecido D. Fuas Roupinho. =Noite serena= (Fado) Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa. =Notas falsas= (Fado das) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra. =Novo fado= Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz. =Olinda= (Fado serenata) De Jacinto Freire. Editor, Eduardo da Fonseca, Porto. Lettra: Musa, dá-me inspirações Para o meu fado cantar, Que enterneçam corações E que os façam palpitar. Cordas da minha guitarra, Soltae uns tristes gemidos, Lembranças da mocidade, D’esses tempos tão queridos. As minhas tristes canções, Repassadas de amargura, São saudades desfolhadas Pelas noutes sem ventura. Teus olhos de côr tão negra, Brilhantes, meigos e lindos, Desejos accendem n’alma De beijos loucos, infindos. =Palmyra Bastos= (Fado) Pelo actor Roldão. Editora, a livraria Avellar Machado; Lisboa. Este _Fado_ chamou-se assim em razão de ter sido cantado por aquella actriz na revista _Tim-tim por tim-tim_. Traz o retrato de Palmyra Bastos, a lettra em verso, e um artigo em prosa assignado por Julio de Menezes. =Parodia= (Fado da) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção. =Pedro Rolla= (Fado) Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz. =Pedrouços= (Fado de) O sr. Simões Ratolla, excellente consultor sobre tudo que diz respeito a Pedrouços, teve a gentileza de me fornecer a seguinte informação: «O _Fado de Pedrouços_ não tem lettra. A musica é de Antonio e Eduardo Castello Branco. Possuo um exemplar impresso, para piano, com 12 pautas, e com o n.º 982, que julgo ser de chapa. «Nas caixas de musica, de 4 _Fados_, encontra-se um com a indicação: _Fado de Pedrouços--Branco_. «É o mesmo _Fado_; evidentemente só ha um _Fado de Pedrouços_.» =Penedo da meditação= (Fado) É o n.º 1 da Collecção do estudante Candido de Viterbo, publicada em Coimbra. Editora, a viuva Paula e Silva. O «Penedo da Meditação», que fica nas proximidades de Cellas, é um dos sitios mais pittorescos e mais decantados dos arrabaldes de Coimbra. =Penedo da saudade= (Fado do) É o n.º 4 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra. O «Penedo da Saudade» é uma das mais encantadoras paragens do formoso aro que circumda a cidade de Coimbra. Sitio predilecto dos estudantes, como o «Penedo da meditação». Diz a lenda que D. Pedro I frequentava muito este logar, onde desafogava saudades da sua querida e desditosa Ignez. =Pimpão= (Fado do) Para piano e canto. Lettra de _Pan Tarantula_. Musica de Arthur Davis Tavares de Mello. Na capa reproduz em miniatura o frontispicio de um numero do periodico _O Pimpão_. Duas quadras, das seis que constituem a lettra: O _Pimpão_ é rei da troça, O _Pimpão_ é rijo d’aço! O _Pimpão_ entra na choça, O _Pimpão_ entra no paço! Do _Pimpão_ nasce a Folia, Do _Pimpão_ Jubilo brota, Do _Pimpão_ surde a Alegria Do _Pimpão_ salta a Risota! Este _Fado_ foi publicado pela empresa da folha humoristica _O Pimpão_. =Pina= (Fado do) Composição de Julio Neuparth. =Pintasilgo= (Fado do) Auctor, Rey Colaço. Veja-se este nome. =Pisões= (Fado dos) É o n.º 32 na 3.ª serie da casa Sassetti. =Pitada= (Fado do) É o n.º 19 na 2.ª serie da casa Sassetti. =Plagiario= (Fado) Por A. B. Ferreira Junior. Editor, Eduardo da Fonseca; Porto. O auctor intitulou assim a sua composição, porque n’ella imita outra de Rey Colaço, _Um Fado_, que está incluido nos 5 a que fazemos referencia no principio da noticia Rey Colaço. =Pobre preto= (Fado do) Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa. =Popular= (Fado) Na 2.ª serie da casa Eduardo da Fonseca, do Porto. =Porto= (Fado) Encontro uma referencia a este _Fado_ no _Livro d’ouro do fadista_, Porto, 1878. Diz assim: Conhecendo o meu destino, Julgando-me um desgraçado, Dediquei-me d’alma e vida Ás raparigas do fado. Cantava ao som da guitarra (Quantas vezes já tão torto!) Um _fadinho_ muito usado, Chamado o _Fado do Porto_. =Povo= (Fado do) Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa. =Primavera=, A (Fado) Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca. Vem acompanhado de lettra, que principia: De tarde, virei da selva, Sobre a relva, Os meus suspiros te dar; E de noite, na corrente, Mansamente, Mansamente te embalar! =Primeiro Fado= De Luiz Pinto d’Albuquerque. Offerecido a Rey Collaço. Publicado no Porto, por Moreira de Sá. Traz as seguintes quadras: O meu amor, que exquisito... Sendo rosa desmaiada, De cada vez que eu a fito Torna-se logo encarnada! Sei os segredos das rosas, Da branca e da encarnada. A encarnada anda d’amores; Da branca não digo nada... =Quinta das lagrimas= (Fado da) É o n.º 3 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra. A _Quinta das lagrimas_, em Coimbra, é uma propriedade celebre pela sua belleza e pela lenda. Uma fonte, chamada _dos amores_, ainda hoje mantem a tradição. Dos amores de Ignez, que ali passaram. Vêde que fresca fonte rega as flores, Que lagrimas são a agua, e o nome amores. =Rabicha= (Fado da) É o n.º 30 na 3.ª serie da casa Sassetti; Lisboa. Rabicha é o logar que fica sob o arco grande do aqueducto das Aguas Livres, em Lisboa. Ha ali hortas, retiros, muito frequentados por fadistas e outra gente de vida airada. Não ha dia em que se não cante o _Fado_ n’aquelle rincão votado ao prazer do canto e do copo. =Recreio musical= (Fado do) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra. =Rey Colaço= (Fados de) Estão publicados 8. Cinco d’elles não teem nome especial. Os outros intitulam-se: _Hylario_, _Corrido_ e _Pintasilgo_. Um d’aquelles cinco é offerecido á sr.ᵃ duqueza de Palmella. Alexandre Rei Colaço é um brilhante pianista, professor do Conservatorio. Os seus _Fados_ são verdadeiras rapsodias portuguezas, variações artisticas sobre motivos populares. Quasi todos são acompanhados de uma ou duas quadras colhidas na tradição oral. Lia-se no _Diario de Noticias_, de janeiro de 1904: «N’uma linda edição feita por uma das primeiras casas editoras de musica da Allemanha, acaba de ser posta á venda a encantadora e popularissima collecção de fados do nosso eminente pianista e professor Rey Colaço. «A impressão é muito nitida e perfeita. A capa, para que tudo tenha o sabor portuguez, é uma curiosa e magnifica reproducção a côres do nosso lenço popular, o celebre lenço da estamparia do Bolhão, orlado d’arabescos com caracter genuinamente oriental. «A collecção comprehende oito fados--os que são propriedade do compositor, porque o 2.º é do sr. Sassetti--entre esses fados ha o «Choradinho», o «Corrido», o «Hylario», o «Pintasilgo» e esse «primeiro fado» que tem corrido o paiz e que todos os amadores gostam de tocar, e toda a gente gosta d’ouvir. «Este «primeiro» fado foi levemente modificado n’um sentido mais artistico e musical. «A mencionar ainda a deliciosa «Canção das Serras», talvez a mais bella pagina de Colaço, n’um rythmo originalissimo--o mesmo da «Canção do Mondego»--digna de figurar ao lado das «Feuilles d’album» do Grieg. Pediriamos ao delicadissimo compositor que nos desse mais d’estas «Feuilles d’album», genero que elle, como ninguem, póde cultivar entre nós com exito. «Uma collecção que todos os «dilettantes» devem ter sobre a sua estante.» =Ribatejo= (Fado do) Conheço muito bem a musica d’este _Fado_, que pela primeira vez ouvi em 1901. Não sei quem é o auctor. Tambem não sei se ha apenas a musica ou se anda acompanhada de lettra especial. Creio que a sua área de divulgação se circumscreve ás povoações ribeirinhas mais proximas de Lisboa. Em Santarem não é conhecido, como d’ali me diz o sr. João Arruda, redactor do _Correio da Extremadura_, em carta que vou transcrever, porque n’ella se encontram algumas rapidas informações que confirmam asserções minhas, expostas no texto d’este livro. Diz o sr. Arruda: «Não se conhece nenhum fado do Ribatejo e quanto a _fados locaes_ diz-me um regente de musica muito distincto, que ha aqui, _que todos nascem em Lisboa_. Por aqui temos o _verde-gaio_, _o balhariló_ e outras cantigas. «Tambem consultei o mestre da banda de caçadores 6, e um amador de musica, que muitos annos dirigiu a Academia Bellini, e elles nada conhecem, tendo aliás feito alguns fados _baseados no que existe_.» =Ribeira Nova= (Fado da) Na collecção da casa Lambertini. =Rigoroso= (Fado) O mesmo que _Fado corrido_. Vide _Corrido_. É o simples acompanhamento para as trovas de qualquer _Fado_. Palmeirim diz a respeito da Severa: «O orgulho de se considerar a primeira da sua classe, de ouvir o seu nome celebrado em todas as _banzas_, e os seus amores assoalhados em todos os fados, «desde o _rigoroso_, que não consente variações», até ao mais artistico, em que a voz adormece, e acorda em requebros languidos, tornavam-n’a surda á voz da consciencia». =Robles= (Fado) J. R. Robles, que foi 1.º sargento de cavallaria e agora é empregado da Companhia dos Tabacos, em Lisboa, já vem mencionado a pag. 63 d’este livro entre os melhores tocadores de guitarra. Este Fado anda na 2.ª série da casa Eduardo da Fonseca, Porto, e foi incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 57. O seu auctor compol-o de 1879 a 1880. Estando por esse tempo em Evora, ahi se generalisou o seu _Fado_. Em 1900, havendo tido baixa no exercito, deu-o a rever em Lisboa a pessoas competentes, e depois o publicou. O _Fado Robles_, que algumas pessoas denominam _Artilheiro_, tambem é popular no Porto, onde o auctor fez serviço militar até janeiro de 1891. =Roldão= (Fado) Este _Fado_ foi cantado pelo actor Roldão na peça _José João_ (parodia) que se representou no theatro do Principe Real em Lisboa. O auctor da peça, e, portanto, das coplas é o sr. Eduardo Fernandes (_Esculapio_), antigo redactor do _Seculo_, hoje do _Diario_. A musica e a lettra foram editadas pela Livraria Popular, de Francisco Franco, travessa de S. Domingos, Lisboa. O frontispicio é illustrado com dois retratos do actor Roldão e com uma scena da peça. Um dos retratos representa aquelle actor vestido de fadista, guitarra em punho, tal como apparecia no palco. Dizeres do frontispicio: Fado Roldão, cantado pelo auctor, etc. Ora, como já dissemos em outro logar, este _Fado_ é, com leves alterações, especialmente na 2.ª parte, a canção _Hija del Guadalquivir_, que estava publicada desde 1894, no Porto, em o _Cancioneiro de musicas populares_. Não dizemos isto como censura, mas apenas para notar uma coincidencia casual, que muitas vezes se tem dado na poesia e na musica. O actor Jorge Roldão nasceu em 1859: foi musico de infantaria 16; entrou para o theatro como executante na orchestra; depois passou a ponto, e de ponto a actor. Trabalhou no Porto, nos theatros D. Affonso e Carlos Alberto; em Lisboa tem trabalhado nos theatros da Rua dos Condes, Principe Real, Trindade e Avenida. Artista de merito secundario, é comtudo uma «utilidade». Roldão cantava o «seu» _Fado_ em ré maior. No folheto _Fados modernos_ vem a lettra de um _Fado para o Roldão_. =Rosa de Vila= (Fado) Composto pelo sr. Julio Neuparth expressamente para ser cantado pela artista d’aquelle nome na festa de caridade realizada no Colyseu dos Recreios, a 26 d’abril de 1904, em beneficio da classe dos vendedores de jornaes de Lisboa, após a _gréve_ dos typographos. =Rosas= (Fado das) Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. =Ruas= (Fado das) É o n.º 23 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa. =Salas= (Fado das) Na collecção da casa Engestrom e da casa Sassetti, de Lisboa; e na de Eduardo da Fonseca, Porto. =Santo Thyrso= (Fado de) Apenas existe a lettra, que recolhi no livro _Santo Thyrso de Riba d’Ave_, e que foi composta por um pobre carpinteiro d’aquella villa, Narciso Ferreira d’Araujo, o _Ferreirinha_, quando partiu para o Brazil, onde falleceu. Adaptava esta lettra a qualquer _Fado_ dos até então conhecidos. =Saudade= (Fado) Para piano, por Herminio dos Anjos. Homenagem ao inconfundivel poeta das «Peninsulares». Editora, livraria Avellar Machado. Traz no frontispicio o retrato de Simões Dias, e n’uma folha appensa esta «silva de cantigas» do mesmo poeta, para serem cantadas com a musica do _Fado_: O peixe vive nas aguas, Vive a flor entre abrolhos, Só eu não vivo um instante Longe da luz dos teus olhos. Cada vez que a tua falla Vem morrer nos meus ouvidos, De sobresalto e de gosto Perco de todo os sentidos. Tu és o raiar da aurora Que no puro azul divaga, Eu, frio sol que descora, E pouco a pouco se apaga. Saudades que me vão n’alma Ninguem as póde contar, São tantas como as estrellas, Como as areias do mar. Meu amor se andas perdido Sem saber quem te perdeu, Nos meus olhos tens a escada Por onde se sobe ao céu. Como a rosa desfolhada Vae boiando na corrente, O meu pensamento vôa Para ti constantemente. Se eu soubesse que te rias Quando eu suspiro e dou ais, Tirava os olhos da cara Para nunca te ver mais. Quando foi á despedida, Quando te apertava a mão, Dobrou o sino a finados, Morria o meu coração. Quando eu morrer vae á cova Sobre o meu corpo chorar, Que ao sentir que por mim chamas Hei de aos teus braços voltar. Não te faças tão esquiva, Não digas que me não queres, Que eu por mal de meus peccados Bem sei o que são mulheres. Se tu suspiras, suspira Cá dentro o meu coração; Se tu choras, tambem choro, Vê lá se te quero ou não. Mandei lêr a minha sina, E a sina me respondeu Que um triste fugir não póde Á sorte que Deus lhe deu. Sonhos d’amor e ventura Quando tornareis a vir? Só se fôr na outra vida Quando d’esta me partir. Se souberes que estou morto Não te ponhas a chorar, Mais vale acabar a vida Do que viver a penar. Teu corpo é feito de cêra, Tão tenrinho que mais não; Amor, quem t’o derretera Ao calor do coração! Teus olhos são mais escuros Do que a noite mais fechada, E apesar de tanto escuro Sem elles não vejo nada! =Sebenta= (Fado da) Composto por D. Laura Escrich e offerecido á Tuna academica de Coimbra, em 1899, a proposito de se celebrar n’aquella cidade o centenario da Sebenta, hilariante festa escolar promovida e realizada pelos alumnos da Universidade. A Sebenta é, como se sabe, a synopse, redigida por um estudante e adquirida pelos outros, da prelecção feita pelo professor em cada cadeira. Tradição universitaria, tem resistido á troça dos estudantes e á opposição de alguns lentes. Em 1852 escrevia o dr. Adrião Forjaz, da faculdade de direito: «Continuarão as _sebentas_? quer dizer continuará a trocar o maior numero de alumnos juristas o indispensavel estudo dos seus compendios e das obras magistraes, que os elucidam, pela tomada de cór d’uma papeleta, que o agiota-alumno autographou á pressa dos apontamentos tomados durante a exposição do professor? Receamos que a molestia não diminua. Ajuda-a grande numero de empresarios, a preguiça que favorece em muitos dos alumnos, e a falta talvez d’uma combinação e energica decisão dos professores.» Referindo-se ao prematuro fallecimento da auctora d’este _Fado_, dizia a folha lisbonense, _O Dia_, no seu numero de 12 de novembro de 1902: «Ha existencias affastadas e calmas, tão serenas que parecem ter direito a que a desgraça as esqueça. «A senhora que acaba de fallecer, loura, elegante e distincta, com trinta e cinco annos apenas, tinha uma vida de grande simplicidade e dedicação--iamos quasi a dizer d’heroismo. «Só com sua mãe, uma senhora de altas virtudes e raro caracter, trabalhava incessantemente, para que no seu lar houvesse o agasalho sufficiente a uma senhora de cabellos brancos, que n’um momento via partir-se-lhe dolorosamente o coração. A morte leva-lhe assim, inesperadamente, a sua unica filha! «A sr.ᵃ D. Laura Escrich, filha do sr. Frederico Alexandre Meiners, allemão, ha muito tempo no Rio de Janeiro, vivia entregue ás suas licções de pintura, em que era distinctissima, adorada pelas suas discipulas. Compunha tambem valsas e musicas de grande harmonia e valor. «Cinco dias bastaram para espesinhar e dispersar toda esta existencia de serenidade e trabalho. Hontem ás 11 horas bruscamente morria. Curvemo-nos perante a grande Dôr d’aquella que viu ao mesmo tempo morrer-lhe nos braços a filha e com ella fenecerem-lhe as ultimas esperanças de felicidade na terra.» =Sebenta= (Fado da) É a _serenatella_ do «_Auto da sebenta_», composta pelo estudante Candido de Viterbo. Veja-se o que dizemos a este respeito no capitulo V, quando tratamos dos _Fados_ litterarios. =Sello= (Fado do) Referindo-se á romaria do Senhor da Serra, em Bellas, anno de 1902, dizia o _Diario de Noticias_, de Lisboa: «Dançou-se animadamente durante a tarde, em varios sitios da quinta, não deixando tambem de ouvir-se um ou outro cantador de fado, que ao som do «pianinho» largava a sua cantiga mais ou menos engraçada, como a que segue: Eu não sei cantar o fado Pois que não tenho capello, E p’ra largar a piada Não quero pagar o sello.» É possivel que o cantador enfiasse outras quadras allusivas ao mesmo assumpto. Mas esta basta como prova de que o _sello_ já entrou alguma vez nos dominios do _Fado_. =Sem nome= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Sentimental= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de _Fados_. =Sepulveda= (Fado do) Sepulveda é o sr. Julio Cesar Affonso Sepulveda, despachante na Alfandega de Lisboa, mais conhecido entre os rapazes pela abreviatura _Veda_. D’este _Fado_ fez ultimamente uma edição, impressa na Allemanha, o sr. Raul Venancio, estabelecido em Lisboa na rua do Oiro. =Serenata= (Fado) Composto por Manuel Luiz Ferreira Tavares para a recita do curso do 5.º anno theologico-juridico, 1900-1901. Lettra de Nanzianceno de Vasconcellos: O rouxinol quando trina Escolhe a luz do luar, Mas a tua voz divina Canta á luz do teu olhar. Têm o som tão puro e lindo As fallas da tua bocca!... Parecem ’strellas cahindo Em chuva dourada e louca. Se Deus te pudesse ouvir Lá no ceu entre mil lumes, Deixava Deus de existir, Deus morria de ciumes! Têm o som tão puro e lindo, etc. Eu de mil vidas, nenhuma Te negava, minha huri! Mas mesmo tendo só uma Morro d’amores por ti. Têm o som tão puro e lindo, etc. =Serenata= (Fado) Vide _Olinda_. =Severa= (Fado da) Vide cap. IV, pag. 158. =Sinhás= (Fadinho das) É o n.º 36 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa. =Soffrimento= (Fado do) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 55. =Sol e dó= (Fado) Supponho que é edição da casa Sassetti. =Syndicateiros= (Fado dos) É o n.º 29 na 3.ª serie da casa Sassetti. =Taborda= (Fado) Vide _Gato_. =Talvez te escreva= (Fado) Da revista do anno, de Eduardo Schwalbach Lucci, intitulada _Nicles_. =Tancos= (Fado de) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 70. É o numero 7 na 1.ª serie da casa Sassetti. Tancos, villa da Extremadura, concelho da Barquinha, onde Fontes Pereira de Mello mandou construir em 1865 um campo de manobras. =Theodolinda= (Fado) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz. =Torrinha= (Fado da) É o n.º 33 na 3.ª serie da casa Sassetti. A antiga quinta da Torrinha, situada no casalinho do Carvoeiro a Valle de Pereiro (alto da Avenida da Liberdade) em Lisboa, foi uma horta muito frequentada por gente patusca, que ali ia merendar e ceiar n’uma tasca. =Trez horas= (Fado das) Musica de Reynaldo Varella. Lettra: Pela calada da noite, Emquanto não surge a aurora, Que esta minh’alma se affoite, Suspira, guitarra, chora. Voga, barco, mansamente Pelas aguas prateadas. Leva este canto dolente Aos peitos das namoradas. Cada nota tão sentida Que a minha guitarra envia, É uma canção dolorida D’amor e melancolia. E estas canções eu trago-as Presas nas azas da brisa, Para espalhar sobre as aguas Emquanto o barco deslisa... Este _Fado_ foi composto n’uma noite de patuscada, exactamente á hora que lhe serve de titulo, e editado, no Porto, pela casa Eduardo da Fonseca. =Triste= (Fado) Composição de Augusto Machado. =Triste= (Fado) Musica do professor de guitarra Julio Silva; lettra de Armando de Araujo. Cantou-se no sarau da imprensa realizado em 1902 no Colyseu dos Recreios. É dedicado á memoria do poeta portuense Antonio Nobre, cujo retrato, em traje academico, orna a capa da musica. Oh! alvôr das madrugadas Já tenho saudades tuas, Do choro das guitarradas Gemendo o fado das ruas... ’Inda vem distante a aurora E á luz que se escôa triste Minha alma cantando, chóra Alguem que já não existe... Vae subindo oh! triste canto, --Nunca a tristeza te sóbre! Vae levar ao céu meu pranto, Pelo poeta Antonio Nobre... Pois no céu decerto anda Quem tamanha dôr cantou, Quem sabe se na demanda Da paz que não alcançou! A capa de seda escura, Na qual andavas envolto, Era a noite da tortura, Que não te deixava solto!... N’uma tristeza sem calma, O teu pensar exquisito, Com pedaços da tua alma, Deixou teu soffrer escripto... É um livro amargurado, ...Já não se escreve outro assim. --São prantos d’um desgraçado, --Uns prantos... quasi sem fim! N’essa magua que venero Quem de ti não teve dó!... Se tu fôste o auctor sincero Do livro chamado: _Só!_ Em cada sinistro verso Teu olhar chóra, talvez... E que de pranto disperso No livro d’um portuguez! Quem essas paginas olha Assim te julgou na terra: --Um lyrio rôxo que esfólha, Na solidão d’uma serra! Tiveste um ribeiro d’agua Que manso beijou teu pé... --Refresco á febre da magua, --Imagem santa da Fé... E tu soffrias!... emquanto O ribeiro, a murmurar, Pedia pelo seu _Anto_, Padre-Nossos a rezar! E tanto, tanto soffreu Seu desgraçado menino, Que finalmente... morreu, D’aquelle mal, tão mofino! Oh! velhinha amargurada Por causa d’aquella dôr, Já rompeu a madrugada, Já socega o teu amor. Descança agora, velhinha, De quem elle tanto falla, Que toda a flôr se definha Após o aroma que exhala. O luar, seu companheiro Das confidencias d’amor, Foi com elle ao extrangeiro, Como o servo e o seu senhor! Mas, na volta de Pariz, Onde lhe escutou a voz, Saudades d’esse infeliz Veio gemer entre nós... E esta capa, irmã da tua, Vem acenar-te saudosa... Já quando o pranto da lua Em neve amortalha a rosa! =Trovadores= (Fado dos) Auctor, Avelino Baptista. =Vaporosas= (Fado das) Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra. =Victor Hussla= (Fados de) Victor Hussla nasceu em S. Petersburgo a 16 de outubro de 1857. Veio para Lisboa em 1887 como director da Real Academia de Amadores de Musica. Violinista distincto e professor bem orientado, prestou importantes serviços artisticos áquella associação e a Lisboa. A seu respeito escreve Ernesto Vieira no _Diccionario biographico dos musicos portuguezes_: «Como compositor produziu Hussla trabalhos de muito valor. De todos o mais importante é a sua grande symphonia, obra vasta e trabalhada com grande esmero no mais puro estylo allemão. De igual auctor é a «Abertura», composição menos extensa mas do mesmo modo trabalhada. «Não foram porém estas as suas producções que mais lisonjearam o nosso ouvido meridional. Sobrelevaram-lhes no effeito as celebres «Rapsodias portuguezas», em que os nossos cantos nacionaes tiveram pela primeira vez a honra de ser luxuosamente revestidos de uma orchestração primorosa e em alguns pontos verdadeiramente admiravel.» Nas «Rapsodias» foram por elle comprehendidos alguns _Fados_. Nomeado professor do Conservatorio em 1897, falleceu repentinamente, indo a entrar para aquelle edificio, na manhã de 14 de novembro de 1899. =Vida= (A) Fado Composição de Julio Neuparth. =Vimioso= (Fado) Vide capitulo IV d’este livro, pag. 183. =28= (Fado do) Publicado no Porto, para piano, pela casa Eduardo da Fonseca. Tem sido attribuido ao Hylario, como dissemos no cap. V, pag. 229. Mas o seu auctor foi um rapaz cego que viveu em Braga e era protegido do reverendo abbade de S. João do Souto, padre José do Egypto Vieira. Este cego tinha no asylo o n.º 28, e toda a gente o conhecia mais pelo numero que pelo nome. D’ahi o titulo com que o seu _Fado_ se generalisou. =Visconti= (Fado) Visconti, um cançonetista de circo, veio a Lisboa, onde o rythmo das suas canções comicas se tornou popular. Esse rythmo é o que se chama _Fado Visconti_. (Está incluido na collecção de _Fados_ da casa Eduardo da Fonseca, Porto.) Lettra de algumas das canções: Hespanhol p’ra malaguenha, Portuguez p’r’o lindo fado. Já não ha nem póde haver Canto a estes comparado. Puz os pés na campa fria De quem na vida amei tanto. Uma voz ouvi dizer: Não me pises, ó tyranno. Se eu soubera que voando Alcançava o teu amor, Ia pedir á sopeira As azas... do assador. =Zé povinho= (Fado do) Incluido no _Cancioneiro de musicas populares portuguezas_, fasciculo 72. FIM NOTAS FINAES Pag. 10 Ácerca da synonymia das palavras _Fado_ e _discurso_, esqueceu-nos citar Max Muller, que diz: «_Fatum_, a fatalidade; significava primitivamente o que tinha sido dito; e antes que a fatalidade se tornasse uma potencia superior ao maior dos deuzes, esta palavra significava o que tinha sido dito por Jupiter, e que o proprio Jupiter não podia alterar.» _La science du langage_, traducção franceza. N’estas poucas palavras fica bem assignalada não só a correlação existente entre aquelles dois vocabulos, como tambem o caracter fatalista, irremediavel, de _Fatum_, que nós bem propriamente traduzimos por _Fado_ (discurso em verso, acompanhado de musica). Pag. 18 Encontramos mais uma prova da não existencia do _Fado_ no seculo XVIII. Vem no tomo XIV do _Theatro de Manuel de Figueiredo_: «... a imperfeição d’alma, que eu padeço pela minha ignorancia, me não deixou nunca esquecer da graça, que achei nos tocadores de viola, e rebeca nos proprios lugares, que juntos ião á Penha, e ao Beato nos Domingos, e dias Santos de tarde (ainda no tempo das espadas) com a banda direita do capote lançada por cima do hombro esquerdo, ficando-lhes as mãos fóra delle, e o cotovelo direito: as gentes corrião atraz daquella repetida tonadilha da _fofa_, e do _fandango_, como o rancho das galinhas atraz da feliz, que tem a lagartixa no bico». Estas palavras são de Francisco Coelho de Figueiredo, editor e commentador do _Theatro_ do irmão. Francisco C. de Figueiredo nasceu em 1738 e morreu em 1822. O tomo a que nos referimos sahiu em 1815. Pag. 28 A expressão «Nascemos de um grupo de lusitanos» não importa mais que uma vaga e tradicional referencia aos tempos anteriores á constituição da nacionalidade portugueza. Bem sabemos como Herculano se empenhou em negar qualquer especie de unidade nacional entre os portuguezes e a tribu ou tribus de celtas hespanhoes conhecidos pelo nome de lusitanos. Mas tambem sabemos que o proprio Herculano reconheceu quanto seria difficil vencer a força da tradição, «a crença nacional e quasi popular» que nos dava como successores e representantes dos lusitanos. Esta crença é alimentada até pelo titulo da grande epopea portugueza--_Os Lusiadas_. Escrevendo para o povo, encostamo-nos insensivelmente á formula popular, salvaguardando, é claro, o respeito devido á formula erudita. Pag. 63 O methodo de guitarra de Ambrosio Fernandes Maia teve a sua 1.ª edição em 1877, e a 2.ª em 1897. Este methodo é figurado por algarismos: e ao seu auctor parece ser o mais facil que tem apparecido, segundo declara. No prologo da 2.ª edição diz Fernandes Maia: «A guitarra, esse instrumento de vozes tão melodiosas, que, como nenhum outro, fere tão intimamente as fibras do coração fazendo-nos ouvir os cantos, as canções mais populares de nossa terra, esse pequeno instrumento, que traduz a alma do povo portuguez, jazeu longos annos no mais completo abandono; a ella votaram os nossos antigos o mais completo desprezo, e ai d’aquelles que se atrevessem a dizer «toco guitarra». «Durante annos viveu nas espeluncas mais ordinarias, e eram d’uma má reputação, todos que dedilhavam as suas cordas. «Destinos do acaso: o piano entrou nos cafés, elle, que nascera na opulencia, e a guitarra sempre modesta, com os seus tons tão melancholicos, com os seus gemidos, entrou triumphante nos salões da nossa primeira sociedade!» Pag. 238 O sr. Affonso Lopes Vieira, que ha pouco deixou os bancos da Universidade, consagrou uma das suas poesias á psychologia do _Fado_. Transcrevo algumas quadras: Fados de Portugal suspiros e ais, Fados que sois a nossa alma! Fados Que de tristes saudades me falais, Oh suspirados, oh amargurados! Nas cordas da viola enforca a Dor, Oh povo, e canta! É desafogar!... Canta o teu fado á terra, oh cavador! E o teu á onda, oh cavador do mar! Nas viellas do amor á noite passa O fado da miseria e humilhação. Oh vozes roucas, harpas da desgraça, Oh! versos côxos, cheios d’emoção! Cegos, cantais _o grande e horrivel crime_! E por aldeias, pelos povoados, Arrastais a lamuria onde se exprime A velha voz d’Homeros desgraçados! INDICE Capitulo I--Origens do Fado pag. 7 » II--Fadistas » 43 » III--Os assumptos do Fado » 78 » IV--A Severa e o Conde de Vimioso » 140 » V--Fados de nomenclatura--Fados litterarios » 187 » VI--Bibliographia musical do Fado » 239 --Notas finaes » 299 Erratas Pag. 18, linha 20, onde se lê «e de começar por» deve lêr-se «e começar por». Pag. 19, linha 26, onde se lê «par alguns escriptores», deve lêr-se «por alguns escriptores». Pag. 20, linha 21, onde se lê «a nossa sensibilidade doentia» deve lêr-se «a nossa sensibilidade doentia». Pag 116, onde se lê «Antonio Feleciano» deve lêr-se «Antonio Feliciano». Pag. 13, linha 26, onde se lê «Copia textualmente», deve lêr-se «Copio textualmente». Pag. 135, onde se lê «Entrará logo Neto» deve lêr-se «Entrará logo o Neto». Mesma pagina; linha 28, onde se lê «serãos» deve lêr-se «serão». Pag. 140, linha 18, onde se lê «ida», deve lêr-se «idea». Pag. 142, linha 71, onde se lê «dedidgna», deve lêr-se «dedigna». Pag. 151, linha 8, onde se lê «que» deve lêr-se «o que». Pag. 154, nota, onde se lê «vocabulo» deve lêr-se «vocabulo». Pag. 213, linha 26, onde se lê «moderamente» deve lêr-se «modernamente». Pag. 238, linha 1.ª, onde se lê «que passaram por Coimbra:», deve lêr-se «que passaram por Coimbra.». Pag. 239, linha 4, onde se lê «m Portugal» deve lêr-se «em Portugal». Pag. 258, linha 1.ª, onde se lê «Fado noucturno» deve lêr-se «Fado nocturno». Pag. 265, linha 14, onde se lê «Paula e Siva» deve lêr-se «Paula e Silva». Pag. 278, linha 7, onde se lê «a tradição.» deve lêr-se «a tradição:». LIVRARIA CENTRAL DE GOMES DE CARVALHO 158--RUA DA PRATA-160 LISBOA Algumas obras de Alberto Pimentel =Sem passar a fronteira.=, 1 vol. 500 É uma serie de folhetins que, como o titulo indica, se referem só a aspectos e factos da nossa terra. Alguns d’esses trechos são interessantissimos, e dão bem a nota de serem vividos, e narrados em hora em que uma grata despreoccupação mais facil e limpida torna a sinceridade das almas. =Album de ensino universal.= Livro d’instrucção popular, 2.ª edição, 1 vol. 500 =Aventuras d’um pretendente pretendido=, romance, 1 vol. 500 =Cantares.= Versos com uma carta--prologo de Thomaz Ribeiro, 1 vol. 500 =Chronicas de viagem=, 1 vol. 300 =Um conflicto na corte=, romance original, 2 vol. 1$000 =O Descobrimento do Brasil=, romance original, 1 vol. 600 =Flor de Myosotis=, romance original, 1 vol. 600 =O Livro das flores=, (legendas da vida da rainha Santa Isabel) 1 vol. 300 =O Livro das lagrimas=, (legendas da vida de Santo Antonio de Lisboa) 1 vol. 300 =Portugal de cabelleira=, 1 vol. 500 *** End of this LibraryBlog Digital Book "A triste canção do sul : subsidios para a historia do fado" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.