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Title: Crónicas imorais Author: Sampayo, Albino Forjaz de Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. Copyright Status: Not copyrighted in the United States. If you live elsewhere check the laws of your country before downloading this ebook. See comments about copyright issues at end of book. *** Start of this Doctrine Publishing Corporation Digital Book "Crónicas imorais" *** ALBINO FORJAZ DE SAMPAYO _Crónicas imorais_ «O que melhor se ria será o último a rir-se.» F. NIETZSCHE. 3.º MILHAR [Illustration] EDITORES--~SANTOS & VIEIRA~ EMPREZA LITTERARIA FLUMINENSE 125, RUA DOS RETROZEIROS, 125 LISBOA CRÓNICAS IMORAIS _Editores--SANTOS & VIEIRA--LISBOA TYP. DA EMPREZA LITTERARIA E TYPOGR. (Officinas movidas a electricidade) R. Elias Garcia, 184 PORTO MCMXV_ OBRAS DO MESMO AUTOR: PALAVRAS CÍNICAS, 7.º milhar 1 volume LISBOA TRÁGICA, 4.º milhar 1 » PROSA VIL, 2.º milhar 1 » GENTE DA RUA, 3.º milhar 1 » No prelo: GRILHETAS 1 » ALBINO FORJAZ DE SAMPAYO Crónicas imorais «O que melhor se ria será o último a rir-se». F. NIETZSCHE. 3.º MILHAR [Illustration] EDITORES--SANTOS & VIEIRA _EMPREZA LITTERARIA FLUMINENSE_ 125, Rua dos Retrozeiros, 125 LISBOA AO DR. BRITO CAMACHO Crónicas imorais Os artigos, crónicas ou antes as impressões que hoje se reúnem em volume são já do domínio público. Todavia devo declarar que não foi nele que pensei, quando as escrevi. Os quatro géneros de criaturas que há no mundo, «criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras», como quere Vieira, só mediocremente me interessam. Publicam-se hoje porque isso me apraz, e se são más ou boas, tal não me fará doer a cabeça. Nunca mais as lerei. São cousas que passaram, notas à margem dum acontecimento, comentários a uma leitura, impressões de momento, fumo, cinza, terra, nada. Viveram um dia. Hoje reúne-as um certo egoismo. Vivi com elas. Acharia a algumas, se as voltasse a ler, uma ingenuidade primitiva; a outras uma piada estupenda. Pensadas e escritas à hora em que o chefe da tipografia vem pedir original, só para mim terão valor. No emtanto marcam cousas curiosas e são um depoimento pessoal não falho de interêsse. Umas são indignadas, outras biliosas, algumas pândegas. Não admira. Filhas do momento que as inspirou, devem tambêm ter o seu grão de incoerência, de petulância, de atrevimento. Que importa? Não as renego. Chamei-lhes imorais, porque algumas tiveram o condão de irritar muita gente boa, que ainda tem moral. Ah! abjecta gente a que ainda tem moral! Muitas mereceram acres censuras e outras ainda despertaram louvores. As que despertaram louvores tive o cuidado de não as juntar aqui. Devem ser más por fôrça. Vivendo a vida do jornal, perdendo-se no arquivo do esquecimento que o jornal é, em pouco tempo estariam esquecidas. Em livro, não será mais longa a sua vida, mas sempre o entêrro é melhor engendrado. Imorais disse eu. Imorais sim porque quási sempre estão em desacôrdo com a moral do meu parceiro. Que devo confessar-lhes, não me dou nada bem com os que estão de acôrdo. Quem está de acôrdo não sabe ter razão. Porque a razão não é dos que a teem, é dos que teem talento para a ter. Devo tambêm confessar-lhes, que estas crónicas são inofensivas. A ninguêm fazem mal. Não passam dum bom riso, um grande riso. Tolice seria tomar tudo isto a sério. O mundo é uma espécie de revista e quem se mata morre cedo. Se alguma vez, leitor, te interessares, olha que tudo isto é ilusão. Não vale a pena, em verdade te digo. Ilusão, ilusão sómente. A comoção, a ironia, o riso, a tristeza, tudo isto que vês reunido, tudo isto, não é mais do que cousas que já passaram, recordações, notas breves, leves apontamentos, terra, pó, nada, cinza. E não se comovam que se acaba o prólogo. Juízo do ano O ano que começou ontem será um ano igual aos outros. Igual, sem tirar nem pôr. Haverá nele, como já houve o ano passado, como houve em todos os anos que passaram e como haverá em todos os anos que vierem, tolos que enriquecem e tolos que cavam pés de burro, asnos que se suicidam e asnos que acham isto uma cousa óptima. Continuará a haver uma ignorância formidável da multidão dominada e uma patifaria criminosa da minoria dominante; continuará a haver homens cavalos e homens cavaleiros; sábios que são burros e burros que são sábios; muita maldade nas mulheres--a maldade nas mulheres é um pleonasmo!--e muita estultícia nos homens. Haverá côres para todos os gostos, acepipes para todos os paladares e partidos para todos os cidadãos. Não sucederá nada de novo, porque nada é novo debaixo do sol, diz a voz grave do vélho Eclesiastes, um mágico que sabia muito mais da patifaria humana do que o snr. Civinini das mulheres que usam bigode e pêra. O novo ano será um ano feliz para quem jogar e lhe sair «el prémio gordo». Para os que joguem e lhes sair branco será um ano de azar. Quem trabucar, manduca, a não ser que perca o apetite. Quanto ao resto, o que êste ano será, é fácil de adivinhar. Para os tolos, uma felicidade, porque êsses banabóias são felizes todos os dias; para os que não sejam, nem eu mesmo sei. Quanto ao ano artístico, será deplorável, porque o que terá menos é arte, e de artistas nem sombra. Haverá vários quadros assinados por estes e aqueles fulanos. Se é paisagem, já sabemos o que é: «Macieira em flor», «Um trecho da Tapada» ou a «Ribeira de Algés». Se é retrato, um cavalheiro ou uma cavalheira de cara lambuza e desconfiada, olhos de goraz do vapor, ou então um ar bonacho de quem diz à gente: «Então que tal? como passou? estou catita, heim?» Em arquitectura, continuarão a aparecer projectos... do Palácio da Justiça, de várias saladas de cal e areia para projecto ou para habitar, e de «artes várias». Os nossos escultores continuarão fazendo Senhoras da Conceição, cruzes para jazigos, e «muchas cosas más» dum «salero» infinito. Das finanças: «_finanças_ se chamam as rendas públicas quando Portugal está a _finar-se_». É de Camilo o dito. Das finanças dizia eu... mas em finanças não sou muito forte. Adiante. O ano literário... Continuará a haver literatura, literatos vulgares de Linneu, literatos abezelgados e chués, porque, irmãos caríssimos, «todo o homem tem em si uma porção de inépcia, que há de sair em prosa ou verso, em palavras ou obras, como o carnicão dum furúnculo». Homens de génio não haverá, mas em compensação abundosos se prognostica os homens de génio mau ou de bom génio, porque cada um é como o pai o fêz. A crítica continuará a ser como foi sempre: De mostarda, de manteiga, e de àgua e sal. E, tenho dito. Quanto a ti, leitor molesto, eu não tiro o teu horóscopo nem te leio as ruins tenções de que porventura estejas cheio. Mas é sempre bom conversar, uma conversa de amigos vélhos e inseparáveis. Não sei se és rico, se pobre, se alto, se baixo. Se rico, guarda a bôlsa que não preciso dela; se pobre, tem paciência porque não te posso valer. Dito isto, em verdade te digo que tens um ano diante de ti. Emprega-o bem. Lê a vida do bom homem Ricardo, regula as tuas digestões, não tenhas excessos e deita-te cedo. A isto se chama em bom português fazer pela vida. Faze pois pela vida. Lembra-te que «os mortos caem fácilmente no olvido», como dizia Bürger na balada de _Leonora_, traduzida por êsse tristonho Gerard de Nerval que se enforcou num candieiro da Rue Vieille-Lanterne, numa manhã gelada de janeiro em que um corvo, que parecia fugido ao «Never more!» de Poe, lhe crocitava satânico e lúgubre a sua elegia de tímido, de sonhador e de incompreendido. ¿E quem hoje, no aniversário da sua morte, se lembra dêsse pobre Gerard, que trazia sempre os bolsos cheios de livros, como o Schaunard da _Bohème_, que traduziu Goethe e visitou o Oriente? Ah! é bem certo que «os mortos caem fácilmente no olvido!» Faze por ter dinheiro. O Dinheiro, alêm de ser tudo o que tu sabes, é ainda aquilo com que se compram os melões. Se o tiveres não o emprestes nem o dês. Se precisares não peças, porque ninguêm te vale. Gritar é inútil tambêm, para que não chames curiosos à tua desventura. Prefere «um pássaro na mão a dois voando» e não te fies na Virgem. Porque se te fias na Virgem e não corres não tarda o fatal e bem merecido pontapé. Se és casado não leves amigos a casa. Isto não é para que te ofendas, é por uma cousa que eu cá sei. Se tens filhos, ao menos um filho só, que é cousa que tôda a gente tem, seu ou alheio, faz do teu filho um homem forte. Bom estômago, bons nervos, bons músculos. Antes o obrigues à frequência do mestre Raku, um sujeito que ganha a vida a deitar os outros ao chão, do que à de Félix Pereira, que lhe ensina que meter os dedos no nariz é porcaria. É preferível ser forte a ser bem-criado. É mesmo preferível ter fôrça a ter direito, «porque se vai mais longe com a mão cheia de fôrça do que com um saco cheio de direito», ensina a experiência dos homens e a sabedoria das nações. Podes ensinar-lhe muitas mais cousas que tu saibas. Não o queiras nem artista, nem literato, nem jornalista. Vê se o podes fazer par do reino, que o pariato é uma cousa que se está dando ou se vai dar a tôda a gente, exactamente como o hábito de Cristo ou de S. Tiago. «Dizem que até há barbeiros...» como já o suspeitava o Baptista dos _Maias_. Se o fizeres par, porque êle não tenha geiteira para outra cousa, recomenda-lhe que se cale. «O silêncio é de ouro» e um tolo calado, conquanto não deixe de ser tolo, passa por homem sisudo. Porque se êle assim não fôr, tanto pior para êle. Os que assim não são, nada teem a esperar do ano novo. São e serão sempre escarnecidos, ridículos e pobres. E o pior mal dum homem é ser pobre. Ninguêm lhe vale. Ser pobre é... Não continuo porque um cavalheiro que está vendo o que eu escrevo, refila, em ar de resposta: --«Mas há a Caridade. A Caridade, homem!» --«A Caridade? Ah! sim.»--As misérias do próximo comovem muito a caridade de cada um. E eu, que tambêm me vou tornando azêdo como o senhor Silva Pinto, resmunguei e recordei-me. Devia ser uma caridade como a daquele barão da Falperra que o nosso Alfredo Mesquita conheceu: Um homem tão caridoso que, depois de ter ouvido um pobre contar-lhe as suas misérias, a ponto de o fazer chorar, chamava sempre o criado e, com a voz entrecortada de soluços, ordenava:--«João, ponha êsse homem no ôlho da rua; parte-se-me o coração de o ouvir...» E para os que lhe dissessem que êle lhe não dera nada, retorquia, que sim, que dera. Dera-lhe... atenção. E estava certo, como diz ainda o senhor Silva Pinto. Artistas A morte recente dêsse desventurado Augusto Santo, escultor do Pôrto, veio avocar com amarga intensidade a malfadada sorte que está guardada a todos que teem a suprema desventura de ter nascido artistas em Portugal. Augusto Santo foi discípulo de Falguière, de Rodin e de Soares dos Reis. Ouviu as lições de Taine, e expôs no _Salon_. Era quási um desconhecido e morreu na maior miséria, num catre humilde de hospital. Ser desconhecido em Portugal é um caso banalíssimo. Herculano, e êsse Garrett que «num dia de apuro por cem ou duzentas moedas seria capaz de tôdas as porcarias menos de pôr num papel a trôco de todo o ouro do mundo uma linha mal escrita» são, ainda que isto pareça um paradoxo, quási desconhecidos. O grande público não tem ideia dêles e ainda hoje uma das suas edições leva uma eternidade para se esgotar. A indiferença do público pelos artistas é absoluta, e não vai longe ainda o tempo em que literato era sinónimo de vadio. Camilo no Pôrto, ao tempo, era sómente um janota que para ali quebrava esquinas, um tal que não avezava com que mandar cantar um cego. Quando, pelos romances, ganhava com que forrar de cuidados o passadio de dois meses, não se imagina o escândalo que aquilo produzia nos Antónios Josés da Silva e na rua das Congostas. O Pôrto de então tinha ideias seguras e via as cousas como devia ver. Literatos neste país?! hum! e torcia o nariz como quem dizia que aquilo não era prático, nem por aquele caminho se chegava a ter um rolosito de inscrições, um prédiosito, ou uma velhice sossegada. Era a vida prática, o balcão é que era o caminho. Por isso, quando Camilo, já no apogeu de glória, em cartas duma dolorosa humildade, quási esmolava, para comer, a compra de pratas que os seus admiradores lhe ofereciam, o Pôrto mui devia rir. Êle bem lhe dizia! Não era aquele o caminho... A Soares dos Réis para lhe fazerem justiça foi preciso que a morte o tomasse. Em vida foi um obscuro obreiro sem amigos, ou quási, e teve uma existência bastante precária. Basta dizer que em tôda a sua vida de trabalho não conseguiu mais do que 4:764$500 réis segundo a autobiografia do artista, que o snr. Joaquim de Vasconcelos, em 1905, confidenciou ao público por intermédio da _Revista_. Para ganhar essa importância confessa Soares dos Réis que esteve «algumas vezes em relação com a _arte industrial_». Mesmo assim quem a achar exagerada deduza-lhe o custo do material e de auxiliares indispensáveis e verá quanto fica. O _Artista na Infância_ vendeu-o por 600$000 réis e foi o máximo preço que levou por uma obra sua, se exceptuarmos, é claro, o monumento ao Conde de Ferreira. Em vida ninguêm o auxiliou, ninguêm o encorajou para prosseguir. Muito ao contrário perseguiam-no, sitiavam-no, roubavam-no, fechavam-lhe tôdas as portas com intrigas soezes, com indróminas de sabidos e ronha de marotos. Concurso a que fôsse, vaga a que concorresse, plano que tentasse viabilizar, certo era a mediocridade arranjista, por portas travessas, frustrar-lhe tôda a ambição e todo o Sonho. Emquanto o homem viveu não puderam os amigos, êsses amigos do diabo, atormentá-lo mais, nem mais o perseguirem. Depois de morto não houve lamúria que não chorassem e não houve adjectivo sonoroso e amelaçado que a criatura não tivesse. A justiça chega sempre depois da morte, é certo, mas pela injustiça dos vivos. Com Augusto Santo o caso é o mesmo. Augusto Santo era, antes de tudo, um impersistente. Não possuía a tenacidade avara, fria e reservada, a confiança absoluta dêsses brocadores do Ideal, fadados para o êxito. A menor contrariedade o exasperava. E como se não fôsse bastante a execução perra, o sonho nebuloso, a vida material e a falta de tudo, ainda a minar-lhe a existência a agressividade constante dos outros,--os colegas os primeiros,--não fôsse o pobre diabo roubar-lhes a glória, e numa avidez de faminto a guardasse tôda para si. Augusto Santo foi um perseguido desde que expôs êsse _Ismael_, a sua única obra a valer, mas ainda assim uma promessa do que o seu temperamento de artista poderia dar. Como vêem, eu não quero dizer que Augusto Santo era um génio e que a sua morte abre uma clareira formidável entre os Teixeiras e os Lopes da pedra portuguesa. Não. Augusto Santo não deixou _fauteuil_ vago. O que eu quero precisar é que era Augusto Santo um artista a valer, que noutro meio floresceria, um meio que lhe não fôsse hostil como o seu,--tão hostil que até o deixou morrer de fome numa enxêrga de hospital. Com esta hostilidade e com esta ingratidão a arte perdeu, mas ganharam os escultores portugueses. Podem agora catrapiscar a imortalidade à vontadinha, que ela não esperará que êles morram para vir, ou o seu cão, sevandijar-lhes em cima da _obra_. Alguns gazeteiros ou gazetíferos, com as palavras de louvor do cliché, justificam porque Augusto Santo não teve carruagem às horas, mesa lauta e colchão fôfo. Foi, dizem êles reprimendando os restos do escultor, porque era um inadaptado, porque desprezou sempre a arte de engorda, a que dá lucros e considerações, e preferiu correr atrás dum sonho que o exauria e que o matava, um sonho de arte irrealisável e irrealisado, arte verdadeira que não tem preço, embora às vezes se venda, e que não se compra, embora às vezes se adquira. E com um desdêm olímpico, absoluto, ditatorial, chamam-lhe... sonhador. Sonhador!... como se isto fôsse o sumo desprêzo ou a máxima compaixão. Deve ser bem triste morrer, assim! Ao menos se essa turba se calasse e governasse vida, vá; mas vir babujar a sua irresponsabilidade desvergonhada no momento em que o pobre vencido solavancava a caminho do cemitério, é intolerável. Não se justifique, que ninguêm lhe tira o ganho: ela tem a sua utilidade. ¿Quem é que nos havia afinal de fazer os fretes? Augusto Santo, não reste dúvida, foi um atormentado da forma. Quando a concepção, megalomania conceptiva era nele, lhe fabulava maravilhas, logo o barro, parece que conluiado com os homens, debaixo dos gadanhos convulsos e nervosos tinha formas brutais, aduncas e agressivas. E a sua frialdade viscosa logo ali abafava o delírio artístico do pobre impotente e lhe dava crises de desânimo capazes de vergar um atleta. Todo o Pôrto cabareteiro e intelectual conhecia estas torturas do artista. Sem fôrças para opôr uma resistência, êle consumia-se em desolações. Cada tentativa malograda deixava-o mais exausto de fôrças do que uma noite perdida a caminhar. O Sonho vampirizava-o e exigia-lhe uma impossível produção de calorias. Todavia nada resta dele, decorrendo como decorreu intramuralhas do seu crânio. Após a criação dêsse _Ismael_, que noutro meio mais acarinhante, se o não celebrizasse, o evidenciaria, Augusto Santo criara, para si mesmo, responsabilidades. Ficaram por cumprir. A quantos artistas não sucede outro tanto?! Todos o sabem, Portugal artísticamente é um país morto. Capaz duma ressurreição? Certamente. Desde que os poderes públicos olhem com atenção para a Arte, desde que a percentagem assustadora dos analfabetos diminua e desde que o público manifeste interêsse por estas cousas. Arte em Portugal? Os pintores é que sabem o que isso é. Êles bem vêem que não é de sonhos e de belos quadros que se vive. O que dá são as lições, que é como quem diz os quadros que fazem e os discípulos assinam. É uma arte de opereta, de muito riso, com sinfonias de Offenbach e de que só vai mal a quem a toma a sério. Êsses são os vencidos, os Soares dos Réis e os Augustos Santos. Ê pois mais um artista que sucumbiu em luta inglória com o Destino. Consagrado ou desconhecido, não há dúvida que era um artista. O _Ismael_ o atesta. E já que ninguêm teve que o auxiliasse e que no meio da indiferença geral da gente que escreve e do regosijo da gente que escultura, êle deixou a vida, justo é que eu o admire, ao seu exemplo de intransigência, à luta que sustentou e à tragédia da vida que sofreu. E ninguêm se lembrou dele senão a Morte, que se amerceou de tanto sofrimento. Ó morte remediadora e sacratíssima, amiga dos pobres, remidora dos desventurados e consoladora dos aflitos, eu te bemdigo. O Jettatore Teófilo Gauthier, o Benvenuto Cellini da prosa francesa, segundo Camilo, consagrou um dos seus volumes à _Jettatura_, ou mau olhado, condão funesto do _Jettatore_. Nesse volume, obra prima do lapidário precioso a quem já Baudelaire havia chamado «poeta impecável, mago e mestre», se romantiza a vida dum _jettatore_ e se dá conta de todos os malefícios que o seu olhar causou. Paulo d’Aspremont, francês, é o protagonista do romance, e, sem o saber, possui o _fascino_, que, traduzido em vulgar, significa mau olhado. O seu olhar fatal onde pousa é nefasto. A pata do cavalo de Attila não teve tanta crueldade. Se se debruça na amurada dum barco, para olhar a água mansa e tranqùila, logo o mar se encapela e enfuría; se entra num teatro e fita um actor que ri, logo o espectáculo se interrompe e a própria Troça fica séria; se olha uma bailarina que rodopia, um bico de gás incendeia a gaze e a bailarina morre. Quando fita a sua própria noiva, o pobre _jettatore_ mata-a. Uma roseta escarlate assoma às faces da condenada inglêsa, um escarro de sangue vem da goela à bôca, e dali à morte é um ai. Nápoles inteiro o odeia. «Tôdas as vezes que parava junto duma loja, o dono parecia assustado, murmurava algumas imprecações a meia voz, e alongava os dedos como se quisesse apunhalá-lo com o auricular e o índex; as vendedeiras mais ousadas, acabrunhavam-o de impropérios e mostravam-lhe o punho.» Por fim cega-se e suicida-se, arremessando-se ao mar. O seu corpo nunca se encontrou. Quando êle morreu,--oh meu adorável Gauthier!--quando êle morreu «a tempestade desencadeou-se então com tôda a fúria: as ondas assaltaram a praia em filas compactas, como guerreiros correndo ao assalto, e lançando a cincoenta passos ao ar jactos de espuma; as nuvens negras alagartaram-se como paredes do inferno, deixando entrever a ardente fornalha dos relâmpagos; luzes sulfurosas iluminaram a extensão; o cume do Vesúvio avermelhou-se e um penacho de sombrio vapor, que o vento impelia, ondulou na fronte do vulcão. Os barcos amarrados entrechocaram-se com lúgubre ruído e as cordas muito apertadas gemeram dolorosamente. Daí a nada a chuva começou a cair em enormes bátegas sibilando como flechas,--parecia que o cáos queria reapossar-se da natureza, confundindo-lhe de novo todos os elementos». * * * * * Mas, há realmente _jettatori_? ¿Há alguêm que acredite nisso, no século das maravilhas? ¿Não será a _jettatura_ como o rabinho no remate do espinhaço por onde se conheciam os judeus, segundo aqueles Pedro Lobo e Bartolomeu Lobo, que Camilo tomou à sua conta no _Judeu_, o romance da vida de António José da Silva? Talvez. O que é certo, porém, é que esta superstição abracadabrante tem muitos crentes. E o Destino, às vezes, quando se quere divertir ou mostrar o seu poder, encarrega os factos de lhes dar razão. ¿Mas não haverá olhares carregados de desconhecidos gérmens morbíficos, de elementos malfazejos, funestos e ameaçadores? Abro o último número do _The Strand Magazine_, recentemente chegado a Lisboa. É o número de Agosto. Aí a página 233 a focinhuda e grave revista inglesa relata o estranho caso do presidente do conselho de Itália, Giovanni Giolitti, um dos mais funestos _jettatori_. O artigo chama-se «The Evil Eye» e é interessante e certo, porque a revista inglêsa não iria turvar a sua gravidade protocolária com uma invencionice de tal responsabilidade. As vítimas de Giolitti são, na sua maioria, os seus próprios colegas do ministério, a quem repentinamente sucede alguma cousa de grave. Foi a insistência dêstes incidentes, sucedendo sempre em pessoas ligadas a Giolitti, que pôs de alarme tôda a Itália e fundamentou o artigo do _Strand Magazine_. Os ministros Majorama, Marquês Prinetti, Balenzano, De Broglio, Wollamborg, Rosano, Tittoni, Massimini e Gallo foram os que mais sofreram da influência funesta da _jettatura_ Giolitti. Um deles suicidou-se, outro endoideceu, e ainda outro sofreu um insulto apoplético na própria Câmara. Os restantes foram atingidos pelas doenças mais graves e mais exquisitas; um ataque de reumastismo, doenças de coração, apoplexias, etc. O olhar de Giolitti é pois uma verdadeira cornucópia de desgraças, e como se vê não se pode atribuir à imaginação dramatizadora de qualquer banabóia em cata de assunto o artigo em questão. Se o magazine inglês alviçarou ao público o condão fatal do estadista, é porque o caso tinha tôdas as provas de veridicidade. Giolitti inspira já um verdadeiro terror. O seu olhar fantasmático e fixativo tem a mais terrível lenda que pode ter um homem, especialmente em Itália, o país do mau olhado, por excelência. Quando êle passa, os _lazzaroni_ entre-olham-se aflitos, os transeuntes involuntáriamente fazem-lhe figas e todos fogem dele como dum leproso. As companhias de seguros de vida, baseando-se nos acontecimentos e factos, reputam o seu olhar um grave risco e não efectuam os seus contratos com ministros do gabinete _jettatura_ senão a prémios absurdamente compensadores. Oh! o mau olhado! o mau olhado! Na _jettatura_ acredita muita gente boa. As _montres_, em Nápoles, cercam-se dum preventivo cordão de amuletos protectores, e os espíritos mais fortes não se desdouram de trazê-los na algibeira. Filipe d’Altavila, aquele conde inventado por Gauthier, era civilizado. Fôra educado em Paris, falava inglês e francês; lêra Voltaire; cria nas máquinas a vapor, nos caminhos de ferro, nas duas câmaras, como Stendhal; comia _macarroni_ com garfo; e, como se todos estes argumentos não bastassem, é êle ainda quem confessa que usa «de manhã luvas de Suède; de tarde luvas escuras, à noite luvas côr de palha», prova incontestável de civilização. Pois êste scéptico, êste civilizado, êste homem forte, conquistador e espadachim--acreditava. ¿Porque não havemos nós de acreditar? Êle, porêm, parece que tinha razão para isso, visto que, sendo um dos melhores esgrimistas, tendo morto em duelo três homens e ferido gravemente cinco ou seis, ninguém se batendo com êle pela fama terrível que tinha, veio a morrer, estúpidamente, cravando-se no punhal do _jettatore_. ¿Mas será o mau olhado incombatível? Não. O nosso homem acredita tambêm que «com os chifres, as figas e os ramos de coral bifurcado, se pode destruir ou pelo menos atenuar a sua influência». * * * * * ¿Já repararam na série de desgraças que tem pesado sôbre o país desde que é presidente do conselho o snr. João Franco? Pois, caso singular, as desgraças sucedem-se e pode dizer-se que nunca houve tantas. Os políticos não andam seguros. Deu o filoxera, ou a formiga branca com êles, desde que é presidente do conselho, etc, etc. Já a gentana das ruas lhe vai atribuindo dotes maléficos e quando êle passa, se lhe não chamam _jettatore_, vão-lhe fazendo figas. Não tarda que, à semelhança do _Strand Magazine_, as gazetas vulguem o caso ao falario dos seus leitores. E é caso para pensar, acreditem! Um dia, na Câmara, no acêso duma discussão, Hintze tem uma síncope. Ao acompanhar o entêrro dum amigo e político, Hintze morre repentinamente, e os médicos gaguejam vagas cousas... farda vélha... o calor do chapéu... insolação. José Dias Ferreira, rijo ainda apesar dos seus setenta anos, faz uma conferência desafecta ao govêrno e é repentinamente atacado duma paralisia. Quando menos se espera, morre. O que mais assombra é o imprevisto com que a Morte tombou êsses dois monarquistas de vélha rocha, que, apesar de pontapizados no seu orgulho e nos seus anos de trabalho, ainda resistiam, cheios de vida e de crença. A revista inglêsa veio fazer luz. ¿Terá o snr. presidente do Conselho o fatal condão? Será _jettatore_? Tudo faz crer que sim. D’Aspremont, o _jettatore_ do romance de Gauthier, uma vez que tocou num cocheiro com uma leve bengala, matou-o instantâneamente. O nosso estadista, nos seus tempos de Coimbra, não podia acariciar um gato, que o animal não morresse logo. Hão-de concordar que é já ter mau olhado. Nenhuma dúvida resta. É _jettatore_. Os políticos entre-olham-se finados de mêdo e com terror secreto pensam em quem irá agora. Os indiferentes pensam em que novo desastre estará guardado à nação sob o influxo funesto de tão funesto dom. Não há dúvida. É necessário pôr um chifre atrás da porta e trazer na algibeira os ramos de coral bifurcados, e as figas de azeviche. Nada, que o seguro morreu de vélho. Senhores da política, vamos. Os mineiros Les mineurs chamou Roll, o poeta do carbonoso, a uma das suas mais amadas telas. «Les Mineurs» é o poema da gente que trabalha. Um crepúsculo à hora do levantar da faina. A retirada dos mineiros, uma longa bicha de gente taciturna e acabrunhada que regressa do interior da terra. Ao fundo as altas chaminés vomitam fumo, o seu fumo espesso e enovelado, carvão que o vento desfaz. E, sob o céu que o vento escurece, a retirada vai-se fazendo lentamente, como um exército estropeado que sai finalmente duma praça há meses sitiada. E não tem fim, a escura procissão que sai da bocada negra dos poços. Parece que nunca mais terminará. O assunto que tentou a Roll e que a sua tela exprime com a fidelidade duma fotografia, tem seduzido a muitos artistas. Constantin Meunier consagrou-lhe um baixo relevo. Severine escreveu as mais belas páginas sôbre «le pays noir» e Zola dedicou-lhe um dos seus livros, êsse romance-estudo, brutal e flagrante, cheio de verdade e cheio de observação, que é o _Germinal_. Porêm, de tôdas as composições artísticas que eu conheço, um quadro há, que, nas minhas horas de scismar, se desenrola e vivifica, e ante os meus olhos passa como uma scena da vida real. A tela desapareceu, apagou-se suavemente e só ficaram as figuras e o scenário. É um cortejo que passa. São rudes operários tisnados, a pele encoirada de suor, caras sombrias de miséria e de sofrimento. Abrem a marcha de mãos dadas cantando o _Çá ira_. Um operário vélho, de blusa e boné, dá o braço à sua companheira, uma envelhecida, que traz na mão um ramo de flores. Um garôto traz às costas um tambor. O cortejo avança. Algumas das mulheres trazem os filhos ao colo, outras, bandeiras de revolta. Mas a procissão não tem ar insubmisso, tem um ar de protesto taciturno. Um céu de bruma espesso e calado alumia a scena com os seus tons mais lúgubres e na sua luz morrinhosa sinistríza os contornos, e veste tudo, as figuras, a rua, os rostos, e até os petizes do bando, com um ar de sofrimento intenso, de agonia intraduzível. É seu autor Jules Adler. O quadro chama-se _A greve_. A greve recente da mina de S. Domingos veio canalizar atenções para o assunto. E S. Domingos, que aparecia entre brumas de mistério, dá notícias suas. S. Domingos é uma feitoria inglêsa. Tem polícia própria, armada de belas carabinas, carabinas último modêlo para, emquanto os mineiros se estorcem de fome, ela patrulhar, na soturnidade da noite, de dedo no gatilho, o sono dos senhores. Os mineiros são 3:000. Trabalham uma infinidade de horas e o salário é pouco. Como o salário é pouco e o trabalho muito, a alimentação é má. E como a alimentação não presta, a saúde é péssima. Que querem êles? Melhoria de salário e um pouco menos de trabalho. O mineiro, por via de regra, é sóbrio. Não tem desejos, não tem ambições. É um animal de carga, pobre bêsta suada e indefesa, e as minas são uma nova escravatura. Duvidam? Muito embora. São ainda as gazetas que nos informam que essas reclamações foram recebidas ... a tiro. Se isto não é escravatura, então... A canalha revolta-se? Muito bem. Espingardeia-se. A canalha parlamenta? Acutila-se. A canalha não tem nome, a canalha não tem voz. A canalha é a canalha, nada mais. ¿Que ela um dia virá, quando o ódio se fizer avalanche, reclamar o seu quinhão na festa? ¿Que ela virá escrever nas paredes da sala o _Mane_, _Thecel_, _Phares_ dos grandes cataclismos? Pura imaginação! A canalha não virá. E se por acaso vier, sim! se vier, encontrará uma muralha de baionetas e um cordão de metralhadoras. «La force prime le droit!», não é verdade? Sejamos positivos. Mais uma vez o direito ficará vencido. ¿Que a greve colheu a Emprêsa de improviso? De-certo. Pois a Emprêsa julgava lá que êles soubessem pedir, que êles soubessem falar! O que a Emprêsa sabia era a média de produção diária por cada animal daqueles, por cada escravo, a que pomposamente persistimos em chamar mineiros. A Emprêsa só tinha um fito: Que cada homem trabalhasse o dôbro. Que êles tinham Direitos? Que êles tinham estômago? Que queriam Justiça? Deixem-me rir. ¿Que diabo se importa a Emprêsa com isso? A Emprêsa explora-os; os capatazes, seus mandatários, esbofeteiam-nos. Oh! filantrópica Emprêsa! Pois êles só esbofeteiam? Vamos lá. Podiam muito bem açoitá-los, crucificá-los e esfolá-los. Só esbofeteiam!!!! Se na acta da assembleia geral lhes não fôr exarado um voto de louvor, por tanta humanidade, hão de concordar que é uma refinadíssima pouca vergonha. ¿Mas, realmente, os mineiros revoltam-se? Pior para êles. ¿Esquecem-se então de que a Emprêsa tem pelo seu lado a fôrça, e que os esmagará irremediávelmente? Fazem greve? Mas a greve termina aonde a fome principia. Quem ficará por baixo? O mais fraco. Ora quem capitula não impõe condições, aceita-as. A fome principia e ei-los novamente escravizados. Então, como um exército vencido que entrega os seus troféus e as suas bandeiras, os grevistas entregam os seus direitos, os seus sonhos, as suas utopias, as suas ambições. E voltam novamente ao escuro da mina, ao ar irrespirável, à meia-fome, ao trabalho extenuante, emquanto os directores da Emprêsa recomeçam a partida de bilhar interrompida. Courrières fêz 1:200 vítimas. ¿Sabem o que mais comoveu a Companhia exploradora? Não foi a ceifa de mil e duzentos homens válidos, de mil e duzentos cérebros e corações, de mil e duzentas vidas. Não foram os lamentos de mil e duzentas famílias que se carpiam, que ficavam na ruína e na mendiguez. O que a comoveu foi a ruína, a perda dos poços, o ruir das galerias, os motores paralisados e torcidos, as máquinas destruidas. Foram os lucros que não se realisaram, os dividendos que não se distribuiram. Um homem a quem roubaram a bôlsa pode lá preocupar-se com a morte em casa do vizinho! Oitenta por cento dos desastres é culpa das Emprêsas, que não teem outro fito senão roubar à terra a matéria que as há de enriquecer. A segurança dos operários só é assegurada quando a falta dela pode prejudicar interesses de senhores. Os acionistas, emquanto o dividendo corre, claqueam. E êsse rega-bofe é às vezes interrompido pelo estalar dos travejamentos, pelo ruído das derrocadas, pela grita dos feridos e pela lembrança dos que lá ficaram no silêncio das galerias, irremediávelmente. Pois apesar de tudo, possível é que os mineiros não sejam atendidos. Para admirar será se o forem. Apesar do perigo que correm, a doença à espreita, a morte perto, a velhice impossível, as suas reclamações parecem absurdas aos Directores. Se, como no _Germinal_, algum Maheu ignorado levanta a voz para dizer «a sua miséria, a miséria de todos, o duro trabalho, a vida de brutos, a mulher e os pequenos gritando de fome em casa»; para dizer que é uma iniqùidade uns morrerem de fome e outros de indigestão; para dizer que é uma torpeza uns morrerem de trabalhar tanto emquanto outros bocejam à regalona, a Direcção promete estudar. Não estuda nunca. Mas a voz dêsse Maheu, dêsse Maheu ignorado, ficará no espaço acusando, e marcará com um ferrete de infâmia o crime, êsse crime inaudito ratificado em uníssono por três mil peitos; o crime deles andarem ali a 800 metros debaixo da terra, arquejantes, famintos e ignorantes, para que Calígula, o doido, ponha freio de ouro ao seu «Incitatus» e Nunes, o patife, mate cães a tiro na quinta da Formiga. O mesmo devia pensar aquele Suvarine, o russo, que nos aparece como um herói, quando nas trevas, alta noite, suspenso sôbre a fundura do poço, armado de trado e serrote, começa no revestimento da mina a sua obra de destruição. Um sábio português Era inquestionavelmente um sábio êste pobre Ferraz de Macedo _dos crânios_, sôbre quem o dr. António Aurélio da Costa Ferreira vem de tratar num opúsculo sentido e sincero. Um sábio a valer, com amor quintessenciado aos seus crânios, às suas medições, e a sua admiração pelos snrs. Quatrefages e Manouvrier. Não vai o tempo para sábios e êle ressentiu-se disso. Faltou-lhe a atmosfera de carinho a que todo o homem tem direito. Em vida foi um misantropo vivendo a vida sonhada de todo o cerebral que se sente distanciado da sua época, um século adiante, perdido da sua tríbu e tendo só a confortá-lo os seus cadernos de notas e uma fé, uma vontade, mui digna de encomiar-se. De resto nem a atenção dos poderes públicos lhe deu audiência senão à pressa, nem êle teve nunca geito para o palavrear solerte dos vivedores profissionais. Fortuna, emquanto a teve, houve por bem desbravá-la em todos os justos e generosos empreendimentos. Publicou o _Cancioneiro da Vaticana_ e amorosamente coleccionou bem um milhar de crânios sôbre que deixou curiosas notas e estudos preciosamente documentados. Que, já Fialho de Almeida o disse, no seu artigo dos _Serões_, não seria êle um sábio que farolizasse ignotas brumas da sciência, mas foi um documentador paciente, um consciencioso observador, cuja rigorosa análise tem crédito no mundo scientista e profissional. Ribot confirma. Abaixo dos grandes criadores, dos que descobrem, dos que trazem novos horizontes à humanidade, há os talentos que explicam comentam e desenvolvem as verdades descobertas e que pela sua experiência analítica são os que rotulam com exactidão a categoria da descoberta e muitas vezes tambêm a anulam. Seria um dêstes talentos Ferraz de Macedo. Mas que robusta energia, que frondosíssima tenacidade a enchia! Só isso o faria grande se êle já o não fôsse por trabalhos que tinham merecido de Manouvrier a opinião de ser «um homem conscienciosíssimo, um pesquisador infatigável e instruidíssimo, dotado de notável tenacidade» (_Progrès médical_--15-VI-1889), e de Quatrefages os melhores elogios na sua _História geral das raças humanas_. É inútil dizer o resto. Morreu pobre, esquecido e crente. Nenhuma indiferença, nenhuma ingratidão, nenhum desdêm pôde soterrar-lhe a crença. Quem nos déra a todos nós a tranqùilidade espiritual e o desdêm bondoso da sua alma. E tiro o meu chapéu. Não há impugnadores de que êle fôsse um sábio, um verdadeiro sábio. * * * * * Esta separata agora publicada pelo dr. Costa Ferreira é uma bela obra. Os nomes dos grandes mortos são como as plantas. Precisam de jardineiros, cultores apaixonados, tratadores conscienciosos e dedicados, senão breve vem a delir-se na memória das gerações e o seu derradeiro pouso é nas páginas dos livros especialistas a que lá de vez em quando um ou outro compulsor estudioso sacode o pó e afugenta a traça. Precisam de quem buzine ao vulgo, para escarmento duns e exemplo doutros, a sua vida e as suas obras. Sempre assim se tem feito. O nome de Ferraz de Macedo não podia encontrar mais piedoso cultor do que o seu discípulo e médico Costa Ferreira. Possuido do mesmo acendrado amor aos estudos antropológicos, amando o mesmo ideal, Costa Ferreira dele recebeu as últimas vontades. Foi êle o testamenteiro de «mil e tantos crânios, trezentos e tantos esqueletos, de origem conhecida, reproduções estereográficas de crânios célebres dos principais museus da Europa, tudo medido e rigorosamente observado e, com êle, arsenal antropológico e livraria» que Ferraz destinou ao Museu da Escola Politécnica. É êle tambêm que, cumprindo um último prometimento, tomou à sua conta o não deixar esquecer o nome do mestre e continuar-lhe a obra apoteotizando-lhe o nome numa contínua e modesta memoranda dos seus trabalhos. Piedosa homenagem esta, tanto mais para encarecer quanto é certo que, dada a indiferença geral e oficial, ninguêm tal encargo tomaria. Morreu, acabou-se. Trate cada um de si e já não é pouco! Auscultem um milhar de criaturas e digam-me se não é assim que elas pensam! Falho de senso prático como todo o cerebral, êle só tinha uma única paixão: a sciência. Só ela o vulnerabilizava, babando-se diante duma esquírola do homem terciário. Fora da sciência, não vivia. Nada sentia que não fôsse passado pelo crivo dos seus apontamentos e pela ideia dos seus crânios. E tão afastado o traziam os seus estudos, da vida vívida, que breve iria à mendiguez se mão provedora e amiga não fôsse, acordando o sábio do seu reino encantado, cuidar-lhe da mantença. Nessa abstracção tão funda viveu, com seus canários os pequenitos da vizinhança, os seus crânios «como num celeiro o grão que espera embarque», medidos, e, ensacados por êle, com mão reminiscenciada dos seus tempos de aprendiz de alfaiate, e os seus gatos, que morreu sonhando. «Depois de morto é que eu viverei... Para os novos é que eu apelo. Êles que me continuem e me vinguem». Tais foram as suas últimas palavras, erguendo-se num repelão e visionando ainda uma visão acariciadora. Não voltou a falar. Costa Ferreira tomou o encargo piedoso de o lembrar, de o não deixar morrer de todo, na ingratidão indígena. Tal disse e tal cumpriu. O sábio morreu. Os jornais titubiaram, os amigos escapuliram-se e, mais tombo menos tombo, lá ficou no seu coval, talvez ainda com saudade dos seus crânios e dos seus apontamentos. Solitário como foi em vida, assim o foi na morte. A sua apoteose não chegara ainda. Os gazeteiros não carrilhonaram às multidões cretinizadas nem sequer o «ilustre e o distinto» da cozinha trivial. E como morrera pobre e modestamente se enterrou, tambêm não panegirizaram a criatura com girândolas de adjectivos surrados pelo uso e abuso da pindarização de todo o fiel bigorrilhas que morre e deixa ôsso que roer. Depois talvez fôsse assim melhor. ¿Que tinham que ver com êle os adjectivos? * * * * * Se agora a matula egoísticada bichanava sempre que o via um apodo desdenhoso, que resvalava do seu arnez de indiferença pelo que diriam, tão longe andava dos que com êle se acotovelavam, em tempos idos não faltaria o ingranzeu das turbas e o rumor falaz das vélhas macbéticas do sítio, taxando de pacto diabólico o seu estudo, qual outro Cláudio Frollo. Todavia êle sem se agastar da indiferença duns, da parranice doutros e do criminoso egoísmo de todos, contente se dava com a sua estreiteza e, não requerendo melhoria de sorte, cada vez mais se apartava do mundo real para o mundo de sonho. O trabalho para êle era tudo. Confinava a sua casa com as estrêlas, vista cá debaixo, da cidade, sitando lá no alto, ponto negrusco zimboriando o alto do monte. Uma árvore anciã, fronteiriça, foi sua companhia e só ela talvez cogitou na sua labuta interior. Ventos brigosos sinfonizavam óperas de tormenta, numa orquestração como só a tem o infinito. Tudo as sentia. A árvore vélha bracejava agitada e angustiosamente. A cidade lá em baixo era um torvelinho de cousas indistintas. Só êle prosseguia, medindo, classificando, registrando. E podia um vento mau terremotar a casa. Podia um tufão furioso ir desmoronar as sacas de crânios e formar no adro a pilha de crânios que é o quadro de Verestchaguine, aquele pintor russo que morreu na guerra russo-japoneza a bordo do _Petropavlosk_,--_Après la bataille_. Êle não sentiria, êle continuaria as suas notas, e só as terminaria quando nada mais, nenhuma sutura, nenhuma bossa, nenhuma asimetria, houvesse a notular. Se nunca foi aos cornos da glória é porque lhe faltava a destridade dos malabaristas do reclamo. A sua tratabilidade de sábio raso, sem alardos de sciência, nem emprenhidões de basófia, contumaz em lusas celebridades, de todos o tornaram querido. Depois um quási nada de antropófobo, a antropofobia do sábio que se ensimesma em lucubrações profundas, e gasta a vida à _luz estudiosa_. Era esta que, pelas negridões da noite, brilhava sempre no seu gabinete, como na sua mente brilhou sempre a fé, a fé numa perfectibilidade do homem e uma consolação no estudo, que, estou certo, afinal talvez nunca chegasse a encontrar, que o tornavam quási um estranho a tudo, a todos os arruídos e quermesses que lá ao fundo convulsionavam a cidade. E quem sabe lá, a esta hora talvez êle esteja ainda contando ao verme as palavras enternecidas dos snrs. Manouvrier e Quatrefages e as saudades dos seus crânios muito amados. Então da outra vida, pensam as almas crentes, o sábio abençoará de-certo e tarefa bondosíssima, devotada e carinhosa do Dr. Costa Ferreira. Emigrantes Paro diante da reprodução dum quadro. É do Salon dêste ano, intitula-se «Émigrants» e assina-o Paul Sieffert. Eu não conheço o pintor. O assunto conheço demasiadamente. Se não viram o quadro, eu conto. O quadro do sr. Paul Sieffert é uma gare ou cousa que o valha. Cai neve. O horizonte é longínqùo e a perspectiva monótona. Nem uma árvore, nem uma planta. Neve, montes ao longe, neve sempre. Á direita vagons. Vagons de mercadorias, vagons que esperam tempo de seguir, levando não se sabe o quê, ocupam quási tôda a tela. No primeiro plano uma mulher sentada no chão estende um peito à voracidade do petiz que manduca. O macho, dorme ao lado, cabeça sôbre uma perna sua, braço estendido ao longo do corpo. A mão é primorosa. O busto bem estudado. Na cara--a cara é tôda uma psicologia--mostra a estereotipia de inumeráveis privações. Parece repousar, ou sonhar, cavada a face, bem vincadas as rugas que a angústia marca a baixo relevo no rosto dos que sofrem. A mulher ao lado cogita. Parece olhar-nos. Não olha. Ela não vê. Scisma! Em quê? Só ela o poderá dizer. Uma trouxa mísera, junto, é tôda a bagagem. Êle tipo de operário, ela de fêmea resoluta e sofredora. Vão partir. Vencerão? Quem o saberá? Não sei porquê, são-me simpáticos estes tipos. Se pudesse, protegia-os. Sucede muitas vezes a minha piedade ir de preferência para os tipos que os meus pintores ou os meus artistas me entremostram--tão pouco a merecem, os que a gente topa todos os dias. Ao lado uma ranchada manduca, ainda. Mais longe, pequenos ranchos, trocam esperanças. Um vulto, ao fundo ou quási, remexe a maleta. E, como se o pintor os quisesse destacar, aparece-nos, quási escondidamente, um vélho que sonha, pelas costas um vélho capote, no olhar uma nostalgia feroz, contrastando com um homem que, de bruços, rosto apoiado na palma, scisma. Não scisma em sonhos. Scisma em realidades. A energia da sua expressão traduz-se assim. É amargo. Êste homem sabe da vida. Há combates no seu cérebro. Vencerá? Todos êles vão partir. Ilusões, quimeras, esperanças, é a bagagem. Sabe-se lá quem vence? Até aqui o quadro. Se a agente quiser realidade, apesar da tela ser de Paris, temo-la bem perto. Nós somos do país da emigração. O quadro de Sieffert é tambêm nosso, com a diferença de o nosso ser de mais recrudescível agonia. O português é mais triste. Todos os dias desembarcam nas estações, mangas de gente engajada que sonhou e ainda vem sonhando. Vão até ao Brasil e são o que se chama emigrantes. Então pagam a patente à realidade. O emigrante, por via de regra, não sabe escrever. Soletra às vezes, mas é mais frequente não saber. Não sabendo ler, não tendo a confidência muda da escrita por derivativo, estes cérebros deitam-se a sonhar como nunca sonhou ninguêm. As histórias das princesas encantadas, as mágicas, os contos da carochinha e mil belezas populares foram criadas de-certo por quem não sabia ler nem escrever. O Sonho é a válvula. Ai daqueles pobres cérebros se não tivessem o Sonho! Terminariam no suicídio. Mas o Sonho é a miragem. Acreditou alguêm no Sonho? Sempre êsse alguêm pagou caro a sua confiança. Porque é certo: Só quem teve pesadelo acordou em realidade. Quem sonhou delícias acorda mais brutalmente--como alguêm que tendo vivido dois meses em quarto escuro o trouxessem de repente para a alacridade duma paisagem batida da soalheira. Sonham em Portugal, na solidão tranqùila da sua choça e quási sempre vão acordar em longínqùas e estranhas terras. Olham em volta. Quem? Ninguêm amigo. Indiferentes, criaturas a quem a dôr alheia, à força de vista e assistida, embotou tôda a sensibilidade. A saudade é o pior inimigo do emigrante. «Saudade gôsto amargo de infelizes, delicioso pungir de acerbo espinho», diz Garrett. Mas a saudade é tudo. Se se vê o mar, é um vapor que vem, porque vem; se um vapor parte, ai quem déra ir com êle, partir tambêm com êle. São os poentes, duma melancolia infinita, são as noites estreladas e tropicais, são nuvens que passam correndo, farrapos de sonho, recordações da infância, cousas dispersas. Tudo é saudade. E o pobre animal, bêsta de carga, gaguejando comoções, tem nos olhos uma angústia latente, uma tristeza intraduzível, mixto de resignação, de sofrimento e dum consuntivo mal. Mas, parte. Armazenam-o a bordo, num dêsses casarões flutuantes, âmbito estreito, muito desabrigo, trato mercenário e uma grade que os enjaula num restrito círculo de vida. Ali dormem, comem e sonham promíscuamente. E naquelas longas noites de travessia, enxugadas as lágrimas da partida, estranguladas as saudades da largada, só o mugir surdo das vagas lambendo o casco e os ronquidos surdos da máquina cumprindo o seu fadário. Pobres almas divagantes, vão tambêm embaladas no sonho, confiadas, e não escutando, no marulho do oceano, a sua raiva fria e hostil, mas um cântico embalador, que traz de onda em onda, de vaga em vaga, as recordações distantes, a misteriosa correspondência dos entes queridos que ficaram em terra. * * * * * Chegados, caidos no vértice duma vida estranha, tudo lhes é agressivo. Os dignos de piedade são intrusos. Que querem? Ganhar a vida. Que sabem? E, quando os míseros mostram os braços, já está lavrada a sua condenação. Como a Terra Mater é saudosa! E começa a agonia de viver a vida que já viveram, porque não é outra cousa a saudade. Mas viver só imaginativamente. Se beijou vai-se para se beijar e estendem-se os lábios para o vácuo. Abraçou-se e é só o espaço que se encontra. Passa a viver-se aflitivamente. Pesa mais a enchada. A serra é colossal. E como a planta dos trópicos que conduziram à Groenlândia, ou como o símio que julgasse a banana definitivamente extinta da face da terra, a criatura amarelesce e pende. Há um remédio--o regresso. Quando partiu, se é sonhadora, padece, se é desprendida pode triunfar talvez. Mas quantas lutas? Quantos esforços? É por isso que os brasileiros,--é assim que se denominam os emigrantes que partiram cedo e foram enriquecer ao Brasil--teem quási todos barriga grande. Porque se acostumaram a armazenar o sonho no estômago. Saudades, recordações, qual!--comer, beber, ganhar. Mas são raros. Os que voltam veem desanimados. Os que por lá estão vão vivendo. Depois o emigrante é sonhador e ignorante. Duas más qualidades. Há ignorantes que fazem fortuna mas nunca ninguêm viu coalhar dinheiro a um sonhador. São ambiciosos? Alguns. Outros partem com o fatalismo trágico de quem vai cumprir um destino. É o caso do vélho do quadro de Sieffert. Os ambiciosos ficam por lá, raramente voltam e geralmente o ambicioso verdadeiro é cosmopolita, não vive para a saudade nem para ninguêm que êle não seja. Por isso vence. Os outros vão e quási sempre ficam. Mas se voltam--pobres emigrantes--trazem um saquitelzinho com desilusões,--o espólio dum sonho morto,--um grande desânimo, a alma mais fenecida, o cadáver mais surrado e uma grande ânsia de voltar--que é isto que quási sempre traz o emigrante quando volta:--o saquitelzinho com o espólio dum sonho morto e uma grande ânsia, aquela infinita ânsia do regresso. Gabriéllo d’Annunzio Mão carinhosa e amiga manda-me de longe a última tragédia de Gabriéllo d’Annunzio. A edição é luxuosa e o livro chama-se _La Nave_. Exactamente no momento em que o correio me bate á porta, leio eu _Fradique Mendes_ na sua _Correspondência_. Não sei que destino mau nos pôs frente a frente de novo. Os livros são conhecidos vélhos e tambêm entre os livros, como entre os conhecidos, há íntimos. Pois encontrei-me de novo com Fradique aquela manhã em que dava uma volta pelas estantes, como se Fradique viesse Chiado acima, neurastenizado e aborrecido e eu lhe propuzesse uma cházada em comum. Devo declarar porêm, que Fradique não é meu íntimo. Fradique é um aristocrata, _snob_ um pouco, e muito pretencioso. É tambêm um _vencido da vida_ que se dá ares, mas confesso-lhes, prefiro aos vencidos os vencedores. Ia eu exactamente quando Fradique se revolta contra as «ideias feitas,» fala daquelle Cornuski, ou que o pareça, e diz das angústias críticas do russo. Diante das mais belas obras, Cornuski sentia a dúvida que o minava. ¿Não seria êle que não sabia ver? ¿Pois era lá possível que todos se tivessem enganado? E duvidando, achando as grandes obras sofríveis borracheiras, ou quando muito toleráveis banalidades, o desgraçado repetia para aturdir-se um pouco:--«Como é belo!» Agora estou eu assim diante do livro do escritor italiano. Eu não tenho paixão por d’Annunzio. Acho-o cabotino até ao infinito. O seu cabotinismo não se pode medir. O seu talento êsse sim. E duvido. ¿Será d’Annunzio o grande escritor que eu ouço dizer a todos? Debalde busco as suas obras, debalde leio os seus livros. Que demónio! Não me admiro, não me comovo, não rio, não choro, não sinto. Sim, porque nenhum dos livros de d’Annunzio nunca me fêz chorar ou me fêz sentir. São bem feitos, não resta dúvida. Mas que diabo! E dão-me ganas de o correr das minhas estantes. Desconfio muito que seja um intrujão. D’Annunzio é para mim um belo decorador. A sua arte é scenografia pura. Há sempre flores e perfumes nas suas páginas. O lilaz é talvez a sua flor preferida. O poente a sua hora predilecta. Os seus heróis não amam, lirizam. Os seus personagens não falam, murmuram; não sentem, representam. E, para que ocultá-lo, apesar da sensualidade capitosa que os inunda, iria apostar que são todos castrados. Para d’Annunzio o amar é assim como que uma oração, como que uma doce e suave embriaguez. Não é a rajada que passa, dominadora e perturbante, não é um cataclismo, não é uma tempestade. Não é. O amor nele é leve, muito leve, imaterial, bizantino e todo espiritualizado. Há sempre luar e sempre músicas celestes vibram psicologias profundas. Mas eu leio d’Annunzio. Leio-o mesmo muitas vezes para ver se o percebo. E no meu espírito fica uma impressão muito vaga de tudo aquilo, muito vaga e muito dolorosa. Porque, decididamente, não tenho olhos para ver aquelas belezas tôdas e o meu espírito não pode, sem _Bœdecker_, penetrar naquelas regiões encantadas da prosa. Um livro há que eu guardo, que leio com prazer e tenho como óptimo. É o seu _Episcopo & C.ª_ e os seus contos. Êsses sim. Ponho-o a par dos deliciosos de Guy de Maupassant. Ali há sinceridade e eu sinto quando os leio. A operação feita a bordo do lugre _Trindade_ e o seu _São Pantaleão_ de pedra, que esmaga a mão a um dos condutores, que depois lha vai oferecer, são prosas magistrais. Mas, declaro: _O Fogo_ é qualquer cousa de ultra-humano, de divino, do demónio que os leve, que não sei o que êle quere dizer. Não me falta vontade para o compreender. Mas aquilo ainda não é para mim. Linguagem para deuses só a deuses é compreensível. E, à hora do poente que êle tanto prefere, o céu lilaz, lilaz a terra tôda, a treva abraçando o mundo, vindo a curvar-se num beijo sôbre o dia que morre, eu volvo desanimado: -Deve ser essa a razão!... D’Annunzio representa o homem para quem o nó da gravata todos os dias é uma tortura. Tenho a impressão de que êle se perfuma e é incorregívelmente, viciosamente _dandy_. Da sua vaidade não falemos. Deve ser infinita a vaidade dêste pobre diabo, contou-me uma vez o Eclesiastes. A sua prosa é tambêm assim. Não tem arestas. Tão harmónica, que parece ter cópula com a música. Ricamente vestida, mas só isso. É mesmo o que a caracteriza. Se o _desideratum_ é agradar às mulheres, d’Annunzio deve ter conseguido, porque às mulheres agrada-lhes sempre o que não percebem. Depois, a feminagem perfumada que impregna os seus livros faz com que seja buscado com prazer e com prazer deixado. Daudet, na minha estante, está perto. E, devo confessar-lhes, eu adoro Daudet. Daudet é o poeta da vida. Objectam-me que d’Annunzio é um poeta. Mas Daudet faz a poesia da prosa, com princípio, meio e fim. D’Annunzio é indiferente. Leiam os senhores os seus livros por onde quiserem e encetem a leitura por qualquer página. Isso não fará diferença. Faz sempre sentido. Há lilaz em tôdas as páginas. Poeta foi Gauthier e eu ainda hoje o leio com prazer. Tem muito de misticismo êste Gabriéllo! diz uma dama. Pois bem, minha senhora, o lugar dos místicos é no céu. Queira dizer ao seu d’Annunzio que mude de feitio senão perdeu um freguês. E é que nunca mais o compro!... Uma cousa curiosa que eu tenho notado é que entre os artistas que não teem gravata e aqueles para quem o nó da dita é uma preocupação, os primeiros teem sempre mais talento. Não sei porque, mas creio que entre um Verlaine que morre no hospital e um Gabriéllo que manda fazer o mausoléu em mármore, o do hospital vale mais. Mas eu não discuto! Os senhores não se zanguem, ou zanguem-se embora, que eu nada lhes levo por isso. Isto é comigo sómente. Se eu lhes digo que prefiro o Baudelaire ao Torquato Tasso! Se d’Annunzio é poeta, é um parnasiano. Se é prosador, a sua prosa talvez seja poesia. Pela abundância de imagens, pelo colorido pouco vulgar, decoração e o não descrito, seja embora um poeta, como prosador gosto dele nos contos. As suas novelas não as entendo. Eis o que eu penso. De resto qualquer dos franceses ou dos espanhóis mas dá iguais. E se querem experimentar já lhes não digo que leiam d’Annunzio e logo Gauthier. Leiam por exemplo d’Annunzio e Suderman. Se vos não der a impressão que os livros de d’Annunzio são escritos por uma mulher, não sei que diga! Tolstoi quando começou às punhadas a Shakespeare devia sentir a tortura do russo do livro de Eça. E todavia Tolstoi com tôda a sua mansidão, a sua paciência sofredora, a sua resignação passiva e néo-cristã não pode compreender a tempestade de paixões que é Shakespeare. Porque Shakespeare é o colosso do Ódio e do Amor, o Céu, a Terra e o Inferno. E eu penso que é preciso ser-se um vélho bruto para não compreender Shakespeare. Outro tanto dirão de mim. Não compreender d’Annunzio? ¿O poeta do amor subtil, dos perfumes, dos lilazes, da volúpia perene, capitosa e aristocrata; o prosador imaterial, cheio de doçura, magistral, ilustre, divino, mirífico; a pena de ouro que traçou o _Fuoco_, o _Crime_, as _Virgens_? Eu sei lá! Mas é um crime! E estou repêso de confessar o meu pecado. Eu não sabia... E ponho-me a querer entender d’Annunzio. Tomarei um explicador. Porfiarei. A minha ignorância é lamentável. Mas, quando estou envergonhado e confuso um diabinho irónico vem e segreda-me ao ouvido que os outros, que o adoram, que o admiram, percebem-no tanto como eu. Compreendo agora. É uma «ideia feita», o culto de d’Annunzio. E como o desgraçado Cornuski, eu, torcendo as mãos, na minha impotência de o compreender terei que murmurar desconsoladamente o meu:--«Como é belo!» Um poema (Carta ao general Henrique das Neves) Meu amigo: Já lá vai mês e meio de silêncio sôbre o recebimento do poema _Apoteose Humana_, que o meu amigo teve a gentileza de me ofertar em nome do autor. Só hoje lhe escrevo, mas lá diz o ditado... O amigo sabe o que o ditado diz. Pediu-me a minha opinião. Sem embargo dela ser uma opinião a pé, uma opinião infantaria, pacata, modesta e de bons costumes, vou dar-lha. Sou pouco amigo de dar, mas emfim... Eu podia dizer-lhe cousas muito lisongeiras do poema do seu amigo. Podia dizer-lhe mesmo que ambos eram talentosos, modestos, bem criados, que recolhiam a horas, não fumavam, etc., etc. Mas não. Prefiro dizer-lhe abertamente o que penso, brutalmente, sem transigências nem banalidades. Portanto o que aí vai é rude, com a rudeza dum homem que não precisa para nada dos seus confrades em letras, consagrados, e não consagrados, e que vive «achando a quàsi todos os deuses pés de barro, ventre de gibóia a quàsi todos os homens e a quàsi todos os tribunais portas travessas» como já nos _Gatos_ escrevia Fialho. Bem se vê que o seu poeta, o sr. M. Joaquim Dias, nunca saiu do Faial. Se saisse não fazia poemas a uma cousa que não conhece senão em teoria:--O Homem. Mantegazza, que o estudou a fundo, sabe o que êle é; eu que lido com êle, ha muito sei o que êle vale. O que lhe digo em verdade é que êle nunca mereceu os versos do seu amigo. O poeta julga o Homem pelos livros. Livros são, quàsi sempre, gramofones de ideias. Deixe-os cantar. Valia-lhe mais um ano de viagens do que ler todos os livros que tratam do Homem. É o seu amigo, médico? É teólogo? É psicólogo? É legista? Só assim se compreendia que êle conhecesse o assunto do seu poema. Porque o médico conhece o homem em tôda a sua miséria; o teólogo em tôda a sua estupidez; o legista em tôda a sua maldade, e o psicólogo em tudo isto junto. Mas o seu amigo é sómente poeta? Poeta, nada mais? Sim, isso vê-se logo. Poeta é sonhador. Os poetas teem ideias muito diversas de todos os outros mortais. São poetas e basta. Pediu-me uma carta. A carta aqui vai. Se lha não envio particular, pelo correio, é porque receio que lhe introduzam algum décimo da lotaria espanhola e o amigo sofra transtornos por minha causa. Mais nada. * * * * * Logo no prefácio diz o seu poeta: «...Fiz, pois, uma apoteose ao Homem, a êsse ser que triunfou nas lutas terríveis do passado, que compreende os fenómenos e as leis e progride». Ora eu não admiro o Homem. Se algum sentimento tenho por êle ou é desconfiança ou desprêzo. Deus, criando o homem à sua imagem e semelhança, foi um escultor bem medíocre. E pode limpar a mão à parede, se é essa a suprema manifestação do seu génio. Depois, maravilhosa forma de reclamo, deu às criaturas o poder de reproduzirem infinitamente a sua obra prima. Ora diga-me, meu caro amigo: ¿Em que devemos admirar essa obra, essa vil e miserável máquina de ossos, nervos, músculos e tendões? ¿Que criou, que inventou ela de produtivo? ¿Inventou a dinamite, a melinite, a himalaíte? ¿Canhões que arrasam cidades, projécteis cataclísmicos, blindagens pavorosas? ¿E isso que vale? ¿Inventou os deuses, os reis, as religiões, os ritos e os dogmas? ¿E isso para que serve? Antigamente, nos tempos primitivos, o Homem trocava um machado de pedra pela pele dum urso. Agora troca a mesma pele por umas pequenas rodelas de ouro, de prata ou de cobre, com uns números, a que chamou dinheiro, que são tudo, valem tudo e tudo podem. Antigamente não pagava décimas, nem contribuições, nem impostos. Era senhorio da sua caverna e não necessitava de tomar óleo de fígado de bacalhau. Não tinha botas, mas não sofria dos calos. Com a invenção das botas vieram os calos, e com os calos o rifão que diz «quem tem calos não vai a apertos». Parece que o general vae concordando? Apenas falei em calos, pareceu-me ouvir dizer o meu amigo: «Diga-me cá a mim o que isso é!» A mulher era nua e mentirosa. O homem era quási urso, porque o urso era quási homem. Ainda não havia médicos, nem boticas, nem literatos, e a poesia, meu caro amigo, tinha muito menos pau de campeche. O ar era de todos, a terra de todos era e cada um fazia o que muito bem queria. Depois é que veio essa pouca vergonha de arregimentar a gente, sob o nome de famílias, tríbus, nações, etc., que fêz com que viesse a praga dos chefes, chefes e mandões de tôdas as castas e feitios, qual deles mais nocivo e funesto: chefes de família, chefes de repartição, chefes de polícia, chefes de estado e até generais, meu caro amigo. Os enterros eram todos iguais. Não havia enterros de primeira classe. Desconhecia-se o espartilho, a sobrecasaca, o chapéu alto, e as vantagens do algodão, que impinge por boa mulher o arenque mais chupado. Veja lá que temposinho! Se os povos estavam em guerra era tareia bruta, mòcada de criar bicho. Mas não metia tiros. Era tudo a cacete. Ainda se não tinha inventado a metralhadora, o leque da Morte, nem a baioneta, uma navalha que por não se poder trazer na algibeira do fato, se traz pendurada à cinta, numa algibeira de lata. Os deuses eram muitos, mas todos súcios, todos pândegos. E apesar de não haver jornais, todos sabiam perfeitamente o que se fazia no Olimpo. Se chovia é que Baco se empiteirara e que o vinho era branco,--que é bebida diurética. Vá vendo! Caminhamos pois da liberdade para a servidão. ¿Onde está êsse progresso de que fala o seu poeta? Se êle me quere impingir que progredimos, porque mais isto, mais aquilo... temos conversado! Quere um exemplo? ¿O general não padece de apertos de uretra? Ora suponha que padecia. Se fôsse no tal tempo vertia onde muito bem desejava, que ninguêm tinha nada com isso. Mas nestes tempos de progresso, vá o general fazer isso na rua, e verá o que lhe sucede. São dez tostões de multa. Vá vendo que progresso tão catita! Mas que o progresso é indubitável... sim... não digo que não. Veja lá se nos tempos em que o homem se cobria de peles podia haver gatunos de carteiras! Isso podia êle. Ainda não havia bolsos! E se antes de se inventarem as casacas se corria perigo de confundir um criado de mesa com um conselheiro de estado! Eu embirro com o meu semelhante. É, por via de regra, cínico, trapaceiro, mentiroso e velhaco. Li algures que êle era meu irmão... em Cristo. Deve ser intrujice, porque eu não conheço Cristo nem seu irmão. Quando me estende a mão lá tem a sua fisgada. E eu desconfio logo que, se já me não embarrilou, está para me embarrilar. Nestes tempos de progresso, tenho pena de não ser troglodita. Teria tudo que não tenho e sobejar-me-ia muito do que tenho. Seria feliz. Dir-me-há o general que hoje se sabe. ¿Mas que diabo de felicidade dá o saber que êles foram muito mais felizes do que nós? Olhe que saber alguêm feliz faz sangue mau. ¿E pode por acaso ser-se feliz, hoje? Não. E então podia. Aí tem. Antigamente havia liberdade. A de hoje é só poética. O homem de hoje é um escravo e a sua carta de alforria é a morte. Se o general contesta lembro-lhe se não tem por desventura alguma décima relaxada. Não tem? Não tem, mas pode ter. Como vê, não concordo com o tema da _Apoteose Humana_. Êle é de tal ordem que, se o poeta não merece que o general lhe dê oito dias de detenção, tambêm não é caso para louvor na ordem do dia. Eu não concordo. Sou novo e conheço já um número avultadíssimo de patifes. O general é velho, deve conhecer muitos mais. O diabo então, que é velhíssimo, deve conhecer um pavor deles. Já vai longa esta. Eu não sou maçador de profissão e já me ia tornando impertinente. Desculpe-me e creia-me um soldado raso de letras, bastante insurreccionado. Oriente O trabalho é afinal uma cousa consoladora. Talvez a única felicidade que a vida tem. Trabalhar, trabalhar muito, o trabalho tornado ideia fixa, sem dar logar a outras ideias, sem dar logar ao sonho, sem deixar que a Fantasia arquitecte os seus castelos dourados em douradas bolas de sabão! Invejo os que assim trabalham. Zola invejava o trabalho rude dos operários. Ser marceneiro, ser carpinteiro, chegar a noite, ter a sua cadeira ou a sua cómoda pronta, e descansar! Todavia Zola era como poucos um trabalhador. Lembro-me de Zola sempre que olho para a estante da minha livraria, onde se enfileira a obra vasta de Blasco Ibáñez. Eu, algures, já lhe chamei o Zola da Espanha. Cada vez que vejo a sua obra me convenço mais de que não errei. Sómente Zola era um rude e esforçado trabalhador, vindo ainda com um plano que nada conseguiu fazer mudar e, à semelhança de Balzac, pondo-o em prática numa série interminável de volumes. Blasco não. É um Zola sem plano. Talento robusto e pasmoso, não tem de Zola a testarudez orientadora nem o gigantesco e sintético sôpro insuflador. Mas para Zola espanhol está bem. Um admirável e correntio estilo, uma ironia às vezes contundente, amável outras vezes e sobretudo um poder pictural assombroso. Colorista intenso são verdadeiramente zolaescas as suas descrições. E até no aspecto humano se parece com Zola. Como Zola êle é um homem de bons músculos, nervos sólidos e uma pertinácia que chega a assombrar. Vem isto a propósito do novo livro de Blasco. Intitula-se _Oriente_ e é a reunião de crónicas suas publicadas em jornais espanhóis e sul-americanos. Tem êste volume na sua obra um número bastante elevado. No seu género é porêm o segundo ou terceiro. Blasco tem um livro adorável que intitulou _Nel pais del arte_ e o _Paris_, reunião de artigos. O primeiro da sua viagem à Itália, crónicas maravilhosas de leveza e de transparência; o segundo das suas impressões da capital do universo, como os franceses pomposamente chamam à sua feia cidade. Êste, são impressões da sua estada em Vichy, estação de água célebre, e da sua visita ao Oriente das mil e uma noites, das princesas encantadas, das mulheres de véu na cara, dos serralhos, dos rajás, dos sultões, onde há _sublimes portas_ e séquitos maravilhosos, pedrarias, lendas, desconhecidas floras, mulheres desconhecidas, sensações nunca experimentadas. É por isso que dentro da alma de cada artista uma mulher velada se debruça segredando-lhe--Ao Oriente! Ao Oriente! O Oriente é o desconhecido, será sempre o desconhecido. Leiam-se embora tôdas as descrições desde as _Cartas que os padres jesuitas escreveram do Japão no ano_..., e das _Peregrinações_ de Fernão Mendes Pinto até aos mais recentes trabalhos; leiam-se os autores franceses e inglêses que se esforçam por mostrar-nos o Oriente scientífica, artística e mentirosamente; leia-se tudo, leiam tudo o que quiserem, que sempre êsse desejo lhes empeçonhará a existência. Quem não foi a Paris anseia por ir lá. Depois quere ir mais longe. Mas emquanto não foi, Paris é tudo. Há criaturas debruçadas sôbre esta palavra: _Paris_, a Babilónia, onde a Arte é grande, onde tudo é grande, porque tudo é grande na fantasia. A cidade enorme, onde há esplêndidas mulheres, equipagens faustuosíssimas, nababos, banqueiros, artistas ante os quais o mundo inteiro boquiabre a sua admiração. Porque a criatura que sonha não sonha que as esplêndidas mulheres são ambiciosas vulgares onde só a _toilette_ é alguêm, que as equipagens conheceram e conhecerão múltiplos donos, que os nababos são às vezes postiços, que os banqueiros são quási sempre _escrocs_, e que os artistas são sempre uns pobres diabos que se matam, que se arruinam, que se gastam a correr atraz duma quimera que com êles se encafua quási sempre dentro do caixão de chumbo ou de casquinha que os leva direitinhos, com a guia de marcha para a Imortalidade, a dormir no _Père-Lachaise_. Ao Oriente! Ao Oriente! Chateaubriand foi ao Oriente. Foi lá tambêm Flaubert. Foi lá Maxime du Camp. Gomez Carrillo então quintessencia o maravilhoso nas suas impressões da viagem encantada--_blagueur_ eterno, mixto risonho de fanfarrão espanhol e jornalista parisiense. Já Amicis, êsse Amicis, ultimamente morto, traçara as páginas adoráveis da _Constantinopla_. Pierre Loti então, postiço, sonhador e desdenhoso, contava as cousas com um ar de quem tinha o Oriente na algibeira. E para dizer que tinha, fizera da loucura realidade. Os seus salões eram orientais. E se alguêm duvidava, êle, correcto oficial de marinha, ciceronando, mostrava um Pierre Loti vestido de Buda, um Pierre Loti vestido de bonzo, ora hierático, ora pontifical, ora mandarinado, ora em uma cabaia de vulgar mortal. Blasco Ibáñez escutou tambêm a mulher velada. Tinha lido alêm de tudo isto aquele imortal louco que se chamou Julio Verne. Acreditava pois em maravilhas. Foi, viu e escreveu um livro, o que é uma linda vingança. Antigamente dizia-se chegou, viu e venceu. Daqui os amorudos lamechas fizeram o incomparável--chegar, ver e ser vencido. Isto é de molde dizer-se de joelho em terra, a mão no peito e assim um certo ar patético. Assim um certo ar bironiano, como se o pobre _lord_ tivesse que ver com estas tolices. O escritor, porêm, lê, acredita, faz as malas, compra o bilhete, vai, roubam-no descaradamente em tôda a parte, é comido de percevejos cosmopolitas, percevejos que, tendo vindo da Cochinchina no _couvre-pieds_ dum inglês, embarcam no outro dia na manta de viagem dum tirolês, encontra por tôda a parte caminhos de ferro, patifes, estradas reais intransitáveis, uma ignorância pasmosa e um fedor humano?! Que faz para se vingar? Puxa da caneta, uma caneta com depósito de tinta, puxa dos linguados e zás--sai livro. Em logar de contar o que passou, o que sofreu, as suas aventuras e os seus arrependimentos, as saudades que teve da sua casota e as vezes que torceu a orelha e ela não deitou sangue, não senhor! Conta cousas maravilhosas, fantasia, intruja e passa a balela aos outros. De tudo isto resulta um pouco: que todos os livros de viagem se parecem, exactamente como as cartas de amor, cujo fundo amoroso passional e estilístico está nesse livro de génio que se chama o _Secretário dos amantes_, tão genial que devia ser obrigatório, e que se não existisse se tornaria patriótico inventá-lo; e que as viagens me são extremamente aborrecidas, com o que ninguêm tem absolutamente nada. Se o _Oriente_ não trouxesse a etiqueta de Vicente Blasco Ibáñez, eu diria encolhendo os ombros e parodiando o verso célebre de Espronceda: «que haya un libro más que importa al mundo!» Mas não. Tive que o ler, e declaro que não perdi o tempo. O _Oriente_ é curiosamente interessante, e interessantemente curioso. Há nele de tudo. Descrições maravilhosas, ironia fácil, graça, e de vez em quando até gravidade, uma gravidade nada protocolária, porque eu não sei o que isso seja em Espanha, quando me lembro da _Marcha da Cadiz_ e do _Morrongo_. Publicado primitivamente em crónicas, recolhidas agora em volume, êste livro nada destôa da obra de Blasco, mesmo se dissermos que Blasco é autor de livros maravilhosos como _La Horda_, _Entre naranjos_, _Flor de Mayo_ e outros. E que, alêm disso, está horrorosamente traduzido em tôdas as línguas, como o Máximo Gorki, de quem um entendido me dizia outro dia: «Gorki é um mártir. Imagine que êle, escrevendo em russo, tem sido traduzido em tôdas as línguas e dialectos por aí abaixo». É assim uma cousa parecida com uma história contada aqui e que mil bôcas fôssem passando umas às outras até Alcântara. Cada uma tinha dado um átomo da sua originalidade. Tinha ido substituindo ou transformando. ¿Pois não é uma lei que «na natureza nada se perde, tudo se transforma»? Quando chegou a Alcântara a história está tôda transformada. Deixou de ser do seu inventor para ser duma sociedade anónima. Tal qual Gorki. «O Gorki em russo, diz o meu interlocutor, parece-se tanto com o que aí conhecemos, que foi traduzido do espanhol para onde havia vindo do francês e assim por diante, como uma galinha se parece com uma espada, para não dizer um ôvo com um espêto». O Oriente deslumbrou Blasco. Foi, viu e publicou o seu livro. Acho bem. Acho bem, tanto mais que deu aos seus 20:000 ou não sei quantos leitores o prazer de ler um livro adorável e desenfastiadamente escrito, que nos põe bem com a arte e com as viagens. E agora, que fechei o livro e me preparo para fechar a crónica, sempre lhes direi que o trabalho é uma cousa consoladora. Eu penso assim. O meu vizinho,--todo o cronista tem um vizinho pensador ou pensativo,--pensa que o trabalho é bom para preto. Não importa. Eu penso que o trabalho ainda nos põe bem com a vida e que, se assim não fôsse, eu não teria ido ao Oriente em espírito, não teria lido um livro magnífico e não teria gostosamente esportulado os seis tostões que me custou o livro de Blasco. As flores Certa ocasião em que, ido dos confins de Lisboa, me decidi a visitar o solitário poeta do _Hereje_ e da _Traição_ na sua casa da rua da Bela Vista, à Graça, ouvi dele, ao perguntar-lhe qual a sua flor favorita, a seguinte resposta: «Que sei eu, meu amigo? As flores são como as criaturas. Há nelas tambêm uma hierarquia. ¿Quem pode deixar de adorar uma dessas rosas do Japão, aveludada, enlanguescida, aristocrata, soberana? A rosa chá é uma duqueza formosíssima e decotada. Ah! a rosa chá! Mas tenho uma decidida predilecção pelo cravo rubro, o cravo sangue, estridoroso, flamante como uma bandeira desfraldada. O cravo petulante! A violeta é uma menina romântica. Há violetas que sabem de cor versos inteiros de Soares de Passos. A camélia é uma delambida. Não veste bem. Tem algo duma burguezinha carnuda e afectada. Mas não desadoro na sua humildade o cacto silvestre e a flor de lis». Ora, como o meu querido Gomes Leal, considero que não há nada que se pareça tanto com uma linda mulher do que uma bela rosa. E por isso é que, sempre, ao ver uma rosa me lembro duma bela mulher. Ao ver um campo de flores, um jardim cuidado e mimado, como Alexandre ao espraiar os olhos pelo seu exército dum milhão de homens, não posso deixar de scismar em que tudo aquilo foi feito para morrer. Alexandre considerava que ao fim dum século nenhum de todo aquele brilho sobreviveria, nenhum dos seus guerreiros conservaria o seu porte marcial e humano. Eu, ao ver a _montre_ dum florista, na falta de jardins por onde alongar os olhos, penso tristemente que nada restará daquela beleza ao fim de cinco dias. Envelheceram os cravos, murcharam as rosas, penderam os lírios, os amor-perfeitos secaram. O próprio funcho, o feto silvestre, êsses mesmos se vão secando. E de tôda aquela beleza nada resta, nada. Fôlhas sêcas, fôlhas moribundas, flores agonizantes. O tempo, impiedosamente, com sua mão gelada as tocou e lhes foi a pouco e pouco dando a morte... Uma rosa branca é uma linda mulher. A mulher envelhece como a rosa; a rosa morre como a mulher. Conservo na minha vida uma grande saudade. Foi duma rosa branca, enorme, perfumada, que numa jarrinha, onde um par dulcíssimo e precioso, entrajado à Império e miniaturado à Watteau, dançava um clássico minuete, viveu, agonizou e morreu. Trouxera-a uma tarde, déra-ma não sei quem. Posta na sua jarra, depois de mil cuidados, a rosa era linda e desdenhosa. Linda e desdenhosa me acostumara a vê-la. Falava-me às vezes. O seu perfume dizia-me cousas estranhas, misteriosas, exquisitas, que me embriagavam, que me faziam sonhar. Acostumei-me a corporizar a rosa. Já não era uma flor com a sua anatomia que a botânica me ensinara. Era uma linda criatura, sonhadora, melancólica, fiel e amada, que me fazia feliz, mas que se definhava na sua solidão. A-pesar do calor dos meus beijos, do meu recolhimento profundo e magoado, ela foi-se «pouco a pouco amortecendo», como no soneto célebre de João de Deus. Uma dorida mágua a mirrava e entristecia. Sem saber porque, via a minha rosa tossir. Mimei-a. Incapaz de amar alguêm, de a alguêm ser fiel, ageitei-lhe o pouso, dulcifiquei-lhe a estada. Fui seu enfermeiro vigilante. A pouco e pouco, porêm, a-pesar-de todos os meus cuidados, emurchecia. Uma tristeza vaga entrou com ela. Perdeu o brilho. Do setim das suas fôlhas sumiu-se o lustro, e amarrotou-se como as saias de sêda que se metem a trazer por casa. Encarquilhou-se. E um belo dia, como aquela donzela dos versos de Vítor Hugo, que morreu valsando, a minha rosa morreu. Tombou da haste agonizante. Docemente, tristemente, assisti à sua morte. Vejo agora no fundo duma caixa, o seu caixão, aquela rosa que foi o meu único amor, e que é hoje a única saudade da minha vida. Porque amei estremecidamente aquela linda rosa aveludada cujo perfume ainda hoje me entontece. E não a posso ver, ao seu cadáver, uma múmia galante e ressequida, que não entristeça. Era tão linda! Tambêm amo apaixonadamente as violetas. Diga embora o meu poeta que elas são românticas. Eu adoro os românticos, porque não sou no fundo mais do que um romântico que se travestiu em homem desta época para que o não roubem, para que o não assaltem, para que o não explorem, para que o não espanquem. Se adoro os românticos, é porque êles são afinal os únicos que sabem sentir e os únicos que souberam amar. Camilo, o romântico apaixonado, amou outra vez ao escrever a D. Maria Izabel as cartas de amor que seu filho assinava. E pelo rapto foi uma flor que o vélho romântico indicou para dar o sinal no peitoril da janela da raptada. Uma flor! Camilo, que fôra um romântico tôda a vida, como um romântico amando, e odiando com uma sanha que só hoje se encontra nos vélhos alfarrábios, como um romântico morreu. Quem poria hoje uma flor? diz Alberto Pimentel. Ninguêm. ¿Tambêm, quem ama hoje as flores apaixonadamente? Um ou outro maduro que as cultiva, que as estremece e que as chora. Adoro as violetas. São simples e são modestas. O perfume das flores é o espírito das mulheres. Há flores magníficas, supremas de graça, estonteantes de côr, que não cheiram. Não gosto delas. Há mulheres vestidas de setim, perfumadas a lilás, que não teem perfume. Quem as pode amar? Os homens, querendo corrigir a natureza, fizeram flores de conta própria por cruzamentos e enxertos. Sairam flores macabras, flores _canailles_, flores que lembram _cocottes_, berrantes, auriflamantes, estonteadoras. Mas não cheiram. Não teem perfume. Como o pintor da antiguidade que encomendara ao discípulo uma Vénus e que êste lha apresentara ataviada, mas feia--gargantilhas de pérolas, barreira de ouro, colar de diamantes, pedraria em profusão--as flores cruzadas são lindas mas não teem perfume. E logo a resposta do mestre nos vem à bôca: Fizeste-a rica porque a não pudeste fazer formosa! É o mesmo. Porque as não puderam fazer perfumadas, fizeram-nas formosíssimas. É agora a época das flores. Os dias de sol, lindos, dias tépidos como os de agora, fazem amar as flores, porque ¿quem as pode amar em dias londrinos, de nevoeiro e chuva? ¿Quem pode viver sem o perfume da violeta? Se não fôssem as violetas, a vida seria duma monotonia assustadora. E tão indispensável se tornam à vida que duma linda mulher sei eu que não pode viver sem elas. Quantas vezes, bocejante de tédio, neurastenizada, ela me diz parafraseando a frase célebre do filósofo alemão:--«Ah! meu amigo! Se não fôssem as violetas eu não gostaria de viver». Ao seu peito um ramo de violetas rejuvenesce eternamente. No seu toucador um frasco de violetas perfuma o ambiente e lhe perfuma a carne. À sua mesa certas são as violetas, em que os seus dentes gulosos se atufam, como nas fôlhas de rosa os dentes brancos dessa poética _Madona do Campo Santo_. Depois destas flores mimadas, veem as flores modestas e as flores terríveis. Flores modestas, a papoula e o malmequer. «Mal me quer... muito... pouco... nada». Sina rudimentar, sina do acaso. Aos iludidos ela diz sempre falso: “Muito”. O tempo vem e afinal era “nada”. Como o malmequer mentiu?! O malmequer é sempre mentiroso. Se diz “muito” a gente duvida e tem sempre razão. Se diz “nada” a gente não acredita. E é por isso que falando êle sempre verdade, porque sempre diz _nada_, a gente o não quere nas jarras, o desfolha sem amor. Porque nós odiamos quási sempre quem nos diz a verdade sem lisonjas e sem paixões. Nas flores terríveis temos a mancenilha. A mancenilheira é uma criatura diabólica. Persisto em corporizar as flores. A mancenilha é uma mulher, uma mulher que dá a morte. Uma daquelas mulheres que matam, sorrindo, que sorrindo arruinam, e que trazem consigo sómente a infelicidade. Nunca encontrei nenhuma mulher-mancenilheira. Eis aqui porque adoro a mancenilha, que não conheço. Porque a não conheço e porque dá a morte sorrindo. Quanto custa uma mulher? Tibério, filósofo machacaz e meu amigo, tendo lido nesse extraordinário doido que se chamou Nietzsche, que tudo pode ser pago porque tudo tem seu preço, veio a mim, resoluto e inquietador, saber qual o preço que em boa razão se deve dar por uma mulher. Tibério é um filósofo cheio de ironia azêda e eu, pobre de mim, confessando-lhe a minha ignorância, resolvi consultar os padres mestres, os calhamaços e os chavões. Áquele que perdêra os óculos a arrumar a livraria, aconselhou Castilho que os procurasse no Dicionário, letra O, que lá estavam. Pois nos livros,--nos livros há de tudo como na botica--devia vir por fôrça a resolução do problema. Procurei, deitei abaixo a livraria e nada. Os meus livrecos eram todos, ou quási todos, subservientes. Em lhes cheirando a saias... Tinha ideia dum tal Schopenhauer, filósofo de bôca amarga, estômago sólido e algibeira quente. O que êle dizia, porque todos estes filósofos dizem cousas, era pouco, mesmo muito pouco. E Tibério esperava resposta, mãos nas algibeiras, perna traçada. Então?... Suava. Guérin Ginisty dizia, isso lembrava-me eu, que, no fundo, uma mulher nunca resiste a bons argumentos: «Com quinhentos luíses, a mais segura delas, indigna-se... Com mil, defende-se... Com dois mil, perturba-se... Com mais alguma cousa, cede». Tibério amigo, aqui tem você! Foi o que se pôde arranjar! Mas Tibério sorria e fazia uma careta. Acho forte, respondeu! Dois mil luíses é muito! Acho caro! Muito caro, mesmo. E Tibério, lesto, acabou o cigarro,--não sei se disse que Tibério fuma desalmadamente!--abriu a porta e foi-se. Agora aqui fico considerando na pergunta. Fôra uma vergonha tanta ignorância junta. Mas, era a derrota de tôda esta livralhada de que me ufano tanto. Era a derrota de tudo isto, ante o gesto desdenhoso e a pergunta irritante dum filósofo safardana e impertinente. Nada, não tinha geito nenhum. Considerei, estudei o problema. Já lá vai algum tempo depois da pergunta. Agora, se o bom Tibério me aparecer, mostrando o meu ar mais profundo e o meu mais retórico gesto, dir-lhe-hei: «Tibério amigo: O preço duma mulher varia conforme as circunstâncias. Na Austrália compra-se uma mulher por uma garrafa de vidro, ou por uma faca ferrugenta. Hás-de concordar que não é caro! Na Cafraria, por uma quantidade de cabeças de gado bovino, quantidade que varia de dez a setenta cabeças. Na Índia, por um porco ou por bois. Mas, se deres mais de dez bois, já foste comido! Na Islândia compra-se uma mulher por um marco. Em pontos da África por uma garrafa de rum, e olha que não é barato! O rum sempre vale mais. Entre os povos civilizados, o negócio é mais demorado. Casar com ela, é a fórmula. Então dá-lhe o nome. E ela vendeu-se ou porque sim, ou por ver a sua tranquilidade assegurada, ou porque o marido tem boa posição, é deputado, ou lhe pode dar vestidos. Há tambêm uma outra moeda. Essa, chama-se Amor. O Amor é uma bebida e uma embriaguez. São duas criaturas que se encontraram e se propozeram beber do mesmo copo. Beberam até cair. Depois a bebida começa a repugnar-lhes e adormecem. Essa repugnância chama-se Saciedade e o adormecer, Esquecimento. Quem um dia adormeceu no amor ou quando acordou está curado ou não acordou jamais. Ora eu, amigo Tibério, não acredito no Amor, cousa em que jamais algum homem forte acreditou. O amor é uma cousa para crianças, uma teia de aranha. É preciso estar quietinho para que ela se não rompa. Depois não acredito que tu ames! ¿Pois tu, com êsse carão ignóbil de farçola, sabes lá amar? Mesmo que amar é subalternizar-se. Quem ama curva-se. Quem ama, meu caro amigo, transige. Quem ama, sim, quem ama... emfim não te aconselho a que compres mulher nenhuma com essa moeda. Sai pelos olhos da cara. Bem. Mas suponhamos que realmente a queres comprar por êsse preço. Eu te digo: Tu que a queres, é porque a desejas. Ora não há nada tão jesuita como um desejo. (Isto é de Balzac, mas tão profundo que parece meu). Mas desejar não é tudo. É preciso paciência, uma paciência enorme, uma daquelas paciências que vulgarmente se chamam paciências de ...cordato paciente. A paciência, ou leva ao triunfo, ou à cura. Com paciência, saberás esperar. As impaciências são nefastas e tão funestas em trato de gente limpa que Acácio, conselheiro, a caminho de presidente do conselho, diz que elas são próprias da gente ordinária. Acácio é chavão, Acácio sabe disso. Nada percebe de amor, mas tem dinheiro, e quem tem dinheiro, tem tudo e mais amor. Ora, ia dizendo! com paciência descobrirás o fraco da pretendida. Lá diz Molière: Não é bem Molière, é Castilho, mas isso não tira nem põe: Nem o mais forte resiste Aos que no fraco lhe dão. Que mais queres? Meio Brummel, um quarto de Tartufo e um logar no ministério da Fazenda deve chegar. E, se não chegar, olha que sempre te digo que é caro. É pela hora da morte. «Um animal de cabelos compridos e ideias curtas» como quere Spencer! Acredito que, não a achando em conta, a não comprarás. «Não te deixes ir atrás dos artifícios da mulher» é o palavreado bíblico, e olha que é certo como as cousas certas. Comprar a mulher em troca dum vitelo, como se faz na Hotentócia, não acho caro. Em troca duma tanga vermelha e quatro penas de pavão para a carapinha, ainda está bem. Dum boi, se os bois abundam, ainda não está fora da conta. Agora comprá-la pelo casamento acho caro. O casamento «é um contrato perpétuo»... _por tôda a vida_, bem sei, diz o código. Ora um contrato por tôda a vida, para sempre, de que um homem se não pode evadir senão morrendo, acho duro. E é comprar uma cousa que não serve para nada e de que a gente se não pode desfazer vendendo-a a terceiros. Nada. Não te aconselho êste meio. Pelo amor, vá. Amor com uma parte de indiferença e duas de desconfiança. Mas Tibério amigo, isso é platónico? Estarás tu apaixonado? Apaixonado! Mas isso é inacreditável num scéptico, num ironista, num desenganado, num filósofo emfim. Como os filósofos são frágeis! Como o homem é afinal e no fundo uma pena leve que o vento levanta e muda. Como você, Tibério, se deixou apaixonar. (Aqui Tibério protestará com a veemência dum deputado da oposição e eu rejubilo por o meu amigo Tibério ainda não ter escorregado). Bem me queria parecer! você, amar! Você o mordaz, o cínico, o que diz conhecer os homens e as mulheres! Olhe, Tibério, quere um conselho? Os homens fortes não amam. Amar é próprio dos fracos. Tenha sempre esta máxima à cabeceira. Guerra Junqueiro disse a Mercedes Blasco que pusesse à cabeceira da cama a vida de Cristo e a vida de Buda. Pois digo-lhe que guarde à cabeceira da cama a recordação do que lhe digo. Tenha sempre presente. O amor é como o toucinho, e dêsse diz Paulo Diacre, que todo acaba por criar ranço. Ora quem começa a amar acredita lá que o seu toucinho crie ranço algum dia!? Tibério: Meu amigo. ¿Leu você nos jornais a notícia daquele homem que se suicidou em Paris, por causa duma mulher que o deixou? ¿Leu você a história daquele que, ciumento, furou a pele doutra com uma dúzia de punhaladas? ¿Leu você a daquele outro que, por causa dEla, matou o rival com uma cacheirada no toutiço? Leu você? Ora aqui tem exemplos dos que as compraram bem caro, se é que as compraram mais do que em Ideia. Veja você se pode passar sem isso. Não compre nenhuma. Veja se alguêm lha empresta, ou se a encontra. E se emfim sempre se puser a comprá-la, compre-a por tudo menos por essa tal moeda que se chama Amor. Não se apresse. Vem no Frei Luís de Souza... «As cousas são grandes ou pequenas, segundo a medida do desejo com que se buscam...» Quanto menos as desejar mais baratas lhe aparecerão. E que pena que Tibério já se tivesse ido embora! Era um discurso tão bonito!... Teatro nacional As primeiras chuvas precederam a abertura dos teatros. Do Olimpo os deuses queriam significar com isso, numa profecia risonhamente marota, que o teatro nacional continuava a pedir chuva. Continua e continuará «per omnia sæcula sæculorum», vá lá o latim do Borda dágua. Chegou o inverno. Pôs-se à mão o impermeável, sacudiram-se do pó as galochas e... abriram os teatros. Mas há, em Portugal teatro? Certamente. Portugal tem um teatro seu e belos dramaturgos. ¿Esquecem-se então de Gil Vicente, de António José da Silva, o «Judeu», e de Garrett, que é moda apelidar o «divino»? Todavia o teatro em Portugal a-pesar dêsses ancestros colossais, está decadente, como o filho dum gigante que esteja a morrer tuberculoso. Disso não resta a menor dúvida. Há artigos laudatórios nos jornais, escritos pelos interessados, que dizem que nunca êle esteve tão bom. E concluem que a peça do «nosso ilustre confrade e distinto dramaturgo X» é a obra mais pujante que as gambiarras teem visto, já se sabe depois do «Frei Luís», para que o Garrett não se esquente. Mas, deixem-nos falar. É tudo mentira. O teatro em Portugal está realmente decadente. Pergunta-se: De quem a culpa? De todos. Dos autores, dos empresários, dos actores e do público. Os autores porque gágás de todo dão pecinhas insexuadas, sem vida, sem cousa nenhuma; os empresários porque, gananciosos de ofício, o que querem é explorar a beatitude do público; o público, porque, acostumado por autores e empresários, os dirigentes, a fantochadas e bambochas, prefere a tudo quanto é arte, que o educa e o faz pensar, as revistas do ano, onde há piadas grossas, tangeres e bailatas com pernas à vela e muita afrodisia, nas frases, nas coplas, no ar, e até nas pernas. Dos actores, finalmente, porque, na verdade, bem poucos teem senso artístico ou o procuram ter, e grotesquizam deplorávelmente a mais simples rábula que lhes confiem. De quem é pois a culpa? Mais do que a ninguêm aos autores e aos actores devemos atribuí-la. Vítor Hugo disse, no prólogo dos Burgraves, (há quantos anos isso lá vai), que «o teatro deve fazer do pensamento o pão da multidão». Assim devia ser. ¿Teem os nossos encarregues de teatro tentado cumprir a verdade da frase do vélho de Guernesey? Creio que não. Os autores são boas pessoas, isso são! (quási todos meus conhecidos! ¿pois não é isto uma aldeia onde todos nos conhecemos?) mas erraram-lhes a vocação. Fazer teatro para êles, é fazer peças mexidinhas, e prender a atenção com carpinteiragens vistosas. Quanto à orientação educativa, é inútil perguntar-lhes. Êles só conhecem os direitos de autor. Com outros então sucede o contrário; fazem teatro por vezo peceiro, e até pagam o scenário... se necessário fôr. Entregue o teatro a criaturas que querem fazer vida, satisfazer a vaidade, ou carpintejar simplesmente, o resultado é o que os senhores estão vendo. Quanto aos actores, quási todos são duma lamentável ignorância. E como não são artistas, mas mercenários, é inútil procurar-lhes a menor instintividade artística. Aparte poucas excepções, que eu apontarei se quiser, são tapados como portas de catedral. O teatro em Portugal é feito, como é feito tudo: por clichés. Um cliché para os pais nobres, outro para os Scárpias, outro para os galãs, outro para os centros. Dessa repetição ininterrompida temos que a gente não vê peças, vê actores. Bem pode a criatura, esfalfar-se no tablado:--«Pois se tu eras o filho do conde de Luna...»--que logo o espectador diz da platea: «Pois sim! Bem te conheço! Tu és, mas é o Joaquim Costa!» Sem estudos prévios do meio, sem a precisa integração no personagem, sem recursos fisionómicos, o actor toma aquilo não como uma missão elevada de elevadíssimas responsabilidades, mas como um logar que é preciso desempenhar, assim uma espécie de repartição para onde se entra logo que o pano sobe, se descansa para uma pessoa ir lá dentro, volta e torna a ir àquela parte até que o pano baixa de todo, os bombeiros revistam, o gás se apaga e cada um vai para casa cear com a mulher e com os filhos. Como não é artista e como não estuda, não tendo portanto intensidade dramática que o agigante, que o transforme, que o complete, êle fica sempre um mastigador de palavreado ôco, porque não transfiltra alma ao que retorica, cantilena ou fanhoseia. Não acreditam? É vê-lo. Nas scenas passionais, lamecha, uma lamechice de saldo, de conquistador de criadas de servir, nas scenas scarpianas uma catadura fera e um vozeirão--que não há criança na plateia que não chore. Para que o actor mereça êste nome, é necessário que vibre; que não seja uma criatura egoismada com os meses que lhe faltam para a reforma; que tenha no estudo uma paciência sherlockolmesca, que se ensimesme, e que crie; que busque na vida real o seu modêlo e por êle se guie; na maneira de andar, de gesticular, de encolher os ombros, de ter as mãos, de escarrar. Que finalmente, é isto que se lhe exige, que faça tiranos como os antigos actores do Príncipe Real os faziam. Tão fielmente verdadeiros que os espectadores os esperavam à porta da caixa para os desancar; ou com a fidelidade com que o Tasso, ali no mesmo tablado, onde êles gaguejam, representava. E tão verdadeiramente que até uma mulher lá do alto, das varandas, bradou--abençoado seja o pão, que aquele homem ganha! ¿Para que demónio havemos de estar a utopizar? O actor em Portugal é um amanuense ou um funcionário público, de que D. Maria é a direcção geral. Se o teatro está em baixo, deixem-me dizer-lhes! se não foram êles que o estragaram, eu tambêm não fui! No teatro o único logar compatível com a bôlsa da multidão é o galinheiro. ¿O leitor nunca foi para o galinheiro? Pois olhe que é curioso. Uma pessoa compra o bilhete e vai para a porta duas horas antes. Logo que esta se abre, deve galgar a escada dum fôlego à frente da matula para conseguir um logarsinho donde se aviste a caixa do ponto. Emquanto o pano não sobe, os espectadores, apertados como sardinha em canastra, travam conversas e arranjam conhecimentos. Um ou outro misantropo saca um jornal da algibeira e põe-se a soletrar. Os outros conversam. Fala-se de tudo: do tempo, do João Franco, da peça que vai, dos calos e da vida: oferece-se a casa. Entretanto sobe o pano. Tiram-se os chapéus, cospe-se, tosse-se e apuram-se os ouvidos. Começa a cousa. Mas com todos os santos da côrte do céu! Não se vê nada, não se ouve nada. Esta só pelo demónio! E aí começa uma pessoa a estender o pescoço. Estende mais, estende sempre. Aquilo já não é pescoço, é um óculo de ver ao longe, é um telescópio, a sair duma camisa. Quem olha da plateia tem a impressão de que aquilo não são criaturas. São girafas, são camelos, são só pescoços, pescoços sem fim, com dois olhos vorazes, lá no cimo, a espreitar. Isto são os que chegaram à frente. Os retardatários, êsses, então, não vêem nem ouvem nada. Ficam cá nas últimas filas a contemplar a beleza do lustre e as pinturas do tecto. Ás vezes por milagre sempre conseguem ouvir assim uma cousa parecida com a «passagem do regimento», em monólogo, conforme o fôlego do actor. De resto, silêncio absoluto. Na impossibilidade de ver e de ouvir e depois de ter examinado bem o lustre, o tecto, o pescoço dos da primeira fila, o porteiro e os bancos, prepara-se o espectador para um soninho descansado. Mas logo por azar, de lá, das profundezas do palco vem por ali acima um berro:--Ah tirano!--e a criatura acorda assustada julgando que é fogo. Mas não, tudo voltou ao silêncio absoluto. Lá em baixo a scena continua com estas intermitências. Ás vezes, quando um cidadão não só dorme, mas sonha tambêm, sempre lhe ferram cada susto?! Acorda estremunhado. Palmas. Ah! É o intervalo. Os da frente principiam a recolher o pescoço. O misantropo, que não pôde apanhar logar à frente e não largou o jornalsinho, embrulha o jornal e prepara-se para ir beber dois ao «Cesteiro». «Vinum bonum lœtificat cor hominis». O bom vinho alegra o coração do homem. E o misantropo, quando volta, traz o nariz que parece uma malagueta e sempre fede!... A scena continua, os da frente estendem outra vez o pescoço e os de trás, à cautela, forneceram-se de pevides. Sim! Porque se uma pessoa não leva pevides, está tramada! Se o teatro está decadente, não é por falta de «dramamíferos»--dramamíferos é boa!--porque até um deles enviou uma carroça de mão, cheia de peças, com a nota de que aquilo tinha um descontozinho para revender. Agora é que o teatro ressuscita. Dramaturgo raso que há anos trazia as peças dentro dum canudo de fôlha debaixo do braço, e que não lhas representaram, por má vontade da emprêsa, já se vê, vê-as agora representadas com a sábia medida de D. Maria. Agora é que vão aparecer. Shakespeares, Maeterlincks, Ibsens e Hauptmans. Mas no fim de contas do que eu estou desconfiado é de que esta emprêsa de D. Maria tinha um avultado parasitismo dramatúrgico sôbre si, que vai agora sacudir... representando-o. Mas a arte, onde está? Que resulta de tôda esta cousa? Vale a pena a gente ralar-se? Não. De-certo que não. Não vale a pena. Calino, que na bilheteira pedira um logar que não fôsse por debaixo do lustre, para lhe não sujar o fato algum pingo de gás, acha bem. Eu tambêm. Acho óptimo, acho tudo o que êles quiserem contanto que não me macem. Tempo é dinheiro. E, caramba! Tudo isto somado não vale a ponta dum cigarro. Mas o remédio? Deixemo-nos disso. Nada de fantasias, que isto de gizar planos e bandarrear profecias é como as contas do sapateiro. Saem sempre furadas. Afinal é clamar no deserto:--«vox clamantis in deserto». É tal e qual. Até vem nas Escrituras. D. João da Câmara João da Câmara (D.), cronista do _Ocidente_, autor dos _Vélhos_ e da _Triste Viuvinha_, acaba de partir para a grande viagem donde se não volta. E agora, a esta hora que escrevo, se regozija êle na cela do seu caixão, cela dêsse «convento, que há alêm da Morte e que se chama a Paz». Êle não voltará jamais olhar-nos por cima da luneta, contar-nos uma anedota que o seu sorriso reticenciava, nem embalar-nos com o tom serêno, religioso, espiritual, da sua conversa tão segredada e insinuante. D. João da Câmara era ainda, neste país de bacharéis, nesta pátria de futilidades e falcatruas, uma criatura que fazia vida àparte de _cotteries_ e de políticas, que a vida levava como Deus era servido, e que por isso mesmo se tornou simpático a gregos e troianos. Um _bon viveur_ com perpétuas faltas de dinheiro, que a sua falta de tino administrativo e a sua generosidade fidalga explicavam prolíxamente, sem cuidados mais fundos do amanhã e sem que o hoje fizesse à sua maneira de encarar a vida descalabro grande; não havendo agiota que o não sugasse para não haver desventurado que, dentro do seu âmbito generoso e monetário, êle não protegesse; um boémio em tudo, se por boémio tivermos um abandono de horas, de convenções, de regularidades. Eis o que êle foi. Criatura sempre camarada, sempre amiga, sempre fidalga, não murmurando nunca dos outros, nada aziumeira e biliosa, sincera sempre no seu auxílio, a ponto de lhe forçarem a boa fé sem que tivesse desdens, a ponto de o intrujarem, sem que tivesse rancores, eis aqui como o conheci e a lembrança que conservo dele, o primeiro consagrado com quem me dei, se consagrado se pode chamar o que chegou primeiro e tem mais largos horizontes de protecção e crédito nominal, que nem outro crédito o escritor disfruta em Portugal. A nossa camaradagem, e falo dela com orgulho, foi sempre boa, serêna, plácida. E dele três lembranças há, que mais fixativamente se me gravaram na memória. A da estatueta do escultor Silva Gouveia, uma flagrância bem natural, e a da penúltima vez que o encontrei, fazendo a ascenção penosa, uma ascenção asfixiante, da escada das _Novidades_, então no Largo das Duas Egrejas. Essa impressão é a mais viva. Uma impressão de ruína, de acabamento. Da última vez que o vi, foi na estreia das _Rosas de todo o anno_, do nosso Júlio Dantas, no palco de D. Amélia. Nunca mais o tornei a ver. Agora outra impressão me ficou: a do seu entêrro, em que se fizeram discursos que deviam ser proibidos, por convencionais, literaticos ou desageitados, e onde em tôdas as fisionomias vi a mágua sincera da sua perda, a ponto de grandemente me apoquentar a cara contristada, sofredora, de Lopes de Mendonça, outra criatura sincera e afectiva, e a de Eduardo Schwalbach, que nada tinha, nada, do seu mefistofelismo habitual. * * * * * Quanto à obra pública do escritor, outra é a minha opinião. Eu não creio que João da Câmara tivesse feito uma obra grande. Que fizesse uma obra sua não duvido, porque tôda ela é desigual, ressentindo-se das ocasiões em que a trabalhou, das circunstâncias em que a fabulou o espírito, e das impressões ou necessidades que a fizeram trasladar ao papel. Nem plano, nem harmonia, nem concatenação filosófica que a atravesse, nem fim a que se destine. Ela não é mais do que o espelho dum espírito cheio de lirismo, romântico por falta de leituras novas, sem concepção do mundo e dos outros e ainda o que é mais, sem que seja outra cousa do que produto duma travessia desordenada e fugitiva pelas regiões do sonho. O livro póstumo ora publicado--_A Cidade_--é mais do que medíocre. São poesias soltas, cantando cousas banais, em versos banais, porque não foi, esta pobre alma de poeta, nunca uma alma tragediadora que sentisse a vida e as cousas com nervos de quem sente apressadamente. Natureza mole, um quási nada enxundiosa, a vida representou-se-lhe sempre como uma cousa calma e pacificada, demais tendo, como êle tinha, porque era um bom, o defeito de acreditar na bondade alheia. Assim, o seu lirismo são versinhos sem nexo à falta de idea que os vibre, e deixam-nos no espírito a impressão de que lhes deu forma uma criatura afeminada e criada entre armures e cousas fôfas. A cidade que o poeta viu é uma cidade banal, de lirismos contumazes de poeta principiante e água morna. Quanto à obra restante, bom será que a turba jornaleira, que não soube fazer um artigo digno e deu à jolda informatriz o encargo de dizer do passamento do malaventurado homem de letras, se não escagarrinhe de entusiasmo por peças que nunca viu representar, nem livros que jamais leu. E bom será, para que não venha provocar palavras de justiça quando são necessárias palavras de saudade. Babuje embora os seus pobres louvores, sem forma e sem gramática, a sua sermonada do costume em entêrro de conselheiros, mas não queira exercer, judicatura em cousas para que ninguêm lhe deu fôro. E que os mortos não sirvam, pobres mortos! para que um nome que não lhes serviu a êles, nos agiotas, sem fiador, venha levantar celeumas justiceiras e tornar-se ferrete ignominioso duma profissão. Curioso é, como, tendo morrido o pobre D. João, há bem pouco tempo, já os jornais andam afervilhados para que a família do escritor não fique na miséria. E vá de explorar essa miséria fazendo jus a uma pensãosinha, pondo demais à cabeça do rol a encobrir, justificar e pôr o visto, o nome de Fialho de Almeida, sob títulos de que Fialho num artigo frisava o estado precário do poeta. Há por certo engano. Os senhores estão enganados. Fialho não frisou o estado de miséria em que viveu D. João. O que Fialho fêz foi frisar o estado de miséria em que chafurdam os nossos intelectuais. Generalizou, não falou de D. João em especial. A miséria dos nossos intelectuais, se miséria se pode chamar um máu passadio, de horizonte limitado, em tudo é já sabida. É até uma tristeza mecher-se nisso. Mas os jornais não param. Pretendem para a família de D. João uma pensão. Ora, começa aqui o amargo. A família de D. João não a merece. Porquê? Porque não. Ficam escondidas várias razões que virão, se fôr preciso. Não a merece, como a não merecia a família de João de Deus e como a não merece a família do Eça. A obra de D. João não é uma obra nacional ou com foros disso. O Estado pagou ao escritor como funcionário público. O Conservatório como professor. Nada tem o país que ver com o resto. Mas se os jornais querem dar uma pensão à família do escritor, que se reunam êles, as empresas teatrais, as casas editoriais, os agiotas e terceiros, para fazer a restituição de tudo quanto em vida lhe roubaram. Pensão do Estado não pode ser. E não pode ser, porque o Estado é pobre e porque basta de precedentes. Eram 800$000 réis, não eram? Pois reclamem, reclamem êsses oitocentos mil réis para escolas, para que amanhã o povo dê ao escritor mais mil ou dois mil leitores. O Estado é pobre, o Estado não pode dar pensões a ninguêm, quando ha milhões de analfabetos. O Estado não pode ter parasitas, quando tem dívidas. Que dê pensão aos netos de Camilo, vá. Mas que as dê a todo o que se permitiu gastar o pouco que ganhou, sem nenhum interêsse para a arte nacional, é que não. Amanhã virão todos os que literatejaram e conseguiram nome reclamar. Virá... eu não digo os que virão. É melhor estar calado. Até eu, quando morrer, deixarei à família o requerimento. Mas para que demónio nos obrigam a falar nestas cousas!? Arte de Reinar Senhor: «Hum sabio disse que não havia n’este mundo homem que se conhecesse; porque todos para comsigo são como os olhos, que, vendo tudo, não se vêem a si mesmos; e d’aqui vem não darem muita fé nem de suas perfeiçoens, nem advertirem em seus defeitos; e ser necessário que outrem lhes diga o que passa na verdade. Se V. Magestade não se conhece, nem o mundo em que vive, e de que he Senhor, eu o direy em breves palavras». O autor anónimo da _Arte de Furtar_ começa assim o seu prólogo em palavras de ontem que parecem de hoje. Começa assim e não vai mal. Eu, porêm, não começarei assim. Chama-se esta crónica _Arte de Reinar_ ou, para melhor, _Da Arte de Reinar_. Há várias crónicas e várias artes. Desde a _Arte de cavalgar a tôda a sela_, do mui erudito senhor e sábio eloqùente D. Duarte, que Deus, ou lá quem é, haja em sua santa guarda; desde a _Arte da guerra do mar_, de mestre licenciado Fernão de Oliveira, que a eternidade em sua santa glória haja; desde a _Arte de Furtar_, que as más línguas atribuem ao reverendo Vieira, até ao livro que se lhe contrapõe _Arte de los estafadores_, que traz trezentas ou quatrocentas maneiras de os evitar, como se os _estafadores_ não tivessem ainda oitocentos golpes para as inutilizar; desde as artes, emfim, de _Pedro das malas_ ditas até ao Livro ou _Arte de ensinança dos principes_, que quantidade de artes! Esta, de que hoje se trata, é a arte de reinar. Reinar não é assim uma arte muito fácil. É mesmo mais difícil do que o que parece. É mesmo muito difícil reinar nos tempos que vão correndo. Para reinar, três predicados se exigem: Que o reinante seja um filósofo, isto é, que conheça os homens; que seja um scéptico, isto é, que não acredite na felicidade; que seja justiceiro, para que o que é de Cesar não vá parar a Paulo e para que Paulo não berre que Cesar lhe empolgou o seu quinhão. Ora, para V. Magestade ser um filósofo e conhecer os homens, não tem mais do que abrir a sua _Arte de Furtar_--se não tem, empresto-lhe!--no prólogo supra mencionado. Lá diz: «este mundo he hum covil de ladroens», e olhe V. Magestade que é verdade. Isto não é um vale de Lágrimas, é um vale de patifes. Cerque-se V. Magestade de homens honrados, mas não deixe de fazer como o esclarecido D. Luís, vosso augusto avô, fazia às caixas de charutos que tinha para consumo particular: pôr sob a tampa de cada uma, uma caixa de música, de maneira que por cada charuto surripiado ouça ao menos o _intermezzo_ da _Cavalleria_, o intróito dos _Palhaços_ ou o _La donna é mobile_ do _Rigoleto_. Não ouça V. Magestade mais do que o conselho do seu conselho, que é como quem diz a reflexão do seu juízo. Acredito que sejam todos muito honrados, mas bom será sempre conferir as colheres de prata. Se V. Magestade achar que a _Arte de Furtar_ é pouco, leia Schopenhauer, um má língua sem precedentes, e o mais que a experiência lhe aconselhar. Ouça os conselheiros... Eu conto uma história a propósito de conselheiros. Li-a em um volume de José de Magalhães, escritor que deve ler, demais a mais colaborador da _Luta_, e vou dizer-lha dum fôlego: «Um dia que Çakia-Muni, príncipe jovem e feliz, a quem tinham ocultado as doenças, a velhice e a morte, saía com um séquito numeroso pela porta oriental da cidade, para se dirigir ao jardim de recreio de Lumbini, encontrou no seu caminho um vélho desdentado, decrépito e coberto de rugas, articulando com dificuldade sons desagradáveis. O príncipe, admirado, pergunta porque chegou aquele homem a tal estado. Em resposta consegue saber que todos os homens chegarão a estado semelhante, salvo se a Morte misericordiosa os tomar. Desconhecia o príncipe tambêm o que era a Morte. Mas doutra vez que saía a passeio topou no seu caminho um esquife em que levavam um homem que já nem respirava, nem pensava, nem gemia. Já não conhecia o sofrimento e poderia Çakia-Muni passar por êle cem vezes, que o vassalo submisso, dedicado e reverente, nem uma vez se ergueria para o saudar. Tambêm o príncipe não conhecia que cousa fôsse doença, quando o encontro dum vélho ulceroso, chaguento e miserável lhe veio patentear mais uma miséria a que estamos sujeitos, a que todos os homens se sujeitam, e a que mesmo réis ou príncipes, imperadores ou párias, se não podem furtar. Foi então que Çakia-Muni deliberou não ouvir mais os seus conselheiros e considerar. E fêz bem. Fêz muito bem. Por ter ouvido demais os conselheiros é que aquele outro rei veio em fralda para a rua. Todos os conselheiros diziam que êle estava vestido com um estôfo maravilhoso, e tantas vezes lho disseram que êle acabou por acreditar. Exactamente como aquele Marques a quem tantas vezes chamaram Marquez, que êle acabou por se julgar assim. Foi preciso um garôto, um garôto insurreccionado, atrevido, irreverente, encarrapitado numa árvore, berrar lá de cima «O rei vai em fralda!» para que êle caísse em si e corresse aquela choldra dos conselheiros. Se algum dia os conselheiros disserem a V. Magestade que mais isto e mais aquilo, V. Magestade duvide sempre. Duvidar não fica mal aos mortais, embora êsse mortal seja um rei. Para reinar bem, é preciso ser sábio, ser prudente, ser justiceiro, recto e generoso. É muito para um homem só, mas com um pouco de boa vontade tudo se consegue. Ser sábio ainda é o menos. E por essa história fora há tanto bom rei de letras gordas... Ser prudente e ser justiceiro são qualidades indispensáveis. Prudente como a Prudência e justiceiro como Salomão. Assim se governa a contento dos governados e os governados se contentam com quem os governa. Já se dizia isto no tempo de Gôngora, em que parece escrito, pelo trocadilho. Para bem reinar é preciso conhecer os homens. Para conhecer os homens é preciso ou ser filósofo ou ter sofrido. E, que demónio! não é difícil ser um bocado filósofo e sofrer o bocado que lhe falta. Mas reinar é uma cousa e falar é outra. Os que falam mais não são os que melhor governam, nem os que mais prometem que melhor cumprem. Reinar é uma cousa difícil. Isto já se dizia há séculos em vélhos livros poeirentos e vernáculos. Vernáculo e poeirento é quási sinónimo, nestes tempos em que vélhos e novos «galicismam e escabeceiam». E visto que o ofício é governar, nada de montarias. Ainda que os conselheiros de hoje são cortezãos de cheviote vulgar e não diriam nunca «Senão...», aquele senão histórico que vem nas crónicas e de que a história reza, com prólogos de muito louvor. Eis pois os tópicos essenciais da arte de reinar, complexa arte de que profanos não percebem. Ser rei é bonito, mas não é lá muito bom ofício. Não sei mesmo o que êles pensam a respeito da sua ocupação. E curioso seria reunir as opiniões de cada um deles sôbre o emprêgo que lhes deram. Consultar o Kaiser, êsse Guilherme II da Alemanha e dos bigodes, o _Cleopoldo_ da Cléo, o rei de Espanha, o de Itália, o da Grécia, os de tôdas essa terras. Inquérito lembrado a uma revista que explore a especialidade. E já que falei em reis, em reinos e em reinados, aí vai uma anedota que, se não fôr verdadeira, nem por isso deixa de ter bastante filosofia: «A um rei pediu uma ocasião um frade que lhe desse quarenta moedas para comprar uma mula. Respondeu o rei que não tinha, ao que o frade objectou: «Falai baixo, meu senhor, porque se essa gente--e indicava a turba dos cortezãos--sabe que V. Magestade não possui quarenta moedas para comprar uma mula, nem um deles deixará de se ir embora». Religiões As religiões, ia você dizendo?!... E como o filósofo erguesse o focinho em ponto de interrogação, eu volvi solene: «Sim, amigo Tibério: Essa cousa de religiões é uma cantiga. Positivamente uma cantiga. De resto, não me julgue você ateu ou pedreiro livre. É certo que não vou à missa, não sei o padre-nosso, não trago sermões, nem sou papa-hóstias. Isso não. Mas tambêm não faço bolas de sabão, nem deito papagaios, nem quero saber da vida alheia. Ora daqui a ateu, amigo Tibério, que diferença?! E você, se duvida, escute: Eu acredito que, quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que o paga. Emquanto a religiões, dir-lhe-hei, muito à puridade, que acredito. Acredito e como é sempre bom estar bem com Deus e com Satanaz, tenho para meu uso uma data de deuses. A todos respeito, tiro o chapéu a todos, se êles me estendem a mão não lhes recuso a minha, se os encontro, inquiro solícito como vão lá pelo céu a mulher e a pequenada--isto aos deuses casados; aos outros pergunto-lhes que tal vão da figadeira, se passaram bem a noite, emfim, cuidados de gente bem educada. Assim, como trato bem a todos, êles vão-me deixando viver tambêm, na paz do Senhor. Respeito o urso, o deus dos siberianos, mas não lhe estendo a mão. Respeito as serpentes, como os africanos, mas não me chego muito. E para ser um bocadinho descrente, valha a verdade que não acredito muito que seja grande fortuna ser morto por um leopardo, como acreditam os nossos irmãos do Dahomé. Dou-me óptimamente com Ilâh ou Shamsh, o deus Sol, e tenho em minha casa um gato chamado _Marau_, que deve por certo ser descendente do gato sagrado de Heliópolis, no tempo de Rã. E quantas vezes, quantas vezes olhando para êle eu considero;--para êle que só reconhece, na sua irreverência felina acima de si o carapau.--«E é isto descendente do sagrado Rã, a quem os sacerdotes daqueles tempos oravam: «Tens a cabeça do deus-sol, tens a fauce de Thut, o que é duas vezes poderoso e senhor de Hermópolis! As tuas orelhas são as de Osíris, que ouvem tôdas as preces; a tua bôca é a do deus Tum, o deus da vida, que te manteve impoluto; o teu coração é o de Phtah, que te lavou os membros de tôda a nódoa! Tens os dentes de Chunsu, o deus da lua, e as coxas de Horus, o que vingou seu pai Osíris!» O gato de Heliópolis teve um santuário, um bosque frondoso, e fiéis. Fiéis como tem agora às sextas-feiras o Senhor dos Passos da Graça. Não era assim meia dúzia de fidalgotes. Eram aos seis, setecentos mil, fora os bandos de crianças levadas pela mão ou ao colo pelas mães, diz o nosso Oliveira Martins: «Aschoreas de fiéis subiam, os gritos da flauta convidam os deuses, as castanholas, como a antiga matraca selvagem, excitavam o fervor das danças sagradas. Balouçavam-se as barcas no rio, levando, trazendo gente; sussurrava a turba e um côro de orações obscuras enchia o ar de evocações fantásticas. Os talismans de Bast afugentavam os maus espíritos; por isso os romeiros levavam ao pescoço uma cabeça de gato, como bentinhos». E mais se diz que a pintura da lua de Bast e a imagem do gatarrão «enchiam de contrição os romeiros». Aquilo é que era. Naquele tempo a vida estava para os gatos. É claro que não explico ao meu o que foi o avô dele, porque, estou certo que êle ignora que tem parentela tão distinta. Deixemo-lo viver na sua ignorância. Quem sabe! Podia tornar-se exigente. Depois, gosto das vacas. Uma foi deusa, a vaca de Hathor. Dos bois não gosto muito, mas tenho-lhes respeito. Já alguns atrevidos se teem atrevido de mais e o resultado é êles marrarem. Depois ainda, pondo de parte os paus marrantes, êles teem na família Mnévis, boi louro ou branco que se venerava em Heliópolis--uma espécie de jardim zoológico da antiguidade; e Apis, boi negro, parente não sei em que grau do _Capirote_, aquele célebre que entrava em corridas e comia à mão, coitadinho. Respeito Astarte, a divindade de Sidon, e Milkom, deus dos amonitas; Kamosh, deus dos moabitas e Moloch, deus de outros povos. Respeito Jeová e Baal, Cristo e Confúcio, Maomet e até o seu profeta. Respeito-os a todos para que todos me respeitem. Respeito Santa Bárbara para que leve as trovoadas para onde não façam perca nem dano; S. Marçal, para que nos livre dalgum raio de ao pé da porta, e todos os santos e santas da côrte do céu. Aqui tem você, Tibério, uma restolhada de deuses e de religiões. Há mais, que tenho em casa com a etiqueta conveniente. Veja você qual a que mais lhe convêm. Parecem-se tôdas um pouco. Que você adore a Senhora das Dòres, ou Apis, o boi negro; que você adore o Sol ou a chuva, um manipanço ou um bentinho, tudo é adorar, amigo Tibério. Quere você um conselho? Quere? Pois bem, trate-os bem, mas não acredite neles. Nunca lhes peça nada. Porque; nesse ponto, os deuses são como os homens, e como os homens conhecem-se nas ocasiões. Não peça, porque os irrita. A gente, para viver bem com os deuses, deve mostrar que não precisa deles. Depois, se você tem lido, deve saber que esta cousa de ser Deus está muito por baixo. Deus foi Mercúrio e era um larápio; Deus foi Júpiter e era um transformista; Deus foi Saturno, aquele vélho Saturno de barba branca, e comia os filhos, o ladrão! Plutão era tão mal encabado para Deus que o mandaram para as profundas dos infernos; Baco sempre era um Deus que dormia pelas tabernas. Rara era a noite que a polícia o não levava para a esquadra, donde, quando êle acordava, o mandavam embora, não sem lhe terem dado uma valente descompostura: «Que tomasse juízo; que se emendasse, que era indigno dum Deus; que era a vergonha da cara do Olimpo». Mas qual! O patife reincidia. Está já reformado, mas tem ainda muitos fiéis. Ora que quere você, amigo, com Deuses desta ordem?! Tão bons são uns como os outros. O próprio Cristo foi um pusilânime. ¿Você lembra-se da bofetada? Só teve génio quando agarrou no chicote e bateu nos vendilhões, uns pobres velhotes, que, chatinando, levavam a vida como Deus era servido. S. Pedro, o guarda-portão, foi pescador nos seus tempos, e por isso, já sabes, os pescadores vão todos para o inferno. É por isso, amigo Tibério, é por eu estar bem com todos que os conheço. Exactamente como os farmacêuticos que preferem sempre as drogas feitas em casa dos vizinhos. Não os aturo. Talvez sejam bons os que não conheço. Duvido e não me tenho dado mal. E por mais que parafuse, não chego a perceber porque razão é que Deus não se zanga por um padre ter o chapéu na cabeça na sua presença e dá o cavaco por ver o chapéu na cabeça de qualquer mortal. Altos desígnios! Ah! mas no outro mundo é que são elas. Deus envia-me para Satanaz. Mas êste, que não pode ver Nosso Senhor nem pintado, sabe que é por vingança que êle me faz aquela partida e, em logar de me frigir, encarrega-me de escrever a crónica do seu vizinho do andar de cima. Então é que eu direi o patife que êle é. Estou desconfiado de que em morrendo nem Jesus Cristo me vale. E como a viagem não é das mais pequenas e incerto o destino, ou recomendarei nas minhas últimas vontades que, à semelhança do que faziam aos defuntos na Suécia, que lhe metiam no caixão o cachimbo, a bôlsa de tabaco, os fósforos e algum dinheirito para a viagem,--encerrem no meu tudo isso, uns volumesitos para ler, papel, pena e tinta para escrever as minhas _Memórias_. Não quero confiar êsse encargo ao snr. Fernando de Lacerda, porque temo que êle diga que são dele, as _Memórias_. E estou certo de que em sucesso--como se diz à francesa--não ficariam muito àquem das _Memórias duma actriz_, de Mercedes Blasco. Se, alêm disso, quiserem meter mais um chapéu de sol e umas galochas, como se faz em Reichenbach, na Alemanha, e uma certidão de baptismo com o meu nome e sinais, atestando a bondade dos meus costumes e a pureza da minha fé, como se faz na Rússia, tambêm não será mau. E, amigo Tibério... Aqui, Tibério, que está quási a dormir, espreguiça-se e com aquele olhar inteligente e vivo, que todos lhe conhecem, diz-me irónico: «Mas isso é o que se chama não ter religião nenhuma!...» ao que eu redargúo abespinhado--exactamente como Gérard de Nerval no salão de Vítor Hugo:--«Não ter religião nenhuma? Pois se tenho pelo menos dezassete!?» Gomes Leal De Gomes Leal se anuncia para breve um novo livro, êsse antigo, ruidoso e singular _Antí-Cristo_, completamente refundido e aumentado. Gomes Leal é sem dúvida uma das mais curiosas, extravagantes e originais figuras da nossa literatura contemporânea. Sitando longe da baixa, num modesto segundo andar lá para os sítios da Graça, necessário é, se o quisermos encontrar, ter de procurá-lo no seu gabinete de trabalho, uma sala alegre e clara onde há um canapé, uma bela cadeira de vêrga, uma secretária e uma cómoda, ambas estas cobertas de livros, de brochuras, de cartas e de papeis. Das frinchas das gavetas entreabertas surgem agressivos pedaços de manuscrito. O poeta é um concentrado, vivendo muito pelo espírito, lendo tudo e tudo sabendo. Gomes Leal, convêm dizê-lo, é um paladino da Arte, um D. Quichote de quem a Arte é Dulcinêa; como aquele--aventuroso; como aquele--sonhador e louco; porque--diz-me aqui do lado um malcriado que está vendo o que eu escrevo--é preciso ser-se louco ou sonhador para ter veleidades de Arte em Portugal. Gomes Leal nasceu poeta. É inútil insistir. Podia ter nascido Coimbra ou Amieiro, bibliotecário da Ajuda ou parvo, e então a sua sorte seria mais compensadora. Ter nascido Amieiro, para dar a sua autorizada opinião sôbre se o rei vestia ou não camisa! Ter nascido bibliotecário para, pelo telégrafo, lhe dizerem que dissesse o que o outro dizia de Turgot! Ah! é admirável! Então se tem nascido parvo, tinha a sua fortuna feita. Em verdade te digo, amigo Fernandes, tinha a sua fortuna feita. * * * * * «Balzac e Baudelaire avançavam em sentido contrário sôbre um cais da margem esquerda. Baudelaire parou em frente de Balzac e pôs-se a rir, como se o conhecesse há dez anos. Balzac parou por seu turno e respondeu dando uma gargalhada, como diante dum amigo tornado a encontrar. E depois de se terem _reconhecido_ num relance e cumprimentado, ei-los caminhando juntos, conversando, discutindo, encantando-se, não chegando a espantar-se um do outro». Eu não conheci Gomes Leal como Baudelaire conheceu Balzac. Mas, antes de o conhecer, já de côr sabia algumas das mais belas e indignadas estrofes da _Traição_, alguns dos mais artísticos trechos do _Hereje_, as comovidas quadras da _História de Jesus_ e os mais belos e originais pedaços das _Claridades do Sul_. Assim, antes de tudo acostumara-me a ver em Gomes Leal a indignação e a revolta, a arte e a comoção, a sátira, o riso, a lágrima, todo o íris do sentimento, emfim. Gomes Leal é um poeta, disse. Um poeta lírico, um enternecido lírico. É um poeta que vibra amorosamente. Sabe muito menos odiar do que amar. Iria fazer a revolução com um ramo de cravos sangrentos na lapela. Iria para uma barricada com a cartucheira cheia de violetas. E é assim em tudo. No entanto, dentro do seu peito há oceanos de amargura, de revolta; tempestades de ódio, clamorosas vozes invectivantes. Tôdas as cordas do humano, do riso à lágrima, do raio de sol à Júlio Diniz até à tempestade à Shakespeare, da calma ao furacão, vibram dentro dele rugidoramente. Gomes Leal é um peninsular. Ora penedia agreste, rochedo a prumo, fragas sem fim, ora verdura sem par, céu sem rival, vegetação sem equivalência. Para conhecer Gomes Leal atravessei, pois, meia Lisboa. Conhecia-o dos seus livros, conhecia-o das suas prosas, conhecia-o dos seus artigos, conhecia-o dos seus retratos, conhecia-o do _Cancioneiro Alegre_ de Camilo. Nunca tinha visto êste homem ora lendário, ora macabro, ora sonhador; apóstolo e pedagogo símplice hoje, sectário de estranhos cultos e misteriosas religiões amanhã. Os seus retratos davam-me uma vaga ideia. Mas o seu nome tinha no meu ouvido a orquestração bizarra, ora da marcha da _Carmen_ ou da _Marselheza_, ora da trombeta de Jericó! Era qualquer cousa de extravagante, qualquer cousa de outro mundo, porque tôdas as bizarrias, tôdas as extravagâncias, tôdas as alucinações, todos os mistérios se esperam dêste cérebro--de quem um amigo meu diz, que tem telefone com o infinito. O _Edgar Pöe da península_ lhe chamou não sei quem. O que êle seja afinal não sei eu. Baudelaire e Jesus, Pöe e Sancho Pança, D. Quichote e Homero, Camões e Goya, reuniram-se um dia para formar um espírito. O que saíu foi Gomes Leal. Junqueiro disse que os génios combinaram um dia um encontro e se reuniram na cabeça de Vítor Hugo. Talvez fôsse verdade. Os génios podem reunir-se onde quiserem. Ninguêm tem nada com isso. A Gomes Leal deu Baudelaire o satanismo desatinado e histérico; Jesus a bondade, a comoção; Pöe, o desequilíbrio; Sancho Pança a farçolice, o _humour_; D. Quichote a crença, e a crendeira ilusão; Homero, a cegueira do mundo de patifes em que caíu; Camões, a indignação e o clamorar rutilante e patriótico; Goya, o claro escuro, ora muito claro, branco de leite, ora negro, negro, noite fechada. Destas dádivas tôdas saíu êsse conjunto monstruoso e formidável, ora comum, ora topetando os astros; um grão de loucura, outro de génio, e os restantes como o dum louco e como o dum génio. Gomes Leal é uma alma extraordinária. Se os génios se quiseram reunir para pensar e buscaram o seu cérebro como em Hugo, os músicos e os poetas quiseram fazer um concêrto e buscaram o seu coração. É por isso que, se no seu cérebro marulha um mar como à volta do túmulo de Ossian, no seu coração ecoam tôdas as melodias como na rabeca de Paganini. Parece que Gomes Leal não é um poeta, é um panteão. Não da beleza morta, mas da beleza viva, porque os espíritos como o seu são telescópios com que a gente olha através do infinito. O que o novo livro de Gomes Leal será não o sei eu. Calculo o que êle seja. O _Anti-Cristo_, que era na primeira edição um bom livro, sairá considerávelmente melhorado. Anos passaram sôbre a primeira edição. Anos passaram sôbre o espírito do poeta. O _Anti-Cristo_ sairá e não somos nós, não é o público, nem a crítica, nem a imprensa, quem dele dirá de sua justiça. Ela será feita pelas gerações futuras «visto que é preciso morrer para que nos façam justiça», como disse Zola e como disse o Camilo. Gomes Leal é ainda um exemplo a apontar a novos e vélhos. A vélhos que se gá-gáisaram e a novos que se vão gá-gáisando. E nesta época resulta precioso. Nesta época de lamentáveis Ortigões, Ortigões mais do que lamentáveis, deploráveis. Nesta época em que os vélhos perderam o silêncio e a vergonha, e os novos, pingando máguas, veem, sem vergonha nem silêncio, fazer versinhos insípidos e cantatas inspiradas. Novos a quem o poeta odeia: É o ódio contra ti, fraca geração nova, que amas sómente rir, e não tens convicções, nem ideal, nem fé, nem nervos, nem tendões não sabes venerar, não sabes ter respeito rugir, nem arrancar as lágrimas do peito, nem rir como Voltaire, amar como Romeu sofrer como Jesus--nem odiar como eu. Que não sabem venerar quem devem, nem castigar quem o merece. Ora Gomes Leal, com tôdas as desigualdades do seu talento, é honesto, não é oportunista, visto que não é interesseiro, está-se manguitando para tôdas as sinecuras, ucharias, fardas e logares. Ama a arte sôbre tôdas as cousas e o próximo,--exactamente como a mim,--nada lhe interessa. É por isso, por êle se manguitar, nada lhe interessar o próximo, e não se parecer nada com os vélhos que entonteceram, que eu o considero. E considero-o porque são raros os vélhos que tenham a sua mocidade, tanto como são raros os novos, que, como êle, saibam ser dignos. E à procura dum homem digno andou Diógenes com a sua lanterna e afinal teve que a apagar por inútil... Naufrágios (Carta a Felipe Trigo) Lembra-se, meu caro amigo, daquele seu oficial reservista que a bordo, durante a tempestade, guardava o salva-vidas de navalha em punho, crendo que a cousa estava por um instante? Lembra-se? ¿O que faria êsse homem na ocasião em que o barco se afundasse e a multidão se precipitasse sôbre o salva-vidas, atropeladamente? Defendê-lo-ia a navalhadas. Mulheres e crianças não seriam poupadas, não é verdade? Leio-lhe a intenção. O meu amigo, como conhecedor dos homens e da sua ingénita cobardia, pois que é um psicólogo, e da sua miséria profunda, visto que é médico, deixou em meia página um tipo imortal. E creio-o bem. Nunca o homem durante uma tempestade deixará de vigiar o seu salva-vidas de navalha em punho. Talvez lhe tenha já esquecido o personagem. A mim avocam-mo agora bem intensivamente os telegramas do afundo do _Larache_. E dizem êles com o seu laconismo em que verdadeiramente o silêncio é de ouro, pois é nos telegramas que se aprende a calar, porque o palrar se paga: «Os passageiros disputavam os salva-vidas à punhalada e a tiro». Aí tem o meu amigo o fim, e o que faria o oficial reservista para defender o seu: o numero 30. O mar atrae-me, muito mais do que a terra. Creio que no mar a porção boa, dose mínima, que cada homem tem, aparece mais freqùentemente. Exceptua-se, é claro, o naufrágio. Então o homem alija a porção boa e busca uma navalha com que defenda o seu jaleco ou a sua coroa fúnebre de cortiça. Não há pais, nem filhos, nem amantes, nem irmãos. Cada um governa-se. E só em ocasião de naufrágio cada um conhece o seu vizinho. Tambêm, às vezes em terra assim sucede. Quando uma criatura busca, à sua roda, já atolada até ao pescoço, uma abnegação, um auxílio, vê então todos egoístamente cada qual tratando de se defender e safando-se à cautela. De resto no mar ou em terra, ai de ti se não defendes a tua cortiça à navalhada. Quando me lembrei do personagem episódico do seu _Del Frio al Fuego_ não deixei de me recordar tambêm daquele comunista de D. Emília, a D. Emília Pardo Bazan. Não sei de tipo mais fielmente descrito. Meu caro amigo: Devem ser assim, são fatalmente assim todos os comunistas. Um amigo meu não conhece a história. E abro aqui um parêntesis para êle. (Ora o caso foi que havia a bordo um socialista-comunista, muito ardente, persuadido, de boa fé e demais propagandista. Sucedeu-lhe ir a bordo e o barco ser colhido no mais brutal duma borrasca desfeita. Escaleres ao mar. Um deles, o mais pequeno, ia cheio de mulheres e crianças, porêm, tão cheio que se começava afundando. Idearam sustê-lo com cabos emquanto se passava gente para outro escaler. O comunista foi encarregado de suster um cabo. Traduzo agora: «A princípio agarrou-o com afinco e só notou um ligeiro ardor; mas logo começou a arder-lhe a palma da mão, como se a tivesse cheia de brasas. Se soltasse, perdiam-se os do escaler: havia que sofrer, que deixar arrancar a pele e a carne. Mas a dôr crescia, a sensação era tremenda e o comunista, soltando um grito, afrouxou o cabo e viu que o barco como uma pedra descia para o abismo. Ficou triste--e para que negá-lo?--Mas confessou que, se cem vezes lhe arder assim a mão, outras cem deixará afundar-se o bote»). Todos farão como êle e todos o confessarão. Para mim só o mar tem beleza. O mar profundo, intérmino, sem terra à vista. E, não sei porquê, atrae-me «aquela fria e inquieta sepultura», como se diz na _História Trágico Marítima_. Uma saudade muito profunda, cresce, avoluma-se e evola-se lentamente pela memória de todos os mortos no mar, afogados ou Ofélias, amantes perdidas ou simples labutadores da vida. Morrer no mar! Há lá maior beleza?! Longe de terra, sentir através das paredes de ferro dum estreito barco o mar iroso batalhar, entoar rouquenho as suas cóleras, cóleras de água que na bonança se desfarão em espuma! Em terra tudo se deixa. No mar tudo vai connosco. Lá em baixo, fazendo companhia aos galeões de Vigo, caldeiras apagadas, as escadas solitárias, a sala de música emudecida, a biblioteca tôda por ler, as viandas por manjar, o nosso barco será indiferente de-certo até ao próprio _Nautilus_ do capitão Nemo, das arrojadas fantasias de Júlio Verne. Navio da morte que ao fundo foi com todos os seus. E é consolador dizê-lo. Não nos esmigalhará o crânio a enxada do coveiro ao fim do nosso primeiro sono, nem sôbre a nossa campa a mulher que dizia amar-nos colherá um cravo rubro para colocar, entre o parêntesis dum beijo, na _boutonnière_ do amante. Já não falo no consolador prazer que haveria em duas criaturas que se estimassem morrerem abraçadas, sentindo o vélho Oceano galgar por ali acima à sua procura, para as separar, e não conseguindo mais do que fazê-las abraçar com maior amor; ou do capitão que imperturbávelmente, como o capitão da prosa de Vítor Hugo, que ordena a salvação de todos, primeiro as mulheres, depois as crianças, depois os vélhos; a maruja no fim, e todos salvos, na ponte de comando o vélho comandante afunda-se nas águas com o seu navio. Já não falo disso. Mas morrer longe de todos, tranqùilamente, fumando um cigarro, ou ouvindo uma música ideal, recordando alguêm ou alguma figura dos nossos livros preferidos, sem levar saudades nem as deixar sequer. No meio da grande solidão imensa do Oceano! Depois as _almas de mestre_, as aves que no mar alto dão longos e sentidíssimos pios, iriam lembrar à superstição dos que passassem que um pouco nada bastava, uma vaga às vezes, para que quem escutasse fôsse meter-se no corpo dos passarocos e por sua vez fôsse ouvido. Mas, divagações à parte, aí tem o meu amigo o último acto da tragédia que só esboçada foi. E se o seu passageiro não empregou a navalha, agradeça-se ao Oceano que não sacudiu mais violentamente o seu corpo em fúria. Os passageiros do _Larache_ mostraram-nos o homem. Da _Medusa_ sairam antropófagos; do _Larache_ bandidos. Ah! meu amigo, não o enganou a sua visão. E deixe-os falar, os optimizados. Eles não sabem da vida senão uma teoria confusa e abstracta. É necessário ter visto reluzir o aço da navalha do reservista, _verdad_? ¿Mas para que, afinal, aquilo tudo? ¿Para que disputar a tiro um adiamento de morte? A morte é uma letra a pagar, diz um negociante meu amigo, que tem suas tinturas de filosofia. Para que a reformar, direi eu. Isso que vale? Depois, no mar, a-pesar-de tôda a sua monotonia, há muito mais poesia, muito mais grandeza do que em terra. A terra é pequena, com seus egoismos, suas sepulturas, suas recordações, lembranças de gerações que foram, pó, pó sempre, eternamente erguido para constantemente derrubado ser. Decididamente, meu amigo, a terra é banal. Nada me prende a ela, nada. E se alguma vantagem ela tem, é só a que lhe encontrava o capitão Nemo, a de vir buscar livros, muitos livros para ler, para saber, distante, quais as paixões, as cegueiras e os vícios que fazem os homens dar-se caça como a lobos e odiarem-se com um ódio profundo, secular, que irá até que, da terra, os dois últimos mortais, já tombados, larguem da mão as navalhas com que disputaram o último bocado. Que, decididamente, meu amigo, diga-mo a sua luminosa inteligência, ¿vale acaso a Vida essa labuta, essa fadiga, ou sequer o gesto de puxar a navalha para defender a cortiça, refúgio da morte? ¿Vale acaso a vida, essa ambição de _reformar a letra_ a tiro, à navalhada e a murro? Goron Um escritor daqueles que mais considero é êste Goron, antigo chefe da polícia de Paris. E, em verdade, se me dessem a escolher entre qualquer obra de renome universal--a _Jerusalem Libertada_, os _Lusiadas_ ou o _Paraiso Perdido_,--e as _Memórias_, eu não hesitaria um segundo. Seriam as _Memórias_ de Goron preferidas. Goron, ex-chefe da brigada de segurança, é um dos escritores mais interessantes do seu tempo. O pitoresco e o formidável, o repugnante e o heróico, o vício, a doença, a loucura e o crime, tôdas as loucuras, todos os vícios, todos os crimes, passam nas suas páginas, mesclados, num desfile estranho, numa procissão extravagante e macabra, polichinelesca e terrível. Abro uma página da série das suas _Novas memórias_--as do Amor. Será a primeira do volume _Mercado de mulheres_. O que essa página seja não chega a minha prosa para o contar. É a confissão duma _rôdeuse_ detida no _boulevard_ de la Chapelle. Dostoiewsky não faria uma página mais sinistramente comovida nem mais elegíacamente emocionante. É duma grandeza absorvente. A história duma vida desfila ali em quatro páginas, vertiginosamente. Se me perguntarem _á priori_ o que é a obra de Goron, eu não saberei responder. As suas personagens, quem são? e terei novo embaraço. Biografias sinistras, silhuetas de criaturas desgraçadas, de criaturas pérfidas, de criaturas míseras, terríveis, alucinadas, ciumosas, soluçantes. Retalhos de vidas, episódios trágicos, misérias, lôdos, confissões patibulares em lábios purpurinos, confissões sentimentais brotando de criaturas putrefactas, sei lá?! Não sei, decididamente não sei dizer. É uma cousa indistinta, é a vida, a vida vortilhão, a vida Maelstroom, a vida abismo, sôbre que alguêm se debruçasse e trouxesse depois nos olhos todo o horror e todo o espanto. Pelo seu gabinete desfilaram tôdas as manifestações selvagens da fera humana: Arrancaram a máscara tôdas as qualidades de homens e despiu a alma tôda a sorte de mulheres. E então êle pôde ver, a frio, como um bacteriologista em suas culturas e um dissecador no mármore anatómico, os vícios e as paixões que convulsionam, arrastam e perturbam esta mesquinha e egoísta humanidade. A sua obra é a verdadeira _Tragédia humana_. Ela ficará amanhã, a obra dêste antigo chefe de polícia, como a documentação mais perfeita, o repositório mais eloqùente de factos para a reconstituição da psicologia duma época. E em verdade vos digo que tem comoção para tôda uma literatura, e tão intensificada a sua grandeza que daria filão maravilhoso a romancistas, dramaturgos e todos os buscadores de entrechos se não fôsse tambêm para meditar e para ler, mais com o coração do que com os olhos. ¿Julgarão talvez que sob o aspecto desabrido, rude e solerte do agente não existe o artista e o homem? Enganam-se. O agente comoveu-se muitas vezes e é o artista quem nos transmite essa comoção. Não há ali um coração endurecido. Tanta miséria e tanta podridão tem êste homem visto desfilar ante seus olhos, em tanto lôdo tem mergulhado suas mãos, que, dir-se-ia ter-se-lhe embotado a sensibilidade, tornado incomovíveis tôdas as fibras e de todo já se lhe terem estancado as lágrimas. Mas não. Uma imensa piedade transborda da sua obra. Uma piedade infinita, uma piedade tornada avalanche, que chega até nós ainda avassaladora e convincente. Querem uma prova? Êste homem forte, que conhece a humanidade por dentro, em todos os seus cinismos e tôdas as suas ternuras, em todos os seus apetites e tôdas as suas ambições, em todos os seus vícios e tôdas as suas virtudes, que conhece o calcanhar de Aquiles de tôdas as almas, que viu empalidecer os maiores homens e cair a cabeça aos maiores criminosos, que conhece a noite e sabe os recantos da miséria, êste homem chegado a certo ponto em que necessário lhe era descrever a enfermaria das mulheres perdidas da _Saint Lazare_, dos versos de Bruant, pousa a pena e diz com ar sumido: «Repugna-me descrever a enfermaria. É demasiado triste, demasiado feia». E logo nos começa contando outra miséria, como se quisesse arrancar o leitor a um espectáculo doloroso. A dôr só embota as criaturas rudes. Ás outras estimula-as. Assim, Goron, sob a sua farda de polícia, tem um coração piedoso e sob os olhos inquisitoriais e pesquisantes de perseguidor há muitas vezes lágrimas reprêsas. ¿Porque abandonou êle o cargo? Não sei. Talvez farto de tanta dôr. O espectáculo da dôr contínua, que é hábito para os rudes, para certas criaturas é um suplício. Goron é uma criatura sensível, uma alma de artista apaixonado e sonhador. E quem tal diria? Sonhador, nem menos! Ah! Não julgueis nunca os homens pelas aparências. ¿O que lá está dentro quem no sabe? E creio-o; jamais alguêm o saberá! A obra de Goron é o mais profundo estudo de _bas-fonds_ que conheço. E olhai que muitos há. Tenho aqui à mão o _Paris impur_ de Charles Virmaitre e os livros de L. Taxil. Não só profundo êle é. Há muita poesia naquelas descrições e muita arte nesses relatos. Mão cariciosa cinzelou aquela prosa desprendida que não sei que encanto tem. Dir-me-hão que uma cidade como Paris e um cargo como o de chefe dão para óptimos livros de memórias. De acôrdo. Mas é necessário ser-se artista e necessário saber ver fora da visão profissional. E Goron soube ver. * * * * * «Sinto-me morrer longe de ti; tenho um desejo louco de abraçar-te. «Quero ver-te a todo o custo e quando saia quero que me ames como sempre, que jamais, jamais, sejas doutra mulher. Prefiro ver-te morto que perjuro ao nosso amor, e se me abandonas matar-te-hei!... «Pensa em mim tôdas as noites, na tua cela, como eu penso em ti, rogando a Deus que nos reúna breve, ainda que seja na Nova...» (Nova-Caledónia, a penitenciária). Assim escrevia uma mulher pública a um ladrão. Ambos presos. Ela escrevia de Saint Lazare. E são cartas, confissões, ódios, vinganças, paixões, tôda a gama de humanos sentimentos que ali ruge, e passa em tropel. Quási poeta nas _Novas Confissões_, Sherlock-Holmes no _Através do Crime_, Goron é um apaixonado e um artista. A sua obra é proveitosíssima e lê-se com verdadeiro interêsse. Quem ainda crê no amor, que se sacie. Tem ali o amor em tôda a sua nudez. Quem crê na sinceridade e não se acostumou a ver o homem como um animal que inventou as luvas para esconder as garras, tambêm ali tem que aprender. E certo é que todos, lendo-a, andarão mais algumas horas na intimidade da alma humana. Por suas relações, por sua larga experiência--Goron é um cavalheiro edoso--pela larguíssima racolta de documentos vívidos e do natural colhidos, flagrantes ainda e ainda conservando tôda a sua intensidade, mereceram as _Memórias_ o sucesso europeu que desfrutam. Acolhidas com ensurdecedor murmúrio à data da sua publicação--que arquivo de graves cousas, cousas comprometedoras, cousas pícaras, nojentas e terríveis, surdiria?!--elas foram tambêm logo festejadas. É que as _Memórias_ de Goron não eram obra para armar à popularidade, cativando por suas escandalosas revelações, e rocambolizando a meada profissional. Não eram. As _Memórias_ eram sómente isto: o trabalho dum artista, dum homem que sentiu a vida e que vem das regiões misteriosas do crime, dos abismos profundos do vício, relatar-nos o que viu em linguagem comovida. Falhando pois à ansiosa popularidade do escândalo, a obra de Goron não teve o êxito passageiro das que o teem. Antes continua a ser lida, lida será e sempre com amor. É o estudo dum homem que viu. E só quem viu merece ser acreditado. Goron, antes de ser agente, era um artista. Quando deixou de ser agente, artista ficou. E pelo contrário: a sua convivência com gente humilde, a sua excursão por essas desconhecidas paragens, deram-nos um documento que será lido emquanto bater um coração e não secar de todo essa solitária flor da piedade. E porque a sua obra me faz sentir, sentir intensamente, é que eu considero Goron um grande artista. Mercedes Blasco (A propósito do seu livro «Memórias duma actriz») Antes, muito antes mesmo, de ter lido as _Memórias_, já pensara da sua autora o que Vítor Hugo escreveu de Cláudio Frollo: «¿Que fogo interior é êsse que por vezes lhe brilha nos olhos, a ponto de se assimilharem a uns buracos feitos na parede duma fornalha?» ¿Que brilho mau trazem êsses olhos, que pesa como o coturno dos gladiadores que vencem? Mas foi um pensamento só. Não psicologizei do brilho nem do fogo. Já Plínio, o antigo, no ano 79 de Cristo, morrera no Vesúvio vítima da sua lamentável curiosidade... Mas é dum livro que se trata. Mercedes Blasco, actriz e escritora, acaba de publicar as suas _Memórias_, quási ao mesmo tempo em que Sarah Bernhardt publica as dela e Júlia Fons em Hespanha, sorrindo, nos mostra a capa do seu _Lo que yo pienso_, ao mesmo tempo que sorrindo tambêm nos pede pelos seus pensamentos duas pesetas. Não me admirei nada de que Sarah publicasse _Memórias_. Apesar da enormidade da maçada que elas são, e do volume, achei até que ela deva ter ainda muito que contar. Mas admirei-me tanto da Fons ter pensamentos, como da Mercedes ter _Memórias_. As memórias são dos vélhos. Ora não sendo Mercedes vélha, não podia ter _Memórias_. Ou a lógica era uma cantata. E era. Mercedes é nova e tem memórias. E bem interessantes que elas são, ainda que a muitos peze. Confesso que sentira tambêm «ao boato de publicação do livro» um «aperto de coração». Não houve motivo para isso. O livro dessa criatura, cuja figura Silva Pinto tão bem silhuetou--essa «_Mercedes_ que tão bem oculta, sob uns exteriores de gentil frivolidade, a mais fina sensibilidade, a lealdade mais correcta e a mais impressiva alma de artista--na elevada e luminosa esfera da arte pura»--é um grande livro. É um volume curiosíssimo, escrito invejávelmente num estilo de ideal simplicidade, numa prosa que tem o encanto duma espirituosa conversação. Nenhum esfôrço, nenhuma tortura ela apresenta. Essa simplicidade da prosa, correndo como a água dos regatos, que é o ideal de todo o artista; essa simplicidade, que foi a grande tortura do autor das _Viagens na minha terra_, e que fêz os cabelos brancos ao autor da _Madame Bovary_ e ao Daudet da _Sapho_, encontra-se no livro desta travêssa criatura, senhora da prosa, de dois olhos terríveis, abismais, duma cabeleira agarotada e dum corpo de boneca voluptuosa. É o livro mais curioso dos últimos anos, e então curioso como nenhum, se considerarmos que raras são as criaturas de teatro, em Portugal, capazes de alinhavar um livro de memórias. Quer como subsídio para a história do teatro nacional, quer como obra literária, quer como documento íntimo para o estudo duma alma e duma vida, êle é um trabalho absolutamente inédito, completo e modelar. Como arte, as suas descrições maravilhosas, o aroma das suas páginas, a flagrância das suas scenas, a intensidade dos seus momentos passionais e a sua travessura inquietante, revelam-nos obra da grande artista que é Mercedes,--uma artista gloriosa e privilegiada, cheia de talento, de graça, de originalidade e de imprevisto. No teatro tem Mercedes Blasco o seu logar marcado entre as nossas primeiras actrizes; se me objectarem que a opereta, de que ela é a nossa primeira figura, é um género inferior, eu redarguirei parafraseando Teófilo Gauthier, que dizia que em literatura não havia géneros inferiores mas sim escritores inábeis:--No teatro não há géneros inferiores, o que há é artistas que o são e artistas que o não foram, não são, nem serão nunca. Se ela, em logar de enveredar pelo caminho do _couplet_, tem tomado pelo caminho do drama, seria hoje uma extraordinária actriz dramática. Pela sua intensidade de sentir, pela extraordinária vibratilidade dos seus nervos, onde parece que existem amassadas tôdas as loucuras, tôdas as paixões, tôdas as bondades e tôdas as emoções humanas, e pelo seu modo de ser artista, tão probo e tão grande que a obriga a dispensar aos papeis de galhofa que tem feito todos os seus cuidados e lhe faz sentir em cada noite de _estreno_ a intranqùilidade artística que acometia o Bongrand da _Obra_ de Zola diante de cada quadro novo. A razão porque esta criatura é guerreada numa guerra surda feita de picuínhas irritantes, não a explico. Vieira diz que «um grande delito muitas vezes achou piedade, mas nunca a um grande merecimento faltou inveja». E aí está como o padre António Vieira explicou. É essa a razão. Mercedes Blasco nasceu actriz. Nasceu actriz, como Gomes Leal nasceu poeta e Gavarni, caricaturista. O teatro foi a sua quimera, o seu deslumbramento. Ela julgou sempre que no teatro se fizesse teatro, quando ali sómente se faz pela vida. O desengano veio breve. Ela hoje sabe bem que «tudo ali é falso: o beijo das amigas, os galanteios dos apaixonados e os protestos dos amigos, que desaparecem mal supõem que podemos precisar deles». Disse-o nesse esplêndido e impecável trecho de prosa, que é a sua _Carta aberta_, em tempos publicado. Acreditou no amor e afinal não encontrou no seu caminho mais do que gozadores banais e ressêcos egoístas. Hoje tem perdidas as ilusões, o que não admira, pois tôda a sua vida tem sido a epopeia do desengano. Restam-lhe dois filhos dessa travessia. É deles que a sua alma está cheia, porque é sôbre o seu berço que ela se tem visto forçada a afugentar as lágrimas, servindo-se da sua linda voz, para, nas ocasiões de maior tristeza,--triste ironia do Destino--os adormecer, cantando-lhes alguma bela serenata napolitana, das suas noites de glória. Noutro meio, noutro meio onde as criaturas que teem algo para dizer são escutadas com amor, Mercedes teria uma fortuna. Poderia fazer loucuras sarahbernhardthescas. Aqui a sua fortuna não é para que a invejem. Eu admiro-a e admiro a bondade com que ela indulgencia as torpezas que a calúnia vulga e borda, a energia e a vontade com que ela combate, desamparada de todo o auxílio, e o seu talento de escritora que tudo originaliza, que a tudo empresta vida e nos deu êste livro de memórias. As _Memórias duma actriz_, ora publicado, é o livro das suas paixões, dos seus triunfos. É o livro da actriz. Mas, exactamente como Guerra Junqueiro dizia de João Penha, Mercedes deve ter outro: o livro das suas lutas, das suas agonias, dos seus desânimos; o livro da mulher. O que êsse livro seria, dada a sua hiper-sensibilidade e o encanto íntimo da sua prosa, nem eu sei dizer-lhes. Seria espantoso, em verdade, se ela arrancasse a máscara e nos viesse contar a história dos seus dias, o sabor dos seus momentos amargos, os sobressaltos do seu sono, a inquietação das suas horas, a guerra de insídia, de calúnia, de inveja que se tem feito à sua roda; se ela nos dissesse os _porquês_ e as _causas_ de muita história reticenciada, ou que no seu livro publicado só se lê nas entrelinhas. A verdadeira Mercedes não é a que conhecemos das _Memórias_, sublinhando gaiatamente uma cançoneta, cheia de rapazices adoráveis e publicando cartas de amor para mostrar que nunca amou. A verdadeira está por detrás da máscara desta chorando. Se às vezes lhe vem espreitar aos olhos, quando sucede entristecerem, é sómente pelo geito que teem os comediantes de vir olhar pelos óculos do pano de bôca. A Mercedes das _Memórias_ é a actriz. Certo é que, aqui e alêm, a caracterização deixa ver a mulher. Mas logo, num geito, ela recompõe a máscara--que tem o público com as suas tristezas!--e aí a temos outra vez a rir maliciosa, com aqueles dois olhos, que são enormes, que são profundos e em que por vezes parece cachoar, revolver e estorcer-se uma labareda criminosa. Certo estou de que as suas _Memórias_ encontraram em cada leitor um espectador deliciado e ávido; o outro livro encontraria, em cada, um coração. E por isso é que, se tenho pela Mercedes das _Memórias_ sómente uma curiosidade agaçante, tenho pela outra uma devoção profunda, um infinito amor. Com esta deplorável mania de tragediar tudo, até as cousas que não teem tragédia, eu vejo em Mercedes Blasco uma criatura a quem tem pontapizado o orgulho, estrangulado a ambição. Não ha vileza que lhe não tenham assacado, intriga em que a não tenham envolvido. Julgo que tenha chorado muito, mas para dentro, não fôssem as lágrimas deixar-lhe sulcos na pele. Só o martírio, o martírio infinito de recompor a máscara tôdas as manhãs, não vá a gente com o espectáculo da nossa dôr dar prémios gordos de alegria aos safardanas que nos espiam e nos invejam!... Se cada homem ou cada criatura soubesse fazer um livro, um diário da sua dôr, quando não soubesse fazer dela um poema como queria Goethe, a vida resultaria inaturável. Tôda a gente tem em si a sua tragédia, disse Sienkiewicz. Pois bem. Mercedes, escrevendo o livro da sua tragédia, teria feito o livro mais humanamente intenso, mais doloroso e mais interessante que se poderia escrever. Teria concorrido para se desvendar a vida de aparências que todos somos obrigados a viver. E então, ah, então, veriam os que nos invejam, que as aparências não são mais do que as máscaras de que nos servimos, comediantes, para que ninguêm saiba a mágua que nos consome. Um seria o livro da cómica. Outro o livro da trágica. O livro de aparências e o livro de realidades. Então ver-se-ia como um completaria o outro. Porque se as _Memórias_ são para o público, o outro seria para seus filhos, «o maior e único amor do seu coração». E seria o maior legado que lhes poderia deixar no dia em que a Morte viesse cerrar-lhe os olhos piedosamente, porque a Morte é o pano de ferro que inevitávelmente correrá sôbre a tragédia e a comédia de nossas vidas. A Deliciosa Mentira Tomando uma pitada de simonte, e sacando do bôlso o lençolesco e portuguesíssimo tabaqueiro de Alcobaça, ao ser-lhe perguntado qual era optável, se uma mentira deliciosa, se uma terrivel e forte verdade, o padre engatilhou logo o seu eterno e favorito: _Distinguo_. Explicou; e, como a mentira deliciosa era o Amor, perguntaram-lhe após o que faria se se visse perseguido por uma mulher bonita. Esteve o tonsurado um momento suspenso e ardilosamente se esquivou, citando, entre outra pitada e uma fungadela, a resposta de S. Tomaz d’Aquino: «o que eu devia fazer, sei: mas o que eu faria, só Deus o sabe». Isto se passou em tempo de frades, porque tambêm os frades amaram. O amor é vélho como a maldade e forte como aí qualquer teia de aranha. Não resconstituo o sítio. O leitor, compulsando a _História de S. Domingos_, o fantasiará à sua vontade. É até mais bonito. Não pictorizo a indumentária, nem com enxundiosas côres me permito ressuscitar as figuras. Basta de patranhosa inventiva. Só no recontar da história pus, como o leitor vê, uma discreta referência ao lenço de Alcobaça--reclame úrgico à indústria nacional em crise. Creio que, depois, a conversa se generalizou. E, como a sabatina ameaçasse eternizar-se, logo um frei noviço propoz, para desempate, que se consultasse os mestres. O frade, pitadeando gravemente, aduziu razões, carretou argumentos, fulminou sabenças e confundiu os adversários. Santo Agostinho, S. Isto, S. Aquilo, foram chamados a capítulo e até basta cópia de autores gentílicos vieram provar ser o Amor cousa nefanda e temerosa. E, depois de ter aduzido, carretado, fulminado e confundido, o padre resumiu que se guardassem de amar. O amor é o mal e o amar o inferno. Com outra erudita pitada os despediu, e vélhos e novos recolheram às suas celas vencidos, mas não convencidos. Que, não sei se convencido iria tambêm o fradinho cheirador. Parou a discussão aí por alturas do século passado. Já os controversistas estão feitos em pó--pó caído, diz Vieira--dentro do pó dos seus hábitos. Mas eu, que mais com os mortos vivo do que privo com os vivos, ressuscito o claustro pleno e entro na discussão. Trago tambêm os meus anátemas e argumento com autores modernos. Concordo plenamente com o frade e se venho é porque a turba parece rebelde, e disposta a ceder. Oh! as freiras! O _eterno feminino_... * * * * * Mentira deliciosa, o Amor é a mais mentirosa das mentiras. Anacreonte conta que, uma noite em que se albergaram juntos o Amor e a Morte, ambos armados com suas setas e aljava, de ouro as do Amor, de ferro as da Morte, ao levantar, como ainda fôsse escuro, as aljavas se trocaram. «Daqui vem que, dali por diante, como o Amor trouxesse as setas da Morte, as suas feridas foram mortais». Considerai pois que as suas feridas são mortais. ¿E vale a pena amar? Não, não vale. O amor não é dêste mundo e isso que vós julgais amor é mera ilusão dos sentidos, fátuo deslumbramento dos olhos, passageiro encanto dos ouvidos. «É quimera, é mentira, é engano, é uma doença da imaginação, e por isso basta para ser tormento», diz Vieira. Eu concluirei que, se o cuidais um paraíso, olhai que tambêm tem um purgatório. E afinal não é sempre senão caminho para o inferno. O amor tem tambêm o seu inferno, e onde há, como no outro, o perpétuo ringir de dentes--_stridor dentium_--que é, dizem, o ciúme. Alêm disso, de que vale iludir-vos? «Pinta-se o Amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão, e amar, são duas cousas que não se juntam». Mas novo ou vélho, ela linda como estátua ideal ou doce como uma carta de amor, nunca o amor vale o afecto que se ponha nele. É um ruim companheiro, o amor. Tira o tempo, gasta o dinheiro, aumenta os cuidados, muda as intenções, inimiza os amigos, semeia ódios, leva a vinganças, muda, transforma, arrasa e nada nos dá. Ainda se alguma cousa de bom deixa, isso não é mais que uma saudade, o cilício da imaginação. Mas remédio para tamanho mal, perguntarão? Quatro são conhecidos e êsses os disse, púlpito abaixo, o nosso padre António Vieira: o tempo, a ausência, a ingratidão e, sôbre tudo, o mudar de objecto. «Dizem que um amor com outro se paga, e o mais certo é, que um amor com outro se apaga». O tempo o esvaece. Como um perfume, como uma recordação, como uma flor cara, o tempo o faz desaparecer; como na morte, longe da vista, longe do coração, a ausência faz seu efeito, a ingratidão o faz mudar de objecto, e o mudar de objecto apagar de todo. Um amor com outro amor se apaga, lembrai-vos! De resto, o amor é um aleijão comum, um mal secreto, de que todos se sentem e poucos se queixam. Para ser feliz, não amar é tudo. A vacina do amor é a indiferença. O amor é um mal de raça. Urge combater êsse mal. Abel Botelho diz que o amor actual ou é «hipocrisia, ou cálculo, ou simonia, ou deboche» e disso não vou longe. Oh! o amor! Padecem disso as crianças e os poetas. Os outros... os outros são os felizes. Vale pois muito mais ser feliz. Irmãos! Rezai pois um _pater-noster_ pelos inocentes, porque não sabem o que é amor, e outro pelos poetas, porque o são. _Pater noster_... * * * * * É o amor adversário perigoso. Não se lhe deve dar combate. Napoleão, o maior capitão do seu tempo, opina, que no «amor a grande vitória é a retirada». Combatê-lo é uma tontaria. Evitai-o, evitai-o sempre. Quem um dia amou um dia foi vencido. ¿Lembram-se da _Notre Dame_, de Hugo? ¿Lembram-se de Jehan Frollo, o estudante, no assalto à catedral? O estudante foi ao combate carregado de armas. Por véste uma armadura, por defesa uma bésta, uma espada, punhais, um arsenal. Dir-se-ia invencível, não é verdade? Subiu a escada, entrou na galeria. Quasímodo mal o viu, ocupado como estava em balancear a escada, apinhada de escalantes. Quando se voltou, dum salto achatou-lhe a armadura contra a parede. Tirou-lhe uma por uma as peças da sua casca de ferro; a espada, os punhais, o capacete, a couraça, os braçais. Depois, com uma só mão, agarrou nele pelos pés e volteou-o no abismo. Do cavaleiro de antes viram as turbas um cadáver, quebrado em dois, o crânio vazio, suspenso de uma saliência da arquitectura da catedral. O amor é Quasímodo, o sineiro, porque o sineiro fêz como o amor. Despojou primeiro, e só depois é que deu a morte. Primeiro expoliou, depois arremessou ao abismo. É assim sempre. E como amor é Quasímodo, guardai-vos de o procurar, para que não vos suceda o mesmo que a êsse inditoso Jehan Frollo. O amor é o pior dos males. Que nos deixa êle? «Ridículo, amarguras, ou nada...» responde Octávio Mirbeau. «Que loucura terrível que é o amor! No fundo é sempre triste», continua. Não amem nunca, ouvem! Sendo o amor um negócio, «quem é generoso é mau comerciante». Nada de ilusões. Nada de amores. Mulheres nunca uma. Uma é perigoso. Se fôram forçados a amar, porque o amor é uma doença como o sarampo ou como a meningite, repartam-se em pequenos quinhões. Quem teve um só amor na vida foi desgraçado. É ver a história de todos os livros de amor. Quem muitos teve, não amou nada. Quem amou uma foi infeliz, quem amou cento viveu satisfeito. Reza um assento da Tôrre do Tombo, que pelos anos de 1220, o padre Fernando da Costa, presbítero do hábito de S. Pedro, prior da Egreja de Tarouca, pedira perdão a el-rei D. Afonso III por se julgar ter dormido com «sete irmãos, nove comadres, uma tia, nove afilhadas, e com António da Cunha, alêm de cincoenta e uma mulheres, das quais houve cento e noventa e sete filhos, quarenta e sete fêmeas e cento e cincoenta varões». Mas não reza a história que êste amoroso fôsse desgraçado como o Armando da _Dama das Camélias_, ou como o Werther se suicidasse. Por mim, em verdade lhes direi, que me creio o mais imune dos bípedes, porque o mais egoísta me julgo. De resto o amor é para os raros apenas. Deixá-los lá amar. São êsses que fazem depois os belos livros que a gente gosta tanto de ler. Que em verdade, irmãos caríssimos, admito o amor, a deliciosa mentira, mas só em teoria. História remota, cujos heróis já morreram, e que sucedeu nalgum país distante. Porque se é triste e eu entristeço, logo me põe bem com a minha digestão e com a minha consciência,--duas cousas que se parecem--o comentário clássico e absoluto: ¿Quem sabe lá se ela não será mentira? Estátuas e comendas «Decididamente Portugal é um país de ingratos», escrevia-me desolado um estrangeiro que há uns bons vinte anos se esforça por tornar conhecidas no seu país a nossa história e a nossa literatura. Há vinte anos que trabalha por nós, tem 15 volumes publicados sôbre as nossas letras, e ainda não recebeu de Portugal um agradecimento sequer. Sucede até escrever a portugueses, escrever a estações oficiais e não receber resposta. E, desoladamente enumera-me o que outras nações da Europa, por quem êle tem feito menos, lhe teem concedido, comendas, cruzes, medalhas, o demónio. Não me chegou o homem a perguntar se em Portugal havia fitas, cruzes e comendas. Não perguntou. Eu porêm é que lhe disse que as havia, mas que eram para... os barbeiros. E que não tivesse pena de não ter nenhuma, porque isso em Portugal não valia absolutamente um caracol. Valia tão pouco que era até frequente ver aguadeiros, comendadores, e capatazes da limpeza, grandes-oficiais. O que êle, na sua ingenuidade de homem do norte, reputava uma honra, era, afinal e sómente, a marca da mediocridade. Fizeram João de Deus grande-oficial de S. Tiago. Pois bem: João de Deus, para se evadir à _honra_... morreu. E então S. Tiago, uma cousa que se dá aos sapateiros, um hábito relaxado de todo. Que os outros regulam pela mesma cousa. O da própria Tôrre e Espada já por vezes tem sido recusado e o de Cristo é para os abastados, criados de mesa, moços de esquina e... archeiros da casa real. Tão desconceituado êle anda, que até o Baptista, o vélho criado do Carlos d’_Os Maias_, o recusou sob o pretexto de que não havia cão nem gato que o não tivesse. As comendas em Portugal são a paga dos badalos para sinos, das eleições ganhas, da galopinagem activa, e de muitas outras cousas que se não podem precisar. Guy de Maupassant disse um dia que três cousas em França desonravam um homem: a Academia, as condecoraçõese a _Révue des deux mondes_. Isto em França onde a Academia é uma cousa de préstimo, e a _Révue des deux mondes_ é a _Révue des deux mondes_. Que faria se fôsse em Portugal, onde a Academia é um retiro de tatibitates e as condecorações são o que se sabe. A um caso assisti que me mostrou bem qual a ideia que o povo faz de como elas são adquiridas: Quando nos visitou Afonso de Espanha, sucedeu passar pelo local onde me achava um ilustre desconhecido, cujo peito era couraçado por tôda a sorte de condecorações. Uma se avantajava e impunha o seu destaque, rebrilhante e majestosa. Dois operários conversavam ao meu lado e quando o ilustre passou, um deles, apontando ao outro a venera, explicou-lhe: «¿Vês aquela medalha grande? aquilo abichou-a êle uma ocasião em que tinha que se levantar às dez horas e só acordou ao meio dia». E estava certo. Ora eis aqui a razão por que o estrangeiro, com os seus anos de trabalho e os seus livros publicados, não apanhou ainda nem uma sêde de água. * * * * * Outra das grandes pragas nacionais é a das estátuas. Fervilham as condecorações, a ponto de se confundirem com a placa dos moços de esquina. Não há cidadão que não possua o seu habitozinho, dado quási sempre em recompensa do trabalho que teve para o conseguir. Alguns, os coleccionadores, tem-nos às dezenas, de tôdas as qualidades, de todos os feitios, de tôdas as ordens, desde a ordem da _Pontinha de oiro_, fundada por João Lourenço da Cunha até... à Ordem Terceira, ou qualquer outra ordem que quiserem. As estátuas são como as urtigas. Rebentam por tôda a parte e são quási tôdas iguais, para não escangalharem a simetria da sala. Não há em Lisboa jardim que não possua estas três cousas indispensáveis a um passeio que se preza: Um _water-closet_, um marco fontanário e uma estátua. Quási tôdas elas teem o ar dum castiçal e há de todos os tamanhos e para todos os paladares. Desde a minúscula do Largo da Biblioteca até à de Belêm, onde Afonso de Albuquerque boceja de tédio ao ouvir dizer à volta de si que Baptista Diniz é o maior dramaturgo português. Há bem pouco tempo que um silfo bom obstou à perpetração dum dêstes crimes. Erguerem uma estátua ao maior, ao mais glorioso e ao mais desgraçado dos romancistas portugueses, Camilo Castelo Branco, como se êle fôsse aí qualquer burguês enriquecido ou qualquer director geral. Chegou-se a armar uma comissão, que não levou os seus trabalhos avante por se ter levantado grande controvérsia sôbre se Camilo foi ou não escritor célebre que floresceu no século XIX. E até o dr. Libório de Meireles fêz um discurso, verdade seja que plagiado quási todo ao sr. Aires de Gouveia, tendente a provar irrefutávelmente que não foi Camilo o autor dos _Lusíadas_, ideia assente no espírito do seu colega na comissão, sr. António José da Silva. Como ninguêm se entendesse, porque todos tinham uma ideia muito remota de quem fôra o escritor, de que nenhum deles conhecia escritos, as sessões, que pareciam ou uma tourada de curiosos ou uma sessão da Academia Real das Sciências, não se repetiram e deixaram felizmente em paz o romancista. O crime não se consumou e foi melhor. As estátuas não nobilitam ninguêm e não servem senão para vertedouro dos cães. O honroso é não ter estátua. E tão difícil é hoje encontrar um homem que não tenha a sua condecoração ou a sua estátuazinha, pelo menos em projecto, que Diógenes, se voltasse a êste mundo à procura dêsse mortal, «apagava a lanterna como cousa inútil» e voltaria pelo mesmo caminho sem o ter encontrado. Camilo não necessita de estátua. A sua maior glória é não a ter. Os estrangeiros perguntarão por ela como outrora pela de Catão, que não teve estátua no Capitólio. ¿Quere a comissão um conselho? A comissão não sabe quem fôsse Camilo, mas sabe de-certo quem foi o Palma Cavalão. Pois bem. Assembléem outra vez e botem estátua ao Palma Cavalão. Êsse sim. Êsse é que precisa dela e grande crime é ainda não a ter. Pois compreende-se lá que nesta terra de Palmas Cavalões, Palma Cavalão não tenha uma estátua ou ao menos uma rua, uma avenida, um beco, uma travessa com o seu nome! Palma Cavalão é um símbolo; Palma Cavalão assim chamado para se distinguir dêsse outro benemérito Palma Cavalinho, é uma instituição nacional. Quem o não conhece?! Palma Cavalão, director da _Corneta do Diabo_, o que fazia o _High-Life_ na _Verdade_, ainda não ter estátua! Aqui está uma cousa que não se compreende. Dir-me-hão que êle não escreveu uma obra, que não escreveu livros. De acôrdo. Mas tinha lógica! «Lisboa está caríssima, e a literatura neste desgraçado país...» Não tinha Livros? Mas esta frase, meninos?! Que filosofia! A filosofia dos Palmas Cavalões!! Depois, ¿o que é preciso para ter uma estátua? Sim, o que é? Damaso, o nosso distintíssimo _sportman_ Damaso Salcede, só o acusou dêle ter «pedido o relójio ao Zeferino para figurar num baptizado e pô-lo no prego!...», e isso numa hora de indignação. Para estátua bem sei que é pouco, mas lembrem-se de que Palma Cavalão foi tôda a sua vida um tímido, e isto, aqui à puridade, é porque o Zeferino lhe não emprestou tambêm a corrente. Aqui está uma criatura que, a-pesar de todos os paradoxos, merece monumento na praça pública. A comissão do monumento a Camilo que olhe para isto, e pense maduramente nesta pretendença. Deixem lá o outro. Palma Cavalão é afinal quem a merece. A comissão que envide todos os seus bons esforços e levante uma estátua ao «malogrado jornalista». Se a comissão não souber quando ele floresceu, consulte _Os Maias_. Se, ao lê-los, se não sentir tocada e não levantar o castiçal em nome da «pátria reconhecida» então, decididamente, é que isto é um país de idiotas e de refinadíssimos ingratos. A tristeza profissional Zamacois, escritor espanhol de muito talento, escreveu, algures, que não conhecia «melancolia mais incurável, abatimento mais profundo, nem declinar mais silenciosamente trágico, que o ocaso dos vélhos actores». Não deveria ter dito assim. A melancolia dos vélhos actores é a tristeza profissional e essa não a teem só os cómicos. Escritores, jornalistas, pintores, todos os que vivem dragando o cérebro e a imaginação, todos êsses sofrem dessa tristeza incurável, a mais horrível, a mais intensa, a mais cruciante de tôdas as tristezas. A tristeza profissional é uma cousa inexplicável. É o assalto de todos os males do universo à criatura, porque não há lágrimas que ela não chore, agonias que não passe, dúvidas que não tenha. É o inferno, o inferno com todos os círculos da sua medonha expiação. * * * * * Imaginemos o martírio do comediante que envelheceu e se vê sem público. É o martírio da cortezã que se vê sem adoradores. Ela todos os dias ao espelho se vai gastando a olhar o embranquecer dos cabelos, o aparecimento das rugas. A pele perde a pouco e pouco a sua macieza, a carne torna-se mole, flácida, a bôca perde a airosidade da sua curva. Os homens vão-se. As juras e os protestos de amor evaporam-se. Á roda da criatura o gêlo sobe numa muralha que a isola do mundo. Imaginar a tortura dessa mulher curvada sôbre os estragos que o tempo vai fazendo, é imaginar a tortura do comediante curvado sôbre um passado que se evaporou. Que resta dele? Nada. Recordações, o que é quási nada. Cinza fria de apagado lume. As suas noites de glória, noites de ovação, noites de triunfo, o que são? Ninguêm se lembra delas. As suas criações, os seus fatos luxuosos de príncipes do acaso, imperadores de horas, quem os recorda? Ter sido grande e cair de repente no esquecimento é tão doloroso como ter sido rico, ter tido trens, equipagens, mulheres, e de repente ter que esmolar uma côdea para jantar. Mas o comediante é de todos o mais feliz. Foi vitoriado, aclamado. A sua figura fêz bater o coração das mulheres e despertar aplausos loucos nos dos homens. Foi feliz ao menos uma noite. E ter sido feliz na vida ao menos uma noite... A tristeza do comediante comparada com a tristeza do escritor nada vale. A criatura que escreve não tem nunca consolações. O pior dos seus inimigos, o que a mina, a destrói, é a Dúvida. Para escrever uma página levava Flaubert uma semana. Eça sôbre o _Crime do Padre Amaro_ gastou um têrço da sua vida. Acreditam todavia que, ao fim de tanto labor, êles poderam emfim descansar? Não, nunca! Depois da escrita, recebe-se a crítica com sobressalto. Se as páginas causam ruído, uma vaga consolação entra na alma da criatura. Mas é uma confiança firmada no ar. Basta que um invejoso venha entornar a sua taça de insídia, para que ela tenha logo torturas sem fim. No actor já ninguêm lhe pode apontar os defeitos, ao passo que o pelourinho do escritor é a sua obra. Envelhece e as suas páginas começam a tornar-se vélhas. Os que as louvaram, porque tambêm as viveram, morreram uns, esqueceram-se outros. E os novos veem, com a sua fúria iconoclasta, perturbar o sono aos pobres esquecidos. Veem, irreverentes e selvagens, sem respeito pelos nossos cabelos brancos, sem piedade pelas canseiras que tivemos, sem se lembrarem de que tambêm hão-de envelhecer, dizer que a nossa obra não vale um chavo, que nunca fomos moços, que nunca tivemos talento. E, mofando, destroem assim o que de mais caro nos restará. A dúvida, que já em novo nos perseguia a cada página feita, não nos larga mais. É uma agonia pavorosa. Já não podemos ver os nossos livros sem horror. E tão intenso é êste horror profissional, que Zola não tornava a ler os seus livros depois de publicados e Flaubert os escondia no fundo das gavetas para não mais tornar a vê-los. Ter escrito belas páginas, ter gasto a vida curvado sôbre uma obra, para que, no fim, o primeiro passante nos venha dizer que ela nada vale, é triste. Creio que não há martírio maior. Zola, que na _Obra_ se autobiografou, rasga um bocado do que seja essa tragédia: «... o trabalho apoderou-se-me da existência. Pouco a pouco roubou-me minha mãe, minha mulher, tudo o que eu amo. É o gérmen lançado no crânio, que devora o cérebro, que se apossa do tronco e dos membros, que róe o corpo inteiro. Logo que salto do leito, de manhã, o trabalho agarra-me, prega-me à minha mesa sem me deixar respirar uma lufada do grande ar; depois segue-se o almôço; mastiga surdamente as minhas frases com o meu pão; depois acompanha-me, se eu saio, põe-se a jantar no meu prato, deita-se à noite no meu travesseiro, sem que eu possa deter nunca o pensamento da obra entre mãos e cuja germinação continua até no fundo do meu sono... Depois caio no sonambulismo das horas de imaginação, nas indiferenças e nos desconchavos da minha ideia fixa. Tanto melhor, se as páginas da manhã correrem bem, tanto pior se uma delas ficou defeituosa! O rosto rirá ou chorará, segundo o belo prazer do trabalho devorador... Fechei a porta do mundo por detrás de mim e lancei a chave pela janela... Nada mais, nada mais no meu antro, do que o trabalho e eu; êle devorar-me-há e depois não haverá mais nada, mais nada! «As primeiras páginas ainda vão, mas depois, eis-me desanimado, nunca satisfeito com a tarefa quotidiana, condenando já o livro entre mãos, julgando-o inferior aos antecedentes, forjando-me torturas de palavras, de frases, de páginas, chegando até as próprias vírgulas a parecerem-me deformidades que me apoquentam. E quando está acabado, oh! quando está acabado, que alívio! não é um gôzo do indivíduo que se exalta na adoração do seu fruto, mas a praga do carrejão que deita abaixo o fardo que lhe magoou o espinhaço... Depois aquilo recomeça; aquilo recomeçará sempre; depois arrebentarei furioso contra mim próprio, exasperado por não ter tido mais talento, enraivecido por não deixar uma obra mais completa, mais elevada, livros sôbre livros, o empilhamento duma montanha; e terei ao morrer a medonha dúvida do que fiz, perguntando-me se aquilo estaria bem, se não devia ir antes para a esquerda quando passei para a direita, e a minha última palavra, o meu último estertor será para querer fazer tudo de novo...» Tal foi a agonia de Zola. A dos outros foi uma agonia inconfessável, uma tortura que com êles se sepultou na Morte. ¿Onde existe pois maior tristeza do que esta? A tristeza do escritor, que um dia acreditou na sua obra e entra com êle o gusano da dúvida, não tem _pendant_ na terra senão a do romântico que amou loucamente uma criatura que o atraiçoou--pobre banabóia que acreditou no Amor--ou a dos crentes que esperam no outro mundo ter a recompensa de todos os terrenos sofrimentos. Deve ser igual a esta a careta dêstes últimos, quando no limiar da morte se certificarem de que, ali, bons e maus são todos ossos, vermes, podridão e que não há bodo para os bons, nem caldeira para os maus. Agora, pense-se na tristeza dos vélhos embarcadiços que o reumatismo prende em terra! A saudade dos longes de água, da amplidão, dos desertos sem fim, movediços e espumantes! Pense-se na tristeza dos caçadores a quem a velhice entropega as pernas e já não podem ir por montes e valados atrás da fugitiva e almejada presa! Pense-se em mil outras tristezas, que são mais própriamente tristezas profissionais. Pensem e digam-me se conhecem tristeza mais triste, amargura maior, dôr mais cruciante... Eu não creio que haja. Não creio, e penso às vezes com horror no tormento indefinível e infindável da dúvida perpétua. Mata-se uma criatura a suar, a ralar-se e para quê? Para que outros venham, tambêm ingénuos e moços como nós fomos, alimentar o fogo em que lentamente se hão-de devorar. Ser grande, ser glorioso, para que depois se duvide, ser amado para que se seja esquecido, ser iludido para ser depois desenganado. E como se não bastasse já a mágua de nossas próprias vidas, ainda é sina acendermos por nossas mãos a chama que na velhice nos há-de queimar a fogo lento. A morte Penso às vezes na Morte com devoção. Nestes dias, em que o sol quente não chega a dar calor que abrase, penso em quanto será bom estar sob o lençol de terra, inerte, estendido de papo para o ar, sem apoquentações e sem cuidados! Penso e quási que os invejo--aos mortos. Êles devem estar bem consolados, como caminheiros cansados que alfim encontraram pouso. Ao passo que nós, os vivos, arrastaremos eternamente o nosso tédio e as nossas amarguras, aos baldões por essa vida fora, raro encontrando uma criatura que nos compreenda, sem afeições e sem carinhos, como um vaso feio em que as plantas não chegam nunca a florir. Como eu invejo, nesses dias, os mortos! Deve ser consolador esta ideia! Não scismar,--e é o scismar que mata os homens. Não sonhar--e é o sonho que os infelicita. Saber que nem céu nem inferno nos espera, mas o tranqùilo sono da podridão. Corações que batestes, o vosso amor era pó. Pó, sómente, terra, cousa nenhuma. Cérebros que pensastes, o vosso labor quão fátuo foi. Homens de génio, mulheres olímpicas, estátuas de carne, soberanas do Desejo, raínhas, cortezãs, imperatrizes. Nada na Morte as distancia. Que tesouro enorme, que avalanche de cousas divinas a morte não guarda no seu seio! Penso na morte com devoção! Penso na morte quanto mais lido com os homens e quanto mais conheço as mulheres. Os homens «são como aquele pedaço de gêlo que o Árabe, julgando ser um diamante, guardou cuidadosamente no seu alforje. Quando o procurou nem ao menos uma gota de água pôde achar.» As mulheres... as mulheres são uma taça. Metade fel, metade mel. Ninguêm procure todavia o mel. Nunca ninguêm o encontrou. Jamais alguêm o encontrará. Estima, afeição, amor, sinceridade, dedicação, amizade, que belas e mentirosas máscaras. Belas porque, para a criatura que cegamente crê, tudo é belo. Mentirosas, porque tudo é mentira na vida, tudo, excepto a morte. É a morte a única verdade. E pensar em como a vida seria um doloroso escárnio, uma insustentável cousa, se até a morte fôsse mentira! Mas não. Quem um dia transpôs essa porta, que só se abre para lá, não mais sofreu. Maltrapilhos, nababos, _lords_ e senhores, párias e fidalgos, todos lá serão esquecidos, irremediávelmente. É a única porta que se abre igualmente aos que vão vestidos de sêda e aos que vão vestidos de burel; aos que vão vestidos de ilusão e aos que vão desenganados. E nunca a ela esperam nem sequer os que vão nus. Penso muitas vezes na morte e com alegria até. Creio que é ela a única fôrça da vida. Porque, cansado de lutar, exausto, assediado por tudo, eu tenho nela a retirada, exactamente como a pedra girante do _Noventa e três_, de Vítor Hugo. Ora lutar, viver, cansar, sem uma porta para a retirada era uma cousa trágica. Foi por isso que o Destino, êsse Destino de que os árabes dizem «que conduz os cavalos pela noite», se encarregou de colocar atrás de cada combatente a porta para a fuga. Por detrás dela cessam tôdas as distinções. Não há já Carlos I nem Buíça. Não há já rei, nem professor; nem carabina, nem alvo. Há dois esqueletos só. Restos derradeiros de dois combatentes. Nada mais. A leitura dos jornais radicou-me no espírito esta cousa absoluta,--que é bem fácil morrer. Tão fácil, como difícil é saber morrer. Ou antes, morrer a tempo. Morrer a tempo não é «morrer moço», como quere êsse artista mago do verso que é Lopes-Vieira. Não é morrer em combate sem conhecer o triunfo e sem conhecer a derrota. Morrer a tempo é morrer exactamente como Mousinho de Albuquerque. É morrer de monóculo e casaca, como aquele milionário inglês que, no Cabo, se deitou ao oceano, talvez por _spleen_. É morrer como Antero. É morrer como Nerval. É morrer como morrem muitos de que as crónicas não rezam, nem a História fala. Não há ninguém que não tenha, ao menos uma vez na vida, pensado na Morte com amor. Porque a morte não é uma cousa terrível, é uma deliciosa criatura que nos espera ao fim da vida para nos indemnizar de tôda a maldade dela. E só assim eu compreendo a Morte--não ser senão para os que tivessem sofrido. Os felizes não precisam de morte. Quem é feliz não tem direito à morte. E cousa que me irrita é esta. É que, sendo a morte a maior das delícias da vida, ela seja igualmente para mim e para o meu vizinho. Para mim que a vou merecendo e para o meu vizinho, anafado e feliz, que está bem longe de a ela ter direito. É a minha única inveja. Considerar que os outros teem que morrer como eu! Quando o meu desejo seria que êles vivessem, exactamente como o desejo do Ursus, de Hugo, que entendia que o maior mal que podia fazer ao seu semelhante era ajudá-lo e protegê-lo... para que vivesse. Morrer! Morrer é bom. Vós todos que me escutais sabei isto. Que a morte é como o Diabo. Nunca tão feia como a pintam. Alêm disso, imaginai uma criatura condenada a viver. A viver como as catedrais dos tempos que já não lembram. A viver como a rocha que o tempo não conseguiu puir. A viver muito, a viver uma eternidade. Que maior pena, que maior degredo se lhe poderia dar! A criatura chegaria a ponto de ter que fugir. Escolheria para isso o suicídio. Mas a porta não se abriria para ela. Implacávelmente fechada, eternamente fechada. Seria uma tragédia bem horrível. Ás noites, nas minhas noites de insónia, em que o cérebro é um novelo de fio, que o pensamento vai puxando sem nunca conseguir chegar ao fim, penso neste tormento indefinível. E quedo-me de horror! Foi talvez por esta razão que aquele bonzo ou aquele sacerdote respondeu ao pária que, numa estrada, o interrogou sôbre o destino que havia de dar à pesada carga que levava. Mas eu conto a história. Vem em Maxime du Camp: Um brâmane estava um dia sentado à beira dum rio. Um escravo abanava-o com um leque sumptuoso, emquanto outro lhe prodigalizava a sua infusão aromática. A seus pés um caminho seguia onde os passantes se curvavam em adoração. E um homem que vinha curvado ao peso duma carga enorme, ofegante e exausto, disse: «Oh! brâmane! como és feliz em poder repousar à sombra!» O brâmane olímpico respondeu: «Cão, filho de cão, segue o teu caminho!» E como o miserável insistisse, o sacerdote de Wichnu redarguiu molestado: «Fala depressa então!» «Estava na minha aldeia dormindo--começou êle--à sombra do pagode de Saraswati, quando um desconhecido que passava me despertou com brutalidade para me pôr esta pesada carga aos ombros, ordenando-me que caminhasse, até o encontrar. Estou cansado. Há três dias que caminho e não vejo o homem. Que devo fazer?» O sacerdote então interrogou: «Pagou-te adiantado?» e ao ouvir a resposta negativa, o brâmane, considerando na fadiga do pária, volveu solene: «Não sabes a quem pertence o fardo, nem a quem o entregar! Não sabes o que contêm. Sabes apenas que é superior às tuas fôrças! Pois bem. Larga o fardo e vai-te». É por isso, por êste fardo que se chama Vida resultar para alguns tão pesado, que êles o largam e se vão embora. Poetas A poesia é morta. Quási já não há poetas. E é curioso isto. ¡A poesia quási a extinguir-se num país de poetas! Portugal mais do que nenhum é por excelência o país dos poetas, se sinonimarmos neste têrmo todos os que publicam o seu livrinho de versos, embora às vezes sem dez réis de poesia. ¿Quantos livros de versos se publicam anualmente em Portugal? Aqui está uma estatística impossível. São inúmeros, são infinitos. Não há vilão, que meta um pé nas letras, que não diga dos seus amores, dos seus calos, das estrelas que vê ao meio dia, dos cabelos d_Ela_, dos olhos d_Ela_, em duzentas páginas, em cento e cincoenta, em cem, em vinte, ou dez ou cinco, pelo menos. O português vê-se obrigado a fazer um livro de versos. É fatal. Três cousas são indispensáveis ao cidadão: Ser vacinado, ir às sortes, e publicar o tal, o livrito de versos. Daí a morte da poesia, debaixo duma tão grande avalanche de poetas. A poesia tende a desaparecer. Porquê? Porque já passou o tempo dos poetas. Mas dir-me-hão, ¿o tempo dos músicos, dos escultores, dos prosadores, de todos os que emfim vivem só para a Arte? O dêsses não tarda a passar. ¡As multidões egoismadas querem lá saber da Arte! ¿Que teem as multidões com isso? Absorta na sua luta pela vida, em lançar os gadanhos em arpéu o mais alêm que possa, a criatura dispensa perfeitamente a Arte. Pois se a vida de cada um é uma tragédia, inútil é demorar-se a ver a tragédia dos outros. Arte é um contrapêso inútil. E a prova, a prova fatal de que a Arte é um aleijão na vida das sociedades, uma demência, uma tara demoníaca e soturna, está em que, em todos os tempos, a multidão deixou morrer à fome os seus maiores artistas e vestiu de brocado e holanda fina os seus maiores ladrões. A época é de prosa vil, bem vil por sinal. O verso antigamente era indispensável. Hoje não. Antigamente, para pedir cinco tostões emprestados, requeria-se em verso. Camões requereu galinhas. «Cinco galinhas e meia Deve o senhor de Cascais.» Hoje pedem-se cinco tostões duma maneira!... Tambêm se agradecia em verso. Agora não. Os pobres às portas dos mosteiros cantavam. Agora quem canta vai preso, se é na rua e provoca ajuntamento; se é em casa pode cantar à vontade, que não ganha mais por isso. Até o ditado, o vélho ditado que não falha nunca, nos aconselha que não nos fiemos em cantigas, depois da razão, matrona experiente e sogra da fantasia, nos ter dito que não é delas que a gente vive. E para verem como tudo mudou, hão de ter cotejado muitas vezes isto: o agradecimento que era antigamente em verso, que é sempre uma maneira bonita de agradecer, tomou pelo andar dos séculos a forma de prosa--o couce--que é tambêm prosa e não das menos agressivas. Ora vão ver como o verso desempenhou um papel importante na vida dos homens: Um indivíduo queria comer, pedia em verso; queria catrapiscar uns olhos bonitos e tomar uma barrigada de doce, ia aos outeiros; queria vingar-se dum mágico qualquer--zás, aí vai sátira; se queria fazer política, era «rei chegou, rei fugiu...» que não havia surdo que não ensurdecesse outra vez. E não havia lambão que não fôsse saciado, amoroso que não fôsse farto, guloso que não fôsse enjoado, odiento que não ficasse contente, e político que não desabafasse na cantata. Vão lá agora com cantigas!... Nem pitança, nem mulher, nem bolos, nem desabafos. O verso decididamente já não presta para nada, pois para nada é útil. Os editores não dão nada por um livro de versos. Não sei se conhecem, ou se se lembram daquele editor, Dauriat, o Dauriat das _Ilusões Perdidas_, de Balzac, que recomendava ao Gabusson--chamava-se Gabusson o caixeiro:--«A todo e qualquer que venha oferecer manuscriptos, pergunte-lhe se é verso ou prosa. Se fôr verso, ponha-o logo a andar. Estes poetas são a perdição dos editores!» Isto no tempo de Balzac, vejam os senhores! Prosa, tudo prosa. Nada mais existe do que a prosa. E que seja bem fresca, catita, com meias abertas para se ver as pernas, hein! Senão, nada feito. Tambêm a prosa começa a estar pela hora da morte. O que se vende não é a _Ressurreição_ nem as _Memórias do Príncipe Kropotkine_, nem a _História de Portugal_ do Herculano. O que se vende é a _Tuberculose Social_ pela pornografia, não pela parte documental, os livros franceses que trazem estampas do nu, e pouco mais. Tudo isto está desabante. Não há poetas, não há artistas, nem prosadores, nem músicos, nem dramaturgos, visto que tôdas as formas de arte tomaram um papel secundário na vida do homem de hoje. Que o homem está descendo, isto é, que o homem se está aproximando da Vida, e a Vida não é senão brutalidade, não há dúvida, porque à medida que é menor o número de criaturas intelectuais, é maior o número de gatunos de carteiras e burlões professos. Que está desabante não resta dúvida pois. E se buscarmos a razão disso, acharemos recônditamente, pelo menos no que se refere aos poetas, que, sendo o poeta uma criatura cheia de sonhos, de utopias, cheia de bondade, mixto de super-homem e super-fêmea,--o verdadeiro poeta,--essas criaturas vão rareando a pouco e pouco, e a pouco e pouco se extinguirão, para se tornarem lembradas na memória dos vélhos, senão lendárias na fantasia dos novos. Nós assistimos aos últimos poetas. E agora, que restam sete ou oito, dez ou doze, ou quantos são, náufragos da poesia sôbre o oceano enorme das ambições humanas, do ódio, da indiferença e da cólera humana, justo é que se lhes reze o responso final, e se admire a persistência dos que, como capitães heróicos, vão ao fundo sem abandonar o seu ideal, um triste ideal na verdade. ¿Pois não é triste escrever cousas que ninguêm lerá, para que todos teem olhos indiferentes e o coração endurecido? ¿Tocar sem que ninguêm escute, gastar a vida sem que a ninguêm aproveite, e para quê? Há já tanto poeta, tanto! ¿Que resta ao fim de séculos dum poeta? Um nome, nada mais. ¿E quantas vezes, na lápide que êsse nome grava, o sol não veio bater até o comer de todo, o apagar, o sumir no olvido de sempre? Depois, essa lápide é como a memória das gentes: uma pedra branca, nada mais. Vão-se os poetas, mau sinal. Ainda os que restam formam quadrado, novos granadeiros em Waterloo, mas debalde. Quando sucumbirem, não virão outros tomar o logar dêstes. Estamos no fim. O poeta de há muito tendia a desaparecer. ¿A vida é luta, não é verdade? Mas luta de hipocrisias em que os maus vencem e os bons sucumbem. ¿Nestas condições, que há de o poeta cantar? ¿A hipocrisia, o mal vencedor e tirano, a astúcia esmagando com o seu coturno de sêda o arnez brunido da fôrça? Não. Vão-se-lhe os motivos. O poeta já cá não tem nada que fazer. Já não há que cantar, cala-se o cantor. É o caso. A poesia tem que render-se. É como rainha exilada sem reino e sem vassalos. Todos a abandonaram. Só um ou outro dedicado, fiel, intemeratamente fiel, fiel até ao sacrifício, espera e morre como êsse Eliseu Méraut de _Les Rois en exil_ de Daudet, crendo ainda e bradando no limiar da Morte um último viva a uma soberania que morreu à muito. E eram, afinal, tão interessantes, os poetas. O Tempo Representavam os antigos, o Tempo por um velhote de barba branca... Não é com isto positivamente que eu queria começar. O _Tempo_ era um jornal de José Dias Ferreira, e _Tempo_ se chama um jornal inglês de que os inglêses dizem que é o maior do mundo. Será. Mas para bem informar os leitores cumpre-me dizer-lhes que se é ou não, não sei. Nunca o li. À uma, dizem que é muito maçador, muito grave, tão grave que até parece feito por juízes do Supremo; à outra, eu não sei o inglês. Talvez isto pareça ignorância. Pois não é. Aí está o Marquês de Pombal, que, vivendo um ror de anos em Inglaterra, nunca passou do _Yes_, do artigo _The_ e dos verbos _to be_ e _to have_. Mas do Tempo diz o Padre António Vieira que «tudo cura, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba». Não há soberano que tanto poder tenha como êle. A própria Morte é da sua côrte e sua subalterna. «Nada se faz sem tempo», diz-se. Tudo o tempo acaba, direi. Assim, temos, que o tempo faz e desfaz, cria e destrói, forma e arruína. As fortunas gastam-se, a formosura envelhece, a sorte muda, os anos passam, os dias voam e a morte chega. As flores murcham, as ilusões caem, as esperanças dissipam-se, os amores esquecem e de tudo só ficou o Tempo, sombra de tempo, memória de tempo, que até a própria memória o tempo apaga e confunde! A sabedoria de Salomão, a bondade de Cristo, a dignidade de Catão, a valentia de Cesar e o amor de Jacob, são do tempo. O tempo é que as lembra, o tempo é que as esquece. O tempo é o maior amigo, o tempo é o maior inimigo. Porque se tudo traz, tudo leva; porque se tudo aproxima, tudo afasta; porque se tudo nos dá, tudo nos tira. Ama-se uma mulher que nos ama. O tempo passa e em breve a sua beleza será fealdade; a sua mocidade será velhice. Culpa de quem? Do tempo. Ama-se uma mulher que nos despreza. Em breve o tempo levará os seus adoradores e transformará as suas faces em rugas e os seus beijos em flores sêcas. O tempo nos trouxe o castigo, o tempo nos deu satisfação. As rosas murcham, e não há grande obra que não esqueça. Invejas para quê? Ódios para quê? «_Sic transit gloria mundi_». Oh quão passageira e falsa é a glória do mundo! ¿Quem se recorda hoje do segundo ministro dum rei de há três séculos--um cargo tão invejado!--e do general favorito de Breno--um cargo tão merecido? Quem? Quem hoje lê os vélhos? Quem hoje os aprecia? Vélhos, sombras do que foram. O tempo é velhice e Morte. Mas consolemo-nos. O meu vizinho, homem célebre, tambêm há-de morrer e ser esquecido como eu. Todos serão esquecidos. E se a alguns parece escolher o tempo, deixai. Dai o tempo ao tempo. Êle os esquecerá.... * * * * * Ora, sendo o tempo uma cousa tão preciosa que cumpria não esperdiçar, antes conservar avara e egoístamente, roubar tempo é um crime, alêm de ser roubo. Os inglêses, dizem que tempo é dinheiro. Eu direi que roubá-lo é uma grande pouca vergonha, digna de muito cacete ou de fôrca, se quiserem. Não há país onde se roube tempo como em Portugal. Em Portugal, país do Amanhã, não há a noção do tempo. Ninguêm sabe o que seja pontualidade. Prometer e cumprir caso é de estranhar, agora prometer e faltar é caso trivial. Senão vejam os senhores em tudo e por tudo. Faz-se um pedido, qual é a resposta? Deixe para amanhã. Procura-se um devedor; amanhã paga. Pede-se fiado: «Hoje não se fia; amanhã sim». Tudo é amanhã, tudo é no outro dia, um amanhã que nunca chega e que só é pretexto para nos extorquir tempo e paciência. ¿Os senhores nunca foram registar uma carta ao correio geral? Pois vão, mas vão com pressa. Isso é que é pândego! Uma pessoa chega: há 15 pessoas agarra-das a um postiguinho muito pequenino, um daqueles postigos que através da distância de quinze pessoas só se vê por óculo. A gente chega e sossega. Póde sossegar à vontade. Ainda agora chegou. Se dá mostras de impaciência, o que está à frente abespinha-se e redargúi: «¿Que está o cavalheiro a fungar? Há uma hora estou cá eu». E a gente curva-se. Passa a olhar o sujeito respeitosamente. Caramba! «uma hora!» E tudo são cogitações. ¿Mas não há quem nos atenda? ¿Não há quem nos despache? Há sim, senhores. Há um tipo que está lá ao fundo chupando uma beatazinha, mãos nas algibeiras e dizendo, para outro matuto sorna como êle: «O cházinho era delicioso! E então os bolos. Os bolos, menino!...» «Eu estou aqui há duas horas!» diz um escanifrado que agita uma carta. «Espere se quiser, diz o dos bolos. Há muito mais tempo estou eu cá e não faço tanta chiada!» ¿Os senhores nunca foram pagar a décima? Não foram? Felicito-os. Pagar a décima é tambêm uma cousa divertida, para quem não é cardíaco, nem tem aneurisma nenhum. Eu fui uma ocasião, mas à cautela levei _lunch_, um _couvre-pieds_ e um romance para ler. Não foram prevenções inúteis. Fui para lá ao amanhecer e havia candieiros acesos. Li o romance todo e comi até as migalhas do _lunch_. Comeria outro, se o levasse ou não receiasse perder o logar. Porque aquilo é à vez. Uma pessoa, munida do competente papel intimativo e do dinheiro para a ressalva, apresenta-se. Quando chega, há já uma linha de pessoas que vem até à rua. Umas ficaram de véspera, outras foram ainda de noite e as que foram assim quando os galos cantam e a aurora rompe, já encontraram três dúzias delas à espera. Outras vão chegando,--já se sabe, o competente farnel, o cobertor e o livreco--e tomam logar. Ás onze e meia--a repartição abre às 10--chega o garimpo que varre a casa. E é um tropel de gente que se empurra, que toma logar, que se instala. Neste apertão é vulgar perder a carteira ou ficar com um calo esborrachado. Mas tudo vai bem. A gente sentou-se, apara a paciência, abre o livro. Meio dia. Entra o pastinha. Depois entra o outro, depois o recebedor. São as feras. Há uma grade entre elas e o público, e um postiguinho, por onde a gente lhe mete a massa, que é como quem diz o sustento. Começa a chamada. O patife parece que está a entoar cantochão. Vem ainda estremunhado. Entretanto os que não levaram livro vão contando a vida aos vizinhos. «Eu moro na rua da Ametade. O meu nome é Simão. O meu pai é timbaleiro. Minha mãe era parteira...» Ah!... O meu vizinho ressona de assobio. Um velhote quere dormir mas a conversa dos dois grulhas não o deixa pegar no sono. Bem: ainda há 44 adiante de mim. Eu volto à leitura. «José Ferreira Casmurro!» Pronto, diz o outro. É a chamada que continua. E os outros pensam: «Aquilo é que é um Casmurro com sorte». Ah! quanto falta para lá chegar?! Aqueles bandidos não teem nenhuma pressa. Vão tranqùilamente zombando do tempo e da paciência dos outros. Passa uma hora, passam duas, passam três. Ao meu lado havia um petiz de ano e meio que mamava como um danado na têta da mãe, quando eu entrei. Quando se chega quási à minha altura alguêm do lado toca-me no ombro. Volto-me. É o petiz que interroga e pede: «¿O cavalheiro não tem por aí um cigarrinho que me dê?» Como êle cresceu, o brejeiro! Emfim, na rua! Caramba, mas é de noite! Como o tempo passa! E aquilo lá dentro continua. Uff! Quem diz registos e décimas diz tudo. «Olhe, venha amanhã! Olhe, espere! Se tem pressa, vá andando». Emfim é um nunca acabar. O que se resolveria em qualquer parte num quarto de hora, em Portugal leva um dia, uma semana, um mês, um ano, uma eternidade. Isto é o país das eternidades. Primeiro que as cousas cheguem... Eu jogo não sei há quanto tempo com uma cautela de três na lotaria. Sempre o mesmo número. Pois para verem como Portugal é o país do amanhã, só lhes direi que é rara a lotaria em que a cautela me não sai branca. Ora não sei se os senhores estão a ver que se fôsse em qualquer outra parte já me teria saído a sorte grande... Mas o que me consola é que o tempo virá e acabará com o meu dinheiro, com a minha vida, com o número em que jogo, com a grande, com a lotaria, com a Santa Casa e até com a lembrança de tudo isto. E não sei se os senhores estão a ver que isso será uma felicidade... A decadência do jornalismo em França Um articulista parisiense, parisiense pela finura da sua expressão, pelo subtil da sua análise e sobretudo pela leveza scintilante da sua prosa, Ibels, acaba de declarar decadente o jornalismo francês. E vem, com uma santa ingenuidade, uma destas ingenuidades para medalha de ouro, e um espanto nada correcto, nem do mundo, dizer que o jornalismo francês decai porque o que lhe falta são jornalistas; porque os artigoleiros são muitos e os articulistas são poucos e porque finalmente êle é o eco de tôdas as _chantages_, o eco de tôdas as calúnias, o gramofone de tôdas as mentiras e o acusador de tôdas as reputações. E, indignado, prossegue: «O periódico moderno pratica a medicina ilegal, recomenda venenos, serve de intermediário entre donas de casas suspeitas e jovens de menor idade. Insere e entretêm a correspondência amorosa e adúltera e vai mais longe, publicando um boletim financeiro em que milhares de môscas caem prisioneiras vendendo os seus títulos porque acreditam na sinceridade do periódico que lêem». E diz mais, que isto, que aquilo, resumindo que é tudo uma pouca vergonha desaforada. A propósito, para não perder pitada, ferra uma tunda no _Le Matin_, que na sua opinião é um intrujão que já de há muito deveria ter a redacção instalada numa das celas da Penitenciária de lá. Eu não conheço Ibels. As suas conclusões parecem-me acertadas. Mas o que acho interessante são os seus espantos. Admira-se. Admirar-se a gente é mau sinal. O Eclesiastes tinha dito que nada de novo há debaixo do sol. Ora a pouca vergonha é mais velha do que o Eclesiastes. É talvez mais vélha do que o sol. Mais vélha do que o sol, do que os deuses, do que a terra e do que tudo quanto existe. A pouca vergonha é eterna. Não tinha pois de que se admirar. Eu é que me admiro (oh, santa incoerência!) do seu espanto. A decadência do jornalismo em França vem de longe. Balzac já lhe estudou as causas nas _Ilusões Perdidas_. E caso curioso, nas _Ilusões_ havia tambêm um Luciano que se admirava. O articulista de agora é o Luciano de ontem. Está escrito: «Hão de existir Lucianos em todos os tempos!»... Quem quiser saber destas cousas sem o tom acre de censura e lamento que perfuma o artigo de Ibels, antes com o tom risonho de quem está muito à sua vontade--como quem está em sua casa, por exemplo--deve ler um curioso artigo em tempos publicado na imprensa espanhola. Chama-se _Esplendores y miserias del periodismo_. Assina-o Gomez Carrillo, cronista do _Liberal_, creio eu, literato de Espanha vivendo em Paris e artista _urbi et orbi_ onde vá a língua de Quichote ou a respectiva tradução. Aí é que se diz tudo! Tudo e ainda mais o que disse Paul Pottier, homem lido e sabedor.--Ora diz Carrillo, e escreveu Paul Pottier, que «para 600 empregos no jornalismo há 3.000 jornalistas». ¡E se êles, todos êsses pobres concorrentes, soubessem o que os espera! Uma vida sugante e angustiosa. Nem horas de comer. Dormir incerto. São os cavalos de posta da notícia. É preciso lutar, lutar sempre. O que chega a Paris cheio de vontade leva um dêstes abanões que quási o deitam a terra. O jornalismo é uma luta. Não há jornalistas, há cavalos de corrida. ¿Qual dará o artigo, a notícia, o comentário mais desenvolvido, mais agaçante de pormenores, mais chorudo de minudências, mais dramatizado de bagatelas? O público quere. O público aguarda. Quere cousas novas, cousas inéditas, cousas imprevistas. Um assassínio? Isso é vélho. É preciso achar novo. Não há? inventa-se. Saber inventar, eis a questão em ocasiões difíceis. Ao cabo de três anos num logar subalterno, tendo dado tudo o que trazia na cabeça, tendo gasto todos os seus nervos, puido tôda a sua vontade, sem nada no estômago porque se alimentou mal e irregularmente, com uma neurastenia aos ombros e o vácuo no cérebro, a criatura é corrida a pontapé do jornal e vai direitinha a um manicómio onde nunca mais a endireitam. Os grandes jornais baixam as suas tarifas de pagamento. Quási todos desceram a linha a 15 cêntimos, com excepção de _Le Temps_ que paga 30, _Le Figaro_ que dá 25 e _Le Gaulois_ e _Gil Blas_ que não dão mais do que 20. É certo que Catulle Mendés cobrava de _Le Journal_ quarenta mil francos anuais, sejam sete contos e tal. Mas _Le Figaro_, que ontem dava a Huret 2:000 francos, não dá hoje a Serge Basset pelos teatros senão 1:000. Harduin no _Le Matin_ recebe 1:500 francos, com obrigação de escrever todos os dias um minúsculo artigo. Sarcey recebia de _Le Temps_ 1:000 francos mensais pelos seus artigos. Octave Mirbeau e Severine, que no _Le Petit Parisien_ recebiam importantes honorários, foram dispensados da sua colaboração. E os contos que Fernand Xau pagava a 300, 250 e 150 francos baixaram a 25, e últimamente a 15 francos. E isto em jornais que tiram milhões de exemplares. Os nomes cotados fazem-se pagar bem. Porêm para os que veem sem nome, para êsses, o caminho da imprensa é um calvário. São recebidos com duas pedras na mão; exactamente como no tempo em que Luciano queria o logar de redactor no periódico que tinha por Cerbero o vélho militar. E devemo-nos lembrar de que todos os citados são os bem pagos: os da fôrça de Mirbeau, por exemplo, que só com um artigo fêz o nome a Maeterlinck... Considerai o que não será agora nos subalternos?!... Um escritor que viva de escrever e que tenha já uma pequena voga vê-se obrigado a rebentar com trabalho para cobrar um estipêndio rasoável. As revistas não lhe publicam um artigo senão de três em três meses pelo menos, para não repetirem o nome do colaborador; os grandes jornais, de que êle vive, baixam-lhe dia a dia a tarifa. Os artigos reunidos em livro dão uma bagatela. Os livros que são enviados ao periódico, para criticar, vendidos e regateados não dão para o alfaiate. De maneira que a criatura vê-se e deseja-se. Isto é tendo certo nome, porque de contrário nem as revistas lhe aceitam artigos, nem os grandes jornais lhe abrem a porta, nem os livros lhe chegam à mão. E a tanto chega o descaramento que Magnier, senador, que largos anos possuiu _L’Evenement_, dizia aos seus redactores: «O que preferem os senhores? ¿Que lhes marque um ordenado de 500 francos por mês e não o pague ou que lhes dê 250 para os pagar?» Quer o redactor aceitasse uma ou outra proposta, sabido era que não via cinco réis. E a maneira de alguma cousa receber era negociar com êle uma parte da página dos anúncios. Se não andava depressa na cobrança ficava sem real, porque o director mandava tambêm cobrar. E quantas vezes o redactor ao chegar não soube que os anúncios já estavam pagos... Êste Magnier era caloteiro contumaz. Conta-se que Aurelien Scholl, a quem êle devia certa soma e não tinha maneira de a receber, uma ocasião ao ver passar o seu trem correu para êle, desprendeu os cavalos e foi vendê-los ao _Tattersall_. Foi uma inspiração divina. Senão podia dizer adeus ao débito. A imprensa francesa explora o escândalo, explora o público, explora todo o explorável. Até aqui muito bem! Que há nisto de estranho? ¿Pois não é natural que meio mundo explore a outra metade? E Ibels, indignado, cita o Panamá, cita mil casos em que o «periodismo» tem sido nefasto. E deixa, o maroto, ficar no tinteiro a questão Dreyfus. O jornalismo tem bons e maus. Que êle esteja decadente, não acredito. Êle é o reflexo do seu tempo. Exigir jornais sãos numa sociedade podre parece-me exigir de mais. De acôrdo que os maus sejam mais do que os bons! Mas isso que importa? Se às vezes um jornal só, um homem com uma pena na mão, fica nos séculos, sobreleva acima de tôda essa podridão, de todo êsse enxurro, de tôda essa vaza, cujo mau cheiro só o tempo purificará?! Que importa, se um brado de Justiça vale mais do que uma multidão berrando, e se um jornalista de consciência vale mais, tem por si só mais fôrça do que um grande exército?!... Que o jornalismo está decadente? Embora. Êle é ainda a árvore onde de tempos a tempos se empoleira uma criatura para dizer que o manto, o celebrado manto de el-rei da fábula não passa duma hipocrisia ou duma cegueira. O Carnaval Eu não posso folhear atentamente a obra de Rafael Bordalo sem me demorar nessa página suprema, traçada num minuto de tédio e feita num instante de aborrecimento: _A última máscara_. A última máscara é, escusado dizê-lo, a máscara da Morte. Se a do feto é a primeira máscara, a da caveira é a última. _A última máscara_, de Rafael Bordalo, representa pois a caveira. Esta vida são três dias, diz-se. Êsses três dias simbolizam as três idades. O Carnaval são três dias, que tantos são os da vida. Esta vida é pois um carnaval. Murger chamou-lhe uma «máscara de forçados» outros lhe teem chamado o que melhor lhes tem parecido. Não inquiramos. Assunto complexo, se se quiser explicar, traz consigo complexas deduções. E não há assunto mais complexo do que a Vida. O carnaval que a gente vê, ou por outra que a gente viu, é bem pior do que aquele de que a gente se lembra e bem melhor do que aquele que se verá. O carnaval tende a desaparecer. A graça foliona, travêssa, doudejante, morreu. O que por aí anda é outra graça, uma graça que sorri nos intervalos de tosse e nos intervalos do riso mendiga dez-reisinhos. Se não, é ver-se como a fôlha mais bem escrita do Carnaval é a de quarta-feira de cinzas, esta quarta-feira em que vos escrevo, satisfeitíssimo por ter visto as ruas despejadas de mendigos enfarinhados, mendigos _pierrots_, mendigos _chechés_, e mendicidades ambulantes, danças, paródias, filarmónicas e _tutti quanti_. Passou a época das tremoçadas. Chapéu alto que passava era penante dado ao criador. Ninguêm se aventurava a sair. Despejavam-se barricas de tremoço sôbre o desventurado que ia assim mais asseadinho. Uma criatura saía. Á saída da porta levava logo com uma luva cheia de areia pela cara que ficava azul. Andava mais um minuto e era uma assuada. Cada minuto cada nova aventura. Algumas de que saía mal-ferido. Á hora de jantar, quando a criatura recolhia e se inventariava, via com desgôsto que o chapéu estava inconcertável. A farpela cheia de farinha, com um ovo feito em estrêla nas costas, seis farpões de rabos postos e arrancados. Um ôlho a menos. O colarinho zebrado com uma longa lista de pós de sapatos. A camisola cheia de areia, a guedelha cheia de farinha e as botas--ah! as botas!--cheias de lama--porque soe chover quási sempre pelas entrudadas,--e a chuva é o protesto do infinito. Vejam lá hoje. Tantas são as leis publicadas sôbre o Carnaval que a gente se vê na absoluta necessidade de consultar um advogado sôbre se será prejudicial atirar uma serpentina. O advogado consultado promete estudar. Estuda e apresenta a sua resposta quarta-feira de trevas, ao mesmo tempo que apresenta a conta da consulta. São pelo menos 2$500. Vejam lá se há cousa mais interessante. Antigamente a criatura, depois de borrifada com urina, zurzida de tremoços, mascarrada de pós de sapatos, enfarinhada, maçada e enlameada, recolhia num bolo, mas alegre. E resumia para a família:--Aquilo é que foi divertir! Agora não. Sai de chapéu alto, escovada, correcta, exactamente como se fôsse para aquelas recepções da embaixada em que há uma duqueza que sorri, «tão branca, tão decotada» que até dá vontade de a gente resumir, ao recolher a casa:--Ai, filha, que papança, o que traduzido em vulgar quere dizer:--Ai, filha, que maçada! Ah! o Carnaval civilizado! ¿Já viram maior pouca vergonha? Antigamente a gente não saía. Agora, sabendo que volta com o arranjinho como foi, sai. Sai, e volta abrindo a bôca, espreguiçando-se, moída, sem ânimo, farta de ouvir baboseiras e de ver misérias ambulantes. As ruas são tristes. Os bailes são quási macabros. As mascaradas são lúgubres:--¿O cavalheiro dá licença que eu lhe atire êste saquinho de bombons?--Pois não! ora essa! O cavalheiro atira. A gente guarda. Chegando a casa abre o saquinho. Não são tal bombons. São feijões, são tremoços, é grão de bico. Comentário--Que intrujice! Se abstrairmos do Carnaval e volvermos os olhos misericordiosos sôbre esta mascarada em que todos entramos, uns mascarados de sinceros, outros de cínicos, uns vestidos de moços fidalgos, outros de moços de fretes, uns vestidos de archeiros, outros de par do reino, a desilusão resulta pior. Porque, bem considerando, tudo na vida é mascarada e tudo são máscaras. ¿Por que razão é que, tendo um homem nascido nu e entrado na morte como a mãe o depôz cá neste mundo, essa súcia inventou que um bocado de galão dourado pôsto num braço provoca um gesto de submissão, e pôsto num caixão nos faz pensar nas vaidades de todos os galões e de todos os gestos? ¿Por que razão é que quem «rouba um milhão é barão e quem rouba um pão é ladrão», como diz o poeta? Tudo se mudou. «¿Antigamente não eram os ladrões pregados nas cruzes e não se pregam agora as cruzes nos ladrões?» Fala certo Junqueiro: E não estala um ai de dôr em cada peito. E não submerge o monstro a cólera do mar, E a terra continua em seu girar perfeito; Ó Chimera, ó Tristeza, ó Justiça, ó Direito, Providencia onde estás, que te quero insultar! A indignação passa, a miséria fica. E para que há-de a gente considerar em tanta miséria?! É fatal. Se a gente scisma e se ensimesma, pobre _dominó_ sentimental! _Dominó_ lunático, sonhador escarnecido! Se a gente ama, pobre tolo, que anda na lua. Se acredita, que assuada! se considera, que filósofo! E não há que scismar, que sonhar, que amar, que acreditar e que considerar. É deixar-se ir no vortilhão, como quem aborrecido vai na onda, empurrado, sem sentir os empurrões, escarnecido sem ouvir os escárneos, apupado sem ter ouvidos para os assobios. Em resumo: É a vida um baile de máscaras muito aborrecido. Entra-se julgando a gente divertir-se imenso, e, quando se chega a quarta-feira de cinza, encontra-se, depois de muita maçada, morta de aborrecimento e de tristeza com êsse dominó embuçado, misterioso, que tem um riso eterno e que é o porteiro da saída. Êsse dominó é a última máscara. É a ultima máscara que mudamos e é o último mascarado que encontramos. Como Rafael Bordalo deveria estar morto de tédio para fazer a síntese duma filosofia num quarto de papel--a síntese da filosofia do riso, porque o riso é uma filosofia em que sempre se acaba a chorar. Mascarada! Mascarada eterna! Mascarada que veio através dos séculos até nós e de nós irá por êsses séculos sem fim. Mascarados que todos nós somos. Quando falamos mentimos, quando juramos mentimos. Quando tentamos falar verdade ainda mentimos, porque a verdade não é mais do que uma mentira menos mentirosa. E, senão, que nos mostrem algum amor que o seja, algum amigo que não falseie. O amor--uma _Colombina_ e um _pierrot_--Mas livra-te de amar, porque serás o _pierrot_ traído. A amizade--uma espada que se quebra ao sair da baínha para nos defender. E entre outras desilusões, de vez em quando passa por nós sorrindo _a última máscara_, de Rafael Bordalo. Eu invejo os que se divertem. ¿Como serão feitas lá por dentro as criaturas que se divertem? Não sei, e creio que nunca ninguêm o saberá. Invejo-as, porque não sei se elas existem. Acho mesmo que as criaturas nessas condições estão em igualdade com a do feliz, que Manuel Bento de Sousa pôz em quadras. O sultão, para se restabelecer da sua grave enfermidade, precisava nem mais do que da camisa dum homem feliz. Embaixadas, expedições, o demónio e nada. O homem feliz não aparecia. Interrogados os súbditos dos seus estados, à uma todos responderam que não, que não eram felizes. Só um pobre, que puxava a uma nora e cantava, respondeu que sim. Êle possuia essa cousa tão rara como o amor e como a amizade. Êsse era feliz. Foi o pobre diabo amordaçado e conduzido sôbre um camelo à presença do régio doente. Era a cura. Mas logo que o despiram se verificou com espanto que êle,--o homem feliz,--nunca tivera camisa. É bonita a história, ¿mas quem nos diz se não será mentira? ¡Sucedeu há tanto tempo e num país distante! E com estas e outras histórias, umas cómicas, outras trágicas, se passa a crónica e a vida. E depois à saída do baile, lá espera o _dominó_ fatal. É por isso que eu me demoro, sempre que folheio a obra de Rafael Bordalo, nessa página que representa _a última máscara_. Academias Não sei se os senhores teem reparado que muito ao contrário da eterna verdade que Ibsen apresenta, no seu _Inimigo do Povo_,--«o homem mais forte é o que está mais só», que tambêm pode ser traduzida «vale mais só do que mal acompanhado»--o homem tem uma extraordinária tendência para se reunir e dizer asneiras de sociedade. E é fatal. O homem, alêm de tudo quanto é, ia eu dizendo, _Homo sapiens_ de Linneu, «o animal implume que ri» de Platão, é tambêm palrador. Palrador, sim, meus senhores! Prometam-lhe uma libra para estar calado uma hora. Ou diz ao fim de meia, como o outro, que «meia hora já está passada», ou pedirá ao fim de dez minutos de experiência, que guardem a libra porque se não fala rebenta. Tem uma certa razão, valha a verdade. «Para viver só, é preciso ser bêsta ou Deus» disse Aristóteles. Nietzsche concluiu que há tambêm um terceiro caso; ser as duas cousas: filósofo. Ora nem todos são deuses, se bem que as bêstas abundem. Filósofos, não vai o tempo para êles. E a um ou outro que vem, quási sempre por engano, sucede-lhe a mesma cousa que ao _Misantropo_ de Castilho, aquele «Severo Tristão de Matos» que, depois de clamar, de se indignar e de ter estado não sei quantas vezes em risco duma apoplexia ou duma congestão «Saíu da vida presente por farto de ver sómente falsos, vis, ladrões e ingratos». Provado, pois, que o homem tem necessidade de se assembléar, para viver, logo foi inventar mil nomes para justificar a reunião. E então chamou-se-lhe, de _soirée_--sociedade onde a gente se aborrece, tendo ido para se divertir,--até _Academia_, sociedade onde a gente se diverte, tendo ido para se aborrecer. Não é das Academias recreativas familiares da rua onde a gente mora. É das outras. Cousa séria, grave, ponderada, onde se discute ou se dorme, mas quási sempre se dorme. Isto vem a propósito de termos agora mais uma Academia. Ora há muitos anos que a gente tem outra--ali para as bandas de Jesus, que se chama, creio, Academia Real das Sciências. É uma sociedade onde os sócios teem fardamento tal como a Incrível Almadense ou a banda dos bombeiros de Chão de Maçãs. Fardamento, chapéu armado e espadim. Para que serve, não sei. Que tem feito? Quási nada. Um dicionário que ficou em _azurrar_. Ora eu entendo que em vista de nunca ter passado do A, sendo já tão crescidinha, se lhe dê outro ofício. Está provado que não nasceu para aquilo. E o que é mais, não tem vergonha nenhuma. ¡Sempre é uma tamanhona sem préstimo! Bem visto, ela está no seu papel. As academias não se fizeram para fazer cousa alguma. Academia é para a gente se reunir, fumar a sua cigarrada, jogar a sua partidinha de dominó, com a municipal à porta, mandar para a mesa duas cartas que o ilustre sócio escreveu ali ou trouxe escritas de casa, dizendo--«Peço ao ilustre presidente o obséquio de dar essas cartas ao contínuo para as deitar no marco quando sair!» Ás tantas levantam todos a gola, dão as boas noites e desandam para vale de lençóis. Teófilo Braga disse uma ocasião em público: «Academia é uma colecção de sábios, que caminha para o pedantismo». Foi muito amável. Foi muito amável porque se alguêm quiser saber o que é a nossa Academia Real, etc., consulte o _Cancioneiro da Vaticana_ no seu prefácio. Ali verá que nunca o _Cancioneiro_ seria impresso se não fôsse êsse benemérito sábio que foi em vida Ferraz de Macedo, o antropologista. Porque para ser impresso pela Academia não havia dotação e um dos membros da classe de literatura de quem dependia a aprovação do _Cancioneiro_ julgava que o texto era latim! Mas há mais. Não havia dotação para o _Cancioneiro_, mas houve perto de dois contos de réis para gastar com o embelezamento das salas para a celebração duma sessão real, uma sessão solene. Com o dicionário já se gastaram algumas dezenas de contos de réis e não serve para nada, o estafermo. Não é caso para dizer «não estala um ai de dôr em cada peito», mas «e não há um arrocho que os desanque!» Depois, ¿para que servem as academias? Que préstimo teem? Eu não lhes conheço nenhum. Nunca de nenhuma Academia saíu um homem de talento, e em compensão os que o teem e entram para elas perdem-no logo. Senão digam-me a obra grande, de utilidade ou de valor, que as academias tenham fomentado! Qual? Nenhuma. Crer-se-ia na plausibilidade disso se Academia não fôsse um vaso de víboras como o de Carlyle, víboras desdentadas, invejosas e pequeninas, e que, para não deixar entrar nenhuma ideia nova, nenhuma ideia grande, até pôs guarda à porta, exactamente como à porta dos parlamentos se põe tambêm guarda, que é para que a Justiça fique de fora. Plauto, o cómico, não foi da Academia Real das Sciências. Cervantes, tambêm não. Shakespeare tambêm não. Camões, idem. Ora aqui estão uns mágicos que não precisaram, para entrar na imortalidade, de apresentar o cartão de visita tendo por debaixo do nome «da Academia Real das Sciências, da Sociedade Filarmónica Capricho Recreativo, da Sociedade dos «tacões ao domingo, etc.». E estou até desconfiado de que o porteiro, ao ver tal, e ter olhado bem para a cara do sujeito, lhe diz com um risinho e uma palmadinha no ombro:-«O amigo está enganado! Tem que descer. Isso é na cave!» Porque a imortalidade é o único logar para que a farda não serve de passe de livre trânsito. Malheiro Dias diz, nas suas _Cartas de Lisboa_, que «a mais alta categoria social não vale uma farda de simples adido de embaixada, com plumas de avestruz no bicórnio e folhagem de vinha e oliveira, bordada a ouro, na gola»; pois com êste simples fardamento os polícias fazem continências, os municipais abrem filas e a multidão comprime-se para dar passagem. Isto ao subir a calçada da Ajuda. Será verdade. Mas agora aqui me ponho eu a pensar que talvez a farda não valha para a imortalidade, porque para ir para lá a Ajuda não é o melhor caminho. Sim. Deve ser isso. Assim é que Plauto foi moço de padeiro, Camões foi soldado e Cervantes soldado e pobretão, e entraram. Camões tinha farda, mas quando morreu estava no prego. Em compensação, dos ilustres fardados da Academia, o porteiro não deixa lá entrar nem três. Vejam lá se vale a pena gastar dinheiro no alfaiate quando o que é preciso é gastar noites a fritar os miolos. «Cá e lá más fadas há». Isto não é de nenhum dos escritores que eu costumo citar. Isto é da sabedoria das nações. Os senhores já sabiam?! Pois em França é tambêm assim, quando não pior. A Academia dos Goncourts, fundada para dar um prémio ao melhor romance, não tem estimulado nada o talento dos bichos que concorrem. Tem-lhes estimulado mas é o apetite e a solércia. Não os podendo fazer mestres em romance, fá-los mestres na empenhoca. E por isso o premiado é sempre o que mais empenhos tem. Pois então. Não se desconsolem os que não são académicos. As academias não são para todos. Isto é dúbio, bem sei, mas entenda-o cada qual como quiser. E estou escrevendo e está-me lembrando a caricatura de Zola feita por Gilbert Martin: Zola vestido de mineiro, cachimbo, botas altas e lanterna, oferece o braço à Academia, uma vélha esganiçada e tôla, ao mesmo tempo que lhe pisa a cauda. É claro que a vélha escama-se e não dá o braço. E a propósito da Academia e de Zola há outra publicada na _Silhouette_: Zola, com os seus livros às costas, puxa o cordão da campainha da Academia. Puxa, quebra o cordão e a porta não se abre. Zola não entrou. Objectar-me-hão: mas queria entrar! Queria por estar a porta fechada para êle. Por teimosia, por pirraça. Se lá entrasse o mais certo era... vir embora. Maupassant disse que três cousas desonravam um homem: a Academia, as condecorações e a _Révue des deux mondes_. Depois, passados muitos anos, prestes a morrer, escrevia na _Révue_, estava para entrar na Academia e creio que era condecorado. Ironias do Destino. ¿Quem sabe lá se eu um dia tambêm serei sócio da Academia? Tudo é possível. Então serei um velhote grave, ponderado, sério, terei óculos, um grande horror ao galicismo, um poucochinho de pancada na mola, e uma coleira ao pescoço com a chapa da casa. Todos êles teem. Pancada na mola e um bocadinho de imbecilidade. Vai daí, a Academia forneceu-lhes a chapa para os distinguir da outra gente, e para que as prendas se não percam. Pois quando eu lá chegar, ia dizendo... Mas emquanto não chego, ¿os senhores dão-me licença que acenda um cigarrinho?... O passado Desejar a morte é ainda querer voltar ao passado. E assim como há dias em que ser morto é a ânsia que me lança um baraço ao pescoço e me afoga, outros há em que uma ânsia regressiva me faz voltar atrás para tornar a viver sôfregamente os dias já vividos. Hoje é um deles. Lá fora o céu pôs o seu «plúmbeo capacete». Por vezes uma chuva miudinha e intérmina envisca tudo da sua frialdade. E as almas, ressentidas de tanta fereza, voltam-se a viver o Ontem, queimando o Hoje gélido na lareira das mornas recordações. Recordar não é só privilégio dos vélhos. Lembrar, é ainda na vida o único lenitivo. Ai! o que seria a vida para aquele que não tivesse a memória e a fantasia,--o Passado e a Ilusão. Com a memória vive-se, com a fantasia sonha-se. Mas vive-se deliciosamente e sonha-se um sonho ainda mais delicioso. Por isso em dias assim,--um chuvisco frio minando as energias,--as almas vivem e sonham. Lá fora há lama e frio. Cá dentro, acesa a fogueira, principia o desfile. Então não há recordação, carta de amor, beijo dado ou passado dia, que não traga o seu quinhão. São pequenas cousas, cousas mínimas que se transfiguram. A saudade vê sempre por vidros de aumentar. Aí começa a gente a viver com fúria dias maus, que, comparados com os de hoje, nos parecem bons, dôres sofridas que cotejadas com estas, nos parecem verdadeiros prazeres. Ao fim, quando aquela galopada furiosa desfilou, quedamo-nos encolhidos scismando: como a gente envelheceu! E a saudade manda recomeçar a sessão, como num animatógrafo em que a fita recomeçasse a passar. Como é verdadeiro o dito do poeta: «e saudades até doutras saudades!» Sim! eu sinto isto. Não há dúvida. Uma grande ânsia de ser pinheiro, de ser oliveira, árvore perdida, rocha bruta, me atormenta. E a chuva cai. O passado atrai-me. Os livros novos não me dão novidades, com o seu papel de alvura fatigante e a sua sorna monotonia. Não, os livros novos não são novos. Lembro-me de ter já lido isto! Aonde, não sei. Mas de-certo tudo isto eu senti, tudo isto eu vi já. Estes amores, assim rasos, assim secantes, já por mim passaram. Estes versos já eu os ouvi. Tudo hoje à minha volta me deixa frio. Hoje não há senão aridez e sequidão. É o _simoun_ que turbilhona, arrasta e sepulta. Os vélhos livros, com suas páginas amarelentas e os seus grossos caracteres, dizem-me não sei quantas vélhas saudades inolvidadas. Assim compreendo a paixão dos bibliófilos avaros, dos numismatas soberbos, de todos os coleccionadores e de todos que, estranhos ao seu Hoje, ou chocados pela brutalidade dele, se evadem da realidade pela porta do sonho e se deitam a correr atrás da fantasia. Os vélhos livros contam histórias encantadas e escândalos sem par; sabem cousas que são o encanto dos vélhos e o deslumbramento dos novos. Oh! se vós soubésseis cousas que andam em vélhos livros?!... Criaturas há que nem saudades teem. Saudades de quê? Nem saudades, nem queixas, nem esperanças. Tudo se lhes foi diluindo dia a dia. A miséria não deixa saudade: pode deixar lembrança. Deixa às vezes no esqueleto, no macerado das faces, na pele por colorir, sinais indeléveis da sua passagem. De resto, todos os seus dias são iguais. As suas noites parecem medidas pelo mesmo compasso. O ontem foi amargo, o hoje é tão amargo como o ontem. Olhando em roda, ninguêm. E em verdade, um ninguêm é sempre só, e não vale uma unidade um bilião de zeros. Se a criatura vive a vida bruta de animal, a sua única felicidade é êsse covil--o sono--onde as necessidades todos os dias a vão espancar, até um belo dia dele não voltar mais. É por isso até que chamam ao sono irmão da morte, como a Bíblia, ou primo, como o nosso Eça de Queiroz. Outras há para quem o sono é sómente «o aquário da noite», como quere Vítor Hugo. Para essas o sono não é um covil tranqùilo onde se possa descansar. No sonho se continua a vida e quem morre a sonhar não chegou ao fim do seu romance. Essas, que nem no sono teem prazer, votam-se a viver a vida já vivida e quando a não teem para viver--gente há que não viveu nunca!--imaginam-na. Outras ainda vivem a vida lida. Não é a sua nem o seu mundo que habitam. É o mundo dos livros que leram, das personagens que idearam, das criaturas que só em sonhos são reais. A vida de hoje, para as almas sensíveis, é duma brutalidade exorbitante. Daí a debandada ser cada vez maior. Uns evadem-se para não voltar; outros deixam só o corpo. A alma--o que em nós pensa, sente e quere, da filosofia antiga,--essa não anda dentro de muitos corpos, evadiu-se tambêm. Recordar, recordar! ¿há lá cousa mais pungente e mais deliciosa? Felizes os que sabem e podem recordar! Ora imaginem que a velhice, o inverno da vida ou o que quiserem de mais amargo chamar-lhe, não tinha êsse brasido longo e aquecedor da recordação?! Imaginem-na agora sem memória?! Porque cruel é já arrancar-lhe a destreza no jôgo das armas, a agilidade nos músculos, o calor nos beijos, o entusiasmo na palavra; roubar-lhe a beleza, a fôrça e o amor; roubar-lhe a aventura e o garbo. Cruel é dar-lhe o reumatismo que lhe emperrou as articulações, a razão que lhe moderou os entusiasmos, a experiência que lhe roubou calor aos beijos, e o abandono de vida que lhe tirou o garbo e a beleza. ¿Que nome não teria, que inédita crueldade não seria a de lhe roubar tambêm a memória--a única mocidade dos vélhos? «De vélho torna-se a menino», diz o adágio. E a única felicidade é lembrar. Tornar a sentir os mesmos beijos, tornar a viver os mesmos dias. Povoa-se-nos a vida de espectros. Vivemos com mortos. Vive com mortos quem vive de recordações. Todavia, que delicioso não é?! É por isso que hoje, dia em que o céu se forrou das mais escuras côres, e a chuva toca marselhezas de _spleen_ nas vidraças, eu busco vélhas lembranças, lembranças de outros dias, lembranças de outras lembranças, «saudades de outras saudades.» E da minha estante tiro um livro poeirento e antigo onde se lê, quási apagada, uma vélha história de amor... ¿Qual de vós não sentiu já, por vezes, esta ânsia de recomeçar novamente? ¿Fazer de novo a obra já feita, ganhar de novo o já ganho, de novo sofrer o já sofrido, beijar o já beijado, amar o já esquecido, e tornar depois, ainda, a recomeçar? Todos, de-certo. Êste desejo sentiu-o tôda a gente. Mesmo sem sêr vélho, mesmo sem ser gasto. Um dia de chuva basta para nos lavar dos egoísmos e desenterrar em nós amargas recordações. O inverno desperta sempre saudades para nos dar lágrimas. O sol, o «claro sol, amigo dos heróis» se nos dá vontade de partir é consoladoramente, como quem nunca sentiu saudades, porque a saudade, sendo o único mal, é o único bem da vida. Quem tem saudades não deseja a morte. A morte é o fim e só se chega ao fim quando não há mais nada. Pois bem. Recordo hoje. Tôda a minha vida desfio, lentamente, como as contas dum rosário em dedos de monja crente. Busco, rebusco e, como alguêm, que, buscando, volta as fôlhas dum livro, não encontro nada. Nenhuma saudade, nenhuma recordação. Quimeras não tive nunca, e esperanças não tenho já. De tanto esperar, desesperei. Se alguêm, como a Job, me perguntasse, na hora extrema, na hora derradeira em que as memórias se reunem em volta do frio leito, como no soneto de Antero, se quereria recomeçar de novo, fazer de novo a obra já formada, beijar de novo os beijos já beijados, crer de novo os sonhos já mentidos, eu, a-pesar do meu amor ao vivido, virando-me para o outro lado havia de responder, juro-lhes:--como é triste o dia, lá fora!--Que não, que não valia a pena. Entrado na agonia, não voltaria os olhos. Não fôsse a Saudade querer, a-pesar de tudo, entrar comigo a larga porta que dá para a eternidade. O calor Os senhores leram já de-certo, aquele livro _Á Esquina_, onde há um trecho maravilhoso que se intitula _Ceifeiros_? Leram? Pois como Flaubert, ao descrever o envenenamento da Bovary, sentia na bôca o sabor do arsénico, eu, ao ler pela primeira vez o trecho do _Á Esquina_, senti a sensação do calor. E a mesma ânsia de ir buscar água fôsse onde e qual fôsse, a mesma intraduzível agonia dos ganhões do Alentejo, se apossou de mim. Água! água! E êsse martírio que não conhecia, como um pesadelo, tornou-se realidade. Lisboa deixou de o ser. Tornou-se Alentejo, tornou-se África, forno, o que quiserem. Nem uma aragem move as fôlhas. Os pássaros, de bico aberto, respiram a custo. A gente deitou fora todos os superlativos do trajo. Foram-se as camisolas, foi-se o colete, buscou-se o mais transparente casaco. E como é de uso sentirmos o mal alheio quando nos toca pela porta, aqui me ponho, mente soturna e cogitativa, a lembrar a agonia dos fogueiros, êsses homens sepultados no interior dos grandes transatlânticos, de todos os que trabalham sob a pressão de altas temperaturas, no mar ou em terra, em oficinas ou fábricas. E afigura-se-me horrível agora, que o ar me falta e tôda a terra zumbe à minha volta, tonta de sufocações. Mas, é claro, logo que surda a primeira aragem, já a miséria dêsses proletários me será tão indiferente como a morte de algum mandarim desconhecido nos limites do Celeste império dos mandarins, do chá Pouchong e dos papagaios de papel. Com êste calor nenhuma ideia se manifesta. E como é impossível trabalhar, deita-se a gente a admirar o que os outros fizeram... em ocasiões em que a temperatura de-certo não pesava tanto. Escrever? qual! A tinta é inútil. Tanto se sua, que já a tinta se dispensa. Um regatozinho vem do tórax ao punho, do punho à caneta e daí ao papel, acompanhar e colorir o garatujar da pena de aço. Por isso, os artigos agora não são escritos, são suados. Um movimento não é um movimento; um gesto é um sudorífero. Energia? decididamente não há energia com um calor dêstes! Ainda que se diga à criada para a meter dentro dum balde de água quando se vai buscar, ela está tépida--é uma energia água morna, uma energia sem gana, sem nada, muito a pedir pílulas Pink ou uma carapinhada. Tambêm, justo é dizer que para nada é precisa. Não é precisa para pôr um credor a andar, porque qual seria o credor, quem tão herói seria, que se aventurasse a atravessar a cidade debaixo dum calor dêstes? Sim, porque uma pessoa sai de casa, e, a não ir dentro de um frasco, ninguêm lhe garante que chegue ao seu destino. Já não é a primeira que se derrete pelo caminho. Não sendo precisa para um crédor, ¿para que diabo será urgente? Meia Lisboa foi-se embora e a que não foi, ou vai ou tenciona ir. Porque ir em pensamentos é quási o mesmo que ir em realidade. Razão por que há tanta gente contente em teoria. O calor não é tão realmente mau como se imagina. Dum casal pobre sei eu que come fiado todo o inverno. Fregueses antigos, a mercearia vai fiando e agora por esta altura deve o rol andar por uns sessenta a setenta mil réis, um absurdo para um par miserável. O merceeiro, porêm, logo que o calor aperta, esfrega as mãos de contente. E todo êle é fariscar a atmosfera, sondar, fazer perguntas a respeito dos astros. O casal, averigùado o interêsse do merceeiro, vim a saber, paga de verão a conta tôda e gasta algumas arrôbas de açúcar. Êle e ela, cada um para seu extremo da cidade, com uma quitanda portátil, vendem refrescos e manipulam limonadas, com um furor que toca as raias do delírio. Á noite, recolhidos a casa, se não ganharam tanto como um director geral, sempre lhes sobra para deitar abaixo uma talhadinha da conta do merceeiro. Daí o contentamento dêste e o contentamento dos que vendem. Porque todo o desespêro é dos que pagam. Trinta e duas limonadas, meu caro amigo, dizia-me um cavalheiro, trinta e duas! E eu, estarrecido, tocava a mão em cujas veias circulavam trinta e duas limonadas. Decididamente, o cavalheiro não era cavalheiro, era um contador de pressão. Se lhe desandassem a torneira, apagaria um incêndio. Se o telefone toca, já se sabe para que é: para pedir ao Silva, da _Violette_, que mande um refrêsco. E metem-se empenhos. Perguntem a um homem célebre neste momento:--¿O cavalheiro diz-me qual é o seu ideal? Ora a resposta é sabida. O cavalheiro passa a mão pela lustrosa gaforina, scisma, dá dois estalinhos com a bôca e, depois, solene, com o ar macbético e profundo de quem vai responder à imortalidade, diz: «O meu ideal? O ideal seria um capilé! sentir o criado trazer num cristal o líquido colorido, tocar-lhe e sentir a sensação de frescura; saborear depois a pequenos goles, hein! Pois não seria o ideal?» Concorda-se, é claro, e manda-se vir: «Rapaz, dois capités!» Uma ocasião, foi isto em 1849, Gustavo Flaubert e Maxime du Camp desembarcaram no Egipto. Subiram o Nilo e internaram-se no deserto só com 3 odres de água, uma água mais do que morna, pútrida e detestável, que era transportada sôbre um camelo. Uma fatalidade fêz com que o camelo caísse e esmagasse os odres, perdendo-se a água, que nunca mais, durante três dias, se pôde encontrar. Conta M. du Camp: «Tinha a bôca sêca, os lábios farinhentos; a bicharia do meu dromedário tinha-me invadido e devorava-me. Na nossa pequena caravana ninguêm falava...» E com uma minúscula pederneira quebrada colocada sob a língua, para entreter a actividade das glândulas salivares e neutralizar um pouco a sêde, os desgraçados agonizavam. Os senhores tirem o suplício por êste calor. Imaginem êste inferno,--eu sei lá--elevado ao quadrado! Senão quando, de repente, pelas 8 horas da manhã, ao passarem num desfiladeiro--uma fornalha--Flaubert numa obsessão doentia se volta para M. du Camp e lhe diz: «¿Lembraste dos sorvetes que se tomam no Tortoni?... O sorvete de limão é uma cousa superior; confessa que não desgostarias de engulir um sorvete de limão». Daí a 5 minutos: «Ah! os sorvetes de limão! em redor do copo há um vapor húmido que se assemelha a uma geada branca». E já du Camp, azêdo, ofegante, agonizado, lhe volvia: «¿Não seria melhor mudarmos de conversa? Flaubert, teimoso: «Seria, mas o sorvete de limão é digno de ser celebrado; enche-se a colher, isto faz como que uma pequena cúpula; esmaga-se brandamente entre a língua e o céu da bôca; isto derrete lentamente, frescamente, deliciosamente; isto banha a úvula, isto roça pelas amígdalas, isto desce até ao esófago, que não fica zangado, e cai no estômago que estoira de riso, tão contente está. Aqui para nós, faltam os sorvetes de limão no deserto do Qôseir!» Maxime du Camp agarrou-o terrívelmente e esteve em quásis de o matar. Só depois de ter bebido a saciar-se, Flaubert o tomou nos braços e lhe disse: «Agradeço-te o não me teres quebrado a cabeça com um tiro de espingarda; no teu logar, não teria resistido». E agora, contada a história, digam-me se, como Esaú, não trocariam a progenitura por um bock ou se não dispensariam a glória, a imortalidade, a academia, eu sei lá, por um dos tais sorvetes de limão do Tortoni? Porque, com franqueza, ¿qual de vós, ao menos a sonhar, não parafraseou a frase célebre de Augusto pedindo a Varo as suas legiões? Qual de vós não acordou uma noite destas em gritaria aflitiva, bradando:--José, José, traz-me um sorvete! Os bastidores do Génio Zola--Wagner--Gorki a Eduardo Schwalbach. Sienkiewicz, êsse forte e original Sienkiewicz, que a multidão consagrou pelo martírio da sua Lígia, o amor da sua Eunice e a _linha_ orgulhosa e aristocrata do seu Petrónio, tem em tôda a sua obra um livro maior do que êsse _Quo Vadis_ aclamado e do que êsse _Dilúvio_ de que se fala tanto. Intitula-se, na tradução portuguesa, _Sem Dogma_. Pois foi nesse livro, quási esquecido, que eu topei um dia com esta frase intensa: «_todo o homem tem em si a sua tragédia_». Se, na sua generalidade, ella é já precisamente humana, quando se aplica a artistas toma a sua expressão mais flagrante e mais real e, então, como certas palavras de que fala Daudet, que quando se pronunciam abrem um horizonte inteiro ao pensamento, visiona qualquer cousa do abismo dessas almas de que se conhece só a superfície. Foi com a tragédia espantosa dêsse russo, que está agora prendendo a atenção do mundo--êsse Máximo Gorki que é tão grande como Tolstoi--que eu me dei a considerar a tragédia de todos os que lutam pela Arte, almas de luz e fel, que, como êle na sua passagem para a Glória, escondem uma odisseia de torturas, amassada de lágrimas e feita de ânsias e tormentos. Essa tragédia dolorosa, indescritível, convulsa, misto de aromas e travores amargos, esperanças e desilusões, é a que transborda para as suas personagens, para as figuras que criaram e a que deram vida. Se uma figura às vezes atravessa um livro inteiro, um drama, uma peça inteira carregada de amargura--tanta que infunde piedade,--é que o seu autor trazia muita consigo. Se sofreu tanto que se impõe à nossa admiração, lá está por trás dela êsse homem transfigurado, às vezes grandioso e ridículo, que chora as suas lágrimas e sofre as suas dôres porque a tragédia das suas personagens é arrancada da sua própria tragédia. O autor é o seu primeiro actor. É a sua tragédia que êle ali estadeou e autopsía. Tôda a porção de ridículo, de mágua e piedade, de cólera e compaixão, todo êsse arco-íris de sentimento não é mais do que qualidades suas que êle transportou, corporizando-as no papel. Não é a vida alheia que êle vive. É a sua. Todos os dramas, tôdas as tragédias que êle patenteou nos seus romances, nas suas peças, nos seus quadros, na sua música, não foram mais que uma janela que êle abriu à alma para nos mostrar a sua tragédia. ¿Pois o Dr. Storkman do _Inimigo do Povo_, de Ibsen, não será a sua própria encarnação dentro do drama? ¿A luta que Storkman sustenta contra o egoísmo e a mesquinhez do seu _meio_ não será a mesma que Ibsen sustentou, para conseguir impor a sua arte? ¿As outras figuras não serão figuras que êle sentiu à sua roda molestando-o,--vivendo-as por conseguinte? ¿Brand, Solness não serão ainda êle? Ibsen conheceu o insucesso, lutou, lutou e venceu. ¿A estranha conclusão a que êle chega no _Inimigo do Povo_ não será a conclusão que cimentou das suas horas de odiado e guerreado? ¿Swit na sua obra não se identificou tão profundamente com ela que antes parecia tê-la vivido e representado? ¿A tragédia do célebre _Kreissier_ de Hoffman não será por acaso a sua? Em Flaubert a tragédia é tão intensa que chega a confessar que, na ocasião de transportar ao papel o envenenamento de M.ᵐᵉ Bovary, sentia na bôca o sabor do arsénico. Edmond Goncourt, no _Journal_, falando de seu irmão Jules, dá-nos uma prova flagrante disso, dizendo que à fôrça de se analisarem, de se estudarem e de se dissecarem, chegaram a uma sensibilidade super-aguda, que os fazia assim viver a vida das suas personagens. ¿Pois não arrastou dentro de si esse bárbaro Shakespeare a tragédia tormentosa do seu rei Lear, a loucura sonharenta dêsse Hamlet, a perfídia de Macbet e a candidez da sua Ofélia? ¿Não se descortina em tôda a obra dêsse melado e extraordinário Daudet a sua tragédia? ¿Dickens, Póe, Baudelaire, Verlaine e êsse Rollinat, cuja morte estranha ainda está na memória de todos, não se encarnavam na sua vida literária, não eram aquelas páginas, aqueles versos, aqueles dramas arrancados de si, motivados por essa super-intensidade de sentir análoga à dos Goncourts e que lhes faz ainda maior a sua tragédia? Wagner é o herói da sua novela, _O fim de um artista em Paris_, como Gorki é o padeiro do seu conto dos _Vagabundos_. ¿Zola, essa forte organisação de génio e de trabalhador, não se retrata nesse belo e inolvidável conto _Nantas_? Não sentiu êle o seu Nantas? ¿Não viu Paris, faminto, correndo tôdas as portas à procura de emprêgo, sofrendo tôdas as recusas, sentindo inamovíveis aos seus desejos todos os corações, fechadas tôdas as almas, exactamente como o seu Nantas quando voltava à noite a casa, cambadas as botas, alma sêca, cheio de lama, tendo corrido dum extremo ao outro extremo todos os _boulevards_ da cidade? E não lhe pôde êle dizer um dia, exactamente como Nantas--Agora és meu?! Nantas, como Zola, é um moço que chega a Paris sem um ceitil na escudela e que o corre todo a procurar uma côdea, porque Nantas, exactamente como Zola, teve fome. Depois consegue triunfar, mercê duma incrível tenacidade, duma fôrça hercúlea. Chegara. Como Zola ainda! Audran passou miséria. Maupassant, Daudet e Balzac conheceram a vida, o mais ingrata possível. Chatterton, para fugir à miséria, pediu refúgio à morte. Bernardin de Saint Pierre não tinha uma camisa para vestir. A miséria de Milton e Homero é tão indubitável como o seu génio. Savage morreu de frio numa rua de Paris. Camões e Gilbert, como Verlaine, foram varar a carcaça à cama do hospital. Villiers de l’Isle Adam e Barbey d’Aurevilly, Shakespeare e sabe Deus quantos outros, morreram na miséria. É esta miséria, eterna companheira dos artistas, que Wagner invoca no comêço da sua _Visita a Beethoven_. «¡Pobreza, dura miséria, companheira habitual do artista alemão! É a ti que, escrevendo estas memórias, te devo invocar. Quero celebrar-te, fiel companheira, que sempre me tens seguido a tôda a parte.» Entre os portugueses, êsse génio esquecido de S. Miguel de Seide, sem estátuas, nem ruidosas consagrações, mas com uma obra maior do que isso tudo, ¿não sofreu essa angústia do _Amor de Perdição_? ¿A sua obra, essa gigântea _Comédia humana_, não foi dele que saiu, da sua tragédia? ¿De que porção enorme de lágrimas, de amor, de amarguras, de todo êsse misto sem nome, não seria feita a tragédia dêsse homem? Tão grande ela era que chegou para êle a dividir por uma centena de criaturas, que vergam muitas vezes sómente ao pêso da pequena parte que êle lhes quinhoou e que, comparadas à sua, não chegam, sequer, a ser uma lágrima no Atlântico. ¿As criações do nosso Eça não serão figuras que êle sofreu, que viveu e que o rodearam? Temos ainda Fialho de Almeida, o extraordinário colorista do nosso tempo. ¿Pois não é êle quem, na sua autobiografia, confessa que viveu alguns anos de prodígios económicos, alguns miseráveis cobres que não compensavam nem sequer o que para os apanhar tinha suado? ¿Veja-se, perscrute-se um quadro de Rembrandt ou de Sequeira, uma tela de Goya ou um esfumado de Assunção, uma partitura de Wagner ou uma sinfonia de Beethoven, e que tragédia não há em tudo isto, como aquela arte não é suada e sofrida, que soma de trabalho não representa? ¿Quantas horas de canseira para daguerreotipar um tipo, caricaturizar o grotesco duma figura, fazer o esquiço ou a _silhouete_ apenas doutra; o aguardar dum beijo, o _facies_ contorcido duma máscara, o estilo que sabe a carícias, a armures, a fofos dedos e amarrotadas sêdas? ¿Que soma de ânsia e de suor não representam as figuras convulsas de Dostoiewski, a beleza formidável dos ladrões e dos vagabundos de Gorki, o diavolismo de Barbey d’Aurevilly; em d’Annunzio, a torturada confissão do seu _Episcopo_; em Zola, o naturalismo da sua _Naná_ e de _Le Germinal_, a delícia suprema de _Le Rêve_ e a singularidade de _La Bête Humaine_; o esmerilhado feminil dêsse Gauthier, o espiritualismo de Maupassant e de Huysmans, a saudade voluptuosa de Pierre Loti, e a psicologia burguesa de Bourget? O público de nada sabe. ¿Que lhe importa a maneira _como e porque_ se fêz a arte? E aí está como às vezes passa despercebida a _genesis_ de obras que as gerações que vierem, mais justiceiras talvez, hão-de apreciar devidamente. A tragédia abraça todo o artista. Vai de Zacconi a Zola, como foi de Raphael a Guttenberg, ou de Sócrates a Platão, e encontra-se igualmente na freira portuguesa, essa Sóror Mariana apaixonada, e na alma dêsse pessimista violento e cruel que se chamou Schopenhauer. O destino aproximou no génio estes três nomes: Gorki, Zola e Wagner, como os tinha aproximado na mesma odisseia de desventura. O músico alemão, o contista russo e o escritor francês identificam-se poderosamente. Wagner, refugiado em França, chegou aos últimos apuros. Zola, quando veio para Paris, sem nome e sem dinheiro, passou uma vida aflitiva primeiro que o seu nome fôsse conhecido. Na rua Soufflet, numa hospedaria onde habitava e onde as rusgas da polícia eram freqùentes, viveu Zola uma vida espantosa, no dizer dum dos seus mais dedicados biógrafos. «Conheceu ali tôda a classe de privações. As suas comidas eram pão e café. Ou bem pão e dois soldos de queijo de Itália, ou pão e dois soldos de batatas. Algumas vezes sómente pão! Outras nem isso sequer! As roupas iam parar, umas após outras, ao monte da Piedade.» Era então, como de Wagner, a pobreza a sua companheira habitual. Quando a última peça de vestimenta se havia sumido, aí estava Zola forçado a ficar em casa, envolto nos lençóis e na coberta. Nem por isso ia a pique a serenidade, e essa maneira de trajar denominava-a, pitorescamente, _fazer de árabe_, aludindo aos muitos árabes que se viam em Paris, envoltos nos seus albornoz brancos. ¿Quem sonharia ali o futuro autor da _Obra_, do _Germinal_, e o defensor heróico de Dreyfus? Mas Zola é o maior exemplo de tenacidade do mundo inteiro. Como êle triunfou todos o sabem. O seu nome é hoje tão ou mais universal que o dêsse vélho conde russo,--Tolstoi. Mas, mais do que êste, conseguiu desencadear sôbre si todo o aplauso e furor humanos, uma verdadeira tempestade de palmas e de ódios, de admirações e de rancores. Gorki é perfeitamente a sua obra. Ela só trata de miseráveis, de vagabundos, de ladrões, criaturas sem lar e sem abrigo, sem um braço onde repousem a cabeça, nem uma bôca que lhes cicie palavras de confôrto e de resignação. Foi moço de bordo, padeiro, vagabundo, barqueiro, operário, guarda de linha, tudo quanto um homem pode ser. Correu meio universo, sentiu em erupção a sua dôr e a alheia e disso fêz uma _obra_. Plena de emoção, vibrante, e cheia de saudade, nenhuma outra, que me lembre, é tão intensa. Contou o que tinha sofrido e só isso lhe deu o triunfo, só isso lhe aureolou o nome da admiração universal. Triunfara! ¡Mas para quantos o triunfo chega tarde! São assim os grandes espíritos. Quere êles se chamem Danton ou lord Byron, Homero ou Bonaparte, Pedro, o discípulo, ou Plínio, o sábio. Todos teem seu martírio e sua consolação; mas no que todos devem concordar é que a glória é uma cousa bem amarga! A tortura do Estilo Eça de Queiroz A Afonso Lopes Vieira O estilo é o calvário do escritor. Os profanos não calculam quanto de energia, de paciência espectante, de trabalho, custou um capítulo ou uma página, um período ou uma frase dêsses volumes, que são o passatempo da maioria e a idolatria das almas nascidas para o Belo. Essa espontaneidade que tanto admiramos e que tão celebrada é; êsses versos tão fluentes e apaixonados, que julgamos nascidos dum só jacto; essas páginas de fogo que parecem feitas dum só bloco; essas tiradas tão dramáticas que dir-se-iam brotadas dum só arranco, que trabalho louco não deram aos seus autores?! Charles Baudelaire diz que a inspiração «consiste em trabalhar todos os dias», e Baudelaire percebia disso. Ora a espontaneidade, ainda que isto pareça um paradoxo, é, como a inspiração, produto de muitos dias de trabalho, de muita fadiga, de muita noite perdida a burilar a forma, a perseguir a ideia, a dar à emoção a sua veste mais atraente e mais adequada. O escritor não se pertence. Um dos seus mais tirânicos senhores é o Estilo. O Estilo é a grande tortura. O que esgota, que envelhece, o que arruina. Tudo exige esta dolorosa profissão. As nossas emoções e as nossas angústias, a nossa fantasia, a nossa paciência. O escritor, ao fim de certo tempo, não tem dôres nem emoções suas. A própria vida e todo o seu cortejo de acontecimentos passa a ser encarada como um _motivo_ de arte. Tudo são _motivos_. É a deformação profissional, idêntica à do magistrado que só vê criminal, do médico que só vê morboso, do militar, do especialista. Para êle nada mais existe do que o _assunto_ e depois do assunto a _forma_. Para alguns a _forma_ não é mais que a imprescindível maneira de exprimir o pensamento. Para outros, porêm, os mais artistas e os mais amados, a _forma_ é objecto de longa tortura. Foi êste o suplício que matou alguns dos mais notáveis homens de letras. Maupassant, em seguida a uma dessas cruciantes sessões, atirou uma navalha de barba às goelas, e foi morrer numa casa de saúde. E não só Maupassant. Há mais; mas para que citá-los? Sabe-se que a maioria dêstes obcecados da perfeição morre neurastenizada, louca ou esgotada. ¿O que amargurou a vida do nosso Eça, a de Balzac e a de tantos outros senão a _forma_? As correcções, que primeiro se fazem normalmente, a breve trecho tomam foros duma das mais obsidentes fobias. Almas insatisfeitas, nunca uma linha lhes saíu das mãos sem que ela tivesse realisado a imaginada beleza, a perfeição sonhada. ¿E quantas vezes essa perfeição não vinha e êles se gastavam a persegui-la com uma paixão e um furor que tocava as fronteiras da loucura? Entre os mártires do Estilo o nome de alguns tem ficado lendário. São as vestais da Beleza. A sua vida é uma odisseia de sofrimento, de abnegação e de sacrifício. Por isso as suas obras duram mais que a sua existência efémera e sofrida. O mais torturado é Flaubert. Nunca nenhum escritor teve em tão alto grau a ânsia da perfeição, nem nunca a _forma_ teve tão apaixonado admirador. ¿Porêm que tormento não é tôda a sua vida, que exemplo de martírio ela não representa? Para escrever as trinta páginas da _Herodiade_ levou 900 horas e regista como um raro exemplo da sua fecundidade o ter escrito vinte páginas em um mês!!! «Escrever era pois para êle uma cousa temível, cheia de tormentos, de perigos, de fadigas», diz um dos seus biógrafos, o seu discípulo Guy de Maupassant. «Ia sentar-se à mesa com o mêdo e o desejo desta tarefa amada e torturante. Ali permanecia, durante horas, imóvel, encarniçado no seu trabalho assustador de colosso paciente e minucioso que construiria uma pirâmide com bolas de criança. Enterrado na sua poltrona de carvalho de alto espaldar, a cabeça encolhida entre os seus fortes ombros, olhava o papel com o seu ôlho azul, cuja pupila muito pequena parecia um grão negro sempre móvel»... «Depois punha-se a escrever, lentamente, parando incessantemente, recomeçando, riscando, sobrecarregando, enchendo as margens, traçando palavras dum lado a outro, escrevendo vinte páginas para acabar uma, e, sob o esfôrço penoso do seu pensamento, gemendo como um serrador de pranchas...» «E, a face túrgida, o pescoço congestionado, a fronte vermelha, tendendo os músculos como um atleta que luta, batia-se desesperadamente contra a ideia e a palavra, apreendendo-as, emparelhando-as a seu pesar, mantendo-as unidas duma maneira indissolúvel pelo poder da sua vontade, apertando o pensamento, subjugando-o pouco a pouco com uma fadiga e esforços sôbre-humanos, e engaiolando-o, como um animal cativo, numa forma sólida e precisa.»[1] A sua correspondência está cheia de confissões amargas, as suas cartas, tôdas elas, teem alguma cousa da tortura que o persegue. Em tôdas se autobiografa e analisa, com uma resignação e uma amargura raro excedidas ou igualadas. Um dia escreve a Maxime du Camp: «estou-me tornando duma dificuldade artística que me desola», para depois escrever a Madame X.: «Não sei como algumas vezes os braços me não caem de fadiga e a minha cabeça se não faz em papas. Levo uma vida áspera, deserta de todo o contentamento exterior, e em que não tenho nada para me manter senão uma espécie de raiva permanente que chora algumas vezes de impotência, mas que é contínua. Amo o meu trabalho com um amor frenético e pervertido como um asceta; o cilício raspa-me o ventre...» Há uma carta em que, como um grito, se ergue[1] esta frase, que tudo em si resume, condensa e encerra: «a deplorável mania da análise esgota-me». E foi certo. [1] Consulte o leitor o esplêndido e paciente trabalho do Dr. José de Magalhães, _O Pessimismo no ponto de vista de psicologia mórbida_, Lisboa, 1890. Tese apresentada e defendida perante a Escola Médica de Lisboa. É um grosso volume de 500 e tantas páginas repleto do ótima prosa e excelentes informações sôbre Leopardi, Schopenhauer, Flaubert, Baudelaire, Amiel, etc. Foi afinal essa «deplorável mania» que fêz da sua vida um inferno e que mais depressa o levou desta para melhor. Emquanto a Balzac ouçamos o que das provas dos seu livros diz êsse outro grande artista e grande torturado que se chamou Theophilo Gauthier: «Linhas, linhas que partem de tôdas as palavras para as margens à direita e à esquerda, para cima e para baixo, conduzindo intercalamentos, incisões, mudanças, supressões, aumentos. Ao cabo de algumas horas de trabalho, dir-se-ia, um fogo de artifício pintado por uma criança. Do texto saem foguetes que estalam em palavras manuscritas. E são cruzes e sôbre-cruzes, estrêlas, sóis, cifras árabes e romanas, letras gregas e tôda a classe de sinais. Como as margens não chegam, cola bocados de papel com obreias e segue emendando, emendando sempre». Balzac corrigia tudo nas provas. Chegava a 10.ª ou 12.ª para que emfim pudesse ser impressa a fôlha. Morreu aos 50 anos de excesso de trabalho, de noitadas e de café e escreveu noventa e sete volumes. «L’argent partout l’argent, l’argent toujours: ce fut le persécuteur et le tyran de sa vie», diz Taine. Pois a-pesar disso foi tão artista que conseguiu resistir a uma das cousas mais irresistíveis:--a falta de dinheiro. A necessidade não subalternizou o seu talento até à transigência. A sua obra o demonstra. Mas Flaubert e Balzac ainda não são tudo. Temos Baudelaire, temos Gauthier, temos Annunzio, temos Maeterlinck, temos Valle-Inclan, temos os Goncourts.[1] Os Goncourts sobretudo. Gomez Carrillo, o intenso e interessante cronista espanhol escreve a propósito deles em um capítulo do seu livro _El Modernismo_, consagrado à _Arte de trabajar la prosa artistica_, o seguinte: «Flaubert mismo tenia ódios, pasiones, perezas, desesperanzas. Los Goncourts, no. Casi no fueran hombres. Fueran literatos. No adoraron sino las letras. Escribiron siempre con el mismo ardor, con la misma paciencia. Y lo que no fué literatura, belleza escrita, impresion estética, no les interesó nunca». Os Goncourts foram os chineses da prosa. Se alguêm os igualou em trabalho, nunca foram excedidos em paciência. Tôda a sua vida foi passada a polir frases, a burilar. Quando[2] um deles morreu, o outro teve a respeito do seu trabalho uma página frisante. É êle que tem a palavra: «Ainda o vejo lendo os quartos escritos em comum e que ao princípio não nos haviam satisfeito; vejo limá-los, poli-los durante dias inteiros com uma paciência irritável, mudando aqui um termo, acolá uma frase imprópria, mais alêm um rodeio impreciso; vejo-o fatigando-se e esgotando o cérebro em busca dessa perfeição tão difícil, tão impossível de alcançar com a nossa língua francesa, na expressão de sensações e de cousas modernas. Depois dêste trabalho ficava-se como morto, em um sofá. Só tinha vida para fumar. Quando escrevíamos, passávamos até uma semana sem sair, nem ver ninguêm. É êsse o único meio de fazer algo de bom». [2] O leitor que conhecer queira o trabalho de correcção nos manuscritos dos grandes escritores consulte _Le Travail du Style_, por Antoine Albalat, (Colin ed.) Paris 1905. Aí encontrará interessantes capítulos sôbre Chateaubriand, Flaubert, Bossuet, Pascal, Rousseau, Buffon, Hugo, Balzac, Fénélon, T. Gauthier, George Sand, etc. O livro é uma das cousas que mais trabalho dá. É preciso trabalhar, trabalhar muito, trabalhar sempre, para que êle tenha valor. Cada vez será mais difícil fazer um bom livro, um livro que fique. É necessário um enorme cabedal de conhecimentos, ilimitada paciência, faculdades próprias e, ainda mais, o _quelque chose_ de Chénier. Passou a época dos artistas ignorantes. As multidões vivem absortas na sua luta pela vida e são avaras de atenção que não seja para a sua dôr ou para o seu egoísmo. A soma ignóbil de talento que dá direito a ser lido só se consegue por duplicada soma de trabalho. Por isso os que não teem qualidades para a luta que não entrem nela. Serão fatalmente esmagados. Há, neste momento que estou escrevendo, em todo o globo, dez mil criaturas debruçadas sôbre as tiras de papel, scismando na maneira de ser grande. E pensar a gente que de todos êsses só vinte talvez, talvez nenhum, chegarão ao almejado êxito!! Agora, como remate, ¿quereis saber como Gomez Carrillo, um dos mais torturados e pacientes apóstolos da ideal perfeição do estilo, defende a _forma_, proclamando mesmo a sua soberania sôbre a ideia? «A Arte deve ser a Arte sem teorias, como a Beleza é a Beleza; como o Amor é o Amor; como a Vida é a Vida. «Porêm isto não o podeis compreender vós outros, os pesados cultivadores da rotina; vós outros, os que creis que se escreve para dizer algo; vós outros, os que ignorais que uma página bela, não tem mais deveres que uma bela rosa; vós outros, que só considerais a frase como um veículo; vós outros os lamentáveis irreligiosos da grande religião do ritmo.»[3] [3] E. Gomez Carrillo--_El Modernismo_. Madrid. A religião do ritmo?! Eu sei. Tem no seu _Flos Sanctorum_ os nomes de Flaubert, Balzac, dos Goncourts, Gauthier, de todos êsses torturados e até o do próprio Gomez Carrillo!!! * * * * * Eça de Queiroz foi um dos maiores atormentados do Estilo em Portugal. Cada página das suas representa um trabalho imenso, excessivo, extraordinário, e se considerarmos a sua obra em globo veremos que o escritor poderia ter deixado o dôbro dos volumes. Os seus originais eram tão pacientemente trabalhados como os de Flaubert, as suas provas tão caprichosamente emendadas e anotadas como as de Balzac. A espontaneidade aparente do seu estilo era trabalhada, porque Eça era um escritor de gestação difícil e produção morosa e tardia. Os seus íntimos conhecem bem isto e de-certo se não esqueceram daquelas manhãs em que êle, depois de almôço, e de ter enrolado um fornecimento de cigarros, uns cigarros duma propositada magreza ideal, se sentava para trabalhar; e roendo as unhas até ao sabugo, diante dos largos quadrados de papel a encher, os cigarros iam desaparecendo em fumo, as horas sumiam-se em nada e o papel permanecia branco, sem que uma linha da sua letra trémula fôsse rasgar aquela neve obsidente. Quando a ideia acorria e os esquadrões de letras desfilavam, principiava então o verdadeiro labor. O rascunho breve se cobria de emendas. E, quando não ia fora, por inaproveitável, ficava uma cousa lastimosa. Era o caos. Uma confusão que só êle entendia e que a mais ninguêm aproveitava. Primeiro que daquela baralha de letras saísse algo que o satisfizesse, era uma seca! A frase era construida de tôdas as maneiras possíveis e imagináveis: o vocábulo rebuscado, escolhido e modificado vezes sem conta. Quantas vezes sucedeu frases completas, mesmo já depois de compostas, _irem à caixa_, quando não períodos inteiros. E êle prosseguia na sua penosíssima tarefa, dando aqui e acolá um tom, sombreando ou diafanizando a luz, buscando acordâncias, regulando o conjunto, estudando a harmonia cantante e vibrada dos períodos, fugindo aos solavancos, para dar essa prosa que, à sua semelhança, é dandinante mas pobre, elegante mas vincada por muitas e multíplices torturas. Essa ironia, o traço caricatural que é a linha mais caracteristica, mais celebrada e mais vibrante, a razão de ser da sua obra, vinha-lhe de longas fadigas. Depois essa fadiga mais acentuadamente nos aparece se considerarmos a pobreza do seu vocabulário e a trabalheira doida de com êle, com um número bastante restrito de termos e expressões, tirar cambiantes e efeitos. É mesmo essa pobreza de lexicon que lhe faz dar, quando se coteja a sua prosa com a prosa camilesca, um tom de subalternidade muito evidente. Camilo já não tinha êsse labor. A sua prosa saía pronta. Fazia-se no cérebro e a sua trasladação ao papel era um trabalho puramente mecânico. Não emendava quási nada e possuia uma memória de ferro. E a propósito de memória, um caso curioso: Contava o Teixeira, tipógrafo da Cancela Vélha, que uma das vezes que se compunha uma obra de Camilo sucedeu perder-se um quarto de original. Isto significava, alêm da perda, o ter que aturar o génio de Camilo, demais tendo êle recomendado a máxima cautela com os extravios, visto não haver cópia. Compôs-se tudo a ver se aparecia, mas qual!... E não houve remédio senão contar o caso ao autor, que ficou furioso mas prometeu ligar o espaço e recompor aquilo de qualquer maneira. De memória recompôs o quarto e a impressão fêz-se. Passam-se anos, e numa arrumação de oficina, o quarto aparece. Confrontou-se por curiosidade e não se lhe achou diferença nem duma vírgula!... Henrique Marques, o autor da _Bibliografia Camiliana_, que me referiu êste episódio, assegurou-me tambêm que as obras de Eça eram primitivamente compostas em tipo vélho, isto que lho confessara Genelioux, um dos sócios da casa editora. E só depois dele ter pôsto o torturado e custoso «Pode imprimir tendo todo o cuidado com as emendas», é que então definitivamente se compunham. Não se julgue que êste tormento indefinível, esta ânsia da forma, que lhe fazia sempre duvidar do que estava feito, era só nos seus livros. Os seus artigos sofriam a mesma cousa. Os originais não são nada, ou quási nada do que o público conhece. Entre o original e o impresso existe por via de regra meia dúzia de provas fantásticas, riscadas, entrelinhadas por emendas, parágrafos inteiramente mutilados e substituidos, palavras alteradas, emendas feitas sôbre que colava bocadinhos de papel com outras emendas, uma cousa, emfim, que deve ter feito cabelos brancos a muito tipógrafo do seu tempo. Eu tive em meu poder as últimas provas do _Adão e Eva no Paraizo_[4] e pude ver bem o que assevero.[5] [4] Prefácio ao Almanach Encyclopedico. A. M. Pereira. 1896--Pag. XXI-LI. [5] Reproduzido um dos graneis, nos Serões (Janeiro de 1907 Art. _Como trabalham os nossos escritores_). Pertencem hoje ao jornalista e meu ilustre amigo José Sarmento, que amabilíssimamente as cedeu. Um dos seus livros dá um exemplo bem flagrante da preocupação do estilo, que tão intensa é nele, e mostra a soma extraordinária de paciência e de trabalho que lhe custavam as suas páginas. Êsse livro é _O Crime do Padre Amaro_, que foi publicado de três maneiras diferentes. E de tôdas as três vezes o estilo é outro e a acção se modifica. A primeira vez que _O Crime do Padre Amaro_ foi publicado foi em 1875, na _Revista Ocidental_. Em 1876 publicava-se pela segunda vez, primeira em volume. (Tipografia Castro & Irmão). A esta edição, chamada DEFINITIVA, escreveu Eça um prólogo justificativo: «_O Crime do Padre Amaro_ foi escrito há quatro ou cinco anos, e desde essa época esteve esquecido entre os meus papeis--como um esboço informe e pouco aproveitável. «Por circunstâncias que não são bastante interessantes para serem impressas--êste esboço de romance, em que a acção, os caracteres, e o estilo eram uma improvisação desleixada, foi publicado em 1875, nos primeiros fascículos da _Revista Ocidental_, sem alterações, sem correcções, conservando tôda a sua feição de esboço, e dum improviso. * * * * * «Hoje _O Crime do Padre Amaro_ aparece em volume,--refundido e transformado. Deitou-se parte da vélha casa abaixo para erguer a casa nova. Muitos capítulos foram reconstruidos linha por linha; capítulos novos acrescentados; a acção modificada, e desenvolvida; os caracteres mais estudados, e completados; tôda a obra, emfim, mais trabalhada. «Assim _O Crime do Padre Amaro_ da _Revista Ocidental_ era um rascunho, a _edição provisória_: o que hoje se publica é a obra acabada, a _edição definitiva_». ¿Calcularão, depois do que fica dito, que as correcções ficaram por aqui e que esta é como se assevera a _edição definitiva_? Pois não é. A edição de 1889, terceira, que tenho presente, avisa no frontispício que é «inteiramente refundida, recomposta, e diferente na forma e na acção da edição primitiva».[6] E ficou sendo esta a definitiva, porque a outra não escapara à grande fúria de correcções e ao crescente desejo de Perfeição, que foi a obcecação perpétua da vida do escritor. [6] Entre a edição de 1876 e a de 1889 a que me refiro, há outra de 1880, já da Casa Chardron, que não pude ver. O confronto entre as três edições que tenho presentes,--a da _Revista Ocidental_, a de 1876 e a de 1889--basta porêm, para demonstrar o que pretendo. Ao anunciar a edição de 1880 a casa editora, (senão o próprio Eça) dizia na _Bibliografia Portuguesa e Estrangeira_ (Pôrto 1880-2.º ano n.º 1, pag. 19), que o autor do _Crime_ refundira inteiramente o romance que era antigamente de 300 páginas e lhe entresachára 400 páginas novas. E mais diz: «É curioso neste trabalho seguir as influências que levaram o autor a refazer o seu livro: nos dois ou três primeiros capítulos vê-se que a sua intenção é simplesmente corrigir e aperfeiçoar o estilo e estudar mais profundamente os caracteres: nos dois capítulos seguintes começam a aparecer as scenas, os incidentes novos, mas o fundo ainda permanece o mesmo; é no sexto capitulo que vemos entrar o primeiro personagem novo; e daí por diante, então, o autor pondo de parte inteiramente o romance antigo, arrastado pela lógica do seu assunto, attraido pelos horizontes novos que êle lhe oferece, _decide-se a escrever tudo de novo_, como se tratasse dum livro novo... Êste _novo livro_ parece todavia afastar-se dos processos do realismo e o autor como que procura criar unia escola nova individual, e sem ligações com as que existem.» Vou pois cotejar três edições diferentes e assim se poderá fazer uma ideia do trabalho insano que só êste volume custou a Eça de Queiroz. Na edição de 1875 o romance começa por uma descrição de paisagem ao esmorecer da tarde, um colóquio entre uma rapariguita vaqueira que leva o gado à bebida e um garotete, _O Moriço_; e pela scena da morte do pároco José Miguéis. _O Moriço_ atira uma pedra à rapariga, acerta na vaca que foge fazendo espantar a égua que o padre montava e que vinha pela alameda. Fala Eça: «Mas então a égua branca que vinha, recuou, deu um salto de repelão e o homem destribou-se, oscilou pesadamente e foi cair com um som baço sôbre as mós de moinho, onde ficou espapado de bruços, com os braços abertos, e um fio de sangue escuro, delgado, que escorria pela pedra, e caía gota a gota no chão.» O pequeno atirou-se à estrada, gritando. Dois trabalhadores que passavam correram. --Que é lá? que é lá? E um, forte e espadaúdo, ergueu o homem por debaixo dos braços: o corpo ficou todo pendente, descaído, e os fios de sangue escuro corriam-lhe pela cara. --Queres tu ver!? Ai que é o sr. pároco! E então tinham vindo os britadores da estrada, as mulheres que levam o saibro. O apontador das obras, um louro de boné de oleado e óculos azúis, amarrou-lhe um lenço em tôrno da testa. Um vélho apareceu logo, em mangas de camisa, todo esbaforido, com uma escada curta: estenderam-lhe em cima uma manta vélha e a tampa duma canastra e estiraram o corpo do pároco, hirto, com o seu ventre proeminente, a camisa ensangùentada, o rosto amarelo com nódoas roxas, os lábios cheios duma espuma sangùínea; e emquanto os dois homens o levavam como numa maca, quási correndo, os seus dois braços pendiam, com as mãos lívidas, felpudas e cheias de cabelos». Levam o corpo «à botica ao pé da Sé» onde «o Carlos o boticário» depois de lhe picar «a veia com a lanceta» diagnostica uma apoplexia. «Assim ficou vaga a paróquia da Sé», e assim termina o 1 capítulo que nas edições subseqùentes foi totalmente eliminado. Nestas o padre morre duma apoplexia sim, mas de madrugada, em seguida a «uma ceia enorme» que na edição de 1889 se diz ser de «peixe». Na edição de 1876 (a definitiva) o romance começa: «Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangùíneo e grosso, que passava por um _grande comilão_. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica--que o detestava--costumava dizer, sempre que o via passear na Praça depois da sesta, com a cara afogueada de sangue, todo enfartado de indigestão: --Lá anda a gibóia a esmoer. Um dia estoira! Tinha com efeito _estoirado_ depois duma ceia enorme. Ninguêm o lamentou--e foi pouca gente ao entêrro». E na edição de 1889: «Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangùíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo _comilão dos comilões_. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da botica--que o detestava--costumava dizer, sempre que o via saír depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado: --Lá vai a gibóia esmoer. Um dia estoira! Com efeito estoirou, depois duma ceia de peixe--à hora em que, defronte, na casa do dr. Godinho, que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguêm o lamentou, e foi pouca gente ao seu entêrro». * * * * * É nesta última edição que acontece, como reminiscência à morte trágica do pároco, descrita na _Revista Ocidental_, o padre Natário cair da égua e quebrar uma perna. Outro exemplo curiosamente demonstrativo do processo de trabalho do escritor e das torturas que êle passava antes de dar às suas criações a beleza, a elegância e a sobriedade artística que êle imaginava, é a figura do cónego Dias. * * * * * [Sidenote: 1875] «O cónego Dias não era simpático aos liberais de Leiria. Era um homem redondo e baixo, com um ventre saliente que lhe enchia a batina, as pernas curtas e esguias, e fortemente pousado nuns pés chatos, onde reluziam as fivelas: a cara era mole e cheia dum pálido baço, as olheiras papudas, e o beiço descaído e espêsso--e todo o seu aspecto, com um cabelinho curto grisalho, fazia pensar nas vélhas anedotas de frades lascivos, enfartados de pecado.» * * * * * [Sidenote: 1876] «O cónego Dias era muito conhecido em Leiria. Era um homem redondo e baixo, com um ventre saliente que lhe enchia a batina, as pernas curtas e esguias, uma cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço descaído e espêsso; e todo o seu aspecto fazia lembrar as vélhas anedotas de frades lascivos, enfartados de pecado.» * * * * * [Sidenote: 1889] «O cónego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o ventre saliente enchia-lhe a batina, e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espêsso faziam lembrar vélhas anedotas de frades lascivos e glotões.» * * * * * Todo o livro passou por estas sucessivas transformações. Êste contínuo e trabalhoso labor de aperfeiçoar, de burilar a prosa, sempre em ascendência e sempre insaciado deu como resultante essa prosa fina que nós conhecemos pela prosa do Eça. Na 1.ª edição João Eduardo não ataca os padres. Fala-se, é certo, num comunicado acusando o cónego Campos, mas isso muito vagamente. João Eduardo não conhece ainda Agostinho Pinheiro, o redactor da _Voz do Distrito_, que só aparece em 1876, e sucumbe a maquinações urdidas por Natário, que vê nas insinuações dum jornal, que se refere a um padre e à _flor de certo canteiro_, obra sua. Não há mesmo no rompimento entre João Eduardo e Amélia referência a artigos ou jornais. O dr. Godinho chama-se então dr. Silves. O Dr. Gouveia só aparece na 2.ª edição. Não consultado por João Eduardo sôbre moral, mas chamado à Cortegassa a ver D. Josefa, dando por essa ocasião conselhos a Amélia. Já tem aquela independência, e aquele modo de pensar, que depois lhe conhecemos. Na 1.ª e 2.ª edição o tipógrafo com quem João Eduardo acamarada é um pulha. Homem que uma mulher sustenta, criatura reles, _souteneur_ e madraço, bêbado e estúpido. Na edição de 1889 não. O tipógrafo é honesto, sério, chama-se Gustavo, escreve nos jornais uns artigos «de Política Estrangeira, onde introduzia frases poéticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar e os opressores do povo, chorando a escravidão da Polónia e a miséria do proletário.» Sustenta mãe vélha e doente e é económico. O próprio tio Osório, taberneiro, o aprecia por êle ser «moço instruido e de pouca troça». Gustavo tem mesmo as ideias de que «o trabalho é dever, o trabalho é virtude!» E despedindo-se vai para a tipografia. João Eduardo não se embriaga e não desafia já tôda a gente. É tambêm só na edição de 1889 que entra no romance a figura decoral da Tótó. Vê-se que, se a acção do romance é na sua tessitura a mesma, muito ganhou o _detalhe_. Foi mesmo essa preocupação que tornou o volume encorpado, o estirou e lhe cerziu melhor as junturas da acção às vezes sem a coordenação que a técnica exige. O período ganhou em consistência. A frase é mais polida, mais vigorosa, visto que é mais breve, mais elegantemente concisa. E tambêm só aqui aparece a senhora Carlota, ama, e o marido, visto que na 1.ª e 2.ª edições é Amaro quem se desfaz do fardo, atirando-o ao rio. A figura episódica do abade Ferrão aparece tambêm nesta edição, que é onde Amaro nos sai poeta. Como se vê, o romance foi todo feito de novo. Há capítulos alterados na ordem do seguimento antigo, outros cortados e outros desfigurados. Tudo foi mexido. Todos os livros de Eça passaram por êste monotizante trabalho de correcção. Corrigir nestas condições é mais difícil do que criar, porque na criação há variedade. Para exemplificar o processo do escritor busquei _O Crime do Padre Amaro_, em que a sua maneira de trabalho mais se evidencía. _O Crime do Padre Amaro_ mostra-o públicamente. Flaubert trabalhava os originais inúmeras vezes, Daudet recompôs a _Sapho_ uma porção delas. Mas êsse trabalho ficava desconhecido do grande público e é hoje amorosamente estudado sôbre os originais. O volume, quando saía para a impressão, saía pronto. _O Crime do Padre Amaro_ não. Saíu duas vezes para o público, provisóriamente. Calcule-se em dois borrões para cada uma das edições citadas e teremos que o livro foi escrito seis vezes. Se existissem os originais e as provas, que são de tanto ou mais interêsse que o manuscrito, seria isso um estudo curioso, estudo que outrem fará se quiser e de que isto são simples apontamentos. Todavia mostram bem o esfôrço que custou ao escritor a sua obra e parecem justificar a frase habitual de Chateaubriand «de que o talento não é senão uma _grande paciência_». E, como se vê, a paciência contribuiu muito para o talento de Eça. É preciso trabalhar, trabalhar muito para deixar uma boa página. Um dos que o conseguiu foi Flaubert. Mas não devemos esquecer que Flaubert escreveu um dia a Maxime du Camp: «Morro de cansaço. Escrevi êste mês vinte páginas, o que é enorme para mim». FIM Índice PÁG. Dedicatória 5 Crónicas imorais 7 Juízo do ano 11 Artistas 17 O Jettatore 25 Os mineiros 33 Um sábio português 41 Emigrantes 49 Gabriéllo d’Annunzio 55 Um poema 63 Oriente 71 As flores 79 Quanto custa uma mulher? 87 Teatro nacional 95 D. João da Câmara 105 Arte de Reinar 113 Religiões 121 Gomes Leal 129 Naufrágios 137 Goron 145 Mercedes Blasco 153 A Deliciosa Mentira 161 Estátuas e comendas 169 A tristeza profissional 177 A morte 185 Poetas 193 O Tempo 201 A decadência do jornalismo em França 209 O Carnaval 217 Academias 225 O passado 233 O calor 241 Os bastidores do Génio--Zola--Wagner--Gorki 249 A tortura do Estilo--Eça de Queiroz 259 ALBINO FORJAZ DE SAMPAYO Gente da Rua Preço, 400 réis EDITORES: SANTOS & VIEIRA «Só agora, na publicação do 2.º milhar, me foi dado ensejo de ler a novela «Gente da rua», de Albino Forjaz de Sampayo. Sôbre três fulcros assenta êste trabalho:--talento, alma e observação; neles se firma para se impor e ser aureolado. Os capítulos não obedecem a uma disciplina marcada e sustentada; a sua acção torna-se por vezes independente e livre, mas convergem todos para o fim a que o autor quere chegar. Sente-se o cronista enfronhado no novelista a lutar por seus movimentos livres, e a querer desembaraçar-se das pióses do convencionalismo, para a irradiação dos seus vôos e pousar onde lhe aprouver. Desta independência de processo resulta, porêm, a beleza, que vem sempre da sinceridade, e que Forjaz de Sampayo enriquece com a sua prosa germinativa, cheia de frescura e desafogada. A «Gente da rua» é tôda ela sentida. O autor ouviu e compreendeu as palpitações de tôdas aquelas almas, e tão bem as estremou, que nem por um momento se confundem. Cada uma tem o seu corpo, e quando postas em contacto, as chispas são diferentes. Cada figura surge nítida e perfeita; cada sentimento, exacto e lógico. Naquele _sabbat_ de dôr, miséria e velhacaria, em que a flor-luz da ingenuidade brota do espírito simples de Silvino, com um tom branco de luar a adensar-se em mortalha, as personagens agitam-se sem se taparem umas às outras, o meio desenha-se com todo o seu carácter, o ambiente está perfeitamente definido. Não se lobriga uma contrafacção, não se percebe um exagêro, não se dá conta de uma fraqueza. É aquilo mesmo. Ha idéas firmes, expressas com um forte poder sintetico:--o charuto caro, homenagem da Ordem, que Claudio vai fumando à saída do Govêrno Civil, é já um ferrete a marcar o traidor; o raciocínio de Silvino--«Diógenes buscara um homem, não buscara uma alma. E uma alma era tudo. Êle encontrara a sua. E satisfeito achava Diógenes parvo»--é um encanto de rama filosófica polvilhada de humorismo. «Sabes? Tu és o 48.»--atirado ao romântico e tímido Silvino pela Corália, na situação e posição em que o autor a coloca, constitúi uma clara e concisa nota dum impudor inconsciente. Os destinos são todos determinados logo aos primeiros passos com que as personagens se nos dirigem, desde o conselheirismo que espera Claudio até o suicídio para onde Silvino desliza sem o menor solavanco. O da dengosa e olheirenta Elisa adivinha-se-lhe nas primeiras linhas que a apresentam, como o da mãe fica marcado quando se instala à cabeceira do hóspede, e o da pobre corista, irmã _da do Pôrto_, se vislumbra em terras do Brasil. E nem um só deixa de seguir em linha recta, mais ou menos acompanhado pelas peripécias da vida, mas sempre lógico e certo. O novelista não amarfanhou de mais aquelas almas no sofrimento; deixou-as apenas correr o seu destino, que não podia ser outro, e foi-lhes recolhendo o perfume ou a pestilência, conforme eram flores ou estrume. Não suavizou, nem carregou, não fêz poesia, nem ouriçou a realidade. Foi apenas sincero, natural e artista, e com estas fôrças, construiu a sua bela obra, que merece ser lida, porque não abundam as do seu quilate no nosso mercado literário; pelo contrário são raras. Forjaz de Sampayo chegou depressa ao lugar de honra e nele se mantêm firme e forte. A sua prosa, rica em variedade de expressão e côr, dá-lhe uma individualidade segura--dispensando-lhe o propósito--seja-me permitido o ligeiro reparo--de alguns heretismos de linguagem, por preocupação artística, de que Fialho e Eça, na sua primitiva maneira, tambêm foram achacados, até que se meteram na boa ortodoxia, principalmente o autor das «Cidades e Serras». A Forjaz de Sampayo há-de suceder-lhe o mesmo, que não precisa de tais recursos quem tem o seu pujante talento, conhece tanto a sua língua, e dispõe dum vocabulario tão rico como preciso. Tendo-se afirmado já em outras obras, agora com a «Gente da rua» revelou-nos cento e cincoenta páginas duma verdade que a própria verdade beija, duma beleza literária que encanta o espírito, e duma filosofia em que a bondade e o castigo se irmanam, um trecho da vida humana, como se o vivera e o sentira em tôdas as suas figuras. É o seu maior elogio, creio. EDUARDO SCHWALBACH. Do _Jornal de Noticias_. Obras de Albino Forjaz de Sampayo =Gente da rua= 400 réis =Lisboa trágica=, 2.ª edição 400 » =Palavras cínicas= 300 » =Prosa vil= 400 » =Grilhetas= No prelo =Dores do Mundo=, de SCHOPENHAUER, tradução prefaciada por _Albino Forjaz de Sampayo_ 300 réis Obras de Leão Tolstoi =A Adolescencia= 300 réis =Amor e Liberdade= 500 » =Aos Operarios= 100 » =Os Cavalleiros da Guarda= 500 » =A Felicidade Conjugal= 500 » =A Infancia= 300 » =Lucta de Heroes= 300 » =Os Martyres do Dinheiro= 500 » =A Mocidade= 500 » =A Morte= 400 » =A Odysséa d’um Viajante= 500 » =A Palavra de Jesus= 400 » NOVIDADES LITERÁRIAS =O Livro das Melancolias=, por PAULO MANTEGAZZA, versão de _Arlindo Varela_, 1 vol. 300 réis =Sonetos=, de BOCAGE, nova edição escrupulosamente revista e com o retrato e a biografia do poeta, 1 vol. 300 » =O que morreu de amor=, por JULIO DANTAS, 3.ª edição, 1 vol. 400 » =Dicionário de Rimas=, por COSTA LIMA, com uma Poética histórica por _Theophilo Braga_, 2.ª edição considerávelmente aumentada, 1 vol. 800 » =Um Serão nas Laranjeiras=, por JULIO DANTAS, 2.ª edição ilustrada No prelo *** End of this Doctrine Publishing Corporation Digital Book "Crónicas imorais" ***