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Title: Album chulo-gaiato ou collecção de receitas para fazer rir
Author: Anonymous
Language: Portuguese
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*ALBUM*

*CHULO-GAIATO*

OU

COLLECÇÃO DE RECEITAS PARA FAZER RIR

     *     *     *     *     *

BRUXELLES
TYP. BRUYLANT-CRISTOPHE ET C^ie
Rue Blaes, 31
1862



*A TENTAÇÃO DE SANTO ANTONIO*

FANTASIA BURLESCA


      «O mundo acabar
      Penso que vai,
      Ai ai! ai ai!
      Vou apitar!
      Tão rodeado
      Estou de diabos
      Com unhas e rabos
      D'assarapantar!
      Raios, coriscos,
      Bombas e traques
      E mais petiscos
      A rabiar
      E a estoirar
      Em torno de mim!
      Zás catrapaz!
      Se Deus piedade
      Não tem do frade,
      Grande caurim
      Me vai pregar
      Dom Satanaz!»

      Todo a tremer, Santo Antonio
      Assim se poz a gritar
      Quando o travesso demonio
      Em pessoa o foi tentar.

        Sae do inferno
      Troça bravia
      De quantos demos
      Por lá havia.
      Em vassouras
      Vêem montados,
      Com tesouras
      E machados
      Sobraçados;
      Bem armados
      D'escupetas,
      Estes coçam as carécas,
      Aquelles fazem caretas,
      Tocando grandes trombetas,
      Cavaquinhos e rebecas.
      Vem um tocando fagote,
      E outro com um chicote
      Já começa a sacudir
      O habito empoeirado
      Do alegre frei Antonio;
      Mas o frade atomatado
      Logo se põe a fugir
      De tão chibante demonio,
      Correndo conforme póde
      E gritando todo afflicto:
      «Aqui d'el-rei, quem m'acode!
      Ó da guarda! Eu apito!»

        Dous feios diabos
      Mui cabelludos,
      Cornos agudos
      E longos rabos,
      Entram na cella
      Do bom santinho;
      Vão-lhe á panella
      Que ao lume tinha
      C'uma gallinha
      Paio e toucinho,
      Tiram-lhe a tampa,
      Comem-lhe tudo,
      Deitam-lhe trampa;
      Vão-lhe á borracha
      Que tem o vinho
      N'um esconderijo;
      Bebem-lhe tudo
      Deitam-lhe mijo.
      Á tal cambada
      Não escapa nada
      Tudo se acha
      Quebra e estraga
      Mija e caga.

      Uma pequena bonita
      Tambem lh'entra na caverna
      Toda lépida e catita,
      E começa a levantar
      O ballão, e linda perna
      Logo se põe a mostrar...
      «Ai Jesus! diz Santo Antonio
      Vai-te d'aqui ó demonio
      Não me estejas a tentar...»

        «Façam dançar
      Contradançar
            Pular
            Cantar
            Saltar
      Esse santinho»
      Já diz gritando
      Um diabinho
      Que está tocando
      A desgarrada
      N'um cavaquinho.

        Eis toda aquella
      Endiabrada
      Troça bravia
      O bom do Santo,
      Que já n'um canto
      Se escondia,
      Vai buscar.
      E a tocar
      N'uma panella
      Com a tranca
      Da janella,
      N'uma banca
      O faz dançar
            Pular
            Saltar
            Cantar.

      Até Plutão, o rei demonio,
      Quiz assistir á funcção,
      Pois quer ver se frei Antonio
      Se livra da tentação;
      E p'ro que der e vier
      Comsigo traz a mulher.

      O Santo todo encolhido
      No meio d'aquella canalha
      Cada vez mais se atrapalha;
      Um demo mais atrevido,
      Dá-lhe muita bordoada,
      E outro feito cupido
      Vem por traz com uma setta
      E no coração lh'a espéta...
      A nada se move o frade
      Modelo de castidade!!

        Vendo porém
      Que fim não tem
      A seringação
      Fórma tenção
      De s'esconder;
      E mui callado
      Vai-se a metter
      Dentro da cama;
      Mas lá recúa
      Todo espantado
      Pois uma dama
      Toda janota,
      (Ainda que nua,
      Mesmo em pelóta)
      Acha deitada
      Em seu lugar...
      A concubina
      Com uns olhinhos
      Muito espertinhos
      A scintillar
      Já o fulmina
      E quer tentar...

        A tal menina
      É mesmo boa;
      Se Prosepina
      É em pessoa!

      Santo Antonio atrapalhado
      Contempla incendiado
      Aquella erotica scena,
      E em frente da belleza
      De coisas que nunca viu...
      Ao poder da natureza,
      Com bem custo resistiu...
      Mas quando quasi tentado
      Com os olhos da pequena,
      Vai a cair na esparrella
      De saltar a cima della,
      Lembra-lhe Deus derepente
      Que vai cair em peccado,
      Fica todo aforçurado
      E como que inspirado,
      Vai buscar muito apressado
      D'agua benta seis canadas
      E nos demos imponente
      Ferra boas hysopadas.
      Estoira que nem castanhas
      Toda aquella diabada,
      Cada demo dá um tiro
      Que nem uma peça raiada;
      E fugindo a bom fugir
      Tudo vai em debandada,
      Santo Antonio de contente
      Dá tamanha gargalhada
      Que até no traseiro sente
      A fralda toda cagada.

      «Se não vou buscar
      Logo tão depressa
      A tal agua benta,
      De certo me tenta
      Aquella travêssa...
      Olhem que é ladina,
      Mesmo de tentar,
      A tal Prosepina!
      Mal empregado pexão
      Para o dente do Plutão!»

      Lamenta tão pesaroso
      A má sorte da pequena
      O famoso Santo Antonio,
      Que parece já ter pena
      De se mostrar tão teimoso
      Em resistir ao demonio...



*O MARIDO E O COMETA*

DIALOGO CONJUGAL


Era uma vez um marido, anno da graça 1861, mas um marido verdadeiro modelo
de todos os maridos. Chamava-se o sr. Carneiro; seu hymeneu fôra
devidamente legalisado e recebera as bençãos da egreja. Era pois esposo,
tanto quanto se póde ser, legal, social, religiosa, e christãmente, da
amavel, bonita e joven Amelia, a quem se ligára com o intuito de perpetuar
a raça dos Carneiros, fim este que infelizmente ainda não alcançára,
apesar da lua de mel ter já o seu anno e meio, e este gasto nas fadigas e
diligencias de que um marido póde dispôr para multiplicar a sua raça. O
sr. Carneiro emagrecia a olhos vistos, e estafava-se em vão. O nosso homem
era um modelo de bondade e simplicidade; era bom e affavel e manso, não
como Carneiro que era, mas como um borrego; nunca fizera mal a pessoa
alguma, e ninguem tambem no mundo podia dizer a mais pequena coisa em seu
desabono. Com taes e quejandos titulos á estima de seus concidadãos, o sr.
Carneiro tinha conseguido tornar-se um dos maridos mais felizes do seu
bairro, que era o Alto.

Mas o homem nunca está satisfeito sobre a face da terra: o sr. Carneiro
era homem, e por conseguinte tinha aspirações. O seu ideal era a vida
bucolica, amava a chicoria e o feno, adorava os rabanetes, e sonhava
pastoras e zagallos; não podia viver na capital. Suspirava constantemente
pelo chocalho campestre, pelas felicidades ruraes, e a sua paixão pelo
campo não podia achar lenitivo nos esgalhos do Rocio, nas ervas do Passeio
Publico, nas couves da praça da Figueira.

Por fim os seus sonhos tiveram uma realidade, comprou uma quinta na aldea
de Pae Pires, e transferiu para alli os seus penates. Alli, n'uma
habitação modesta, no declive de um serro, vendo ao longe o Tejo e as suas
faluas, passava o sr. Carneiro uma vida santa, junto de madama Carneira,
como elle lhe chamava, cultivando as suas cebollas, regando a sua horta,
capando o seu meloal.

Ali fazia admirar á sua cara metade a grossura dos seus pepinos ou a côr
rubicunda dos seus tomates.

--Vês, menina, lhe dizia, como está lindo este meu pepino; olha para esta
perfeição, parece que d'hontem para hoje cresceu meio palmo. Repara-me
para a belleza d'estes tomates! que côr e que tamanho...

--É verdade, cada dia estão mais vermelhos...

--E este melão?

--Cresce a olhos vistos, como já está redondinho!

--Ah! filha! não é como tu, segue a lei da naturesa; tudo cresce e se
arredonda cá n'este mundo... só tu, meu anjinho... apesar das minhas
diligencias, persistes em não arredondar essa...

--Que bonitas estão as batatas.

--Eu sempre as tive boas.

--E que bellos grãos de bico!

--Os grãos são o meu forte...

--Como a vinha vae arrebentando...

--Tudo arrebenta e produz... só tu não me produzes nada... (dá um profundo
suspiro).

--Que animal é aquelle que está bebendo além, no rio?

--Julgo que é um burro, queridinha.

--Engana-se, é boi, senhor Carneiro.

--Boi, boi! será... mas não lhe vejo as armas...

--Jesus! que bicho tão feio que eu ia pisando! Mate-me este bicho, sr.
Carneiro... que nojo!

--Ah! ah! ah! Ora não ha uma tolinha assim! um caracol, pois mette-te medo
um caracol?

--Olhe, só os paus que elle tem; t'arrenego! não se veem senão animaes
bicorneos por estes sitios... eu que sempre embirrei com estes bichos!

--Não te zanques commigo, menina... isto é o animal mais innocente que eu
conheço...

--Que quer? não está mais na minha mão; diga lá o que disser, n'este ponto
não posso vencer a minha repugnancia...

(O marido toma o caracol entre dois dedos.)

--Olha vês, não faz mal. Caracol, caracol, põe os corninhos ao sol...

--Deite isso fóra... que me ataca os nervos...

--Socega, filha, ja deito...

--Esteja quieto! tire isso para lá!

--Então não vês que já o não tenho na mão! Pobre amorsinho, que medo que
teve... mas agora dá um beijinho... (quer abraçal-a.)

--Vá primeiro lavar essas mãos; que nojo, não sei o que me parece a tal
reima dos caracoes...

--Vamos limpal-as aqui na relva... senta-te aqui ao meu lado...

--Era o que faltava! para me escangalhar o balão.

--Ah! trazes balão? (vae para apalpar.)

--Esteja quieto que me faz cocegas!

--Tem a saia cheia de nodoas verdes...

--São ervas pisadas.

--E n'um sitio esquisito!

--Não sei quem me poz n'este estado...

--Eu decerto não fui. Seria hontem na quinta do Alfeite, quando te
perdeste no labyrintho...

Ah! sim, quando o primo Montenegro me lá foi buscar... que bom rapaz que é
este nosso primo e hospede... se não fosse elle ainda estava a estas horas
em procura da saída...

--E como elle soube entrar e saír com a mesma facilidade... como elle sabe
d'aquelles torcicolos...

--É porque sabe desenho.

--Mas sentemo-nos, a erva está tão fresca. Com o calor que está ha de ser
um prazer... pódes até levantar as saias para apanhar mais fresco...

--Obrigada, fresca estou eu...

--Que bella noite, que ar tão puro! como é bom ver as estrellas, assim, ao
pé d'uma linda rapariga como tu!

--Digo-lhe que tenho frio, estou fria que nem uma pedra...

--Pois eu estou quente que nem uma braza...

--É feliz.

--Podia sel-o... se quizesse... não me resista... ora está agora com medo
do seu Carneiro... eu sou sempre o mesmo, aqui e em casa...

--Esteja quieto, senhor, agora aqui no meio da rua...

--Estamos em nossa casa, não offendemos a moral publica...

--Faz luar como de dia...

--Melhor se vê o que se faz...

--São coisas que não gosto de fazer contra vontade!

--Tambem, não sei quando tem vontade!

--Olhe que se espeta nos arcos do balão.

--Maldita moda que cá havia de vir!

--Bem sabe que sou delicada... olhe que me ataca os nervos a mais pequena
coisa...

--Pequena, pequena! pois esta não é das maiores...

--Pelo que vejo quer-me ver doente... já estou com uns arripios...

--Olha, embrulha-te no meu paletot... (aproxima-se ainda mais da mulher)
apertemo-nos bem um contra o outro... assim, assim... vês? aposto que
d'aqui a cinco minutos estás a suar em bica...

--Jesus! que scena! olha se algum visinho vê... que quadro vivo este!

--Estou vendo que o não fazem todos! (Amelia geme e suspira, o que faz
suspender Carneiro.) Mas emfim, se estás incommodada...

--Incommodada não é... mas... estas coisas tocam-me sempre os nervos...

--É a peior coisa que ha, é uma mulher nervosa...

--Sinto não sei o que, cá por dentro...

--Isso é agora... o que faria se...

--Sinto um peso...

--Mas em que sitio? (Áparte.) Se fosse na barriga...

--Por todo o corpo.

--Elle em alguma parte ha de ser... no peito, na cabeça, no ventre?

--É ao pé do ventre... não me sinto bem, parece-me que vou desmaiar...

--Louvado seja Deus! és muito delicada... sempre perdes as forças nestas
occasiões!

--Estou como que penetrada por um raio...

--Então vamos para casa.

--Não, eu vou, fica tu.

--Vamos ambos para a cama.

--Vou-me deitar.

--Deixa-me ir comsigo?

--Eu não tenho medo, fique tomando o fresco...

--Mas eu queria-te ir aquecer.

--Eu aqueço bem sem o seu auxilio...

--Isso é birra... eu como marido tenho tambem os meus direitos...

--Mas eu estou doente... sinto agora um calor...

--É febre talvez...

--Por isso mesmo não se chegue para mim...

--Vou chamar o medico.

--Não é preciso. O que elle me receitava, é o que eu vou fazer... dormir
um somno longe de meu marido... ámanha tem-me sã como um pero...

--Queira Deus!

--Isto passa em me deixando descançar.

--Então não queres que vá ao menos ajudar-te a despir?

--Nada, socego é o que eu preciso.

--Mas...

--É verdade não me disse hontem que, queria hoje observar o cometa?

--Fazia até tenção de t'o mostrar...

--Vel-o-hei em sonhos.

--Ámanhã será em realidade... não é assim meu amor?

--Eu faço ideia; é uma coisa muito comprida.

--Qual historia! verás que não é tão grande como julgas... e então visto
pelo meu excellente telescopio! Has de ver-lhe toda a cabelleira...

--Como está tolo com o seu telescopio... tambem o primo Montenegro tem um
que não é dos peores...

--Aposto que não tem a grossura do meu!

--Bom, por hoje basta...

--Paciencia, não ha remedio: vae-te deitar com Deus, já que não póde ser
comigo... Se tiveres precisão de alguma coisa de noite, chama-me... bem
sabes como sempre sou prompto em te prestar os meus serviços, seja a que
hora da noite fôr...

--Prompto até de mais! ao menor movimento que faço, elle ahi está em cima
de mim, a atenazar-me... Mas bem sabe o mal que me faz quando me acorda de
noite; é ataque de nervos certo no dia seguinte, e fico mole, amarella,
com olheiras...

--Bem, bem, vá descançada que lhe não interromperei o seu somno.

--Promette-m'o?

--Juro-o.

--Bonito! então boas noites.

--Nem um beijinho me dá!

--Dou, mas com a condição de cumprir o seu juramento.

--Qual.

--O de não entrar no meu quarto esta noite.

--Está dito.

--Então dê lá o beijo. (Dá-lhe a face a beijar, Carneiro beija-lh'a
sofregamente, apertando-lhe ao mesmo tempo a cintura com avidez.)

--Jesus! que cintura tão elastica!

--Esteja quieto, não se adiante! o que me pediu foi um beijo...

Valha-te Deus, menina! Vae-te lançar nos braços de Morpheu, e pede-lhe uma
boa dose de sumo de dormideiras.

--Adeus meu Carneirinho.

--Adeus minha Carneirinha... Olha, deita-te para o lado direito... não te
ponhas de costas, bem sabes que te faz mal...

--Bem me lembro de hontem á noite...

--É verdade, quando gemeste tão significativamente, que eu julguei
estarias com algum pesadelo...

--Ora! se eu parecia que estava esborrachada... nem respirar podia...
estava a sonhar que o tinha em cima de mim...

--E gritava de tal maneira, que eu no quarto contiguo, ouvi e fui
acudir... mas felizmente o nosso primo e hospede, Montenegro, já tinha
chegado antes de mim...

--Que bom primo que é aquelle rapaz!

--Se o ceu nos désse um filho, estou certo que o estimava...

--Havia de amal-o como se fosse delle proprio...

--Ha-de ser o padrinho do nosso primeiro _néné_...

--Isso tem tempo... ainda eu...

--Louvado seja Deus! muito me tem custado a fazer o tal herdeiro...

--Agora tenho esperanças que brevemente...

--Sim? oh grande Deus! será possivel?

--Bom, deixe-me ir deitar...

--Vae filha, e dorme bem, eu vou ver se bispo o cometa.

E nisto, depois de acompanhar sua mulher á porta do quarto, voltou logo
para o terrado, afim de melhor observar a passagem do astro cabelludo.

Madama Carneira entrou no quarto e ahi encontrou o primo Montenegro, que a
esperava para lhe mostrar tambem o cometa com o seu telescopio...

Alguns mezes depois madama Carneira brindava seu marido com o esperado e
desejado herdeiro, que tantas fadigas lhe custára...



*A FRANCISCANADA*

CONTO


      Que grande franciscanda
      Vai fazer com frei Bento
      Frei João e frei Monteiro
      P'ra longe do convento?

      Bom alforge levam cheio,
      Recheiado de finorio
      Presunto, e grosso paio,
      Furtados no refeitorio.

      Frei Bento vai ajoujado
      Com tremebunda borracha;
      Chega o rancho a uma tasca
      Para a horta lá se encaixa.

      Frei João despindo o habito
      E de manga arregaçada
      Tempra e meche aforçurado
      Um alguidar de salada.

      Frei Monteiro pisca o olho
      Á moça, que é rapariga,
      E frei Bento sem c'rimonia
      Um chouriço já mastiga.

      Voam paios e presuntos
      Tal é a gula e a gana,
      Torna-se logo a borracha
      Em famosa carraspana.

      Depois alegres cantando
      Lá se vão abarrotados
      Ao convento recolhendo
      Pelos muros encostados.

      Chama a campa ao refeitorio,
      Pois são horas de ceiar,
      A fradalhada apparece
      Mas não acha que trincar.

      --«Que pouca vergonha é esta?»
      Grita logo frei Martinho,
      «Que é dos nossos grossos paios,
      O presunto e mais o vinho?»

      --«Fomos roubados», responde
      O padre refeitoreiro,
      «Tudo lambeu frei João
      Com frei Bento e frei Monteiro!»

      --«Ah! bebedos! ah glotões!
      Ah! cambada de marotos!...»
      Berra o padre provincial
      Dando cinco ou seis arrotos.

      --«Hão de caro pagal-o!»
      Brada em peso o convento,
      «Hão de levar bons açoites
      Frei Monteiro e frei Bento;

      «E tambem Dom frei João
      Ha de leval-o o diabo!
      Tudo quanto nos comeram
      Ha de lhes saír do rabo!»

      Todos logo bem armados
      De sandalias gigantescas
      Tratam de pôr á vela
      As seis nadegas fradescas.

      E depois sem mais demora
      Pé atraz e furibundos
      Tocam todas as matinas
      Nos traseiros rubicundos.

      Eis no meio da batalha,
      Quando tudo em confusão
      'Stá batendo a bom bater,
      Dá um peido frei João!

      Mas não é peido de medo
      É um peido tremobundo,
      Peido de frade, que é
      O maior que ha neste mundo.

      Se o famoso Garibaldi
      Um tiro destes lh'escapa
      Lá se vão com mil diabos
      Os exercitos do Papa.

      Foge tudo com o estoiro
      E ainda mais com o cheiro,
      Aquelles que mais gritaram
      São os que fogem primeiro.

      Frei João põe em derrota
      O resto da fradalhada,
      Dizendo-lhe que ainda tem
      A peça bem carregada...



*SONETO*

A UM ZELADOR DOS MIJADEIROS


      O incauto saloio, o venal gallego
      Espreitas esfaimado atraz da esquina,
      Armado de catana serpentina
      Vermelho como um paio de Lamego.

      Tão ufano estás com teu sujo emprego,
      Que pareces uma ave de rapina,
      Prendendo a trouxe mocho quem urina
      Com a velha chibança d'um _morcêgo_[1].

      Não sejas papelão, pesa as razões,
      Olha que se a fortuna não sorri,
      Falta o mijo e adeus os dez tostões!

      Por isso vou um conselho dar-te aqui:
      É que respeites todos os mijões
      Em quanto mijando forem p'ra ti.

[1] Antigo soldado da policia.


CONSEQUENCIAS DE NÃO SER BACHAREL

      Quer ser guarda de commuas
      Certo João Raphael,
      Mas fica a chuchar no dedo
      Visto não ser bacharel.


UM DEPUTADO DA MODA

      Hontem estava em minha casa,
      E por signal a dormir,
      Á porta sinto bater,
      Levantei-me e fui abrir.

      Era o doutor Gatazio,
      Bacharel e fidalgote,
      --Vai torta! digo comigo,
      Vem ferrar-me algum calote!

      Eis entra com ar risonho
      E sentando-se ao meu lado,
      «Amigo, diz, dou-te parte
      Que estou feito deputado.»


UMA VALENTONA

      A honra de Eliza bella
      Atacam quinze soldados,
      Vence um a cidadella
      Quatorze são derrotados.


 NOZ E A MULHERA

      Como a noz foi a mulher
      Neste mundo fabricada,
      Não se conhece que é podre
      Senão depois de rachada.


EPITAPHIO PARA UM PAE DA PATRIA

      Aqui jaz dormindo a sesta
      Um bacharel formado,
      Foi barbeiro, deputado,
      Caloteiro e grande besta.


OUTRO PARA UMA MULHER FELIZ

      Dona Justina de Sousa
      Nesta campa aqui repousa,
      Foi no mundo afortunada
      Visto que até morrer
      Passou sempre por honrada
      Tendo a dita de o não ser...


UMA MULHER COMO TODAS DEVIAM DE SER

      Das miserias deste mundo
      Se compadece Maria,
      E cheia de dó profundo
      Seis ditosos faz por dia...


UMA VIUVA JUDICIOSA

      A viuva d'um entrevado
      Já novo marido tomar
      Queria, passados dois mezes
      Do velho marido enterrar.

      É cedo, lhe diz um visinho,
      Homem de agudo pensar,
      Sem estar uns dez mezes viuva
      Assento não deve casar.

      Essa é boa! diz a matrona,
      Então não se devem contar
      Oito mezes que estuporado
      Na cama elle esteve a penar?



*Pratica feita á missa do dia pelo muito reverendo prior de...*

      «_Deus dixit Petro ubi sunt oves meæ;
      nescio, respondit autem Petrus_»


Deus disse a Pedro «que é das minhas ovelhas?» e Pedro respondeu «eu não
sei d'ellas.»

Que bondade, que prudencia, que sabedoria, meus queridos irmãos, não
devemos nós admirar em Pedro; que, mesmo no momento em que seu Divino
Mestre lhe pergunta, onde estão as minhas ovelhas; responde com toda a
delicadeza que não sabe d'ellas, porque essas ovelhas não estavam em
estado de apparecerem perante o seu Senhor. Asneiras, meus caros ouvintes,
eu não tinha esse genio, não sou mentiroso nem falso, não tenho papas na
lingua, e se o Mestre me pergutasse, como a Pedro, onde estão as minhas
ovelhas, eu logo lhe dizia sem mais cerimonia, foram pastar para casa do
diabo, Senhor.

E com effeito, se Elle tivesse vindo hontem á noite perguntar-me pelas
minhas ovelhas, que lhe havia eu de responder?

Elle que recommenda tanto no seu Evangelho, que as ovelhas se conservem
sempre separadas dos competentes bodes, o que teria Elle dito se visse
essas mesmas ovelhas misturadas com os bodes, saltando uns em cima dos
outros, e a fazerem gaifonas ao seu pastor!

Sim, amados irmãos, foi grande a balburdia, e ao aspecto de tal desordem,
o amor pelo meu rebanho animou-se de um santo zelo e ardendo em fogo,
corri de cajado na mão, para arrancar as minhas innocentes ovelhas das
dentuças dos lobos encarniçados. Mas, ó dôr, ó desdita, ó patifaria! as
minhas ricas ovelhinhas já não escutam a minha voz; já penetradas pelos
agudos dardos d'aquelles diabos e inundadas pelos seus liquidos venenosos
e seductores, estavam indoceis e levadas da breca. O meu cajado, outr'ora
tão poderoso, não póde juntar senão um pequeno numero, que trago para o
meu curral, onde as hei de ter fechadas e guardadas até que deem os
fructos do seu arrependimento.

Mas vós, amados ouvintes, vós, os que fostes fieis, lamentae a desgraça de
vossos irmãos; comportae-vos sempre bem, e tomae para exemplo esses
grandes santos da antiguidade; menos um tal santo Agostinho, que, segundo
dizem, foi um grande pandigo, quando moço, e é por esse motivo que eu
nunca vos fallo d'elle.

Fallemos antes d'aquelle santo Chrisologo, que diz que um cura é um sol, e
os seus freguezes são uns átomos. Mas eu não sei que diabo de átomos vocês
são! não me pagam a congrua, querem que os case de graça e ainda em cima
dizem: «ora, estamos nas malvas para o _seu_ padre cura, elle não tem
filhos para sustentar!» Vocês sabem la disso? Não sabem que nós outros
padres, temos mais trabalho em os esconder, do que vocês em os fazer?...

Mas voltando á vacca fria, pensemos na vossa conversão, se ella é
possivel.

Julgo que a melhor maneira de o conseguir é fallando-vos das maroteiras
que se fazem na freguezia.

Por exemplo: o João da Canhota, regedor, sae á noite e se ha de vir ao
sermão, vai-se metter em casa da Felicia do Frade, e não sae de lá senão
de madrugada. Diz que vae tomar chá, mas imaginem os ouvintes que
qualidade de chá elle não tomará...

Aqui não ha senão desordem e immoralidade. Immoralidade nos velhos,
immoralidade nos moços, immoralidade nos grandes, immoralidade nos
pequenos.

Digo immoralidade nos velhos, porque esses velhos, raça damnada de Caim,
depois de haverem passado toda a vida... em patuscadas e pandigas, ainda
mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se vão metter em logares
suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes acabarão as furias
carnaes e burriçaes?

Immoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas andam por essas ruas aos
beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e immoraes; ainda eu hontem
ouvi a filha do Thomaz da Horta e o filho do Ignacio do Dente a cantarem o
Pirolito que bate que bate! Ora não ha maior pouca vergonha, uns fedelhos
que ainda cheiram a coeiros e já sabem o que isto quer dizer!

Immoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas mocetonas que vão todos
os dias para o matto, sob pretexto de que vão buscar lenha, e por fim
fazem por lá couzas do arco da velha... Lenha no forno queriam ellas,
malditas!

E quando vão aos figos! O que acontece?

As raparigas sobem para cima das arvores e os mariolões ficam em baixo, a
olhar para cima e a dizer: Olha Antonia vejo-te os calcanhares, e as
pernas, e os joelhos, e o...

Ponham cobro a este escandal-o, amados irmãos, são couzas que se não devem
ver senão em certas occasiões. Eu não pego aos rapazes e ás raparigas que
vão ao matto e comam por lá o seu figuinho e mesmo que subam ás figueiras,
mas para evitar indecencias, as raparigas fiquem debaixo e os rapazes que
lhes vão acima.

Immoralidade nos pequenos. Essa gaiatada miuda que anda todos os dias a
correr pelo adro cá da freguezia, onde estão as campas dos nossos
antepassados, e que depois vão fazer as suas necessidades mesmo á porta da
sachristia. Se não teem respeito pelos mortos, tenham ao menos compaixão
pelos vivos, não póde uma pessoa entrar na egreja pela porta de traz sem
ficar a bem dizer atolado até o nariz. Já disse ao sr. regedor da
freguezia que pozesse mão n'estas cousas, mas por ora continúa a mesma
marmelada á porta da sachristia.

Tambem é digno de reprehensão o comportamento d'essas mulheres casadas,
que sem nenhuma consideração pelos seus maridos, se levantam do leito
conjugal de madrugada, sob pretexto de levarem o gado ao campo, e depois
de andarem lá por fóra a laurear, em pernas, recolhem-se para casa frias
de neve, e vão-se outra vez metter na cama com os maridos e arripial-os
sem piedade! Pobres homens! Se fosse comigo, que coça que ellas não
levavam...

Tambem ha certa moça cá na freguezia, que eu trago d'olho ha dias, cá por
certa cousa. Eu devia já dizer quem é, mas emfim por hoje limitar-me-hei
só a mettel-a na sachristia e arrumar-lhe um lembrete... domingo direi
quem é, se não tomar juizo... por agora saibam unicamente que é a unica na
freguezia que usa ligas encarnadas... (_Pausa, rumor na egreja._)

Domingo, de hoje a oito dias, me alargarei mais sobre os homens, coçarei
as mulheres casadas, e caírei em cima das solteiras, se não tomarem juizo
d'aqui até lá.

Sendo hoje dia de festa e estando a chuver far-se-ha a procissão só por
baixo da egreja, pois eu não estou para apanhar alguma porrada d'agua. Não
precisa vir toda a gente a ella, basta que de cada familia venha um varão.

A proposito de procissão, tenho a dizer-vos, amados ouvintes, que os
santos cá da freguezia vão estando muito chimfrins. Eu não dava tres
vintens por elles. O São Miguel é que está assim mais direitinho, mas o
diabo que está por baixo já não tem cornos; pois olhem, não ha na
freguezia poucos homens ricos no caso de lh'os darem. O calvario tambem
não está mau; todos os instrumentos da paixão estão em bom estado,
falta-lhe só o gallo, mas a isso não direi nada, porque ha poucos na
freguezia e as gallinhas precisam d'elles: no entanto se houver por ahi
alguma dona de casa que tenha dois, que me mande para cá um.

Esta semana não ha jejum, podem comer tudo quanto quizerem e bebam-lhe
melhor; ha só a bemaventurada santa rainha, que cura a tinha; é quinta
feira, sexta feira ha feira e domingo é a festa de São Simão e São Judas.
Tambem, não sei quem foi o diabo do animal que se lembrou de pôr Judas no
calendario. Juro-vos, amados ouvintes, que se não fosse domingo não lhe
fazia festa, era o que merecia o senhor S. Simão por caír na asneira de se
ir metter com similhante tratante.

Mas acabemos com esta maçada.

Ó _seu Zé_, accenda os sinos e mande tocar as vellas, accenda a agua benta
e bote agua no thuribulo... não, enganei-me, faça o contrario de tudo
isto.

No entretanto façamos as nossas costumadas e ordinarias orações.

Oremos pela conservação da nossa bemaventurada mãe catholica, apostolica e
romana; pela _estripação_ da _cisma_ e abaixamento da hydropisia; oremos
tambem pelos ricassos cá da freguezia, a fim de que Deus os mantenha na
sua honesta pobreza; pois se fossem mais ricos punham-nos o pé no pescoço.
Oremos pelos ausentes e pelos viajantes, afim de se deixarem por lá estar,
se estão bem; oremos pelo feliz successo das mulheres pejadas, afim de que
Deus lhes faça a mercê de largarem o fructo com a mesma facilidade e
doçura com que o comeram. Oremos, n'uma palavra, pela conservação dos bens
da terra, como salada, couves, batatas, pepinos e tomates, e pela
extincção dos seus males, como formigas, lagartos, ortigas, pulgões e
ratazanas... etc.



*A opinião publica*


      Depois de longo derriço
      Casou João com Maria,
      E passados quatro mezes
      Tem um filho já Maria.
      Fallam do caso as visinhas
      Chora João, ri Maria.
      «Casei bem tarde, já vejo»,
      Diz o coitado a Maria,
      «Fui eu que cedo pari»
      Ao marido diz Maria.
      O mundo ri de João
      E acha razão a Maria.



*Carta corographica do reino do hymeneu*


Esta carta, resultado das pesquizas e estudos dos viajantes que teem
visitado aquelle reino, é de muita utilidade para aquelles que se quizerem
abalançar a emprehender viagem para sítios tão amenos e escabrosos ao
mesmo tempo. Eil-a:

O reino do hymeneu, fica a dois graus de longitude e cincoenta e um de
latitude, meridiano de Pariz, de sorte que fica justamente sobre a zona
dos Paizes Baixos. Não obstante, o seu clima, principalmente o das
provincias mais ferteis, é o da zona torrida.

O aspecto do paiz é encantador, visto de longe, mas vae perdendo a belleza
á medida que uma pessoa se aproxima das suas costas. A primeira terra que
se encontra, logo nas fraldas das suas montanhas, chama-se o _porto
desejado_, o qual dá entrada para o _cabo da saciedade_, cabo este mui
difficil de dobrar, e todos aquelles que emprehendem esta viagem, se
espedaçam muitas vezes nos baixios do aborrecimento. Aquelles que escapam
ao perigo, ficam por muito tempo em calmaria primeiro que cheguem á _bahia
da conveniencia mutua_.

Os campos aqui apresentam de fóra um aspecto muito insipido. Antes de
chegar a este porto é frequente experimentar os violentos safanões dos
ventos do ciume e do mau humor. A maior parte dos navegantes, chegados que
são a esta ultima bahia, desejam voltar para traz, mas em taes alturas
isso é cousa inteiramente impossivel. Abordando á _bahia da conveniencia
mutua_ muitos soffrem terriveis furacões e correntes rapidas, que os
lançam nos gurgulhões da velhice prematura, onde geralmente os navegantes
perdem as agulhas e ficam com agua aberta á mercê das ondas, appellando
todos os dias para o favor dos ventos.

Felizes d'aquelles que podem constantemente conservar-se nas alturas da
_affeição mutua_, as quaes ficam entre o _porto do desejo_ e o _cabo da
saciedade_.





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