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Title: Cantos Sagrados Author: Arriaga, Manuel de, 1840-1917 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Cantos Sagrados" *** of public domain material from Google Book Search) MANOEL D'ARRIAGA CANTOS SAGRADOS LISBOA MANOEL GOMES, Editor LIVREIRO DE SUAS MAGESTADES E ALTEZAS _70--RUA GARRETT (CHIADO)--72_ 1899 DEDICATORIA _Ás almas piedosas e cultas em cuja convivencia encontrei conforto, fortalesa e fé na bondade e na virtude,_ _e_ _Ás proximas gerações futuras, a quem compete a integração do destino humano segundo o novo Ideal de Justiça_ _offerece e consagra estes CANTOS_ _O SEU AUCTOR._ AO PUBLICO A exemplo do lavrador que nas tardes melancolicas do outomno, antes que chegue o inverno, recolhe os fructos das suas pequenas herdades, nós, n'este periodo calmoso da existencia em que entrámos, e primeiro que a morte nos venha trazer, com a paz da sepultura, a melhor compensação dos nossos longos soffrimentos, deliberámos recolher e seleccionar as poesias que escrevemos no longo periodo de trinta e dois annos, que decorre desde 1867 até hoje e que, com rarissimas excepções, devidas quasi sempre a inconfidencias e curiosidades d'amigos, são todas ainda hoje ineditas. Reunimol-as em quatro volumes, o primeiro dos quaes, o dos _Cantos_, é o que damos hoje á publicidade. O segundo com o nome de _Irradiações_, é dividido em quatro livros--_Devaneios_--_Imagens d'um mundo extincto_--_Nas Alturas_--_No Lar_. O terceiro contém poesias dispersas, ensaios e fragmentos. O quarto, um poema heroico glorificando os triumphos da Humanidade no concerto do Universo, e onde, sob uma fórma dramatica, reatámos as tradições gloriosas de Portugal no periodo de Renascença á futura solução do problema humano, sob um novo ideal de justiça. Foi este poema, a que démos o titulo de _Synthese Suprema_, escripto nos tres ultimos annos que se seguiram ao nosso affastamento da politica militante, quando abandonámos de todo o parlamento, onde a nossa voz ficou por completo isolada e perdida... Compozémol-o ante a ameaça constante da morte que as nossas doenças, então aggravadas, nos punham todos os dias diante dos olhos, sem esperanças de o levarmos ao seu termo; e foi feito a pedaços nas poucas horas d'ocio que nos restavam dos nossos deveres profissionaes. A poesia aos nossos olhos nunca foi um mero recreio de espirito. Como todas as bellas artes, tende a exercer uma funcção social, hoje tanto mais necessaria quanto é frouxa, ou quasi nulla, a que a Religião, e a moral d'ella nascida, exerceram outr'ora nas multidões incultas, que á falta d'um ideal filho dos tempos, que as ajude na solução do seus tenebrosos e multiplos problemas: ou se tornam indifferentes ou scepticas e vivem como espiritos revoltados contra todo o existente!... A muitos parecerá contradictorio que, tendo nós combatido em toda a nossa vida, ha mais d'um quarto seculo, o obscurantismo, os absusos e os crimes commettidos á sombra das religiões positivas, sobre tudo da religião dogmatica, nos aventuremos, sobre as ruinas do velho mundo e á entrada dum novo cyclo historico, a soltar cantos d'uma tão ardente fé religiosa!... A resposta encontral'a-ha o leitor na nota elucidativa á poesia _O que eu vi_, que adiante publicamos, e nas immediatas. Se errámos ou não, os factos é que o hão-de decidir d'aqui mais a algum tempo. Só aqui diremos que para se unirem pelo Amor e pela Justiça as duas metades da humanidade, de que depende a integração do destino humano, o homem e a mulher, que as crenças religiosas e as demonstrações scientificas trazem tão profundamente divorciados na vida do lar e no foro interno; para levarmos ao povo a communhão do novo credo e levantarmos-lhe o coração e a alma muito acima das meras questões de interesses materiaes em que o trazem envolvido: é preciso procurar um ideal fóra das contingencias humanas, preparar com elle as almas para os actos fundamentaes d'abnegação e d'altruismo que reclama o problema social, o que só se pode alcançar á sombra de religiosidade que está no fundo da nossa natureza, mudando apenas de objectivo e de processo. Qualquer que seja porém, a opinião em contrario de nossos competidores, e que acatamos, é d'esperar que attendam a que, n'uma obra d'arte, não se deve perder de vista a sinceridade do seu auctor, o fim que se propõe servir e o meio que emprega para o alcançar. Sob este triplice ponto de vista, em que sempre nos mantivemos, talvez possamos contar com a benevolencia dos nossos contrarios. Ainda uma palavra sobre as razões porque só agora, no fim da nossa carreira, nos aventuramos a publicar estes trabalhos. Dentre muitos outros, o motivo predominante encontral-o-ha o leitor no respeito quasi religioso que sempre tivemos pela publicidade, por este momento sagrado em que entregamos aos outros as nossas ideias, as nossas opiniões, os nossos sentimentos! Accaso terão direito a sel-o?! Irá n'elles alguma cousa que seja menos verdadeira, menos justa, menos bella?! E, quando tal se dê, o que pensarão de nós os que vierem a julgar-nos?!... Transmittindo a estranhos, sob as fórmas divinas da arte, o que havia de melhor no nosso mundo interior, e que merecera a sancção da nossa consciencia, não iremos susceptibilisar ou offender, apesar d'isso, o que os outros teem de mais sagrado no coração e amam mais de que tudo?! Não seremos nós uns illudidos que vamos com a nossa illusão concorrer para os enganos dos outros?! Todas estas perguntas accudiam ao nosso espirito quando nos incitavam a imprimir estes _Cantos_ e esperámos sempre que um mais maduro exame os auctorisasse a sahir do recatado asylo da nossa consciencia, a ir correr mundo e a suscitar por ventura a animadversão ou a sympathia dos leitores!... Que o publico encontre n'elles a grata companhia que nos fizeram tão largos annos, é o melhor premio, se algum elles merecem, a que pode aspirar o auctor d'estas linhas. Lisboa, 15 de março de 1899. MANOEL D'ARRIAGA. LIVRO PRIMEIRO DEUS E A ALMA I O QUE EU VI Sahi um dia a contemplar o mundo, Por vêr quanto ha de bello e quanto brilha Na multipla e gloriosa maravilha, Que anda suspensa em o azul profundo! Vi montes, vales, arvores e flôres, Limpidas aguas, múrmuras torrentes, Do grande mar as musicas plangentes, Dos céus sem fim os trémulos fulgôres! Trouxe os olhos tão ricos de belleza, O coração tão cheio de harmonia, De quanto havia em terra, mar e céos, Que interpretando a sós a Natureza: Dentro de mim esplendido fulgia, N'um circulo de luz, teu nome, oh Deus! II MUNDO INTERIOR Materia ou Força, Lei ou Divindade Quem quer que seja que dirige o mundo, Esparze em tudo o espirito fecundo Do Summo Bem--Belleza, Amôr, Verdade. Á luz d'esta Santissima Trindade, Cercado d'esplendor, clamo e jucundo, Sorri-me em volta o universo; ao fundo, Por synthese Suprema, a Humanidade! Dos homens rujam temporaes medonhos... Que em mim, no meu labôr, do Bem sedento, Meus dias correm limpidos, risonhos! Estrellas que brilhaes no firmamento! É menos bella a vossa luz que os sonhos Que gera na minha alma o Pensamento! III TRISTEZA Como isto cá por fóra é tudo alegre! Quão bello o sol! que esplendida harmonia A terra, o mar e os céos! Porem dentro de mim que mundo á parte! Que embate de paixões! Que noite funebre! Que magoas, Santo Deus! Ai! se as manchas que o sol no rosto esconde Tem sobre o mundo alguem onde projectem A triste escuridão, Minha alma é como o espelho onde ellas caem, Tão profunda é a mágoa que me lavra Aqui no coração! E eu via ha pouco o azul d'um céo sem macula! E o sol d'esta alma fulgurante e limpido Banha-me todo em luz! Porém, franqueza humana! eu proprio o obrigo A alumiar-me com a luz da frouxa lampada D'um templo de Jesus!... Senhor! Senhor! que um teu olhar me alegre! Que lave o pavimento de meu peito De muita ideia vã, Que o mal é como a noite, e o sol apaga-a E transforma-a na prata, ouro e purpura Das nuvens da manhã! Oh! tu tristeza, irmã dos desgraçados, Que lanças no meu peito os ais plangentes D'esses gemidos teus! Desprende da minha alma as azas negras, E deixa entrar alegre a luz do dia, A luz vinda dos céos! E vós, filhos do sol, tribus innumeras Da familia de Deus, plantas e flôres Insectos e animaes, Que engolfados nos gozos do Universo, N'esse concerto immenso de harmonias, Nos céos a Deus louvaes: Ah! venho-vos tomar por meus mentores, Pois vale bem mais a luz do vosso instincto, Que a luz d'esta razão, Se eu não sei como vós viver contente, Trazer o azul dos céos na consciencia, E a paz no coração! Lisboa Na tapada d'Ajuda, 1869 IV PRESENTIMENTOS Eu bem sei que devia Causar-te muito dó, Em noite tão sombria Vêres-me aqui tão só!... Nem sei que sol m'alegra! A sós com a minha cruz, Sou como a nuvem negra Que encerra muita luz!... Como arvore sombria Vergada sobre um val, Assim vivo hoje em dia Á sombra do Ideal... Que eu tenho muita fome De Justiça e d'Amor, E aqui não ha quem tome A serio a minha dôr... O mundo vê e passa, Como sempre passou, Sorrindo da desgraça Dos tristes como eu sou... E este sonho dourado D'amôr, que a gente vê, Não póde estar guardado N'esses homens sem fé!... Ah! não! já não m'illudo Foi isso o que suppuz; Mas vi mudar-se em tudo Em sombra a minha luz... E os sonhos que já tive Tão bellos, afinal, São hoje um céo que vive Sobre este lamaçal!... Um céo que vejo, ao longe, Exposto aos olhos meus, Co'a mágoa com que um monge Veria outr'ora a Deus!... E onde ha maior castigo, Mais dura provação, Que ter por inimigo O homem nosso irmão, Aquelle a quem nós démos, Com toda a candidez, Os sonhos que hoje vêmos Desfeitos a seus pés?!... Ah! suppõe-me o desgosto, De eu vêr desparecer A cópia do meu rosto Aos pés d'uma mulher, E isto em desacato Do meu mais santo amor: E ahi tens um retrato Da minha immensa dôr, Quando vejo desfeito Por gente ingrata e má Um sonho do meu peito, E muitos vi eu já!... Por isso eu n'esta vida, Apoz tanta illusão, E tanta flôr perdida, Tanta corôa no chão... Ai! sinto com o anceio, Que é proprio do infeliz, Um mal n'este meu seio Lançar muita raiz!... Espero vêr a morte, Eu proprio a invoquei, Levar-me d'esta sorte Para onde?! É que eu não sei!... Como eu não sei dizer-te, E isto que me consol', Como é que se converte Em vida a luz do sol!... Como nasce a ventura Do homem que morreu, Dormir na sepultura Para acordar no céo!... Aqui tudo é mysterio!... Mas visto que assim é, Onde ha melhor criterio Que á luz da nossa fé? E eu creio firmemente Que o martyr de Jesus, Não fica só pendente Dos braços d'uma cruz... Que o homem que prosegue A luz d'um Ideal; Embora a turba o pregue Na sua cruz fatal... O céo é bem profundo, O fundo nem tu vês, E ha n'elle muito mundo, Para onde irá talvez!... A vida continúa, E a alma, emquanto a mim, Avança e não recúa Por esses sóes sem fim! Do sol se um raio ardente No mar vier cahir, Em nuvem transparente Nós vêmol-o subir! Não ha suster-lhe o rumo Que o leva para os céos, E assim é que eu presumo Voarmos nós a Deus!... O ponto é merecel-o, Que Deus é justo e pae, E eu sei com que desvelo A si os bons attrae! Mas quando eu vejo a lua, Não sei que ideia má N'esta alma me insinua A luz que n'ella ha!... Emquanto em torno d'ella, Ao norte, ao leste, ao sul, Refulge tanta estrella Pela amplidão do azul, Tu vêl-a solitaria, Em paz cruzando o céo, Como urna funeraria D'um mundo que morreu!. Ali já não ha vida!... Ali não ha calor!... N'aquella luz, vertida Em lagrimas de dôr, Ha só tristeza e lucto, E confrange-se e doe O coração, se escuto Mulher, porque isso foi!... Ah, tenho medo Que o Supremo Juiz Nos julgue assim tão cedo!... Não sei que voz m'o diz... Não sei... mas, se contemplo Os crimes que ahi vão, Mulher, aquelle exemplo Conturba o coração!... E assim só n'outra parte Verão os olhos meus Os sonhos que reparte Commigo a mão de Deus!... O mundo onde abre o cardo E o lyrio ao mesmo sol; Onde ama o leopardo A par do rouxinol; Que tem de andar na sombra Para viver na luz; E, o que inda mais m'assombra, Onde ha Nero e Jesus: Por mais bello e risonho Que seja, ainda assim Não vale qualquer sonho, Que trago dentro em mim!... Isto é um fraco esboço D'uma outra vida e crê, Que sinto-a, mas não posso Dizer-te onde ella é!... Se a Vida em nós começa, Por esses sóes d'além, Sobre a nossa cabeça. Trabalha-se tambem!... Mulher! mulher! quem sabe Se é isto o que m'attrae Aos céos, pois, tanto cabe A Deus, que é justo e pae... Lisboa, 1870. V CONSCIENCIA Para um homem que aspira Ao ideal da Belleza, Não ha maior tristeza, Magua maior não ha, Que vêr escurecer-se-lhe O ceu da noite escura D'alguma ideia impura, D'alguma paixão má! Paixão que muitas vezes A luz da nossa Ideia Accende, inflama, atêa, E depois nos attrae Com tanto magnetismo, Com tal encantamento, Que o homem n'um momento Vacilla, cega e cae!... Cae, sim, do seio esplendido Do mundo onde vivia Na mais doce harmonia Em paz co'os dias seus, Para apagada a febre Do seu fugaz delirio, Achar-se co'o martyrio De te perder oh! Deus! Sem Ti, meu pae, que assombro! Que noite tão completa! Que acerba dôr me inquieta Meu fragil coração!... Voltar a vêr a alma D'esperanças povoada, E achal'a transformada Em lugubre soidão! Senhor! se desabassem Á tua vóz as bellas E limpidas estrellas Dos ceus que não teem fim, Eu creio que assombrado Do horrendo cataclysmo, O Sol, d'além do abysmo, Seria egual a mim! Eu lembraria a aguia, Que a prole ainda implume Deixando sobre o cume De monte erguido ao ceu, A fosse achar de subito Na rocha alcantilada, No ninho, fulminada D'um raio que desceu! Egual seria o quadro Da minha consciencia, Ao ver a tua ausencia Fazer-se em mim, Senhor! Que em volta do teu astro Minha alma de poeta É pallido planeta Buscando o teu amor! E eu sem ti nem vivo!... Tu és, oh, doce esperança, O seio onde descança Meu ser e afinal Não sei até dizer-te O quanto soffreria, Se vira extincto um dia Em mim, teu Ideal! Oh não mil vezes antes Em carcere ermo e escuro, Achar-me de futuro A sós c'a minha dôr; Extincta a luz dos olhos, E as bellezas do mundo, E o ceu azul profundo Com todo o seu fulgor! Tu crê que nem demandam Os mundos inferiores Fócos de luz maiores, Por esse infindo azul, Como eu o eterno centro Das leis da natureza, Do _Amor_, e da _Belleza_, Que são meu norte e sul! Oh Pae! se n'algum dia, Eu vir, n'uma miragem, Alguma falsa imagem Do Bem prender-me aqui: Desvenda a tua face, E mostra-me o teu seio, Que, mesmo embora em meio Do abysmo, irei a ti! Irei, tão instinctivo, Tão amoroso e firme, Eu sinto a attrair-me A ti o teu poder, Que eu vejo em ti o Norte, Para onde se encaminha A pura essencia minha, Que sente, pensa e quer! Irei vencendo, indomito, Innumeros attrictos, E escolhos infinitos, E infindos escarceus, Como essa vaga enorme Do mar que não recua, Seguindo sempre a lua Que vê passar nos ceus! Irei bem como a Terra Seguindo eternamente O rumo do oriente A demandar a luz; Bem como Jesus Christo O rumo solitario Da senda do calvario Á busca d'uma cruz! Irei cá d'este mundo Onde tu me cedeste A dadiva celeste Da Rasão e do Amor: Raios vitaes que mudam Em luz a nossa essencia, E a luz em Consciencia, E esta em ti, Senhor! Lisboa, 1869. VI REVELLAÇÃO O LAGO Scismava um dia na cruel sentença Com que a Egreja fulmina a raça humana, Deixando impura a fonte d'onde emana O sangue que me anima, e a alma que pensa: E ao passarem no ceu do meu destino As nuvens da tristeza e da saudade, Revellou-me o Senhor alta verdade, Junto ás margens d'um lago crystalino! Isto foi pelo mez do abrir das flôres, Quando a vida celebra os seus noivados, E o mundo, sob os verdes cortinados, Parece um doce thalamo d'amores! Estava um dia esplendido! a animal-o Eu via o seio azul do ceu mais lindo Curvar-se sobre mim, ethereo, infindo E tepido: era um gosto enamoral-o! Como fecho da abobada infinita, O Sol nos ceus, riquissimo objecto, Com barras d'ouro irradiava o tecto Do vasto pavilhão que o mundo habita! Côres variadas, fórmas differentes, N'um conjuncto de graças sem egual, Debuxavam-se ali ao natural Sobre o crystal das ondas transparentes! Alvas manchas d'insectos pequeninos, Envolvendo-se em giros caprichosos, Como tríbus de povos venturosos, Fruiam junto ao lago os seus destinos! Pelas balsas cantava a toutinegra, E as rolas modulavam doces côros, No ar passavam fremitos sonoros Co'as vibrações da Luz que o mundo alegra! No lago, a planta, a flôr, o ceu, a terra, Como notas d'uma unica harmonia, Revellaram-me á plena luz do dia, Enlevos que o prazer da vida encerra!... E eu via tudo, e extatico scismava: Se por ventura a colera divina, Segundo a Egreja ao mundo inteiro o ensina, Do gremio dos felizes me affastava!... E não podendo crer, embora obscuro Vêr-me qual sou, que esta alma de poeta, De tanto sonho explendido replecta, Atollada estivesse em lôdo impuro... Ai! quando a Deus pergunto se prendeu N'um pó que é vil o espirito divino, Olho o espelho do lago crystalino E não encontro o lago: encontro o ceu! O mesmo que era em cima azul, immenso, E a lampada brilhante que o alumia, Lá no fundo do abysmo aos pés os via, De sorte que em dois ceus era suspenso! E quanto se ostentava em torno ao lago, Os muros de verdura, a flôr mimosa, O deslisar da nuvem vaporosa, E a voltear do insecto incerto e vago: Outro tanto animava, ao longe, e ao perto, Aquella região d'azul vestida, Onde a minha alma, em extasi embebida, Contemplava na Terra um ceu aberto! E emquanto extasiado a sós fitava, Nas bellezas do lago transparente, Aqui uma flôr, além, para o poente, A nuvemsinha branca que passava,... Eis senão quando, uma ave, porque visse Insectos junto da agua socegada, Desceu subtil, aerea e delicada, E ao perpassar roçou-lhe a superficie,... O ponto ferido, em ondas borbulhando, Desabrochou em curvas graciosas, Como as folhas concentricas das rosas, Ou lusidias cobras imitando! E emquanto o impulso em torno se propaga Em circulos risonhos: n'um momento, Toda a cupula azul do firmamento Oscilla, treme e cae, e o Sol se apaga, E a arvore, e a flôr, e quanto junto á margem, Em doce paz, seu rosto reflectia No crystalino espelho, por magia Da lei do amor, a doce lei da imagem!... Fere-me então bem intima tristeza, Ao vêr aos pés, em sordido tumulto, Um lymbo verde e escuro onde occulto Estava um ceu tão rico de belleza!... Lembrei-me então da minha vida insana, De quanto sonho lindo anda desfeito Nos intimos arcanos do meu peito, Co'o tropel das paixões da vida humana!... E as lagrimas cahiram-me uma a uma Sobre esses bens que a Terra e os ceus inspiram, E ao contacto das coisas se extinguiram Como aereos balões feitos d'espuma! N'isto o Senhor, que tudo vê e ampara, Converte-me de novo o charco immundo N'um ceu azul infindo, e n'elle um mundo Formoso como os bens que imaginara!... Scismei então por longo espaço e digo, Que aos olhos meus por Deus fôra patente: Que a alma humana póde, ingenua e crente, _Vivendo em paz, um ceu trazer comsigo!_ Ah muito embora a dôr seu peito opprima, O espirito, que abrange o mundo inteiro, Póde vêr, quanto justo e verdadeiro, Nos seios d'alma os ceus que estão por cima! Maxima grande, maxima tamanha, Tão repassada d'intima poesia, Porventura d'egual sabedoria Á predica de Christo na montanha, Ah! sê, por entre as sombras da desdita, A ponte aerea, o arco d'alliança, Que, em vez da excommunhão que a Egreja lança, A Deus eleva a Humanidade afflicta! Coimbra Quinta de Santa Cruz 1871. VII MISSA PONTIFICAL UM EVANGELHO Sahi uma manhã mal vinha o sol rompendo, E fui-me religioso a ouvir a missa ao campo, Á vasta cathedral do mundo, aonde aprendo Da Vida as sacras leis, que em letras d'ouro estampo. Sentei-me sob um bosque estenso e solitario, Que, em paz e sombra involto, á quietação me envida; O accaso conduzira-me a um vasto santuario, Onde ia celebrar-se a communhão da Vida! Debaixo do docel da mûrmura floresta, Se um culto universal é justo a Deus se vote: Estava o templo augusto armado todo em festa, Faltando unicamente agora o sacerdote! O mundo em derredor aguardo-o co'anciedade... E eil'o que chega, emfim, das bandas do oriente, Surgindo como um Deus no azul da immensidade, N'um carro triumphal, de raios resplendente! Ao vel'o perpassou nas arvores sagradas Um sopro mysterioso, o espirito do vento, Que deixa-nos ouvir, em musicas toadas, Psalmos que vão morrer no azul do firmamento!... Nos multiplos florões das trémulas janellas, Nos ramos mais subtis que a luz dos ceus colora, Com magico fulgor scintillam, como estrellas, Os limpidos crystaes das lagrimas d'aurora! Nas naves, que sustêm a abbobada elevada, Penetra triumphante a luz, suprema artifice! Interprete de Deus, celebra a sua entrada Com pompas, do Universo o maximo pontifice! Assim que o sol sahio das brumas do horisonte, A pedra, o musgo, o insecto, a flôr, os arvoredos, Trocaram entre si mil intimos segredos!... Os passaros gentis, aladas creaturas, Soltaram festivaes Hossana nas alturas!... O sol triumphador, do mundo a vida accorda, E esplendido festeja o eterno _sursum corda_!... Estava em plena festa a Terra, mãe querida!... E eu, em face d'ella, a contemplar-lhe a Vida!... Então a Luz, qual flôr, subtil e sorridente, Me disse a mim que sou seu terno confidente: Poeta! vês o mundo alegre e harmonioso;... Em intimo convivio unido o sol á terra, E a terra e o sol aos céus!... No enlace auspicioso, Permutam entre si os bens que a Vida encerra!... A vida é sim um Bem; por isso é dada a todos!... A todos por egual, a infindas creaturas,... Que, em multiplo labor, e por differentes modos, Procuram-no attingir na terra, e nas alturas!... Áquelle que transpõe as portas da existencia Um vinculo d'amor protege-o logo, e fica Ao mundo inteiro preso, em mutua dependencia, Ah desde a larva obscura ao sol que a vivifica!.. Qualquer que seja o nome, ou chama-lhe Verdade, Belleza, Amor, Justiça: é tudo a mesma cousa!... É quem fecunda e rege os soes na immensidade; Quem dá ao universo a paz em que repousa!... Por isto o mundo inteiro é todo uma harmonia!... E sente a reanimal'o uma alma alegre e sã! E vens de longe aqui, sedento de poesia, A namorar-me a mim, que sou a tua irmã! Do Sol baixei aqui a ler-te os evangelhos Eternos de Verdade, e a missa vae findar! Meu crente e meu poeta! é a hora: de joelhos, Em nome do Senhor, te quero abençoar! Á sua voz curvando a fronte: em fé immerso, Senti entrar-me n'alma a alma do universo!... Irmã, gemea de minha, a luminosa flôr, Encerra-se afinal n'esta palavra==Amor==! Quinta da Beselga 1885. VIII AVÉ CREATOR! Desprende pelo espaço as azas d'ouro, Águia de Deus, no mundo extraviada!... Pela patria celeste, a tua amada, Vae em busca de Deus, Cantando um hymno em honra do seu nome, Que meu querer e instincto insaciavel Te guiarão, qual bussola admiravel, Pelos infindos ceus! Senhor! venho invocar teu nome augusto, Em face d'estes vastos horisontes!... Que em torno a mim o rio, a arvore, os montes, Fallando-me de Ti, Lançam-me n'alma um teu olhar divino, E, com elle, um occeano de luz pura, Que me trasborda em ondas de ventura O que eu t'offereço aqui! Não sob o tecto do sombrio templo, Que a fé christã do povo erguera outr'ora Como um tumulo, onde o homem commemora A tua morte, oh Pae!... Mas sob o tecto azul do Templo Eterno, Perante o sol que passa dando a vida Em teu nome, que esta oração sentida Buscar teu throno vae! Pois é--me triste a mim que as cousas brutas, Ellas, sem alma, em gratidão me vençam: E a Terra, emquanto o Sol lhe envia a bençam Da sua eterna luz, Converte-a em flôres, canticos e fructos, E, n'um concerto alegre e harmonioso, Tributa ao Sol um culto tão piedoso, Que o peito meu seduz! Tu vel'a, quando o Sol lhe affasta os raios Do seu formoso olhar durante o inverno, A amante debulhar-se em pranto eterno, Das gallas se despir; Em valle e monte as folhas, com tristeza, Dos troncos com os ventos desprendendo-se, E o mar, co'os ceus em lucta contorcendo-se, Raivoso aos ceus bramir!... Mas quando o Sol de novo a aquece e anima: Oh que effluvios d'amôr então contemplo!... Traz o amante a alleluia ao escuro templo, E as trevas dão fulgôr; Espalma a folha o ramo resequido, E, ao som do mar que canta de mansinho, Da terra brota a flôr, da haste o ninho, Do ninho surge o amor! Seja assim o meu peito! Que a minha alma, Buscando o foco eterno e resplendente Do Sol dos soes, o Ser Omnipotente: Me eleve o coração A trasbordar torrentes de harmonias, Que entoem pela voz das creaturas: Santo! Santo! tres vezes nas alturas, Ao Deus da creacão! Pois eu que sou o espirito das cousas, O verbo inspirador, a alma, a vida; Sinto em meu peito a gratidão devida Á tua mão que attrae Em giro eterno os mundos do Universo; E eu vendo orar ao Sol a flôr n'o matto, Não hei de só ficar injusto e ingrato Para comtigo, oh Pae! Seja pois o meu canto a voz do interprete, Que moldando nas formas da palavra A vida universal que em tudo lavra Co'o sopro animador: Eu possa vêr a Terra envolta em canticos, Sobre as azas de luz da alma humana, Remontar-se ás origens d'onde emana, As tuas mãos, Senhor! Quinta da Beselga 1871. IX SURSUM CORDA! Oh Sol, alma do mundo! esplendido portento D'um mar feito da luz! vulcão, cuja fornalha, Por entre um fogo eterno, expande o movimento Da machina febril do mundo que trabalha! E tu, Astro do amor, que, em noite silenciosa, Qual perola engastada em fulgidos brilhantes, Derramas tua luz serena e voluptuosa Nos seios virginaes das timidas amantes: C'o os vossos esplendores, Pela amplidão dos ceus, Cantae altos louvores Ao espirito de Deus! E tu, mar rugidor! austero cenobita, Que em vastas solidões gemendo os teus pesares, Levantas o teu canto á abbobada infinita, Juntando a vóz piedosa aos céllicos cantares! E vós, filhas do ermo, alegres, crystalinas Fontes que derivaes das fendas dos rochedos, Ás flôres murmurando, em musicas divinas, De amor e de ventura uns intimos segredos: Mudae as harmonias Da vossa eterna vóz Em ternas homilias Ao pae de todos nós! Arvores que fluctuaes nos cimos das montanhas, Altivas demandando o azul do firmamento; Que encheis as solidões de musicas estranhas, Se passa sobre vós o espirito do vento! Lyrios, que abrindo o seio ao osculo amoroso Da luz que envia o sol da abbobada azulada, Mandaes-lhe o vosso olor no ether luminoso, Como o habito subtil d'uma alma enamorada: A musica e o perfume Que desprendeis, votae A quem em si resume O mundo inteiro e é Pae! Oh rabidos leões! lá quando em vossas festas, Altivos como os reis, indomitos senhores, Debaixo do docel das mûrmuras florestas, Rugis como um trovão os fervidos amores! E vós, corças gentis e timidos cordeiros, Que em vossos corações e almas bem formadas, Ao sangue preferis a lympha dos ribeiros, E á carne em podridão as hervas perfumadas: Louvae a quem fizera, Co'o mesmo engenho e amor, As fauces d'uma fera, E o calice d'uma flôr! Arvores, flôres, mar, e estrellas, e animaes, E todos vós que entraes no giro da existência; Que haveis nas regiões das cousas immortaes, Por synthese suprema, a _luz da consciencia_: Unindo-vos a mim, como eu á Humanidade, Louvemos todos nós n'uma oração sentida, Em côro festival que attinja a immensidade, O eterno Sol dos Soes, o sabio Author da Vida! Cantemos, creaturas! Pela amplidão dos ceus, Hossana nas alturas Ao espirito de Deus! Carvalhaes, 1886. X AOS CATHOLICOS Todos vós que sois sinceros crentes, Que oraes a Deus no intimo do peito, Oh mysticos christãos; Embora tenha crenças differentes D'aquellas que seguis, eu vos respeito, E julgo como irmãos! Eu amo a Deus; depois a Humanidade; Depois os bons, e d'estes o primeiro, É Christo, o Redemptor! Não sendo egual em tudo á Divindade, É, como justo e homem verdadeiro, Meu mestre e meu mentor! Embora por fanatico me tomem Impios e atheus, se os ha, eu lhes confesso, Que o Martyr da Paixão Parece-me tão grande como homem, Que até sinto vertigens quando messo Seu terno coração!... Oh meu Jesus! nas luctas pela vida, Por onde tanto naufrago fallece No meio da viagem: Minha alma soffredora e dolorida, Cahiria tambem se não tivesse A tua doce imagem!... Eu que creio que o facho da sciencia Nos ha de revellar, ao fim de tudo, Que em nós se concilia Rasão e Fé, Justiça e Consciencia: Ah quero-te Jesus! por meu escudo, Por meu amparo e guia! Na Sé de Lisboa na quarta feira de trevas 1888. XI FÉ E RASÃO A CRUZ E O PÁRA RAIOS Da velha cathedral, esbella e rendilhada, Votada a ser mansão do Deus, author do mundo, Na flecha a mais gentil, campeia abençoada A cruz do Redemptor, da Gallilêa o oriundo! Nos impetos da fé, cortantes como a espada, O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo, Aponta á multidão, humilde e ajoelhada, Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo! Em nome d'ella exalça a fé porque a aviventa, E diz mal da rasão que tenta, em vãos ensaios, Dos ceus arrebatar a luz, de que é sedenta! Mas do alto onde ella está, que causa até desmaios, Temendo que a derrube o fogo da tormenta: Em nome da Rasão lhe pôe um pára raios!... Outubro de 1888. XII AMOR E PROVIDENCIA Em quanto eu, alta noite, velo e lido, Por vós mantendo innumeros cuidados, Dormis, caros filhinhos, socegados Em torno a mim o sonho appetecido! Dormis?! sonhaes de certo... e eu pae envido Meus esforços por vêr realisados Vossos sonhos gentis e perfumados: Ampara-vos um peito estremecido. Outro Alguem faz por nós o que eu vos faço: Com suprema bondade e sapiencia, Rege os mundos que rolam pelo espaço! Esse Alguem é o Amor por excellencia, O formidavel e invisivel braço, E o olhar que nunca dorme==_a Providencia_==! Lisboa, 1885. XIII Á GUERRA! O QUE EU SINTO... Se vejo com pavor as luctas carniceiras Que empenham as nações, chamadas as primeiras, Nos campos da batalha, Ah! quando a sós comigo e o Eterno me concentro, Ouço não sei que voz a mim bradar cá dentro: ==É Deus que ali trabalha==! Por mais que ousado vôo aos ceus a aguia eleve, Nos ceus ha um limite além do qual em breve Fallece a aza e taes Como as aguias os reis!... Subiram, mas solemne. O dia ha de chegar em que Deus os condemne E brade-lhes==Não mais==! No chão não ha raiz que diga á Terra==estanca A seiva que me dás==! Nem aguia ou pomba branca Que engeite o vôo alado!... Não ha um lavrador que entaipe em cal e pedra A fonte de chrystal, de cujas aguas medra A arvore, a flor, o prado!... E onde ha no mundo um povo a outro povo extranho?!... Ou odio figadal, intrinseco, tamanho Que a todos nos divida?! Se a Terra, o mar profundo e o proprio sol são pouco Por darem vida a um lyrio: haverá hoje um louco D'um Cezar que decida, D'encontro ás sabias leis por Deus dadas ao mundo, Que um homem, cujo peito infinito e profundo Abrange a Terra e os Ceus, Guerreie o proprio irmão que é d'elle a propria essencia, A luz, o ar, a vida, a força, a providencia, Que deste-lhe, meu Deus?! Oh não!... Tu mandarás o dia em que a Justiça Obrigue-os a expiar com fronte submissa Dos crimes o estendal Que encheu de sangue e horror as paginas da Historia, Servindo de lição, ficando por memoria, Em prol do teu Ideal!... E o mundo hade voltar á fonte d'onde veio, E ser todo elle amor, justiça e paz!... Já leio Signaes _de nova Luz_!... As crenças do Passado estando já em terra, Vem prestes a surgir a nova Lei que encerra Os sonhos de Jesus!... E eu beijo e adoro a mão que impelle e rege o mundo, Que deu a flor ao campo; os sóes ao firmamento, E o espirito divino Aos nossos corações! Que a toda a creatura, Á flor que desabrocha, ao astro que fulgura, A todos deu destino! Por isso eu n'este mar, sobre este chão d'abrolhos, Por onde cae amaro o pranto dos meus olhos, De fito no Senhor, De fito no Ideal, minha alma não se inquieta: Confia e sobe a Deus, é como a borboleta Que vae poisar na flor! Bussaco, 1870. XIV Á PAZ DOS POVOS HOMO, EX HOMINIS LUPO, HOMINIS COOPERATOR De lobo te foi dado outrora o nome, Lobo que a propria especie devastava Cruento e fero, qual não viras nunca Leões, pantheras, tigres ou chacaes!... E a fera, quando a fome A incita, é quando crava O dente e a garra adunca Nos miseros mortaes. Da massa do teu cerebro colhendo A luz consciente e pura das ideas, Concebes mil engenhos homicidas, Inventos d'infernal destruição! Com elles, monstro horrendo! Ha seculos semeias, Em guerras fratercidas, A morte e a assolação!... Mas como as forças cosmicas da Terra Cessaram suas luctas de gigantes, Trazendo á luz do Sol, d'amôr sedenta, Dois mundos revestidos d'esplendores, O mineral que encerra Os fulgidos brilhantes; E o vegetal que ostenta O olhar gentil das flores: Assim as mil paixões que a tanto custo Contem teu peito e o rubro sangue agita, Por ultimo hão de ter a vida calma Que impõe por norma a tudo a Providencia; E o Bello, o Bom e o Justo, Na sua acção bemdicta, Levar-te aos seios d'alma A paz da consciencia! Do sol os raios que dão vida ao globo; Da vida a força multipla que actua Em prol de cada qual, para que tomem Quinhão no Bem, que é dado como a luz: Reclamam nos que o Lobo, Da historia se destrua, E dê lugar ao homem Sonhado por Jesus! Se o cahos do teu peito foi sequencia Do cahos primitivo da natura: Terá tambem destino egual ao d'este; Dará um quarto mundo, o da Verdade!... O da alma, cuja essencia Incorruptivel, pura, Procria a luz celeste Do Bem, na Humanidade! Ver-te-has então qual Semideus Consciente! O sangue que pecorre em tuas veias, Origem dando a fulgidas doutrinas, Ás nitidas noções das coisas bellas: Tua alma um resplendente Santuario, onde as ideias Serão luzes divinas, Mais puras que as estrellas! Antithese da Vida do Passado, Compete-te integrar na Terra os Povos; E, chave do vastissimo problema Da Vida humana: honrando o Redemptor, Nos ceus tem Deus traçado Aos teus destinos novos, Por synthese suprema, A Paz, o Bem, o Amor! 25 d'abril de 1898. XV AO HOMEM Segundo as tradicções que vão sumir-se Na noite secular das priscas eras: Rugiram contra ti, Homem, as feras, E as coleras do mar; Dos ceus revoltos os trovões e os raios; Qual reprobo vivias no universo Inerme, nu e só, na sombra immerso, Sem Deus, sem luz, sem lar!... Apoz infindos seculos de lucta Co'as forças implacaveis da materia, Soffrendo, em toda a escala da miseria, O frio, a fome, a dôr: Venceste, e oppões ás lugubres cavernas, Á escura habitação dos trogloditas, Os fulgidos palacios onde habitas, Conscio do teu valor!... Imperios contra ti ergueram despotas, Quaes moles collossaes architectadas, Assentes no prestigio das espadas, Nas mãos d'um Pharaó, D'um habil Julio Cesar; mas as moles, Minadas pela acção do povo obscuro, Cahiram como cae um fragil muro No chão desfeito em pó!... No intuito de livrar teu grande espirito Dos vinculos do mal e enobrecel-o, Tomas-te a Jesus Christo por modelo Das tuas concepções; D'accordo a espada e a cruz, a lei e o dogma, De ti fizeram novamente escravo, Mas tu, inda outra vez, altivo e bravo, Partiste os teus grilhões!... Por ultimo lançando mão das forças Da Terra tua mãe, das leis da Historia: Apenas em tres seculos de gloria, Com mil prodigios teus, Mudas-te totalmente a face ao mundo, E propões-te a fazer o mesmo á alma, Porque esta, resplendente, justa e calma, Triumphe á luz dos céus! Forjou a mão de Deus no sol teus raios!... D'ahi todo o esplendor, todo o prestigio Do teu almo poder! o grão prodigio Das tuas concepções, Que em marmore e crystal, em prata e ouro, E em tellas formossissimas, transmittes De mão em mão, sem conta, e sem limites, Ás novas gerações!... Na terra, erma de Luz, Homem surgiste, Trazendo no teu rubro sangue a Ideia, A luz que doma o fogo, o apaga, o atêa, E o faz descer do céu Humilde como um cão!... Poder terrivel, Que Jupiter temeu, quando, iracundo, Mandou prender, por dar exemplo ao mundo, Na rocha a Prometteu!... D'ahi a mola occulta, a força ingenita, A causa porque tu, no ardor da guerra, Revolves sem cessar o céu, a terra, A alma e o coração, E fazes e desfazes, sem descanço, Systemas, religiões, philosophias; Depões a Deuses, reis e tiranias, Em nome da Rasão!... Por veres quem tu és e quanto vales: Das proprias obras faze o claro espelho, E escreve em face dellas o evangelho Da nova religião, O authentico, o real, o verdadeiro; Que em vez do degradado filho d'Eva, Com ligitimo orgulho a Deus eleva Tua alma e coração! Senhor das energias infinitas Do mundo, com que Deus teu pae reforça Teu multiplo poder: expulsa a força Que os despotas produz; Levanta novamente altar e templos Ao Bello, ao Justo, ao Bem, á Sapiencia, Afim de que na Terra a Consciencia Impere em plena luz! Em vez de Força, Amôr rege hoje o mundo!... E Amôr, se toma as normas da Justiça, Fará com que, empenhando-te na liça D'um ideal melhor: Floresçam sobre a Terra, em prol de todos, Honrando a Deus, servindo a Humanidade, Os sonhos de pureza e de bondade De Christo, o Redemptor!... Terás no espaço os soes por companheiros, Comtigo permuttando noite e dia, Na sua eterna e placida harmonia, Os mil problemas seus!... D'accordo Deus e a alma, o ceu e a terra: Verás com resplendor a tua Ideia, Chamando-a á vida, em tudo onde campeã O espirito de Deus! 1892. XVI Á MULHER Senhor da Força, nós, o heroe lendario, Da Terra o domador, o sabio, o forte, Dir-se-ia que jurámos ante a morte Guerra d'irmão a irmão!... Mais féros do que os tigres, destruimo-nos A ferro, a fogo, a polvora, a metralha, Deixando, pelos campos de batalha, O sangue, a assolação!... Mudou agora o Eterno ao mundo a rota Que ha seculos trazia,... e novos astros Despontam no horisonte, e em nossos mastros Mais rutilos tropheus!... Em vez da guerra truculenta e impia, Impõe-nos por principio a Paz dos Povos, Que impavidos demandam mundos novos, Nova luz, novo Deus!... Fechado para sempre o ferreo cyclo Da guerra universal, obscuro berço Do velho mundo barbaro, inda immerso Nas lendas dos heroes: Compete a Ti, Mulher, filha dilecta De Deus, c'roar na Terra a grande obra, Que em fulgido progresso se desdobra, Á clara luz dos soes!... Missão mais nobre á vida humana é dado: Juntar e repartir de muitos modos, Por cada um de nós, e em prol de todos, Do Bem a eterna luz, Fazendo com que caiam na nossa alma, Qual chuva em messe loira e movediça, N'uma missão d'amor e de Justiça, Os sonhos de Jesus!... Em vez da Força, Amor rege hoje o mundo! E amor, tomando as gallas da Belleza, As normas de Justiça, a mãe, a deusa Das novas gerações: Ao teu celeste influxo, posto á sombra Da mãe de todos nós, a _Humanidade_, A paz será na Terra, e na Verdade Os nossos corações!... Belleza e Amor, unindo-se, fizeram Do teu mimoso ser um relicario, Onde a mão do divino estatuario Os sonhos seus guardou!... D'encantos mil, conjuncto incomparavel! A Deus já mereceste tal conceito, Que só do amor divino do teu peito, A vida confiou!... Teu lindo rosto, espelho da sua alma, Transporta-me a ideaes de tal apreço, Que em frente d'elle extatico estremeço, E ponho-me a scismar: Se entre as ondas de graça e de belleza, Que lançam sobre mim seus olhos ternos, Está ou não occulto a bemdizer-nos De Deus o proprio olhar!... Tem jus as niveas formas do teu corpo Ao flácido velludo, á fina seda, Primor da industria humana que arremeda As petalas da flôr! Rainha! traja mantos d'ouro e purpura, A doce perl'a, o fulgido brilhante, E tudo quanto esplendido levante Na Terra o teu amor! Amor se symbolisa n'um menino, Dos ceus gentil e alado mensageiro, Trazendo atraz de si, como um cordeiro, Pacifico leão! O magico poder que a fera doma, A força de que se arma esse innocente És tu mulher, e a fera obediente O nosso coração! Conscia de Ti, das leis da vida, impera! E aos pés verás as almas subjugadas! Tem mais poder que o fio das espadas, Um riso e olhar dos teus! Que o teu propicio amor, dos ceus oriundo, Nos doure a vida, a ampare, a dulcifique, Nos faça com que a alma humana fique Mais proxima de Deus! 1892. XVII AOS FILHOS Trazidos pelo Amor, que por instantes, O veu ergue á Verdade, Por nós á luz vieram, quaes prestantes Peões da Humanidade!... Amor é quem dos ceus nos abre a porta, Nos deixa vêr o intuito De Deus na Terra, e a elle nos transporta Da amante o olhar fortuito! Em nós n'um sonho lindo tendo origem, Se o sonho a Deus encerra, As sabias leis da historia humana exigem, Que o sonho desça á Terra!... Dos paes vingasse o amor, que este o faria Entrar na realidade, Expondo a divinal sabedoria Em plena claridade!... Com legitimo orgulho o sol dar-lhe-ia Seus raios sempre novos; E a Terra os bens innumeros que cria Em paz, a bem dos Povos! Em vez de irmãos maleficos eivados De odios que o sangue atiça, Os bons e os maus ver-se-iam congraçados Em nome de Justiça! Em frente das pacificas moradas, Jasmins, lyrios e rosas!... E as ruas que pisamos marchetadas De pedras preciosas! Tal o sonho que passa pela mente D'um pae creando os filhos, E n'essa fé remove deligente Milhares d'empecilhos!... Mas fal'o em vão, que o mundo, sob um pacto Cruel co'o odio eterno, Lhe põe em derredor, injusto e ingrato, Em vez do ceu, o inferno!... Ás vezes chega a ter-se horror ao homem, Ás suas impias luctas, Ao termos de entregar o peito joven D'um filho ás feras brutas!... Antithese do Bem em que inda espera, Pergunta dolorido Um pae a Deus: se accaso lhe valera Seu filho ter nascido!... Emfim é lei, e a lei, ideal supremo Bemdicto e sublimado, Fará com que passemos d'este extremo Do mal, ao Bem sonhado!... De Deus a Idéa amplissima, infinita, Qual filha ao lar paterno, Em torno a Deus explendida gravita, No seu percurso eterno! E tal como do cahos pavoroso, Que a custo eu mal devasso, Surgio mais tarde o mundo esplendoroso, Que rola pelo espaço! E á eterna luz dos soes no firmamento, Celeste peregrino, Caminha sem cessar no seguimento D'um Ideal Divino: Assim o coração febril se arrasta, Na sua lucta immensa, Atraz do Bem Supremo, e tanto basta Por base á minha crença!... Buscando o summo Ideal por entre antitheses, Fazendo e desmanchando: O espirito concebe as largas syntheses De Deus, de quando em quando! Ao fim de cada qual resurge a Vida, E muda os moldes velhos Por outros que se ajustam á medida Dos novos evangelhos!... Sobre isto a historia offerece-nos exemplos!... Os criticos deparam Co'os netos desmachando um dia os templos, Que seus avós sagraram!... D'ahi os odios vãos de fanatismo; Os multiplos revezes, Que assolam as nações co'o cataclysmo Das crenças muitas vezes! Quem do alto vé, no entanto, a historia humana, Contempla sorridente A marcha dos destinos porque emana D'um Pae ommisciente! Passem nos ceus, com rapidez tamanha, Os astros diamantinos; Que a terra os segue; a terra os acompanha Eguaes são seus destinos!... Aquillo que ha de vir e que deriva D'aquillo que hoje somos, Que em si contém do Eterno a parte viva, Nos filhos o depomos!... Os filhos são da arvore da vida A flôr dos novos fructos, A quem de Deus a essencia é transmittida, Com os seus mil attributos! E os paes então o fructo assasonado, Já proximo da queda; Com elles cae a parte do Passado Que é morta, e Deus arreda! E quem nas leis divinas confiando, Á fulgida seara Do bem se consagrou, não morre quando Dos vivos se separa!... Contente desce em paz á sepultura, Na crença de que os filhos Verão mais tarde em plena formosura Dos sonhos seus os brilhos! Na marcha ascencional da humana historia, Que a mão de Deus conduz, O filho entrou na Luz que é transitoria, O pae na eterna Luz!... Á farta os vermes seu cadaver róam Na campa onde se esvae! Sua alma triumphante e os soes entoam Hossana a Deus que é Pae! Abril de 1898. XVIII Á HUMANIDADE Estrellas que rolaes no espaço ethereo N'um vertice de luz vertiginoso, E em numero sem conta e sem repouso, De Deus cumpris altissimo mysterio! E vós flôres gentis, purpureas rosas, Roxas violetas, candidas boninas, Que abris, tomando formas peregrinas, Á luz do Sol as petalas mimosas: Commigo erguendo a vóz Ao throno da Verdade, Saudae a Humanidade, Que é mãe de todos nós! Materno amor, que tanto admiro e acato, Perenne luz vital do Ser Supremo, Ante cujo esplendor confuso eu tremo, Se sondo o teu Santissimo mandato! Ou sejas tu mulher juncto do berço Com terno olhar velando o teu filhinho; Ou tu maviosa rola no teu ninho; Bemditas no concerto do Universo: Por tão divinos bens, No intimo do peito, Votae sentido preito Ao symbolo das mães! Mulheres que prestaes culto a Maria, Á virgem Mãe de Deus, cheia de graça, Doçura, vida e esperança onde se enlaça O vosso coração de noite e dia! E vós ingenuas multidões que hei visto Com ar tristonho, humilde e miserando, Nos templos de mãos postas adorando Por vossa padroeira a Mãe de Christo: A Virgem que adoraes, Tornou-se a precursora Da mãe que surge agora Aos olhos dos mortaes! A mãe que em vez dos tristes filhos d'Eva, Levanta aos ceus os filhos redemidos! Em cantigos transforma os seus gemidos! No Bem o mal, na doce luz a treva! A mãe que os filhos todos encaminha Ao Summo Bem, que traz no peito occulto; Erguei-lhe pois altar, prestae-lhe culto; Tem jus a que brandeis==Salvé Rainha== «Bemdito sê nos ceus!» «Bemdito sê na Terra!» «Sacrario onde se encerra» «O Espirito de Deus!» Oh povos que viveis sob a vigilia Do olhar supremo em toda a redondeza, Formando pelas leis da natureza E os vinculos moraes, uma familia: Sabei que cada qual, tendo-a comsigo, Trará como um clarão na consciencia, Um rutilo fanal, a Providencia Que o pode redimir na hora do perigo! Interpretes de Lei Divina, e para exemplo, Em honra d'ella um templo Na alma humana erguei! Estrellas, flôres, mães, sabios e crentes, Vós todos que formaes a eterna cahorte Dos bons, dos que perante a vida e a morte, De Deus esparsem raios resplendentes: Por preito á obra santa e redemptora, Que põe a Terra e os ceus em harmonia, Como alto solta alegre a cotovia A limpida canção á luz d'aurora: Á minha unindo a vóz, Cantemos creaturas, Hossana nas alturas Á Mãe de todos nós! 1897. XIX AO NOVO CYCLO HISTORICO AO TRIUMPHO DO ESPIRITO Homem! sob o docel das fulgidas estrellas, Que espalham pelos ceus de Deus o Ideal jocundo, Surgiste insciente e nu, por entre mil procellas, A custo iniciando o teu Poder no mundo!... A Terra, que ha de ser mais tarde o teu Imperio, Theatro e pantheon dos teus tropheus de gloria, Prendeu-te inerme e escravo, e impoz-se ao teu criterio Terrivel como um Deus, no escuro humbral da Historia!... No fundo do teu Ser, que sabias leis dirigem, Rompia ainda incerta, envolta em serração, Tua alma, cuja luz transporta o mundo á origem Do Bello, Justo e Bom, do Amor e da Rasão!... Que seculos sem fim primeiro que desvendes, Dos vinculos da carne, esse fanal divino!... Que lugubres visões!... Que espectros!... Que duendes!... Que espiritos do mal, turvavam teu destino!... Que o digam as ficções do extincto fetichismo!... O numero sem fim dos deuses dos selvagens!... As tetricas visões da Fé no Judaismo!... Do inferno dos christãos as lobregas voragens!... Mas tudo emfim venceste e hoje sôa a hora De veres sem pavor a estrada percorrida!... De creres já em ti, em Deus, na luz d'aurora Que encerra um velho cyclo, e um novo te abre á Vida!... Deus fez d'esse teu peito um campo de batalha Das luctas no Universo!... E ahi foram mantidas, Em nome do Ideal que a terra e os ceus trabalha, Medonhas convulsões e guerras fratricidas!... Decerto obedecendo a occulto e grão motivo, No plano universal da Vida a que és sugeito, As mil conflagrações do cahos primitivo Vieram a surgir de novo no teu peito!... Dois cyclos Deus traçou, d'uma orbita infinita, Dos povos do universo ás multiplas colmeias: Um vota-o as paixões que o rubro sangue agita; O outro ao resplendor sereno das idéas!... Inicio da missão primeira a que és chamado, Tu vês, em pleno horror, da força o predominio Nas feras, que, crueis, rugindo em alto brado, Se votam sem quartel ás luctas de exterminio!... Mil raças d'animaes, minados d'odio eterno, Trucidam-se, correndo o rubro sangue em rios!... Tem odios figadaes, que lembram os do inferno, Que foi a projeção de tempos tão sombrios!... Em face então do mundo acceso todo em guerra, Proclamas-te senhor e rei da creação! E levas sem quartel a morte a toda a Terra, Á pedra, a pau, a ferro, e a tiro de canhão!... Soberbo co'o poder, que d'ambições se nutre, Gravas-te nos brazões heraldicos da gloria, Das feras, o leão, o tigre, a aguia, o abutre, Quaes symbolos fieis da tua acção na Historia!... Atraz de mil visões formadas como especulos Que alcançam do Ideal a luz sempre distante, Tu fechas hoje em dia, ao fim de largos seculos, Dos Deuses, reis e heroes o periodo brilhante! Os proprios animaes, aquelles que escolheste Por symbolos fieis do teu poder, é certo Que estão-se a eliminar tambem: a morte investe Com elles por fatal e superior decreto!... A paz que hoje vaes ter por nova lei suprema, É a mesma a que attingio o propio cahos por meta; Nos páramos do azul os soes a teem por lemma Escripto a fogo eterno aos olhos do poeta!... N'um multiplo vae-vem, n'uma completa antithese Por entre o goso e a dôr, por entre a sombra e a luz, Chegas-te a conceber do mundo inteiro a synthese N'um pae celeste e Bom, no Deus que vio Jesus!... Deriva desde então do periodo primeiro O fim que se approxima e o resplendente alvor Do novo Ideal que traz o fim do captiveiro: Em vez da Força, a Ideia; e, em vez do Odio, o Amor! Teu cerebro pensante é como uma semente Que está reproduzindo a flôr do Ideal! Eterno nos traduz por forma resplendente Do seu divino author a essencia espiritual!... Do bello lyrio d'alma as petalas brilhantes Cambiam sem cessar de côr e de perfume, E levam do Porvir, aos seculos distantes, O espirito de Deus que o mundo em si resume!... É como o grão subtil que um cedro do Hymalaia Expôe formoso ao Sol, em todo o seu systhema!... Em intimo labor co'as leis da Vida, ensaia A eterna solução do divinal problema!... O mesmo estão fazendo as fulgidas estrellas, Formoso campo em flôr, ideal jardim divino!... D'ahi as mil visões das coisas as mais bellas Que exparsem sobre nós seu brilho diamantino! O mundo desde os soes da cupula infinita Ás flores a teus pés, com paternal carinho, Insuflam n'esse peito ancioso que palpita Valor para que vás seguro em teu caminho!... Tem fé no teu destino; em Deus tem confiança! Da tua historia escripta as paginas sem conta Derramam na tua alma a nova luz que avança D'accordo co'o universo e que hoje em ti desponta!... Em vez do legendario heroe das priscas eras, Das guerras extrahindo a gloria a todo o custo: Honrando o Creador, e as fulgidas espheras, Serás, qual semi Deus, sereno, sabio e justo!... É este o Ideal que as leis da natureza Inspiram com sublime e candida alegria!... Que as normas da Rasão, que as pompas da Belleza, E as maximas do Amor, reclamam noite e dia!... O mesmo ensina o mar que arqueja palpitante, Da terra enviando a Deus seus canticos d'amôr!... O mesmo o terno olhar dos olhos d'uma amante; O augusto erguer do Sol, o calmo abrir da flôr!... O cyclo que hoje se abre, embora ainda incerto, Vem dar um novo rumo á tua antiga historia; Vem pôr-te em equilibrio, em intimo concerto Co'a vida universal, de que és a alma e a gloria! É esta a nova Fé que em tuba altisonante, Interprete da Vida, entôa a voz da musa!... Correi, povos, a ouvir-lhe o seu clamor vibrante!... O espirito de Deus em sua vóz se accusa!... Novembro de 1898. XX NOVA LUZ! NOVO IDEAL! Espirito Supremo, d'onde brota A luz que eterna os mundos alumia, E deixa pelo espaço uma harmonia Echo da tua vóz! Inspira-me a assistir, sereno e impavido, Ao funebre ruiz do christianismo, E d'este inevitavel cataclysmo Salva-te a ti e a nós! A Ti, o forte, o sabio, o justo, o symbolo De toda a perfeição, a ti importa Que d'esta fé, tornada letra morta, Vejamos renascer Do mundo novo a crença ardente e rutila, Co'o magico fulgor da nossa Ideia, O espelho onde melhor se patenteia No mundo o teu poder! Ao teu olhar religiões sem numero, Com ritos, cultos, cheios de fulgores, Desambam, como as petalas das flôres Ao Sol que as reproduz!... Que um novo Ideal d'amor, de ti nascido, Trajando d'ouro e purpura o horizonte, Das sombras de hoje, esplendido desponte, A dar-nos nova luz!... Outra verdade, filha d'estes tempos, Que venha a nós em nome teu, n'esta hora, Matar a sêde ardente que devora Os nossos corações, Depois que á intensa luz de mil combates, Travados pela fé contra a Sciencia, Começa-se a apagar na consciencia O ideal christão! A Ti attraes as almas como as aguias De monte em monte a prole aos ceus subindo, Fazendo com que attinja o espaço infindo Que abarca o seu olhar!... De Brahma a Budha, de Moysés a Christo, Se fez essa ascenção prodigiosa, Ao fim do qual a alma é desejosa De a novos ceus voar!... Ah d'esta vacuidade em que se encontram Os nossos corações cheios de febre, Que uma alma nova irrompa e audaz celebre Suas nupcias d'amor Co'o mundo que lhe coube por partilha, Passando a co-existir serenamente, Harmonica, feliz e resplendente, Como ante o Sol a flôr!... Por nós, que não por ti, que és intangivel Ás frageis condições da vida humana: Perante o aspecto triumphal que emana De toda a creação: Convem-nos expurgir do fundo d'alma, Da fonte onde se gera o pensamento, O cunho de tristeza e desalento, Que imprime o ideal christão!... Ha na verdade em tudo o que é belleza, E força e vida e amor nas creaturas, Desde os astros que brilham nas alturas, Á flôr a nossos pés: Tanta porta do ceu a abrir-se á alma; Riqueza tanta e tanto amor occulto A revellar-te a Ti, que é justo um culto Erguer-lhes outra vez! Digamos a verdade: uma semente, Que eterna e intacta a arvore resume, Com troncos, folhas, flôres e o perfume Que entrega ás virações: Encerra em si mais luz, lição mais pratica, Mais digna de por nós ser apprendida Qual maxima d'amor, e ideal da vida, Que um livro d'orações! Tua alma é presa ao mundo que creaste E o mundo, cuja orbita infinita Abrange a Terra, e os Ceus, onde palpita D'amor teu coração, Tem jus a que façamos d'elle a Biblia Eterna, aonde apprenda a Humanidade, Sedenta de Justiça e de Verdade, A nova religião!... Ah tens a executar teus vastos planos D'amor, e de Justiça, aurifulgentes, Fanaticos aos mil, e mil videntes, E innumeros heroes, De varia estirpe: o artista, o justo, o sabio, Buscando interpretar teu pensamento; E encontram pelo azul do firmamento No mesmo afan os soes!... Que á tua vóz as gerações extinctas Resurjam e contemplem com surpreza Esta obra immensa, cheia de belleza, Que em multiplo labor, As novas gerações estão fazendo!... Que em nome da Verdade triumphante, Unisono na Terra se alevante Este hymno em teu louvor! 1889. XXI APPELLO SUPREMO! A minha alma immortal n'este exilio onde existe, Abrigando no seio a ideaes tão risonhos, E entre os homens só vendo um sarçal ermo e triste, Onde outro'ra plantára o jardim dos seus sonhos: Teve a sorte cruel d'uma flôr, que enganada Pelos raios do sol, ainda inverno e entreabrio; Mas que dias depois, co'o cahir da geada, E o soprar do nordeste, afinal, succumbio!... Assim foi para mim o florir dos amores, N'essa quadra febril em que o sangue é fecundo, Quando rompe a manhã, quando abrem as flôres, Quando o Sol brilhante e o azul é profundo!... Nem ha rocha no mar, pelas ondas batida; Nem ha nuvem no ceu, pelo vento açoutada; Nem ha rosa n'um val' pelo sol esquecida, Que se possa dizer mais do que eu desgraçada!... Mas se o mal nos incita, e Deus quer nos transporte D'um estadio a outro estadio atravez muito custo, Em demanda do _Bem_, que triumpha da morte: Deves crêr do Porvir no Ideal santo e augusto! E se foste, minha alma, a illudida afinal, Quando crêste emplumar nesta quadra o teu ninho,... Pede a Deus que te envie aquella hora fatal Que abre a porta á Verdade e vae tu teu caminho!... Oh Justiça increada! oh meu Deus! oh meu Pae! Tu que a mim me mostras-te o teu seio, esse abrigo Da _Bellesa_ e do _Amor_, que me envolve e me attrae: Dá-me as azas Senhor, com que vá ter comtigo!... Lisboa, 1869. XXII REFUGIO ULTIMO! Deixa, Senhor, do mundo em que eu habito A ti meu ser se evol'!... Tem jus aos ceus quem mede esse infinito Que vae de sol a sol!... Sonhei na terra, amando-a muito e muito, Novo Deus, nova lei; Mas foi, pura illusão, baldado intuito, Comtigo só me achei!... Suppuz em vez do gellido egoismo, Da guerra surda e atroz D'interesses, em perpetuo antagonismo, Que envolve a todos nós: Homens, povos, nações, por varios modos Unidos, dando as mãos: _Todos por um, valendo um só por todos, Vivendo como irmãos!..._ É fé que sigo, é crença que mantenho: Que em mysterioso nó Unis-te os homens, com supremo engenho, Formando uma alma só; Em serviço da qual cada individuo, Com multiplo labor, Trabalha por lhe dar, no esforço assiduo, O maximo esplendor!... Quão mais estreito o vinculo fôr dado, Mais luz hade irromper Do nosso coração, do amor gerado No ventre da mulher!... Tal o sonho que em dias mais felizes Ao mundo consagrei!... Como hade aqui lançar fundas raizes: A ti contente irei!... Se um raio de calôr ou luz, prestantes, A terra a si prendeu: É vel'os como, em rapidos instantes, Se evolam para o céu; E como, n'um sentido em tudo opposto, A pedra na amplidão, Quanto mais alto attinge, com mais gosto Gravita para o chão!... E eu não gravito: eu subo na vertigem D'um céllico condor A demandar em ti, na propria origem, Belleza, luz e amor! Permitte, pois, do mundo em que eu habito Meu ser a ti se evol': Tem jus aos ceus quem mede esse infinito Que vae de sol a sol! Novembro de 1868. LIVRO SEGUNDO ESPELHO DUPLO O MUNDO E A CONSCIENCIA I ALVORADA Algures brilha o sol no azul do firmamento, E expõe com resplendor das cousas o espectaculo! Aqui, na escuridão, o mundo é tabernaculo Onde os frageis mortaes descançam um momento!... Alem, o Sol incita o mundo ao movimento, Á lucta pela Vida, o esteio e o sustentaculo Desde o ser da Rasão ao minimo animaculo, Aqui, o somno esparse em todos novo alento! Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida, A essencia do meu Ser, a minha propria Ideia, O proprio Deus, talvez!... _Belleza, Amor, Verdade!_ Atraz de Ti caminha a Terra, mãe querida! Bemdito caminhar! Por Ti minha alma anceia!... Bemvinda sejas, pois, oh doce claridade! Lisboa, 1898. II Á LUZ Oh Luz dourada e pura! Oh Luz, irmã do Amor! Espelho e formusura Da Alma do Senhor! Em ti eu vejo e abraço O author da creação, Soltando pelo espaço Explendida canção Meus olhos que te admiram, Bem como a Terra e os Ceus, Ao verem-te, sentiram O proprio olhar de Deus! O ceu, mal vens n'aurora, Mais alva que a alva lã, De purpura colora As faces de manhã! A Terra, envolta em galas, Mais bella que as Huris, Reveste-se de opálas, De perolas e rubis! As aves innocentes, Sentindo o teu fulgor, Gorgeiam, de contentes, Seus canticos d'amor! Os lyrios junto ás fontes, Perdendo o teu clarão, As suas lindas fontes Inclinam-se para o chão! Eu mesmo, se em verdade Sonhei, com Jesus, O bem da Humanidade, A Ti o devo oh Luz! Oh candida alegria! Espirito de Deus, Que animas noite e dia A Terra, o mar, e os ceus, Adoro-te portento!... E a Ti levando as mãos, Como ante o sacramento! Os simplices christãos!... D'esta alma és o esteio! Que a tua essencia pura Ampare-me no meio Da minha desventura!... E quando a morte um dia Roubar aos olhos meus, A esplendida harmonia Que formam Terra e ceus: Seguindo prasenteiro A lei que me conduz, Meu grito derradeiro Será por ti oh Luz! III AO SOL! Oh maravilha esplendida engastada Na fronte augusta do azul profundo, Qual lamina brilhante onde gravada Se visse a face de quem fez o mundo, Eu te saudo oh Sol? qual religioso O Indio quando viu a vez primeira Surgir do mar teu facho luminoso E alegrar com a luz a terra inteira! Ah! quiz cantar o braço omnipotente Que por nós trabalhava a cada instante: E a terra, o mar, e quanto vive e sente, Apontou para Ti, astro brilhante! Possam teus raios que nos ceus se expandem Ricos da gloria e cheios d'alegria, Fazer com que do peito meu debandem As sombras da tristeza que trazia, E ouve-me um canto alegre como o côro Das aves quando, envolto em magestade, Tu transpões do oriente as portas d'ouro E abençoas dos ceus a Humanidade! Oh astro, coração tres vezes santo, De cujo seio foi por Deus emmerso O movimento e a vida e tudo quanto Forma hoje a harmonia do Universo! Ouvi louvar-te, num concerto vario, Montanhas, mares, flôres e arvoredos, Que do meu peito, como d'um sacrario, Confiaram seus intimos segredos! Louvam-te as aves; louvam-te as creanças, E os velhos que não teem fogo nos lares, Buscando a doce luz que tu lhes lanças, Como a imagem de Deus junto aos altares! Louva-te, oh Sol! a terra a quem quizeste Por tua esposa, na epocha sombria, Em que de crepe a abbobada se veste, Lacrimosa chorando noite e dia; E os jubilios e os mil festões de gala Com que cingio de noiva delirante A casta fronte, quando a enamoral-a Sentiu de novo o teu olhar brilhante! Oh Sol! oh Sol! a minha lingua é pobre Para cantar-te em verso o quanto vales Perante as maravilhas que descobre A vista humana por montanha e vales!... Desde o negro carvão que o fogo atêa Ao cédro altivo que no mundo avulta; Desde o meu sangue á luz da minha idêa: Por tudo existe a tua essencia occulta!... Hostia de luz esplendida, patente Perante os povos em perpetua missa! Tu, que és de Deus o espelho resplendente, Throno de gloria e séde de Justiça: Se apagares nos ceus teu facho enorme, Suspensa a vida no labor interno, Tu verás como a terra logo dorme Entre as sombras da noite um somno eterno!... Seja pois o meu canto um desafogo Da nossa gratidão, astro, jocundo! Coração formosissimo de fogo Que em nome do Senhor dás vida ao mundo! E prosegue no carro flammejante A derramar teus bens por mundos novos, Que emquanto vês na marcha triumphante Infindas tribus d'animaes e povos: Eu, deslumbrado ainda com os vestigios Da tua luz, de tantas coisas bellas, Louvarei o author de taes prodigios Sob esse manto esplendido d'estrellas! Lisboa, 1872. IV AO MAR! Senhor! eu canto o mar, que no psalterio D'esses orbes de luz que além se avista, Com a vóz d'um tristissimo psalmista Teu nome ousa louvar no espaço ethereo! Canto o apostolo, o mestre da Verdade, Que, aprendendo de ti altos segredos: Contra os negros tyrannos dos rochedos Vae prégando o sermão da Liberdade! Ah cuja grande vóz, d'além do abysmo, Apraz-me ouvir por noite tenebrosa Imponente crescer, bramir raivosa D'encontro á rocha onde eu medito e scismo! Eil'o sempre n'aquelle arfar profundo, Em lucta collossal, guerra infinita, Contra o sopro do ceu que eterno o agita, Desde o dia em que Deus o trouxe ao mundo! Se tudo quanto ahi á luz se cria, Tudo trabalha mas descança e dorme, Porque anda sempre oh mar, teu seio enorme N'essa lucta cruel de noite e dia?! Em ancia egual só tenho a comparar-te Á marcha d'esses mundos que o Senhor Tornou em corações do seu amor, Para a vida accordar por toda a parte! Tu és o irmão dos astros; és da Terra O immenso coração profundo e triste, Que eterno off'rece a vida a quanto existe, Co'o auxilio do Sol, que tudo encerra!... Ah muito seja embora o desgraçado, Muita a miseria occulta n'esse abysmo, Desde as scenas do horrivel cataclysmo, De que resam as biblias do Passado: Eu vejo em ti o pae dos pobresinhos, A quem nada deixando as leis avaras, Tornas-te-lhes os peixes em cearas, Para matar a fome a seus filhinhos!... O eterno confidente de infelizes, De quem pareces ser tão grato espelho, Que servindo para elles d'evangelho, Eu não sei que palavras tu lhes dizes, Que fico ahi por tempos esquecidos, Tão preso a escutar-te a voz das aguas, Que obtenho acalmar a dôr ás magoas E adormecer meus males tão compridos!... Oh! mar! oh! mar! quando eu a sós medito Nas rochas sobre os pincaros calado, Recorda o teu rumor cadenceado Um pendulo suspenso no infinito!... Harpa de Deus exposta aos quatro ventos, Onde o sopro, que a vaga á vaga impelle, Descanta harmonioso um hymno Áquelle, Que a terra e os ceus encheu de mil portentos!... Quer a colera accesa da tormenta Te divida em terriveis multidões De tigres, de pantheras, de leões, Rugindo em cada vaga que rebenta; Quer ouça pelas algas verde negras, E as praias solitarias onde eu choro... Cantar o teu amor em vasto côro De rolas, rouxinoes ou toutinegras: Ou fera ou pomba, egual amor me atêa O teu gentil amor e altivo orgulho, Quando este arroja á praia o pedregulho, E aquelle as lindas conchas lhe semeia!... És sempre o mesmo! És sempre o grande amigo, Sobre cuja espantosa immensidade Vejo passar o sopro da Verdade, Da doutrina de Deus, que adoro e sigo! Buarcos, 1869. V ÁS NUVENS Vapores que em vistosos cortinados Armaes dos ceus o templo de safira Com purpura e finissimos broxados, Sêde hoje o assumpto para a vóz da lyra! Que eu quero ter a intima certeza Que, antes da hora da fatal partida, A minha alma no mundo fica preza Ás coisas bellas que adorei na vida... Horas felizes que ainda hoje eu passo, Pelas tardes calmosas do verão, Seguindo-as uma a uma pelo espaço, Dizei ás nuvens se eu as amo ou não!... Eu que vou pelo mundo imaginando Visões sobre visões, sempre illusorias: Comprazo-me em vos vêr de quando em quando, Fórmas aereas, sombras transitorias!... Vós que nas tardes e manhãs amenas, Passando como timidas deidades, Deixaes os ceus juncados d'açucenas, D'alvos jasmins e rôxas saudades; Vós que andaes presurosas, fugitivas, Os ceus cruzando n'um lidar constante: Sorris-me como as multiplas missivas Que envia ao Sol a Terra sua amante!... Imagens lindas d'um amor jocundo, E espectros negros d'intimos rancores, Do grande coração que agita o mundo, O mar, que tem como eu paixões e amores!... Á tarde quando o Sol, cratera ardente, Vae prestes a apagar-se e, em desafago, Inflamma as grandes portas do Occidente E faz da terra e ceus um mar de fogo: Ah! deixo os olhos espraiando a vista Pelos paineis de mil preciosidades, Aonde desenhaes, com mãos d'artista, Em telas d'ouro olympicas cidades!... E agora são rochedos e campinas!... Fulvos leões e timidas gazellas!... E logo apoz castellos em ruinas, Visões d'amor, phantasticas donzellas!... Umas vezes são guerras estrondosas, Luctas crueis d'impavidos gigantes, Onde ha rios de sangue e pavorosas Sombras de heroes, e incendios fumegantes!... E outras vezes, então, nuvens ligeiras, Convertei-vos em lyrios e violetas, Em acacias floridas e palmeiras, E em vultos de Romeus e Julietas!... E eu amo a nuvem negra que imponente Abre nos ceus a fulgida garganta, E vomita do seio o raio ardente, E com elle o trovão que o mundo espanta,... E a pudibunda nuvem d'alvorada Quando, ante o Sol esplendido que assoma, Parece virgem pura e delicada, Branca de neve com dourada coma!... Oh nuvens que passaes no firmamento, Bandos aereos d'illusões perfeitas!... Vós que tão lindas sois, e n'um momento, No chão cahis em lagrimas desfeitas! Quando vos vejo pelo azul profundo, Voluptuosas, gentis e transparentes: Lembraes-me os sonhos que lancei ao mundo, Como um bando de pombas innocentes!... Bem mais felizes vós, que, n'um momento, Passando aereo fumo em valle e serra, Levaes comvosco, a vida, o movimento De quanto nasce e vive sobre a terra!... Já não assim meus sonhos, muito embora Levem comsigo as novas do futuro: São nuvens bellas d'esplendente aurora, Desfeitas sobre um chão ingrato e duro!... Carvalhaes, 1873. VI ÁS FLORES Eu venho-vos cantar, mimosas flôres, A vós irmãs da luz, gentis e bellas, Do chão que piso vívidas estrellas, Com mil perfumes, mil viçosas côres! Á vossa encantadora companhia, Toda cheia de graça e de candura, Eu devo em parte a luz serena e pura Do amor, que meu espirito allumia!... Cercando-me dos vossos esplendores, Nos quaes eu pasto dia e noite a vista, Consigo converter meu lar d'artista N'um Louvre de riquissimos lavores Em porphirio, alabastro, em prata e oiro, E em fulgidos setins!... Primores d'arte, Por onde o Artista Maximo reparte Co'os olhos meus bellissimo thesouro!... Entre nós não ha festas verdadeiras, No templo, no palacio ou na choupana, Que em todo o grão matiz da vida humana, Prescindam de vos ter por companheiras!... Ninguem na Terra vos disputa a palma D'expor, com fidelissima justeza De côr e fórma, cheias de belleza, Os varios sentimentos da nossa alma!... A timida donzella, ingenua e pura, Temendo-se dos bens que ella imagina, Nas petalas da candida bonina Procura lêr seus sonhos de ventura!... Com finas mãos, as pallidas Ophelias, Por darem mais realce aos fios d'ouro Das bastas tranças: seu cabello louro Adornam com alvissimas camellias! Afim de se dizer á bem amada Do intenso amor o rapido delirio: Da rosa pudibunda ou branco lyrio Se faz missiva pura e perfumada!... Os tristes na viuvez, e na orfandade, Roidos por uma intima amargura: Desfolham na chorada sepultura, As petalas do lyrio e da saudade!... Eu mesmo, que do publico debando; Dos mortos devorciado, e alheio aos vivos: Se vejo d'entre sonhos fugitivos, Abrirem-se-me os ceus de quando em quando; Suppondo em vida os povos numerosos, Unindo-se em espirito e verdade, Viverem ante Deus e a Humanidade, Como irmãos, solidarios, venturosos; E encontro, em torno ás candidas chimeras, Crueis dissilusões por toda a parte: Em guerra os homens, a virtude e a arte Sem o fogo sagrado d'outras eras... Oh minhas flôres! viva embora eu triste, Que as vossas serenissimas imagens Conseguem libertar-me das voragens Com quanto bello na minha alma existe!... Ah quando caio e vejo das miserias Cavar-se aos pés um sorvedoro infindo: Seguindo as esperiaes d'um sonho lindo, Por vós remonto ás regiões ethereas!... Em horas de fraqueza, horas mofinas, Se eu ouso vos fitar, sinto na face Um subito rubor, qual se me olhasse Deus Pae, sob essas formas peregrinas!... Urnas santas, a mim que deposito No vosso olôr subtil e perfumado As scenas mais gentis do meu passado, Perdidas para sempre no infinito!... Deixae que em testemunho da verdade: Do muito que vos quiz e amei na vida, Como echo da minha alma agradecida, Meu canto o atteste á luz da eternidade!... Carvalhaes, 1870. VII Á ARVORE Quando contemplo em paz teu nobre vulto Erguido aos ceus: envolto em verde manto, Supponho contemplar um justo,... um santo,... Um pae,... um Deus,... algum mysterio occulto!... Ha não sei bem que força em mim tão forte, Não sei que grande instincto inabalavel A levar para quanto é bello e estavel Esta alma, para quem só Deus é norte, Que em ti, oh mãe, em ti achei guarida... A tua sombra off'rece a paz e a esperança A quem no mundo é triste e em vão se cança Para aos ceus dirigir a propria vida!... Quantas vezes em horas d'agonia, Que deixavam meus olhos rasos d'agua, Eu não deixei ficar-te aos pés a magoa, Buscando tua sombra noite e dia?!... Quantas horas fitando os ceus pasmado Eu não passei, deixando o olhar suspenso N'aquelle vasto seio azul e immenso, Do verde de teus ramos marchetado?!... De dia, quando o Sol aquece o mundo, E os entes se propagam, nascem, crescem; De noite quando os astros resplandecem N'aquellas solidões d'um mar sem fundo: Se á tua sombra estou, sinto n'esta alma Cair da doce côr que o Sol te veste, Da paz que tens, o balsamo celeste Que em meu peito as paixões serena e acalma!... Ou quando o vento chega, e eu não sei d'onde... E passa sobre ti, murmura e canta, E eu olho e nada vejo, e a fé mais santa Me leva a crer no Deus que o mundo esconde; Ou quando á noite, n'um propicio agouro, As estrellas dos ceus que mais fulguram Das pontas dos teus ramos se penduram Como ideias de Deus em fructos d'ouro: Amo-te muito e muito, e não me admira, Quando tu á minha alma um Deus revellas E lhe mandas um hymno em que as estrellas São as notas, e a tua coma a lyra!... Oh arvore! no amor que a Ti me prende, Confesso ao mundo haver bem mais lucrado, Que em muito livro d'ouro encardenado, Que ahi se espalha e muita gente aprende!... Se eu vira, como os fructos dos teus ramos, D'entro d'esta alma abrir-se a flôr da ideia Á luz deste ideal que em nós se ateia Para que nós do mal ao bem subamos; Se ás novas gerações, no meu psalterio, Cantar podesse a nova luz que assoma, Como os orgãos da tua verde coma Lançando a vóz de Deus no espaço ethereo; Se eu fora como tu viver piedoso, E a qualquer desgraçado e pobre amigo Offerecer no meu seio o mesmo abrigo, Que estende sobre o ninho o ramo umbroso; Se eu conseguisse, emfim, levar meu dias, Perante o mal que sempre me acompanha, Como a arvore sonora da montanha, Que descanta ao soprar das ventanias: Só assim chegaria um dia a ser O espirito sereno, sabio e justo, A que deve aspirar, a todo o custo, O Senhor da Rasão, que pensa e quer! Bussaco, 1869. VIII Á TERRA Oh Terra, Virgem mãe da Humanidade, Pelos fructos que dás eu te bemdigo! Cheia de graça e cheia de bondade, O espirito de Deus seja comtigo! Tu que és do Sol a esposa immaculada, Que entre perfumes, canticos e flôres, Passas no azul dos ceus, virgem coroada Com o candido mimbo dos amores: Como escuta piedosa a mãe seu filho, E d'elle acceita o mais pequeno objecto, Ouve a harpa d'esta alma onde dedilho Por ti um canto d'entranhado affecto! Um canto aonde a propria naturesa, Em cujo seio o astro meu se inspira, Reflecte o seu conjuncto de belleza, Unindo a eterna vóz á vóz da lyra! O mar que te circunda a fronte bella, Que espelha ao longe a luz que o Sol t'envia; Te muda a negra crosta em linda estrella, E dá-te um canto cheio de harmonia; E o subtil pingo d'agua onde escondes-te D'inquietos vibriões um mar profundo, Tão vasto como a abbobada celeste, Contendo a tantos como os soes do mundo; A arvore a prumo erguida ao firmamento, Posta por Deus na paz a mais completa, Quando, ao passar-lhe o espirito do vento, Descanta como a harpa d'um propheta: E a semente da flôr, qual grão d'areia, Que, inerte, fria, escura e pequenina, Contém as pompas da divina ideia: O lyrio branco ou a rosa purpurina; O leão, implacavel creatura, Quando a victima arrasta inda arquejante Tinto de sangue, offerta-a com ternura Á leôa parida, sua amante: E a indefeza timida ovelhinha, Entre as flôres gentis do verde prado. Meiga balando á mãe que se avesinha, Por dar-lhe o leite doce e perfumado; A aguia quando solta a envergadura Das largas azas pelo azul do espaço, E, em marcha triumphal, a enorme altura Passa nos céus sem lucta, e sem cançaço; E a crysalida que abre á luz do dia Do involucro o sedifero thesouro, E, nos enlevos d'intima alegria, Expande á luz do Sol as azas d'ouro: Quanto, emfim, é teu filho a mim me pede, Que em nome d'elles eu te louve e cante, Suppondo achar n'esta alma o centro, a séde, O altar, de quanto o Sol lhe põe diante!... Oh minha mãe! a magua me entristece De que Deus, cujas dadivas divide Por tanta gente, a mim me não cedesse Para cantar-te a harpa de David!... Dos proprios paes e estranhos mal tratado, Fui pôr-me á tua sombra hospitaleira, E em teu seio de mãe abençoado Achei d'esta alma a patria verdadeira! Não sei como surgio o homem na terra!... Não sei onde os meus sonhos se dirigem...; Mas quanto bello e bom minha alma encerra, Em ti encontra a perenal origem!... Quer sobre os cumes dos altivos montes, Quer á sombra dos vales verdejantes; Quer ouça a meiga vóz das claras fontes, Quer as furias das ondas espumantes: Por onde quer que eu vá, minha alma sente Cercal'a tão solicito cuidado, Que quanto me concebe um dia a mente, Encontra sempre em ti o objecto amado!... Por isso, embora eu viva como o paria Junto ás margens do Ganges crystalino, Levando vida incerta, rude e varia, Entre os baldões d'um impobro destino: Vivo entre flôres, musicas e festas, Tendo por luz suprema o pensamento; Por palacios as múrmuras florestas, E alampadas os soes no firmamento! Por orchestras as musicas plangentes Que geme ao longe o mar no captiveiro, Com os concertos das aves innocentes, E os murmurios do limpido ribeiro! De manhã, com os crystaes do fresco orvalho, Fulgentes scintiliando á luz do dia, Pisam meus pés, riquissimo trabalho, Tapetes de preciosa pedraria! Á tarde, quando o sol deixa as alturas, Qual Vinci, Miguel Angelo ou Ticiano, Pões-me nos ceus esplendidas figuras, Como eguaes as não tem o Vaticano!... Á hora em que é dado o somno acoite Em doce paz meu corpo fatigado, Desdobras-me sobre elle o veu da noite, De fulgidos brilhantes recamado!... E quando, emfim, entrar na noite fria Do tumulo, onde nada se condemna, Do meu cadaver tirarás um dia O branco lyrio e a pudica açucena!... Taes os bens que offertas-te ás almas ternas, Simples, crentes em Deus, ideal fecundo...! E dás-lhes n'estas coisas sãs e eternas Bem mais riquezas do que aos reis do mundo!... E assim vaes entre os soes deixando o aroma Dos ineffaveis dons da Providencia, Como exhala riquissima redoma Em dourado salão a fina essencia!... Oh Terra, Virgem mãe da Humanidade, Pelos fructos que dás eu te bemdigo! Cheia de graça, e cheia de bondade, O espirito de Deus seja comtigo! Carvalhaes, 1870. IX AOS ASTROS! Quando ergo á noite os olhos scismadores Á cupula do ceu, cheia de mundos, E perco-me nos páramos profundos D'um mar sem fim de tremulos fulgores: O ceu, qual templo levantado á Vida, Armado de riquissimo thesouro, De par em par descerra as portas d'ouro, E attrae a si minha alma embevecida!... Chovem-me então das cellicas alturas, Das luminosas, candidas estrellas, Visões sublimes, ideaes e bellas Da Causa que deu o ser ás creaturas!... Amor as fez, Amor no espaço as guia!... E é sob o influxo d'esta Lei Suprema, Que cada qual realisa o seu problema, Preso ao das mais em intima harmonia!... Sim, cada estrella, vêmol'o sem custo, Sendo dos ceus bellissimo ornamento, É um centro de vida e movimento Posto ao serviço d'um principio justo!... Por todo o ethereo azul da immensidade, Dos soes sem fim a fulgida colmeia, Trabalha em traduzir, na humana ideia, De Deus a perfeição, toda bondade!... Oh cupula celeste, no teu seio Aprendo a ler em paginas de fogo O espirito das coisas que interrogo Por toda a parte, e em cuja essencia creio!... Tu, co'o teu docel azul sem fundo, Cheio de fogos d'alma claridade, Em multipla e febril actividade; Sorris-me como a fabrica do mundo; O vasto pavilhão onde é servida Em mesas d'ouro, festivaes e bellas, N'esses milhões de esplendidas estrellas, A eterna comunhão dos Bens da Vida!... Permitte, pois, que em sã fraternidade, Reunindo os habitantes d'esta esphera Aos que ha em ti, minha alma, sã e austera, Saúde a mãe commum==a Humanidade==; E adore, á luz dos fachos sempre novos, Do teu santuario, o espirito fecundo De Deus, Supremo Bem, que ampara o mundo, Inspira as almas e dirige os Povos!... E emquanto a vida vae em seu caminho, Por entre o dia claro e a noite escura, Conserva intacta esta alma crente e pura, Porque possa voltar ao patrio ninho!... Á luz da minha critica profana, A Lei Suprema, que de Deus deriva, Eleva aos soes, em marcha progressiva, De virtude em virtude a alma humana!... Se duvidas tivesse, a fé e a esperança Levavam em contrario a vida minha, E a bussola, que ignora onde caminha, Segue o seu norte e d'elle emfim descança!... Astros sem fim, oh soes que estaes por cima, Longe da Terra, em região mais pura! Deixae que o corpo desça á sepultura E a vós se eleve o espirito que o anima! O irmão da Luz, o amante da Verdade, Hade ir, deixando o envolucro que veste Como hospede da abbobada celeste, Internar-se feliz na immensidade!... Astros! egual é a lei que nos governa! Na Terra, o nosso espirito fecundo Penetra nos reconditos do mundo, E vive como vós a Vida Eterna! Beselga, 1872. NOTAS ELUCIDATIVAS A DEDICATORIA No nosso periodo academico, que decorre de 1859 a 1866, e no que se lhe seguiu de 1867 até ao anno de 1874 em que nos casámos, mantivémos estreitas relações d'amisade com algumas familias historicas da provincia e da capital, onde eram ainda vivos os aggravos, e numerosas as queixas, contra as violencias e as vinganças politicas que, de parte a parte, precederam, acompanharam e seguiram o triumpho das armas liberaes, na guerra chamada dos dois irmãos, D. Pedro IV e D. Miguel I. A nossa substancial e nunca desmentida tolerancia para com as crenças e as opiniões dos outros, derivada do Ideal de Justiça de 1789, que seguimos desde os bancos da Universidade com inquebrantavel fé e ininterrupta dedicação, e o quasi fanatico respeito pela inviolabilidade do lar, permittiram-nos estudar na vida intima d'aquellas familias illustres, a transformação profunda que se operou nas crenças, usos e costumes d'este povo, celebre entre os mais celebres da Historia. Tivemos a infinita ventura de conhecer deperto, nas suas melhores origens, as mais bellas joias da alma portugueza, de que o coração da mulher foi, é, e ha de ser sempre o fiel relicario e transmissor! D'ahi em grande parte a nossa confiança na missão d'este povo heroico, nos destinos dos outros povos, quando para todos brilhe e impere um novo Ideal de Justiça e em nome d'elle sejam banidas as paixões, quer religiosas quer politicas, das regiões augustas e serenas da Lei e do Poder. D'essas familias destacaremos a de Silva Gayo, o glorioso author do _Mario_, casado com D. Emilia Paredes, filha do Conselheiro Cunha Paredes, Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, aquelle um vibrante e eloquente protesto contra os excessos de demagogia, ou clerical ou plebêa, de que o citado livro é um bellissimo documento; seu sogro um dos homens bons e ponderosos que partilharam e serviram o movimento liberal. A familia de Luiz Monteiro Soares d'Albergaria, casado com D. Ludovina da Silva Carvalho, filha do celebre ministro de D. Pedro IV, senhora de excepcional illustração, que conhecia a fundo o seu tempo, e sobre elle descorria com conhecimento de causa. A familia Osorio, da quinta das Lagrimas, e a da Graciosa, representando ambas o elemento são da aristocracia portugueza que se pronunciou pelas liberdades e franquias patrias, e onde me foi dado admirar os requintes da educação antiga, no que ella tinha de altruista e de bom, segundo o verdadeiro espirito evangelico. A familia do bacharel em direito Manoel Rois Salgado, de Carvalhaes, filho de lavradores remediados da poetica região da Bairrada, liberal convicto, implacavel inimigo da intollerancia religiosa e das tyrannias politicas do tempo dos caceteiros de D. Miguel e dos Cabraes. Era sua esposa uma senhora de origem e tradições legitimistas, D. Anna de Vasconcellos, que muito soffrera com a guerra dos dois irmãos!... Sua alma piedosa, delicada e poetica, sobreelevou a todos, e nos fez conhecer de perto, com quotidianos exemplos de bondade, a excellencia das doutrinas do Evangelho, quando postas em pratica, com fé e pureza de coração. A familia de Manoel Maria da Silva Bruschy, d'esse grande moralista, philosopho e jurisconsulto que foi um dos luminares da Jurisprudencia patria e quem nos dirigiu os nossos primeiros passos na carreira forense. Era elle um dos mais authorisados e prestigiosos representantes do legistimismo, e quem nos forneceu informações curiosas sobre muitos pontos obscuros da guerra civil, e sobre motivos secundarios, que contribuiram para o triumpho das armas liberaes. Nas mesmas condições de saber, de coração e de espirito, mas n'uma ordem de ideias oppostas ás de Silva Bruschy, mencionaremos ainda o general Luiz Flippe Folque, conselheiro de estado, mestre que tinha sido dos reis extinctos D. Pedro V e D. Luiz I, e que foi quem acompanhou e dirigiu o primeiro d'estes dois monarchas na sua viagem d'instrucção e recreio pela Europa. Era um perfeito homem d'estado, modesto, erudito e tolerante para com todas as opiniões. Devemos a seu genro o Conde de Nova Goa, nosso velho e dilecto amigo, a convivencia com este perfeito homem de sciencia, de cujas lições colhemos muitos elementos de ponderação para formarmos juizo imparcial e seguro sobre a historia dos partidos politicos em Portugal. Resta-nos mencionar nosso sogro, o general de divisão, Roque Francisco Furtado de Mello, que foi juiz do Tribunal Superior de Guerra e Marinha, que se orgulhava de ter feito as novas campanhas da Liberdade, e sua sancta esposa D. Maria Maxima de Berredo, filha d'um dos regeneradores do movimento revolucionario de 1820. Ambos tinham sido victimas das guerras civis desde o cerco do Porto e ambos soffreram, com suas familias, as mais crueis perseguições dos sequazes do absolutismo em Portugal. Para inteiro esclarecimento, ainda diremos que alguns dos nossos parentes, tanto do lado paterno como do materno, eram legitimistas convictos, que se achavam destituidos das honras e benesses do antigo regimen, e que protestavam contra a nova ordem de coisas. Tal foi o meio social em que nos achámos ao sahirmos do lar paterno. A nossa posição singularmente favorecida n'este conflicto de interesses historicos, tendo tido a coragem de evolucionármos em nome da sciencia, e sob a influencia dos espiritos mais cultos da epocha, para o regimen da democracia pura, que melhor chamaremos do Direito Humano, inaugurado com a proclamação dos Direitos do Homem, em 1789; a excepcional ventura de conquistarmos para a sinceridade das nossas crenças a tolerancia dos nossos competidores, tudo isto concorreu para nos fortalecer no Ideal d'um novo Direito, d'uma Nova Justiça, d'uma Nova Moral, de que este livro é um modesto precursor no campo da poesia patria. Não podiamos deixar por isso de o consagrar á memoria inolvidavel d'essas venerandas creaturas, quasi todas hoje extinctas... ás almas d'eleição que tanto fortaleceram as nossas creanças na bondade e na virtude humana. Por outro lado pertencendo pela educação que demos a nós mesmos, destruindo pela base a que recebemos no berço, aos homens de genio e de fé, que espalharam pelo mundo os principios revolucionarios de 1789 e tentaram as primeiras applicações praticas aos problemas pendentes da humanidade, e genios em que havia poetas como Lamartine e Hugo, musicos como Beethoven e Ricardo Wagner, economistas como Bastiat, publicistas como Proudhon, historiadores como L. Blanc, philosophos da grandesa e originalidade de Quinet e Michelet, cujos ideaes de justiça e d'amor nos conquistaram e nos acompanharão até á morte: comprehende-se que em nome d'elles não ponhamos hoje a nossa fé e a nossa esperança sobre a regeneração do Mundo nas gerações actuaes, incredulas, scepticas, e devoradas pela febre do ouro e do goso! N'este actual periodo historico, que é todo de negação, sem ideaes definidos, e cheio de convenções, de hypocrisias e mentiras, cujo estado pathologico foi magistralmente descripto por Max Nordau no seu livro celebre _Les Mensonges conventionelles de notre civilisation_, é natural que não encontrem echo estes nossos CANTOS, nascidos d'uma grande fe no futuro da Humanidade! São quasi todos uns modestos preludios, uns gorgeios ainda incertos, d'uma nova alvorada, e por isso os consagramos ás gerações que hão de ter a ventura de ver em plena claridade o dia de que apenas distinguimos os primeiros pronuncios nos horisontes do futuro e da patria. O QUE EU VI Paginas 1 e 2 Esta poesia é uma das quatro ou cinco d'esta collecção que já foram publicadas. Não podemos verificar n'este momento, por falta de tempo, em que jornal litterario e em que data o foi. Pode dizer-se que é o prologo e a synthese de todo este livro de CANTOS. Pode até mesmo servir d'explicação ao sentimento religioso que se accusa tão accentuadamente em quasi todos os nossos trabalhos poeticos. Como d'ella se deprehende o _Deus_ a quem nos referimos está completamente fóra dos moldes das religiões revelladas, dos ergastulos da fé dogmatica. É o Pae da Vida, a Fonte do Amor, o Deus da Natureza. É como que o symbolo que personifica a Perfeição Absoluta; o Ideal do Universo; A causa primaria de todo o existente; O sol vinificador das consciencias e dos mundos. É a Belleza, é o Amor, é a Justiça, a que tudo obedece, levados ao maximo grau d'intensidade que é dado á razão humana attingir n'um determinado cyclo historico, e que, como tal, illumina as consciencias, dirigindo-as!... Para todo o coração terno, para toda a alma de artista, será sempre imprescindivel antepôr-se ao espectaculo magnificente e deslumbrador do Universo, á marcha triumphal da Luz e da Vida por toda a parte penetrando nos ultimos reconditos do mundo visivel e invisivel, e sem a interrupção d'um só instante na sequencia incalculavel dos seculos, tirando de lá as maravilhas da natureza, antepôr-se, dizemos, um mundo moral com as paginas infinitamente bellas das civilisações já extinctas; um mundo que synthetise todo o Ideal da Humanidade. E, n'esse Mundo Moral, Deus é o _Ser por excellencia_, a chave insubstituivel do multiplo e mysterioso Problema da Vida. Nas insondaveis e invisiveis regiões da consciencia humana, o mundo exterior, que é o reflexo, a continuação, o complemento do mundo interior, encontra n'este, como outros tantos _Ideaes da Perfeição Suprema_, as Leis da Vida, que actuam imperturbaveis, omnipotentes e eternas. Para este Mundo Moral, para este Mundo das Almas, Deus é pois a personificação d'essas leis e como tal o Ideal Supremo. Não cremos possivel arrancar-se da natureza humana, deturpando-a, qualquer das suas forças immanentes, e no numero d'estas forças devemos suppôr a religiosidade, isto é, o sentimento de respeito por um Poder superior, causa primaria, ponto de partida, iniciação e justificação de todo o existente, de tudo quanto vêmos e sentimos. E para nós uma utopia impraticavel, e nociva á solução dos actuaes problemas da humanidade, o querer-se substituir o Ideal vivo e amoroso de Deus pela synthese fria e inanimada da sciencia, assente exclusivamente em factos demonstraveis!... Em primeiro logar as sciencias positivas, pondo fóra da sua esphera d'investigação, e muito bem, a Causa Primaria das cousas, não podem aspirar a resolver os problemas da consciencia e do coração, e a fazer calar as imperiosas interrogações da sua voz interior!... Em segundo logar, todas as sciencias assentam, por ora, em meras conjecturas, em, aliás engenhosas e bem concebidas, hypotheses, que como taes em tempo algum poderão satisfazer a ancia infinita de nosso espirito em tudo devassar e saber, e ninguem nos pode affirmar que amanhã não sejam substituidas por novas hypotheses, melhor concebidas e expostas. Em terceiro e ultimo logar, o povo e a mulher, isto é os obscuros, os simples, os que trabalham, os que soffrem e os que amam, que são quasi, por ora, a humanidade inteira, não poderiam suspender as reclamações do seu coração e do seu espirito, á espera que os sabios lhes desvendassem os segredos da natureza, e convertessem as suas verdades, chamadas irreductiveis, n'um Ideal Supremo, que, para todos os effeitos, substituisse a Idéa de Deus a que o christianismo deu uma feição tão amorosa na interpretação larga e fecunda d'um Pae Celeste. Quem lucra com a guerra feita ao sentimento religioso, confundindo-o com o das religiões positivas, revelladas, são os reaccionarios catholicos e, para prova, é vêr o alastramento pavoroso que por todo o paiz se está operando nas classes ricas, e nas ultimas camadas sociaes, sahindo-se até hoje triumphantes os que, pelas leis vigentes, pelas tradicções historicas, e pelo futuro d'este paiz, não deveriam ter cá entrado!... O que o sentimento religioso reclama é ser derivado para novos objectivos que mais directamente interessem e sirvam os soffrimentos humanos, a _moral_, a _arte_, o _direito_ e a _justiça_, abandonando o sobrenaturalismo com todo o seu cortejo de phantasias, de aberrações e de absurdos. No dia em que a Razão se pozer d'accordo com a Fé, o Amor com a Justiça, será facil á humanidade entrar na normalidade do seu distino, como factor poderoso que é, nos multiplos e interminaveis problemas do Universo. Em harmonia com estas idéas, com o Ideal de Justiça que professamos, e de que este livro é um vehemente e sincero pregão, consagrando além d'isso á mulher e ao povo as nossas melhores esperanças na redempção do mundo: adoptámos para traduzirmos o nosso Ideal Supremo, esta palavra que tem a consagração dos seculos, as sympathias e a adhesão d'aquelles a quem principalmente visamos nos nossos CANTOS. Sirva esta nota de explicação ás poesias congeneres e complementares d'estas, _Avé Creator_ pag. 37, e o _Sursum Corda_ pag. 41 e outras. TRISTEZA Paginas 5 a 7. Escrevemol'a n'uma manhã de primavera na tapada d'Ajuda, quando esta não era ainda frequentada pelo publico da capital. N'aquelle recinto onde não entravam os rumores da grande cidade, na benefica e imperturbavel quietação dos campos, sob uma tonalidade de côres e de sombras d'uma variedade e doçura infinitas, havia n'essa manhã um grande movimento de vida na Natureza, muitos feixes de sol a distribuir e a combinar seus raios de ouro pelos troncos e a folhagem das arvores, pela verdura das relvas; muitos passaros cantando em redor dos ninhos; muitos insectos zumbindo em volta das flôres. Só nós appareciamos no meio d'aquelle trecho encantador de vida universal, com a nossa alma envolta em sombras caliginosas e, sob este influxo, o coração a trasbordar-nos de tristezas!... Estas derivavam d'erros proprios e alheios e faziamo-nos passar, ali, aos olhos da propria consciencia, como um desconcerto na Vida, como uma nodoa na creação! Da alta comprehensão que temos da _dignidade humana_ e do papel que o Homem e a Humanidade representam nos destinos do Universo, (V. as poesias _Ao Homem_ e _Á Mulher_), resultou para nós uma philosophia e uma moral que são substancialmente imcompativeis com os desalentos e as tristezas, porque aliás tantas vezes os nossos dias teem sido assaltados!... D'ahi o nosso appello para a Natureza onde tudo está no seu logar, não se desviando um apice da linha que lhe foi traçada, no augusto e sereno cumprimento das suas leis eternas e divinas. Pedindo á natureza refugio e amparo para as nossas dôres, lição e exemplo para os nossos erros, n'aquelle dia memoravel entrou-nos n'alma, como um cortejo festivo de Deus, tudo quanto em volta de nós celebrava ali os mysterios da vida e irromperam nos dos labios então estas estrophes despretenciosas e taes quaes as publicamos hoje. Pelo habito de as repetirmos longos annos, nos soliloquios com a nossa consciencia, não nos aventurámos a alterar-lhes uma só palavra, nem uma só virgula, e assim se explica que seja a unica poesia d'este livro com versos soltos, rimados apenas nos versos agudos. PRESENTIMENTOS Paginas 8 a 18 E como uma photographia instantanea do estado da nossa alma quando, finda a nossa carreira universitaria, tivemos de assentar arraiaes no positivismo das coisas para havermos os meios com que se mantem o que ha de mais imperioso: a existencia, e n'esta o que ha de mais sagrado: a honra. Depois d'uma mocidade ruidosa, passada no convivio de livros dos mais celebres pensadores do seculo, e de talentos dos mais abalisados entre os lentes da Universidade, como Antonio de Carvalho, Silva Gayo, e Viegas; de rapazes cheios de ideaes e d'audacia, que mais tarde se haviam de tornar celebres nas letras, como Anthero do Quental, Theophilo Braga, Eça de Queiroz e Anselmo de Andrade, estes dois ultimos nossos condiscipulos; n'um periodo em que todos acreditavam na transformação completa do existente, para, abandonados de vez os velhos e caducos moldes do mundo medieval, entrar-se definitivamente na normalidade da vida que as sciencias dos ultimos seculos, e o direito de Revolução, nos garantiam: comprehende-se bem qual seria a nossa tristeza ao entestarmos com uma sociedade, mais que qualquer outra, decrepita, incredula, egoista e dissoluta! Tinhamos já então feito a nossa primeira viagem á França, sob o imperio da mais desenfreada corrupção politica dos ultimos tempos, na restauração do Imperio por Napoleão _le petit_ e causou-nos indignação o que abservámos de perto na cidade santa de Direito Moderno, sobre a qual tinham raiado os inolvidaveis dias de 1789 e que fôra o theatro das primeiras e gigantescas batalhas do Povo, em nome do _Direito Humano_, contra os thronos colligados em nome do _Direito Divino_!... Estavamos nas vesperas da guerra Franco-Allemã que todos previam como inevitavel e de que resultou este tardio e indeciso movimento democratico, a cuja sombra a França não conseguio ainda emancipar-se completamente dos preconceitos e velharias do antigo direito!... Regressámos á patria com a alma mais cortada de dôres de que quando d'ella partiramos!... A nossa intervenção quotidiana na vida do Povo, pela profissão que exercemos, o conhecimento das suas multiplas e infinitas miserias, a sua falta de comprehensão e de energia em reivindicar os seus direitos e a defeza da sua causa; o egoismo desenfreado da burguezia triumphante com a sua lastimosa indifferença pelo futuro da Patria; a irremediavel cegueira da aristocracia portugueza em não se separar das formulas já hoje varias de sentido e exhaustas de forças, do Direito Divino, representado no throno e no altar, direito já morto nas consciencias pela força da razão e da logica, antes de o ser no campo da batalha pela força das armas: todo este conjuncto de circumstancias adversas, concorreu para nos entibiar a fé e a esperança na realisação dos nossos ideaes. Ao vêrmos a Nacionalidade Portugueza ha tres seculos desviada do seu destino historico sem conseguir reatar as tradições perdidas, apesar dos violentos abalos da natureza e dos homens para levantal'a do atoleiro em que se deixou cahir--a libertação de Hespanha, o terremoto de Lisboa, as reformas do marquez de Pombal, de Fernandes Thomaz, de Mousinho da Silveira, de Passos Manuel e de tantos outros; apesar dos movimentos revolucionarios de 1820, 1834 e 1846: chegámos a descrer do futuro d'este povo illustre cujos destinos se acham indissoluvelmente unidos aos nossos!... Foi debaixo d'esta ordem de ideias sombrias que concebemos e compozémos esta poesia. Ella era então, como ainda o é hoje, a expressão fiel do nosso pensar e do nosso sentir, e, como a anterior, mantemol'a tal qual nos sahiu espontaneamente da laboração do nosso espirito contemplativo, e sonhador. REVELLACÃO Paginas 25 a 32 Foi escripta esta poesia n'uma sexta-feira de Paixão, na quinta dos Frades Cruzios, de Coimbra, junto ao grande lago que hoje ainda alli se vê, cercado d'um espesso e alto muro de verdura entretecido com os ramos de cedros já hoje seculares. A cinta feita por elles em volta do lago tranquillo é tão compacta que junto das suas margens sentimo-nos por completo sequestrados do mundo exterior, e levados á contemplação do infinito do Ceu no finito da Terra!... Tinhamos assistido durante tres dias consecutivos ás ceremonias commoventes da lithurgia catholica nas festas da Semana Santa, celebradas com pompa na Capella da Universidade. Tinhamos ainda a alma combalida com os patheticos cantos do _Miserere_, de José Mauricio, e com as retumbantes orações dos levitas da Egreja, lançando do alto da sua cadeira sobre as multidões meio scepticas as suas palavras de desconforto e de desesperança sobre o destino humano, quando, fugindo a este meio deleterio e sombrio, appellámos para a Natureza, por ser esta aos nossos olhos a Biblia da _Verdade_ e do _Amor_, escripta com palavras vivas e eternas, que não carecem das explicações dos concilios Ecumenicos, para serem os verdadeiros dogmas do nosso credo. Alli, levantando o problema do destino humano na Terra, encontrámos palavras d'Amor e de Justiça que suppozemos dignas de consignarmos nos nossos versos, destinados a servir, nos nossos despertenciosos e apoucados recursos, a causa da Humanidade. Este CANTO pela sua structura e motivo fazia parte do Livro segundo, mas transpozemol o para aqui por conter a ideia inicial da philosophia que presidiu a quasi todos os outros. AVE CREATOR Paginas 37 a 40 Esta poesia foi escripta n'um bello dia de sol, no cimo d'uma montanha, em face d'um largo horisonte, na quinta da Beselga, que é proxima aos memoraveis campos d'Asseiceira, onde se feriu a ultima batalha a favor das armas liberaes. Pertence esta quinta a um dos nossos mais dilectos e dedicados amigos, o Conde de Nova Gôa. N'esta e na dos Carvalhaes, que fica n'um dos extremos da poetica Bairrada, e não longe do sagrado e querido Bussaco, e a que nos referiremos na poesia _Á Terra_, foi onde se passou o periodo da nossa maior actividade litteraria. O nosso remanso n'aquella quinta tranquilla e poetica, e a convivencia com senhoras da mais selecta sociedade de Lisboa, que alli iam passar parte do anno, muito concorreram para alguma das nossas mais vibrateis e sentidas composições poeticas. Esta é uma das que nos sahiram mais espontaneas e que melhor traduzem as emoções da nossa alma perante o grande espectaculo do mundo, alumiado pelo Sol e vivificado pelo Amor! AO HOMEM--Á MULHER Paginas 57 a 65 O pensamento que inspirou estas duas poesias é como que uma synthese da philosophia moderna, a base indestructivel d'uma nova Moral, a pedra angular sobre que deverá levantar se o templo da futura religião da Humanidade. É o Homem, da grande altura a que chegou a civilisação, á intensa luz de factos demonstraveis e irreductiveis, e depois de longos seculos de desalento e decrepitude, a readquirir a confiança em si, nas leis da Vida, nas forças da Natureza, de que se vae apossando a pouco e pouco, na sua missão no mundo, na integração dos seus destinos no Universo. É o reprobo da Religião semita, o expulso do Paraiso por decreto de Jehovah, convertido no filho dilecto da Natureza e de Deus, no prescrutador dos seus segredos e dos seus processos, e que hoje, senhor do plano geral da creação, armado de recursos infinitos, esclarecido com os fachos inapagaveis das sciencias e das artes, dispondo de thesouros infinitos: assenta definitiva e resolutamente os seus arraiaes no planeta que lhe foi dado para theatro da sua ideia, no paraiso dos seus primitivos sonhos, no pantheon de sua gloria, no templo da sua nova fé. É pois o homem que se levanta, do pó da terra, da cinza do seu nada que lhe fôra imposto como _labaro da vida_, para se constituir no augusto executor da _obra divina_, n'um dos cooperadores conscientes dos _Problemas do Universo_. É o batalhador incansavel, o Hercules da Civilisação que, depois de ter expurgado a Terra dos seus elementos maus para d'ella tomar posse, pretende agora, com os fachos da Razão e do Amor, expulsar do seu espirito os espectros das religiões revelladas, as lendas da sua meninice, e tornar-se o sabio, o forte, o luctador por excellencia. Depois de ter conquistado o mundo pela Força e pela Razão, pretende agora redemil'o pelo Amor e pela Justiça. Para esta missão incruenta depõe aos pés da mulher não só o seu destino, como por instincto o fizera até hoje, mas o da propria especie, porque foi d'ella que Deus confiou a renovação da Vida pelo Amor e a incumbiu de nos dulcificar a existencia com os actractivos proprios do seu sexo e os encantos que derivam da sua belleza e da sua graça. A piedade que de ha seculos trabalha o coração humano, e que d'elle irrompe como um arroio crystalino, vindo ora da India com as doutrinas de Boudha, o christo do Oriente, ora da Palestina com os sonhos de Isaias, e os evangelhos de Jesus; agora da Grecia com o espiritualismo de Platão e de Socrates; logo apoz de Roma com as maximas e exemplos de Marco Aurelio; mais tarde sob o Ideal de Christo, da França com o rei S. Luiz e S. Francisco de Salles; da Hespanha, com Santa Thereza; de Portugal, com Frei Bartholomeu dos Martyres e tantos outros: tornou-se por fim a corrente caudal do Direito Moderno que já em 1789 nos sorria sob o lemma da Liberdade, Egualdade e Fraternidade, e que, pela solidaridade das raças e dos Povos, e pela sua mutua e indistructivel dependencia, será a chave da todo o Problema Humano, no novo cyclo para onde as leis historicas nos encaminham. Como se vê a Religião e a Moral mudam apenas do objectivo e de processo. O Ideal, isto é o Bem Supremo, desloca-se das bandas do Passado para os horisontes do Futuro, e deixa dormir sepulto nas sombras o que já foi, e sob a condemnação d'um decreto divino, para nos apparecer, como a columna de fogo aos olhos dos Hebreus, á frente dos individuos, das nações e dos povos e encaminhal'os á Terra da Promissão! Por este novo objectivo a historia da civilisação, d'harmonia com as leis do Universo, seguirá n'uma marcha não regressiva para o Passado, como o pretendiam as religiões revelladas, mas progressiva em demanda do Ideal sonhado, Ideal que muito ao longe nos fascina como um foco de luz intensa e impenetravel, que nos cega, e além da qual só ha o Absoluto--Deus.-- O homem por este novo credo deixa de ser o degredado filho d'Eva para se constituir no artifice divino, no triumphador por excellencia! Converte a propria historia, escripta com sangue e com lagrimas, na Biblia unica authentica e verdadeira; no melhor estimulo da sua fé; na melhor glorificação do seu Deus. Para que o _par humano_ se não estonteie, porém, com a propria gloria, e não se proclame egual ou superior a Deus, como nos tempos do paganismo: collocamos sobre a sua cabeça uma Entidade que a elle em tudo o sobreleva, que, intangivel aos seus desvarios e erros, por elle vela e sobre elle estende a todo instante a sua acção protectora, a Virgem mãe dos povos--a _Humanidade_! Não é ella nascida da phantasia dos homens, mas surge real e verdadeira, em plena luz e cheia de gloria, das emmaranhadas e mysteriosas paginas da Historia! A seus pés depomos, desprendendo-os das cordas da nossa lyra, os primeiros trenos d'amor como um timido e passageiro ensaio, na poesia que lhe consagramos de pag. 74 a 77. Poderão os defensores das religiões positivas, feridos nos seus interesses, alcunhar-nos de hereges e cobrir-nos de injurias; mas o que jámais conseguirão é provar-nos que o homem, que tirar dos seus proprios triumphos a glorificação do seu Deus, não se engrandeça a si e ao Creador, e não se torne por isso digno do espectaculo da natureza, onde surgiu como um dos cooperadores conscientes dos problemas da vida! A despeito das malidicencias d'uns, das ironias e satyras doutros, temos fé que estes CANTOS hão de encontrar sympathia e acolhimento nas almas simples e boas, a quem os consagramos, e é quanto nos basta. Á HUMANIDADE Paginas 74 a 77 Este CANTO é como que uma antiphona, embora ainda indecisa e pallida, em louvor d'aquella Divindade invisivel que, ao cabo d'infindos seculos, e a despeito dos antogonismos e odios que as religiões e a politica semeavam, soube conduzir os Povos, por mil meandos e caminhos oppostos, á conciliação e a Paz universal, que já hoje se desenha como o ideal do seu futuro viver! Esta solidariedade em que todos elles se encontram perante _a solução d'um Problema commum_, é uma das Verdades fundamentaes que já desceram das regiões da utopia e dos sonhos para o imperio dos factos. O prestigio da sua causa e a rapidez dos seus triumphos são taes que tem feito em meia duzia de lustros o que todas as religiões do Passado não conseguiram n'uma serie interminavel de seculos! A sua acção avassaladora attinge as culminancias dos mais altos poderes constituidos! Até incita o proprio auctocrata de todas as Russias a propor ás mais nações do mundo o desarmamento geral, ou pelo menos a reducção d'essas forças terriveis, a proporções que não contrariem os interesses dos Povos, a causa do Direito, e os principios do Justo!... Pode até dizer-se que os mais celebres capitães, Alexandre, Julio Cesar e Napoleão, sem o pensarem e sem o quererem, se tornaram os mais poderosos semeadores d'este Ideal da Justiça Moderna![1] Até ás proprias forças da Natureza, no uso que o homem d'ellas está fazendo abrindo canaes, levantando pontes, estendendo em todas as direcções dos quatro pontos cardeaes do globo uma rede infinita de telegraphos e d'estradas, até ellas estão conspirando para o triumpho do novo direito!... A sua acção omnipotente, embora indirecta, accusa-se todos os dias na vida intestina dos povos, nos seus interesses os mais materiaes; na organisação das poderosas companhias transantlanticas, a vapor; na celebração dos tratados de commercio entre todos os povos do globo; na publicação de revistas scientificas; na realisação de conferencias e de exposições internacionaes, onde em tudo prodomina o espirito cosmopolita e universal dos tempos modernos! É um levantamento das almas a que é preciso levar um Ideal espiritualista, um objectivo religioso, um culto emfim para que se apposse das multidões e se converta nos preceitos d'uma moral pratica, no Labaro d'uma religião universal. Por elle um povo illustre derramou já o mais generoso do seu sangue afim de conquistar para o mundo dos factos, com o proprio sacrificio, _a formula juridica d'este novo Direito_; e, a despeito da guerra desapiedada dos representantes do velho regimen, a sua doutrina penetrou em breve no espirito de todos os codigos! Se estas conquistas extraordinarias, chamar-lhes-hemos assombrosas, de Civilisação Moderna se alcançaram sem o concurso das religiões positivas, que lhes foram adversas, sem o proposito dos imperantes e dos politicos, poder-se-ha calcular: que transformação profunda e rapida nos destinos do universo se não vae operar, quando aquella Mãe que preside á sorte dos povos, e que tem estado até hoje degredada nas regiões abstractas do pensamento, tomando uma forma visivel e humana, se constituir na soberana por excellencia, na protectora dos fracos, na redemptora dos opprimidos, na consoladora dos que choram, na fé e esperança dos que sonham, na mensageira em fim do Creador que, tanto quanto é permittido ás forças humanas, converterá em realidades as promessas de Jesus no sermão divino da Montanha! É prevendo o culto que mais tarde as mulheres, os sabios e os justos lhe hão de prestar, que esboçamos este cantico religioso. Para que esta aspiração se converta na religião do Futuro basta que a Mãe de Jesus, esta creação poetica e encantadora do symbolismo catholico, avocando a si a realidade da historia, e entrando nos usos e costumes dos povos: synthetise o espirito de novos tempos e se torne a fiel depositaria do pensamento do Creador na Terra, a mensageira da Verdade, a distribuidora da Justiça e do Amor, a Virgem Mãe dos Povos. Então todas as antiphonas e canticos que a Egreja hoje faz entoar em honra da Mãe de Jesus, serão poucos para a glorificarmos!... [1]Laurent nos seus estudos sobre a _Historia da Humanidade_ demonstra á saciedade quanto estes e outros heroes foram meros instrumentos d'uma causa superior, a vontade de Deus, em tudo o que fizeram. AO NOVO CYCLO HISTORICO--NOVA LUZ! NOVO IDEAL! Paginas 78 a 90 Estas duas poesias são o desdobramento, a synthetisação dos CANTOS consagrados á _Paz dos Povos_, ao _Homem_ e á _Mulher_, vendo n'estes os principaes factores da civilisação, e á Humanidade, como typo ideal da Verdade e da Belleza, na realisação progressiva do destino Humano. Enviamos o leitor para o que expozémos nas respectivas notas, porque ali lhe será facil descortinar o systema de philosophia que se converteu para nós nos preceitos de uma moral substancialmente humana, verdadeira e pratica; a que se reduz no fim de contas toda a religião do futuro. APELLO SUPREMO--REFUGIO ULTIMO Paginas 91 a 97 Estas duas poesias são o complemento da que publicámos a pag. 8 sob a denominação _Presentimentos_. Foram escriptas no mesmo periodo, quatro annos antes de constituirmos familia, isto é, de entrarmos na _pratica obscura e quotidiana do verdadeiro altruismo_, principio moral em que assenta a familia, a primeira e a mais sagrada das nossas instituições, e que é a base da religião e da philosophia. Carecem ambas pelo seu ardente mysticismo, ou melhor diremos pelo seu exagerado lyrismo, repassado de desalento e dôr, da correcção que o conhecimento das leis da vida e as licções de historia nos trouxeram com o andar dos tempos e que, sob o mesmo espirito religioso, traduzimos nos CANTOS á _Humanidade_, á _Mulher_, ao--_Homem_, aos _Filhos_ e designadamente nos dois canticos anteriores ao _Novo Cyclo Historico, Nova Luz! Novo Ideal!_ A confiança nas Grandes Leis da Vida e da Historia, na Natureza e na Humanidade, deu-nos forças e animo para as luctas em que nos temos visto assediados toda a vida, resignação e paciencia na adversidade, fé inabalavel na regeneração do Mundo pela sciencia, pela justiça e pelo amor, quando se entrar definitivamente, sem peias, sem ficções, e sem mentiras, no imperio da Verdade, no regimen da liberdade absoluta!... Este appello Supremo para Deus onde, ao cabo de tantos desenganos e dissabores, esperamos encontar o nosso refugio ultimo, não significa outra coisa. Os sonhos de justiça que, desde Jesus, nos transmittiram as gerações transactas, para lhes darmos cumprimento, hão-de encontral'o nas gerações futuras que, por seu turno, legarão aos seus legitimos herdeiros, novos ideaes e com estes novas esperanças! Esta é que é a verdadeira glorificação de Deus na Humanidade pela revellação continua e progressiva da Historia!... Sob este ponto de vista, poder-se-hia dizer que estas duas ultimas poesias não são já a expressão verdadeira do nosso actual modo de pensar e sentir. AO SOL Paginas 108 a 111 Escrevemol'a debaixo das impressões dos cantos sagrados da India, no _Rig Veda_ e sob a alta concepção que Renan fazia de Deus e do Sol quando affirmava que antes da Humanidade attingir aquella unidade e synthese suprema das almas, só o Sol tinha tido direito á adoração e culto dos Povos. Sentimos a seu respeito, por intuição, o que mais tarde a sciencia nos revellou em obras memoraveis como o são alguns dos trabalhos de Flamarion sobre astronomia e designadamente o prodigioso e fascinante livro de Buchner _La Lumière et Vie_, que nos revellou com uma pujança de saber e de logica inexcedivel, e uma linguagem colorida e vigorosa incomparavel, as incalculaveis maravilhas da natureza que anteviamos com olhos apenas d'um poeta enamorado. Se escrevessemos este CANTO depois da leitura d'estes livros, a nossa linguagem teria sido de certo mais vibratil e as imagens de que nos serviriamos mais vivas e mais bellas. A idéa fundamental da sua concepção teria ficado, porém, a mesma; a mesma, a nossa admiração, o nosso culto por esse glorioso vivificador dos mundos; por esse prodigioso distribuidor da luz, que, a ter de desapparecer do espectaculo das coisas visiveis, como lh'o prophetisam os seus admiradores e chronistas, o não faria sem deixar atraz de si, n'uma serie ininterrupta de seculos, a mais oppulenta das heranças, a mais genuina glorificação do heroe Bemfeitor por excellencia! Aos olhos dos outros astros, seus competidores, sob a cupula infinita dos ceus, morreria destituido da sua antiga grandeza, para dar vida e continuação a novos mundos, como Jesus, no Calvario, pregado na cruz, deu a sua alma aos povos para redimil-os!... Esta poesia, a instancias de Anthero do Quental, foi publicada por Guilherme de Azevedo e por isso pouco ou nada alterámos da fórma que primitivamente lhe démos. Á ARVORE Paginas 127 a 131 Foi escripta na epocha em que costumavamos passar parte do verão em companhia do Dr. Antonio da Silva Gayo, no Bussaco, n'esta montanha a que nos prendiam tão gratas recordações da nossa vida universitaria!... Ali fomos como cultores do Bello e do Justo em perigrinação sagrada muitas e muitas vezes, umas em companhia d'amigos como Anthero do Quental, José Julio Rodrigues, Philomeno da Camara, e outras vezes, e estas em maior numero, sosinhos, fazendo a pé todo o longo percurso desde Coimbra, mas encontrando larga e generosa compensação nas suas sombras impenetraveis e profundas, na sua solidão e paz absolutas, tão propicias á contemplação e ao estudo! Antes do caminho de ferro do Norte, que o pôz em communicação facil com o resto do Paiz, o Bussaco viveu longos annos, e para o bem d'elle, quasi completamente esquecido dos homens. Só almas d'eleição, pouco conformadas com a realidade das coisas, só um ou outro amante da Natureza, iam ali de vez em quando procurar na sua quietação e silencio, tão cheios de mysterios e tradicções de mysticismo christão, _eloquentes lições_ sobre os problemas da vida, sobre os multiplos e complicados destinos do coração e da consciencia, postos no mundo ante esta interminavel e ininterrupta sequencia--de luz e de sombra--de dias e de noites de prazeres e de dôres, de sonhos e desenganos! Talvez mais do que ninguem, n'estes tempos de gosos faceis e interesses materiaes, nós fomos d'este pequeno numero. A nossa paixão pela Montanha levou-nos a convencer o santo padre Mauricio a viver ali comnosco, pouco depois da nossa formatura, abandonando a sua modesta habitação em Luso, nos mezes de Novembro e Dezembro. Ali estivemos entretidos os dois, elle de dia com os trabalhos já então iniciados, com o nosso protesto, por Moraes Soares, de noite com as suas candidas e piedosas orações; nós com os nossos livros dilectos, com os nossos passeios solitarios e lucubrações litterarias. Um viver simples, sobrio e puro, de que ainda hoje guardamos vivissimas saudades! Mais tarde pelos melhoramentos e pequenas casas de habitação mandadas ali construir, o Bussaco attrahiu de Coimbra e seus arredores, de Lisboa e Porto, e até das Ilhas dos Açores, algumas familias distinctas, no numoro das quaes quaes sobrelevava a todas a de Silva Gayo. Foi este pela vivacidade e graça de seu espirito brilhante, pelo encanto incomparavel da sua palavra facil, d'artista e de sabio, e sua esposa pela gentileza singular do seu porte, pela bondade e abnegação nunca desmentidas para com todos, foram elles que mais concorreram a chamar ao Bussaco uma concorrencia selecta e a tornar inolvidaveis os dias ali passados. Foi ali que Silva Gayo escreveu e retocou algumas das paginas mais commoventes do seu _Mario_, de _Frei Caetano Brandão_ e da _Magdalena_. Foi ali tambem que compozémos algumas das nossas poesias mais repassadas do pantheismo espiritualista que em todas mais ou menos se nota. Foi á sombra d'aquelles arvoredos adoraveis, e sob estas beneficas influencias de arte, que se crearam, n'uma incansavel e vibrante alegria, os dois filhos de Gayo e de D. Emilia Paredes, Manuel da Silva Gayo e Mario Gayo, os quaes mais tarde se haviam de distinguir como dois talentos comprovados, um na poesia, outro na musica! Foi ali que mais tarde succumbiu, victima d'uma tysica de larynge, aquelle formoso espirito que foi gloria das sciencias e lettras patrias, cercado dos solicitos carinhos de sua incomparavel esposa, das lagrimas silenciosas e amargas do bom padre Mauricio e das nossas. Foi d'ali, ai de nós, noite memoravel e terrivel! que tivemos d'acompanhar sósinhos os seus restos mortaes até ao cemiterio da Conchada em Coimbra, onde pouco depois do romper da manhã, alguns dos seus collegas, admiradores e amigos, avisados do seu enterro, vieram comnosco prestar-lhe as ultimas homenagens dos vivos!... Voltemos aos dias felizes em que Silva Gayo ainda abrigava a esperança de debellar o mal que o vinha minando, apesar de pairar ás vezes como uma sombra sinistra no seu lucido espirito, a idéa d'um desenlace fatal!! Foi então que escrevemos este CANTO, á _Arvore_. Estavamos installados na capella de Santa Thereza, a cuja entrada se levanta um d'aquelles cedros collossaes e magestosos do Bussaco, que são o privilegio e o orgulho d'esta floresta, a mais opulenta e formosa de quantas conhecemos dentro e fóra do paiz. Foi ali, tendo em frente dos nossos olhos aquelle gigante secular dos bosques, que compozémos esta poesia onde o leitor encontrará a expressão mais genuina do nosso amor pela estabilidade das forças da Natureza, representada no que ellas teem de mais bello e nobre, a arvore. Á TERRA Paginas 132 a 139 De todos os nossos trabalhos litterarios é este o que nos mereceu maior solicitude e carinho para deixarmos por nossa morte um testemunho do muito que amámos a Natureza e dos impagaveis beneficios que d'ella em toda a nossa vida recebemos. Sobre a sua influencia na formação dos caracteres escrevemos um poemeto denominado _Passeio ao Campo_ e que faz parte do quarto livro das _Irradiações_, _No Lar_. Concebemos e composémos esta poesia n'aquella aldeia obscura de Carvalhaes, a que nos referimos na nota primeira. Quizémos propositadamente que assim fosse, porque depois dos jardins e da quinta da nossa casa do Arco, na Ilha do Fayal, onde nascemos e brincámos e das pedras vulcanicas e negras da Aldeia do Guindaste, na Ilha do Pico, onde, em plena liberdade dos campos, em convivio intimo com a Natureza, perante o espectaculo do mar e d'um sem numero de pequenos vulcões extinctos passámos os mais deleitosos dias da meninice, pedras negras que ainda hoje, pelas recordações que encerram, nos sorriem mais bellas e fulgentes que os brilhantes, nenhuma terra amámos tanto como esta aldeia poetica de Carvalhaes. Foi alli que á sombra de pequenos bosques, de altos e extensos pinheiraes, balsamicos e sonorosos, de frescos relvados e de alamos e carvalhos frondosos, no adro da capella da Senhora das Neves, que lhe fica proxima, foi ali que lendo os nossos poetas mais dilectos, Virgilio, Camões, João de Deus e Victor Hugo, tomámos verdadeiro amor pelo rythimo e harmonia do verso, e abandonamos para os assumptos d'arte a prosa, onde fizemos os nossos primeiros ensaios, sendo ainda creança, tomando então por modelo a Byron, dos poetas da nossa meninice o mais festejado e glorioso. Foi n'esses arredores deliciosos da Bairrada e do Bussaco onde longos annos armazenámos inconscientemente em companhia do nosso chorado condiscipulo José Augusto Salgado, no nosso mundo interior a poesia que annos mais tarde, em 1867, nos irrompeu espontanea da alma, quando as saudades de Coimbra e da nossa vida academica nos subjugaram a ponto de abandonarmos interesses já creados e estabelecermo-nos de novo na Luza Athenas!... Foi então que tomamos o grau de licenciado em Direito na esperança de fazermos parte do corpo docente da Universidade, mas d'onde tivemos de sahir, pouco depois do nosso casamento, para n'um meio mais amplo angariarmos os escassos recursos d'uma vida honesta. Esta poesia, desejando nós que fosse de todas a mais perfeita, é no entanto a que hoje aos nossos olhos tem maiores defeitos, sendo um d'elles a sua extensão. Preferiamos deixal-a nas proporções das outras, suas congeneres e irmãs, mas já agora, assim imperfeita, ficará sendo o depoimento mais vehemente e sincero do muito que quizémos á Terra, nossa mãe, ao Amor, á Luz e á Vida! Á falta d'heroes a quem consagrassemos os nossos CANTOS, preferimos as Forças e as maravilhas da Natureza, que sendo obras de Deus, são por isso eternamente grandes e bellas para se constituirem na fonte pura e inexgotavel do Ideal. Foi Esta a divindade em cujo altar depozemos a alma e a vida, e quem em troca nos deu a pureza de coração e valentia d'animo para luctarmos contra a adversidade e salvarmos no meio da nossa pobreza os thesouros da nossa Fé. AOS ASTROS Paginas 140 a 143 Reservámos para o final d'este livro de canticos religiosos a poesia _Aos Astros_, porque podemos dizer com toda a Justiça, imitando David, que os _Ceus proclamam a Gloria de Deus_! A Luz no mundo das coisas visiveis e o Pensamento no mundo invisivel das almas, são os dois principaes factores do movimento e da Vida no Universo e na historia. Ambos concorrem para a solução d'um problema commum. Dovorciados até hoje pelas religiões positivas, productos da ignorancia inevitavel dos povos primitivos, tendem a fundir-se n'uma _Unidade Suprema_, para a qual convergem todas as forças vivas da Natureza, as revellações da Historia e as descobertas scientificas dos ultimos tempos! O que poderão estes dois eternos agentes da Verdade na solução dos destinos dos povos, já o podemos antever pelas grandes e luminosas syntheses historicas a que hoje attinge todo o espirito culto ao contemplar, como nós o fizemos, os despojos das civilisações extinctas que se archivam nos grandes museus--no British Museum, em Londres; no Louvre, em Paris; nas gallerias de Pit, em Florença; nas do Vaticano, em Roma; e ao vermos reunidas as maravilhas da arte e industrias modernas nos certamens internacionaes das grandes exposições!... Pelo que já temos até agora conquistado com o poder creador da nossa Idéa e com o auxilio que nos prestam as forças inexgotaveis da Natureza, o que é já hoje authentico, real e verdadeiro: o homem não tem motivos para desesperar do termo da sua jornada no percurso indefinido e infinito dos tempos, e sentar-se á margem do caminho, e no meio d'este, a chorar como Jeremias, ou a apostrophar como Job a Justiça Eterna pela ingratidão dos homens e pela dureza dos fados! O homem nem deve considerar-se já hoje um revoltado contra Deus e por este punido, ora, segundo o genio semitico, com a expulsão de Adão e Eva do Paraizo, ora, segundo o espirito Helenico, com o aguilhoamento de Prometheu nas montanhas do Caucaso e o despedaçamento das suas carnes pelos bicos e as garras dos abutres! Pela mais exacta comprehensão das leis do Universo e da Historia, o homem tende a tirar da antithese do Mal e do Bem, cujo antagonismo permanente, em perpetua lucta, constitue todo o Mysterio do Passado, a Synthese Suprema chamada Verdade e que adoramos sob o nome de Deus. Perante esta luz, de intensissimo fulgôr e de alcance infinito, as paginas da historia escripta pelo homem, são apenas por ora uma gloriosa introducção aos fastos da Humanidade que os seculos futuros completarão, e cuja sequencia só póde denunciar-se nas visões e nos sonhos dos Poetas e dos Philosophos! Na prespectiva da morte, quando para nós se quebram os vinculos da Vida e se fecham para sempre as paginas da historia, apraz-nos abrir o Livro que já está escripto, o _Livro da Vida Eterna_--_os Ceus_--e consagrar-lhes este CANTO, que escripto ha vinte e sete annos atraz, é ainda hoje a traducção fiel do nosso pensar e do nosso sentir. Não desdenhariamos de que sobre a nossa sepultura fossem escriptas as tres ultimas quadras d'este CANTO, porque n'ellas resumimos toda a fé que trazemos no coração. Lisboa, 29 de março de 1899. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Cantos Sagrados" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.