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Title: Trovas do Bandarra - natural da Villa de Trancoso, apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal
Author: Bandarra, Gonçalo Anes, 1500-1556
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Trovas do Bandarra - natural da Villa de Trancoso, apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal" ***


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TROVAS DO BANDARRA,

NATURAL DA VILLA DE TRANCOSO,

APURADAS, E IMPRESSAS POR ORDEM DE UM GRANDE SENHOR DE PORTUGAL,

_Offerecidas aos verdadeiros Portuguezes devotos do Encuberto._

*     *     *     *     *

NOVA EDICÇÃO

A que se ajuntão mais algumas nunca ate ao presente impressas.

*     *     *     *     *

BARCELONA:
M.DCCCIX.



  Na mesma confusão, e nos tumultos
  Deixa, que por teu Rei victorias cantem,
  Que de quanto o Sol vê, Neptuno abarca
  Será comtigo Universal Monarcha.

    Bocarr. Anacephal. Out. 126.



PROLOGO.


*     *     *     *     *

Na presente Edicção houve unicamente a tenção de satisfazer aos desejos, e
cuidadoso empenho dos que buscão haver estas Profecias, e conservar dellas
a todo custo um exemplar incorrupto. Isto procurãmos com a maior
diligencia, referindo nos escrupulosamente, e com toda a pontualidade á
que se publicou em Nantes em o anno de 1644, por Guillelino do Monnier,
Impressor d'el Rei; e não se encontrará mudança, nem a menor alteração em
accrescentamento, ou falta, porque; tudo vai como nella está, por excepção
de alguns poucos, e leves descuidos da impressão, que pareceu acertado
emendar. E em quanto ás ineditas, que ajuntamos no fim, por nos serem
requeridas de alguns sujeitos, seguimos as melhores, e mais apuradas
copias, de quantas buscámos com curiosidade, e pudemos descobrir,
preferindo sempre as mais  antigas, e que conservadas pela tradição
continuada reputámos por mais fide dignas, além de nos serem communicadas
por pessoas graves, e de authoridade, que as guardão em varios lîvros de
curiosidades antigas. Todas as que aqui vaõ temos por verdadeiras, e taõ
suas, e merecedoras de estimaçaõ como as ímpressas; pois no tom, e maneira
de enunciar as couzas, que revela, assim como na locuçaõ, e estylo em nada
se differenção dellas.

Pelo que toca ao seu Author, bem conhecido he o seu nome, assim como a bem
merecida reputação, e credito que tem entre todos por estas suas mesmas
Profecias tam decantadas como cheias de mysterio, e verdadeiras; que
ninguem ha que delle, e dellas faça menção, sem que seja fazendo lhes
conciliar o grande respeito, e veneração, que se lhes deve. De sua vida
nenhuma couza aqui ha que dizer, podendo se dizer muitas, porque ninguem
de quantos lem estes escriptos a ignora; a anda em muitos livros, que
todos podem haver mui facilmente. Foi elle o Nostradamus dos Portuguezes,
como antigas memorias nos certificão, no tempo d'el Rei D. João o III. de
Portugal, e porventura ainda mais celebre por seus ditos, maravilhosos
vaticinios, e prognosticos, do que  foi aquelle, e pelos mesmos annos na
França; porque se com particular distinção obteve este os comprimentos de
Henrique II., e da Rainha Catharina de Medicis, sua mulher, e de seus
filhos; as honras, e estimações do Duque de Saboia Manoel Feliberto, e da
Duqueza Margarida de França; e os prezentes de Carlos IX. mereceu o nosso
os applausos de uma Nação inteira assim de grandes como pequenos, de
illustres, e plebêos, sabios, e indiscretos, e continuados por tamanho
espaço, quanto vai desde quando viveu até nossos tempos, e sempre o será,
em quanto o Mundo durar, que tanto hade viver na memoria dos homens.

Assim o sentiu aquelle raro engenho, e o mais accreditado Pregador o P.
Antonio Vieira, consagrando lhe particular affecto, e chegando a affirmar,
que era mui grande, e mui alumiado Profeta. Antonio de Souza de Macedo faz
delle particular memoria por estas palavras na Lusitania Liberata a pag.
735.--"Regnante in Lusitania Joanne 3º. anno Domini 1550. in nobili oppido
Trancoso decessit celeber Gondiçalus Annes Bandarra, qui decantatos á
multis annis reliquit versus de Lusitanis eventibus, quorum, ultra
nostros, meminit D. Joannes de Horosco, Castelanus in tract,  de Vera, et
Falsa Prophet. cap. 24." O lugar apontado de D. João de Horosco naõ he do
cap. 24., como ali está, mas do cap. 14. do Liv. I., onde a pag. 38. diz
assim.--"Y desta manera tuve yo noticia de un çapatero en Portugal, que
fue tenido por Profeta." E na glosa marginal accrescenta.--"Este çapatero
de Portugal fue en Trancoso dicho Bandarra, y avra este año de 88.
quarenta y seis que morio."--Mas he de advertir, que nem um, nem outra
acertou no anno da morte de Bandarra, que, conforme escreveu Barbosa
Machado na sua Biblioth. Lusitana, foi depois de 1556. Saõ tambem dignos
de ver se nos elogios, que lhe tributão D. Nicolaõ Monteiro, Vox Turtur.,
o P. Vasconcellos no seu admiravel Livro da Restauraç. de Portugal, e
outros, que aponta o mesmo Barboza.

Resta antes de concluir mos em agradecimento fazer neste lugar honrada
memoria de dous consumados varões, que muito contribuiraõ para gloria do
nosso Author. Seja o primeiro D. Vasco Luiz da Gama, V. Conde da
Vidigueira, e I. Marquez de Niza, a quem se deve aquella Edicçaõ de
Nantes, e nella se diz sómente ser por um grande Senhor de Portugal; e
verdadeiramente foi notado de mui nobres, e  excellentes qualidades, por
onde se faz credor de grandissimos elogios. Occupou mui altos empregos,
como o de Almirante do Mar da India, Deputado da Junta dos Tres Estados, e
do Despacho das Juntas na Regencia da Rainha D. Luiza, e de seus filhos os
Reis D. Affonso VI., e D. Pedro II. sendo Regente, Vedor da Fazenda dos
ditos Reis, e Estribeiro Mor da Rainha D. Maria Francisca Isabel de
Saboia. Foi Commendador na Ordem de Christo, e do Conselho de Estado, e
Guerra, e duas vezes Embaixador a França por El Rei D. João IV., a
primeira em 1642, e a segunda em 1646, em que mostrou discripção,
prudencia e zelo do bem do Reino, a ultimamente a Roma em obediencia aos
Papas Urbano VIII., e Innocencio X. Na Paz, que se celebrou deste Reino
com Castela em 1668. teve muita parte, sendo um dos Plenipotenciarios para
ella eleito, em que se houve com muita circumspecção.

O outro he D. Alvaro de Abranches da Camera, que antes lhe havia mandado
levantar novo sepulchro com seu Epitafio na Igreja de S. Pedro da Villa de
Trancozo, trasladando seus ossos de outra baixa, e humilde, em que jazia,
e fazendo lhe insculpir por divisa na pedra os instrumentos do officio de
çapateiro, que elle  havia exercitado. Esta grande honra havia o mesmo
Bandarra profetizado nas Quadras 8 e 9 do. III. Corpo das Trovas, Sonho I.
por estas mysteriosas palavras:

  8.

  Vejo, mas não sei se vejo,
  O certo he, que me cheira,
  Que me vem honrar á Beira
  Um Grande do pè do Tejo.

  9.

  Formas, cabos, e sovelas
  Lavradinhas com primor
  Mandareis abrir, Senhor,
  Muitos folgarão de vê las.

Ali taõ somente lhe chama, e assim o dá a conhecer, "Um Grande do pé do
Tejo:" e sem duvida foi elle um dos mais illustres, e accreditados
Fidalgos da Corte no seu tempo. Era filho de D. Francisco da Camera
Coutinho, Commendador de S. João da Castanheira na Ordem de Christo e D.
Guimar de Abranches; e neto pela parte paterna de Rui Gonsalves da Camera,
Capitão Donatario da Ilha de S. Miguel, I. Conde de Villa Franca, e de D.
Joanna de Blaesvelt, da Casa dos Condes de Redondo, e  pela mai de D. Joao
de Abranches de Almada, e de sua segunda mulher D. Antonia de Souza. A
tamanha nobreza uniu muitos merecimentos, adquiridos por seus serviços.
Deve se a seu singular espirito, e valor a liberdade da Patria na gloriosa
Acclamação d'el Rei D. João IV., sendo um daquelles illustros Fidalgos,
que para ella sobre maneira concorreu, arvorando a Bandeira da Cidade,
recobrando o Castello de Lisboa, e soltando alguns, que ali se achavão
prezos, com outras muitas acções de lealdade, e heroico desinteresse, que
serão de exemplo á posteridade. Foi Commendador de S. João da Castanheira,
Senhor dos Morgados de Abranches, e Almadas, Conselheiro de Estado, Mestre
de Campo General da Estremadura, e por duas vezes Governador das Armas da
Provincia da Beira. E porque digamos tudo para seu completo elogio, foi
casado com D. Maria de Lencastre, da Casa dos Barões, hoje Marquezes de
Alvito, e della houve a D. Magdalena de Lencastre e Abranches, I. Condessa
de Valladares, mulher do Conde D. Miguel Luiz de Menezes, e D. Guimar de
Lencastre, que foi mai de Tristão da Cunha de Ataide, I. Conde de
Povolide, e de Nuno da Cunha de Ataide, Inquisidor Geral destes Reinos, e
Cardial da Santa Igreja de Roma do titulo de S. Anastacia, por quem se
transmitiu o Segundo  Corpo das Trovas ineditas, que agora damos. Delle se
lembra o P. Nicolão da Maia na Relação daquella Acclamação que publicou em
1641. Salgad. de Araujo, Success. Militar. Liv. III., cap. 30, e seg., O
Conde da Ericeira, Portug. Restaurad. P. I. nos Liv. 2. 4. 7. 8., Souz.
Hist., Genealog. da Casa Real, Liv. VII. cap. I. Castro, Mapp. de
Portugal, P. IV. cap. 4. e outros.

A honra de mandar levantar a Bandarra o sepulchro, que acima dizemos, e
por que se lhe deve esta sua memoria, refere o mesmo Antonio de Souza de
Macedo na sobredita Lusitania Liberat., e lugar apontado a pag. 736., e
damos as suas mesmas palavras:--"Anno 1641. D. Alvarus de Abranches,
provinciae Beirae Generalis, hujus viri humile sepulchrum in portico
Ecclesiae S. Petri dicti oppidi Trancoso, elevavit honorifice nobili
epitaphio; et Rex postea, capella boni reditu ejus donavit nepotem; ac
merito, nam si Nabuchodonosor, et Cyrus remunerarunt Hieremiam, et Isaiam
quod pro eis prophetaverint; et magnus Alexander, in gratiam Danielis
prophetisantes victorias ejus, adoravit Jaddum summum Pontificem
Hierosolimae; à fortiori Christianissimus Princeps Alexandro maior
generosam gratificationem debebat ostendere."



AOS VERDADEIROS PORTUGUEZES DEVOTOS DO ENCUBERTO.


*     *     *     *     *

Divida he forçosa, Senhores, offerecer vos o amor da Patria esta insigne,
e mysteriosa obra: porque se seu Author fôra vivo neste venturoso tempo
assim o fizera em satisfação de tão dilatadas esperanças, que por mais de
sessenta annos alentarão o animo daquelles, que com tanta razão, e justiça
desejavão, que a Real Coroa de Portugal tornasse a illustrar a cabeça de
Principe natural, e verdadeiro. Tudo merece uma firme, e longa esperança
pois não ha couza que mais custe, e atormente. Assim o affirma Estacio no
Livro I.

  ...."Spes anxia mentem
  Extrahit, et longo consummit guaudia voto."

Tambem se vos offerece nestas Trovas do Bandarra uma verdade cumprida para
recompensa de vossos desejos continuos, merecedores sempre de desempenhos
grandes, quaes são as certas posses de esperanças continuas. Para sua
maior estimação he precisamente nescessario o conhecimento, e noticia do
sazonado fructo  que se possue, procedido da flor do que se esperou:
porque não ha amar sem conhecer diz o Principe da Filosofia: Nihil
volitum, quin praecognitum. O Libertador do nosso captiveiro, captiveiro,
o remedio de nossos males, o descanço, de nossos trabalhos he o Rei
Encuberto, de quem trata Bandarra, e a quem tomou por assumpto, e por
objecto de seus versos, como nelles se vê, e particularmente na Estancia
LXXII. dizendo:

  Este Rei tão excellente,
  De quem tomei minha teima.

Val o mesmo que dizer: Deste Rei trato somente, delle escrevo, posto que
as figuras, e acções sejão muitas, e differentes. O teimoso sempre porfia,
e teima: assim Bandarra sempre falla neste Rei, ao qual chama o Encuberto,
como consta do Verso LXXV. fallando do Porco, que fará fugir para o
deserto:

  Demostra que vai ferido
  Desse bom Rei Encuberto.

A este Rei Encuberto attribue seis propriedades, e signaes, quaes saõ os
seguintes: O Primeiro, O Rei novo he alevantado. Verso LXXXVII., diz, que
he Rei novo. O Segundo, que será Rei eleito, e naõ só por successão.
Verso C. O Rei novo ho escolhido, e elegido. O Terceiro, que he Infante,
como se lê no Verso LXXXVIII. Saia, saia esse Infante, bem andante. O
Quarto, que se chamará D. João, Verso LXXXVIII.: O seu nome he D, João,
nome, de que tanto gostou o Author, que seis vezes falla nelle, como se vê
nos Versos XXV. XXXVIII. XLIV. LV. LXXXVIII. XCIII. O Quinto, que terá um
irmão bom Capitão, Verso CII.: Este Rei tem um irmão bom Capitão. Diz
ultimamente, que este Rei será acclamado, e alevantado, quando se cerrarem
os quarenta annos, como consta do Verso LXXXVII.:

  Ja se cerraõ os quarenta
  Que se e[m]menta
  Por um Doutor ja passado:
  O Rei novo he alevantado.

Todos estes signaes evidentemente convem só a El Rei D. João IV., nosso
Senhor, o qual he Rei novo, porque antes não reinava, posto que era Rei de
juro. Rei elegido foi pela commum inspiração, e geral acclamação de todo o
Reino; Infante era tambem, porque os Principes de Bragança são Infantes,
como tambem por bisneto do Infante D. Duarte, filho nono  do Senhor Rei D.
Manoel. Chama se alem disto D. João. Tem um irmão valeroso Capitão qual he
o Senhor Infante D. Duarte, que Deos livre. A eleição, ou commum
inspiração, e acclamação (que tudo he o mesmo conforme a Direito) foi
quando cerravão quarenta annos, pois foi Sabbado (e havia de ser Sabbado)
dia setimo, em que Deos descançou da creação do Universo, como em
mysterio, e em signal, que nossas afflicções o cançarão, e que descançava
com o Rei, que naquelle dia nos deu para nosso descanço liberdade; pois o
dia em que primeiro descançou foi, como se sabe Sabbado. Assim nos
restituiu o nosso legitimo Rei Sabbado primeiro dia de Dezembro, mez em
que cerrou o anno de 1640.

Conclue se logo com toda a certeza, e moral evidencia, que El Rei D. João
o IV., nosso Senhor he o esperado, e tão desejado Rei Encuberto, de quem
Santo Isidoro fallou na era de 636., escrevendo muitas couzas futuras de
Hespanha[1], e Bandarra tantas vezes repitiu. Não ha mais esperar outro
Encuberto; porque he couza vã, e aerea; e o mesmo Rei de Castella chamou a
El Rei, nosso Senhor Encuberto duas vezes, quando antes de ser Rei o
mandou governar ás armas de Portugal á Villa de Almada, em a Carta dizia
fosse encuberto; e pois os signaes, que delle se apontão de nenhuma
maneira convem a El Rei D. Sebastião, nem he Rei novo mas velho; não foi
Rei de eleição senão de successão, e que nasceu Rei, porque não se chamava
João, nem teve outro irmão bom Capitão. Conheção logo todos esta clara
verdade; e farão toda a devida estimação das Trovas do celebrado Bandarra,
qua neste particular ja vemos desempenhadas, e cumpridas.


  [1] Estas Profecias de Santo Isidoro, Arcebispo de Sevilha, de que aqui
  falla, em que vaticinou successos de Castella, podem ler se na
  Ressurreição de Portugal por Fernão Homem, que tambem foi impressa em
  Nantes pelo mesmo impressor Guillelmo do Monnier; e ahi se diz forão
  tiradas de um Livro, que se havia impresso em Valença no anno de 1520.,
  e que andavão nas lições de sua vida no Breviario Dominicano, e em
  outros. O anno de 636., que tambem aqui se a ponta, foi o mesmo da morte
  deste Santo Prelado, mui esclarecido pelo zelo da Fe, e inteireza da
  disciplina Ecclesiastica.


    VALETE.



A QUEM LER.


*     *     *     *     *

Foi Gonçaleannes Bandarra (Benevolo Leitor) um official de çapateiro de
calçado de corrêa, homem de boa vida, o qual viveu na antiga Villa de
Trancoso do Bispado da Guarda. Passou sempre pobremente, e sem mais
cabedal, que a limitado de seu officio, que naquelles lugares não costuma
ser muito. Concorreu nos tempos do Rei D. João o III. de Portugal. As suas
Trovas, que compoz no anno de 1540 pouco mais ou menos, forão sempre tão
recebidas, e celebradas, que não necessitão de maiores abonações que as do
tempo que tanto as accredita. E se tambem as faz muito estimadas o
offerece las seu Author ao Illustrissimo Bispo da Guarda D. João de
Portugal, que Deos tem,[2] mais o devem ser hoje assim pelos effeitos
mostrarem sua verdade como pelas mandar imprimir um Principe Portuguez
grande, e excellente. Acção na verdade descobridora do fino amor de Rei, e
do zelo do bem do Reino (que vivem em seu nobre, e fiel peito) cujas
principiadas glorias faz estampar, para que sejão notorias, e perpetuas.
Estas canta o celebre Bandarra em seus grosseiros, mas mysteriosos Versos,
a quem o entendimento applica mais authorisado titulo que o curto, que se
permitte á penna. Muito se pode sentir, mas nem tudo se pode dizer
particularmente em materias, que pedem approvação do Supremo Tribunal.

  [2] Esta Dedicatoria a D. João de Portugal, Bispo da Guarda he o
  documento mais certo da morte de Bandarra succeder depois do anno de
  1556, porque so neste podia ser feita, que foi o primeiro em que aquelle
  Prelado foi provido na quella Diocese, e confirmado pelo Pontifice Paulo
  IV., e ainda no anno seguinte he que tomou posse. Foi mui exemplar por
  suas virtudes, como lhe chama Bandarra, nãe menos do que era mui
  distinto por sua nobreza como ramo florecente dos primeiros Condes de
  Vimioso. A heroica paciencia, com que sofreu ser despojado da sua
  dignidade Episcopal, e recluso em um Mosteiro, depois da infausta
  jornada do nosso Augustissimo REI o Senhor D. Sebastião nosso Senhor,
  fará em todo o tempo sempre illustre o seu nome, e mui accreditada a sua
  memoria.

Grandes injurias tem feito o dilatado tempo de mais de cem annos ás Trovas
do Bandarra: uma vez viciando as com a corrupção; outra accrescentando as;
outra diminuindo as. Para ficar só o grão, e deitar fóra do taboleiro o
joio, e a hervilhaca foi necessario (e não com pouca  industria) buscar as
mais antigas copias, das quaes a de menor idade he de outenta annos, nas
mãos de pessoas intelligentes, e fide-dignas, com as quaes se apurou esta,
que sahe á luz, e ficará ás escuras a immensa multidão de treslados destas
Trovas, todos viciados, e corruptos: pois não havia pessoa, que não
tivesse um Bandarra a seu modo. Vaõ os Versos numerados, e rubricados para
maior clareza, e distinção. Deve se porem advertir um grande mysterio, que
está no Verso LXXXVIII. aonde diz.--O seu nome he D. João.--Lião
muitos.--O seu nome he de D. João;--mas os mais antigos usavão de uma
letra I, que parecia ser a letra F. Quiz Deos, por nosso bem, que no ler
houvesse diferencas.

    VALE.



TROVAS DO BANDARRA.

*     *     *     *     *

DEDICATORIA DO AUTHOR

_A Dom João de Portugal Bispo da Guarda._


Illustrissimo Senhor,
De Virtudes mui perfeito,
Vós deveis de ser eleito
De todas as Leis dador.

Deos vos deu tanto primor,
Que não se acha em vossa marca
Mais subido Patriarcha,
De nobre Gente Pastor.

Determinei de escrever
A minha çapataria:
Por ver Vossa Senhoria
O que sahe de meu cozer.

Que me quero entremeter
Nesta obra, que offereço
Porque saibão o que conheço,
E quanto mais posso fazer.

Sahirá de meu cozer
Tanta obra de lavores,
Que folguem muitos Senhores
De a calçar, e trazer.

E quero entremeter
Laços em obra grosseira,
Quem tiver boa maneira
Folgará muito de aver.

Cozo com linho assedado,
Encerado a cada ponto;
Cozo meudo sem conto,
Que assim o quer o calçado.

Se vier algum avizado
Requerer algumas solas,
Eu as corto sem bitolas,
E logo vai sobresolado.

Tambem sou official:
Ás vezes cozo com vira,
E sei bem como se tira
O ganho do cabedal.

Se vier algum zombar
Fazer me qualquer pergunta,
Dir lhe hei, como se ajunta
A agulha com o dedal.

Minha obra he mui segura
Porque a mais he de correia,
Se a alguem parecer feia,
Naõ entende de costura.

Eu faço obra de dura,
E não ando pela rama,
Conheço bem a courama,
Que conve[m] á creatura.

Sei medir, e sei talhar,
Semque vos assim pareça:
Tudo tenho na cabeça,
Se o eu quizer usar.

E quem o quizer grozar,
Olhe bem a minha obra,
Achará, que inda me sobra
Dous cabos pera ajuntar.

Sempre ando occupado
Por fazer minha obra boa,
Se eu vivera em Lisboa,
Eu fôra mais estimado.

Contente sou, e pagado
De lançar um so remendo,
Indaque estem remoendo,
Não me toquem no calçado.


SENTE BANDARRA AS MALDADES DO MUNDO, E PARTICULARMENTE AS DE PORTUGAL.


*     *     *     *     *

I.

Como nas Alcaçarias
Andão os couros ás voltas,
Assim vejo grandes revoltas
Agora nas Clerezias.

II.

Porque usão de Simonias
E adorão os dinheiros,
As Igrejas, pardieiros,
Os corporaes por mais vias.

III.

O sumagre com a cal
Faz os couros ser mociços,
Ah! quantos ha máos noviços
Nessa Ordem Episcopal.

IV.

Porque vai de mal a mal
Sem ordem nem regimento,
Quebrantaõ o mandamento,
Cumprem o mais venial.

V.

Tambem sou Official
Sei um pouco de cortiça
Não vejo fazer justiça
A todo o Mundo em geral.

VI.

Que agora a cadaqual
Sem letras fazem Doutores,
Vejo muitos julgadores,
Que não sabem bem, nem mal.

VII.

Borzeguins pera calçar
Haõ de ser de cordovães,
Notarios, Tabaliães
Tem o tento em apanhar.

VIII.

Vêlos heis a porfiar
Sobre um pobre seitil,
E rapar vos por um mil
Se volos podem rapar.

IX.

Tambem sei algo brunir
Quaesquer laços de lavores:
Bachareis, Procuradores
Ahi vai o perseguir.

X.

E quando lhe vão pedir
Conselho os demandões,
Como lhe faltão tostões,
Não os querem mais ouvir.

XI.

Há de ser bem assentada
A obra dos chapins largos,
A linhagem dos Fidalgos
Por dinheiro he trocada.

XII.

Vejo tanta misturada
Sem haver chefe que mande;
Como quereis, que a cura ande,
Se a ferida está danada?

XIII.

Tenho uma gentil sovela,
Com que cozo mui direito:
Se a mulher não desse geito,
Não olharião pera ella.

XIV.

Em que seja uma donzella
Nobre, casta e oradora
Ella he a causadora,
Do que acontecer por ella.

XV.

Sei tambem mui bem cozer
Uns borzeguins Cordovezes;
Todos os trajos Francezes
Quemquer os quer ja trazer.

XVI.

Os que não tem que comer
Fazem trajos mui prezados,
Ficão pobres, Lazarados
Por outros enriquecer.

*     *     *     *     *


SONHO PRIMEIRO,

_Que finge a modo Pastoril._


XVII.

Vejo, vejo; direi, vejo,
Agora que estou sonhando,
Semente d'el Rei Fernando
Frazer um grande despejo.

XVIII.

E seguir com grão desejo,
E deixar a sua vinha,
E dizer esta casa he minha
Agora que cá me vejo.

XIX.

A cerca dos Grecianos
Corrê la hão os Latinos,
Serão contrarios os signos
A todos os Arrianos.

XX.

Tambem os Venezianos
Com as riquezas que tem,
Virá o Rei de Salem
Julgá los ha por mundanos.

XXI.

Ja os lobos são ajuntados
Dalcatea na montanha,
Os gados tem degolados,
E muitos alobegados,
Fazendo grande façanha.

XXII.

O Pastor mor se assanha:
Ja ajunta seus ovelheiros,
E esperta sua companha
Com muita força, e manha
Correrá os pegureiros.

XXIII.

Depois ja de apercebidos,
E as montanhas salteadas
Por homens muito sabidos,
E pastores mui escolhidos,
Que sabem bem as pizadas.

XXIV.

Armar lhe hão nas passadas
Trampas, cepos de azeiros,
Atalaias nas estradas,
E béstas nas ameijoadas
Com tiros muito ligeiros.

*     *     *     *     *


FIGURAS DO SONHO.


XXV.

Virá o Grande Pastor,
Que se erguerá primeiro,
E Fernando tangedor,
E Pedro bom bailador,
E João bom ovelheiro.

XXVI.

E depois um Estrangeiro,
E Rodoão que esquecia,
E e o nobre pastor Garcia,
E Andre mui verdadeiro:
Entraraõ com alegria.

PASTOR MOR.

XXVII.

Aquella vacca, que berra,
Porque está assim berrando?

ANDRE.

XXVIII.

He porque desce da serra,
Não conhece bem a terra,
E por isso está bramando.

XXIX.

Esta he a vacca, Fernando,
Mai do grão touro fuscado,
Que não se acha neste bando,
Tem razão de estar berrando,
Que não sabe onde he lançado.

PASTOR MOR.

XXX.

Ajunte se o vaccum
Aqui neste verde prado,
E tambem o ovelhum,
E conte o seu cadaum,
Ver se ha a quem falta gado.

PEDRO.

XXXI.

Todo ja tendes contado,
Do vaccum achamos menos;
Um touro esmadrigado,
E um fusco, que era rozado;
Do ovelhum nada sabemos.

PASTOR MOR.

XXXII.

Oh! que dor do coração!
Oh! que dor! Oh! que pezar!
Oh! que grão tribulação!
Arredemos a paixão,
Pois se não pode cobrar.

XXXIII.

Seus filhos devemos criar,
Os quaes mui bem guardaremos,
Ficaraõ em seu lugar,
Tudo lhe havemos de dar
Pelo bem, que lhe queremos.

XXXIV.

Por honra de tal memoria
Não haja aqui mais tristura,
Antes cantemos com gloria,
Que fique sempre em memoria
Approvando a Escriptura.

XXXV.

Pois se cumpre a figura,
E nós outros bem o vemos:
Pois que ja tudo se apura,
Ao Senhor da altura
Com prazer mil graças demos.

XXXVI.

Tanja se a frauta maior,
Ajunta se todo o rebanho,
E eu como vosso Pastor,
Com mui grão sobra de amor
Vamos a partir o ganho.

XXXVII.

Tudo nos he sufraganho
Montes, valles, e pastores,
E repunhão os bailadores,
Que não entre aqui estranho.

XXXVIII.

Fernando tanja a guitarra,
Tu, João, o arrabil,
Pouza teu surrão, e vara,
Alegra bem tua cara
Em tal bailo pastoril.

XXXIX.

E Pedro, que he mais subtil
Entre, e baile com Florença,
Jaque he dama gentil,
He mui bem que lhe pertenca.

XL.

Andre baile com Paschoala,
E venha apos a primeira,
Antes de meter mais falla
Entre, e baile esta Zagala,
Em que sempre he referteira.

XLI.

Sempre foi mui agoureira
Com os estranhos dançar
E pois está tão cantadeira,
Não seja ella a derradeira,
Venha logo a bailar.

XLII.

Ha de ser mui de louvar
Este auto, que aqui temos,
E a todo o que bailar
Hão lhe mui bem de pagar,
E assim lho promettemos.

XLIII.

Sus! antes de mais estremos
Baile Fernando, e Constança,
E poisque tudo ja vemos,
Pelo bem que lhe queremos
Seja elle o mestre de dança.

XLIV.

João, o bom Ovelheiro,
Sempre foi nobre Pastor,
Não se conte derradeiro,
Pois he igual ao primeiro,
Este baile com Leonor.

XLV.

Sempre foi bom guardador
Do gado, que lhe entregarão,
Mui grande accomettedor,
E mui grande corredor
Dos lobos, que o acoçarão.

XLVI.

Por não ficar em olvido
O nobre Pastor Garcia,
Que sempre foi atrevido,
E de nós muito querido,
Este baile com Mecia.

XLVII.

Pois he de alta valia,
Dêmos lhe outro montado,
O monte que reluzia,
Aonde faça a bailia,
E paste bem o seu gado.

RODOÃO

XLVIII.

Tudos ja tendes partido,
Todos os montados dais,
Eu que fui de vós querido,
E dos lobos mui ferido,
De mim ja vos não lembrais?

PASTOR MOR.

XLIX.

Ainda fica mais, e mais,
Vossos gados pastarão,
Ficão terras de chão taes
Os valles, e piornaes,
Tudo vos dou, Rodoão.

L.

Tambem ficão umas ladeiras
De hervas mui saboridas,
Donde sahem umas ribeiras,
Que regão muitas lameiras
Com aguas esclarecidas.

LI.

A quellas serras erguidas,
Onde está a nobre montanha,
Pois por nós forão havidas,
E ategora perdidas,
Fiquem a toda a companha.

LII.

A quelle valle de alem
He o valle de primor,
He o valle de Salem,
Onde acho que muitos tem
Grande virtude, e valor.

GARCIA.

LIII.

Ja matarão o grão Pastor,
Por inveja o matarão:
Porque era bom guardador,
Das ovelhas bom creador;
Por cobiça o acabarão.

FERNANDO.

LIV.

Os bailos são acabados,
Senhor, vamos a jantar,
Que dos trabalhos passados
Muitos ha aqui desmaiados,
Que convem de repouzar.

LV.

Se algo lhe quereis dar,
Sobre meza lho daremos,
Onde bem pode mandar,
E o seu gado bem pastar,
Que assim por bem o temos.
Cahe no bailo de João.

PEDRO.

LVI.

Tambem la naquella altura
Está um lobo huivando,
E no meio da espessura
Um bufo está bufando,
E um mocho está cantando,
E Andre está sentindo
Não bailar como Fernando.

JOÃO.

LVII.

Tambem Pedro, por quem procuro,
He um barão singular,
Que no claro, e no escuro
Sempre bailou mui seguro,
E hade ficar sem lhe dar?

PASTOR MOR.

LVIII.

Pois va o elle cercar,
E far lhe hão grandes damnos;
I-lo hemos ajudar,
Até poder sugeitar
Os cavallos Mariannos.

LIX.

Ao redor da grão cabana
Na quelles montes erguidos,
No valle que se diz Canna,
Ouvimos esta semana,
Lobos que andão fugidos,
Dando grandes alaridos,
Fazendo grande agonia,
Muitos mortos, e feridos,
E outros andão perdidos.
Cahem no bailo de Garcia.

PASTOR MOR.

LX.

Quem mete ao estrangeiro
Cá no meu nobre assento,
Pois o defendi primeiro,
Poisque do meu vencimento
Lhe peza mui por inteiro?

ESTRANGEIRO.

LXI.

Em que vos hei offendido,
E de mim sois anojado?

PASTOR MOR.

LXII.

He porque te hei requerido,
Mil vezes commettido,
E tu sempre desmandado:
E porque estás abraçado
Com os meus competidores,
E com elles alliado,
Naõ mereces ter montado
Com estes nobres Pastores.

LXIII.

Tu me has sido revel
Contra os meus ovelheiros,
Abraçado com Babel
Mui descrido, e cruel,
Contra os meus pegureiros.
Minhas ovelhas, carneiros
Naõ lhe tinhas lealdade,
Degolavas meus cordeiros,
Derrubavas meus chiqueiros,
Negavas me a verdade.

ANDRE.

LXIV.

I vos, Pastor, mui embora,
Grande merce nos fareis.
Que vos vades logo essa hora,
E depois que fordes fóra,
Alguma razão tereis.

JOÃO.

LXV.

Poraqui vos sahireis,
Mentes o Pastor dá volta,
Que depois não podereis,
E quiçais nos metereis
Nalguma grande revolta.

FERNANDO.

LXVI.

Não te queiras mais deter,
Busca jogos, e harmonias,
Poronde tomes alegrias,
Antesque hajão de volver.
Oh! Senhor, tomai prazer,
Que o grão Porco selvagem
Se vem ja de seu querer,
Meter em vosso poder
Com seus portos, se passagem.

LXVII.

Em os campos de Tropé
Vossa frauta tangereis,
E nos campos de Godofré,
E nas terras de Thome
Todos nellas bailareis,
Com os filhos de Ullisse,
Que gostão nosso tanger.
Nenhum porco roncará,
Nenhum lobo huivará
Senão por vosso querer.


PROGNOSTICA O AUTHOR OS MALES DE PORTUGAL, CANTA SUAS GLORIAS COM A
ACCLAMAÇÃO DO REI ENCUBERTO.


LXVIII.

Forte nome he Portugal,
Um nome tão excellente,
He Rei do cabo poente,
Sobre todos principal.
Não se acha vosso igual
Rei de tal merecimento:
Naõ se acha, segun sento,
Do Poente ao Oriental.

LXIX.

Portugal he nome inteiro,
Nome de macho, se queres:
Os outros Reinos mulheres,
Como ferro sem azeiro;
E senão olha primeiro,
Portugal tem a fronteira,
Todos mudão a carreira
Com medo do seu rafeiro.

LXX.

Portugal tem a bandeira
Com cinco Quinas no meio,
E segundo vejo, e creio,
Este he a cabecêira,
E porá sua cimeira,
Que em Calvario lhe foi dada,
E será Rei de manada
Que vem de longa carreira.

LXXI.

Este Rei tem tal nobreza,
Qual eu nunca vi em Rei:
Este guarda bem a lei
Da justica, e da grandeza.
Senhorea Sua Alteza
Todos os portos, e viagens,
Porque he Rei das passagens
Do Mar, e sua riqueza.

LXXII.

Este Rei tao excellente,
De quem tomei minha teima,
Naõ he de casta Goleima,
Mas de Reis primo, e parente.
Vem de mui alta semente
De todos quatro costados,
Todos Reis de primos grados
De Levante ate ao Poente

LXXIII.

Serão os Reis concorrentes,
Quatro serão, e naõ mais;
Todos quatro principaes
Do Levante ao Poente.
Os outros Reis mui contentes
De o verem Imperador,
E havido por Senhor
Naõ por dadivas, nem presentes.

LXXIV.

Commendadores, Prelados,
Que as Igrejas comeis,
Traçareis, e volvereis
Por honra dos Tres Estados,
E os mais serão taxados;
Todos contribuirão
E haverá grão confusão
Em toda a sorte de estados.

LXXV.

Ja o Leaõ he experto
Mui alerto.
Ja acordou, anda caminho.
Tirará cedo do ninho
O porco, e he mui certo.
Fugirá para o deserto,
Do Leaõ, e seu bramido,
Demostra que vai ferido
Desse bom Rei Encuberto.

LXXVI.

Uma porta se abrirá
N'um dos Reinos Africanos,
Contraria aos Arrianos,
Que nunca se cerrará.
A vacca receberá
A nova gente que vem,
Com prázer de tanto bem
Seu leite derramará.

LXXVII.

A lua dará grão baixa,
Segundo o que se vê nella,
E os que tem Lei com ella:
Porque se acaba a taixa.
Abrir se ha aquella caixa,
Que ategora foi cerrada,
Entregar se ha á forçada
Envolta na sua faixa.

LXXVIII.

Um grão Leão se ergerá,
E dará grandes bramidos;
Seus brados serão ouvidos,
E a todos assombrara;
Correrá, e morderá
E fará mui grandez damnos,
E nos Reinos Africanos
A todos sugeitará.

LXXIX.

Passará, e dará boccado
Na terra da Promissão,
Prenderá o velho Cão,
Que anda mui desmandado.

LXXX.

De perdões, e orações
Irá fortemente armado,
Dará nelles S. Thiago,
Na volta que faz depois.

LXXXI.

Entrara com dous pendões
Entre os porcos sedeudos,
Com fortes braços, e escudos
De seus nobres Infanções.


INTRODUZ O AUTHOR POETICAMENTE DOUS JUDEOS, QUE VEM BUSCAR O PASTOR MOR
UM CHAMADO FRAIM, E OUTRO DÃO, E ACHÃO FERNANDO OVELHEIRO Á PORTA.


FRAIM.

LXXXII.

Dizei, Senhor, poderemos
Com o grão Pastor fallar?
E daqui lhe prometemos
Ricas joias que trazemos
Se no las quizer tomar.

FERNANDO.

Judeos que lhe haveis de dar?

JUDEOS.

LXXXIII.

Dar lhe hamos grande thesouro
Muita prata, muito ouro,
Que trazemos de além mar.
Far nos heis grande merce
De nos dardes vista delle.

FERNANDO.

LXXXIV.

Entrai, Judeos, se quereis,
Bem podeis fallar com elle,
Que la dentro o achareis.

LXXXV.

Tomará com seu poder,
E grão saber,
Todos os portos de alem,
Marrocos, e Tremecem,
E Féz tambem:
Fara tudo a seu querer,
Vi lo hão a cometter
Pelo deter,
Que querem ser tributarios,
E lhe querem dar dinheiros,
Lisongeiros,
Os quaes naõ deve querer.

LXXXVI.

E depois da Embaixada
Declarada,
Antesque cerrem quarenta,
Erger se ha a grão tormenta,
Do que intenta,
E logo será amansada,
E tomarão a estrada
De calada,
Naõ terão quem os affoite,
Dar lhe hão aquella noite
Tal açoite,
Que a Fe seja exalçada.

LXXXVII.

Ja o tempo desejado
He chegado,
Segundo o firmal assenta:
Ja se cerrão os quarenta,
Que se emmenta,
Por um Doutor ja passado.
O Rei novo he alevantado,
Ja dá brado;
Ja assoma a sua bandeira
Contra a Grifa parideira,
La gomeira,
Que taes prados tem gostado.

LXXXVIII.

Saia, saia esse Infante
Bem andante,
O seu nome he D. João,[3]
Tire, e leve o pendão,
E o guião
Poderoso, e tryunfante.
Vir lhe hão novas n'um instante
Daquellas terras prezadas,
As quaes estão declaradas,
E affirmadas
Pelo Rei dali em diante.

  [3]Veja se ao principio a advertencia do primeiro Editor da maneira,
  como este Verso se lia errado em alguns manuscriptos por incuria de
  alguns copistas, e equivocação das duas letras.

LXXXIX.

Naõ acho ser deteudo
O agudo,
Sendo elle o instrumento,
Naõ acho, segundo sento
O Excellento
Ser falso no seu Escudo.
Mas acho, que o Lanudo
Mui sezudo,
Que arrepellará o gato,
E far lhe ha murar o rato,
De seu fato
Leixando o todo desnudo.

XC.

Naõ tema o Turco, naõ
Nesta sezão,
Nem o seu grande Mourismo,
Que naõ recebeu bautismo,
Nem o chrismo,
He gado de confusão.
Firmal põe declaração
Nesta tenção,
Chama lhe animaes sedentos
Que naõ tem os mandamentos,
Nem Sacramentos;
Bestiaes são, sem razão.

XCI.

Em que venhão mais, e mais
Dos bestiaes,
Pelo que mostra a figura,
Haverão a sepultura
Da amargura,
Como brutos animaes.
Que se o texto bem olhais,
E declarais
Com fundas serão feridos,
Todos mortos, confundidos
Nos abysmos infernaes.

XCII.

As chagas do Redemptor,
E Salvador
São as armas de nosso Rei:
Porque guarda bem a Lei,
E assim a grei
Do mui alto Creador.
Nenhum Rei, e Imperador,
Nem grão Senhor
Nunca teve tal signal,
Como este por leal,
E das gentes guardador.

XCIII.

As armas, e o pendão,
E o guião
Forão dadas por victoria
Da quelle alto Rei da Gloria
Por memoria
A um Santo Rei barão.
Succedeu a El Rei João,
Em possessão
O Calvario por bandeira,
Leva lo ha por cimeira,
Alimpará a carreira
De toda a terra do Cão.

*     *     *     *     *

SONHO SEGUNDO.


XCIV.

Oh! quem tivera poder
Pera dizer,
Os sonhos que o homem sonha!
Mas hei medo, que me ponha
Grão vergonha
De mos naõ quererem crer.
Vi um grão Leão correr
Sem se deter
Levar sua viagem,
Tomar o porco selvagem
Na passagem,
Sem nada lho defender.

XCV.

Tirará toda a escorta
Será paz em todo o Mundo,
De quatro Reis o segundo
Haverá toda a victoria.

XCVI.

Será delle tal memoria
Por ser guardador da Lei,
Polas Armas deste Rei
Lhe darão tryunfo, e gloria.

XCVII.

Trinta e dous annos e meis
Haverá signaes na terra;
A Escriptura naõ erra;
Que aqui faz o conto cheio.

XCVIII.

Um dos tres que vão arreio
Demostra ser grão perigo;
Haverá açoite, e castigo
Em gente que naõ nomeio.

XCIX.

Ja o tempo desejado
He chegado
Segundo o firmal assenta
Ja se passão os quarenta
Que se emmenta
Por um Doutor ja passado.
O Rei novo he acordado
Ja dá brado:
Ja arressoa o seu pregão
Ja Levi lhe dá a maõ
Contra Sichem desmandado.
E segundo tenho ouvido,
E bem sabido,
Agora se cumprirá:
A deshonra de Dina
Se vingará
Como está promettido.

C.

O Rei novo he escolhido,
E elegido,
Ja alevanta a bandeira
Contra a Grifa parideira
Que taes pastos tem comido;
Porque haveis de notar,
E assentar,
Aprazendo ao Rei dos Ceos
Trará por ambas as Leis,
E nestes seis
Vereis couzas de espantar.

CI.

O nescio quer affirmar,
E declarar
Desde seis ate setenta
Que se emmenta,
Do Rei que irá livrar.
Louvemos este Barão
Do coração,
Porque he Rei de Direito;
Deos o fez todo perfeito
Dotado de perfeição.

CII.

Este Rei tem um Irmão,
Bom Capitão.
Não se sabe a irmandade?
Todo he nobre, em bondade;
E na verdade
Que sahirá com o pendão.

CIII.

Muitos estão desejando,
E altercando,
Se o meu dito será certo,
Se de longe, se de perto?
E sobre o tal praticando.
A quelle grão Patriarcha
No lo mostra, e está fallando,
E declara o grão Monarcha:
Ser das terras, e comarca,
Semente del Rei Fernando.

CIV.

Este Rei de grão primor,
Com furor,
Passará o mar salgado
Em um cavallo enfreado,
E não sellado,
Com gente de grão valor.

CV.

Este diz, soccorrerá,
E tirará,
Aos que estão em tristura.
Deste, conta a Escriptura,
Que o campo despejará,
Os Fidalgos estimados,
E desprezados,
Que ategora são corridos,
Com o tal serão erguidos,
E mui queridos,
E com os Reis estimados.

CVI.

Se lerdes as Profecias
De Jeremias,
Irão dos cabos da terra
Tomar os Valles, e Serra,
Pondo guerra,
E tirar as heregias,
Derrubar as Monarchias,
E fantezias
Serão bem apontoadas,
Serão todas derrubadas,
Desconsoladas
Fóra da possentadorias.

CVII.

Ainda mas profetizando,
E declarando:
Seus pequenos das manadas,
Derrubar lhe hão as moradas
Bem entradas,
E assim o vai mostrando.
Ja o Leão vai bradando,
E desejando
Correr o porco selvagem,
E toma lo há na passagem
Assim o vai declarando.

CVIII.

Muitos podem responder,
E dizer:
Com que próva o çapateiro
Fazer isto verdadeiro,
Ou como isto pode ser?
Logo quero responder
Sem me deter.
Se lerdes as Profecias
De Daniel e Jeremias
Por Esdras o podeis ver.

*     *     *     *     *


SONHO TERCEIRO.


CIX.

Oh! quem pudéra dizer,
Os sonhos que o homem sonha!
Mas eu hei grão vergonha
De mos não quererem crer.

CX.

Sonhava com grão prazer,
Que os mortos resuscitavão,
E todos se alevantavão,
E tornavão a renascer.

CXI.

E que via aos que estão
Tras os rios escondidos;
Sonhava, que erão sahidos
Fóra daquella prizaõ.

CXII.

Vi ao Tribu de Daõ
Com os dentes arreganhados,
E muitos despedaçados
Da Serpente, e do Dragaõ.

CXIII.

E tambem vi a Rubem
Com graõ voz de muita gente,
O qual vinha mui contente
Cantando, Jerusalem.

CXIV.

Oh! quem vira ja Belem
E esse monte de Siaõ
E visse o Rio Jordão
Pera se lavar mui bem!

CXV.

Vi tambem a Simeão
Que cercaua, todas as partes
Com bandeiras, e estandartes
Nephtalim, e Zabulaõ.

CXVI.

Gad vinha por Capitão
Desta gente que vos fallo,
Todos vinhão a cavallo
Sem haver um só piaõ.

CXVII.

Eu por mais me affirmar,
E ver se estava acordado
Vi um velho mui honrado,
Que me vinha a perguntar.

CXVIII.

Dize me, tu es de Agar,
Ou como fallas Chananêo?
Ou es porventura Hebrêo
Dos que nos vimos buscar?

CXIX.

Tudo o que me purguntais
(Respondi assim dormente)
Senhor, naõ sou dessa gente,
Nem conheço esses taes.

CXX.

Mas segundo os signaes
Vós sois do povo cerrado,
Que dizem estar ajuntado
Nessas partes Orientaes.

CXXI.

Muitos estaõ desejando
Serem os povos juntados:
Outros muitos avizados
O estaõ arreceando.

CXXII.

Arreceão vir no bando
Esse Gigante Golias
Mas por ver Henoch, e Elias
Doutra parte estaõ folgando.

CXXIII.

Dizeime, nobre Barão,
Pergunto, se sois contente
Dizer me vossa semente
Se he da casa de Abrahão?

CXXIV.

Que eu sam dessa geração
Sahi do Tribo de Levi,
Sacerdote como Heli,
O meu nome he Araõ.

CXXV.

Eu quizera lhe responder,
E tocar lhe em a Lei,
Senão nisto acordei,
E tomei grande prazer.

CXXVI.

E depois de acordado
Fui a ver as Escripturas,
E achei muitas pinturas
E o sonho affigurado.

CXXVII.

Em Esdras o vi pintado,
E tambem vi Isaias,
Que nos mostra nestes dias
Sahir o povo cerrado.

CXXVIII.

O qual logo fui buscar
A Got, Magot, e Ezechiel,
As Domas de Daniel
Comecei de as olhar;
E achei no seu cantar
Segundo o que representa;
E assim Gad, como Agar,
Que tudo se ha de acabar
Dizendo: Cerra os setenta.


RESPOSTA DO BANDARRA A ALGUMAS PERGUNTAS, QUE LHE FIZERÃO, E DA RESPOSTA
DELLAS SE CONHECEM QUAES FORÃO.


CXXIX.

Os tempos que ja se vem
Porque, Senhor, perguntais,
Mui grande segredo tem,
Que muitos dizem Amen,
Mais se calão mais e mais.

CXXX.

O mais está por cumprir,
O que a minha conta somma:
Porque de partir a vir
O texto se hade cumprir
Primeiro, Senhor, em Roma.

CXXXI.

E nestes tresentos dias,
Senhor, que agora contamos
Se contém as Profecias
De Daniel, e Jeremias,
Nas quaes agora entramos.

CXXXII.

E depois de ellas entrarem
Tudo será ja sabido,
Aquelles que aos seis chegarem,
Terão quanto desejarem,
E um só Deos será conhecido.

CXXXIII.

Com vosco fallo estas couzas,
Como com um grande letrado,
As umas são perigosas,
E as outras duvidosas
Ainda naõ hão começado.

CXXXIV.

Antes destas couzas serem
Desta era que dizemos,
Mui grandes couzas veremos,
Quaes naõ virão os que viverão,
Nem vimos, nem ouviremos.

CXXXV.

Sahira o prisioneiro
Da nova gente que vem,
Dessa Tribu ds Rubem,
Filho do Jacob primeiro
Com tudo o mais quo tem.

CXXXVI.

O mocho está assobiando,
Dizendo e chamando bois,
E com medo de depois,
Tudo se está arreceando.

CXXXVII.

Os dous bois estão berrando,
Pelo tirar da barroca,
Que naõ entre na sua toca
O Bufo, que esta bufando.

CXXXVIII.

Acho em as Profecias
Que a terra tremerá
E como abobada soará
Quando faz harmonias.

CXXXIX.

Dizem, que nos ultimos dias,
Que aquestas couzas serão
A vinte e quatro acharão
Este dito de Isaias.

CXL.

Vejo os lobos comer
As ovelhas degoladas,
As vaccas mortas montadas
E os cordeiros gemer.

CXLI.

Naõ deve a terra tremer
Mas fundir se sem tardança,
Pois os que tem a governança
Os naõ querem defender.

CXLII.

Vejo o mundo em perigo,
Vejo gentes contra gentes;
Ja a terra naõ dá sementes,
Senaõ favacas por trigo.

CXLIII.

Ja naõ nenhum amigo,
Nenhum tem o ventre são,
Somos ja vento soão,
Que naõ tem nenhum abrigo.

CXLIV.

Vejo quarenta e um anno
Pelo correr do cometa,
Pelo ferir do planeta
Que domostraser grão damno.

CXLV.

Vejo um grande Rei humano
Alevantar sua bandeira,
Vejo como por peneira
A Grifa morrer no cano.

CXLVI.

Vejo o lobo faminto
Concertado c'os rafeiros:
Os pastores, e ovelheiros
Saõ de um consentimento.

CXLVII.

Acho cá no instrumento,
Que virá um contador
Tomar conta ao pastor
E pagará um por cento.

CXLVIII.

Revolvi o meu canhenho
Sobre este forte barão,
Naõ lhe acho nenhum senão;
Dizer delle muito tenho.

CXLIX.

Vejo um alto engenho
Em uma roda tryunfante,
Vejo subir um Infante
No alto de todo o lenho.

CL.

Vejo erguer um grão Rei
Todo bem aventurado,
E será tão prosperado,
Que defenderá a grei.

CLI.

Este guardará a Lei
De todas as heregias,
Derrubará as fantezias,
Dos que guardão, o que não sei.

CLII.

Vejo sahir um fronteiro
Do Reino detrás da serra,
Desejoso de por guerra
Esforçado cavalleiro.

CLIII.

Este será o primeiro,
Que porá o seu pendão
Na cabeça do Dragão,
Derruba lo há por inteiro.

CLIV.

Acho, que depois virá
Ás ovelhas um pastor
Mui manso, e bom guardador,
Que o fato reformará.

CLV.

Este pastor lhe dará
A comer herva mui sã,
E de suas ovelhas, e lã
Ao mesmo Deos vestirá.

CLVI.

Todos terão um amor,
Gentios como pagãos,
Os Judeos serão Christãos,
Sem jamais haver error.

CLVII.

Servirão um so Senhor
Jesu Christo, que nomeio,
Todos crerão, que ja veio
O Ungido Salvador.

CLVIII.

Tudo quanto aqui se diz,
Olhem bem as Profecias
De Daniel, e Jeremias,
Ponderem nas de raiz.

CLIX.

Acharão, que nestes dias
Serão grandes novidades,
Novas leis, e variedades,
Mil contendas, e porfias.



TROVAS NUNCA IMPRESSAS.

II. PARTE.


SEGUNDO CORPO DE TROVAS DO BANDARRA.


*     *     *     *     *

Estas Trovas naõ vem no antecedente Exemplar impresso, mas consta por
antiga memoria muito authentica serem do mesmo Bandarra: forão extrahidas
de uma copia, que o Cardial Nuno da Cunha deu ao P. Fr. Francisco de
Almeida. Provincial, que foi da Ordem dos Heremitas de Santo Agostinho,
Provisor do Priorado do Crato, da Casa dos Condes de Avintes, e tio do
Cardial D. Thomas de Almeida, primeiro Patriarcha de Lisboa.

I.

Levanteime muito cedo,
Puz me na minha tripeça,
E lá de lonje começa
Um bramido, que poem medo.

II.

Vão todos como forçados,
Passão serras, e mais montes.
Secão se rios e fontes,
Tudo por nossos pecados.

III.

Furo co'a minha sovéla
Meto seda meto fio:
Quando far a neve, e frio,
Naõ há quem possa soffrê la.

IV.

Vejo a terra dezerta,
E parades levantadas:
Vou dando quatro pancadas
Na sola, quando se aperta.

V.

Vejo a guerra na paz,
E muitos morrer no fosso:
Foje o cavallo, e o mosso
Depois que o soldado jaz.

VI.

Entre montes muito altos
Há uma casa sagrada:
Ja naõ quero ver mais nada,
E vou batendo os meus saltos.

VII.

Arranha me o gato? sape:
Olho outra vez da ladeira,
Deita se o cordão á geira,
Não acho poronde escape.

VIII.

Com o trinchete aparo a sola
Furando com bróca a vira:
Isto he que meu gosto aspira
Pois vejo o jogo da bola.

IX.

Estão muitos páos armados
Que lá de longe se vem;
A quem naõ parecer bem,
Perca o officio, e meta os gados.

X.

Com o cerol encero o linho;
Puxo com torquez o couro;
Gasta se todo o thesouro
Pera abrir novo caminho.

XI.

Quando falho aos meus fregueses
Ficão descalços com magoa:
Naõ saõ os reaes pera a agua
Que se botarão nas rezes.

XII.

Vejo posta toda a gente
Trabalhando, sem comer:
Vejo os mortos a correr,
E os vivos jazer somente.

XIII.

Trabalha todo o sandeo,
E tambem o nobre serve;
Na certã a carne ferve
Pera Mouro, e Judeo.

XIV.

O pobre morrendo á mingua;
Outros tem a arca cheia;
Chove na praça, e na areia,
Como agua de seringa.

XV.

Vou botando o meu remendo
Em quanto o Senhor se veste,
Uma terra assas agreste.
Estou entre serras vendo.

XVI.

Nove letras tem o nome
Duas saõ da mesma casta:
Olhe qualquer como o gasta
Pera naõ morrer de fome.

XVII.

Na era de dous, e tres
Depois e tres conta mais
Haverá couzas fataes,
Vistas em nenhuma vez.

XVIII.

Haverá tantos trabalhos,
Gritos, surras barregadas,
Porem ja sinto as pizadas
Lá pera a banda dos malhos.

XIX.

O povo suspira, e brama
Debaixo do seu chapeo;
Naõ se enxerga mais que o Ceo
Quando a neve se derrama.

XX.

Vejo por entre dous cabos
O couro que vou cozendo;
Ja após outros vou vendo
Muitos mareantes bravos.

XXI.

Ja na carreira primeira
Entra a bandeira Real,
Ah! Portugal! Portugal!
Ja lá vai tua canceira.

XXII.

Dará a serpe tal Brado
Do ninho que jaz, e tem
Quando vir que outrem lhe vem
Tirar da vinha o cajado.

XXIII.

Deixa os filhos mui depressa,
E outrem lhos guarda, e cria;
Vai caminhando sem guia,
Larga a corrôa da cabeça.

XXIV.

Subo me a o meu eirado,
Já naõ sinto matinada,
Fica a terra socegada
O Encuberto declarado.

XXV.

Abre se a porta do Templo,
Entra o cordeiro fiel,
Veste da casa o burel,
Dá a todos grande exemplo.



TERCEIRO CORPO DE TROVAS DO BANDARRA.


*     *     *     *     *

Forão tambem achadas estas Trovas, que se seguem na Igreja de S. Pedro da
Villa de Trancoso por occasião de se desfazer a parede da Capella mór em 6
de Agosto do anno de 1729.; erão escriptas em pergaminho em 1532 por letra
do P. Gabriel João, da dita Villa de Trancoso, e vizinho do mesmo
Bandarra. Domingos Furtado de Mendonça, Commissario do Santo Officio
lançou logo mão dellas, mas naõ faltarão pessoas graves, e de qualidade,
que as trasladarão, e deixarão a seus filhos.

*     *     *     *     *


INTRODUCÇÃO.


I.

Em vos que haveis de ser quinto
Depois de morto o segundo,
Minhas Profecias fundo
C'o estas letras, que aqui pinto.

II.

Inda o tronco está por vir,
Ja vos vejo erguido cedro:
Pouco vai de Pedro a Pedro
Se a rama o tronco medir.

III.

Fiz Trovas de ferro, e prata
Dignas de qualquer thesouro,
Hoje quanto faço he ouro
Que em vós, Senhor, se remata

IV.

Naõ conto çapatarias
Que n'outros tempos sonhei,
O que agora contarei
Saõ mais altas Profecias.

V.

A giesta naõ se trosse,
Muito amarga o sargaço:
Tudo quanto agora faço
São bocados de herva doce.

VI.

Faço Trovas muito inteiras
Versos mui bem medidos,
Que hão de vir a ser cumpridos
Lá nas eras derradeiras.

VII.

Eu componho, mas naõ ponho
As letrinhas no papel,
Que o devoto Gabriel
Vai riscando, quanto eu sonho.

*     *     *     *     *


SONHO PRIMEIRO.


VIII.

Vejo, mas naõ sei se vejo;
O certo he, que me cheira,
Que me vem honrar á Beira
Um Grande do pe do Tejo.

IX.

Formas, cabos, e sovelas
Lavradinhas com primor
Mandareis abrir, Senhor,
Muitos folgarão de vê las.

X.

Mas ai! que ja vejo vir
O Presbytero maior
Arriscar todo o primor
Que outra vez hade surgir.

*     *     *     *     *


SONHO SEGUNDO.


XI.

Augurai, gentes vindouras
Que o Rei que daqui ha de ir,
Vos ha de tornar a vir
Passadas trinta tizouras.

XII.

O Pastorzinho na serra
Grita que tenhão cuidado,
Que se vai perdendo o gado
Por mais que gritando berra.

XIII.

Desamparar o cortiço
Uma abelha mestra vejo;
As outras com muito pejo
Não tem azas pera isso.

XIV.

Irão tempos de lazeiras
Virão tempos de farturas
Os frades haverão tristuras
Por acudirem as freiras.

XV.

Este sonho que sonhei
He verdade muito certa,
Que la da Ilha encuberta
Vos hade chegar este Rei.

*     *     *     *     *


SONHO TERCEIRO.


XVI.

Sonhei, que estava sonhando,
Que passados cem Janeiros
Os Portuguezes primeiros
Se levantarão em bando.

XVII.

Ergue se a aguia Imperial
Com os seus filhos ao rabo,
E com as unhas no cabo
Faz o ninho em Portugal.

XVIII.

Põe um A pernas acima,
Tira lhe a risca do meio,
E por detraz lha arrima,
Saberás quem te nomeio.

XIX.

Tudo tenho na moleira
O passado, e o futuro,
E quem for homem maduro
Ha de me dar fe inteira.

XX.

Vejo sem abrir os olhos
Tanto ao longe como ao pérto;
Virá do mundo encuberto
Quem mate da aguia os polhos.

*     *     *     *     *


SONHO QUARTO.


XXI.

Lá pera as partes do Norte
Vejo como por peneira
Levantar uma poeira
Que nos ameaça a morte.

XXII.

Vosso grande Capitão,
Ó povo errado, e perverso,
Já caminha com o terço,
E vós dormindo no chão?

XXIII.

Na era que eu nomear
Terá fim a heregia;
Verás certa a Profecia,
Se bem souberes contar.

XXIV.

Poe[m] tres tizouras abertas,
Diante um linhol direito,
Contaras seis vezes cinco,
E mais um, vai satisfeito.

XXV.

Muito rijo bate o vento
Na parede da Igreja;
Alguem cahida a deseja,
No levantar vai o tento.

XXVI.

Mas ai! do calçado a obra
Logo requer o salario;
Porem naõ ha muita sobra
Se naõ dobra o campanario.

*     *     *     *     *


SONHO QUINTO.


XXVII.

Vejo, vejo, dizer vejo
Andar a terra ao redor;
E o borborinho com dor
Revolve um, e outro sexo.

XXVIII.

Rugia a porca do sino,
O sino naõ badalava,
A grimpa se revirava,
E o sino andáva a pino.

XXIX.

Meto a sovela nas viras,
E vejo pelo buraco
Os ossos de Pedro Jaco
No penedo das mentiras.

XXX.

Que bellamente que soão
As Profecias direitas!
Depois que forem perfeitas
Verão que a terra povoão.

XXXI.

Doutos, e sandeos conhecem
Pelo volver das estrellas
Puras verdades mui bellas,
Que inda os Judeos naõ merecem.

*     *     *     *     *


SONHO SEXTO.


XXXII.

Quando o sonho he verdadeiro
Dá se uma lei muito clara:
Sonho agora, que uma vara
Vai dando luz a um outeiro.

XXXIII.

O outeiro he Portugal,
E a vara Castelhana;
Da minha pobre choupana.
Vejo esta vara Real.

XXXIV.

Dará fruto em tudo santo,
Ninguem ousará a negalo,
O choro será regalo
E será gostoso o pranto.

XXXV.

Bem cuido, que ja vem perto
O fim destas Profecias;
Passarão tresentos dias
Depois de eu ser descuberto.

XXXVI.

Em dous sitios me achareis
Por desdita, ou por ventura,
Os ossos na sepultura,
E a alma nestes papeis.

XXXVII.

Naõ ha pedra sobre pedra,
Quando eu aqui for achado,
E as letrinhas do Letrado
Ha tresentos annos queda.

FIM.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Trovas do Bandarra - natural da Villa de Trancoso, apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal" ***

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