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Title: Contos d'Aldeia
Author: Braga, Alberto, 1851-1911
Language: Portuguese
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ALBERTO BRAGA


CONTOS D'ALDEIA


2.^a EDIÇÃO


COMPANHIA PORTUGUEZA EDITORA

PORTO--1916



ALBERTO BRAGA


CONTOS D'ALDEIA


PORTO
COMPANHIA PORTUGUESA EDITORA
1916



A MINHAS IRMÃS



A GUERRA


Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha do Euzebio
moleiro, e da margem opposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio
Anselmo.

Eram dous velhotes viuvos, de bons sessenta annos, e amigos desde
creanças. Para contradicção do anexim popular, estes dois moleiros
queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo officio.

Parece que o rio, n'aquelle sitio, era até mais pittoresco! Por detraz
das azenhas descia a enfesta de uma cerrada deveza de carvalhos e
sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os
machos carregados com os taleigos da fornada. Mesmo á ourela havia
alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As aguas
cahidas nos açudes, vinham costeando uma gandara, escondiam-se em meio
de um canavial, e surgiam depois mais limpidas até ás rodas do moinho,
que as marulhavam e batiam constantemente.

No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se a
miudo, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas
do outomno principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a
falar d'um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois
dizia o Euzebio:

--Anselmo, fala mais alto, que te não oiço.

--O que é?--perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.

O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:

--Não te intendo.

Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas
do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos annos que
os tinha quasi surdos de todo. Pobres velhos!

O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois annos, como
um castello! Ainda o dia vinha longe, já elle estava a trabalhar, que
era um regalo a gente vel-o.

--Lida como um moiro!--diziam os conhecidos.

E se havia esfolhada, ou espadellada, quem lá não faltava era elle.

O pae, que, n'outros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, á bôcca da
noite:

--Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os
freguezes.

--Estava arranjado!--respondia o moço a rir.--Vocemecê já deu o que
tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!

Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha
mais freguezes a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a
brincadeira.

E o velhote do pae, quando alguem lhe contava as diabruras do filho,
parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.

O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ella Margarida, e era formosa,
d'aquella formusura campesinha, sem artificio, jovial e expansiva. Em
dotes do coração--que é a principal belleza!--nem as mais virtuosas a
excediam.

Desde pequenina foi Margarida creada com Simão. Se não ficasse mal
estabelecer agora parallelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que
os dois se queriam e estimavam como _Paulo_ e _Virginia_.

Quando os quinze annos de Margarida, que era mais nova dois do que
Simão, vieram pôr termo aos brinquedos d'infancia, então principiou elle
a olhal-a com aquelle respeito com que se olha para uma irmã mais velha.

Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes
acrysolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no
generoso coração do rapaz.

Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor,
fingia-se contrariada, carregava o sobr'olho e mudava de conversa.
D'estas esquivanças repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do
moleiro.

--Margarida--dizia-lhe elle d'uma vez--se não quizeres casar comigo, hei
de morrer solteiro.

--Não te faltam mulheres, Simão.

--E se te vejo ser d'outro--protestava o rapaz com as lagrimas nos
olhos--não sei que faça, que me não mate.

E Margarida era tão cruel, que assim despresasse o seu amigo e
companheiro d'infancia?!

Nós veremos já até onde vae a dedicação de uma mulher.

       *       *       *       *       *

Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e
de D. Miguel.

Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao
contemplar os filhos afadigados na lavoura.

--De mortos nem a conta se sabe!--diziam os mensageiros. Vae por ahi _a_
fim do mundo!

--Jesus, Senhor! E então diz que é guerra d'irmão contra irmão!
Valha-nos Deus!

De uma vez, oito soldados e um furriel pararam á porta da azenha do
Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados
afflictivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com
os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram
o filho, ainda tentou abraçal-o; mas--coitadinho!--como já lhe custava a
andar, quando chegou á porta, ia o rapaz a subir a encosta.

Aos gritos da visinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha.
Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram
que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um
grito agonisante e cahiu desfallecida nos braços do pae.

As aguas tinham engrossado com as ultimas chuvas, e os dois velhos,
quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas creancinhas!

Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobresaltada com o
tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma
batalha a pequena distancia.

Quando a tropa alli passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia
outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a
espingarda ao hombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente
das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a
Deus por elle.

Sahiu do povoado sem ter visto o pae nem Margarida. Levava o coração
retalhado!

Assim que a filha do Anselmo o soube, quiz logo ir ter aonde podesse
falar-lhe.

--Isso, Deus te livre!--disse-lhe do lado uma visinha.--Se lá vaes, lá
ficas! E, de mais a mais, teres de falar com soldados! credo!

--Lá isso--atalhou a moça--tambem o Simão é soldado, tia Joaquina!

Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulancias dos mortos e
feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces
empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros
com as pernas partidas, quasi todos moribundos!

Nunca se tinha visto uma cousa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se
os clamores da gente que se agglomerava para os vêr. Destacavam-se
algumas phrases das ambulancias:

--Ai! minha pobre mãe!

--Ai! meus ricos filhos!

E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.

Alguem d'entre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulancia:

--Meu... pae! Marga... rida! Eu morro!

E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça
sobre o peito, e descahir um braço fóra do carro.

Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavallos
insoffridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava
afflicta. O retinir das molas da carreta, rodando nas lagens irregulares
de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se
mais de um carro, pegou no braço que bambaleava, estendido fóra da
ambulancia, á mercê dos solavancos, reparou attentamente n'um annel que
o morto levava, e principiou a gritar:

--O Simão! Morreu! morreu!

E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.

Quando um visinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a noticia da
morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a resar,
com os olhos postos n'um crucifixo, e um rosarío entre os dedos.

--Rese-lhe por alma!--disse o visinho a chorar.

O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou
espantado:

--O que é?--e applicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido
correspondente.

--Morreu!--gritou-lhe o outro.

O Euzebio empallideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no
visinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da
cama, e tirou detraz uma espingarda.

--Isso para que é, tio Euzebio?--perguntou-lhe o outro ao ouvido.

--Vou matal-os!--respondeu o moleiro com uma voz convulsa.--Vou
matal-os!

Mas quando ia, com a espingarda ao hombro, a transpôr a soleira da
porta, cambaleou, e cahiu fulminado para a outra banda...

Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou afflicto a casa,
a esbofar, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher
levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!...

       *       *       *       *       *

Ainda conheci, ha muitos annos, o pae de Margarida.

Era por uma formosa manhã de abril.

O velho estava fóra da azenha, sentado n'uma cadeira de entrevado, com
os pés estendidos a uma restea de sol. Em volta d'elle, chilreavam os
passarinhos na ramaria frondente do arvoredo.

Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e,
depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça
para o rio, e perguntava baixo, de si para si:

--E a Margarida?!...

E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as aguas do
rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!



A VOLTA DAS ANDORINHAS


Ficava no beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha
vinha remedear os estragos da invernia (e então, no Minho, quando o
vento sopra do Gerez, oh! Pae do céo! por mais bem construida que seja
uma casa, as telhas vão todas pelo ar, como se fosse um pobre telhado de
levadia!) eu tinha sempre o cuidado de lhe recommendar:

--Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o ficar.

Imagine-se quanto custaria aquillo a um trolha, a um trolha que guarda
sempre contra um passarinho o mesmo odio que um velho lobo de mar
conserva implacavel contra um rato! Ter de remendar um telhado
inteiro--façam ideia!--sem destruir um ninho fôfo, pendurado n'um
beiral!

Como eu habitava só, aquelle ninho, ali, era quasi como um outro andar
da casa, onde vinha passar o verão uma familia minha conhecida. E eu
tinha tanto zelo e canceira em conserval-o no mesmo sitio, muito
arranjado e prompto, como se fosse o caseiro d'aquelles alegres
inquilinos!

As pessoas da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem
d'ellas; mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande affecto
pelas andorinhas, pelos melros, pelas toutinegras, pelos pintasilgos,
pelos rouxinoes, emfim, por toda a passarada.

Os pardaes, esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E
a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que elles espreitam
cubiçosos as searas, d'entre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem
logo:

--Esperae, que já vos arranjo.

E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma
vestia e põem-lhe por cima, d'um modo arrogante, um pouco para o lado,
como se aquillo fosse um grande janota--um enorme chapeo alto! Oh! fica
admiravel!

Poucos pardaes, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão.

E a gente, vendo-os, á tardinha, todos a chilrear na copa frondente do
arvoredo, até parece que os ouve dizer:

--Ainda lá está o espantalho?

--E estará, compadre, e estará!

--Se ainda se conservar até ámanhã--accode o mais atrevido--diabos me
levem, se lhe não prego uma peça!

--Sempre queriamos vêr isso!--desafiam os outros.

--Pois então...

No dia seguinte, quando o sol radiante innundava todo o trigal, ás onze
horas da manhã, estava tudo a postos, tudo silencioso, para vêr a
partida.

O arrojado observou attentamente pelos atalhos--que não fosse vir a
rapaziada da escola--e voou rapido d'entre um sobreiro, como se o
tivesse desferido o arco d'uma setta. Foi poisar direito na copa do
chapéo alto do espantalho, e voltou-se depois para os amigos, a chilrear
com uma grande troça.

Por toda a deveza estalou então uma gargalhada frenetica dos outros, que
observavam, cheios de alegria, a immobilidade do janota!

D'ahi por meia hora--é sabido!--estava a sementeira desvastada!

Uma bella manhã, em meado de março, quando abri a janella do meu quarto,
ouvi pipilar em cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá
vi a andorinha, que tinha chegado na vespera, á bocca da noite, emquanto
eu andava por fóra.

--Bem!--disse eu comigo--já sei que tenho d'ir fazer uma visita.

Ao cabo de meia hora, peguei no meu bordão, e puz-me a caminho pelo meio
de uma bouça, que ia dar á estrada.

Eu ia visitar a sr.^a viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga,
que chegava sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as
amendoeiras.

Ao atravessar o pateo lageado, que precedia o velho sollar da fidalga,
estavam ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul,
atarefados na limpeza da carruagem e dos cavallos. As janellas da casa
estavam todas abertas. Sentia-se que havia lá dentro uma creatura
delicada, sequiosa dos perfumes balsamicos dos pinheiraes, do ar puro,
da luz, como aquellas plantas aquaticas, as _nympheas_, que sobem do
fundo escuro dos lagos á tôna d'agua para receber os raios quentes do
sol do meio dia!

Apenas entrei no pateo, deparou-se-me a sr.^a viscondessa; e era mesmo
uma pintura vel-a, como eu a vi então, com a cabeça lançada para traz,
os braços muito erguidos, os seios afflantes, a aprumar-se, a subir,
fincada no bico dos pés, para lançar o painço na gaiolla doirada d'um
canario, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janella!

Era lindo! lindo!

Quem primeiro apparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abbade. E,
então, conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair
da residencia todo aceiado, de chapéo alto, cabeção de renda, a sua
antiga sobrecasaca muito comprida a bater-lhe no canno das botas, e
apanhado na mão direita, d'um modo solemne, o enorme lenço de sêda da
India com ramalhoças amarellas.

Feitos os cumprimentos do estylo, o sr. abbade sacava da algibeira a sua
caixa de tartaruga, e offerecia-a respeitosamente á viscondessa, como
signal da maxima etiqueta.

E depois, ia falando e cheirando alternadamente.

--Pois minha senhora...

E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte, continuando:

--Este anno, o inverno, minha senhora, correu mal! E Jesus! muito mal!

Depois, ao outro dia, vinha a sr.^a morgada do areial flanqueada das
suas duas filhas. Aquillo é que era luxo! chapéos de plumas, vestidos de
nobreza com tres folhos, mantelletes de _moir antique_, e então o bonito
era a profusão de pulseiras, de broches, de brincos, tudo oiro antigo,
oiro de lei, massiço, mas muito feio!

As meninas não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma
junto da outra, acotovelavam-se ás vezes, e segredavam:

--Vê, mana?...

--O que é?--perguntava a mais velha por entre dentes.

--Agora já se não usa cuia! Ora repare.

A morgada falava do amanho das terras, do pezo da derrama, e ás vezes
para variar, dizia:

--Ora não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de gostar. É uma festa como
poucas! Faça ideia, viscondessa: ha arraial tres días, ha fogo preso,
missa cantada, sermão...

E arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:

--Sermão! mas que sermão!...

Quando chegava a vez da minha visita, já a sr.^a viscondessa sabia todas
as grandes novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!

--Então já sabe--principiava eu--o commendador Antunes este anno
despica-se!

--Ah! já me disseram--atalhava logo a viscondessa--é elle o juiz da
festa.

--É isso, minha senhora, é isso...

Vêem? Sabia sempre tudo aquillo que eu tinha para lhe dizer!

Ora succedeu, que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a
viscondessa sentada n'uma _voltaire_, com a cabeça reclinada no
espaldar, as pernas estendidas e os seus pés graciosos poisados no
rebordo de um brazeiro.

--V. ex.^a contradiz as tradições da primavera!--principiei eu,
sentando-me ao seu lado.

--Não contradigo, meu caro--respondeu ella, removendo com a pá o
rescaldo esmorecido--a primavera é que está agora conspirando contra os
poetas, que lhe attribuem doçuras que não tem! Se o kalendario me não
desmentisse, estava em jurar que o janeiro d'este anno augmentou, pelo
menos, mais sessenta dias!

--Mas não está tanto frio, que se não prescinda do fogão!

--Não está calor que o dispense.

--Pois não é das melhores coisas para a saude!

--Ora que ideia!--oppoz ella, a rir--Não me consta que o fogão tenha
sido o assassino de ninguem, tirante nos velhos dramas, em que a heroina
ludibriada pelo amante, procurava no acido carbonico a solução do
problema.

Supponham como eu fiquei radiante de jubilo! Até que se me deparava
ensejo de contar á sr.^a viscondessa uma historia que ella desconhecia!

--Pois, minha senhora,--principiei eu com desvanecida firmeza--Filippe
III, de Hespanha, foi victima do calôr d'um fogão! E, se v. ex.^a me
permitte, eu vou referir-lhe como o caso se passou.

Approximei a minha cadeira do brazeiro, expuz os meus pés ao calor do
rescaldo, para contradizer com a postura o que affirmava com a palavra,
e prosegui:

Estava el-rei, assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito
frio, diante de Sua Magestade tinham collocado um _brazero_ enorme.
Passado pouco tempo, principiou el-rei a transpirar, a transpirar cada
vez mais e as faces a tornarem-se-lhe? muito vermelhas. O conde de
Pobar, que viu no rosto de Sua Magestade a afflicção que elle sentia,
dirigiu-se ao duque d'Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo que mandasse
retirar o _brazero_.

--É contra a etiqueta--respondeu serenamente o duque d'Alba.--Isso
compete ao duque d'Uzeda.

--Filippe III voltava para o lado os olhos supplicantes; mas não se
atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um ponta-pé ao
_brazero_ e aos cortezãos que o cercavam.

Mandou-se chamar á pressa o duque d'Uzeda; mas, por fatalidade, o duque
d'Uzeda n'esse dia não estava no palacio!

--E depois?--perguntou afflicta a sr.^a viscondessa, afastando-se do
brazeiro.

--Depois--continuei eu pausadamente estirando mais as pernas--quando o
duque d'Uzeda chegou ao palacio...

--Hein?--perguntou de subito a fidalga, pondo-se de pé.

--El-rei estava morto!--conclui eu com voz sinistra.

Apenas proferi esta phrase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala
o criado com a bandeja do chá.

A sr.^a viscondessa ordenou logo:

--André, amanhã não accenda o brazeiro.

E eu, offerecendo-lhe uma chavena, disse-lhe então baixinho:

--Já vê que se devem apagar os fogões, quando voltam as andorinhas!



A SÉSTA DO AVÔ


Ha quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego á janella, o meu
visinho a passeiar em frente da casa, amparado ao braço da nétinha.

O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os
olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas tremulas, e a
dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como
os amôres, tem doze annos, os cabellos loiros, como fios de ouro, e os
olhos muito azues, como duas saphiras.

Elle chama-se Macario; mas eu, quando lhe falo, dou á minha voz um tom
marcial e digo-lhe alto ao ouvido:

--Como vae o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?

E então, na visinhança é mais conhecido pelo capitão _Feroz_, que foi a
alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como
poucos!

Quando os francezes vieram a Portugal...--Ai!--disse-me elle um dia,
referindo-me as façanhas da guerra--quem me cassara n'aquelle tempo! Eu
tinha então desoito annos, umas pernas rijas, o ôlho fino!... Olhe, só
d'uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa
Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de que eu gostava muito e
com a qual depois casei. Um official francez, passando-lhe debaixo da
grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o ôlho direito. Ora eu, que
estava ao longe a observar tudo, disse commigo: espera, que já
t'arranjo. E metti a espingarda á cara, fiz pontaria para o ôlho direito
do francez, e...

--E?

--E, truz! metti-lhe a bala no ôlho esquerdo! Errei d'essa vez!

E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe illuminava, quando
contava d'estas coisas.

Depois proseguiu:

--A final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na
guerra, a primeira vez que falei á minha santa, que Deus tenha, dei em
tremer como varas verdes! Mas aquillo sim! Era formosa d'uma vez! O
senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma
formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior
da alma.

Havia um anno que era viuva d'um industrial trabalhador, honesto e
intelligente. Ficára a viver na companhia do pae e com dois filhos:--a
Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais d'um anno e uma
cabecinha loira de cherubim.

Que santa vida a d'aquella familia obscura!

A viuva repartia pelos tres todo o generoso affecto do seu coração; e,
até, como o pae era tão velhinho, quasi que já carecia dos cuidados
d'uma creança. Que os bons velhos, coitadinhos! são faceis de contentar!
Basta-lhes uma restea de sol, uns carinhos de filha e umas historias da
neta!

Quando perguntei ao Macario, porque passeiava depois do jantar,
respondeu-me:

--O somno é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho
sonhos maus.

E, beijando a cabeça de Izaura, accrescentou:

--Quero antes passeiar com a minha neta, que me conta historias muito
lindas.

E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando
vagarosamente os pés nas lagens do passeio.

       *       *       *       *       *

Depois do jantar, o velho arrastava-se até á poltrona, que tinha ao
canto da janella; e, bem refastellado, com os pés estendidos, as mãos
cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia
patriarchalmente a boa sonata da sésta.

De uma vez, era em julho, e, ás duas horas da tarde, fazia um calor
insupportavel. Até parece que a natureza tambem dormia a sésta! Lá fóra,
no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfallecidas. Ouvia-se o
murmurio monotono da bica d'agua a cahir, como uma lagrima, sobre uma
pia de pedra, debaixo d'uma latada. As portas das janellas estavam
entre-abertas para deixar entrar na sala uma fita de sol, que se
estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada n'uma cadeirinha de
pau, pospontava uma camisa de creança, mas tão pequenina, que parecia
uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da
agulha, atravessando a gomma do morim novo e em folha. O Abel!... Era um
regalo vel-o sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra,
um ventre redondinho de abbade feliz, e os pésinhos côr de rosa!

Aos pés do avô, na restea do sol, tremia a sombra d'umas folhas do
platano do jardim. A creança engatinhou para lá. Como uma pequenina
féra, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente
sobre a sombra tremula das folhas; mas--que ludibrio!--ficou triste,
espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão
vasia!

Ao lado estavam os grandes pés do avô, mettidos nos dois grandes
chinellos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas
pareciam dois enormes castellos roqueiros.

No espirito bellicoso da creança surgiu a ideia terrivel de os assaltar.
Fincou as mãositas nos chinellos do avô, levantou-se valentemente nos
pés, e upa! upa! arriba!

N'essa occasião o velho sonhava:

Tinha remoçado cincoenta annos! Os francezes invadiam Portugal! Quando
elle estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma
batalha, viu entrar inesperadamente o exercito de Bonaparte. As paredes
de lôna da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada ás hostes
immensas do inimigo. Os esquadrões insoffridos da cavallaria corriam
sobre elle. Em volta da tenda levantou-se rapidamente--como nas magicas
do theatro!--uma bateria, com as boccas dos canhões apontadas para o
leito. Os piquetes de infanteria corriam a marche-marche, de bayonetas
caladas, para o surprehenderem no somno. Ao fundo, no viso de um
outeiro, Bonaparte, o terrivel Bonaparte, com as suas botas de escudeiro
e o seu chapeu de bicos posto de travez, como o chapeu de um estudante
de Salamanca, assestava sobre elle o oculo de alcance, sorrindo
alegremente da victoria!

O capitão Macario via tudo aquillo, ouvia o estrepito dos cavallos, o
tropido da infanteria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao
leito, impotente, inerme, anciado, sem poder gritar!... Façam ideia!

De repente, todo aquelle exercito enorme se transformou n'um gigante,
que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas,
depois de muito custo, soltar este brado afflictivo, com uma voz
convulsa:

--Ás armas!

E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!

O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de
si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu
com o nétinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao collo!

A creancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito
alegre, porque julgou que tinha sido para ella, como brincadeira,
aquelle grito suffocado--_Ás armas_!



O GALLO PRETO

(A JOÃO DE DEUS)


Havia d'antes em Penajoia--terra que ninguem é capaz de ver no mappa
geographico de Portugal--uma aula regia de primeiras letras.

A aula era n'uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no meio de
uma clareíra, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do
sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do
nordeste.

Os alumnos entravam ás oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para
jantar; e voltavam depois ás duas horas, para sairem ás cinco da tarde.
Alguns d'elles vinham de longe, meia legua, tres quartos de legua de
distancia. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã de
suas casas, com o livro debaixo do braço, e a louza das contas pendente
de um cordão, lançado a tiracollo. No caminho, os que vinham de mais
longe, iam-se reunindo aos condiscipulos que encontravam; jogavam o
botão, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros para cruelmente
roubarem os ninhos dos melros e verdelhões.

O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote
rabujo, de pellos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alumnos,
que ensinava.

Um dia perguntei-lhe eu:

--Diga-me cá, sr. Joaquim, que methodo adopta?

--Que methodo?!--exclamou elle, estranhando a pergunta. E depois,
levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os oculos, fitou-me
desconfiado, e respondeu com ar solemne:

--Adopto o methodo do Achiles (do _Axiles_, foi como elle dísse).

Mas, a despeito de tudo isto, era um tyranno, como o são quasi todos os
ignorantes.

A aula, como já disse, ficava ao rez do chão. A luz entrava por duas
frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem; porque
assim era preciso--explicava o mestre--para que os rapazitos se não
distrahissem, a olhar para fóra. Ao fundo da sala ficava uma meza de
pinho e uma cadeira, que era o logar do mestre. Depois seguiam-se
bancadas de pau, collocadas como uma platéa, duas a duas, deixando ao
meio um intervallo, por onde entravam os alumnos; e, quando todos tinham
entrado, por onde passeiava gravemente o professor, com o livro n'uma
das mãos, e na outra um junco.

Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, impallideciam.

E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a
repetirem a lição, trémulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem
de subir a uma forca!

O Gabriel era ainda um pequenote de sete annos. Morava ao pé do abbade.
E o abbade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava
a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto--ui! diziam os
conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho!--era o Gabriel que quasi
sempre ensinava a lição aos outros.

--Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me?--pedia-lhe de uma vez o
João do moleiro.

--Soletra lá.

E principiou o outro:

--_P-h-i_, _pi_.

--Qual _pi_! Tambem eu cuidava! _P-h-i_, _fi_--emendou o Gabriel.

--_Fi_!--exclamou o João,--_Fi_! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.

--Não engano, João; lê _fi_­, que foi como me ensinou o sr. abbade.

N'isto, chegou á porta da aula o mestre.

Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque
tinha dormido a sésta.

Chegou á porta e gritou:

--Canzuada, salta para dentro!

E lá entram todos de chapeusinho na mão, cheios de medo, como um rebanho
de ovelhas a entrar para um matadouro.

Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatoria, e
depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silencio lugubre na sala.

--Lê tu, João--principiou elle.

O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da
terrivel palavra, ia-lhe faltando o animo.

Dizer que _P-h-i_ diz _fi_, que temeridade! Emfim continuou
írremediavelmente:

--_E como a sciencia chama_... _chama_...

E ergueu supplicante os olhos para o verdugo.

O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:

--Lê para bai-xo, me-ni-no--accentuando as syllabas com um sorriso
ameaçador.

--_Chamada_--continuou o pequeno indeciso--_chamada_... e terminou em
tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que
diz--_Philosophia_.

--Como?--bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas
orelhas.--Como?

O pequeno fechou os olhos, encolheu os hombros, e emendou a chorar:

--_Pi-lo-so-pi-a_.

O professor descarregou segunda juncada, e berrou:

--_Pilosópia_, burro, _pilosópia_!

--_Pilosópia_,--repetiu o pequeno.

Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu
logar e declarou com a voz serena e com as lagrimas a saltarem-lhe dos
olhos:

--Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.

Oh! que escandalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os
discipulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam!
Podéra! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a
bolaria, não ha duvida.

--O que é lá?--gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa.--O que é?

E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão da
orelha direita.

--Fui eu que ensinei assim--repetiu o Gabriel assustado.

--Vem cá--chamou de afogadilho o mestre--já aqui, seu atrevido. E bateu
com a palmatoria na mesa. O Gabriel poisou o livro no logar e
aproximou-se.

--Aqui já.

O mestre descarregou-lhe nas mãosinhas tenras meia duzia de furiosas
palmatoadas.

Foi muito bem feito! Apre! Offender a sabedoria do seu mestre!

       *       *       *       *       *

De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o abbade pela aula do
mestre regio. Fóra ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o
mundo ia acabar.

Á porta da aula estavam tres pobres mulheres, cada uma com um filhinho
ao collo.

--Ahi vem o sr. abbade--disse uma d'ellas.--Vamos pedir-lhe, mulheres.
Aquillo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.

Abeiraram-se do abbade, e imploraram-lhe que fosse elle pedir ao mestre
que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.

--Então o que aconteceu?--perguntou o reitor.

--Quem sabe lá, sr. abbade! Elles berregam, que parece que os matam!

--Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tam fraquinho!

--E o meu João, sr. abbade, que tam doentinho tem andado.

--E o meu José! aquelle que foi este anno á primeira confissão, sr.
abbade; sabe?

O abbade dirigiu-se á porta e bateu.

--Quem é?--perguntou de dentro a voz aspera do mestre.

--Abra, mestre Joaquim, faz favor?

O abbade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providencia.

--Então o que lhe fizeram estes mariolas, sr. Joaquim?--perguntou o
abbade, olhando em roda para os alumnos.

--O que me fizeram? Roubaram-me dois lapis!

--Oh! que grande peccado!--exclamou o abbade, arregalando os olhos.

--E é que nenhum confessa--explicou o mestre. E bradou, voltado para os
pequenos--nenhum confessa, mas eu _ra a i xo-os_, aqui, todos.

O abbade poz-lhe a mão no hombro e serenou-o, dizendo-lhe:

--Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.
Espere ahi que volto já.

Saíu o abbade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de uma
rapariga.

Aproximou-se da mesa e disse:

--Põe tudo aqui em cima, Josephinha. Assim. Agora vai-te embora.

A pequena poisou uma panella de folha, e tirou debaixo do avental um
gallo preto. O abbade metteu o gallo dentro da panella, cobriu-a com o
testo, e principiou assim:

--Fez-se um grande peccado! Roubaram um lapis! Quem rouba um lapis, é
muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós commetteu o crime; e
não o confessa por vergonha. Ora, por causa d'aquelle que roubou os
lapis, vão padecer todos os mais. Ahi teem! Em vez de só fazer um
peccado, que Nosso Senhor lhe perdoava, se o confessasse e se
arrependesse, vae commetter muitos: faltar á verdade, que é tão feio, e
depois deixar que os outros soffram injustamente.

Os pequeninos ouviam o abbade com religiosa veneração.

O abbade proseguiu:

--Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta panella. O
gallo preto ha de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa do
que roubou o lapis. E fica assim conhecido o ladrão; o sr. mestre
Joaquim ha de castigal-o, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer,
se confessar está perdoado.

Na aula, silencio profundo.

--Nenhum se accusa?--disse o abbade.--Venha o numero 1.

Foi o numero 1 e poisou a mão sobre o testo. O gallo não cantou.

Foi o numero 2, foi o numero 3 e chegou até ao numero 4.

Antes de chegar a vez ao numero 5, todos os olhares convergiram para um
canto da aula, d'onde partiam uns soluços afflictivos.

--Quem chora ahi?--perguntou o abbade.

Ergueu-se o Eusebio da _Entrevada_.

Era um pequenino de oito annos, muito pobresinho, com um palmito de cara
que estava mesmo a pedir pão.

Era um cinco reis de gente, o Eusebio.

--É o da _Emprégada_--explicou o do Moleiro.

--Anda cá, menino--chamou o abbade--anda cá. Tu porque choras?

O pequeno aproximou-se para justificar as suas lagrimas, mostrou ao
reitor os dois lapis roubados.

--Ah! foste tu, Eusebio?!

E Jesus! O pequeno chorava que era um dó do coração! E nem podia
responder; apenas acenava.

--Então foste tu. E, olha, para que os tiraste?

--É que o sr. mestre--balbuciou o criminoso--disse-me que trouxesse eu
um lapis, e eu não quiz pedir o dinheiro á minha mãe, que está
_emprégadinha_ na cama, e nem tem dinheiro para o caldo. E depois com
medo de que o sr. mestre me batesse...

--Pegaste n'um lapis. Foi assim?--concluiu o parocho.

--Foi, sim, senhor.

--Mas tu tiraste dois!

O pequeno desatou a chorar.

--Para que tiraste dois?--insistia o padre.

--Era--explicou o Eusebio--para quando se acabasse um!...

O mestre estava já de palmatoria prompta.

O Eusebio estendeu resignado a mãosinha trémula.

--Basta--terminou o abbade.--Eu prometti que se perdoava a quem
confessasse. Para outra vez, querendo alguma coisa, vae-me pedir,
ouviste? Que eu não tenho tempo de saber o que vos falta. Ora vae para o
teu logar, e promette que não tornas a fazer outra.

O mestre Joaquim _sentiu muito_ não applicar o correctivo.

--Deixe lá, sr. Joaquim--dizia-lhe o abbade.--É preciso muita
misericordia para tratar as creanças. Lembre-se do que dizia Jesus:
_Sinite parvulos venire ad me_.

O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quiz occultar a
ignorancia, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:

--_Et cum spiritu tuo_!



ESTÁ NO CÉO!


Um sargento de atiradores, que, desde a madrugada, tinha percorrido oito
leguas, a pé, sem descançar, entrou n'uma taberna que ficava á beira da
estrada, e perguntou se era por ali que morava Maria La Courdaye.

O taberneiro descobriu-se respeitosamente deante do soldado, e, saindo á
porta, estendeu o braço, e indicou-lhe:

--É ali, do lado direito. Abra uma cancella e entre.

--Obrigado! Boa noite--agradeceu o militar. E dirigiu-se apressadamente
para lá.

       *       *       *       *       *

No muro da estrada havia uma cancella de pau; e aberta a cancella,
atravessando-se por um caminho assombreado de algumas arvores
frondentes, via-se ao fundo a modesta casinha branca, escondida entre a
verde ramaria de uns carvalhos.

Tinha ao lado uma leirita plantada de horta; e, á sombra de um choupo,
mais no fundo, uma pia de pedra, onde murmurava uma veia de agua muito
crystalina. Do esgalho de uma arvore prendia-se ao tronco de outra uma
corda, estendidas na qual alvejavam, expostas á luz perpendicular do sol
do meio-dia, umas roupinhas brancas de creança. No cunhal da casa havia
uma parreira, que subia encostada á parede, com as suas largas folhas de
um verde accentuado d'entre as quaes pendiam os cachos escuros com os
bagos cobertos de pó luzente e subtil das estradas. Da chaminé
desenrolava-se serenamente uma espiral branca de fumo, que se expandia
pelo ar. A casinha branca, de um só andar, apparecia encastoada no fundo
escuro de uma collina. E no cabeço do outeiro, a espessura immovel e
macia de um pinheiral fechava o horisonte, como um largo reposteiro de
velludo verde.

N'essa casa vivia uma formosa mulher na companhia de dois filhos.

Coitadita da pobre! Ficava viuva aos vinte e cinco annos e com dois
filhinhos que eram o seu encanto. O mais velho tinha sete annos e
chamava-se Miguel, que era o nome do pae; o mais pequenino contava
apenas onze mezes, e tinha nascido pouco depois que o pae partiu para a
terrivel guerra da Criméa.

De uma vez, depois de cearem, a mãe, para que o Miguel não fizesse bulha
e acordasse o _menino_, chamou-o para ao pé de si, abriu a carta
geographica, e disse-lhe:

--Olha, meu filho, onde está o teu querido papá?

O pequenino abriu muito os olhos, e respondeu a sorrir:

--Na guerra! Pum! Pum!

--Anda vêr onde elle está.

E, pegando-lhe na mãosinha, fechou-lhe os trez dedos mais pequenos,
estendeu-lhe o indicador, e foi-lh'o levando por todas as terras por
onde o pae tinha seguido. O dedo da creança ia subindo montanhas,
descendo aos valles, atravessando as planicies, costeando pelo litoral e
cortando o mar. O pequeno balbuciava todos os nomes que a mãe proferia.
Quando chegou á Criméa parou. Ergueu a sua cabecinha loura, e levantou
os olhos para a luz do candieiro, a vêr se elle lhe fazia a mercê de o
alumiar bem. Depois levou a mão ao _abat-jour_ e tirou-o para o lado.

--Deixa o candieiro, meu filho.

--Ora, ora--exclamou o Miguel, fazendo biquinho.

--Deixa, meu filho--pedia a mãe.

--Eu quero vêr o papá.

E debruçou-se outra vez sobre a carta, a procurar com o olhar
investigador um ponto qualquer.

A mãe, n'esse instante, com o mais novinho adormecido nos braços, olhou
para o crucifixo, que tinha pendurado á cabeceira, e principiou a rezar
baixinho, com duas grossas lagrimas a tremerem-lhe á flôr das palpebras.

--Está aqui o papá?--perguntou o Miguel.

--Está, meu filho, está.

--Na guerra?

--Sim, meu rico amor, na guerra.

O Miguel ficou pasmado a olhar para a Criméa, e exclamou:

--Eu quero ir á guerra dar um beijo ao papá.

--Oh! meu filho!

--O que é a guerra, mamã?

--Não sei, Miguel. O teu papá, quando vier ha de contar-nos, sim?

No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o _menino_ já dormia no
regaço da mãe, o Miguel pediu:

--Eu quero ver outra vez o papá.

E foi procurando, pouco a pouco, pelo mappa. Assim que apontou a Criméa,
exclamou radiante:

--Ah! aqui está elle!

E depois, no outro dia, logo á bocca da noite, bateram apressadamente á
porta. Quem seria, Jesus! A mãe do Miguel até tremeu. Pegou na
creancinha e foi vêr quem era. O Miguel--aquillo era já um homem ás
direitas!--ía ao lado da mãe, segurando-se-lhe a uma das prégas do
vestido.

--Ha-de ser o papá--disse elle.

Abriu-se a porta, e no fundo estrellado da noite, sobresaiu a elevada
corpolencia de um soldado. A claridade do luar batia-lhe em cheio no
rosto avincado da fadiga e queimado do sol, com grandes bigodes
espessos. Os botões da fardeta reluziam.

--É aqui que móra a sr.^a Maria La Courdaye?--perguntou elle, enxugando
ao canhão o suor copioso que lhe escorria na testa.

--Sou eu--respondeu a mãe de Miguel.

--É a mulher do Miguel La Courdaye?

--É o papá--disse do lado o pequenito, fitando o soldado com os seus
grandes olhos azues.

--Pois, senhora...

O soldado olhou em redor, peturbado, afflicto, e continuou:

--Pois o Miguel, o 26 dos atiradores, o meu querido e bravo camarada...

--Hein?--balbuciou a pobre mulher.

O sargento apontou com o indicador para o céo, e, approximando-se da
porta, terminou:

--Morreu!

E deitou a correr pela estrada fóra, porque não tinha coragem de
assistir áquelle lance angustioso. Não tinha animo, elle, que no calor
da refrega, affrontára os maiores perigos!

Depois da ceia, o Miguel quiz ainda ver o seu papá. Abriu o mappa, e
quando chegou á Criméa, disse:

--Eh! aqui está elle!

--Já não está, meu filho--respondeu-lhe a mãe a chorar.

O pequenito olhou para ella, e perguntou:

--Então?

--Está no céo!

--Está no... céo? Então vou procurar o céo.

E ficou, por muito tempo, debruçado sobre o mappa, a procurar onde
ficaria o céo para ver o seu papá, até que deixou pender a sua loira
cabecinha sobre o livro, e adormeceu.



O RETRATO DOS PAES


A mala-posta, que seguia do Porto para Braga, passava, ás 7 horas da
manhã, defronte da Izabellinha--aldeola obscura, que fica emboscada
n'uma deveza cerrada de carvalheiras, entre Santiago da Cruz e a estrada
de Barcellos.

Como era subida, os cavallos iam a passo, de redeas bambas, com as
cabeças pendentes, saccudindo com as caudas os moscardos teimosos, que
lhes afferretoavam nos ilhaes. Na imperial do tejadilho os passageiros
cabeceavam com somno. O cocheiro, com o chapéo desabado cahido para o
sobr'ôlho esquerdo, por causa do sol, e com as redeas entaladas nos
joelhos, petiscava lume da pederneira e acendia pachorrentamente no
morrão um cigarro de Xabregas.

--Ainda não enxergo o manco--disse o conductor, com os olhos fitos n'um
atalho, que vinha sahir á estrada.

--Toque-lhe a busina, homem--alvitrou do lado o cocheiro, com a voz
rouca da aguardente--toque-lhe a busina; que, se não apparecer, adeus! a
culpa é d'elles.

O conductor limpou com a palma da mão o boccal da corneta, que levava ao
tiracollo, applicou-o aos beiços, inchou as bochechas d'ar, e soprou de
rijo, tirando um som roufenho, prolongado, com intermittencias, que se
ouvia de longe.

O manco, que estava encostado no cunhal do muro, á sombra d'um
castanheiro, sahiu a meio da estrada.

Ao passar a mala-posta, o conductor atirou-lhe d'alto com uma sacca de
brim, surrada, suja e fechada com uma vareta de ferro, em cuja
extremidade pendia um aluquete triangular. O manco estendeu os braços
para a suspender no ar. Assim que a aparou, sopesou-a duas vezes, com os
braços esticados, e observou:

--Hoje pesa!

--Hoje ha paquete--explicou succintamente o conductor.

E, como a estrada principiava a descer n'uma ladeira ingreme, volteou
com força e á pressa a manivella do travão, e disse para o manco:

--Adeus.

A mala-posta seguiu a trote largo pelo meio da estrada, aos solavancos,
levantando nuvens densas de poeira, com grande ruido das rodas, fremito
das vidraças e o tilintar constante dos guisos das colleiras.

O manco atirou para o hombro com a mala das cartas, fincou o braço
concavo da mulêta no sovaco direito, e desandou pelo atalho fóra, a
coxear, para casa do Bento do correio.

Ao fundo do atalho, em continuação do muro tosco dos campos, ficava uma
estacada já velha, combalida, esverdengada das chuvas da invernia a
resguardar uma leira hortada de couves e cebollinho. Tinha dentro uma
casita de telha vã com porta e postigo sem vidraça. Dirigiu-se o manco á
cancella da palliçada, correu-lhe o ferrôlho pêrro na armella, e gritou:

--Ó tia Anna! tia Anna!

Abriu-se a porta da casa, e appareceu no limiar uma velhinha tremula,
curvada para diante, com uma roca enfiada á cinta, a fiar estopa.

--Que é lá, manco?--perguntou ella, inclinando-se para fóra, com a mão
fincada na humbreira.

--Correio!--gritou o manco com um grande berro.

A velha fez-lhe com a mão signal de que esperasse. Poisou dentro a roca
e o fuso, e sahiu á horta ageitando com os dedos as farripas brancas do
cabello, que lhe espreitavam por debaixo do lenço. O rapaz transpoz a
cancella, foi ao encontro da tia Anna, e gritou-lhe com a bocca muito
aberta:

--Correio! ouviu?

A mulher fitou-o com os olhos espantados, e perguntou:

--Que é? Não oiço.

O manco sorriu-se resignado; collando então a bocca ao ouvido da tia
Anna, repetiu com maior brado:

--Correio! correio! ouviu agora?

--Ah!--exclamou a velhinha, esfregando as mãos de jubilo radiante--ouvi,
meu filho, ouvi:--é correio!

--É correio, é--confirmou elle com um aceno affirmativo.

E, pondo-lhe a mão no hombro, disse-lhe adeus até logo, correu de novo o
ferrôlho, e tomou á direita, pelo carreiro de um milharal, caminho do
correio.

       *       *       *       *       *

Não se imagina o que é a chegada do correio a uma aldeia qualquer do
Minho! Cartas dos filhos ausentes!

Que anciedade em vêr realisadas as esperanças e...

Deixemos estas considerações, e relatemos os factos.

D'aquella mesma porta, vinte annos antes, sahira uma vez a tia Anna,
ainda forte, robusta e sadia, para acompanhar ao Porto o seu querido e
unico filho, que teimou em embarcar para o Brazil. O homem da tia Anna
não se oppoz.

--Deixa-o lá, mulher--disia-lhe elle--se o rapaz tem inclinação, em Deus
o ajudando, melhor amanhará a vida por lá do que por cá. Elle sabe lêr,
elle sabe escrever, elle sabe contas, está mesmo a calhar.

--Ai! meu rico filho--soluçava a pobre mãe, a chorar, com o rosto
escondido no avental.

--Não chores, mulher. Partir, tinha elle de partir, mais hoje, mais
ámanhã. Eu que o mandei ao mestre, não foi para ficar na lavoura. Assim
com'assim tanto monta estar o rapaz n'uma loja no Porto, como no Brazil.
Vem a dar na mesma.

Estas e outras razões do marido venceram as saudades da mãe.

Foi preciso vender dois grilhões e um par d'arrecadas, venderam-se; foi
preciso vender tambem uns novilhos, que se engordavam para embarque,
venderam-se na feira de Villa-Nova; e apuradas sete moedas e meia,
impoz-se o rapaz para o Brazil. No Porto, a tia Anna tomou passagem para
o filho, á prôa, na galera _Constancia_, da casa dos Pennas; mercou-lhe
uma caixa de pinho nova; vestiu-o com dois fatos baratos n'um algibebe
da Ponte-Nova; escolheu-lhe um par de chinellas nas sapateiras das
Carmelitas; guardou-lhe e ageitou-lhe tudo na arca, e poz-lhe a um
canto, com a maior devoção, o registo do Bom Jesus do Monte.

Pobre mulher! Liquidou as parcas economias, que representavam privações
e sacrificios, afadigou-se de trabalho, ralou-se de saudades, chorou
muito; e, quando viu de terra a galera _Constancia_ seguir lentamente
rio abaixo, com as vellas enfunadas pelo nordeste e a prôa inclinada á
barra, cahiu de joelhos e de bruços no caes de Massarellos, com as mãos
tremulas atadas na cabeça, a soluçar afflictivamente pelo filho da sua
alma, que lhe acenava com o lenço, debruçado na amurada do navio, a
chorar!

       *       *       *       *       *

Chegou a primeira carta a Izabellinha decorridos tres mezes da partida
do rapaz. Foi um alegrão que os paes tiveram! A carta era escripta em
papel paquete, muito fino, pautado; e até como os portos do Brazil
estavam suspeitos de febre amarella, vinha o papel todo golpeado. Foi
lida a carta pelo Bento do correio, foi lida pelo boticario, foi lida
pelo snr. cura, antes de ser delida pelo calôr do seio da mãe, que a
guardava junto do coração, como reliquia; e, de cada vez que ella ouvia
as palavras do filho, era um chorar copioso, que retalhava o coração. O
brazileiro da Granja, que indusira o rapaz a embarcar, esse sorria-se, e
consolava-a d'este modo:

--Deixe lá, tia Anna! Ali é que um home se faz gente. Está aqui, está um
brazilêro como a mim. Lhi garanto, tia Anna, que o rapaz se tiver tento
na boia, hem? arranja pátácária gorda, e, em pouco tempo, átiça baixella
em casa.

Nenhumas d'estas consoladoras esperanças, nem até a de _átiçar baixella
em casa_, leniam as saudades d'aquelle coração attribulado da tia Anna.

--Ora!--oppunha ella com a voz nazal e soluçante de quem suspende as
lagrimas para falar.--Em um homem tendo saude e a graça de Nosso Senhor,
em toda a parte do mundo é Brazil! Riquezas são o demonio.

--Não diga pátácuádas, mulher--contestava o brazileiro azedo e
carrancudo--não diga pátácuádas.

Depois, passados mais annos, á proporção que as saudades da aldeia se
desvaneciam no animo do rapaz, as cartas iam rareando.

De quatro em quatro mezes escrevia para a terra, dizendo que o trabalho
lhe roubava o tempo de o fazer amiudadas vezes. Que não tivessem
cuidado, que ia bem de saude e que esperava ser feliz em poucos annos.

A tia Anna, quando não tinha carta no correio, ia da Izabellinha a
Braga, a pé, entrava no Carmo, ajoelhava á beira da campa do milagroso
Frei Joãosinho da Neiva; e, com as mãos postas em supplica junto da
bocca, implorava com ancioso fervor pela saude e prosperidade do filho
ausente. Ao passar pela caixa das esmollas, á entrada da egreja, lançava
algum dinheiro no gazufilacio. Pedia a Nossa Senhora da Conceição dos
Congregados pelo filho do seu coração. Entrava em Santa Cruz, ajoelhava
em frente do altar do Senhor dos Passos, e rezava uma estação e um
rozario com as faces de rojos; subia a beijar os pés da sagrada imagem;
e benzendo-se tres vezes com a corda d'esparto puido e lustrosa, que
cingia a tunica do Senhor, retirava-se ás recuadas, rezando a meia-voz,
até sahir do templo!

       *       *       *       *       *

Seis mezes antes do manco annunciar á tia Anna que tinha chegado o
correio, recebeu ella uma carta do filho, dando-lhe parte de que ia
casar com menina rica, de nascimento--dizia elle--prendada. Queria o
retrato dos paes, e enviava-lhes dez moedas para as despezas
necessarias.

Quando isto constou na Izabellinha, houve geral regosijo.

--Eu não lhe dizia, tia Anna--lembrava-lhe uma visinha.--Se eu logo vi!
Aquelle seu Joaquim nunca me enganou. Eu futurei aquillo!

--Pois isso bastava uma pessoa olhar para elle--acudia outra, aleitando
um filhinho gordo, que tinha no regaço--Aquelle ôlho d'elle, lembra-se,
tia Josepha?

--Pois não alembra? O rapaz era fino, que nem um alho! Se aquelle não se
arranjava por lá, então--bôa te vae!--não sei o que ha-de ser d'outros
que foram depois. Olhe vocemecê, tia Anna, aquelle filho da moleira, o
zerôlho; aquillo é um morcão, que não serve para nada.

A tia Anna, sem attentar no confronto, que lhe realçava as qualidades do
filho, ria e chorava simultaneamente. E não se sabia dizer se aquellas
lagrimas serenas illuminavam o sorriso, se o sorriso mais entristecia as
lagrimas!

Dois dias depois da recepção da carta, resolveram-se, ella e o marido, a
ir a Braga para tirarem o retrato. Vestiram-se com a melhor roupa
domingueira, que servia para a romaria do Espirito Santo, no Bom Jesus
do Monte. Ella ia toda sécia de saia escura de serguilha, com tomado e
muitas pregas miudas no coz, collete de chita amarella salpicada de
florinhas verdes, camisa branca de linho com mangas enfunadas e
abotoadas no pulso, meias finas, e sóquinhas de panno azul com ponteiras
de verniz.

Atou na cabeça um lenço branco de cambraia bordado, lançou aos hombros o
capotilho novo de baeta escarlate debruado de fita larga de velludo
preto com as pontas cahidas á frente, até á cintura, e tomou na mão
enrugada e secca um lenço engommado de franja e entremeios de renda.

O marido enfiou as melhores calças de panno, avincadas, com abertura em
baixo a apolainarem o tamanco, collete de fostão amarello com duas
ordens de botões de vidro, niza azul de abas curtas, golla alta, botões
amarellos, as mangas justas de canhão até á raiz dos dedos, e collarinho
muito engommado e teso apontado ao lóbo das orelhas.

Poz na cabeça chapéo de feltro de copa afunilada, e sobraçou o guarda
sol de panninho escarlate com espigão de metal lustroso e um cabo de
ôsso representando um punho, toscamente esculpido nos torneiros da
Bainharia do Porto.

Atravessaram assim o Arco da cidade em Braga; e seguiram pelo meio da
rua do Souto, um ao lado do outro, radiantes, em busca do retratista.

Adiante da galeria do paço episcopal, deparou-se-lhes pendurado na
humbreira de uma porta um quadro grande de caixilho doirado com muitas
photographias em exhibição.

Perguntaram na loja de pannos, que havia ao lado, onde se tiravam os
retratos; e, devidamente encaminhados, subiram ao segundo andar, onde
ficava o _atelier_.

O photographo retratou-os em grupo, um junto do outro, ambos de pé, o
marido com a mão direita espalmada assente sobre a espadoa descahida da
mulher.

Ficaram com as cabeças muíto levantadas, os olhos arregalados e
espantadiços, os beiços franzidos, os membros hirtos e constrangidos,
n'uma attitude lôrpa, grotesca e ridicula!

       *       *       *       *       *

Logo que o manco partiu, a tia Anna seguiu-lhe no encalço para procurar
carta do filho.

No dia em que chegava a mala do Brazil, iam as mulheres da Izabellinha
pedir ao Thomé boticario, que deixasse ir o filho ao correio para lhes
lêr as cartas.

Se não havia freguezes a aviar, o pae mandava-o, e o Andrésinho partia
alegre, porque gostava da brincadeira.

Era lindo vêr aquelle quadro!

O rapaz sentava-se no espigão d'um muro baixo, á sombra d'um sobreiro.
Em volta d'elle, mulheres e homens apinhados, com as bôccas abertas,
escutavam-no com religioso silencio.

O filho do boticario ia lendo uma por uma, muito vagarosamente, as
cartas que lhe entregavam.

Não havia segredos para ninguem.

Como o rapaz lia d'alto e bom som ouviam todos as cartas uns dos outros,
como se fossem uma só familia. E alguma noticia triste ou noticia alegre
era egualmente sentida e commentada por todo o auditorio.

A tia Anna, como já lhe custava a andar, chegava no fim de todas.

Cediam-lhe logo passagem.

--Deixae, que eu tenho tempo--dizia ella, com a carta do filho apertada
na mão.

Por fim, chegou-lhe a sua vez.

O filho accusava a recepção dos retratos, mas dizia que não tinha
gostado. A tia Anna entristeceu.

A carta proseguia no mesmo assumpto e terminava assim:

«Vão vocemecês a casa do meu correspondente, os srs. Nogueira & Sá, da
rua das Flôres, e perguntem pelo meu amigo e socio Joaquim da Silva
Ferreira, que lhes dará as instrucções precisas».

O André, depois de lêr, explicava sempre:

--Percebeu, tia Anna? Quer que vocemecê e o seu homem vão ao Porto, á
rua das Flôres, a casa dos srs. (e recorria á carta), dos srs...
Nogueira & Sá, e lá procurem o sr..., o sr... (recorria de novo ao
papel) Joaquim Ferreira da Silva, que, pelos modos, vem a ser o socio do
seu José. Percebeu?

--Percebi, percebi.

--Pois é o que teem a fazer; e adeusinho, até outra vez.

O rapaz restituiu a carta; e, como não havia mais ninguem por ali,
saltou do muro, e voltou para a botica.

       *       *       *       *       *

Na loja de ferragens da firma commercial Nogueira & Sá, estavam, havia
cerca de uma hora, a tia Anna da Izabellinha e o marido á espera do
socio do filho, que os mandára esperar ali.

Era meio-dia, quando o brazileiro entrou.

O patrão Nogueira apresentou-os ao recem-chegado. A tia Anna e o homem
levantaram-se humildes, com os braços cahidos, conturbados
d'acanhamento.

--Então são vocemecês os paes do meu socio, hein?

--Saiba v. s.^a que sim--responderam ambos em côro.

--Pois por muitos annos, e bons--disse-lhes o brazileiro.

Tirou da algibeira do collete branco um relogio d'oiro, viu as horas, e
voltando-se para o Nogueira:

--São horas. Tem lá cima tudo preparado, hein?

--Está tudo prompto--respondeu o ferragista.

O Silva voltou-se para os lavradores, e disse-lhes:

--Subam lá cima com este senhor, que eu espero-os aqui. Não si démorem,
hein?

A tia Anna seguida do homem subiram a uma sala do primeiro andar. Sobre
um canapé de palhinha estava estendido um casaco preto, um par de
calças, um par de botas e um chapéo alto de seda. Ao lado havia um
vestido de seda preta com folhos, um chale de cachemira, uns sapatos de
duraque, um chapéo de velludo carmezim com flores amarellas e plumas
brancas.

Entrou na sala uma criada velha das manas do Nogueira, tomou nos braços
o vestido de seda, o chapéo, o chale e os sapatos, e pediu á tia Anna
que a seguisse ao gabinete proximo.

O caixeiro da loja ficou só com o lavrador. Disse-lhe que mudasse o fato
d'aldeão que trajava e o substituisse por aquelle que via ali.

--Mas... oppoz timidamente o pobre do homem.

--Eu ajudo-o, eu ajudo-o. Ande depressa.

E, á pressa, atabalhoadamente, tirou-lhe a niza, o collete amarello e as
calças de saragoça.

Quando o homem se sentou n'uma cadeira para enfiar o canno das botas,
cahiam-lhe da testa bagas de suor copioso.

Estava afflicto, quasi apopletico, com o laço da gravata a apertar-lhe a
garganta, como a corda d'um enforcado.

Aquelle casaco pesava-lhe nos hombros como uma armadura d'aço de D. João
II.

Abriu-se a porta do gabinete e appareceu a tia Anna vestida de senhora.
Oh! Os pés estorciam-se-lhes nos sapatos, o chapéo cahia-lhe para a
nuca! A criada vinha atraz, a passo, como aia que segue uma rainha; e,
lançando um olhar e sorriso maliciosos ao caixeiro, dizia:

--Hein? Estão que nem dois fidalgos!

Marido e mulher empallideceram e tremeram quando se viram n'aquelles
trajes. Despertou-lhes na consciencia o sentimento do ridiculo.

Entreolharam-se mudos, contrafeitos, e desceram ambos, com muito custo,
amparados ao corrimão, os degraus da escada até á loja.

E a criada e o caixeiro, que os viam do patamar, abafavam com a mão na
bôcca as gargalhadas da troça.

--Ai o diacho da velha--exclamava a creada a rir--que me parece mesmo um
entrudo!

       *       *       *       *       *

Entraram ambos na photographia _Fritz_, da rua do Almada.

O socio do filho explicou ao retratista como desejava o grupo.

Passaram ao _atelier_, muito desconfiados, a olharem-se de soslaio.

O homem bofava, a suar constantemente.

Foram colocados no fóco, um ao pé do outro, com uma meza de permeio, e
por detraz com um reposteiro azul, que cahia em amplas dobras sobre o
tapete. Quando o photographo assestou sobre elles a lente da machina,
retirou de repente a cabeça de sob o panno de velludo preto que o
cobria, e observou espantado:

--Então vocemecês estão a chorar?!

Enxugaram os olhos á pressa, e collocaram-se na mesma posição.

Á segunda tentativa, porém, as lagrimas e os soluços irromperam
violentos; e o homem da tia Anna, afastando-se da meza, dirigiu-se ao
socio do filho, e expoz-lhe, a chorar:

--Com'assim, meu senhor, nós não tiramos o retrato. E, enxugando as
lagrimas ao canhão do casaco, continuou:

--Nada; escreva v. s.^a ao meu José, e diga-lhe que não senhor, que...
não pode ser!... Se elle não quer mostrar á senhora o retrato que lhe
mandamos, é o mesmo, que diga... que já não tem pae, nem mãe!

Aqui foi um soluçar afflictivo e um abanar convulsivo de cabeça, que
deixou estarrecido o brazileiro.

A tia Anna concordava com o marido:

--Diga-lhe, meu senhor, que nós--dizia ella com voz tremula--que...
morremos, sim que já morremos... ambos!

       *       *       *       *       *

Na tarde d'esse mesmo dia, quando os ultimos raios do sol poente
purpurisavam a cumiada das montanhas, e pelos respaldos dos outeiros
vinham descendo as sombras esfumadas do crepusculo, voltavam ambos para
a Izabellinha.

Sentavam-se repetidas vezes na orla do caminho, a fingir que a distancia
os fatigava! Permaneciam silenciosos durante alguns minutos, um ao lado
do outro, com os olhos esmorecidos e roxos de chorar.

Mas o homem, quando via rebentar as lagrimas nos olhos da mulher,
fazia-se forte, continha a commoção, e dizia-lhe baixo, a sorrir
contrafeito, acotovellando-a d'esguelha:

--Então, ó Anna! Ai! que já não tenho companheira para as romarias!

E era triste vêr então aquelles dois velhos seguirem para a sua aldeia,
a pé, cabisbaixos, a suspirarem de quando em quando, com o coração
retalhado pela mais cruel das decepções!



O SERMÃO


Era um dia de festa e de grande romaria.

Desde madrugada, que eu estava debruçado no muro do meu quintal, á
sombra de uma acacia, onde trinava um rouxinol, para ver passar os
romeiros, que se dirigiam, em bandos, para o arraial.

Antes de chegar ao adro, passava-se por dois arcos de murta com flôres,
dos quaes pendiam bandeiras e galhardetes de côres garridas.

Ás onze horas da manhã ouvia-se o murmurinho surdo do ajuntamento no
logar da romaria. Pela estrada já pouca gente passava; e a que ainda
vinha á festa, caminhava de vagar, fatigada, rente dos muros das
quintas, para se abrigar do calôr ardente e abafadiço de julho.

De repente, na curva que a estrada faz, junto do pinheiral, appareceu a
carruagem da sr.^a viscondessa, que era, n'esse anno, a juiza da festa.

Os transeuntes paravam, encostados aos muros, e voltavam-se para ella,
com os chapéos na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma
rainha. A carruagem descoberta era tirada por duas egoas inglezas, que
esbofavam com ruido, batendo as patas a compasso na areia fina e
reluzente da estrada. O cocheiro vinha aprumado na almofada, com as
pernas esticadas, e na mão direita levantada suspenso o pingalim.
Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem, a sr.^a viscondessa
sorria affavel para os lados, agitando levemente a cabeça. Uma
_marquezinha_ côr de perola abrigava-a do sol. No logar da frente ia o
sr. abbade, um abbade ainda novo, muito escanhoado, vestido com batina
lustrosa, cabeção de renda, barrete de setim levemente inclinado na
corôa da cabeça. Levava as mãos crusadas sobre o ventre e os olhos fitos
no vestido da viscondessa, um vestido verde-mar, com guarnições de
renda, que se abria diante d'elle, como um leque.

Os romeiros, só depois da carruagem passar, é que continuavam o caminho,
e, olhando entre si d'um lado e d'outro da estrada, sorriam gloriosos.

Quando a sr.^a viscondessa apeou á porta da egreja, estalou no ar uma
girandola de foguetes; e eu, que não tencionava assistir á festa, acendi
um charuto, e dirigi-me vagarosamente para o logar da egreja, antes que
principiasse o sermão.

       *       *       *       *       *

Estava a egreja armada com sanefas e cortinas de damasco escarlate, onde
as luzes das tocheiras de prata do altar punham reflexos vermelhos.

Fóra da têa gradeada do altar-mór, via-se o povo, de pé, apinhado, com o
olhar espantado e perdido na decoração ostentosa do templo. A pedra do
altar-mór estava revestida com toalha franjada de rendas. Um tapete
largo de variegadas côres cobria o estrado do altar, descia os tres
degráos preso por varões de metal lustroso, e estendia-se na capella-mór
até á grade. Tres padres velhos, avergados sob o peso das capas
d'asperges com brocados d'oiro, estavam sentados ao lado, com os pés
unidos e estendidos para a frente. Sentia-se um cheiro forte a incenso;
e, no côro, soavam as ultimas notas plangentes das rabecas acompanhadas
a orgão e rabecão.

A sr.^a viscondessa entrou apressada pela porta lateral, que dava para a
sachristia, e ajoelhou-se em frente do altar, com a cabeça muito
levantada e os olhos pregados na imagem do Christo crucificado em meio
de luzes e ramos de flôres. Depois de rezar, com as mãos postas em
supplica junto do seio, persignou-se lentamente e sentou-se.

N'esse instante, houve um rumôr vago entre os fieis, que enchiam o
templo.

O prégador apparecêra no pulpito. O seu rosto oval de uma pallidez
maviosa, fronte larga, barba escanhoada e azulada no queixo,
destacava-se da alvura da sobrepeliz de cambraia bordada.

As suas mãos estreitas e brancas sahiam d'entre as rendas aniladas das
mangas, que lhe chegavam até á raiz dos dedos.

O abbade olhou attentamente o auditorio, e ajoelhou. Ergueu-se depois,
arrepanhou os canhões da sobrepeliz, ageitou a estola, expigarrou com
tom solemne e passou á flôr dos labios o lenço, que depôs cuidadosamente
ao lado. Em seguida, fincando a palma das mãos no parapeito do pulpito,
adiantou o busto para a frente e principiou com voz debil:

/#
     --«_Mulierem fortem quis inveniet? Proverb. 31_».
#/

Era o sermão de Santa Izabel, rainha e martyr. O prégador historiou a
vida da santa, desde o tempo em que, menina e môça, nos seus palacios de
Aragão, o seu principal divertimento era a oração e o exercicio da
caridade. Desposada por el-rei de Portugal, D. Diniz, em breve as
leviandades amorosas do esposo lhe amarguraram o coração trahido.

/#
     --«Porque--exclamava o prégador, alçando o braço--quantas vezes o
     manto de uma rainha esconde um coração attribulado!? Em meio da
     ostentação d'um palacio, cercada de todas as magnificencias reaes,
     filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemonia, _quae
     Regis filia, Regis uxor_, a princeza santa não tinha o socego, o
     descanço, a alegria da mulher humilde d'um mechanico!

     Era rainha, _Regis uxor_, era poderosa, era rica; mas a principal
     riqueza era a da sua alma.

     O oiro copioso dos seus cofres não tinha o grande valôr do oiro
     d'alto quilate do seu coração,--oiro de lei, purissimo, sem liga,
     que se não gasta e consome com o uso, antes se acrysola e
     engrandece com o exercicio das boas acções!»
#/

Algumas mulheres soluçavam commovidas; e a sr.^a viscondessa, que o
ouvia com attenção, fechava os olhos em signal de concordancia, e
acenava affirmativamente a cabeça.

Proseguia o sermão. O prégador falava da santa, quando acudia pressurosa
aos infelizes. Referiu o milagre da transformação dos pães em flôres,
sendo surprehendida pelo rei, quando ia esmolar aos pobresinhos!

Depois, adiantando parallelas as mãos, como se quizesse attrahir n'um
braçado o auditorio estupefacto, dizia:

     --«Vêde para que serve o oiro! Não vos julgueis desgraçados, se vos
     não assistem grandes riquezas! Não deixeis que a inveja se
     enrosque, como serpente ardilosa do inferno, em vossos corações».

E, apontando o indicador para o céo, proseguia com voz mais solemne:

     --«É ahi que se vê a previdencia de Deus! Concedeu o oiro aos
     ricos, para que o distribuissem pelos pobres! Pedir não é
     humilhação nem vergonha! Deu-nos o exemplo Jesus, o Divino Mestre,
     que ensinou aos discipulos a pedir com humildade!

     E que maior consolação--continuava o prégador--que maior consolação
     do que soccorrer com a esmola áquelles que a fortuna fez menos
     abastados!? Apagar a fome, saciar a sêde, vestir os nús, enxugar as
     lagrimas das viuvas, amparar a orphandade, dar arrimo á velhice!»

E exclamava:

     --«Oh! santa caridade! Oh! flôr sacrosanta do altar de Deus! A
     caridade...»

E retrahindo-se no pulpito, arqueando os braços á frente, aproximando as
mãos com as cabeças do indicador e polegar delicadamente unidas,
recitava com voz untuosa, repassada de mimo:

    Á noite a virgem modesta,
    A casta filha de Deus,
    Furta-se aos hymnos da festa,
    E envolta em candidos véos,

    Desce a escada sumptuosa,
    Mãe dos maus, irmã dos bons,
    Lá vai levar carinhosa
    A toda a parte os seus dons.

Foi de um effeito surprehendente! O auditorio sentia calefrios: passava
n'elle a corrente magnetica do enthusiasmo!

O prégador rematou em tom familiar, com voz mais baixa, aconselhando aos
pobres, que seguissem o exemplo de Jesus, que andou a pedir pelo mundo;
e aos ricos, que se amoldassem pela Rainha Santa, que distribuia pelos
desgraçados as riquezas do seu palacio.

     --«_Amen_.»

E sahiu do pulpito açodado, vermelho, anhelante, a enxugar com o lenço o
suor copioso, que lhe corria da testa.

       *       *       *       *       *

N'esse dia, jantou o sr. abbade com a sr.^a viscondessa. Quando eu
cheguei, tinham-se já levantado da mesa, e estavam sentados no terraço,
á sombra do toldo listrado.

Defronte da viscondessa, o abbade, refestelado n'uma larga cadeira de
vime, sorvia o café a pequeninos goles.

Cumprimentei o prégador pelo sermão; e a sr.^a viscondessa, levantando
enthusiasticamente a cabeça, confirmou do lado:

--Admiravel! admiravel! Diga-me, sr. Alberto--continuou ella, batendo-me
familiarmente no joelho--não acha que o abbade recitou a poesia com mais
mimo e mais sentimento do que a Emilia Adelaide, em D. Maria?

--Ah!--exclamei eu, espantado do confronto--sem duvida!

O escudeiro entrou com uma bandeja de prata para receber as chavenas.
Aproximou-se da sr.^a viscondessa, e disse-lhe a meia voz:

--Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola a v. ex.^a.

--Que impertinencia!--exclamou ella, carregando o sobrôlho com gesto
d'enfado.--Pois dê-lhe lá uma esmola, Francisco.

O sr. abbade, que ia para beber o ultimo gole de café, ouvindo aquillo,
suspendeu a chicara no ar, e accudiu do lado, com modo insinuante:

--Isso! Costume-os, sr.^a viscondessa--dizia elle, meneando pausadamente
a cabeça--costume-os mal, e verá que lhe não largam a porta!



ÁS CEREJAS


Bateram as tres badaladas do meio dia na torre de Santa Eufemia. Os
rapasinhos, que frequentavam a aula regia do José Sabino, começaram a
sahir, com as lousas pendentes do pescoço e os livros debaixo do braço.
O mestre escola esteve um instante á porta, a recommendar-lhes, com tom
de voz ameaçador:

--Ora olhae agora se ides direitos e quêdos para casa, se não...

E agitava na mão pennujenta o junco punidor.

Emquanto o olhar austero do mestre os alcançava, bem iam elles, todos
muito direitos, dois a dois, de mãos dadas, como uma leva de degredados;
mas, apenas o caminho voltava para a direita, e entre o mestre e os
discipulos ficava uma sebe muito alta e espessa, que os abrigava, adeus!
corria tudo em debandada, como abelhas que irrompem d'um cortiço!

Eu, então, gostava immenso de ver a pequenada assim, a correr, a saltar,
a rir ás gargalhadas, escalando os muros, invadindo os campos, como uma
horda de vandalos terriveis. Só me custava ver, no tempo defeso, quando
elles trepavam pelos castanheiros, para ir lá cima roubar entre os ramos
as ninhadas dos passarinhos.

Assim que chegava o mez do S. João aquella enorme figueira do passal
apparecia toda carregada. E os ramos que ficavam eminentes sobre o
cunhal do muro, até vergavam para fóra, para o lado do atalho, com o
peso dos figos!

Era um fartote para os pequenos!

O mais dextro marinhava pelas fendas do muro, escachava-se n'um galho
mais consistente da arvore, e de lá ia atirando para baixo os figos
maduros, a que podia chegar.

E o bonito era ver o abbade, o bom velho do abbade, que desatava a rir
muito satisfeito, quando a criada lhe referia indignada o assalto dos
pequenos.

--Coitaditos!--dizia elle--Ó Anna, quem me cassára a mim no tempo em que
eu fazia o mesmo ás macieiras do parocho da minha terra!

De uma vez que os surprehendi na figueira do passal, lembrei-me com
saudade de um assalto que eu dei tambem--vae isso ha um bom par
d'annos!--a uma cerejeira...

Eu conto a historia:

       *       *       *       *       *

Já me pennujava o buço; e como tinha a vida menos canceirosa e o sangue
na guelra, dei em frequentar os theatros e em lêr romances! Foi a minha
perdição! Por um capricho da sorte, quasi todos os romances falavam de
janotas que se perdiam de amor por actrizes. De uma vez até se me
deparou um dialogo entre Alexandre Dumas e outro escriptor francez.
Dizia assim:

--Parece incrivel, Alexandre, que em Pariz andem cincoenta rapazes
doidos d'amor por actrizes.

--Parece incrivel--oppôz o Papá Dumas, que era peccadoraço vezeiro
n'este particular--que haja cincoenta que o não estejam!

Vão lá dizer-nos que tudo aquillo é ficção!

A gente principia a lêr romances e tem logo vontade de realisar na vida
o que elles nos referem. Todos queremos ser Antonys, Werthers, Camors,
Armandos...

Nos bastidores do theatro Baquet levantei eu o altar para o sacrificio
do meu coração. Principiei a entabolar relações com os actores
comicos,--que a gente se persuade estão sempre a rir, e que, por via de
regra, são os mais sorumbaticos cá por fóra,--depois com os tyrannos e
os galãs. Era isto indispensavel a um noviço, que, mais tarde, tivesse
de cahir apaixonado aos pés mimosos de qualquer actriz sentimental.

Eu então tinha gosto e geito para o namoro--diziam-me os amigos! E esta
fama veio de me ouvirem improvisar um madrigal á mais gentil e talentosa
actriz d'esse tempo.

Estava eu á porta do camarim do Dias, que tem um filho chamado Josué.
Como durante o espectaculo a actriz não tivesse correspondido á
impertinencia dos meus olhares frechados por um binoculo, quando ella
passou, voltei-lhe as costas e não a cumprimentei. Vejam que despeito!

Chegou-se ella ao pequenito, acariciou-o, e disse-lhe, a sorrir:

--Tu não voltas a cara á gente, não Josué?

E fitou-me com ar insinuante.

--Este Josué--accudi eu, soprando uma espiral de fumo do
charuto--parece-se agora com o Josué da Biblia.

--Porquê?--perguntou Dias.

--Faz parar o sol!

Explendido!

D'ahi por diante, uns sujeitos que hoje são mais felizes e mais tolos do
que eu, vinham pedir-me phrases para elles improvisarem á passagem das
requestadas.

Chegou de uma vez, em meado de abril, uma companhia de zarzuella.

Ás primeiras damas não falava eu. Qual! Essas, via-as eu passar pelo
braço d'uns figurões de bigodes espessos e suissas grisalhas, cabellos
lustrosos puxados para as temporas, com ares serios e graves de
diplomatas.

Eu só conhecia as comparsas, as que faziam de soldados rasos na
_Marina_, de nymphas no _Joven Telemaco_, de camponezas na _Catalina_, e
que no _Relampago_ dançavam o tango, vestidas d'encarnado, com os rostos
farruscados a fingirem pretos!

D'entre ellas havia uma, a Consuelo, que era muito formosa, muito
elegante, e que eu preferia ás outras. Ainda me parece que a vejo,
quando ella passava no meio dos adoradôres, saracoteando os quadris, o
peito ancho, o tronco descahido para traz, na cintura, e a cabeça
levantada e oscillante, como a cabeça esbelta d'um cavallo andaluz.
Tinha os olhos pretos, humidos e azougados, que é como o povo diz d'uns
olhos que teem a sclerotica levemente azulada, os labios côr de cereja,
um pescôço de garça, como o dos retratos da Marie Antoinette, e um pé
tão pequenino, gracioso e arqueado, que inspirava desejos de lhe dizer
com o nosso Padre Manoel Bernardes: «Dá-me limpeza grande nos meus
labios para calçar teus pésinhos de mil osculos santos!»

Ás vezes, tinha momentos de uma tal melancolia, de tão profunda magua,
que me deu vontade de lhe saber a causa. Encontrei-a uma noite de
beneficio, sósinha, a cantar a meia voz esta seguidilha:

    En un ameno bosque
    Mi niña duerme,
    Cuidado, pajarillos,
    No se despierte.
    Decid al viento
    Que mientras ella duerme,
    Que sople quedo.

E ficou depois muito triste, encostada á porta do camarim, com os olhos
fitos no bico de gaz, que se abria trémulo como o leque febril d'uma
hespanhola. Tanto indaguei e com tão sincera simpathia o motivo
d'aquella tristeza, que cheguei a sabel-o um dia.

Coitadinha! Consuelo era filha d'uns saltimbancos. A mãe--que já tinha
morrido--dançava na corda bamba, o pae fazia jogos malabares,
prestidigitação, sabia lêr a _buena-dicha_ e era um tenor excellente em
barracões de feira. Uma irmãsita mais nova, a Conchita--oh! que
linda!--essa dançava boleros e fandangos, no meio das praças publicas,
sobre um tapete esfarrapado, ao som de um tambôr, que o pae rufava para
attrahir a multidão.

A Consuelo, com as mãos fincadas nos quadris, a cabeça levantada, e a
sorrir, cantava malagueñas, emquanto o pae agitava uma pandeireta
byscaia com soalhas de latão!

Como era bonita não lhe faltavam galanteios e bravos.

--_Alza_--_Olé! olé!_ gritavam os espectadores, batendo as
palmas--_Alza_, Consuelo!

Logo depois que a mãe morreu, principiou a ir lá por casa, emquanto o
saltimbanco estava na taberna, uma velha esqualida a induzir a Consuelo
que fugisse ao pae e que fosse para uma companhia de zarzuella, que um
emprezario rico ia organizar. Tanto a velha lhe prégou, e sempre com
prendas, com ramos de violetas e _Que guapa que és_! _Caramba_! _que
serás feliz_! que a pobre rapariga, uma fria manhã de nevoeiro,
levantou-se da cama, foi, pé ante pé, beijar a Conchita, que ainda
dormia, e fugiu!

Vejam que desgraça!

Afinal, de terra em terra, de desillusão em desillusão, sem um raio
benefico de esperança, que lhe fulgurasse na negrura da sorte, veio a
Consuelo parar a Portugal!

--Hoje--disse-me ella--não me contentava o oiro, nem as palmas, nem
nada! Trocaria tudo, por vêr meu pae e a minha Conchita!

E a voz trémula embargou-se-lhe na garganta suffocada pelas lagrimas!

--Mas que canção é essa que a faz entristecer?--perguntei eu.

Era uma canção popular, com que a mãe da Consuelo embalava nos braços a
Conchita, quando era ainda muito pequenina:

    En un ameno bosque
    Mi niña duerme,
    Cuidado, pajarillos,
    No se despierte.

Antes tres dias de partir a companhia para Sevilha, eu e uns amígos
offerecemos a Consuelo um jantar, no campo, debaixo d'uma ramada.

Era pelos ultimos dias de maio.

Tinhamos partido de madrugada, emquanto as gottas do orvalho tremeluziam
nas encostas floridas, para fugirmos ao calôr intenso do meio-dia.

A verdura tenra dos prados ondulava serenamente á mercê da viração
fresca da manhã.

Quando a estrada costeava o sopé d'uma colina, nós saltavamos da
carruagem e seguiamos então a pé, cortando a eito pelos atalhos,
atravessando por meio de campos de milho e de extensos trigaes,
abrigados pela sombra das carvalheiras, onde chilreavam os pintasilgos e
rouxinoes.

Ás portas dos curraes encontravamos ainda as vaccas sahindo pausadamente
para o pascigo. Na residencia do sr. abbade via-se o muro do passal
coberto de trepadeiras; e por baixo do peitoril d'uma janella, n'uma
gaiola de canna pendurada na parede, assobiava um melro.

Consuelo ia encantada!

O ar fresco, puro e sadio do campo abria-lhe appetites selvagens e
contraditorios.

Ás vezes desejava ser como o boi manso, que vae pastando
tranquillamente, n'um bosque, á beira d'agua corredia; outras, então,
queria antes ser como a pôtra que se avistava, ao longe, n'um extenso
prado, correndo, com as crinas esparsas, aos pulos, sobre os giestaes
floridos!

Ao passar pelos silvados, Consuelo colhia as amoras maduras, e comi-as
com soffreguidão.

Ao cabo de um quarto de hora de caminhada, avistou Consuelo, no fundo
d'uma ladeira, que descia para um pomar, uma cerejeira carregada de
fructo.

--Cerejas!--exclamou ella.--Ai! eu quero cerejas!

Descemos todos ao pomar; e então eu, que era o mais aldeão, trepei pela
arvore acima, até aos ramos mais altos.

Consuelo ficou em baixo para aparar as cerejas. Os primeiros dois pés
que eu lhe lancei, collocou-os ella sobre o pavilhão dos ouvidos, como
dois brincos. Ficavam-lhe como duas contas enormes de coral! Em seguida
apanhou na ponta dos dedos a roda do vestido, á frente, e disse-me que
atirasse para ali as cerejas que fosse colhendo.

--Lá vae, Consuelo!--gritava eu de cima!

--Venham--dizia ella.

E, fechando os olhos, retezava e repuxava o vestido para as aparar ali
todas.

Já Consuelo tinha uma bôa regaçada, quando, de repente, ouvimos, ao
longe, uma voz trémula, que cantava assim:

    En un ameno bosque
    Mi niña duerme;
    Cuidado, pajarillos,
    No se despierte.

Consuelo foi deixando, pouco a pouco e quasi insensivelmente, cahir o
vestido, cahir as cerejas, cahir os braços; e ficou a olhar para mim,
com a cabeça erguida, na immobilidade de uma estatua.

Eu, que estava nos ultimos galhos da arvore, em ponto eminente, ainda
pude alcançar a estrada.

E vi, então, sahir d'uma taberna, que se abria, uma companhia de
saltimbancos.

Ia atraz um velho, vestido de malha, com lentejoulas, que relusiam ao
sol. Levava, pela mão, uma pequenita, com uma saia curta de cambraia
muito suja e remendada. O saltimbanco caminhava devagar, com a cabeça
descahida para o peito, os olhos no chão, a cantarolar:

/*
Cuidado, pajarillos,
No se despierte...
*/

Depois, quando desci os olhos para a Consuelo, que permanecia em baixo,
como estarrecida, vi-lhe á flôr das palpebras duas lagrimas enormes, que
tremiam, como duas gottas d'orvalho nas pétalas d'uma rosa!



O JANTAR DO NATAL


Até a natureza se enfeita para festejar tambem o Natal do Deus-Menino!

Ao meio dia, quando o sol parece estacionar no zenith, como um viajante
que pára no viso de uma montanha, para resfolegar da caminhada, estava o
firmamento azul, de uma limpidez crystalina, tépido o ar, e d'entre as
flôres silvestres dos prados e das encostas ascendia uma tenue
vaporisação, como se a terra fosse um enorme thuribulo a incensar para o
céo!

As vaccas descançavam nos curraes, os rebanhos nos redis; e, á sombra
das arribanas, viam-se os carros com os cabeçalhos caídos, os arados com
as rabiças por terra, e as cangas, os ensinhos, todo o utensilio da
lavoura deposto a um canto, como armas valentes do trabalho nas feriadas
e alegres horas do descanço.

As moças iam colher arregaçadas de violetas e rosas para inflorar o
presépe. Nas cosinhas andava tudo n'uma roda viva! Tirava-se da arca a
melhor toalha de linho, a melhor louça da copa, e punha-se na mesa que
nem um palmito! Até o balaio do pão estava aberto e franco; porque não
havia de haver pobresinho que fosse da porta sem a consoada!

E o presépe? Aquillo podia-se ver! Á frente, deitado sobre as palhas de
um estabulo, via-se o Menino, de barriga para o ar, nusinho em pellote,
a sorrir para Nossa Senhora, que o contemplava, de joelhos, com o
radiante jubilo das mães. Da outra banda estava S. José com a enxó e o
martello de carpinteiro postos ao lado. Mais atraz, uma vacca malhada
fitava no Infante os seus grandes olhos redondos; e um jumento lanzudo,
de orelha empinada, aproximava cubiçosamente o focinho, dilatando as
ventas ao cheiro fresco da palha. Pelos atalhos da encosta, desciam á
frente das bailadeiras, os pastores de Bethlem, um a soprar na gaita de
folles, outro a rufar no tambor, outro a bater as castanholas. No cabeço
do monte, appareciam já os tres reis magos, S. Balthazar, S. Belchior,
que é o rei preto, e S. Gaspar; e todos elles cobertos de capas de
arminho, com as corôas reluzentes, e montados em cavalos baios e russos,
ajaezados de ouro e pedrarias. No cimo de tudo, entre nuvens, surgia uma
pomba branca, de cujo bico côr de rosa se espargiam raios de luz
celestial, que vinham aureolar o berço do Deus Menino! Era uma coisa
rica!

Em volta do presépe, a pequenada cantava alegremente:

/*
Ó Infante suavissimo
Vinde, vinde já ao mundo...
*/

E interrompiam o cantico para correrem á porta a ouvir as raparigas da
visinhança, que entoavam em côro:

/*
Vimos dar as boas festas
Á senhora morgada
E pedir-lhe que nos mande
Já a nossa consoada.
*/

Pois não? Lá entra aquella tropa fandanga na cosinha para ajudar a fazer
os mexidos e a apurar as rabanadas com mel e vinho quente! Uma folia,
que era mesmo um regalo ver!

Antes de se ir para a mesa, contaram-se os convivas; que não fosse
chegar-se ao numero treze, e não houvesse mais alguem! Crédo! O numero
treze é numero aziago! Estando treze pessoas ao jantar, no praso de um
anno, tem de morrer uma. E deixem lá fallar quem falla, e quem diz que
são historias! Até Alphonse Karr confessa que não gosta de jantar em
mesa de treze pessoas!

--Tambem esse?--pergunta circumspectamente a sr.^a morgada, sem ter o
gosto de o conhecer.

--Podéra, minha senhora!

--Então, vá vendo!

--Mas--atalha o sceptico--diz que não gosta de estar á mesa de treze
pessoas, quando o jantar chega só para doze.

--Ah!--exclamou a companhia--olha o démo do homem!

Quando todos procuravam o seu logar respectivo, exclamou alguem:

--E o tio Simão?

--Ai! que falta o tio Simão!

E cada um se desculpava com o proximo.

--Esta gente traz a cabeça a juros!--exclama a senhora.

--Já viram? Ir-se jantar sem o velhinho!

--Quem chega aos açudes chamar pelo Simão?

--Vou eu.

--Eu vou.

--Eu tambem.

Afinal, vae tudo.

As raparigas ergueram-se todas de uma vez e deitaram a correr! Parecia
mesmo uma revoada de pombas mansas, que ouvissem estoirar ali perto um
tiro de espingarda! Fugiu tudo!

       *       *       *       *       *

Morava o tio Simão da outra banda do rio. Tinha uma casita de telha vã,
com o seu palminho de terra plantado de horta. Contava 75 annos, mas
rijos, e tão rijos, que o deixavam ainda atravessar as poldras, todos os
domingos, quando vinha jantar a casa da sr.^a morgada. Fôra elle casado,
e tivera tres filhos; mas chamou Deus a si os tres filhos e a mulher, e
deixou-o sósinho n'este mundo, a viver da caridade dos seus bemfeitores.

De uma vez que estava sentado ao sol, que--como diz o outro--é a roupa
dos pobres, viu aproximar-se um cão amarello, pequeno, feio, rabudo, com
duas malhas na cabeça. O Simão atirou-lhe pão; e, tanto que lhe foi
dando de comer, conservou-se o cãosito junto d'elle. Depois já ninguem o
retirava dos pés do seu bemfeitor.

Para quem vive sem companhia vejam lá que alegrão é encontrar junto de
si um pequenino animal, que nos vê com olhos cheios de desinteressado
carinho! Ficou o cãosito sendo o companheiro do tio Simão. Como viesse
sem nome, que é como apparecem os engeitados, o tio Simão baptisou-o.

--Fiel!--exclamou elle--Fiel, anda aqui.

E aproximava-se o Fiel do velhinho, com a obediencia affectuosa de um
filho amado. Para onde fosse o Simão ia o Fiel.

Assim que o sol lhe bateu no postigo--que era ao meio dia que tinha
logar a visita--o Simão enfiou a jaqueta melhor que tinha, pegou no
cajado a que se arrimava, chamou pelo Fiel, deu volta á chave e
encaminhou-se para a residencia da morgada. Quando ia a poisar o pé na
primeira pedra, viu o Fiel, que ia na frente, resvalar na pedra
escorregadia, e cair ao rio!

O Simão recuou cheio de susto, de afflicção, com as mãos postas em
supplica. O cão principiou a nadar para o seu dono; mas ia tão grossa a
levada, que o não deixava vencer a corrente. Depois de muito esforço,
conseguiu afinal abordar; mas todo alagado, a tremer, a ganir, com o
corpinho coberto das contusões, que tinha recebido do embate das pedras.

--Anda, Fiel, anda, meu filho--dizia o pobre velho a chorar.

Tomou o cãosito nos braços, achegou-o do seio, e desandou para casa. No
caminho ia dizendo:

--É o mesmo! Farei eu o caldito, que ha-de chegar para nós ambos!

       *       *       *       *       *

As raparigas, que tinham saído da casa da sr.^a morgada, iam já perto do
sinceiral do rio, e não tinham ainda visto o Simão. Desceram por uma
vereda; e, quando chegaram á margem, gritaram algumas:

--Ó tio Simão! eh! tio Simão!

Ninguem lhe respondeu.

--Vamos topal-o em casa--propoz a mais expedita.

Arregaçaram as saias; e, pé aqui, pé ali, atravessaram cautelosamente
para a outra banda.

Ao chegarem a casa do tio Simão, aldrabaram á porta; e a que bateu não
ouvindo o ladrido do cão, exclamou para as companheiras:

--Querem vocês ver que o tio Simão já foi? O Fiel não dá signal!

Ao cabo de um instante, porém, appareceu o velhinho a abrir-lhes a
porta. E Jesus! que gritaria! Fallavam todas a um tempo, e ninguem as
entendia.

--Aposto que estava a ajanotar-se!--dizia uma.

--Ora, já viram? acudia outra. Como vae para o meio das moças, o tio
Simão enfeitou-se que nem um altar-mór!

--Hoje deita os rapazes todos a um canto! Olha, véstia nova, hein?!

E emquanto lhe diziam isto, uma ageitava-lhe a gola da jaqueta, outra
laçava-lhe o lenço do pescoço!...

Quando conseguiu que ellas o ouvissem, o velhinho respondeu:

--Digam vocês á sr.^a morgada que hoje não vou lá.

--Como não vae, tio Simão? Dia de Natal e não ha-de ir? Isso tem lá
logar!...

Elle então contou-lhes o que tinha havido.

--Ora, adeus. O Fiel o mais que tem é nada! É um mimalho, é o que elle
é. Deixe que eu lá vou.

Entraram todas para ver o que tinha o Fiel. O cão estava deitado na
enxerga do Simão, abafado com o cobertor da cama, a tremer.

Uma das raparigas tirou-o para fóra, enxugou-lhe o pello com geitoso
carinho, embrulhou-o no avental e disse:

--Eu levo-o comigo, coitadinho!

Na lareira já cantava a panella, que estava sobre quatro achas accezas.

O tio Simão, que assistia a tudo aquillo com lagrimas nos olhos, disse:

--Deus vos pague no céo, minhas filhas, os beneficios que fazeis a este
pobre velho.

Tornou a pegar no cajado, que tinha ao canto, e foi com as raparigas.
Como elle ia alegre, direito, valente no meio d'ellas!

Os visinhos diziam-lhe:

--Ó Simão, deram comtigo as moças, estás arranjado!

E elle fartava-se de rir como um perdido!

Outros, quando viram o Fiel no collo da moça, perguntaram com malicia:

--Ó menina, onde é o baptisado?

       *       *       *       *       *

Ao cair da tarde, o velhinho voltou para casa. Vinha vermelho, e
caminhava depressa, aprumado, como um rapaz. Como até vinha a cantarolar
pelo caminho:

/*
Eu entro já na lapinha
Pois me não posso conter,
Porque a sua formosura
Me enche de gosto e prazer.
*/

Um visinho que o viu passar, disse comsigo:

--Hoje o Simão leva o seu grãosito na aza!

Á frente, o Fiel, ia seguindo pela estrada, voltando-se constantemente
para traz, com medo de que o dono lhe fugisse, e se deixasse ficar com
as raparigas!

E, então, o Fiel ia tão alegre, tão bom, tão esquecido do banho, que até
já ladrava ás pernas dos transeuntes! Era um tiranno!



VINHOS E AGUAS-ARDENTES


Quando entrei no cemiterio, lobriguei, ao fundo, por entre a rama de
alguns cyprestes, que orlavam as ruas transversaes, o coveiro a levantar
as ultimas pazadas de terra de uma valla.

O homem cantarolava assim:

/*
Menina, que está á janella,
A lançar goivos á rua...
*/

E, depois, agachado no cairel, media com o cabo da enxada a profundidade
da cova, proseguindo alegremente:

/*
Se o coveiro aqui passa,
Vae pôr-lh'os na sepultura.
*/

Metteu a pá da enxada na leiva de terra, que lhe ficava ao lado,
transpoz o comoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife
pobre, de pau, sem fôrro, com os symbolos da morte pintados d'amarello.

Arrastou-o com esforço para a bôca da valla, escancarou as tampas; e, ao
dar com o rosto do cadaver, exclamou de si para si:

--Ora espera! Eu conheço esta rapariga!

Entreabriu os labios com a unha do dedo polegar, concentrou-se um
instante a meditar com os olhos fechados; e, por fim, continuou
compadecido:

--Ah! És a Rosita do tecelão!

Á medida que retirava com geitosa piedade o cadaver do esquife,
lamentava:

--Pobre rapariga! Eu logo vi que te não delatavas atraz da filha!

Depois, o resto foi rapido e breve.

Baldeou o cadaver ao fundo da cova, lançou-lhe por cima a terra que
tinha levantado, recalcou bem com os pés juntos os ultimos torrões, e
retirou-se para casa, com a enxada ao hombro!

       *       *       *       *       *

Ahi vae lêr-se a historia d'essa mulher. A sua vida é a vida trivial de
muitas desgraçadas.

Quando tinha apenas desoito annos, Rosa chorou as primeiras lagrimas do
coração retalhado sobre o cadaver da mãe, que lhe expirou nos braços.

Ficava sósinha no mundo, a viver pobremente do seu trabalho honesto e
incessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas as
adversidades, que a sorte lhe havia de deparar.

O grande perigo estava-lhe na peregrina formosura do rosto e na
innocencia do coração, que é a formosura da alma.

Um dia o Benjamim tecelão, um rapaz alegre e bem parecido, que de ha
muito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a
sua declaração, propoz-lhe com voz trémula a sua mão d'esposo.
Mentiu-lhe.

Ao cabo de onze mezes, durante os quaes o tecelão ia inventando embargos
á realisação da sua promessa, a pobre rapariga deu á luz uma filha. As
primeiras alegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração
ludibriado. A filha chamava-se Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.

Depois, quando as lagrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a
creancinha nos braços, e um sorriso d'ella era-lhe um grato refrigerio
para as amarguras da vida.

O operario entendeu que a filha era um vinculo mais apertado do que a
estola d'um sacerdote. Propoz a vida em commum. Rosa accedeu de prompto,
fiada em que o amor de pae talvez despertasse na consciencia de Benjamim
a ideia do casamento, que a rehabilitasse.

O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava ás despezas da casa,
deixou-se ficar uma semana sem ir á fabrica. Quando a ociosidade lhe era
tediosa, ia procurar distracção na taberna mais proxima. Voltou de novo
ao trabalho; mas o seu producto dispendia-o comsigo e com os amigos, ás
mesas das tabernas e ás bancas do jogo, esquecendo-se de Rosa e da
filha. Aconteceu Rosa adoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a
Benjamim. Não teve elle coragem de lh'o negar; mas entregou-lh'o de um
modo tão aspero, que offendeu o coração da desventurada mãe.

Foi ahi que principiou o calvario de Rosa!

Benjamim entrava em casa, por altas horas da noite, cambaleante e
obsceno. Atirava quantos insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga.
Rosa amparava-o com brandura, soffria-lhe os escarneos com a mais santa
resignação, auxiliava-o a deitar-se; e, depois, quando Benjamim, com os
cabellos em desalinho, o rosto descórado, resomnava, prostrado com o
peso da embriaguez, ella quedava-se a contemplal-o, com as faces
cobertas de lagrimas.

O viço da sua formosura ia pouco a pouco desapparecendo. Já não tinha o
mesmo brilho nos olhos, o mesmo setim na cutis, a mesma ondulação nos
contornos do rosto. As lagrimas deixavam um vestigio indelevel da sua
passagem, e Rosa envelhecia e esfeiava.

Benjamim, ao accordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-se
enfastiado da presença d'aquella _velha_, e sahia de casa sem lhe
dirigir uma palavra de gratidão e carinho!

De uma vez--tinha Isabel sete annos--o tecelão chegou a casa n'um estado
lastimoso. Dois amigos e consocios de taberna levaram-no nos braços, até
á porta. Benjamim subiu a custo os degraus ingremes da escada; abriu de
repellão a porta da sala, e appareceu hediondo, a tremer, com os olhos
injectados, os labios convulsos, os cabellos empastados de um suor
viscôso. Fez um esforço para se aproximar de Rosa. Estendeu os braços
para se arrimar á parede; abriu as pernas para conservar o equilibrio;
e, ao arriscar vacillante o primeiro passo, cahiu de bruços, com todo o
peso do corpo, sobre o pavimento!

Isabel, que já dormia, acordou sobresaltada com o estrondo da quéda, e
principiou a gritar de medo! Benjamim ergueu-se de golpe, dirigiu-se á
enxerga, em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre creança,
que emmudeceu de terror aos primeiros tratos. Accudiu Rosa, implorando
com altos brados a Benjamim que perdoasse á filha; mas o bebado
respondia ás supplicas da mãe com pancadas e empuxões.

Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se podia
remover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a
n'umas saias de baeta, e, logo que o tecelão sahiu de casa, foi com a
filha ao hospital da Misericordia. O facultativo, que observou a
creança, viu, atravez das lagrimas da mãe, a causa d'aquellas contusões.
A pequenita estava muito doente.

Ao terceiro dia, a filhinha chamou com voz debil pela mãe, pediu-lhe que
se sentasse na enxerga, bem junto d'ella, encostou-lhe a sua loira
cabecinha no regaço, e disse-lhe:

--O pae é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer, hei de pedir a
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?

Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito, lhe
embargavam a voz.

A Isabelinha então, já com a vista turva, e a bocca entreaberta, lançou
os braços ao pescoço da mãe, para a achegar mais de si, estremeceu da
derradeira convulsão e... expirou!

Ao cabo de um mez, durante o qual o padecimento de Rosa fôra horrivel, o
mesmo coveiro que enterrou a filha, abriu ao lado outra cova para
receber a mãe.

       *       *       *       *       *

O rosto d'aquella mulher, magro, livido, macerado, tinha a impressão
indelevel das torturas por que passára. Não havia n'elle as contorsões
da agonia dos delinquentes, que morrem convulsionados pelo terror de um
castigo eterno. O derradeiro alento entreabriu-lhe nos labios um sorriso
de bemaventurança!

É como ficam as creaturas, santificadas pelo martyrio, e que esperam na
morte a hora do seu resgate!

E quem diria--pobre creança!--que tinhas apenas vinte e cinco annos, e
que foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que poisaste pela
vez primeira os labios convulsos de alegria na face côr de rosa de tua
filha!?

E saber-se que o martyriologio é com certeza o unico elogio funebre de
tantas desgraçadas como Rosa!

E Benjamim?

Benjamim, aquelle homem que seduziu impunemente uma mulher e que matou
impunemente a filha, prosegue inflexivel na vida crapulosa, dominado
pelo vicio da embriaguez, em que tem perdido, pouco a pouco, o vigor e a
vida de todas as faculdades, a saude, a honra e a propria dignidade de
um ser humano!



AS ARRECADAS DA CASEIRA


Resa a _Folhinha_ que é a 26 de fevereiro o dia de S. Torquato--santo
guerreiro, que recebeu na face esquerda um golpe d'alfange mahometano,
em guerra de christandade;--mas a grande romaria tinha sempre logar ahi
pelo meado de junho.

Fica a ermida situada em vasta esplanada, no alto de uma collina.

Logo ao romper d'alvorada, pelos atalhos da encosta vinha subindo a
turba-multa dos romeiros foliões. Ha cinco annos, como estava um dia de
muito sol e de grande calor, era bonito ver o rancho dos lavradores, que
vinham abrigados debaixo dos enormes guarda-soes de paninho escarlate.
Aquillo é por luxo! Olha quem! Elles que andam todo o santo dia do
trabalho, no meio dos campos, a sachar, a lavrar, a podar, expostos á
torreira, teem lá medo do calor! Pois assim que chega um dia de festa,
fingem-se mimosos e abrem então os seus guarda-soes. Outros que são mais
francos, nem sequer os abrem; qual! mettem-nos debaixo do braço assim
como quem abrange um molho de varetas de baleia com paninho encarnado, e
lá partem alegres para a romaria.

No logar do arraial havia arcos de buxo com flores, fluctuavam as
bandeiras no topo dos mastros, estalavam no ar os foguetes de tres
respostas; e, de quando em quando, para que a folia não arrefecesse nos
animos, rebentava um morteiro, que atroava por todas aquellas serranias.
Então, via-se uma revoada de passarinhos, que fugiam para longe,
espavoridos pelo estrondo!

Por detraz da ermida ficava uma alameda, e era da alameda que se gosava
um panorama delicioso.

Ainda me parece que estou a ver de aqui os excellentes campos de milho
já maduro, as searas do trigo douradas do sol, e em alguns campos, como
o trigo viera temporão, e já tinha havido a sega, apparecia apenas a
resteva; dos ramos dos ulmeiros, pendiam as vides d'enforcado, e, àquem
e além, em alguma herdade de proprietario abastado, destacava-se da
ramaria escura dos castanhaes as folhas de um verde tenro e alegre das
latadas. Ao fundo, pelo corrego abaixo, seguia uma levada que ia mover
ali perto as rodas de uma azenha.

No arraial alvejavam as tendas de lona, onde se vendia o vinho verde e o
savel frito. Era ali que estava a grande animação!

--Beba um quartilho, tio José--offerecia um freguez.

--Pois venha de lá.

E então a peixeira, com os braços arremangados e farruscados da fritura,
servia um coparrão de vinho espumante.

--Vae outro?

--Nada--accudia o tio José, enxugando os beiços ás costas da mão--nada;
eu quero beber, mas a modos. Se um homem lhe bebe de mais, como o outro
que diz acaba por beber o juizo.

Como havia missa cantada e sermão, ouvia-se cá fóra a musica do côro e o
canto arrastado e nazal dos padres. Os devotos entravam e saiam
constantemente. De uma vez, á porta lateral da sachristia que deitava
para o adro, appareceu o sachristão vestido de batina escarlate com
sobrepeliz franjada de rendas, a agitar o thuribulo de prata para atear
mais o fogo do incenso! Não faltava nada!

Em meio d'aquelle povileo houve um movimento extraordinario! Os romeiros
que estavam ao longe a admirar os musicos do palanque, acudiram tambem a
ver o que se passava! Havia apertões, recuadas, empuxões e gritaria.
Formaram-se de repente duas alas de povo, para abrir uma passagem
respeitosa; e, n'isto, a berlinda da senhora morgada, que era a juiza da
festa, appareceu então, tirada por dois cavallos possantes, com criados
de libré, chapeus de tope e agaloados, rodando vagarosamente em direcção
á porta da capella. N'esse momento solemne subiu ao ar uma girandola
triumphante!

       *       *       *       *       *

Quem nunca faltava á romaria de S. Torquato era a tia Custodia da Moita,
que lá ia sempre com o homem e o netinho. Ninguem havia por aquelles
arredores mais estimado e bemquisto. A sympathia que elles inspiravam
vinha de serem muito amigos do proximo, tementes a Deus e ao mesmo tempo
serem muito felizes!

Ora façam uma idéa do que elles soffreriam! Tinham tido uma unica filha,
bonita moça, amiga dos paes; mas como era muito amoravel e não podesse
ouvir chorar ninguem que não acudisse logo a consolar, deixou-se levar
pelas lamurias d'um fidalgote de Braga e...

A innocencia, a bem dizer, se não é de todo cega, trata o amor de lhe
vendar os olhos!

No fidalgo--são baldas certas!--ao cabo de um mez de apaixonados
amorios, nunca mais ninguem lhe tornou a pôr a vista em cima. A
desgraçada rapariga não teve mão em si, e confessou tudo á mãe. A
velhinha chorava, que era uma dôr de coração ouvil-a.

--Vocemecê anda doente?--perguntavam-lhe as visinhas.

--Não ando lá muito boa, não.

--Vá ter com o cirurgião, tia Custodia.

--A doença que eu tenho, filha--oppunha ella--são paixões d'alma, e não
se curam na botica!

Decorridos alguns mezes, a rapariga expirou, depois de ter deixado no
collo da mãe uma creança recem-nascida.

Ora vejam! Desgraças que acontecem!

Vae para tres annos que o mez de Dezembro foi para este pobre paiz um
mez de calamidades! Ainda toda a gente se recorda com magoa d'aqueles
dias e noites tempestuosas, em que a chuva caia copiosa e torrencial,
levantando os rios do seu leito, alagando os campos e destruindo as
sementeiras! Na manhã seguinte a uma d'essas noites terriveis, doia o
coração a quem fosse pelas aldeias e visse tantos estragos do temporal.
Uns riachos, que no verão parecem uma fita d'agua, que serve apenas de
bebedouro ao gado, tomaram taes proporções, era tão forte a sua
corrente, que levavam adiante de si as rodas dos moinhos, os telheiros,
as arvores, o gado, tudo! Era uma desolação completa! Á porta dos
curraes ficavam os pastores toda a noite de guarda com receio de que as
enxurradas lhes levassem os bois e os rebanhos. De dia, encontravam-se
os lavradores á entrada dos campos, a contemplarem pesarosos tamanhas
ruinas; e alguns, com os braços cruzados, meneando tristemente a cabeça,
exclamavam, abatidos pelo infortunio:

--Ora ahi está tanto trabalho perdido!...

Depois da chuva e das trovoadas vinham então as lufadas asperrimas do
norte. Parecia mesmo que era castigo! A ventania varejava impetuosamente
nos ramos nús do arvoredo; e, se algum sobreiro mais valente, que se
tinha arreigado mais á terra, tentava resistir, soprava de rijo um pé de
vento, arrancava-o, como se lhe mettesse pela raiz uma pá de ferro e...
derribava-o! Imagine-se o que succederia ás arvores mais tenras!

A tia Custodia da Moita trazia arrendada a quinta d'um proprietario do
Porto. Assim que chegava o mez das colheitas, a Custodia ou o marido
vestiam-se com o fato domingueiro e iam á cidade pagar a renda. E que se
não dilatassem muito tempo: quando não, era logo uma carta do senhorio
ameaçando-os de os pôr fóra. Morava elle na Reboleira, uma casa de
apparencia ordinaria, com uma escada muito ingreme, suja e pouco
allumiada. Os caseiros encontravam-o sempre a passeiar ao longo da sala,
que deitava para o rio, com as mãos enfiadas nos bolsos d'um casacão de
saragoça já velho e remendado. Até a Custodia dizia ás visinhas:

--Tão rico, o sr. Torres, e anda que nem um pobre de pedir!

O Torres era um celibatario, egoista, magro, esguio, nariz adunco, olhos
pequeninos e vivos como os de uma ave de rapina!

Depois da invernia, a primeira vez que se chegou o mez da renda é que
era vêr o Torres!

Entrou a tia Custodia, levando o netinho pela mão. Expoz ao senhorio a
sua desgraça, pedindo-lhe que por essa vez lhe perdoasse ou diminuisse a
renda.

--Adeus, minhas encommendas!--exclamava o avarento--De cantigas não como
eu! Se vocemecê não quizer, não falta por lá quem me amanhe as terras.

Para encurtar razões, a pobre mulhersinha saccou da algibeira um
embrulho, e entregou-o ao Torres. Eram dois pares de arrecadas e um
grilhão de ouro.

--Só o cordão, meu senhor,--dizia a caseira--tem quatro moedas!

O Torres observou o ouro, sopesou-o na mão; e, fechando-o n'uma gaveta,
disse:

--Pois bem! Quando me trouxer a renda, levará o penhor. Adeus! até ao
verão.

Depois que a Custodia saiu, um visinho tendeiro dizia contristado:

--A pobre de Christo até ia a chorar; e o rapazinho de vêr chorar a avó,
chorava tambem! Aquelle Torres, diabos o carreguem, é assim...

E mostrava a mão fechada, explicando:

--Um unhas de fome!

       *       *       *       *       *

No anno seguinte não appareceu na romaria de S. Torquato a tia Custodia
da Moita. Coitada! Como não queria confessar ao marido que tinha
empenhado as arrecadas e o grilhão, fingiu-se doente, e não houve forças
humanas que a tirassem de casa sem o seu ouro.

--Não que o seu homem--pensava a tia Custodia--se tal soubesse, e Jesus!
era capaz de ir ter com o senhorio e fazer alguma desordem.

--O meu Joaquim?--accrescentava ella.--Boa! Tem sessenta e cinco annos;
mas aquillo para armar uma bulha parece um rapaz!...

       *       *       *       *       *

_Post-scriptum_.

Agora veja-se o bom e o bonito!

Ha poucos mezes os jornaes do Porto prantearam a morte do sr. Torres,
capitalista abastado, _philantropo e respeitado por todos os
conhecidos_.

Esqueceu a confirmação das victimas, a quem elle emprestava a 28 por
cento!

Oh! mas era boa pessoa e caritativa, que até deixou o retrato á ordem do
Terço e duzentos mil reis para missas de doze vintens pela sua alma!...



O ANACREONTE DE CANDEMIL


Ao declinar do dia, pela tortuosa vereda que ia dar á estrada, seguia
vagarosamente o tio Ambrosio, que voltava dos campos, com a enxada ao
hombro. Como áquella hora silenciosa estava o caminho deserto,
ouvia-se-lhe de longe o bater compassado e sonoro dos tamancos nas
pedras da calçada.

Logo adiante do carvalhal, e antes de chegar ao cruzeiro confinante ao
adro, ficava a taberna. Eminente sobre a porta estava pendente o ramalho
verde de loureiro, que a viração fresca da tarde agitava, raspando-o
pelo cunhal da hombreira. Da frincha das portas mal cerradas sahia para
a penumbra crepuscular exterior uma restea de luz amarella, que se
estendia pela estrada até ao talude saibrento, que murava o caminho do
outro lado.

O tio Ambrosio endireitou com a taberna, impelliu uma das portas, e
entrou.

Dentro, abancados em torno da meza, estavam já os parceiros da bisca. A
taberneira, matrona de papeira, seio farto e braços arremangados,
assistia á conversa, sentada a um canto, com os cotovellos fincados no
balcão. Junto d'ella dormia pachorrentamente um gato maltez, zebrado,
encolhido sobre as patas, como um novello. Á entrada de Ambrosio o gato
ergueu repentinamente a cabeça e abriu os olhos espantados; mas, depois,
como a visita lhe não fosse estranha, foi deixando, pouco a pouco,
descahir a cabeça, fechou os olhos, e permaneceu na mesma posição, a
resonar.

Ao lado de cada freguez havia um copo de vinho; e a luz da candeia,
pendurada em cima, refrangendo-se na superficie do vidro, projectava, em
torno de cada copo, um circulo sanguineo.

       *       *       *       *       *

O tio Ambrosio de Candemil levava a vida airada a cantar e a beber!
Tinha já sessenta annos, cabellos brancos que nem uma estriga córada,
voz tremula, nariz rubro e verrugoso; mas que lhe sahisse a desafio a
cachopa mais palreira, que elle saltava logo:

/*
Não sei que mal deu agora
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
*/

E depois, com a jaqueta lançada ao hombro, o chapéo derrubado para a
nuca, ainda o Ambrosio cantava e foliava, como um rapagão de vinte
annos.

Em idade tenra e menos canceirosa, arraial em que elle não apparecesse,
era como se faltasse o prégador em festa de romaria! Esperava-se por
elle até ao fim. Espreitava um d'aqui, outro d'acolá; e, quando na
azinhaga apparecia o chapéo de sol de paninho escarlate, era logo uma
gritaria:

--Ahi chega o tio Ambrosio.

--Olha que tal elle vem!

E o guarda-sol oscillava de um e de outro lado, roçando pelos silvedos,
como a vela de um navio que bordeja á tôa, perdido o rumo!

       *       *       *       *       *

O tio Ambrosio entrára silencioso na taberna, accendeu um cigarro ao
pavio da candeia, e encostou-se a vêr jogar. Um dos freguezes fallou-lhe
em sentar-se.

--Hoje não--oppoz elle peremptoriamente.

--Só uma bisca, tio Ambrosio.

--Já disse--insistia elle, chupando o cigarro.--Nada; que eu bem sei
como o jogo é. Uma comparação: é como quando um homem trepa acima d'uma
cerejeira, que, em tirando por uma cereja, vem logo uma mão cheia
d'ellas.

Os outros, que já lhe sabiam a balda, calavam-se. O silencio
contrariava-o Precisava que insistissem, para assim desculpar a
consciencia. Ao cabo de dez minutos, atirava fóra com a ponta do
cigarro, e dizia:

--Com'assim vá lá. Mas só tres jogos, e arrumou.

Espevitava-se o morrão da candeia, cedia-se o logar respectivo, e então
é que era vêr a partida.

O jogo corria silencioso até quasi ao fim; mas, depois, o tio Ambrosio,
com as cartas abertas em leque na mão esquerda, e com uma carta
levantada na outra mão, olhava de soslaio o adversario da direita, e
principiava:

--Ora ponha-me aqui a bisca, ainda que lhe custe.

E batia com a carta sobre a meza de um modo triumphante.

O do lado jogava uma carta de trunfo. E o tio Ambrosio a tremer,
irritado, com o punho cerrado suspenso sobre as cartas, supplicava ao
jogador, que tinha defronte:

--Recorte, parceiro, recorte.

--Recorte--repetia o outro por entre dentes,--recorte o quê? olhe.

E jogava a bisca.

O Ambrosio, então bebia de um trago meio copo de vinho, e exclamava
desesperado:

--As cartas teem o demo!

No fim perdia o jogo; e, como os adversarios renovavam o vinho, e elle
enchia o copo que lhe pertencia, perdia o juizo.

Havia já muito tempo que lhe era difficil topar na terra um parceiro
amigo para a sueca.

--Adeus!--diziam-lhe elles, encolhendo os hombros.--Quando você pega
n'um baralho, até parece que lhe dá o trangulomangulo. Coisa assim!...

O vicio da jogatina passou-lhe ao cabo d'estes repelões; mas, por
desgraça, foi procurando no copo a distracção que lhe faltava no
baralho. D'ahi em diante, diga-se em abono da verdade, o tio Ambrosio só
cantava e bebia.

_Canta que logo bebes_, diz o rifão.

Com o tio Ambrosio, porém, mudava o caso de figura. Bebia primeiro,
bebia depois, bebia no fim; e desatava a cantar que nem um rouxinol.

Ora, depois d'isto, em que tenho a gloria de ser o Plutarcho d'este
heroe, vejam se andei mal, chamando-lhe Anacreonte de Candemil.

A distancia que vae de Ambrosio a Anacreonte mede-se pela que vae do
tamanco transmontano á sandalia grega, das cêpas tortas d'Amarante aos
vinhaes racimosos de Chios, das faldas agrestes do Marão ás formosas
marinhas da Jonia, _provincia das violetas_.

       *       *       *       *       *

Pelos primeiros dias de maio, antes das festas do Espirito Santo, o céo
estava sereno e azul, as arvores frondentes, e na ramaria dos bosques
gorgeiavam os melros. Havia flôres nos prados, flôres nas encostas,
flôres por toda a parte. A natureza enfeitava-se como noiva graciosa que
se prepara alegre para o festim dos esponsaes.

Pois, quando havia tanta luz, tanta vida, tanto amôr, gorgeios pelos
ninhos e rosas pelos silvados, era triste pensar que alguem estava para
deixar a vida!

Logo de madrugada o sr. abbade atravessou da residencia para o adro,
antes da primeira missa do dia. O sino principiou a dar o signal do
Senhor fóra.

E d'ahi por alguns minutos, o Viatico seguia por um atalho, ao canto
plangente do Bemdito, entoado em côro pelas mulheres, que caminhavam
atraz, acompanhando o Sagrado.

O pallio parou á porta da casa em que morava o tio Ambrosio de Candemil.

Dentro, sobre uma arca de castanho, revestida com toalha de linho,
estava um crucifixo ladeado de duas tocheiras de chumbo. A um canto da
sala, o velho Ambrosio agonisava reclinado no espaldar do leito. Não
tinha na face a alegria expansiva dos ultimos dias, em que cantarolava
na taberna. Estava pallido, os olhos amortecidos, as faces descarnadas,
a bocca enviezada de paralytico.

Foi confessado e sacramentado.

O abbade abeirou-se lentamente do enfermo, com o ciborio nas mãos.
Preparou-o solemnemente para o trespasse.

Quando lhe ungia os labios com os santos oleos, murmurando as palavras
do ritual:--_Per istam unctiouem indulgent tibi Dominus quid quid
delinquisti per gustum_, o Ambrosio fincou os punhos na enxerga,
ergueu-se com esforço e ancia, volveu os olhos em torno do leito, como
quem desperta de um sonho, e inclinando-se para o abbade, perguntou-lhe
com voz debil e convulsa:

--É vinho?

E descahiu lentamente para traz, com um sorriso de bemaventurado a
radiar-lhe a fronte--como um justo que morre na esperança de encontrar
na vida d'além-tumulo as adegas bem providas d'Amarante!

_Talis vita, finis ita_.



O ABANDONO DO MOINHO


Á porta da azenha estava o macho íntonso, preso pelo cabresto a uma
argolla da parede.

Emquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado,
estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava
o atalho.

De entre o ruido trémulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas
pennas do rodisio, em baixo, ouvia-se gritar lá dentro:

--Anda d'ahi, que são horas. Avia-te.

Depois, appareceu á porta o moleiro, com o chapéo enfarinhado caído para
o hombro esquerdo, segurando no hombro direito o taleigo da fornada.
Vinha ainda a gritar:

--Despacha-te, rapariga. Mexe-te, filha.

E atirou com o folle para cima da besta. A moça veio depois, e
carregou-a com um folle do outro lado. Atiraram-lhe em seguida a cilha
para cima; e o moleiro com o joelho fincado na barriga do macho,
principiou a apertar a carga, torneando o arrocho com esforço.

--Prompto! Põe-te já a caminho, que eu não me delato, Therezinha.

Apenas se julgou fóra do alcance da vista do pae, que se deixou ficar á
porta, com uma perna cruzada sobre a outra, o chapéo braguez derrubado
para os olhos, a vel-a subir a encosta, a rapariga saltou para cima do
macho, ageitou-se no meio dos taleigos, e continuou pelo atalho acima, a
cantar:

/*
Ao passar hoje no rio
Vi nas aguas o teu rosto;
Cuidei que ias na levada...
Ai! coração que desgosto!

E ao vêr o teu rosto ali
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrella
Tivesse cahido ao fundo.
*/

O moleiro voltou para dentro, a prover a moega de grão; enfiou depois a
jaqueta de cotim axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha a um
canto, fechou por fóra a porta da azenha, arrecadou a chave, e abalou na
piugada da filha.

Assim que chegou a meio do atalho, cortou á esquerda por uma quelha
pedregosa, atravessou por um carreiro, que costeava uma bouça; e,
fincando as mãos no muro tosco de rebos, saltou de um pulo para o meio
da estrada.

Corriam os primeiros dias de março.

Como tinha descampado, havia pouco tempo, os caminhos estavam
lamacentos, sulcados pelas rodas dos carros; e nas terras baixas viam-se
ainda as aguas da chuva empoçadas e cobertas de limo. O céo era de um
azul crystalino, a atmosphera muito limpida; e, ao meio dia, quando o
sol cahia d'alto nos prados, até parece que as rôxas previncas, as
flôres amarellas do trevo e as margaridas, retraíam as corollas ao peso
abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pecegueiros,
que já floreciam, os melros assobiavam alegres, e no fundo azul do
firmamento destacavam-se duas borboletas brancas que voavam d'entre os
silvados, subindo, subindo sempre, a tremer, n'um raio de sol doirado!
Oh! era encantador!

O moleiro apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante,
collocando a mão sobre os olhos, como uma palla, para vêr se lobrigava a
filha. A distancia de trinta metros a estrada volteava para a direita.
Uma copada deveza de sobreiros, ao fundo, não o deixava enxergar para
além. Por isso, foi continuando por ali fóra, apertando mais o passo,
com os braços bamboleantes e a esbofar de calor.

D'um lado e d'outro, nos campos, fazia-se a lavoura. Duas juntas de bois
castanhos, aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado, que ia
levantando e revolvendo a leiva. Áquem e além, no declive do monte,
d'entre a verdura tenra da enfesta, alvejavam as frontarias caiadas
d'alguns casalejos, batidos do sol do meio dia. Era um calor de rachar!

D'um atalho, que ia dar á egreja, surgiu o sr. abbade montado na sua
egua, oh! uma boa egua d'abbade, gorda, pacifica e mansa que nem uma
ovelha. Sua reverencia vinha abrigado por um enorme guarda-sol de
panninho azul, e o seu ventre redondo e farto oscillava pachorrentamente
ao chouto pesado da cavalgadura.

--Ó José moleiro,--chamou elle com voz de papo.--Eh! homem! Tu vaes á
cata dos francezes?

O moleiro descobriu-se respeitosamente, e, enxugando o suor da testa á
manga da vestia, respondeu-lhe:

--Vou vêr se topo a minha Thereza, que foi levar a fornada da outra
banda, a casa da morgada.

O abbade, do alto da egua, continuou:

--Vi-a hontem; e olha que está féra e bonita.

--Escorreitinha é ella, graças a Deus,--disse o José, seguindo ao lado o
passo da cavalgadura.

--E é moça de tino,--proseguiu o padre circumspectamente,--mas tem-me
cuidado n'ella, que olha o demo, José, quando as arma, escolhe sempre do
melhor, ouviste?

Mais adiante, ao passarem por um quinchoso, a cujo muro estava debruçada
uma rapariga esguedelhada, com os braços pendentes para fóra,
perguntou-lhe o abbade:

--Que é de teu pae, ó cachópa?

--Está a trabalhar nas obras do rio, sr. abbade,--respondeu ella
córando.

O abbade esporeou a egua, e disse para si:

--Elle é bem melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem duvida.

--Pois quant'é!--concordou o moleiro, acenando affirmativamente a
cabeça.

E continuaram ambos pela estrada, até a uma cangosta, por onde o abbade
metteu, deixando só o José moleiro.

O caminho agora descia, até ao rio, onde andavam as obras da ponte nova.
Já de longe se avistavam os trabalhadores.

Havia ali um grande movimento de gente. Por entre o tronco nú dos
salgueiros, viam-se já as primeiras pedras do arco, subindo pelo
_simples_ de madeira, que se levantava d'uma á outra margem.

Uma fileira de mulheres e creanças passavam constantemente da draga do
areial com cestos carregados á cabeça. Antes de chegar ao rio, a estrada
apparecia toda coberta de cascalho, que reluzia á luz intensa do
meio-dia.

Como as aguas tinham diminuido, uma barca com linguetas levadiças á prôa
e á pôpa, que servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava
da outra banda, presa por amarras aos troncos de dois amieiros. As
pessoas que tinham de atravessar o rio iam pelas alpondras desanegadas;
mas quando acontecia apparecer uma cavalgadura, então era preciso que os
trabalhadores lançassem sobre as pedras duas pranchas largas, que
serviam de passadiço.

Quando a filha do moleiro chegou ao rio e ia a metter o macho na agua,
um dos homens, que ali estava, gritou-lhe:

--Não mettas o burro á agua, rapariga; olha que te afogas e mais elle.
Espera que eu lá vou.

A rapariga soffreou o macho e esperou.

Ao aproximar-se o homem com a prancha de pinho levantada ao alto, o
macho espantou-se, empinou as orelhas, recuou de subito e, de um salto,
atirou comsigo e com a rapariga ao rio.

O trabalhador, que viu aquillo, principiou a gritar por socorro.
Accudiram os outros; mas, quando chegaram, o macho tinha seguido para o
meio, onde a corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A
filha do moleiro caíu para o lado, estonteada do sobresalto e da
sensação do frio; e os homens que lhe gritaram de terra viam-na seguir a
cavalgadura com a mão presa na extremidade do cabresto.

N'esse momento, um homem que corria, muito afflicto, pela vereda abaixo,
logo que chegou á margem, atirou com o chapéo para a banda, e lançou-se
de repente ao rio; mas apenas a agua lhe bateu pelo tronco, estremeceu
todo, bracejou um instante e appareceu estirado á flôr da agua, a boiar,
com as faces rôxas da congestão.

       *       *       *       *       *

Quando ia vêr as obras do rio--era esse o meu divertimento--façam ideia
como eu fiquei!

Sobre uma escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos
trabalhadores do rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro,
com a bocca entre-aberta, os olhos vidrados e os labios rôxos.

Mais adiante, a dez passos, no meio da agglomeração curiosa de homens,
de mulheres e de creanças, que commentavam e lamentavam o caso, descobri
a desgraçada Therezinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de
chita collada ao corpo pelo peso da agua, deixando vêr o contorno
juvenil dos seus membros inteiriçados.

Ao lado, o macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos
fitos no chão, estava n'aquelle doloroso abatimento, em que deve
precisamente ficar um homem, depois de se lhe ter disparado a espingarda
contra o peito de um amigo!

E até parece que, diante d'aquelle quadro funebre, os salgueiros do rio,
debruçando-se melancholicos sobre as aguas, entoavam, balouçados pela
aragem, uma vaga lamentação de tristeza!

       *       *       *       *       *

Ao passar, alta noite, pelo atalho da azenha, ouvia-se lá dentro o ruido
trémulo da mó, o marulho triste da levada; e, como fazia um luar de
primavera, vi destacar-se claramente no fundo azul do céo, agachada
sobre o esgalho nodoso de uma figueira, que ficava ao lado--em vez do
alegre rouxinol, que ali cantava todas as noites--uma coruja muito
grande, a piar, a piar...



O SONHO DA NOVIÇA


Quando Gertrudes chegou á portaria acompanhada da tia e do primo, no
relogio da torre do convento bateram pausadamente cinco horas da tarde.

O mosteiro de Santa Clara ficava situado no respaldo de uma collina e
emboscado n'uma deveza de carvalhos.

Era nos primeiros dias de novembro. O céo, toldado de nuvens, que
corriam para o norte batidas de um vento aspero, estava de uma tristeza
indefinivel. Ás vezes, uma nuvem mais densa, côr de chumbo e pesada,
escurecia o firmamento, e uma chuva miudinha, como um borrifo, cahia
então obliquamente. Quando passava a chuva, um pé de vento forte e
rasteiro levantava em redemoinho as folhas amarellecidas do outomno, que
alastravam o chão.

A fabrica do convento era pobre, de frontaria humilde; e as paredes
escuras e deterioradas pelo decurso dos annos accentuavam o conspecto
melancholico e lugubre da clausura.

Em um nicho fronteiro á porta da entrada, apparecia a imagem de Santa
Clara, vestida com o habito de freira, os olhos extacticos levantados
para o céo, suspendendo, com fervor ascetico, nas mãos brancas, uma
custodia doirada. Debaixo do habito appareciam os pés da santa, quasi
nús, crusados no peito pelos atilhos amarellos das alpargatas.

Diante do nicho, uma lampada de ferro, pendente d'um carritel, oscillava
como um thuribulo; e a luz tenue da lamparina bruxuleava a espaços,
ainda esmorecida na claridade poente do dia.

Antes d'entrar, esteve Gertrudes com a cabeça descahida sobre o hombro
da tia, a chorar; depois, cingiu-a estremecidamente no derradeiro
abraço, soluçando:

--Adeus, minha tia, adeus!

Aproximou-se de Matheus, que assistia do lado, pallido e trémulo,
áquella separação, abriu os braços para o apertar, e disse-lhe com voz
debil, fitando n'elle os olhos rasos de lagrimas:

--Matheus!...

E transpoz soluçante e opprimida o limiar do convento.

       *       *       *       *       *

A communidade viera receber á entrada, segundo as praxes conventuaes, a
soluçante noviça. As freiras professas e as recolhidas estavam dispostas
em duas filas, tendo á frente a madre-abbadessa, já muito velha,
arrimada a um baculo de prata lavrado.

Aquella sala de recepção era humida, espaçosa, fria e soturna.
Entrava-lhe a luz tenue coada pelas rexas oxidadas de duas frestas, que
davam para o claustro. Ao fundo, sobre um altar e no meio de duas jarras
com palmas e flôres artificiaes, estava a imagem de um Christo de metal
amarello, com os braços abertos cravados nos braços de uma cruz de
jacarandá. No peito nú e descarnado do Christo reflectia-se, como uma
chaga viva, a luz vermelha da lampada de latão suspensa do docel.

A escrivã passou o braço com protectiva ternura á cinta de Gertrudes, e
encaminhou-a para diante da abbadessa, dizendo-lhe a meia-voz:

--Beije a mão á nossa madre-abbadessa, menina.

Gertrudes baixou os labios á mão trémula da freira, e recebeu n'uma
postura humilde, com os olhos fechados, o abraço receptivo. Em seguida
abraçou-a a escrivã; e depois, de abraço em abraço, foi Gertrudes
passando todas as freiras e senhoras recolhidas até á derradeira.

       *       *       *       *       *

Abria para a cêrca a janella estreita da cella de Gertrudes.

Avistava-se ao longe, recortada no azul limpido do céo, a cumiada
alvacenta e escalvada de uma serra.

Mais abaixo, por entre a verdura da encosta, descia a estrada em largas
curvas, como uma fita que se vinha desenrolando e alargando pelo monte.

Ao meio-dia, quando o sol cahia perpendicular, a diligencia subia
vagarosamente, levantando espessas nuvens de pó. Viam-se os almocreves,
que vinham á cidade, trazendo pela arreata a recova dos machos.

Em madrugadas serenas, ouvia-se até o chiar longinquo dos carros de bois
pelos atalhos das aldeias, o telintar monotono das campainhas dos machos
e o estalido secco do chicote da mala-posta.

Um dia, logo que sahiu do refeitorio, emquanto as freiras se recolhiam
ás cellas para dormir a somnata da sésta, dirigiu-se Gertrudes para a
cêrca.

Era uma hora da tarde.

Na horta, as largas folhas das couves pendiam desmaiadas com o calôr
intenso da estiagem. Na ramaria verde do pomar rumorejava uma viração
agradavel. Em torno á folhagem escura das laranjeiras, na vibração da
luz, agitava-se uma nuvem transparente de _ephemeros_.

Por debaixo das latadas passeiavam de braço dado algumas meninas
recolhidas.

Gertrudes seguiu sósinha, cosida com o muro, por onde havia uma esteira
de sombra. Ao fundo da cêrca, encostado ao tronco de uma magnolia, que
projectava no saibro secco e faiscante da rua uma larga sombra, havia um
banco de pedra.

Gertrudes sentou-se, tirou do bolso do avental um livro brochado, e
abriu-o cuidadosamente, retirando com as pontas dos dedos, d'entre as
folhas marcadas, um grande _amôr-perfeito_ já mirrado e desbotado.

Ao cabo de alguns minutos de concentrada leitura, ouviu pipillar em
cima.

Na extremidade de um ramo, que balouçava de leve, chilreava um
passarinho, inclinado para baixo, entreabrindo assustado, com fremitos,
as azas. Gertrudes poisou o livro de banda, subiu ao banco, e,
fincando-se na ponta dos pés, aprumou-se para espreitar.

Entallado n'um esgalho e meio occulto na folhagem, havia um ninho fôfo e
tépido, do qual surdiam duas cabecinhas pennujentas. Poisada no rebôrdo
do ninho, estava uma toutinegra, ministrando o alimento aos filhos.

Gertrudes estava encantada! Até suspendia a respiração, com receio de
perturbar a tranquillidade do ninho!

       *       *       *       *       *

Á noite, com a cabeça deitada sobre a brancura virginal do travesseiro,
a noviça suspirava e sorria, acalentada n'um sônho de creança!

Ora vejam!

Estava de pé, sobre o banco da cêrca, espreitando o ninho da magnolia.
Os passarinhos implumes abriam soffregos o bico para receberem da mãe o
alimento.

Gertrudes identificava-se tanto com o que via, que--em sonho--chegou a
sentir o goso ineffavel da mãe que administra o sustento aos filhos. As
cabeças pennujentas dos passaros do ninho--que graça!--já lhe pareciam
duas cabecinhas loiras de creança deitadas no mesmo berço!

E o passaro que chilreava em cima, alcandorado no ramo superior, foi
perdendo, pouco a pouco, a fórma que tinha e--como a gente vê n'um
quadro dissolvente--foi transformando a cabeça pequenina de ave n'uma
cabeça de homem, com cabellos annellados, os olhos pretos e vivos, o
bigode farto, e um dôce sorriso de pae...

E entreviu, então, Gertrudes, atravez d'uma nuvem côr de rosa, em que o
seu espirito se emballava, a imagem clara do primo Matheus, que a
contemplava, a sorrir!...


FIM.



INDICE


A guerra
A volta das andorinhas
A sésta do avô
O Gallo preto
Está no céo!
O retrato dos paes
O sermão
Ás cerejas
O jantar do Natal
Vinhos e aguas-ardentes
As arrecadas da caseira
O anacreonte de Candemil
O abandono do moinho
O sonho da noviça



COMPANHIA PORTUGUEZA EDITORA

PORTO


*Alberto Braga*

     *Novos Contos*. 1 vol. brochado 500


*D. Maria Amalia Vaz de Carvalho e Gonçalves Crespo*

     *Contos para nossos filhos*. 8.^a edição ilustrada com 8
     cromos-tipograficos e 92 gravuras intercaladas no texto, 1 vol.
     encadernado 800


*Teofilo Braga*

     *Contos Tradicionaes do Povo Portuguez*, com um estudo sobre a
     novelistica geral e notas comparativas. 2 vol. em brochura 1$000


*F. Xavier de Ataide Oliveira*

     *Contos Tradicionaes do Algarve*. 2 vol. brochados 1$000


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     *Contos e Pontos*. 1 vol. de 342 pag. brochado 500


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     *Contos para as creanças*. 1 vol. brochado 300 Encadernado 600


*Maria Pinto Figueirinhas*

     *Contos das Creanças*. 1 vol. brochado 300
     *Livro (O) das Maravilhas*. 1 vol. brochado 300 Encadernado 600





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