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Title: Alguns homens do meu tempo - impressões litterarias Author: Carvalho, Maria Amália Vaz de, 1847-1921 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Alguns homens do meu tempo - impressões litterarias" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Agosto 2008) Maria Amalia Vaz de Carvalho Alguns homens do meu tempo Maria Amalia Vaz de Carvalho Alguns homens do meu tempo A ILL.^ma E EX.^ma SR.^a D. MARIA MANOELA DE BRITO (Marqueza de Pomares) _Minha querida Manoela_. Para que um livro merecesse o teu nome inscripto na sua primeira pagina, seria indispensavel que esse livro fosse bello na fórma e sincero na intenção. O modesto volume, que venho offerecer-te, só o segundo requisito póde ter a aspiração de realisar. Na nossa estreita e leal amisade de alguns annos, amizade em que tens posto os carinhos de uma adorada irmã, eu aprendi a respeitar-te e a amar-te como a um d'esses raros typos femininos de sincera virtude despretenciosa, de alto pensar e de sensibilidade vibrante, que alliam n'uma harmonia felicissima as qualidades d'um grande coração com as faculdades d'um levantado espirito. Pensas e sentes; comprehendes com singular subtileza e com ampla e ineffavel bondade, tens a curiosidade intelligente, e a sympathia larga e fecunda, que é de todos os predicados d'um entendimento o mais precioso e o mais raro... Nunca estive perto de ti que me não sentisse _melhor_; nunca ouvi a tua voz, que não conhecesse de que fundo de sinceridade e de força moral ella provinha... Perdoa-me se, pensando a teu respeito isto e mais do que isto, te faço uma offerta de tão pouca valia. Muitos dos _estudos_ incompletissimos, que compõem este livro, foram escriptos á sombra chilreada e fresca das arvores da tua senhorial Portella--na companhia grata, carinhosa, dos dois hospitaleiros donos d'essa vivenda pittoresca e lindissima. Quantas vezes ahi tenho chegado empallidecida, extenuada, doente e triste, e quantas vezes de lá tenho voltado mais vigorosa na alma e no corpo, trazendo no coração, como um balsamo e como um viatico, a imagem d'essa nobre vida de caridade e de abnegação, que partilhas com o companheiro do teu destino, e em que ambos são um suggestivo exemplo e uma excepção inspiradora... Se outro valor não tivesse para ti este pobre livro, que tu amas porque é meu, bem o sei,--teria o valor de ter sido quasi todo escripto ao pé das grandes arvores que deram sombra aos jogos da tua infancia, e que tu decerto desejarias que emballassem, com a musica harmoniosa e calmante das suas ramagens murmuras, com o gorgeio alegre dos seus ninhos primaverís, o supremo somno que dormirás mais tarde, na serena beatitude das consciencias boas!... Lisboa. Dezembro 1888. Maria Amalia Vaz de Carvalho. _GONÇALVES CRESPO_ As _Miniaturas_ e os _Nocturnos_ são incontestavelmente, e no dizer de auctorisados criticos, dois livros, que pódem classificar-se entre as perolas mais doces, mais preciosas, mais irisadas, da moderna litteratura portugueza. Leva-me hoje um pendor irresistivel a fallar d'esses dois livros, conhecendo que o assumpto, para mim, é a um tempo muito attrahente e muito difficil. Dir-se-ha, que não póde fallar com justiça do poeta, aquella, que á sua memoria querida está ligada por tão estreitos laços; mas por que elle foi o companheiro da minha vida, o mestre e educador do meu espirito, o amigo inolvidavel cuja morte deixou orphãos os meus filhos, não terei eu direito de ajuntar a minha voz humilde ás vozes, que no paiz em que eu nasci, e no imperio em que elle nasceu, o proclamam um dos mais delicados poetas modernos, um dos cinzeladores mais primorosos da poesia portugueza, um _parnasiano_ no bom sentido da palavra, quer dizer, juntando como Coppée, mas em muito mais alto gráu do que este, a suavidade, a melodia, a correcção do metro, ao sentimento profundo, á comprehensão clara, nitida e perfeita de todos os segredos complexos da alma contemporanea? Parece-me que seriam rigorosos de mais os que tentassem coarctar-me esse direito, e que seria demasiada docilidade da minha parte o sujeitar-me a censores tão intransigentes e tão duros. De mais, não escrevo eu exclusivamente para ser lida por mulheres? E onde está a mulher que me condemne n'este ponto? Não ha nenhuma, tenho a certeza d'isso. Gonçalves Crespo não escreveu senão as _Miniaturas_ e os _Nocturnos_. Foram os versos da sua mocidade, colligidos debaixo d'aquelle titulo, que m'o fizeram conhecer e admirar; os _Nocturnos_ póde bem dizer-se que foram escriptos ao meu lado. A obra do poeta tem pois para mim duas faces distinctas, mas para julgar as _Miniaturas_ sinto-me por assim dizer mais independente e mais livre. Esse livro foi a revellação primeira, a revellação subita que eu tive d'aquelle, que treze annos depois, quasi que dia por dia, me expirava nos braços, pronunciando o meu nome, que a sua alma angelica, tão depurada pelo soffrimento, tão sanctificada pela resignação, enchia de bençãos. Foi em 1870 que as _Miniaturas_ viram a luz pela primeira vez, revellando a Portugal todo e a todo Brazil, que um poeta original, delicadissimo, correcto até á perfeição, que um artista de primeira plana, um verdadeiro artista de raça, acabava de nascer para a litteratura portugueza. Foi esse um bello periodo da curta vida do poeta, hontem desconhecido ainda, hoje acclamado por todos os que tinham no espirito uma scentelha de gosto, e no coração um vislumbre de sensibilidade. Sobre a banca de trabalho de todas as mulheres distinctas, entre o cestinho de bordado e a jarra de violetas ou de rosas, achava-se então o gracioso volume das _Miniaturas_, e muita voz feminina tremula de commoção, e muita voz de artista, ebrio da belleza da fórma, repetia com enlevo essa doce elegia adoravelmente sentida, que se chama _Alguem_, esse poema de inconsavel e vaga tristeza, que se intitula: _Arrependida_, e a _Noiva_, e o ramo de saudades e de lyrios entretecido sobre o tumulo de _Modesta_ e a esplendida _Nera_, e a esculptural e voluptuosa _Sara_, e a ineffavel e consoladora _Transfiguração_. Quantos aspectos do mesmo talento! quantas fórmas da mesma phantasia seductora! quantas expansões da mesma sensibilidade fina, subtil, quasi doentia, de requintada que era! Muito longe do poeta, em um palacio meio arruinado, affastada de todo o convivio social, entre as verduras, as sombras, as caricias inspiradoras da Natureza inculta, vivia então uma creança de alma ardente, de sonhadora phantasia, de indomito imaginar, vizionaria juvenil, de que hoje--taes são as modificações que o tempo faz!--existe apenas, alterado ainda assim pelos annos e pelas agonias, o corpo envelhecido cuja mão escreve estas linhas. Muitos teem contado essa historia a que a Morte veiu dar o seu tragico remate. Para que alludir a ella aqui? E que importam ao mundo as alegrias e as lagrimas que elle não sentiu nem chorou? A verdade é que hei de lembrar-me sempre, tão viva se me conserva no espirito essa impressão dominadora, do que eu senti ao folhear pela primeira vez as _Miniaturas_, livro de um poeta para mim inteiramente desconhecido havia algumas horas apenas. Pareceu-me que era um poeta como aquelle, que eu positivamente tinha esperado havia muito, e que elle chegára; que a minha aspiração indefenida e vaga se tinha realisado. Mais contentamento do que surpreza. A doçura dos que alcançam a praia que tinham desejado em longos dias de navegação monotona. _Porque tardaste tanto, ó poeta? Eu te esperava Na minha solidão!_ faz elle dizer mais tarde á creança, que eu já fui, exprimindo assim, na sua simplicidade tão artistica, o sentimento de confiante alegria que a minha alma experimentára ao conhecel-o. Pois bem; esse agudo prazer da intelligencia, completamente, absolutamente satisfeita no goso d'uma determinada obra d'arte, sinto-o eu hoje como no primeiro dia, ao ler as _Miniaturas_. O talento de Gonçalves Crespo soffreu com a idade, com as mudanças que se deram no seu destino, com a acção tão complexa e tão profunda que a Vida exerce em todos nós, transformações importantes e progressivas; no emtanto para mim, e para muitos dos amigos dilectos do poeta, a mais encantadora, a mais perfumada efflorescencia do seu espirito raro, será sempre aquelle livro juvenil. Muito mais pessoal que os _Nocturnos_, o volume das _Miniaturas_ lança uma luz mysteriosa e dulcissima sobre a figura singular, um pouco extranha, que foi Gonçalves Crespo. Muito ao contrario do que geralmente succede, este artista, tão nervoso e vibratil, teve a primavera da vida nublada por todas as sombras, e o estio, de que a morte desfolhou as ultimas rosas, illuminado por todas as suaves e tranquillas alegrias, que a vida póde conceder áquelles que mais ama e a quem mais cedo tenciona abandonar. É por isso que os _Nocturnos_ de uma belleza de fórma incomparavel, tocados ás vezes por um largo sôpro de epopeia, não teem senão a espaços, a musica dolente, tão enternecida e languida, tão acariciadora das almas tristes, que se prolonga e vibra em longos echos melancolicos nas paginas das _Miniaturas_. Veja-se por exemplo _Alguem_, uma das peças que mais sympathias conquistaram ao nome do poeta: Para alguem sou o lyrio entre os abrolhos, E tenho as formas ideaes do Christo; Para alguem sou a vida e a luz dos olhos, E se na terra existe é porque existo! Esse alguem que prefere ao namorado Cantar das aves minha rude voz, Não és tu anjo meu, idolatrado! Nem, meus amigos, é nenhum de vós! Quando alta noite me reclino e deito Melancolico triste e fatigado, Esse alguem abre as azas no meu leito, E o meu somno deslisa perfumado. Chovam bençãos de Deus, sobre a que chora Por mim, além dos mares! Esse alguem É de meus dias a esplendente aurora, És tu, dôce velhinha, ó minha mãe!... N'estas quatro estrophes está retratada uma alma, estão contadas as tristezas d'um destino, que mercê de Deus se desannuviou mais tarde, mas no qual então se condensavam todas as melancolias intimas, todas as duvidas sombrias, todas as amargas e silenciosas agonias da isolação. Nem a mulher que elle ama, nos passageiros caprichos da mocidade, nem os amigos que o cercam, lhe matam a sêde de afféctos que o devora e tortura; a mãe, a _dôce velhinha_, essa está longe, essa chora além dos mares, essa nem o vê, nem o acaricia, nem dissolve ao fogo dos seus beijos os gêlos da duvida, que tão cêdo crestaram todas as flôres da mocidade na alma de Gonçalves Crespo. Nunca houve ninguem mais modesto, mais inconsciente do proprio valor, mais desconfiado de si mesmo, mais dolorosamente torturado pela ideia das suas imperfeições reaes ou imaginarias. Os requintados suplicios de que esta desconfiança foi origem, manifestam-se bem mais nas _Miniaturas_ do que no ultimo volume do poeta; por isso n'ellas a nota pessoal é mais vibrante, a commoção, por ser mais sincera, é mais directa e mais contagiosa. Como documento psychologico para auxiliar a critica do poeta e do artista, as _Miniaturas_ são de um valor incomparavel. II A poesia de Gonçalves Crespo tinha origens complexas que é mister analysar, para comprehender completamente a belleza e a sinceridade palpitante da sua obra. Nascido no Brazil, n'esse clima ardente e languido, no seio d'essa natureza exhuberante, que muito mais forte do que o homem, se lhe impõe e o subjuga fatal e irresistivelmente, Gonçalves Crespo foi transplantado,--pobre e delicada planta friorenta e morbida,--para uma região em que nunca se poude acclimar bem. D'aqui, a doçura nostalgica, a saudade soluçante, que parece evolar-se como um aroma capitoso das suas poesias _brazileiras_, taes como a _Sésta_, _Na Roça_, _a Canção_, _Ao meio dia_, e mais tarde nos _Nocturnos_, as _Velhas Negras_, etc., etc. Nem Gonçalves Dias, nem Alvares de Azevedo, nem Casimiro de Abreu, se deixaram assim inspirar, tão sincera e vivamente, pelas scenas familiares da vida brazileira, cuja graça pittoresca e especial dá um cunho inteiramente novo aos versos de Gonçalves Crespo. E que o poeta tinha saudade--uma saudade que lhe estava no sangue, que era parte do seu temperamento, saudade que era um instincto contra o qual elle luctava em vão--de todos os esplendidos aspectos com que os seus olhos, ao abrirem-se á luz, se tinham inconscientemente embriagado. Um dia de agosto, tropicalmente calmoso, passado no campo, á sombra das arvores, dava-lhe uma excitação penetrante, envolvia-o n'um banho de sensações voluptuosas. Sem mesmo dar por isso, era a lembrança tão viva e tão dominadôra da patria longinqua, que produzia em todo o seu sêr este effeito anormal. É isto ainda que se traduz na melancolia sonhadora e vaga, d'esse pequeno poema, em que eu já fallei, intitulado as _Velhas Negras_. Conheceram tanto dono!... Embalaram tanto somno De tanta sinhá gentil!... Pódem as tristezas mudas d'uma raça escrava ser notadas com uma subtileza maior, com uma doçura mais ideal!... A simplicidade que dá estes effeitos é que é a grande arte. Ao longe, evocados magicamente pela voz do poeta, surgem os brutaes senhores, para quem as tristes filhas da raça negra foram o joguete d'um instante, a distracção d'uma hora de tedio ou de preguiça, e ellas, inconscientes, vagamente assombradas, tendo o pasmo silencioso d'um destino extranho, a angustia sem expressão e sem formula d'uma esmagadora injustiça, passaram de mão em mão, cumprindo o seu cruel fadario, e embalando de vez em quando nos braços emmagrecidos ou vergastados pelo azorrague do feitor, uma creança loura, rosada e _branca_ que lhes sorria, dando-lhes n'esse sorriso a indefinida revellação de alguma cousa de superior, de caricioso, de celeste!... Só n'um coração de filho, e de filho saudoso, de filho amantissimo, pódem retratar-se, tão vivamente illuminadas, pódem destacar-se com tão magistral relevo, scenas entrevistas um dia, nas horas da imprevidente e distrahida infancia. E a _Sésta_? Qual é a leitora que não ficou sabendo a _Sésta_ de cor! Na rêde, que um negro moroso balança, Qual berço de espumas, Formosa creoula repousa e dormita, Emquanto a mucamba nos ares agita Um leque de plumas. Na rêde perpassam as tremulas sombras Dos altos bambús; E dorme a creoula de manso embalada, Pendidos os braços da rêde nevada Mimosos, e nús. ..................................... ..................................... O vento que passe tranquillo, de leve, Nas folhas do engá; As aves que abafem seu canto sentido; As rodas do engenho não façam ruido, Que dorme a Sinhá. Como se vê bem que este languido rythmo, a vaga suavidade d'estes versos, parecem feitos para acompanhar o movimento cadenciado e lento da rêde, e embalar o sonho de alguma filha gentil d'esse paiz, em que o clima dá ao corpo as preguiças infinitas, e a natureza luxuosa e desbordante dá ao espirito a mollesa, o cançasso fatal d'uma permanente lucta, na qual o homem é sempre vencido pela força inconsciente das cousas!... Em Gonçalves Crespo havia pois a indolencia atavica, que elle só por extraordinario e doloroso esforço era capaz de vencer temporariamente. Por isso, emquanto as circumstancias excepcionalmente favoraveis lhe não amenizaram a existencia, elle viveu sempre em absoluto desaccordo com o seu meio. A _lucta pela vida_, essa lei brutal das sociedades modernas, esmagava-o a elle, filho preguiçoso dos tropicos, artista quasi feminino, pela graça delicada e fragil do engenho, pela caprichosa subtileza da inspiração. E digo muito de proposito _inspiração_, apesar da palavra andar proscripta dos modernos codigos artisticos. Gonçalves Crespo trabalhava minuciosamente, como o mais esmerado operario, a factura dos seus versos, mas necessitava d'essa influencia qualquer, superior e extranha, que póde vir ao artista do seu mundo intimo, ou do mundo que o rodeia, que póde ser determinada pelo estado especial dos seus nervos, ou que póde provir de mil causas externas e independentes da sua vontade. III Quando elle escreveu as _Miniaturas_, dando-nos nas confidencias talvez involuntarias da sua alma, a revellação d'um artista adoravel, duas grandes tristezas o opprimiam, tristezas que elle, seguindo talvez sem dar por isso, o fecundo conselho de Goethe, transformou em poesia, que será lida emquanto se fallar e se escrever portuguez. Eram-lhe hostis o meio physico e a atmosphera moral em que vivia. Para ser grande na Arte, creio eu, que é preciso antes de tudo, ser sincero. Nunca ninguem logrou traduzir bem as dôres que não sentiu. Brutalidades inconscientes do Destino tinham feito d'este moço,--de uma organisação nervosa como a d'uma mulher, accessivel, como os organismos mais sensiveis á influencia de todas as sympathias, gostando de agradar aos que viviam perto d'elle, impressionavel, desconfiado, sempre prompto a julgar-se com severidade injusta,--um estudante pessimo, um filho familia, quasi rebelde. Queriam que elle, a livre phantasia graciosa e borboleteadora, caprichosa, e facil aos cançassos rapidos e aos tedios anulladores, se cingisse ao estudo arido e disciplinador da mathematica; que elle, exigente, doido por tudo quanto era bello, elegante, fino e distincto, tivesse a economia calculista e minuciosa d'um mediocre ou d'um grosseiro. D'aqui, as luctas de familia, os descontentamentos do homem intelligente, que se vê injustamente julgado porque lhe prevertem as faculdades em vez de as aproveitarem. Triste, isolado, sem affectos, descontente de si que não sabia sujeitar-se ao destino, e descontente com o destino que tão hostil lhe estava sendo, Gonçalves Crespo surprehendeu-se um dia a vazar no molde perfeito dos seus versos, as melancolias intraduziveis até ali, do seu pobre coração triturado e desconhecido. Teixeira de Queiroz, o consciencioso analysta dos _Noivos_, o ironico observador de _Salustio Nogueira_, o pintor pittoresco e impressionista da _Comedia do Campo_, escreveu na terceira edição das _Miniaturas_ um prologo admiravel, um prologo por assim dizer _vivido_, que desenha com singular vigor e com exactidão minuciosa a physionomia litteraria e moral de Gonçalves Crespo. Elle que foi um amigo da mocidade e um amigo da ultima hora, que recebeu as primeiras expansões do poeta e quasi que o ultimo suspiro do moribundo, comprehendeu bem e soube bem traduzir, a estranha dualidade moral que fazia de Gonçalves Crespo o mais alegre e o mais triste dos homens. Porque muitos dos amigos d'elle, hão de morrer na falsa persuasão de que o lado menos verdadeiro do auctor das _Miniaturas_ era a tristeza funda, a magoa docemente resignada, que nas suas poesias transluzem. Tinham-n'o por um alegre, um doidivanas de phantasia picaresca e de imprevistas aventuras; formavam-lhe em volta do nome, sympathico a toda a mocidade do seu tempo de Coimbra, como depois se tornou sympathico a todas as classes sociaes de Lisbôa, uma lenda de bohemia extravagante, de ruidosa e turbulenta alegria. Poucos o conheceram; poucos viram atravez da ironia bondosa e sympathica do seu sorriso, da bonhomia um tanto sceptica da sua palavra, vivamente e pittorescamente original, o verdadeiro homem que elle era. A mocidade corrêra-lhe tão desflorida e tão triste, que nem os dez annos de tranquilla felicidade, de paz serena e dôce, toda illuminada de affectos intimos, lograram cicatrisar feridas que se lhe tinham rasgado no coração. E que ha mais triste, mais desolador para as almas grandes, do que passarem n'este deserto de homens chamado o mundo, mal julgadas, mal comprehendidas, mal interpretadas, tendo a consciencia de que ninguem cura das suas dôres, ou se preoccupa com os seus intimos e irremediaveis desconsolos?... As cartas do auctor das _Miniaturas_, as suas cartas inimitaveis e incomparaveis, porque não conheci nunca quem escrevesse cartas mais perfeitas--perfeitas de graça, de simplicidade, de desleixo artistico--revelam-n'o, preza de melancolias incuraveis e extranhas. Tinha preoccupações e infantilidades de artista. Nunca chegou a perceber a seducção irresistivel que exercia nos que o approximavam; nunca comprehendeu que tinha, como poucos, o dom da sympathia subita que se impõe, que domina e que vence. Se lh'o diziam sorria-se, com o seu sorriso peculiar de que todos os amigos se lembram com uma saudade enorme, feito de malicia e de duvida, de bondade e de ironia, sorriso que era o encanto caracteristico e mysterioso d'aquelle rosto revolto, expressivo e extranho, que tantos affectos inspirou na terra, que ficou gravado em tantos corações que não esquecem. Esta duvida de si mesmo fazia-o soffrer. Nunca se consolou de pensar de si proprio o que ninguem mais pensava. Encantadora fraqueza que o torna ainda mais nosso, que faz com que nós as mulheres todas o amêmos, porque se não envergonhou de partilhar as nossas pequenas vaidades, as nossas imperfeiçõesinhas organicas para as quaes o homem tem tamanho e tão altivo desdem! IV Tristezas quasi inconscientes do exilio, nostalgias de ave friorenta, visões vagas, indistinctas, radiosas da patria ausente; desgostos de ordem muito particular,--e a pairar sobre tudo isto, uma impressão dolorosa, indefenivel, que nem aos mais queridos elle confessava, mas que ungia de tristeza ineffavel os seus versos, que punha aqui e ali uma nota abafada e dilacerante na harmonia magistral da sua obra,--eis a triplice inspiração, que deu uma vida intensa ao seu primeiro livro, ao livro da sua mocidade, que tão querido lhe tornou logo o nome aos delicados de ambos os sexos. As _Miniaturas_ teem já dezesete annos, o que é muito para um livro de versos d'este seculo, que fez da rapidez o seu programma e o seu mote, que não estaciona em cousa alguma e muito menos no modo de exprimir o que sente. Pois apezar de muitos poetas contemporaneos de Gonçalves Crespo terem passado litterariamente, a geração que principia agora, lê as _Miniaturas_ com o mesmo enlêvo com que as leu a geração que vae envelhecendo já. É que a verdadeira poesia, a que não se filia servilmente em uma qualquer escola transitoria e ephemera, mas a que exprime do modo mais bello e perfeito que é dado á sua epocha conhecer, os sentimentos que formam o fundo inalteravel da alma humana, não perde nunca o imperio que um dia exerceu, atravessa os tempos immaculada e eterna; é hoje o que será sempre, a fascinadora que nos enfeitiça, a amiga cariciosa que nos embala, a confidente que nos ouve, e que chora comnosco... Muitos teem comparado Gonçalves Crespo a Theophile Gauthier, eu por mim declaro que acho injusta a comparação. Theophile Gauthier é um perfeito joalheiro, um impeccavel burilador; cada verso d'elle é uma pedra preciosa, facetada, brilhante, admiravelmente engastada em ouro dos mais finos quilates. Para dar uma forma peregrina aos metaes preciosos, para esmaltar deliciosamente as joias mais lindamente modeladas, ninguem excede o auctor dos _Emaux et Camèes_. Elle proprio o sabia e nunca desejou mais nada. Em Gonçalves Crespo porém, havia mais do que isto. Havia uma alma transbordante de vida, capaz de comprehender e de traduzir os mais delicados cambiantes, as mais rapidas modalidades das outras almas. Que intuição que elle tinha de todas as dôres, mesmo das mais extranhas ao espirito e ao coração d'um homem!... Lembram-se d'aquella perola de tristeza chamada _Arrependida_? _Ella_ deixára tudo para correr atraz da sua chimera e um dia desperta perdida, irremissivelmente perdida no abysmo de infamia a que uma mão de homem a arrastou: Ella scisma ao luar! Todo o passado A seus olhos avulta, illuminado Pelos dubios reflexos da tristeza... Por uma noite assim, limpida e clara, Sua modesta alcôva ella deixára Por esse que ali dorme, e que a... despreza! Que sobriedade de mestre! que melancolia femenina! que profunda comprehensão d'uma dôr, que toda a emphase, toda a phrase diminuiriam forçosamente! Tentar conhecer o céu do amor completo, do amor heroico, do amor feito de sacrificios superiores e de abnegações infinitas e cahir no lodo... Só um poeta sincero como Gonçalves Crespo saberia notar em dois traços esta agonia silenciosa e sem termo... O que distingue particularmente o auctor dos _Nocturnos_ dos outros poetas da sua indole, é a ligeireza do traço, é o vago que parece envolver n'uma luz cerulea e dubia, n'um vapor transparente--e comparavel ao que á tarde envolve e esbate suavemente as montanhas,--as suas concepções mais perfeitas. Não é possivel que ao lêl-o a imaginação se detenha apenas na pagina do livro e o não siga ás regiões de que elle tinha como ninguem a iniciação e o segredo. Previlegiados entre todos, os poetas que fazem sonhar; os que teem na mão a chave de oiro, do paiz azul habitado pela Chymera! V Os _Nocturnos_ pertencem a uma phase inteiramente diversa, mais pacificada, mais tranquilla, mais perfeita, da vida do homem e da vida do escriptor. Sem ter perdido nenhuma das suas qualidades de graça delicada e mimosa, nenhuma das subtilezas finissimas do sentimento e da expressão, nenhuma d'aquellas notas dolentes da alma creoula, que tão singular e tão fascinador o tornam para nós, Gonçalves Crespo attinge por vezes a amplidão magestosa e grave, tem o largo folego heroico, que nas _Minaturas_ ainda se não pressente. Na evolução progressiva do seu genio poetico, elle subiu mais um gráu. Nenhum segredo da forma lhe é defezo. Conquistou, venceu, domou inteiramente a caprichosa, que já não ousa, como a Galatheia do poeta latino, sumir-se entre os salgueiros acenando-lhe de longe. A _Morte de D. Quixote_, a _Resposta do Inquisidor_, as _Primeiras lagrimas d'El-Rei_, a _Ceia de Tiberio_, prenunciam um poeta feito para os largos commettimentos, um poeta que marcaria o seu logar n'este seculo, com algumas d'essas obras que são a gloria d'uma raça, se a traiçoeira morte não viesse em plena virilidade de annos, em plena alegria de trabalho, arrancar-lhe das mãos a penna prodigiosa. As traducções de Henrique Heine são no volume dos _Nocturnos_ das joias mais deliciosamente trabalhadas. A inspiração meridional entrelaça-se de tal modo com a melancolia fugitiva e doce, com a ironica tristeza da musa germanica, que no dizer de alguem, o _Intermezzo_ apparece ali como a obra d'um Heine, mais completo, d'um Heine a quem não faltasse uma só nota na sua vasta alma de homem! Poucos espiritos tambem, seriam talhados mais de molde para entenderem Heine e dar-lhe por assim dizer uma feição nossa. É que a ironia que ressalta naturalmente das cousas, a ironia que não é nem uma blasphemia nem um soluço, mas sim o reconhecimento pacifico, tranquillo e triste das desconsoladoras verdades humanas, existe em Gonçalves Crespo na sua forma mais exquisitamente delicada, mais requintadamente artistica. Como não havia elle pois de entender aquillo que é a propria essencia do genio do poeta allemão! VI Já no leito, onde agonisou com divina resignação dois longos mezes, e onde parece que o seu espirito de poeta assumiu uma forma ainda mais idealmente melancolica, Gonçalves Crespo escreveu com a mão tremula de doente um soneto consagrado aos annos d'uma gentil senhora, nossa querida amiga, por quem elle tinha o mais respeitoso dos affectos, em cuja casa hospitaleira elle encontrou sempre um acolhimento fraternal. Essa senhora é a Condessa de Sabugosa, mulher do amigo, talvez mais ternamente amado por Gonçalves Crespo. Seria lastima conservar para sempre inedito este soneto que tem para mim um triplo encanto. O perfume _camoeano_ que o impregna deliciosamente, a tristeza dulcissima, que elle respira, e a melancolica circumstancia de ser o ultimo que cahio, como uma perola solta, da lyra quasi partida do poeta moribundo. Eis o soneto: Na quadra azul da mocidade, a gente Parte rindo e cantando, estrada fóra, Gorgeia a cotovia em cada aurora, Suspira á noite o rouxinol dolente. Ai! Ditoso o que parte alegremente, O que não vio aproximar-se a hora Em que é força volver atraz... embora Nos arfe o seio de illusões fremente. Para ti ainda existe o sonho alado, A fé robusta, e a candida alegria Que nos chovem do céu claro e estrellado. Nunca sejas forçada, flôr, um dia A erguer, chorando, o braço fatigado Em busca da ventura fugidia... ......................................... ......................................... A morte não consentiu que elle subisse aonde podia subir, que elle se affirmasse como se poderia ter affirmado. No emtanto, todos os que teem este sexto sentido divino, pelo qual, mesmo apezar dos desenganos que a vida encerra, vale a pena em todo o caso ter vivido, hão-de ler com intimo prazer os dois volumes do encantador poeta de _Alguem_. É verdade que elle não respondeu a todas as interrogações que o nosso espirito se achou no direito de fazer-lhe, mas não respondeu porque o tempo lhe não deixou cumprir as mil promessas que a sua mocidade nos fizera. E hoje que elle partiu para o paiz mysterioso d'onde ninguem voltou, e para onde, na tristeza ou na alegria, convergem os nossos olhares anciosamente prescrutadores, voam as nossas saudades n'um impeto de lagrimas, eu releio aquella soberba e indecifravel _Sara_, e pergunto a mim mesma se debaixo da forma esculpturalmente pagã dos versos, se não abriga um sentido occulto, um mysterioso symbolo... Que ardente espiritualismo, tenaz e apaixonado, na carnalidade apparente d'esse poema! Quanta dôr n'aquella aspiração, sempre trahida, de encontrar uma alma, no bello corpo insensivel que elle, como Pygmalião, quereria animar d'um divino sopro! Na sua violenta sêde de perfeição, dolorosa e alanceadôra como poucas, nunca o poeta das _Miniaturas_ e dos _Nocturnos_ teve o contentamento da sua obra! Nunca achou que a Musa, que elle beijava, tivesse a vida, o fogo sagrado, que n'esse beijo fecundador a sua alma anceava communicar-lhe! Era um insaciavel! Nunca a Arte nem a vida o contentaram, a elle que teve todas as caricias luminosas da Arte, e todos os affectos sãos que a Vida póde dar e que a Vida só dá a rarissimos dos seus escolhidos... Mas não estará n'esse eterno descontentamento, n'essa aspiração incansavel ao desconhecido, o signal mais caracteristico da sua grandeza?... Eu creio que sim. _RAMALHO E EÇA_ I O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz acabam de apresentar ao publico portuguez e brazileiro, ou, antes, de _consentir_ que lhe seja apresentado por um editor intelligente, o livro da mocidade de ambos, que ha quatorze annos teve em Lisboa um successo de curiosidade e depois de enthusiasmo, quando foi publicado dia a dia nos folhetins do _Diario de Noticias_. Foi n'essa occasião, e não no livro que depois saiu a lume, que eu li o romance, e lembrava-me, como toda a gente, da impressão immensamente grata, que essa obra improvisada, escripta _à la diable_, tinha produzido em mim. Fui, portanto, como é natural, uma das primeiras compradoras do volume, e, decerto, não fui, de todas as que o teem lido n'estes dias, a menos interessada e curiosa. Queria saber, antes de tudo, se estava muito mudado o meu gosto litterario, se o _romance experimental_, o _romance naturalista_, o _documento humano_, e o estudo frio, analytico, impessoal, das miserias d'este mundo, me tinham de todo roubado a sensibilidade e a paixão, que a mulher tem no espirito, ainda que as não tenha em mais nada. Felizmente não succedeu assim! Eu que devoro os romances dos Goncourts, eu que admiro a força _rembrandnesca_ de Zola, eu que me sinto fascinada deante da obra de Flaubert, e que espero muito de Guy Maupassant, o dilecto discipulo, o continuador convicto do grande romancista morto, que escreveu a _Bovary_--eu posso ainda gosar intensamente um improviso qualquer da mocidade, em que a sensibilidade e a imaginação predominem. Como eu gostei ainda hoje do _Mysterio da Estrada de Cintra_! Infelizmente, conheço-lhe os defeitos innumeros, cousa que não conhecia ha quatorze annos; percebo bem onde os dois auctores foram beber a inspiração de muitas d'aquellas paginas mais brilhantes; estou vendo claramente as inverosimilhanças flagrantes, as falsidades, os _pastiches_, e, ante a critica da minha envelhecida rasão, educada por Taine, entendo, como entendem os auctores do romance, que o romance é execravel! Tão indesculpaveis seriam os dois valentes athletas da moderna litteratura portugueza se fizessem hoje um livro assim, como seria lamentavel e triste que elles o não tivessem feito, quando ambos eram moços! A par das imperfeições, quantas bellezas! que perolas de sentimento, de imaginação, de fina graça, de sonhadora melancolia!... São falsos os personagens?! De accordo; são falsissimos! mas são muito sympathicos! Não ha nenhum de quem eu hontem, depois de ler o livro de um só folego, me não despedisse com uma certa saudade! A _condessa W._ é uma condessa perfeitamente talhada n'um velho molde romantico. Já não ha em parte alguma _condessas_ assim! No mundo real nunca ninguem as viu; no romance moderno encontra-se de tudo, menos d'aquellas doces mulheres encantadoras e apaixonadas, arrebatadas e elegantes. Paciencia. Eu não a queria, decerto, para minha irmã, nem para minha amiga, mas gosto de a vêr assim de longe, na perspectiva que lhe faz o pincel prestigioso dos dois escriptores. É verdade que ella não passa de uma ociosa e de uma hysterica; não tem rasão, não tem vontade, não tem principios, não tem heroismos de luctadora; moralmente, não vale nada aos meus olhos; artisticamente, encanta-me! É uma creatura que ama, que soffre, que se mata nas duras penitençias de um claustro mais apertado e mais duro que uma cadeia, e que nas suas agonias impetuosas, nas suas dôres, nas suas ardentes aspirações á felicidade impossivel, se não parece nada com as detestaveis heroinas, inconscientes ou perversas, da moderna litteratura latina, tão desconsoladora, tão dura, tão cruel! Mas valerá ella mais, por ventura, do que essas valem? perguntas-me tu, leitora! Vale, sim! Valem mais as que amam que as que vivem na inercia indifferente do coração! valem mais as que padecem que as que se deixam viver tranquillas na baixesa ignobil do peccado! valem mais as que se arrependem que as que nunca perceberam que erraram! Decerto, que em face das leis immutaveis do Dever, nenhuma pode ter a absolvição social; no emtanto, ao menos esta, coitada! tem a sinceridade da sua paixão, tem o encanto vivo, penetrante e communicativo do seu fatal amor! Não discutamos, porém, a moralidade do romance; essa lá lh'a pozeram os auctores na morte e na clausura voluntaria das duas desatinadas heroinas. Discutamos simplesmente a sua belleza artistica. O _Mysterio da Estrada de Cintra_ tem paginas, como nunca mais os dois homens, que as escreveram, tornaram ou tornarão a escrever. Penetra-as o insubstituivel, o capitoso aroma da mocidade; são sentidas, são quentes, são tremulas de ternuras, são flammejantes de paixão! O conjuncto da obra, é claro que é inferior a tudo que elles tem feito depois: ao _humour_, á fina e aguda observação, á critica mordente, á analyse incisiva, ao estylo poderoso e vivo das _Farpas_, do _Primo Bazilio_ e do _Crime do Padre Amaro_, e dos folhetins ultimamente escriptos para um jornal do Brazil;--mas, apesar de tudo, ha graças e desleixos que o artista só tem na flor inexperiente e virginal do seu talento, e que mais tarde são compensados por meritos mais distinctos, por qualidades superiores, pela firmeza magistral da penna, do buril, ou do pincel, mas que nunca mais podem ser substituidos! Como as distinctas individualidades dos dois escriptores se destacam bem nas paginas do romance! A phantasia, o magico poder do estylo de Eça de Queiroz, resaltam ao lado da critica mais philosophica, da observação mais penetrante de Ramalho Ortigão. A morte de Carmen, a caçada na India, escreveu-as Eça com a penna que mais tarde, convertida ao realismo, contará a agonia de Luiza, a burgueza peccadora, e as _soirées_ de Leiria, entre padres e devotas; a carta de Rytmel á condessa, a descripção do claustro no Minho, as reflexões da pobre amante desvairada, antes da fuga que ia roubal-a para sempre á sociedade em que ella tinha vivido, á casta a que pertencia, revelam já todas as qualidades do espirito observador e amante do pittoresco, que fez de Ramalho Ortigão um dos melhores criticos de costumes da litteratura contemporanea. A publicação d'este formoso romance arrancou, por uns dias a somnolenta Lisboa ao seu indifferentismo systematico por tudo que seja questão de lettras ou questão de arte. Nas salas discute-se com immenso interesse o enredo do romance, o seu estylo, o contraste que elle faz com as publicações posteriores dos dois grandes artistas que o firmam. Marcam-se as diversas _étapes_ que percorreu o espirito de ambos; e faz-se d'este modo uma critica litteraria, bem mais facil do que a que podia ter sido feita ha quatorze annos, quando o livro appareceu pela primeira vez, revelando, a quem sabe conhecer estas coisas, dois escriptores de raça. Os homens, como é natural, interrogam insidiosamente as senhoras a respeito do que ellas pensam das duas heroinas do livro. Elles, já se vê, gostam todos muito da Carmen, um typo estranho, muito menos real que o da Condessa, mas que, ainda assim, n'este momento em que tanto estão attrahindo as attenções do publico as _mulheres que matam_, tem uma certa opportunidade e uma certa verosimilhança. A Condessa, porém, tem a sympathia occulta das austeras e a sympathia declarada das temerarias... Ninguem quereria imital-a, todas a comprehendem mais ou menos. É uma desequilibrada, uma doente. A paixão entrou na vida d'ella, como entra um pé de vento n'uma casa mal abrigada. D'ahi a revolução, d'ahi o desmoronamento. Não nascêra para o peccado, não. Era fina, era delicada; tinha o amor e o desejo de todas as harmonias moraes e sociaes; tinham-n'a educado correctamente, convencionalmente; houve quem presumisse na vida da pobre creatura todas as hypotheses, menos a de um sentimento real e sincero. Foi esse que appareceu; que surgiu fatalmente, chamado por uma serie de circumstancias imprevistas; e como não poude ser na alma d'ella o bom pão que alimenta, foi a cicuta que empeçonha e mata! É uma peccadora, bem sabemos, mas emfim é uma mulher! Cumpre-nos a nós fazer com que as nossas filhas sejam mulheres, sem serem peccadoras; amem, sem que o amor as diminua e amesquinhe, antes auxilie o desenvolvimento, são e natural, de todas as suas forças e de todas as suas faculdades! Se nós nos mettessemos de boa fé n'esta empreza tão grande de pôr na vida o romance, sem lhe pormos ao mesmo tempo o peccado?!... Realmente a litteratura, que é sempre o exacto reflexo das tendencias moraes e sentimentaes de uma dada época, está accentuando cruelmente e demasiadamente o principio de reacção, que em começo foi justo e foi racional, contra os desmandos nebulosos do romantismo, contra a sensibilidade, exaggerada, _lamartineana_, da nossa mocidade. Não seria tão bom que, depois d'estas tristes tentativas experimentaes, que os proprios mestres vão realmente abysmando nos lodaçaes mais torpes da palavra, do estylo e da idéa, apparecesse emfim a litteratura que retractasse o homem--o homem complexo, o homem _ondoyant_ e _divers_, tal como o viu Montaigne, o homem bom e mau no mesmo dia e ás vezes na mesma hora, o homem capaz de baixezas e de heroismos, de vicios e de abnegações insolitas, o _homem_ n'uma palavra--estranho mixto do que ha de mais bello e do que ha de mais ignobil?! Não teriam então os detractores da _escola naturalista_ razão para dizer que ella, sendo em principio tudo quanto os seus sacerdotes maximos apregoam e proclamam de scientifico, de grande e de verdadeiro, não passa, na pratica, da escola das feias palávras e das acções ainda mais feias. O verdadeiro naturalismo seria então creado pela primeira vez, tal como Shakespeare o presentiu no seu espirito barbaro e sublime, tal como Balzac o realisaria se não houvesse morrido no extazi mal definido ainda do seu descobrimento genial! A litteratura do nosso tempo dar-nos-hia o homem e a mulher que nenhum outro seculo conheceu, e sobre os quaes tem reagido, de um modo estranho e tão difficil de analysar completamente, a influencia da nossa collossal e desequilibrada civilisação, feita de tantas duvidas, de tantas affirmações, de tantos problemas insoluveis... Evitar o estudo das exaggerações morbidas, dos casos _pathologicos_, das aberrações mentaes, das enfermidades que pertencem ao dominio da sciencia, não seria no fim de contas o unico meio de rehabilitar a _Arte_ da dependencia, em que ella parece querer estar, do amphitheatro dos hospitaes, ou da enfermaria dirigida por Charcot? O organismo do homem moderno, na sua complexidade maravilhosa, na enorme e labyrinthada complicação que lhe dá hoje o desenvolvimento do seu cerebro e dos seus nervos, é realmente um estudo difficilimo, um estudo que abrange todos os outros e que exige a analyse penetrante, fina e subtil do physiologista, a observação larga, profunda e sympathica do philosopho, a flexibilidade ondeante, o sopro creador do artista de genio. Realisar o programma imaginado pelos mestres da arte contemporanea, é bem menos praticavel de certo do que passar ao lado d'elle, como elles até aqui teem feito. É porque lhes falleceu a coragem para essa empreza de gigantes que elles teem convertido, a pouco e pouco, o seu _naturalismo_ n'uma especie de romantismo ás vessas. Salvo excepções esplendidas, que são os milagres da moderna arte, os que d'antes faziam anjos, fazem agora monstros! Os que se davam ao trabalho de modelarem as suas estatuas no gello immaculado das alturas, amassam-n'as hoje no barro viscozo dos lodaçaes. E a verdade onde fica?!... A mim parecem-me tão pouco humanas as sylphides de Lamartine, como as femeas inconscientes de Zola. Entre ellas está a mulher. Porque a não procuram? porque é que a não retratam, ou antes, porque é que a não criam? Esperemos que a litteratura deixe de ser uma escola d'isto ou d'aquillo, uma reacção contra isto ou contra aquillo. Que ella seja serena como a verdade, e será emfim humana; que elle nos pinte quaes nós somos, e poderá então chamar-se natural. É muito bom estudar as _miserias da nossa rua_, na phrase pittoresca de Eça e de Ramalho; mas, por Deus! parece-me demasiado restricto esse ponto de vista! Imagine-se que os escriptores escolheram uma rua infeliz, uma rua povoada de remendões e de vendedoras de peixe!... Parece-me isso um pouco o caso de alguns dos grandes romancistas contemporaneos! Nunca me poderei chegar a convencer que abrir as paginas de um livro corresponda a ir visitar um hospital; que folhear um romance me dará conhecimentos eguaes aos que me daria a estatistica do _alcoolismo_, ou a de outro qualquer dos grandes vicios modernos. A ignorancia é, de certo, minha, que sei pouquissimo, e que vou aprendendo cada vez menos. Em todo o caso, obrigada ao _Mysterio da Estrada de Cintra_, que me repousou um pouco da _má companhia_ a que os mestres me teem habituado ultimamente. _RAMALHO ORTIGÃO_ II A HOLLANDA Desde que eu li a _Hollanda_, e devo ao auctor a immerecida e lisonjeira distincção de ter podido ler um dos primeiros volumes publicados--desde que li d'um folego este livro, verdadeiramente encantador, sinto em mim o desejo, quasi que a necessidade de fallar a respeito d'elle. Será que eu julgue auctorisada e util a minha apreciação? Não, decerto. O que eu tenho é o irresistivel desejo de conversar com esse numero mais ou menos restricto de amigos desconhecidos, que todo o escriptor, por modesto e humilde que seja, tem a certeza, de possuir, ácerca d'essa obra superiormente bella, e que, apezar d'um tanto phantasista me parece consoladora e sã, fortificante e boa. Mas, se eu sentia em mim essa vontade persistente e tenaz, porque é que a não tenho realisado ha mais tempo? Simplesmente pelo motivo, porque hoje mesmo hesito em o fazer. Ha receios, que se não vencem senão a muito custo, tanto mais teimosos, quanto mais prolongado foi o tempo em que os deixamos actuar sobre o nosso espirito. Depois ha livros _suggestivos_, que fazem pensar; que despertam em nós um turbilhão de idéas, de pensamentos difficeis de definir e de fixar bem, mas que tambem nos acordam contradicções que talvez pareçam ousadias, criticas que talvez o publico julgue pouco auctorisadas e, por isso mesmo, imperfeitissimas. Estes livros seduzem-nos, captivam-nos, mas assustam-nos um pouco, como alguma coisa de poeticamente concebido e realizado, que fica para álem dos dominios reaes em que nos sentimos á vontade. A _Hollanda_ pertence a este numero de trabalhos, felizes e perigosos, encantadores e um pouco falsos. Parece um bom companheiro de jornada que nos arrasta, abrindo-nos a cada instante horizontes intellectuaes só intrevistos de muito longe, rasgando-nos amplas janellas para o claro espaço, despertando-nos, com as suas observações quotidianas, um mundo inteiro de sensações adormecidas, mas ao pé dos quaes uma pessoa se sente desconfiada, temendo o demasiado prestigio, de imaginação, o optimismo excessivo do viajante... E no emtanto não é como muitos julgarão, uma simples narrativa de viagem; é uma obra de arte e de moralidade. E n'este momento dubio e _atormentado_ da nossa nacionalidade, momento que uns julgam de irremediavel decadencia, outros de vigoroso renascimento mental, este livro que nos conta com a magia incomparavel, estranha e captivante do seu estylo, a historia d'esse pequeno povo, muito mais pequeno do que o nosso, que á sua poderosa força de resistencia, que á sua intemerata energia deveu o grande papel que representa na historia da Civilisação, este livro d'uma factura tão magistral, affigura-se-me, apezar dos seus pontos de vista, nem sempre rigorosamente justos, uma obra eminentemente e grandiosamente patriotica, uma fecunda lição indirecta, um appello ao que ha de mais nobre e de mais reconditamente sagrado na alma de uma collectividade nacional. É sob estes diversos aspectos que elle tem de ser julgado pela critica. Eu, porém, não venho julgal-o, o que seria pretenção; venho simplesmente, como já disse, conversar a respeito da impressão luminosa e profunda que elle deixou em mim. Ha muito que Ramalho Ortigão é considerado um dos melhores criticos de costumes, um dos melhores coloristas da moderna arte; sabia-se que a sua faculdade predominante, essa faculdade da qual, no artista, todas as outras derivam, e na qual todas as outras se filiam, era a de _ver_ o aspecto exterior das coisas com uma nitidez, uma precisão, uma minudencia e ao mesmo tempo uma largueza de observação, que podem chamar-se verdadeiramente geniaes. Ora _ver_ em todas as suas formas multiplas, sob todos os seus aspectos variados, na complexidade das suas linhas, no relevo dos seus contornos, na harmonia da sua côr, uma porção de arte ou uma porção de natureza; e saber transmittir vigorosamente, originalmente as infinitas impressões recebidas pelos olhos ao espirito de quem o lê,--esta faculdade tão rara e tão estranhamente difficil, que constitue talvez um dom de temperamento impossivel de adquirir-se pelo estudo ou pela vontade, basta só por si para singularisar e caracterisar um artista, e é esta, sem duvida, a grande faculdade de Ramalho. Nunca, porém, as suas qualidades de estylo se revellaram tão largamente, a uma luz mais ampla, mais bella, mais intensa, do que n'este livro que em todas as litteraturas seria justamente considerado uma obra bella, e que hoje, na nossa, é um verdadeiro milagre. Na _Hollanda_ o paysagista, o pintor que fixa na tela, com realidade triumphante, as suas impressões ainda as mais rapidas, o coração honesto e enthusiasta, que vibra, apaixonado, ao contacto de todos os bellos, grandes e puros ideaes humanos; o artista que se embriaga com os espetaculos sempre novos da Natureza, revellam-se egualmente com a mesma felicidade e com a mesma pujança dominadora. O humorismo tão singular, d'uma tão contagiosa e communicatica influencia, que transparece habitualmente em todos os trabalhos de Ramalho Ortigão, esse não faz mais do que polvilhar finamente, aqui e acolá, com uma poeira diamantina e translucida, as paginas d'este livro, que marca uma hora de enternecimento dôce e de viril enthusiasmo na vida do escriptor. Como faz bem ao espirito desconsolado pelo espectaculo do cynismo universal, da indifferença dissolvente, ironica e desdenhosa, esta nobre explosão de fecunda sympathia, esta nota de commoção penetrante, que se levanta, n'uma especie de impulso heroico, convidando á lucta, convidando ao trabalho, convidando aos gosos austeros que dá o accordar da consciencia, e tendo apenas a _felix culpa_ de exaggerar um pouco o bem que viu, e talvez de carregar em demasia o mal que se presenceia diariamente na nossa pobre patria, bem digna de melhor sorte... A ironia de Ramalho Ortigão, d'um relevo poderoso, d'uma subjugadora e victoriosa alegria, todos nós a conhecemos desde muito. D'essa ironia, de que chispam relampagos multicores, fez elle a sua melhor arma de combate, contra a tolice, contra o erro, contra a vulgaridade, contra o ridiculo. O que nós não sabiamos porém, é que elle, que pode rir assim, podia egualmente arrancar, pela commoção communicativa da sua palavra, em que o enternecimento põe modulações deliciosas, lagrimas aos nossos olhos, flores de poesia ao nosso coração. * * * * * Antes de mais nada, eu devo confessar que o meu temperamento, a minha indole, o feitio especial da minha imaginação, me tornariam absolutamente inapta para comprehender e admirar a nação hollandeza, senão vista e descripta pelos olhos peninsulares e pela phantasia tão eminentemente latina, tão colorida e illuminada, de Ramalho Ortigão. Se eu fosse á Hollanda, voltava de lá, estou certissima, sem ter visto coisa nenhuma do que o illustre escriptor lá viu, a não serem, talvez, alguns d'aquelles _primeiros aspectos_, tão adoravelmente descriptos por elle, e em que, mais d'uma vez, a sua ironia deliciosa espreita sorrateiramente o leitor, como a avisal-o de que é necessario, apesar de tudo, contar sempre um bocadinho com ella, de que pode estar um pouco adormecida, levemente anesthesiada... mas que, emfim, está muito viva, graças a Deus, e não espera morrer tão cedo. Cada vez me convenço mais de que ha antagonismos de raça ineluctaveis, visto que eu, depois de ter lido, verdadeiramente vibrante da feliz sensação de _admirar_, n'esse prazer de intelligencia que uma bella obra de arte nos produz, o livro de Ramalho Ortigão, me não decidi a fazer a minha malla, a pegar nos meus dois filhos pela mão, e a ir viver para todo o sempre na Haya ou em Amsterdam... Não me decidi, não; não me decido, e era capaz de apostar que Ramalho Ortigão, apesar de ter voltado da Hollanda, como incontestavelmente voltou, moralmente fortalecido e engrandecido intellectualmente, rico de preciosissimas acquisições novas, que definem e accentuam largamente o seu progresso mental, ainda assim não deixaria, por ella, o nosso céo azul d'uma luz tão suave, o nosso clima amollecido e doce, a preguiçosa facilidade com que a vida nos emballa n'este cantinho de terra abençoado pela natureza, que o Oceano beija, lambe e acaricia, em cujas praias de areia dourada elle canta o seu grandioso canto de liberdade, mas contra o qual elle não investe em furia, obrigando o homem á eterna resistencia, á eterna lucta, á eterna e fatigante heroicidade... O Oceano não foi para nós o mestre rigoroso, severo, exigente, implacavel, que disciplinasse a nossa alma e o nosso corpo no exercicio permanente de uma força e de uma tenacidade mais que humanas! Elle imprimiu á nossa imaginação, ondulante e scismadora, a mysteriosa saudade que das suas profundezas desconhecidas se evola, com um effluvio de sonho! Elle fez-nos os poetas de uma epopeia rapida, os aventureiros inconstantes de uma phantasiosa conquista. Tambem a _griffe_ d'esse leão indomado pousou na nossa alma nacional, mas que diverso o modo porque elle influiu em nós! Bem sei que moralmente valem mais, incomparavelmente mais, as nações e os individuos que fazem o seu destino, que o subjugam, que o transformam, que o modificam, que o dominam, do que aquelles que o acceitam passivamente, n'uma inercia inutilmente contemplativa. Mas, sob o meu ponto de vista feminino, que de certo não é o mais intrepido, que melhor não é deitar-se a gente ao sol, na areia luminosa, emquanto a vaga azul, coroada de espumas brancas, vem espreguiçar-se humilde aos nossos pés, vem lamber, vencida e cariciosa, a orla dos nossos vestidos, do que ter dia a dia, hora a hora, momento a momento, de disputar ao _grande inimigo_ torvo, mysterioso, sombrio, que uiva, eternamente agonisante, a sua lamentação tragica, o sólo movediço e traidor sobre o qual construimos o nosso lar sagrado!... É enorme, porém, bem o sei, a lição dada ao mundo por essa raça athletica e fleugmatica que a natureza educou, fortificou moralmente, e que ao mesmo tempo livrou do erro sympathico de ser imaginativa e cogitadora como nós. Se ella, em vez de luctar com as temerosas ondas, se pozesse a contemplal-as de braços cruzados; se ella, em vez de indagar scientificamente os meios mais proficuos de vencer a permanente invasão das aguas, e de as aproveitar na cultura especial dos seus campos, se lembrasse apenas de fazer ao mar as odes mais soberbas e inspiradas, não existia já decerto, ou, se existisse, não tinha nem uma só das fortes qualidades que distinguem essa honesta, essa trabalhadora, essa robusta, séria e pezada Hollanda! As nações são aquillo que as fazem as condições do seu sólo, os phenomenos do seu clima, a sua structura geographica, o temperamento e a origem da sua raça. A Natureza, hostil, ensinou a esta o calculo, a previdencia, a tenacidade inquebrantavel, e tambem, deixem-me accrescentar, o frio e arido egoismo nacional; a humida vaporação eterna dos seus canaes e dos seus rios deu-lhe o amor intelligente dos _interiores_ confortaveis, commodos e aquecidos, em que a Arte põe a sua nota soberba e luminosa, ou a bonhomia intima e doce dos seus aspectos; a lucta continua e ininterrupta para salvar do perigo a familia perpetuamente ameaçada, levou-a a sentir por esta um amor mais vivo, mais profundo, mais recatado e penetrante, ungido de protecção enternecida e de casto embevecimento, mas tambem um d'estes amores absorventes que não deixam logar para a sympathia universal, de que outras raças são superiormente inspiradas! Todas as virtudes e energias, todas as bellas qualidades _humanas_ e sympathicas, de que Ramalho Ortigão nos faz no seu livro a attrahente pintura, todos os defeitos tão graves que não quiz vêr, mas que existem n'ella, deve-os a raça neerlandeza justamente a essa tensão de vontade que ella exerce incansavelmente desde seculos, e que tanto lhe modificou a indole primitiva. E apesar de eu sentir que ella nos é superior em tanta maneira, porque é que me não resolvi ainda a ter-lhe um bocadinho de affecto? Não sei! É talvez um capricho de mulher, indigno de manifestar-se á luz do dia, _irracional_, como tanta cousa feminina; mas que eu teria escrupulo de não confessar aqui, com intrepidez heroica. Não é na verdadeira Hollanda--não direi na Hollanda em _carne e osso_, mas em agua e lodo!--que eu gostaria nunca de viajar. Na outra, sim. Na _Hollanda_ de Ramalho Ortigão, n'essa fulgurante e magnifica _Hollanda_, tão deliciosamente phantasista, perco-me eu a cada instante n'um enlevo de admiração sentida, e é das suas paginas, coloridas como um quadro de Rembrandt, que eu tento dar, aos que as não leram ainda, uma idéa, posto que imperfeita, remota, incompletissima. * * * * * O estylo d'este livro é uma verdadeira festa para o ouvido, e direi mesmo para os olhos; tanto as palavras teem n'elle uma côr, um relevo, um encanto, estranhos e indiziveis. Ha periodos que são quadros. Parece que o escriptor poz na sua palêta todas as côres, na sua pintura todos os tons, toda a luz do sol no objecto que contemplou. Nunca a lingua portugueza adquiriu flexibilidade mais ondeante, energias mais dominadoras, graça mais sinuosa e mobil, ondulações mais serpentinas, rythmo mais harmonioso, poder mais intenso, vitalidade mais estranha. Esta lingua, que modernamente poucos operarios teem affeiçoado para as exigencias multiplas e caprichosissimas da Arte contemporanea, tem nas mãos de Ramalho Ortigão umas docilidades de mulher do Oriente, uns langores submissos de escrava creoula, uma energia mascula, uma limpidez matinal, uma intrepidez heroica, um sabor vivo e são das coisas, que penetra o leitor do mais requintado goso intellectual. Ha todas as notas n'esta orchestração soberba. Dir-se-hia que esta prosa tem a cadencia melodiosa, o movimento rythmico do verso mais cinzelado e mais perfeito, do verso de Heine ou de Victor Hugo. Como apropriadamente e obedientemente ella se cinge aos milhares de assumptos que trata e revolve! Philosophia, historia, politica, religião, costumes domesticos, costumes publicos, a Arte em todas as suas manifestações, a Natureza em todos os seus aspectos--tudo ella toca, tudo descreve e pinta, abraça, penetra e faz comprehender. É simples e é pittoresca; é grave, comica e enternecida; é apaixonada e austera; tem a poesia meiga das coisas intimas; tem a adjectivação opulenta das descripções pomposas; tem a riqueza decorativa e a suavidade recolhida e casta; é transparente como uma renda de Malines ou de Alençon; é translucida como um diamante ou como uma saphyra; é fresca e diaphana como a neblina da madrugada; é perfumada como um cacho de lilazes; é rendilhada como uma joia da Renascença. Ri, canta, chora, pinta, descreve, raciocina, fustiga; e sempre faz pensar, acordando dentro de nós o bando das idéas mal definidas e informes, que dormem, como pombas cançadas, no espirito de todo o ser que pensa e que soffre. Eu tenho pena de não poder arrancar das paginas do volume alguns periodos, alguns trechos de prosa que me ficaram vibrando cá dentro como a melhor das musicas. O livro abre com um capitulo de historia, intitulado--_As origens_. Destaca-se d'elle, com uma nitidez viva de contornos, a figura poderosa e sympathica do grande revolucionario hollandez Marnix de Sainte Aldegonde, a quem, juntamente com Guilherme de Orange, o _Taciturno_, se deveu a definitiva formação e a independencia da patria, o homem que á frente da _Liga dos Maltrapilhos_ resistiu a Filippe II, e impelliu a Hollanda no caminho da sua libertação nacional e religiosa, fazendo d'este pequeno paiz, d'uma heroicidade séria e reflectida, uma especie de vanguarda dos exercitos revolucionarios que conquistaram mais tarde, com tanto sangue e tanto martyrio, a liberdade do seu governo interno e a liberdade da sua consciencia. Veem depois _Os primeiros aspectos_, a que eu já me referi. A _verve_ encantadora de Ramalho esmalta adoravelmente algumas d'estas paginas. Estes _primeiros aspectos_ tem coisas engraçadissimas e que não esquecem mais. Lembro-me de um verdadeiro drama que podia intitular-se a _Venda de um repolho_, passado entre uma creada de Amsterdam e um vendedor ambulante de hortaliças, em que a phrase, o movimento e a acção comica são incomparaveis. Todo o feitio de observação especial de Ramalho se revela n'este capitulo caracteristico e _vivido_, para fallar á moda. Os espantos do viajante recem-chegado são tão legitimos, nós partilhamol-os tão do intimo d'alma, que nos movem tambem, que nos agitam, que nos fazem morrer a rir. É toda uma Hollanda _ratona_, que surge, á flor da nossa imaginação. O escriptor estava-a então vendo com os olhos do seu corpo. O sentimento, o raciocinio, a admiração despertada por uma longa serie de virtudes,--de virtudes moraes, de virtudes civicas, de virtudes patrioticas, de virtudes de toda a especie,--não tinha ainda irrompido violentamente de dentro do moralista que ha em Ramalho, tornando-o cego para todos os ridiculos, surdo para todas as notas discordantes. E os quadros succedem-se com uma vivacidade triumphadora, e a gente segue-os espantada do poder de realidade palpavel, que uma penna, correndo sobre uma folha de papel, pode ás vezes attingir. Pouco a pouco, os olhos namoram-se da estranhesa imprevista de todos aquelles aspectos. O artista entrega-se inteiramente á novidade, á graça especial e desusada de que elles lhe apparecem impregnados; a curiosidade do espirito, eminentemente observador, acorda, atrahida por tantas revelações subitas d'um modo de vêr, de viver, de sentir, tão diverso do que elle conhece desde a infancia; e então o pintor, abstrahindo de comparações, de philosophias, de ideas complexas, que lhe transtornariam a limpidez perfeita do seu apparelho optico, pega da palêta, põe n'ella as côres mais finas, mais ideaes, mais delicadas, d'um esbatido mais doce, d'uma suavidade mais penetrante, d'uma fulguração mais radiosa e mais deslumbradora, e começa a pintar, á luz do céo da Hollanda, aquosa e esmaecida, as raças, as physionomias, os trajos, as figuras que destacam n'um meio pittoresco e caracteristico, os grupos que passam enlaçados, essa festiva, essa apparatosa procissão d'um povo em festa! Vejam, por exemplo, este fragmento d'uma pagina consagrada ás mulheres da Frisa, que fica cantando no ouvido, como a estranha musica em que se fundem todas as graças melodicas de uma lingua opulentissima. «As mulheres da Friza são de um encanto estranho. Muito altas, direitas, serias, caminham todas--as mais humildes, as mais obscuras--com uma magestade simples de princezas, e teem nas maneiras uma graça altiva, casta, ondulante e fria, que lembra a origem aquatica que se lhes attribue, como filhas de antigas sereias do Mar do Norte. Os pés estreitos, as mãos longas e afiladas, o pescoço alto, o busto vigoroso, o vestido preto, que todas usam, liso, cingido ao corpo, comprido, de mangas justas e curtas, completam a expressão eminentemente aristocratica d'estas figuras sacerdotaes de uma belleza quasi sagrada, como a dos marmores classicos da esculptura antiga. «O toucado frisão de uma retrospectividade bysantina, envolvendo-lhes a cabeça em rendas e em placas d'oiro polido, imprime-lhes uma feição cultual, uma vaga analogia de sacrario e de altar. O tradiccional capacete, casco d'oiro em duas peças, semelhantes na forma a uma dupla cobertura destinada aos dois hemispherios do cerebro, cobre-lhes inteiramente o craneo; escondendo o cabello com uma austeridade guerreira, deixando apenas desvestido o espaço da fronte e o alto da cabeça envolto em renda branca. Algumas d'estas physionomias de donzellas são inteiramente insexuaes, de grandes olhos suaves, o rosto do mais correcto oval, o nariz longo e fino, a boca cortada n'um traço recto, innocente e calmo, sem vestigio algum do movimento e qualquer musculo em que vibrasse a malicia, o apetite ou o desdem, bellezas de uma serenidade gothica, não contaminadas pela nevrose dos seculos da analyse, errantes n'uma especie de somnambulismo nostalgico e anachronico, entre as paixões modernas, taes como os poetas contemporaneos poderiam apenas imaginal-as, brancas e frias, coroadas de boninas, com um livro na mão, esculpidas em alabastro e deitadas sobre um tumulo feudal, ou de escapulario de monjas, com a cabeça aureolada por um disco de luz, n'uma vidraçaria de cathedral entre as companheiras de Santa Ursula.» Momentos antes--vejam o contraste!--Ramalho referindo-se á extravagante meticulosidade do aceio hollandez, tinha-nos feito, com a riqueza de vocabulario mais atroadora, uma descripção de todas as vassouras, espanadores, utensilios de limpeza que são indispensaveis ao mais humilde dos _ménages_, descripção que deve ficar positivamente como um modelo do genero! É assombroso todo este capitulo, d'uma variedade de kaleidoscopo, ao mesmo tempo comico e pathetico, enternecido e alegre, pittoresco e philosophico, fazendo desfilar deante do nosso deslumbrado olhar, n'um delicioso capricho de magica, todas as scenas, todos os quadros, todas as visões e todas as idéas! Nos _Campos e Aldeias_ está na sua verdadeira especialidade o paysagista, o pintor, o homem que sabe vêr melhor tudo o que vê. Eu, por exemplo, ia aos campos da Hollanda, e sahia de lá com a impressão indefinida, confusa e tristonha, de ter visto uma enorme planicie chata e verde,--um gigantesco prato de espinafres--sem accidentes de terreno, sem caprichos imprevistos de scenario, com muitos moinhos a cercarem-n'a e muitos rêgos de agua mais ou menos largos, mais ou menos profundos a desenharem por toda ella os seus xadrezes, d'onde se levantam, de madrugada e ao pôr do sol, humidas vaporações insalubres. Ramalho Ortigão vê e faz-nos vêr, pelo encanto magico da sua penna que é um pincel, tudo que alli viram de vago e simples, de indefinido e penetrante, de terno e de melancolico, os grandes artistas hollandezes, os mestres incontestados e inexcediveis de toda a moderna escola de paisagem. E o seu estylo opulento pinta as metamorphoses, as variações infinitas d'essa luz, as colorações prysmaticas d'esse ceu cheio de neblinas transparentes, as decomposições phantasticas das nuvens, a admiravel riqueza sintillante e tremelusente que os espelhamentos do sol põem nos lagos tranquillos e nos lympidos canaes, as harmonias do tom, as gradações infinitas do eterno verde, a calma doçura tranquilla,--tudo emfim que aos seus grandes amigos sinceros e eloquentes a velha natureza inspira, em todas as suas apparencias multiplas, em todas as suas transfigurações multiformes. Ha n'este capitulo uma comparação entre a velha barca hollandeza, que elle chama o _phantasma benigno da patria_, a aquatica alma _errante do paiz_,--essa barca onde o hollandez navega paxorrentamente, levando comsigo a mulher, a pequenada, o gato, o cão e os passaros--e a nossa pittoresca e extincta falua do Tejo e do Douro, que me pareceu verdadeiramente encantadora. E ainda aqui--que a Hollanda me perdoe!--eu prefiro a nossa falua, a nossa alegre falua, que a civilisação afugentou e inutilisou, essa falua onde tudo era pittorescamente meridional, e onde o arraes contava historias picarescas que faziam rir os passageiros, e lhes aligeiravam as horas de longa jornada, feita sem commodos de especie alguma, mas com luz, mas com sol, mas com a farta alegria da natureza a envolver e a illuminar por dentro a alma de uma pessoa. A mim, valha a verdade, não me seduz muito nem a barca nem a falua, a não ser como ornato decorativo da paisagem. Mal por mal, em todo o caso, antes a falua, por que essa ao menos é animada e palreira, jocosamente expansiva! Nas _Cidades_ hollandezas, de um luxo tão intelligente, de uma riqueza tão racionalmente distribuida, em que a arte accumula os seus thesouros, a beneficencia as suas admiraveis instituições, a solida e bem entendida civilisação as suas escolas, as suas universidades, os seus institutos, os seus lyceus, as suas bibliothecas e museus, os seus jardins botanicos e de acclimação, os seus estabelecimentos de instrucção, de sciencia, de caridade, de commercio, de industria e de recreio, n'essas _Cidades_ em que se condensa toda a vida intellectual da livre e laboriosa Hollanda, a alma do escriptor, tão moderno nas suas aspirações e nos seus ideaes, dilatou-se n'um impulso de robusta e fecundante alegria! Vê-se que elle admira aqui, sem esforço, sem idéa reservada ou preconcebida, a enorme expansão moral, mental, economica e artistica, d'este povo que merece um logar de honra incontestavel entre os povos modernos da Europa, d'este povo que, depois de crear pelo trabalho incessante, a sua riqueza enorme, fez d'ella um elemento de civilisação, de moralisação, de desenvolvimento nacional, de felicidade e de paz interior. A pintura feita pelo brilhante escriptor de todas as instituições, pela existencia das quaes a Hollanda affirma a sua extraordinaria superioridade, como nação educada, como nação caridosa, como nação artistica,--é de fazer chorar de tristeza, de desalento e de inveja todo o portuguez que tenha um bocadinho de coração. Comparar o que nós fazemos com o que esse povo tem feito, horrorisa! Mas por doer, a lição nem por isso deixa de ser proficua. Agradeçamos a quem nos aponta implacavelmente, serenamente, o pouco que nós somos ante a Civilisação, ante o moderno Ideal, e o muito que precizamos caminhar, para merecermos o nome a que ouzada e immerecidamente aspiramos. Não é quem nos emballa e adormece com lisonjas banaes, tão mentirosas quanto inuteis, que é nosso amigo, e nos presta um leal serviço. Ramalho Ortigão com este livro, que é um exemplo e um castigo, que é um incentivo, que é um grito de alarme lançado em meio da nossa preguiça, da nossa indolencia, da nossa empavezada e burgueza vaidade, fez, como eu já disse, mais do que uma obra bella, fez uma obra boa, de que nos cumpre aproveitar a utilidade immensa. No meio das paginas inteiramente consagradas pelo auctor á descripção e á enumeração de todas as coisas feitas pela raça neerlandeza em favor do seu proprio engrandecimento, e da sua propria illustração, paginas que parecem escriptas por um Taine com entranhas e com alma, Ramalho interrompe-se por momentos, e n'uma lingua idylica e harmoniosa, n'uma lingua em que ha eccos de Shakespeare e visões de Ariosto, n'uma lingua que parece feita de gotas de luar e de raios do sol, de aromas indefinidos, de vagas scintillações fatuas, de vibrações de harpa eolia occulta entre os salgueiros, faz-nos a pintura palpitante, luminosa, musical, colorida, da _Floresta da Haya_, d'esse bosque sagrado que elle julga proprio para abrigar, na sombra estranha e dôce da sua densa ramaria mysteriosa, os amores profundos e tragicos, as sublimes paixões heroicas da lenda e da historia, o somno esquecido e calmo dos grandes deuses mortos, os divinos dialogos ardentes que os poetas puzeram na bocca dos seus amantes immortaes. As _casas_ e os _individuos_ revellam-nos a delicada e fina efflorescencia que brota naturalmente do ideal religioso, moral, politico e artistico da raça hollandeza. Tal é o paiz, tal a familia. Esta é sempre o reflexo do modo de sentir e pensar collectivo; e nunca á nação moralisada e instruida, livre, conscia e sabedora dos seus direitos e dos seus deveres, correspondeu outra coisa que não fosse a familia fortemente constituida, vivendo na ordem e no equilibrio dos sentimentos e das faculdades. N'este ponto são bem mais felizes as nações protestantes, as raças saxonia e germanica, do que a nossa raça latina tão profundamente eivada da mais esterilisadora decadencia. É que n'essas raças não existe tão profundamente accentuado o divorcio religioso entre o homem e a mulher; ahi, como frisantemente o faz notar o escriptor da _Hollanda_, embora, mais tarde, no seu livro de _John Bull_ se contradiga n'este ponto, a religião é o _facto culminante da familia_. A sagrada communhão do espirito existe entre todos os membros da mesma familia, entre todos os que se reunem, penetrados de affecto, ternamente aconchegados em torno do mesmo lar. O chefe de familia tem, por assim dizer, a direcção espiritual de todos os seus; e elles acceitam livremente essa lei religiosa que lhes foi ensinada, d'um modo tendente a desenvolvel-os, não a amesquinhal-os e a a entenebrecel-os para sempre. D'aqui provém a logica simples e sympathica de todos os seus actos e sentimentos. O drama deixa de existir como elemento natural da nossa alma e da nossa imaginação. O peccado não tem as mesmas excitações sensuaes, o cumprimento do dever é alguma coisa de mais serio, de mais sagrado e de menos complicado e contradictorio do que nos paizes catholicos, onde o padre, orgão da lei divina, ordena em geral o contrario do que o marido, orgão da lei social, exige e faz cumprir; onde a alma feminina vive entre a satisfação do desejo e os ardores do arrependimento, sempre oscillante, sempre inquieta, no eterno desiquilibrio, e na eterna vacillação enfraquecedora entre o bem e o mal, entre a culpa e a penitencia, entre o pequenino goso irritante de desobedecer, e o extase soluçante do confissionario, onde tudo se lava e se perdoa... Ramalho Ortigão deixa entrever tudo isto sem o accentuar demasiadamente, limitando-se a fazer-nos entrar com elle em dois ou tres _interiores_ que se lhe franquearam, e que elle pôde observar com a sua poderosa faculdade critica. São adoraveis de bondade simples, de feliz contentamento, de paz serena e doce, estes interiores hollandezes, e ainda aqui, perante a superioridade da nação que estamos estudando, a nossa consciencia se curva humilhada, e a nossa alma se penetra de salutar inveja. Todavia não nos deixemos ir completamente atraz do enthusiasmo, que tenta avassallar-nos diante d'estes quadros d'uma felicidade sem sombras, d'uma perfeição sem macula. As paginas do humorista hollandez Dowes Slekker, que Ramalho cita,--talvez movido pelo remorso, que no fim de contas o punge de admirar sempre, de admirar incondicionalmente,--as paginas em que aquelle escriptor, mais na intimidade do seu paiz, da sua raça e do seu meio, do que o viajante que passa impressionado simplesmente pela seducção dos aspectos exteriores, escalpelliza duramente, e ferozmente os ridiculos e os vicios dos seus concidadãos, essas dão-nos a certesa consoladora ou cruel, consoante o ponto de vista em que nos collocarmos, de que a absoluta perfeição humana não é mais que um sonho radioso em que se entretem por momentos a nossa ambiciosa phantasia. Em toda a parte a burguesia enriquecida e triumphante--e onde é ella mais triumphante e mais enriquecida que na Hollanda?!--hade ter os mesmos vicios, o mesmo egoismo desolador, a mesma ultrajante prerogativa de gosar, esquecida de todos os que soffrem! Nas _colonias_, a fóra a parte technica, util pelas informações, pelos factos e pelos documentos de comparação que fornece aos competentes, o que a mim me agradou como artista foi a pintura da Batavia, foi essa invasão luxuosa e violenta da vida dos tropicos, da sua paisagem, da sua flora e da sua fauna; do ar feito de chammas, da vegetação monstruosa, da implacavel, soberba, subjugadora e invencivel natureza d'esses climas de mortifero encanto! O ultimo capitulo da Hollanda intitula-se _A Arte_, e assim devia ser. E pela arte que esse paiz tem principalmente direito a viver, venerado e querido, no espirito dos que pensam, e na alma dos que sentem. A arte é o disco luminoso que o cerca, é o nimbo em que elle nos apparece idealisado e engrandecido. A arte é a coroa suprema da sua realesa. E depois a patria de Rembrandt e de Franz Halz justifica e faz comprehender a apotheose, o hymno de admiração enternecida que é este livro, elle proprio uma obra de arte, muito mais do que uma obra de critica. Ninguem estava no caso de apreciar e de sentir melhor a arte hollandeza,--essa arte que teve, como nenhuma, a perfeição do detalhe na harmonia do conjuncto, a nota exacta na comprehensão larga,--do que Ramalho Ortigão, o escriptor que, no seu processo, realisa tão adoravelmente a formula naturalista d'essa inspirativa e grande escola, ante a qual os modernos se sentem ultrapassados e excedidos. Pontos de vista notaveis, observações finas, analyse penetrante do assumpto, intuição maravilhosa de todos os segredos da arte--eis o capitulo que remata soberbamente este bello livro, d'um largo folego, d'uma ampla e serena inspiração. O assumpto arrastou-me. Fui mais extensa do que tencionava, e ha n'esta critica um _não sei quê_ audacioso na contradicção que a mim propria me espanta. Julgarão os leitores menos benevolos que eu me arrogo os direitos de critica em assumptos de viagem e de arte que me são quasi extranhos. E, no emtanto, no silencio do paiz, em face dos que tentam levantal-o trabalhando, ha uma desconsolação tão intima para a alma do escriptor, que a minha voz, por obscura que seja, tem, n'esta mudez geral, uma nota de sinceridade, uma aspiração de justiça, uma intenção de applauso, merecedôra d'uma certa indulgencia. Não me arrependo de fallar, visto que se callam tantos que tinham direito de applaudir em alto e bom som. Concluindo, repito o que já disse no principio do meu defeituosissimo esboço critico. Porque será que, apezar de tanta virtude sympathica e de tão nobre e levantado ideal, a Hollanda me impõe admiração sem me inspirar ternura absolutamente nenhuma?! É porque sou meridional de mais para comprehender essa raça persistente, fria, fleugmatica e pesada, incapaz de expansão, incapaz de altruismo generoso, incapaz do dilettantismo intelligente, que eu tanto aprecio nos individuos e nas nações! O que a elles, os bons hollandezes, lhes falta para me seduzirem, é a _pontinha de febre_, o grão de loucura, a chamma iriada e multicor que nós, a velha raça gasta nas exaltações e nos sobresaltos convulsos da nevrose que nos exhauriu a seiva, conservamos ainda na velhice que nos prostra... á sombra dos loureiros de outr'ora! Elles teem a virtude e a força que dão a serena placidez, nós temos a agitação eterna e dilaceradora, á custa da qual se compram os requintados supplicios e as delicias de uma volupia morbida. Nós conhecemos todos os martyrios, mas tambem todos os inebriantes gosos que dá a Imaginação. Nós buscamos na Dôr a suprema voluptuosidade sagrada, com que ella exalta e unge os seus dilectos, e não a trocamos pelas calmas e tranquillas alegrias d'essa boa gente pacata, pachorrenta, reflectida, egoista e séria, para quem a vida é um grato dever, para quem as scismas, as contemplações, as duvidas, os terrores phantasticos, são um accessorio inteiramente inutil, para quem o mysterioso _alem-tumulo_, que nos irrita e nos perturba, e nos chama, e nos allucina, e nos enche os labios de ironias blasphemas, e a alma de anciosas e ardentes interrogações, é uma certeza firme, accentuada, perfeitamente em regra, como um ramo de escripturação commercial?..... O incognoscivel, que é a enorme região sombria, onde a nossa mente divaga attonita e deslumbrada, a elles nem os afflige, nem os preoccupa! São felizes, no positivismo chato das suas ideias e das suas occupações! Nós somos os eternos mergulhadores do sonho, os eternos amantes da Visão! São felizes, nós somos loucos! mas eu amo a loucura com intermittencias geniaes, esta loucura com fecundos arrojos rapidos e apaixonadas ancias de um bem desconhecido, que escala o céu como o Prometheo do mytho hellenico, ou que se atira ao inferno, como o poeta que resume em si toda a sombria Edade Média!... _RAMALHO ORTIGÃO_ III AS FARPAS Tenho aqui, na meza em que escrevo, deliciosamente cartonado, o _primeiro volume_ da nova e augmentadissima edição das _Farpas_. Não entram n'este volume, que é todo de paysagens, aspectos maritimos ou campestres, scenas ruraes, costumes de aldeia ou de borda d'agua, de estações thermaes ou de pequenas villas provincianas--nenhum dos assumptos das _antigas Farpas_. Este volume é portanto inteiramente novo para nós, e não é tardia nem inopportuna a opinião da Critica a respeito d'elle. Basta ter enumerado os capitulos que o compõem para se comprehender que o livro é delicioso. Não ha em Portugal quem, como Ramalho Ortigão, saiba _vêr_ e saiba transladar para a sua prosa o _aspecto exterior_ das cousas. Para descrever uma paysagem, para pintar uma _marinha_, para nos dar a impressão nitida, precisa e firme, de um ou de muitos objectos, para desenhar, a traços inimitaveis de exactidão ou de pittoresco, a _sillouette_ d'um monumento archeologico ou o _fouillis_ encantador d'um salão moderno, é verdadeiramente incomparavel este escriptor, e não ha plasticidade egual á do seu estylo, em que á riqueza do colorido e á vida intensa se reune a technologia mais variada em todas as especialidades, fixando na memoria e no olhar a physionomia viva e real das cousas que elle pretende fazer-nos vêr. Não é um psychologo, não é um devaneador. É raro que elle se perca por um instante n'essa «floresta de almas», em que só vagueiam os apaixonados prescrutadores do invizivel, os sedentos de inacessivel Ideal, os interrogadores sombrios do eterno abysmo humano! Elle, mais simples e mais são, prefere as largas estradas batidas de sol, em que a luz é intensa e fulgurante, em que as arvores parecem uma renda phantastica polvilhada de scentelhas d'oiro. Em quasi todas as organisações artisticas d'este fim de seculo, n'aquellas principalmente em que imperam a sensibilidade e a imaginação, ha um fundo de morbidez visionaria, uma tristeza indefenivel e inquieta, uma ironia dolorosa e triste, um desejo insaciavel de penetrar o impenetravel enyma do nosso destino... Ramalho Ortigão foge muito de preposito d'essas regiões vaporosas em que a flor azul do sonho desabroxa, a um luar doentio, as suas petalas ideiaes. Robusto, equilibrado e são, ha n'elle um forte temperamento de artista, mas de artista que no seculo XVI teria podido desenvolver e exercer amplamente todas as suas faculdades, satisfazer o seu gosto do pittoresco, o seu amor do luxo, a sua preferencia pelas bellas coisas decorativas e espectaculosas. Na Vida o que o interessa mais que tudo, é o colorido, a variedade, o brilhantismo, a graça, a correcção, a harmonia dos seus multiplos aspectos e das suas diversas formas. A côr e a linha--eis os elementos que lhe bastam para a felicidade dos seus olhos, para as delicias da sua imaginação, para as necessidades do seu temperamento de artista! Viajar muito, vêr muito, e pintar tudo o que vio, n'um estylo de colorista veneziano, com uma penna que é, ao mesmo tempo, escopro e pincel--eis a faculdade predominante d'este escriptor que, só errando a brilhante vocação que recebeu da Natureza, póde perder-se de vez em quando em abstracções philosophicas, sempre confusas, e em sabbatinas pedagogicas, sempre contrafeitas. Elle não é um philosopho nem um educador das sociedades; é um artista! Abençoado quinhão o seu, incontestavelmente o melhor de quantos na terra se podem escolher! Para demonstrar n'elle a superioridade do colorista, do pintor, sobre o philosopho e o critico, bastaria este volume de viajante, illuminado das mais bellas e radiantes paysagens, em que os aspectos ruraes, as _marinhas_, as scenas campestres, os quadros de aldeia se succedem, alegrando-nos a vista como um kaleidoscopo deslumbrador. E eu não quero com isto dizer que Ramalho Ortigão, não seja um critico. Mas a sua critica, quando é superior, quando é frisante e verdadeira, é quando elle a executa pelo mesmo processo magistral de que usa nos seus livros descriptivos. Então sim, porque a licção ressalta naturalmente do aspecto exterior das cousas. A _toilette_ d'uma lisboeta aperaltada; a mobilia aprumada e symetrica d'uma casa burgueza; a sessão d'uma assembléa constitucional; o interior d'uma botica sertaneja; a apparencia d'uma egreja de cidade em dia de festa, etc., etc., etc., dão-nos a impressão directa e viva dos sentimentos, que todas estas cousas traduzem ou com os quaes todas estas cousas se relacionam. Pelos _puffs_ exaggerados, pelos altos tacões dos sapatos esticadissimos, pelo chapeu inesthetico, pelo espartilho ridiculamente apertado, por todos estes deploraveis symptomas d'uma imbecilidade que já vem de muito longe, comprehende-se tudo que o escriptor nos quer demonstrar: falta de educação, falta de gosto, falta de modelos artisticos, pressão secular de influencias deleterias e funestas. Pela regularidade fria e systematica d'um _interior_ de burguez, que nenhuma scentelha de arte espiritualisa ou illumina, percebe-se naturalmente a comprehensão acanhada e restricta que elle tem da vida e do encanto profundo e moralisador da intimidade domestica; vê-se a inaptidão artistica que o afflige, a impossibilidade absoluta e fundamental em que elle está de crear uma existencia, praticamente agradavel e espiritualmente feliz, em que se fundam, n'um accordo sympathico, as exigencias requintadas da civilisação e as satisfações mais puras da vida moral. E por aqui diante, o mesmo processo de arte dá para a intelligencia os mesmos resultados. É este o segredo que individualisa Ramalho Ortigão e que faz com que sendo elle um artista plastico, por assim me expressar, seja igualmente um notavel moralista. É indispensavel porém que o leitor tire dos quadros a moralidade que d'elles deriva! * * * * * N'uma _advertencia_ muito bem feita que precede o livro, Ramalho Ortigão diz que as _Farpas_, são escriptas n'um espirito de _dilettantismo_ emancipador e desinteressado e pelo que vi n'um artigo lido hoje mesmo, a palavra dilettantismo não foi tomada pelo critico na accepção que o escriptor lhe dera; não é pois fora de proposito, que eu aqui explique um pouco ao leitor, qual o _dilettantismo_ de que Ramalho Ortigão se diz inspirado ao traçar os capitulos bellissimos das suas novas _Farpas_. No conflicto enorme, desordenado e confuso de theorias, de systemas, de doutrinas e de hypotheses, em que o seculo XIX tem baralhado os seus desgraçados filhos, cada questão tem tantas faces, cada phenomeno é contemplado sob uma tal multiplicidade de pontos de vista, cada verdade é tão ondeante, elastica e malleavel, cada doutrina tem tantos aspectos, cada theoria apresenta tal somma de _nuances_, que se vae pouco a pouco perdendo, nas altas regiões do pensamento, aquella especie de homens de uma peça só, systematicos até á teima, fanaticos até á heroicidade, obstinados até ao pyrrhonismo, que de cada ideia só viam um angulo, que julgavam que a verdade era só uma, e não podia ser encarada por diversos modos! Esses homens, fanaticos, no sentido mais amplo da palavra, tinham uma fé ardente n'aquillo em que tinham fé! uma paixão profunda pela ideia que serviam, e por isso, arcando com obstaculos terriveis, que nós já não conhecemos, obraram grandes feitos de que nós já somos incapazes! Em philosophia, em religião, em moral, ou em politica, estes homens iam para diante, altivos, intemeratos, um pouco obcecados pela sua crença no absoluto, mas por isto mesmo inacessiveis ás mil influencias que neutralisam a vontade moderna, e sem perigo de cederem ás correntes contrarias que hoje sollicitam, de tão diversos pontos, o pensamento que quer ser imparcial, o desejo de verdade que quer ser sincero! Em contraposição a estes homens capazes d'um só amor e d'um só odio, surdos ás vozes todas que contradissessem o _á priori_ do seu sonho, existe hoje uma raça mais doente e mais fraca talvez, mas sympathica na sua indecisão, e perfeitamente moderna no capricho ondeante da sua sensibilidade! E é a esses que inspira e dirige o espirito de dilettantismo de que falla Ramalho Ortigão. Diz pouco mais ou menos Bourget, o systematisador moderno do dilettantismo, fallando de Renan o mais genuino _dilletante_ de quantos se conhecem modernamente, que é mais facil perceber esta palavra do que definil-a com precisão. E accrescenta: «é menos uma doutrina que uma disposição de espirito a um tempo muito intelligente e muito voluptuosa, que nos inclina simultaneamente para as diversas formas da vida e nos leva a emprestarmo-nos, ora a uma ora a outra d'estas fórmas, sem nos darmos inteiramente a nenhuma d'ellas.» Dilettantismo e doutrinarismo--eis os dois polos do pensamento do homem! O espirito de systema tende a desapparecer da elaboração mental d'este seculo, e á proporção que elle affrouxa desenvolve-se e cresce essa extranha faculdade--que faz uma especie de Proteo de cada entendimento, e que tomando a vida como uma illusão universal que ora se faz ora se desfaz, ora se tece a oiro e perolas, ora se destrama, phantasticamente, substituindo a nudez mais completa á opulencia mais asiatica, acha a verdade d'um momento em cada fórma passageira que encontra debaixo dos olhos. Comprehendendo d'esta fórma o _dilettantismo_ acha-se uma faculdade superior, um dom que póde multiplicar os gosos intellectuaes pela multiplicidade de pontos de vista que nos revella. Não encontro, porém, no volume das Farpas que tenho presente, a applicação d'essa faculdade, eminentemente subjectiva. O que eu encontro e saudo n'elle é a obra d'um artista para quem a lingua portugueza é o instrumento mais docil e o teclado mais vasto e mais sonoro, e em quem a _visão das cousas_ é tão violenta e tão intensa que possue o milagre de communicar aos outros a sua privilegiada lucidez. _ANTHERO DE QUENTAL_ I OS SONETOS Não ha, talvez, em toda a litteratura portugueza uma individualidade mais distincta, mais original, mais _á parte_, que a d'este homem. Não é simplesmente como escriptor, como litterato, como _auctor de livros_, que Anthero de Quental tem de ser considerado. Para bem estudar esta figura singular, para a vêr á luz que lhe é propria, para a comprehender sob todos os seus aspectos varios, é indispensavel alguma coisa mais do que a faculdade critica, applicada á litteratura, é necessaria a comprehensão profunda e clara de todas as causas que determinam esta phase,--de certo transitoria, de certo temporaria--de _nihilismo_ mental, em que se debatem os artistas mais vibrateis e delicados, as almas mais sensiveis e morbidamente agitadas d'este fim de seculo, a um tempo tragico e banal. Como podia eu, pois, conseguir o que imagino que só conseguiria um critico no genero especial de Bourget, por exemplo, um critico que recebe as influencias germanicas e as transmitte, modificadas pela sua imaginação e pela sua rasão latinas; um critico cosmopolita e capaz de comprehender todos os estados d'alma e todas as faculdades caracteristicas das mais diversas raças? A critica tem acompanhado o movimento progressivo das sciencias, e tem-se modificado e transfigurado ao influxo d'ellas. Sem fallarmos nos criticos da Allemanha, muito menos accessiveis para nós e muito menos comprehendidos por nós, sigamos a evolução ascendente que a critica litteraria tem tido em França, e veremos como ella se tornou hoje uma sciencia completa, para a qual forneceram dados, elementos, observações e experiencias todos os ramos do saber humano, cada dia mais amplo. Que longe nós estamos d'aquella boa critica, modesta e facil, em que a obra de arte era simplesmente julgada segundo as regras formuladas por Aristoteles, em que o livro, o drama, o poema se consideraram perfeitos ou defeituosos, conforme se cingiam aos preceitos da rhetorica e da poetica consagradas, ou se afastavam indevidamente d'elles! Diderot teve no seculo XVIII, a maravilhosa intuição do que poderia vir a ser a critica; essa intuição, vaga ainda, illumina, todavia, de luz inesperada as suas formosas improvisações, os seus devaneios scintillantes de _verve_ sobre a arte do seu tempo. Villemain, mais tarde, afastando-se de todos os que pretendiam arrogar-se em face do escriptor os direitos de bons criticos, e que não conseguiam ser mais do que rhetoricos importunos, relaciona pela primeira vez as litteraturas com os outros productos sociaes d'uma dada epoca; faz perceber as reciprocas influencias, que actuam em raças diversas e transformam lentamente uma civilisação determinada; mostra claramente, no seu estylo de erudito ainda subjugado pelos moldes classicos, o extraordinario poder com que as lettras imperam na politica, e a politica nas lettras, e o modo indirecto, mas poderoso, pelo qual a arte se torna um elemento de revolução, e da revolução surge e se levanta uma nova arte; revela, emfim, a força que as idéas teem sobre a acção, e a ineluctavel energia com que a acção limita ou modifica o imperio das idéas... Sainte Beuve, adoptando muitos dos pontos de vista de Villemain, accrescenta-lhes tudo que póde tornar este methodo mais vivo, mais luminoso, mais humano, tudo o que póde dar movimento e graça ao corpo um tanto inteiriçado e hirto do eloquente professor do _Curso de litteratura_. A critica de Sainte Beuve é uma creação! Na obra d'arte vê a época em que ella surge e o homem que a produziu. A anedocta elucidativa, o commentario suggestivo, o estudo minucioso do caracter do escriptor, o meio em que elle se moveu, a influencia directa, ou indirecta, que esse meio exerceu em todas as circumstancias caracteristicas da sua vida e no seu modo particular de encarar as coisas e os homens,--tudo concorre para esclarecer o critico eminente, a tudo dá relevo e côr o seu estylo fino, flexivel, todo em cambiantes, todo em linhas flexuosas, que penetra o assumpto, que o segue nos seus meandros mais caprichosos, nos seus labyrinthos mais emmaranhados, que se cinge a elle nas suas ondulações mais particulares, que o illumina de todos os lados e por todas as formas; malleavel, sagaz, levemente sceptico, inimigo sempre do absoluto de todas as doutrinas, do dogmatismo de todas as formulas. O grande critico da nossa raça n'este seculo é com toda a certeza Sainte Beuve. Os que vieram depois d'elle, deram a formula mathematica, precisa, da doutrina que elle praticára e descobrira com uma ligeireza, uma elegancia, um gosto nunca mais realisados. Taine acceitando a herança de Sainte Beuve, foi alem do que elle era, um naturalista que levou para os estudos d'arte o seu forte methodo scientifico, que verifica, prova, experimenta e conclue depois. A isso deve o ser considerado e com justiça o mestre da nossa geração. Taine póde ter discipulos, Sainte Beuve podia ter apenas admiradores. A litteratura aos olhos de Taine é, como tudo o mais, um producto fatal da raça, do meio, do momento, modificado n'este ou n'aquelle sentido, mas modificado apenas, pelo temperamento particular do artista. A ordem, o equilibrio, a harmonia que existe em toda a natureza, achou-as elle na esphera do pensamento humano, n'esse grande mundo da arte que falsamente nos parecia caprichoso, cahotico, arbitrario, sem leis que o dominassem, sem causas a que estivesse fatalmente subordinado. Comprehende-se bem como este ponto de vista--que outros tinham achado, mas que elle formulou scientificamente--revolucionasse a noção da critica, e lhe desse, ao mesmo tempo, harmonia, amplitude e grandeza. D'este modo vê-se bem que em cada livro que lêmos, em cada obra por meio da qual um forte temperamento de artista, ou um grande cerebro de pensador se nos manifesta, está como que indicada a gradação successiva de todas as civilisações que, justapondo-se umas ás outras e desdobrando-se umas das outras, produziram o momento historico, a phase sentimental ou intellectual de que esse livro é involuntariamente echo, repercussão e reflexo. A lei que liga estreitamente entre si todos os phenomenos da Vida, que explica o encadeamento fatal de todas as manifesções do pensamento, ninguem a formulou com mais lucidez e mais clareza do que Taine. Cada escriptor é o que não póde deixar de ser, dada a hora em que a sua obra se produziu, dados os elementos sociaes que concorreram para a elaboração d'ella, dadas as qualidades fundamentaes e irreductiveis da raça a que elle pertence, dada a organisação particular, que, em virtude de todas estas leis e de outras leis egualmente ineluctaveis, elle recebeu da natureza. Shakspeare, por exemplo, esse colosso que nós julgámos por muito tempo a creação espontanea e maravilhosa, que um _decreto nominativo_ do Eterno fizera surgir n'uma idade semi-barbara, apparece, na obra de Taine, naturalmente, no logar que lhe é proprio e que lhe estava necessariamente destinado, de um modo que nada tem de surprehendente ou de imprevisto. Todo o movimento politico, litterario, social da Renascença ingleza vem rematar harmoniosamente em Shakspeare, sem esforço, sem salto inexplicado, sem arbitrariedade do Destino, sem que no espirito do leitor, que estuda o quadro complexo e extraordinariamente poderoso da vida intellectual da Inglaterra, este grande nome, universalmente acclamado, produza o espanto, a sensação do imprevisto, o abalo e o sobresalto de uma apparição sobrehumana! Vista a evolução do pensamento a esta luz viva e fecundante, como tudo se explica e harmonisa, como tudo se ordena magnificamente, como os effeitos derivam naturalmente das suas causas superiores, como é bella essa admiravel ascensão das trevas para a luz, do cahos para a suprema harmonia! Entre todos os obreiros maravilhosos que em França a critica moderna tem tido ao seu serviço, nenhum, porém, existiu nunca que melhor podesse explicar, illuminar, tornar accessivel a todos a obra de Anthero do Quental, como esse a que me referi ha pouco: o auctor, aos meus olhos adoravel, dos _Ensaios de Psychologia Contemporanea_. Em Bourget sente-se, como em Anthero, visivelmente e fortemente, a influencia da Allemanha. Discipulo de Schopenhauer, foi elle--talvez inconscientemente seduzido--quem tornou Schopenhauer intelligivel á França, e popular ou, pelo menos, conhecidissimo em França. Mas o _pessimismo_, que no philosopho de Francfort é doutrina, foi Bourget encontral-o como _sentimento_ em muitos dos artistas mais delicados e mais queridos do nosso tempo, n'aquelles de quem uma geração inteira bebe a inspiração e acceita o ideal. Bourget desceu ao fundo da alma contemporanea e achou lá, ora visivel como um jazigo a descoberto, ora occulta como um filão inexplorado, esta dolorosa aspiração ao _não ser_ em que virão, talvez, cruelmente e anti-naturalmente, a abortar todos os sonhos radiosos e extranhamente grandes que a humanidade concebeu, que a sciencia tem tratado tenazmente de realisar, e que a arte devia ter a gloriosa, sublime e util missão de traduzir!... Seria pois Bourget quem melhor do que ninguem faria comprehender até aos mais profanos, e aos menos dados ás sublimes abstracções do espirito, o livro eminentemente moderno, e extranhamente doloroso e contradictorio de Anthero do Quental. A lingua em que nós escrevemos e fallamos não a conhecem porém lá fora, e este livro que em toda a parte seria criticado e discutido como um symptoma mental, caractetistico do nosso tempo, fica sem echo, a não ser entre alguns delicados d'entre nós, a quem estas questões interessam a titulo de curiosidade litteraria. II A mim, se me faltam, como já disse, muitos dos predicados exigidos para analysar e estudar a obra, tão profundamente pessoal, do auctor dos _sonetos_, não me falta comtudo, para lhe comprehender a alma agitada e sacudida por tantas idéas que se combatem entre si, produzindo uma tragica lucta interior, o que n'este caso supre vantajosamente a sciencia e a critica: refiro-me á minha alma de mulher, contradictoria tambem, tambem fluctuante, e que não foi corrigida nem mutilada pela necessidade fatal da acção, pela despotica lei social que impelle o homem a pronunciar-se n'um sentido definido, a caminhar para um fim determinado, a _comprometter_, por assim dizer, as suas opiniões e as suas crenças, dando-lhes uma forma precisa e limitada, encerrando-as n'uma esphera positiva e restricta. N'este ponto Anthero de Quental guardou, a par das qualidades poderosas e creadoras de um espirito viril, a plena independencia mental que é talvez a maior felicidade da mulher, quando a mulher--o que é raro--a sabe aproveitar no enriquecimento, na ampliação e na cultura do seu mundo interior. Está portanto ahi o ponto delicado e subtil em que nos encontramos. O livro dos _Sonetos_, que para mim vale muitissimo como obra de arte e de poesia, vale principalmente como documento psychologico, como _notação_ sincera, espontanea, feita dia a dia, de sensações requintadas, como confissão d'uma alma que,--nas suas dôres imaginarias ou reaes, nas suas ardentes aspirações d'um espiritualismo doloroso, nas suas duvidas desnorteadoras diante de todos os problemas insoluveis da Vida, no seu desejo dilacerante d'um absoluto impossivel, nas suas anciosas interrogações em face do incognoscivel eterno, nos seus gritos melodiosos de apaixonada tristeza e de amargura revoltada--condensa, representa, synthetisa em si o estado sentimental de todo um mundo, o mundo a que nós pertencemos. O vago mal-estar que fez chorar tão docemente Lamartine, e que sacudiu violenta e dolorosamente os nervos de Musset, definiu-se nos seus symptomas, revelou-se aspera e positivamente nos seus mais accentuados caracteres. Nós não ignoramos o mal de que soffremos e porque soffremos. Não foi impunemente, e sem que um medonho e forte abalo se produzisse nos espiritos e nas consciencias, que a sciencia, implacavel e tranquilla, despovoou os ceus, destruiu na nossa alma, ambiciosa e soffredora, o sonho da triumphante immortalidade, fez do mundo, que julgavamos centro e eixo do Universo este humilde grão de areia que hoje gravita subordinado e dependente nas amplidões infinitas do espaço; não foi sem dilacerar as fibras mais intimas do nosso orgulho que a biologia, arrancando aos abysmos do tempo o segredo da primeira scentelha da Vida que animou este planeta, nos demonstrou o que nós eramos no fim de contas, nós que nos julgavamos os filhos dilectos do Creador! Se a sciencia exulta, se os seus apostolos continuam tranquillos e convencidos a trabalhar para a completa libertação d'esse escravo d'outras eras, que é o triumphador maximo de hoje, se o progresso caminha, se a civilisação se requinta, se a materialidade do goso attingiu quasi os limites do ideal, quantos corações, em compensação de tanta grandeza, não ficariam esmagados e desfeitos em sangue sob as rodas de fogo d'esse carro de triumpho, que leva a humanidade, cega de orgulho, á conquista da sua apotheose final!... A extraordinaria revolução scientifica e social, que faz do nosso seculo uma quadra sem precedentes na historia, se trouxe a tantos a felicidade, a libertação, a victoria, se deu ás massas o goso de regalias ignoradas, se nivelou as castas, se diminuiu a miseria, se combateu muitos males visiveis, muitas injustiças flagrantes, se teve, emfim, nos seus aspectos geraes e nas suas linhas grandiosas, resultados soberbos, que ninguem contesta e que todos aproveitam, não podia comtudo, deixar de repercutir-se de um modo violento e profundo, dilacerante ás vezes, outras vezes entontecedor, em certas almas impressionaveis, em certos espiritos delicados, em certas organisações doentiamente accessiveis!... Que importa, dirão, se a felicidade do maior numero exige o sacrificio desses poucos! Sim, não importa que elles soffram; o que não obsta a que, ainda mesmo aos mais fortes, inspirem a mais irresistivel sympathia esses corações ardentes, essas almas visionarias, que a sêde invencivel da sciencia leva a beberem do seu amargo licôr, e que em vez de acharem n'elle a robustez, a certeza fortificante, a saude mental, cáem prostrados por uma dolorosa ebriedade,--iniciados que dariam tudo para ignorar, curiosos e complicados espiritos que anceiam debalde por se salvarem pela simplicidade e pela innocencia, a cujo seio nunca mais, _nunca mais_, poderão retroceder... III É perfeitamente esta dôr terrivel, que só é dada a alguns eleitos da sensibilidade, esta dôr sem consolo que tem de os perseguir implacavelmente até á morte, e que póde achar calmantes e anesthezicos, mas nunca uma cura decisiva, que Anthero de Quental exprime dolorosa e magnificamente n'estes _Sonetos_ que, para o _grosso publico_, hão de parecer apenas os devaneios de um phantasista, senão as mysteriosas locubrações de um allucinado e de um nevrotico. Oh! felizes dos _simples_, porque elles não conhecem esta dôr dilacerante de duvidar, esta ancia amarga de saber, esta inquieta curiosidade de prescrutar todos os mysterios, de sondar todos os recessos sombrios do pensamento! Felizes dos simples, porque elles não voltam d'essas regiões terriveis, d'esses circulos dantescos, empallidecidos, cançados, mortalmente tristes, sem coração para amar, sem força para viver, sem incentivo para a lucta, sem alimento para as ambições banaes e limitadas d'este mundo. E, no entanto, maldizendo as dôres de que a razão lhe foi origem, Anthero de Quental não pode amaldiçoar essa faculdade superior, comprada á custa de taes agonias, mas que lhe tem dado--goso contradictorio e extranho!--o austero orgulho dos que sabem!... Razão, velha de olhar agudo e frio E de halito mortal, mais do que a peste! Pelo beijo de gello que me deste, Fada negra, bemdita sejas tu! Bemdita sejas tu pela agonia E o lucto funeral d'aquella hora Em que eu vi baquear quanto se adora, Vi de que noite é feita a luz do dia! Pelo pranto e as torturas bemfazejas Do desengano... pela paz austera D'um morto coração que nada espera Nem deseja tambem... bemdita sejas!... Muitos perguntam,--e, no seu ponto de vista racional e practico, perguntam com razão--a que se deve a reclusão quasi absoluta, o abandono de todos os interesses positivos, a inacção voluntaria, que tão estranhamente caracterisam esse pensador, esse critico, esse poeta, chamado Anthero de Quental. Quando pela primeira vez os echos d'este nome repercutiram na sociedade portugueza, foi como um som bellicoso e guerreiro que se ouviu, sobresaltando os possuidores consagrados da realeza litteraria d'esse tempo. Anthero de Quental era, na somnolenta, monotona e convencional _coterie_ litteraria de ha vinte annos, considerado um iconoclasta, atrevido e sacrilego, que vinha sem dó derrubar os velhos idolos, atirar por terra as reputações consagradas, levantar uma vermelha bandeira revoltosa em meio da serena paz, que os bons e pachorrentos mestres do classicismo academico faziam reinar entre todos os portuguezes... que os não liam! Na politica Anthero tinha a ousadia, então quasi criminosa, de se proclamar socialista; em philosophia era um pantheista, em cuja bella imaginação, colorida e meridional, as sublimes hypotheses de Hegel exerciam uma acção dominadora; em litteratura, elle trazia todas as novas idéas hoje conhecidas e generalisadas, então quasi inteiramente ignoradas por nós, que la fóra tinham desthronado o romantismo, e produzido a grande evolução naturalista agora triumphante. Anthero de Quental era pois um revolucionario, um innovador; estava-lhe destinado um d'estes papeis que n'uma litteratura e n'um paiz são o maior titulo de gloria, que ao pensamento e ao trabalho de um homem é dado alcançar: o de iniciador, de percursor, de _porta-estandarte_ de uma Idéa civilisadora e grande! Porque não realisou elle estas promessas de luctador e de artista infatigavel? A esta pergunta, que se apresenta naturalmente diante de todos os espiritos, responde este livro. Vamos pois vêr de que modo. IV Para mim--e talvez que eu n'este ponto e em mais alguns me tenha afastado do espirito com que Oliveira Martins, o notavel escriptor e o amigo fiel e terno e quasi fanatico de Anthero escreve as palavras que servem de prefacio aos magnificos versos do poeta--para mim o que prostrou Anthero de Quental n'aquelle extase vago e contemplativo, de que os seus ultimos _sonetos_ são a mais completa expressão, foi justamente o _excesso do pensamento_, o abuso da analyse, a que elle se entregou, prematuramente, no periodo mais activo e mais arrojado da vida do homem, quando geralmente este emprega todos os recursos da sua energia para se fazer no mundo um grande logar, onde tenha espaço que baste á envergadura das suas ambições. Pensou _de mais_, quiz conhecer e sondar e penetrar _de mais_ as theorias extravagantes ou grandiosas, desconsoladoras ou sublimes, phantasticas em todo o caso, com que a Humanidade tenta, desde que existe, explicar a si mesma o mysterio da sua existencia. São raras as almas em que se trava sériamente, tragicamente, este combate com a Verdade! Procural-a e possuil-a foi o sublime fim a que a alma d'este poeta, tão moço ainda, se entregou completamente. Mas a nós homens não é dado achar a Verdade! Por isso Anthero foi vencido na sua lucta soberba, por isso foi contraproducente o seu trabalho heroico, e, prostado, abalado até ás mais fundas raizes do seu sêr, por tantas contradições, que o cingiam como as lianas tenazes de uma floresta virgem, por tantas duvidas que estendiam sobre elle a sombra escura dos seus ramos venenosos, por tantas hypotheses que se desmentiam aos seus olhos penetrantes, por tantos sonhos vertiginosos que o entonteciam e embriagavam, pela inextricavel vegetação, gigantesca e confusa, de tantas idéas, sob as quaes o nosso seculo está litteralmente esmagado,--elle, o pensador sincero, a alma enamorada da Verdade e da Justiça eterna, o idealista incorrigivel que o mysterioso _au delá_ captiva e chama, apezar da negação feroz dos racionalistas e da indifferença systematica do positivismo, elle achou que o unico refugio, no meio d'este cahos, que o unico descanso no meio d'este combate em que a vida quasi se lhe esvaía, seria o de uma inacção contemplativa, de um renunciamento mystico, de uma especie de _bhudismo_ mental que nos seus versos se reflecte ás vezes em harmonias ineffaveis, em cantos resignados e immortaes!... * * * * * Mas, para chegar a esta estação ultima de uma longa Via Dolorosa, de que tempestades enormes, de que dramas convulsos não foi theatro a alma d'este poeta, que _viveu_ a sua poesia antes de a ter feito!... Aspirou á felicidade como toda a gente, mas a felicidade a que elle aspirava é que não era a _de toda a gente_, e por isso a procurou de balde! É provavel que partisse, como todos os que são moços, com as suas grandes _botas de sete leguas_ á conquista d'esse _Velo de ouro_, que se chama amor ou que se chama gloria; mas que desalentos o fizeram parar absorto e esquecido de tudo, nos recantos melancolicos ou nos desfiladeiros sombrios do seu caminho imaginario!... E é a historia d'essa viagem terrivel que estes _sonetos_ nos contam; por isso elles hão de interessar tanto os que pensam e sentem, e n'uma esphera, embora menos ampla, soffreram e luctaram tambem! Foi n'uma das suas horas de tristeza sem consolo que elle escreveu estes versos, cuja vibração sonora e longa se repercute para além das paginas do livro, por esse espaço fóra... Porque a noite é a imagem da Verdade Que está além das coisas transitorias, Das paixões e das formas illusorias, Onde sómente ha dôr e falsidade... Mas tu, radiante luz, luz gloriosa, De que és symbolo tu? do eterno engano, Que envolve o mundo e o coração humano, Em rede de mil malhas mysteriosa! Symbolo, sim, da universal traição D'uma promessa sempre renovada E sempre e eternamente perjurada, Tu, mãe da Vida, e mãe da Illusão... .................................... .................................... De que são feitos os mais bellos dias? De combates, de queixas, de terrores! De que são feitos? De illusões, de dôres, De miserias, de magoas, e agonias! O sol, inexoravel semeador. Sem jamais se cançar, percorre o espaço, E em borbotões lhe jorram do regaço As sementes innumeras da Dôr! Oh! como cresce sob a luz ardente A seara maldita! Como freme Sob os ventos da vida, e como geme N'um sussurro monotono e plangente! * * * * * Não pode a revolta d'um coração ferido pelas injustiças sangrentas da vida exprimir-se com mais desesperada e mais apaixonada eloquencia!... Se a vida é isto--e é isto quasi sempre aos olhos do poeta dos _Sonetos_,--para que luctar, para que trabalhar, para que arrastar eternamenre ao alto da montanha, aspera de tojos bravos, o enorme rochedo que eternamente rolará pelos seus flancos duros ao abysmo fundo onde de novo o homem tem de ir buscal-o, para novamente procurar com elle o pincaro escalvado d'onde cahiu?! D'aqui ao profundo _nihilismo_ em que Anthero tem de ir dar é, longo o caminho, mas é logico e está claramente indicado... Sob o ponto de vista pratico e razoavel, este livro, tão profundamente espiritualista, é um livro, no fim de contas, desconsolador; se a obra de Anthero fosse comprehendida por todos, teria um alcance funesto para o espirito humano! O sonho da perfeição que o inspira, leva-o a uma comprehensão da existencia erronea e perigosissima! Incompleta como é, a vida exige de nós todos, como um dever sagrado, que appliquemos a resolver-lhe os problemas, a vencer-lhe as luctas dolorosas, a cumprir-lhe os asperos deveres, toda a energia das nossas faculdades, toda a abnegação dos nossos sacrificios, todo o vigor da nossa vontade, todo o amor do nosso coração, todo o poder de sympathia de que a nossa alma dispõe. Não tem desculpa os que desdenhosos e inactivos, cruzam os braços, indifferentes aos triumphos do Mal desde que perderam a esperança de fazer do Bem o rei absoluto da creação. Mas, feitas estas restricções que a consciencia me está impondo, a verdade é que não ha no bello livro de Anthero, tão pessoal e tão _vivido_ nem um _estado de alma_ que a minha alma não comprehenda e não justifique. E que diversidade de sentimentos, e que mundo, complexo e vago, de emoções cambiantes! É um devoto da Virgem, de um mysticismo doce como o dos monges primitivos? É um triste e incrédulo filho d'este seculo sem Deus? É um metaphysico perdido no seu sonho nebuloso e desconnexo? É um espiritualista que protesta com todas as revoltas da sua consciencia e todas as lagrimas do seu coração contra o materialismo que ameaça fazer retroceder este mundo a um estado de brutal immoralidade e de goso sensual nunca saciado? É um pensador que, conhecendo todas as theorias philosophicas que explicam o ser, a todas domina e a todas dá a forma sentimental e poetica de que ellas carecem para serem comprehendidas pelos profanos da sciencia, e pelos _diletantti_ do pensamento?... É tudo isto, sem ser nada d'isto; porque é tudo isto em momentos que passam, e que, ao passarem, fixam a fugitiva imagem n'uma lamina argentea, emmoldurada em esmaltes vivos, em cinzeladuras rendilhadas, em delicados e artisticos florões. Mas--e é este o supremo merecimento d'este livro--é tudo isto sinceramente, espontaneamente, sem _pose_, sem artificio, sem estudo previo! * * * * * Anthero não é um acrobata da rhetorica, não é um prestidigitador de imagens faceis, é um coração que soffre, é uma alma que se impressiona, é um cerebro que vibra, é um _sincero_ que põe toda a potencia das faculdades em cada rapida modalidade do seu complexo sêr! Querem vêr como elle proclama, n'uma dolorosa amargura a inanidade final de todo o esforço humano? Em vão luctamos! Como nevoa baça A incerteza das cousas nos envolve; Nossa alma, emquanto cria, emquanto volve Nas suas proprias rêdes se embaraça. O pensamento que mil planos traça, É vapor que se esvae, e se dissolve, E a vontade ambiciosa que resolve Como onda entre rochedos se espedaça. Filhos do amor, nossa alma é como um hymno Á luz, á liberdade, ao bem fecundo, Prece e clamor d'um pressentir divino... Mas n'um deserto só, arido e fundo, Echoam nossas vozes que o Destino Paira mudo e impassivel sobre o mundo! Contradictorio? sim; mas verdadeiro! Para mim os que nunca se contradizem são, em geral, os que mentem sempre. Os sinceros são alcunhados de incoherentes pelas pessoas _sérias e graves_ que fazem a _opinião publica_, quer dizer, que criam esse absurdo enorme, feito de convenções falsissimas, sempre aprumado na sua immobilidade estupida e na sua monotonia secular... V É-me absolutamente impossivel, e nem com esse intento se compadece a indole d'este rapido esboço critico, fixar aqui completamente a physionomia litteraria, tão expressiva e tão complexa de Anthero de Quental. De resto, eu escrevo apenas para os que leram e apreciaram o poeta, para aquelles que se sentiram mais impressionados diante das suas contradicções, tão humanas, tão genialmente sinceras! Pois qual é o homem verdadeiramente digno d'este nome, que nunca sentiu dentro da sua alma o terrivel embate de mil pensamentos dolorosamente hostis?! O mais sceptico dos filhos d'este seculo sente palpitar ás vezes, no fundo intimo do seu coração, o dôce coração piedoso e crente da mãe querida, da velha avó, que outr'ora foi levar á sombra austera do templo, ao altar onde o Homem-Deus sorri resignado e triste, o holocausto de todas as suas tentações e de todos os seus amores; assim como o mais piedoso de entre nós, nem sempre logra fugir á acção dissolvente do scepticismo universal, que vai crescendo, crescendo, como uma maré de perdição... Entre estes dois pólos do pensamento humano, quantas gradações, quantos cambiantes, quantos modos complicados ou morbidos de pensar e de sentir!... Se só é completo e grande o que os comprehender a todos,--que desgraçado não será o que a todos experimente! Por isso o nosso poeta exclama, n'um impeto de dôr sincera e tragica: Ouve tu, meu cançado coração, O que te diz a voz da Natureza --«Mais te valera, nú e sem defeza, Ter nascido em asperrima soidão! Ter gemido, ainda infante, sobre o chão Frio e cruel da mais cruel deveza, Do que embalar-te a Fada da Belleza Como embalou, no berço da Illusão! Mais valera á tua alma visionaria, Silenciosa e triste, ter passado Por entre o mundo hostil e a turba varia. (Sem ver uma só flôr das mil que amaste) Com odio, raiva e dôr... que ter sonhado Os sonhos ideaes que tu sonhaste!... * * * * * Pouco a pouco, porém, por uma especie de lenta gradação, com retrocessos fugitivos, a alma de Anthero do Quental, cançada de sonhar, de aspirar, de desejar em vão, vae-se iniciando n'essa paz suprema a que os sectarios do velho Bhuda indico chamaram o _nirvana_! O _nirvana_ é uma especie de renunciamento da alma que nada espera, e que, fóra da esperança, achou a tranquillidade beatifica do _não-ser_. Schopenhauer não fez mais do que pôr em moldes novos a palavra mil vezes secular do antigo sabio: «A virtude, diz Bhuda, consiste em nos desinteressarmos de tudo que é sensivel.» «Liberto de todo o cuidado da acção, o verdadeiro crente queda-se tranquillamente sentado na cidade das nove portas, sem de nada cuidar, e sem aconselhar aos outros a acção.» «D'entre os meus servos, aquelle a quem mais quero é o que tiver coração benevolo para toda a natureza, não temendo os homens, nem sendo por elles temido. _Apraz-me tambem o que houver renunciado inteiramente á esperança, e o que não se abalance a nenhuma empreza humana_,» Toda a desgraça do homem, continua ainda o philosopho da velha India, é attribuir ás coisas d'este mundo duração, permanencia, e realidade. «O mundo é uma illusão immensa.» Não desejemos, para não soffrermos. Não amemos, para nos não prendermos ao que é illusorio e passageiro. Não _esperemos_, e, n'esse _renunciamento_ absoluto (principio da moral bhudica, e fim da philosophia Schopenhaureana), encontraremos a paz, quer dizer, a extincção de todo o desejo, a morte de toda a sensação, o desprendimento de nós mesmos e da Vida universal. N'esta doutrina tão velha, que o espirito germanico remoçou e como que adaptou ás complicações extraordinarias e imprevistas da vida moderna, acolhe-se adoravelmente o poeta em muitas das suas horas de desalento e de cançasso. Envolve-te em ti mesma, oh alma triste! Talvez sem esperança haja ventura! E n'outro soneto: Na floresta dos sonhos, dia a dia, Se interna meu dorido pensamento, Nas regiões do vago esquecimento Me conduz, passo a passo, a phantasia. Atravesso no escuro a nevoa fria D'um mundo extranho, que povôa o vento, E meu queixoso e incerto sentimento Só das visões da noite se confia. Que mysticos desejos me enlouquecem? Do _Nirvana_ os abysmos apparecem A meus olhos, na muda immensidade. N'esta viagem pelo ermo espaço Só busco o teu encontro e o teu abraço, Morte! irmã do Amor e da Verdade! Ó poeta,--eu, uma pobre mulher condemnada, pelas leis fataes da physiologia e pelas leis logicas da sociedade, á inacção completa, não posso deixar de protestar contra essa paz egoista, em que o teu coração pretende affundar-se! O _bhudismo_ comprehende-se n'essa India, corroida pelo odio das castas, e na qual o homem se sentia esmagado e vencido pela implacavel Natureza, devoradora e cruel, de uma exuberancia que escorria venenos! Comprehende-se o _bhudismo_ no tempo em que a fatalidade das coisas subjugava o homem, o ultimo que chegara ao banquete da vida, e que chegára desarmado, predestinado á sua lucta de seculos, á sua lucta sublime, á lucta de titan, em que elle começa apenas a ser vencedor! Mas imagine-se por um momento o _bhudismo_ triumphante, alastrando pelo mundo inteiro a sua doutrina de inerte contemplação, de extase inutil e vago! O que seria hoje o mundo?!... Não, o Homem não se deixou vencer; em vão o convidaram á preguiça, á covarde resignação, ao renunciamento esteril as religiões fatalistas e a Natureza hostil e inviolada ainda! Elle resistiu! E, desarmado, escorrendo sangue de todos os póros da sua torturada carne, perdido na escuridão profunda d'essa tenebrosa noite, que é o passado, ora seduzido pelas sereias enganosas que tentaram perdel-o, ora asphyxiado sob o pezo de barbaras e anti-naturaes doutrinas que o mutilavam, soffrendo sempre, luctando sempre, sacrificando-se sempre, trabalhando como escravo, guerreando como heroe, pregando como apostolo, immolando-se como martyr, escalando o céu como Prometheu, encarando intrepidamente, e face a face, os mysterios e os dogmas, furando as entranhas da terra cheia de pavores, ascendendo á região dos astros cheia de deslumbramentos, sondando os oceanos sem fim, resignado e tenaz, revoltoso, indomito, terrivel, mas sempre com olhos fitos no ideal, que pouco a pouco se ia desvendando, que a pouco a pouco se ia tornando definitivo e claro, elle chegou emfim a fazer da Natureza, seu algoz, a Natureza, sua escrava, e, das chymeras de hontem, as verdades libertadoras de amanhã! E caminha ainda, não descançou por ora o heroico viajante, avido de mais dôres, avido de mais sacrificios, avido de mais combates! Caminha não sabemos para onde, mas decerto para onde haja mais luz, mas decerto para onde a alma tenha mais liberdade o espirito tenha mais amplo espaço e a consciencia, a inviolavel consciencia, a garantia sagrada de mais direitos! E tudo isto sentiu, n'uma das suas horas boas, Anthero do Quental quando escreve este soneto suggestivo de heroicos impetos e de ambições sublimes: Conquista pois sósinho o teu futuro, Já que os celestes guias te hão deixado Sobre uma terra ignota abandonado, Homem = proscripto rei = mendigo escuro! Se não tens que esperar do ceu (tão puro, Mas tão cruel!), e o coração maguado Sentes já de illusões desenganado, Das illusões do antigo amor perjuro: Ergue-te então na magestade estoica D'uma vontade solitaria e altiva, N'um esforço supremo de alma heroica Faze um templo dos muros da cadeia Prendendo a immensidade eterna e viva No circulo de luz da tua Idea! Oh! como isto é mais bello do que a derrota confessada do pensador que se refugia no pessimismo, achando no pessimismo uma solução, quando elle não é mais que um estado transitorio da alma contemporanea, um dos symptomas mais caracteristicos da doença de vontade, de que mais ou menos hoje estamos--ainda mal!--todos contaminados! VI Chegando ao termo d'este trabalho percebo que ha n'elle, além dos mil defeitos que outros lhe notarão, uma lacuna enorme que eu propria reconheço. Tentando explicar o pensador, eu não tenho dado ao poeta o merecido relevo que elle tem; quero dizer, o pensamento d'estes _sonetos_ tem-me ás vezes feito esquecer a belleza singular da sua forma artistica! Parece que o soneto, pelos moldes precisos e rigorosos em que se vaza, seria o menos proprio dos generos de poesia para fixar, em formosa esculptura, as abstracções metaphysicas em que o genio de Anthero do Quental se compraz principalmente. Porque este poeta não é como H. Heine, apezar de tantas similhanças que os aproximam, apesar de serem a negação e a duxida as muzas principaes da sua inspiração, e de ambos representarem, sob uma fórma de grande arte, este periodo de transição entre as velhas crenças e as novas convicções do espirito, que a analyse paciente e complicada está elaborando ainda. O poeta allemão tem a impressão directa das coisas, e é n'ellas, e não nas idéas, que elle distingue a linha comica, a contradicção irreductivel, a impassibilidade perfeita diante das velhas theorias que decahem e agonisam; Anthero do Quental eleva essas dôres á abstracção suprema do seu espirito, a uma especie de metaphysica imaginosa e vaga, que pareceria impossivel a um temperamento peninsular aquecido pelo nosso sol, vivificado pelo nosso clima, cingido no circulo, impressionador e ardente, dos seus horisontes de ouro e de fogo. A sua poesia é como o reflexo fluctuante, caprichoso e indeciso, das contradicções, das amarguras, das tristezas e dos sonhos do nosso tempo; ella canta a dôr de toda uma geração que a si propria se estuda, sonda e interroga, e sendo profundamente pessoal, como é, repercute-se e vibra todavia em muitas almas egualmente angustiadas e vacillantes. Não tendo, pois, antecedentes da mesma especie, foi-lhe necessario crear, dentro da velha fórma consagrada, uma forma nova; e d'esta difficuldade sahiu-se admiravelmente Anthero de Quental. Os seus sonetos trazem a marca do auctor; não se confundem com nenhuns outros. Muitas vezes tem de sacrificar a melodia do verso á extensão e ao vigor do pensamento; n'esse caso não hesita, e o pensador vence n'elle o poeta. De todos os poetas que eu conheço ha um que Anthero me lembra muitas vezes. É Sully Prudhomme. Mas devo accrescentar que a individualidade accentuada de Anthero escapa incolume a toda a comparação e a todo o confronto. Já ouvi, não me recordo n'este momento a quem, que o livro dos _Sonetos_ lembra tambem em muitos pontos o _Diario_ de Amiel. É que realmente estas duas obras, diversissimas entre si, filiam-se na mesma necessidade inteiramente moderna que o homem sente de auscultar-se, de conhecer-se, e de fazer a si proprio innumeras perguntas. A antiguidade não tinha este prurido de penetração psychologica; por isso a antiguidade foi feliz, radiosa, activa e sã. Comtudo, dado o nosso gosto pronunciado para este genero de estudos, ainda bem que Anthero escreve, e que Amiel escreveu. Se o primeiro não tivesse cantado muitos dos seus adoraveis e extranhos sonetos, se o segundo não tivesse _notado_, momento a momento, os cambiantes de uma alma tão extraordinariamente e tão morbidamente complicada, perder-se-hiam documentos inapreciaveis para o estudo completo da alma contemporanea. Amiel, que, emquanto viveu, foi obscuro e desconhecido, e que, morto, inspirou a muitos dos mais subtis moralistas modernos, taes como Renan, Caro, Bourget, etc., estudos minuciosos e delicados, soffria, como Anthero, de um excesso de _vida interior_, origem de desiquilibrios dolorosos. A solidão, em que Anthero vive e em que viveu Amiel, aggrava este estado, fazendo-o degenerar, de riqueza fecunda e rara, que pode ser, na perigosa doença que a _élite_ do nosso tempo soffre com raras excepções: o enfraquecimento progressivo nos orgãos que determinam a acção e predispõem para o combate. Para este mal, o remedio efficaz e supremo seria o contacto de outros espiritos, o attricto com outras intelligencias hostis ou apenas finamente e subtilmente criticas, porque se a convivencia com os homens nos faz perder a independencia absoluta do espirito, ou a originalidade profunda dos que não vão na corrente da opinião geral, nem tão pouco navegam contra ella--o que é ainda um modo de a considerar--é claro que, em compensação, ella nos torna mais aguerridos para a lucta, mais tenazes nos nossos propositos e mais vivos nas nossas ambições. Tanto Amiel como Anthero encarnam, pois, com extranha intensidade essa doença que se traduz pelas hesitações do querer, e pelas fluctuações permanentes do pensar. Para ambos a vida perdeu as linhas reaes, fixas e positivas, com que ella apparece ao espirito pratico das raças latinas, tornando-se no que é para os espiritos, ethnologicamente ou moralmente germanicos, para Carlyle ou para Goethe, para Shopenhauer ou para Shakspeare, um não sei que de indeterminado e de fluctuante, um sonho que apparece confuso, nebuloso e phantastico, sempre prestes a decompôr-se em transformações successivas, sempre em via de desmanchar-se e de refazer-se em condições novas. A Allemanha tem a palavra propria que exprime esta concepção das coisas; nós não a temos, de tal modo ella repugna ao espirito da nossa raça! Mas Anthero de Quental longe de ter adoptado a linguagem semi-barbara á força de requintada, com que Amiel pretendeu naturalisar latinas abstracções puramente e genuinamente germanicas, é pelo contrario um escriptor de raça, um escriptor de primeira ordem, dando ao seu sonho, vago como é, o molde nitido e magistral d'uma linguagem riquissima, e sabendo em certas horas ser um prosador de largo folego, um critico sagacissimo e cheio de penetração genial. Bastariam para provar esta asserção, os seus dois magnificos opusculos: _Considerações sobre a historia da litteratura portugueza e causas da decadencia dos povos peninsulares_. Pena é que um espirito tão extraordinariamente dotado não enriqueça a litteratura nacional com alguns livros de critica e de historia, que, tão bem como os melhores, elle poderia escrever. Emquanto Anthero aspira infatigavelmente a alguma coisa de muito superior ao que a vida póde dar, Amiel escreve n'uma das paginas do seu _Diario_ este pensamento caracteristico: «_Il n'y a de repos pour l'esprit que dans l'absolu, pour le sentiment que dans le divin; Rien de fini n'est vrai, n'est interéssant, n'est digne de me fixer!..._» Amiel n'uma hora de lucidez rara, n'uma d'estas horas em que o visionario mais intransigente vê em clarão rapido o _nada_, das chymeras a que immolou a sua vida, traça estas palavras, que são uma revelação e que são um arrependimento: _Le resumé: Nada! Rien!... Et pour dernière misére, ce n'est pas une vie usée en faveur de quelque être adoré ni sacrifié à une future espérance..._ Do mesmo modo Anthero escreve este _soneto_, que é como a suprema condemnação do seu funesto _credo_, que é como a lagrima que se desprende da pupilla cançada de contemplar inutilmente as profundezas insondaveis do _eterno abysmo_... Empunhasse eu a espada dos valentes; Impellisse-me a acção, embriagado, Por esses campos onde a Morte e o Fado Dão a lei aos reis tremulos e ás gentes! Respirariam meus pulmões contentes O ar de fogo do circo ensanguentado, Ou caíra raivoso, amortalhado Na fulva luz dos gladios reluzentes! _Já não viria dissipar-se a aurora De meus inuteis annos, sem uma hora Viver mais do que sonhos e a anciedade!_ _Já não veria em minhas mãos piedosas Desfolhar-se uma a uma as tristes rosas D'esta pallida e esteril mocidade!_ * * * * * Não foi esteril, não, a vida de quem produziu este livro, que ficará na litteratura portugueza occupando um logar _á parte_, nosso pela lingua, bella, harmoniosa e rica, em que está escripto, e d'outra raça bem diversa da nossa, pelo perfume exotico de que está impregnado. N'este momento de cosmopolitismo litterario, em que a arte é uma Babel onde as raças e as linguas se confundem, este livro marca um momento, e como tal é precioso para os que pensam e para os que estudam. Reflecte-se n'elle, além do que deixo dito, uma alma angelica, uma d'estas almas raras, que não podem deixar de soffrer muito n'um mundo para que não são feitas. Eu deixei de proposito, inviolado pela minha critica, porventura audaciosa, o que ha de mais profundamente subjectivo, de mais intimo e de mais sagrado no volume adoravel de Anthero de Quental. Muitas vezes as lagrimas me romperam irresistivelmente dos olhos, ao ver n'elle, deliciosamente reflectida, a aspiração, sempre incomprehendida, a um amor que o consolasse e redimisse! Pensar é perigoso. Melhor é sentir. Anthero pensou de mais. Eis o motivo porque não encontra a consolação unica a que a sua alma aspira anciosamente e inutilmente. Sejamos bons e dôces para a Vida! Ella tem horas sinistras, bem sei; ella tem a Duvida; ella tem a Dôr e tem o Silencio eterno a todas as interrogações anciosas da nossa razão e da nossa consciencia; mas de que doçura infinita ella nos não enche o coração! mas com que lagrimas abençoadas ella não apaga as sêdes ideaes da nossa alma cubiçosa! Como no mytho pagão, toquemos a Terra, quer dizer, retemperemos o nosso organismo cançado nas primitivas alegrias da simplicidade, da innocencia, e do amor! Não renunciemos a nenhuma das ineffaveis riquezas de que a Vida é depositaria fiel, e acharemos, n'este retrocesso á Natureza amiga e boa, a paz que os artificiaes _nirvanas_ d'este seculo nos não podem dar! * * * * * Concluo este estudo, que eu fiz com o maximo amor que o artista, por humilde que seja, póde pôr no seu trabalho, e no qual apenas a sinceridade suppre tantos predicados que me faltam, pedindo a Oliveira Martins desculpa da minha ousadia. Melhor do que ninguem, elle fallou do seu amigo; melhor do que ninguem, elle o explicou aos que o não conheciam, tocando com recolhimento e com fervor quasi religioso n'esta alma, que é para tantos um enygma indecifravel, e dando luz a tantos pontos indecisos d'este temperamento artistico, extranho e singular. Depois de ter inspirado aquelle sentido prefacio, com que o notavel historiador enriqueceu o seu livro, que necessidade tinha o poeta dos _sonetos_ de que uma alma, que o não conhece senão atravez d'elles, viesse fallar ao publico da sua complexa individualidade? No prologo de O. Martins ha mais do que o seu talento; ha tambem o seu coração de amigo, e é isso o que, aos meus olhos, lhe augmenta enormemente o valor. Se houve audacia na minha apreciação, que m'a perdoem, pois, o poeta e o seu critico. Eu não quiz mais do que fazer ver o livro extraordinario dos _Sonetos_ de Anthero á luz da minha impressão pessoal. Não tive outro intento, nem desejo outra recompensa além do prazer intimo e profundo que senti escrevendo estas palavras sinceras, depois de ter lido o livro adoravel que tão espontaneamente m'as inspirou. _ANTONIO CANDIDO_ I Uma vocação irresistivel, uma d'estas vocações a que tem por força de obedecer-se, sob pena da mais tremenda mutilação intellectual, fez de Antonio Candido _um orador_. Os escriptores fazem-se, os oradores nascem! Antonio Candido nasceu orador. N'este ponto é elle absolutamente irresponsavel do seu destino. Poucos haverá que em Portugal não saibam as circumstancias singulares que o subjugaram e venceram tragicamente, dando-lhe, n'este nosso meio muito uniforme e muito incolor, uma individualidade extranha, um toque de romanesco, que ainda mesmo nos oradores politicos destaca e assenta bem. A vontade respeitada e querida de alguem, que elle muito amou, impoz-lhe um genero de vida com o qual o seu espirito, a sua educação, a sua comprehensão das cousas, o iam brevemente tornar incompativel. Moço, ingenuo, inexperiente, elle subordinou n'uma hora de inconsciencia, de abatimento mental, toda a felicidade do seu destino futuro a essa vontade que respeitava sobre todas. Mais tarde, comprehendeu que as responsabilidades gravissimas que tinha acceitado, na sua imprudencia de moço, importavam nada mais e nada menos do que a abdicação da propria consciencia. Viu então que não podia occupar com sinceridade--isto é, com dignidade, porque é indigno tudo que não é sincero--a tribuna a que o tinham feito subir, e desceu d'ella sem hesitação e sem covardia. Fez mal, diz o mundo; e não ha ninguem que o não tenha ouvido dizer muitas vezes, com aquella despreoccupada ousadia com que dizem tudo os que não acreditam em cousa alguma. Fez mal. _Il est avec le ciel des accommodements_; e a sociedade actual, como em summa todas as sociedades extra-civilisadas, não exige heroismos nem abnegações sobre-humanas. Ella só quer o respeito apparente das convenções estabelecidas; no mais, acha regular que se sophismem os preceitos, que se illudam e transgridam hypocritamente as leis. O que exige apenas e não se dirá que exige muito--é que se acceitem as posiçoes definidas, e que se finja acatar todas as tyrannias sociaes que a tradição consagra. Que fizesse mal ou bem não me pertence a mim julgar aqui. O caso é que o fez, e que o fez com tamanha dignidade, com uma reserva tão silenciosa, com um desdem dos bens positivos e das utilidades praticas tão intellectualmente aristocrata, que ninguem ousou atacar de frente este acto d'uma vontade, esta determinação d'uma consciencia! Os que privam de perto com Antonio Candido sabem que elle amou muito essa tribuna, onde a sua palavra deixou vestigios de graça incomparavel e de soberbo vigor. Amou-a muito, e nunca a ella se refere sem o respeito enternecido e a vaga saudade dos que viram dissipar-se um sonho querido. Mas ficar onde a Fé o não prendia teria sido uma transigencia covarde com a hypocrisia mundana. Só espiritos amesquinhados pela comprehensão d'uma falsa moral o poderiam applaudir. Antonio Candido não teve essa transigencia. Antepoz a todas as considerações de facil e util egoismo o seu culto sincero pela verdade, a sua noção grave e austera do Dever. Com a sua intelligencia malleavel, penetrante, capaz de vêr justo e de vêr fundo, percebeu, de certo, antes de tomar a resolução definitiva de romper com o passado, as difficuldades extremas que a vida ia ter para elle. Não hesitou, porém, certo de que na sinceridade ingenua do seu coração, na pureza do seu caracter, n'aquella isenção desdenhosa que é a melhor salvaguarda do homem superior, n'este tempo sem crenças absolutas, elle encontraria sempre um guia seguro para as complicações de ordens diversas, que tivessem de surgir diante dos seus passos. II Outra tribuna, a tribuna politica, se lhe abriu então ampla e rasgada! Quem não advinha hoje as tristezas que a consciencia austera d'este homem terá sentido ao apalpar a inanidade vã das chymeras que sonhou antes de entrar n'este novo mundo!... Porque, os que julgando amesquinhal-o e diminuil-o, lhe chamam _poeta_, sómente se enganam na intenção com que o fazem. Se é ser poeta não poder viver sem um ideal de justiça, de belleza, de bondade que sobredoire ainda as concepções mais vulgares, que espiritualise ainda as realidades mais praticas; se é ser poeta ter sempre a impulsal-o, a commovel-o, o sonho de _melhor_, a aspiração indefinida a alguma cousa que ainda não foi realisada no mundo, mas por amor da qual o mundo tem caminhado sem parar; se é ser poeta ter a comprehensão, perfeita e sympathica, de todos os sonhos adoraveis com que se entretem eternamente a phantasia d'esta velha creança incorrigivel chamada, a Humanidade--Antonio Candido é poeta como os que mais o são. Lembro-me de o ter ouvido, ha bastantes annos, fallar com enthusiasmo na vida nova que encetára,--resignado já ao tragico _abortamento_ do seu destino de homem;--lembro-me de o ter applaudido quando, diante de mim e d'alguns amigos sinceros, dos quaes um já desappareceu da terra, elle desenrolláva com a palavra flexivel e deslumbradora, colorida e vibrante, em que a eloquencia é tão natural que chega mesmo a ser involuntaria, os planos sociaes que o consolavam de tanta cousa perdida para sempre, ou para sempre inacessivel... É provavel que hoje Antonio Candido já não sonhe; mas acredita ainda decerto que a evolução necessaria das sociedades tende constantemente a melhorar os seus instinctos, a esclarecer a sua consciencia, a diminuir n'ellas a somma do mal e da iniquidade, a desenvolver mais e mais no seu espirito a ambição d'um alto destino... E a sua philosophia, a que elle ás vezes se refere sorrindo, e ácerca da qual os seus amigos gracejam benevolamente, não se perturba nem se ensombra, porque o meio que o cerca n'este momento parece comprazer-se em contradizer todas as suas formulas, em desmentir todas as suas conclusões... De feito elle tem visto que, na lucta que as ambições pessoaes travam na scena politica, o vencedor paga o seu doloroso, o seu humilhante triumpho, com os thesouros insubstituiveis da integridade e da delicadeza moral. Elle tem tido, hora a hora, a prova irrefutavel e desconsoladora de que a _habilidade_ vence o genio, de que a astucia vence a virtude, de que os meios tortuosos vencem os impulsos dignos e as aspirações sinceras. A historia moderna em Portugal tem sido, sem duvida, um ensinamento fecundo e triste para esta intelligencia tão penetrante na analyse das cousas, como intuitiva e superiormente sagaz na sua concepção synthetica. Porque é que n'esse caso não deserta elle o exercito sem ideal, onde--errando mais uma vez o caminho da vida--elle se alistou na ingenua confiança do seu optimismo juvenil? Por muitas razões, umas claras e simples, outras mais complicadas, umas originadas, simplesmente pelo seu proprio destino, outras que derivam naturalmente da especie de determinismo historico, que principalmente o inspira ainda nas crises de mais desolação interior, ainda nas luctas mais dolorosas da sua sensibilidade um pouco feminina, quasi morbida... Como Renan, um dos seus amigos ideaes, o mystico e bondoso coração com o qual o seu tem tantos pontos de contacto--elle acceita resignado, com o benevolo desdem das almas fortes, a dura lei que, fazendo tão grande e tão sublime a Humanidade, fez ao mesmo tempo tão frageis e tão imperfeitos os individuos, a complicação inextricavel, apparente, que existe em tudo que nos cerca, e que faz com que, muita vez, as mais contrarias soluções do mesmo problema moral sejam igualmente justas, igualmente legitimas diante do olhar da Critica; a certeza melancolica de que os males e as miserias que nos circumdam e nos fazem tanta vez perder de vista o ceu azul, o amplo espaço luminoso e puro, não são feitas pela vontade dos homens, são simplesmente modificadas por ella n'um ou n'outro ponto secundario. Elle sabe que só a vagarosa evolução dos tempos pode exercer a acção que antigamente se attribuia ao capricho ou á influencia immediata de homens providenciaes. D'aqui a sua tolerancia, a sua resignação austera e triste, e a expressão melancolica da sua palavra, em que não ha revoltas inuteis nem injustiças escusadas, mas sim a tragica acceitação de leis ineluctaveis e crudelissimas. Cada epocha que passa não faz mais do que servir, intelligentemente ou cegamente, conscia da sua missão historica ou ignorante d'ella, a corrente das idéas, dos factos, dos phenomenos que o periodo anterior tinha necessariamente preparado. Caminhantes forçados d'uma estrada enorme, cujo principio se perde em sombras incognosciveis, cujo fim nenhum olhar descortina ou sondará jamais, nós seguimol-a, resistentes ou doceis, confiantes ou resignados, scepticos ou cheios de fé, egoistas ou desinteressados, parando nas _etapes_ marcadas, perdendo-nos momentaneamente nas charnecas aridas, ou nos atalhos floridos e risonhos, mas voltando, apoz o retrocesso rapido, ao longo caminho que necessariamente temos de seguir, como o astro segue a sua trajectoria, como a Vida segue a sua evolução. De resto, aos que perguntarem a Antonio Candido o motivo porque elle, sem ambições pessoaes de especie alguma e com poucas illusões a respeito todas as cousas, ou antes julgando todas as cousas uma illusão mais ou menos radiosa, se conserva ainda assim no seu posto de politico militante, elle responde com um bello trecho d'um dos mais bellos discursos que este orador tem pronunciado, o discurso consagrado á memoria de Braamcamp. «O desfavor com que a _acção politica_ é considerada por muitos espiritos superiores, no velho e no novo mundo, tem da sua parte, é forçoso confessal-o, bastantes apparencias de razão. Pela sua influencia immediata e complexa, e pela enorme comprehensão dos interesses que move, este genero de acção é o mais vasto, o mais attrahente de quantos podem sollicitar um homem de intelligencia e de vontade; mas como estadio de exhibição moral e como processo de educação publica mostra-se a esta hora, na America e na Europa Occidental, adverso a muitos interesses da dignidade civica, da justiça distributiva, da logica que deve haver nos factos, e do prestigio que as pessoas devem conservar. Tem uma base intellectualmente falsa: a philosophia naturalista do seculo XVIII! Tem um principio inane e contradictorio: a soberania popular. Tem um processo que não qualifico... por uma delicada circumstancia de logar e de tempo: o suffragio universalisado! Tem um limite para as elevações pessoaes, que difficilmente varia: a mediocridade. Tem uma litteratura propria, quasi sempre sem ideal e sem verdade: o jornalismo e a oratoria parlamentar. Tem uma liturgia sem pompa e sem pensamento: a das ficções constitucionaes. A grande revolução, de que promana e deve dactar-se toda a moderna historia, assumiu, como se sabe, as formas d'um drama grandioso, enorme. «Emquanto este drama desenrollou nos Estados latinos as suas scenas formidaveis foi sublime de paixão, de força e de movimento. O theatro grego, em que intervinham deuses, não é mais maravilhoso do que este em que representaram povos! «Mas a commoção publica, como estado violento, não podia ser perduravel; a ebullição dos espiritos, consumidora quando é prolongada, não poude deixar de diminuir; recahiram nas condições normaes da vida os homens e as nações que se tinham exaltado até ao heroismo e até ao martyrio; e viu-se então que a superficie moral do mundo ficára com o aspecto devastado, arrefecido, melancolico, d'uma floresta que o incendio consumisse, e de que os velhos troncos em cinza tivessem apenas servido para fecundar rasteiras vegetações uniformes, de pouco vigor e sem vulto definido ainda... «A França, onde a immensa combustão principiara, ainda se reenflammou uma vez contra a senil e caduca _Restauração_ e teve, durante alguns annos, uma prolongação artificial de vida politica na tribuna illustre de Guizot, Royer Collard e Thiers, e na imprensa convicta e apaixonada de Armand Carrel e de P. L. Courier; mas formado e desfeito o sonho de 1848, caiu, sossobrou, veio, pouco a pouco, a volver-se no que está, no que é hoje... A Italia depois de Cavour e de Garibaldi, a Hespanha depois de Espartero e de Mendizábal, Portugal depois de Mousinho da Silveira e de Saldanha,--grandes nomes que marcam a estatura de velhos povos,--voltaram fundamentalmente ao que eram d'antes, porque ha, meus senhores, uma tyrannia que as espadas não cortam, e um despotismo que a penna do legislador não fere de morte; a tyrannia das raças, e o despotismo da historia! «N'este estado de cousas, _superior aos antecedentes porque sempre é um ponto vencido na serie do progresso humano_, mas repousado, egoista, apenas assignalado por um mais intenso fervilhar de vida vegetativa e intellectual, sem accidentes revolucionarios, salvo quando a questão politica trava na questão nacional, como em Italia antes da occupação de Roma, na França depois de 1870 e na Inglaterra actualmente; n'este estado de cousas, pouco propicio ás germinações do heroismo, e ás ostentações da grande força, porque os _obstaculos sociaes deslocaram-se do mundo para a consciencia_ e o poder publico desvigorisou-se, enfraqueceu nas multiplas divisões que o fraccionaram: n'este estado de cousas, que em compensação de tanta inferioridade é pacifico, é evolutivo, é felizmente desassombrado de terrores divinos e humanos--_ha um largo espaço para uma boa intelligencia que queira applicar-se, para uma energica vontade, que queira desenvolver-se, para um caracter honesto e digno que a vida publica tente com as suas glorias e os seus sacrificios, com os seus ruidosos triumphos e as suas tremendas ingratidões_!» Citei todo este largo trecho, em que vão sublinhadas por mim algumas passagens mais significativas, porque, formosissimo, como forma, admiravel com synthese historica, elle vem de molde para definir as idéas que Antonio Candido tem ácerca da politica moderna, e os motivos que actuaram n'elle para continuar na vida publica que adoptou. * * * * * Como quer que seja e sem me alongar, indiscretamente, em considerações que prendem no que ha de mais delicado e mysterioso n'uma consciencia de homem, o que é verdade é que Antonio Candido é hoje a suprema representação da arte oratoria no mundo politico e litterario d'este paiz. Não é que no parlamento portuguez não brilhem talentos muito notaveis,--nas nossas assembléas meriodinaes sabe-se que não é o talento que falta--muitos fallam bem, argumentam bem, discutem bem. Ha tribunos enflammados, ha luctadores politicos, a que nenhum segredo da estrategia parlamentar é vedado, mas orador, apezar de tudo é só elle. Todos, em qualquer dos campos partidarios em que militem, o reconhecem unanimemente. Observação feita muito de passagem--o partido opposto áquelle em que Antonio Candido está, reconhece-o muito mais ostentivamente do que o seu proprio partido, injusto muitas vezes, ingrato quasi sempre para este homem que tanto o illustra. O orador, é o mais privilegiado e o mais raro entre todos os artistas, e tambem--como que para contrabalançar a influencia directa e poderosa que só elle consegue exercer, como que para amargar e diminuir a sensação voluptuosa de força e de imperio absoluto, que só elle experimenta em certas horas de triumpho moral, quando a sua palavra fremente e indignada passa, curvando os espiritos, como a ventania passa, curvando as grandes arvores--o seu poder é de todos o mais passageiro, a sua força é de todas a mais ephemera, o brilho do seu nome é de todos o que mais rapido se apaga... Quem é que hoje póde reconstituir pelo pensamento a commoção profunda que electrisou as almas de 89, quando a palavra de Mirabeau trovejava do alto da tribuna as suas apostrophes sublimes?... Quem fixou no papel os rugidos leoninos, os gritos titanicos de Danton? Quem, lendo os discursos de Savonarola, o inspirado dominicano florentino, comprehende o movimento desordenado e febril, com que elle agitou em convulsões de arrependimento e de lagrimas as almas italianas de seu tempo?... Levaram o segredo de todas estas maravilhas aquelles que as ouviram e que as não poderam communicar a ninguem! Na arte de orador, na _sublime arte potente e deslumbradora_, como lhe chama, no discurso já citado, aquelle que tanto lhe deve e tanto a ama synthetisam-se n'um relampago fugitivo, todas as mais bellas irradiações das outras artes! A esculptura empresta-lhe a elegancia e a magestade das suas attitudes, a flexibilidade viril dos seus gestos, a graça malleavel e movimentada dos seus aspectos; a musica dá-lhe as notas graves ou dôces, apaixonadas ou severas, vibrantes ou meigas, sonoras, ou melancolicamente esmorecidas da sua voz; a poezia dá-lhe o encanto alado indefinivel, subjugador das suas imagens; a litteratura o requinte subtil da sua fórma, a belleza penetrante dos seus conceitos, a seducção _ondeante e diversa_ das suas expressões; a philosophia, a amplidão dos seus horisontes, uma comprehensão da vida soberanamente inspiradora, uma envergadura de azas potente e larga bastante para que elle possa levantar-se ás amplidões sem fim do Pensamento, ás deslumbrantes vizões do Ideal... Faz-se de todas estas cousas maravilhosas e divinas a eloquencia dos grandes oradores, mas faz-se de mais alguma cousa que sobredoira tudo isto, e sem a qual tudo isto seria artificial como a representação d'um actor de genio! E essa outra cousa, insubstituivel e sagrada, é a sinceridade ingenua do caracter, é a bondade humana e communicativa do coração! E é isto, que além de tudo o mais Antonio Candido tem como ninguem. É isto que, acima de tudo, o torna sympathico e querido. A nota de probidade virginal, de susceptivel e melindrosa pureza de alma, que o distingue, e acaso, no meio actual da nossa politica o singularisa, punha-a Oliveira Martins em evidencia, ha tempo, no formoso _perfil parlamentar_ que consagrou a Antonio Candido. «Quando Antonio Candido falla, diz elle, vê-se um caracter atravez de uma obra de arte.» E accrescenta lucidamente. «Pela sua mente impressionavel passam as ideas do seu tempo como os raios do sol pela placa sensivel do photographo, e as imagens fixam-se com a mesma nitidez e a mesma fidelidade. Pela sua alma ingenua passam, como por philtro, as ondas da corrente dos factos e ahi se depuram para surgirem depois transparentes e crystallinas. E factos e idéas, animadas e allumiadas pela sua imaginação creadora, borbulham-lhe dos labios no caudal de uma palavra incomparavel de atticismo, de colorido, de propriedade, que são as qualidades artisticas do orador, combinado com um gesto e uma voz que não mente, quando exprime a energia mascula, a convicção ingenua, a indignação fremente, ou a caridade pura, que são as qualidades moraes do homem!» * * * * * Para provar quanto é rara a reunião de faculdades que constituem este aristocrata do pensamento, esse maestro da palavra que se chama _orador_,--no sentido amplo e complexo, no sentido artistico que eu aqui dou á palavra--basta vêr-se que Portugal que tem tido sempre uma florescencia notavel de bellos talentos... desaproveitados, só teve no passado um orador chamado José Estevão, como só tem no presente um orador chamado Antonio Candido. E a geração de José Estevão foi: Garrett, foi Castilho, foi Rebello da Silva, foi Herculano, foi Rodrigo da Fonseca, foi Fontes, foi Sampaio, assim como a geração de Antonio Candido é composta de tantos nomes illustres, que estão no pensamento e na memoria de todos, e que tanto na politica como em todas as outras manifestações da actividade intellectual tem dado de si soberbas provas. Antonio Candido, porem, foi mais infeliz que o seu glorioso antecessor, porque em quanto esse achou o meio perfeitamente adquado ás suas bellas qualidades de tribuno impetuoso, enflammado, um tanto declamatorio como o seu tempo; emquanto esse podia vibrar ainda intensamente ao nome, então virginal, poetico, mysterioso, de _Liberdade_,--este, na fria quadra evolutiva que atravessamos, n'este periodo, que se chama positivo mas ao qual se deveria chamar sceptico, não encontra, fóra de si, nada que o estimule, nada que o anime, nada que responda ao sonho altissimo que a sua imaginação sonhára, antes de ter penetrado nos meandros complicados d'este moderno constitucionalismo, tecido de ficções transparentes, n'este mesquinho periodo politico, que é o triumpho da mediocridade, que é a tortura do genio, e a condemnação das fortes individualidades!... Dessem a Antonio Candido os soberbos assumptos, que Emilio Castellar tem tido na sua brilhante e revolta existencia de agitador e de tribuno; dessem-lhe a vizão radiosa e juvenil da Democracia e da Liberdade, que deslumbrou na aurora da sua vida publica, esse bello Atheniense chamado José Estevão; dessem-lhe o theatro collossal em que representou esse titan de cabeça convulsionada e febril que foi Mirabeau;--e veriam se não era egual a qualquer d'esses, sem comtudo se parecer com nenhum d'elles, o homem que póde, ainda hoje, em Portugal, n'este momento de victorioso mercantilismo e de arranjos e combinações deprimentes, fulminar de admiração um auditorio de burocratas, fazer tremer de enthusiasmo uma assembleia de homens de negocios!... É que o orador, infeliz em tudo como eu ha pouco dizia, alem de todas as singulares faculdades individuaes que necessita de possuir, para exercer e desenvolver o pleno vigor do seu genio, precisa tambem de que o tempo em que vive,--pela grandeza das suas luctas, pelo contraste das suas agitações, pela desordenada corrente dos seus desejos, pelo combate tumultuoso das suas paixões civicas, pelo interesse dramatico dos seus acontecimentos,--corresponda aos ideaes generosos que lhe illuminam a consciencia, e á fibra guerreira que palpita e freme na alma de todo o luctador, quer seja da Ideia quer seja da Acção! Sempre uma quadra epica da vida dos povos antigos ou modernos, foi representada e contida na palavra d'um orador. E appareceria esse orador se as circumstancias o não houvessem por assim dizer, determinado e creado? Talvez que não! Pois a superioridade extraordinaria de Antonio Candido, e talvez a maior causa da tristeza que transparece em tudo que elle diz, a fatalidade mais insanavel do seu destino, é ter apparecido n'uma epocha em que segundo elle proprio disse _a hora das grandes paixões politicas passou no mundo_! As circumstancias não o favorecem; a transformação por que está passando a politica portugueza, e infelizmente toda a politica europeia, não o inspira nem impulsiona; e no emtanto, apezar de todas as más influencias, que parecem tender em toda a parte a paralysar o caracter e o talento, é tal a pureza crystallina da sua consciencia, é tal a illuminação fulgurante da sua palavra, que elle consegue crear para si, um logar á parte, indisputavel, aristocraticamente reservado, em que saboreia as delicias requintadas da sua isolação e do seu altivo desinteresse. Sem ter transposto para sempre o circulo acanhado da politica partidaria, sem ter sahido definitivamente da jaula estreita do nosso constitucionalismo nacional, Antonio Candido, consegue em admiraveis _sortidas_ de que todos se lembram, dizer verdades profundas ao paiz que teima em não querer ouvil-as. Na sessão de 87 a tantos respeitos desoladora, n'essa sessão em que passaram sem debate leis d'uma grande importancia economica e d'um alcance politico altissimo, e em que se consumiram dias e dias discutindo os mais inuteis e ociosos pequenos assumptos pessoaes, as questiunculas de interesse mais restricto e mais acanhado, a palavra de Antonio Candido deixou, todavia, um rasto de inolvidavel e luminosa critica. Vio-se ali um parlamentar julgando o parlamento; um filho da Revolução dizer á Revolução as verdades tristissimas que estão na consciencia de todos! Criticando a moderna comprehensão que temos da Liberdade, o orador, não teve a irreverencia que insulta, mas teve a razão austera e firme que adverte, a lucida comprehensão que vê longe e que vê justo, e que de leis inluctaveis sabe tirar as duras e ineluctaveis conclusões! Já estamos longe do tempo em que se acreditava no empyrismo de receitas particulares, e na vinda de Messias privilegiados e salvadores. É inutil accusar este ou aquelle individuo de males, cujo segredo e cuja origem só acha, quem investigue o espirito da nossa raça, o modo porque n'ella actuaram as inesperadas transformações que soffreu, a corrente historica dos acontecimentos, as mil influencias complexas, os mil factores diversos que nos fizeram... o que hoje sômos! Diante dos acontecimentos que desdobram sob o nosso olhar a sua trama variada ou uniforme, é porem, nosso costume incorrigivel, accusar-mos não só os homens, mas ainda certos e determinados nomes de homens! Não percebemos ainda que uma sociedade, que um paiz, possam na sua qualidade de organismos vivos, estar sujeitos ás mesmas condições de germinação, desenvolvimento, degeneração e morte, a que está sujeita a Vida Universal em qualquer das suas infinitas manifestações. Revoltamo-nos contra o que não pudémos evitar! Attribuimos á preversidade insolita dos individuos o que é puramente o resultado de leis historicas incombativeis! D'aqui a nossa colera insensata, e contraproducente! Podem os homens modificar as condições moraes d'uma sociedade, não podem obstar a que a vida d'ella siga o curso fatal que segue tudo que vive na terra, e que na terra tem de morrer. N'este ponto, Antonio Candido educado por Comte e por Littré tem uma vantagem incontestavel sobre quasi todos os seus contemporaneos portuguezes. Nenhum, que eu saiba, se embebeu mais profundamente das lições do grande philosopho positivista, nenhum vê de mais alto e com uma imparcialidade mais bella e mais fecundante para o espirito, a evolução necessaria das leis sociologicas a que todas as civilisações estão subordinadas. Mas extranho contraste! Este positivista de educação, é um idealista incorrigivel, por temperamento. Apezar d'isso ou talvez por isso mesmo nunca o ouvirão accusar um homem dos acontecimentos de que pela maior parte das vezes esse homem não foi senão o vizivel instrumento; nunca o ouvirão accusar o presente de não ter sabido perpetuar as virtudes e as crenças do passado. Se tem saudades das bellas cousas extinctas, se tem pena de não ter vindo ao mundo n'outra quadra, em que o mundo ia n'um ponto mais pittoresco ou mais interessante, mais illuminado ou mais espiritualista do seu caminhar indefinido, se sente a nostalgia dos bellos ideaes hoje desfeitos, nem por isso deixa de reconhecer que toda a vontade individual é impotente para guardar na alma da Humanidade, pensamentos que se vão fatalmente dissipando, phantasias que a experiencia repelle, sonhos de que infelizmente se acordou, radiosas chymeras que se esvairam com a hora infantil em que tinham visto a luz... * * * * * Como orador e como artista, Antonio Candido não pertence á raça impetuosa e enflammada de Castellar ou de José Estevão. Educado, como já disse, pelos processos da sciencia positiva, tão disciplinadora e tão methodica; não se deixando nunca possuir pelo seu assumpto, antes possuindo-o, subjugando-o, vencendo-o, torcendo-o a todas as magicas flexibilidades da forma mais correcta e mais superiormente bella; desprezando os artificios d'uma rhetorica envelhecida e inane; sem nunca se deixar ir atraz das seducções um tanto serodias da pompa e da exhuberancia oratorias; possuindo uma razão clara e lucida, um poder de critica muito notavel, elle é justamente o orador moderno tal como os auditorios d'hoje teem o direito de exigir... O orador que impressiona mas que persuade, que tem o brilho e a côr, a illuminação e o prestigio, mas que tem tambem o facto, o documento, a demonstracção scientifica, a comprehensão positiva das cousas. Essa eloquencia que tão poucos teem sabido comprehender, essa eloquencia que os ignorantes desdenham, e que os mediocres teem em pouca conta, encontrou na critica indigena as interpretações mais diversas e mais extraordinarias. Precedido d'uma celebridade cujas exigencias elle soube completamente realisar, Antonio Candido, apparecendo em S. Bento fez um d'aquelles seus discursos magistraes em que as bellas e largas syntheses brilham como constellações, n'um fundo azul de arte pura e de belleza a um tempo moderna e classica. Foi então que o jornalismo portuguez o sagrou _rouxinol_. As appellações mais vulgares, que ficaram desde esse dia como cauda obrigatoria ao seu nome, foram as de: _orador maviosissimo_, _harmonioso tenor_, _voz eloquente e suave_, etc. etc. Cantor dos bosques sagrados de S. Bento--eis a sua posição social e artistica, perante a critica do seu paiz. «--Mas eu não sou tal rouxinol! Eu nunca na minha vida cantei!--exclamava elle em vão com um gesto de suplice resistencia. Eu não tenho a pezar-me na consciencia nem um trilo nem uma volata. --É rouxinol--respondeu severa e cathedratica a critica portugueza. É rouxinol, e rouxinol hade ficar!... Foi uma hora amargurada esta, na vida do orador. Resignou-se então por algum tempo, para ver se o despediam d'entre o bando dos _alados cantores_, a fazer politica de pequenos interesses, e de pequenos assumptos. Defendeu eleições, atacou dictaduras; foi vehemente e apaixonado no ataque ás personalidades eminentes; teve ironias mordentes e cruas, teve energias inesperadas; foi o orador politico, opportunista, habil, argumentador e arguto, que é necessario ser-se pelos modos, para arrancar de sobre os hombros as azas um pouco humilhantes de rouxinol. Ás vezes no meio d'estes discursos de argumentação _terra a terra_, a sua imaginação opulenta e d'um brilhantismo extranho e raro, tinha uma fuga subita pelas largos espaços estrellados d'onde andava foragida, mas dos quaes se sentia eternamente nostalgica... Outras vezes a sua faculdade critica tão educada e tão fina, d'uma subtileza de comprehensão tão viva e requintada, atirava para o meio do auditorio--sempre seduzido, senão sempre inteiramente capaz de o perceber--com uma d'aquellas interpetrações geniaes, um d'aquelles _aperçus_ soberbos, que só pertencem aos que meditam e estudam os mais arduos e complexos problemas da vida social. Foi por essa occasião que alguns noticiaristas principiaram surrateiramente a chamar-lhe _aguia_. Nunca se soube bem qual a razão d'aquella mudança. Já que elle estava, no emtanto, adstricto aos dominios da ornithologia, antes aguia do que rouxinol,--pensou decerto Antonio Candido. E aguia e rouxinol lhe ficaram alternativamente chamando os seus amigos e os seus adversarios. Foi talvez para escapar a esta importuna classificação, que elle ultimamente, queimando os seus navios, sacrificando denodadamente qualquer ambição politica que ainda porventura se acoitasse no mais intimo e secreto do seu alto espirito, fez ouvir em S. Bento uma palavra de verdade suprema e tambem de suprema condemnação de toda a politica interna d'este malfadado paiz. De todos os lados da imprensa levantou-se um brado que, condemnando a doutrina, glorificava o orador. Esqueceram-se, n'essa tardia accusação, de que em S. Bento a camara inteira o applaudira vertiginosamente, porque era a verdade quem punha na sua palavra a indignação fremente, a paixão intensa e viva, a melancolia immensa, inconsolavel, feita de ironia e de razão... Accusaram-n'o porque, fugindo á banalidade e á falsidade historica de que todos ali são mais ou menos reus, elle não attribuia a ausencia de costumes politicos, a falseação do systema representativo, a exagerada elasticidade das ficções constitucionaes a violação sempre impune, de todas as suas praxes, as mil imperfeições do nosso machinismo governativo á vontade do sr. Fulano ao ministerio do sr. Cicrano, aos maus conselhos do sr. X e ao systema de corrupção do sr. J. Era isto que elles estavam costumados a ouvir; era a continuação d'isto que elles reclamavam. Mas Antonio Candido é que lh'o não fez. É uma desforra brilhante e inolvidavel este discurso! É uma desforra das mil vezes em que o orador teve de pôr a sua palavra, não ao serviço d'uma causa má, mas ao serviço d'uma questão pequena ou d'um assumpto inferior. Com a impaciencia, longo tempo soffreada, d'uma consciencia honesta, que vê continuamente, em torno de si, falseada a verdade dos factos, desfigurada a noção das coisas deslocados os assumptos, confundidas as mais claras e simples questões,--elle fez a largos traços a nossa historia constitucional, e provou, uma vez por todas, com o brilho e o atticismo da sua palavra sem rival, que isto que nós chamamos _decadencia do systema parlamentar_, não é mais do que uma justa e inevitavel consequencia de factos, de que esta geração não tem a culpa nem a responsabilidade, e de que ella tem fatalmente de ser a victima e o joguete. É bello de verdade e de eloquencia impressionadora todo este trecho do seu ultimo discurso politico, que desenha, com rapida vivacidade, o modo porque o constitucionalismo foi improvisadamente implantado entre nós, e os obstaculos que para o seu pleno e vigoroso desenvolvimento encontrou na nossa educação tradicional, na nossa indole herdada de fidalgos preguiçosos, nos nossos costumes seculares, na nossa pobreza, na nossa ignorancia, nos defeitos irreductiveis de raça que tão adversos nos tornam por ora e, talvez para sempre, á ficção chamada systema representativo. Taine no 2.^o volume do seu trabalho sobre as _origens da França contemporanea_ escreveu este trecho, que os nossos politicos deviam meditar um pouco, antes de se entregarem á desabalada gritaria contra os governos que se teem succedido, sempre perpetrando os mesmos erros, e sempre conseguindo resultados iguaes: «Se ha n'este mundo cousa que seja difficil de elaborar-se, é uma constituição, sobretudo uma constituição completa. Substituir os velhos quadros, dentro dos quaes vivia uma nação, por quadros differentes, apropriados e duradoiros; applicar um molde de cem mil compartimentos á vida de uns poucos de milhões de homens; construil-o tão harmoniosamente, adaptal-o com tamanha habilidade e tamanha opportunidade, com uma tão exacta apreciação das necessidades d'esses homens e das suas faculdades, que elles entrem dentro d'elle de seu mutuo proprio, para ahi se moverem sem atrictos asperos; e que immediatamente a sua acção improvisada tenha a facilidade d'uma velha rotina--eis uma empreza que é positivamente prodigiosa, e provavelmente muito superior ás forças do espirito humano...» Foi isto que nós tentamos fazer, e é do abortamento d'esta empreza impossivel, que se originam e que resultam todas as nossas desgraças, todas as provações dolorosas que temos atravessado, todas as amargas desillusões que a nossa alma nacional tem soffrido e que tão abatida e descrente a fizeram desde muito... E foi isto que o orador fez sentir, com a clareza e a nitidez da sua palavra privilegiada, na assemblea representativa e no paiz inteiro. Parece impossivel que este modo de levantar a discussão, de illuminar os phenomenos sociologicos, de fazer a critica ampla e elevada da nossa vida publica, produzisse um effeito de _indignação patriotica_ na imprensa d'este paiz. E o grande pensador foi finalmente demittido do seu posto de rouxinol honorario da camara dos deputados! Se Antonio Candido, faltando á verdade da sua intelligencia e á verdade da sua consciencia, tivesse declamado pomposamente sobre a _decadencia politica_ dos nossos dias, attribuindo-a aos manejos machiavelicos do sr. Fontes, que Deus haja,--uns applaudiriam enthusiasticamente, outros, invertendo o caso, lançariam a responsabilidade d'essa decadencia ás locubrações mysteriosamente preversas do sr. José Luciano que Deus conserve, mas ninguem alcunharia de anti-patriotica a inspiração honrada e nobre d'esse discurso, tão bello pela arte com que foi dicto, como foi grande pela sincera verdade com que foi pensado. * * * * * Visto que o orador é o homem, fallemos do homem. Quem vê Antonio Candido n'uma sala, quem conversa com elle, quem o observa, caprichoso, desigual, expontaneo, mais triste do que alegre, ora silencioso e esquivo como uma creança amuada, ora vibrante, apaixonado, inquieto, defendendo ou atacando uma these artistica ou um problema de moral,--perceberá logo que esse homem, apesar de não ser o que nas salas se chama _um conversador_, tem o dom da palavra maravilhoso e raro, que a poucos é concedido; mas não saberá, ainda assim, advinhar n'elle o portentoso orador que as nossas assembléas politicas conhecem e acclamam. É que Antonio Candido, que, como todos os artistas sinceros, sente tudo o que diz, e em quem, antes de sêrem verbo incomparavel, as ideias são sangue das veias, vibração dos nervos, cellulas do cerebro,--transfigura-se d'um modo indizivel, logo que, entre elle e o seu auditorio, se estabelece aquella corrente magnetica, que faz com que centenas de homens vibrem á voz d'um só homem, que faz com que a sensibilidade d'um homem se exalte se exacerbe d'um modo violento, doloroso quasi com a commoção de todos. O olhar, que a contemplação das cousas da vida e a vizão interior, desalentada e triste, tem apagado e como que vellado mysteriosamente, accende-se então em scentelhas chammejantes, ou fulgura como luz fixa, penetradora, intensa e viva; a cabeça, admiravelmente modelada, levanta se n'uma attitude de orgulho infinito; o gesto faz-se, ora largo, soberbo, magestoso, ora incisivo, ironico, sublinhando com extranho vigor os tons diversissimos do discurso; na voz poderosa, d'uma gamma opulentissima, vibram-lhe magnificamente todas as cordas que, diante d'um auditorio um tanto sceptico, póde fazer vibrar um artista intelligente--a ironia tempera n'ella a indignação, uma graça dolente e melancolica, attenua-lhe e como que lhe subtiliza artisticamente a tristeza. A sua dicção correcta até ao atticismo possue todos os segredos da moderna comprehensão da arte. A palavra sahe-lhe colorida por todos os cambiantes d'um sentir sincero e profundo, as intenções teem uma graça penetrante, uma fina malicia, benevola e indulgente, de quem conhece o mundo e os homens, de quem tem para a Vida, incompleta como é sempre, miseravel como é tantas vezes,--uma larga tolerancia, feita de sympathia e de bondade... E a pairar sobre tudo isto, dando a tudo isto um toque de irresistivel sinceridade--tornando uma creação de moral cada manifestação eloquente de arte--aquella tristeza que elle exprime tanta vez em traços leves, discretos e subtis: a tristeza que sentem os grandes pensadores, ao verem que é, no fim de contas, tão estreita e tão limitada a esphera da sua acção, que é tão inefficaz o poder isolado da sua vontade, que é inutil e vão todo o esforço com que elles queiram combater a corrente impetuosa que passa, a qual os mediocres continuam, com louvavel modestia, a imaginar determinada, guiada por elles... * * * * * Alem dos seus discursos parlamentares, que já davam um bom volume e que, segundo ouvi, serão breve publicados, Antonio Candido tem feito algumas conferencias litterarias de subido merito, que no tribuno revelam o pensador, no orador o litterato delicadissimo, o artista vibrante, superiormente cultivado, a fina sensibilidade em que os mais differentes estados se repercutem vivamente. Estas conferencias são superiores aos _discursos_, porque os assumptos escolhidos pelo orador põem mais á vontade o seu espirito, dão mais espaço á sua imaginação, dão ensejo ao seu genio de manifestar-se em mais liberdade. D'entre ellas destaca-se, pela belleza litteraria, a que foi pronunciada no Porto, quando Victor Hugo morreu. Nem na patria do grande sonhador da _Légende des Siécles_, em que já tinham morrido quasi todos os companheiros idolatras do poeta, se encontrou, n'aquella occasião, uma voz que melhor e mais lucidamente soubesse, em traços tão rapidos, com eloquencia tão maravilhosa e tão adequada á grande gloria que se celebrava, julgar o o homem e o escriptor, aquilatar o valor e a especie da sua obra, fazer valer a exhuberancia extraordinaria d'aquella organisação, pôr em relêvo a força creadora do gigante adormecido!... Era para este genero de conferencias,--muito moderno, muito no gosto do nosso tempo, que póde elevar-se á cathegoria d'uma arte perfeita,--para este genero, a que Renan tem dado o prestigio da sua perfeição atheniense de estylo, a graça ondeante e melancolica do seu pensamento de celta, que eu quizera vêr voltado o espirito de Antonio Candido. É que elle tem perfeitamente a especie de talento e de imaginação que este trabalho requer. Desdenhoso e desattento para o contorno das cousas exteriores; não se dando demasiadamente ao espectaculo mais ou menos pittoresco da Natureza vizivel; adversario da comprehensão egoista da _arte pela arte_; tendo por audaciosas hypotheses inverificaveis os sonhos transcendentaes da methaphysica;--são principalmente as preoccupações da ordem moral que o interessam, são as vizões e as contemplações da consciencia que o absorvem, com exclusão de todos os interesses e de todas as actividades praticas. Cada grande espirito escolhe para esphera da sua acção e da sua influencia aquella em que melhor se aclima o seu temperamento especial. Uns, os philosophos, concentram-se na especulação desinteressada, sem se preoccuparem sequer das consequencias terriveis, destructivas, assolladoras muitas vezes, que possam resultar das suas premissas audaciosas. Indifferentes a tudo que não seja a logica do seu systema, seguem-n'a até ás extremas conclusões, sem curarem do mal ou do bem que possam produzir na humanidade. Quando Spinoza o _bemaventurado_, como, lhe chamavam os que o conheciam de perto, doente e pobre no canto isolado da sua obscura casa, negava ao Deus pessoal a possibilidade de existir, á Natureza um fim e um principio, ao homem a noção do mal e do bem, e o livre arbitrio--minando assim as bases fundamentaes em que assenta a segurança e a moralisação das sociedades, pensava elle, porventura, que da applicação pratica das suas ideias podiam provir os cataclysmos moraes mais terriveis, a subversão de todos os principios existentes, o cahos de todas as leis e de todos os dogmas? A lembrança de que, das descobertas da astronomia e da physica, proviria para o homem uma comprehensão do seu destino inteiramente diversa da que elle tinha até ali, uma concepção do Universo contraria em tudo á que elle formára, passou alguma vez pelo espirito de Galileo, de Copernico, ou de Newton? E o artista que adora e procura no mundo a belleza como elle a imagina, a reproducção real d'um typo que elle sonhou, distingue acaso a belleza, que é pura e sã, d'aquella que é preversa e corruptora? Não. Para elle a belleza existe por si só, é só ella que o exalta e encanta, é só ella que lhe dá a sensação unica, voluptuosa e divina, por amor da qual, aos seus olhos, a vida tem um sentido e tem um fim! O psychologo, como o artista e como o philosopho, não se preoccupa absolutamente nada com o resultado nem com a applicação das suas observações e das suas sondagens. O seu desejo de penetrar os escaninhos mais secretos, mais escusos, mais tenebrosos do coração humano, tem em si mesmo o seu limite, o seu fim e a sua razão. O que o interessa é o funccionar da machina cerebral, a germinação e o desenvolver do pensamento, o jogo e a combinação das paixões; são os estados variaveis e complicados da consciencia, as inextricaveis e confusas vegetações da Ideia e do instincto, o impeto irreductivel dos sentidos, a engrenagem complexa do organismo humano. É-lhe absolutamente indifferente que haja paixões peccaminosas ou sentimentos legitimos, ideias preversas ou ideias sãs, instinctos criminosos ou instinctos bons. Essa ordem de considerações fica alem dos limites que a si proprio traçou. Não tem indignações nem desprezos, não tem admirações nem alegrias. Tem simplesmente a curiosidade attenta do chimico, em presença do qual dois productos se combinam ou se repellem, do naturalista que encontrou a lei pela qual se explica um phenomeno da materia. Ha porem outra ordem de espiritos, que teem, como o philosopho, uma concepção particular do Universo e da Vida; que teem, como o artista, o amor do bello; que teem, como o psychologo, a curiosa penetração do homem interior,--mas que, de cada facto veem a consequencia, de cada lei veem a applicação, de cada aspecto bello das cousas veem a influencia. Julgam, estudam, absolvem ou condemnam, impõem condições á belleza, regras immutaveis á consciencia, preceitos sagrados á Vida Humana e á vida social. Não lhes basta o interesse dramatico, a magnifica florescencia da Paixão, a vitalidade intensa do instincto, o jogo admiravel das energias physicas ou mentaes. De tudo isto se preoccupam, tudo isto estudam e analysam, mas com o fim de pôr o equilibrio e a harmonia n'estas forças indomitas, que, entregues a si mesmas se aniquillariam mutuamente, sem uma lei suprema que as subordinasse! O espirito de Antonio Candido pertence ao genero d'estes espiritos em que predominam as preoccupações de ordem moral. Os asperos deveres e as amargas tristezas de todos os dias; os nossos sentimentos mais intimos; as nossas mais irrepremiveis paixões; as incertezas, as agonias do espirito alanceado por tantas contradicções e tantas duvidas, e que, em nenhuma solução, das que offerece a philosophia ou a crença religiosa, encontrou ainda o repouso desejado; e lucta interior travada entre o mysticismo--innato ou herdado no homem--e o racionalismo victorioso mas cruel, cujas ondas veem, dia e noite, bater impetuosas contra a fortaleza mal segura, em que elle abrigou os seus deuses foragidos; os combates da consciencia e da vontade, do instincto e da razão; todo este mundo enorme, que cada um de nós traz dentro de si, para sua tortura e seu orgulho;--eis em summa o que attrae irresistivelmente este espirito contemplativo, no qual a educação moderna não poude nunca vencer de todo a nostalgia, talvez inconsciente, d'outras eras de simplicidade e de fé, em que a vida era mais facil, em que o dogmatismo religioso se impunha sem esforço á consciencia individual e a conservava mais tranquilla, mais ignorante e mais... feliz! O seu sonho--bello e radioso sonho, talvez nunca realisado--seria a pacificação da alma moderna, tão desordenada, inquieta e dolorida n'este momento, de que, todos mais ou menos, sentimos em nós a repercussão dilacerante! Elle não é dos indifferentes, que assistem impassiveis e frios a estas angustias enternecedôras do espirito contemporaneo, ou dos que trabalham para propagar, em torno de si, o desinteresse absoluto das cousas invisiveis, das cousas ideiaes... Achar uma solução pacificadora para este estado de crise latente, reconciliar as aspirações irreductiveis da nossa alma, que são o seu mais precioso e imperecivel thesouro, com as imposições da philosophia d'este seculo, que se tem insinuado até nos espiritos que a ignoram, pela indirecta e invizivel influencia que opera na litteratura, na arte, no theatro, em todas as manifestações que _democratizam_ e vulgarisam a Ideia--tal seria a ambição suprema d'este pensador, em quem a _vida interna_ é tão exigente e intensa, tão desenvolvida e tão profunda. Em varias conferencias feitas em Lisboa, em Coimbra e no Porto, Antonio Candido tem tocado em todos estes pontos delicados e melindrosos da consciencia moderna. Em nenhuma, porem, os tocou mais magistralmente do que no discurso pronunciado em 12 de abril de 1888, no theatro de S. Carlos, e n'um saráu promovido pela imprensa lisbonense em favor das victimas do Porto. Tenho ainda no ouvido, as palavras d'aquelle protesto heroico contra o pessimismo doutrina, d'aquelle hymno entoado ás Alegrias e ás Virtudes da vida, por esse melancolico, por esse vencido da felicidade, cuja voz musical parecia embebida em lagrimas, quando pintou as bellas e radiosas cousas que a Humanidade tem feito e que lhe conquistaram o direito indeclinavel de amar a existencia, que a par de tantas tristezas tem tantos risos, que a par de tanta covardia tem tão sublimes heroismos, que a par de tantas paixões cruas e de tão mortiferas angustias tem graças de tão ineffavel virtude, e voluptuosidades de encanto incomparavel. Que desinteressada homenagem prestada a essa Vida, que trahiu para elle as suas promessas todas, que nem das chymeras, que a constituem e compõem, quiz fazer a chymera suprema que o illudisse e fizesse feliz!... Se realmente Antonio Candido versando estas questões de interesse maximo, tratando estes problemas de tão complexa e vital importancia, podia fazer um serviço grande á alma portugueza, porque é que elle se não consagrou principalmente a esta alta e moralisadora tarefa social? Porque não falla, elle que o sabe tão bem, aos que teem sêde de uma palavra de vida; aos que não julgam grosseiramente que é só de pão que vive o homem d'hoje. E não é! Não o calumniemos, ao pobre homem d'hoje, tão mal pintado pela litteratura decadente d'este tempo. Nunca, no meio do mais asqueroso mercantilismo, houve mais violentas aspirações idealistas! Nunca, no meio de mais desenfreadas ambições pessoaes, houve uma ancia mais apaixonada e mais dolorosa de alguma cousa grande, indefinida e immortal! Eu sei que essa tarefa de orador e do escriptor moralista faria sorrir ironicamente a turba multa soez dos triumphadores do dia, e que ella não daria vantagens praticas de especie alguma ao que lhe acceitasse as responsabilidades e os trabalhos. Mas sei tambem que o pensador illustre, desinteressado, altivo e desdenhoso, bastante superior para cahir no desagrado pleno d'essa cousa niveladôra e immoral chamada _o sufragio universal_, poderia, renunciando ao preço mesquinho com que o mundo sabe pagar aos que o servem, guardar no coração, como um thesouro immaculado a consciencia de haver semeado o bem, de haver lançado a luz d'uma palavra sincera nos mil labyrintos tenebrosos em que a alma agonisante de hoje se perde e se debate desnorteada, de haver fallado emfim, aos homens, d'aquellas bellas e sublimes cousas, cuja posse, sonhada só que seja, nos consola de todo o mal, de toda a tristeza de viver!.. Se a verdade não é privelegio exclusivo de ninguem, aquelles que possuem uma das parcellas sagradas d'esse bem devem repartir d'elle com os seus irmãos indigentes! Contar as delicias da Abnegação, os triumphos do Sacrificio, a graça ineffavel da Virtude, não será possuil-os por momentos, não será evocar nas almas o desejo sublime de os alcançar tambem? Socegar a consciencia dos que duvidam dizendo-lhe que a Duvida é o mais seguro meio de attingir a Verdade, de que é preferivel mil vezes a agonia que os dilacera á quietação, á estagnada immobilidade dos indifferentes, não será levar um pouco de tranquilidade a tantas almas que padecem?.. Justificar as ousadias do pensamento moderno, pela sua ancia tão meritoria de sciencia e de luz, não será apresentar sob um aspecto misericordioso e justo tanto esforço que a ignorancia condemna, tanto arrojo que a intolerancia maldiz? Oh! como é largo este campo, e que beneficio não seria desbraval-o, e fazer com que na sua terra esteril as arvores desabrochassem, crescessem, se enchessem de fructos e de flores, dessem sombra, e abrigo aos que procurassem cançados a sua rama protectora! Ninguem poderia, melhor de que o orador em quem todos os prestigios da Palavra se alliam a todos os calmos esplendores do Pensamento, fazer uma realidade d'esta esperança que a tantos se affigurará talvez chymerica e pueril, mas que eu, pobre mulher, ignorante e sonhadora, me não arrependo de haver formulado aqui. * * * * * _TEIXEIRA DE QUEIROZ_ (BENTO MORENO) Com quanto seja avultada a bagagem litteraria d'este escriptor, comquanto seja admiravel a sua actividade intellectual, n'um meio tão hostil a todos os trabalhos de imaginação ou de arte, a verdade é que Bento Moreno não é, e creio que nunca será, um romancista popular. É restricto o publico que o conhece e admira, e por isso mesmo, mais rigoroso é ainda o dever da critica, perante este ostracismo injusto a que é votado um talento bem nosso, bem portuguez, e d'uma probidade litteraria, presentemente rara em toda a parte, quanto mais entre nós. Hoje o escriptor portuguez, para ser lido e conhecido, precisa de banalisar-se primeiro no jornalismo de todos os dias. O nosso publico tem apenas a paxorra necessaria para ler as gazetas. Uma _élite_ ha, pouco numerosa ainda assim, que compra a ultima _novidade_ parisiense na livraria da moda, mas isto de ter em cada dia uma ou mais horas destinadas a essa grande e purificadôra cultura do espirito, chamada a leitura, é cousa que realmente não conhecem as nossas mulheres e muito menos os nossos homens. Os romancistas modernos, capitaneados por Flaubert e por Zola, professam o mais profundo e altivo desdem para com o publico feminino. Fazem mal, e por duas razões: Primeiramente porque a imaginação e a sensibilidade da mulher são muitissimo mais promptas e accessiveis que as do homem para este genero de leitura, e depois porque a verdade dura, mas positiva é esta: só as mulheres e os homens extremamente moços, isto é, ainda um pouco _mulheres_, teem paciencia tempo e gosto de lêr romances. Passado esse primeiro periodo da vida em que o sentimento impera sobre a razão, em que a phantasia é mais forte que o raciocinio, _em que as questões do coração_ são _as grandes questões_ que sobrelevam a todas, qual é o homem que lê romances, e se enthusiasma por esses _creadores d'almas_, chamados romancistas? Talvez que os artistas os leiam, mas em cada dois mil espiritos praticos póde talvez encontrar-se um espirito de artista. Não é o bastante para constituir um publico, e sem publico como é que o escriptor póde passar?... São portanto as mulheres e os moços que restam ao romancista. É sobre esses que elle tem de actuar, é esses que elle interessa e emociona, educa ou perverte, ammollece ou tonifica, agita ou faz pensar. As nossas mulheres leêm pouco. Falta de tempo, falta de habito, falta de cultura litteraria, falta de gosto ingenito?... Não sei, nem é realmente este o momento de o investigar. D'aqui provem portanto o escassissimo mercado dos nossos livros. É o Brazil que ainda assim se encarrega de lêr o que os nossos escriptores publicam e no Brazil tem Bento Moreno uma popularidade muito maior do que chegou a alcançar aqui. * * * * * Foi com um volume de _Contos_ que Bento Moreno, haverá quatorze annos se estreou na litteratura portugueza. Os que lêram este primeiro volume da _Comedia do Campo_, e os que podiam ter n'este ponto opinião que valesse a pena de attender-se, perceberam no artista que se estreiava faculdades singulares, que davam á sua penna um cunho inconfundivel. _Não se parecer com ninguem_ é a condição indeclinavel, indispensavel do escriptor de raça. Bento Moreno appareceu logo com um estylo seu. Era duro esse estylo; não tinha as malleabilidades, as ductilidades e as graças que se assignalam sympathicamente ao instincto do leitor; havia n'elle um não sei quê de primitivo, de ingenuo, de _não cultivado_, que o tornava talvez ainda defeituoso e tosco, mas as qualidades poderosas do observador e o sentimento vivo e profundo do _pittoresco_ revellavam-se já n'este livro d'um modo surprehendente. A alma primitiva e rude do minhoto, a paysagem deliciosamente verde, e singelamente idyllica do Minho, retratavam-se ali, n'aquelle primeiro livro, em traços admiraveis de verdade e de encanto. Observar e sentir, não serão estas as duas faculdades principaes de todo o artista? O theatro era talvez monotono e um pouco trivial na sua verdura sem quebras, na sua paysagem sem accidentes e sem relevo accentuado; os personagens não tinham nem o vigor brutal, e o monstruoso aspecto inquietador dos camponezes de Zola, nem a manha, e a velhacaria quasi grandiosas dos camponios de Balzac; mas scenario e figuras eram bem nossas, e não havia nas paginas d'esse livro, como de resto continuou a não haver nas obras de Bento Moreno, reminiscencias litterarias, echos de vozes já ouvidas, copia ou imitação de processos extrangeiros, _pastiches_ de creações alheias! Seguiram-se, com intervallos desiguaes, a esse primeiro volume de contos minhotos d'um sabor tão vivamente original, _sentant le terroir_, na phrase franceza para a qual não encontro n'este instante equivalente, muitos outros de varios generos, que accusavam cada vez mais o progresso do estylista e a indole especial do escriptor. São esses livros o _Amor Divino_, o _Antonio Fogueira_, os _Noivos_, o _Grande homem_, o _Sallustio Nogueira_, e os _Novos Contos_. D'esta bibliographia variada e extensa o que eu prefiro, são os _Novos Contos_, o _Amor Divino_, e o _Antonio Fogueira_. Desde que a critica hoje não é mais, no dizer de Anatole France, _que as aventuras do espirito de cada critico atravez dos livros que este lê_, porque não confessarei que em Bento Moreno prefiro o contista ao romancista? É que o _Amor Divino_, os _Novos Contos_ e o _Antonio Fogueira_, pintam deliciosamente e naturalistamente scenas da vida minhota, quadros da paysagem minhota, traços, condições peculiares, sentimentos e impressões da alma minhota. Desdenhando inteiramente o successo facil e o applauso condicional d'um publico pouco litterario, Bento Moreno continuou a seguir, com enlêvos de artista, o precioso filão que descobrira. Elle, de resto, não fez senão recordar-se bem, e traduzir--pondo a _nota justa_ nas suas formosas interpretações artisticas,--as scenas que vira e que presenceára na infancia, inconsciente da graça nativa que d'ellas se evola como um perfume acre e sadio! Este escriptor, que o publico não tem favorecido com excessiva attenção, é comtudo um dos homens mais doidos pela sua arte, que eu tenho conhecido na minha já não curta existencia. A fortuna, que ninguem mais do que elle merecia, pol-o desde longos annos ao abrigo d'esta necessidade ferrea, que nos traz a tantos de nós, curvados sobre a banca do trabalho, exhaurindo sobre ella a nossa força, a nossa seiva intellectual, a nossa saude, a nossa alegria, a nossa vida emfim. Mas que lhe importava a elle esse secundario accessorio? O trabalho litterario é o grande e o mais profundo amor da sua alma, tão nobremente povoada de affectos santos. Debaixo do seu sorriso de sceptico, sob a sua palavra um pouco mordaz sem nunca ser maledicente, um pouco acre, sem nunca ser cruel, esconde-se um d'estes corações d'ouro, uma d'estas organisações d'uma sensibilidade exquisita e dolorosa, excessivamente impressionavel, aberta ás proprias dôres, e o que é mais, ás dôres d'aquelles que ama! Esta sensibilidade fez d'elle, irremediavelmente, o artista condemnado ás gestações dolorosas da ideia, aos improbos combates da fórma, ás tristezas invenciveis dos longos periodos de desalento, ás luctas sempre renascentes da creação artistica, laboriosa e terrivelmente fatigante para o cerebro. * * * * * Nos _Contos_ de Bento Moreno ha duas figuras, que ressaltam principalmente, com uma vida intensa, com uma realidade violenta. São o _abbade_ e o _brazileiro_, as duas entidades importantissimas na paysagem risonha e na farta vida tão singela da nossa verde provincia. Foram Camillo e Bento Moreno os que comprehenderam e puzeram em poderoso relêvo estas duas figuras caracteristicas e tão nacionaes! Em Camillo, a linguagem d'uma riqueza incomparavelmente superior, a intensidade e a vivacidade comica da expressão, que o tornam rival, muita vez triumphante, dos maiores _humoristas_ do mundo, imprimem nas suas creações a perfeição e o cunho soberbo das duradoiras obras, que nenhuma revolução do gosto póde destruir. Bento Moreno, com muito menos belleza na execução plastica da sua obra, com muitas mais imperfeições de processo, dá uma realidade mais viva, um cunho mais sincero ao personagem. Camillo faz o typo; elle desenha a physionomia muito individual, muito caracteristica da figura evocada, de modo a não deixar que se esqueça mais, ou que se confunda com qualquer outra. As concepções diversas, que os dois teem da Arte percebem-se claramente nas differenças fundamentaes do modo de a executar. Mas o _abbade_ é tão palpavel e real nos _Contos_ de Bento Moreno, como nas paginas scintillantes de _humor_ do grande romancista, e o _brazileiro_ tem talvez mais verdade, visto atravez da lente microscopica de Teixeira de Queiroz, analysado com a paciencia de naturalista que distingue este observador, do que pintado a _fresco_ em largas pinceladas d'um immorredoiro sabor comico, pelo engenho extraordinario de Camillo Castello Branco. Percebe-se _à priori_ que o genero em que mais se deleita e em que mais excellentemente se manifesta a imaginação e a observação de Bento Moreno, não favorece n'elle o estudo das complicações psychologicas e dos requintes sentimentaes, que tanto no gosto estão dos leitores contemporaneos. São almas simples as que elle melhor analysa e disseca. Uma pequena ambição, uma vaidade pueril, um sonho de primitiva singeleza, uma paixão rude e instinctiva; bastam para encher estas vidas ingenuas que o artista se entretem em pôr a nú. Mesmo o drama, quando apparece como no _Antonio Fogueira_, é um drama sem complicações extranhas, sem contradições, sem complexidade, sem mysterios de indecifravel profundeza. Ou selvagens, ou pueris, ou violentas ou ingenuas, estas almas sentem impetuosamente, n'uma explosão de instinctos irreductiveis e ardentes; ou vegetam n'uma doçura inconsciente de planta que medra ao sol, bebendo a luz sem saber que a bebe, amando sem ter a impressão de que ama! O estylo de Bento Moreno que principiou por sêr duro e inflexivel, como se não houvesse meio de o fazer obedecer docilmente á vontade e aos caprichos do escriptor, e que pouco a pouco se foi transformando e aperfeiçoando, ammolleceu-se n'este ultimo livro--_Os Novos Contos_--em notas d'uma melancolia discreta, e d'uma sensibilidade suavemente vellada, e ha _Contos_ d'elle como a _A minha morte_, o _Nosso Senhor Jesus Christo_, o _Cego de Guardiam_, que dão uma nova phase d'este talento progressivo, e perfectivel como os talentos de bôa raça. * * * * * _O Amor Divino_ (pathologia d'uma Santa) foi talvez um dos melhores assumptos, que Bento Moreno encontrou no seu caminho de observador e analysta scientifico das doenças e manias do _animal humano_. A influencia do _missionario_ na alma rude, ingenua e candida da mulher do povo das nossas provincias do Norte, é, como todos sabem, poderosissima. Quando as _missões_ passam pelas aldeas de Portugal, que ainda estão sob a influencia d'esse meio paganismo, que ellas julgam religião catholica, o que succede ahi de perturbador e de desordenado, chega a parecer inverosimil e phantastico. As raparigas deixam cahir, cortadas aos pés, as longas tranças nem sempre excessivamente cuidadas dos seus cabellos escuros e bastos; as mulheres abandonam pela egreja a casa onde o marido e os filhos ficam entregues á mais deploravel incuria! Ouvem-se pelas ruas e pelas azinhagas de carvalheiras, em que a vinha de enforcado pendura os pampanos verde-claros, brados afflictivos de peccadôras arrependidas que se lamentam; ha restituições de objectos roubados, denuncias de crimes esquecidos, bulhas medonhas entre os paes e as filhas os maridos e as mulheres; as _beatas_ arrepellam-se por quererem, todas á uma, ser a favorita do sr. missionario que mais virtude apparenta; e nos campos tranquillos e nas aldeias monotonas, que a ausencia completa do aceio feminino torna sempre tão tristemente contradictorias com a paysagem circumdante, luminosa, farta e festiva, tamanho movimento, tamanho bulicio, tamanhas luctas se desenvolvem, que chegam a fazer, de cada passagem de missionarios uma revolução memoravel. Como em todos os movimentos sinceros da alma popular ha n'este muito oiro e muita escoria, muita cousa boa e muita cousa má. A inconsciencia animal, em que vive o nosso camponez, é violentamente sacudida pela prédica, sempre adquada ao seu rude auditorio, do missionario que vem espalhar pelo povo a _palavra de Deus_. E, certamente levar uma pouca de luz a cerebros rudimentares, tão profundamente submersos nas trevas d'uma ignorancia absoluta e d'uma inconsciencia moral verdadeiramente lamentavel, poderia considerar-se uma obra santa, se os missionarios se limitassem a fazer penetrar no duro cerebro dos seus ouvintes algumas noções de moral, de religião e de tolerancia mutua. É porem exactamente o contrario que succede, ou antes, succede o que é mais pernicioso que tudo! Dirigindo-se de preferencia ás mulheres, d'uma impressionabilidade mais dolorosa e mais vibratil, d'uma fraqueza organica mais accessivel a qualquer influencia profunda, o que elles fazem é exacerbar-lhes perigosamente a sensibilidade, latente em todo o organismo feminino, e precipital-as n'uma ordem de ideias e de sensações morbidas, que por tenebrosas e desconhecidas, são infinitamente perturbadôras para as infelizes... Pintando como peccado mortal a florescencia do rude instincto irreductivel, e da innocente e expansiva natureza; condemnando como um crime horrendo o exercicio das faculdades naturaes a todo o organismo humano; fazendo a descripção medonha e phantastica do inferno, que espera todos os que tiverem a desgraça de faltar aos preceitos da Egreja mais orthodoxa, e da Moral mais austera; accentuando com traços realistas, e com violentas côres brutaes, feitas para fallar ao instincto da multidão ignorante, esse Inferno em que os supplicios são comprehensiveis pelo materialismo grosseiro e pelas imagens physicas d'uma revoltante energia;--os missionarios levam a desordem, o desiquilibrio a todas as que os ouvem, e a loucura ás imaginações mais exaltadas, e aos organismos mais fracos. Quantas raparigas do povo enlouquecem ao ouvil-os!... Quantas, fugindo para o convento ou fazendo-se irmãs de caridade procuram, na lida esmagadora ou na clausura estreita aggravada pelos cilicios e pelos jejuns, o perdão de imaginarios peccados e de phantasticas culpas!... Pois o _Amor Divino_ é isto que pinta dramaticamente, com verdade, com animação, com muita diversidade de typos e de figuras reaes, e bem tocadas. O _Amor Divino_ é a acção exercida pela palavra candente e inflammada d'um missionario, no espirito, no coração, na vida interior, d'uma robusta e alegre minhota, risonha, sensual, fortemente retemperada por aquelle bello sol luxuriante e quente para as sãs alegrias da vida e da maternidade feliz! O missionario transfigura-a, e pouco a pouco, por uma gradação escrupulosamente notada, leva a pobre moça á exaltação, ao hysterismo, ao delirio, ao mysticismo das vizionarias e das stygmatisadas, á morte emfim, acompanhada de torturas e de hallucinações pavorosas!... Se á belleza d'esta concepção, se á intuição delicada de tantos segredos intimos da organisação feminina, se ao vigor transcendente do assumpto, correspondesse n'este livro--um dos melhores de Bento Moreno--a impeccavel pureza d'uma fórma burilada e perfeita, este volume ficaria como uma preciosidade litteraria incomparavel! Raras vezes um assumpto tão verdadeiro, tão rico de aspectos diversos, tão suggestivo, se offerece ao estudo d'um observador no genero especial de Bento Moreno! Tem defeitos o livro? Tem. Mas é um dos melhores, dos mais exactos, dos mais bem feitos que devemos á penna de Teixeira de Queiroz, e é um _documento_ soberbo de verdade, e de vigor naturalista. * * * * * O _Antonio Fogueira_, é outro dos meus estudos favoritos. Que bellas paginas de paysagem, que notação exacta no estudo d'esse typo tão caracteristico e tão popular de _feirante_, amando os bons cavallos, o bom vinho, as robustas e alegres cachopas, vivendo com a inconsciencia vegetativa d'um bello e forte bruto, que nenhuma lei _flexibilisou_, em que nenhum principio moral actua, cujo duro craneo não abriga uma ideia, mas em cujo temperamento vegetam--no luxo enorme, na floração purpurea, no regorgitamento sensual da seiva mais opulenta,--os instinctos do selvagem, do animal bravio independente e feroz. Tanto o _Amor Divino_ como o _Antonio Fogueira_, tanto o primeiro volume como o ultimo dos contos soltos, não poderiam ter sido escriptos, pensados, sentidos, senão em Portugal, senão na provincia em que teem a sua origem e a sua raiz vigorosa e tenaz. Este merito é enorme n'uma litteratura como a nossa, em que muitos dos melhores livros de costumes ou de analyse psychologica parecem traduzidos do francez! Eis provavelmente o defeito que as nossas delicadas leitoras lhes encontram. Que lhes importa a ellas, no fim de contas, o que pensa um cerebro plebeu de abbade minhoto, ou de homem do campo robusto, indisciplinavel e brigão? Que lhes importa o aspecto extranho que assumem, o mysticismo e a exaltação devota, na organisação robusta e brutal de uma pobre e ignorante mulher do campo? Não é assim que pensam os cardeaes e os prelados, graciosamente affaveis, classicamente eruditos, risonhamente paternaes, delicados casuistas de consciencia, finos argumentadores theologicos e ao mesmo tempo conversadores adoravelmente indulgentes, a quem ellas, as gentis catholicas do _mundo_, beijam o annel encontrando-os nas salas mais _selected_, ante os quaes ellas se ajoelham rendidas, nas cerimonias patheticas e magestosas, austeras e tão impressionadôras do culto, que praticam e professam devotamente. Não é assim que procedem os _dandys_ que ellas conhecem e admiram; nem é assim que a paixão dos divinos mysterios, que o extase das insondaveis beatitudes, as aspirações mysticas e a exaltação sagrada se manifestam nas deliciosas e pallidas mulheres, que ellas tractam de perto, e das quaes algumas se refugiam de vez em quando, do mundo que as trahiu e desenganou, sob o habito austero das _vizitandinas_, ou sob a grande touca branca de azas soltas das irmãs de S. Vicente de Paula. Eu propria, mais amiga dos estudos em que a alma moderna, _atormentada_, saciada, desformizada por uma cultura excessiva, sonhadora de amarguras e de volupias ineditas, traduz as suas dôres peculiares, as suas doenças complicadas e extranhas, eu propria inacessivel ás vezes á sã e robusta influencia da mãe natureza, me penitenceio aqui do crime de que accuso as leitoras. E no entanto a critica não deve assim proceder, para ser lucida e justa. A sua obrigação é collocar-se nos mais diversos pontos de vista, e explicar e comprehender as mais diversas tendencias. Acceite, sem condições de especie alguma, o ponto de partida do escriptor, o que ella tem de verificar é se a obra correspondeu á concepção embryonaria, e traduziu bem a sua ideia inicial. As mais oppostas manifestações de arte são igualmente legitimas perante o critico, os temperamentos mais contrarios obedecem á lei superior que os justifica, explicando-os, e perante a qual, quem só procura a verdade e só a verdade investiga, tem de curvar-se com respeito sincero. * * * * * Não me parece que na sua _Comedia burgueza_, Teixeira de Queiroz fosse tão feliz como na _Comedia do Campo_. O estylo tem sempre progredido, a _maneira_ do escriptor, á proporção que elle avança na vida, vae-se tornando ao mesmo tempo mais flexivel, mais firme e mais sinuosa. Comtudo é fóra de duvida que o seu instrumento de analyse presta-se menos ao estudo do meio burguez, mais complicado e mais réles, do que se presta á observação larga e feliz dos costumes campestres, e das simples almas plebeias e incorruptas, mesmo até na violencia ou no crime. Os _Noivos_ são talvez uma pintura exacta. Exacta de mais! Não a sobredoira um raio de luz ideal. N'esse casal burguez profundamente antipathico e inesthetico, o marido é mediocre, pobre, mesquinho de comprehensão e de sentimento, incapaz de nos interessar pela sua figura incolor e em que nenhuma paixão cravou a garra leonina, em que nenhuma força desenvolve e manifesta energias latentes. A mulher é mal educada, é rélesmente ambiciosa, coquette sem graça, amiga do luxo sem intuição artistica do seu valor, sensual sem impetuosidades de femea robusta e indisciplinavel. O meio em que elles se movem corresponde, pelo seu acanhado ambito, aos personagens, que longe de reagirem contra elle se lhe subordinam ás leis corruptôras. É esta uma pintura real da pequena burguezia das grandes cidades? Não creio que o seja. Mas é um recanto d'essa classe, que toca d'um lado no povo inculto, que por outro se relaciona com uma cathegoria social mais rica, mais educada e mais ambiciosa; tendo os vicios d'uma e d'outra classe, sem ter nenhuma das qualidades solidas e grandes que no bem, distinguem e caracterisam qualquer das duas. Essa classe dubia que tem do povo a grosseria do instincto e que tem da burguezia a ancia de _parecer_, o amor do luxo apparente e barato, a ambição de elevar-se socialmente, o respeito das cousas officiaes, das pessoas e superioridades consagradas, está aqui realmente apanhada, em muitas das culpas flagrantes que a assignalam e a tornam tão profundamente antipathica para o artista! Vê-se que Bento Moreno empregou n'este estudo o mesmo escrupulo de naturalista, a mesma indifferença de observador e de colleccionador, ao qual o sapo e a andorinha, a rosa ou o cardo, a borboleta multicôr ou a viscosa lagarta, interessam igualmente, e igualmente sollicitam e prendem! Foi o mundo politico que no _Grande homem_ e no _Sallustio Nogueira_, Teixeira de Queiroz tentou estudar de mais perto. São simples tentativas no genero estes trabalhos. Em ambos se manifestam as qualidades e os defeitos do escriptor. Mas o estylo tem sem duvida um grande progresso. Faltam os dados para a observação positiva; os factos não tem aquelle _carimbo_ de verdade tão indispensavel ao romancista da nova escola; o _documento humano_ nem sempre é authentico e incontestado. Tudo isto porem virá com o tempo, e essas acquisições secundarias dependem do esforço e do poder de vontade empregados pelo escriptor. * * * * * Concluindo repetirei o que já disse. A impopularidade de Bento Moreno é inteiramente injustificavel. Não falta a este escriptor a graça natural nem o colorido pittoresco e vivo, nem a sensibilidade mais vibrante e mais enternecida! Elle comprehende a natureza como poucos; é genuinamente portuguez no modo de sentir, e de traduzir a impressão que lhe é suggerida pelo espectaculo do mundo; e no seu talento impressionavel e delicado, ha uma flôr de sinceridade, de honestidade e de nobreza ingenua que me encanta! No mundo actual em que triumpha o materialismo, o mercantilismo, o amor do ganho, elle adora com tocante desinteresse a Arte, que nem sempre o tem recompensado dos seus extremos, o trabalho que prosegue infatigavel, sempre em busca do melhor, sempre aspirando ao ponto mais alto e á comprehensão mais ampla do seu assumpto, sempre perseguindo aquella verdade relativa que é dado a cada homem possuir ou sonhar... Cada novo livro tem revellado n'elle um progresso ou de estylo, ou de sentimento e de observação. Espirito eminentemente progressivo, Bento Moreno não nos deu ainda a medida completa do seu valor. Atravez de todos os seus livros--marcos milliarios d'uma marcha ascencional--elle tem caminhado para alguma cousa de definitivo e de completo, que se está elaborando talvez inconscientemente no cerebro fecundo do notavel contista, e que hade surgir, enriquecida de todos os dons variados e preciosos que elle tem ido lentamente, gradualmente adquirindo e manifestando em cada novo volume publicado. Entre o auctor do primeiro volume da _Comedia do Campo_ e o auctor dos _Novos Contos_, que extraordinaria differença, mas que progresso logico e natural! Muitas das qualidades que só appareceram ali em germen apenas, fructificaram já; muitas estão na primeira flôr, e muitas não conseguiram ainda sahir do estado embryonario em que pela primeira vez appareceram. Mas o tempo que produz o seu effeito n'alguma d'ellas, ha de exercer nas outras a mesma acção embora mais tardia, e cada novo livro de Bento Moreno confirmará, estou certa, este diagnostico da critica. Felizes os espiritos progressivos porque elles são os que triumpham do tempo, felizes os escriptores que em cada obra affirmam uma nova qualidade, porque n'elles o talento é uma ascenção laboriosa embora, mas feliz e consoladôra para a luz e para o ideal! SEGUNDA PARTE _Octave Feuillet_ UNE MORTE O CASAMENTO E A EDUCAÇÃO I Visto que é da França que nos vem o santo e a senha, olhemos para a França, onde litterariamente se discutem sempre questões geraes, que a todos interessam. N'este momento, e como que em protesto á obra naturalista e á escola que a produz--escola de que Zola está dando a formula no seu ultimo livro: _L'oeuvre_--Octave Feuillet, o velho romantico, acaba de publicar, na _Revista dos Dois Mundos_, um estudo intitulado: a _Morta_. A _Morta_ é uma especie de pamphleto, escripto na adoravel maneira, um pouco falsa, do elegante romancista contra a invasão crescente e victoriosa das ideias modernas. Ora o que os velhos de todos os tempos, de todas as raças, de todas as civilisações chamam _ideias modernas_, combate-se sim, mas não se vence. A evolução permanente, a lenta transformação fatal das ideias humanas, está fóra da acção exercida pela vontade individual. Cada geração traz o seu contingente á formação d'esse inventario enorme, que é feito de todas as riquezas do pensamento e de todas as acquisições progressivas da Sciencia, e ninguem tem no seu poder regeitar ou acceitar um facto que é de si inevitavel. As ideias modernas triumpham sempre, e é por isso mesmo que a humanidade não pára, e caminha incansavelmente á procura do que julga _melhor_. Imagina enganar-se? Muito embora! Retrocede, mas não pára. E, n'esses momentos de retrocesso os velhos, que assistem a um espectaculo diverso d'aquelle a que assistiram moços, continuam a chamar _ideias modernas_ ao que mais propriamente se chamaria _ideias renovadas_. O _naturalismo_ exigente, exagerado ou brutal, tal como elle hoje tenta estabelecer-se na arte e nos costumes, será uma invenção moderna? Decerto que não! Na Grecia encontramol-o soberbo, triumphante, constituindo só por si a religião, a lei, a moral, a civilisação completa, harmoniosa e feliz, que é ainda o modelo para o qual todos os olhos se levantam embevecidos e saudosos. Na derrocada final do mundo romano, achamol-o como um facto irresistivel, como uma manifestação inconsciente de força, na onda germanica que invade o imperio caduco, e vem refundir physiologica e moralmente a raça cuja actividade especulativa, levada aos requintes extremos, se tornara na mais rapida e fatal das decadencias. Mais tarde, ao sair das trevas gothicas, o que foi o mundo, senão o mesmo que hoje está sendo com menos pompa decorativa, com menos vigor physico e moral, com menos vivo sentimento do pittoresco? A ideal exaltação de que o _romantismo de 1830_ fez escola, seria porventura, n'aquella quadra, uma _ideia moderna_? O que foram as epochas de cavallaria, ao mesmo tempo mystica e sensual, o que foi a quadra das _côrtes de amor_, dos trovadores e dos pagens, dos cultos platonicos levados até ao exagero ridiculo, dos enthusiasmos apaixonados e symbolicos pela mulher, senão a traducção na litteratura e nos costumes do mesmo estado mental, menos requintado, menos perfeito, menos contradictorio, menos complexo, menos _civilisado_ emfim? Já nada ha moderno sob a face dos ceus! _Nous sommes revenus de tout_, mas depois de tudo havermos experimentado!... Como quer que seja, Octave Feuillet fez um romance, combatendo as ideias modernas, e poz n'esse romance, delicioso em todo o caso, todas as suas qualidades e todos os seus defeitos de escriptor. Entendamo-nos: Octave Feuillet não é um escriptor profundo, é um escriptor elegante. Pinta com uma seducção de pincel muito sua, pinta de _chic_, na phrase de _atelier_, uma certa especie particular da sociedade franceza. A aristocracia refinada, devota e monarchica, adora Feuillet, a quem no fim de contas não deve muito, porque se quasi todas as suas mulheres são encantadoras de graça e distincção, n'ellas a virtude é, raramente, um principio inabalavel; em quanto que a fraqueza é na maior parte das vezes um requinte delicioso. A gente gosta de ler Feuillet, como gosta de estar n'um salão elegante. Conversa-se ali bem, no tom discreto e _nuancé_ das conversações aristocraticas; respira-se um aroma de feno, ou de tilia, que tem suavidade sem produzir entontecimentos; as reticencias, subtilmente accrescentadas á phrase, dão a esta um sabor vivo e penetrante, sem todavia melindrarem de leve as conveniencias mais correctamente exigentes; as intenções finissimas sublinham o dialogo, a graça da observação substitue-se á profundeza dolorosa da analyse. A paixão nunca ali soltou o seu uivo estridulo e dilacerante. Ama-se, como se faz tudo o mais... correctamente. O homem é, primeiro que tudo, _gentleman_; a mulher é, antes de mais nada, senhora! As paginas de Feuillet poderiam ler-se á vontade n'um d'estes adoraveis salões convencionaes, que todo o artista aprecia, mas no qual elle não aprenderia nunca a conhecer a rude naturesa brutal, a que tem exigencias fataes, a que tem gritos de paixão impetuosa, a que, pelo amor robusto e sagrado da verdade, atira por terra todas as hypocrisias, todas as convenções, todos os veus, todos os sophismas que a mascaram, que a desformisam, que a falseiam, que fazem d'ella uma coisa immoral e cahida no desagrado das familias. Feuillet é pois genuinamente, o romancista para a ordem de pessoas acima descriptas, o romancista distincto na mundana accepção da phrase. São deploraveis os seus imitadores, como são detestaveis na burguezia os salões que tentam imitar a inimitavel graça aristocratica dos outros. Sob este ponto de vista, um pouco restricto, é que o escriptor tem de ser julgado. Consideral-o um observador profundo, um psycologico completo, um moralista convencido, é pol-o inteiramente fóra da esphera que lhe é propria. Com tudo, tal é o desejo que toda a gente professa de fazer positivamente aquillo para que não tem o minimo geito, que Feuillet teve sempre a tentação de versar e discutir problemas moraes e problemas phylosophicos da mais alta importancia. Na _Histoire de Sybille_, elle já pintou, delicadamente, finamente, com uma subtilesa de mão encantadora, o conflito que póde dar-se na moderna sociedade entre a mulher educada dentro do ideal catholico mais orthodoxo, e o homem nascido e creado no meio sceptico e indifferente que nos envolve. Respondeu a este livro--que desejava ser uma these philosophica, e, que foi apenas, felizmente para o auctor, uma novella encantadora,--a _Mademoiselle de La Quintinie_, de George Sand, e lembro-me d'esse volume como d'um dos mais aridos e mais seccantes da grande escriptora. É que a _these_ feita _romance_ é quasi sempre pretenciosamente enfadonha. Agora, é ainda um livro d'esta ordem, o ultimo livro do auctor do _Conde de Camors_. Duas questões de uma só vez tenta elle tratar no seu livro. O problema terrivel do casamento, e o problema não menos perturbante, não menos difficil, da moderna educação da mulher. Vejamos o enredo do livro: Bernardo de Vaudricourt, um moço pariziense da primeira nobreza, da primeira roda e de primeira educação, apaixona-se por uma menina de eguaes condições de posição, nobreza e fortuna. Elle, porem, inteiramente contaminado pelas ideias do mundo em que tem vivido, é uma completa imagem do scepticismo contemporaneo. Já se vê que não tem tido tempo de sondar o que ha, no fundo das questões que regeita. E sceptico como... toda a gente. Nem melhor nem peior, nem mais nem menos. A controversia philosophica ou religiosa nunca lhe levou nem uma hora dos dias occupados em montar a cavallo, em caçar, em valsar, em seduzir as mulheres dos seus amigos intimos, em jogar no seu _club_, e em encher de brilhantes o peito das actrizes em voga. Que querem! É sceptico por dever de sociedade. Qual é o homem do _sport_ que se atreveria a confessar-se crente nos dias que vão correndo? Sciencia não a tem, já se vê, mas visto que não sabe quasi nada, entende mais commodo não acreditar no que não sabe. Como gentil homem que é, tem o que na sua raça, no seu meio, se chama o culto da honra. A _honra_ é a coisa mais indefinivel e mais elastica que ha n'este mundo. Dentro dos seus limites cabem tantas e tão boas coisas, que não vale realmente a pena a quem se respeita, ultrapassal-os e excedel-os! Aliette de Courteheuse, a noiva, é um anjo de puresa, mas é tambem um anjo de piedade orthodoxa. Educaram-n'a dentro do codigo genuinamente catholico; ás crenças que a familia lhe communicou pela educação, reune uma exaltada comprehensão dos deveres e da vida, e um certo desdem aristocratico pela actualidade tão banal e tão cheia de contrasensos, tão feita de transigencias e de covardias. O amor porém, vence os obstaculos moraes que separam estes dois caracteres tão contrarios, e Bernardo casa-se com Aliette de Courteheuse. A parte mais estudada do romance é aquella em que Feuillet conta, analysa, descreve e sublinha subtilmente todos os conflictos inevitaveis que d'esta união vão resultar. Porque Aliette não é uma d'estas catholicas, que harmonisam o baile com os officios, a confissão com as desordens de uma vida _à outrance_, o mundanismo requintado, com as praticas mais estreitas. Não! Esta é uma crente, uma alma que identificou a sua religião e o seu dever, e fez dos dois estreitamente entrelaçados a lei suprema da sua existencia inteira. Esta não é das que pegam no seu _catholicismo_, como quem pega no seu livro de missa: unicamente para os levar á egreja. Tudo que ella pensa, tudo que ella sente, tudo que ella pratica, se subordina ao alto principio a que submetteu a sua vida. No museu de pintura, no theatro, nas salas elegantes onde a vida moderna ostenta as pompas viciosas do seu goso, no interior da familia, ao pé dos indifferentes e ao pé do seu marido Aliette é sempre impeccavelmente, a bella e escrupulosa creatura, que para se respeitar a si propria, precisa de não transigir com os sophismas e as contradicções dos outros, que para não descer aos seus olhos, precisa de não afastar os passos que dá do ideal que concebeu! Realise-se esta hypothese figurada pelo primoroso romancista,--a mulher profundamente e sinceramente religiosa ao pé do marido indifferente para umas coisas, incredulo para outras, sempre divorciado moralmente da mulher amada,--e ter-se-ha esse obscuro inferno da vida domestica tantas vezes apontado, tantas vezes combatido por mim. O casamento tem só uma base moral, séria e inviolavel; é a uniformidade de vistas entre marido e mulher a respeito das questões fundamentaes da vida. A felicidade, sem essa base, é uma chymera irrealisavel, e eis o motivo porque em cem casamentos desgraçados, ha um que o não seja. II A vida dos dois heroes do livro é portanto, dilacerada obscuramente por dissenções intimas, que ambos elles, por mais vontade que tenham de facilitarem reciprocamente a felicidade commum, não podem evitar que se levantem a cada passo. Conclusão tremenda do auctor, indicada apenas, mas clara para todos os olhos: a mulher piedosa não pode, dado o modo de ver do homem moderno, achar a paz da consciencia, achar a harmonia das coisas na vida conjugal. Surge, porém, em scena, a mulher educada segundo o que Feuillet quer imaginar o ideal moderno,--a mulher que lê Darwin, que applica na existencia as theorias do grande sabio inglez, que conhece as sciencias naturaes e que fortaleceu o seu espirito na formidavel negação que d'ellas resulta como um effeito fatal,--e Feuillet reune n'ella todas as monstruosidades, todos os crimes, desde a abdicação voluntaria da honra até ao assassinio. Perto da propriedade rural, para onde Bernardo de Vaudricourt consente em retirar-se com a mulher, depois d'esta ir quasi que morrendo de dôr na vida de dissipação parisiense que ao principio é obrigada a seguir, vive um medico retirado da clinica, um chimico notavel, que fez da sobrinha e pupilla uma discipula dilecta da sua philosophia materialista, uma companheira dos seus trabalhos scientificos, uma ajudante das suas experiencias chimicas e physiologicas. Sabina, a sobrinha do doutor, é, segundo Feuillet parece pensar, a mulher moderna, tal qual vae ser, creada pela educação que a França está dando ás suas filhas. Pois Sabina envenena Aliette para casar com Bernardo; consegue casar com este, depois de ter feito morrer de degosto o tutor e tio, e a breve trecho é infiel ao marido, com o primeiro que lhe apparece diante dos olhos, e responde muito serena a quem ousa interrogal-a, que fazendo tudo isto, e muito mais ainda, se é possivel fazer-se mais, ella segue simplesmente até ás suas consequencias logicas as doutrinas com que lhe embeberam o espirito infantil. Quando o doutor Tallevaut descobre o horrivel crime commettido pela sua adorada sobrinha e lh'o lança em rosto antes da apoplexia que o fulmina, ella responde-lhe que é apenas sua humilde discipula. --«Minha discipula, miseravel! exclama o desgraçado. Pois eu ensinei-te alguma vez principios diversos d'aquelles que eu proprio praticava? Pois eu dei-te, pela minha palavra ou pelo meu exemplo, outras lições que não fossem de rectidão, de justiça, de humanidade e de honra?... --«Realmente o meu tio surprehende-me immenso. Como é que um espirito tão lucido poude deixar de perceber, que eu podia tirar das suas doutrinas e dos nossos estudos communs, consequencias e ensinamentos diversos d'aquelles que o seu espirito tirava? A arvore da Sciencia, não produz em todos os terrenos os mesmos fructos?... Fallou-me de rectidão, de justiça, de humanidade e de honra?... Espanta-se que as mesmas theorias que lhe inspiraram essas virtudes m'as não houvessem inspirado a mim?... E com tudo a rasão d'isto é bem simples... Sabe tão bem como eu, que essas suppostas virtudes, são na realidade facultativas... pois que não passam de instinctos... de verdadeiros preconceitos que a natureza nos impõe... por que necessita d'elles para a conservação e progresso da sua obra... Gosta de submetter-se a esses instinctos... eu não gosto... eis a unica differença que nos separa. «--Mas eu não te disse e não repeti mil vezes, desgraçada, que o dever, a honra, a propria felicidade consistiam na submissão a essas leis naturaes, a essas leis divinas?! --Disse-m'o, «e assim o julga, bem sei... Eu, pela minha parte, creio o contrario. Creio que o dever, que a honra d'uma creatura humana consiste em revoltar-se contra essas servidões, em sacudir essas cadeias com que a natureza... ou Deus, como quizer, nos prende, nos opprime, para nos fazer cooperar, contra a nossa propria vontade, n'um fim desconhecido... n'uma obra a que somos estranhos... Ah! de certo. O meu tio disse-me e repetiu-me mil vezes que era para si não sómente um dever, mas até uma alegria, o poder contribuir humildemente pelos seus trabalhos e pelas suas virtudes para não sei que obra divina, para não sei que fim superior e mysterioso, que é como o alvo supremo, a que o universo se encaminha... Mas que quer? esses prazeres deixam-me a mim perfeitamente insensivel; não tenho o minimo desejo de levar a vida a constranger-me, a privar-me, a soffrer, para preparar, a não sei que futura humanidade, um estado de felicidade e de perfeição, do qual nada gosarei, festas a que não posso assistir, paraizos, emfim, onde não entrarei nunca!... ...................................................................... E depois de continuar n'este tom meia hora, amontoando paradoxos, argumentos falsissimos, dos quaes a sciencia humana nunca, que eu saiba, se serviu, acrescenta: «Um crime foi o que eu perpetrei?... Mas isto de crime não passa d'uma palavra, bem sabe. «O que é o bem? O que é o mal? O que é verdadeiro e o que é falso? «Na realidade o codigo da moral humana não passa hoje d'uma pagina em branco, na qual cada um escreve o que quer, segundo a sua intelligencia e o seu temperamento. «Já não ha senão cathecismos individuaes... O meu é aquelle que me foi pregado pelo exemplo da propria Natureza: ella elimina com egoismo impassivel tudo que a incommoda; ella supprime tudo que lhe é obstaculo; ella esmaga o fraco, para dar logar ao forte... e creia que não é de hoje que esta doutrina é acceite pelos espiritos livres e superiores. Em todos os tempos se disse: os bons vão-se embora cedo! Não, não são os bons que se vão embora, são os fracos, e não fazem mais que o seu dever. Quando a gente lhes presta n'este sentido um pequeno auxilio, imita apenas o exemplo do creador! Leia o seu Darwin; leia o seu Darwin, meu tio!» O pobre do tio responde a esta bella tirada caindo varado por uma congestão; e Sabina d'ahi a pouco tempo, casada já com Bernardo, responde ao marido, que a accusa de faltar aos deveres mais elementares da mulher, pelo mesmo modo emphatico e pedantesco, e com os mesmos argumentos falseados, desformisados pela vontade do escriptor. Por tanto a ignorancia de Feuillet a respeito de Darwin, ou a sua má fé litteraria, é evidente na intenção d'esta obra. Eu não conheço profundamente a doutrina do naturalista inglez; mas conheço-a bastante para poder affirmar que nem essa doutrina é uma philosophia, nem Octave Feuillet tem d'ella a comprehensão mais elementar. Darwin, dos seus estudos analyticos e das suas observações e experiencias, deduziu algumas leis com applicação restrictamente biologica, e que só por um aventuroso esforço de analogia se podem applicar á sociologia e á historia. A selecção natural, a luta pela vida no mundo organico não passaram ainda de hypotheses, segundo o rigoroso criterio da philosophia positiva; mas, quando chegassem a converter-se em leis perfeitamente liquidadas, haveria entre o dominio d'essas leis e os factos superiores do pensamento, a mesma distancia scientifica que vae de quaesquer theorias geneseticas do mundo até quaesquer systemas de embryogenia animal. Resta-nos, por tanto, a convicção de que o auctor procedeu de má fé. As applicações da doutrina de Darwin aos factos sociaes, feitas pelos mais illustres dos seus discipulos, por Spencer por exemplo, estão penetradas de um espirito moral austero e digno, a que faltará talvez uma base scientifica, mas a que não faltam de certo a elevação e a belleza. Feuillet, por conseguinte, é tão exacto, é tão verdadeiro, é tão honesto na sua obra como seria qualquer livre pensador que, para combater a moral catholica, a mostrasse exemplificada na devassidão de Alexandre Borgia, no instincto sanguinariamente devoto de Carlos IX, no fervor assassino de Torquemada, no fanatismo criminoso dos que acenderam as fogueiras da inquisição, dos que vibraram o punhal da S. Barthelemy, dos que bem disseram as dragonadas de Nantes, dos que organisaram a matança dos Algibenses, dos que teriam perdido a Egreja, se a Egreja não tivesse a salval-a na historia, e ainda na actualidade, a sua missão civilisadora pela disciplina, pela arte, pela politica, pela unidade, pela sciencia, e, sobretudo, e principalmente, por ter mantido sempre, acima do interesse dos individuos e do egoismo das nações, o principio da humanidade, que antes d'ella o mundo não conhecera. Aquelles todos comprehenderam tão bem o catholicismo, como a heroina de Feuillet comprehendeu o alcance moral, pequeno ou grande, que pode extrair-se da doutrina darwiniana. Já se vê que o que pode concluir-se do livro de Octave Feuillet é realmente desconsolador até á desolação mais intima e mais profunda. A piedosa e doce mulher christã, collocada em plena sociedade elegante do seculo XIX, tem que fugir, por que principia a perder pé, e tem medo de naufragar. Entre ella e seu marido nunca chega a realisar-se a união intellectual, a invejavel identificação de duas almas, sem a qual o casamento é apenas a attracção dos dois sexos, legalisada perante Deus e perante o mundo. A vida intima que todos sonham tão penetrada de luz beatifica, tão unida, tão ardentemente vivida por dois espozos moços, intelligentes, namorados, torna-se para qualquer d'elles um lento e obscuro supplicio que os punge, e que, por mutua caridade, elles tentam disfarçar. A mulher, desligada do ideal catholico, é o monstro que mata, que atraiçoa, que morde a mão que a alimentou, que precipita na deshonra e na inconsolavel dôr o marido que a estremeceu?... Que ha então a fazer?... Que alvitre proporá o auctor de _une morte_?... Eu por mim humildemente declaro que não concordo com o que elle diz, que não acceito, as suas aterradoras conclusões. III É fóra de duvida que hoje a questão religiosa, existente em toda a parte, aqui revelada, ali occulta, é uma das causas determinantes do horrivel mal-estar que tortura o nosso tempo e principalissimamente a nossa raça, mas não se conclua da enorme importancia d'essa questão que a mulher,--fatalmente educada n'este meio cada vez mais materialista, mais negativo, mais incredulo em tudo que seja sobrenatural e alem do humano,--se transforme no perigoso monstro phantasiado por Feuillet. Que culpa teem as pobres creaturas, educadas agora, das ideas que pairam sobre todos nós, que nos penetram insensivelmente, que nos roubam ao influxo mystico do catholicismo, que, mau grado nosso, substituem pela duvida dolorosa, pela curiosidade analytica, pela ancia penetrante de saber, os enthusiasmos fervidos, as crenças pueris e simples da nossa mocidade. Não são os homens que nos teem ensinado a duvidar do que elles duvidam? não são elles que nos teem perturbado, agitado, com a sua duvida e incerteza? e sobretudo desnorteado com a leviandade cynica da sua negação? E terão elles tambem culpa por ventura de que os descobrimentos extraordinarios e imprevistos da sciencia, de que o alargamento continuo e progressivo do pensamento, de que as lições irresistivelmente verdadeiras da natureza, desvendada emfim, depois de tantos seculos de mysterio, lançassem por terra, de envolta com a tradição desmentida, tantos dos alicerces em que elles haviam construido o edificio da sua crença?! Sim, o catholicismo sendo o codigo mais completo que a humanidade elaborou ainda, tinha soluções para todas as crizes do nosso destino, podia dar-nos a paz, podia satisfazer as mais irrequietas ambições da nossa alma. Mas esse catholicismo, contra o qual o enorme oceano chamado humanidade deixou durante vinte seculos bater a onda tremenda das suas duvidas--foi por ventura a nossa geração que o fez em ruinas?! Se a tibieza da fé, se a incredulidade no mysterio, se o desdem pelo sobrenatural são factos, dolorozos muito embora, se assim o querem, mas factos positivamente adquiridos, se a ancia da verdade, impondo-se ao homem, lhe deu na duvida a sua gloria maxima e tambem a sua maxima tortura, se a nenhum de nós, filhos d'este seculo, e vergados ao pezo terrivel e tragico d'essa herança titanica de tantos seculos de investigação e de angustia, nos é dado fugir á excruciante agonia da nossa eterna e audaciosa interrogação, se nós fômos os eleitos da Historia para esta tragedia que consiste em agonisar junto ao tumulo d'um Deus, digam-me: não será tempo de fazer uma tentativa suprema, que pacifique emfim a nossa consciencia desnorteada e vacillante?... Pois se fora do catholicismo não podem subsistir as grandes leis moraes, de cujo austero cumprimento depende a nossa felicidade e a nossa intima paz, assim se lançam ás gemonias tantas almas sinceras, tantas almas inquietas, tantas almas sedentas de verdade e de justiça, que não acharam na Egreja a solução aos graves e complexos problemas da vida?... Porque, emfim, o catholicismo não é uma convicção raciocinada, é uma fé subjugadora. Ha muitos espiritos, que, achando a organisação catholica a mais elevada expressão de força intelligente, que, achando a disciplina catholica o mais frizante exemplo da vontade applicada á moral, sentem com tudo que, para serem catholicos, lhes falta simplesmente... tudo! Tudo, quer dizer a fé na origem divina d'essa religião que os enthusiasma, que os apaixona, considerada como resultante de uma serie de leis historicas e puramente humanas. A nossa crença, ou a nossa duvida, estão em nós; mas dependem acaso de nós? Não, mil vezes não! Os estados da nossa consciencia proveem do ambiente moral que temos respirado desde o berço e de uma serie de causas existentes já antes de nós existirmos, e cujos effeitos herdámos involuntaria, inconscientemente. Se a nossa vontade entra como elemento importante na obra complexa do nosso destino, ella é apenas um elemento, subordinado a centenas de outros, que nós não podemos sujeitar, nem prever sequer. Assim como o sangue que nos corre nas veias vem eivado, ou fortalecido já, de maculas ou de qualidades hereditarias, o nosso espirito traz impresso o cunho de mil influencias anteriores á propria formação d'elle. Ninguem se esquiva ás idéas do seu tempo; e tão impossivel seria Voltaire em plena Edade Media, como S. Francisco de Assiz em pleno seculo XIX. Portanto, tudo o que se diga hoje, para provar que a mulher é absolutamente obrigada a ter a fé de santa Theresa, não passa d'um entretenimento de rhetorica, sem a minima seriedade, e sem o minimo pezo. Eu, já se vê, que ponho aqui completamente de parte aquella porção distincta e particular da sociedade do meu tempo, para a qual a religião é um luxo, requintado, feito de pequeninos apuros frivolos, um ritual de praticas estereis, sem pensamento, sem alma, sem significação moral, um preceito de alta educação mystico-elegante, um formulario ôcco, uma lampada artisticamente cinzelada, sim, mas já sem oleo perfumado e sem luz fecunda e clara! Mas se, alem d'essas praticantes, que sabem a letra do Evangelho e que não sabem ou não querem saber a preciosa essencia do seu espirito, se alem d'essas zelosas, que contradizem e desmentem a cada passo a doutrina que acceitam, ha ainda hoje creaturas simples, piedosas, absolutamente crentes, que teem a fé _do carvoeiro_, como guia da propria existencia, que, aquellas que não podem imital-as lançam para ellas um olhar de admiração, de inveja sem fel, e lhes digam ingenua e simplesmente!--Abençoadas sejaes vós, ó doces e queridas irmãs, que nunca tereis de hesitar nos desfiladeiros e nos algares, nas asperas charnecas e nas rudes montanhas d'esta vida! Abençoadas sejaes vós, que pudesteis fechar os ouvidos ao clamor confuzo das gerações atormentadas e não ouvir o que dizia, no murmurio vago das noites mysteriozas, a voz de tantos ardentes corações, pedindo á Natureza um raio de luz, um raio de verdade, a pacificação suprema ás torturas, sempre renascentes, da Duvida! Abençoadas sejaes vós, que para cada pergunta da vossa consciencia, tendes a resposta prompta do vosso codigo divino! E depois da rapida e ephemera passagem, que é para vós a vida, tendes, para matar todas as sedes, a Eterna fonte sempre limpida; para compensar de todas as abnegações terrestres, a celeste recompensa, sempre renovada; para satisfazer todas as ambições ainda as mais incontentaveis, a ineffavel beatitude sempre luminoza e sempre azul! São essas as felizes, as privilegiadas, as raras. Mas não são essas que precisam das lagrimas da minha piedade, nem dos conselhos da minha razão. As que n'este momento de transição terrivel, eu supponho bem dignas de piedade, aquellas para quem eu desejava ver formulado um codigo de moral positiva, feito de todas as acquisições da experiencia, são as que não teem uma fé solida a dirigil-as na vida. A moral preciza de tornar-se independente de qualquer religião, para ser, ao lado d'ella ou sem ella, o principio dominante a que sujeitamos todos os arrojos do nosso pensamento, todos os impetos desordenados da nossa paixão. Porque é fatal que o individuo tenha de sacrificar-se pela collectividade, e que a vontade de cada homem se subordine á utilidade e ao bem de todos. A moral positiva, disem os seus adversarios, funda-se pura e exclusivamente no interesse. É triste eu bem sei, que é triste, esta conclusão humilhante a que temos de chegar; mas qual é a lei que se nos impôe e que nós acceitamos, que não tenha por fundamento mais ou menos disfarçado o nosso proprio interesse? A felicidade no ceu ou a felicidade na terra, eis os unicos motores que dirigem este hybrido ser, meio animal e meio anjo, que se chama homem. N'este momento, pois, o ponto interessante e capital a discutir vem a ser este: Dos resultados já liquidados de todas as sciencias particulares poderá sommar-se um capital de conhecimentos positivos, capaz só por si de constituir a moral social? Se a resposta feita pelos observadores, pelos moralistas, pelos philosophos, fôr affirmativa, que elles tratem de formular esse codigo, visto que a humanidade, eterna tutellada, abomina a independencia da sua propria razão, e preciza de ter escripta, e reduzida a preceitos dogmaticos, cada uma das leis a que tem de subordinar o seu destino. Se a resposta, por emquanto, for negativa, trabalhe-se no sentido de augmentar as riquezas já coordenadas, e tracte-se de chegar cedo á conclusão pacificadora, pela qual todos nós anceiamos. Acreditemos, para nossa consolação e para nosso descanço, que ha em nós, independentemente de qualquer principio extranho, embora superior, a aspiração permanente ao que é bom, ao que é bello, puro e harmonioso. Muita vez, é claro, a paixão desvaira a mulher, mas a mulher religiosa nem sempre escapa a esses desvairamentos, visto que a Historia os aponta nos seculos do mais exaltado ascetismo. Não queiramos particularisar tanto o sentimento da moralidade, que esta não possa viver senão ao abrigo de qualquer templo. É um mau serviço que fazemos, pois que não nos é dado a nós, nem a ninguem, obstar a que o ideal religioso vá pouco a pouco cedendo o passo á invasão triumphante, embora desconsoladora, da sciencia positiva e experimental. * * * * * Escrevendo o que ahi fica, eu não tomo o partido contra as tendencias da minha epocha, nem a favor d'ellas. Sou o relator imparcial do espectaculo a que assisto. Não ha porém, a meu ver, tragedia mais dolorosa do que esta de que o meu tempo é o theatro. E sinto no fundo desconsolado e escuro da minha alma de mulher, aquella ineffavel tristeza dilaceradora que Virgilio sentiu, quando, pelas florestas do seu Lacio, ouviu passar a voz lamentosa e inolvidavel, que annunciava ás gentes a morte do velho Pan! Desgraçadas as gerações que são fatalmente condemnadas a assistirem ao desmoronar de um mundo. _OS IRMÃOS GONCOURT_ I Um dos defeitos, ou, se preferem, uma das virtudes do nosso tempo é a _curiosidade_. Somos curiosos de tudo; descemos ás minuciosidades mais microscopicas, e subimos ás mais altas generalisações. Nada eguala o cuidado attento com que reunimos os documentos dispersos, que devem conduzir-nos á acquisição de uma verdade qualquer, senão o poder de synthese com que sabemos, do encadeamento de todos os phenomenos, tirar a lei que os explica, relaciona e domina. Em cada ramo do pensamento humano se revella, por todos os modos, a nossa insaciavel e inquieta curiosidade. A litteratura está, como todas as mais manifestações da actividade physica ou mental do homem, subordinada a esta tendencia tão moderna do nosso espirito. Os livros hoje interessam-nos principalmente, por nos revellarem o machinismo interno de quem os escreveu, e atravez d'elle o homem, com as suas contradicções e desordens mentaes, com os seus desequilibrios, fraquezas, vicios e virtudes. A critica tornou-se uma especie de romance historico, muito mais interessante que os romances da imaginação. Para conhecermos os homens, e d'entre os homens o escriptor,--quer dizer, aquelle que mais deve ter condensado em si todas as energias intellectuaes do seu seculo--pegamos nos seus livros e analysamos miudamente, scientificamente, anatomicamente essas creações vivas que elle nos legou. Cada livro é um orgão ainda palpitante do corpo que estamos dissecando. Não nos contentamos, porém, com o livro, desde logo destinado pelo seu auctor a ser lido e interpretado pelo publico. Queremos, exigimos, muito mais. As cartas, os diarios posthumos, as confidencias involuntarias, pelas quaes a alma se manifesta irresistivelmente, nas suas particularidades, nas suas idyosincrasias, eis o que hoje nos satisfaz. É extraordinaria a indiscricção com que temos ido rebuscar todos os documentos do passado, para encontrarmos n'elles a alma occulta, a vida mysteriosa e latente. N'esse ponto, temos tido como instrumento maravilhoso de investigação e de critica, o nosso proprio scepticismo, o nosso _dilletantismo_ tão moderno, pelo qual nos é facil penetrar em todas as epochas, comprehender todas as civilisações e assimilar todas as idéas, ainda as mais oppostas e as mais extremas. O passado, porém, já nos não basta. O homem do passado não é o homem d'hoje. O seculo XVII não pensa como o seculo XVIII, do mesmo modo, porque o nosso seculo não pensa como qualquer dos dois. A alma contemporanea é bem mais complexa. Dizem que o cerebro moderno tem mais circonvoluções. Pudera! Se elle tem por força muitas mais idéas. Tem todas as que tinham os seus antecessores, e mais aquellas de que fez a acquisição por seu esforço proprio. E depois _sabe muito_, sabe de mais, este endemoninhado seculo! Não ha coisa que não fôsse desenterrar para sobrecarregar mais e mais a memoria e a consciencia. Os que estão acima do nivel vulgar, os que por sua desgraça, pensam, julgam e criticam, são todos mais ou menos _hystericos_. Ha uns requintes doentios, uma etherisação morbida, um excesso de actividade cerebral no homem da nossa geração, que fôram inteiramente desconhecidos n'outras epocas mais equilibradas e mais sadias. O systema nervoso desconjunta-se-lhes á força de o terem em continua e dolorosa vibração. D'aqui as oscillações e os desequilibrios fataes de todo o mechanismo interno. Penetrarmos o _porquê_ d'essas aberrações, que nos surprehendem e desorientam nos que são grandes pela imaginação e pelo talento, eis um dos nossos eternos e justificaveis apetites. É esse que nos leva a devorarmos tudo que são autobiographias, memorias, correspondencias, indiscricções litterarias, sejam de que genero fôrem. As cartas de Julio de Goncourt, o _Diario_ dos dois irmãos, ultimamente publicado por Edmond de Goncourt, fôram, portanto, e estão sendo, objecto da maior curiosidade da parte dos _gourmets_ litterarios de toda a Europa, e não sei se da America tambem. Os dois Goncourt, por muito tempo desconhecidos e _negados_, são hoje, finalmente, considerados como os continuadores do pensamento de Balzac, sob uma fórma litteraria, mais artistica, mais requintada, mais _tourmentée_ que a do grande romancista da _Cousine Bette_. N'este exercito, cujos generaes se chamam Flaubert, Zola, Daudet,--são os Goncourt que vão na vanguarda, desbastando a grande floresta, em que Balzac foi o primeiro a penetrar, com as suas passadas de gigante e a força herculea do seu machado de explorador. Esta geração começa a perceber quanto deve a Balzac; e é realmente honroso para ella, pagar emfim a divida que os contemporaneos d'esse escriptor assombroso, tão grande como Shakespeare, deixaram de solver! Se os Goncourt são os precursores da escola chamada _naturalista_, e cuja paternidade se attribue injustamente a Flaubert, é fóra de duvida que elles, o proprio Flaubert, Zola, Daudet, e alguns discipulos d'estes, são apenas os filhos espirituaes de Balzac. Elles são incontestaveis e distinctos artistas; elle era o Genio. Cada um d'elles tem a sua accentuada individualidade propria. Um, a analyse impessoal, outro a amplificação e a força brutal e desregrada; este a sensibilidade feminina quasi doentia; aquelle a fina intuição psychologica, a _visão interior_ n'um grau de lucidez estranho. Todos, porém, procedem do Mestre. O seu largo sôpro creador penetra-os e inspira-os a todos. Nenhum d'elles teria a magistral perfeição technica da fórma e a comprehensão ampla do assumpto que tractam, na altura em que a possuem, se o auctor da _Eugenie Grandet_, do _Pêre Goriot_, e de tantas obras immortaes lhes não tivesse ensinado o caminho a seguir. Os Goncourt, todavia, sendo os primeiros que se filiaram, sob uma fórma diversa, na escola iniciada pelo genial creador da _Comedia Humana_, nem por isso são os mais conhecidos e os mais apreciados. Só uma limitada _élite_ intellectual seguiu com profundo interesse o trabalho d'estes irmãos gemeos em litteratura. Duas qualidades predominantes os distinguem. A finura subtil e delicada da analyse e a linguagem que á força de _trabalhada_ adquiriu uma fluidez, uma flexibilidade, uma sinuosidade ondeante, uma transparencia crystalina, uns tons, uns cambiantes, umas côres que a tornam apta para _notar_ e traduzir a impressão mais fugitiva, ou mais rara, o traço mais leve, a sensação mais incoercivel, a sombra mais impalpavel do pensamento, ou do sentimento humano. Por estas duas qualidades se percebe já que os Goncourt não poderão nunca ser uns escriptores populares. Só os delicados se comprazem n'estas subtilezas da idéa e da fórma. O que n'elles porém avulta a todos os olhos, é este phenomeno raro de identificação, que fez de ambos _um_ só, sem que possa de modo algum descriminar-se a parte em que qualquer d'elles concorreu para o trabalho commum. Edmond de Goncourt, quando perdeu o irmão mais novo, que estremecia como uma porção da propria vida, como um membro do seu corpo, ou uma parcella indivisivel da sua alma, ficou por largo tempo emmudecido, no lethargo que succede aos grandes abalos da sensibilidade. Sahiu d'esse estado, porém, e escreveu entre outros livros, muito inferiores em todo o caso aos que tinham sido collaborados por Julio, um estranho livro, que é necessario lêr attentamente, para que se possa penetrar até certo ponto no segredo da maravilhosa união intellectual, que fazia um só escriptor dos dois escriptores mais requintados e mais vibrantes da moderna litteratura franceza. Chama-se _Les frères Zenganno_ este livro que, á parte a linguagem, não tem a meu vêr outro merito positivo que não seja a revelação ou antes a critica d'esse phenomeno psychico-litterario de que acima fallámos. _Les frères Zenganno_ são dois clowns, que trabalham sempre juntos, conseguindo, por um milagre de gymnastica, harmonisar e identificar os movimentos communs. Percebe-se aqui a allusão ao trabalho litterario em que os dois escriptores consumiram a existencia. Entremeiados, porém, na obra, um pouco extravagante e levemente phantastica, ha capitulos que são uma confidencia completa, e que mais do que tudo que eu podesse dizer, explicam o caso phenomenal que tanto interesse merece aos observadores, aos criticos e mesmo aos simples profanos da arte. Oiçamos por exemplo este trecho: «Os dois irmãos não tinham um pelo outro um simples affecto fraternal. Não. Estavam mutuamente ligados por laços mysteriosos, por affinidades psychicas, e isto apesar de serem de idades muito diversas e de caracteres diametralmente oppostos. Os seus primeiros movimentos instinctivos eram identicamente os mesmos. Experimentavam sympathias ou antipathias egualmente subitas, e quando iam a qualquer parte, sahiam do sitio onde haviam estado, tendo a respeito das pessoas que tinham visto uma opinião inteiramente similhante. Não só os individuos mas tambem as cousas, com o _porquê_ irraciocinado do seu encanto ou do seu aspecto desagradavel, lhes fallavam do mesmo modo a ambos. Emfim, as idéas, essas creações do cerebro, cujo nascimento é d'uma phantasia tão livre, e que tanta vez nos espantam pelo «não sei como» do seu apparecimento, as idéas, de ordinario tão pouco simultaneas e tão pouco parallelas nas uniões de coração entre homem e mulher, até as idéas nasciam commum aos dois irmãos, que não raro, depois de uma pausa silenciosa se voltavam um para o outro para se dizerem a mesma coisa, sem que achassem explicação ao singular acaso que fazia encontrar nas suas boccas, duas phrases que formavam apenas uma só. Assim moralmente _acolchetados_ um ao outro, os dois irmãos precisavam de confundir constantemente os seus dias e os seus serões, separavam-se sempre a custo, e cada um d'elles experimentava na ausencia do outro, o sentimento estranho, indefinivel de alguma coisa de incompleto e de mutilado. «Quando um tinha sahido por algumas horas parecia que o que sahia levava para fóra o poder de attenção do irmão que ficára em casa, e que não podia fazer mais nada senão fumar até á volta do ausente. «E se a hora annunciada para o regresso passava, o cerebro do que estava á espera, enchia-se de desastres, de catastrophes, de accidentes medonhos, de preoccupações estupidamente sinistras, que o faziam correr continuamente do quarto á porta da rua. De modo que só forçadamente os separavam; que um, nunca acceitava o convite que o outro não devesse partilhar; e que, relembrando todos os annos da sua existencia commum, elles só recordavam terem passado vinte e quatro horas completas, um longe do outro. «É necessario, porém, accrescentar que, entre os dois irmãos, este estreitamento de fraternidade fôra feito por alguma coisa de mais poderoso ainda que tudo isto. O trabalho de ambos achava-se tanto e tão bem confundido, os seus exercicios de tal modo identificados, e tudo que elles faziam unidos, parecia pertencer tão pouco a qualquer dos dois em particular, que os applausos eram sempre dirigidos á associação e que nunca o par tinha sido separado na censura ou no elogio. Era d'este modo que estes dois seres tinham chegado ao ponto de constituirem _um_--e caso raro, quasi unico nas amisades humanas--de não terem senão _um_ amor proprio, _uma_ vaidade, _um_ orgulho que o publico feria ou acariciava ao mesmo tempo em ambos.» Foi trabalhando d'este modo, tão subtilmente descripto pelo ultimo que ficou, ferido e inconsolavel para sempre, que elles, fazendo da physiologia o novo instrumento do romance contemporaneo, e levando para os estudos delicadamente cinzelados da Historia o mesmo escrupulo de analyse e a mesma finura extraordinaria de processo, pintaram, desde _Maria Antoinette_ a adoravel, sympathica, leviana e altiva rainha, até _Germinia Lacerteux_ a pobre e humilde creada, victima inconsciente e fatal de um temperamento de hysterica; desde as deliciosas e corruptas amantes de Luiz XV, até á doce e graciosa _Renée Mauperrin_; desde as endemoninhadas cortezãs do seculo XVIII, até á austera e pensadora madame Gervaisais; conseguindo, ao par d'isto, pôr tanta da vibrante personalidade de ambos em toda a sua obra, que a gente reconhece-os em Charles Demailly, o homem de lettras, victima da sua propria delicadeza organica, e em dezenas de figuras, eminentemente modernas, que atravessam as suas paginas impressionadoras e tão intensas de vida. Ninguem exprimiu com uma penetração mais intima do que elles, a _nevrose_ contemporanea com todos os seus simptomas de depravação ou desequilibrio moral; a melancholia dos espiritos, exhaustos pelos excessos de actividade mental; as baixas miserias da experiencia quotidiana, tão cheia de catastrophes interiores e de angustias dilaceradoras e invisiveis. Mas tambem ninguem, como elles, resuscitou, em mais garrida e rendilhada moldura, esse mundo galante, artistico, enfeitado, risonho, frivolo, vicioso e triumphante, que principia na orgia da Regencia e acaba na orgia da Revolução. II Depois de Balzac, ou antes d'elle, talvez, o espirito que maior influencia exerceu no destino dos dois irmãos, foi Gavarni, o insigne caricaturista, o desenhador admiravel, a quem mais tarde elles erigiram, n'um livro de grande arte, um monumento de admiração reconhecida e terna e de critica verdadeiramente magistral. Ainda os dois escriptores estavam como que encerrados na perfumada guarda-roupa d'esse seculo dezoito, que amaram tanto, resurgindo, com o seu poder de evocadores, as interessantes figuras d'aquelle mundo extincto, d'onde nós vimos todos, e que, tão diverso e tão distante é de nós, quando um acontecimento fortuito os fez travar relações com o artista, que mais profundamente _sentiu_ e amou o tempo em que viveu. Gavarni não comprehendia nem amava o passado. Como Balsac, cujas obras illustrou, o que elle amava, o que lhe prendia a attenção, o que lhe embebia amorosamente o olhar investigador, eram os typos que a cada instante acotovellava pelas ruas. Os Goncourt fallando em Coriolis, o pintor da _Manette Salomon_, descrevem d'este modo _saisissant_ o artista que se compenetra apaixonadamente dos espectaculos do seu tempo. Este pintor sente o que sentia Gavarni; o que os dois escriptores sentiram tambem mais tarde; e é d'este modo especial de encararem a arte que toda a obra d'elles deriva naturalmente. «Vagueiava de um lado a outro de Paris, estudando os typos salientes; tentando apanhar na passagem, n'essa multidão enorme de transeuntes, a physionomia moderna; observando os novos signaes da belleza d'um tempo, d'uma epoca, d'uma humanidade; o caracter que se imprime como uma dedada de artista n'esses rostos agitados, febris, o caracter que marca e designa para a Arte; o aspecto exterior dos pensamentos, das paixões, dos interesses, dos vicios, das doenças, das energias d'uma grande capital. A sua curiosidade penetrava essas physionomias de civilisados, que levam o pensamento para tão longe do vago sorrir dormente dos Egyneos, da divina placidez grega; esses rostos devastados pelas idéas, pelas sensações, por todas as acquisicões da actividade moral do homem, extenuados pela complexidade das preoccupações, atormentados pela aspereza das carreiras, pelo trabalho insano, pela difficuldade e agrura do viver. «E interrogava a expressão das pessoas atarefadas, que passam a correr pelo meio da rua, lembrando formigas n'um formigueiro, com um pacote debaixo do braço, ou um embrulho na algibeira, homens de miseria, que passeiam a sua fóme, em frente do balcão dos cambistas; physicos de larapio, escondendo a maldade do instincto, sob a femenilidade d'uma cabeça de imperatriz romana; figuras estranhas de inventores incomprehendidos, que vão ao acaso, monologando pelos passeios, com gestos inconscientes de actor. «Estudava aquella belleza singular e espirituosa, a indefinivel belleza da mulher de Paris. Seguia as apparições imprevistas; as caritas irregulares e radiantes; as pequeninas creaturas estranhas, que desabrocham, como flôres, d'entre as pedras da calçada e que, de repente, desapparecem,--com o seu arzinho de costureiras, que vão amanhecer cortezãs--por uma porta humilde e escura, por uma escada ingreme e repugnante. E tentava analysar o encanto d'essas magras raparigas, que teem nas fontes como que o reflexo do candieiro da officina, pallidas das noites perdidas á costura, e como que vagamente torturadas pela nostalgia da preguiça e do luxo. Ás vezes debaixo d'uma touquinha muito pobre, dava subitamente, com uma graça requintada, uma expressão rara, um ar de suavidade martyrisada, de melancholia virginal, que a vida dos grandes centros, o refinamento das civilisações, o fim dos sangues empobrecidos parecem fazer cahir sobre o rosto das costureirinhas miseraveis. Uma vez levou na memoria, para um estudo que principiou no dia seguinte, o rosto da filha d'uma parteira, uma pobre pequenita lymphatica, tão mansinha, tão definhada, tão branca, com os olhos tão cheios de ceu, sob a sombra das pestanas, que fazia scismar n'um anjo doentinho. «No seu intimo, n'aquella agitação dos seus passeios, havia um mal estar terrivel e indefinido, a inquietação que se apossa do homem abandonado pela religião da sua mocidade. Sentia-se n'esse momento critico, n'essa hora da vida d'um artista em que elle sente morrer dentro de si a primeira consciencia da sua arte; instante de duvida, de tortura contradictoria, de anciedade, em que, incerto a respeito de proprio futuro, hesitante entre os habitos de seu talento e a vocação da sua personalidade, _elle sente agitar-se e estremecer dentro de si o presentimento de outras fórmas e d'outras visões, o começo de novos modos de sentir, de vêr, e de querer!..._ O trabalho interior que, por este modo incisivo e brilhante, os dois Goncourt, aqui descrevem, fez-se n'elles, sob a influencia de Gavarni. É mais raro do que parece este dom especial, que nos torna, por assim dizer, physicamente sensiveis ás fórmas, ás linhas, ao relevo e ás côres do que nos tem cercado desde a infancia.... Parece que o nosso tempo é aquelle que nós devemos saber pintar melhor. Nem sempre. Na arte, o mais difficil é traduzir as coisas simples, as coisas reaes, sem nos afastarmos da exactidão, e sem cahirmos na banalidade. Pintar por exemplo o aspecto de uma rua; um grupo de gente do povo que conversa e gesticula; uma senhora que passa, bem vestida, discreta, envolvida muito prosaicamente no seu chaile de cachemira, distincta, fina e natural; pôr em attitudes expressivas e _reaes_ duas porteiras que tagarellam; esboçar com rapidez frisante um _decavé_ da Bolsa ou de _baccarat_ que vae andando cabisbaixo, lugubre e banal; desenhar a dois traços um _dandy_ de charuto na bocca e ar _spleenetico_; dar emfim o tom vivo, o destaque poderoso e ao mesmo tempo a nota exacta e verdadeira áquillo em que nós, nem reparamos já, á força de o termos visto milhares de vezes, eis um milagre que só realisam artistas consummados e organisações muito especialmente dotadas. É muito mais facil ser phantasista do que ser verdadeiro, descrever a largos traços o pôr do sol por detraz de uma cordilheira gigantesca, do que pintar uma paisagem doce, simples, vulgar, que apenas se distinga pela doçura da luz, pela graça enternecedora e humilde da expressão. A verdade de todos os dias parece impôr-se a todos nós, sentimol-a, vêmol-a, ella penetra-os por assim dizer: pois apezar d'isso tudo, tentemos traduzil-a artisticamente, e veremos depois que esforço, que condensação de vida intellectual, essa pequena coisa tão grande exige de nós! Pois é positivamente, repetimos, esse dom possuido em alto grau pelo grande pintor de costumes do seculo XIX chamado Gavarni, que elle soube communicar aos dois irmãos Goncourt. Os que duvidarem que leiam a lancinante, a dolorosa historia tão mesquinha e tão tragica, tão humilde e tão desoladora da creada _Germinia_; que leiam aquelle terrivel estudo chamado Charles Demailly, em que Julio de Goncourt como que advinha e prophetiza as torturas da sua vida de escriptor, e a agonia longa e martyrisante da sua morte de artista ambicioso e incontentado. Muitas das cartas de Julio são dirigidas a Gavarni. Ha outras a Flaubert, a Paulo de Saint Victor, a Theofilo Gauthier, a Saint Beuve, á princeza Mathilde, a Zola, etc., etc. Todas ellas explicam, esclarecem, commentam, illuminam, dia a dia, o trabalho constante que os dois irmãos proseguiram, até á morte do mais novo, atravez de todas as hostilidades da critica, da indifferença do _grosso publico_, do desdem de muitos, da ironia incredula, ou do pasmo ingenuo de quasi todos. O amor da litteratura, este amor que nós, em Portugal, só por ouvirmos fallar d'elle, conhecemos incompletamente, amor que absorve, que encanta, que allucina e que mata por fim--como matou Flaubert, como matou Julio de Goncourt, como matou Balsac, como é muito provavel que mate brevemente Daudet--o amor da litteratura respira-se n'estas cartas com um perfume subtil que as embalsama, e que as impregna admiravelmente. Póde mesmo affirmar-se que este amor é o maior que domina a vida dos dois irmãos, e que os faz vêr a vida nos livros e atravez dos livros. E a cada obra bem feita, que sentido e sincero applauso! que vibrar de phrases sonoras traduzindo a admiração, o goso agudo da intelligencia satisfeita! O estylo, isto que a nós nos parece apenas o instrumento mais ou menos perfeito de que a idéa se serve, e que a outros parece toda a arte, dá-lhes a elles, quando é cinzelado com o primor a que aspiram, prazeres comparaveis aos que nós, os que não commungamos n'essa religião da fórma, temos diante de um grandioso espectaculo da Natureza ou diante de uma sublime acção do homem. «Ha no seu livro, diz Julio de Goncourt n'uma carta a Michelet, phrases feitas de luz, paginas inteiras de sol, epithetos que se respiram, idéas que fremem e palpitam sobre a haste das palavras!!» Qual de nós tem esta viva impressão intellectual, tão delicada e subtilmente expressa aqui, ante a musica mais ou menos bella de um livro de prosa? E, no entanto, são incompletos todos os artistas da palavra que a não sentem. A palavra é _tudo_ para o escriptor, visto que é o unico meio que elle tem de traduzir as variadissimas, as infinitas modificações do espirito humano. Os dois Goncourt fizeram do estylo uma sciencia, a mais complexa e requintada das sciencias. Comprehenderam e muito bem, que todos os doentios symptomas, todos os phenomenos pathologicos da alma moderna, todos os effeitos multiplos, inteiramente ineditos que na Vida produz a comprehensão morbida que nós temos da Vida, precisavam tambem de uma formula nova que os exprimisse. Para as doenças recentes que o excesso da civilisação, o _détraquement_ nervoso, as diversas aberrações cerebraes nos teem trazido, precisava-se de uma technologia ainda não sabida até hoje. A elles foi-lhes necessario encontrarem a arte de _notar os sentimentos indiscriptiveis_; de traduzir as imperceptiveis vibrações da alma; as mutações rapidas da sensibilidade; as delicadezas doentias de uma geração estragada pelo excesso da vida nervosa e cerebral. Julio de Goncourt conseguiu, pois, á custa de um trabalho mental exagerado e exclusivo que lhe custou a vida, dar á lingua franceza a subtileza, o nervosismo, a intensidade harmonica, a rapidez e a variedade de cambiantes que ella não tinha. O estylo d'elle, ou antes o estylo dos dois irmãos, tem musicas e tons esbatidos, e perfumes agonisantes, e fremitos voluptuosos, e sobresaltos hystericos. Para lêr e apreciar a obra dos Goncourt é necessario ter como elles, os nervos vibrantes, o cerebro excitado, e a sensibilidade estranhamente irritavel. Escrevendo a Zola, a respeito da morte de seu querido irmão, Edmond de Goncourt, dizia: «A meu vêr, elle morreu do trabalho, morreu sobretudo da elaboração da fórma, da cinzeladura da phrase, do lavôr do estylo. «Estou-o vendo ainda, pegar dos trechos que tinhamos escripto em commum, e que, ao principio, nos tinham satisfeito, e trabalhar n'elles horas e horas, tardes inteiras, com uma obstinação quasi colerica, mudando aqui um epitheto, pondo n'uma phrase o rythmo que lhe faltava, emendando uma expressão, fatigando, gastando o cerebro á procura d'essa perfeição tão difficil, ás vezes impossivel, á lingua franceza, na traducção das coisas e dos sentimentos modernos. Depois d'essa tarefa enorme, cahia para cima d'um sophá, moido pelo cançasso, e alli ficava um longo espaço de tempo, silencioso, a fumar.» Balzac, que teve como nenhum dos discipulos que vieram depois d'elle, a larga, a profunda, a milagrosa intuição dos sentimentos que agitaram, moveram, convulsionaram, subjugaram o seu tempo; Balsac, que pintou os _frescos_ collossaes e as deliciosas miniaturas, que soube fazer viver as suas eternas figuras, criminosas, sublimes e depravadas, cheias de odio ou cheias de amor, illuminadas pela chamma de todas as paixões, queimadas pela fornalha rubra de todas as cubiças insalubres, e que, não contente de personalisar, á grande maneira de Shakspeare, a Avareza, a Sensualidade, a Paternidade ludibriada e dolorida, a Amisade viril, os sentimentos fundamentaes do homem emfim, soube ainda penetrar nos refolhos mais reconditos da alma feminina, e colher ahi a fragil, a doce flor da melancholia, as tristezas silenciosas do amor trahido, as saudades, cuja raiz suga as forças todas de um coração solitario; Balsac, que foi muito maior que todos os modernos pelo pensamento proprio e pela vida dos seus personagens, não soube vencer, nem subjugar como elles as tyramnias da Fórma. Foi tambem n'esta lucta titanica de que sahia, deitando um vapor denso e quente de todos os póros do seu corpo athletico, que elle consumiu e gastou a existencia. A morte surprehendeu-o quando, no seu ultimo livro, a _Cousine Bette_, elle tinha emfim alcançado uma victoria decisiva e tinha quasi achado a formula, que o podesse contentar. A verdade é esta: ha escriptores para a maioria do publico. Esses não teem mais do que traduzir os sentimentos communs a toda a humanidade. Ha escriptores para os delicados, para os doentes d'essa terrivel nevrose cerebral que hoje martyrisa os pensadores, os artistas, os investigadores incontentaveis da verdade. Esses hão de ler com prazer agudo, quasi doloroso, os livros de Julio e Edmundo de Goncourt. De resto, não ha, entre os modernos, livros que mais vivamente ponham a nú a personalidade de quem os escreveu. Ha paginas inteiras que são confidencias mentaes. Ha estudos que foram feitos depois d'estas longas meditações em que a alma se revela nas suas minimas particularidades, nos seus mais intimos e dolorosos segredos! Por isso se explica que, nas suas _Idéas e Sensações_, elles escrevessem esta observação que, applicada aos dois artistas de que tratamos, é d'uma verdade tão intensa e palpitante. «Para as delicadezas, para as requintadas melancholias d'uma obra, para as phantasias raras e deliciosas que se executam na corda vibrante da alma ou do coração, não será necessario, indispensavel mesmo, uma pontinha de doença no artista? E, como Henrique Heine, não terá cada um d'esses escriptores de ser como que o Christo da sua obra, o crucificado physico da sua fé?...» Os Goncourt foram isto, e é por esse motivo que os que soffrem se sentem um pouco irmãos d'esses artistas de tão morbida e delicada tristeza! _GEORGES SAND_ Á LUZ DA SUA CORRESPONDENCIA O nosso tempo tem, e com muita razão, um verdadeiro enthusiasmo, pelo genero especial de litteratura constituido pelas _correspondencias_, pelas _memorias_, pelas notas e observações colhidas dia a dia, por estas confissões involuntarias, sem fito feito, que mais que nenhum outro trabalho intellectual nos desnudam o segredo da psychologia humana. Muitas _correspondencias_, que n'estes ultimos tempos teem visto a luz, mais serviriam para _diminuir_ os seus auctores de que para os engrandecer no espirito da posteridade. Em compensação outras ha, que vieram mostrar a uma luz bem mais favoravel, bem mais doce, aquelles que o mundo julgava com a sua proverbial e incuravel injustiça. A este numero pertence a Correspondencia de Georges Sand. Quando eu, sugeita como todas as mulheres aos desfallecimentos da alma, ás subitas e inexplicaveis tristezas, succumbo ao peso da Vida, tão hostil aos que pensam, tão dura e cruel aos que sentem muito, e pego em um d'esses volumes em que uma alma enorme de mulher conta dia a dia a historia do seu pensamento, sinto-me como que milagrosamente reconfortada. A leitora n'este ponto pára um pouco surpreza e um pouco triste, não é verdade? E pergunta-me espantada:--Pois quê?!... Tem esta opinião a respeito de Georges Sand? Seria longo e seria melindroso entrar a este respeito em minuciosas explicações. Diante d'esse genio assombroso que para o mundo se chama Georges Sand, eu não indago as fraquezas que macularam tristemente uma parte da vida intima da mulher que tinha por nome de familia Aurora Dudevant. Na sua Correspondencia, escolhida por mãos piedosas, expurgada de todas as recordações impuras d'um passado, que a grande mulher expiou nobremente e longamente, não ha um reflexo, senão muito longiquo e apagado, das luctas tremendas, das tragicas luctas que se deram n'esse espirito revoltado e extraordinario. Porei portanto de parte considerações de uma ordem extranha ao assumpto que trato, ao vir transplantar para aqui as notas que a leitura da Correspondencia de Georges Sand me arrancou irresistivelmente. E de resto, que pode haver de mais interessante para um espirito de mulher, obscuro e humilde embora, do que as confidencias d'uma mulher de genio? E se pensarmos que o _genio_ não é mais que o maravilhoso poder da condensação concedido a um cerebro humano, a faculdade de synthetisar em si as impressões e as sensações de muitos, e de formular com eloquencia e verdade, para todos comprehensiveis, as paixões e os sentimentos da multidão anonyma,--comprehenderemos, ao penetrar na vida interior d'esses seres privilegiados, que nada do que os faz sentir, palpitar e soffrer, nos é extranho a nós. Sentimos, talvez em gráu menos intenso, tudo que elles sentiram; o que nos falta é a palavra inspirada e verdadeira com que o possamos exprimir. É sob este ponto de vista, particular, que as cartas de Georges Sand nos interessam tão vivamente. Lacrimosas e repassadas de angustia, palpitantes de indignação e de revolta, resignadas e entristecidas depois, como que envoltas na pacificação melancolica do crepusculo da vida, e tendo a serena magestade e as linhas ondulantes e suaves das paizagens outoniças, respira-se n'ellas a verdade, a espontaneidade mais sincera, a mais natural despretenção. Ser sublime, sem nunca deixar de ser simples; aspirar continuamente aos mais altos pincaros do pensamento, attingil-os muita e muita vez, e não ter nunca a consciencia da propria grandeza, a vertigem da propria elevação, antes conservar-se, atravez de tudo, humilde, ignorante do seu valor e como que impregnada de um vago aroma de _bonhomia_ rural--eis o encanto mais singular d'esta mulher singularissima. Nenhuma, entre as que deixaram na historia do espirito humano um rastro luminoso, lhe é superior; emquanto que ella, na complexidade da sua opulenta organisação, tem de todas um traço caracteristico. Ha n'ella, como em _Madame Rolland_, o amor enthusiastico da liberdade, a paixão robusta da justiça, o sentimento ardente e viril da democracia; no emtanto, mais feminil que _Madame Rolland_, ella teria lagrimas e gritos de piedade, e accentos de enternecida eloquencia, para salvar das garras do algoz a bella cabeça patricia de Maria Antonietta. Tem, como a Sevigné, a ternura maternal senão absorvente e exclusiva, pelo menos penetrante de carinho, e cheia de engenhosas e subtis delicadezas. Como a Stael, adora as letras, devora-a a curiosidade de todos os segredos da intelligencia, professa a altivez intransigente e desdenhosa, em face das tyrannias brutaes. Advoga continuamente, como Madame de Recamier, a causa dos vencidos, concilia os odios, pacifica as divergencias, implora com incansavel constancia a favor de todas as victimas e embebe-se na doce utopia de um mundo, onde todos se amassem e se abraçassem, e tivessem, como premio supremo da lucta de tantas gerações de martyres, a fraternidade, a paz universal. Como Georges Elliott, a grande romancista ingleza, tão _humana_ e tão natural, ella estuda de preferencia os simples, os humildes, os obscuros, e encontra n'essas organisações rudes e inconscientes os mais reconditos thesouros de bondade e de amor. Porem o que a especialisa e distingue d'entre todas, o que lhe dá o cunho d'uma superioridade incontestavel, o que a faz do nosso tempo, e lhe conquista as sympathias da nossa geração,--é a sua viva e fecunda comprehensão da Natureza em todos os seus aspectos, e o seu tão sincero e tão moderno naturalismo em face das paixões irreprimiveis da humanidade ou das bellezas santas e pacificadoras da terra. Paizagista adoravel, nunca nos dá em termos technicos, e de uma precisão de botanico ou de geologo, a descripção minuciosa do que vê. É incontestavelmente melhor o seu processo artistico, em que peze aos sectarios fanaticos da escola descriptiva. O que ella nos dá, com uma riqueza de linguagem em que nenhum mestre a excede, com uma poesia penetrante e evocadora que só póde comparar-se á de Michelet, é a robusta, a sádia, a profunda, a deliciosa impressão que recebe dos mil variados aspectos da natureza physica. Nos seus livros respira-se o aroma resinoso dos pinheiraes alpestres; a frescura dos regatos sombrios onde a pervinca humedece o azul dos seus olhos pequeninos, e avelluda o verde escuro da sua folhagem lustrosa; a melancolica doçura das florestas gorgeiadas de rouxinoes; o idyllio suave das campinas humildes; o cheiro do feno e dos trigaes floridos; a acre respiração que sahe dos flancos da terra humida, dilacerados pelo ferro da charrua... Ha nas paginas d'ella a estridula alegria victoriosa das auroras escarlates; a languidez voluptuosa e electrica do meio dia abrasado, quando uma sêde infinita contorce em espasmos de febre tudo que respira e vive; a tristeza, dilacerante e intensa como um adeus, da hora do crepusculo; a immensa paz cariciosa, protectora e calmante, das silenciosas noites!... Quem melhor de que este coração tão eminentemente feminino sentiu e communicou aos que a leram, as delicias de que a terra, a nossa eterna Amiga, é tão prodiga, para os que entendem as harmonias ora vibrantes ora enlanguecidamente morbidas, ora de uma intensidade perturbadora, da sua orchestra colossal? Se mais nada lhe devessemos alem d'esta iniciação sagrada, era enorme ainda assim a divida contrahida por todos nós com a nossa grande e gloriosa irmã. Mas devemos-lhe mais alguma cousa, e ha n'esse _alguma cousa_ um vasto alcance moral. Devemos-lhe a alta licção que ella nos deu, trabalhando sempre, trabalhando sem um dia de afrouxamento ou de cançasso, perdoando aos que a encheram de injurias e de insultos, sem uma só tentativa de retaliação ou de vingança, sem um grito de raiva, sem uma interjeição de furor. A qualidade predominante d'este caracter, fraco ás vezes, vacillante no seu caminho, e de uma indecisão devida ás influencias que actuaram na sua juventude desamparada de toda a luz moral, é apezar de tudo, é atravez de todos os erros que lhe sombrearam para sempre a memoria, a mais completa bondade, desartificiosa e simples. Bondade immensa, bondade inextinguivel, que mais d'uma vez a transviou, mas que teve a força triumphante de a rehabilitar; bondade a que se devem as suas culpas, gravissimas é certo, mas tambem as suas raras virtudes, e entre ellas os thesouros, os mananciaes inexgotaveis da sua evangelica, ardente e apaixonada caridade. Oh! a caridade! a doce virtude que a todas sobreleva, e cuja limpida corrente, nascida no humilde presepe de Bethlem, o mundo tem tentado em vão enlodar e corromper!... Flôr, que desabrocha luminosa e perfumada na alma dos que são bons, que os consola de tudo, até da ignominia a que os homens ás vezes os condemnam, e que tem,--como certos seixos côr de purpura que se apanham á beira do oceano, e que o oceano tem polido no eterno fluxo e refluxo das suas ondas tumultuosas,--o dom mysterioso de extinguir e apagar todas as maculas... É possivel que a leitora condemne agora como um crime de lesa-moral, como uma contradicção inexplicavel e extranha, o meu enthusiasmo _confessado_ por essa mulher, que foi um genio, mas que foi tambem uma enorme peccadora. Eu peço-lhe porem que, antes de pronunciar a implacavel sentença que condemna a escriptora inimitavel, leia algumas das cartas adoraveis que ella escreveu, e com as quaes remiu, litterariamente, muitos dos peccados que não tracto aqui de conhecer nem de indagar. O nosso tempo, grande em tudo, é grande principalmente pela tolerancia, pela equidade, pela bondosa indulgencia que o homem lhe merece. Longe de vêr n'elle o criminoso irremissivel dos tempos da sombria escholastica, a victima fatalmente condemnada pelo peccado original ás chammas do inferno, ou ás chammas da fogueira, o monstro que se havia de deixar mutilar ou se havia de deixar perder, para quem a natureza e as suas forças indomadas eram outras tentações demoniacas, e que só podia ter perdão sob a condição barbara de ser anti-humano,--o nosso seculo, conhecedor de todos os segredos defezos aos seculos que o antecederam, só vê no homem o criminoso, quando lhe é de todo impossivel vêr n'elle o doente ou o vencido pela fatalidade das cousas. Os seus grandes pensadores, herdeiros n'este ponto, de antepassados gloriosos que foram como que os prophetas da nova era, e que se chamaram Voltaire e Diderot, ensinam-lhe a não condemnar o reu, sem primeiramente o terem ouvido. Exigem mais ainda, para depois sentenciarem. Exigem que se conheçam as influencias atavicas a que elle obedeceu, o meio em que se formou o seu caracter e se desenvolveu a sua educação, as circumstancias especiaes que na vida o rodearam, o conflicto que o destino estabeleceu entre as fatalidades que o arrastaram e o dever que se lhe impunha. II Não venho contar aqui, é claro, a vida de Georges Sand, que de resto, é sufficientemente conhecida. Não venho advogar a causa das suas paixões irregulares, que ella chorou com lagrimas de sangue, e que eu, pela admiração infinita que a grande mulher me inspira, quizera, á custa d'um sacrificio immenso, poder apagar da memoria de todos que a amaram. Era-me tão doce, poder levantar-lhe um altar no meu espirito, sem as dolorosas restricções que a sua desvairada mocidade me impõe!.. Eu queria vêr n'ella apenas os ultimos trinta annos da sua vida, illuminados pelo mais grandioso talento que ainda ardeu em cerebro feminino. Não posso!.. Para que ella fosse a sublime desenganada, cuja palavra era uma lição, cujo conselho era um dogma, cujo sorriso doce e triste era feito de experiencias amargas e de decepções crudelissimas, era indispensavel que ella tivesse percorrido a Via Dolorosa, ferindo-se em todos os silvedos, precipitando-se em todos os barrancos, dilacerando os pés em todas as urzes da estrada!.. Lembremo-nos comtudo que Georges Sand, filha d'uma ligação irregular e portanto condemnada pela sociedade e pela familia; eternamente combatida entre dois poderes igualmente funestos--o primeiro, a avó _voltaireana_ e sem crenças, o segundo a mãe, plebeia, leviana, inteiramente ignorante,--só poude sahir d'esta situação difficil, dolorosa, causadora de eternos conflictos, pela porta d'um casamento desigualissimo, um casamento que fatalmente a predestinava á desgraça. Esse casamento fez d'ella--natureza superior, bella e robusta organisação artistica, espirito cultivado e grande--a quasi escrava de uma especie de bruto, sempre ebrio, incuravelmente grosseiro, de gostos baixos, de costumes iguaes aos gostos. Nada d'isso a desculpa, bem sei. Eu não quero, nem devo desculpal-a. Sei que este virtuoso e sabio mundo impõe a cada mulher a facil obrigação de ser heroica, julgando-a muito feliz por lhe merecer depois um pouco de consideração banal, ou um grão de louvor condescendente!.. Mas a esta mulher em particular, dada a educação que ella tivera e o meio em que viveu por tanto tempo, quem podia dar-lhe forças para levar ao cabo a sua missão de sacrificio? Não tinha uns braços de mãe que a amparassem; um exemplo santo que a fizesse preferir a tudo o incompensado, o obscuro, o aspero dever! Não havia ao pé d'ella uns labios immaculados que a beijassem e lhe dissessem: --Tem delicias austeras, tem voluptuosidades verdadeiramente dignas das que são grandes, o cumprimento do dever, por mais duro que elle seja. Vaes procurar a felicidade ás paixões ephemeras, que na ebriedade da sua febre romantica te pintaram os artistas e os poetas, cuja obra tem sido o alimento de tua vida interior? Olha que elles todos mentem! O que de lá trarás, do paiz das chymeras azues e das miragens enganosas, é uma sêde de ideal ainda mais ardente, é o tedio da vida ainda mais profundo e mais penetrante; é uma chaga aberta que só em longos annos de renunciamento e de velhice tu poderás sarar, mas cuja cicatriz, eternamente asquerosa, desformizará, para sempre, a formosura ideal do teu genio sublime!--» Mas ai! ella era moça, tinha a sofrega curiosidade da vida; tinha lido os poetas da paixão; tinha-se contaminado d'aquella febre sensual, que se exhala, como um miasma putrido, dos livros ardentes de Rousseau. O periodo, de resto, era de delirio ardente. Gosar, eis o motte d'essa geração de desequilibrados, nascida d'um beijo entre duas batalhas sangrentas. Quando ella voltou das suas primeiras excursões ao paiz maldicto onde se respira a _malaria_ dos desejos insalubres, que immensa dôr inconsolavel se evola, como um aroma de morte, das suas tristes cartas! «O meu coração envelheceu vinte annos! Já nada na terra me sorri! Para mim já não póde haver nem paixões profundas, nem vivas alegrias. Tudo está dito! Dobrei o cabo. Cheguei ao porto, não como esses nababos que regressam em redes de sêda, ao tecto de cedro dos seus palacios, mas como os pobres pilotos, que esmagados pelo cançasso, queimados pelo sol, deitam a ancora, para não exporem mais ao mar a chalupa avariada. Não têem de que viver em terra, e demais a terra aborrece-os. Tiveram antigamente uma bella vida, tiveram riquezas, aventuras, combates e amores. Talvez lhes fosse grato recomeçar... mas como se a embarcação está desmantellada e a carregação perdida?..» Desesperada, na hora dos remorsos supremos, que os orgulhosos nem a si confessam, sentindo porventura essa dôr incomportavel, que deve ser o tedio de si propria, é a morte que ella chama com lamentos de uma incomparavel e poderosa melancolia. E voltando depois, d'essa viagem que ficou celebre no mundo das letras, pelos formosos livros que produziu, pelos versos divinos que inspirou, voltando a _Nohant_, ao ninho humilde onde segundo ella propria diz, não póde viver mas onde a morte lhe será mais doce, murmura meigamente: «Vim dizer adeus ao meu paiz, ás memorias da meninice e da mocidade, porque decerto comprehendes que a _vida me é odiosa e impossivel_ e que é forçoso, absolutamente forçoso que eu morra.» Oh! quem me dera poder citar largamente, d'essas cartas que resumem uma vida, e uma vida cheia, accidentada, agitada por todas as paixões que fazem pulsar febrilmente um coração de mulher, quem me dera poder citar todos os trechos adoraveis, que me arrancaram lagrimas!.. Sonhadora, que nenhum desengano conseguiu acordar; vizionaria, que nenhuma realidade chama á terra; ave enamorada, a que nenhuma queda parte as azas de enorme envergadura, ella vae sempre, pedindo ás amarguras dilacerantes de uma chymera impossivel, consôlo para as dôres sem nome que outra chymera lhe deixara... Pisam-n'a? abandonam-n'a? Enganam-n'a? Que importa! A vida prometteu-lhe a felicidade, e ella vôa, sem cançar nunca, atraz da sombra errante que lhe foge! Allumiada, a intermittencias rapidas, pela cruel faculdade critica que é a sua superioridade e o seu martyrio, ella despenha por suas proprias mãos do pedestal marmoreo o idolo que as suas proprias mãos ali tinham erguido. Que importa? Porque se enganára uma vez não é licito esperar que se engane eternamente. A bella figura immaculada, que a sua phantasia imaginou, ha de vir; não tarda ahi; é mister que ella tenha todo o seu coração vivo e juvenil, para lh'o entregar, renascido das proprias cinzas. E levantando-se mais vigorosa apoz o desfallecimento de todo o seu ser, e resurgindo mais apaixonada e mais crente da completa derrocada de todas as paixões e de todas as crenças, ella caminha insaciada e insaciavel, peccadora inconsciente, somnambula da paixão, ambiciosa sempre trahida d'essa chymera eterna que se chama amor feliz! Mas em meio da carreira vertiginosa e febril ha duas forças que a chamam, ha dois poderes secretos que a redimem e a salvam. A maternidade e o trabalho. Então no seu horisonte nublado e tempestuoso ergue-se, a principio indecisa e dubia, depois purpurea, victoriosa, flamejante, a luz pura que vae illuminar a vida d'esse grande espirito transviado e enlouquecido. Os homens pagaram-lhe, com insultos, o amor que, na sua fragilidade, ella lhes teve, mas o filho extremecido, preferindo o appellido glorioso que o genio de sua mãe lhe conquistara ao nome herdado de seu pae, deu-lhe n'este acto de adoração intensa e delicada a desforra de todas as humilhações, a victoria de todas as derrotas. Mais tarde, no outomno tão purpureado de tons opulentos, da sua vida de trabalhadora intrepida, ella sabe com a palavra convencida e grave dos que soffreram, luctaram e venceram, incutir coragem aos que fraquejam, ensinar o caminho do bom e do justo aos que vacillam na escolha da sua estrada, dar animo, incentivo e applauso aos artistas, que succumbem ao desalento d'uma hora infecunda, ser ella propria um exemplo de força viril e de femenil ternura. Os seis volumes da correspondencia de Georges Sand são como que a ascensão d'um espirito para a região luminosa da bondade, da justiça e do amor! Á proporção que a vida lhe declina--a pacificação, a doçura e a paz vêem descendo sobre o seu agitado espirito, até fazerem d'elle um exemplo de força e caridade, de resignação e de tolerancia. «Quanto mais vivo, diz ella n'uma das suas cartas, mais profundamente me prostro diante da Bondade, porque vejo que é ella o beneficio de que o Senhor é mais avaro. Onde a intelligencia não existe, chama-se bondade ao que é simplesmente inepcia. Onde não existe a força, julgam bondade ao que é apenas apathia. Onde a força e a luz intellectual se encontram, é raro que se encontre tambem a bondade, pois que a experiencia e a observação produziram a desconfiança e o odio! As almas votadas aos mais nobres principios são tambem muitas vezes as mais acres e as mais rudes, porque as decepções as adoeceram para sempre. A gente estima-as e admira-as ainda, mas já não póde amal-as. _Ter sido desgraçado sem deixar de ser intelligente e bom, faz suppôr uma bem poderosa organisação, e são estas as que eu mais procuro e mais amo._ N'um periodo caracteristico d'uma carta a Lammenais diz assim, com entristecida e commovedora franqueza: «Mestre, ha n'este mundo atalhos pelos quaes os seus pés nunca passaram, abysmos onde o meu olhar mergulhou. Viveu com os anjos e eu tenho vivido com os homens e com as mulheres; sei como se padece, sei como se pecca, sei a immensa necessidade que existe d'uma regra, que torne possivel a virtude. Confie em mim, creia que ninguem a procura com mais desejo de encontral-a, com mais respeito pela virtude e com menos personalidade; porque eu não tentaria jámais palliar as minhas culpas passadas, e a idade já me permitte o encarar com placidez as tempestades, que palpitam e morrem no meu longinquo horisonte.» A um dos queridos amigos da mocidade, tão piedosamente conservados até á velhice, ella escreve um dia, n'uma d'estas horas em que a verdade nos acode irresistivelmente aos bicos da penna, n'uma explosão de sinceridade cheia de lagrimas? «Oh! como eu soffri n'esta vida, meu pobre irmão!.. E tu, sentes-te agora mais tranquillo?.. «Eu, por mim, tive um terrivel duello comigo mesma, um combate gigantesco com o meu ideal. Que ferida, que dilacerada, que ás vezes me senti!.. Agora vegeto docemente, placidamente. Pareço a mim mesma um cypreste que viça em cima d'um cadaver. Meu Deus! meu Deus! quantas lagrimas eu não contive! quantas queixas não suffoquei! quantas dôres sem consôlo eu guardei para mim só!..» E n'outra carta, como que tirando a suprema conclusão dos sacrificios interiores, que se impoz pelo amor do bem, escreve d'este modo: «Desde que sinto pezar por sobre mim a mão da velhice, experimento uma paz, uma esperança, uma confiança em Deus, que eu não tinha nas commoções da mocidade. Acho que Deus é tão bom, tão bom, por nos envelhecer, por nos acalmar, por destruir em nós o egoismo, tão aspero em quanto se é moço!.. E queixamos-nos de perder alguma cousa, quando a verdade é que alcançamos tanto, que as nossas ideias se ampliam e se tornam mais justas, e o nosso coração se faz mais vasto e mais doce, e a nossa consciencia victoriosa emfim, póde olhar para o caminho já percorrido e dizer: «Cumpri a minha tarefa, está perto a hora da recompensa!» Comprehende-se que, em seis volumes, ha centenas de paginas que eu citaria com prazer, e que justificam amplamente o enthusiasmo, que n'este rapido artigo se revella. As cartas em que Georges Sand deixa transparecer, com divina eloquencia, o seu patriotismo de vizionaria, a sua caridade inexgotavel e ardente, a sua doce tolerancia para as fraquezas humanas, o seu genio simples e bom, feito de sinceridade e de ternura... A indole porem d'estes estudos não comporta tamanhas delongas, e na impossibilidade de citar tudo, quasi que acho preferivel não citar nada. A tentação todavia arrasta-me ainda a transcrever para aqui, ao acaso, mais alguns trechos caracteristicos: Quando a França parece querer suicidar-se nos excessos selvaticos da Communa, quando todos se curvam desalentados ao pezo da mesma dôr impotente, ella, a valente mulher, exclama cheia de fé:--«Sinto me fluctuar ao acaso sobre as vagas, mas buscando a terra, porque sei que a terra existe, e que tudo lá vae dar fatalmente. «A verdade, o bem não são mentiras; basta que a gente os sinta viver dentro de si propria, para ter a certeza firme de que elles existem no coração da humanidade.» E quando Flaubert, nas suas explosões de epileptico, lhe mandava em cartas que tambem estão publicadas, mas que são incontestavelmente inferiores ás cartas d'ella, os seu lamentos pueris ácerca dos males imaginarios que o torturam, Georges Sand, a martyr de tantas agonias, em vez de rir-se desdenhosamente d'essa velha creança, que, a tanto talento juntava tão extraordinarias fraquezas, tracta, pelo contrario, de combater o soffrimento que a sua alma intrepida nem concebe, e explica-lhe d'este modo o ideal da sua velhice. --«Amar sempre, sacrificar-se continuamente, não reassumir a posse de si proprio senão quando o sacrificio já não seja necessario áquelle a quem se consagra, e sacrificar-se ainda, na esperança de servir a unica cousa verdadeira que ha n'este mundo--o amor! «Não fallo aqui da paixão pessoal, fallo do amor da raça humana, do sentir que cada ser amplia até aos outros seres! Esse ideal de justiça, de que tu me fallas, nunca o poude comprehender separado do amor, visto que a primeira lei, para que uma sociedade natural subsista é a que faz com que os membros que a compõem se sirvam mutuamente e mutuamente se amem. Chama-se nos animaes instincto este concurso de todos para o mesmo fim; nos homens, porem, deve chamar-se amor; quem se subtrahe ao amor subtrahe-se á verdade e á justiça. «Lamento a humanidade; quereria vêl-a boa porque não posso separar-me d'ella; porque _ella_ é _eu_; porque o mal que ella se faz a si me fere o coração; porque a sua vergonha me faz corar; porque os seus crimes dilaceram as minhas entranhas; porque não posso comprehender o paraizo na terra ou no céo para mim sósinha.» E como o grande escriptor de madame Bovary, na sua eterna lucta contra o que elle chama a _bêtise humaine_, continúa a expandir-se em manifestações colericas que irritam quem lhe lê as cartas, Georges Sand, sempre serena e doce, sempre maternal, responde-lhe: «Quanto mais desgraçado és, mais eu te quero! «Como te apoquentas, como te affliges com a vida!.. Porque, no fim de contas, é da vida que te queixas. Ella nunca foi melhor em tempo algum, para ninguem! A gente _sente-a_ mais ou menos, comprehende-a mais ou menos, soffre por causa d'ella mais ou menos, e quanto mais adiantado está em relação á epocha em que vive, mais tem de padecer em resultado d'essa desharmonia. «Passamos como sombras sobre um fundo enublado que o sol apenas rompe em raros instantes, e chamamos incessantemente por esse eterno sol que não póde allumiar-nos. Está em nosso poder affugentar as nuvens...» «Tens demasiado amor pela litteratura; ella ha de matar-te sem que tu consigas matar a _tolice humana_. Pobre tolice humana! Eu não a detesto como tu. Pelo contrario! Olho para ella com olhos maternaes, porque a considero uma infancia, e toda a infancia é sagrada para mim! Que odio que lhe votaste! que enorme guerra lhe fazes! Tens intelligencia e sciencia de mais; esqueces-te de que ha alguma cousa superior á arte, e essa cousa chama-se sabedoria, da qual a arte no seu apogeu é apenas a expressão simples. A sabedoria comprehende tudo: o bello, o verdadeiro, o bom, e por conseguinte o enthusiasmo que d'elles derivam. É ella que nos ensina a vêr fóra de nós, alguma cousa de mais elevado que o que está em nós, e a assimilal-o pouco a pouco pela contemplação e pela admiração. Mas eu nem sequer conseguirei fazer-te comprehender bem o modo pelo qual encaro e percebo a _felicidade_, quer dizer a acceitação da vida tal qual ella é.» Quem não sentirá sympathia por estas palavras de fé, de pacificação e de conforto! De quantas dôres superiormente supportadas, de quantos erros expiados d'um modo sublime, se compõe esta serenidade augusta que dá a velhice de Sand uma grave e encantadora magestade. E ao par d'estas graves lições de alta moralidade, d'estas lições que reconciliam com a vida o espirito mais dolorido, mais inquieto e mais revoltado, encontram-se aqui e ali phrases encantadoras d'uma graça femenil deliciosa e fina. «Quando eu tiver exgotado a minha taça de amargura, hei de então levantar-me. Sou mulher, tenho ternura, tenho piedade, e tenho impetos de colera. Não terei nunca a serenidade d'um erudito ou d'um sabio!.. «Os fortes são aquelles que não amam! Não serás nunca um _forte_ e ainda bem!» «Sou ainda, senão necessaria, pelo menos extremamente util a todos os meus, e emquanto houver em mim um sopro da vida, hei de pensar, trabalhar, soffrer por elles!» ... «Já não tenho tempo de pensar em mim, de scismar em cousas desanimadoras, de desesperar da especie humana, de olhar para as minhas proprias dôres e para as minhas alegrias passadas e de chamar a morte. Olha, se a gente fosse egoista era o caso de a vêr chegar com alegria; é tão commodo dormir para sempre, ou accordar para uma vida melhor! Mas para quem tiver ainda de trabalhar, a morte não deve chegar antes da hora em que o extenuamento completo nos possa abrir as portas da liberdade.» ... «Não sejas fraco! então?! Devemos o exemplo da nossa força moral a todos que nos cercam e podem ouvir-nos! E eu?! Julgas que eu não tenho tambem necessidade de auxilio e de amparo, na minha longa tarefa ainda por concluir? «Pois não tens amor a ninguem, nem sequer á tua velha amiga, que sempre canta, e chora muitas vezes, mas que se esconde para chorar, como os gatos se escondem para morrer?.. » Estas cartas a Flaubert são todas d'uma graça maternal, d'um encanto affectuoso que conforta e fortifica. Depois de se terem lido, a gente sente-se envergonhada de succumbir a meio do caminho, de se lamentar egoista e puerilmente, porque a vida é triste e incompleta, e cheia de aspirações e de esforços vãos! Para Georges Sand a vida, dura e inhospita como lhe foi, a vida que segundo ella propria confessa _lui a manqué de parole_ muitas vezes, muitas vezes a fez sangrar por todos os póros da sua carne, muitas vezes a dilacerou e abateu, nunca logrou prostral-a. Tinha--dom raro e milagroso que constitue a unica superioridade d'este mundo--tinha a faculdade da _eterna renovação_ que a natureza empresta a raros eleitos seus. _Mon coeur mille fois brisé et toujours heureux de vivre_--dizia ella aos setenta annos, definindo, d'este modo profundo e brilhante, o seu coração de valente e de luctadora, tão energico e tão meigo, e dando-nos assim o segredo de seu genio cheio de contrastes, illuminado por todos os esplendores, obscurecido por todas as sombras, opulento e suave, risonho e melancholico, impetuoso e terno, bom sobretudo, bom como a grande natureza sua inspiradora e sua mãe, sua confidente na mocidade agitada, sua amiga na serena velhice. Confidencias d'um apaixonado coração de mulher, que teve na amisade os ardores e os extremos que outros, nem nos amores sabem ter; despretenciosas lições de arte, de litteratura e de bom senso; conselhos d'uma delicadeza penetrante, d'uma alteza de pensamento maravilhoso; descripções formosissimas; palavras de caridade e de conforto; doces expansões de amor materno; profissões eloquentes, e singelas ao mesmo tempo, de tolerancia, de benevolencia universal, de religiosidade profunda e intima, quasi que instructiva, de amor da humanidade elevado ás sagradas proporções d'um culto;--eis o que nos dão essas cartas soberbas, superiores talvez pela significação e pela verdade a toda a obra da prodigiosa romancista. * * * * * Será a vida de Georges Sand um exemplo a apontar-se? É claro que não, e que ninguem, d'este rapido esboço critico, póde deprehender tal absurdo. O genio, porem, tem attenuantes excepcionaes para os seus excepcionaes desvarios. E se a obra da grande escriptora nos deixa ás vezes entristecidos e descontentes, se a sua mocidade nos desola como uma pagina lamentavel da vida dos grandes entendimentos, as suas cartas reconciliam-nos com ella, e são os seis volumes das suas cartas que eu recommendo a todos os que me lerem. INDICE Pag. Gonçalves Crespo 1 Ramalho e Eça 37 Ramalho Ortigão 53 Anthero de Quental 107 Antonio Candido 165 Teixeira de Queiroz 225 Octave Feuillet 257 Os irmãos Goncourt 292 Georges Sand 325 Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+---------------------+----------------------+ | | Original | Correcção | +----------+---------------------+----------------------+ |#pág. 2| rigorosas | rigorosos | |#pág. 102| Ortigão gão | Ortigão | |#pág. 105| phantasticamenre | phantasticamente | |#pág. 132| indifrença | indifferença | |#pág. 134| vibracao | vibração | |#pág. 139| dolorosa, | dolorosa | |#pág. 150| carateriscos | carateristicos | |#pág. 150| concontaminados | contaminados | |#pág. 151| no Quental | do Quental | |#pág. 154| e _Diario_ | o _Diario_ | |#pág. 156| apapparece | apparece | |#pág. 163| enenriqueceu | enriqueceu | |#pág. 175| iguorante | ignorante | |#pág. 182| muitos notaveis | muito notaveis | |#pág. 188| imaginção | imaginação | |#pág. 196| displinadora | disciplinadora | |#pág. 197| demonstrucção | demonstracção | |#pág. 202| ou ou | ou | |#pág. 205| que orador | que o orador | |#pág. 213| livro arbitrio | livre arbitrio | |#pág. 248| e | é | |#pág. 250| positita | positiva | |#pág. 278| acima do do | acima do | |#pág. 280| accceito | acceito | |#pág. 295| E extraordinaria | É extraordinaria | |#pág. 315| chamado chamado | chamado | |#pág. 328| mararavilhoso | maravilhoso | |#pág. 330| pelos menos | pelo menos | +----------+---------------------+----------------------+ Foram mantidas as variações de nomes próprios. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Alguns homens do meu tempo - impressões litterarias" *** Copyright 2023 LibraryBlog. 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