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Title: Annos de Prosa
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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ANNOS DE PROSA

Romance

por

CAMILLO CASTELLO-BRANCO


A GRATIDÃO

Romance


O ARREPENDIMENTO

Romance



PORTO.
Editor, Antonio José da Silva Teixeira.
Rua da Cancella Velha, 62
1863



Typographia de Antonio José da Silva Teixeira,
Cancella Velha, 62
1863



ANNOS DE PROSA.



ANNOS DE PROSA.


DISCURSO PROEMIAL.

Altissima é a missão do escriptor, e a do romancista principalmente. O
mestre Ignacio da cartilha velha, amoldurada ás necessidades do seculo,
é o romancista. Mal hajam os sacerdotes das letras derrancadas que
vendem peçonha em lindos crystaes, e desfloram as almas em luxuriante
florescencia da sua primavera. O mau romance tem afistulado as entranhas
d'este paiz. Não ha fibra direita no coração da mulher que bebeu a
morte, e--peior que a morte--algumas dezenas de gallicismos no que por
ahi se escreve e copia. O anjo da innocencia foge de certos livros, como
os editores de certos authores. A candura virginal de uma menina de
quinze annos é a cousa mais equivoca d'este mundo, se a menina leu cousa
em que os pedagogos do coração a ensinaram a conhecer-se, antes que a
experiencia a doutrinasse.

Para cumulo de infortunio, Portugal é um paiz onde se está lendo muito.

Acontece aos estomagos famintos, quando se lhes depara alimento bom ou
mau, assimilarem-n'o com tamanha sofreguidão, que o encruamento do bôlo,
e o marasmo são inevitaveis. Assim e por igual theor, quando os Lucullos
e Apicios das letras expõem á voracidade publica as suas iguarias
estragadas, a fome de aprender a vida nos romances locupleta-se com
tamanha intemperança, que o resultado e as dispepsías espirituaes,
tormento de angustias vomitivas, que fazem descer o coração ao lugar do
estomago, e subir o estomago ao lugar do coração.

Eu tenho assistido a esta deslocação de visceras com lagrimas nos olhos,
enxutos para tudo o mais. Muitas vezes tenho perguntado ás velhas se
isto assim era no tempo d'ellas. Faz dó vêr a consternação com que
algumas expedem um gemido, unisono com o assobio da pitada! Compunge vêr
rolar a lagrima preguiçosa do olho desvidrado d'outra, que se recorda da
honestidade com que foi amada pelo seu quinto amante!

Ha cincoenta annos que as senhoras não liam romances, por uma razão cujo
descobrimento me custou longas vigilias:--não sabiam lêr. Algumas,
rebeldes á vontade paternal, conseguiam soletrar e escrever á tia uma
carta em dia de annos, copiada do _Secretario portuguez_ de Candido
Lusitano. Os paes aceitavam com repugnancia aquelle abuso de
intelligencia, e castigavam a filha, forçando-a a um trabalho litterario
semanal: escrever em cada segunda feira o rol da roupa. Este systema
penal tinha só a vantagem de tirar ao vicio os enfeites da
intelligencia, reduzindo-o á essencia bruta de sua nudez primitiva. Já
não era pouco para exemplo e edificação das almas. O melhor moralista
será aquelle que despir o delicto do coração das galas que lhe veste o
desejo, e o cobrir de farrapos repulsivos.

Por esses tempos, e nos dez annos sequentes, os propagandistas da
corrupção tentaram exercitar o seu maleficio, vertendo para pessima
linguagem portugueza novellas francezas, que transpozeram as fronteiras
no couce da bagagem do Junot.

Em 1814, a immoralidade, até esse anno sopeada pela impertinente virtude
das novellas, taes como _A virtude recompensada_ e o _Escravo das
paixões_, quebrou as ferropeas, e despejou do regaço dissoluto a versão
de _Tom Jones_, o _Sophá_, o _Candido_, e quejandas faúlas incendiarias,
que pegariam nos corações, se a manteiga e o paio das tendas não
esfriassem a força comburente d'essa droga, que acirrava os paladares
anthropóphagos d'aquelle festim de 1793.

Bemdita e louvada seja a ignorancia! Os romances francezes, até 1830,
encontraram as almas portuguezas hermeticamente calafetadas. Ate esse
anno infausto, a mulher era o anjo caseiro, a alma da despensa, a
providencia da piuga, e sobre tudo, a femea do homem, qual Jehovah a
fizera d'uma costella do mesmo.

O salão era um como trintario cerrado, onde, a espaços, uma gosmenta
matrona espirrava, e a sociedade, a cabecear de somno, surgia
estremunhada, dizendo: _Dominus tecum_. A menina casadeira não se erguia
de ao pé da mãi. O noivo mirava-a de longe em fellina beatitude; e, no
auge da sua casquilha audacia, piscava-lhe a furto o olho, onde
reslumbrava a paixão.

Não havia então d'estes homens mulherengos, que alambicam a parlenda
assucarada, coando por ouvidos incautos o veneno do estilo, que é o mais
corrosivo de quantos ha na toxicologia do amor. A mulher actual é quasi
sempre victima da rhetorica requentada do romance, que esteril
peralvilho lhe encampa como cousa de sua alma. Algumas conheço eu que
resvalaram ao abysmo da perdição pela rampa de um adverbio
euphonicamente intruso n'um periodo arredondado. Este sortilegio da
linguagem, que enfeitiça e dá quebranto ás mulheres, é apanhado no
romance. O coração de certos individuos acha-se, muitas vezes, a paginas
tantas de tal novella. Sem figurinos e romances, não haveria corpos
apresentaveis nem espiritos insinuantes.

Muita gente se espanta das gloriosas aventuras de alguns sujeitos
pyramidalmente tolos. Eu não. Tal ha que se vos afigura mazorro d'alma,
e, não obstante, ao lado de mulheres, dispara descargas de phrases
amorudas que é um pasmar. Asneira, dita em nome do coração, não ha uma
só que não seja laureada. Cada Petrarcha lorpa tem, a final, o seu
capitolio.

A mulher, por via de regra, é de seu natural tão boa, sensivel e
generosa, que chega a recompensar a pertinacia do homem que, primeiro, a
nauseou: o segredo d'este paradoxo está na influencia contagiosa da
tolice. A mulher que fez chorar o tolo, e viu rebentar lagrimas de uma
cabeça de granito, cuida que fez o milagre de Moysés na rocha de Horeb.
Alliciada pela serpente da vaidade, succumbe como Eva.

Que mudanças!

D'antes o caixeiro principiava sempre a carta de namoro por: _Meu amado
bem!_ Agora já diz: _Anjo!_ ou _Seraphim!_ Era d'antes a phrase
sacramental do exordio: _Vêr-te e amar-te foi obra de um momento._ Agora
não é raro encontrar d'estes arrojos: _Amar e morrer é meu destino!_

E, depois, o maleficio do romance não está sómente no plagiato
irrisorio; o peior é quando as imaginações frivolas ou compassivas se
entalham os lances da vida phantasiosa da novella, e crêem que a norma
geral do viver é essa.

Em quanto a mulher estuda sómente a phrase que applica, bem ou mal,
quando a enlouquece a vaidade de parecer o que não é, bem vai. Dá-se um
exemplo: A apaixonada de um amigo meu, ao recebêl-o, pela primeira vez,
em sua casa, no patamar da escada, antes de deixar-se beijar a mão,
estendeu o braço direito em magestosa attitude, deu á frente a regia
altivez de uma Phedra de aguas-furtadas, e disse em tom cavo e solemne:
_Juraes levar-me ás aras?_ O meu amigo, que balbuciava um prefacio de
longo estudo, soltou um frouxo de insolente riso, e desceu as escadas,
por não poder com o espectaculo da dama corrida do insulto. Eis-aqui uma
que os romances de Arlincourt salvaram; quantas, porém, perdidas por
guardarem as phrases ridiculas para o final?...

Grande mal é o identificar-se o espirito ás visualidades do romance.
Quando a leitora se ri das crendices da sua infancia e dos absurdos
principios que lhe apoucaram o imaginar e o voar do espirito, vem-lhe os
enfados, o escutar as mentiras do coração que se emancipa, o crêr que a
vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e que o viver da alma
assim, será como o do arbusto bravio que dá flôres sem aroma, e fructos
sem sabor.

Seja, outra vez, bemdita e louvada a ignorancia de nossas mães, e nossas
irmãs, e nossas esposas!

A vida caseira, esta deliciosa monotonia, que a poucos é já saborosa no
viver intimo, requer muita estupidez, muito somno a toda a hora, um
estomago exigente e forte, muita digestão soporosa de substancias
pesadas.

Esta bemaventurança ha-de restaural-a a ignorancia supina, não hão-de
ser as palavrosas theorias de Michelet ácerca do _amor_ e da _mulher_.
Comecem os paes de familias por circumvalarem suas casas de um cordão
sanitario contra a peste do romance, que não se abonar com a promettida
pudicicia d'este, e de outros com que o author, coração aberto a todas
as chimeras, e de entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronco
carcomido da humanidade toda a casta de virtude.

Vou lembrar um alvitre, cuja adopção poderia ser momentosa na
regeneração dos costumes.

As reliquias das velhas virtudes portuguezas, se as ha, acham-se nos
velhos, que beberam ainda as escorralhas dos seios puros do seculo
passado. O Porto, de preferencia, graças á força refractaria da sua
organisação, encerra boas quatro duzias de archontes dignos da Grecia
antiga. Fôra facil eleger de entre estes--(abstenho-me de os nomear,
porque a modestia n'elles dóe de insoffrida como ulcera em lombo de
muar, e não é raro responderem ao elogio com o couce)--eleger d'entre
estes, digo, uma corporação censoria, encarregada de examinar os livros,
que giram no mercado, e referendar os que a juventude feminil podesse
lêr sem deterioramento da innocencia. D'esta arte, os anciãos não
restringiriam a sua egoista virtude á missão balda de condemnarem o
vicio da mocidade inexperiente. O exemplo dão-no optimo; a doutrina é a
que nós sabemos; mas não os devemos desquitar de se constituirem
entulhos contra a torrente do vicio, desviando-a de levar ao regaço das
futuras esposas e mães o romance peçonhoso.

Pelo que, d'aqui já sotoponho este livro á censura, e assim dou publico
e voluntario testemunho de quanto venero as cãs e as virtudes. Fadario
triste! A minha sina capricha, até hoje, em fazer-me malvisto d'esses
que eu mais quizera bemquistar, ainda á custa de um panegyrico á
corrupção senil dos raros que desgarram da trilha austera por onde a
virtude os vai guiando ao céo, no qual os proprios anjos se espantam das
colonias que vão d'aqui.

Porto--1858.



PRIMEIRA PARTE.


I.

«Em quanto ao fogo d'aquelle meu phantasiar de genio, fadado para
desgraças, encendrei as imagens das formosas apparições da terra, as
creações do meu espirito eram magnificas e brilhantes como as myriadas
do céo estrellado.

«Eu tinha horas de tão dôce scismar! O ideal de Fausto, a melancolia do
poeta d'Elvira, os coriscos de Byron, as satyras mordentes do
Diabo-Mundo, as facecias elegantes de Fielding, e as vaporosas
subtilesas de Senancourt! Ai! havia de todas essas feições do genio um
traço de cada uma, no meu espirito.

«Mas, n'aquelle dia, á entrada do meu caminho, n'aquella noite calmosa,
quando o sangue estuava nas arterias, quando as azas do coração, como as
da aguia ferida, baixavam á terra, aquella mulher...

«A mulher fatidica! O despertar do sonho de dezoito annos. A Beatriz, a
Laura, a Leonor, vingando-se na essencia d'uma, porque eu ousára crêr e
dizer que mentira Tasso, e mentira Petrarcha, e mentira Dante.

«Que mulher! Bella? Ai! não, não é essa a palavra. Bella como a filha do
anjo rebelde, a quem Deus vingativo dera o dom de crear a formosura que
mata, o olhar das chammas magneticas do crime, a fascinação do abysmo
onde o cahir é perder-se o homem para si, para a humanidade, e para
Deus.

«Eu era poeta.

«Com que enthusiasmo eu pedia o meu quinhão na herança das celebradas
agonias de tantas victimas de si, mansissimos cordeiros immolados no
calvario do talento!

«Este augusto titulo, mercê do céo, rubricado por sello divino no
coração do homem, tornou-se epitheto ridiculo ou injurioso.

«Gela-se-me o sangue, quando a ignorancia petulante faz um tregeito de
menospreço ao talento, e diz: _poeta!_

«Mal sabeis que brutal atrevimento, ha ahi no tom de escarneo com que as
bestas-feras insultam a intelligencia!

«Um bando de collarejas abrias, atirando-me em injurias a lama que lhes
extravasa da alma, seria para mim harmonioso cantico das graças,
comparado ao sorriso affrontoso do nescio que me diz: _poeta!_

«Ha ahi um rir do vulgacho, que dá em terra com a alma. Oh! o rir da
gentalha maltrapida é menos fulminante que o escarneo da plebe
engravatada, de todas as escorias sociaes a mais alvar e incorrigivel!»

Parou de escrever o meu amigo, quando eu entrava no seu gabinete de
trabalho.

Este nosso amigo... Consinta o leitor a apresentação, e de amigo logo,
porque eu sei que elle o é de conhecidos e desconhecidos, tirante os
estupidos maus.

Este nosso amigo é uma afflicção permanente, um como pelicano que se
está continuo espicaçando o peito para alimentar do sangue proprio seus
filhos insaciaveis, suas imaginações escandecidas.

Entrou na vida pela porta do inferno. Os olhos da alma abriu-lh'os uma
paixão das que alumiam a carreira do crime até á morte moral. A
consciencia de sua individualidade, desunida das mil formosas
existencias que se identificára, deu-lh'a o ser mais poetico da terra, a
soberana da creação--a mulher!

Aos dezoito annos expulso do paraiso pelo anjo a quem dobrára o joelho!

Até então, Jorge Coelho amou sua mãi e irmãos, flôres, estrellas, fontes
murmurosas, os pinhaes rumorejantes, o céo azul e as nuvens abertas em
coriscos, os repiques festivos do campanario da sua aldêa e o dobre de
finados, a cantilena da pastora e o gemer convulsivo da viuva e da
orphã.

Tudo lhe era n'este mundo poesia, desde a grinalda de flôres da esposada
até á baeta negra do esquife.

Não sou crendeiro em horoscopos de epiderme; todavia, tres rugas que lhe
avincavam a testa entre as bossas frontaes, impressionaram-me. Um poeta,
da alteza d'elle, diria que semelhantes vincos eram vestigios da vara
com que a mão de um genio funesto o ferira, no berço. Moço de dezoito
annos, que sobe ao empinado das serras, e circumvaga os olhos lagrimosos
pelos confins dos horisontes, e me diz:--«a minha alma não cabe aqui»
esse tal é de crêr que se fine na flôr dos annos, depois de haver
experimentado as dôres todas de longa vida.

«A minha alma não cabe aqui»--disse-me elle, sentado no tôpo de um
fragoedo, com a arma caçadeira encostada ao peito, e afagando com a mão
o focinho do galgo que a lambia.--«Nasci hontem, e já me cança a vida.
Sou um como hospede, que se sente ebrio antes de assentar-se á mesa do
festim. Meus irmãos estão contentes ao pé de minha mãi. De manhã são
abençoados e beijados; á noite vão restituir-lhe o beijo com a face
alumiada de santa alegria; recebem a segunda benção da virtuosa, e vão
dormir serenas horas, em quanto eu, fechado com os meus livros, tento
debalde entreter o espirito nos deleites da poesia, ou subjugal-o ás
paginas graves da philosophia que me disputa á fé, e da fé que me
arranca aos tedios indigestos da philosophia.»

--Nunca sahiste d'aqui?--interrompi, suspeitando da candura de Jorge
n'este tecido de palavras presumidas.

--Nunca sahi d'aqui. Fui litterariamente educado por um tio frade, que,
ha um anno, me entregou ao ensino de minha mãi, dizendo que a semente da
sciencia não podia germinar em terreno, onde faltava o amanho da boa
educação religiosa.

Minha mãi não me entendeu melhor que o frade. Fallou-me do temor de Deus
como principio da sabedoria humana. Eu tenho um Deus que não temo,
porque o amo e adoro com espontanea devoção, porque o vejo luminoso em
todas as minhas creações impalpaveis, porque o respiro e converto em
seiva da minha alma, que tanto mais se amplia quanto mais se engolfa na
immensidade divina.

Minha mãi é uma virtuosa senhora que só acha digna de Deus a linguagem
dos psalmos penitenciaes, e os actos contrictos de peccados imaginarios.
O circulo, que ella traça ás minhas aspirações, é estreitissimo. Para
ella, o futuro é a successão dos dias travados uns nos outros, iguaes e
serenos, como os viveram meus avós, e como ella pretende herdal-os a
seus filhos. O futuro para mim é o grandioso imprevisto, é a vida com os
seus desertos e oasis, é o oceano com as suas calmarias e borrascas, é a
peregrinação do israelita, agora perseguido nas aguas do mar vermelho,
logo alumiado pela columna de fogo.

Que sinto eu aqui?--proseguiu elle, pondo a mão na testa, cujos vincos
se afundavam--Será o pensamento confuso do girondino á vista da
guilhotina? Será o abutre gerado n'um sangue que, cedo ou tarde, tem de
trazer-me a congestão ao cerebro?... Não sei...

--Porque não será a alma que geme solitaria como a rôla, que, além, no
ramo secco d'aquelle azevinho, está chamando o companheiro que ha-de
vir?--disse eu em phrase lyrica para não destoar da linguagem levantada
de Jorge Coelho.

--Não creio--acudiu logo o meu amigo.--Eu tenho lido o amor dos livros,
o amor dos romances, o amor da historia, o amor da poesia. Não me
inquieto, nem me acho n'esse sentir. O que não entendia aos quatorze
annos, não o entendo hoje melhor. As impressões que então recebi,
recebo-as agora semelhantes. Os quadros de Dido e Eneas, de Helena e
Páris, são duas telas borrifadas de sangue. O amor não póde ser aquillo.
Paulo e Virginia, Julieta e Romeu são duas catastrophes que apertam a
alma entre a admiração e o dó. A felicidade não está n'esses amores tão
celebrados. Werther e Carlota, Chatterton e Kit-Bell, com o anjo
inexoravel da virtude entre si, ao despenharem-se um apoz outro no
abysmo da morte, para se salvarem do abysmo da perdição, são dous entes
desamparados do anjo bom que nem sequer já serve para galardoar heroicos
martyrios. Pois não irão mais longe os meus anhelos de gloria?

A região da felicidade estará delimitada pelas raias do amor, que o
romance, e a historia, e a epopea me pintam, glorificado por lagrimas e
sangue?

--Mas ha um amor--redargui--que não é o amor da historia, do romance, e
da epopea. É amor reflectido de mais alto amor, que as almas adivinham e
não entendem. É amor, preludio da bemaventurança, e prelibação da
ambrosia celestial.

--É o amor do romance, esse, creio eu...--interrompeu Jorge Coelho
sorrindo.

--Não é, meu amigo; e, se me contradizes n'essa idade, inculcas baixeza
de affectos, que eu não posso acreditar, por honra da especie humana. O
que te authorisa a desmentir um homem de trinta annos, que por sua honra
te jura que esse amor existe? Queres achar Vestigios dos trabalhos e
calamidades que me custou a descobril-o?

Repara nos meus cabellos brancos.

Colombo achou curtas as fadigas, que lhe deram o novo mundo, e a
perpetuidade do nome d'elle, mais valioso que o novo mundo.
Experimentaria Colombo as vertigens de prazer, que me endoudeciam,
quando encontrei a mulher mais perfeita que os primores da minha
phantasia?

Não te allucines, porém--prosegui, vendo nos olhos de Jorge a lucidez do
enthusiasmo, accusando o proposito de se abrasar no primeiro amor, que
lhe deparasse o acaso.--Não te allucines em presença de qualquer mulher
com sorrisos de Virginia, que tanto servem de elogio ao pudor como de
epitaphio da innocencia. Não respires com sofreguidão o aroma das
primeiras flôres, que encontrares. Lirios e mandragoras são bellas
flôres, que matam, se as não lançares de ti, aspirados os primeiros
effluvios. Ha mulheres como as flôres venenosas: se te detiveres com
ellas mais tempo que o necessario para lisongeares a sensação, e
regalares a phantasia, sentir-te-has tomado de um marasmo de espirito,
em que serão delidas as tuas mais nobres faculdades, e, a mais válida de
todas, o mais nobre apoio da tua dignidade de homem--a liberdade. Esta
doença, no começo da vida, deixa achaque para sempre; é como a bala
recebida em pleno peito e lá encerrada: o ferido vive; mas, a revezes, a
dôr lhe está lembrando que a bala pesa sobre o derradeiro fio da vida.
Mulheres, que matem corações generosos, ha muitas para cada homem.
Mulher, que salve, ha uma só.

A minha vida é uma elegia continuada desde o berço até esta ante-camara
do tribunal da morte, onde estou esperando que me chamem: não tem
romance: são desastres concatenados, sem intermedios d'esse
contentamento vulgar, que os fortunosos denominam amargura. Todavia, se
tivesses mais doze annos, Jorge, seria eu o teu conductor pelos infernos
d'este mundo, que Dante não cantou de preferencia aos do outro, porque a
civilisação da idade media não tinha em si os supplicios d'esta
sociedade em que vaes entrar.

E que lucrarias tu, ouvindo a minha historia? Vêr-me-ias longo tempo
enredado na torpeza, na irrisão, e na brutalidade dos differentes
algozes, que me suppliciaram a alma. Se quizesses que te iniciassem no
segredo de sondar a perversidade dos corações, não poderia eu, porque a
aspide, que te mede o salto do seio da mulher, só vibra a farpa mortal
depois que varas em terra embriagado de aspirar o aroma do ramilhete,
que a esconde.

A sombra da mancenilha é grata como a de todas as arvores; suave é a
viração que lhe estremece a coma; o sol nem sequer mosqueia o chão em
que refazes os membros lassos; mas agonia mortal será o teu despertar se
a formosa folhagem distillou sobre o teu corpo um sumo corrosivo que te
faz morrer em acerba palpitação de todas as fibras. Conheces tu a
mancenilha n'este deserto, que vaes palmilhar, encalmado das ardencias
do coração? Saberás tu, aos dezoito annos, distinguir a mulher, que
mata, da mulher, que salva? Os trinta abysmos, d'onde me eu levantei,
com as faces a escorrerem sangue, estarão cobertos de flôres para ti? Eu
creio que o poeta é um condemnado, a sua patria primitiva um outro
mundo, este, em que nos encontramos, amigo, o purgatorio. Que montam os
suffragios do padecente experimentado para te remir? Nada. Cumpre a
sentença, porque é intransitivo o calix...

..........................................................................

Decorrido um anno, encontrei Jorge Coelho, não vos direi aonde, porque
ha repugnancia em deslocar uma scena, quando a verdade não póde, por
motivos sagrados, ser dita á curiosidade malevola.

Encontrei-o escrevendo os periodos iniciaes d'este capitulo. Outros de
igual azedume, assignados por elle, me haviam denunciado a residencia
d'esse moço, na terra, em que eu, de passagem, assentára a minha barraca
de bohemio.

Reconhecendo-me, ergueu-se, abraçou-me com expansiva vehemencia, e
proferiu aquellas ultimas palavras do estirado discurso do anno
anterior:

_Cumpre a sentença porque é intransitivo o calix._

--E muito amargo? perguntei eu.

--Amargo, e nauseabundo. Fel e lama. O insulto e o aviltamento. Adormeci
debaixo da mancenilha, meu amigo; e acordei nos paroxismos de que não
posso morrer. Achei uma das mulheres, que perdem. A sociedade
applaudiu-a, quando eu cuidava que a indignação do mundo me vingaria.
Ajuntei á minha dôr o que devia ser pejo, deshonra, e remorso n'ella.
Quiz desafiar a piedade do mundo com o paciente silencio da minha
desgraça. O mundo viu-me passar de olhos baixos para esconder as
lagrimas, e fez da palavra «poeta» um synonymo chocarreiro de insensato.


II.

Contou-me Jorge Coelho a sua historia. Foi assim:

Sahira, pela primeira vez, da sua aldêa para cursar a universidade. A
mãi, abençoando-o, ungira-o de lagrimas, e lançara-lhe ao pescoço um
crucifixo.

O tio egresso, vencido na resistencia que fizera á sahida de Jorge,
mostrara-se a final condescendente, e introduzira nas malas do sobrinho
alguns livros de moral religiosa, que ambos sabiam de cór, um á força de
repetil-os, outro de ouvil-os em discursos hebdomadarios, que
principiavam sempre com a epigraphe:

_Initium sapientia est timor Domini_--O temor de Deus é a base do saber
humano.

Jorge deu de si boa conta no primeiro, anno, cursando as aulas
preparatorias para a faculdade de jurisprudencia. Contou elle que,
durante esses oito mezes, apenas sentira o coração na dôr da saudade de
sua mãi, de seus irmãos, do tio padre, das suas montanhas, e das sombras
dos seus arvoredos. Consolava-o o prazer de uma carta de casa, todas as
semanas, em que a expressão maternal pintava o anceio com que lá se
contavam os dias, na esperança d'aquelle em que seus irmãos iriam buscar
ao caminho o mano doutor, como elles já o denominavam.

O anjo da poesia dos dezenove annos povoava-lhe então a phantasia de
ridentissimas imagens. Mezes antes, abafava no extenso horisonte, que
descobria do topo das serras onde trepava para dar á sua imaginação
sedenta a vaga imagem da immensidade. Agora, parecia-lhe que á
sofreguidão da alma lhe bastaria a soledade, o silencio, a tristeza dôce
dos saudosos ermos da aldêa, que conheciam o seu poeta desde os onze
annos.

Anteviu os tres mezes de ferias como quadra de contentamentos novos.
Tudo eram promessas de infantil ledice aos seus arrobos de saudade.
Imaginava-se sosinho ao pé da arvore conhecida, em cujo tronco uma vez
entalhára a ante-data de seis annos, com uma interrogação ao lado, e
como se perguntasse o segredo do seu destino á sibylla dos seus queridos
bosques.

O anno assignalado era esse em que estava. A resposta aos vagos
presentimentos dos quinze annos ia dal-a agora, mais anhelante e
auspiciosa de venturas certas do que elle a previra ao deixar o encargo
de responder a mal-agourados futuros.

«Quão longe eu estava da verdadeira felicidade, minha querida
mãi!--escrevia elle na primavera de 1855, quando as margens do Mondego
reverdecidas lhe festejavam as saudades e as esperanças maviosas. A
imaginação enganou-me. Cuidava eu que o coração de minha mãi faria o
milagre de communicar uma faisca do seu amor ao seio de cada pessoa que
eu encontrasse fóra da nossa aldêa! Pensei que a imaginada formosura da
natureza começava áquem dos horisontes, que eu descobria do alto das
montanhas. As impressões novas antecipavam-se-me cheias de espiritual
deleite, e abundantes da vida que me lá faltava ao pé de pessoas vistas
a todo o instante, com o sorrir da amisade, e ao pé das arvores, vistas
em cada primavera, com as mesmas grinaldas, e em cada inverno com a
mesma nudez funerea, que me confrangia o espirito.

«Castigou-me o desengano, quando dobrei a ultima collina, d'onde via o
cume da serra em que tantas vezes me assentára, ideando ao longe o
caminho da minha imprevista felicidade. Era tudo estranho para o meu
coração. O vento do outono despia as arvores da sua folhagem; mas a
poesia melancolica e contemplativa d'essa transfiguração, qual a eu
sentia na minha aldêa, convertera-se agora em profundo aborrecer-me, em
cerração d'espirito, em arrependimento doloroso.

«A duas leguas de nossa casa, minha boa mãi, quiz retroceder: reteve-me
a vergonha. Depois de ter passado uma noite--primeira de minha
vida--fóra do meu quarto, n'uma estalagem, ergui-me com proposito de
vencer o pejo, e ir lançar-me chorando em seus braços. Conteve-me ainda
o receio do _ridiculo_, palavra e sentimento terrivel, que, ha dez
mezes, me foi entalhado no coração por um homem, onze annos mais velho
que eu, propheta do meu destino, tão verdadeiro como terrivel propheta,
que me vaticinou a sensibilidade immensa do poeta, e as lagrimas
inexhauriveis do incessante desengano.

«Já verti as primeiras; essas, porém, são talvez uma puerilidade que o
mundo escarneceria, por que, bem averiguada a causa da minha tristeza de
seis mezes, encontra-se um bom coração de filho e irmão, a nubelosa
saudade dos dezenove annos, e o pesar de haver com tanto afan rebatido o
parecer de meu tio, que me quiz demover da tenção de estudar em Coimbra.

«Eu prometti-lhe, minha mãi querida, a noticia exacta das minhas
impressões.--Descreve-me ao menos a bellesa dos abysmos como ella se
afigurar á tua imaginação--foram as suas palavras. Não posso
descrever-lhe nem, se quer, as formosas miragens do meu deserto. Se
deponho com fastio os livros, que só abro por obrigação, interrogo de
novo o meu espirito, tento sondar a indole mysteriosa da minha vontade
oscillante, e encontro sempre enigma. Quer-me, ás vezes, parecer que
estou em vesperas de uma grande transfiguração no meu modo de ser e
pensar; escuto o surdo rumor das idéas, que ameaçam rebellar-se contra a
moderada esperança em que minha alma se acalenta; sinto-me impellido á
vereda de angustias desconhecidas, ao passo que as suspiradas alegrias
da vida serena no seio de minha familia se me varrem da imaginação como
as copas de flôres desmaiadas, que o nordeste sacudiu e dispersou.

«Deverei occultar-lhe alguma das minhas visões, querida mãi? Não posso.
A confidencia é a respiração das almas; é, mais ainda, é a supplica do
conselho e do remedio para as tribulações, ou de estimulo e fé para crer
na felicidade sonhada, se ella um dia me vier provar que não eram
mentira os meus delirios dos dezoito annos.

«Ha entre mim e o indecifravel do meu futuro uma imagem como elle
indelineavel. Não sei a qual hora da vida acharei a sombra real d'esta
idealidade, que se fez corpo e alma, impressão e sentimento para a minha
phantasia. Tenho querido collocal-a ao pé de minha mãi, como reflexo do
seu amor. Quando assim consigo aproximadas, tambem consigo explicar a
influencia, que ha-de ter na minha vida essa imagem, descerrada a nuvem
que m'a envolve pela mão luminosa da Providencia. Será a realisação do
infinito amor, porque entre Deus e minha mãi falta um élo. Creio que não
usurpo a minha mãi o vago affecto dedicado a essa alma estranha, que me
visita nas horas de intimo recolhimento e scismadoras saudades de não
sei quê, como se do céo perdido nos ficassem saudades para
reconquistal-o á custa de lagrimas. Isto que sinto não póde ser, como me
dizem os livros sentimentaes, os alvoroços precursores das primeiras
devoções, o subir para o altar dos cultos fervorosos e apaixonados. É
mais.

«Entrevejo na escuridade do porvir uma scintilla, que me banha de
festiva luz o espirito, aspiro o aroma de celestial flôr, que me delicia
e adormece em dôces lethargias, tenho um despertar alegre e sereno, como
o do homem incapaz de ir abraçar-se á realisação de seus ambiciosos
sonhos pelos caminhos travessios da improbidade e do mal-fazer.

«Assim pois, minha mãi, contente-se a sua boa alma de se vêr assim
reflectida na do filho, que d'ahi sahiu agourado por tão maus prophetas.
Não abordei esses abysmos seductores, que o meu bom tio excommungava de
lá, e contra os quaes me premuniu com cabedal de philosophia christã,
bastante para defender das tentações todas as nações da Biblia,
exterminadas por causa do peccado.

«D'aqui a tres mezes, deporei no regaço de minha mãi o coração
inexperiente com que de lá sahi. Dar-lh'o-hei mais rico de
contentamentos puros, e desejos de ser bom filho; e, se assim não fosse,
iria agora fortalecel-o em seu seio das virtudes, que ainda me faltam.»

Três mezes depois, Jorge Coelho, convidado por um seu condiscipulo das
visinhanças do Porto, passou no Porto, quando recolhia a ferias, e alli
se deteve, para assistir ao ultimo baile annual da _Assembléa
Portuense_.

Jorge nunca vira um baile, nem ante-gostára pela imaginação o prazer de
encontrar duzentas damas reunidas á competencia de formosura e pompas.

Dizia-lhe o condiscipulo, já gasto para as commoções dos bailes (tinha
vinte e dous annos, e passára desapercebido em todos os bailes)
dizia-lhe o condiscipulo que o coração nascia de improviso no primeiro
baile, e muitas vezes lá morria. Contava-lhe, em testemunho de verdade,
a sua historia, que era uma historia negra, passada ao clarão de
centenares de lumes, nas salas da _Assembléa Portuense_, no baile
carnavalesco do anno anterior. Com quanto nos seja sempre ingrato
violentar as glandulas lacrimaes dos leitores, e sacudir-lhes com
patheticas descargas electricas os nervos engelhados, não nos abstemos
de contar em poucas linhas a historia negra do snr. Pires, condiscipulo
de Jorge, em geographia e historia.

Parece que o snr. Pires chegára de Coimbra a ferias de entrudo, e
conseguira ser convidado para o baile. Alugou um dominó de seda, entrou
nos salões, e remoinhou longo tempo por entre centenares de pessoas
desconhecidas. Dizia-lhe a consciencia que era um tolo, por não buscar
ao acaso uma particula da felicidade, que brincava nas physionomias de
toda a gente, ao passo que das d'elle apenas escorria o suor debaixo da
mascara suffocante.

Deliberado a demonstrar a si proprio que não era absolutamente nescio,
dirigiu-se a uma dama de aspeito melancolico, e disse-lhe «que os anjos
do céo, quando cahiam cá em baixo na morada dos homens, ficavam tristes
como ella.»

Ora, um maganão, tambem mascarado, que por alli gravitava em redor do
mesmo astro, disse ao estudante, radioso da feliz amabilidade, «que não
só aos anjos do céo acontecia ficarem tristes e atordoados quando cahiam
cá em baixo, mas tambem acontecia o mesmo aos gatos, quando cahiam de um
terceiro andar á rua.»

Ficou fulo de raiva Pires. A melancolica dama levou o leque ao rosto
para esconder o riso.

O estudante, voltando-se para o entremettido, replicou-lhe que era de
pessimo gosto a chufa, e o gosto da senhora não era de melhor quilate
festejando com riso complacente tão deslavada semsaboria. Redarguiu o
incognito mascarado, perguntando-lhe se tinha duvida em sahir fóra das
salas para lhe estender uma orelha de modo que por ella o conhecessem
todos, visto que elle tivera a habilidade de a esconder no capuz do
dominó. Trocaram-se algumas finezas mais d'este tomo, até que um homem
de porte grave travou do braço ao snr. Pires, e, levando-o ao salão
menos frequentado, perguntou-lhe que motivos se haviam dado para
desavença tão impropria de cavalheiros. Pires, querendo dar ao successo,
uma causa digna de transmissão, contou que merecêra lisongeiro
acolhimento da senhora com quem estava trocando as phrases previas de
uma paixão, que rebentára subita e reciprocamente, quando o indiscreto e
villão interventor lhe dirigira palavras descomedidas, que denotavam o
ciume d'elle.

--Pois aquella senhora, a quem o dominó allude, trocava com v. s.ª as
phrases previas de uma paixão?--perguntou o interlocutor do estudante
com sorriso de affectada serenidade.

--Sim, senhor, respondeu o outro emproando-se.

--Antes de dizer-lhe que mente, preciso vêr-lhe a cara.

Dito isto, o sujeito, que era o marido da dama, arrancou a mascara ao
snr. Pires; e, vendo um rosto imberbe, e acerejado, chamou o escudeiro,
que passava com bandeja de dôces, e disse-lhe: «Dê a este menino dous
bolinhos, e mande-o embora.»

Eis aqui a historia negregada do snr. Pires, a qual, contada por elle,
era muito mais dramatica e engraçada, visto que terminava por dous
duellos mallogrados, um com o rival, outro com o marido, e por tres
desmaios da dama, um no salão, outro na carruagem, e o ultimo em casa,
na presença do marido, que, pelos modos, a quizera enforcar.

E, como as lagrimas d'este acerbo conflicto cahiram todas no coração do
snr. Pires, o resultado foi afogarem-se lá os embriões da sua
felicidade, e ficar aquella viscera árida e resequida como enxundia
secca de gallinha.

Ouvira Jorge Coelho estas calamidades com a respiração suffocada, e teve
instantes em que duvidou do bom siso do seu amigo;--tão descozido lhe
parecêra o conto, e tão ineptas as consequencias.


III.

Entrou Jorge Coelho nos salões da «assembléa,» e julgou-se em regiões de
houris. Durou-lhe alguns minutos o atordoamento da primeira impressão.
Não o enleava esta ou aquella physionomia; eram todas. N'aquella
harmonia do bello, até as senhoras feias--se ha senhoras feias, vistas á
luz do coração--recebiam homenagem do extatico moço. No espasmo
delicioso do academico, se algum amor influia, era de certo o amor da
especie, porque seus olhos não haviam ainda estremado o individuo, que
os olhos d'alma entreviam no todo.

Do cisco lucido, que volita no ar, faz douradas palhetas o raio do sol
coado pela fresta. Na dourada lucidez que Jorge via por magico prisma,
não haveria muito cisco, muito atomo de poeira humana, que sómente
refulge aos reverberos dos lustres, consoante o variegado das côres?
Decidam os que lá andam.

Aquietado dos alvorotos da surpreza, o estudante sentiu o vacuo, porque
se viu sosinho alli. O apresentante doudejava no redemoinho das danças,
e raros intervallos perdia, perguntando ao condiscipulo se estava
contente.

Jorge não sabia dançar, porque não tivera tempo de aprender esse
appendiculo grutesco da boa educação. Muitas vezes lhe dissera o tio
padre, authorisado pelo oratoriano Manoel Bernardes, que danças eram
ansas do demonio armadas á alma.

Não se glorie, porém, o crendeiro egresso de ter instillado no animo do
sobrinho o horror das mazurcas. Jorge não dançava porque não sabia se
quer a nomenclatura d'essa galharda tolice de que por vezes impende o
accesso ás almas, e o passar-se uma noite menos tediosa n'um salão em
que o espirito se retouça em piruetas, mais ou menos ridiculas e
parvoinhas, da materia.

Á meia noite, Jorge procurou o seu condiscipulo para dizer-lhe que se
retirava. Atravessando uma sala, quasi despovoada, viu duas senhoras
reclinadas n'uma ottomana, em postura de fatigadas ou aborrecidas. A
mais velha não excederia vinte e cinco annos; a outra, que teria
dezoito, foi a primeira que prendeu o exclusivo reparo de Jorge, senão
antes uma contemplação absorta em que ellas mesmas repararam.

O academico devia captivar a attenção das duas senhoras, melancolicas
por indole ou artificio. Tinha elle um semblante de si tão meigo e
affectuoso, que as pessoas tristes sentiam-se melhorar em suas magoas,
pensando que outras acaso maiores e mais carecidas de lenitivo denotava
o brando olhar do moço. Estava, por ventura, este condão sympathico na
magresa do rosto, cujo pallor mais era signal de compleição mimosa, que
effeito de vigilias e desperdicios de vida com que muitos conhecidos
nossos se recommendam ás senhoras idealistas, affectando langores e
martyrios de alma, dos quaes a victima principal é, em verdade, o corpo.

--Sympathica physionomia!--disse a mais velha das duas senhoras.

--Conheces?!--perguntou a outra sem fugir os olhares de Jorge, o qual,
por mero disfarce, encarava objectos, que realmente não via.

--Não o conheço, nem me lembra de o ter visto em parte alguma.

--Tinha curiosidade em conhecer... Não achas n'aquelle rosto um não sei
que de distincção?

--Tem alguma cousa não vulgar...

--Uma tristeza insinuante, achas?

--E não sei que de magoa supplicante...

--É verdade... e as supplicadas somos de certo nós...

--És tu, Silvina... és tu a examinada com um ar de espanto ou ternura
que compromette. Olha um grupo de homens, que nos observam e mais a
elle...

--Não olhemos mais. Elle já sabe que o vimos e discutimos. Achamol-o
sympathicamente triste, e bem póde ser que seja um tolo com bastante
coragem para nos dizer que o é... Mas quem será?!

A curiosidade das duas damas é menos racional que a dos leitores que
desejam conhecel-as.

A mais velha é a snr.ª D. Francisca da Cunha, creatura galante, com
quanto morena, grandes olhos pretos, sobrancelhas travadas e negras,
opulentos cabellos, e espirito de improviso bastante a fingir
illustração. Pertence a uma familia heraldica da provincia de
Traz-os-Montes, e veiu ao Porto com seu pai, fidalgo arruinado pela
politica e pelas proprias dissipações, com o fim de acirrar a cobiça de
um noivo conveniente, cujos paes almejam por enxertal-o no nobilissimo
tronco dos Cunhas. Tem esta menina genio exquisito e romanesco. Por
muitas vezes tem mallogrado os esforços casamenteiros do pai, mofando da
figura e palavriado, um pouco para rir, do noivo. Á força de ser má,
conseguiu fazer-se anjo no conceito do mal-fadado que espera em ancias
ser marido d'ella. Maravilhada do poder que tem na alma do capitalista,
com desdens e despresos, espanta-se do presumido dominio, que poderá ter
sobre o homem a quem der os sentimentos embrionarios no seu coração.
Para experimentar, sem risco da sua nomeada, recebe cartas de varios
oppositores á sua alma, e responde regularmente a umas com idéas
respigadas nas outras. Nos grupos, que se vão formando na sala, em que
está com Silvina, sua prima carnal, avultam quatro dos seus
correspondentes activos, e dous, que obtiveram promessa de resposta, e
alguns, que esperam aso de solicitarem aquella gloria, no entender de
cada um negada a todos, chegando a fazerem-se a mutua justiça de
julgarem-se parvos uns aos outros.

D. Silvina de Mello, prima de D. Francisca, é tambem provinciana, e veiu
de uma aldêa do Minho a banhos do mar, convidada por sua prima, de quem
é hospeda. O que ella aprendeu em quatro mezes de convivencia é possivel
que o não acreditasse quem lhe visse o rosto de anjo, olhares de
innocente acanhamento, sorrisos de escrupulosa timidez, palavras
desanimadas e preguiçosas, e, no todo, uma despresumpção de maneiras,
que fazia suppôr grande limpeza d'alma e de... de intelligencia!

Fôra D. Silvina da sua aldêa para o Porto com uma paixão por um morgado,
que a não seguira por fortissimos impedimentos. O pai do morgado tinha
feito extraordinarias despezas na construcção de uma eira, na
reedificação da capella solarenga, no muramento de algumas cortinhas,
que comprara, não fallando já nas desastradas mortes de um macho, que
tinha trinta annos de bom serviço na casa, e duas juntas de bois
atacadas de epizootia. O moço pedira debalde soccorros, fingira-se mesmo
epileptico para que o cirurgião da terra lhe receitasse banhos salgados;
o velho, porém, passaro bisnau, e avesso á inclinação do filho, deu
grandemente louvores a Deus por propiciar-lhe ensejo de acabar-se um
namoro inconveniente, attenta a mediocre legitima de Silvina. Facil foi
a D. Francisca obliterar no coração da prima a imagem do seu primeiro
amor, zombeteando-a á proporção que a ingenua provinciana lhe ia
mostrando as cartas do saudoso morgado.

Não podémos averiguar porque traças o morgado de Santa Eufemia arranjou
dinheiro com que foi ao Porto, tres mezes depois que Silvina cessára de
responder-lhe ás cartas, tanto mais irrisorias quanto a paixão as
dictava em estilo talhado para matar paixões. O certo é que o allucinado
homem chegou ao Porto na vespera do baile da assembléa, e alcançou
cartão de convite. A sua idéa era encontrar Silvina.

Todo sorvido na ancia de vêl-a e fulminal-a com olhadura terrivel de
accusações, o morgado de Santa Eufemia não cuidou, com tempo, de mandar
fazer casaca. A que trazia na mala era dos figurinos de Guimarães, e,
posto que em bom uso, era anachronica na gola, nas lapelas, na largura e
comprimento das abas, na pequenez dos botões, e rebordo dos punhos.
Consultou a pessoa, que lhe alcançára o convite, ácerca da casaca; mas,
desgraçadamente, a pessoa consultada era um d'aquelles individuos de
juizo, que não tiram o monge pelo habito, e reprovam que seja
sacrificada aos caprichos da moda uma casaca de bom pano, farta e
commoda, sómente porque alguns casquilhos perdularios, ou alfaiates
especuladores, inventam feitios novos.

Concordou o morgado, e foi ao baile com a casaca velha. Melhor lhe fôra
ter morrido da epizootia! A sua entrada na primeira sala foi um
acontecimento. As petulantes lunetas saudaram-n'o, e seguiram-n'o com
insultuosa curiosidade até ao salão da dança. As senhoras, em regra,
pouco curiosas do trajar dos homens, não repararam na casaca, mas não
podiam deixar de vêr o collete e a gravata. Era esta descommunal na
altura, atravessada por um laço, cujas pontas, como orelhas de lebre
morta, cahiam caprichosamente sobre os hombros. A côr verde da gravata
contrastava com o encarnado-ginja do collete de uma abotoadura e
colchetes apertados até ao pescoço, e acairelado na abotoadura e bolsos
com vivos roixos. Sobre isto cahiam as lapelas enxovalhadas da
casaca, com as quebras e vincos dos apertos que soffrera na mala em que
viera, para irrisão e descredito de Freixieiro, cujo elegante era.

Desconfiou o morgado de Santa Eufemia de alguns indiscretos que o
seguiram, desde o vestibulo da assembléa. Viu, depois, que as damas se
trocavam olhares suspeitos, que o não impediam de procurar Silvina com
aspecto entre o furioso e o comico. A obstinação, porém, dos
chasqueadores era inexoravel, e o morgado teve um intervallo de lucidez,
em que olhou em si, e se viu ridiculo. Do fundo de sua alma deu, então,
graças á Providencia, se Silvina o não tinha visto; mas o derradeiro
olhar, que lançou aos descaridosos mofadores, era provocador.

Resolveu, pois, retirar-se, maldizendo o velho amigo de sua familia, que
o demovera do proposito de fazer roupa nova. Quando ia sahindo,
atravessou por engano a sala em que se achavam D. Francisca, D. Silvina,
e Jorge Coelho. Os grupos de homens, que por alli estanciavam, deram com
elle de cara, seguido d'um cortejo de folgazãos, que tinham passado da
zombaria cautelosa á risada descomposta.

Silvina corou até ás orelhas, quando Francisca exclamou:

--Oh! que original! Repara, prima, tu não vês aquelle homem?!

A este tempo o morgado estava em meio da sala, e fazia machinalmente uma
cortezia ás damas.

--Aquillo será comnosco?!--dizia, com desdenhosa zanga, D.
Francisca.--Conheces aquelle phenomeno?! Olha que elle está esperando
que o comprimentemos... Conheces, Silvina?

--Conheço...--balbuciou Silvina, acaso tão afflicta como o desastroso
morgado, que estava alli chumbado ao pavimento.

--Quem é? é da tua terra?--tornou Francisca já envergonhada de que
julgassem ser ella a causa da attentiva paragem de semelhante entrudo.

Silvina ergueu-se, tomou o braço da prima, e disse:

--Vem, que eu te contarei tudo.

Sahiram.

Jorge Coelho foi o unico dos circumstantes que examinou com seriedade o
morgado. Achava estranho o personagem; mas dizia-lhe a boa alma que o
insulto era improprio de pessoas bem educadas como deviam presumir-se
aquellas, que estavam alli representando a melhor sociedade.

O fidalgo de Freixieiro sahiu com os olhos a marejarem lagrimas. Foi
ainda Jorge quem unicamente viu este signal de afflicção; e, sem saber o
porquê, sympathisou com a dôr do homem, que levava de poz si o escarneo
de tanta gente, e na alma a certesa de que viera dar-se em espectaculo
aos olhos da mulher, que nunca lhe perdoaria o ser ridiculo. Pobre
criança! como vivias enganado pelas maximas dos teus romances francezes!
Não sabias tu que ridicula, sem rehabilitação, é só a pobresa.

D'ahi a uma hora, Francisca e Silvina desciam do toucador para o salão
do baile. A primeira compunha o semblante ainda descomposto das
gargalhadas com que recebera a revelação da prima. Esta, mortificada
pelo amor proprio, se não antes vexada pela indecorosa eleição d'um
amante chulo, captivava lastimas com a tristesa que devêra acarear
despreso. Despreso! Talvez piedade, que a situação era digna d'ella, por
que é a mulher, quem mais a si se mortifica, se a consciencia a accusa
d'uma escolha, que não só lhe não disputam, se não que, peior ainda, lhe
injuriam com motejos. O morgado de Santa Eufemia, até á noite infausta
do baile, era uma recordação, se não saudosa, ao menos magoada. D'ahi em
diante, pelo menos n'aquella hora, causava-lhe tedio, e forçava-a a
participar da zombaria.


IV.

Estava Jorge, outra vez, defronte das duas senhoras. Sentia-se outro. Já
tinha interiormente um mundo, uma imagem reflexa do mundo exterior a
remuneral-o vantajosamente da insulação em que se via no meio de tantos
indifferentes á sua tristesa. A todo homem esta mutação tem acontecido,
uma vez na vida. O baile é triste para quem leva da soledade do seu
quarto o coração de lucto; porém, áquelle mesmo conforta, ás vezes, uma
chimera, lá onde menos a esperança lh'a promettia. Chimeras são que
desbotam, como as flôres dos enfeites, ao repontar da manhã; mas Deus
sabe quantas almas se retemperam nas illusões de um baile, e que horas
de abençoado engano lá divertem as tristesas dos mais desenganados!

Não era assim que Jorge Coelho scismava comsigo--que a aurora do seu
breve dia de fé e amor principiava alli--quando o amigo Pires,
lançando-lhe o braço em redor do pescoço, lhe disse:

--Que fazes aqui parado? Contemplas aquellas duas Evas, mal assombradas
de gesto, como se tivessem comido a fatal maçã?

--Contemplo uma, e acho-a celestialmente formosa.

--A côr de cêra?

--Sim.

--Eu gosto mais da morena. _Nigra sum sed formosa._ Aquillo sim que é
mulher para incommodar a fleuma d'um sceptico!... Queres ser
apresentado?

--Pois tu conheces?

--Não, nem preciso. Vou tiral-a para a primeira quadrilha, apresento-me,
e depois tenho a honra de ser o teu apresentante. O estilo, cá na boa
roda, é este.

--Mas a quem me has-de tu apresentar? é necessario, a meu vêr, que ella
te diga quem é.

--Pois não lh'o pergunto eu?! Essa reflexão é piegas. Se queres ouvir o
que eu digo, colloca-te ao pé de nós, e escuta-me nos intervallos das
marcas.

O snr. Pires não reconsiderava uma tolice, nem tolerava replicas.

D. Silvina, vendo um sujeito conversar com Jorge, olhou-o curiosamente,
para, se acaso visse pessoa de suas relações com elle, podesse, de
conhecido em conhecido, chegar a colher alguma informação do seu
mysterioso observador. Mais propicia do que ella ambicionava, lhe foi ao
encontro a fortuna protectora de sua innocente curiosidade. Pires, com
elegante desembaraço, solicitou de Silvina uma contradança: esta, com
adoravel aprazimento, aceitou logo o braço do cavalheiro porque se
estavam alinhando os pares.

Aqui, porém, falhou uma vez a felicidade a um tolo. Esquecera-se Pires
de procurar _vis-á-vis_, e era já fóra de tempo o procural-o. A dama deu
primeiro pela falta, e o academico fez-se da côr do rabano. Silvina
relanceou os olhos supplicantes a D. Francisca, e esta, chamando o
primeiro cavalheiro conhecido, deu-lhe o braço, e entrou no lugar
fronteiro á prima.

--Esta falta, disse Pires, retesando no pulso a luva até a rasgar,
deve-se ao enthusiasmo com que eu pedia a v. exc.ª esta contradança.

--Enthusiasmo?! Ora!... parece-me que queria dizer _distracção_,
respondeu Silvina ao adiantar-se para executar a primeira figura.

Chegado o grande intervallo, Jorge Coelho quizera ir postar-se perto de
Silvina; mas um burguez intolerante, zangado da pertinacia do moço, que
envidava os recursos todos da delicadesa e do encontrão para romper a
barra compacta dos olheiros de espadoas nuas, chegou a dizer-lhe,
franzindo a testa:«O senhor não cabe? se quer passar espere que acabe a
_polka_!» O bom do burguez não sabia ao certo se era contradança ou
polka o que se estava dançando.

No entanto, o nosso amigo Pires, com quanto pesaroso de que Jorge alli
não estivesse, para maravilhar-se dos recursos da eloquencia afeita ás
difficuldades do salão, conversava assim com a senhora attenciosa:

--Quando tive a honra de impetrar de v. exc.ª a graça d'uma
contradança... (Silvina poz o leque diante dos labios) acabava eu de
dizer a um amigo meu que o olhar contemplativo, _la réverie_, com que
elle fitava v. exc.ª, era merecida, justificada, e...

--Muito agradecida;--atalhou Silvina, tregeitando com o leque e a cabeça
uma evolução de movimentos indescriptiveis--mas eu não reparei bem no
amigo de v. s.ª, que me distinguia de modo tão lisongeiro.

--Se v. exc.ª tem a bondade de olhar em frente, ha-de encontral-o
extasiado...

--Extasiado?! Ora isto parece-me que vai passando da lisonja á galhofa!

--Oh! minha senhora... Isso offende-me e punge-me, acudiu Pires com o
mais comico azedume.

Silvina relanceára a vista como quem não via, e voltando-se para o
cavalheiro, disse:

--É do Porto aquelle senhor?

--É da provincia, minha senhora, estudante de Coimbra, meu condiscipulo,
chama-se Jorge Coelho, pertence a nobilissima familia, e assevero a v.
exc.ª que é um coração virginal, intacto, fervoroso, sentindo hoje pela
primeira vez os impetos juvenis do amor.

--Não admiro, porque é muito novo.

--Muito novo! oh! minha senhora! Quantos velhos n'aquella idade! Aqui
estou eu, de pouca mais idade que elle, e me considero já
_desillusioné_, decrepito.

--Realmente?!... Perdoe-me a curiosidade--disse Silvina, com muita graça
de fina ironia, sustentada com imperturbavel seriedade.--Queira dizer-me
em que romance poderei encontrar o seu caracter, já que não devo esperar
uma revelação das tempestades que o fizeram tão cedo naufragar!

--O meu caracter ainda não está escripto!--respondeu Pires, avincando a
testa, e fitando-a de esguelha.

N'este comenos entraram os pares latentes em movimento, e a phrase ficou
engasgada até ao proximo intervallo. Enganou-se, porém, o sceptico.
Silvina, como esquecida da suspensão da lugubre narrativa, perguntou ao
cavalheiro:

--O seu amigo demora-se no Porto?

--Não são essas as intenções d'elle, minha senhora; mas é de presumir
que um aceno de v. exc.ª o faça esquecer a familia carinhosa que o está
esperando.

--V. s.ª depois que envelheceu--replicou Silvina cortando as palavras
com frouxos de estudado riso--julgou salutar cousa o distrahir-se da sua
gotta moral zombando das pessoas que ainda crêem e esperam alguma cousa
d'esta vida?!

Acudiu Pires:

--Eu que digo isto é porque sei o que v. exc.ª é para Jorge. Respondo
gravemente ás suas facecias adoraveis. Sei que as virtudes de v.
exc.ª...

--V. s.ª conhece-me? perguntou Silvina de golpe, e formalisada.

--Não tenho essa honra, minha senhora.

--Quem lhe disse que ha em mim virtudes?

--Rosto angelico e véo translucido: homem experimentado adivinha o
coração do anjo.

Pires ia dizer mais quatro aforismos do seu uso, quando terminou a
contradança. Conduziu a dama á sua cadeira, e disse-lhe:

--Eu queria ter a felicidade de apresentar a v. exc.ª o meu amigo Jorge
Coelho; porém, rogo-lhe me diga se devo procurar alguem que me apresente
a v. exc.ª

--Não tenha esse incommodo. Fico sabendo que v. s.ª é um cavalheiro da
boa sociedade, e tanto basta. Sei tambem que é academico, e sympathiso
com essa qualidade porque tenho em Coimbra dous irmãos no seminario, e
não sei que analogias me fazem presar os estudantes.

--Direi mais, acrescentou o academico, enclavinhando os dedos para
ajustar as luvas, e tirando pelas lapelas da casaca a puxões de gentil
effeito--direi mais a v. exc.ª que me chamo Leonardo de Sousa Pires e
Albuquerque, a minha casa é na Maya, e costumo passar as ferias no
Porto, porque sou avesso á vida pastoril, e não tenho senão mediocres
tendencias para admirar a natureza bruta...

--Não é poeta?--interrompeu Silvina, ageitando o lindo rosto a um ar de
zombeteira admiração.


V.

--Se sou poeta!...--disse Pires, enviezando para o estuque do firmamento
olhos de lastima.--A poesia é flôr muito delicada, que o primeiro
vendaval do coração desfolha. Desfolhada a primeira flôr, o vaso que
fica não tem seiva para outra: é como a terra ferida de maldição.

--Isso é triste--acudiu Silvina, tregeitando com a cabeça e olhos umas
gaifonas piedosas.

--Tristissimo, minha senhora!

Agora eram de victima os ares do Fausto da Maya, e a dama já pedia a
Deus que não viesse para junto d'ella a prima, com medo de espirrar uma
d'aquellas casquinadas de riso, que a mais sisuda prudencia não refreia.

Jorge Coelho, no entanto, sem bem saber o que o impacientava, não podia
tolerar a detença do amigo. «Se eu soubesse dançar--dizia de si para si
o academico--teria feito o que fez Pires... Será de mim que elles estão
fallando? É natural, porque a vejo fitar-me com attenção... Se me eu
avisinhasse, daria melhor occasião a Pires de me apresentar...»

E, obedecendo á hypothese, deu alguns passos; mas tão a medo o fazia,
que antes parecia querer que o não vissem. N'isto, já o amigo o andava
procurando, e Silvina, vendo a direcção errada de Pires, acenou-lhe de
longe, indicando com disfarce onde estava Jorge.

O pobre moço tremia quando viu que era procurado. A sua primeira idéa
foi fugir da sala, e não duvidamos crêr que fugiria, se Pires lhe não
trava do braço, dizendo:

--Olha lá como lhe fallas: a mulher tem espirito, e é um genio.

Isto foi peior.

--O meu amigo Jorge Coelho que eu tenho a honra de apresentar á exc.ma
snr.ª Dona...

Pires estacou. Silvina sorriu-se. Jorge corou, baixando os olhos.

--Não sabe o meu nome? isso não importa disse a dama.--Eu me apresento.
O meu nome é Silvina. Tenho a gloria de ser tambem aldeã. Nenhum dos
tres póde rir dos outros. Então o snr. Jorge não dança?

--Não, minha senhora, eu não sei dançar--disse Jorge com infantil
ingenuidade.

--Não sabe, porque não ama a dança, não é assim?

--Em minha casa ninguem aprendeu a dançar. Minha mãi foi educada n'um
convento, e de lá sahiu para ser esposa, e governar sua casa n'uma terra
onde nunca se deram bailes. Eu sahi da minha aldéa ha menos d'um anno, e
tenho consumido todo o meu tempo no estudo...

Estava Silvina gosando sem motejal-a a simplicidade de Jorge, ao passo
que Pires lamentava as pueris historias do seu acanhado amigo. Como
quizesse salval-o, o imaginoso academico interrompeu-o com não sabemos
que espirituosa semsaboria, que Silvina atalhou logo:

--Deixe fallar o seu amigo que me está encantando com a singelesa do que
diz...

--Eu retiro-me, minha senhora--disse Pires, arqueando-se--porque estou
compromettido para a seguinte polka.

--Tambem eu...--disse Silvina, já quando o par se avisinhava, ao qual
pediu desculpa, de não dançar, por causa de uma forte dôr de cabeça. E
voltando-se para Jorge, que não soubera avaliar a fineza do fingido
incommodo:

--Tem aqui esta cadeira... Sente-se, e conversemos da sua familia,
porque talvez precise desafogar saudades d'ella em coração que o
comprehenda.

Jorge cobrára alento com este ar de familiaridade. Fez-se para elle
profundo silencio em todo aquelle borborinho da sala.

Era a primeira vez que se via em face de uma mulher, que lhe não chamava
irmão ou filho; e, todavia, tanta ingenuidade fraterna respirava o rosto
de Silvina, que, por encanto, o timido moço, sem forcejar contra o
enleio da alma, tirou de lá expressões de sorte affectuosas que nem os
mais destros comicos de sala as diriam assim.

--Tem muitas saudades dos seus, snr. Jorge?--disse Silvina com brando
mimo.--Está ancioso por chegar aos braços de sua mãi?

--Quizera que v. exc.ª a conhecesse--disse Jorge maviosamente.--Havia de
amal-a... que minha mãi está tão longe d'este mundo brilhante, vive d'um
modo tão differente do das pessoas educadas como ella foi, que me faz dó
o que era e tem sido ha vinte annos, contando hoje apenas trinta e seis,
n'uma aldêa, sem outra convivencia senão a de seus filhos, e sempre
magoada das saudades de meu pai... Ha duas horas que penso em v. exc.ª e
n'ella...

--Em mim?--atalhou Silvina, com sorriso de bondade--lisongeia-me
infinitamente a companhia que me deu no seu pensamento; mas poderá
dizer-me que analogia de imagens achou entre mim e sua mãi?

--Immensa, e não sei dizel-a. Se eu podesse bem interpretar este
sentimento mysterioso, diria, d'outro modo, que hoje, pela primeira vez,
se espelharam em minha alma duas imagens de mulher. Até ha pouco, havia
lá a de minha mãi sómente, e os traços informes, a sombra, o indefinido
do ser que vaga entre o céo e a imaginação do poeta. Agora...

--Essa segunda--interrompeu Silvina com uma gravidade impropria de sua
idade e modos usuaes--não poderá jámais deslumbrar a de sua mãi, porque
os entes de imaginação, visualidades passageiras, nunca usurpam a posse
aos entes que a natureza nos está dando todos os dias em realidade de
amor e carinhos. E depois, snr. Jorge, verá que é inutil esperar aquelle
puro original da cópia que a sua phantasia vai debuxando, em quanto o
coração novo e enganado lhe empresta as côres do céo. Affirmo-lhe, senão
authorisada pela experiencia, amestrada pelo exemplo e confissões
sinceras das minhas amigas, affirmo-lhe que o seu indefinido de poeta
nunca lhe ha-de avultar em corpo e alma, se os olhos descerem do céo a
procural-o na terra. Guarde, pois, com extremosa avareza a imagem de sua
mãi, e não consinta que outra lhe dispute o exclusivo amor que lhe dá.

Disse.

O academico ouvia, pela primeira vez, a expressão floreada, a linguagem
musical, o periodo arredondado, como de folhetim ambicioso, na bocca de
mulher. Achava elle certa incongruencia entre as feições menineiras da
provinciana e o tom sentencioso do discurso. Relanceou-lhe subito na
memoria o meu nome, segundo me elle contou depois. Lembrou-se d'aquelle
meu estirado discurso, na sua aldêa, dezoito mezes antes. Tropeçou na
hypothese de que o singelo exterior da palavrosa menina mascarava um
coração desbaratado por desenganos, e engenhoso de armadilhas a corações
noviços. Alguem diria que o silencio de Jorge, seguido á ultima
expressão de Silvina, era acanhamento. Já não: era a duvida.

--Ficou tão pensativo, snr. Jorge--tornou Silvina.--Está pesando no seu
juizo a verdade das minhas palavras? Impressionaram-no tanto!...

--É verdade, minha senhora; estava pesando as palavras de v. exc.ª com
outras que me disse um homem de trinta annos.

--Contrarias ás minhas?

--Semelhantes na intenção; mas muito mais desconsoladoras na fórma.
Disse-me elle que ha muitas mulheres que matam, e uma só que salva.

--Mas affirmou-lhe haver uma que salva?

--Sim, minha senhora.

--E quantas vezes lhe disse elle que podia ser victima de sua devoção e
generosidade a mulher que sente em si o coração salvador?... Creio que
me não fiz comprehender...

--Comprehendi, minha senhora. Pergunta v. exc.ª se a mulher capaz de
erguer a alma despenhada de sua grandesa, não se despenhará ella mesma
n'essa generosa tentativa;

--Entendeu.

--Não sei responder, snr.ª D. Silvina. Eu não sei nada do mundo. Ignoro
os precipicios em que póde cahir o homem, e não sei tambem a que alturas
póde levantal-o o amor. Já imaginei o mundo mais agradavel: começo a dar
cem illusões por cada realidade. Não cuide v. exc.ª que eu fiz pé atraz
á vista da verdade despoetisada, e feia como dizem os pessimistas que
ella é, vista á luz da razão pura; vejo, porém, que se vão fenecendo as
flôres da minha imaginação á maneira que escuto e pondero, com religiosa
crença, as palavras que v. exc.ª me diz, e as que me disse o bom ou
funesto despertador da minha razão, que dormia acalentada nos braços da
poesia. De que serve o desengano antes que a fatal experiencia no'l-o
dê?! Para que me diria v. exc.ª, com ar de tanta verdade e segurança,
que eu nunca encontrarei o puro original da cópia que a minha phantasia
entrevê?!

--Diz bem! atalhou Silvina meigamente triste, ou adoravelmente
dramatica--diz bem! Arrependo-me da injustiça que fiz ás mulheres, e
mesmo da crueldade com que me tratei a mim propria. Fallei pela bocca da
sociedade, snr. Jorge Coelho. Tenho ouvido, e lido nos romances as
palavras geladas e desanimadoras que lhe disse, com o immodesto animo de
distinguir-me a seus olhos. Menti-lhe, e menti ao meu coração. Não se
desalente ao entrar na vida, e nunca de mim se lembre como de fada má,
que lhe fadou a desventura. Espere, creia, e obedeça aos impulsos do
coração, em quanto a peçonha da mentira o não contaminar. No mundo deve
existir a imagem da mulher digna de senhorear-lhe a alma com a de sua
mãi, cuja face eu beijaria, hoje, se podesse, com respeito e ternura de
filha. Quando estiver nos braços d'ella, diga-lhe que encontrou no
Porto, e n'um baile--onde raro sentimento grave entretem por momentos o
espirito--diga-lhe que encontrou uma mulher que lhe manda n'esta rosa um
beijo de sympathia e veneração.

E, dizendo, tirou do decote espeitorado do vestido a rosa, chegou-a aos
labios, e deu-a com gracioso ademane a Jorge, que lh'a recebeu com mão
tremente.

--Cumpre o meu pedido? tornou ella.

--Pergunta-me se cumpro? É este um encargo doce que v. exc.ª faz ao meu
coração. Farei que minha mãi receba nos labios o beijo que vai n'esta
flôr. Depois, pedir-lhe-hei que m'a ceda, que eu possa chamar-lhe minha,
enthesoural-a como se ella para mim cahisse da grinalda d'um anjo... Se
ha no coração poesia mais sublime que a da saudade...

--Ha, sim... a da esperança...

--A da esperança!... balbuciou Jorge, levando machinalmente a rosa aos
labios, e córando da irreflectida acção que se lhe afigurou menos
respeitosa.

(Oh santa innocencia! não sei se és mais tola que santa!)

Desculpem o parenthesis que desfeia um pouco o bello e harmonioso da
fórma dialogal. Guarde-me Deus de motejar com insulsas facecias a
candura, o rubor, a timidez encantadora dos vinte annos de Jorge.
Invejo-lhe o que já não posso haver nem sequer com grande esforço
d'arte; mas rio-me d'elle e de mim, quando as galhofeiras memorias do
que fui, ha hoje quinze annos, sahem d'entre as flôres mirradas da minha
primavera, e vem cá a este glacial dezembro da vida fazer-me assuada e
zombaria, para que eu me dôa e corra das criancices de então. Pois
rio-me com effeito, que é para isso a cousa, e riam-se, á vontade, os
que de mim souberem que muitas vezes todo eu me incendiava em carmim e
rosa, quando o olhar logrativo da mulher me alvoroçava o pudor a ponto
de afeminar-me, e fazer de mim uma menina que... Quasi me escorregava
agora dos bicos da penna uma necedade das que se não desculpam á propria
santa innocencia que, repito, não sei se é mais santa que tola.

Vamos á historia com ajuda da providencia dos romancistas, a qual
providencia, muitas vezes, abre mão d'elles, e deixa-os para ahi
parvoejar que é mesmo cousa de peccado.

Silvina deu fé do rubor de Jorge, e...--querem saber a verdade
inteira?--não gostou. É um segredo da essencia mulheril o dissabor que a
molesta, a seu pesar... (vá, diga-se a _seu pesar_) quando o homem se
amulherenga ao pé d'ella, e lhe não deixa o exclusivo de mulher. Receios
de desmerecer em graças quando lhe é força ser mulheril? Consciencia
ingrata d'uma superioridade que a desenfeita? Recursos que perde de
captivar pelo mimo, com a brandura caridosa, por estremecimento do
pudor, toques do pejo virginal, que ora lhe transluzem nas faces, ora
lhe cerram os labios? Não sei se é tudo, ou alguma cousa, ou nada
d'isso. A verdade é que a mulher não gosta de homens que coram, de
homens que choram, de homens que... não são homens, está dito tudo, e
n'isso ficaremos, se acham que está discutida a materia. _Materia_...
que aleivosia! Isto é espirito o mais espiritual que póde ser. Espirito
transcendental, d'aquelle que devia andar na mente de muito casquilho,
paralta, janota, ou como é que se chama a tal alimaria, que se
desentranha em lufadas de cynismo nos botequins, e vai ao pé das
costureiras tartamudear jaculatorias de ternura.

Fica, pois, justificado o desgosto de Silvina, quando viu Jorge córar,
por ter beijado a flôr, onde os labios da peregrina minhôta haviam
imprimido o beijo de encommenda para a provincia.

--Agora, disse ella; são dous os beijos que leva a sua mãi, em uma só
flôr. Queira Deus que o halito dos labios do filho não tirasse o perfume
ao dos labios da amiga.

--Creio que sim--disse Jorge corando outra vez--creio que sim...

--Porque?!--atalhou Silvina com despeito mal comprimido.

--Porque sinto no coração o perfume do seu beijo.

Sahiu-se melhor do que eu pensava. É aquella uma das respostas que
costumam ir de casa gizadas; mas creio no improviso. E assim, explicado
o segundo accesso de escarlate, desvaneceu-se o desaire em que estava
Jorge na opinião caprichosa da dama, que replicou muito requebrada:

--Pois não esperdice o perfume, porque nunca sentirá no coração outro
mais puro, mais digno de incensar o seu amor reflectido do céo.

--Amor!--interrompeu Jorge com exaltado impeto de criança--Olhe que essa
palavra póde ser-me veneno para toda a vida, se v. exc.ª consentir que
eu a guarde...

--No mais intimo de sua alma... Guarde... que nunca a proferi com tão
pouco conhecimento de quem a dou, e tão pouca esperança de a vêr florir
em venturas.

Jorge Coelho ia naturalmente córar terceira vez, quando Francisquinha da
Cunha chegou, com ar de zanga, e disse:

--Vamos, prima, que o pai quer sahir... e é tão cedo... que raiva!
estava agora ouvindo uma enfiada de tolices tão peregrinas...

--De quem?

--Eu sei cá de quem? d'um homem que se chama Pires, e que este senhor
conhece... Não lh'o diga, não? Eu fui indiscreta...

--Não diz nada--acudiu Silvina--pois não, snr. Jorge?

--Eu, minha senhora!...

--Asseverou-me--continuou Francisca gesticulando vertiginosamente com
cabeça e braços--que se eu o não amasse, havia de espirrar á minha
fronte de algoz o seu sangue de Larra, de Werter, de... Ai que homem,
que homem aquelle! O que se produz na Maya! Ó filha, eu não posso perder
aquillo!... Pires é meu...

Ai! o pai... Vamos, Silvina.

Silvina estendeu a mão a Jorge, e disse a meia voz:

--Vá vêr-me ámanhã ao jardim de S. Lazaro.

Jorge balbuciou alguma cousa que não vinha do coração. N'este momento,
um receio doloroso o affligia com esta pergunta: «Esta mulher irá
escarnecer-te, como viste escarnecido o teu amigo?»


VI.

As occorrencias do jardim de S. Lazaro, no dia immediato, não merecem
chronica. O que póde, porém, succeder a um moço, que passeia o coração
amante, no jardim do Porto, é bom de dizer-se, e folga a moral de
ouvil-o.

Se o leitor está no Porto, e vai apaixonado ao jardim de S. Lazaro, e
conhece a familia da menina casadoura, por quem anda em brasa, faz a sua
primeira cortezia, e foge de encontral-a segunda vez, porque repetir a
cortezia é, além de provincianismo puro minhoto, cousa que cheira a
inconveniencia, e póde ser até escandalo. Resta-lhe o expediente commum,
e salva assim a honra das familias: é amoutar-se como fauno por entre as
murtas e bosques de acacias, lobrigando aqui, e além, a caça estranha.

No jardim de S. Lazaro os dous sexos dão ao passeio o que as sovinas
municipalidades não tem querido dar-lhe; isto é, uma luxuosa
superabundancia de estatuas, as quaes, tirante a alma, nem sempre se
avantajam ás do marmore nacional. Sentam-se as meninas, mui bem
compostas e ageitadas de mãos e cabeça, e alli se estão deleitando na
vista do repuxo, em quanto o papá rufa com tres dedos na tampa da caixa
do tabaco o compasso da modinha conhecida de Verdi ou Donizetti, que as
trombetas bastardas estão executando... _executando_, sim, é a palavra.

Ao relance artistico dos olhos não é feio aquillo. Cuida enxergar o
myope em cada renque de cadeiras uma fileira de _madonas de la sedia_;
mas a illusão d'um myope não vale os desconsolos de tanta gente que tem
a sua vista escorreita, e pensa que a estatua deve ter um _quantum
satis_ de espiritualidade.

Ha pontos na casca do globo em que a virtude custa pouco. Não sei se a
bemaventurança é accessivel por igual de todas as terras; mas,
convencido da rectidão que assiste aos negocios dos outros mundos,
quer-me parecer que quatro virgens a um tempo, sahidas em espirito, uma
de Pekin, outra de Constantinopla, outra de Paris, e a quarta do Porto,
devem de ter differente recebimento e quartel nas regiões da gloria,
onde ha premios para a virtude.

Na razão directa da tentação, nos esforços em rebatel-a, é que deve ser
aferida cada alma victoriosa que, apesar dos demonios succubos e
incubos, se alista nas legiões do céo. Não se dogmatisa, entendam:
quer-se escassamente enunciar idéa nova, resaibada de heresia, a vêr se
algum hypocrita illustra o livro, com as injurias da sua caridade
apostolica. Não ha no romance outro merito que o inculque, nem
perspectiva melhor agourada para o editor.

As adoraveis virtudes das senhoras do Porto não são de todo um
merecimento: orçam mais por uma necessidade. O homem d'alli sente um
terço, ou ainda menos das precisões espirituaes que, n'outras partes,
incommodam o coração humano. Esta feliz frugalidade procede do geito
d'aquella sociedade, geito antigo que degenerou em aleijão, rachitismo
moral, corcunda hereditaria, e de mais a mais pegadiça, por quanto, se
não é do Porto, e por lá apégar alguns mezes, leitor, apalpe as costas,
e topará uma protuberancia a crescer, a crescer, até se formar corcunda,
que irá comsigo a stoda a parte.

Aquelle aleijão, de barreiras do Porto a dentro, não fica mal a ninguem.
Os liliputianos, conta Swift, chanceavam o viajante europeu, que tinha a
ridicula felicidade de ser um homem bem apessoado e perfeito. As
bellezas do Congo recuam de puro nojo diante de um formoso nariz branco
sem pingentes. No Porto ha o escarneo e o tedio que explicam o paradoxo
do selvagem.

A juventude masculina da cidade heroica está em contacto com a
civilisação d'este seculo pelo alfaiate. Não poderam os velhos trancar
as portas do burgo de Moninho Viegas á invasão dos figurinos. Calção e
rabicho foram banidos; o tamanco e o chinelo d'ourélo cederam,
constrangidos, o joanête indigena ao verniz, e ao couro da Russia; o
difficil, porém, era pentear, vestir e calçar o espirito de gaito e arte
que a gente, fitando em rosto o filho da civilisação portuense, não
tivesse de descer os olhos a buscar-lhe nos pés o tamanco. É o sestro
das transfigurações de golpe e abruptas.

Um joven bem estrellado de minas e camapheus, chama-se no Porto um
janota. A menina ingenua diz á visinha: «conhece aquelle janota?» ou
«fulaninha namora um janota louro.» Não se cuide, porém, que este
epitheto implica mofa ou menospreso como em Maçãs de D. Maria, ou Lamas
d'Orelhão. O janota portuense é uma cousa séria, que póde ser vereador,
e irmão da ordem terceira.

Por via de regra, o janota é uma creatura que nasce, cresce, abre-se em
florescencia variegada de frakes, e colletes, e pantalonas; toma posse
do balcão paterno aos trinta annos, corta o bigode para que lhe
descontem as letras, põe oculos se teve o infortunio de estragar a vista
com a luneta que lhe servia de não vêr nada, fructifica em crianças
gordas que entrajam á escoceza, e escôa-se de vida através de quarenta
annos de lerda pachorra de espirito, legando á prole um nome limpo, com
pequenas farruscas que se ensaboam na barreia de um necrologio, e dous
legados de cincoenta mil reis ás entrevadas da Cordoaria, e alguma cousa
ao hospital do Terço.

D'este viver assim resultam duas cousas que explicam muitas outras:
primeira, que o elegante portuense dispende os annos perigosos da
adolescencia vestindo-se de manhã para sahir de tarde; segunda, que as
meninas, ao despegar da costura, ageitam os laçarotes do toucado,
entufam os punhos das manguinhas, encostam o cotovello ao peitoril da
janella, seguem o olhar de esguelha que lhe vai revirando o terceiro ou
quarto janota predilecto, e fecha a janella quando a passagem do quinto
é duvidosa.

D'est'arte, as paixões são innocentes e ao mesmo tempo substanciaes como
um caldo de gallinha. As relações epistolares não derrancam a pureza das
olhaduras. A carta, em regra, é declaração escripta que tolhe a poesia
da declaração muda. Palestras, quer de sala, quer a horas mortas, da rua
para a janella, que piedosa criada deixou aberta, são, se a patrulha o
tolera, a morte de ambas as declarações, porque o janota que falla é
muito menos soffrivel e grammatical que o janota que escreve. Ainda
assim, o casamento remata isto que se chama o _namoro_. E o mais é que
ella e elle, nas suas horas de recolhimento, cada qual a só por só com a
sua consciencia, contempla saudoso o passado e diz: «Que bella mocidade
eu tive! muito me diverti!»

Ponderam alguns authores que a morigeração dos costumes portuenses é o
necessario effeito do atraso da civilisação e policia da classe media,
em que as outras no Porto se embaralham e perdem. Esta palavra
«civilisação» anda mal trazida para tudo. Se o refinamento das
industrias, se a arte de crear capitaes, no minimo do tempo e com
diminuto trabalho, constitue a maxima civilisação material, o Porto
ganha a aposta aos mais ambiciosos prospectos de riqueza aventados pelos
economistas. E assim é que alli enxameam os Midas no ouro e nas orelhas;
porém, menos castigados que o fabulado Midas da theologia grega, logram
digerir o boi e o toucinho na succulenta substancia que a natureza lhes
deu.

Os que negam ao Porto a vanguarda do progresso industrial, que é a mesma
civilisação, irmã gemea da intellectiva, e fonte da sã moral, derruem
desde os alicerces a sciencia moderna, confessando assim a utopia do
systema vulgarisado nas escolas, nas gazetas, e nas fórmas de governar
das nações mais cultas. No Porto, dão-se as mãos a riqueza e os costumes
edificativos, para se justificarem estes por aquella, e a primeira pelos
segundos. A industria é a de hoje: os costumes são os de ha um seculo. O
chefe de familia poderá ser moedeiro falso, negreiro aposentado com
exercicio na casa real, alliciador de escravos brancos, contrabandista
tolerado; mas a filha d'esse homem da época vive intemerata como a filha
de Virginio; cuida que seu pai, recolhendo a casa encalmado e suado, vem
de servir a patria como Cincinnato; e, chegada a occasião de exercitar
as virtudes antigas, não duvidará ser Lucrecia, e Lucrecia menos
equivoca que a de Colatino.

Sobre este assumpto, mediocre seria o engenho que não produzisse um
volume. Em louvor do Porto, escreveu o socio da academia real das
sciencias Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos dous folhetins de
nervo e polpa, com muito sal attico á mistura. O abundoso escriptor
escreveria in-folios, se lhe aprouvesse, porque já um dos sete sabios da
Grécia, Pittacus, parece que era, escreveu um volume dos louvores da mó
d'uma atafona; e, para encarecimento do rábano, deixou Marciano um
tractado muito de vêr-se. O talento é uma cousa temivel.

Ora não vão já d'aqui os malsins de intenções maliciarem essas
inoffensivas palavras, que não desprimoram, nem arguem deshonra ao
paladium das liberdades patrias, como usam dizer os artigueiros da terra
a proposito de qualquer empeço que lhes assombre o seu municipio, se
acontece o governo ir de encontro a alguma postura sobre a carne de
porco, ou cousa assim em que valha a pena lembrar ao mundo que o Porto é
o paladium das liberdades patrias.

N'isto pensava eu no jardim de S. Lazaro, n'aquelle dia em que Jorge
Coelho, mais imprudente que atrevido, se avisinhára de Silvina, que,
passados minutos de conversação, lhe disse:

--Não se demore mais tempo, porque toda a gente nos observa com ar
espantadiço. Eu cuido que estamos dando grande escandalo.

Jorge Coelho retirou, e deu o braço ao amigo Pires, que fremia de raiva
resultante d'uma desfeita que recebera de D. Francisca.

--Desfeita!--disse Jorge--pois uma senhora faz desfeitas!?...

--O requinte hediondo da insolencia!--vociferou o fidalgo da Maya
tascando com phrenesi a ponta do charuto.

--Que te fez?

--Ouviu-me hontem na «Assembléa » uma declaração, acolheu-a com doudo
enthusiasmo, disse-me que eu era um homem tão admiravel como perigoso;
tremeu de pavor quando eu lhe fiz sentir o desfastio com que me
arrancaria as entranhas, se me ella não aceitasse a vida como
complemento da sua. Tudo isto me authorisava a offerecer-lhe hoje uma
carta, com a certeza de me ser aceita. Offereço-lh'a, e ella responde-me
que não sabia lêr se não letra redonda! Leonardo de Sousa Pires e
Albuquerque sabe vingar-se. Vou ámanhã á Maya; depois... ai d'ella e de
mim!


VII.

Christovão Pacheco de Valladares, morgado de Santa Eufemia, esteve sete
dias e sete noites emparedado no seu quarto da hospedaria da «Aguia
d'Ouro» depois d'aquelle desastre da «Assembléa.» Alguns hospedes
repararam na reclusão, e averiguaram dos criados que exquisito homem era
aquelle. D'estes hospedes, o mais grado era o morgado de Matto-grosso,
solarengo de «Entre-ambos-os-rios» homem de grandes brios e musculos.
Apenas informado, foi bater á porta de Christovão Pacheco, dizendo pela
fechadura que abrisse que era parente e amigo. A identidade do
parentesco foi de facil prova.

--O primo Pacheco não póde duvidar--disse o morgado de Matto-grosso--que
um irmão de meu setimo avô, que havia nome Heitor Moniz de Valladares
foi casar á casa de Santa Eufemia com D. Urbana Pacheco, filha de Lopo
Pacheco, governador de Cochim...

--A fallar-lhe a verdade--disse o de Santa Eufemia--eu não sei nada de
linhagens; mas tenho ouvido fallar a meu pai n'esse governador de
Chacim.

--Cochim, primo Christovão, Cochim.

--Ou Cochim, ou lá o que é...

--E saiba que da sua prosapia sahiram os mais illustres sangues das
familias do Minho. Talvez v. exc.ª, primo, não saiba que a nossa
linhagem está mui de perto aparentada com Porto-Carreiros!

--Não sabia, nem sei de que sirva isso.

--De que sirva isso!--acudiu Egas de Villas-boas Cão e Aboim
Encerra-bodes, que assim se chamava o morgado de Matto-grosso. Não diga
tal, primo Christovão Pacheco. Pois ignora que do solar dos
Porto-Carreiros, fidalgos mais velhos que a monarchia trezentos annos,
sahiu ha cinco seculos um infanção, que casou em Castella, e foi tronco
da descendencia que vem illustrar-se na pessoa da actual imperatriz de
França?[1]

--Não sabia, palavra de honra, e isso que faz?--tomou o de Freixieiro.

--Faz que somos parentes da imperatriz, e que podemos dizel-o á bocca
cheia a esses de sangue azul da capital, que nos chamam a nós fidalgos
de meia tigella, esquecidos de que os mais nobres barões da côrte de
Affonso edificaram os seus solares entre Douro e Minho, e d'aqui, por si
ou seus filhos, acompanharam os reis da primeira dynastia ás conquistas
do restante da Lusitania, e d'além-mar.

--A fallar-lhe a verdade, primo, quando entro a pensar n'essas cousas
com que meu pai me quebra a cabeça, parece-me que trocava toda a minha
fidalguia por algumas libras.

--Oh! que blasphemia!--Exclamou Egas n'um impeto de sincera
indignação.--Troca-se por libras um neto de Heitor Moniz de Valladares!?

--Não é trocar-me por libras;--acudiu desabridamente o de Santa
Eufemia--é que eu estou de vinte e oito annos, e ainda não pude sahir de
casa senão duas vezes com esta; e não tenho remedio senão ir-me embora
para Freixieiro, por que meu pai escreve-me hoje essa carta que o primo
póde lêr, e depois me dirá se me não era melhor ser antes um caseiro das
minhas fazendas, que me não servem de nada, n'esta idade em que eu
preciso de dinheiro.

--Vejamos isto--disse o de Matto-grosso, abrindo a carta, e lendo o
seguinte:

                                                   «Meu estimado filho.

Já te disse que venhas para casa, que não ha dinheiro para andar em
folganças. Os tempos estão muito bicudos, e o bicho já pegou nas
videiras. Os bezerros do caseiro da Portela lá estão com a molestia, e a
cheia levou a parede do lameiro do Quinchoso. Tudo são despezas. O
abbade pegou-me pela palavra, e quer que eu mande pôr a porca no sino da
igreja. O milho ainda não chegou á conta; os quatro carros que se
venderam não chegaram para pagar as decimas. O garrano está de todo
espravonado; pozes-te-o bom com a tua ida ao Porto. Tudo são desgraças.
Em quanto á roupa nova, deixa-te disso; a casaca que levaste está muito
boa, e o melhor é fazel-a em Guimarães, que são mais em conta os
alfaiates. Anda-te embora, logo que esta recebas, que eu dou ordem ao
meu amigo brasileiro para te dar para a jornada cinco pintos; olha se
ajustas a cavalgadura sem gorgeta. Dou-te a minha benção, e sou teu pai
carinhoso,

                                                             «_Vasco._»

--Que me diz a isso?--exclamou Christovão.

--Eu sempre ouvi dizer--respondeu o primo Egas--que meu tio Vasco era um
tanto fona; comprehendo que na idade do primo Christovão custa muito não
brilhar na sociedade, a que o nosso nascimento nos dá direito; não
obstante, seu pai está accumulando para o seu filho unico uma grande
casa, e é preciso perdoar-lhe a intenção que é boa. Vamos ao mais
importante: o primo quer dinheiro? quer os meus cavallos? quer os meus
lacaios? tem tudo ás suas ordens; o que eu não consinto é que diga que
trocava os seus brazões por algumas libras. Vamos, franqueza, precisa de
fato? Chama-se já aqui o alfaiate: hoje mesmo póde sahir de ponto em
branco. Tenho cá dous cavallos, o _corisco_ e o _phaetonte_: o primo
monta qual quizer. Diga-me agora a que veiu ao Porto.

O morgado de Santa Eufemia, entre jubiloso e magoado, contou ao primo a
historia do _seu amor de raiz_, como elle dizia. Mostrou as cartas de
Silvina, que elle tinha atadas com um barbante n'uma bolsa interior da
mala. Passou á ingenuidade da galhofa que lhe fizeram na «Assembléa»
narrando as miudezas da casaca, e expoz o collete ginja e a gravata das
orelhas fabulosas. E terminou em tom de lastima, accusando a perfidia da
mulher a quem elle quizera dar o seu nome.

Egas de Encerra-bodes, depois de provar que na linhagem de Silvina havia
um reles sargento-mór e um capitão de milicias, afóra duas bastardias e
um filho sacrilego no seculo XVI, entrou a fuzilar colera dos olhos,
tocando no ponto mais grave dos queixumes do neto do governador de
Cochim.

--Eu, dizia elle batendo no peito com a mão aberta, eu, primo
Christovão, na sua posição teria açoutado os perros que o escarneceram
na «Assembléa.» Esses que riram de Christovão Pacheco é a villanagem,
cujos paes vieram para o Porto de rabona de cotim, chapéo braguez, e o
tamanco herdado. Os nossos caseiros, quando a liberalidade de nossos
paes, lhes concedia poderem enroupar de cotim os filhos, mandavam-os
para aqui. Os filhos d'esses que para aqui vieram, primo, são os
insultadores da risada boçal, os miseraveis que através da casaca, da
pelle da luva, e do verniz das botas, estão accusando o costado proprio
do fardo, o pé que reclama o tamanco, e a mão que suspira pelo cabo da
enxada. Tenho visto esse gentio nos botequins, e por sobre o hombro
observo os risos de grosseira mofa com que recebem o despreso dos que
elles denominam _parvalheiras_. Parvalheiras, a nós, primo, que temos em
nossas casas a educação que elles tem entre as balanças, e timbramos em
honrar os appellidos de nossos avós, descendo até elles para que elles
não subam até nós. Se quer vêr quanto é villã a basofia d'estes
tendeiros, que trocam por titulos ceiras de figos e costaes de bacalhau,
tenha o primo a longanimidade de os admittir á sua convivencia, e verá
como se elles desfazem em lorpas cortezias, e citam a cada instante o
seu nome, como um dos seus amigos d'elles... Vamos ao ponto essencial.
Christovão Pacheco foi ultrajado. Um primo de Egas de Matto-grosso não é
ultrajado impunemente.

Tem um rival, primo?

--É de crer que sim.

--Fidalgo?

--Isso não sei.

--Cumpre sabêl-o.

Uma hora depois entraram fardos de fato feito no quarto do morgado de
Santa Eufemia, e logo botas do sapateiro francez, e chapéos da melhor
fabrica. Vestiu-se Christovão Pacheco, e era de vêr em que gentil moço
se transfigurou, e que nova alma entrou n'aquelle corpo. Se elle tivesse
lido frei Luiz de Sousa, aquelle esbelto cortezão que se sepultára no
frade, recordaria estas palavras escriptas com tanta sciencia do absurdo
coração do homem: «É nossa natureza muito amiga de si, e experiencia nos
ensina que não ha nenhuma tão mortificada que deixe de mostrar algum
alvoroço para uma peça de vestido novo. Alegra e estima-se, ou seja pela
novidade, ou pela honra e gasalhado que recebe o corpo: até os
pensamentos e as esperanças renova um vestido novo.»[2]

Assim foi o morgado de Santa Eufemia. Quando se viu, desconheceu-se.
Outro corpo e outra alma. Olhava para o polimento das botas, e o vidrado
d'ellas reverberava-lhe na alma em lampejos de alegria. Não se cançava
de correr a mão pela macia seda do chapéo, e remirava-se ao espelhinho
que o imaginoso chapelleiro enquadrára no centro da copa. Com o que elle
se ia zangando foi com as luvas de nove pontos e meio, que gemiam pelas
costuras, com a pressão do dedo polegar que queria á força entrar com os
outros de uma assentada. O do Matto-grosso explicou ao primo os
mysterios da luva, com muito mais siso que um certo folhetinista do
Porto inventor dos mysterios da dança. No Porto ha gente para inventar
tudo quanto ha.

Os dous morgados sahiram da «Aguia d'Ouro» no domingo posterior áquelle
em que Silvina fallára um momento com Jorge, no jardim. Para o jardim
foram tambem elles, seguindo Silvina e Francisca, que saturam da missa
dos Congregados. Quando subiam a rua de Santo Antonio, um grupo de
elegantes, para quem a physionomia do morgado ficára indelevel, desde o
baile, pararam maravilhados da reforma, fixando-o com impertinente
reparo.

O morgado de Matto-grosso estacou em frente do grupo, e disse:

--Ora vamos: andem, ou desandem!

Os elegantes abriram alas, encarando-se mutuamente com um ar de pasmados
da propria docilidade.

--Bravo! exclamou Leonardo Pires, que seguia de perto os morgados.

Egas de Encerra-bodes voltou-se rapido para o da Maya, e disse mal
assombrado:

--Que é lá isso?

--Disse _bravo_!--replicou Pires com serena jovialidade, porque gostei
immenso de vêr aquelles bigorrilhas ladearem á esquerda e direita, e
comprehendi a razão porque elles pararam contemplando este cavalheiro
que eu vi, _mutatis mutandis_, no baile da Assembléa Portuense. Eu
honro-me tambem de ser parvalheira, e como tal me apresento, pedindo-lhe
que me recebam no numero dos seus conhecidos em quanto me não conhecerem
digno da sua amisade. Sou da Maya, da familia dos Pires e Albuquerques,
e primeir'annista da faculdade de direito. Tenciono formar-me porque não
tenho que fazer, e não me conformo á vida de meus antepassados, que
viviam dos galgos e dos cavallos. Abomino cordialmente o Porto; mas ha
aqui uma mulher que me tem preso a esta terra pela fibra vingativa d'um
coração nobre. Aqui estou esperando a hora de provar-lhe que senão
brinca com um homem que tem esculpidas no seio as maximas herdadas de
avós.

Pires foi fallando n'este estilo até ao jardim. O morgado de
Matto-grosso, scismando com o que seria no _livro dos costados_ a
familia de Pires e Albuquerques da Maya, escassamente ouviu o enfatuado
palavrorio do mettidiço. Christovão ia um pouco desconfiado da
bacharelice de Pires, que já o tratava por «vossê» quando entrou no
jardim.

Lá estava Silvina. Rodeavam-na alguns cavalheiros do Minho,
censurando-lhe a crueldade com que abandonara o morgado de Santa
Eufemia. D. Francisca da Cunha chanceava com remoques os patronos da
victima do collete-ginja. A fidalga de Freixieiro, esporeada pela prima,
fazia tambem riso do morgado, calando os rumores da consciencia que a
não louvava. Era, pois, certo que o coração d'esta menina, degenerado
acaso do seu bom natural, em poucos mezes de pratica de outra sociedade,
se estava doendo de ter desconfessado, no baile, o amor de um homem,
cuja mão tres mezes antes apertára com fervoroso amor e esperança de ser
d'elle.

Jorge Coelho presenciava de longe, e cioso, a attenção que Silvina dava
aos cavalheiros minhotos. Não os conhecia, para afoutar-se a entrar na
roda, e interrogar com uma palavra vaga o coração de Silvina. Esta,
porém, repellindo com desdenhosa philosophia os pesares que secretamente
a remordiam, ergueu a fronte desanuviada, poz os olhos nos de Jorge, e
fez uma ligeira cortezia, que todos julgaram ser um aceno para chamal-o.

A este tempo chegavam, perto de Silvina, Egas de Encerra-bodes,
Christovão de Valladares, e Leonardo Pires. O do Matto-grosso
comprimentou alguns primos que estavam na roda; e o de Santa Eufemia,
voltando as costas para as senhoras, respondia, sem saber o que, a
algumas perguntas d'um cavalheiro. O inquieto Pires, furando por entre
todos, foi apertar a mão a Silvina, e dizer-lhe que estava o ideal da
quinta essencia das fadas, com o que D. Francisca se riu, e riso fôra
aquelle que abrira na testa de Pires um vinco dos que promettem
cataclismos.

--Dá-me novas de Jorge?--disse Pires a D. Silvina.--Eu cheguei hontem da
Maya, e não pude ainda encontral-o no hotel. O amor reduzil-o-ia a
Sylpho, minha senhora?--proseguiu o estabalhoado, mordendo o charuto ao
canto esquerdo dos beiços, e arqueando os braços na cintura.

--O seu amigo, disse Silvina, em voz alta, para desaffrontar-se da
grosseira postura do morgado--está defronte de mim.

Pires fez uma pirueta sobre o calcanhar direito, fitou a luneta no
condiscipulo, contemplou-o da altura da sua critica, volveu de novo o
rosto risonho para a dama, e disse:

      _Sobre a pyra fumegante,_
      _Ardem ternos corações._

D. Francisca deu largas a uma risada estridula. Silvina sorriu
prasenteiramente á tolice. Alguns morgados receberam o dito como cousa
de espirito. Pires, contente do seu auditorio, ia retirar-se quando o
morgado de Santa Eufemia, voltando a cara jubilosamente soez para o
grupo, soltou uma cascalhada secca e desafinada que assanhou cruelmente
os nervos de Silvina.

Todos estes movimentos foram seguidos de outro mais significativo. Os
olhares convergiram todos sobre Jorge, que ficou encarnado até ás
orelhas. Alguns dos cavalheiros murmuraram o quer que fosse, e
nomeadamente Egas de Encerra-bodes fitou-o insolentemente, e disse a
meia voz:

--É aquelle?!

--Pelos modos!--respondeu o primo.

--Pobre criança! é preciso dizer ao pai que o mande buscar.


VIII.

Tinha Leonardo Pires, á volta com muita pequice, assomos de brios
capazes de enganar a gente. Não levou em paciencia que os morgados
rissem do seu amigo. Encarou com ferocidade o de Matto-grosso, e disse,
estendendo o braço em attitude esculptural para o lado onde Jorge
estava:

--Aquella criança, que alli está, tem um dedo de homem, que faz recuar
perfeitamente o gatilho de uma pistola.

Os circumstantes algum tempo não tugiram. Se não fosse o melodramatico
da postura, a cousa não era para rir; mas a lentidão, com que Pires
desceu o braço, fez espirrar uma cascalhada universal, salvo Silvina que
arquejava em ancias de raiva.

Jorge conheceu que o escarneciam. Ergueu-se, veiu direito ao grupo,
accendeu o charuto no de Egas de Encerra-bodes, murmurou seccamente um
_obrigadissimo_, e foi saudar Silvina e Francisca com a desenvoltura
desacostumada que lhe dava agora o ciume e a ira.

Silvina, contente da façanha, deu-lhe lugar immediato no seu banco.
Porém, o pai de D. Francisca da Cunha, adivinhando tempestade nos
olhares coriscantes de Christovão Pacheco, ergueu-se, puxou para baixo
as pantalonas que tinham marinhado até meia-canella, e disse:

--Vamos, meninas, são horas de jantar; vamos ás sopas.

Levantou-se Jorge, sem ter dito palavra; mas Silvina, estendendo-lhe a
mão, de sorte lh'a apertára e sacudira, que fez evidente a intenção de
tornar bem reparado o feitio, muito de notar-se em menina de sua idade e
educação aldeã.

Mal as damas voltaram costas, o morgado de Santa Eufemia foi bruscamente
a Jorge Coelho, e disse-lhe:

--O senhor é um petisco! Não se me ande a fazer fino, quando não...

Jorge respondeu assim á brutal arremettida:

--A phrase é de carreiro; e, se não é carreiro quem me insulta, deve de
ser um embriagado.

Leonardo Pires dá um passo á frente de Jorge, põe a mão no peito, e
exclama nem facundo nem irado:

--Eu sou insultado na pessoa do meu amigo: exijo uma satisfação.

O fidalgo de Traz-os-Montes, fazendo signal de retirada á filha e
sobrinha, entremetteu-se no grupo que se ia cerrando, abriu os braços, e
tirou do peito estas memoraveis palavras:

--Os senhores estão aqui desacreditando a provincia. Se querem ser o que
lá no matto são os homens de figados, peguem em dous carvalhos
cerquinhos, e deem até tocar a quebrado; mas não queiram que os botem ás
gazetas ámanhã. A minha opinião é esta. O menino vá para um lado--disse
a Jorge, empurrando-o com brandura--e o senhor morgado para outro. Em
quanto á rapariga, minha sobrinha, ámanhã eu a porei em casa do pai.

Jorge, tirado pelo braço de Pires, sahiu do jardim, e pôde ainda vêr nos
olhos de Silvina, um movimento de radioso orgulho da bravura d'elle.

Na tarde d'esse dia recebeu Jorge a primeira carta de Silvina que resava
assim: «_É bello ser amada por um homem de coração e esforço. É bello
poder testemunhar a desaffronta do homem que se ama; mas é triste não
poder, na presença de Deus e dos homens, dizer-lhe:_--TUA POR TODA A
VIDA!»

O academico da Maya ouvira lêr a carta, e disse, com quanta vehemencia
lhe permittiu a posição horisontal n'um canapé, e as pernas sobre as
costas d'uma cadeira:

--Essa mulher tem espirito, palavra de honra! Amor e estilo, amigo
Jorge, são o alpha e omega d'esta humanidade perfeita em que tivemos a
dita de cahir das nuvens. De que diabo serve a rhetorica com que
estragamos a memoria em Coimbra, não me dirás?! Se o padre Cardoso, que
fez um compendio da arte de fallar, escrever uma carta como essa, diz tu
que eu sou um parvo e que me não hei-de vingar da Francisca da Cunha!
Diante d'estes talentos brutos, sem mão d'obra, como é o da tua Silvina,
os Quintilianos e os Longinos ficam no tremedal da sua protervia
explicando a _enallage_ e o _hyperbaton_. Oh! o estilo é muito mais a
mulher que o homem! Eu dispensava bem tres partes do coração na mulher
que me soubesse acepilhar e lapidar um periodo! Ha lá nada mais lindo? A
formosura fenece como as flôres; o estilo fica. Silvina, a eloquente
Silvina, quando de pura velhice não tiver aquelles dentes de marfim e
esmalte, ficará com a bocca cheia de phrases melodiosas, como o canto do
cysne. Tu és feliz, Jorge, mas a mesada deve estar nas vascas da morte.
Estás sem vintém?

--Não; meu tio padre mandou-me cincoenta mil réis para lhe eu comprar
dez volumes da Encyclopedia Catholica, e eu...

--Já devoraste cinco volumes em _rost beef_, e luvas brancas e charutos,
não é verdade?

--E minha mãi encommendou-me duas peças de durante, e não sei que mais,
que está esperando ha oito dias... Hontem recebi d'ella uma carta, que
me fez pena e saudade...

--Tem estilo?--interrompeu Pires, sentando-se estabalhoadamente.

--Não brinques com cousas sagradas: minha mãi não tem estilo, e n'esta
carta o que me diz é copiado do seu livro de orações.

--Ora essa!... Isso é original! Deixas-me vêr a carta-jaculatoria de tua
mãi?

--Deixo... Aqui a tens... eu leio.

Jorge Coelho, commovido, leu o seguinte:

«Abro o meu livro de orações e copio estas palavras para que meu Jorge
as leia:--A infeliz mãi, cujo filho começa a frequentar as sociedades
põe toda a sua esperança na protecção de Maria. Começa o joven mancebo
por alguns desmanchos que fazem conceber grandes receios ácerca do
restante da sua idade. A mãi assim lh'o diz, e dá os mais ternos
conselhos; elle, porém, rebella-se contra aquelle tão puro affecto,
contra aquella dolorosa previsão de mãi, e assomando-se lhe pergunta
porque duvida de sua honra e prudencia, e acrescenta: Parece-vos o meu
comportamento reprehensivel, porque não frequentaes a sociedade: eu faço
o que fazem todos.--Infeliz!--a mãi exclama--que te deitas a perder por
isso que fazes o que todos fazem.--Ri o insensato dos temores maternos,
e adianta-se ás cegas n'um caminho semeado de escolhos. Tudo está posto
em aventura: a honra n'este mundo, e a salvação no outro. Não sabe a mãi
o que faça para salvar o objecto de tantas lagrimas e crueis angustias.
Vê perdido o filho, e perdido para sempre. Maria, porém, consoladora dos
afllictos se lhe mostra como dôce visão... E a mãi afflicta, de joelhos,
com as mãos postas, exclama: «Ó Maria, auxilio dos christãos, salvai meu
filho, rogai por elle!»--Jorge, eu orei com estas palavras: a Mãi de
Jesus ha-de ouvir-me, e fallar-te commigo ao coração. Vem, vem para nós:
teus irmãos chamam-te com saudade, e eu com lagrimas.»

Leonardo Pires respeitou a commoção de seu amigo, e principiava um
discurso de molde segundo o caso pedia, quando o morgado de
Matto-grosso, e outro dos cavalheiros que entrava na roda do jardim,
assomaram na porta.

--Temos duello--disse a meia voz, Pires, entalando no olho direito o aro
circular da luneta e esguelhando a bocca.--Queiram entrar--proseguiu
elle, adiantando-se para a porta--se é que entende com o meu amigo Jorge
a honra da visita dos cavalheiros.

Egas de Encerra-bodes entrou e disse:

--Vem aqui commigo o snr. Theotonio Tinoco Pitta de Lucena, da casa da
Trofa, fidalgo tão antigo como o solar dos Lucenas. O snr. Jorge não me
conhece. Eu sou primo do morgado de Santa Eufemia: tenho dito de sobra
para justificar o meu nascimento.

--Ha-de perdoar-me--disse Pires,--não precisava v. exc.ª dizer tanto
para justificar o seu nascimento...--E atalhou logo a ironia vendo que o
vulto do morgado se anuviava de mau agouro:--o senhor morgado é tido e
havido na conta de muito bom sangue da provincia...

--E do melhor de Portugal--cortou logo Egas--Vamos ao ponto da nossa
missão. Christovão Pacheco de Valladares manda perguntar ao snr. Jorge
Coelho se algum de seus avós lhe transmittiu o fôro que torna iguaes no
campo da honra, nobre com nobre, as pelejas do pundonor aggravado.

Jorge ficou atalhado com o espavento da pergunta, e ia pedir explicação
da linguagem que lhe fez lembrar o tedioso Clarimundo, quando Pires,
sacudindo as borlas do seu rob-de-chambre respondeu:

--Jorge Coelho herdou de seus avós a honra, é quanto basta. Na sala do
palacio de Cintra não está lá o escudo dos Coelhos, porque o cobre a
mortalha da

      «_..............misera e mesquinha_
      _Que depois de ser morta foi rainha._»

Jorge por sua mãi, é Sepulveda, appellido que traz á memoria o caso
miserando, aquelle naufragio de que por ventura das letras patrias
nasceu um poema!...

--Deixemo-nos de lerias!--interrompeu Theotonio Tinoco.

--Lérias! o snr. Pitta de Lucena chama a isto lerias!--acudiu
Pires--Então que quer o senhor?

--Queremos que esse amigo dê uma satisfação ao outro a quem elle chamou
bebado hoje.

--Mas, primo Tinoco--disse o do Matto-grosso--bem sabes que o primo
Christovão não propõe, nem aceitaria desafio, a quem não tiver
nascimento.

--Ficamos agora sabendo que este cavalheiro é de familia de bom
sangue...

--Eu não sei de que sangue é a minha familia--atalhou Jorge
serenamente.--O meu amigo Pires não o sabe melhor que eu, e vv. exc.as
hão-de ter a bondade de dizer ao snr. morgado de Santa Eufemia que a côr
do nosso sangue lá a veremos no campo, quando elle quizer.

--Nomeie os seus padrinhos, para nos entendermos com elles--disse Egas.

--Um serei eu, se derem licença--disse a voz de um homem, que entrou de
subito no quarto.

--Meu tio!--exclamou Jorge, beijando-lhe a mão.

Era, com effeito, o padre João Coelho.

Leonardo Pires e os outros olharam com veneração para a figura sublime
do velho, que trajava rigorosamente as vestes de sacerdote. Jorge
baixara os olhos, em quanto o padre, com as palpebras humidas, e as mãos
convulsas, fitava e comprimia ao seio o sobrinho. Passados instantes,
disse compassadamente:

--Tantos annos e trabalho para te aproveitar, Jorge, e tu em tão pouco
tempo te perdeste! Ha menos de nove mezes que sahiste dos braços de tua
mãi, e venho-te encontrar na vespera de expôr o corpo e a alma com menos
desculpa que o salteador que traz o peito á bala e o coração damnado
pela perversidade!

E voltando-se para os tres cavalheiros, disse com uns assomos de nobre
authoridade e sorriso ironico:

--Quem são estes folgados rebentos de illustrissimas prosapias que vem
aqui desenfastiar-se dos tedios da sua inercia, estragando a alma de uma
criança? Ouvi aqui nomear appellidos estrondosos que representam varões
de grandes serviços á religião e á patria: é lastima que os netos dos
Tinocos e dos Pachecos andem pregoando o desafio, o derramamento de
sangue, como prova de honradas consciencias e altos espiritos. Melhor
lhes fôra que as suas consciencias fossem mais christãs que honradas.
Não se illustram memorias de avós derramando doutrinas impias. Se o
seculo as aceita, senhores, então reneguem vv. exc.as das virtudes de
seus avós, que outros seculos laurearam. Se os costumes barbaros d'esta
civilisação, que por escarneo se chama assim, se conformam com os seus
animos, não andem hypocritamente chorando saudades de Sião, os que se
atascam nas immundicies de Babilonia. Jorge, eu fui aqui mandado por tua
mãi: não quererá Deus que tu desobedeças á voz que te chama. Eu só quero
exercitar sobre ti a authoridade do conselho; tua mãi chama-te: deves
hoje mesmo sahir do Porto commigo. A vv. exc.as rogo eu mui humildemente
que se não afflijam da perda de um noviço na confraria dos heroes do
tempo. Costumavam nossos avós, antes de entrarem na cavallaria, velarem
as armas no templo do Deus vivo; meu sobrinho vai armar-se cavalleiro,
que não é ainda, e depois voltará á arena. Riem-se os nobres senhores?
Velar as armas é sacramento de tanto ponto, que nem o fidalgo da Mancha
se deu por bem posto na sua missão, antes de armar-se cavalleiro no
curral d'uma bodega, e o mesmo foi dar sova brava nos arrieiros. Tens tu
já Dulcinea, meu sobrinho? Claro é que sim. Ora, pois, aguarda melhores
dias para as tuas façanhas, e diz aos teus padrinhos que te deixem ser
mais algum tempo bom filho, bom irmão, e bom christão.

Egas de Encerra-bodes já não estava muito de bons humores com o padre.
Tinoco Pitta não o tinha entendido, e abria a bocca pela terceira vez.
Leonardo Pires não se atrevia a despregar da lingua aquellas espontaneas
e por vezes graciosas parvoiçadas que lhe vinham á flux da abundancia do
coração. Jorge Coelho tinha tão de negro cerrado o espirito que não
balbuciou palavra. Era impossivel a desobediencia; mas deixar Silvina,
sem levar comsigo a certeza de que a distancia não mataria n'ella a
paixão nascente, isso era uma dôr que o pobre moço desafogou em pranto
desfeito, passando ao quarto immediato que era o de Leonardo Pires.

O morgado de Matto-grosso, para evadir-se á posição embaraçosa em que se
via, despediu-se com estas palavras:

--Muito bem: eu vou dizer ao cavalheiro offendido por seu sobrinho, que
o offensor não tem imputação, attendendo á sua criancice, e mais ainda
ao facto de a mãi o mandar chamar para o seu regaço, como criança que é
desmamada de fresco.

--Não, senhor, atalhou o padre com seraphica brandura, diga ao senhor
morgado de Santa Eufemia, creio que assim se chama o seu amigo, diga-lhe
que seja generoso no perdão das injurias; que não desdoure os seus
antepassados barateando o sangue honrado que elles lhes transmittiram;
diga-lhe sobre tudo v. exc.ª que seja christão. Lembre-lhe que o desafio
é uma ferocidade que nem se quer prova coragem, porque a verdadeira
coragem é aquella admiravel abnegação dos louvores do mundo aos impetos
da raiva, e valoroso louvavel aos olhos do Senhor é só aquelle que tem
mão de suas iras, e desarma com humildade sem baixeza os féros e
acommettidas do inimigo.

--Teu tio é grandemente lido nos classicos!--disse Pires, no quarto
immediato, a Jorge Coelho, que enxugava as lagrimas teimosas.


IX.

Pobre coração! Tão puras lagrimas não has-de choral-as mais. D'essa
grande afflicção de que tu appellas para a morte, has-de lembrar-te
sempre com saudade, meu amigo. Na tua angustia ha os prantos do anjo,
saudoso do céo. Na mulher que deixas, cuidas que te fica a santa
companheira do Eden que a tua candura via na terra, aberto ao amor sem
mancha, convidativo de santos gosos. De dez em dez annos pararás, no
caminho da vida, peregrino da sepultura; voltarás o rosto para aquelle
teu dia dos dezenove annos, e verás em flôres, fenecidas mas ainda
graciosas, os espinhos por onde a pedaços te fica, meu pobre Jorge, o
coração. Saberás então o que é a saudade; pedirás á desgraça dôres
semelhantes ás da tua mocidade para abençoal-as; atirarás com o peito ás
sarças das paixões vertiginosas para espertares os pungitivos desgostos
do amor contrariado. Não já lagrimas, se não fel derramará o coração,
que devêras ter dado a Deus, desde que o mundo t'o desbaratou a
repellões e injurias. Chora, filho da sina maldita dos poetas, chora no
seio de tua mãi; bem póde ser que ainda lá te espere o anjo da tua
guarda.

Jorge Coelho não proferira uma palavra desobediente ao tio padre.
Apenas, quando enfardava a roupa nas malas, enxugando as lagrimas antes
de erguer o rosto disse:--Meu tio entende que me é honroso sahir do
Porto sem responder ao desafio?...--Padre João, que abria o seu enorme
lenço escarlate para se assoar, ficou algum tempo com os braços
suspensos, e o lenço pendurado, e assim esteve, como estupefacto
cravados os olhos no sobrinho, que esperava a resposta. O nariz, porém,
urgia: padre João Coelho levou o trombetear da limpeza até á hyperbole,
dobrou o lenço em quadro, depois enrolou-o, deu com elle mais alguns
torcegões ao nariz, armou-se de pitada, e disse:

--Não é Deus que os perde; é o demónio que ensandece aquelles que quer
aproveitar. Que é honra, Jorge? O evangelho que te diz das injurias, do
odio, das affrontas, das injustiças? O filho de Deus dictou e rubricou
com o seu sangue a lei, a regra, os deveres da humanidade; não importa
ser o evangelho obra de Deus; não importa que alli venham prescriptas as
maximas da boa e honrada vida: o evangelho é já inefficaz por que a
humanidade inventou uma honra que se prova e sustenta com o duello: a
vossa honra, cegos miseraveis dignos de lagrimas, lava-se no sangue,
justifica-se pelo homicidio, ao qual a legislação decreta a forca, e a
convenção social o galardão da bravura. Jorge, quem te disse que o
assassino era honrado?

O academico apenas respondeu:

--Meu tio, vamos; eu estou prompto.

Leonardo Pires já estava no largo da Batalha, chamando a attenção dos
numerosos transeuntes que paravam em magotes para verem o cavalleiro com
as esporas cravadas nos ilhaes de uma égua de fina raça que se empinava,
e corcovava, e atirava ora couces, ora galões medonhos. É que Leonardo
Pires vira D. Francisca da Cunha n'uma janella do palacio do snr. Manoel
Guedes, e de si para si entendeu que lhe ia bem dar-se n'aquelle
espectaculo hyppico, mesmo com perigo de quebrar a cabeça, como de facto
quebrou, e tão desgraciosamente o fez, que Francisca da Cunha, anciada
de riso, dizem que cahira extenuada n'uma othomana.

Andava o infeliz Pires atraz da egua espavorida, com ajuda dos gallegos
do chafariz, quando Jorge e o tio desceram da hospedaria da Estrella do
Norte para a praça.

Apanhada a cavalgadura, indiscreta e desasada para heroismos de amor,
Pires montou de salto, e acompanhou até Vallongo o condiscipulo, com
evidente desagrado do padre. No caminho, em quanto o egresso ficára
atraz compondo os loros do macho fleumatico, o amador infausto de
Francisca da Cunha disse a Jorge:

--Que queres que eu diga a Silvina, se o tio a não mandar para a aldêa?

--Diz-lhe, respondeu Jorge commovido, com os olhos marejados de
lagrimas--diz-lhe que eu não posso contar com a minha vida para lh'a
offerecer. Diz-lhe que eu não fugi de cobarde; por quem és, Pires, não
consintas que me ella ultraje, duvidando da minha coragem. Falla-lhe de
minha mãi, que eu sei que ella me amará ainda mais, vendo que eu
respeito tanto as lagrimas da que me formou o coração que eu lhe dei, e
ella achou digno de si. As minhas cartas mando-t'as a ti para lh'as
entregares... Silencio, que ahi está meu tio.

--Snr. padre João Coelho, disse alegremente Leonardo, pique o bucephalo
cá para a frente.

--Alexandre Magno não montava machos, senhor estudante, respondeu o
padre. Andaria mais acertado com a historia se me honrasse antes com as
tradições de Sancho Pança. O machinho sabe que leva em cima um engenho
velho, que se acerta de inclinar na carga cahe cada peça para o seu
lado.

--Mas leva uma grande alma, replicou Pires.

--O macho? perguntou o padre, sorrindo.

--Sim, senhor.

--Lá em Coimbra estuda-se essa psycologia de veterinaria? As grandes
almas passaram, pelos modos, dos Aristides e Catões para estes
quadrupedes! Se assim é, que nos fica para nós, senhor academico?

--Eu queria dizer ao meu nobre amigo que o macho leva um cavalleiro com
grande alma.

--Muito obrigado ao seu favor, snr. Pires. Eu tambem o entendi; mas
metti-me a engraçado a vêr se desafiava o riso, do meu pobre Jorge, que
vai ahi melancolico, como nunca foi filho algum para os braços de sua
mãi e irmãos.

--É que Jorge Coelho, tornou o estouvado infanção da Maya, está como a
avesinha a pairar emplumada, que salta para o rebordo do ninho, e
vacilla entre ir para a mãi que a está dentro chamando com o cibo, ou
voejar para a arvore em flôr que a está enamorando de longe.

--É uma bucolica bonita que o senhor vai poetisando--tornou o padre,
fechando o olho direito e sorvendo uma canora pitada pela venta
correspondente.--A avesinha (se dá licença, eu componho em linguagem
chan e fradesca uma estrophe do idyllio) a avesinha deixou piar a
carinhosa mãi, e desferiu as tenras azas na pontaria da arvore florida;
e, como quer que as forças lhe cançassem do desusado vôo, não teve a
avesinha remedio senão abater-se ao chão para pousar. E vai n'isto,
andava por alli á caça de ninhos um gato ou uma gata brava, seja gato ou
gata; o essencial é que apenas o triste passarinho apegou, o animal
damninho fez-lhe o salto d'entre umas balças, e o filho da pobre mãi,
que se morria de paixão no ninho, lá foi empolgado pelo gato ou pela
gata... Lafontaine não inventou este conto, e merecia a pena; não
importa: compuzem'ol-o nós, snr. Pires, _ad usum delphini_, e seja
delfim o nosso Jorge.

A allusão desgraciosa da gata foi tão clara quanto desagradavel a Jorge.
Era uma injuria á mulher querida, á sombra lagrimosa que o ia
acompanhando, e instigando a reagir contra o dominio de parentes, e
exhortando a emancipar o coração d'uma tutela que lhe deixava da vida as
regalias que bastavam á criança, mas não ao homem.

Azedado, pois, pelo motejo da bucolica do padre João, Jorge disse com
vehemencia:

--Meu tio offereça a moralidade dos contos a quem lhe pedir lições.

Padre João, depois de breve pausa, respondeu brandamente e com magoada
tristeza:

--Não te envergonhes de pedir-me lições, filho, que as não pedes sómente
a um velho; dá-t'as um amigo, que foi homem antes de ser frade, e
estudou os homens, depois que o mandaram sahir da sua cella, como cousa
inutil á sociedade. Se me não quizeres as lições, de que sirvo eu,
Jorge? Já agora irei prégando sempre, quer me ouçam, quer me repulsem,
como manda o apostolo.. Desagradou-te a allegoria do conto, e
convidas-me assim a ser mais natural. Jorge, repara bem no que te diz
este velho que, no teu modo pouco respeitoso de fallar a uma mãi, «te
premuniu com cabedal de philosophia christã, bastante para defender das
tentações todas as nações da biblia exterminadas por causa do peccado.»
Sei de cór as tuas palavras, porque m'as entalhou na alma o espinho da
ingratidão. Deves-me bons desejos de te fazer bom e honrado: não me
sejas ingrato. Agora, escuta, filho. Vinte e quatro horas antes de te
apparecer, procurei-te, porque do Porto fui avisado dos teus desvios:
como te não encontrei, fui colher mais informações; voltei á noite á
hospedaria tres vezes, e ás duas horas não tinhas ainda recolhido. No
dia seguinte, que foi hoje, procurei-te ás nove horas da manha: tinhas
já sahido. Déste-me tempo de sobra para eu me instruir das miudezas da
tua historia de tres semanas. Sei quem é a creatura que te ourou a
cabeça. É uma feia alma n'um formoso estojo; é uma aventureira...

--Meu tio, isso é crueldade e calumnia--interrompeu Jorge allucinado.

--Bate, mas escuta, dizia o philosopho: é uma aventureira de maridos,
que engodou o morgado de Santa Eufemia, em quanto julgou desnecessario o
consentimento do velho fidalgo para a realisação do casamento que a
fazia rica. Desvanecidas as esperanças do morgado, cuja rudeza lhe não
desdizia com o espirito arteiro, voltou-se para um rico brazileiro de
Cabeceiras de Basto; mas o brazileiro não lhe entendeu os pespontes da
eloquencia, e disse que queria mulher com quem elle se entendesse.
Chamada por uma prima, professora em armadilhas ao casamento...

--Francisca da Cunha?--exclamou Pires, erguendo-se nos estribos.

--Justamente, Francisca da Cunha, menina matreira que...

--Olhe que eu amo essa mulher, snr. padre Coelho!--interrompeu
solemnemente Leonardo.

--Pois faz v. s.ª muito bem: o amor do proximo é preceito divino: sou de
parecer que a ame; mas não lhe dou os parabens... Vinha eu dizendo que a
tal Silvina já no Porto, de mãos dadas com a prima, não duvidou visitar
uma estalajadeira de Margaride que viera a banhos de mar, porque esta
estalajadeira tinha um filho que viera do Brazil, com alguns centos de
contos, negociados na escravatura. E como o filho da estalajadeira não
andava acostumado a comprar senão negras possantes e trabalhadoras,
recusou comprar a compleição melindrosa da fidalga de Margaride. D'ahi
veio o saber-se, pelo dizer a snr.ª D. Silvina, que o poderoso
brazileiro é filho d'uma taverneira, e que fôra para o Brazil com umas
soletas e chapéo de Braga que lhe dera de esmola o pai da fidalga. Eis
aqui o que eu pude averiguar da pessoa por quem meu sobrinho troca os
carinhos de sua mãi, a dôce amisade de seus irmãos, e as lições
amoraveis de seu velho tio.

Jorge Coelho ficou enleado, e não replicou; Leonardo Pires, porém, que
nunca em sua vida pensára o que dizia, senão meia hora depois de o
dizer, exclamou:

--Mas ha-de confessar, snr. padre João, que ellas são boas mulheres!

--Boas!...--murmurou o padre, que não entendeu o sentido do
adjectivo--boas... quer-me parecer que não são muito!

--Ora essa! pois não as acha bonitas e elegantes?

--Eu não as conheço; mas creio que são bonitas e elegantes: e d'ahi?

--E d'ahi! _Amor omnia vincit!_ o amor tudo vence.

--Agradeço a traducção--disse, sorrindo, o padre, que, a fallar a
verdade, tinha uns sorrisos que muito justificavam o dito de ter sido
«homem» antes de ser frade.--O snr. Leonardo Pires não tem
mãi?--acrescentou o padre, após um curto intervallo, com summa
seriedade.

--Tenho, sim senhor; mas não tenciono namorar minha mãi--disse
precipitadamente Leonardo.

O padre fitou-o com tristeza e admiração, um momento, e depois disse-lhe
com bons modos:

--Praza a Deus que o coração esteja menos derrançado que a linguagem...
snr. Leonardo Pires, eu tenho setenta annos; deprava-se um rapaz; mas
respeita-se um velho.

D'esta vez, o imperturbavel Pires não teve que responder.

Tinham chegado a Vallongo. Jorge estendeu a mão ao seu amigo, e
disse-lhe suffocado:

--Adeus! não sei se te verei mais... Sinto a morte no coração!

O padre fez um frio comprimento ao amigo de seu sobrinho, dizendo-lhe:

--Deus o tenha de sua mão.

Leonardo partiu; e o egresso, com os olhos embaciados de lagrimas,
murmurou:

--Jorge! quem te abriu as portas da desgraça foi aquelle homem.


X.

Não esqueceram de certo ao leitor attento estas linhas da carta que o
morgado de Santa Eufemia recebeu do pai:--_Anda-te embora, logo que esta
recebas, que eu dou ordem ao meu amigo brazileiro para te dar para a
jornada cinco pintos._

O brazileiro amigo do fidalgo de Freixieiro era o snr. José Francisco
Andraens, natural de Cozelhas, desde 1844 estabelecido no Porto, onde
viera tratar do baço, do pancreas, e d'outras entranhas importantes do
snr. José Francisco Andraens. Na mente do illustre enfermo estava
retirar-se para a provincia de Piauhy, onde tinha a sua feira de pretos,
logo que restaurasse o estomago e as mais partes circumjacentes da sua
alma. Porém, como quer que um seu amigo velho, e companheiro de viagem
para o Brazil, em rapazes, estivesse no Porto com o titulo de visconde
dos Lagares, e este o fizesse conhecido por meio das gazetas por uma
esmola de cincoenta mil réis ao hospital da Santissima Trindade, o snr.
José Francisco viu-se tão festejado, tão requestado, tão necessario ao
Porto, que mandou vender os pretos em ser, e liquidar os creditos.

Tentemos um debuxo de José Francisco. Deve estar entre cincoenta a
cincoenta e cinco annos, estatura menos de mean, com tres barrigas, das
quaes a primeira, começando pela parte mais nobre do sujeito, principia
onde o vulgar da gente tem os joelhos, e, depois d'uma arremettida
adiposa, retrahe-se na linha imaginaria da cintura, e estreita-se em
fórma de cabeça. A segunda barriga pega da primeira, ondeia com tres
ordens de refegos por sobre as falsas costellas, ladêa tumida e retesada
como os flancos d'um ôdre posto de través, e vai perder-se nos sovacos,
mandando para as costas uma corcunda da sua mesma natureza. A terceira
barriga pendura-se da face interna do queixo inferior, amplia-se flacida
e lustrosa como um buxo mal cheio de vitella, e assenta sobre a segunda,
no ponto hypothetico do esterno. A parte anatomica d'este bosquejo toda
ella se libra em conjecturas. O author não assevera senão a existencia
das barrigas.

Isto tudo tem uma base caprichosa: são cousas que a linguagem do
paradoxo denomina pés. Vacilla a critica no confrontal-os com objecto
dos tres reinos: uma tartaruga envolta em bezerro dá-nos uns longes da
realidade; mas falta-nos o simile para os declivios, gargantas e
barrocaes dos joanetes. Os pés de José Francisco são a desesperação dos
Gavarni. O marrão do alvanel poderia arrancal-os d'um golpe d'uma
pedreira por acaso; mas Apelles mais depressa pintaria uvas que
enganassem o bico sequioso da passarinhada.

No tocante á cara o snr. Andraens é homem, apesar d'outros animaes que
lhe não disputam os fóros da humanidade, porque não teem um curso de
historia natural. O rubor do tomate desmaia ao pé das papeiras faciaes
do brazileiro. O nariz enfronha-se de envergonhado entre as trouxas de
tecidos, que lhe debruam os olhos de oppilações carnosas, sebaceas e
luzidias. A menina do olho é rutilante e azougada, posto que as
secreções visinhas lhe bezuntem a raiz das pestanas.

O snr. Andraens é commendador da ordem de Christo, desde que o seu amigo
visconde dos Lagares foi nomeado trinchante da casa real. Afóra isto, o
brazileiro de Cozelhas, na qualidade de accionista do Banco Commercial
do Porto, é orador vitalicio d'aquella assembléa, em que não são raros
os talentos de maior porte. Tal era o amigo do velho fidalgo de
Freixieiro.

José Francisco esperava que o filho de Vasco procurasse os cinco pintos,
segundo a ordem que recebera. Decorridos alguns dias, escreveu ao seu
amigo, a dizer-lhe que o fidalgo novo não apparecera para receber o
dinheiro. Tornou o velho a escrever ao brazileiro, encarregando-o de
procurar o filho, aconselhal-o que fosse para casa, e pagar a despeza
que elle tivesse feito na estalagem.

Foi o snr. Andraens á _Aguia d'Ouro_, e como não encontrasse Christovão,
deixou dito ao criado do quarto quem era e a precisão que tinha de
fallar com o morgado. Já vinha descendo as escadas, e voltou acima a
chamar o criado.

--Olhe lá, disse elle, o fidalgo deve muito cá na casa?

--Não, senhor: o fidalgo paga todas as semanas.

--Está bom, está bom, vossê não diga que eu perguntei isto, e pegue lá
para matar o bicho ámanhã.--Dizendo, abriu uma bolsa de retroz coalhada
de missanga, e tirou trinta réis que deu ao criado com a mão direita
fechada, para que a esquerda se não escandalisasse da prodigalidade.

Na manhã do dia seguinte, foi o morgado de Santa Eufemia a casa do
brazileiro, e conduziram-o ao seu quarto de dormir, porque José
Francisco estava ainda recolhido com a barriga n.º 2 envolta de papas de
linhaça.

--Estou aqui emplasmado, senhor morgado--disse José Francisco, arqueando
os braços por sobre a esphera abdominal.

--Então o snr. José que tem?

--Mande-se sentar, meu fidalgo. Eu estou aqui com uns calores cá de
dentro, que dão que fazer á botica; mas isto, se Deus quizer, não é
nada. Pois, meu senhor e amigo, seu pai escreveu-me, como ha-de saber,
para eu lhe dar um dinheirito, e depois tornou a escrever-me para eu ir
ter aonde a v. s.ª e dizer-lhe que o melhor é ir-se para casa, quanto
antes, porque o velho, pelos modos, está lá arrenegado por si. Então,
vai ou não vai?

--Por estes dias, irei; mas já já não se me arranja cá a minha vida,
snr. José.

--Então o senhor, ainda que eu seja confiado, que tem cá que fazer? Ahi,
por mais que me digam, anda derriço... Eu hei-de saber o que é quando
fallar com a fidalga de Margaride que o conhece muito bem ao senhor
morgado...

--Então o senhor conhece a D. Silvina de Mello?

--Conheço-a como os meus dedos...--respondeu o snr. Andraens, com um
sorriso intencional, que passou desapercebido ao morgado.--É bem boa
estampa, ó senhor morgado, não é? ora diga a verdade!

--É muito bonita, isso é.

--Rapariga d'uma vez! e bem-fallada!? isso então quando calha de fallar,
aquillo não despega nem á mão de Deus-padre! Falla em tudo quanto ha!
Até em Sebastopool, senhor morgado! Um d'estes dias tinha eu lá ido a
troco cá de certa pendencia, e veiu á collecção a guerra da Russia, e
ella começou alli a manobrar as batalhas, e se fôr como ella diz o snr.
D. Miguel (Deus o traga) não tarda cá. Eu não tenho partidos, e até a
fallar a verdade, sou commendador por esta gente, mas em fim, quero-me
cá com os velhos, e gente como era a antiga já se não topa. Pois é
verdade... eu...

--E a fidalga--atalhou o morgado--nunca lhe fallou em mim, snr. José?

--Fallou, pois então? disse-me até que o senhor queria casar com ella...
é assim ou não é?

--Isso é verdade. Paixão de raiz como a que eu tenho por ella não a
torno a ter pela mais pintada.

--Ah! que me diz?--acudiu o brazileiro com espanto--pois a cousa é isso?
Quer apostar que o senhor está aqui pr'a-mor d'ella?

--Em fim, o coração não mente... Á conta d'ella é que eu aqui estou.
Passaram-se uns poucos de mezes sem eu ter carta, desde que ella veiu
para o Porto. Arranjei como pude licença do pai, e vim encontral-a cá a
namorar outro, um trampolineirito a quem eu queria dar uma escovadela,
mas antes de hontem fugiu lá para cascos de rolha.

--Conte-me isso, conte-me isso--exclamou José Francisco com vehemente
interesse.

--É como lhe digo, snr. José. Agora preciso demorar-me alguns dias a ver
o que ella faz.

--Com que então diz-me o senhor morgado--disse meditabundo e detidamente
o brazileiro--que ella andava já com o miolo ás voltas por outro
sujeito!... As mulheres são o diabo!... Quer o senhor saber?! Mas isto é
pedra que cahe em poço, ouviu o senhor?

--Eu não digo nada; póde fallar snr. José.

--Pois então, vou desembuchar... Eu tenho emprestado algum dinheiro ao
Pedro de Mello, pai da Silvina, para elle mandar aos rapazes que andam a
estudar p'ra doutores em Coimbra. A casa do Mello é boa, mas está
empenhada até aqui.--(O snr. José Francisco poz um dedo na barriga n.º
3, que deu de si como um balão de borracha). Ha-de haver tres mezes que
eu fui levar á filha umas libras que o pai lhe mandou dar para
vestimentas. Eu andava com o olho em cima de uma quintarola bem boa
d'elle, que parte com os meus terrões da Lixa, e não se me dava de lhe
ir dando aos poucos algum dinheiro até lhe apanhar a propriedade que me
faz muita conta. E vai se não quando, meu amiguinho e senhor morgado,
veiu a fidalga á sala assignar o recibo, e p'ra'qui p'racolá, palavra
puxa palavra, eu deixei-me estar ao cavaco com ella e com a prima, e
jantei lá n'esse dia, e fiquei p'ra a noite. A fallar-lhe a verdade nua
e crua, como o outro que diz, eu não sei o que sentia cá no interior!
Que diabo é isto que eu sinto? disse eu cá c'os meus botões. Eu andei
por lá por esses mundos de Christo, vi muita mulata e branca de encher o
olho, tive as minhas rapaziadas, porque em fim, a gente é de carne e
osso; mas nunca me buliu cá por dentro mulher nenhuma como esta! Se o
senhor morgado ouvisse o palavriado d'ella! Deixe vêr se me lembro...
Não encarreiro... Ora deixe estar o senhor.. Eu tenho alli uma carta
d'ella...

--Uma carta d'ella!--interrompeu o morgado a fumegar.

--Pois então? uma carta d'ella, umas poucas; mas ha lá uma em que ella
escreve o mesmo que tinha dito de bocca. Faz o senhor favor de me ir
áquella gavetinha do meio da commoda, e dar-me de lá um caixotinho de
vidro, que tem uns bordados de papel dourado na cobertoira?...

Christovão Pacheco abriu com a mão convulsa a gaveta, e levou á cama do
snr. Andraens a caixinha indicada. O brazileiro tirou um feixe de
cartas, cintadas com uma fita de nastro, abriu algumas, regougando
palavras soltas de cada uma d'ellas, e por fim acertou com a carta que
procurava, e exclamou:--Cá está ella! tal e qual. Ora faz favor de lêr,
que eu não estou hoje muito escorreito dos olhos.

O morgado de Santa Eufemia, entalado, enfiado, tremulo e escarlate até á
raiz dos cabellos, leu o seguinte:

«Meu bom e muito querido amigo. Tanto eu como minha prima Francisca,
ella por amisade reconhecida, e eu do coração affectuoso lhe agradecemos
o valioso mimo com que se dignou brindar-nos a sua generosidade...»

--Isso foi, interrompeu o brazileiro, a respeito de umas pulseiras de
ouro que eu mandei ás duas, que me custaram dezesete libras e mais uns
pósinhos, não fallando na caixota em que foram os estojos que me tinha
custado em Paris quarenta e oito francos. Empreguei bem o meu dinheiro,
não tem duvida! Ora faz favor de continuar com essa trapalhice:

O morgado proseguiu na leitura acerba, limpando as camarinhas de suor
que lhe transpiravam da testa:

«Apreciamos a dadiva já pelo que ella vale, já pelos sentimentos
delicados que ella representa...»

--Isso é bem dito, não é, ó senhor morgado?--interrompeu o snr. José
Francisco.--Lá que ella tem uma cabecinha como não ha outra, isso pau
pau, pedra pedra, a verdade ha-de dizer-se. O que lhe falta é miôlo...
Ora ande lá... vá lendo:

«Nunca eu aceitaria--continuava a carta de Silvina--uma prenda de homem,
que não tivesse uma explicação honrosa. Esta, que eu tenho no meu pulso,
não me faz estremecer a mão de pejo. Os meus sentimentos a respeito de
v. s.ª tenho-lh'os dito tantas vezes, que repetil-os seria abusar da sua
attenção, e descer um pouco da minha senhoril, dignidade. V. s.ª sabe
como eu aprecio as paixões proprias dos meus annos...»

José Francisco Andraens deu dous galões no leito, e clamou:

--É ahi, é ahi onde está a cousa!

Christovão continuou, já deletreando, porque a raiva lhe nublava os
olhos:

«Não creio na duração do amor impetuoso. A violencia da vibração fatiga
as cordas da alma...»

--Olhe lá--atalhou o brazileiro--isso que vem a dizer? esse bocado não o
percebi bem... _A violencia da vibração fatiga as cordas_... que
diabo!...

--Quer dizer, respondeu o morgado com anciado esforço, quer dizer que...
sim... eu acho que isto vem a dizer... que as paixões fortes adoentam a
gente...

--Ah! sim, senhor, ha-de ser isso... eu cá sinto os estragos no
interior... Ora faz favor de vêr o resto.

O morgado leu:

«A minha ambição é encontrar um amigo verdadeiro, um coração sereno, um
homem para quem o mundo não tenha abysmos, dos que tem no fundo a
desgraça da esposa trahida, e esquecida. Receba no coração estas
palavras da sua dedicada e constante amiga, _Silvina_.»

--Que me diz o senhor a isso?--interpellou José Francisco, dando uma
palmada no hombro do entorpecido morgado.

--O que eu lhe digo, snr. José!...--tornou o morgado, atirando a carta
para sobre o leito.--O que eu lhe digo é que esta mulher...

--É uma mulher de pouco mais ou menos--concluiu o brazileiro, atando as
cartas com o nastro--Ora ahi tem... Agora, á vista d'isto, deixe-se
andar por cá atraz d'ella...

--E o senhor continua o namoro?--perguntou o morgado com os olhos
vidrados de lagrimas.

--Qual namoro, nem qual diabo! O que eu queria era melhorar da barriga!


XI.

José Francisco Andraens, mentiste á tua consciencia! Supposto que as
tuas barrigas te mereçam quantos desvelos cabem na alçada do oleo
d'amendoa dôce e da linhaça, o coração em ti é um musculo cheio de bom e
sadio sangue, sangue cruorico que por vezes te borbulha nas arterias, e
reçuma á cara em brazumes de ternura lubrica. Mentiste, José Francisco,
quando respondeste áquelle pobre morgado, que o que tu querias era
melhorar da barriga. Musculo enorme! tu amavas abrasado no lume da
faisca electrica em que se estremece cada uma de tuas fibras, rijas de
vida, saturadas do boi copioso que assimilas, e das tortas de frango com
que pejas diariamente as algibeiras do sobretudo, e das planganas de
farinha de pau e araruta que emborcas todas as manhãs. Commendador da
ordem de Christo! se o incognito da Providencia, chamado _acaso_, te
houvesse dado a faculdade de desafogar em vociferações contra a
fementida Silvina, dirias, no auge da tua angustia, blasphemias contra
as mulheres, injurias insultadoras contra a fidalga de Margaride, e
juramentos, por tua honra, de despresal-a e diffamal-a onde quer que
fosse a tua lingua peçonhenta e a dos teus amigos famintos de detracção
e escandalo. Os que assim procedem, fariam de ti riso, se te ouvissem o
dialogo com o teu amigo de Freixieiro; tu, porém, José Francisco
Andraens, que não sabes os quatro epithetos triviaes com que se vingam
amantes abandonados, ergueste os alçapões da tua alma, e deixaste romper
a torrente represada, com estas palavras: «Qual namoro, nem qual diabo!
o que eu queria era melhorar da barriga!»

Ai! se elle a amava!

Não houve ahi cancro de amor que afistulasse, tão no intimo, coração de
homem. Aquella propria dôr de estomago, rebelde á linhaça, nos está
dizendo finezas do amor de José Francisco, procedida, como é, do uso do
chá a que o forçavam successivas noites que passou em casa do tio de
Silvina. No principio, o hospede cauteloso recusou a chavena; mas a
fidalga teve a impiedade de dizer-lhe que não era extremamente do bom
tom rejeitar o chá, a pretexto de ser bebida nociva ao estomago. O
brazileiro, no dia seguinte, em vez d'uma, tomou tres chavenas, e em sua
casa, _para affazer a tripa_ como elle dizia, mandava cozinhar grandes
chocolateiras de chá, que a moça inexperta chamava o cozimento, e
carregava de folha até sahir negro na fervura. José Francisco conhecia o
veneno, punha a mão no buxo, e, se não dizia como o papa Ganganelli:
«hei-de morrer d'isto...» gritava pela cataplasma de linhaça, mitigava a
inflammação, e de puro amor continuava a immolar o estomago, como fino
amante que não tem mais que dar.

Ha ahi amadores, José Francisco, que cubiçam a pedraria oriental para
construirem um nicho para a mulher amada; pedem a Deus estrellas para
lhe marchetarem a alcatifa das botinhas; queriam a lua e as duas ursas
para o pavilhão do leito nupcial; os coriscos para lhe brincarem aos
pés; os jardins de Semiramis, recendentes de nardo e cardamomo, para lhe
deliciarem o olfacto; o sceptro do globo para a mão soberana, e o
diadema do universo para a fronte inspirada. Farelorio. Homem de
Cozelhas! o teu estomago estragado pelo chá, sobreleva em dolorosa
realidade a tudo quanto inventaram poetas, invejosos dos bens de Deus,
em quanto tu deixas em paz a lua e as estrellas, e compras dezesete
libras de pulseiras, ás quaes a propria Diana caçadora te estenderia os
seus divinos braços.

Ai! se elle a amava!

Por uma tarde de Agosto, na alamêda da Lapa, se andava José Francisco
passeando com o seu amigo visconde dos Lagares. A espaços, o amador de
Silvina desprendia uns como gemidos desentranhados com estridor de
arroto, e o açafroado das belfas, ora se enrubecia mais intenso, ora
desmaiava n'um pardacento, que deu nos olhos solicitos do visconde:

--Que tem vossê, sôr Andraens?!--perguntou o trinchante da casa real,
afervorando o zelo da pergunta com um suave empurrão.

--Que hei-de eu ter, amigo visconde? Vossê bem sabe que eu ando mettido
n'uma camisa de onze varas. A minha sina, que me lêram quando eu era
rapaz, dá-me que eu hei-de passar por um grande desgosto. Até ao
presente, em boa hora o digamos, a cousa não me tem ido mal; d'aqui por
diante como o outro que diz, um bomem deve estar tem-te não caias.

--Mas então vossê que medo tem?--tornou o visconde, variando a mimica
com uma palmada na espadua boleada de José Francisco.

--Homem, vossê casou quando era moço, e deu-se bem com a mulher, e tem
vivido sem sustos; mas eu já cá estão os cincoenta, não sou dos rapazes
da moda, e tenho ás vezes umas lembranças que me derrancam o coração.

--Ora, deixe-se d'isso, sôr Andraens! Pelos modos a senhora, com quem
vossê vai casar, é menina bem comportadinha, e vossê, quando casar,
deixe-se de ir muitas vezes ás assembleas, e pouco de visitas, e de
theatros; metta-se em sua casa a mais a mulher; trate da sua labutação,
e não a deixe pôr pé em ramo verde, sem ir com ella.

--Pois não pozeste!--acudiu José Francisco soltando uma risada aspera de
sacões, que valia bem um programma.--Vossê ainda está n'essa?

A minha mulher, quando eu a tiver, é cá para o amanho da minha casa.
Comer e beber, e vestidos, e enfeites d'ouro, não lhe ha-de cançar; mas
ir a bailes e a comedias... isso, snr. visconde... olhe cá se me vê
algum _T_ na testa! É verdade que a minha futura noiva é toda pronostica
e está avezada ao palavriado dos pantomineiros que não tem senão aquillo
e a sua miça; mas eu logo que case hei-de pôl-a na lei em que ha-de
viver.

A mulher é do seu homem, e casou para tratar-lhe das doenças, e do
arranjo da familia. Quem quer andar á tuna nas comedias e nos balancés
deixa-se estar solteira; não é assim, amigo visconde?

--Assim é; mas não será bom apertal-a muito, amigo Andraens... Isto de
mulheres, olhe que nem o diabo as quiz guardar, e quando ellas entram a
desatremar, adeus, minha vida!

--A desatremar!--clamou José Francisco com iracundia.--Então um homem
não é senhor de fechar as suas portas, e viver como quizer com a mulher
com quem reparte do que tem? do seu dinheiro? do que lhe não custou a
ella a ganhar? do seu dinheiro?

--Vossê diz bem, sôr José; mas é que ella a isso póde dizer que estava
melhor solteira.

--Homem, vossê nem parece visconde n'isso que diz!--atalhou com ironia
pungente José Francisco.--Eu vou já embuchal-o com uma pergunta:--Quanto
vale a tal madama?

--Pelos modos, disse o visconde, acho que pouco tem.

--Por tudo que ella tem não dou eu seiscentos mil réis. A casa é do
morgado, e os bens livres, repartidos por seis irmãos, nem p'ra pagarem
a minha divida chegam. E quanto acha vossê que eu tenho, ó amigo
visconde?

--Vossê, cá segundo os meus calculos, ha-de ter o melhor de cem
contos... p'ra cima que não p'ra baixo.

--Aqui que ninguem nos ouve, snr. visconde, disse José Francisco muito á
puridade, se não fosse aquella tapona que eu levei na costa d'Africa,
podia ter os meus quatrocentos contos; agora, mais cem, menos cem mil
réis a minha fortuna ha-de andar ahi por duzentos contos, e se as cousas
correrem regularmente, cá nos engajados, escuso de bulir no que tenho
apurado. Ora ahi tem vossê. Faz favor de me dizer se a rapariga, que não
tem nada, casar commigo, não fica a ser rica e respeitada no mundo!
Responda a isto, amigo, se é capaz!

--Sôr José Francisco, tornou o visconde com sisuda gravidade, olhe que
eu tenho andado muito mundo, e visto muita cousa. A rapariga, se casa
comsigo, é por que quer figurar. Vossê já não é muito moço, e não sei
como ha-de estar em casa mettido a entreter a mulher. Sabe que mais? se
está na teima de a não deixar ter alguma folga, o melhor é deixar-se
estar solteiro até lhe apparecer moça mais azada p'ro seu modo de vida.
Deixe cá o arranjo ao meu cuidado, que eu conheço muito negociante aqui
no Porto que tem raparigaças como castellos, e vossê não tem senão
escolher.

--Cale-se lá, homem!--interrompeu com azedume e paixão o de Cozelhas--Eu
gosto de Silvina d'uma vez! E, se quer que lhe diga a verdade, já fiz
alguma despeza com ella. Vossê inda a não enxergou?

--Ainda não á minha vontade; mas na semana que vem vou dar um baile só
para a vêr a preceito; já a lobriguei de longe, e alvidou-se-me que ella
era bem tirada das canellas, e que tinha a cinta muito delgada.

--Isso então!--exclamou o snr. Andraens, com os olhos rutilantes de
jubilo, e um sorriso de satyro, que lhe fazia recuar os refegos das
bochechas até ás orelhas, como dobras de cortinas apanhadas.--Bem feita
até alli! O pescoço é branco como a cal da parede; os braços parecem de
leite, e aquillo hão-de ser macios que nem veludo; os olhos, continuou
José Francisco, com precipitada torrente de imagens orientaes, parece
que entram no interior da gente, e andam sempre a bulir nos buracos como
dous grillos; os dentes são da côr d'essa camisa, e tão iguaesinhos que
parece mesmo cousa de fazer crescer a agua na bocca; quando ella anda
pela casa, aquillo é um gosto vêl-a! parece que está a casa cheia! E
ouvil-a fallar?! Vossê não faz uma pequena idéa! Até falla de
Sebastopool! (Vê-se que esta feição do talento de D. Silvina foi a que
mais deu no gôto do snr. José Francisco Andraens.) Em fim, amigo
visconde, mulher como ella não espero topal-a. Tenho-lhe sympathia cá de
dentro; sonho com ella todas as noites; dia em que a não veja, ando como
a cobra que perdeu a peçonha; se adrega d'ella ir visitar alguem, e eu
não a vejo, vou zangado p'ra casa, e já me tem acontecido não ceiar! As
cartas d'ella tenho-as na cabeça, e já comprei um livro muito grande,
chamado... chamado elle... assim uma cousa a modo... de... vossê hade
saber? Aquillo que ensina a escrever direitas as palavras!...

--Uma pauta, ha-de ser pauta...

--Qual pauta, nem qual diabo! é um livro, que ensina a escrever com as
letras todas... Já me lembra: um breviario.

--Ha-de ser isso, ha-de ser isso...--disse o visconde, que apreciou o
ensejo de saber que o breviario ensinava a escrever com as letras
todas--mas, a fallar verdade--continuou ingenuamente o brazileiro--não
me ageito com o tal livreco, e vou-lhe escrevendo como sei. Aqui trago
eu na carteira uma carta, respondendo á d'ella de hontem, a vêr se lh'a
entrego esta noite. Quer vossê vêr, amigo visconde? Eu p'ra si não tenho
aquellas. Ora escute lá; mas o mais acertado é lêrmos primeiro a que
ella me escreveu. Vossê vai ficar pasmado; ora ouça.

José Francisco sentou-se n'um dos bancos de pedra da alamêda da Lapa, e
leu correntemente o seguinte:

                                                        «Meu caro amigo.

«Soube que hontem me procurou. Quiz o meu infortunio que eu não
estivesse em casa. O tio anda a pagar visitas, e ordenou que eu o
acompanhasse. Passei uma noite insipida, lembrando-me que podia passal-a
no remanso duma dôce paz e contentamento d'alma ao lado do homem cujas
tão amantes como paternaes palavras me embalam o somno para os sonhos
d'um delicioso futuro...»

Aqui José Francisco sacudiu na mão o papel, e exclamou radioso:

--Olhe isto, amigo visconde! _os sonhos d'um delicioso futuro_!... Pelos
modos, quer dizer que o que ella quer é uma vida socegada para, em vez
d'andar em visitas, dormir na sua cama á sua vontade. Não é isto?

--Pois elle que ha-de ser senão isso?--disse o visconde gostoso da
modestia consultiva do seu amigo, e ia continuar reflexões a proposito,
quando José Francisco, menos jubiloso, continuou, lendo:

«Estará ainda longe o dia suspirado, meu amigo? Não tem já do meu
caracter um profundo conhecimento? Não se demore a confirmar o destino
que minha alma anceia, porque desgraçadamente a minha vontade não é de
todo livre, e bem póde ser que meu pai, antes da resolução de v. s.ª,
tome outra, contraria aos nossos intentos. Sua do coração, _S._»

--Á troca d'estas linhas do fim--disse o brazileiro um pouco recolhido e
melancolico--é que eu hoje tenho andado azoado, e a suspirar cá de
dentro. Ora escute lá a resposta:

«Meus amores!!! (Na pontuação guardamos a fidelidade que descuramos na
orthographia, cuja liberdade concedemos a José Francisco e pedimos
alternativamente para nós). As vossas letras recebidas ao fazer d'esta
até ao meio consolaram o meu coração saudoso!!... mas as que vem no cabo
da vossa carta penetraram qual duro ferro no meu coração saudoso!! Se
vosso pai não levar a bem o nosso casamento, ó céos!!! tanto faz querer
como não querer o arranjo ha se de fazer, ainda que eu vá ás do cabo;
estai descançada, joven Silvina amada!! Logo que eu tenha a nossa casa
da Lixa arranjada (que andam lá os estucadores e os pintores) estamos
casados e arruma-se d'aqui o pensamento!!! D'este vosso idolatrado até á
morte, J. F. Andraens, vosso futuro esposo.»

--Que tal?--murmurou com certo ar de pudica modestia o erotico
compositor de cartas incendiarias.

--Onde diabo aprendeu vossê tanto, ó sôr José?--disse o visconde com
sincero espanto.

--Isto que aqui vê fil-o de fio a pavio, sem ir ao breviario, amigo
visconde. Ponto é ter cá dentro o amor a puxar pelas memorias.

José Francisco ergueu-se triumphante com miraculosa agilidade; deu
alguns passeios floreando a bengala, e rindo a revezes do espasmo do
visconde, que, em sua consciencia, suspeitava de que fosse a carta
apocripha; mas, por delicadeza, calou as duvidas.

José Francisco tinha desafogado. O arroto já não vinha acompanhado do
suspiro. As tres barrigas funccionavam em toda a sua plenitude
phisiologica. O jubilo doudo da sua esperança sorria aos arreboes que
cintavam o horisonte do oceano; a viração da tarde, brincando na
folhagem dos alamos e acacias, rumorejava um soido mellico aos ouvidos
d'alma d'aquelle amante feliz.

Ai! se elle a amava!

Este expansivo dialogo fôra anterior quarenta e oito horas áquell'outro
que ouvimos entre o brazileiro, e Christovão Pacheco de Valladares.

Quem te ha-de crêr agora, José Francisco Andraens! Que se te dá a ti da
barriga, se tu amas tanto a mulher predestinada?! Descança, anjo do
amor, no teu céo de duzentos contos, que as filhas dos homens lá irão
buscar-te!


XII.

Ai! como elle a amava!

Quantos Paulos, e Romeos, e Othellos mettidos n'aquella côdea grossa de
José Francisco Andraens! Que requebros de namorado, e que furias de
cioso! Aquella é verdadeira paixão que ora se refrigera com orvalhos do
céo, ora se calcina nas labaredas do inferno. A paixão de José Francisco
era assim. Ha pouco vimos aquella alma a derramar-se em blandicias de
Petrarcha; agora arripia o vêl-a a espirrar coriscos da cratera que lá
referve dentro.

Mal Christovão Pacheco sahira, galgando atordoado as escadas quatro a
quatro, José Francisco arrancou de si a cataplasma d'um impeto que faria
lembrar Catão arrancando o proprio redenho. Saltou para o chão, calçou
as mouras escarlates que lhe serviam á farta de tapete, lançou sobre as
espaduas um capote de camelão de quatro cabeções, enfiou as mangas do
mesmo, e sentou-se á escrivaninha, resfolegando vaporadas pelas ventas,
que nem javali monteado por lebreus. A criada entrava n'esta occasião
com a terceira camada de linhaça, e fez pé atraz, enfiada de puro
horror.

--Que queres tu, moça?,--mugiu José Francisco.

--São as papas...--balbuciou a espavorida criada.

--Não quero mais papas. Vai chamar o meu compadre Amaro, e que venha já
de marcha para ir com uma carta a Margaride.

O brazileiro escreveu na pojadura da veia. O traslado da carta, com a
authenticidade do de todas as outras, não pude havel-o, apesar de suadas
canceiras que este paiz tão sovinamente remunera aos indefessos obreiros
das suas glorias. O que pude tirar a limpo foi ser a carta dirigida a
Pedro de Mello, pai de D. Silvina. José Francisco lembrava ao fidalgo a
sua divida de um conto oitocentos e vinte e cinco mil e setenta réis que
lhe emprestára sobre hypotheca da quinta da Lixa. Dizia mais que não
podia continuar a remetter as mezadas para os academicos da
universidade. Instava pelo prompto pagamento do seu credito, ou
trespasse da quinta hypothecada. Ameaçava-o com o poder judiciario, e
terminava com estas quatro linhas, unicas authenticas:

_Pr'ámor da sua filha é que é tudo isto. Se ella andasse direita comigo
outro gallo lh'avia de cantar. Assim o quiz, assim o tenha. Comigo não
se manga, e está arrumada a pendencia._

Ai! se elle a amava!

A carta partiu, e José Francisco, aplacado o maior afôgo da convulsão,
chamou a moça, pediu uma tigela de tapioca, e comeu á tripa fôrra.

Cotejemos agora com os do negreiro os ciumes do morgado de Santa
Eufemia. Egas de Encerra-bodes esperava o primo no hotel, curioso de
saber o fim a que o chamára o brazileiro. Christovão contou lealmente o
acontecido, já barafustando furioso, já enternecendo-se a lagrimas. O de
Matto-grosso descompunha-se em gargalhadas, e nem os prantos do primo
lhe embargavam as guinadas de riso. Começava a desconfiar o de Santa
Eufemia, quando Egas, composto o gesto e a postura, fallou assim:

«Um Pacheco Valladares a correr parelhas com um José Francisco na
conquista d'uma mulher! Um neto do governador de Cochim a disputar meças
de merecimento com um chatim de negros! um moço no mais florido dos
annos, gentil de sua pessoa, sacrificado á mazorral caricatura, que ahi
está symbolisando uma fortuna tão besta quanto assignalada das vergoadas
do látego com que o infame de Deus e dos homens fazia espirrar sangue
das costas dos escravos!... Primo Christovão, torne sobre si, peje-se
d'essas lagrimas que ahi derramou, e que eu escarneci para não tomar
ignominioso quinhão da sua dôr aviltante para evos e para vindouros! Que
mulher é essa, a neta do sargento-mór d'Amarante, que anda ahi a
chafurdar nos chiqueiros da sua cubiça um appellido que usurpou?
_Mello!_ Quem lhe deu a ella _Mello_?! Seu visavô era Antonio Gonçalves;
seu avô era Francisco Antunes Gonçalves; quem enxertou no pai esse
pomposo appellido? Silvina Antunes é como ella se chama, essa farrapona
que mendiga para uma carruagem e seis vestidos o preço dos ultimos doze
pretos que José Andraens mandou acorrentados ao mercado. Primo
Valladares, neto de Heitor Valladares, bisneto de D. Mafalda Pacheco e
Alvim, açafata illustre da côrte do snr. D. Pedro 2.º, descendente dos
Alvins de Braga, onde casou o condestavel D. Nuno Alvares Pereira!
primo, lembre-se de quem é, e esmague debaixo das solas das suas botas o
coração, se sente que uma gotta de seu nobre sangue se ha degenerado no
vilipendioso affecto que prodigalisou á esposa promettida de José
Francisco!»

Este aranzel fez bem ao coração do morgado. Entrou em si, coçou-se com
ambas as mãos algumas vezes, estirou os braços convulsivos com os punhos
cerrados, e exclamou de golpe:

--Que a leve o diabo!

Egas estreitou o primo ao coração com vehemencia, levantou-o tres vezes
em peso, e bradou por fim:

--Reconheço o meu sangue!

Sem embargo d'isto, o morgado de Santa Eufemia precisava de ar, abriu a
janella, sorveu tres grandes haustos, e repetiu a phrase que provára ao
de Matto-grosso a identidade da sua estirpe:

--Que a leve o diabo!

N'este comenos, vinha atravessando o largo da Batalha Leonardo Pires.

--Lá vem aquelle!--exclamou Egas--Vou chamal-o para lhe dar a noticia
que ha-de ser muito agradavel ao seu amigo Jorge. Olé! snr. Albuquerque!
_Psio_.

Pires fez uma continencia militar com o chicote.

--Suba cá--tornou o fidalgo de Entre-ambos-os-rios--temos que
contar-lhe.

--Viram aqui passar a Francisca da Cunha?--perguntou Pires.

--Não.

--Ando-lhe na pista, como galgo que perdeu a lebre, que eu desconfio bem
que seja gata, que a minha paixão me dá por lebre.

--É muito possivel...--redarguiu a rir o de Matto-grosso--Suba, e verá
que não está longe da verdade.

O da Maya circumvagou com a luneta em torno da praça duas vezes, e
subiu.

--Então que temos?! Dou-lhe parte que o meu amigo Jorge Coelho não tarda
ahi, e que o duello, se os cavalheiros insistirem, ha-de consummar-se.

--Quem falla aqui em duello?--acudiu Egas--Escreva ao seu amigo, e
diga-lhe que se deixe estar com a mãi e com o padre lá na sua aldêa, se
não quizer vêr Silvina, o anjo de candura, de braço dado com as fronhas
carnosas de José Francisco Andraens...

--Quem é José Francisco Andraens?--interrompeu Leonardo.

Egas de Encerra-bodes compelliu o primo a contar a historia, que, d'esta
feita, não sahiu com intermittentes de lagrimas. Era de vêr com que
graça soez o amante ultrajado ia já apimentando os sarcasmos detraidores
de Silvina, e os projectos de cynica desforra que elle offerecia ao
parecer dos seus amigos, projectos que, realisados, collocariam José
Francisco n'uma situação tão irrisoria como bemquista do siso commum, o
qual é uma cousa muito ao envez do que por ahi nos grandes alcouces da
opinião publica se denomina senso-commum.

O programma do morgado de Santa Eufemia foi applaudido com razões pouco
para se estamparem. Leonardo Pires disse que não avisava o seu amigo
para não perder occasião de o ter no Porto alguns dias, e cural-o mais
facilmente com a vista do espectaculo hediondo. N'isto, como estivessem
os tres á janella, viram assomar no topo da rua de Santo Antonio
Silvina, e Francisca da Cunha, seguidas de um criado de farda.

--Ellas ahi vem!--disse Pires, e sahiu a encontrar-se com ellas. O
morgado de Santa Eufemia, a rasoavel distancia, quando as damas vinham
com os olhos postos n'elle, fez recuar o primo, e fechou-lhes a janella
na cara. Silvina ria tanto como a prima, quando Pires, com o chicotinho
em arco, e quasi aos pulinhos como funambulo que vai fazer a sorte, se
lhe atravessou no caminho, dizendo:

--Criado de vv. exc.as

--O snr. Pires!--disse Francisca toda graça e affabilidade
ironica--Faziamol-o no seu _chateau_... Que é feito de si?

--Agoniso, minha senhora, agoniso.

--Ai! que funebre vem!--disse Silvina--póde-se agonisar com esse rosto
tão de vida, e rubicundo?

--Póde-se padecer muito, minha senhora, com o rosto rubicundo--replicou
Pires--Eu sei de creaturas, metaphoricamente chamadas humanas que
soffrem muito, sem impedimento das massas de toucinho que as envolvem.
Darei a v. exc.ª um exemplo. Conheço uma metaphora chamada José
Francisco Andraens... (Silvina córou e franziu a testa) monstro cevado
em sangue humano, que elle distilla em banha e asneiras, o qual
monstro,--ninguem o ha-de crêr, minha senhora--neutralisa o combustivel
da paixão com o refrigerante das cataplasmas de linhaça. Ahi tem v.
exc.ª um exemplo que justifica de sobra a minha agonia.

--Vamos, prima, que são horas--disse Francisca da Cunha, condoida do
enleio desacostumado de Silvina.

--Pois sim, vamos--disse esta, corrida de modo, que incutiria compaixão
em homem que não fosse Pires.

--Dão-me as suas ordens, minhas senhoras?--disse elle,
ladeando--Ah!--continuou Pires de sobresalto--esquecia-me dizer á snr.ª
D. Silvina que o nosso Jorge vem ahi...

--Ah! vem?--disse machinalmente Silvina.

--Vem, sim, minha senhora, a requerimento meu, por que lhe conheço
grande curiosidade de naturalista, e desejo mostrar-lhe José Francisco
Andraens, a hyperbole de enxundia, monstro, de quem eu tive a honra de
fallar a vv. exc.as, e que até ouso recommendar-lhes, para que vv.
exc.as admirem não só o bruto, mas o effeito prodigioso da linhaça.

O enleio de Silvina redundou em colera.

--O senhor, disse ella, está-me insultando por que eu e minha prima,
confiadas na cortezania da sociedade em que vivemos, sahimos sem um
homem, cujo desforço nos desafronte com honra.

--Dizes bem, prima--acudiu Francisca, tambem colerica por
contagio--Deixemos o villão.

Pires, quando lhe voltaram as costas, deu dous passos em seguimento
d'ellas, e tomou-lhes o passo.

--Continua a petulancia?--disse Silvina irada--olhe que eu trago um
criado!

--Com libré emprestada, minhas senhoras?--disse o imprudente fidalgo da
Maya, que trazia os ouvidos cheios das diffamações geanologicas d'Egas
de Encerra-bodes.--Snr.ª D. Silvina, eu fui quem lhe apresentou a nobre
alma de Jorge Coelho, que v. exc.ª quiz estragar. Empeçonhou-lh'a, mas
não ha-de enlameal-a. Quem vinga Jorge sou eu, Leonardo Pires de
Albuquerque. Saiba v. exc.ª que José Francisco Andraens é meu. Aquelle
problema de carne hei-de desatal-o eu com o escarneo, e v. exc.ª ha-de
ficar submersa nas avalanchas d'aquella montanha de cebo. Agora nós,
snr.ª D. Francisca da Cunha. V. exc.ª, que só sabe lêr as cartas do
linheiro das Hortas, e que tem tido o indiscreto recreio de me andar
ridicularisando _no boudoir_ das suas dignas amigas, ou se encastella
com o linheiro das Hortas lá no seu burgo de Traz-os-Montes, ou tem de
esconder-se nas rimas de estopa em que seu futuro esposo lê de pernas ao
ar as suas epistolas. Sem mais.

Pires, vibrando no ar estalinhos com o chicote, entalou a luneta no olho
esquerdo, e foi expandir o jubilo em folgada palestra com os morgados,
que o espreitavam.

Silvina, quando entrou n'uma casa nobre de Traz da Sé, soffreu um
insulto nervoso que desabafou em gritos. Queria Francisca da Cunha
consolal-a; mas estava esperando de instante a instante ser assaltada
tambem do mesmo insulto. As senhoras da casa á competencia desfaziam-se
em desvelos; mas Silvina respondia apenas: «hei-de vingar-me!»

Desiderio Erasmo, como sabem, escreveu a «Apologia da tontice.» Eu não
me afouto a encarecer a de Leonardo Pires; porém, assim como os
regedores das republicas nobilitam com mercês e titulos não só a
estupidez--isso é o menos--mas a infamia soberba d'uma opulencia cevada
e medrada em cruezas e deshumanidades, que muito se aventurarmos um voto
de louvor a alguns selvagens da civilisação, doudos providenciaes que
atiram a vaza do insulto a caras já de si tão sujas, que não ha medo de
enferretal-as?

Alguns homens, como Pires, seriam muito proveitosos n'uma sociedade como
esta. Houve-os sempre com differentes nomes e appellidos. Na
antiguidade, chamaram-se Aristophanes, Diogenes, Marcial e Plauto; na
meia idade eram os prophetas, os padres da igreja, e, com menos caução
de suas prerogativas censorias, os histriões palacianos. Na correnteza
d'esta geração por excellencia policiada, mas de todas a mais gafa do
que ahi se chama «ridiculo» e do que mais é para chamar-se lastima, ha
muito quem tire a campo de zombaria os «ridiculos» do mundo; mas ninguem
se vê copiado n'elles, e os copistas de modo o fazem que fique salvo o
orgulho de cada azêmola que fita a orelha ao ornejar da copia, mas não
responde. A isto é o que ahi dizem «guardar as conveniencias»: á mesma
cousa, chamavam d'antes «guardar as costas.»

Seja o que fôr, a satyra assim não vinga fructo de servir á geração que
está nem á porvindoura.

Satyra prestadia, se alguma houve, é a de Leonardo Pires. Eis ahi um
doudo, que tolos e sisudos lançarão de suas casas com horror; e todavia
qual de nós não sente um Pires, na consciencia, a travar-se de razões e
murros com a nossa soberba? Seis Leonardos activos no Porto purificavam
o ar pestilencial que para alli veiu das terras de Santa Cruz. Na idade
media, os tabardilhos, as pestes fulminantes; no seculo 16.º o verme
roedor que desmedula os ossos através de vinte gerações que hão-de
lembrar-se sempre de Colombo pelo mimo; no seculo dezenove, mais que
nunca, a peste do Brazil, de que adoecem espiritos empinados em seu
orgulho como o de Silvina e Francisca da Cunha.

D'um lado Leonardo Pires; de outro lado José Francisco Andraens, e o
linheiro das Hortas. Quem levará a melhor? É tola a pergunta. Ha-de ser
o linheiro das Hortas, e José Francisco.


XIII.

O apostolico e dicasissimo padre João Coelho, desde Vallongo até
Amarante, excedeu-se a si proprio prégando ao sobrinho o melhor e a
maior parte do que disseram philosophos, santos padres, moralistas e
casuistas ácerca do amor mundanal e da mulher. Jorge não replicava, por
que o não escutava. O egresso, tomando o silencio como victoria, tirava
dos corollarios theses novas, que ia defendendo com tamanha profusão de
tiradas latinas que, a ser verdade o que elle disse abordoado a Seneca,
Santo Agostinho, Euzebio cezariense, e Bredembachio, o amor mundanal e a
mulher são cousas muito peores do que pensa o vulgar da gente. Padre
João não era erudito que sómente fizesse praça dos exemplos que
authorisa a historia. O pulso rijo da engenhosa memoria d'elle entrou
nas idades fabulosas e trouxe pelas orelhas certos heroes que os poemas
orphicos e os homeridas nos encamparam como sujeitos apresentaveis na
boa sociedade. Marte, segundo o padre, era um adultero; Apollo um
valdevinos que se andava lamuriando na piugada de Daphne; Hercules um
maricas que fiava de cocoras na roca de Omphale; as heroinas da odissea,
da iliada, e das tragedias de Eschylo um femeaço impudico e deslavado.
Do Olympo desceu padre João aos antigos imperios, e poz pelas ruas da
amargura Xerxes, Ciro, Dario, Holophernes, Absalão, Sichem, Salomão,
Herodes, Marco Antonio, e muitos outros que pelos modos não deram boa
conta de si, ou as mulheres não deram boa conta d'elles.

O leitor de certo se convertia ouvindo o egresso; mas Jorge Coelho ia
tão dentro em si, tão lacerado pelo abutre da paixão sem esperança, que
as palavras do douto velho lhe eram como esponja de fel e vinagre
espremida nas chagas. Pernoitaram na Amarante, onde chegaram ao fim da
tarde do segundo dia de jornada. Em quanto o egresso entrou no velho
templo a fazer oração a S. Gonçalo e visitar os cubiculos onde viveram
santos varões da sua creação, Jorge foi sentar-se á beira do Tamega, e
ahi rompeu em pranto desfeito, com os olhos postos nas ondulações das
serranias para além das quaes lhe ficava o Porto. O padre sahiu
indignado do mosteiro praguejando, menos evangelicamente que de seu
costume, contra o governo que permittia á municipalidade amarantina que
as vivandeiras do destacamento aquartellado nos dormitorios do mosteiro
dançassem ebrias e meio nuas a canna verde e a sirandinha no refeitorio
e na claustra. É de crer que as mulheres recebessem com galhofa o
egresso venerando, cujas botas de borla e chapéo tricorne deviam de
parecer cousa de entrudo ás bacchantes que a onda da civilisação
revessou no remanso dos monges, em quanto outra engolfou os monges no
porto suspirado da sepultura.

Ahi me vou eu sahindo com o impertinente vêzo de lastimar os frades!
D'esta vez hei-de represar a piedade com que n'outros livros tenho
desdourado, no conceito de muita gente, os meus altos espiritos de
operario que trabalha á candeia do seculo XIX. Que me importa a mim que
nos cubiculos do mosteiro de S. Gonçalo se alojem as vivandeiras do
destacamento, e que na claustra sobre as cinzas dos frades vão ellas,
repletas de vinho e despejo, dançar a sirandinha e a canna verde? Se eu
disser que no tempo dos frades não se viam semelhantes desacatos, hei
grande medo que me ponderem que outros desacatos mais attentatorios da
religião de Jesus ahi se viram no tempo em que os frades comiam no
refeitorio, e medravam nas cellas, onde agora coze o seu vinho o
mulherio da tropa. Se o padre João Coelho quizesse, esse é que podia
responder a preceito; mas, para bem do leitor, ninguem n'aquella hora se
lhe atravessou com argumentos, estando elle na estalagem da Amarante,
sentado no escabello, a dizer cousas de sorte magoadas, a respeito da
profanação do convento, que todo o auditorio chorava, sendo tres das
carpideiras as mais lubricas bailarinas da claustra.

Entretanto, Jorge escrevia a Leonardo Pires, dizendo-lhe que resolvera
não escrever a Silvina, em quanto lhe durasse a impressão amarga que
recebera das revelações do tio, impressão immorredoura, dizia elle.
Recommendava-lhe que se informasse da verdade d'aquellas revelações, e
sem piedade lhe transmitisse o excesso de peçonha que havia de matal-o.
Ajuntava elle que já não amava Silvina; mas que não podia despresal-a; e
que entre o amor e o despreso estava o odio, serpente insaciavel que se
lhe enroscara no coração.

Esta serpente de que se queixa Jorge Coelho é uma alimaria a que os
poetas de animo socegado chamam cupido, deus de Gnido, de Paphos, e Amor
em estilo chão. Permitte a rhetorica aos amadores enraivados denominar
serpente a cousa que d'um dia para outro se transforma em rola gemedora.
Não é raro encontrar sujeito que tem aninhado no seio um viveiro d'estas
serpentes, as quaes, depois de cuspirem a peçonha, n'uma carta arrufada,
em meia duzia de adjectivos azedos como malagueta, metamorphoseam-se em
pombal de candidissimas pombinhas que se catam e beijam umas ás outras
com langorosos requebros. Da metamorphose o que fica é a peçonha
instillada e derramada na circulação sanguinea. Na correnteza do tempo,
vem esta peçonha a consolidar-se no coração, e d'ahi procedem as
postemas, que degeneram em aleijões, commummente denominados
scepticismo, cynismo, devassidão, libertinagem, impudencia, e outras
molestias pegadiças. As rolas e as pombas, desde que o coração
inficionado as afugenta, passam para o dominio do estilo, e concorrem
para que no banquete d'um amor revelho, gotoso e glutão hajam sempre
aves.

Vem a pêllo fallar da gorda gallinha que padre João trinchou na
estalagem da Amarante, em quanto Jorge Coelho, recolhido ao seu quarto,
se atirava vestido sobre o leito abafando contra o travesseiro os
soluços da afflicção, que o egresso, tão de boa fé como crente na
efficacia da historia, julgára minorada com a quarta dissertação que
fizera ácerca do amor, segundo a carne, e nomeadamente do amor em Roma
na época dos Cezares.

Citou versos de Marcial e Juvenal, como prova de que o amor era mau em
toda a parte; e, sem elle querer, tambem provou que nas livrarias dos
mosteiros entravam livros de moralidade muito equivoca. A ultima these
de padre João Coelho assentava n'esta proposição de S. Paulo: «Quem não
ama está na morte;» mas tão engenhosamente o erudito frade torceu o bico
ao prego que as conclusões eram todas contra o baixo amor terreal, e
pregoeiras do amor divino, que elle orador por sua parte cumpria á
risca, sem embargo de se pascer em delicias na choruda gallinha, em
quanto o sobrinho abafava de dôr no quarto. Esta é a grande vantagem dos
que andam empinados em amores do céo, que nunca deixam de comer ás suas
horas, e de digerirem em regalados somnos a materia bruta que lhes não
pesa na consciencia. Não ha pois duvidar de Montesquieu (parece que foi)
que disse--que a religião christã, depois de nos felicitar n'este mundo,
nos segurava a felicidade do outro.

Padre João dormiu nos coxins macios da sua limpa consciencia; Jorge,
apenas o tio se fechou com o breviario, e adormeceu ao quarto psalmo
penitenciario (um egresso repleto de gallinha cozida a resar um psalmo
penitenciario! parece um paradoxo! Tomára eu saber se David compoz
aquellas lastimas antes que as caricias de Bethsabé o enfastiassem!)...
Estas incisões intermittentes hão-de perdoar-m'as os leitores que
souberem o que é escrever um romance n'um carcere, onde já não ha
carrasco, mas existe o espirito do carrasco identificado a uma cousa que
nós cá os assassinos e os salteadores denominamos as _authoridades_, que
medram no cêvo do erario, uns chamando-se procuradores do rei, outros
carcereiros, outros chaveiros, outros guardas, a mesma familia
representando o rei de theor e modo que fazem odiosa a palavra do
symbolo que lhes legitíma a crueza, a barbaridade que lhes tem
ladrilhado o coração, e muitas vezes a infamia que se abona com a
justiça, essa divina irmã dos anjos, que os cafres trazem tão nusinha e
pustolosa por sobre os esterquilinios d'elles.

Agora é que me eu perdi de todo... Perdido devéras andava aquelle pobre
Jorge Coelho, pelas ruas da Amarante em quanto o padre dormia o somno do
justo. Chegou á celebrada ponte, curvou-se no parapeito, e teve tentação
de precipitar-se. Foi instantaneo o accesso de loucura. Jorge viu a
imagem de sua mãi no scintillante reverbero da lua que se espelhava no
Tamega, Levantou os olhos para o céo, e disse:

«Ó Providencia Divina! leva esta dôr ao coração de minha mãi, para que
ella, a santa, peça por mim!»

Eram onze horas d'aquella formosa noite de Setembro. Soava apertada nos
rochedos a torrente, que scintillava em escamas de prata. De longe vinha
a toada soidosa d'uma flauta que tocava a chacara popular dos «Dous
renegados.» Jorge amava desde os doze annos os versos maviosos e
truculentos d'aquella canção de amor que chora como anjo e obsecra como
demonio. Proferiu a letra cadenciando-a com a flauta, e rematou
chorando, já não em ancias, mas suavissimamente, como se o espirito de
sua mãi lhe alcançasse do céo a mercê das lagrimas que desopprimem.

Um vulto entrou na extremidade direita da ponte: era uma das mulheres
que padre João vira com santa indignação, a tripudiarem sobre as ossadas
dos monges na claustra. Veiu direita a elle, e pediu-lhe uma esmola.
Jorge deu-lhe tudo quanto tinha. A mulher viu bastantes moedas de prata,
e, estupefacta ou douda de jubilo, nem se retirava nem agradecia.

--Vá-se agora, embora, mulher--disse Jorge, sem enfado, mas desejoso da
solidão que tão suave lhe estava sendo.

--O senhor dá-me este dinheiro todo?!--disse a mulher, que os homens
chamam perdida, e que não o estava, nem o podia estar aos olhos do seu
Creador.

--Dou, sim.

--Bem haja, meu senhor!--tornou ella, com lagrimas na voz--já tenho com
que ir para a minha familia. Eu sou uma desgraçada, que vim do Algarve,
ha tres annos, fugida a meus paes, com um rapaz meu parente, para
casarmos onde podesse ser. Elle requereu ao commandante; mas não teve
licença para casar commigo; eu depois fui lançar-me aos pés da senhora
do commandante, e consegui licença. Quando estavamos muito contentes,
mandei buscar a minha certidão e mais papeis á terra; mas disseram-me de
lá que nós eramos primos, e não podiamos casar sem dispensa. Não
tinhamos dinheiro para ella, e fomos vivendo até vêr se Deus dava
remedio. N'este entrementes, o meu primo namorou-se de outra, e
deixou-me a morrer á fome. Agora com este dinheirinho vou já amanhã para
o Porto, e de lá vou n'um hiate para Tavira, e vou botar-me de joelhos
aos pés de minha mãi.

--Pois vá, não mude de resolução, e faça por ser boa filha--disse Jorge
com maviosa caridade.

--O senhor será um anjo do céo?--disse a feliz creatura lavada em
lagrimas.

--Não sou anjo do céo, não... Vá com Deus.

A mulher retrocedeu, e foi ajoelhar diante de um antiquissimo retabulo
de granito em que na fachada do templo de S. Gonçalo sobresahem os
grosseiros relevos de uma Senhora com Jesus morto no regaço. Jorge viu,
ao clarão sereno da lampada que pende sobre a imagem, a mulher
ajoelhada. Banhou-se-lhe o espirito de um contentamento, que não poderia
existir na terra, se acima d'este tremedal, não velasse um Deus as
acções do homem que póde erguer-se do seu rasto até hombrear com os
anjos.

Entre Jorge e aquella peccadora que resava, avultou ainda a imagem da
mulher pura, a mãi, a santa, onde chegára talvez a revelação das penas
do filho. Silvina, n'esse momento, nada era na vida de Jorge. Nem a
poesia da paixão pôde disputar o espirito do mancebo á poesia da
caridade.

Entretanto, o varão justo, o padre João Coelho, acordava com a digestão
consummada, voltou-se para o outro lado, e reatou a nota quebrada de um
beatifico ronco.


XIV.

As prelecções de historia antiga que padre João fizera, desde o Porto
até casa, não tocaram o juizo nem o coração de Jorge; mas as singelas
palavras da indulgente mãi, e as caricias dos irmãos, acalmaram algum
tanto a febril paixão do academico. D. Antonia, de proposito, passou com
o filho no adro da igreja rural, quando, ao fim da tarde, se celebrava
dentro um baptisado. Entraram na modesta igrejinha, e foram ajoelhar no
arco. A viuva, depois que orou, foi sentar-se n'um banco tosco da
capella-mór, e chamou para junto de si o filho.

--Senta-te aqui, Jorge;--disse ella--quero fallar com o meu filho ao pé
da sepultura de seu pai. Não a esqueceste ainda, pois não?

Jorge desceu a vista sobre uma das lages que formavam o estreito
pavimento da capella-mór. D. Antonia continuou:

--Tenho fé em que o meu coração n'este lugar, onde ha cinco annos venho
chorar todos os dias, te saberá dizer o que teu bom pai te diria, filho.
Se Deus me não fizer o milagre de ajuntar ao teu espirito mais dez
annos, serão perdidas as minhas consolações, e tu as tomarás como
conselhos importunos...

--Não, minha mãi...--atalhou Jorge, commovido pelo terror santo do
local, e pela imagem de seu pai, em cuja fronte morta elle dera um beijo
cinco annos antes--os seus conselhos...

--São conselhos de mulher, conselhos de mãi, que quer desterrar da tua
alma lembranças d'outra mulher que me rouba o coração de meu filho. Deus
levou-me teu pai, Jorge; e Deus não me podia enganar quando d'aquella
tribuna, estando eu ajoelhada sobre esta lousa, me dizia que a
compensação da boa alma que chamou para si, eras tu. Lembras-te d'uns
beijos fervorosos que eu te dava, quando erguias as mãos ao pé de mim
n'este mesmo sitio? Não te deixava eu a face molhada de minhas lagrimas,
Jorge? Lembras-te?

--Lembro-me, minha mãi... E porque está chorando agora?--disse
compadecido o moço.

--Parece-me que é saudade das dôres de então, filho... As de hoje são
inconsolaveis... Nunca tive orgulho peccaminoso, Deus sabe que não; mas
orgulho do meu dominio no teu animo, Jorge, tinha-o muito grande; e
agora vejo que pequeno valor tem o dominio de mãi, logo que um acaso
infeliz depara aos dezoito annos de uma criança os affectos verdadeiros
ou simulados da mulher que nunca se viu, nem conheceu nos brinquedos da
infancia. Isto é triste! A natureza poderá justificar este vulgar
infortunio; mas a piedade e o dever choram-se, e não ha razão que
convença uma mãi a conformar-se com a desvalia em que tu tiveste os meus
rogos durante tres mezes.

--Eu não desvaliei os seus mandados, minha mãi--disse Jorge em tom de
carinhosa submissão--Havia uma corrente invencivel que me prendia á
desgraça...

--E partiu-se essa corrente, filho?... O teu silencio diz-me que não...
Olha, Jorge... se essa mulher fosse digna de ti, eu dizia-te que me
trouxesses para casa mais uma filha; se ella fosse virtuosa e pobre,
seria um thesouro, na nossa casa onde sobra o necessario; se fosse rica
e creada nas regalias da sociedade, aconselhava-te que a não
sacrificasses á nossa solidão e pobreza comparativa; mas, filho, essa
menina, que te enganou o coração, não tem virtudes que suppram a
riqueza, nem a riqueza que possa compensar o coração estragado e sem
escrupulos do homem, que não és tu, mercê do Senhor! Antes de teu tio ir
ao Porto, já eu sabia, meu filho, quem era Silvina. Nada disse ao padre
do que sabia, quando lhe pedi que fosse em meu nome pedir-te que viesses
para nós, que te choravamos. Tu sabes que eu tive uma companheira no
convento de Braga, menina de muitas virtudes, que mereceu a Deus casar
com um negociante do Porto. Foi a ella que eu escrevi pedindo-lhe
informações da tua vida, e não se demoraram. O marido d'esta senhora
procurou-te varias vezes, e nunca pôde encontrar-te. Andavas perdido na
tua cegueira, meu pobre filho! Abre os olhos da tua alma, e attenta nas
lagrimas da pobre mãi que não póde contar com o amparo de tres meninas,
nem ellas contam com outro amparo senão o teu. Não achas tanta gente boa
a pedir-te amor, filho? Tudo nos queres tirar a nós para o atirar aos
pés de uma mulher que d'aqui a um anno será na tua memoria apenas um
remorso, senão fôr antes uma vergonha?

--Uma vergonha!... atalhou Jorge, mais ferido na vaidade que
surprehendido da qualificação.

--Pois qual é o nome que dá o mundo ás paixões que humilham os que as
soffrem, e mortificam uma familia que não espera d'ellas senão
amarguras, desgraças, e abysmos?! Jorge, meu querido filho, faz um
esforço de vontade! Vence-te, que podes. Ajuda a efficacia das minhas
orações. Em nome d'estas cinzas queridas, peço-te em nome de teu pai,
que tantas vezes me disse, quando te via triste, aos quatorze annos;
«não tires da tua vista este menino, que ha-de perder-se, se entrar no
mundo, d'onde me eu salvei com o teu amor»; é teu pai que te pede pela
minha bocca, Jorge, esquece essa mulher; não lhe escrevas, os teus
amigos que te não fallem d'ella; absorve-te no meu amor; folga com a
innocencia de tuas irmãs: volta a Coimbra quando o desejo do estudo
renascer no teu animo socegado; entrega-te de novo aos teus prazeres da
caça; restaura a tua saude, que trazes tão quebrantada; eu pedirei aos
amigos da nossa casa que a frequentem mais a miudo; teu tio ha-de saber
conversar com o teu espirito instruido; compra os livros que quizeres;
satisfaz todos os caprichos que te não arruinem a saude nem a alma; tens
a duas leguas d'aqui uma villa onde ha sociedade, e familias que te
estimam. Lucta, filho, deixa triumphar tua mãi do prestigio d'essa
mulher, que nunca te deu uma lagrima, nem sabe o travor das que tu me
tens feito chorar...

--Basta, minha mãi--murmurou Jorge, levando aos labios a mão tremula da
magoada senhora--Luctarei, e... morrerei, se não vencer.

--Vences, filho, vences! exclamou D. Antonia com a vehemencia da sua fé
e da sua razão.--Vences, porque Deus não dá ás más paixões o poder de
matarem uma creatura, que póde desafogal-as nos braços de sua mãi.--E
erguendo as mãos para o altar, disse com a voz convulsiva--Graças, meu
Redemptor!

Anoitecera. Padre João, que era o vigario da freguezia, andava
discretamente passeando no adro, e entretendo os sobrinhos para não
interromperem a pratica, cujo assumpto elle adivinhara. D. Antonia
ergueu-se, tomou a mão do filho, e sahiu da igreja. No adro, estavam
brincando as tres irmãs de Jorge, a mais velha das quaes tinha nove
annos, e o irmão mais novo que nascera depois da morte de seu pai.
Saltaram os mais novos aos abraços á mãi, e as duas meninas ao pescoço
de Jorge, com grande alarido. Sentou-se elle nos degraus do cruzeiro do
adro, e tomou para sobre os joelhos as duas meninas, que á fina força
queriam ennastrar-lhe nos cabellos as suas rozas brancas. D. Antonia
contemplava o grupo com o semblante banhado de alegria. O egresso,
debruçado sobre a parede baixa que contornava o adro, fallava com o
mordomo da festa de S. Sebastião ácerca do numero de padres e do
prégador que devia chamar. Os meninos mais novos já tinham largado a mãi
para apedrejarem as andorinhas que chilreavam em redor do campanario,
cuja sineta unica era movida debaixo por um cordel, que os pequenos a
muito custo respeitavam por alli estar o tio padre.

Resolvido o negocio da festividade do orago, padre João tirou pela
corda, e tocou as nove badaladas das Ave-Marias. Todos ergueram as mãos,
e resaram em voz alta. «Ora, Deus nos dê boas noites.»--Disse o padre.
Rodearam-no os meninos a beijar-lhe a mão, e Jorge tambem depois que sua
mãi lhe deu a fronte.

Terminado este lance, cuja poesia santa não ha pedil-a a corações que
deram com ella no pégo da lama brilhante onde dizem que a poesia está,
Jorge Coelho fitou os olhos no occidente, e reconheceu o anoitecer dos
seus dias passados; viu o boleado pardacento das serranias longiquas que
lhe estavam redizendo os pensamentos da sua infancia; ouvia ainda as
vibrações do sino que repicava no baptisado de seus irmãosinhos, e
dobrára na morte de seu pai, reconcentrou-se; sentiu uma secreta
amargura que não era angustia de saudade, nem pavor de previsões
afflictivas... Que era, pois, esse vulto lá muito ao longe, ao pé
d'aquella myriada de estrellas que repontava na cumieira da montanha?
Era a imagem de Silvina ainda perto do céo, porque de lá vinha cahindo,
bella como os anjos que lá nasceram; e, rebeldes á piedade, á virtude, á
suprema graça, aqui se despenham, e despenhados vencem ainda disputando
ao Senhor as almas immaculadas. Era Silvina, toda de festa e risos,
reptando-o á lucta com um sorriso affrontoso, e esgares de escarneo ao
protesto santo jurado sobre a sepultura d'um pai, e assellado com
lagrimas de mulher sem macula. Era a visão maldita, a fada inexoravel
dos que vem a esta hecatomba, predestinadas victimas, que o mundo
sacrifica e cospe.

Era Silvina, sempre Silvina, a dizer-lhe:

«Que mulher viste mais linda que eu!? Quem te deu philtros de mais
saborosa peçonha!? Vê se te sorriem uns labios com mais dôces favos de
phrases que assignalaram a mais bella hora da tua vida!»

Meu pobre Jorge Coelho! Tua mãi não te salva d'esse captiveiro. Teu pai,
esse resgatava-te, se te désse um lugar no seu leito!... _É intransitivo
o calix!_


XV.

A primeira carta de Leonardo Pires ao condiscipulo dizia que Silvina ia
todos os dias á Foz de carroção, e almoçava bifes e fiambre no hotel
inglez. Ajuntava a isto o picaresco informador que a menina usava de
anquinhas no vestido de banho, e fazia de nereida saracoteando-se na
agua, requebrando-se em risos e ditos galanteadores aos tritões de baêta
azul que a rodeavam, e sahindo dos braços de Neptuno mui peneirada aos
saltinhos pela praia, que eram umas delicias vêl-a. Dizia mais, que
Francisca da Cunha, ao sahir do banho, era uma cousa desazada como perua
que saltasse de um tanque a escorrer agua. Este era sempre o estilo do
fidalgo da Maya. Rematava dizendo que o morgado de Santa Eufemia fazia
todos os dias a Silvina o sacrificio de se lavar no oceano, dando
grandes urros, e devorando bois assados no hotel da Boa-vista.

Jorge Coelho tragou este veneno, e odiou o amigo que sem piedade lh'o
vasava no coração. O innocente esperava que Leonardo lhe enviasse, senão
uma carta, ao menos palavras consolativas de Silvina, incentivos
apaixonados á esperança, lagrimas de saudade e protestos de firmeza
eterna.

Na segunda carta dizia Leonardo Pires que tendo elle azo de encontrar-se
com Silvina na calçada dos Clerigos, na loja do snr. Antonio das
Alminhas, lhe fallara de Jorge, contando-lhe o motivo da sua repentina
partida para a provincia, com o que a boa da menina se rira grandemente,
dizendo que seria muito de receiar que o tio padre trouxesse uma
palmatoria debaixo da sotaina. A isto respondera Leonardo--e não
duvidamos acredital-o--que Jorge devéras merecia meia duzia de
palmatoadas, quando sahiu do baile da assemblea, apaixonado por um anjo
que fizera presente das suas azas á gravata do morgado de Santa Eufemia.
E como quer que Silvina redarguisse com voltar-lhe as costas, Leonardo
fôra fallar a Francisca da Cunha que estava á porta do snr. Antonio das
Alminhas, conversando amores com um linheiro das Hortas, o qual linheiro
lhe estava dizendo que o dia estava muito bonito.

Jorge Coelho respondia a estas cartas sem fallar de Silvina, e dizendo
pouco de si. Divagava por assumptos tristes, dissabores da vida que em
seu começo tropeça na desgraça; rebates de saudade d'um tempo que mais
não voltaria; os encantos perdidos do céo, das arvores e das montanhas
que elle amara tanto; a magia do viver em familia despoetisada; o
coração desaffeito das caricias maternaes e já insensivel ao sabor
d'ellas; longos dias, sem um sorriso, encadeados a noites desveladas
sobre livros em que elle, como Hamlet, não via senão _palavras_,
_palavras_, _palavras_.

Na terceira carta dizia Jorge ao seu amigo que talvez não fosse a
Coimbra, porque a saude lhe minguava com a vontade, e a perspectiva da
morte era a visão mais risonha que o visitava ao cahir da folhagem dos
seus bosques, onde elle passava os dias com um anjo de nove annos, a sua
irmã Angela.

D. Antonia não entendia o filho. Via-o triste; mas triste o vira sempre
desde criança. Espreitava-o de noite no seu quarto, e achava-o sempre
com os cotovêlos na mesa de estudo, o rosto entre as mãos, e um livro
aberto. Se o interrogava ácerca da sua saude, Jorge respondia sempre que
não soffria senão o mal-estar da sua doentia imaginação. A mãi, fiada em
suas orações, esperava o melhor, e agradecia já a Deus a cura completa
de seu filho.

Padre João, porém, via mais de perto o fio ás cousas.

--O rapaz come muito pouco!...--dizia o sagacissimo egresso á
cunhada--Não nos fiemos n'aquelle exterior pacifico, mana. Alli ha
amargura secreta enfronhada n'uns ares de serenidade, que não é
d'aquelles annos. Jorge está magro, macilento, e não dorme. Debaixo da
janella d'elle encontro a miudo muito papel rasgado. Já pude concertar
uns pedacinhos, e lá encontrei o nome da fada má, que nos ha-de perder
Jorge.

--Perder!... não diga tal, mano João!--exclamou a viuva, estorcendo os
dedos, e já com as lagrimas, a fio.

--Perder, sim!... Mana Antonia, eu já tive vinte annos, e entrei no
mosteiro aos trinta e dous... Vou aconselhal-a. Quer resgatar o seu
filho das ciladas da sereia?... Olhe que só Ulysses venceu uma vez
sereias. Que me conste; desde Ulysses até nós, as vencedoras são ellas
sempre, quando as victimas as não podem examinar de perto, e vêr que
ellas escondem na agua a metade monstruosa do corpo. (A erudição
mythologica do padre nem D. Antonia poupava!)

--Então que conselho me dá, mano?--atalhou a senhora.

--Quando Jorge der signaes de doença grave, quando uma ponta de febre
lhe accender as faces, mande-o para o Porto.

--Para o Porto?! Que desproposito é esse!?

--Deixe-o ir examinar de perto o monstro. Deixe-o cahir na conta da sua
indigna paixão. Deixe-o ir ouvir o descredito da tal mulher. Ha mulheres
como a lança de Pélias: curam a ferida que fazem. Eu já me arrependi de
obedecer aos rogos da mana. Jorge devia deixar o Porto espontaneamente.
Logo que eu sube que mulher era a tal Silvina, devia abandonal-o a elle
á miseria da sua illusão. A esta hora estava elle talvez desenganado.
Sabe porque? Aqui tenho uma carta do negociante Ferreira, casado com a
sua amiga do convento. Diz-me que Silvina arranjara a final um
brazileiro millionario, tão monstruoso em corpo como ella é monstruosa
na alma. Se Jorge estivesse a esta hora no Porto, cercado de homens que
fazem zombaria das affeições serias e das ridiculas, curava-se. Aqui, se
lhe eu annunciar as baixezas da Circea que o bestificou, não me
acredita; e, se me acreditar, não temos balsamo que lhe feche a chaga;
verá que elle a rasga mais com as suas proprias unhas, Mana Antonia, o
meu parecer é este. Não me argumente, que não sabe, nem póde. Se a sua
vontade fôr outra, lavo d'ahi as minhas mãos...

D. Antonia foi direita ao quarto do filho, e entrou de sobresalto.
Surprehendeu-o a escrever. Jorge fez um gesto machinal para entremetter
n'outros papeis a folha em que escrevia.

--Escondes de mim o que escreves, filho?--disse D. Antonia, com magoada
brandura.

--Não, minha mãi, não escondo...

--Pois eu não vi?!--tornou ella, sorrindo tristemente.

--São cartas para os meus condiscipulos.

--Deixas vêr-m'as, Jorge? Que poderás tu dizer aos teus amigos, que não
dissesses a tua mãi?! Fallas das tuas amarguras? Conta-m'as tambem a
mim.

--Eu não fallo de amarguras, minha mãi--disse Jorge, erguendo-se, para
afastar a mãi da banca.--Communico a um amigo os meus estudos, as minhas
impressões de leitura, cousas que não podem recrear uma senhora...

--Assim será, Jorge... Tu nunca me mentiste, nem mentirás, pois não?

Jorge guardou escrupuloso silencio, respondendo com um tregeito, que
valia tanto como a supplica de perdão.

N'este momento, apeava no pateo um cavalheiro da villa proxima, que
vinha visitar o academico. Jorge foi logo á sala, a mãi acompanhou-o até
fóra do quarto; e retrocedeu a examinar os papeis, logo que o viu
entretido. Foi fácil estremal-o dos outros pela frescura da tinta. No
alto da folha, leu estas palavras: «AO ANOITECER DA VIDA.» Depois seguia
assim:

«Vou d'este mundo, quando custa morrer aos que se estorcem entre uma
saudade e uma esperança. Saudade! de que hei-de eu tel-a?! E que posso
esperar? Quem me dera já as trevas! Esta luz, que me alumia, é ainda a
d'aquelle clarão infernal do baile. Queria fugir de mim proprio, como de
um inimigo. Não me has-de tu matar, paixão! Morro porque não podia
viver. Se não fosse aquella mulher, era outra. Eu vejo e palpo a morte
ha muitos annos. A fugir da morte, refugiei-me no coração de Silvina.
Porque me disse ella: «no mundo deve existir a imagem da mulher digna de
senhorear-lhe a alma com a de sua mãi, cuja face eu beijaria com
respeito e ternura de filha?» E como Deus pôde crear no coração humano
para zombaria pensamentos assim! Á mulher infame devia morrer a memoria
das palavras com que se exprime a virtude... Sinto-me tranquillo... A
compensação dos affrontados é esta. No mal e no bem te reconheço,
Providencia Divina!... Mas o mal para que é? Se é necessaria na ordem do
mundo a ignominia, a crueza, a infamia, a desgraça, fôra digno da
perfeição divina deixar ás almas inculpadas o galardão de não sentirem a
absurda justiça do Creador.

«Que és tu, bem? que és tu, virtude?... que és tu...»

Aqui fôra interrompido Jorge pela subita entrada da mãi.

D. Antonia quasi não entendera o escripto; mas algumas palavras, as do
titulo só, bastaram a compenetral-a de consternação e terror. Ouviu os
passos de padre João, chamou-o anciada, e mostrou-lhe o papel. O egresso
leu, e respondeu risonho:

--Não tem de que se lastimar por em quanto, minha irmã. Isto é um
accesso de febre; mas não me assusta; o que eu receio é a outra que não
interroga a Providencia, e obriga o enfermo a inclinar a face para o
seio, e esperar resignadamente a morte. Vá á sala, que o hospede quer
comprimental-a.

D. Antonia sahiu, e padre João escreveu o seguinte no papel que lêra:

«O pucaro pergunta ao obreiro porque o fez quebradiço. O oleiro
responde: porque eras barro antes de seres pucaro.»

«Virtude é o diamante em que se pulverisam os raios da desgraça. Aquelle
é virtuoso que olha em torno de si, e vê prostradas as calamidades.»

«O reino de Deus não está em palavras sonoras; mas em virtudes. (S.
Paulo--aos impacientes de Corintho).»

«Coração apoucado, sossobra, se não podes com a tua miseria; mas não
abandones a tua memoria a uma piedade vã, que é quasi uma zombaria.»


XVI.

Traslado fiel de uma carta de Leonardo Pires a Jorge Coelho:

«São 6 horas da manhã. Venho do baile do visconde dos Lagares. Tenho o
coração a trasbordar de amargura! Deixal-o trasbordar, que é uma gotta
de absintho n'um oceano de champagne. Um bago de uva matou Anacreonte.
Eu sinto-me triplicar de existencia na uva. _Evohé!_ Como a vida é
linda! que vergeis de flôres recendem á tona d'este lamaçal! Vem cá,
Fortuna! Schakspeare chamou-te prostituta. Linda, vem cá, que eu bem te
vi no baile, como o poeta inglez te via nos paços e nas tavernas!
Senta-te aqui nos meus joelhos, impudica! Solta d'essa larynge recozida
de alcool um dithyrambo! Ri-te commigo, e não me venhas dizer que és
filha da Providencia, infame blasphema!...

Cançou-me o folego, Jorge! O meu vinho nunca foi para grandes
apostrophes. O descriptivo é o meu forte.

Fui ao baile. Pude lograr a causa da moral publica. Deves presumir que
estou desacreditado no Porto, e em vesperas de um duello. Sou o varão
justo a braços com a adversidade: _vir fortis cum mala fortuna
compositus_--a maravilha que punha Seneca em extasis! O champagne do
visconde é litterario como as aguas da Aganippe. Que abundancia de
pegasos eu vi beber na sala da ceia, e apparecerem Homeros na sala do
baile!

Pedi a quatro conhecidos que me arranjassem convite. Era impossivel. O
visconde respondia que eu era um _bolas_, que descompozera no largo da
Batalha uma menina, noiva de um seu amigo. Eis que encontro o João da
Thereza da Cancella! Este João é meu caseiro ha cincoenta annos. Vê-me,
corre a abraçar-me, e exclama: «Fidalgo, o meu Francisco chegou!»--«Quem
é o teu Francisco, amigo João?»--«O meu Francisco--tornou elle--que
estava no Maranhão! pois não sabe?»--«Não sabia... Vem rico?»--«Rico
como um burro!»--«Está bom; estimo; é barão de...?»--«Não, senhor; barão
ainda não é; mas está aquartelado em casa do snr. visconde dos
Lagares.»--«Sim?!»--«É como digo, fidalgo, e, pelos modos casa-lhe com a
filha; é arranjo tratado já lá do Brazil.»--«Fazes-me um favor,
João?»--«É pedir por bocca.»--«Teu filho será capaz de me arranjar que
eu seja convidado para um baile que vai dar o visconde amanhã?»--«Que
remedio tem elle, senão arranjar?! Quem foi que lhe pagou a passagem
para o Rio senão o paisinho do fidalgo?!»--«Vai depressa, e volta aqui
com a resposta.»

Meia hora depois, voltou João da Thereza da Cancella, com a carta, e
disse-me: «Olhe que o homem não queria dar o officio; foi preciso eu
dizer que dava duas libras por elle, sendo preciso; o meu Francisco
chamou-me bruto, e depois lá se mexeram como poderam, e aqui tem.»

Dei um abraço democrata no meu caseiro; procurei os meus quatro
conhecidos, mostrei-lhes o cartão, e fiz o elogio do seu valimento
d'elles.

Apenas entrei no baile, fui comprimentar a viscondessa, que fallava com
Silvina. Esta, quando me viu, resfolegava como se eu fosse uma grande
botija destapada de vinagre de sete ladrões. Retirei-me a rir, e, na
reviravolta impetuosa, bati n'uma grande esponja: era José Francisco
Andraens.--Perdão!--disse-lhe eu. José Francisco grunhiu, e enviezou-me
um olhar sanhudo--Perdão!--tornei eu. O cerdo poz as mãos na linha
hemispherica do seu globo, constituiu-se vaso etrusco, e regougou: «O
senhor anda a embarrar pela gente?!»--Foi uma _embarração_ inopinada,
snr. Andraens!--repliquei eu--Se lhe offendi os tecidos,
desculpe-me.--«Estes meliantes...» disse o brazileiro, e foi-se embora.

Adiante encontrei os morgados de Santa Eufemia, e de Matto-grosso.

--Que ha de novo?--perguntei eu.

--O casamento de Silvina com o brasileiro está definitivamente
tratado--disse-me Egas de Encerra-bodes.

--Com o brazileiro?

--Com o brazileiro. Veiu ahi o pai d'ella; expoz á filha as vantagens do
casamento, e ella poz os olhos no céo, e disse:--cumpra-se a vontade do
Senhor,... e a de meu pai!

--E cá o amigo Christováo Pacheco que diz a isso?--perguntei eu,
voltando-me para o de Santa Eufemia, em quanto Egas ria estrondosamente.

--Eu digo--respondeu elle--que já cá botei as minhas contas, e que
hei-de tourear o tal José Francisco!... Estou civilisado;--cá o primo
tosqueou-me o pello.

--Vi-te n'aquelle momento, meu caro Jorge. Vi a tua candida alma, n'esse
ermo, a penar, em quanto a vil, que te mentira o apunhalara, se andava
alli glorificando de que a indigitassem como futura quinhoeira dos
duzentos contos do negreiro. Fervia-me o sangue em borbotões de raiva.
Jurei tirar alli uma vingança em teu nome, a vêr se me assim despenava
da culpa de te apresentar, de te immolar aos rasos instinctos d'aquella
mulher. Busquei ensejo de fallar-lhe; mas ella evadia-se, não largando
nunca o braço de um ou outro homem. O millionario, filho do João da
Thereza, levou-me á casa da ceia, e serviu-me tres copos de um vinho que
tinha um nome barbaro. Abrazou-me as arterias; mas a minha raiva medrava
nas chammas como a salamandra. Tornei ás salas, encontrei Francisca da
Cunha pelo braço do linheiro das Hortas; parei diante d'elles, e disse,
com a solemnidade do estilo:--Boccacio e Fiammentta! Bettina e Goethe!
Fornarina e Rafael de Urbino!

O linheiro, voltou-se para Francisca e murmurou:--Não conheço este
sujeito.

Eu continuei: Beatriz e Bernardim!

--O senhor está enganado comnosco--disse o linheiro na sua boa fé de
linheiro. Francisca, tirou-lhe pelo braço com força, e afastaram-se. Não
sei o que lhe ella segredou. O homem, pouco depois sahiu-me de cara, e
disse-me:

--V. s.ª parece que, ha bocado, me quiz insultar.

--Eu não o quiz insultar ha bocado, senhor... como é a sua graça?

--Eu chamo-me Antonio José Guimarães.

--Pois senhor Antonio José Guimarães, como passou?

O linheiro açafroou-se, mediu-me tres vezes perpendicularmente, e disse:

--O senhor ha-de dar-me uma satisfação.

--N'esse caso, satisfaça-se, e, quando estiver satisfeito, avise-me,
snr. Antonio.

--Na rua nos encontraremos.

--Pois sim, repliquei eu, na rua nos encontraremos. O snr. Antonio quer
duello a todo o trance e sem misericordia? Eu não me bato com armas
brancas nem pretas. O snr. Antonio, como tem a materia prima de casa,
leve uma corda, que o hei-de enforcar.

O linheiro ficou chumbado ao tapete, e suava como uma abobora porqueira
em manhã de orvalho.

Tocou á ceia. Entrei na sala. O champagne estalava. Os crystaes
retiniam. Os talheres tilintavam. Eu tinha no craneo a musica das
espheras. José Francisco Andraens ia atamancando um empadão de pombos,
cujos arcabouços lhe pendiam das belfas em fragmentos. Silvina
defrontava com elle, e comia a duodecima Sandwich. Estavam tres perús,
ou seis, ou não sei quantos perús intactos na mesa. Fui collocar-me
atraz de José Francisco Andraens, e chamei um servo agaloado de prata. O
snr. commendador Andraens--disse-lhe eu a meia voz--quer que vossê leve
um d'estes perús de mando d'elle áquella senhora que tem uma grinalda de
flôres brancas. Disse e fui collocar-me a pouca distancia de Silvina.

Chegou o criado com a travessa, e disse:--Minha senhora, o snr.
commendador Andraens manda isto a v. exc.ª

--Isto a mim!--tartamudeou ella entre admirada e vexada.

--Sim, minha senhora, a v. exc.ª--teimou o criado.

Silvina pregou os olhos abrasoados em José Francisco, que lhe abria um
sorriso apaixonado por entre o costado d'um pombo. Ao sorriso respondeu
ella com um tregeito de colera. Cheguei ao ouvido de Silvina, e
segredei-lhe:

«Minha senhora, José Francisco envia-lhe um suspiro d'alma; e como a
alma de José Francisco é uma ucharia, os suspiros de José Francisco são
perús.»

Quando Silvina volvia os olhos fuzilantes, tinha eu desapparecido. Fui
ao ouvido de José Francisco, e disse-lhe á puridade:

--A sua noiva está indignada de o vêr comer assim! Sacrifique a Cupido o
oitavo pombo, amigo José.

O que decorreu depois d'isto, não sei dizer-te meu caro Jorge. A minha
cabeça não podia já com encargo da chronica até final: sahi. O ar fresco
da madrugada, que aspirei até ás cinco horas, restituiu-me á bestial
vida commum. Não posso mais.

--Resta-me dizer-te que, se choraste uma lagrima por Silvina,
envergonha-te de chorar segunda.

Adeus. Teu

                                                             L. PIRES.»


XVII.

Verificaram-se os presagios do padre João. Jorge, depois da ultima carta
d'aquelle singular e diabolico Pires, quiz reanimar-se, e já não pôde.
Debil de compleição, quebrantado de insomnias, sorvido incessantemente
na funesta scisma de que não havia ahi na terra voz humana que o
chamasse ao amor da vida, nem no céo misericordia que o remisse da
immerecida pena, Jorge, sem um queixume, sem uma lagrima, sem dar de si
incentivo á piedade dos seus, desculpou-se com um ligeiro incommodo, e
ficou um dia no leito. A pobre mãi alvoroçou-se, e com ella toda a
familia, que via chorar. Veiu logo a sciencia que trata magistralmente
dos achaques do estomago, e d'outras visceras nobres, e declarou que a
molestia do doente era cousa moral, paixão, hypocondria, ou romance. O
facultativo capitulou assim a enfermidade com um sorriso supicaz, e
disse á viuva que não era nada aquillo, e ao padre, piscando o olho,
acrescentou que era aquella uma das feridas que se curam com o pello do
mesmo cão. Chiste de cirurgião de aldêa.

D. Antonia recobrou-se do seu desmaio; mas o egresso entrou em maiores
cuidados.--Para o Porto, e sem demora, o rapaz--disse o padre á cunhada.

--Mas o cirurgião não receia, nem Jorge se queixa...--acudiu D. Antonia,
temerosa da separação.

--Deixe fallar o cirurgião, senhora. Seu filho morre sem se queixar.

--Não me diga isso!...--exclamou a mãi consternada.--Pois as suas
palavras tão persuasivas, mano, e a religião não hão-de poder nada?

--A religião póde muito: se elle fizer uma confissão contricta, e morrer
com sincera dôr dos seus peccados, a religião encaminha-o para Deus; mas
o que nós queremos é que elle viva. Que me responde a isto, mana
Antonia?

--Eu antes o queria com Deus, que perdido no mundo--disse ella suffocada
pelos gemidos.

--Respondeu acertadamente; mas a supposição de que Jorge se perde no
mundo, acho-a exagerada. Deixe-o ir onde elle se envergonhe de padecer,
que eu lh'o dou por salvo. Torno a repetir-lhe, mana, que eu fui homem
antes de ser frade, e a senhora foi sempre o que é--uma alma cheia de
innocencia, de bondade, e de ignorancia.

--Pois bem, meu amigo, faça o que entender, mas salvem-me o meu filho.

--Aceito o encargo com uma condição: a mana não chora mais uma só
lagrima na presença de seu filho; finge acreditar que elle precisa de
banhos do mar; exige que vá já para o Porto, e de lá para Coimbra, se
fôr vontade d'elle ir a Coimbra este anno. Conforma-se com isto?

--Com tudo que de mim quizerem--murmurou ella enxugando as lagrimas.

--Agora cuide da bagagem de Jorge, que eu vou fallar-lhe.

Jorge Coelho estava sentado na cama, lendo a _Nova Heloisa_ de J. J.
Rousseau. O egresso foi de mansinho ao pé do leito, tirou pausadamente
os oculos d'um enorme estojo escarlate, montou-os na ponta do nariz,
abriu e arredondou os beiços, pendido o queixo, e examinando o livro,
disse:

--Era um grande homem esse Saint-Preux, ó Jorge!...

--Pois o tio conhece Saint-Preux?!

--Relacionei-me com esse cavalheiro e com outros da sua estofa ha bons
quarenta annos. Nunca t'o apresentei, quando praticavamos litteratura,
por que sempre entendi que o ias encontrar a Coimbra, de parçaria com os
muitos filhos que elle gerou para amparo de muitas Heloisas novissimas,
de que está inçado o mundo, graças ás novellas, e ao descredito a que
baixou a roca e o fuso. Que carta lés?

O egresso levantou o nariz com os oculos á linha horisontal dos olhos, e
leu algumas linhas da pagina.

--Ah!--continuou elle--trata do suicidio... Está mui atiladamente
debatida a questão por uma e outra parte. O Rousseau era mestre em
paradoxos; e sabia bastante de musica; mas os paradoxos dava-os de mimo
á humanidade, e para elle guardava a vida com todas as suas paixões
villãs, mal resguardadas por uma côdea de soberba e orgulho. Ensinava o
mundo a educar os filhos, e mandava os d'elle para a roda. Atassalhava a
impudicicia do seu confrade Voltaire, e escrevia as suas _Confissões_,
com esqualido recheio de desvergonhamentos, para prova de que até o
impudor tem a sua soberba. E depois, meu sobrinho, o philosopho, a
luminaria do seculo, vendo que a ulcera, aberta no coração da sociedade
pelas más doutrinas, ia lavrando, defendeu de concerto com os seus
tresvalios, uma these apologetica da ignorancia... Vou-me alongando, e
já receio de ter dito de mais. Isto são reminiscencias das minhas
leituras de ha quarenta annos. Quando orçares pelos sessenta, Jorge,
has-de abrir a tua _Nova Heloisa_ n'essa pagina, e has-de rir da
impressão, que te magoava, quando a lêste, aos vinte annos.

--Não me sinto magoado por impressão alguma, meu tio--disse Jorge,
sorrindo, e depondo o livro.

--Não mintas, meu sobrinho--tornou o padre com branda severidade--Faz
quanto em ti couber por salvar dos teus temporaes desfeitos do coração,
o melhor thesouro d'elle, a _verdade_, filho. Sofres, e soffres muito,
Jorge. Pensas em morrer, e dás de bom grado a tua vida a Deus, se é que
a Divina Providencia transluz nas tuas imaginações negras. Não te culpo,
rapaz de vinte annos. O mesmo seria culpar-te e reprehender o naufragado
que não soube salvar-se. Nem de fraco te accuso. Se eu quizer que uma
tenra vergontea, dobrada pelas minhas mãos, se levante commigo, não
hei-de molestar-me se me chamarem insensato. No mais verde dos annos,
não responde o mancebo de suas fraquezas: a sociedade que responda por
elle, e o temperamento tambem. Isto do _temperamento_, digo-to aqui
muito á puridade, que nós cá, os theologos, não queremos ceder nada aos
temperamentos. Ora vamos, Jorge, a pé d'essa cama!

--A pé!--disse Jorge--e poderei eu?!

--Pódes porque queres. Hoje e ámanhã de convalescença; depois de ámanhã
para banhos do mar.

--De que me servem banhos de mar, meu tio?

--A resposta é do fôro da medicina. Vaes para o Porto. Hospedas-te em
casa de D. Marianna Ferreira, a amiga da creação de tua mãi. Vaes do
Porto á Foz tomar o teu banho. Se, no fim do mez, quizeres ir frequentar
o primeiro anno juridico, vai; se não quizeres, fica o inverno no Porto,
e vem para casa em Maio, caso tenhas saudades nossas e da primavera dos
teus arvoredos.

--Peço licença--disse Jorge com amargura sincera--para contrariar a
vontade de meu tio.

--Teu tio não concede a licença pedida.

O moço fitou os olhos nas mãos cruzadas sobre o seio, e não respondeu. O
egresso lançou-lhe sobre o leito o fato, e sahiu, dizendo:

--Vou mandar pôr o teu talher na mesa.

Jorge disse entre si:--Morrer aqui ou lá... que importa?

Na passagem do seu quarto para a casa de jantar, Jorge recebeu de um
criado duas cartas. Uma era de Leonardo Pires; o sobrescripto da outra
fez-lhe uma convulsão: era de Silvina. Abriu, e leu o seguinte:

«Não sei que mal fiz a v. exc.ª para merecer-lhe uma vingança tão baixa!
Collocou ao meu lado um insultador petulante que me vexa em toda a
parte. Que fiz eu ao snr. Jorge Coelho?

«Aceitei os seus galanteios com amor, e aceitei o seu abandono com
paciencia. Que queria que eu fizesse para não ser insultada pelo seu
amigo? Diga-me se é necessario pedir-lhe perdão de ter sido abandonada.
Não hesitarei em fazel-o com tanto que v. exc.ª me garanta a certeza de
que não serei injuriada nas praças e nos bailes. De v. exc.ª--eu muito
respeitadora, _Silvina de Mello_.»

Jorge cahiu extenuado n'uma cadeira: a orla roixa das palpebras fez-se
negra; apanharam-se-lhe as faces, como se a doença, em poucos minutos,
progredisse mezes. D. Antonia vinha chamal-o, e encontrou-o assim, com a
carta na mão tremula.

--Que tens, meu filho?--clamou ella ajoelhando diante d'elle, e
abraçando-o.

--Nada, minha mãi, é fraqueza... Não chore, por piedade, não chore, que
eu estou bem.

E, erguendo-se com vacillante esforço, foi para a mesa. Forcejou por
comer; mas as lagrimas cahiam-lhe das faces no prato, e a violencia não
conseguia desentalar-lhe a garganta.

--Que é isto?--disse o egresso.

--Foi uma carta...--respondeu D. Antonia.

--Não é nada, meu tio. Recebi uma carta que me fez mal. A impressão
gasta-se, e eu d'aqui a pouco estou bom. Agora pedia licença para me
erguer da mesa, e dar um passeio no jardim.

--Vai--disse o padre.

--Eu vou comtigo, meu filho--acudiu a mãi levantando-se.

--Não vai, mana; deixe-o ir sosinho.

Eram imperiosas as palavras do padre: D. Antonia sentou-se. Jorge desceu
ao jardim, e foi sentar-se n'um banco de cortiça encostado a um maciço.
Abriu a carta de Pires, que resava assim:

«A Providencia não é uma mentira. José Francisco Andraens apanhou uma
indigestão de pombos, salame e salmão no baile do visconde, e está em
risco de rebentar. Eu estou de atalaia a vêr quantos Jonas sahem
d'aquelle bojo! O morgado de Santa Eufemia veiu dar-me a noticia,
jubiloso, como quem espera empalmar Silvina, extincto o bruto. O qual
bruto já se confessou, a vêr se a gente se persuade que existe uma alma
n'aquellas cavernas de sebo!

Parte o correio.

                                                          Teu do intimo

                                                           _L. Pires._»


«_P. S._ O linheiro das Hortas ainda não appareceu com a corda.»


Se a carta de Silvina fosse uma dorida invocação ao amor de Jorge,
simulando razões e desculpas, ou accusando o silencio do desleal amante,
que a despresara sem motivar o menospreso immerecido, é de presumir que
o brioso moço nem respondesse á carta, nem se doesse dos hypocritas
queixumes de uma caprichosa estouvada. Porém, o estilo, assim magoado
como arrogante d'aquella carta, turvou de tal sorte a cabeça e o coração
do academico, que já elle a si mesmo se accusava de indiscreto, de
ingrato e de extremamente facil em acreditar o tio. E--o que é mais
é--sentiu rancor áquelle leal amigo da Maya, que, por conta d'elle, se
andava expondo no Porto a ser expulso de todas as casas!

Quantas idéas lhe occorreram todas advogavam a innocencia de Silvina.
Absolvida e amada eram a mesma cousa. Agora já a esperança de ir vêl-a
ao Porto lhe era um desafogo, e não sei mesmo se contentamento. O pobre
moço, como nem sabia se quer contrafazer-se, denunciou nos exteriores de
inquieto regosijo quanto a resolução do tio lhe era grata. A mãi,
compondo a roupa no bahu, chorava sempre; os irmãos choravam ao pé
d'elle, e elle fugia de todos para que o não vissem alegre.


XVIII.

O leitor é uma pessoa de juizo limado e occupações serias. Estou que não
lê romances de ninguem, e muito menos os meus, que são escriptos em
lingua portugueza e modelados em cousas de Portugal, onde é sabido que
não ha imaginação que invente a novella, nem modos de vida que saiam bem
no romance. D'onde vem que o romance portuguez, se não é copia do
estrangeiro, e aborrecida inverosemelhança, orça por cousa peor, que é a
semsaboria.

Eu tenho escripto alguns volumes de semsaborias: creio que são vinte e
tantos. Entre estes, mergulharam de cachapuz no rio

      _do negro esquecimento e eterno somno_

tres livros denominados: ONDE ESTÁ A FELICIDADE--UM HOMEM DE BRIOS--e a
VINGANÇA.

N'estes tres romances figura um homem, ao qual eu nunca puz nome. Umas
vezes chamei-lhe poeta, outras jornalista, outras litterato, e assim fui
aguentando com embaraços da composição, mas venci a minha. Custava-me a
falsificar o nome d'um homem que copiei com esmeros de rigorosa
fidelidade; figurava-se-me irreverencia o que em si não era senão
escrupulo banal. Ainda agora me deixo levar da criancice, e não acabo
commigo dar um nome qualquer ao homem. Quer-me parecer que ha uns longes
de poesia n'este segredo. Diga o leitor que é tolice, e saldemos assim
as contas amigavelmente: eu dou-lhe a troco da injuria esta revelação da
minha crendice, e guardo as chimeras como o homem de boa fé guarda o
tôco de cera benta para se alumiar á hora da morte.

Pois é verdade. Aquelle poeta era o amigo de Guilherme do Amaral e de
Augusta.

Espectros sombrios, memorias queridas e amargas da minha alma em
infancia de illusões, passai um instante luminosos na escuridade d'esta
recamara da sepultura, onde até a lampada da esperança se vai
extinguindo na mão do anjo do conforto! Vinde a mim, corações amigos,
cujas lagrimas eu vi, e contei uma a uma, quando apenas tinha a
intuscepção da alma, predestinada ao vosso fel, para lhes avaliar o
travo. Na vossa mortalha foi o melhor da minha vida, o crêr nas
promessas do coração, nos levantados desejos do espirito que não caiam á
terra sem se infamarem; foi comvosco a fé na religião da poesia, que era
a minha fé unica, porque não havia crêr nem sentir em mim em que não
estivesse Deus, que eu convidava, sem temor sacrilego, a gosar-se das
delicias que eram d'elle, creações suas, umas sujas, outras empestadas
pelas mãos dos homens! Comvosco foi o meu ultimo dia de oração, a minha
ultima acção de graças, a palavra final da profissão de fé, que devia, a
meu vêr, remontar-me ao céo, e que, ao revez das mais espirituaes
theorias de Platão, de Socrates, de Jesus, e de todos os Messias da
redempção das almas, deu commigo em baixo n'um golfão de lama, onde ha o
ranger de dentes d'estas bestas feras, que até na lama sustentam o
egoismo da sua propriedade!

Ó visões immorredouras, que me ensinastes o amor e o sentimento, e
levastes comvosco o segredo de morrer antes do longo paroxismo do tedio
da vida, vós bem vistes com que saudosa unção eu vos offertei dous
livros e um ramo de perpetuas, que valiam mais que os livros, e menos
que esta pagina em que bem vedes com que fervor me atrevo á prosa
d'estes annos, á mofa d'estes industriaes, que me estão perguntando se a
apostrophe ha-de ser muito comprida, para tomarem fôlego, e accenderem o
seu charuto.

Pois accendam o seu charuto, e retirem-se as almas evocadas, e mais os
romances, que não tem que vêr com elles o leitor, que tanto conheceu as
almas, como se lhe dá dos romances.

Veiu isto a ponto de estar aqui já comnosco o amigo de Guilherme do
Amaral e d'aquella Augusta por quem choram as flôres do Candal, e as
almas desamparadas d'aquelles que... Lá ia já sahindo outra tirada de
sentimento. É enguiço, que me ha-de retirar a protecção de muita gente
boa, que não precisa de lêr um folhetim para convencer-se do seu direito
de espriguiçar-se, e voltar a gazeta de costas, e calcular
perspicuamente as relações economicas que podem dar-se entre a alta do
cravo dito girofe e a baixa do cacau.

Ora ahi vai agora o conto direito. O antigo jornalista, amigo da
defuncta baroneza de Amares, estava no Porto de visita em casa de
Bernardo Joaquim Ferreira, ahi nos ultimos dias de Outubro de 1855.

D. Marianna, esposa do snr. Ferreira, e suas quatro filhas, e dous
meninos, e varias outras pessoas, estão sentadas em roda de uma grande
mesa jogando o quino. O jornalista está sentado n'um sophá, conversando
com o dono da casa, sobre cousas do Brazil, d'onde o primeiro tinha
vindo depois de cinco annos de ausencia. A conversação foi interrompida
pela entrada de uma filha do snr. Ferreira, que a mãi e irmãos receberam
com muitas vozes de alegria, ás quaes ella respondeu dando um beijo na
fronte da mãi, e outro nos labios das irmãs. Com a bem vinda entrou
tambem o marido. O litterato, já de pé, deu dous passos, e disse á dama
que entrára:

--Quero vêr se me conhece ainda, minha senhora.

--Se o conheço!--exclamou Rachel.--O mesmo que foi para o Brazil; o
mesmo que era ha cinco annos... Não se admire da nenhuma surpreza com
que lhe fallo porque eu já sabia que o vinha encontrar. A mãi, quando o
senhor chegou, mandou-m'o dizer para a quinta, e deu-me sempre noticias
suas. Agora pertence-me a mim perguntar-lhe se me acha muito mudada.

--Quando, ha cinco annos, me despedi de v. exc.ª--disse o poeta--se bem
me recordo, tive a honra e o prazer de ser propheta, dizendo-lhe que a
viria encontrar cinco, dez, ou vinte annos depois, bella como a deixava,
minha senhora. Noto-lhe apenas uma differença sensivel.

--Qual?--perguntou D. Marianna com solicitude de mãi.

--Acho-a mais bella--respondeu o poeta.

Por entre os dizeres usuaes que vem sempre depois de um dito feliz como
aquelle, ouviu-se a voz aspera do snr. Manoel Pereira, marido de Rachel,
dizendo:

--Então, vamos a isto?--E escolhia cartões do quino.

Queria dizer na sua o snr. Manoel Pereira que bastava já de
comprimentos, em que a formosura de sua mulher era encarecida por um
homem da antipathia d'elle.

As senhoras sentaram-se, e Rachel, obrigada, pela indicação do marido,
ficou com as costas voltadas para o jornalista.

--Não vem jogar?--disse Rachel ao hospede.

--Vou, sim, minha senhora.

As damas deram-lhe lugar immediato a Rachel. Manoel Pereira estorcegou
machinalmente um cartão entre os dedos convulsos, e fez-se escarlate,
cravando os olhos no rosto descuidado de sua mulher.

O jornalista viu tudo isto, e riu-se para dentro.

Agora descreve-se Rachel; depois Manoel Pereira; por fim alguns traços
geraes d'esta familia, e fechará o capitulo.

Rachel tem vinte e quatro annos. É encorpada, mas a robustez não desdiz
da gentileza. Não tem attitude alguma de estudo, e parece esculptural em
todas ellas. Nos mais communs movimentos ostenta graça, e garbo que vem
de seu natural, e ninguem o dirá se a não tiver visto em toda a sua
desaffectada singeleza no recesso das suas occupações caseiras. Quando
Rachel está n'um baile... N'um baile foi que eu a vi a primeira vez. Era
ella solteira, e teria quinze annos. Isto já lá vai ha quinze. Se eu me
não lembrar do que ella era então, melhor me será despedir de mim esta
bruta alma que nem para a saudade já serve. As minhas reminiscencias
dão-me Rachel vestida de branco. Não lhe hei-de aqui chamar anjo, porque
não foi essa a impressão. Era tudo magestade, tudo estatuario n'aquella
criança; não a vi a descer do céo, onde os poetas teimam em ir buscar
tudo que é excellente, como se o céo não fosse um puro congresso de
espiritos que valem de certo lá muito mais do que pesam, mas que
passariam desapercebidos nos nossos bailes, se não tivessem a esperteza
de entrarem em corpos como o de Rachel. Eu quando a vi lembrou-me a
Grecia, as artes, em requinte de pompas, a numerosa familia das Venus,
todos esses marmores eternos, que hão-de sobreviver á mythologia dos
anjos, dos archanjos e dos seraphins. Os olhos de Rachel... estou-os
vendo; nem as franjas sedosas e longas das palpebras m'os escondem;
poderiam as arcadas espessas e travadas do sobr'olho quebrar a luz
d'aquelles olhos; mas nem assim! Como tu olhas, Rachel! Diz a
antiguidade que na Scythia havia umas mulheres que matavam olhando se o
rancor lhes fuzilava nas pupillas; porém tu que paixão tiravas da alma
toda amor, para a lançares de ti como um incendio que te abrasaria, se
eu, se todos, que te viam, não tomassem de joelhos um quinhão d'esse
fogo! Que haverá alli de mysterios n'aquelles olhos, se o fluido
electrico não basta a dizer o que é que vem de lá como corpo estranho
que vos entra no seio, e vos não cabe na alma, e quer fugir ás ancias do
coração que o aperta, e vos leva do amor ao transporte, do extasis ao
phrenesi, do rir ébrio da felicidade ás lagrimas incessantes de noites
desveladas! E, depois, porque não eram só os olhos o condão d'esta
mulher? Diante de Deus todos somos iguaes! Na alma se quizerem, e o
Creador, lá se avenha com os que o injuriam assim; mas que desigualdade
diante do divino artista! Lembra-me que a um lado de Rachel estava uma
menina de olhos vesgos; do outro lado uma senhora com um nariz impio;
mais longe outra menina em torturas para esconder quatro dentes
enclavinhados; além aquell'outra franzindo os labios, e exercitando uma
laboriosa mechanica do sorriso para corrigir a natureza que lhe dera uma
bocca limitrophe das orelhas. E ella, Rachel, toda primores, a
estremecida creatura, com uma luz serena de céo n'aquella face em que se
espelhava o seu Creador, o Deus que nos fez para a adorarmos, a rever-se
n'ella! Abençoada sejas tu de todas as venturas, que tão perfeita és,
tão cheia de tua belleza, tão digna dos thronos da terra, já que o
Creador, o teu Pygmaleão, te não arrebatou para si! Onde está, ó Senhor
Deus das maravilhas, o homem digno d'aquella obra tua, aqui posta entre
nós que apenas temos thronos, imperios, talentos, epopeas, as riquezas
da Asia, e o sangue das nossas veias para lhe offerecer! De que barro, ó
mão divina, fizeste o homem que ha-de primeiro embriagar-se nos aromas
que recende aquella virgem? Onde está o homem que...

O homem elle aqui está. É o snr. Manoel Pereira. Já quinou tres vezes.
Feliz no jogo, infeliz no amor; é certo o proverbio... até com elle!

Manoel Pereira tem cincoenta e cinco annos! estatura mean, cabeça
quadrilatera, e plana como um queijo do Além-Tejo desde o occipicio até
á cisura do coronal. As arcadas zygomaticas (vejam um compendio de
anatomia comparada) entestam com o rebordo esponjoso dos olhos
arrastando cada uma para o seu lado a venta correspondente que termina
em fórma de fava. O nariz não tem canas; parece que é formado de
parafusos. Começa do centro da testa por uma verruga, transforma-se em
lobinho, ladea em pequenos abscessos escarlates, e pega no beiço
superior, repuxando por elle de modo que o dono não póde exercitar as
funcções olfactorias sem enviezar o beiço. Este nariz ha-de ser
lithographado e distribuido aos assignantes, concluido o romance. O
nariz é o homem. Quem o vir organisa o complexo de Manoel Pereira, como
Cuvier recompunha o reptil iguanodo, e o megaterio.

Temos á roda da mesa a snr.ª D. Marianna e quatro filhas. É de notar em
Rachel o typo perfeito d'aquella familia. A mãi, senhora de quarenta
annos, é bonita ainda. Se a perfeição das raças é admissivel, nunca mais
sensivel foi a gradação do aperfeiçoamento como entre D. Marianna e
Rachel. Das outras filhas, uma é formosa, se bem que já ferida da
tisica, que d'ahi a mezes a levara para o lado de uma sua irmã que a
mesma enfermidade matou, quando lhe sorriam duas primaveras, a das
flôres, e a dos prazeres da vida. Outra é uma linda criança de doze
annos, com os olhos de Rachel. A que porfia em belleza desvantajosamente
com a mais bella é já casada, e tem vinte annos. Ha uma outra de aspecto
vulgar, posto que o não pareça entre outras que não sejam suas irmãs.

Bernardo Joaquim Ferreira, o pai d'estas lindas meninas, tem uma
agradavel physionomia de homem de cincoenta annos, e maneiras polidas,
sem embargo do trafego commercial em que labuta desde rapaz. Revela a
esperteza ordinaria na sua classe, temperada pelo uso da boa sociedade
em que desbravou as rudezas congeniaes, e as adquiridas nos seus
primeiros annos.

Ácerca d'esta familia, outras miudezas seriam intempestivas agora.

Saudemos com lagrimas a entrada de Rachel n'esta historia, que principia
desde hoje a tomar as proporções d'um escandalo monumental.


XIX.

--Não sabes quem hoje me escreveu?--disse D. Marianna a Rachel,
terminada a partida do quino?

--A minha Antoninha do convento.

--Sim? que novas lhe dá ella do filho? A mãi disse-me que a pobre
senhora vivia muito consternada com a paixão do rapaz pela tal Silvina.

--Segundo me ella diz, continuou D. Marianna, o pobre Jorge está
enfeitiçado, e cuida ella que a maneira de o desenguiçar é mandal-o para
aqui, a fim de elle, á vista do comportamento de Silvina, se desenganar.
Acho esquisito o remedio.

--O remedio é eficacissimo, snr.ª D. Marianna--disse o litterato.--O que
a mim me espanta é ser uma senhora quem o receita. O fim da sua amiga é
fazer com que o filho se sinta aviltado por amor de uma mulher ridicula.
O amor rompe todos os tropeços, transige com muitos defeitos e mesmo
vicios da pessoa ou... cousa amada; mas da mulher escarnecida é que não
ha cegueira que o aproxime.

--Conhece a tal Silvina de Mello?--disse Rachel.

--Já a encontrei em algumas partidas na Foz, minha senhora.

--Que idéa fez d'ella? A sua apreciação deve chegar-se muito á verdade.

--Pareceu-me, respondeu o poeta, que era galante, e até mesmo esperta.
Ouvi-a declamar acrimoniosamente contra uns folhetins que denomina
_Felizardas_ as senhoras provincianas, e pasmei da imprudencia com que
desprimorou as damas portuenses, chacoteando-as por um lado que é
justamente, a meu vêr, o mais vulneravel da fidalga do Minho...

--Qual é?--interrompeu Rachel com vivacidade. O jornalista, reconhecendo
a inconveniencia da resposta ajustada, fez, como por disfarce, esta
pergunta:

--Não é certo estar tractado o casamento da tal senhora com um
commendador fulano de tal Andraens?

--Assim dizem--respondeu D. Marianna--pelo menos cuido que...

--Parece-me que não é anno de fortuna para ella... atalhou o snr. Manoel
Pereira, coçando a verruga media da aza esquerda do seu nariz.

--Por que?--disse Rachel olhando de través o marido.

--Por que o meu amigo commendador, desde que foi o baile do visconde dos
Lagares, nunca mais se levantou, e vai cada vez a peor. O homem já
soffria molestia interior, e comeu tanto á ceia, que esteve a
rebentar-lhe a tripa... Ainda ha quem queira bailes!... Se elle
estivesse em sua casa...

Rachel, prevendo que seu marido aproveitava o ensejo para uma enfadosa e
desconchavada diatribe contra os bailes, cortou-lhe logo o fôlego
comprido das tolices com esta fina ironia:

--Nem toda a gente leva aos bailes as tripas dos teus amigos... Com que
então--continuou ella, voltando-se para o jornalista--o amor não será
capaz de vencer a indigestão do noivo?

--Segundo ouço ao snr. Manoel Pereira--respondeu o litterato em tom
lastimoso--a gentil menina está em risco de vêr o coração, que tão caro
lhe era, romper-se, batido pelas explosões do estomago que rebenta,
deixando a seu dono a gloria de morrer como Tito.

Rachel e uma das irmãs sorriam; Manoel Pereira desconfiou do riso da
mulher, e disse mal encarado, com o nariz já roixo:

--Se elle quizesse mulher tão bonita e mais rica que ella, não lhe
faltavam por ahi ás duzias.

--Ninguem contesta o dito de v. s.ª--redarguiu o escriptor.

--Mas o senhor parece que estava caçoando com o meu amigo...--tornou
Manoel Pereira.

--É injusto o cavalheiro. Eu se tivesse quatro irmãs dar-me-ia por
ditoso se o seu amigo quizesse casar com todas quatro, e lamento não
saber o segredo de um tal Lucius que Plinio viu transformar-se em
mulher; por que se me eu podesse felizmente mudar em mulher, havia de
galantear o amigo de v. s.ª, e morrer de amores por elle se uma
indigestão rival m'o arrebatasse.

Rachel soltou uma risada contagiosa: riram todos, salvo Manoel Pereira,
cujo nariz reluzia ao reflexo da luz, em differentes côres desde o
açafrão até ao talo da couve lombarda.

O jornalista continuou, fallando para D. Marianna:

--Tive tambem occasião de conhecer no hotel da Aguia d'Ouro o filho da
amiga de v. exc.ª Fallei com elle, e fez-me bem o perfume d'aquelle
coração em flôr. Que candura, que adoravel innocencia a dos vinte annos
de Jorge... creio que se chama Jorge! E, ao mesmo tempo, que
singularissimo typo de rapaz eu conheci com elle, e todos os dias
encontro por ahi atraz de uma prima de Silvina, e de um tal Guimarães,
linheiro, ou pregueiro, ou cousa que o valha... Que homem se fará
d'alli, se o céo o não leva d'este mundo e d'esta sociedade que tanto
precisa de um cenaculo d'aquelles apostolos!... V. exc.as de certo não
conhecem Leonardo Pires de Albuquerque, fidalgo da Maya, descendente de
D. Martim Pires da Maya, que gerou D. Pedro Pires, que gerou D. frei
Martim Martins, mestre da ordem do Templo no seculo XIII? De certo não
conhecem...

--Nem é preciso conhecerem--exclamou Manoel Pereira--É um patife, que
concorreu muito para a doença do meu amigo Andraens!

--Eu não pensava--replicou o poeta--que Leonardo Pires era um alimento
indigesto!... Se bem me recordo, v. s.ª disse ahi que a enfermidade do
snr. Andraens era uma indigestão!

--Como de facto; mas, pelos modos, o tal brejeiro insultou-o no baile, o
homem atrigou-se, e sahiu cá para fóra afflicto, e nunca mais foi bom.

--Não sabia isso; apenas me disseram que elle recommendára ao snr.
Andraens que não comesse tanto; e quer-me parecer que este conselho,
longe de ser insultuoso, tendia a prevenir a indigestão fatal que se
deu.

--Deixemo-nos de contos...--instou o marido de Rachel.

O sorriso d'esta era já forçado por vêr que o jornalista não tinha a
cortez caridade de conter as ironias que Manoel Pereira não percebia.

--E D. Antonia que diz, mãi?--interrompeu Rachel.

--Diz que Jorge Coelho vem para esta casa.

--Para esta casa?!--acudiu Manoel Pereira abrindo a bocca, e arregaçando
o nariz até á testa.

--Não tenho n'isso duvida nenhuma--respondeu Bernardo Joaquim Ferreira,
que tinha sahido e voltára momentos antes.--E dou-te parte, Marianna,
que Jorge já está na hospedaria, e não sei se será dever meu ir já
buscal-o esta noite. Aqui tenho um bilhete d'elle, pedindo-me que o
desculpe de não vir directamente aqui.

--Como ainda é cedo, disse D. Marianna, podes ir buscal-o. O quarto está
preparado. A mãi descrevendo n'um estado tal de amargura que eu tenho
pena de o deixar sosinho na hospedaria.

--Mas ha um inconveniente--redarguiu o snr. Bernardo.--Tenho gente no
escriptorio á minha espera para liquidar umas contas, e não posso
deixal-as para ámanhã, que os negociantes são da provincia, e partem de
madrugada. Se o snr. Pereira tivesse a bondade de ir á Aguia d'Ouro...

--Homem, eu a fallar-lhe a verdade--disse Manoel Pereira--tenho aqui
n'este pé direito uns callos que me não deixam dar passada; se não da
melhor vontade; mas, sempre lhe direi o que penso respeito á vinda
d'elle para aqui. Eu não sei o que me parece metter n'uma casa onde ha
meninas novas um peralvilho que não gosa dos melhores creditos, e que de
mais a mais é amigo do tal Pires, que ha-de cá vir onde a elle, e o
mundo pega logo a fallar pr'aqui, pr'acolá, e ás duas por tres... Em
fim, meu sogro lá sabe o que faz...

D. Marianna replicou com vehemencia:

--O snr. Pereira não ouviu dizer aqui a este senhor que o filho da minha
amiga era um moço muito digno?!

--Todos elles são muito bons, mas em minha casa é que elles não põem o
pé.--Disse Manoel Pereira, e fez menção de procurar o chapéo.

Rachel relanceou sobre o marido um olhar severo. O escriptor fazia
figuras geometricas com as marcas do quino. As meninas olhavam-se entre
si com sorrisos rebeldes á prudencia. O bom Ferreira, apesar da sua
superioridade relativa de sisudeza e bom senso, não deixou de vacillar
ao choque das reflexões do genro. D. Marianna, porém, voltando-se com
energia para o jornalista, disse-lhe:

--O senhor faz-me um favor dos que se pedem sem embaraço a um amigo
antigo?

--Faça-me a honra de mandar-me, minha senhora.

--Tem a bondade de ir á hospedaria, e acompanhar o filho da minha amiga,
o filho d'uma senhora a quem eu devi na minha mocidade o que não posso
pagar-lhe d'outro modo?

O jornalista ergueu-se, e disse, tomando o chapéo:

--Se elle estiver doente, ou na cama fatigado, mandarei um bilhete para
que o não esperem. Até já, ou muito boas noites, minhas senhoras.

Sahira o jornalista, e D. Marianna enxugando lagrimas que não tinham na
apparencia muito cabimento alli, fallou assim:

--Eu nunca disse a minhas filhas os favores que devo á mãi do meu
hospede; escutem-me, e depois dirão se o filho de tal anjo não será
digno de ser recebido como seu irmão. Eu fiquei orphã e pobre aos onze
annos. Entrei nas ursulinas de Braga, entregue á caridade da prelada,
que me achou com habilitações para ser uma simples criada grave de
convento. D. Antonia de Sepulveda tinha tambem entrado, n'essa occasião,
e era rica. Tratei-a com respeito, e ella a mim com familiaridade, para
chegar ao fim de me offerecer metade da sua mesada, e habilitar-me a ser
senhora entre as outras, que me olhavam com desestima, e com a falsa
piedade das ricaças do convento. Aceitei os favores da minha amiga, e
tão suave era o dever-lh'os, que nunca me julguei devedora, se não
depois que vim a esta sociedade conhecer o valor dos beneficios que
recebi de Antonia. Vivi cinco annos á sombra da generosidade d'ella:
prendei-me á sua custa, instrui-me com ella d'essa apoucada educação que
nos davam no convento; e já depois que a minha amiga sahiu para casar
obedecendo ás ordens de seus paes, continuei a receber as mezadas e os
presentes que ella recebia. Casei tambem passado um anno, fui feliz,
enriqueci, presenteei-a, mas a cada lembrança de amiga que lhe eu
mandava, respondia ella com mais valiosos mimos da sua casa. Penso ha
vinte e quatro annos no modo de ser util á minha querida Antonia; a
Providencia depara-me agora occasião de velar as commodidades do filho
d'ella. Haja ahi uma pessoa de boa fé a dizer-me que devia ser outro o
meu procedimento...

--Ninguem se atreve a tanto.--disse Rachel com enfado.--Eu, se minha
mãi, por desgraça nossa, não existisse, levaria para minha casa o filho
da nossa amiga, da protectora de nossa mãi. Se eu tivesse um marido que
me quizesse roubar o prazer da gratidão em tão pequeno serviço,
amaldiçoaria a hora em que meus paes me subjugaram a tal homem...

--Não te irrites assim, Rachel...--disse Bernardo Ferreira, ferido pelas
palavras da filha, que lhe apontavam direitas á consciencia, onde as
fibras do remorso doiam sempre.

Entretanto, Manoel Pereira, franzindo o nariz, dilatava as ventas
hediondas, por onde vaporava a zanga.

O incidente, passados minutos, foi cortado por um bilhete do escriptor,
dizendo que Jorge Coelho pedia desculpa, agradecia extremamente a
delicadeza, e convalescia da fadiga para no dia seguinte cumprir as
ordens de sua mãi.


XX.

O jornalista encontrou Jorge Coelho na cama, e Leonardo Pires sentado á
banca. No semblante de ambos eram visiveis os signaes da altercação, que
fôra interrompida pela chegada do terceiro. O filho de D. Antonia estava
escarlate de febre, e anciado; o da Maya, se bem que de má catadura,
esboçava distrahidamente, a lapis, uns perfis de narizes caprichosos.
Jorge conheceu o litterato, e maravilhou-se da visita; Leonardo Pires,
mais familiarisado com o sujeito, ergueu-se, abraçou-o, e exclamou:

--Aqui está o teu medico, Jorge! o teu Christo, Lazaro!

--Temos _ecce homo_?! Dar-se-ha caso que o snr. Pires--disse o
jornalista sorrindo--me prepare algum calvario?... Como está o snr.
Jorge Coelho? O aspecto denota inquietação...

--Não é inquietação;--atalhou Pires--é a sina maldita d'este desgraçado
que nos tortura a ambos...

--Todos temos o nosso demonio familliar, snr. Pires--tornou o
escriptor--Socrates queixava-se do seu, e eram nada menos de dous os
demonios do divino philosopho, sendo o peor dos dous uma tal Xantippa...
Querem vêr que o snr. Jorge é energumeno d'alguma Xantippa ideal, que...
(O jornalista escreveu, e entregou a um criado o bilhete que foi
recebido em casa de D. Marianna). Jorge entretanto, sorrindo
contrafeito, respondia:

--Não, senhor. Eu sou apenas victima das loucuras do meu condiscipulo.

--Ó cavalheiro--clamou Pires irritado--diga ahi a esse ingrato quem é
Silvina de Mello. Não se trata aqui de desfolhar lindas chimeras, e
matar illusões queridas. A paixão de Jorge é uma nodoa que eu quiz
delir-lhe do coração, á custa mesmo do meu descredito e abominação
n'esta sociedade devassa. Tenha vossê a franqueza de dizer a esta
criança o que eu tenho sido, já que eu tive a boa sorte de lhe referir
ao senhor as minhas acções e palavras.

O romancista achou de riso a gravidade da appellação de Pires para o seu
testemunho; mas perseverou-a na seriedade que o proposito pedia, e
disse:

--O snr. Leonardo Pires tem dado provas exuberantes de amisade ao snr.
Coelho, verberando com prosperos sarcasmos uma menina em tudo
respeitavel, menos na sua virtude.

--É de mais!--atalhou Jorge--Póde ser que Silvina mereça censura como
inconstante, sem com isso...

--Deixar de ser virtuosa?...--interrompeu o poeta...

--Justamente.

--Não julga bem, snr. Coelho. A deshonestidade não póde ser virtude. A
mulher que enfeira o coração, e o põe á concurrencia, mirando ás
vantagens do pedido, poderá ser uma sagaz professora de economia
politica applicada ás mercadorias do coração, mas virtuosa é que ella de
certo não é. Para mim tenho que a virtude póde coexistir com a miseria
da mulher perdida que não tem a hypocrisia de expor o coração á venda;
porém, quero eu que não prostituamos a palavra, que é santa, cedendo-a á
que cuida cobrir as suas ulceras com o amicto de virgem. A snr.ª D.
Silvina de Mello, que eu vim, depois de cinco annos de ausencia,
encontrar occupando a vagatura d'outras aventureiras que eu cá deixei, é
uma senhora aleijada.

--Ainda mais essa!--atalhou Pires--Eu nunca dei pelo aleijão de Silvina!

--Aleijada de espirito, quero eu dizer, snr. Albuquerque. Que outro nome
se ha-de dar á lamentavel enfermidade moral d'uma menina que desperta
das suas illusões de infancia, esfrega os olhos, e começa a procurar em
redor de si um homem com alguns saccos de dinheiro? Ha ahi nada mais
torpe, mais nauseabundo na face da terra! A mulher que assim faz tem
alluido a sua virtude pela base, que é a vergonha. D'ahi ávante o pudor
é uma mentira, as côres que sahem ao rosto são irrupções de sangue como
as empigens, é um mechanismo da materia que o observador encontra mesmo
nos prostibulos. Que é o que bate no peito d'essa mulher, desde que a
ancia do dinheiro fez d'ella um estimulo de sensações? Quando ella
fallar nos affectos da sua alma, qual é de nós o que voluntariamente se
immolará ao escarneo de sua propria consciencia, respondendo ás Silvinas
com expressões de candura e boa fé? O snr. Jorge Coelho tem a
sinceridade de me dizer se me entende?

--Entendo; mas não creio que Silvina seja a mulher que o senhor
qualifica.

--Eu não a qualifiquei ainda: o que eu quiz foi a certeza de que o meu
joven amigo me entendeu a theoria: agora pertence á pratica o qualificar
Silvina. Está o snr. Jorge Coelho no Porto. Fez bem em vir. Isto é uma
questão de tempo. Faça as suas experiencias desde ámanhã em diante; mas
tenha a condescendencia de me ir communicando os seus descobrimentos.
Entretanto, restitua ao snr. Leonardo Pires o bom conceito em que o
tinha, que estes amigos são raros. Outro objecto. A minha commissão não
era vir discutir Silvina: Eu fui aqui enviado pela snr.ª D. Marianna
Ferreira e seu marido a fim de conduzir o snr. Jorge a casa d'elles,
onde foi recebida uma carta de sua mãi.

--Oh! bravo!--exclamou Pires.--Temos homem!

--Não atino com o seu enthusiasmo, snr. Albuquerque!--disse o escriptor.

--Que mulheres, que mulheres tu vaes vêr, ó Jorge!--continuou bracejando
o da Maya.--As Ferreiras! a nata, a quinta essencia das mulheres bellas
do Porto! E a Rachel! ai! aquella Rachel, casada com o nariz mais
indecente que fez o acaso estupido, a quem o Creador entregou a
repartição dos narizes! A Rachel! a mulher dos olhos de antilopa! as
mais bellas carnes que ainda vestiram uma alma, se é que uma mulher
d'aquellas precisa de ter alma para ser perfeita! Ó Jorge, tu estás
curado! Quando vires Rachel, sentirás um coração novo, um coração
caldeado nas fragoas dos olhos d'ella! Eu vi-a uma vez, e creio que se a
visse segunda...

--Iria á missa dos Clerigos vêl-a terceira, não é assim?--interrompeu o
poeta, rindo, com Jorge, dos transportes sinceros de Pires.--Rachel é
uma bella senhora, e uma nobilissima alma--continuou o escriptor
gravemente.

--Mas, segundo a sua theoria--atalhou de golpe Jorge Coelho--essa Rachel
é uma das muitas aleijadas que por ahi ha. Não a conheço; mas sei que
ella casou com um brazileiro hediondo e rico.

--Aquelle nariz!--disse Pires.--Tambem me quer parecer que a mulher
pouco vale na alma, quando contemplo o nariz de Manoel Pereira!

--E eu creio que a sociedade--tornou Jorge--não desconsidera Rachel
porque ella escolheu um homem rico, podendo ter aceitado a
desinteressada pobresa e o coração opulento de muitos rapazes que a
cortejavam. Já se vê que a opulencia d'um sordido não desluz aos olhos
da sociedade a virtude d'uma senhora que se deu por ella.

--São contos largos...--disse o romancista.--Custa-me que o cavalheiro
confunda Rachel com Silvina. Creia que offende uma martyr, snr. Coelho,
Rachel supporta o supplicio de Mezencio, com a resignação que santifica
a baixeza, se ella tivesse existido, e as culpas futuras, se ellas podem
existir. Não levo em paciencia o aggravo feito á pobre menina. Vou
contar-lhe em quinze minutos a historia do casamento de Rachel. Bernardo
Joaquim Ferreira conhece o valor do dinheiro, e duvida da existencia
d'umas paixões, que podem vingar e prosperar sem dinheiro.

Ás filhas chama-lhe suas, e não exclue d'esta propriedade o coração. O
seu pensamento fixo d'elle é casar ricas as filhas. Rachel era querida
de alguns amigos meus, espiritos dignos d'ella, que lhe teriam dado a
ventura, se os encontros predestinados dos espiritos não fossem o
mentiroso poetar de infelizes que nunca se encontram. Um d'esses amigos,
fui procural-o ao hospital de alienados, quando desembarquei ha cinco
mezes em Lisboa. Conheceu-me ainda, e as primeiras palavras que me disse
foram: «Morreu Rachel! A minha alma foi com ella.» Pobre moço! bem
sentia elle que já não tinha alma! Depois de dous annos de loucura, por
ignorados motivos, esquecido de tudo que fôra, tinha uma só
reminiscencia, como se todo o seu passado se concentrasse n'ella...
Vamos ao ponto, e desculpem-me d'estas intercadencias melancolicas. Os
senhores não sabem ainda o que é olhar para o passado aos trinta e cinco
annos, e vêr uma longa fila de espectros uns gotejando sangue, e outros
lagrimas...

O poeta dissera isto tão do intimo amargurado, que nem Leonardo Pires
deixou de o escutar com magoa. Jorge, já dorido de suas tristezas, não
era para espantar que desse em lagrimas uma prova de sympathia á dôr
alheia.

Proseguiu o romancista:

Ha seis annos eram dous os homens indicados para maridos de Rachel. Quem
os indicava, e negociava com ardis, e negaças ignobis, sobre serem
immoraes, era o pai. Rachel detestava-os ambos. Manoel Pereira era um; o
outro era brazileiro tambem, menos repulsivo, melhor alma talvez, e
amigo do primeiro. Desde que se toparam a amar a mesma mulher,
odiaram-se, intrigaram-se e depreciaram mutuamente os seus haveres,
porque bem sabiam que Ferreira tinha a filha em almoeda. O primeiro que
a pediu foi Manoel Pereira, abonando-se com cem contos. O segundo não
dizia o seu valor. Foi o primeiro preferido, sem ser consultada a
victima.

N'este tempo, Manoel Pereira entra em transacções com o governo, e perde
cincoenta contos. Ferreira, sabedor da perda, acolhe de novo o outro
concurrente, e cede-lhe a filha. Este carecia de ir liquidar o seu
negocio ao Rio de Janeiro. Mas, como a liquidação se detivesse mais d'um
anno, Manoel Pereira aventura-se em especulações mercantis, estas
prosperam-lhe, restaura-se das perdas, e rehabilita-se para esposar
Rachel. O negociante, que sabia o anexim do passaro na mão, receia que o
outro não volte, e quebra pela terceira vez o contracto. Rachel ignorava
estas asquerosas mercadorias. Annuncia-lhe o pai que ella é esposa
promettida de Manoel Pereira. A pobre menina quer defender-se primeiro
com razões, depois com lagrimas. Tudo lhe é rebatido com indifferença,
ou com palavras violentas de soberania paternal. Desde o dia em que se
fizera definitivamente a operação commercial dos quinze annos d'um anjo
formoso, como a esperança d'uma alma pura, com o homem de cincoenta
annos, sem o desconto de alguma feição boa do corpo ou da alma, Rachel
era perseguida pelo seu porco demonio de todas as horas. Se acontecia
Manoel Pereira estar na sala, e a lagrimosa criança se demorava no seu
quarto para encurtar as horas do supplicio, ia lá o pai buscal-a; e se
as grosserias a não compelliam a aligeirar o passo, não era raro
ameaçal-a de pancadas, e mesmo fazer executiva a paternal justiça.
Quantas vezes Rachel entrou na sala, com as faces escarlates das
bofetadas que o pai lhe dava como incentivo para saber aproveitar-se da
fortuna caprichosa! Era esta a lastimosa situação de Rachel quando eu
fui para o Brazil. Recordo todas as palavras que a formosa criança
me disse a ultima vez que fallamos.--Tenha animo para a
obediencia--disse-lhe eu--Bem póde ser que Deus a remunere d'essa
virtude com imprevistas felicidades.

--Eu dou por terminada a minha vida--respondeu-me Rachel com os olhos
enxutos--Tenho quinze annos, e ha tres mezes que olho para a minha
existencia, como se ella fosse já longa de trabalhos. Os paroxismos
hão-de ser rapidos. Sei que nem eu nem alguma de minhas irmãs podemos
sobreviver á mocidade. Estamos todas feridas da mesma morte. D'aqui a
pouco lançarei o coração em golfadas de sangue, e meu pai não terá
remorsos de ter cooperado para a minha morte, por que elle já viu dous
irmãos meus cahirem no verdor dos annos na sepultura onde cahiremos
todos. Vá, que não me torna a vêr...

Eu sahi de ao pé de Rachel, com o coração opprimido, mas contente de mim
porque chorava as primeiras lagrimas, depois d'outras que eu julguei
serem as ultimas... Rachel casou. Não morreu. Mentiu-lhe o anjo que
fallava áquella sua innocentissima alma. Vive. É uma agonia sem nome...
O quarto de hora já lá vai. Agora, meus amigos, não venha mais o nome de
Silvina como um escarro á face de Rachel. Até ámanhã, snr. Jorge. Depois
d'estas reminiscencias, eu tenho um singular coração que se brutifica, e
uma alma que detesta a sociedade. Boas noites.


XXI.

Cuidava o leitor que estava livre do sujo José Francisco Andraens; do
estouvado Leonardo Pires; do nariz de Manoel Pereira; da erudição
mythologica de fr. Antonio; do mettediço jornalista; da fidalga de
Margaride, adeleira fraudulenta do seu roto coração; da Francisquinha da
Cunha, promettida esposa do linheiro das Hortas; do morgado de Santa
Eufemia, rival do Andraens; do Egas de Encerra-bodes, illustrissimo
sangue neogothico; de Jorge Coelho, alma pura e candida e apaixonada até
enfastiar o bom siso de quem nos atura, a elle e a mim; e, finalmente,
de Rachel.

Ai! não me digam que estavam enfastiados de Rachel!... As lindas
mulheres só enfastiam os seus maridos, e desagradam ás mulheres feias.
Parece que a propria moral, severa como a directora d'um collegio, se
compraz ás vezes de as vêr louquinhas, se o ellas são. A belleza é o
poder moderador dos delictos do coração. Uns lindos olhos são a mais
commovente rhetorica em defeza das culpas que a intolerancia lhes
assaca. Um braço gentil, que descuidosamente se denuncia nu, abala o
animo do juiz austero com mais vehemencia que a mimica de Hortencio e
Mirabeau. O sorriso discreto, se não é bem despreso nem expressão de
orgulho da culpa, abranda e enternece mais o peito abroquelado de
indifferença, que a lacrimosa peroração dos que vingam apertar com os
cilicios da piedade o coração de um jury.

Mas a que proposito cahe esta especie de defeza de Rachel?! Peccou ella,
por ventura? Não, minhas senhoras. Rachel tem um só peccado de fraqueza;
foi optar pelo marido, entre o marido e o suicidio. Desceu ao plebeismo
das outras, que lhe haviam dado o exemplo da renuncia de si proprias,
podendo afidalgar-se e ser unica pelo heroismo de se entregar á justiça
de Deus, fugindo ás injustiças do mundo. A morte moral, que a sociedade
inflige ás malfadadas, que a cupidez d'um pai acorrentou a um marido
abominavel, se o coração, em phrenesis rompeu o grilhão, é, mais
dolorosa que o suicidio tantas vezes, quantos são os repellões que a
sociedade lhes dá até as engolfar no abysmo sem sahida.

Querem dizer-me que Rachel, se tivesse aceitado o beijo da morte, e
fugisse ao beijo marital de Manoel Pereira..., (um beijo de Manoel
Pereira, com aquelle nariz na vanguarda... santo Deus!) ninguem se
lembraria do seu heroismo a estas horas? Dizem mais que o desdem da
gente séria, e a censura da gente religiosa, e a irrisão da gente
parvoa, e o contentamento de outra que Manoel Pereira iria escolher,
entre mil, n'esta grande feira, fariam do suicidio de Rachel assumpto de
reprovação e de affronta á sua exquisitice? Tambem o penso assim. Estou
que ninguem já hoje se lembraria do pobre anjo que fôra queixar-se a
Deus de o terem querido despir de suas pompas, de suas flôres, de sua
aureola, de sua virginal pureza, para o prostituirem aos regalos d'um
satyro revelho, que perdeu alma e coração no grangeio da riqueza, com a
qual vem mercar um recreio para a sensação do corpo, abrazeado na vida
ociosa! Ninguem se lembraria da nobre alma, que preferira deixar as
graças do corpo aos vermes, para o não dar ao cêvo de uma besta-fera.
Assim é; porém, se uma vez Rachel voltar o rosto de enojada do cadaver a
que a prenderam; se a força, que o coração lhe fizer, tiver comsigo a
força do exemplo bem succedido e quisto da sociedade; se o seu fragil
batel de virtude, forçada e violenta, se desconjuntar e abrir, rebatido
pela tempestade das paixões; se em fim, aquella honra, a
constrangimento, e não de vontade aceite, se fôr a pique, a sociedade
que dirá?

A sociedade--replica o leitor que a conhece e se conhece--a sociedade
faz-se desentendida por cortezania; por conveniencia; porque sabe a
historia do olho com trave, que se abria espantado de vêr uma aresta no
olho alheio. A sociedade fez uma convenção tacita, de que é fiadora a
civilisação. Em substancia, este contracto social dá os seguintes
resultados:

1.º Respeitar a liberdade do coração humano, sem prejuizo do soalheiro
das salas, em que é preciso entreter o tempo, e fingir a gente que não
conhece senão as pessoas que estão fóra das salas.

2.º Fingir, outro sim, a gente que está convencido da tolice dos outros,
para que os outros nos tenham em conta de boçaes de boa fé, e não de
espertos sem pudor. Dá-se um exemplo em hypothese: tal marido sabe que o
mundo o lastima ou moteja; mas como a lastima e a irrisão cauterisam,
sem curar, a chaga do vilipendio, o lazaro finge-se de optima saude, e
aproveita occasião de gemer pela molestia do seu amigo, gafado da mesma
lepra. Estes dous homens, se se topam, e fallam da corrupção social,
voltam as costas a rir um do outro, e vão cada qual por seu lado,
espalhando a risada contagiosa.

3.º Não perdoar o que se chama «escandalo». Escandalo é não ter a
sagacidade da hypocrisia, e o despejo de injuriar o senso publico,
tratando-o de nescio. Escandalo é tomar a serio as brincadeiras do
coração, e vir dar alguem á sociedade uma prova de que despresa o
contracto social. Escandalo é cahir da prostituição legal á honra do
coração, que cuida ennobrecer-se e regenerar-se; victimando o nome, o
estado, e o que a inveja chama fortuna, ao goso de conhecer a liberdade
na miseria. Escandalo, a final, o escandalo maximo e abominavel e
imperdoavel é a mesma miseria.

A sociedade sabe que o crime é um dos elementos da ordem das cousas, e
julga-o um mal necessario, sem o qual não haveria bem-aventurança nem
inferno, nem anjos, nem demonios, e Deus seria inutil por não ter que
fazer, visto que os theologos lhe não attribuem occupação que não seja
julgar, premiar, condemnar, e perdoar, segundo lhe pedem, ou conforme a
sua espontanea misericordia quer. Ora, sem o crime, este complicadissimo
funccionalismo, cujo presidente é o Creador do céo e da terra, do mar e
do sol, da avesinha que regorgeia nas moitas, e do leão que atrôa os
desertos, do homem como Alexandre e Napoleão e do homem como José
Francisco Andraens, e Manoel Pereira... dizia eu... eu! eu não dizia
nada: quem dizia que o crime é necessario era o jornalista, amigo de
Guilherme do Amaral, conversando na «Aguia d'Ouro» com Jorge Coelho,
alguns dias depois do encontro em que os vimos no capitulo ultimo da
primeira parte d'estas biographias.

Vamos agora á historia.

Achou Jorge em casa de D. Marianna Ferreira o seu quarto e sala
adornados com muito aceio e selecção. Melhor que isto, era o gosto de se
vêr acolhido sem estranhesa nem demasias de ceremonia. Os filhos e
filhas de D. Marianna, logo ao segundo dia, o tinham como pessoa da
familia, e porfiavam em divertil-o d'aquelle geito de tristeza, que era
natural, e das abstracções penosas, que tinham a sua razão de ser na dôr
do coração.

D. Marianna, senhora algum tanto despreoccupada do artificio, que tão
preciso é, chamado delicadeza, logo que Jorge lhe deu uma aberta, fallou
na paixão, que o seu hospede tinha por Silvina, e nos desgostos,
nascidos d'esse louco amor, para a sua querida Antonia.

D. Marianna, em termos desabridos, disse de Silvina o que era notorio, e
talvez lhe exagerasse os defeitos.

Jorge escutou-a respeitosamente, e ao mesmo tempo admirou-se de ouvil-a
assim fallar na presença de suas filhas, que todas estavam presentes,
salvo Rachel, a quem elle não tinha ainda visto.

Lembrado está o leitor de ter sahido Manoel Pereira zangado de casa de
sua sogra, por que a maioria lhe rejeitára o parecer de não ser recebido
Jorge em casa d'aquella. Como Rachel sahisse então da sua paciente
annuencia aos votos irracionaes do marido, este, mal afeito a ser
contradictado, protestou convencer a mulher e a sogra de que não queria
relações com tal sujeito.

No dia seguinte, ao abrir da manhã, mandou preparar alguns bahus, entrou
n'uma carruagem com Rachel, e foi conduzil-a a uma quinta, seis leguas
distante do Porto, nas immediações de Barcellos. Quizera a submissa
senhora despedir-se de sua familia; mas Manoel Pereira, franzindo as
verrugas do nariz, e enviezando o beiço na sua ordinaria expressão de
zanga, atalhou as intenções da saudosa Rachel, dizendo que a mulher
casada não tinha familia senão seu marido. E Rachel, fitando os olhos
coruscantes de raiva no nariz do esposo, disse com o fel do coração nos
labios, que sorriam sardonicamente:

--Deus te livre que eu alguma hora me esqueça de que tenho uma familia,
que não é meu marido... Se lhe eu perder o respeito a ella, se os
estimulos de minha exemplar mãi me faltarem, tu verás então que eu não
tenho outra familia.

O marido, arregaçando os musculos businadores, e as azas nasaes com
elles, regougou:

--Põe lá essas doutorices em miudos, que eu não te entendo.

--Se me tu entendesses--redarguiu Rachel--nunca me forçarias a fallar
assim á tua ignorancia.

Manoel Pereira cascalhou uma risada de velhaco, e coçou-se atraz da
orelha esquerda.

Não se trocaram palavra no decurso de seis leguas. Rachel ia linda pelo
escarlate da sua colera; e Manoel Pereira bufava, quando não cabeceava
de somno jogando contra o hombro de sua mulher.

A gentil senhora, a espaços, encarava no marido, e dizia entre si: «Que
destino o meu! Este é o homem, que me deram para a vida! Querem que seja
d'este homem o meu coração! Ter uma só existencia, e curta como hade ser
a minha, e hei-de sacrifical-a toda a esta cousa que vale duzentos
contos de réis!

«Que aproveitou meu pai d'este monstruoso enlace? Que lucrou este homem
em se aviltar para me chamar sua, se elle mesmo conhece que lhe obedeço
abominando-o? Mas eu não devia soffrer, porque Deus bem sabe que fui
levada de rastos, e que me perdi por ser boa filha, e me tenho
atormentado para ser uma victima obediente dos calculos de minha
familia! Calculos! quaes, e de que serviram? Quem foi feliz com
elles?!...»

Estes mentaes soliloquios eram cortados por algum ronco pavoroso, ou
espertar estremunhado do negociante de couros, quando não era uma
pancada da mão esponjosa que algum sonho sacudia ao peito de Rachel.

Chegaram ao seu destino, e pouco depois as cargas da bagagem, e as
criadas de Rachel. Manoel Pereira passou na quinta aquelle dia e o
seguinte; ao outro, voltou para o Porto a fim de fazer uma carregação de
couros, e activar uma leva de escravos brancos para o Rio de Janeiro.

Rachel, á hora crepuscular da noite d'esse dia, foi sósinha sentar-se
nas escadas do cruzeiro, que defrontava com o portal da quinta, e então
chorou as lagrimas represadas em tres dias de exasperada angustia.

Como tu serias linda alli de uma formosura do céo, Rachel! Qual
Magdalena mais linda inventou o buril aos pés da cruz misericordiosa! E
se anjo tu eras de purissima alma; se as mesmas lagrimas te depuravam de
intenções culposas, que alegria não seria a do teu Creador, vendo-te
assim incontaminada, com menos ventura que muitas que não tinham no
coração uma fibra incorrupta!

Se a essa cruz voltares, n'outra tarde, a pedir perdão da queda, hão-de
os anjos chorar-te, ó Rachel; mas pedirão a Deus que te leve para si e
para elles, como se houvesses cumprido immaculada o teu desterro do céo.


XXII.

José Francisco Andraens venceu a morte, que lhe entrára no buxo,
disfarçada nos dez pombos, que elle ceiou, em casa do visconde dos
Lagares.

Das recahidas é que ia sendo impossivel salvar-se. Quando a medicina lhe
empunha um caldo simples com meia onça de pão esfarelado, José Francisco
desfazia meia gallinha na tigela. A inflammação gastrica
reaccendia-se-lhe nas cavernas, e a morte voltava de novo a espremer-lhe
os succos das tres barrigas até descorçoar rebatida pela brutal
compleição. A final nem a medicina pôde acabal-o!

Ergueu-se José Francisco algum tanto abatido, um pouco pallido, quebrado
de vista, e mal seguro das suas pernas zambras. Deu um passeio de
carroção até á Foz, e almoçou com appetite. Voltou no dia seguinte, e
almoçou duas vezes. Cubiçou pescada, por que a viu sahir das redes, e
mandou cozer uma com cebolas e batatas. Depois de jantar, dormiu um
somno de justo, com a barriga repleta, (cousa que não succede muitas
vezes aos justos)--e sahiu de tarde a tomar a fresca em Carreiros, onde
a fortuna lhe deparou uma vendedeira de manjares brancos e pasteis de
Santa Clara, que lh'os vendeu todos a olho, e elle comeu, empinado sobre
um penedo sobranceiro ao mar.

Tomada a refeição, José Francisco limpou o suor da papeira, e lambeu os
beiços pulverisados do assucar dos pasteis. Depois descobriu a cabeça á
bafagem fria do oceano, cruzou os braços em postura de quem medita, e
pensou assim:

--Como isto é tamanho! Como se faria o mar? Por que será que o mar
cresce e minga? Quantas pescadas haverá no mar? A gente sempre a comer
peixe, e nunca se acaba!

Entrava José Francisco na solução d'estes problemas, quando a linha do
seu horisonte foi cortada por um barco a vapor. Topetaram então com o
sublime do engenho humano as suas meditações:

--E o vapor!?--dizia elle--Sempre os homens tem idéas! Pelos modos o que
faz girar as rodas é o fumo do carvão! Uma cousa assim! E como a gente
come boa carne a bordo d'um vapor inglez! Bons tempos eram aquelles em
que eu viajava, e comia tanto, sem me sentir enfartado como agora que
qualquer cousa me trabalha cá no interior!...

Estas considerações entristeceram José Francisco, e o espectaculo do
oceano enfastiou-o. Ergueu-se, desceu do seu throno de caranguejos e
algas, e foi dar alguns passeios na lingueta de pedra, onde então
passeavam muitas familias.

Entre estas estava Francisca da Cunha conversando com Antonio José
Guimarães, o linheiro; e Silvina de Mello procurando conchinhas na
praia.

O linheiro foi comprimentar o commendador, e D. Francisca chamou a
attenção da prima.

José Francisco, logo que viu Silvina, perdeu a cabeça.

É preciso explicar o que o leitor já devia saber, se esta historia fosse
contada com mais arte.

Quando Andraens cahiu doente, Silvina mandou saber do seu estado, e teve
quem lhe assegurasse que o illustre enfermo succumbiria ao typho,
resultante da gastrite. Ao mesmo tempo, disse-lhe alguem que José
Francisco fizera testamento, sendo uma das verbas testadas aos seus
parentes de Cozelhas a quantia de um conto oitocentos e vinte e cinco
mil e setenta reis, de que lhe era devedor Pedro de Mello, declarando a
quinta hypothecada ao pagamento da quantia, e juros da lei.

Silvina não mandou saber do homem; e Pedro de Mello, que viera ao Porto
para apressar o casamento, tão indignado ficou da avareza do moribundo,
que deu louvores a Deus de matar a tempo o villão, para que sua filha se
não conspurcasse na lama de tal javardo. Era o sangue escandecido do
sargento-mór d'Amarante que refervia nas veias do neto. E, ao mesmo
tempo, como o morgado de Santa Eufemia andasse ahi nas ruas do Porto,
exhibindo um rosto de amargura e uma gravata verde-gaio com alfinete de
cabeça d'ouro rendilhada, Pedro de Mello disse á filha que seria
prudente não dar de mão ao morgado, porque lhe constava que o pai tinha
soffrido um insulto apopletico, e não poderia viver longo tempo.

Silvina, anjo de submissão, accedeu á vontade paternal, e trocou algumas
palavras com Christovão Pacheco, quando ambos immergiam no mar, e
recebiam a unção conciliadora da mesma onda. Succedeu assim o caso em
que pegou o desamuarem-se:

O morgado, ao aproximar-se a onda, dava urros, e mettia-lhe a cabeça com
furioso impeto, perneando fóra d'agua. Como Silvina estivesse perto
d'elle, viu que o sapato d'ourêlo n'um d'esses pinotes de arlequim
maritimo, lhe saltára de um dos... dous pés--digamos dous pés por
deferencia á historia natural.--E, quando o sapato, entumecido de agua,
ia ao fundo, Silvina disse á banheira que apanhasse o sapato do
cavalheiro. A tempo foi isto que o morgado o andava procurando á tona
d'agua; e, como ouvisse a magica voz da dama, e visse o sapato na mão da
banheira, que lh'o atirava a elle, Christovão, bem assombrado, disse a
Silvina:

--Obrigado á sua attenção, minha senhora!

--Não tem de quê--respondeu Silvina, sorrindo.--Porque não toma o senhor
o seu banho mais quieto?

--Gosto d'isto assim;--respondeu o morgado.

--Eu cuidei que era o nervoso que o obrigava a dar cambalhotas na agua.

--Nada, não é, minha senhora; é que eu gosto de brincar com o mar; com o
amor é que eu já não brinco.

--Nem deve brincar, porque o amor gosta de ser tratado seriamente; e o
senhor zomba com as victimas d'elle...

--Eu é que zombo, minha senhora!... Não perca esta onda, que é boa.

O de Santa Eufemia arremetteu com a onda, e fez proezas de natação,
deixando-se ir de costas no dorso da vaga, que o levou á praia.

Como Silvina sahisse do mar, o morgado sahiu tambem, vestiu-se, e
esperou, disfarçadamente, a sua mulher fatal. Sahiu Silvina da barraca,
e deu de rosto com Christovão Pacheco. Sorriu-se, e respondeu á cortezia
do fidalgo de Freixieiro. Deu alguns passos, procurando Francisca da
Cunha; e, como a visse entre duas barracas protectoras conversando com o
linheiro, sentou-se a um recanto, sosinha, e meditativa. O morgado
sentia caimbras nas pernas e saltos do coração. Girava em roda d'ella,
puxado por magnetismo irresistivel. A final fez ao seu acanhamento o que
fazia ás vagas: metteu a cabeça, e foi.

Silvina recebeu-o agradavelmente, e conversou com elle um quarto de
hora. D'esta conversação resultou ficarem convencionados para tomarem o
banho juntos no dia seguinte, e assim nos oito dias que decorreram.

José Francisco Andraens convalescia da ultima recahida, quando teve
noticia da deslealdade de Silvina. Desafogou no seio do visconde dos
Lagares, e deu procuração para ser demandado Pedro de Mello por um conto
oitocentos e vinte e cinco mil e setenta reis, e juros da lei. Com estes
acontecimentos coincidiu a ida do commendador á Foz, e o seu encontro
com Silvina em Carreiros. Agora está dada a razão de ter perdido José
Francisco o tino, quando a viu á cata de conchinhas.

--Ó prima Silvina--disse Francisca--olha que está aqui o senhor
commendador Andraens.

--Bem se lhe dá ella que eu esteja aqui ou em casa do diabo--disse com
ira e amargura José Francisco.

Silvina avisinhou-se do grupo, e disse serena e em tom severo:

--Folgo muito em vêr restabelecido o credor de meu pai. Ser-me-ia
dolorosa a sua morte, por muitas razões, sendo a primeira o receio de
vêr meu pai soffrer alguma penhora a requerimento dos herdeiros do
senhor commendador.

José Francisco respondeu com promptidão sem mudar de côr:

--Quem deve, paga. É como é. A senhora esperava ser minha herdeira?

--Não, senhor; esperava merecer-lhe a consideração de mulher que
estivera para ser sua esposa. Esperava que o senhor não andasse jogando
entre mim e meu pai com um punhado de ouro, que não vale para mim este
punhado de conchas. Esperava, finalmente, que o snr. José Francisco
Andraens não viesse por si mesmo certificar a conta, em que é tido, de
possuir uma riqueza que é o seu flagello, e o das pessoas a quem
empresta uma migalha das suas sobras. O senhor, logo que se viu em
perigo de morte, esqueceu-se de que eu me tinha desembaraçado de todos
os obstaculos para ser sua mulher, e testou a insignificante divida de
meu pai, para morrer sem deixar saudades a alguem n'este mundo. Desde
que v. s.ª praticou semelhante baixeza em que conceito queria que o eu
tivesse?

José Francisco tartamudeou esta resposta:

--Eu não estava escorreito do miolo quando fiz o testamento. Lá foi o
meu amigo visconde que arranjou tudo, e eu assignei sem dar tino de mim.
Se offendi o senhor seu pai, queira perdoar.

Não ha que vêr: Silvina era a mulher fatal de tres corações, que por
ella andavam perdidos. Andraens, como a visse e ouvisse, perdia a
consciencia da sua dignidade, e--o que mais é para assombro--a
consciencia de credor. Quanto mais arrogante Silvina lhe castigava a
natural grosseria, mais escravo se humildava José Francisco. Fulminava-o
a electricidade dos olhos d'ella, e tinha a sua voz um encanto, que
faria lembrar o da magica da Colchida, se elle não fosse pôrco, antes de
ouvil-a. Pasmava elle do feminil predominio d'aquella mimosa mulher que
o sopesava; mas este espanto era submisso, e a submissão amor, que os
romancistas chamam o fatidico, o predestinado, o invencivel.

Antonio José Guimarães, avesso á reconciliação de Silvina com o morgado,
e desejoso de a vêr ligada ao seu amigo Andraens, esforçou-se em
desamual-os, dando explicações a favor d'um e d'outro, de modo que ambos
já as escutavam silenciosos. José Francisco acompanhou Silvina e
Francisca, promettendo vir jantar com ellas no dia seguinte, e
authorisou o linheiro a dizer de sua parte á menina que por causa d'elle
não se havia de desarranjar o que estava tratado. Mandou immediatamente
sustar a começada execução sobre Pedro de Mello; presenteou com
alfinetes e pulseiras as duas fidalgas; tomou casa na Foz; deu a Pedro
de Mello as satisfações que o pundonor do fidalgo exigia, e deixou ao
arbitrio d'este as condições da escriptura nupcial.

E o morgado de Santa Eufemia? Esse continuava a dar cabriolas nas ondas.


XXIII.

Em fins de Setembro, foi Jorge Coelho, na companhia de Leonardo Pires, á
Foz. D. Marianna contrariára-lhe o desejo, até áquelle dia, por saber
que a ventoinha de Margaride lá estava, desafiando, com as suas
evoluções amorosas, a irrisão da gente frivola e a indignação das
pessoas sérias. O jornalista, porém; que era oraculo em casa do
negociante Ferreira, aconselhára a excellente amiga de D. Antonia a não
impedir que Jorge visse o espectaculo irrisorio ou repugnante em que
Silvina se exhibia.

Estava ella sentada nas ribas fragosas, que marginam o «caneiro» onde os
grupos se banhavam. Francisca da Cunha estava, ao lado da prima,
conversando com o linheiro. O morgado de Santa Eufemia, n'outra
eminencia do fragoêdo, abarcava as pernas com os braços, e apoiava o
queixo entre os joelhos. Na especie de ilha que fórma a outra riba do
caneiro, andava aos pulos Egas de Encerra-bodes, ensinando um cão da
Terra-Nova a saltar ás ondas. E era aquelle o vulto mais pitoresco da
praia, envolto no seu cobrijão escarlate, franjado de borlas verdes, e
cahido a um lado com a natural graça, que usam dar-lhe os provincianos,
vesados áquella elegancia de feiras.

Jorge de Sepulveda avistou de longe Silvina, e disse a Pires:

--Lá está ella... Não passemos d'aqui.

--E que quer dizer não passarmos d'aqui?--acudiu o da Maya, accendendo o
charuto no cachimbo denegrido d'um banheiro--Queres tu, amigo Jorge,
fingir o que não és? Apraz-te passar por tolo no conceito d'aquella
mulher?!

--Julgue-me ella como quizer...--replicou elle--concedo que seja tolice
isto, mas... é cedo ainda para ser... homem. Eu amei seriamente Silvina.
O amor e o remorso são espinhos, que não desencrava do coração quem
quer. Para que te hei-de eu mentir, se me não posso enganar a mim? Não a
esqueço, nem se quer a despreso áquella mulher. Minha mãi ajoelhou
commigo sobre a sepultura de meu pai, e pediu-me, pela memoria d'elle,
que me vencesse e levantasse da minha miseria. Quiz, e não pude, meu
amigo! Como queres tu que eu possa dissimular á penetração de Silvina o
que por ella sinto?! Melhor é que me ella não veja. Vai tu, se queres:
eu espero-te aqui, e voltaremos logo para o Porto.

Jorge sentou-se n'uma fraga a distancia; e Leonardo Pires, vibrando o
chicote, foi postar-se a pouca distancia de Silvina, conversando com o
morgado de Santa Eufemia.

--Então quem namora agora a menina?--disse o da Maya--O meu amigo de
certo não, que o vejo aqui amuado. Jorge Coelho tambem não, que está
acolá conversando com a natureza, e lendo o seu destino no vôo das
gaivotas, como Catão d'Utica.

--Que é?!--disse Christovão, receioso de que o nome do romano fosse
algum chasco á sua ignorancia.

--Catão d'Utica, disse eu, meu caro senhor; não conhece este personagem?

--Nada, não conheço--replicou o morgado, voltando o rosto para o lado de
Silvina, que o remirava com disfarce por entre o franjado da sombrinha.

--Mas ha-de conhecer aquelle outro personagem que lá vem--retorquiu o da
Maya.

Christovão olhou na direcção indicada, e viu José Francisco Andraens,
que descia lentamente a calçada que conduz á praia. Não teve mão da sua
raiva, de mais a mais aguilhoada pela facecia de Pires: fitou Silvina
com um sorriso de ironia bruta, e disse-lhe em alta voz:

--Lá vem o nosso homem!

E soltou uma casquinada de riso, dando upas sobre a pedra, com as pernas
apertadas entre os braços.

Silvina virou-se de lado com repellão, e Leonardo Pires exclamou:

--Estão bonitos! isto sim, que daria idéas a um Gavarni cançado! Ó
humanidade tu és a caricatura dos monstros que a imaginação cria nos
seus delirios de cognac e absyntho!

Dito isto, com pasmo d'algumas familias de Traz-os-Montes, que por alli
se agrupavam, Leonardo desceu do fragoedo para a praia, ao mesmo tempo
que José Francisco se aproximava de Silvina.

--Ora viva!--disse o commendador á fidalga de Margaride--Como passou?

--Excellentemente, e o snr. Andraens?

--Está feito; não me dei muito bem com a ceia. Appeteceu-me uma lagosta,
e trabalhou-me cá dentro toda a noite. Agora, estou mais desempachado, e
acho que vamos ao banho.

--Quando quizer.

--Sempre me sento um bocado a arrefecer--tornou José Francisco,
apalpando as pedras, e ajustando, o melhor que pôde, com as asperezas
d'ellas as roscas de carne cuja flexibilidade se moldava ao anfractuoso
da rocha. Depois, bramiu um urro de satisfação, e cruzou as mãos sobre a
barriga n.º 2.

--Com que sim--continuou elle--Em que estava a senhora a malucar?

--A malucar?!--disse Silvina, franzindo a testa.

--Sim, dizia eu, se estava a cogitar n'esta vista do mar...

--Ah! sim... estava...

--A fallar a verdade,--tornou elle, recolhendo-se--isto é uma obra que
faz pasmar a gente! O que me dá no goto é isto de crescer e mingar o
mar!... A senhora sabe a razão?

--Dizem que é effeito da attracção da lua.

--Da lua!--atalhou com espanto José Francisco.

--Sim, senhor, da lua; é o que dizem os entendedores; mas como se faz o
fluxo e refluxo do mar é que eu não sei, nem mesmo me importa saber...

--Da lua!--tornou o commendador, olhando para a abobada celeste, e
gesticulando mudamente com os braços, como quem se esforçava por
entender a acção da lua sobre a agua, com um imaginario artificio de
alcatruzes.--Da lua não póde ser!--disse elle por fim, com a energia e
aprumo de Galileu, á sahida do carcere.

--Pois então não seja!--disse Silvina com enfado.

--Porque a lua--tornou José Francisco, com os olhos no céo, e os dedos
das mãos afastados entre si--a lua está lá em cima, e...

--E o mar está cá em baixo...--atalhou a menina, espirrando um frouxo de
riso.

--Ora ahi está! E a senhora ri-se!? Eu queria que os doutores me
explicassem como é que a lua empurra o mar e puxa depois por elle... Ó
snr. Guimarães! olhe aqui que vai já.

O snr. Guimarães era o linheiro, que estava a pouca distancia com
Francisca da Cunha. Vieram ambos ao chamamento de José Francisco, e ella
principalmente attrahida por um tregeito da prima.

--Diga-me cá: vossê sabe como é que a lua faz isto de crescer e mingar o
mar?

--Eu não estudei nada d'isso--respondeu o linheiro--mas, em quanto a
mim, a maré cresce quando o vento é de mar, e minga quando o vento é de
terra.

--Ah! pr'ahi, pr'ahi! diga-me d'isso!--acudiu radioso o
commendador.--Mas da lua!... É que estava cá a minha Silvininha a dizer
que era a lua. Quem lhe metteu isso na cabeça, menina?

--Foi alguem que estava a zombar de mim!--disse Silvina gargalhando
francamente com Francisca da Cunha.

--Isso entendo eu... Agora--tornou José Francisco--se querem ir lá
conversar sosinhos, vão, que eu tenho que dizer aqui a esta menina uns
arranjos cá da nossa vida de noivos.

Francisca e o homem da rua das Hortas afastaram-se para irem occupar as
cadeiras, que deixaram junto d'uma barraca; mas encontraram-nas tomadas
por Leonardo Pires e Egas de Encerra-bodes.

Ergueu-se Egas, e Francisca sentou-se, cuidando que Leonardo cederia a
sua cadeira a Antonio José Guimarães; mas Leonardo não se moveu, e o
linheiro estacou diante d'ambos, com os olhos fuzilantes sobre o da
Maya, que assobiava apparentemente distrahido a canção popular, cuja
letra é: _Muito bem seja apparecido n'esta funcção_...

Francisca ergueu-se, e deu alguns passos em retirada. O linheiro, porém,
bamboando a cabeça, resmuneou estas palavras, mal ouvidas de Pires:

--O que vossê merecia, sei eu.

--Que regouga?--disse-lhe o da Maya.

--O senhor...--replicou Antonio José--ainda ha-de topar quem lhe dê uma
boa lição.

--Vá-se embora--redarguiu Pires--Se não, atiro-lhe areia aos olhos.

--A mim?!--disse com um sorriso azedo o linheiro.

--E enterro-o n'esta praia, como quem enterra um safio pôdre. Vá-se
embora, homem, e diga lá á fidalga que não ame parvos, se não quer
receber d'estas affrontas.

O linheiro fez um arremesso com a bengala, e Leonardo Pires tomou do
chão dous punhados de areia, dizendo com semblante de quem brinca:

--Olhe que vossemecê leva!

Egas de Encerra-bodes, que estivera, a um lado, rindo debaixo de uma
dobra do cobrijão, deu dous passos para a retaguarda do linheiro, e fez
um gesto ao «terra-nova». O cão começou a tirar com os dentes pelas abas
do paletó de Antonio José, e este a sacudir-se, e a florear a bengala,
que infelizmente embarrou no focinho do animal. O remate d'este episodio
foi cousa triste de contar-se. O linheiro, se não tem botas de cano
alto, sahiria com as canellas estrincadas; e póde ser que os dentes do
«terra-nova» procurassem afiar-se em porção das pernas, não abroqueladas
das botas, se Egas lhe não fallasse de modo que elle, de cauda cahida,
veio rastejar-lhe aos pés.

Terminou isto por ir o misero queixar-se ao regedor que alli estava
perto, homem de bom siso, que se dirigiu a Egas, pedindo-lhe que fizesse
saber ao seu cão que nem todos os cidadãos traziam botas de cano alto.

Francisca da Cunha, fugindo para perto de Silvina, podéra forrar-se á
vergonha de semelhante conflicto; apenas dissera ao commendador que um
doudo furioso a perseguia em toda a parte; e, citando o nome do doudo,
viu, com grande pasmo de Silvina e d'ella, erguer-se o commendador, e
descer agilmente as fragas resvaladiças, para se entremetter na
desordem, que encontrou no periodo final do cão arremettendo ás pernas
do seu amigo.

Aplacado o incidente, entraram Silvina e José Francisco, cada qual em
sua barraca, para se vestirem.

Leonardo Pires dirigiu-se a um banheiro, e pediu sem demora um fato de
banho alugado. Vestiu-se, e sahiu da sua barraca a tempo que o
commendador, a par de Silvina, entravam no mar. Seguiu-os, e passou-lhes
adiante, indo postar-se n'um ponto em que as ondas batiam mais fortes, e
onde só os nadadores ousavam esperal-as. Quando a onda vinha, Leonardo
mergulhava, e vinha com ella, até marrar nas pernas de José Francisco.
Erguia-se, sacudia a grenha, pedia perdão e tornava para o seu posto.
José Francisco retirava-se a um lado; mas, na volta de outra onda, a
marrada era infallivel. Á terceira vez, o brazileiro ladeou, quando viu
mergulhar o monstro da Maya; este, porém, nadando com os olhos abertos,
lá foi abalroar com o homem, e pedir perdão pela terceira vez.

José Francisco esbofava no mar como tubarão ferido. Sahiu á praia
atordoado, em quanto Silvina, estranha ao successo porque ficára longe
do noivo, se deixava contemplar pelos olhos lagrimosos de Jorge, que a
via, resguardando-se de ser visto.

Leonardo Pires, no perpassar por ella, disse-lhe a meia voz:

--Jorge de Sepulveda está acolá, minha senhora! Anda aquelle seu bom
anjo a quer salval-a de um eterno ridiculo, e v. exc.ª a cahir, a cahir,
a cahir, n'um dos tres abysmos das tres barrigas de José Francisco
Andraens!...


CONCLUSÃO.

Muita gente honesta, lendo, quinze dias depois, nos jornaes do Porto, a
noticia do casamento de José Francisco Andraens com D. Silvina de Mello,
observou que esta menina tinha muito mais juizo do que mostrava. As mães
de familia citaram-na como exemplo ás suas filhas; e estas, bem que
exteriormente se rissem d'ella, invejaram-na.

Ás suas amigas particulares dizia Silvina que o seu casamento fôra um
sacrificio do coração á dignidade propria; por quanto, dous implacaveis
homens, o morgado de Santa Eufemia e um tal Jorge Sepulveda, calcando
aos pés quantos deveres a civilidade impõe a sujeitos, que não podem ser
amados, lhe andavam sempre dando desgostos, vergonhas, e descredito.
Estes dizeres, comprovados por umas lagrimas que ella arranjava com
prodigioso artificio, apiedaram as proprias amigas, que diziam d'ella
mil maravilhas.

José Francisco Andraens arrijou de suas frequentes dyspepsias, quando o
mundo e a medicina menos o esperavam. Muitos rapazes indiscretos paravam
a contemplal-o á porta dos snrs. Pintos Leites, na calçada dos Clerigos,
nos primeiros quinze dias depois do seu matrimoniamento. José Francisco
estava um todonada melado de rosto; mas não lhe iam mal aquelles ares de
noivo: tudo tem n'este mundo a sua hora e côr de poesia.

O morgado de Santa Eufemia recebeu ao mesmo tempo o golpe da morte e o
balsamo da vida: morrêra-lhe o pai na vespera do dia em que Silvina
casára.

D. Francisca da Cunha casou com o linheiro das Hortas. As duas meninas
com os respectivos maridos foram para o Bom Jesus do Monte, local
sagrado que dá luas de poesia a quantos parvos ha ahi que vão celebrar
n'aquelle sanctuario uma festa, irrisoria, se não tôrpe, na essencia.

Jorge de Sepulveda, quando viu a local da gazeta agoureira de muitas
prosperidades a José Francisco e Silvina, estremeceu, empedrou, e
invocou do anjo da piedade o desafôgo do pranto.

Ora, o amigo de Guilherme do Amaral, se não era o anjo da piedade, tinha
em si um santo e mysterioso condão de espremer entre os dedos
inexoraveis da sua philosophia algum tanto cynica, toda a peçonha dos
corações, cancerados pelo amor.

Alguma vez verá o leitor que boleus deu toda esta gente com as
costumadas voltas do mundo.

O livro complementar d'estas biographias ha-de denominar-se: REACÇÃO DA
POESIA.

É o natural seguimento dos Annos de prosa.

FIM.

    [1] Não vá entender alguem que o romancista está phantasiando.
    Quando Napoleão III casou com a condessa de Montijo, duas familias
    ventilaram em Portugal e porfiadamente, a origem dos Porto-Carreiros
    que levára a Castella os embriões da imperatriz. As familias
    litigantes eram os Porto-Carreiros da casa da Bandeirinha no Porto,
    e outros de igual appellido de Abragão, ahi para as cercanias de
    Penafiel. O pleito heraldico andou nas gazetas, e nomeadamente no
    _Portugal_, jornal realista do Porto. A critica oscillou longo tempo
    indecisa entre as duas familias, até que um dia, cançada de
    oscilações, cahia a rir deixando ás duas familias nobilissimas o
    direito salvo de enxertarem o imperio francez lá em casa.

    [2] _V. do Arcebispo._


      *      *      *      *      *



O ARREPENDIMENTO.



O ARREPENDIMENTO.


ROMANCE.


Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miudo uma boa velha,
minha visinha, que me honrava com a sua estima e amisade. Humildemente
confesso que não ha sociedade mais deleitosa e agradavel, do que a de
uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instructiva e
divertida, é um inesgotavel thesouro de lembranças, anecdotas,
observações chistosas e reflexões circumspectas, é finalmente uma
revista do passado.

D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava á amenidade da conversa,
a do caracter, que era brando e indulgente.

Quando tinha occasião de ir passar uma noite com ella, parecia-me que as
horas voavam ligeiras e que corriam mais rapidas, do que quando as
gastava a distribuir finezas e galanteios ás mais formosas rainhas dos
mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para
o relogio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e
voltava a minha casa com o espirito mais rico, e o coração satisfeito e
melhor.

A historia que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D.
Mafalda n'um d'estes serãos em que vos fallei.

Era n'uma bella noite de Junho; fui encontral-a sentada na sua cadeira á
Voltaire, tendo a seus pés, deitado em um cochim, o seu cãosinho
querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos labios, e
parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flôres do
jardim, se coava pela janella meia aberta. Quando cheguei junto d'ella
vinha indignado por que um de meus parentes tinha sido victima d'um
abuso de confiança; contei-lhe o succedido, e no calor da narração não
poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que
desejava fazer-lhe todo o mal possivel.

--Devagar, meu querido amigo--me disse ella--não o julgava tão
irrascivel, nem que tivesse tão pouca caridade para com o proximo. Sabe
lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o merito de para o futuro se
poder rehabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe
infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse
arrependimento?

--Eis-ahi, minha cara visinha, uma doutrina, permitta-me a expressão, um
pouco subversiva da ordem social.

--Deus me defenda--me replicou--de querer que o culpado não seja
castigado, e que a sociedade fique indefeza dos crimes que um seu membro
praticou contra ella; quiz dizer sómente que devia deixar ás leis o
cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido amigo, não devia,
como individuo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o
sentimento de commiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do
qual talvez ainda bruxelei algum clarão de virtude, que uma occasião
favoravel e propicia, que se apresente, ainda póde despertar, e fazer
com que esse membro da sociedade, que julga inutil, se torne bom e
aproveitavel.

Como eu respondesse a isto, fazendo um d'estes movimentos de cabeça, que
são um protesto mudo e respeitoso, ella acrescentou:

--Está com paciencia para me aturar ouvindo uma historia, pois que ainda
temos algumas horas?

Não recusei: uma historia era uma fortuna para combater a exaltação
d'espirito em que estava.

D. Mafalda principiou assim:

--Emilio da Cunha era o mais velho de tres irmãos, dos quaes, o mais
novo, vivia ha muitos annos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado
fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo sempre infeliz nos seus
commettimentos e especulações. Emilio da Cunha, á custa de muito
trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunasinha, que lhe permittia
esperar com socego, o momento de descançar da vida laboriosa em que
tinha vivido.

Uma quarta pessoa completava esta familia, que era uma irmã, que tendo
seguido seu marido á India, para onde elle tinha sido despachado, e não
vindo nenhum d'elles a figurar n'esta minha historia, não lh'os
recordarei mais.

Aconteceu que o irmão de Emilio da Cunha, que residia no Porto, por uma
d'estas catastrophes que occasionam os jogos de bolsa, falliu. Teve tal
sentimento por este facto, que falleceu tres dias depois, atacado d'uma
febre cerebral. A herança, que deixou, foram dividas e um filho.

Emilio da Cunha, que tinha um coração bondoso, e um caracter
pundonoroso, para que a memoria de seu irmão não ficasse deshonrada,
comprometteu-se a pagar as dividas e recolheu em sua casa o filho para
lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvavel, e digno
de se admirar, sabendo-se que elle tinha uma filha, para quem, passados
quatro ou cinco annos tinha a procurar um casamento vantajoso.

Roberto, se chamava o sobrinho de Emilio da Cunha, tinha já 15 annos
d'idade, mas o pai, inteiramente entregue ás especulações, e aos
cuidados, que ellas trazem comsigo, descuidou completamente a sua
educação, por isso o seu retrato moral, n'esta occasião, nada tinha de
vantajoso; o espirito tinha-o completamente inculto; as noções que
possuia do justo e do injusto eram as mais erroneas e disparatadas; o
respeito aos direitos d'outrem era para elle uma invenção estupida dos
homens, condemnada pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em
fazer o mal impunemente. Se algum bom instincto, ou algum vislumbre de
virtude, existia no coração de Roberto, ainda estava em embryão, por que
se não tinha demonstrado. Quantas e quantas vezes, em quanto que o pai,
cego pelas especulações, concentrava todas as suas faculdades
intellectuaes na realisação d'um impossivel, não deixou Roberto de ir ao
collegio, fazendo o que em termo escolar, se chama _gazear_, e gastava
as horas d'estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. D'ahi
proveio o tomar relações com meia duzia de garotos, ou vadios,
permitta-me a phrase, para quem nada era sagrado nem nas acções, nem nas
palavras. D'ahi nasceu a falta de respeito pela propriedade alheia,
roubando os pomares; e o endurecimento de coração, castigando
barbaramente animaes inoffensivos.

Emilio da Cunha reconheceu logo os maus instinctos de que seu sobrinho
era dotado, e a desmoralisação, que já se tinha infiltrado no seu
coração, mas concebeu a esperança de o regenerar com desvelos,
paciencia, e sobre tudo bons exemplos. Sua filha, a que chamarei
Valentina, de 14 annos d'idade, contribuiu poderosamente para a
realisação d'este seu empenho, tão justo e louvavel. Era uma menina para
quem a natureza tinha sido prodiga em encantos de rosto, d'espirito e
coração, a ponto de qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia
amal-a immediatamente. Tinha uma tal influencia, ou magia sobre os que
se acercavam d'ella, que aos bons tornava-os melhores, e aos maus
fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os maus
instinctos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre
os outros, de sorte que a regeneração que elle soffreu, nos seus
costumes e acções, foi tão sensivel, que o bondoso Emilio da Cunha
revia-se alegre e contente na sua obra, e congratulava-se dos resultados
que tinha colhido.

Deu-se porém uma circumstancia feliz, mas que ao mesmo tempo foi
desgraçada, que deteve Roberto repentinamente na boa estrada em que se
tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar resolutamente. Por uma
carta chegada n'um dos paquetes inglezes do Brazil, soube Emilio da
Cunha, que seu irmão mais novo tinha fallecido, deixando-o, por elle ser
o seu mais proximo parente, herdeiro d'uma fortuna consideravel. Bens
rusticos, e estabelecimentos industriaes é no que consistia a fortuna,
dos quaes se poderia colher bons lucros, sendo bem geridos, conforme o
tinha praticado o seu defunto proprietario; mas Emilio da Cunha, além de
se não julgar com conhecimentos e forças para bem gerir a industria com
que seu irmão tinha feito fortuna, não tinha desejo, nem queria
expatriar-se. Foi até com immensa repugnancia que se resolveu a ir ao
Brazil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto
presentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a
considerar como uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos de
sua predilecta filha Valentina, o obrigavam a emprehender.

Partiu finalmente, depois de ter tomado todas as precauções para a
tranquillidade de seu espirito. Valentina entrou em um dos collegios de
educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou n'uma casa
particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a sua
idade, pois que já então tinha 17 annos, e a sua completa ignorancia, de
que até uma criança de 8 annos poderia zombar.

Emilio da Cunha aportou a salvamento ás terras de Santa Cruz, e logo que
saltou em terra, desenvolveu a maior actividade, e procurou por todos os
meios possiveis abreviar rapidamente os seus negocios, mas infelizmente
os resultados não correspondiam aos seus esforços e desejos, porque de
todos os lados, e a todos os momentos estavam sempre a surgir empecilhos
e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já um anno que Emilio da
Cunha tinha chegado ao Brazil, e ainda os seus negocios não estavam mais
adiantados, que no primeiro dia.

Cançado, desanimado e affectado de melancolia, ou _spleen_, como lhe
chamaria um nosso fiel alliado britannico, mortificado por um
desassosego de que não podia explicar a causa, deliberou entregar os
seus negocios e a liquidação e arrecadação da heranca a um procurador, e
embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.

Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo?

É o que lhe vou contar, meu visinho, se ainda tiver paciencia para me
ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer ás minhas leitoras, se
ellas quizerem ter a mesma paciencia de me lêr.

Roberto, separado de sua prima, aborrecido e dominado pela priguiça,
fugiu um bello dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e
infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem, que
tinham quasi todos seguido a estrada do vicio e do crime. Arrastaram
portanto comsigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na
baixa do qual se encontra a escoria da sociedade. Roberto tinha por
companheiros habituaes homens criminosos, de cara sinistra, maneiras
brutaes, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, n'uma palavra
mendigos, ou ladrões. Adoptou-lhe portanto os costumes as maneiras e as
maximas, e quem o visse emmagrecido pela devassidão, com os vestidos em
desalinho, os cabellos eriçados, tomal-o-ia por um bandido de trinta
annos, quando elle não tinha mais que dezenove incompletos. Valentina,
pelo contrario, tinha crescido em corpo, belleza, espirito, talento e
virtudes.

Conduzi-o do Porto ao Rio de Janeiro, e do Rio de Janeiro ao Porto,
agora, querendo-me seguir, leval-o-hei a Lisboa, onde se passa um
pequeno episodio d'esta muito veridica historia.

De bordo d'um paquete inglez, chegado dos portos do Brazil, tinha
desembarcado um passageiro, que se dirigiu a um hotel para descançar, e
ahi passar até ao dia seguinte, em que devia seguir viagem para o Porto,
na mala-posta, a fim de se vir unir a seus filhos, que estava ancioso
por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessario o dizer-lhe,
pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emilio da Cunha,
que se considerava feliz por pisar o solo da sua patria, que tanto
amava, e onde estava tudo o que elle mais presava n'este mundo. Logo que
no hotel lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena refeição, deitou-se
e adormeceu, embalado por sonhos felizes.

No dia seguinte ainda o sol mal tinha despontado, já subia pela escada
do hotel e entrava no corredor commum, sobre o qual deitavam uma duzia
de portas de quartos, um homem de má catadura. Era um d'estes
_cavalheiros d'industria_, a qual consiste em entrar, sob qualquer
pretexto, de manhã cedo nos hoteis, e aproveitar-se do primeiro quarto
que encontram aberto para empalmarem destramente um relogio, ou uma
mala, se o acordar do hospede ou locatario do quarto, os não obriga a
retirar-se de mãos vazias, desculpando-se de que se tinham enganado na
porta.

No andar, vacillante, e como desconfiado, do _cavalheiro d'industria_ se
reconhecia facilmente, que era um noviço, que ia tentar os seus
primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua _primeira escamoteação_.

Depois de ter estado por bastante tempo em lucta com a sua consciencia,
e irresoluto se devia ou não penetrar no quarto de que a porta se achava
meia cerrada, metteu primeiro a cabeça, depois uma perna, e por ultimo
todo o corpo; mas fazendo algum ruido com este ultimo movimento, o
hospede, que estava deitado, acordou, e virando rapidamente a cabeça,
Roberto, por que o _cavalheiro d'industria_ era elle, encarou com seu
tio Emilio da Cunha, ficou estupefacto e como fulminado por um raio.

N'esse mesmo dia de tarde Emilio da Cunha tomou lugar no caminho de
ferro até ao Carregado, e ahi na mala-posta até ao Porto, onde trinta e
seis horas depois se achava nos braços de sua querida filha Valentina,
que immediatamente tinha ido procurar ao collegio.

--Tu sahes já, já do collegio, minha filha--lhe diz Emilio da
Cunha--para retomares, e nunca mais deixares, o teu lugar a meu lado.

--Que felicidade--exclamou Valentina toda alegre e folgazã--que vida
socegada e feliz não vamos passar todos tres, não é assim meu querido
pai, por que Roberto tambem vai para a nossa companhia?

--Roberto, morreu--respondeu Emilio da Cunha com rosto severo, e voz
soturna.--Não quero que me falles mais n'elle, entendes Valentina?

Valentina admirada da resposta, ainda fez diversas perguntas a seu pai,
mas a todas ellas não obteve outra resposta, senão a completa prohibição
de nunca mais lhe fallar em Roberto.

Ainda porém não tinha Emilio da Cunha soffrido todas as provações, que
Deus lhe destinára. Haviam decorrido seis mezes desde que tinha chegado
do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação de que o procurador,
que ficára encarregado da liquidação e arrecadação da herança, tinha
cumprido a sua missão, mas que, depois de ter arrecadado a somma
importante, que produzira a mesma herança, tinha desapparecido, sem que
as pesquizas feitas para se descobrir o lugar de seu refugio, tivessem
dado o desejado resultado.

Emilio da Cunha ficou completamente arruinado por este facto, porque,
impaciente por satisfazer os credores de seu irmão, pai de Roberto,
tinha vendido tudo o que possuia em Portugal.

O golpe foi forte, mas ainda assim não o foi bastante para poder
subjugar a coragem do bom e respeitavel velho, mostrando-se Valentina
n'esta conjunctura, digna filha d'um tal pai.

Renunciando heroicamente ás commodidades da vida, em que até então
tinham vivido, foram habitar, em um bairro mais afastado da cidade, uma
pequena casa, na qual soffreram privações diarias e penosas, tratando
sempre d'obter alguns recursos para a sua subsistencia, mesmo em
trabalhos mal retribuidos.

Valentina, que Deus tinha dotado de bom gosto, e bastante habilidade,
principiou a trabalhar para uma modista, a qual satisfeita com os seus
primeiros trabalhos, lh'os deu em seguida mais delicados e por isso
melhor retribuidos, o que foi para elles uma grande felicidade, e que
assim lhes proporcionou meios licitos de pagarem regularmente o seu
aluguel, e de já não receiarem tanto nem o frio, nem a fome.

Valentina ia entregar a sua obra á modista, a qual satisfeita com ella
lhe dava sempre mais, e muitas vezes mais do que a que ella podia fazer.
A uma crise terrivel tinha-se seguido uma abastança mediocre, que era
por isso uma felicidade mais agradavel e estimada.

Decorreram assim dous annos.

Um dia, em que Valentina estava só, lhe entregou o carteiro uma carta, e
qual não foi a sua surpreza quando reconheceu a letra de seu primo.

Roberto contava n'esta carta tudo o que tinha passado, desde o momento
em que o vimos no hotel em Lisboa preparando-se para _escamotear_ seu
tio. Fulminado pela vista d'Emilio da Cunha tinha recobrado os sentidos
para na fuga se salvar ás imprecações d'indignação do velho. Chegou
offegante ao Terreiro do Paço, onde se sentou, ou melhor se deixou cahir
n'um dos assentos de pedra, que alli se acham, e assim esteve por muito
tempo, com a cabeça escondida entre as mãos, mergulhado em acerbas e
crueis reflexões.

Experimentou ou sentiu dentro em si uma completa revolução; o seu
procedimento indigno e infame se lhe apresentou em toda a sua nudez e
hediondez; teve horror de si mesmo e por um instante pensou em
suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no coração
sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo d'ora avante uma
conducta honrosa e illibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os
seus erros passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu
anjo bom lhe tinha suggerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a
sua rehabilitação, e a não descançar sem a ter chegado a alcançar.

A occasião favoravel não se fez esperar muito, por que um capitão d'um
navio mercante, que estava apparelhando para a California, lhe concedeu
passagem gratuita, mediante os seus serviços e o seu trabalho na viagem.

Aportou Roberto á California e sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se
embrenhar no jogo, arriscando assim as suas economias, fundou um
estabelecimento, que ia prosperando, faltando unicamente para a sua
felicidade se tornar completa, o obter o perdão de seu tio, e a
esperança de poder tornar a vêr sua prima, cuja imagem tinha
constantemente na idéa, e o sustentava e animava n'esta nova estrada de
trabalho e ordem, de que não pensava mais em se desviar.

Eis aqui em resumo o que continha a carta que Roberto dirigiu a sua
prima.

Valentina muito commovida, mas gostosa e alegre por ter de dar tão grata
noticia a seu querido pai, esperava anciosa a sua volta.

Mal lhe deu tempo de sentar-se, ia logo a contar-lhe o succedido, mas,
Emilio da Cunha a deteve, apenas tinha pronunciado a primeira palavra.
Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com a maldição nos labios;
ella lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, supplicou, mas elle a
tudo ficou impassivel e inflexivel.

Valentina consternada respondeu á carta de seu primo descrevendo-lhe o
succedido, e a inutilidade de seus esforços; mas para o não desanimar
promettia-lhe de os renovar, e que os repetiria até que chegasse a mover
seu pai á commiseração e piedade, de que não desesperava. A carta
continha tambem a descripção de todos os successos, que se tinham dado
desde que Roberto tinha desapparecido; a decadencia de Emilio da Cunha,
a pobresa em que tinham vivido em quanto que o seu trabalho mal
retribuido lhe dava parcos meios de subsistencia, e o melhoramento de
sua posição, finalmente continha tambem algumas palavras d'exhortação e
amisade.

A situação de Emilio da Cunha e sua filha soffreu, passado algum tempo,
uma modificação muito mais inesperada, do que a que se havia seguido ao
aniquilamento da sua fortuna.

Emilio da Cunha foi chamado a casa d'um capitalista, aonde lhe
entregaram 20 contos de reis de que um anonymo lhe mandava dar posse a
titulo de restituição. D'onde tinha vindo este dinheiro?

Emilio da Cunha pensou muito naturalmente, que o procurador que o tinha
roubado, mortificado pelo remorso, e querendo socegar um pouco a sua
consciencia, lhe tinha mandado entregar aquella quantia, como uma parte
da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava muito longe de
concordar com a opinião de seu pai, mas nem por isso teve a franqueza de
lh'o declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.

Qual das duas opiniões era a verdadeira, é o que nos não importa saber,
o que se sabe é que a abastança ou decencia tinha reentrado em casa
d'Emilio da Cunha, e as idéas do digno e honrado velho, foram-se
tornando mais brandas sob a influencia do bem-estar.

Foi elle proprio que em um dia fallou primeiro a Valentina em seu primo
Roberto, e ella não perdendo esta occasião tão propicia, que se lhe
offerecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquencia, a causa de
seu primo. Emilio da Cunha deixou-a fallar como e todo o tempo que ella
quiz, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe replicar a cousa
alguma.

Estaria ou não convencido?

A pergunta não tinha muito facil resposta, mas pelo menos tinha ouvido
sem colera e com socego as allegações a favor de seu sobrinho, o que já
era um bom indicio da mudança que n'elle se havia operado.

Valentina, contente e satisfeita com o resultado do seu primeiro
commettimento, escreveu immediatamente a seu primo informando-o do que
havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas, noticiando-lhe sempre
algum novo passo dado na estrada da reconciliação.

Aconteceu um dia que Emilio da Cunha, no meio d'uma conversa, que tinha
seguido n'um objecto mui diverso, parasse precipitadamente para dizer a
sua filha:

--Tu acreditas sinceramente no arrependimento de teu primo?

--Oh! sim, meu pai--se apressou em responder Valentina.

--Queira Deus que te não enganes.

Um outro dia acordou d'uma pequena sesta, que se tinha seguido ao
jantar, gritando, como se continuasse uma conversa começada:

--Ah! se Roberto estivesse arrependido realmente, como tu o suppões, com
que prazer e alegria........

Não terminou a phrase, mas a expressão benevola da physionomia de Emilio
da Cunha indicou a Valentina o complemento da idéa.

Isto foi objecto para uma ultima carta a Roberto, a que elle respondeu,
e fechou-se a correspondencia.

Uma manhã Emilio da Cunha achava-se com Valentina em uma pequena, mas
elegante sala, que deitava sobre o jardim--por que elles tinham deixado
a sua pobre morada, trocando-a por outra mais decente--Emilio da Cunha
sentado junto d'uma mesa, sobre a qual se achava uma magnifica jarra de
flôres, olhava sorrindo para Valentina, que, de pé, junto d'um açafate
em que estavam dous pombinhos, reprehendia, acariciando-o, um d'elles:

--Eis-te aqui, meu bello fugitivo--lhe dizia ella--pensavas que era só
voltar para te ser concedido o perdão, depois de me teres feito soffrer
com a tua ausencia e ingratidão? Muito bem; visto que o teu regresso
prova um arrependimento sincero, perdôo com prazer; não é assim,
paisinho--acrescentou ella com voz meiga e levantando os lindos olhos
com uma expressão de candura para Emilio da Cunha--que se devem receber
os filhos prodigos, que regressam arrependidos e contrictos?

Emilio da Cunha não deu uma palavra, mas rolou-lhe uma lagrima sobre a
face.

N'este momento surprehendeu elle um olhar d'intelligencia, que Valentina
dirigia a alguem, que estava pelo lado detraz da cadeira em que estava
sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um grito, ouviu-se o nome de
Roberto.

Era Roberto realmente. A scena que se seguiu o meu caro visinho melhor a
poderá imaginar, do que eu pintar-lh'a, ou descrever-lh'a.

Roberto voltava honrado e rico. Julgo que já comprehendeu que, para
soccorrer seu tio, elle concebeu e executou o plano da restituição.

D. Mafalda calou-se. Parecia esperar, que eu, convencido pela sua
historia, sanccionasse com o meu voto a doutrina, que ella tinha
expendido antes de começar.

--Ah!--lhe disse eu com admiração sincera--v. exc.ª podia facilmente
escrever um romance.

--Isso quer dizer que me faz a honra de julgar esta minha historia como
producção da minha imaginação e phantasia?

Limitei-me a inclinar-me respeitosamenie, e aqui terminou a nossa
discussão.

No dia seguinte D. Mafalda offereceu-se para me apresentar a um seu
sobrinho, proprietario d'um estabelecimento industrial importante nos
suburbios do Porto. Aceitei gostosa e promptamente. Fui recebido com
extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D. Mafalda gosava uma
felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher, que era um
anjo de belleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas que
se póde imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o seu
nome figurava entre os principaes e os mais honrados do mundo commercial
e industrial, n'uma palavra nada faltava á sua gloria, fortuna, e
felicidade domestica.

--Que pensa de meu sobrinho?--me perguntou D. Mafalda, quando nos
retiramos.

--Ah! minha senhora, nada mais ambiciono do que poder imital-o.

--Pois aquelle que viu é o Roberto da minha historia.

Recolhi-me a casa fazendo para mim as seguintes reflexões: Que a
regeneração do homem pelo arrependimento não é utopia, e que a sociedade
e a sua organisação é que são as causas principaes, que occasionam que
muitos de seus membros não se regenerem, por lhe embargarem ou matarem
logo algumas centelhas de virtude, que ainda tinham no coração.

Pensem, e verão o corollario que tiram.

FIM.


      *      *      *      *      *



A GRATIDÃO.



A GRATIDÃO.


ROMANCE.


I.

Estavamos nos ultimos dias de Dezembro de 1846. Uma camada mui espessa
de neve cobria o sólo. O ar, sombrio e carregado, indicava que mais neve
não tardava a cahir. Os ramos nús das arvores dos montes tremiam
soprados pelo vento norte gelado. Estava tudo n'um perfeito socego, e
tristeza; nem o mais leve murmurio se ouvia.

Uma velha, e uma criancinha, apesar do rigor do frio, seguiam com
difficuldade o caminho, que da serra de Vallongo conduz a S. Cosme. A
criança, d'espaço a espaço, soprava ás mãosinhas inteiriçadas pelo frio,
e não se podendo sustentar sobre os pés, que tinha inchados pelas
frieiras, caminhava vacillante; mas vencendo todos os obstaculos, com
uma energia superior á sua idade, tomava galhardamente o seu lugar ao
lado da velha. Esta parecia ter sessenta annos. Estava corcovada mais
pela miseria, do que pela idade, e tinha no rosto profundas rugas. Pelo
modo como andava, e tateava o caminho com a mulêta, via-se que era cega.

--Aonde vamos nós, Rosa?--perguntou a velha á rapariguinha.

--Em meio caminho, minha avó.

--Jesus Senhor, valei-me,--disse a cega,--pois que as minhas pobres
pernas já estão cançadas, e parece-me que não chego ao fim da jornada.

--Encoste-se ao meu hombro, avósinha, que eu não estou cançada.

--Não, não. Tudo está acabado. Eu morro aqui, Rosinha. Tenho muita fome,
e muito frio para vencer o caminho até S. Cosme. Ai meu Pai do céo, que
me sinto desfallecer...

Fez um gesto de desespero, e a cega cahiu sobre o caminho.

--Avósinha, avósinha,--gritava Rosa assustada,--volte a si, que lh'o
peço eu; mais um pequeno esforço e chegaremos a S. Cosme.

A cega não deu accordo de si.

--Avósinha,--continuou Rosa chorando, e cobrindo-a de beijos,--se me
abandona, que hei-de fazer? Quer que eu morra de paixão?

--Morrer, tu, minha Rosinha,--disse a cega levantando-se.--Oh! meu Deus,
não permittaes tal.

--Então levante-se que lh'o peço eu; se fica aqui mais tempo o frio
matal-a-ia. Em S. Cosme nos aqueceremos.

--Ai de mim,--disse a cega, levantando-se ajudada de Rosa,--e a snr.ª D.
Thereza receber-nos-ha?

--Ha-de receber sim, minha avósinha, eu lh'o afianço. Não creio que a
boa snr.ª D. Thereza nos despeça. Quando eu lhe ia vender flôres
silvestres, que apanhava no monte, abraçava-me, e dizia-me muitas vezes,
que desejava que eu fosse sua filha.

--Não duvido que ella te receba, porque és muito linda e agradavel;
agora o que eu não creio é que me receba a mim, que sou uma velha e
cega, que para nada sirvo.

--Se assim acontecer, voltaremos á nossa aldêa, e os bons lavradores,
que conheceram meus paes, terão piedade de nós, soccorrer-nos-hão, e eu
trabalharei para lhes pagar, o que elles vos derem.

A avó, muito commovida, apertou ao coração a pequena, e murmurou
palavras de ternura e gratidão; e reanimada por esta felicidade, que
Rosa lhe tinha feito experimentar, retomou com passo mais firme o
caminho de S. Cosme.

O vento soprava já com mais força; o ar tinha escurecido mais, e
pequenos flocos de neve se viam voltejar no ar. Rosa, tiritando com
frio, fazia esforços sobrehumanos para poder andar, e cada passo, que a
pobre cega dava, era acompanhado d'um suspiro surdo. O vento augmentou,
e os flocos de neve, que ao principio eram raros, cahiam em maior
abundancia.

--Rosinha,--disse a cega,--bem queria andar, mas não posso; deixa-me
ficar.

--Avósinha, eu já avisto a torre da igreja de S. Cosme.

--Estás bem certa d'isso?

--Eu não queria mentir...

--Vamos andando. Permitta Deus que eu possa vencer o caminho.

--Não tenha receio de me cançar, minha avó; sou forte, e não estou
fatigada. Encoste-se ao meu hombro.

--Meu querido anjinho, que Deus te pague tudo o que me fazes.

Chegaram finalmente a S. Cosme, á quinta de D. Thereza de Sousa, depois
de mil esforços, que cançaram completamente avó e neta.

Era tempo; mais um instante e teriam cahido ambas no chão. Entrando na
cozinha da casa, o calor produziu-lhes uma reacção tão violenta, que
desfalleceram.


II.

D. Thereza de Sousa, e mais algumas visinhas, que se tinham reunido para
serandar, acercaram-se das duas infelizes. Depois de lhe ter ministrado
todos os cuidados necessarios para as reanimar, como o seu principal mal
era a fome, mandou-lhe dar um bom caldo, e acommodal-as a um dos cantos
do lar, em que ardia uma grande fogueira.

--Agora, Rosinha,--disse D. Thereza, ameigando-a,--conta-nos, como a
esta hora, e com este tempo vieste até aqui com esta boa mulher.

--Desculpai, minha boa senhora,--disse a cega,--Rosinha é minha neta.

--Sim, snr.ª D. Thereza, é minha avó, de quem tantas vezes tenho fallado
a v. exc.ª e...

--Então porque não continuas?--lhe replicou D. Thereza.

A pequena levantou para D. Thereza os seus lindos olhos azues, com uma
tal expressão de supplica, que a commoveu.

--Falla, falla, minha menina. Não tenhas receio. Queres pedir-me alguma
cousa, não é assim?

--Vêde, minha boa senhora,--disse Rosa, contendo as lagrimas a
custo,--eu e minha avó, somos muito desgraçadas. Meu pai, que era
rachador de lenha, feriu-se pelo S. João em uma perna com o machado.
Minha mãi mandou-me chamar a toda a pressa o snr. Pereira, que é um
homem muito entendido. Fui, o mais depressa que pude, e quando cheguei a
casa do snr. Pereira estava elle para sahir, e não queria vir commigo
para não torcer o seu caminho; mas eu tanto lhe pedi, que sempre me
acompanhou. Quando viu a perna a meu pai, logo disse, que estava muito
mal, e que não promettia cural-o. Duas semanas depois veio á ferida uma
molestia, de que me não lembra agora o nome, e meu pai morreu.

Rosa calou-se chorando, e a cega tambem soluçava. D. Thereza abraçou a
rapariguinha, apertou a mão á pobre velha, e disse:

--Para hoje já é de mais, ámanhã...

--Perdôe-me, snr.ª D. Thereza,--replicou Rosa,--mas é melhor que eu
termine hoje,--e continuou:

--Havia um mez que meu pai tinha morrido, quando minha mãi cahiu de
cama; a febre não a deixava. Eu ia aos campos apanhar as hervas, que
minha avó me ensinava, para lhe fazer remedios, mas nada sarava minha
mãi. Um dia abraçou-me e disse-me:

«Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com teu pai, mas que será de ti?

Trabalharei, lhe respondi.

És muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te
receba sob a sua santa guarda, e te não abandone. Nunca desampares tua
avó, sê-lhe obediente e carinhosa..., ainda queria fallar, mas não pôde,
abraçou-me e á avósinha, e expirou.»

Desde então alguns rachadores, amigos de meu pai, nos recolheram e
soccorreram; mas como não são ricos, e precisam de mudar de terra por
não terem aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho á senhora,
pois que, sendo tão boa, não deixaria de nos recolher, que somos tão
desgraçadas. Sou fraquinha, mas posso trabalhar. Sei fiar, e começo a
lavar. Guardarei os bois, e os carneiros e tratarei do gallinheiro.
Minha avó tambem fia muito bem e estou muito certa, que a ha-de
satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora--disse Rosa ajoelhando-se aos
pés de D. Thereza--não nos abandoneis; satisfazemos-nos com pouco, e
faremos todo o possivel para vos agradar, e rogaremos continuamente a
Deus pela vossa vida e felicidade.

D. Thereza commoveu-se tanto, com a singeleza e candura d'esta supplica,
que duas lagrimas lhe brilharam nos olhos.

--Levanta-te, Rosinha, ámanhã fallaremos n'isso. Tu e tua avó ide-vos
deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se não
tenha piedade de ti.

Rosa beijou com reconhecimento as mãos de D. Thereza, e a cega encheu-a
de bençãos. D. Thereza mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e
quente, em que um somno reparador lhe reanimou as forças.


III.

Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como
estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se
cedo, mas fez um esforço para mostrar os seus desejos a D. Thereza.

Arranjou-se, o melhor que pôde, com os seus velhos vestidos, e, depois
de ter dirigido mentalmente a Deus uma oração fervente, desceu ao andar
terreo.

--Já a pé,--lhe disse alegremente D. Thereza.

--Estava tão cançada do caminho d'hontem, que receei, já fosse tarde;
mas graças aos vossos beneficios, minha senhora, já estou prompta, para
o que me determinardes.

--E tua avó?

--Ainda dorme. É tão velhinha e tão doente, que vos peço tenhaes piedade
d'ella.

Rosa ergueu as mãos, e esperou tremula a resposta da dona da quinta.

D. Thereza de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa.
Tendo viuvado ha doze annos, geria com tanto acerto e economia as suas
propriedades, que a sua fortuna tinha augmentado consideravelmente.

Os visinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que
tinha alcançado a fortuna, que possuia, pois que em qualquer cousa
sempre tinha que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando
_tantas_ esmolas, o dinheiro nunca lhe havia de faltar.

Fosse como fosse, o que sei é, que D. Thereza sensibilisou-se tanto com
a historia de Rosinha, que, quando ella ergueu as mãos, e a viu com os
olhos arrasados de lagrimas, esperando a resposta, disse para si; que a
uma supplica tão humilde e cheia de tanto amor filial, era impossivel
resistir.

N'este momento quem accusasse de avarenta D. Thereza de Sousa, seria
injusto com ella, por que, recolhendo a avó e neta, tomava um encargo
bastante pesado. Rosa era ainda muito pequena, e de mais a mais muito
fraquinha, para poder ter utilidade real! A pobre criança estava a fazer
dez annos, mas era muito franzina e delicada. O seu rosto, cercado de
compridos caracóes louros, e animado com uns grandes olhos azues
escuros, inspirava sympathia. Tinha as maneiras delicadas, e a linguagem
menos rude, que a dos camponezes dos arredores. Esta distincção n'uma
criança, ainda tão tenra como Rosa, nascia da sua intelligencia mui
desenvolvida.

A mãi, logo que ella teve tino para se não perder nos caminhos,
mandava-a apanhar flôres silvestres, que ia vender ás familias mais
abastadas das aldéas visinhas. Como Rosa era muito linda as senhoras das
casas acolhiam-na muito bem, divertiam-se com ella, ouvindo-a tagarelar,
e demoravam-na muitas vezes a brincar com as suas filhas.

Sendo muito viva tomou facilmente as maneiras, e modo de fallar, das
pessoas com quem tratava, de modo que os rachadores denominavam-na a
fidalguinha.

Se tinha adquirido maneiras delicadas, não havia perdido as boas
qualidades, de que era dotada; humilde e carinhosa para todos, quem a
conhecia adorava-a.

O que a mim, minhas caras leitoras, me levou tanto tempo a dizer, passou
n'um instante pela idéa a D. Thereza de Sousa, e fixou-lhe a resolução
de recolher a avó e a neta.

--Vou-te mandar vestir uma roupinha melhor, Rosinha,--lhe disse D.
Thereza, animando-a com uma brandura, que lhe não era habitual,--porque
espero has-de ser uma boa criada, serviçal e trabalhadeira.

--Então fico em casa de v. exc.ª?--disse Rosa, não podendo crer em tanta
ventura.

--Ficas, sim, e parece-me que nunca me darás motivo para me arrepender
do que hoje faço.

--Oh! minha senhora, estai certa que me esforçarei o mais possivel, para
vos agradar e satisfazer os vossos desejos.

--Assim o espero. Anda vestir-te.

--Desculpe-me, senhora. Mas minha avó...--e Rosa parou corando.

D. Thereza, querendo experimentar a sua protegida, disse:

--Que queres a tua avó?

--Ella tambem fica?

--Não. Tua avó é cega e velha, para nada serve, e eu não sou rica
bastante, para me encarregar da sustentação de duas pessoas.

--Então, senhora, agradeço os vossos beneficios, e todo o bem que me
querieis fazer, mas não posso abandonar a minha avósinha, que morreria
de paixão.

Vou ajudal-a a levantar-se, e regressaremos à nossa aldêa.

--E que has-de fazer na tua aldêa?

--Irei humildemente pedir a um mestre tamanqueiro um pequeno cantinho da
sua casa, que estou certa me não negará. Não sou robusta, mas tenho
coragem, por isso trabalharei nos socos durante o inverno. Quando vier o
verão irei vender flôres e fructos, como os demais annos, e como eu, e a
pobre cega, de pouco precisamos para viver, parece-me que ganharei para
ambas. Logo que chegue a primavera não seremos pesadas a ninguem...

D. Thereza apertou Rosa nos braços, e chegou-a ao coração.

--Basta, Rosinha, tu és um anjo do céo, que Deus enviou a minha casa
para me trazer a felicidade. Vai-te vestir, e depois irás participar a
tua avó, que ambas ficaes para sempre em minha casa.

Descrever a alegria da avó, quando soube a decisão de D. Thereza, é-me
impossivel fazel-o, minhas caras leitoras; vós, que deveis ser dotadas
de bom e piedoso coração, melhor a podereis imaginar. Abraçava Rosa,
agradecia a D. Thereza com um reconhecimento mui sincero, promettendo
fazer todo possivel para ser menos pesada á sua bemfeitora. Rosa nada
dizia, mas a eloquencia de seu olhar provava a D. Thereza a sua
gratidão.


IV.

Rosa, ainda que novinha e de fraca organisação, tornou-se util em casa.
Incansavel no trabalho, de manhã cedo tratava da capoeira e do pombal;
depois ia guardar os bois e os carneiros, e, em quanto que os vigiava,
fiava na sua roca.

Ao jantar, quando recolhia a casa, tinha sempre que fazer. Era um gosto
vêr esta criança tão tenrinha arrumar, limpar e lustrar os moveis, como
o faria a melhor mulher de casa.

D. Thereza cada vez mais estimava a sua protegida, e felicitava-se pela
ter recolhido. A avó tambem não era inutil. A cegueira não a
impossibilitava de fiar desde pela manhã até á noite, e o seu trabalho
era perfeito. Tudo corria bem, e todos andavam contentes e satisfeitos.

Chegou a primavera. Começaram a desabrochar com o tepido sôpro d'esta
estação, e mostraram as suas galas, a bella pervinca azul, o narciso de
corôa d'ouro, o lyrio de campanas odoriferas, e a bella violeta de
calices perfumados.

Rosa, quando ia á serra, era para ella um dia d'alegria. Procurava os
caminhos tapetados de musgo, os regatos, que tantas vezes tinha passado,
as fontes escondidas pelas çarças, e as arvores, sob as quaes tinha
encontrado as mais lindas flôres. Rosa sentia-se mais livre e mais feliz
na serra, do que nos campos da quinta; a todo o momento parava extasiada
diante das bellezas da natureza, e cada sitio novo, que achava, era como
se fosse um amigo. Quando o socego voltava, depois d'esta alegria e
animação, esta poetica criança fazia cestinhos de vimes e juncos, que
guarnecia com musgo e flôres silvestres, mas com um gosto e belleza
exquisito, os quaes D. Thereza mandava vender, dando sempre bom preço.

Ganharam renome os cestos de Rosa.

Em todas as quintas e casas ricas dos arredores não queriam outros, e
até muitas familias da cidade, que iam passar o verão áquelles sitios,
compravam e procuravam com avidez os cestos d'esta gentil ramalheteira.

D. Thereza, como mulher que comprehendia os seus interesses, entendeu
que lhe era de mais proveito o empregar Rosa, durante a primavera, a
fazer cestos e ramos, do que na quinta, por isso assim o determinou.
Quando Rosa o soube, saltou d'alegria, por que se dava melhor á sombra
dos pinheiros e carvalhos, do que em casa.

Passou-se assim o verão, e D. Thereza não teve que se arrepender da sua
resolução. Um certo numero de meias corôas de prata provou o bom
resultado do negocio de cestos e flôres.

O inverno pareceu triste e monotono a Rosa. Tinha-se habituado de tal
maneira a ir todas as manhãs para a serra, que chegava muitas vezes a
esquecer-se do trabalho, e ir insensivelmente até á baixa d'ella.
Voltava então muito apressada á quinta e redobrava d'actividade, para
fazer esquecer as suas faltas involuntarias.

Occupou-se a fiar quasi todo o inverno, e o producto do seu trabalho foi
augmentar o pequeno thesouro principiado com a venda dos cestos e
flôres.

D. Thereza considerava Rosa como sua filha, não podendo estar sem ella
um unico instante, e nos dias de feiras e romarias tinha gosto em que
Rosa apparecesse entre as mais lindas e mais ornadas lavradeiras do
lugar.

A amisade, que tinha a Rosa, reflectia-se na avó; tratava-a com tal
respeito e affabilidade, que a poderiam tomar por mãi de D. Thereza,
tanto ella a cercava de cuidados e desvelos.

A felicidade da pobre cega, e bem assim o futuro de Rosa poder-se-iam
julgar seguros; mas como nada n'este mundo é immutavel, o momento, em
que a adversidade ia estender o seu braço de ferro sobre as duas
infelizes, não estava longe.


V.

Voltou a primavera e com ella as encantadoras occupações de Rosa. Foi
com enthusiasmo, que a candida e poetica criança encontrou as flôres,
suas amigas, com que preparou os primeiros ramos, que appareceram no
mercado.

Os cestinhos e ramos de Rosa obtiveram uma grande extracção, como no
anno anterior. Ia entregal-os pessoalmente nas casas ricas, e muitas
vezes as senhoras morgadas, se julgavam felizes por ter em sua companhia
esta linda criança por algum tempo.

Rosa, vestida á lavradeira, era muito galante e modesta; o seu metal de
voz era agradavel, e as maneiras tão delicadas, que quasi sempre as
freguezas, ao preço do ramo, juntavam um presentinho para a vendedeira;
mas quando perguntavam a Rosa o que era que mais estimava, respondia
sempre, que o seu maior desejo era possuir um livro para se instruir.

Rosinha tinha uma paixão ardente pelo estudo; quasi sem mestre tinha
aprendido a lêr correntemente, e a sua maior alegria consistia em obter
um livro para se entregar á leitura.

D. Thereza pela sua parte tambem não obstava aos desejos de Rosa, tanto
que se lhe não dava que ella faltasse ás suas obrigações; mas devemos
fazer-lhe justiça dizendo que sabia alliar a satisfação dos seus
desejos, com o cumprimento dos seus deveres, por isso só depois de ter
terminado os seus affazeres é que se dava ao estudo.

Estava Rosinha uma occasião sentada á borda d'um ribeiro, entretida a
colher juncos para fazer um cesto, quando, sem ella o presentir, se lhe
aproximou uma senhora ainda joven.

--Para que estaes escolhendo esses juncos, minha menina?--lhe disse a
joven senhora com modo affavel.

Rosa levantou a cabeça, e vendo a desconhecida, saudou-a e respondeu:

--Faço cestinhos com flôres para vender.

--Quero então já avaliar a vossa habilidade. Amo muito as flôres, por
isso queria que me fizesses um cestinho já, e se eu ficar contente
has-de-me fazer um todos os dias. Aceitaes?

--Aceito, sim, minha senhora, e ainda que tenho muitas encommendas a
satisfazer, vou já preparar o vosso.

--Assento-me aqui ao pé de ti e vamos conversando. Como te chamas?

--Rosa de Jesus, uma sua criada, minha senhora.

--Assim, Rosa, o teu trabalho é fazer cestos de flôres para depois os
ires vender?

--Sim, minha senhora.

--E teus paes em que se occupam?

--Já não tenho paes; só me resta minha avó, que é cega.

--És orphã, e onde moras?

--Estou em casa da snr.ª D. Thereza de Sousa, proprietaria em S. Cosme,
tão boa, como rica.

Ha um anno, que eu e minha avó não sabiamos aonde nos haviamos de
recolher; estavamos em Dezembro, e havia dous dias que não tinhamos
comido, quando de repente me lembrei da snr.ª D. Thereza. Eu e minha
avó, que então moravamos na serra de Vallongo, pozemos-nos a caminho
para S. Cosme. O caminho é muito mau, por isso mais d'uma occasião
julguei que minha avó ficava na estrada, porque já não podia andar; mas
o Senhor teve misericordia de nós, e felizmente terminamos a jornada. A
snr.ª D. Thereza tratou-nos com muita bondade, e recolheu-nos em sua
casa, apesar de sermos um encargo muito pesado.

--Amas então muito a snr.ª D. Thereza?

--Se a amo. Não queria mais nada, senão poder reconhecer todo o bem, que
nos faz. Não desejo senão crescer e robustecer para lhe poder servir
d'utilidade.

--Estou muito contente, minha pequena, por te ouvir fallar assim. Quando
te vi senti-me attrahida para ti, e ficaria muito desgostosa se te não
encontrasse com sentimentos dignos da estima que te consagro.

Parece-me que o meu cesto está acabado?

--Ainda lhe falta uma cercadura de _não me deixes_. Permitti, senhora,
que eu vá ao proximo ribeiro colher estas flôres, porque alli as ha mais
frescas, e em mais abundancia.

--Ide, que aqui te espero.

Rosa partiu correndo.

D. Julia d'Andrade, que tanto interesse mostrava pela protegida de D.
Thereza, tinha vinte annos.

O cabello preto muito comprido, e naturalmente encaracolado, fazia-lhe
sobresahir ainda mais a pallidez do rosto. Os olhos castanhos tinham um
brilho de febre. A physionomia demonstrava um padecimento interno, n'uma
palavra, estava affectada d'uma tisica pulmonar.

Sua mãi, a viscondessa do Candal, receiando pela vida de D. Julia, tinha
consultado os mais acreditados medicos de Lisboa e Porto, e todos tinham
aconselhado os ares do campo, e o não constrangimento, como os meios
mais proficuos para debellar a molestia. A viscondessa tinha portanto
deixado o Porto e ido habitar com suas filhas D. Julia e D. Bertha uma
quinta proximo da serra de Vallongo.

D. Julia parecia que revivia no meio da luxuosa natureza, que a cercava.
Todos os dias dava grandes passeios, e distrahia-se ou sentando-se á
sombra dos carvalhos e sobreiros, ou embrenhando-se entre as çarças. Ao
principio a viscondessa receiou que estes passeios tão longos
prejudicassem a saude de sua filha, mas vendo-a mais alegre e mais
vigorosa, e que se a pallidez não tinha desapparecido, a expressão
soffredôra do rosto era menos pronunciada, ficou mais socegada e esperou
obter o triumpho sobre a molestia.

D. Julia era tão boa, e ao mesmo tempo tão prudente, que sua mãi não
temia deixal-a em plena liberdade, e gosar da vida segundo as suas
phantasias.

A viscondessa queria que D. Bertha acompanhasse sua irmã nos seus
passeios; mas D. Bertha, que era uma joven de 16 annos d'idade,
orgulhosa do seu nascimento e belleza, recusou obstinadamente acompanhar
sua irmã, dando como razão, que lhe repugnava o juntar-se como ella com
esses _estupidos_ e _rudes_ aldeãos, que habitam os campos, e a quem
ella acariciava, e que além d'isso estragava os seus vestidos seguindo
D. Julia pelos caminhos estreitos e escabrosos dos campos e da serra. As
mil vozes da natureza eram mudas para D. Bertha; no seu coração só
imperava o egoismo.

Num d'estes passeios é que D. Julia encontrou Rosinha, e que ficou
encantada com a sua innocencia.

Havia muito que D. Julia esperava Rosa, e já receava que ella não
voltasse, quando a viu vir correndo.

--Perdoai-me, senhora, o ter-vos feito esperar tanto tempo, mas eu fui
muito longe colher as violetas e os _não me deixes_, porque queria que o
meu cestinho vos agradasse.--Assim fallando Rosa apresentou a D. Julia
um cestinho, que era um primor d'arte no gosto, e esperou toda confusa,
a sua apreciação.

Uma alegre exclamação de D. Julia lhe fez vir o sorriso aos labios.

--Quero abraçar-te, minha querida menina; ha muito tempo que não vi nada
tão lindo, e como me causaste um grande prazer, quero recompensar-te;
mas deixa-me ainda admirar o teu bello trabalho.

Este cestinho podia vêr-se. No centro tinha raminhos de violetas com as
folhas verdes, ainda humidas; uma corôa de lirios cercava as violetas, e
em volta uma grinalda de musgo, semeada de raminhos de rosas amarellas e
geranios. Dous ramos de madre-silva serpenteavam por entre os juncos
formando as azas.

--Não quero--disse D. Julia, depois d'alguns instantes de silencio--que
uma obra tão bella tenha um viver ephemero; vou já bordar um quadro,
cópia d'este cestinho, que ha-de ficar muito rico. Mas, Rosinha, quanto
queres por este trabalho?

--Dar-me-ha o que quizer, minha senhora, como costumam fazer as outras
minhas freguezas.

--Mas quanto é que custam ordinariamente?

--Tres ou quatro vintens.

--Quatro vintens!--disse D. Julia admirada.

--Acha caro, minha senhora?--disse Rosa com acanhamento.

--Caro, não, minha pequena. Quando estava no Porto pagava, por muito
maior preço, ramos que tinham muito menos valor, que o teu cestinho.
Toma, Rosinha, não tenho aqui senão esta meia corôa, mas amanha a esta
hora apparece aqui, e fallaremos...

--Não posso aceitar o que me dáes, minha senhora, porque é muito.

--Queres fazer-me zangar?

--Não, senhora. É a primeira vez que a vejo, mas já a estimo muito. Eu
não preciso de nada; a snr.ª D. Thereza é muito minha amiga e...

--Não é uma esmola que te dou--replicou D. Julia, mettendo a moeda de
prata na mão de Rosinha--não te esqueças da recommendação, que te fiz,
de estares ámanhã aqui a esta mesma hora.

E antes que Rosa tivesse tempo de recusar, já D. Julia tinha
desapparecido, levando na mão o cestinho.

Rosa ficou um instante sem saber o que havia de fazer, mas recomeçou
ligeiramente o trabalho. Quando ao jantar voltou a casa, contou a D.
Thereza o seu encontro de pela manhã, o que lhe tinha acontecido e
perguntou-lhe se devia ou não guardar os cinco tostões.

--Não te authoriso a pedir, Rosa, mas isso não é uma esmola, é um
presente, que te fazem, podes portanto arrecadar esse dinheiro. Ris-te.
Já sei. Esse dinheiro vem a proposito para augmentares o teu mealheiro,
com o qual te hei-de comprar um rico jaqué para o S. Miguel.

--Não, senhora--replicou Rosa com a alegria nos olhos--não é esse o meu
pensamento, e que me causa tanta alegria.

--Que é então?

--Rogo-vos que me não façaes perguntas; depois o sabereis.

--Guarda o teu segredo, porque sei que não és desgovernada, e que o não
has-de gastar mal gasto.

Rosa abraçou ternamente D. Thereza, e foi entregar as suas encommendas
de flôres e cestos.


VI.

D. Julia recolheu-se para casa muito tempo depois da hora, que tinha
determinado.

A viscondessa, impaciente e sobresaltada com a demora, sahiu, no
caminho, ao encontro de sua filha.

--Estiveste incommodada, minha filha?--lhe disse ella.

--Não, minha senhora. Este cestinho, que aqui trago, é que foi a causa
da minha demora.

E D. Julia mostrava a sua mãi o cestinho, que Rosa tinha feito.

--Como é lindo--respondeu a viscondessa--Não sabia Julia, que tinhas a
prenda de fazer cestos de juncos entrançados.

--Não fui eu que fiz este cestinho, minha mãi.

--Então quem foi?

--Foi uma lavradeirinha, que encontrei no meu passeio.

--Uma lavradeira?!

--Sim, minha senhora. E acreditareis, minha mãi, que por todo este
trabalho me pediu a grande quantia de quatro vintens?

--Não te pergunto quanto lhe déste, por que conheço a bondade do teu
coração, e tenho a firme convicção de que não abusaste da sua
simplicidade.

--Dei-lhe só meia corôa, por que não tinha mais na minha bolsinha. Não
queria recebel-a, ajuizando que lh'a dava como uma esmola; mas tanto fiz
que a aceitou, e convencionei com Rosa, (pois a minha ramalheteira assim
se chama) para nos encontrarmos ámanhã, no mesmo sitio, á mesma hora; e
se ella, como penso, fôr digna da sympathia, que me inspirou, e do
interesse que já me causa, consentir-me-heis, minha boa mãi, que a tome
sob a minha protecção?

--Consinto em tudo, minha filha, que te dê prazer, e distracção. Se a
tua protegida fôr digna dos nossos beneficios, unir-me-hei comtigo, e
accordaremos no que devemos fazer para seu bem.

D. Julia abraçou com ternura a viscondessa, e agradeceu-lhe a sua
bondade.

N'este comenos, a viscondessa e sua filha, chegaram a casa.

D. Julia collocou com muito cuidado sobre uma mesa da sala o cestinho, e
correu com presteza ao seu quarto a preparar um cavallete, pinceis e
tintas para dar principio ao quadro projectado, e, tendo tudo disposto,
desceu á sala a buscal-o.

D. Bertha estava examinando o cestinho com attençào e minuciosidade.

--Não estão tão bem dispostas e combinadas essas flôres, Bertha?--disse
D. Julia.

--Assim, assim. Não gosto d'estas violetas, que formam o centro do ramo.
Podias ter tido melhor gosto e fazer cousa melhor.

--Não concordo com a tua opinião. Estou convencida de que Rosa não podia
ter melhor gosto.

--Rosa?

--Sim, Rosa. Ah! é verdade; ainda te não contei o encontro, que tive
esta manhã. Ora ouve.

D. Julia contou a sua irmã minuciosamente toda a conversa, que tivera
com Rosa.

Quando ella acabou, D. Bertha fez um gesto de desdem.

--E, sem duvida, Julia, já te affeiçoas-te a essa pequena; não é
assim?--disse D. Bertha.

--Rosa,--respondeu unicamente D. Julia--tem merecimento bastante, que a
torna digna da protecção, que se lhe dispensar.

--O que mais me admira e me espanta, Julia, é a rapidez com que
sympathisas com qualquer, e como instantaneamente conheces e decides,
que essa pessoa é digna da tua affeição e amisade... Não quero tomar-te
o tempo; julgo que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é assim?

--Vinha, sim, para o ir copiar em um quadro, pintando-o.

--Pintal-o?!--disse D. Bertha, dando uma grande gargalhada.--Que
liguemos alguma attenção ás flôres dos nossos parques e jardins,
concedo; mas que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres, que
só tem os perfumes para si, parece-me uma singularidade esquisita.

--A minha opinião, Bertha, é exactamente o contrario. Mas isso não
admira, por que nós raras vezes estamos accordes sobre qualquer materia.
Ponhamos isso de parte; queres tu vir ámanhã, commigo e com a nossa boa
mãi, vêr Rosa?

--Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meirelles virem
amanhã aqui passar o dia. Além d'isso, fallar-te-hei francamente, não ha
nada para mim mais antipathico do que todas essas lavradeiras; e andar
uma legua para me ir achar face a face com um monstrosinho, parece-me um
tanto aborrecivel.

--Rosa é muito linda e interessante.

--Para ti, Julia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para
mim todas são feias, e broncas. O calor principia a incommodar-me--disse
D. Bertha, sentando-se indolentemente sobre um sophá.--Vai, Julia, vai
pintar o teu lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para
onde espero ir muito breve.

Estas ultimas palavras já mal se perceberam, porque foram acompanhadas
com um bocejo, e D. Bertha cerrou os olhos.

D. Julia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e sahiu.

Alguns instantes depois deu principio ao quadro.


VII.

No dia seguinte Rosa sahiu para a serra, muito cêdo, para adiantar o seu
trabalho, e poder assim dedicar mais tempo á joven senhora, que tão
amavel e generosa tinha sido com ella.

Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por D.
Julia, tinha terminado o seu serviço.

Aproveitou portanto o tempo entregando-se á leitura d'algumas paginas
d'um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com
attenção, e, quando encontrava algum trecho rico e bello, parava, para
exprimir a sua alegria e enthusiasmo.

Estava Rosa de tal sorte entregue á leitura, que não presentiu a chegada
da viscondessa e de sua filha D. Julia.

--Que livro estás lendo, com tanta attenção, minha menina--lhe disse a
viscondessa.

Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:

--São as _Meditações religiosas_ de Rodrigues de Bastos.

--E encontras grande prazer na sua leitura?

--Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada á borda d'um regato,
ou debaixo d'um carvalho annoso, lendo n'este livro, parece que a minha
alma se despe de todos os seus envolucros terrenos e mundanos, e se põe
em contacto com Deus, author de todas estas maravilhas da natureza, que
nos cercam, e a quem no fundo do meu coração adoro e venero.

A viscondessa e sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do
campo, trocaram entre si um olhar d'intelligencia.

--E que mais costumas lêr?--perguntou D. Julia.

--Não tenho muitos livros. Além d'este possuo um cathecismo, uma vida de
santos, de que leio uma pagina cada domingo, e mais uns livrinhos
d'historias bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que tambem tenho um livro de
geographia, que me deu o mestre escóla da minha freguezia, mas que não
leio, por que tem muitas palavras, que não entendo.

--Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruires. Se te
proporcionassem os meios de o fazeres, serias feliz?

--Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossivel, porque,
para ir todos os dias á mestra, é preciso ser muito rica.

--Mas se te mandassem á mestra?--insistiu D. Julia.

--Seria muito feliz, mas nem quero pensar n'isso.

--Pelo contrario; eu e minha mãi, viemos procurar-te para que nos
conduzisses a casa da snr.ª D. Thereza, e, se a tua protectora estiver
satisfeita comtigo, pedir-lhe-hemos para te deixar ir todos os dias á
mestra. Então não respondes?

--Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria
agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos beneficios?

--Mostraste-te reconhecida aos beneficios da snr.ª D. Thereza, e isso
indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruires;
mereces portanto que nos interessemos por ti--lhe disse a
viscondessa.--Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da snr.ª D.
Thereza.

Rosa, commovida, dirigiu-se para a quinta com a viscondessa e sua filha.
Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as perguntas,
que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais, as duas
senhoras, no bom conceito, que tinham formado de Rosa.

Quando chegaram á quinta, D. Thereza não estava em casa, mas não devia
tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou ás duas senhoras
cadeiras para se sentarem e offereceu-lhes um copinho de leite fresco e
morno.

D. Julia, a quem o caminho tinha fatigado, aceitou o offerecimento.

Rosa trouxe então uma toalha de linho, alvo como neve, que estendeu
sobre uma mesa, na qual collocou o melhor pão, que havia em casa,
manteiga e um copo de leite.

D. Julia, com uma alegria infantil, aceitou este _lunch_ frugal, e,
reanimadas com elle as suas forças, pediu para visitar a quinta.

A avó de Rosa estava sentada no jardim, debaixo d'um caramanchel de
clematites, fiando, e cantando com voz tremula o estribilho d'um romance
antigo. N'esta boa velha, bem vestida e de boa presença, ninguem seria
capaz de reconhecer a pobre cega, que dezoito mezes antes, quasi
morrendo de fome e frio, e podendo apenas suster-se em pé, encontramos
seguindo o caminho da serra de Vallongo para S. Cosme.

A viscondessa do Candal e sua filha saudaram a pobre cega, e esta,
prevenida pela netinha, correspondeu-lhe respeitosamente.

--Não vos incommodeis, boa mulher---lhe disse a
viscondessa--permitti-nos sómente que conversemos por um instante
convosco.

--É muita honra para mim, minha querida senhora;--respondeu a
cega--estou portanto ás vossas ordens.

--Visto isso não vos recusareis a dizer-me se estaes satisfeita com a
vossa neta?

--Se estou contente com a minha Rosinha?!--exclamou a cega---com ella,
que é a minha benção sobre a terra. Quando o meu genro morreu, por causa
d'uma ferida, que fez em uma perna com o seu machado, porque elle era
rachador de lenha na serra, e a quem minha filha, mãi de Rosa, seguiu
passado pouco tempo, quasi que enlouqueci, porque não sabia o que havia
de fazer. Rosa, disse-me com a sua voz meiga e humilde: avósinha, eu
conheço uma senhora muito caritativa; vamos a sua casa, que estou certa
nos ha-de recolher. E foi verdade.

A snr.ª D. Thereza, essa boa e caritativa senhora, para quem peço a Deus
todos os beneficios e bençãos, teve a caridade de recolher em sua casa
uma velha enferma e inutil como eu. Mas isto devo-o a Rosinha, porque
ella sabe dizer as cousas de tal maneira, que, penetrando até o coração,
commovem e decidem á compaixão. Vai em dezoito mezes que aqui nos
achamos. Fio um pouco para não estar em descanço; mas Rosinha, senhora,
Rosinha, cantando sempre, trabalha desde pela manhã até á noite. Em
quanto que dura o verão, occupa-se a colher flôres na serra e no campo,
e a fazer cestinhos com ellas; mas isto não obsta a que, quando se
recolhe, lave a roupa, limpe os moveis, e ajude a cozinhar, e se
quizesse dizer-vos tudo o que ella faz, ou sabe fazer, levar-me-ia muito
tempo.

Assim, amo muito a minha querida Rosinha. Mas onde estás tu, que te não
chegas a mim para te dar um abraço?

Rosa, com o pretexto de ir colher um ramo para D. Julia, tinha-se
retirado, quando a avó começára a elogial-a.

A viscondessa e sua filha ouviram com prazer o panegyrico de Rosa, feito
pela avó, e iam fazer novas perguntas, quando D. Thereza chegou.

Depois de terminados os comprimentos preliminares, a viscondessa expoz a
D. Thereza como sua filha sympathisára com Rosa, e estava resolvida a
tomal-a sob a sua protecção, se D. Thereza a isso se não oppozesse.

--Primeiro que tudo--respondeu D. Thereza--desejo a felicidade e
venturas de Rosinha, ainda que me ha-de custar muito a separar-me
d'ella: porém, se fôr sua vontade, não me opponho, por que julgo lhe
procuraes a sua felicidade; mas ponho por condição, que lhe não
prohibireis vir algumas vezes visitar-me.

--Isso, senhora, é um dever sagrado, que Rosa tem a cumprir. Vamos porém
interrogal-a, por que ella nada sabe do que acabamos de fallar.

D. Thereza chamou a pequena, que veio correndo, e disse-lhe:

--Rosinha, queres ir viver com esta senhora e sua filha?

--Pois vós, senhora--respondeu Rosa tremula e timida--quereis mandar-me
embora?

--Não. Pergunto sómente se me queres deixar, para te tornares uma menina
da cidade, instruida e de maneiras polidas?

--Não, minha senhora. Nunca--disse Rosa chorando, lançando-se nos braços
da sua bemfeitora--nunca vos deixarei. Tenho muitos e muitos desejos de
me instruir e de aprender, mas, se para isso é necessario o deixar-vos,
antes quero ficar ignorante toda a minha vida. Recolheste-nos, senhora,
quando eu e a minha querida avósinha, estavamos quasi a morrer de fome,
e havia de ser tão ingrata, que, quando principio a servir d'alguma
utilidade, vos abandonasse? Não, senhora, nunca, nunca vos deixarei.

--Ouvistel-a, minhas senhoras--disse D. Thereza enxugando os olhos,
razos de lagrimas.

--Pelo que vejo, Rosa, estás bem decidida a não vir comnosco?--lhe disse
a viscondessa.

--Seria feliz e muito feliz, minha senhora, se podesse ir viver na sua
companhia, e de sua estimavel filha; mas antes de vós, está a snr.ª D.
Thereza, que salvou a minha pobre avósinha d'estender a mão á caridade
publica e que sempre tão minha amiga tem sido. Perdoai-me, senhora, se
assim fallo...

--Dá-me um abraço, minha menina--lhe disse a viscondessa
interrompendo-a--dá-me um abraço, porque te mostraste tal, como eu
desejava, boa, humilde e reconhecida aos beneficios, que te fazem.

Não tenhas receio, que te separemos da snr.ª D. Thereza. Pediremos
sómente á tua bemfeitora, que nos deixe entrar com metade nos
beneficios, que te prodigalisa.

--E eu, Rosa--acrescentou D. Julia--quero ser a tua preceptora. Quando o
tempo estiver bom, dar-te-hei as lições na serra, á sombra d'um
sobreiro, ou d'um pinheiro, ou á borda d'um regato; e quando estiver
mau, dar-tas-hei em minha casa, porque ouso esperar, que a snr.ª D.
Thereza me não negará este favor, e prazer.

--Oh não, minha senhora, esteja certa d'isso. Logo que termine o seu
serviço dos cestinhos fica livre para vos ir procurar.

--É objecto convencionado--disse a viscondessa--por isso a snr.ª D.
Thereza ha-de-me permittir licença de offerecer a Rosa, para si e sua
avó, o que contém esta pequena bolsa. É para comprar em nosso nome um
vestido novo.

E como D. Thereza, Rosa e a avó lhe fizessem muitos agradecimentos, a
viscondessa impoz-lhes com brandura silencio, e retirou-se, promettendo
voltar muito breve á quinta.

D. Julia abraçou a sua pequena discipula, e retirou-se dizendo-lhe «até
ámanhã».

Nas proximidades de casa a viscondessa e sua filha encontraram D.
Bertha, que estava esperando pelas meninas Meirelles.

--Meu Deus, como estou aborrecida--lhes disse ella.

--Pois eu, minha irmã--respondeu D. Julia--venho muito alegre; o
espectaculo, que acabo de gosar, dar-me-ha felicidade não só para hoje,
mas tambem para muito tempo, porque será contado no numero das minhas
mais gratas e queridas recordações.


VIII.

D. Julia, na fórma convencionada, principiou no seguinte dia o curso,
que queria fazer seguir a Rosa. Tomou com ardor a obrigação, que se
tinha imposto desempenhar, mas o seu zelo não excedia, o que mostrava a
sua alumna. Intelligente, e anciosa por aprender, Rosa era incansavel, e
muitas vezes foi preciso que D. Julia moderasse a sua applicação; as
lições tinham lugar umas vezes na serra, outras vezes em casa da
viscondessa.

Decorreram assim tres mezes. No fim d'este tempo, os progressos, que
Rosa tinha feito, eram espantosos, e como tanto a professora, como a
discipula não afrouxavam no seu zelo, era d'esperar que, no fim dos dous
mezes que D. Julia ainda tinha a passar no campo, Rosa estivesse
bastante desenvolvida para continuar, sem nada esquecer, a estudar
sósinha, durante o inverno.

Mas, quando menos se esperava, a terrivel molestia, que parecia ter
deixado D. Julia, reappareceu com uma intensidade violenta.

A pobre menina não teve forças para resistir a este ataque, e não podia
sahir do quarto.

Rosa, que no auge da sua desesperação, com risco da propria vida,
quereria dar algumas forças á amiga do seu coração, podia a custo conter
as lagrimas, contemplando-a, pallida e cadaverica, recostada n'uma
cadeira de braços, forcejando por se levantar sem auxilio, para não
aterrar a sua querida mãi e a sua discipula predilecta.

N'este momento Rosa tinha um unico pensamento; o de sacrificar-se por
aquella, que tanto a amava e lhe queria. Os mais pequenos desejos, e os
mais vagos caprichos eram adivinhados de Rosa, e executados antes mesmo
que D. Julia os tivesse enunciado. Se queria descer ao jardim, o braço
de Rosa é que a amparava; se queria ouvir alguma passagem dos seus
livros favoritos, Rosa lia-lh'a immediatamente.

D. Julia, muito sensibilisada por tanta dedicação, affligia-se com a
lembrança, de que o progresso da sua discipula estava parado. D. Bertha
podia substituil-a, mas essa nunca consentiria em ser a preceptôra d'uma
lavradeira. A viscondessa resolveu-se a dar as lições a Rosa, para
socegar a inquietação de D. Julia.

Havia já tres semanas que D. Julia estava doente, e cada dia ia a peor;
sua mãi já não tinha esperanças algumas. Tres medicos, que do Porto
haviam sido chamados, não deram esperanças da doente melhorar.

A viscondessa, porém, não podendo convencer-se de que sua filha estava
irremediavelmente perdida, cria que os medicos se tinham enganado, e
resolveu recolher ao Porto, para lhe fazer uma nova junta.

D. Bertha, contristada ao principio com a molestia de sua irmã,
consolava-se com a idéa de voltar ao seio da sociedade, que ella tanto
amava.

Só á força de muitas instancias e esforços é que D. Julia consentiu em
deixar o campo; mas, ainda assim, com a expressa condição de para lá
voltar se peorasse.

Quando Rosa soube que a viscondessa se ia retirar do campo, não pôde
conter a sua desesperação. Queria acompanhar D. Julia, e não a
desamparar um só instante. D. Julia procurava socegal-a, mas tudo era
baldado, por que Rosa estava inconsolavel.

Na vespera da partida Rosa veio despedir-se de D. Julia; lançou-se-lhe
aos pés, chorando, e pediu-lhe que lhe escrevesse muitas e muitas vezes.
A doente assim lh'o prometteu, e, tirando debaixo do travesseiro uma
bolsinha de sêda, apresentou-a a Rosa.

--Aceita, minha menina--lhe disse ella--esta bolsa; contem cem mil reis,
que são as minhas economias do verão; põe a juros este dinheiro, para
que se augmente este capitalsinho.

É um presente muito pequeno; mas se nos não tornarmos a vêr, minha boa
mãi, dar-te-ha, em meu nome, mais alguma cousa.

Rosa beijou as mãos de D. Julia, e queria recusar a bolsa.

--Não recuses, Rosa--tornou D. Julia--senão fôr para ti, é para tua avó.
Sabes lá o que tem para vos acontecer, e se esta pequena somma ainda vos
será util? Adeus, Rosinha; ama-me sempre muito, e reza muito ao Senhor,
para que me dê saude.

Rosa quiz responder, mas as lagrimas e soluços embargaram-lhe a voz. A
viscondessa, testemunha d'esta scena tão tocante, temendo as funestas
consequencias, que sua filha soffreria com tão grande commoção, levantou
Rosa, e pediu-lhe com instancia e por favor que se retirasse. A pobre
menina cedeu a custo, mas antes de se retirar ainda pôde vêr D. Julia,
que, com um olhar maternal, a abençoava.


IX.

Já tinha decorrido mais d'um mez, desde que D. Julia recolhera ao Porto,
e Rosa ainda não tinha recebido carta da sua amiga. A pobre criança
affligia-se, julgando, que este silencio, para com ella, não tinha outra
causa, senão o estado cada vez mais perigoso de D. Julia. D. Thereza,
que partilhava do pesar de sua filha adoptiva, procurava por todos os
meios consolal-a, e fazer-lhe conceber esperanças. Uma carta de D. Julia
veio confirmar as prevenções de D. Thereza.

D. Julia, com mão tremula, escreveu á sua querida discipula.
Participava-lhe que a sua doença parecia estar um pouco mais debellada,
e que os medicos davam algumas esperanças de a poder subjugar, e
embargar-lhe o seu progresso.

Terminava a carta aconselhando Rosa a que não descurasse os seus
estudos, e pedindo-lhe que lhe escrevesse.

Rosa cobriu de mil beijos esta carta, e no mesmo dia respondeu a D.
Julia, assegurando-lhe que não despresaria os seus conselhos, e que
tinha esperanças, de, para a primavera, renovar as suas lições sob as
arvores da serra; que nas suas orações rogava todos os dias a Deus, com
fervor, que lhe restituisse a saude, e que esperava as suas supplicas
fossem attendidas.

Rosa, cumprido este dever sagrado, lançou mão do seu trabalho com mais
vigor.

Estava proximo o dia natalicio de D. Thereza. Rosa preparava em segredo
um lindo presente para offerecer n'aquelle dia á sua bemfeitora, e para
isso tinha reunido todo o dinheiro, que lhe tinham dado de mimo, e
julgava-se bastante rica para poder apresentar a D. Thereza um brinde,
de que ella admirasse o valor e o gosto.

Faltavam só quatro dias para que, esse dia tão anciosamente esperado,
chegasse, e Rosa ainda queria poder supprimir o tempo, tão longo lhe
parecia.

Na vespera de manhã D. Thereza queixou-se d'uma dôr de cabeça, mas
julgou que um passeio lh'a dissiparia. Sahiu pois; mas passado uma hora
voltou ainda mais indisposta, do que tinha sahido.

Despresando o seu estado, ainda presidiu, na fórma costumada, ao jantar
dos criados da quinta; mas, no meio d'elle, cahiu sem sentidos.

Os criados, assustados, cercaram D. Thereza. Recolheram-na á cama, e
partiu immediatamente um criado a chamar, a toda a pressa, um cirurgião.

Chegou este, e, mal viu a doente, não deu esperanças de a salvar.

--Foi uma apoplexia fulminante--disse elle--é já tarde para se lhe dar
remedio.

O desespero e a consternação espalharam-se na quinta.

Os criados em geral estimavam muito D. Thereza, por que, apesar de ser
muito vigilante, era boa e justa.

Os menores movimentos do cirurgião eram seguidos com anciedade por todos
os criados, mas entre elles tornava-se saliente Rosa pelo zelo e
actividade, que desenvolvia em executar as prescripções do cirurgião,
ainda bem não estavam dadas.

Rosa não podia crêr que Deus lhe quizesse roubar a sua bemfeitora, e
esperava ainda que uma crise feliz a restituiria á vida.

A avó de Rosa estava consternadissima, e o seu maior pesar consistia em
não poder fazer cousa alguma.

De joelhos; junto do leito de D. Thereza, rezava com fervor e devoção.

Entre as alternativas da esperança e desconforto se passou o dia. Á
noite o cirurgião declarou que já lhe não restava esperança alguma; que
D. Thereza ainda podia viver mais um dia ou dous, mas que não proferiria
mais uma palavra, nem faria um unico movimento.

Descrever a afflicção de Rosa e de sua avó é-me impossivel; bastará
dizer que a dôr as tinha quasi enlouquecido.

D. Thereza não tinha filhos, por isso foram avisar do succedido a D.
Euzebia, sua irmã, rica proprietaria em Rio Tinto.

D. Euzebia, por causa do seu genio forte, e caracter duro, não estava em
intimas relações com D. Thereza. Assim que teve noticia da doença de sua
irmã poz-se logo a caminho, não por amisade que tivesse á moribunda, mas
sim para vigiar que lhe não roubassem a mais pequena parte da sua
herança.

Logo que D. Euzebia chegou a S. Cosme, tomou o governo da casa, e deu
ordens como se já estivesse senhora da herança. Rosa e sua avó
inspiraram-lhe antipathia, e não podia comprehender como sua irmã
voluntariamente tinha tomado ao seu cuidado aquellas duas pessoas.

D. Thereza ainda viveu dous dias, conforme o cirurgião dissera, mas sem
falla, e sem movimento, porque a apoplexia tinha-lhe paralysado todas as
faculdades. Só os olhos é que conservavam ainda alguns signaes de vida e
intelligencia, os quaes fixava sobre Rosa, fazendo esforços para fallar,
naturalmente para fazer o seu testamento; mas este ultimo consolo dos
moribundos não lhe foi permittido.

O abbade da freguezia, que veio administrar os ultimos sacramentos á
moribunda, tentou mitigar a dôr de Rosa, mas a joven menina estava muito
consternada para poder ser consolada. Recusou obstinadamente retirar-se
de junto do leito, em que jazia D. Thereza, conservando-lhe a mão gelada
apertada nas suas.

--O meu lugar é este,--dizia ella entre soluços,--só deixarei minha
segunda mãe no tumulo.

Finalmente chegou o terrivel momento da morte. Uma convulsão, alguns
murmurios sufocados........ e D. Thereza tinha deixado d'existir entre
os vivos, e sua alma, desprendendo-se das ligações terrenas, voára ao
céo a receber da mão de Deus o premio das suas virtudes.

Ao principio não se ouviam mais que os chóros de todos os criados da
quinta, mas em seguida uma voz forte e imperiosa se fez escutar. Era a
de D. Euzebia. Collocou uma pessoa junto do cadaver de sua irmã, deu as
ordens para os funeraes, e passou a inspeccionar as caixas e commodas,
que fechava com cuidado, guardando as chaves.


X

Apenas D. Euzebia fechou as commodas e caixas, compareceu o juiz eleito
da freguezia para sellar e tomar conta de tudo o que pertencia a D.
Thereza.

--Aqui estão as chaves, senhor juiz eleito--disse D. Euzebia,--mas é
inutil esse trabalho, por que eu sou a unica herdeira de minha irmã, e
ella não podia desherdar-me.

--É verdade, minha senhora,--respondeu o juiz--mas cumpro o meu dever,
por que a lei protege os direitos de todos.

--Só eu é que tenho direito á fortuna de minha irmã, pois ella não tem
filhos.

--Sim, minha senhora, mas esta orphãsinha, a quem ella deu asylo?

--Minha irmã--replicou com colera D. Euzebia--seria por ventura capaz de
me desherdar, testando os seus bens a favor d'estas duas mendigas, que
ella teve a phantasia de recolher em sua casa?

--Não o affirmo, minha senhora--respondeu com brandura o juiz;--mas sua
irmã póde ter feito testamento, no qual deixe a Rosa alguma prova da sua
estima e amisade.

--Não julgaria sufficiente o sustental-a e mais á avó,--disse D. Euzebia
com voz forte--ainda lhe havia de deixar algum legado? Ah! minhas
velhacas, virieis vós roubar o que de direito me pertence? Snr. juiz
eleito, queira tambem sellar a porta do quarto d'ella, pois quem sabe
lá, o que ella tem roubado. Minha irmã era tão pouco cautellosa...

--Oh! senhora--respondeu Rosa com muita tristeza a esta supposição
offensiva--acreditaes que pagasse com o roubo os beneficios, que eu e
minha avó recebemos da snr.ª D. Thereza?

O juiz eleito ordenou com brandura a Rosa que se calasse, para que D.
Euzebia não continuasse, diante d'um leito de morte, com uma discussão
tão vergonhosa, e feia.

Logo que o juiz se retirou, Rosa viu-se de novo a braços com as
suspeitas da ambiciosa herdeira. Chegaram a tal ponto as cousas, que
Rosa não pôde refrear a sua indignação.

--Não me injurieis, senhora,--disse Rosa com energia e dignidade--não me
injurieis diante do corpo de vossa irmã, de quem só a vista bastaria
para me proteger. Dizei-me, senhora, sahi eu por ventura um só instante
de junto da cama da minha bemfeitora, desde que ella foi atacada pela
apoplexia? Não, senhora. Então como podia eu subtrahir cousa alguma?
Examinai, e examinai bem, senhora, que achareis tudo intacto, porque eu
e minha avó preferiamos antes morrer de fome, do que tocar na cousa mais
insignificante, que nos não pertencesse. Louvado seja o Senhor, sou
forte; posso e quero trabalhar, por isso não serei pesada a ninguem.
Deixai-nos, senhora, chorar em paz a perda da nossa bemfeitora, que,
logo que o seu corpo saia d'esta casa, não vos pediremos asylo.

Esta linguagem, firme e digna, impoz silencio a D. Euzebia, que ficou
corrida de vergonha.

Rosa esperou com socego o dia seguinte, em que se devia fazer o enterro
a D. Thereza.

A pobre criança, com a avó pelo braço, seguiu chorando o prestito.
Depois de terminado o officio, Rosa e sua avó, ajoelharam-se junto da
campa, em que D. Thereza foi sepultada: era já noite cerrada, e ainda as
duas desgraçadas não cuidavam em se retirar.

O frio, que fez dar um gemido á avó, advertiu Rosa de que se devia
recolher; só então é que pensou para onde havia de ir.

--Vamos, minha avósinha--disse Rosa--a casa da snr.ª Maria da Gandra,
que estou certa, sendo tão nossa amiga, nos não ha-de deixar na estrada.

A snr.ª Maria da Gandra era uma boa e caridosa mulher, que, como todos
os moradores de S. Cosme, e seus arredores, estimava muito a protegida
de D. Thereza, e censurára o procedimento de D. Euzebia.

--Oh! Rosinha, foi Deus que te dirigiu para minha casa--lhe disse ella
logo que a avistou.--Que prazer me não causa teres procurado a minha
casa para te recolheres. Tinham-me dito, que ias para casa da Joanna da
Quintella, por isso é que te não offereci para vires para aqui com tua
avó.

--Agradeço-vos, senhora--disse Rosa--a vossa bondade, e a caridade com
que vos offereceis para nos recolherdes; mas não venho pedir-vos casa e
sustento de graça, porque tenho duas inscripções de cem mil reis cada
uma; o que vos rogo é que me aboneis tudo o que eu precisar e minha avó,
que vos satisfarei logo que termine a liquidação da herança da snr.ª D.
Thereza, e receba as minhas inscripções.

--Sim, sim, minha menina,--lhe respondeu a snr.ª Maria da Gandra--Não
preciso do teu dinheiro para te sustentar e a tua avó. Mas diz-me, como
obtiveste essas inscripções?

--A snr.ª D. Julia, antes de partir para o Porto, deu-me cem mil reis,
com os quaes a snr.ª D. Thereza, em cumprimento do seu desejo, comprou
duas inscripções em meu nome.

--Foste feliz, Rosinha, em que fossem compradas em teu nome, porque
d'outra maneira D. Euzebia tomaria posse d'ellas. Tem resignação, assim
como vós, minha boa velhinha; vinde cear, que eu depois vou-vos conduzir
ao vosso quarto.

Rosa e sua avó ficaram portanto habitando na Gandra.

A pequena não estava ociosa, antes pelo contrario era tão zelosa e
trabalhadeira, que a snr.ª Maria, muito satisfeita, propoz-lhe que ella
e a avó, ficassem para sempre em sua casa. Rosa aceitou promptamente, e
com reconhecimento, pois n'aquella occasião era a maior felicidade, que
lhe podia apparecer.

No dia em que se deviam tirar os sellos em casa da defunta D. Thereza,
Rosa alli compareceu por convite do juiz eleito.

Quando Rosa atravessou, como estranha, a soleira da porta da casa, que
tinha sido para ella tão hospitaleira, o coração comprimiu-se-lhe e não
pôde reter as lagrimas.

Tudo se passou sem novidade; só de quando em quando D. Euzebia mostrava
por gestos e exclamações o seu desapontamento por encontrar menos
dinheiro, do que imaginava.

Quando se abriu a caixa, que pertencia a Rosa, não foi uma exclamação de
surpreza, que D. Euzebia soltou, mas sim de raiva, na qual se divisava
um accento de triumpho.

--Bem certa estava eu,--disse ella--que esta velhaca havia de ter
_empalmado_ alguma cousa. Ah! se eu não viesse logo... o que teria
acontecido. Examinai, senhor escrivão, o que é que ahi existe.

O escrivão tirou da caixa um magnifico vestido, que, a julgar pelo
tamanho, não pertencia de certo a Rosa.

--Dize velhaca,--tornou D. Euzebia--como é que este vestido veio aqui
parar?--Não preciso perguntal-o, porque a culpada está-se denunciando
pelo rubôr, que lhe cobre as faces.

--Senhora D. Euzebia--disse o juiz--o seu proceder para com esta criança
é digno de censura. Ainda, até agora, não encontramos cousa alguma, que
fizesse, nem ao menos, suspeitar de sua probidade. Deixai-a portanto
dar-me as explicações, que tiver a fazer.

Responde Rosinha,--disse o juiz com modo affavel--como é que este
vestido se acha na tua caixa?

Rosa fez-se muito corada e respondeu:

--Este vestido, senhor, foi comprado com as minhas economias.

--Que é; que é?--interrompeu D. Euzebia.

--Senhora--disse severamente o juiz--ordeno que vos caleis.

--É bem publico e sabido, que eu, durante o verão, fazia cestinhos de
flôres, que ia vender ás casas abastadas dos arredores.

Quasi sempre me davam, como presente, mais do que o custo dos cestos:
entregava-me a snr.ª D. Thereza, para guardar no meu mealheiro, estas
pequenas quantias, que reservei com muito cuidado para poder brindar a
snr.ª D. Thereza no seu dia natalicio.

Estava muito indecisa, por não saber o que lhe devia offerecer, e foi a
minha avó, que me suggeriu a idéa de lhe comprar um vestido. Para levar
a effeito este meu desejo combinei em segredo, com a costureira da snr.ª
D. Thereza, para o fazer, e estou muito certa de que a minha bemfeitora
não despresaria a minha offerta, se tivesse a felicidade de lh'a
apresentar.

Esta explicação, simples e clara, que demonstrava um coração sincero e
grato, fez borbulhar as lagrimas nos olhos de todos os circumstantes.
Devemos comtudo excluir d'este numero D. Euzebia, que presistia em negar
a verdade.

Quando se encontraram as duas inscripções, D. Euzebia chegou ao auge do
desespero e da colera, e de boa vontade as inutilisaria, se lhe fosse
possivel obtel-as á mão; mas, felizmente para Rosinha, não pôde
conseguil-o.

Finalmente, pelos cuidados e protecção do juiz eleito, Rosa e sua avó,
apesar de todos os obstaculos e vontade de D. Euzebia, receberam tudo o
que lhes pertencia, e deixaram sem maior desgosto a casa, de que a mais
cruel e mais requintada avareza as expulsava.


XI.

Estamos no anno seguinte.

Rosa escreveu á viscondessa do Candal e a sua filha uma carta tão
affectuosa e consoladora, que fez despertar em D. Julia um vehemente
desejo de tornar a vêr a sua querida discipula e protegida.

Os dias, que faltavam para Rosa poder abraçar a sua amiga, pareciam-lhe
seculos. Esperava com uma impaciencia impossivel de descrever, a chegada
da primavera, porque então é que devia, e podia estreitar ao coração a
sua querida amiga e preceptora.

Raiou finalmente o dia tão anciosamente almejado. A primeira pessoa que
D. Julia avistou foi Rosa, que, louca d'alegria, viera esperar a sua
amiga querida, para lhe apresentar um cestinho, igual ao que tinha
estabelecido e sido causa das relações e intima união, que existia entre
ellas.

D. Julia ao vêl-a deu um grito, e quiz immediatamente descer do coupé;
mas não pôde fazel-o, por que estava tão magra, fraca e desfigurada que,
quem a via, só a um milagre podia attribuir a sua existencia. Era na
verdade um milagre, devido ao amor maternal, e continuos cuidados e
desvelos, de que a cercava a viscondessa.

Rosa passou todo o dia na companhia da sua querida amiga e protectora.
D. Julia tinha muito que lhe perguntar, por que queria saber
minuciosamente tudo o que tinha acontecido, desde que ella se tinha
retirado para o Porto.

Apenas teve conhecimento da morte de D. Thereza, D. Julia pediu
immediatamente a sua mãi, que recebesse em sua casa Rosa e sua avó.

A viscondessa, que desejava e queria satisfazer o mais pequeno desejo,
ou pedido de sua filha predilecta, accedeu sem demora.

Rosa e sua avó vieram portanto morar para casa da viscondessa do Candal,
que foi pessoalmente dar parte d'esta sua resolução á snr.ª Maria da
Gandra.

--Estou satisfeitissima, minha senhora--disse a snr.ª Maria da
Gandra--pela felicidade de Rosa; mas ao mesmo tempo sinto um grande
pesar, e é com difficuldade que me separo d'ella. Nunca mais encontrarei
uma pequena, que seja tão humilde e trabalhadeira.

A viscondessa em seguida quiz satisfazer á snr.ª Maria da Gandra toda a
despeza, que Rosa e sua avó tinham feito em sua casa; mas a honrada e
digna aldeã não quiz aceitar a mais pequena e insignificante recompensa,
e respondeu--Que Rosa havia ganho o que ella e sua avó tinham
despendido.

A despedida de Rosa e da snr.ª Maria da Gandra foi pathetica, e só a
muito custo se desprenderam, chorando, dos braços uma da outra,
promettendo Rosa vir visital-a a miudo, por que o carinho, com que a
snr.ª Maria a tinha tratado havia sido tal, que seria uma ingrata se lhe
não tributasse um profundo reconhecimento.

A alegria, que se apoderou da pobre cega, quando lhe disseram que ia
viver em casa da viscondessa do Candal, foi tal, que só acreditou depois
de muito lh'o asseverarem, por que lhe parecia impossivel que semelhante
ventura lhe succedesse.

--Que a minha Rosinha--disse ella--algum dia se havia de tornar senhora
da cidade, sempre eu o julguei, por que era muito gentil e linda para
ser camponeza; mas que eu partilhasse tal ventura, nunca o imaginei.

Rosa e sua avó foram alojadas, em casa da viscondessa, em dous quartos,
muito perto d'aquelle em que habitava D. Julia; que assim o tinha
exigido para ter a sua protegida junto d'ella, o que se executou com
muita censura e reparo de D. Bertha.

--Era só o que faltava--dizia um dia, a orgulhosa D. Bertha, a D.
Francisca de Meirelles, sua amiga--trazer para nossa casa estas duas
mendigas. Podes tu, minha querida, explicar-me como é que Julia pôde
affeiçoar-se tanto a estas duas creaturas?

--Tua irmã, Bertha, tem o coração muito sensivel; basta que lhe façam
uma choradeira, ou que lhe contem uma historia triste para acreditar em
tudo, e logo se affeiçoar a qualquer, e lhe dedicar carinho é protecção.

--Mas na verdade, esta sociedade não é tão agradavel e
attrahente?--disse D. Bertha com um sorriso ironico.--Se a cega e a neta
contam commigo para lhes fazer companhia, affirmo-te que lhes hei-de
deixar muito tempo para se aborrecerem.

Conforme com estas _bellas_ resoluções D. Bertha evitava o mais possivel
dirigir a palavra a Rosa e sua avó, e, quando por necessidade o fazia,
era com um modo tão sobranceiro, imperial e chocarreiro, que as duas
infelizes ficavam confusas e envergonhadas.

D. Julia tentou por diversas vezes fazer nascer no coração de D. Bertha
sentimentos mais nobres e mais christãos, mas infructuosamente, por que,
procurar commover e sensibilisar o coração empedernido e orgulhoso de D.
Bertha, era um trabalho improbo e esteril.

D. Julia, feliz por ter em sua companhia a querida de seu coração, a sua
discipula, recuperou algum vigor, e ainda pôde recomeçar as lições. A
fadiga, que d'este trabalho lhe podia provir, era attenuada pela
attenção e estudo, que Rosa prestava ás prelecções.

D. Julia ainda quiz ensinar desenho a Rosa.

--Queres dar a Rosa--disse uma occasião a viscondessa a sua filha--uma
educação e instrucção superiores á sua posição na sociedade, e não
receias que isso para o futuro lhe cause embaraços e dissabores?

--Como resposta a essa pergunta tenha, minha querida mãi, a bondade de
ouvir o que a minha protegida me dizia outro dia:

«O meu maior desejo, minha boa amiga e mestra, é alcançar bastante
instrucção e saber, para um dia ser professora. Como me julgaria feliz
podendo dizer ás minhas discipulas: era uma aldeã muito ignorante e
rustica; uma boa menina, a snr.ª D. Julia, filha da snr.ª viscondessa do
Candal, teve a bondade de me tomar sob a sua protecção e de me ensinar.
É a ella, meninas, a quem devo o que sei e o que vos ensino. Se me
amaes, deveis igualmente amar a snr.ª D. Julia, minha bemfeitora; e
então ellas vos renderão graças, assim como eu vol-as rendo agora.»

--Não te torno a dizer mais nada--disse a viscondessa--Continua, minha
filha, pois Rosa é digna dos teus cuidados e desvelos, e para que elles
se tornem mais proficuos ajudar-te-hei a leccional-a.

A viscondessa cumpriu a sua promessa e, alternadamente com D. Julia,
dava as lições a Rosa.

Estes estudos não fizeram pôr de parte a preparação de Rosa para receber
dignamente a primeira communhão. Foi com uma piedade exemplar que ella
cumpriu este solemne acto, e o futuro provou não ter sido esteril para o
seu coração.

D. Julia passou o verão entre as alternativas de melhoras e recahidas
nos seus padecimentos, que tinham uma successão quasi regular e
periodica. Umas vezes nem levantar-se da cama, ou d'uma cadeira de
braços, para onde a levavam, lhe era possivel; outras vezes chegava a
poder dar uns pequenos passeios pelos campos das visinhanças. Aos
proprios medicos custava a comprehender como ella vivia.

D. Julia, porém, não se illudia sobre o seu estado de saude. Quando sua
mãi a entretinha fazendo projectos, ou, como ordinariamente se diz,
_castellos no ar_, para o futuro, ella sorria-se e respondia: que ainda
faltava muito tempo para a sua realisação, e que não chegava a vêl-os
confirmar.

A sós com Rosa D. Julia fallava livremente sobre a proxima terminação da
sua existencia, e então ella supplicava-lhe com instancia, que
repellisse da sua imaginação tão sinistras idéas.

--Não posso crêr,--dizia ella--que Deus nosso Senhor me queira tirar
d'este mundo todos os meus protectores: não sei que crime tenha
commettido, que mereça semelhante castigo.

--Resta-te ainda minha mãi, minha Rosinha--respondia D. Julia--que estou
certa nunca te ha-de desamparar.

Rosa terminava esta penosa conversação abraçando D. Julia e procurando
distrahil-a por todos os meios possiveis.

O que a dedicação mais sincera e real póde suggerir de mais bello, tudo
Rosa executava, recebendo, por galardão, ou recompensa a mais grata, um
terno sorriso de D. Julia, ou um agradecimento da viscondessa, e para os
merecer faria o impossivel se necessario fosse.


XII.

D. Julia apparentava exteriormente um socego d'espirito, que
interiormente não sentia, por que receiava muito a chegada do outono,
época, que os medicos tinham marcado, a mais longa a que poderia chegar.
A anciedade, pois, que todos soffriam pela aproximação d'esse termo
fatal, era geral.

Chegou o outono. Por um d'estes phenomenos, que a tisica muitas vezes
apresenta, a molestia não offereceu n'esta estação alteração alguma.

A esperança, de que D. Julia ainda poderia vencer a fatal doença,
começou a penetrar em todos os corações, e até no da propria enferma.
Rosa chegou a dizer á viscondessa, que tinha uma convicção firme de que
D. Julia não morreria, por que Deus Nosso Senhor era bom e não a havia
de privar da sua protectora.

A viscondessa, que até ahi estava convencidissima, de que sua filha não
passaria além do termo marcado pelos medicos, vendo-o passar sem que a
sua fatal predicção se realisasse, começou a crêr que se tinham
enganado, e que D. Julia ainda lograria saude.

Houve portanto grande alegria em casa da viscondessa. Todos os criados,
que não amavam só, mas que veneravam D. Julia, por que era sempre boa e
affectuosa para elles, crendo que a sua joven ama, não tendo morrido na
época marcada, estava salva, pediram unanimemente para a felicitarem;
tal foi a alegria e contentamento, de que se apoderaram com esta
esperança e crença.

Estas demonstrações respeitosas de sympathia e amisade, que os criados
lhe deram, penhoraram e commoveram muito D. Julia. A todos agradeceu com
reconhecimento esta nova prova d'affecto.

Porém, de todas as felicitações, a da sua discipula e de sua avó, foi a
que mais a impressionou.

Quando Rosa, conduzindo sua cega avó, se ajoelhou com ella junto da cama
de D. Julia, e lhe exprimiu, com candura e ingenuidade, a alegria e
prazer, que sentiam pelas suas melhoras, e os votos, que faziam a Deus,
para que o seu restabelecimento fosse real e breve, não pôde soffrear a
sua commoção, e as lagrimas correram-lhe em fio pelas faces, agradecendo
a Deus o prazer que tinha gosado com a felicitação que acabava de lhe
ser dirigida.

Passou-se o inverno, sem que o estado de saude de D. Julia soffresse
alteração sensivel.

Com a chegada da primavera D. Julia recomeçou os seus passeios pelos
campos e pinheiraes visinhos, na companhia da sua inseparavel Rosa, a
que algumas vezes se aggregava tambem a viscondessa.

Na quaresma seguinte Rosa recebeu pela segunda vez o sacramento da
communhão, e pouco tempo depois, D. Julia, querendo que a sua protegida
progredisse nos seus estudos, pediu a sua mãi que lhe escolhesse uma
professora.

A viscondessa annuiu immediatamente ao pedido de sua filha.

Pouco tempo depois entrou para casa da viscondessa, sob recommendação e
abono do abbade de S. Cosme, uma joven senhora, a quem ha pouco acabava
de ser concedido o titulo de capacidade.

Rosa esforçava-se por todos os meios possiveis para corresponder
dignamente aos beneficios, que, D. Julia e sua mãi, lhe estavam
constantemente prodigalisando; procurando sempre não dar o mais leve
desgosto ás suas protectoras; comtudo, é preciso dizer que Rosa não era
perfeita. A sua vivacidade natural levava-a muitas vezes a
impacientar-se, e o seu ainda pouco peso ou juizo a commetter algumas
faltas nos seus deveres; mas reconhecia com tanta facilidade os seus
erros, e mostrava-se tão arrependida e desejosa de os emendar, com tanto
afinco e perseverança, que era impossivel tratal-a com rigor por muito
tempo.

Rosa dava as suas lições, umas vezes no quarto de D. Julia, quando o seu
estado de saude o permittia; outras vezes no da viscondessa, que sentia
um verdadeiro e sincero prazer em observar os progressos da predilecta e
querida de sua filha.

D. Maria d'Almeida, assim se chamava a professora, correspondeu
dignamente á confiança, que a viscondessa n'ella tinha depositado,
confiando-lhe a instrucção da sua pupilla.

O progresso e desenvolvimento, que Rosa sob a sua direcção experimentou,
foi grande, dando já signaes de que em breve a discipula se tornaria uma
excellente professora.

Rosa, assim que as suas obrigações e deveres estavam terminados,
dedicava-se exclusivamente a D. Julia, e sua avó. Esta, desde que viera
viver para casa da viscondessa do Candal, andava alegre e folgazã, e
ainda julgava estar sonhando, tal era a placidez e amenidade do seu
viver.

Tinha já decorrido parte do anno; o outono estava quasi findo, e o
estado de saude de D. Julia não denunciava signal algum de peoramento; a
molestia, porém, que até então estivera encubada, reappareceu com grande
violencia, e em oito dias as crises succederam-se tão proximas umas das
outras, que pozeram a enferma em estado de se não conceber esperança
alguma de a salvar.

A illusão, que até ahi existira em todos, desappareceu completamente: já
não esperavam senão o golpe final... Rosa, nem um só momento desamparava
a sua querida protectora, e juntamente com a viscondessa, cuidava e
tratava de D. Julia; não consentiam que mais ninguem lhe prestasse o
mais insignificante serviço, chegando até a ter zelos uma da outra.

Tanta dedicação e amisade teriam feito com que Deus revogasse a fatal
sentença dada a D. Julia, se o Creador, na sua alta sabedoria, não
tivesse resolvido chamar á sua presença, a receber o premio das suas
virtudes, aquelle anjo de bondade e resignação.

D. Julia, já moribunda e quasi expirante, pediu a sua mãi, como ultima
graça que lhe fazia, que não abandonasse Rosinha, a sua querida
discipula e amiga; que se não affligisse, nem desanimasse, porque em
Rosa lhe deixava, estava certa d'isso, uma filha obediente e dedicada,
que havia de substituir no seu coração o lugar que ella deixava vasio, e
a Rosa recommendou-lhe que amasse sempre muito sua mãi, por que n'ella
encontraria um sincero apoio, e uma terna e carinhosa amiga.

Apenas D. Julia proferiu estas palavras, a hora fatal tinha soado;
abraçou sua mãi, e Rosinha e, pronunciando os nomes de Rosa... e minha
mãi... expirou, voando a sua candida alma á presença de Deus a receber a
glorificação de suas virtudes.

Assim terminou D. Julia a sua existencia, que, se tinha sido breve para
o mundo, fôra longa pelas boas obras, que sempre praticára, e pela
pureza em que sempre vivera.


XIII.

Já decorreram seis annos depois das scenas descriptas no capitulo
antecedente.

Não deixaremos, porém, a nossa muito conhecida casa, perto de S. Cosme,
pertencente á viscondessa do Candal, por que é no caminho, que a ella
conduz, que tem lugar o que passamos a contar.

Uma senhora ainda joven, e outra já de mais idade caminham em silencio,
e commovidas.

A mais idosa é a nossa muito conhecida viscondessa do Candal.

O pesar da morte da sua querida filha Julia desfigurou-a muito. O rosto
tem-no emmagrecido, e sulcado de profundas rugas, e os cabellos
embranquecidos antes do tempo.

A sua companheira é uma joven que figura ter dezesete para dezoito
annos, d'apparencia ingenua e modesta; é a nossa Rosa, a pequena dos
ramos e cestinhos.

A viscondessa caminha apoiada no braço da sua companheira. Depois
d'alguma hesitação Rosa decidiu-se a dirigir-lhe a palavra.

--Receio, minha querida senhora--disse Rosa respeitosamente--que esta
visita vos cause uma grande commoção e vos prejudique a saude. Por que a
não deixaes para quando estiverdes mais restabelecida?

--Não, Rosa, não. Ha oito dias, que não vim visitar a campa onde jaz a
minha Julia, e oito dias já é um espaço muito longo. Sinto-me hoje
melhor, não despresarei portanto esta occasião que se me offerece, por
que, quem sabe se recahirei?

--Não penseis em tal, senhora viscondessa. Creio que ainda haveis de ter
muitos annos de vida; tenho fé, que Deus vos não roubará á minha ternura
e reconhecimento.

--Se as orações d'um anjo, Rosa, podessem deter a morte, conheço que as
tuas me preservariam d'ella. Mas, ai de mim, a morte da minha sempre
lembrada Julia despedaçou-me o coração. Não estou eu só n'este mundo?
Bertha não me abandonou logo que casou? Que faço então aqui n'este ermo,
a que chamam mundo?

--Ah! senhora, esqueceis então a pobre Rosa, que vos estima e ama, e que
vos é tão dedicada como se fôra vossa filha?

Estas palavras, pronunciadas com um accento de submissão, penetraram até
o imo do coração da viscondessa: sensibilisaram-na tanto, que abrindo os
braços recebeu n'elles Rosa banhada em lagrimas.

--Sou uma ingrata, Rosa, bem o reconheço,--disse a viscondessa cingindo
Rosa ao coração. Recebo com indifferentismo os teus cuidados e carinhos,
e a tua inexcedivel dedicação. Perdôa-me, minha filha, minha querida
filha. Conheceste Julia, e melhor que outra qualquer sabes quanto era
merecedora da minha ternura e amisade, e quanto é digna de ser
pranteada. Mas Julia, antes de morrer, deixou-te na minha companhia,
para me servires de consolação e allivio na minha dôr. Abraça-me Rosa,
minha filha querida.

Rosa, por unica resposta, abraçou com ternura a sua bemfeitora.

As lagrimas, que lhe cobriam as faces, diziam bem alto e eloquentemente,
o que a commoção lhe embargava nos labios.

Ainda caminharam por mais algum tempo e chegaram ao cemiterio.

A viscondessa do Candal, como tributo á memoria de sua filha,
mandára-lhe levantar um lindo e rico mausoléo de marmore branco, no qual
ella tambem queria ser encerrada á sua morte. Em volta das grades
viam-se alegretes em que haviam violetas, geranios e rosas amarellas,
que Rosa cultivava e cuidava com muito esmero, como recordação das
flôres com que enfeitára o cestinho, que fôra causa da intima união, que
se estabelecera entre ella e D. Julia.

A viscondessa e sua filha adoptiva oraram por muito tempo sobre a campa
d'aquella, que tanto tinham estremecido em vida, e que tanto choravam na
morte.

Rosa, depois de ter examinado e regado todos os alegretes e pés de
flôres, um por um, para que os insectos, ou a seccura os não
estiolassem, dirigiu-se á viscondessa.

--Deixo-vos, senhora--lhe disse ella--por um instante. Vou rezar junto
da campa de minha avó.

--Tambem quero acompanhar-te--replicou a viscondessa.

Não muito distante do mausoléo de D. Julia se elevava uma cruz simples.
Era ahi que jazia, havia dous annos, a pobre cega. Terminára os seus
dias socegadamente, bemdizendo a ternura de sua neta, e a caridade
affectuosa da sua bemfeitora.

Devido ainda ao zelo de Rosa a campa da pobre cega, adornada com
diversas flôres, semelhava um jardimsinho.

Rosa ajoelhou-se, e depois de ter rezado com fervor e devoção por algum
tempo, levantou-se, e dando o braço á viscondessa retiraram-se, fazendo
ainda uma ultima visita ao tumulo de D. Julia.

Quando se recolheram, Rosa encontrou uma carta da sua antiga professora
D. Maria d'Almeida, na qual lhe participava, que d'ahi por dous mezes se
havia de proceder aos exames d'habilitação para os titulos de
capacidade, por isso, se ainda estava decidida a propôr-se a exame, que
enviasse os documentos necessarios ao commissario dos estudos.

Rosa apresentou esta carta á viscondessa.

--Sempre estás decidida a propôr-te a exame?--lhe disse ella.

--Sim, minha senhora. É o meu mais fervente e afanoso desejo. Quero,
senhora, que a instrucção e saber, que vos devo, e a vossa querida e
chorada filha, aproveite ás crianças, que a pobresa retem na ignorancia
e na rudeza. Se eu poder ser util, ainda que seja a uma só d'entre
ellas, como, senhora, me reputarei feliz e bem paga do meu trabalho!

--Tinha a esperança de te conservar sempre na minha companhia---replicou
a viscondessa.--Occuparias para sempre o lugar do anjo, que Deus me
levou, da minha Julia. Não queres, Rosa, ser minha filha?

--Ah! senhora, quero sim, ser vossa filha; isso ainda vai além da minha
ambição. Mas recordo-me que era uma pobre rustica, e que só aos vossos
beneficios devo a minha instrucção, e a cultura da minha intelligencia.
Quero, senhora, dar de barato, e ter a vangloria de dizer que os vossos
cuidados não foram perdidos, mas com isso não me devo tornar vaidosa,
por que faltaria assim aos meus deveres. Serei sempre para vós uma filha
adoptiva, carinhosa, humilde e terna, e que achareis sempre ao vosso
lado, esforçando-se por pagar a sua divida de gratidão e reconhecimento:
Recebendo e aceitando a vossa affeição e amisade, para mim preciosa e
apreciavel, não me devo esquecer da classe onde nasci. O meu lugar é
mais humilde; mas como elle parece bello e grandioso ao meu coração,
quando me recordo do bem, que posso fazer a essas infelizes crianças,
que vivem na bruteza, ensinando-lhe o que sei e que é obra vossa! Ha
muito que concebi este meu projecto, e que o declarei a vossa filha: «Ás
pobres rapariguinhas das aldéas--lhe disse eu--farei o mesmo que a snr.ª
D. Julia me fez. Ensinar-lhes-hei a serem felizes com a sorte, que Deus
lhes destinou n'este mundo; cultivarei o seu coração e o seu espirito, e
por unica recompensa não quererei mais do que ouvil-as bem dizer os
nomes da exc.ma viscondessa do Candal e de sua filha.»

--Rosa, minha querida Rosa--disse a viscondessa abraçando-a, e com os
olhos rasos de lagrimas,--que Deus te pague a felicidade, e prazer, que
me fazes nascer no coração com as tuas palavras.

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Dous mezes depois, a nossa, hoje, D. Rosa de Jesus e Sousa comparecia
perante o jury nomeado para proceder ao exame das concorrentes ao
professorado. O titulo de capacidade, em grau superior, foi-lhe
concedido por unanimidade e com distincção.


XIV.

Dous annos se passaram já, depois que foi conferido a D. Rosa de Jesus e
Sousa o seu titulo de capacidade.

Estamos em fins d'Outubro, n'uma casa caiada de branco, que se encontra
ao entrar na freguezia de S. Cosme, do lado de S. Pedro da Cova. Na
frente ha um pateo largo e espaçoso. Sobre o muro pendem os ramos
verdejantes de dous chorões. Nas trazeiras da casa ha um pequeno jardim,
muito bem tratado, com as ruas areadas com saibro, e que termina por um
caramanchãosinho, que, pelo bem cerrado que está, indica que no verão
deve alli haver uma frescura agradavel, auxiliada pela corrente d'uma
levada, que corre proximo. Na sala que fica ao nivel do jardim ouve-se
um murmurio confuso. Entremos, para examinar a que elle é devido. Que
vemos? Grupos de lavradeirinhas, ao todo umas trinta, pouco mais ou
menos, vestidas de branco, e tendo todas na mão um raminho de flôres do
campo, com um laço de fita. Ao fundo da sala vê-se uma rica imagem de
Nossa Senhora da Conceição, collocada sobre um altar, bem adornado com
castiçaes de prata, velas de cera e jarras com flôres.

N'um dos lados da sala ha quatro cadeiras de braços; n'uma d'ellas está
sentada a viscondessa do Candal, a quem D. Rosa, de pé, junto d'ella,
está dizendo os nomes das suas discipulas.

A viscondessa passeia a vista por todas ellas, e conhece-se-lhe na
expressão do rosto, que aquelle espectaculo a regosija e encanta.

O modo, porque todas dirigem as vistas para a porta e pelas janellas,
indica que se espera alguem.

O abbade da freguezia e o administrador do concelho entram n'este
momento pelo portão.

Um sorriso alegre se vê deslisar em todos os rostos. Eram as pessoas por
quem se esperava.

A viscondessa e a sua pupilla vieram recebel-os á porta, e
conduziram-nos ás cadeiras que lhe estavam destinadas.

As crianças tomaram os seus lugares, e restabelecido o silencio, o
abbade da freguezia tomou a palavra, e fez o seguinte discurso:

«Sinto, minhas meninas, um prazer immenso por vos vêr aqui reunidas para
a celebração do primeiro anniversario da installação d'esta escóla,
devida á muita philantropia e caridade christã da exc.ma viscondessa do
Candal, e á dedicação exemplar da vossa digna professora a snr.ª D. Rosa
de Jesus e Sousa. Julgo desnecessario o rememorar-vos, que um tal
sacrificio merece um eterno reconhecimento, por que entendo que entre
vós, minhas filhas, não ha ingratas. Vós respeitaes e veneraes a exc.ma
viscondessa, e amaes com um verdadeiro amor a vossa professora, não é
assim? É, assim o creio. Mas ha ainda uma pessoa, para quem deveis ter
uma saudosa recordação, e que tambem deveis encommendar a Deus nas
vossas orações. Prestai-me attenção, que vos vou dizer quem é essa
pessoa, cuja recordação vos deve ser grata. Ha pouco mais ou menos doze
annos, que uma pobre lavradeirinha ganhava a sua vida fazendo cestinhos
de juncos, e ramos de flôres silvestres. Uma joven e nobre senhora, que
reconheceu n'ella amabilidade, modestia e humildade, sympathisou com
ella, e encarregou-se de a educar e instruir. Como a sua bemfeitora a
achou sempre digna dos seus beneficios, encarregou-se tambem da sua
posição futura. Essa joven senhora, de que vos fallo, é a exc.ma snr.ª
D. Julia, filha da exc.ma viscondessa do Candal, e essa lavradeirinha, a
quem ella dispensou os seus carinhos e a sua affeição, é a vossa douta
professora. Ha já alguns annos, que a alma da exc.ma snr.ª D. Julia voou
á presença do Deus eterno a receber o premio das suas virtudes e das
boas obras, que praticára n'este mundo; uma das quaes ainda existe, que
foi o deixar-vos a vossa professora e amiga.

«Mostrai-vos, meninas, sempre merecedoras dos beneficios, que vos fazem,
porque isso é o unico desejo das vossas bemfeitoras e a unica
recompensa, que recebem da sua dedicação, que estou muito convencido
sempre fareis por merecer.

«Não quero, porém, retardar por mais tempo o momento de receberem o
premio e galardão, que merecem pela sua applicação ao estudo e amor ao
trabalho, áquellas que d'isso se tornaram dignas; e ás que d'esta vez
não são galardoadas resta-lhes a esperança e o meio de, pela imitação
das suas condiscipulas, se tornarem dignas de o merecerem para o anno
futuro.

«Vamos por tanto proceder á distribuição dos premios.»

Um sussurro d'alegria acolheu as ultimas palavras do digno sacerdote.

A conferencia dos premios foi esplendida.

Os premios consistiam em livros religiosos e d'instrucção, que tinham
sido cuidadosamente escolhidos pela viscondessa, e sua filha adoptiva,
todos ricamente encadernados. Era interessante e bello vêr a alegria,
que se deslisava no rosto das que tinham sido contempladas na
distribuição.

Terminada a conferencia dos premios teve lugar debaixo do caramanchão um
bem servido _lunch_.

--Como é magnifico o espectaculo, que apresentam estas crianças, alegres
e satisfeitas--disse a viscondessa--Recordar-me-hei sempre d'este dia,
como o mais grato e feliz da minha vida. Tu, minha querida Rosa,
attrahes as bençãos do céo sobre nós, e sobre a memoria da minha
querida, e chorada Julia.

--Ah! senhora,--disse Rosa com os olhos rasos de lagrimas--que a vossa
prophecia se realise, e a minha mais cara aspiração ficará satisfeita.

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O desejo de Rosa realisou-se. A escóla está cada vez mais florescente, e
a freguezia ufana-se pela possuir. Todos os moradores do lugar ainda
hoje bemdizem os nomes da viscondessa do Candal, de sua filha e de D.
Rosa, modêlo raro d'um coração verdadeiramente grato e reconhecido aos
beneficios que recebera.

FIM.





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