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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (de 12)
Author: Castelo Branco, Camilo Ferreira Botelho, 1825-1890
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (de 12)" ***


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco

PUBLICAÇÃO MENSAL


N.º 2--FEVEREIRO


LIVRARIA INTERNACIONAL

DE

ERNESTO CHARDRON

96, Largo dos Clerigos, 98

PORTO

EUGENIO CHARDRON

4, Largo de S. Francisco, 4

BRAGA

1874


PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

62--Rua da Cancella Velha--62

1874


BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA



SUMMARIO

Aquella casa triste... (romance)--Solução do problema historico--Dous
preconceitos--Lisboa--Ferreira Rangel--As joias de im ministro de D. João
5.º no prego--O oraculo do marquez de Pombal--O principe perfeito--Ave
rara--Vergonhas nacionaes--Rancho da Carqueja--Bom humor (resposta ao
noticiarista da "Actualidade")--Declaração.



AQUELLA CASA TRISTE...

(1872)


I

A casa grande das quinze janellas branqueja no espinhaço do monte.

As janellas fecharam-se ha seis mezes, ao mesmo tempo que duas sepulturas
se abriram.

A sepultura do _Africano_ que chegava ao cemiterio, quando a filha
expirava; e a sepultura de Deolinda, quando o sino dobrava ainda nos
funeraes do pai.

     *     *     *     *     *

Ao homem, que morreu n'aquella casa triste, chamavam o _Africano_.

Estou-a vendo d'aqui.

As vidraças reberveram o sol poente.

Eu, ha hoje dez annos, vi abrir os alicerces d'aquella casa.

Lidavam operarios a centenares.

Entre os alveneis estava um sujeito, na pujança dos annos, magro, macilento
e tostado pelo sol da Africa.

Disseram-me que era homem muito rico, e viera do cabo do mundo, e se
chamava o «Duque» por appellido, e o _Africano_ por alcunha.

Avisinhei-me d'elle com o semblante risonho de cortezias para lhe perguntar
como ia, em monte assim agro e ermo, fabricar edificio tão grandemente
cimentado.

Respondeu que tinha em Benguela uma filha, com quem andára viajando na
Suissa. E que a sua Deolinda, estanciando nas empinadas serras de S.
Gothard, lhe dissera que seria feliz se morasse no topo d'uma montanha, em
casa imitante de outra onde pernoitára, e d'onde vira levantar-se o sol do
seu leito de neve.

E elle, pai extremoso, rico e saudoso da patria, disse á filha que, por
cima da casinha onde nascera, em um outeiro do Minho, sobranceava um alto
monte, golpeado de regatos que derivavam por entre arvoredos fresquissimos.

E a filha, cingindo-se-lhe ao pescoço, exclamára:

--E quando vamos?

--Irei fazer a casa no alto do monte, e depois irás tu, e levaremos para a
capella os ossos de tua mãi. E eu descançarei d'esta labutação em que pude
grangear mais que o preciso ao teu passadío, visto que preferes a viver em
Paris uma casa nas serras de Portugal.

E sahiu de Benguela, provido de dinheiro para edificar o ostentoso _chalet_
que a filha phantasiára.

Ora, os architectos do Minho, como não percebessem a planta do _Africano_,
construiram-lhe um palacio aldeão, espécie de dormitorio monastico, um
leviathan de granito zebrado de vidraças enormes e portas alterosas.

Perto d'alli, na outra lombada do mesmo outeiro, está o antigo solar
torreado dos senhores de Farelães.

E eu que, n'aquelle tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do paço
senhorial de Ruivães, a decifrar a lenda meio historica dos Corrêas de Sá
nos frescos do tecto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do
_Africano_, dizia entre mim: «O palacio cavalleiroso que desaba, e o
palacio industrial que se levanta. Aquelle recorda as manhas epicas do
peito illustre lusitano, a industria da lança que atirou da India para
alli, na ponta ensanguentada, a pedraria dos reis de Chaul, de Calecut e
Mombaça. Ergue-se o novo palacio para assignalar á posteridade que o peito
moderno lusitano é ainda illustre e emprehendedor, differençando-se do
antigo sómente no que vai entre adaga e azorrague, entre acutilar o indio
pela frente, ou verberar o ethyope pelas costas.»

Mas eu não sabia se aquelle homem, tão entranhadamente pai, amealhára os
seus haveres por entre os perigos do cruzeiro. Talvez que não. A riqueza
não é sempre o estipendio generoso dos homens crueis. E, em corações
afistulados por peçonha de cubiça--sêde execravel que se apaga em
lagrimas--não cabe o exaltado e santissimo sentimento do amor paternal.
Quem chora por um filho não tem olhos que vejam, enxutos, arrancar escravos
dos braços de suas mães. Verdade é que os praticos d'estes ultrajes a
Jesus--ser divino em que Deus se manifestou no mais elevado grau da
consciencia humana--dizem que lá, nas cubatas, não ha mães, nem filhos: ha
individuos bestialmente rebanhados, e inconscientes de laços de familia. Se
assim é, meu Deus, porque não déstes á vossa creatura de epiderme negra o
amor maternal que dulcifica as meiguices da hyena enroscada nos filhos?

     *     *     *     *     *

Aprumadas as paredes, delineados os repartimentos, os patins, as portas, a
capella e o jardim, Duque, o _Africano_, saudoso da filha, deixou a obra em
meio, e dinheiro de sobra ao seu feitor, pautando-lhe que, no prazo de doze
mezes, a casa estaria feita.

E voltou a Benguela, onde tinha centenas de escravos, armazéns de café, de
marfim, de gommas, e as suas vastas sementeiras sobre dez leguas circulares
de terra, onde o suor da pelle fusca, porejado pelo sol a pique, era um
como adubo forte, um guano de sangue estillado por entre febras vigorosas e
distendidas pelo latego.

Vendeu as fazendas, enfeirou as bestas e os negros, abarrotou a galera de
carregação sua, esquipou a tolda, decorou de frouxeis de sêda o camarim da
filha, e proejou á patria. Parecia um dos antigos viso-reis que voltavam da
India, d'uns que não se chamavam João de Castro nem Affonso de Albuquerque.

--Vale duzentos contos a carga da _Deolinda_!--diziam os amigos do
_Africano_, quando as velas da galera, chamada com o nome da filha de seu
dono, trapeavam bafejadas por aprazivel briza.

A navegação, por perto da costa, e sempre ajudada por prosperos ventos,
correu alegre e descuidosa de receios.

Deolinda deleitava-se a remirar a prata das ondas espumantes, ou, enlevada
em leituras amenas, passava as tardes na tolda, em quanto não chegavam os
seus amores mais queridos, as estrellas do céo e as phosphorescencias do
mar.

Ella era mulata, e bella quanto cabe ser, com a face beijada por aquelles
raios ardentes e o sangue escaldeado das lufadas do deserto--mulata, com as
feições levemente denunciativas da raça materna, quasi tirante a esmaiado
amarellido, um bem harmonisado conjuncto de graças, avantajadas ao que se
diz belleza, debaixo d'este nosso céo de rostos niveos, sangue pobre, e
epiderme alvacenta.

     *     *     *     *     *

Trasmontada a linha, e festejado o passo com descantes da maruja, o céo
entrou de nublar-se, a nortada a ringir nas gaveas os silvos agoureiros, e
o piloto esperto a encarar mui fito em um nevoeiro que se acastellava,
sobre noite, á volta do sol esmaecido. Era em fevereiro de 1889.

Ao repontar a manhã do dia seguinte, o mar urrava acapellado, as nuvens
desciam a sorver as ondas que se encurvavam, o sol apenas entreluzia frio e
marmoreo na baça claridade da manhã.

Ao meio dia, o escurecer fez-se rapido e pardacento como um crepusculo de
noite invernosa.

Bravejou subita furia de mar, apenas colhido o velame.

O piloto vira terra, e cobrára alento na esperança de aproar a Cabo Verde,
com quanto se temesse d'aquella costa infamada de muitos naufragios, desde
que portuguezes se andam á cata de ouro e opprobrio por entre os colmilhos
da morte, na espadoa das tempestades; a braços com a ira de Deus e dos
homens.

Noite alta, estrondeou no cavername da galera um como estampido de peça que
detonasse dentro.

Deolinda foi colhida nos braços do pai, quando resvalava da camilha ao
pavimento, com o livro das suas orações nas mãos convulsas, e o nome da Mãi
dos afflictos nos labios.

--Morreremos, meu pai?!--perguntou trespassada de horror.

--Animo!--murmurou elle--abraça-te em mim, que eu não quero chorar-te nem
que me chores, filha... Morreremos juntos.

Em cima estrugia a celeuma dos marinheiros, o rojar rispido das amarras, os
gritos, as supplicas, os apitos, o troar da peça que pedia soccorro, e o
dos trovões, que reboavam, e um relampadejar que azulava os abysmos.

E, de subito, a galera, após aquelle repellão que lhe vibrou as cavernas,
quedou-se arquejante, a roçar nos espigões da restinga.

E as vagas, raivando contra aquelle estorvo, galgavam-no rolando-se,
refervendo e marulhando de um bordo a outro. O porão descosia-se, bebendo e
golfando jorros de agua como o monstro dos mares escalavrado pelos arpéos.

O capitão, pallido mas sereno, debruçou-se no corrimão da camara, e disse:

--Encalhou a galera, snr. Duque. É tempo de sahir a terra.

--Nenhuma esperança?--perguntou o _Africano_.

--As vidas salvam-se... talvez...

--Só?...

Perguntou o homem rico; mas aquelle monosyllabo, estrangulado na garganta,
rouquejou como um arranco da vida. _Só!_ Só a vida? O meu suor de quarenta
annos, os meus duzentos contos de reis não se salvam? Eu hei de sahir pobre
d'entre esta riqueza que é minha, que é o repouso da velhice, o patrimonio
de minha filha? _Só!_

E as lanchas, balançadas no vai-vem das ondas, chofravam nos flancos do
navio por entre espadanas de espuma.

Deolinda atravessou corajosa, e firmada no braço do pai, até ao portaló. O
_Africano_ levava no rosto um terror indescriptivel, e nas contorsões e
visagens de afflicção a agonia da peor morte.

E ella saltou de impeto ao escaler, apenas amparada na mão de um
passageiro, que lhe disse:

--Adeus...

--Não vem?--perguntou ella.

--Primeiro hão de ir as crianças, as mulheres e os velhos.

Deolinda contemplou-o alguns momentos, e amparou-se na face do pai, onde as
lagrimas derivavam copiosas.

Os escaleres vararam na areia, revessados no rolo da vaga. Estavam salvos
os velhos, as mulheres e as crianças.

E, logo, os remadores intrepidos que outra vez se arrostavam com a morte,
viram a galera a balouçar-se entre o vagalhão, e ouviram o estralejar do
cavername por sobre os clamores dos naufragos; depois, levantou-se um
grande mar, e a lancha ficou para além d'essa formidavel montanha; e,
quando o escarcéo descahiu para solevar a barca, um momento quieta nas
fauces da voragem, os mareantes já não viram da galera senão o gume da
quilha, e á volta d'ella o bracejar dos agonisantes.

     *     *     *     *     *

Um dos que alli morreram foi aquelle que, dando a mão a Deolinda, lhe
dissera: «Adeus!»

Era um homem de trinta annos, bem figurado, ares de fina raça e maneiras de
cortezão, com palavras polidas e muito alheias das usuaes nos homens que
viandam por aquellas paragens. Não lhe sei o nome, nem que lh'o soubera o
diria. Foi-lhe tumulo o mar, como se a sorte quizesse que o seu nome se não
lesse em epitaphio. Sei que elle cumprira sentença de tres annos em Angola,
porque aspirára ás honras de ser rico, sem escrupulisar nos meios.
Tinham-lhe dito que os seus conterraneos mais nobilitados se haviam
enriquecido, trocando as riquezas da sã consciencia por outras que levam ao
inferno, é verdade, mas pelas portas do paraiso das regalias d'este mundo.
Via-os saborearem-se em socego dos bens mal adquiridos, sem remorso que
lhes desvelasse as noites, nem injuria da sociedade que lhes pozesse
ferrete na testa; ao revez d'isso elles eram a classe mais ao de cima, a
gente chamada ás honras, sem desconto na estupidez nem proterva reputação,
quanto á procedencia de seus bens de fortuna.

Nascimento illustre, educação primorosa em letras, e bastante descuidada em
moral, pobreza repentina por effeito de demandas que o esbulharam do
patrimonio, impaciencia, ruins exemplos de infames prosperados--todas estas
cousas se travaram de mão para o perderem. O seu crime foi associar-se
desaproveitadamente com moedeiros falsos, prestando-se a servir de passador
de notas no Brazil; no acto, porém, de fazer-se á vela para lá, de um porto
do archipelago açoriano, foi denunciado, preso, e condemnado.

De volta para Portugal, foi visto por Deolinda a bordo da galera de seu
pai, que o tratava com desdem, senão desprezo. A filha do
negreiro--negreiro no começo da vida mercantil, mas depois (bemdita seja a
civilisação!) philanthropo seguidor das leis humanitarias impostas pelo
cruzeiro--soube de seu pai o crime do passageiro, e não se compenetrou do
racional horror de tamanho delicto. Bem que o condemnado não ousasse
abeirar-se dos mercadores, e menos d'ella, Deolinda usou traças de
conversar com elle uma fugitiva hora de noite serena, em quanto o pai, no
seu camarim, formava esquadrões de algarismos, dos quaes tirou a prova real
de que os seus haveres excediam para muito os duzentos contos que lhe
attribuiam.

Desde essa hora da noite estrellada em que ella ouvira palavras nunca
ouvidas, accendeu-se no coração combustivel da mulata o fogo que costuma
purificar as culpas do homem amado, tanto monta que elle seja moedeiro
falso, como homicida, quer negreiro, quer ladrão de encruzilhada.

E elle soube que era amado d'aquella mulher que havia de herdar muito ouro,
e nem por isso lhe deu o galardão de ter descido até ao pobre estigmatisado
para sempre. Nem palavra de humildade agradecida, nem de animo alvoroçado
por esperança de ser, a um tempo, amado e rico. Deolinda ousou arguil-o de
frio e desdenhoso. Elle explicou docemente a sua frialdade, dizendo que só
havia no mundo uma mulher que não devia desprezal-o, e uma só a quem elle
devesse amar sem pejo nem temor de ser repellido.

--Quem é?--perguntou ella em sobresalto.

--É minha mãi. Vou procural-a, e pedir-lhe perdão, porque puz a minha
ignominia á cabeceira do seu leito de moribunda. Se a não mataram vergonhas
e saudades, é porque Deus quer que eu a veja.

     *     *     *     *     *

Quem sabe ahi dizer o que Deus quer de nós?

O degredado, na volta da patria; alli morreu n'aquelle naufragio, depois
que ajudou a salvar as crianças, as mulheres e os anciãos, despedindo-se de
todos com aquelle sereno adeus que dissera á filha do _Africano_.

E Deolinda, quando soube que elle era um dos vinte e cinco cadaveres
escalavrados na costa de Cabo Verde, chorou poucas lagrimas, e parecia
querer romper no seio uma represa d'ellas, que lhe deliam os estames da
vida.

--Estamos pobres!--exclamava o pai.

--Temos de mais para o que havemos de viver--respondia ella com uma alegre
serenidade.

--Porque has de tu morrer, minha filha?--volvia elle já conformado com a
desgraça.

--Porque senti ha pouco um estalo no coração, e cuidei que morria abafada.
Passou esta ancia, mas sei que hei de morrer d'isto. Parece que vejo a
sepultura aberta, e que o frio do cadaver me trespassa.

O pai aconchegou-a no seio, como quem aquece uma criança enregelada, e
soluçou:

--Ó meu Deus! levai-me minha filha, quando eu me queixar da vossa vontade
que me reduziu a esta pobreza!


II

Quando soou em Ruivães a nova de haver chegado ao Porto o _Africano_, com a
filha, os homens ricos e pobres, da terra e de fóra, contribuiram com mais
ou menos para se lhes fazer uma espera de estrondo em Famalicão.
Contractaram-se as bandas musicaes mais em voga, ou _mais na berra_, como
diziam os antigos. Parece que a phrase seiscentista foi inventada
particularmente para as orchestras d'aquelles sitios, as quaes _berram_
pelas suas guelas de metal, quando a paixão philarmonica as não exalta do
berro ao mugido, do mugido ao urro, e do urro ao bramido. Ha alli trombetas
que parecem ter assistido ao arrazar-se da Jericó da Biblia, e se reservam
para trovejarem o horrendo signal da resurreição em Josaphat.

Eram quatro as philarmonicas chamadas a festejarem a entrada de Antonio
Duque no concelho. A musica de Landim, famosa por seis cornetas de chaves,
que executavam valsas e peças theatraes, de modo que, se Ducis as ouvisse,
diria que a opera lyrica balbuciára os seus primordios entre as florestas
druidicas. A banda de Fafião competia com a de Guinfões na substancia das
trompas e troada das caixas. A de Ruivães avantajava-se ás tres rivaes na
delicadeza das modas e sentimentalismo com que as charamelas respiravam o
sopro d'aquelles musicos, cujas bochechas pareciam estar cheias de alma e
castanhas assadas.

Sou um homem feliz e digno de inveja. Tenho saboreado os innocentes
deleites que prodigalisam ao seu auditorio as quatro bandas musicaes de
Landim, Fafião, Ruivães e Guinfões. Quando algum amigo vai alegrar o ermo
de S. Miguel de Seide, chamo logo a musica mais delicada, a de Ruivães;
principalmente se o amigo é de Lisboa, e frequentador de S. Carlos. O
senhor visconde de Castilho e seu filho Eugenio são chamados a depôr n'este
processo da immortalidade que vou instaurando ao figle e á requinta,
principalmente á requinta de Ruivães. Não vi o senhor visconde chorar de
prazer, mas observei que s. exc.^a estava commovido quando a requinta
assobiava uns guinchos estridentes da _Maria Caxuxa_.

Thomaz Ribeiro, o poeta eminente, recolhia-se ás vezes, não ao seu quarto a
calafetar os ouvidos, mas ao intimo de sua alma a fazer viveiro de
inspirações. Eugenio de Castilho, o poeta das phantasias louras, quer a
musica de Ruivães lhe amolentasse a sensibilidade, quer os rouxinoes das
ramarias lhe déssem invejas dos seus amores, fosse o que fosse, foi
assaltado e vencido d'uma paixão.

Esta paixão tem uma historia. Não sei se elle tenciona escrevel-a nas suas
memorias posthumas; e, assim, contal-a eu, é esbulhal-o da novidade e
primazia; desconfio, porém, que o meu hospede e amigo desconhece a historia
d'aquella raparigaça de cabellos de ouro e ancas boleadas que deslumbrava a
duzia de moças requebradas que lhe apresentei na eira.

Chamava-se ella Amelia de Landim. Contava-se que tinha vindo para alli da
roda dos expostos de Barcellos. Naturalmente, porque era linda e pobre, ou
se vendera ou tinha sido vendida. Assim se disse; mas o certo foi que um
filho de lavrador rico lhe dera o impulso no alto da ladeira, ao fundo da
qual estava a voragem. Póde ser que a alma se abysmasse e requeimasse no
fogo dos infernos por onde resvala a mulher perdida. Póde ser. Do corpo é
que ella não perdera a menor belleza; nem sequer o viçor dos dezoito annos.

Teria então vinte e cinco. Não era belleza peninsular. Aquelle escarlate,
os olhos azues, os opulentos cabellos louros, a pujança das fórmas, a
musculatura rosada e rija, a elegancia congenita, o riso, a desenvoltura
sem despejo, a graça lubrica do trajo, em fim, a mulher, os arvoredos, a
musica de Ruivães, nomeadamente a requinta, e em meio de tudo isto um rapaz
de vinte e dous annos, poeta porque é Castilho, e ardente porque é
trigueiro, e apaixonado porque é ardente, eis aqui o porquê d'aquelles
amores.

Castilho carecia de um confidente com ouvidos e critica. A poesia não lhe
deu para se confidenciar com os sobreiros da mata, nem me consta que elle
se andasse a entalhar na cortiça iniciaes e datas.

O seu confidente foi o morgado de Pereira, ultimo senhor da honra e couto
de Esmeriz, um rapaz de grande coração, que eu apresentei, no Limoeiro, a
José Cardoso Vieira de Castro, que, em 5 de outubro do anno passado, morreu
no degredo, para onde o acompanhou aquelle morgado. Este neto dos Ferreiras
Eças, e dos remotos castellões de Riba d'Ave, é hoje em Cassengo, na
Africa, negociante de café, de marfim, de gommas, de farinhas, etc. Depois
de haver bandarreado vida de fausto, com muitas illusões perdidas, mas
pouquissimas lagrimas, porque a desgraça lhe anda sempre a morder os tacões
das botas, em dia de fieis defuntos, ajoelhava, e então chorava, no
cemiterio de Loanda, defronte do cómoro onde jaz Vieira de Castro, o mais
sublime desgraçado que os homens injuriaram, desde que o sol de Deus aquece
condições de feras dentro dos covis que se chamam arcas do peito.

Ó meu caro morgado, estas linhas não chegam ao seu sertão, nem eu desejo
que as leia, para lhe não darem rebates de saudade d'aquellas noites de
1866, quando vossê e mais o seu gentil confidente, com intervenção da lua,
fallavam da Amelia de Landim, em quanto os meus queridos visconde de
Castilho e Thomaz Ribeiro se embellezavam nas trovas da Custodia da Feira,
que seria Hypathias, se nascesse na Grecia, ou Corina, se os amavíos de
Italia lhe coassem no seio cousas mais limpas do que as coplas que a
trovadora do Minho tirava do estomago em perfumes de vinho verde.

Não sei como Eugenio de Castilho sahiu de S. Miguel de Seide, pelo que
respeita á alma. Lá dizia-se que Amelia, a douda, vehementemente
apaixonada, iria depós elle. Eu receei o lanço de fino amor, d'onde
adviriam ao meu hospede agros desgostos. Se os de Lisboa lh'a vissem,
quantos rivaes, que mordentissimos ciumes! Aquillo era mulher para destinos
extravagantes. Que a sentassem n'uma friza de S. Carlos! Os binoculos
assestados n'ella seriam tantos como as paixões, e ao outro dia a engeitada
de Landim, se não fizesse ministerios, havia de fazer muito amanuense de
secretaria, e dar vazão ao estanque de muito bacharel.

Não foi: estava-lhe reservado menos brilhante, mas mais pacifico destino.

Um dia, appareceu em Landim um homem de Barcellos, procurando a mulher, que
trouxera da roda dos expostos, em 1851, uma menina chamada Amelia. Vivia
ainda a ama que a creára. Foi chamada a exposta á presença do homem que se
dizia portador de uma fausta nova.

Chegou Amelia, o recebeu do velho desconhecido o tratamento de
_excellencia_. Cuidou-se ella ludibrio do sujeito, e riu-se ás casquinadas
para lhe agorentar o prazer da zombaria.

No em tanto, o velho, composto gravemente o aspecto, disse-lhe:

--Minha senhora, não é para gargalhadas a missão que venho cumprir...

--Pois v. s.^a está a dar-me _excellencia_!--volveu Amelia.

--Dou-lhe o tratamento de seu pai e seus avós. Seu pai, o snr. Alvaro de
Mendanha, antiquissimo fidalgo e representante dos alcaides-móres de
Barcellos, falleceu ha tres dias com testamento, em que declara que houvera
de uma sua parenta, áquelle tempo freira no mosteiro de Vayrão, uma filha,
que por justos motivos expozera, assignalando-a com o nome e outras
circumstancias. Acrescenta que tem noticia de existir em Landim essa
menina, que elle reconhece sua filha, e a institue sua universal herdeira.
É v. exc.^a por tanto a herdeira do snr. Alvaro de Mendanha.

A ama abriu a bocca e despediu um _ah_ surdo, que vinha da garganta afogada
pelo jubilo.

Amelia quedou-se immovel, pensativa, triste, e murmurou:

--Se meu pai sabia que eu estava aqui, porque me não levou para a sua
companhia?

--Respondo, minha senhora. Quando v. exc.^a tinha dezoito annos, seu pai
indagou e descobriu que a snr.^a D. Amelia estava aqui; porém, ao mesmo
tempo, exactas ou inexactas informações lhe asseveraram que a senhora
levava uma vida pessima, deshonrada e cheia de opprobrio. Receou, com algum
fundamento, o snr. Alvaro de Mendanha que o aviltamento de sua filha
desluzisse o lustre do seu nome, e por isso abafou o coração e o remorso
debaixo do peso da dignidade, ou recuou diante da irrisão do mundo...

--Mas...--interrompeu Amelia--se eu estava perdida, foi porque elle me
atirou ao mundo e á sorte sem amparo de ninguem...

--Tem razão, minha senhora, e foi essa mesma a razão que moveu seu pai a
deixar-lhe todos os seus bens.

--Mas eu antes queria conhecel-o e ser pobre, que ser rica por morte
d'elle.

--Já que não é remediavel essa nobre dôr--tornou o testamenteiro de
Mendanha--receba v. exc.^a a suprema prova do arrependimento de seu pai.
N'este legado dos bens está o legado do coração. Seja de hoje em diante v.
exc.^a digna d'elle, já que desde esta hora os seus appellidos são dos mais
illustres d'esta provincia.

N'este mesmo dia, D. Amelia de Mendanha sahiu para Barcellos, onde entrou a
occultas para o palacete de seu pai, a fim de trajar luto e apparecer
convenientemente aos numerosos parentes que confluiam a desanojal-a.

Os bens eram grandes em terras e fóros. Casa antiga e solida. Alfaias do
tempo de D. João V a dourarem os salões de tecto apainelado, com
reposteiros brazonados. Na parte mais velha do edificio cadeiras repregadas
de bronze, contadores atauxiados de prata e enxadrezados a côres,
guadalmesins nas paredes, amplas mesas de pés torneados, leitos rendilhados
com as armas dos Mendanhas na espalda, bufetes, jarras da India com as
iniciaes de um governador de Chaul, oriundo de Mendanhas, retratos de
familia a começarem em D. Gil Gutierres de Mendanha, solarengo de
Barcellos. Em meio d'isto, e senhora de tudo isto, aquella Amelia de
Landim, ó meu amigo Eugenio de Castilho! aquella Amelia, que sarabandeava a
_cana verde_, o _Leva agua o regadinho_, e descantava umas _torradas com
manteiga_ que não ha ahi mais que se diga.

--Onde estava ella?

Perguntavam entre si as primas e os primos.

E diziam exactamente onde ella estivera e de que infectos paues se
levantára com azas de ouro aquella borboleta sahida de tão feio casulo!
Relatavam-se os pormenores da sua desgraçada vida, encareciam-se, como se
fosse preciso, as deshonestidades... e visitavam-na.

Volvidos alguns mezes, tres padres, á compíta, lhe sahiram a propôr tres
casamentos: rapazes, parentes, abastados ou arruinados, mas fidalgos e
gentilissimos de suas pessoas.

Rejeitou-os.

Um dia, sahiu D. Amelia de Barcellos, na sua sege, apeou em Famalicão,
sahiu a pé, e parou perto de Landim, á porta de um lavrador. Procurou por
um homem que dava pelo nome de Antonio do Couto-de-baixo.

Sahiu a fallar-lhe no quinteiro, ou alpendre, um sujeito de trinta annos,
boa figura de camponio, estupidez em barda por todo aquelle carão.

--Antonio--disse ella--conheces-me?

--A senhora, a senhora... acho que é...--tartamudeou o lavrador agadanhando
no occipital.

--Sou a Amelia de Landim. Quando eu tinha 15 annos, amei-te. Era então
innocente. Esperava ser tua mulher, e perdi-me. Teu pai não te quiz deixar
casar commigo, porque eu era pobre. Sei que soffreste, e quizeste fugir
para o Brazil, a fim de ganhares dinheiro, para depois me receberes. Eu não
te deixei ir. Sabes qual foi a minha vida depois. Hoje estou rica, ainda te
amo, porque foste a origem da minha desventura. Queres casar commigo?
Responde.

--Quero.

--Então segue-me.

--Deixa-me ir dizer a minha mãi; que essa queria que eu casasse comtigo.

--Podes dizel-o a teu pai, que esse tambem quer agora.

E, d'ahi a momentos, o pai e a mãi sahiram ao alpendre a recebel-a, e
levaram-na para o sobrado entre caricias.

Ahi pernoitou.

O velho nunca pôde desarticular os queixos da apostura do espasmo, desde
que D. Amelia principiou a contar por milhares de alqueires de milho o
rendimento de sua casa.

Ao outro dia, que era domingo, leram-se os primeiros banhos, e, com
dispensa dos immediatos, casaram-se na igreja de Santa Maria de Abbade.

     *     *     *     *     *

Mas a que proposito cahiu este conto, que não tem que vêr com AQUELLA CASA
TRISTE!...

Ah! foi por amor da requinta da musica de Ruivães, que está agora silvando
na Barca da Trofa, á espera de Antonio Duque, o _Africano_.


III

As quatro musicas reunidas na Ponte da Trofa, depois de espavorirem os
passarinhos, que, ao descer da tarde, se emboscavam nas ramarias do rio
Ave, retrocederam, porque o Duque não chegou. Os promotores da festa,
mandando sobraçar os feixes de foguetes de tres estouros, disseram entre si
que o _Africano_, faltando á hora da espera triumphal, bem demonstrava ser
filho do capador da Lamela. Outro era de parecer que o Duque, tratando de
resto as pessoas que o obsequiavam, dava a perceber que não queria
amigos... do seu dinheiro.

O _Africano_ havia escripto de Lisboa ao seu feitor, annunciando-lhe o dia
em que tencionava chegar á sua casa de Ruivães, com recommendação de lhe
ter preparados os leitos e assoldadada uma boa criada para o quarto de sua
filha.

Divulgou o feitor a nova, sem propalar a do naufragio, porque a não sabia.
Se o homem lesse gazetas, informaria os seus visinhos do desastre de seu
amo, da riqueza engolida pelas guelas da tormenta, da quasi pobreza em que
ficára o naufrago, e, em fim, das piedosas lastimas com que os periodicos
deploravam a catastrophe de duzentos contos grangeados honestamente. Se
isto se soubesse em Ruivães, não haveria quem se afanasse em busca de
musicas, competindo entre si os obsequiadores sobre qual arranjaria aquella
que maiores gritos fazia dar á fama pelos buracos da requinta. Quanto ás
vinte e quatro duzias de foguetes de tres estouros, que os rapazinhos de
Ruivães tinham carregado até á Ponte da Trofa, é bem de vêr que ninguem se
abalançaria a tamanho estrondo de generosidade, se se soubesse que o Duque
não vinha em circumstancias de chorar de ternura abraçado ao peito
magnanimo d'onde rabiavam tantos foguetes.

No dia marcado ao feitor, devia o _Africano_ chegar á Ponte, onde era
esperado; porém, apeando na estalagem da Carriça, legua e meia distante,
ouviu dizer que na Trofa estava o poder do mundo, com quatro musicas, e
muito fogo do ar, á espera de um brazileiro que vinha da Africa.

Ouvido isto, Duque disse ao boleeiro que recolhesse a parelha da sege,
porque resolvera sahir de madrugada.

Depois, foi contar á filha o que ouvira, e o desgosto que queria evitar no
encontro de festas, tão desapropositadas da tristeza de ambos.

Deolinda, prostrada no leito, approvou a resolução do pai, queixando-se de
agonias, suffocações e desmaios do coração, que mal a deixavam seguir a
jornada.

Passou o pai o restante do dia e parte da noite á beira da cama, inventando
com santo esforço alegrias que divertissem Deolinda da concentração que uma
ou outra lagrima desafogava por momentos. Alegrias!...

Que heroismos cabem em peito de pai! Quantos ha que são suppliciados por
esse amor que parece vir da mão de Deus! Que maiores angustias tem esta
vida, se comparamos todas á d'aquelle pai que alli estava ao pé da filha
que os medicos de Lisboa lhe haviam auscultado e considerado perdida!

Mas elle, acreditando na sciencia que tem a certeza de ser lesão mortal a
hypertrophia do coração, afigurava-se-lhe que a Providencia o não
castigaria tão severamente, fazendo-o sobreviver ao perdimento dos bens,
para depois amparar em seus braços a filha agonisante. Nunca discutira
entre si se Deus era preciso, ou que parte lhe coubesse no regimento d'este
mundo. São meditações estas que, em Africa, passam rapidas como o sirôco,
mas não abrazam, nem obrigam as caravanas a curvar o corpo até bater com as
faces nos areaes. Os que por alli veniagam, á imitação do pai de Deolinda,
pensam, se acaso pensam, que a justiça do céo tem alçada em mais amenos
climas, e descura saber se lá o homem tem mais ou menos semelhança com o
tigre. Porém, depois que o céo se azula e estrella, áquem da linha, e a
briza refrigera o sangue, os expatriados, maiormente os ricos, não recusam
crêr que ha Deus, dadas certas condições; fazem-lhe o obsequio de o
conjecturar sentado á mão direita do Padre Eterno, e absorvido na perennal
gloria de sua divindade, sem entender nas trivialidades d'este globo, mais
pequeno que os milhares de mundos que lhe circumvalam á ourela do throno.
Esta philosophia é grandiosa e barata. Cançam-se os mestres em a propagar,
e todavia qualquer sandeu bem engraxado a tem espontanea na alma, como
tortulho em lodaçal, sem que os philosophos lh'a inculquem. Estudem Ario,
Spinosa, Renan, e outros, afóra o meu bacalhoeiro, que tem dentro de si
tres philosophos, um portico, um lyceu, dentro de si, repito, porque o
_si_, o _elle_, são as cedulas bancarias, a burra, que tem um nome de
predestinação para aviso e escarmento de sabios que se burrificam, não
querendo acabar de entender que saber, honras, regalos, respeitos,
inviolabilidades, vem tudo da burra.

Succede, porém, uma vez ou outra, encrespar-se uma onda, que logo se
arqueia em vagalhão, e se abre em voragem. Ahi resvala a riqueza do homem,
que se arrodelára com ella das farpas do mundo. Os brilhantes impenetraveis
do arnez cahiram e rolam na profundidade do abysmo. Aqui está o homem a
pensar em Deus, porque está pobre, está sósinho, já se não vê idolo dos
outros e divindade de si proprio. A desgraça, que traz sempre comsigo um
anjo vestido no céo com uma luz que arde inextinguivel no tumulo de Silvio
Pellico, assenta-se ao lado do infeliz, e começa por lhe dizer:

«Que eram esses bens da vida, se tão depressa te reduziste a esta pobreza?
Olha tu para as estrellas que scintillam serenamente sobre a voragem que
t'os devorou, e pede ao meu anjo que te diga o que ha d'estes milhões de
mundos para além!»

Ah! quando esta voz repercute na consciencia de um pai, e ao mesmo tempo a
aza da morte roça e tinge de rubor febril a face de sua filha, então sim,
Deus entreluz na treva, a alma crê, mas crê para pedir de mãos erguidas.
Isto é fé, é fé que relampagueia; mas eu não sei se alguma hora a razão dos
grandes desgraçados foi alumiada por esse relampago.

Pelo que, assim orava o _Africano_, ás quatro horas da manhã, em pé,
defronte do leito da filha adormecida.

     *     *     *     *     *

Entraram na casa apalaçada de Ruivães, inesperadamente.

Quando o souberam os visinhos, um correu á igreja a repicar o sino e a
sineta, outro rompeu as nuvens com girandolas, a orchestra da terra, que
andava dispersa a sachar os milharaes, confluiu de galope a casa do mestre,
escodeou as mãos do regato, travou dos metaes, e prorompeu estridulamente á
porta do _Africano_, tocando o hymno de 20, o hymno do snr. Costa Cabral, o
hymno da snr.^a Maria da Fonte, o hymno do snr. duque de Saldanha, e o do
Santo Padre Pio IX.

O _Africano_ sahiu á janella com sua filha, cortejou o publico, assistiu a
duas mazurkas tocadas com variações de requinta, e pediu venia para
recolher-se em razão de sua filha se sentir mal com o sol que lhe dava no
rosto.

O publico murmurou, tregeitando uns momos significativos de menos respeito.

O feitor foi dizer a seu amo que era preciso dar de beber aos musicos, e
receber a visita dos parentes e mais lavradores.

O Duque respondeu:

--Vá ahi fóra ao pateo, e diga bem alto que eu estou pobre.

--Pobre!--acudiu o feitor casquinando um riso perspicaz--Bem me fio eu
n'isso! V. s.^a está a mangar!...

--Faça o que lhe digo--volveu severamente o amo.

E, de facto, o criado foi ao pateo, chamou a si os lavradores mais grados,
o mestre da musica, o boticario de Délães, e o boticario de Landim, e o
regedor de Vermoim, e disse-lhes:

--O ill.^mo snr. Duque manda-me dizer a vossemecês que está pobre.

Os circumstautes olharam uns para os outros, embrutecidos pelo mesmo
choque. Um d'elles, porém, que eu presumo fosse um dos dous boticarios, deu
aos beiços um geito de quem vai orar. Encararam-o todos, e o boticario
tirou do peito estas duas palavras:

--Ora bolas!

E sahiu do pateo.

Tenho esquadrinhado o melhor sentido d'aquellas palavras do attico
pharmaceutico. Consultei philologos, que mais convisinham d'este sujeito, e
apenas colhi que as expressões «ora bolas» montavam tanto como dizer: ora
bolas.

Eu, porém, dou mais lata interpretação ao epiphonema, sabendo que todo
aquelle gentio _boloirou_ para casa[1].

O _Africano_, passados seis mezes, procurou um brazileiro rico de Ninães,
recentemente chegado, e disse-lhe:

--Sei que o senhor está resolvido a edificar uma casa. Se quer poupar-se a
grandes despezas, incommodos e desgostos, compre-me a minha. Vendo-lh'a por
metade do que me custou, com uma condição: se eu e minha filha não tivermos
morrido dentro de seis mezes, serei obrigado a dar-lhe a casa no fim d'este
prazo; mas, n'estes primeiros seis mezes, o senhor não poderá occupal-a.

Pediu o brazileiro explicações de tão estranha clausula.

O Duque respondeu:

--Minha filha está mortalmente enferma. Tem um aneurisma. Eu tambem me
sinto no termo da vida. Vou morrendo a cada hora que a doença me deixa vêr
a morte na face de minha filha. Não hei de sobreviver-lhe, se Deus me não
fizer o beneficio de me levar adiante.

Consolou-o o brazileiro conforme soube, aceitou a proposta, e assignou as
escripturas no dia seguinte, entregando ao vendedor alguns contos de reis.

Pagou o _Africano_ as dividas contrahidas em Cabo-Verde, encerrou-se na
ante-camara do quarto de sua filha, e deu-se pressa em aggravar os seus
padecimentos á custa de se remirar no seu infortunio, de cortar bem dentro
as fibras ainda rijas do coração, antecipando a imagem da filha morta,
repulsando todo o allivio da esperança, furtando-se a todo o desafogo,
matando-se com a lentidão de um desvairado que se encavernasse n'um antro,
esperando sem terror a entrada da fera, e anciando-a para se lhe rasgar nas
presas.

Ao quinto mez do contracto, os padecimentos de Deolinda tocaram nos
extremos symptomas da morte. As hemorrhagias amiudaram-se. Estava já
entorpecida, immovel, salvo quando arrancava do seio as aspirações, que
revelavam ao través das coberturas da cama os arquejos do coração.

N'esta conjunctura, o pai estabeleceu entre si e Deus uma convenção que era
já delirio precursor da demencia ou da morte: «Se ella hoje morrer, ou Deus
me mata ámanhã, ou, quando ella estiver sepultada, eu me matarei.»

O parocho, que sacramentára Deolinda, ouviu estas vozes, e disse aos botões
da sua batina: «Este homem está no inferno.»

Quando ficou sósinha, Deolinda chamou o pai e disse-lhe:

--Não quero ir d'esta vida, sem dizer-lhe um segredo com que não devo
morrer. No meu bahú está uma caixinha de folha, que o mar lançou á praia,
depois do naufragio. Levaram-me em Cabo-Verde esta caixinha, cuidando um
marujo que fosse minha. Abri-a, e vi que encerrava cartas de uma mãi muito
extremosa para seu filho. O filho era aquelle rapaz que vinha do degredo, e
salvou os velhos, e as crianças, antes de morrer. A mãi, que lhe escrevia,
diz-lhe em algumas cartas que tem sentido as angustias da fome. Chama-se
ella... Meu pai lhe verá o nome e a terra onde vivia... Se tiver morrido,
feliz d'ella. Se ainda viver, meu pai, mande-lhe como esmola o que ficar do
meu espolio, e diga-lhe que eu... lhe amei o seu infeliz filho... até
morrer... por elle!...

--Cumprirei a tua vontade, minha filha--respondeu o pai.

     *     *     *     *     *

Ditas aquellas palavras, o _Africano_ encarou na filha com a fixidez torva
de um amaurotico. Depois, como se sentisse dobrar sobre os joelhos, sabiu
da alcova, atirou-se como ebrio para o leito, e murmurou estas vozes:

--Meu Deus! morro por amor de minha filha, e ella... morre por outro... Bem
podia consentir a desgraça que eu morresse sem este desengano... Vinte
annos a adorar esta filha, um anno a agonisar ao pé da sua agonia... e a
final ouço-lhe dizer que morre por um homem... que não era seu pai...

Escabujou em ancias muito afflictivas, pedindo a Deus com dilacerante
esforço que lhe abreviasse o transe. Rompeu em soluços; e, suffocado pelo
choro ou por um golfo de sangue, arrancou da vida n'um estremecimento
instantaneo.

Deolinda ouviu o murmurio rouco d'esta convulsão da morte, e voltou a face
para onde suppunha que estava o pai.

Chamou-o. Sentou-se no leito com supremo esforço. Tangeu a campainha.
Acudiu a criada, a quem ella pediu que lhe désse o seu vestido. Foi nos
braços da criada á sala contigua, onde o pai tinha o seu leito. Dobrou-se
sobre o peito d'elle, colhendo-lhe nos labios um halito ainda quente, como
vestigio da alma que passára queimando as fibras por onde abrira a fuga do
seu inferno.

--Morto!--bradou ella, golfando-lhe no seio o derradeiro sangue.

Transportada ao canapé fronteiro, alli se quedou empedernida. Não houve
rogos que a tirassem de lá. Viu amortalhar o cadaver de seu pai, viu-o
sahir no esquife para ser depositado na capella da casa, ouviu o ultimo
dobre da sepultura; e então, comprimindo o seio esquerdo com ambas as mãos,
invocou a compaixão da Virgem Santissima, e expirou.

     *     *     *     *     *

Lá está em cima aquella casa triste... O brazileiro, que a comprou, não a
quiz habitar. As janellas nunca mais se abriram. O vestido, que despiram do
cadaver de Deolinda, pende ainda da espalda do canapé em que ella morreu.

    [1] Não se procure _boloirar_ nos diccionarios, em quanto os
    diccionaristas ignorarem a linguagem popular do classico povo do Minho
    e Traz-os-Montes. Lá, fazer rolar uma bola, é _boloirar_.



SOLUÇÃO DO PROBLEMA HISTORICO (I)


_Snr. redactor das NOITES DE INSOMNIA_.

Conseguiu vossê que eu adormecesse antes de lêr a terceira sentença a favor
d'el-rei D. Sebastião. Muito obrigado a vossê e aos tres papas.

Aquelle D. Sebastião que em 1630, com 76 annos de idade, tinha uns filhos,
que ninguem depois conheceu, seria causa a eu descrer da authenticidade das
sentenças, se não soubesse que santo Isidoro, arcebispo de Sevilha, o
prophetisou assim, tal e quejando, com filhos, netos e bisnetos, um dos
quaes afianço a vossê que não sou eu.

Palavras de santo Isidoro: _Muitos filhos e filhas terá o Encoberto de
legitimo matrimonio, e sempre seus descendentes, uns depois dos outros,
reinarão pacificamente_ (não diz o santo onde se passa esta reinação); _e o
sceptro sagrado do temporal será administrado e regido por elles; e a
final, fazendo-se pagens do povo, tornarão do deserto_.

Não ha nada mais claro. Os descendentes de D. Sebastião, voltando do
deserto, serão pagens do povo. Por «pagens do povo» percebo eu que o
vidente de Sevilha queria fallar nos demagogos d'este paiz, nos oradores do
Casino, no Guerra Junqueiro, nos redactores do _Diario da Tarde_, no Eça e
no Ortigão, nos satanicos, e nos mais socialistas sobre quem pesam o gladio
do Zêzere, os pés do conselheiro Arrobas e o redenho do conselheiro Viale.
Os descendentes do Encoberto vem, pelos modos, a ser aquelles. Quanto a
virem do deserto, como resa a prophecia, é obvia a interpretação. «Deserto»
aqui, entende-se o conteúdo pelo continente. Veja se me percebe. Deserto é
o vasio da algibeira. Isto percebe vossê bem. Um homem está no deserto
quando não tem no bolso a voz que clama no mesmo. Deserto é estar homem só
como succede a toda a pessoa que não tem

_Aquillo com que mais se accende o engenho,_

como disse um a quem o predilecto dos tres papas mandou dar 15$000 reis por
anno em paga de ter perdido um olho em Africa e ter feito os _Lusiadas_ na
India.

Já vê vossê que, por este lado, as sentenças dos tres bispos de Roma são
invulneraveis. D. Sebastião, com toda a certeza, de quinze em quinze annos,
ia até Roma mostrar ao papa que tinha uma perna maior que a outra, um tufo
de pello no hombro esquerdo, o joanete no dedo mendinho, e um dente de
menos na queixada de baixo. Quando lá foi aos 76 annos, aposto que já não
tinha dente nenhum.

Os documentos pontificios que vossê apresentou resistiriam á critica de
João Pedro Ribeiro e Theophilo Braga. Este sabio e vossê são os dous homens
que n'este seculo tem achado as melhores peças historicas. Vossê achou as
sentenças a favor do Encoberto; o doutor Theophilo achou a carta de Ayres
Barbosa a André de Rezende. Eu achei a vossês, os dous, dous odres de
sciencia em que espero exercitar o meu intellecto como os touros exercitam
a força nos ôdres de vento. Creio que está dada a solução do problema
historico. Mande-me o premio pelo portador. E quando achar outra cousa, com
esse faro de Herder que Deus lhe deu, abra torneio aos talentos, e faça
invejas ao Theophilo a vêr se elle descobre agora a resposta de André de
Rezende a Ayres Barbosa.

     *     *     *     *     *

Entreguei o premio, antes que venha outra carta mais insensata. N'este paiz
quem, como Theophilo Braga e eu, achar alguma cousa, está perdido.



DOUS PRECONCEITOS


O primeiro, é dizer-se que, no governo absoluto, as condecorações, os fóros
de fidalguia e os tratamentos eram judiciosamente dados e com muita
parcimonia a quem os merecia.

     *     *     *     *     *

O segundo, é dizer-se absolutamente que a mudança do regimen politico de
1834 empobreceu de repente os fidalgos, esbulhando-os dos seus rendimentos
provindos de privilegios, encargos, commendas, etc.

     *     *     *     *     *

Quanto ao primeiro preconceito, ouça-se o depoimento de um notavel fidalgo,
que estudou cincoenta annos, e meditou dezesete nas lobregas cavernas da
Junqueira. Era D. João José Ansberto de Noronha, conde de S. Lourenço, que
morreu em 1804, com 79 annos de idade. No penultimo anno de sua vida,
escreveu a sua ultima obra, que ainda não sahiu das gavetas avarentas dos
curiosos de manuscriptos, e intitulou-a _Apontamentos politicos_.

Seja o conde de S. Lourenço quem impugne a arguição injusta que se faz ao
governo representativo, doestando-o de perdulario de titulos e
nobilitações. Observe-se que o fidalgo escrevia em 1803, e que as ultimas
linhas d'este trecho do seu escripto são uma prophecia; que, n'aquelle
tempo, a raros espiritos se prefiguravam idéas de liberdade, e menos ainda
aos que haviam de ser apeados por ella do pedestal de sete seculos.

Eis a passagem que tem por epigraphe--_Dos ennobrecidos_:


«Os serviços ordinarios, e por assim dizer materiaes, pagam-se com
dinheiro, que se tarifa como qualquer salario, á proporção do trabalho. Os
serviços relevantes, isto é, os que são feitos com perigo de vida, com
força de engenho, ou com espirito de patriotismo, e de que resultam grandes
vantagens ou de facto, ou de exemplo, pagam-se com signaes honorificos, com
distincções, e com titulos, porque se julga, que não tendo preço, se não
podem remunerar senão com honras. E segue-se d'isto, que a moeda mais
preciosa do thesouro do soberano é a faculdade de distinguir e honrar,
porque alcança com ella o que não póde comprar com dinheiro. Mas se ha
facilidade em conceder honras, se se alcançam sem sacrificios, nem
habilidade, n'esse caso todos as querem, muitos as conseguem, e ninguem
fica contente; uns porque querem mais, outros porque ainda não tiveram, e
outros que as tem por seus justos cabaes, porque se acham confundidos na
inundação dos nobres de _acaso_. As consequencias são, que as distincções
deixam de o ser, porque se fazem geraes; que empobrece o thesouro politico
do soberano, porque a moeda mais preciosa perde o seu valor, e que se perde
o espirito da gloria, porque os individuos vem a achar por fim mais
vantagens em buscar conveniencia, do que signaes, que pela sua
multiplicidade, e modo por que se alcançaram vieram a ser de estimação
incerta.

«Com effeito tem-se vulgarisado as honras, não só á força de concessões
avulsas, mas até de tarifas. Na divisão das tres ordens militares deram-se
tantos habitos de S. Thiago, que apesar de ser uma ordem tão respeitavel,
já ninguem a quer. Concedea-se o fôro de fidalgo a quem no emprestimo real
entrasse com porções avultadas, sem embargo de ficar ganhando juros.
Concedeu-se o mesmo fôro a quem lavrasse certa porção de sêda para vender.
Os officiaes de secretaria, cujo numero tem crescido tanto, tem o habito de
Christo no primeiro anno de serviço, e o fôro de escudeiro no decimo. Os
officiaes do erario tem o habito de Christo, etc., etc., etc.

«Esta quantidade de tarifas em muito poucos annos reduz os tres milhões de
habitantes a tres milhões de nobres: n'este caso a maior distincção, que
póde haver, é não ser nobre; e o modo de a conseguir é não servindo o
estado de modo nenhum. Parecerá isto um paradoxo, mas a experiencia já vai
mostrando que o não é.

«As leis do tratamento já não tem vigor, e a arrogação de senhorias, e
excellencias é geral.

«É da maior difficuldade achar gente para trabalhar, e tanto que no anno de
1801 querendo-se expulsar os gallegos em razão da guerra, não se fez porque
o intendente geral da policia representou, que se se mandassem embora, não
haveria quem servisse a cidade de Lisboa e a do Porto.

«Se um corpo de nação não póde passar sem tomar criados estrangeiros, não
para as artes, mas para o serviço ordinario, ou é a nação mais fidalga do
mundo, ou a mais paralytica, _e em todo o caso a que mais velozmente corre
para o systema da igualdade, e que mais velozmente se afasta da
monarchia_.»


Até aqui o descendente de el-rei D. Fernando no que respeita á
prodigalidade das mercês. Agora, pelo que é da pobreza dos fidalgos, cumpre
saber que a maioria das casas titulares de primeira plana já principiava a
esboroar-se no principio d'este seculo. O golpe da extincção das commendas
pouco sangue já encontrou nos corpos dos commendadores. Se ainda no
_Torneio real_ de 1795, escripto pelo senhor de Pancas, encontramos trinta
e dous fidalgos pompeando as galanices da Asia, indaguemos hoje a paragem
dos netos d'esses homens, que eram os primeiros nomes de Portugal. Onde
estão os haveres do conde de Aveiras? o grande patrimonio do marquez de
Abrantes? de Lavradio? de José Telles da Silva? do marquez de Angeja? do de
Ponte de Lima? do conde da Ega? do de Obidos? do marquez de Nisa? do de
Penalva? do conde de S. Lourenço? do visconde de Barbacena? do marquez de
Tancos? do conde de Sabugal? Estes eram do numero dos trinta e dous
fidalgos que resplandeceram nas cavalhadas no anno de 1795 para festejar o
nascimento do principe D. Antonio. E dos restantes, exceptuada a casa de
Cadaval, com pesar de ss. exc.^as, força é declarar que não ha ahi barão
moderno que lhes inveje a riqueza.

A santa casa da Misericordia de Lisboa abre-nos o seu livro de creditos, no
anno de 1813, e mostra-nos a voragem da parte ainda hypothecavel dos bens
d'esses fidalgos que, em nossos dias, vimos inteiramente desbaratados.
Entre 1813 e 1833 rodaram vinte annos, e a ladeira que resvalava os
dissipadores á voragem era cada vez mais escorregadia. O proprio conde de
S. Lourenço, que presentira o naufragio da nobreza, levada a pique pela
rajada da liberdade, não educou seus filhos melhormente que os seus iguaes
em fidalguia, e desigualissimos em intelligencia. Se elle anteviu a
borrasca, devera colher as velas á nau, que se desmantelou, como as outras
norteadas por palinuros, ignorantes e cegos.

Na lista dos devedores á Misericordia, encontramos algum raro fidalgo, cuja
casa se teve no balanço, e hoje mantém o antigo luzimento. Esse tal
achal-o-hemos acostado á restauração liberal de 1833, e quinhoeiro, por
tanto, das regalias que auferiram os parciaes do imperador. No entanto, dos
que serviram a liberdade, houve d'elles que nem assim lograram reparar as
ruinas.

O leitor curioso poderá estremal-os na seguinte lista:


A casa de Rezende devia á Misericordia de Lisboa com vencimento de juros,
no dia 8 de março de 1813            9:991$509

A de Ponte de Lima                   1:270$442

A de Abrantes                        8:978$105

A de Tancos                         11:750$000

A de Louriçal                        9:600$000

A de Obidos                        101:490$899[2]

A de S. Vicente                      4:000$00

A de Soure                          21:080$698

A de Borba                           1:278$154

A de Pombeiro                       18:508$500

A de Coculim                         9:400$000

A de Loulé                           5:715$494

A de Lavradio                       11:700$000

A de Unhão                           4:655$011

A de Vidigueira                        353$128[3]

A de Alorna                         40:665$011

A de Atouguia                        3:989$115

A de S. Miguel                      10:295$565

A de Tavora                          7:289$433[4]

Seguem-se Antonio Telles da Silva, D. Antonio Soares de Noronha, o conde de
Alvor, dos Arcos, de José Felix da Canha, de D. Diniz d'Almeida, de D. Luiz
de Portugal da Gama, de D. Rodrigo Xavier Pedro de Sousa, e outros,
perfazendo 340:359$700.

O empregado da secretaria da Misericordia, que passou a certidão n'aquelle
mesmo anno de 1813, acrescenta de lavra sua: «Alguns d'estes capitaes se
consideram perdidos, porque os devedores tem provisões com tempo
illimilado, e não possuem bens livres. Ha outros litigiosos e duvidados
pelos devedores; de sorte que são muito poucos os que se podem manifestar
como liquidos.»

Por onde se conclue que a minguada fortuna dos pobresinhos cahira em
honradas mãos! Eu, contra o parecer do escripturario, creio que os
fidalgos, menoscabados de insoluveis, pagaram todos com mais ou menos
pontualidade; e, se não pagaram, desculpe-se-lhes o começarem a
misericordia por si.

Eu sei que os fidalgos do _acaso_, como acima lhes chama o conde de S.
Lourenço, se rejubilam de ter estirado as camadas do seu lodo por cima dos
honrosos vestigios dos outros. Ouso, porém, a liberdade de lembrar a suas
excellencias que a tradição da raça e as pêas dos vinculos conservaram
através dos seculos os nomes historicos; ao passo que estes adventicios
afidalgados, á falta do vinculo que os tenha alguns seculos pendurados no
esgalho do tronco velho, bem póde ser que se estejam desentranhando em
filhos para futuras tripeças.

Se assim fôr, que Deus os faça sapateiros engenhosos, para que a comedia
humana não seja de todo em todo ridicula e inutil ás artes.

    [2] O palacio d'esta familia foi comprado ha pouco pelo rei, e dado a
    uma senhora d'esta casa aia do principe.

    [3] O fallecido marques de Nisa succedera na posse de duas riquissimas
    casas, a de Vidigueira e a de Cascaes. O Paul, vastissima propriedade
    vendida ao capitalista Eugenio de Almeida, havia sido dado por D. João
    I a João das Regras, ascendente dos senhores de Cascaes. O marques
    morreu pobre. Deixou dous nobilissimos filhos: um é aprendiz de
    negociante no Brasil, o outro tem um engenho de fazer cigarros depois
    de ter tido perto de Paris um restaurante, em que era caixeiro um filho
    de José Estevão. Ó Vasco da Gama!... Ó Demosthenes lusitano!

    [4] Estas quatro ultimas casas estão ementadas na lista como extinctas.



LISBOA


Ha mais de dous seculos que um viajante francez de grande qualidade esteve
em Lisboa. Volvidos trinta annos, o filho do companheiro de viagem d'esse
incognito senhor mandou imprimir em Hollanda as viagens que seu pai
escrevera, e deu este titulo ao livro: _Voyages faits en divers temps en
Espagne, en Portugal, en Allemagne, en France et ailleurs. Par Monsieur M.
**** A Amsterdam, MDCC_.

Entraram os viajantes em Lisboa, no dia 18 de maio de 1669. Em sete paginas
de oitavo pequeno esgotaram as impressões que Portugal lhes suggeriu; mas
não nos detrahiram nem calumniaram. D'essas sete paginas, provavelmente
desconhecidas ao commum dos leitores, a substancia é esta:


«Lisboa é muitissimo povoada, pois que todas as nações alli trazem gente,
sendo muita a mourisma que lá é escrava, e procede de Guiné. As liteiras
são mais que as carroças; mas são magnificas. E, porque a cidade se fórma
de outeiros, o que mais se usa são cavallos e mulas. As igrejas são
aceadissimas e formosas. Os portuguezes andam armados de espada e punhal.

«São os portuguezes mais ciosos de suas esposas que os hespanhoes. As
mulheres sahem de casa menos vezes que as de Madrid: o que faz que lá se
diga que ellas vão á igreja tres vezes no anno: baptisar-se, casar-se e
enterrar-se.

«É notório que o marido, apenas suspeita do proceder da mulher, trata logo
de a esfaquear; d'onde lhes urge a ellas estarem muito de sobreaviso, e
haverem-se com grande precate no logro dos maridos, vingando-se assim da
escravidão em que vivem.

«Sobre a tarde, fomos vêr o convento da Esperança onde a rainha esteve
encerrada seis mezes[5] quando deixou o rei que está na ilha Terceira, a
trezentas leguas distante de Lisboa. D. Pedro, seu irmão, governa
actualmente, e casou com a cunhada, filha do fallecido principe de Nemours
da casa de Saboya. Ella vai ao conselho, e assiste com o marido ás
audiencias. D. Pedro não quiz ainda ir ao paço para ser coroado. Vive em
sua casa, que foi confiscada ao marquez de Castello Rodrigo, que seguiu o
partido de Castella quando Portugal se rebellou. Segundo os tratados, os
bens já deviam ter sido restituidos ao marquez; mas até agora nem n'isso
pensam. Esta casa está situada á ourela do Tejo, perto do palacio real.
Guardam-na vigilantemente trezentas sentinellas vestidas de pardo agaloado
de verde. O paço é quadrado, e cheio de mercearias(?): é edificio pouco
distincto. Tem dentro uma praça limpamente areada, e um chafariz no centro.

«É ahi a praça dos touros. O paço estava desalfaiado. A capella, rica de
azul e ouro, é bellissima. Os armazens dos utensis destinados á marinha de
guerra, são ahi ao pé. Navios mercantis tem poucos. Mandam apenas cinco ou
seis ao Brazil, e servem-se dos inglezes e hollandezes para importar
assucar e outros generos a Lisboa. Ahi perto andam a edificar-se dous
salões, em que os mercadores se ajuntam a negociar. Vimos uma igreja que a
rainha-mãi fandou, e onde está enterrada[6]. Todo o tecto é de ebano, bem
como as columnas de laçarias douradas. Os pavimentos de todas as igrejas de
Lisboa são de adobes azulejados com figuras. Ha ahi uma, onde se veem
retratadas as cabeças das pessoas condemnadas e queimadas pela inquisição.
Presentemente não ha inquisidor geral.

«O palacio onde mora D. Pedro e a rainha é composto de quatro pavilhões
pequenos e dous eirados onde aquella princeza vai de tarde tomar ar com as
damas. Está ahi sempre o «regimento da armada.» As ante-camaras estão
sempre atalaiadas.

«O principe e ella dão audiencia todas as terças feiras. Elle é corpulento,
rosto magro e trigueiro. Desde que esteve doente, usa cabelleira. Sahe
pouco acompanhado, e dizem ser affavel e cortez. A rainha traja á
hespanhola com guarda-infante, com os cabellos soltos pelas costas,
encaracolados, e laçados de fitas. Tem uma filha que parece lindissima,
cuja aia é a condessa de Añon (Unhão). Segue-a o seu mordomo duque de
Cadaval. A rainha tem um anão indio que anda sempre com ella: é tão bem
proporcionado que parece uma criança, visto pelas costas; mas pela frente
não, que já tem barba. Já tinha sido da rainha-mãi, e goza da fama de
engraçado... A rua dos Mercadores é muito bonita. Ha ahi bons acepipes, e
confeitos excellentes. A 18 de maio comemos cerejas e damascos já maduros.
O que é incommodo é não haver neve, nem as bebidas refrigerantes de
Hespanha.»


E nada mais que mereça menção.

A respeito da Lisboa de 1669, que era, pouco menos, a Lisboa de 1754, um
anno antes do terremoto, darei alguns pormenores. O que tenho visto
impresso não satisfaz a curiosidade. João Baptista de Castro, o author do
_Mappa de Portugal_, conheceu a velha Lisboa, e o que nos disse é tão
diminuto que pouco vale. No _Panorama_ e _Archivo_ ha artigos de bons
investigadores; mas pouco mais fazem que distender as noticias de Nicolau
de Oliveira e outros que viram a Lisboa do seculo XVII.

O inedito, que tenho, ácerca da capital, dá noticias que provam ser
escripto em 1754. Não lhe conheço author. Foi homem que, viajando, escrevia
uma geographia da Europa alphabeticamente e levava a sua obra na letra _L_
(_LIXA, chamada pelos europeus LARACHE_), quando, talvez, o terremoto lhe
colheu de golpe a vida, ou lhe esfriou o ardor do trabalho.

No proximo numero trasladarei o que me parecer menos sabido.

    [5] A mulher de Affonso VI e de Pedro II.

    [6] Era a de Corpus-Christi dos carmelitas descalços, fundada no sitio
    em que Domingos Leite Pereira tentou matar D. João IV. Esta igreja
    desappareceu no terremoto e incendio de 1755.



FERREIRA RANGEL


Vivia aqui no Porto, ha pouco mais de mez, um homem que, ha vinte annos,
atroava o café-Guichard com o trovão da sua voz. Chamava-se Francisco
Ferreira Ribeiro Pinto Rangel.

Era liberal como um dos mais egregios romanos que morreram no templo de
Diana, á beira de Caio Gracco. Era valente caudilho do povo; e das
primeiras cutiladas do sabre dos esquadrões, nos motins anteriores a 1846,
tinha elle as cicatrizes na cabeça. Era poeta da escóla antiga de Filinto e
Diniz, como se demonstra no seu poema intitalado _D. Sebastião_. Era
versado na lição dos socialistas, cujas doutrinas apregoava nos botequins,
com um fogo de convicção, que lhe afusilava através dos oculos, e mettia
medo nos peitos de mais fino aço.

Teve um irmão que lhe foi antipoda na esphera politica. As pessoas do tempo
de D. Miguel conheceram-o, vivendo faustamente. Chamavam-lhe o
_escrivão-fidalgo_, porque era escrivão e tratava-se á lei da nobreza. Este
homem conheci eu chefe de estado-maior do general realista Macdonell.
Morreu briosamente, em uma madrugada de janeiro de 1847, ao lado do
general, desfechando um par de pistolas de pederneira, cuja escorva a neve
d'aquella noite humedecera. O morto deixou dous filhos, e tres ou quatro
esbeltas meninas. Parece-me que os vi e conheci na minha mocidade. Ouvi
dizer que voltaram ricos do Brazil. Se bem me lembro, já escrevi a
necrologia de um, que por signal estava vivo, e nem sequer me agradeceu,
com um bilhete de visita, ser eu a unica pessoa de Portugal que lhe ajuntou
ao nome esquecido quatro palavras de saudade e dó.

Agora, faço o mesmo ao tio, que morreu ha pouco mais de mez, e ninguem
perguntou que pobretão era um que levaram na tumba dos pobres, entre quatro
tochas, desde a rua Chã até ao Prado.

Pois era, era aquelle Ferreira Rangel que todos ouviamos e respeitavamos, ó
rapazes de ha vinte annos!

A imprensa diária tem olheiros que superintendem em estupros, facadas,
roubos e incestos; mas a alçada d'estes espias não chega até ao esquife do
defunto sem testamento.

Ferreira Rangel chegou ao cemiterio ao fechar de uma noite orvalhada de
dezembro. O coveiro estava prevenido e a postos. Não havia que esperar
garganteações de psalmos. A fossa da valla dos pobres estava aberta. Na
gleba desaterrada alvejava ainda o craneo e as vertebras cervicaes d'outro
pobre. Tresandava o fartum da podridão abafada. Aquillo fez-se depressa. O
caixão baqueou, desamparado de alto. Deu uma toada cava na terra fôfa. Os
portadores d'aquelle pobre aconchegaram os capuzes das orelhas cortadas do
suão, e sahiram de corrida. O coveiro deixou ao relento o caixão, e foi no
dia seguinte, aquecido com aguardente, volver sobre as taboas chuviscadas o
comoro de terra, que alisou com a pata da enxada.

Depois, o eterno silencio.

...................................................
...................................................

Envio os meus sentimentos aos sobrinhos ricos d'este homem, e dispenso-os
do bilhete de visita.



AS JOIAS D'UM MINISTRO DE D. JOÃO V NO PREGO


Este ministro era Alexandre de Gusmão.

Nasceu no Brazil, em Santos, provincia de S. Paulo, por 1695, e falleceu em
Lisboa, em 1753.

Foi cavalleiro professo na ordem de Christo;

Fidalgo da casa real;

Secretario particular de D. João V--_o Dissipador_;

Conselheiro de capa e espada do conselho ultramarino:

E, quando morreu, parte dos seus haveres, as joias de sua defunta mulher
estavam empenhadas, e foram vendidas em hasta publica.

Tenho a triste satisfação de enviar esta novidade aos biographos d'aquelle
varão illustre, e nomeadamente aos escriptores brazileiros, os snrs.
Pereira da Silva e Fernandes Pinheiro, solicitos averiguadores da
accidentada vida do seu conterraneo.

S. exc.^as dizem que Alexandre de Gusmão morreu pobre, tendo perdido os
bens e dous filhos no incendio de sua casa. Os documentos que, pela
primeira vez se escavam no veio inexplorado das secretarias, ajustam-se á
opinião d'aquelles notaveis escriptores; mas o ex-secretario de D. João V
morreu sem ter conhecido as necessidades dos que se dizem pobres.

Do _Livro dos registros_, ou _Copiador_ dos officios remettidos do gabinete
do duque-regedor ás corregedorias, trasladamos o seguinte:


«Para o corregedor do civel da côrte Francisco Xavier de Mattos Broa. Sua
Magestade é servido ordenar que vm.^ce, em cumprimento do precatorio que
lhe passou o desembargador Antonio de Sousa Bermudes de Torres, como juiz
do inventario dos bens de Alexandre de Gusmão, faça logo remetter para o
juizo do inventario para n'elle ser vendido um laço, fita de pescoço, e uns
brincos de diamantes e rubins que se acham no deposito geral da côrte, a
requerimento de Anna Maria do Vencimento, conservando-se no preço d'estas
joias a mesma hypotheca e direito que esta credora tem pela penhora que
n'elles fez. Deus Guarde a vm.^ce Paço 13 de maio de 1755.»


Segue-se, com data do dia anterior, outro officio ao mesmo proposito:


«Para Amador Antonio de Sousa Bermudes de Torres. Sua Magestade deferindo
ao requerimento que lhe fez Miguel de Avilez Carneiro foi servido ordenar
que o corregedor do civel da côrte remettesse ao juizo do inventario dos
bens de Alexandre de Gusmão as joias que se acham no deposito da côrte, com
penhora feita por Anna Maria do Vencimento. É o mesmo senhor servido que
vm.^ce as faça vender em o leilão que se está fazendo dos ditos bens, com a
declaração, porém, que o procedido das ditas joias se não confundirá com o
preço dos outros bens, ficando no valor d'estes conservada a penhora e
hypotheca especial que n'ellas tinha a credora, para se lhe reservar n'esta
parte o direito que tiver para a preferencia. Deus Guarde a vm.^ce Paço 12
de maio de 1755.»


Os descendentes d'esta snr.^a Anna Maria, se a sorte lhes bafejou mais
propicia que ao ministro de D. João V, devem estar hoje de posse das joias
de Alexandre de Gusmão. Regosijem-se.

Quaes seriam os outros bens leiloados? Uma quinta já eu descobri folheando
um grosso volume manuscripto, intitulado: _Tombo das herdades de Nossa
Senhora da Ajuda, de Val de Figueira, e da Atalaia, sitas no termo da villa
de Cabrella, que são do ill.^mo e exc.^mo conde de Oeiras, feito por ordem
de S. M. que Deus guarde. Anno de 1763._

Vejam que cousas eu folheio no intervallo de dous capitulos de romance em
que ha meninas louras e mancebos de pupilla ardente a dialogarem á
competencia com a calhandra portugueza e o sabiá brazileiro!

Pois d'este tombo a pag. 46 v. consta que uma herdade do valido de D. José
partia _com a quinta que foi de Alexandre de Gusmão em Val de Figueira_.

Quem possue hoje a quinta do privado de D. João V?

Não me recordo onde li que elle tivera boa quinta de recreio no valle de
Alcantara, e era convisinha de outra que pertencera ao grande escriptor D.
Francisco Manoel de Mello, que lá se finou, mais pobre que Alexandre de
Gusmão, um victima da libertinagem de D. João IV, outro victima da
ingratidão de D. João V e de seu augusto filho.

Este ministro, irmão do padre Bartholomeu de Gusmão, alcunhado o _Voador_,
foi sempre malquisto dos frades que perseguiram como necromante o inventor
dos balões. Tres homens affectos a D. João V foram grandemente satyrisados
n'aquelle tempo: o marquez de Gouvêa, D. Martinho Mascarenhas, pai do que
depois foi duque de Aveiro, e morreu no patibulo como regicida; frei Gaspar
Moscoso, ou da Encarnação, da mesma familia, e Alexandre de Gusmão.

Eis aqui um _specimen_ das satyras:

/*
    _Quem destruir-nos idéa?--Gouvêa._
    _Quem merece a Inquisição?--Gusmão._
    _Quem o deve acompanhar?--Gaspar._
        _Pois, meu rei, acautelar!_
        _Olho aberto, e vêde bem,_
        _Que no reino não convém._
        _Gouvêa, Gusmão, Gaspar._
*/



O ORACULO DO MARQUEZ DE POMBAL


Costumavam os nossos avós queimar os judeus--(não assevero que os avós de
quem isto escreve não fossem tambem queimados). Se os não colhiam ás mãos,
confiscavam-lhes os bens. Mas, dado caso que os judeus fugitivos enviassem
lá do exilio aos reis ou aos ministros bons alvitres da arte de governar,
aceitavam-lhes o favor e praticavam o seu parecer; mas não lhes concediam
voltarem ao reino, sem a condição de se deixarem torrar. Isto aconteceu
nomeadamente com o famoso Antonio Nunes Ribeiro Sanches, medico portuguez,
nascido em Penamacor em 1699, e fallecido em Paris, por 1783. Vivendo 84
annos, grande parte dos quaes curtiu nos invernos da Russia, não precisa
exhibir melhores certidões de bom medico. Se se deixa ficar na patria,
havia de custar-lhe a resistir á temperatura alta que os frades dominicanos
faziam no campo da Lã em obsequio á hygiene da alma.

Antonio Nunes Ribeiro Sanches, conselheiro de estado da imperatriz da
Russia, correspondia-se com os estadistas portuguezes, christãos velhos. O
marquez de Pombal, ou não quiz, ou apesar da sua omnipotencia, não logrou
assegurar repouso na patria ao seu douto oraculo, em paga dos conselhos e
projectos de boa administração que o neto de hebreus lhe suggeriu de Paris,
e o valido ingrato aproveitou, occultando-lhes a procedencia. A creação do
_collegio dos nobres_, por carta de lei de 7 de março de 1761, havia sido
aconselhada por carta de Ribeiro Sanches, datada em Paris, em 19 de
novembro de 1759.

Possuo esta carta autographa. Contém 129 paginas em 4.º maior. Não sei se
um rarissimo livro intitulado _Cartas sobre a educação da mocidade_,
impresso em Colonia em 1760, é o traslado d'este manuscripto. Não vi ainda
exemplar algum. Entre as obras ineditas do illustre medico, nomeadas na
biographia que Vicq-d'Azir lhe escreveu e Francisco Manoel do Nascimento
traduziu, ha uma intitulada: _Plano para a educação de um fidalgo moço._ O
manuscripto, de qualquer modo precioso, que possuo, deve ser o original de
alguma das duas obras.

Dous escriptores portuguezes de subida reputação, ambos ministros de estado
honorarios, os snrs. José Silvestre Ribeiro e D. Antonio da Costa,
enriqueceram recentemente a litteratura patria, com os seus livros
intitulados _Historia da instrucção popular em Portugal desde a fundação da
monarchia até aos nossos dias_, e _Historia dos estabelecimentos
scientificos, litterarios e artisticos de Portugal nos successivos reinados
da monarchia_. Os doutissimos authores, com certeza, aproveitariam optimos
subsidios da leitura do raro livro de Ribeiro Sanches, se o manuscripto,
que tenho, é o rascunho do livro impresso em Colonia, cuja raridade o snr.
Innocencio F. da Silva encarece. O senhor conselheiro José Silvestre
Ribeiro, quando louva o progresso das letras e artes no reinado de D. José
I, recordaria com menção gloriosa o nome obscurecido do medico portuguez, e
daria ao marquez de Pombal a parte mediana que lhe cabe no alvidramento da
reforma da universidade, do collegio dos nobres, nas escólas militares, e
no mais, respeitante aos beneficios que a historia lhe desconta na
ferocissima condição.

Ribeiro Sanches, antes de indicar o methodo proficuo na educação dos
fidalgos, discorre ácerca da educação antiga, e chegando ao meado do seculo
XVI, escreve:


«.... Vimos acima que, desde o anno 1500 até o anno de 1570, existiu o
maior luxo que jámais viu Portugal. El-rei D. Manoel introduziu-o na côrte,
e foi o primeiro que se vestiu umas vezes á franceza, outras á flamenga[7].
Como não teve guerra na Europa, nem seu filho, nem seu bisneto el-rei D.
Sebastião, com as riquezas do Oriente cahiu a fidalguia no maior luxo, e
por consequencia n'aquelle total esquecimento da boa educação que tinha ou
na paço dos reis antigos ou em casa de seus paes. No tempo d'el-rei D.
Pedro, _o Justiceiro_, tanto que se sabia no paço que tinha nascido algum
filho de fidalgo, mandava logo el-rei a sua casa a provisão da moradia ou
fôro que deixava em poder da mãi ou da ama que creava o menino, e n'estes
tempos se chamavam os reis paes de seus vassallos. Depois, crescendo o
numero, se ordenou que sómente se usasse d'esta graça com o primogenito, e
d'esta resolução veio a descahir aquelle amor da patria, porque faltou a
boa educação que tinham no paço todos os filhos de fidalgos com moradia.

    «Era já de quasi 80 annos quando o imperador da Ethiopia mandou a
Lisboa um embaixador com grandes presentes para el-rei D. Manoel procurando
sua amizade e propondo reciprocos interesses; e, querendo el-rei
corresponder-lhe, entrou na consideração de quem seria a pessoa que lá
mandasse por embaixador. Succedeu depois, estando el-rei em Evora, mandar
fazer um gibão de uma fazenda rara que lhe chegára da India; e, no dia em
que o vestiu, sahiu a uma sala em que estavam varios fidalgos, a cada um
foi mostrando o gibão, que todos gabavam por comprazer a el-rei; e, como
fosse um d'elles Duarte Galvão, só este o não lisongeou, dizendo-lhe que os
reis de Portugal seus antecessores cuidavam menos em atavios do que em
cumprirem com os encargos que Deus impunha aos reis. Seria melhor que não
fallasse assim para seu descanço, porque isto decidiu a eleição do
embaixador que havia de ir á Ethiopia; e logo el-rei, com palavrosos termos
de honra e conceito, nomeou o pobre ancião; mas assentando que morreria no
caminho como succedeu na altura da ilha do Camarão em 9 de junho de 1517.»

«No tempo d'el-rei D. João II lhe representaram em côrtes que ordenasse se
creassem os fidalgos no paço como era costume antigamente: signal certo que
se educava alli a primeira mocidade do reino. Já dissemos acima que a
educação da nobreza toda se reduzia a fazer o corpo robusto, e fortissimo,
o animo ousado, e destemido; além d'aquelle agrado que reinava no
galanteio, e serviço das senhoras, não deixavam de instruir o animo com
aquelles poucos conhecimentos scientificos que se conheciam: sómente na
familia do infante D. Henrique foi esta educação mais consideravel, porque
sahiram muitos do paço d'aquelle famoso principe excellentemente instruidos
nas mathematicas e boas letras, como foi o grande Albuquerque, e D. João de
Castro.»


Discorre o medico ácerca das causas que abastardaram a educação dos
fidalgos:


«Mas tanto que os reis tiveram mais que dar que as terras da corôa; tanto
que tiveram commendas, governos, e cargos lucrativos, tanto nas conquistas,
como no reino, logo os fidalgos começaram a cercar os reis, e ficarem na
côrte; porque pela adulação, pelo agrado, e pelas artes dos cortezãos
sabiam ganhar as vontades dos reis, não tendo aquellas occasiões forçosas
de obrarem acções illustres para serem premiados por ellas. Isto vêmos
succedeu no tempo d'el-rei D. Duarte, quando ordenou que todo o fidalgo que
não tivesse cargo na côrte que fosse a viver nas suas terras.

«Logo que todos os fidalgos fizeram a sua assistencia na côrte no tempo da
paz, logo que seus filhos eram educados em suas casas, já ricas, e
poderosas pelas dadivas dos reis em commendas, pensões, governos e cargos,
necessariamente se havia de seguir uma educação estragada; a meninice
entregue na mão das amas, e de mulheres communs; a puericia entre as mãos
dos criados, e dos escravos; até o tempo d'el-rei D. Sebastião poucos
sabiam mais que lêr e escrever; porque já a escóla do infante D. Henrique
estava acabada; e toda a educação se reduzia a saber os mysterios da fé,
porque os seus mestres sendo ecclesiasticos e ignorantes da obrigação de
subdito, de filho, e de marido, chegavam á idade da adolescencia com o
animo depravado: sem humanidade, porque não conheciam igual; sem
subordinação, porque eram educados por escravas, e escravos, ficava aquelle
animo possuido da soberba, e vangloria, sem conhecimento da vida civil, nem
com a minima idéa do bem commum. Assim degenerou aquella educação do paço,
na qual pelo menos aprendiam a obedecer, na mais insolente tyrannia de
todos aquelles com quem tratavam.»


E, vindo ao ponto da reforma urgente na educação da nobreza, escreve:


«Parece-me que vistos os notaveis inconvenientes da educação domestica, e
das escolas ordinarias, que não fica outro modo para educar a nobreza, e a
fidalgia do que aprender em sociedade, ou em collegios: e como não é cousa
nova hoje em Europa esta sorte de ensino, com o titulo de _corpo de
cadetes_, ou escóla militar, ou _collegio dos nobres_, atrevo-me a propôr á
minha patria esta sorte de collegios, não sómente pela summa utilidade que
tirará d'esta educação a nobreza, mas sobre tudo, o estado, e todo o povo.»


Ahi está o aviso do christão novo, seguido, e executado dous annos depois,
quanto á fundação do _collegio dos nobres_.

Depois, indica o doutor Ribeiro Sanches as sciencias que devem ensinar-se
já no collegio, já nas aulas militares. Todas entraram na organisação dos
estatutos.

Em um §. intitulado: _Em que idade deveriam entrar os educandos na escóla
real militar_, divaga o insigne medico por considerações a respeito das
mães. Transcrevo o que me parece digno de ser lido por ellas:


«Tanto que as riquezas da Africa e do Oriente entraram em Portugal, logo
começou a mostrar-se o luxo nos vestidos, comidas, e mais commodidades
estrangeiras; começou a esfriar-se o amor das familias, e por ultimo da
patria. El-rei D. João III foi o ultimo rei que foi creado com ama nobre, e
já seus filhos, nem seu neto el-rei D. Sebastião, tiveram amas, mais que da
classe plebêa; indicio certo que as senhoras não creavam já seus filhos,
como nos tempos anteriores: introduziu-se este destructivo costume da raça
humana, do amor filial, e dos bons costumes; e apesar de tanto sermão,
missões, e praticas espirituaes, nenhuma senhora quer sacrificar a sua
formosura. Seria loucura persuadir o que ninguem quer abraçar.

«Tem para si estas mães, que não criam, que conservarão por mais tempo a
formosura, e que dilatarão a vida com mais vigor e forças, e que perderiam
a sua boa constituição creando por dezoito mezes ou dous annos. Mas é
engano manifesto, e o contrario se sabe pela experiencia, e pela boa
physica.

«A mulher que deu á luz um filho, e que não o cria, em pouco tempo vem a
conceber de novo: a gravidez de nove mezes é uma enfermidade, que
enfraquece mais o corpo, do que crear aos peitos por anno e meio: e como
concebem antes que as partes da geração adquirissem pelo repouso a sua
natural consistencia, succede, que estas senhoras abortam mais
frequentemente: enfermidade tão consideravel, que muitas ou perdem a vida,
ou ficam achacadas; perdendo em poucos annos o idolo da sua belleza,
ficando frustradas do seu intento, e expostas a viverem por toda a vida com
mil desgostos, e pezares.»

.........................................

«Até agora os damnos que soffrem as mães. Mas os mais consideraveis e
lamentaveis são aquelles que se imprimem no animo das crianças creadas por
amas. Se fôramos nascidos para viver nos desertos da Africa, ou nos bosques
da America, pouco importava que as amas imprimissem no nosso animo aquellas
idéas de terror de feitiços, de feiticeiras, de duendes, de crueldade, e de
vingança; mas somos nascidos em sociedade civil, e christã; aquellas idéas
que nos dão as amas são destructivas de tudo o que devemos crêr, e obrar:
ficam aquellas crianças expostas ao ensino de mulheres ignorantes,
supersticiosas; são os primeiros mestres da lingua, dos desejos, dos
appetites, e das paixões depravadas: chegou o menino a fallar, já está
cercado de duas ou tres mulheres mais ignorantes, mais supersticiosas do
que a ama; porque estas são mais velhas, e sabem mais para destruir aquella
primeira intelligencia do menino: chega á idade de caminhar, já tem seu
mocinho, ordinariamente escravo, e como foram pelas mães creados por taes
amas, e velhas, são os terceiros mestres até á idade de seis ou sete annos:
e se o mau exemplo do pai e da mãi põem o sello a esta educação, fica o
menino embebido n'estes detestaveis principios, que mui difficilmente os
melhores mestres podem arrancar aquelles vicios pelo discurso da idade
pueril.

«Será impossivel introduzir-se a boa educação na fidalguia portugueza em
quanto não houver um collegio, ou recolhimento, quero dizer, uma escóla com
clausura para se educarem alli as meninas fidalgas desde a mais tenra
idade: porque por ultimo as mães, e o sexo feminino são os primeiros
mestres do nosso; todas as primeiras idéas que temos provém da creação que
temos das mães, amas, e aias; e se estas forem bem educadas nos
conhecimentos da verdadeira religião, da vida civil, e das nossas
obrigações, reduzindo todo o ensino d'estas meninas fidalgas á geographia,
á historia sagrada, e profana, e ao trabalho de mãos senhoril, que se
emprega no risco, no bordar, pintar, e estofar, não perderiam tanto tempo
em lêr novellas amorosas, versos, que nem todos são sagrados, e em outros
passatempos onde o animo não só se dissipa, mas ás vezes se corrompe; mas o
peor d'esta vida assim empregada é que se communica aos filhos, aos irmãos
e aos maridos. D'aqui vem, que sendo da mesma nação, da mesma familia, e da
mesma casa, estão introduzidas duas sortes de lingua, ou modos de fallar: a
conversação que se deve ter com as senhoras, não ha de ser sobre materia
grave, séria; estas conversações judiciosas ficam reservadas para algum
velho, ou para algum notado de extravagante: e assim succede que ficam as
senhoras por toda a vida (ordinariamente) meninas no modo de pensar, e com
tão miseraveis principios vem ellas as suas amas, as suas aias, e donas a
serem os mestres d'aquelles destinados a servir os reis.

«Não me accuse v. ill.^ma que sahi fóra do intento que lhe prometti: achei
que tratar da educação que deviam ter as meninas nobres e fidalgas merecia
a maior attenção, porque por ultimo vem a ser os primeiros mestres de seus
filhos, irmãos, e maridos. V. ill.^ma sabe muito melhor do que eu aquelles
monumentos que temos na historia romana, e tambem na nossa, de tantas mães
que por crearem, e ensinarem seus filhos foram as que salvaram a patria, e
a illustraram: houve em Roma muitas Cornelias, como em Portugal muitas
Philippas de Vilhena. Mas n'aquelle tempo ainda o luxo, ou a dissolução não
se tinha apoderado do animo portuguez, porque as riquezas não eram tão
appetecidas. A connexão que tem a educação da mocidade nobre que prometti a
v. ill.^ma me obriga a ponderar, se não seria mais util para a conservação
e augmento da religião catholica transformarem-se tantos conventos de
freiras, e das ordens, principalmente militares sem exercicio algum da sua
destinação, n'estes estabelecimentos que proponho, tanto para a mocidade
nobre masculina, como feminina? Com o exemplo das educandas, ou _Filles de
St.-Cyr_, fundação perto de Versailles, e com o da escóla real militar, se
poderiam fundar no reino outros ainda mais vantajosos para a mesma nobreza,
e para a conservação e augmento da religião e do reino. Mas espero ainda
vêr nos meus dias estabelecimentos semelhantes em tudo, ou em parte que
satisfaçam todo o meu desejo.»


Eu tinha vontade de prolongar o traslado; mas a leitora que é mãi, joven e
formosa, desdenha os conselhos do medico; a que não é mãi, de certo não
percebeu as theorias physiologicas em que se fundamentam as censuras; e o
leitor que de certo leu á esposa as paginas impregnadas de maternidade,
n'aquelle tom circumspecto de nossos avós patriarchaes, dorme...
patriarchalmente.

Boa noite.

    [7] Diogo de Paiva de Andrade, o sobrinho, confirma nas soas _Memorias_
    ineditas, esta passagem com a seguinte anecdota: «Duarte Galvão, um dos
    benemeritos varões do seu tempo, foi secretario d'el-rei D. João II, e
    por elle e seu successor el-rei D. Manoel mandado muitas vezes por
    embaixador a differentes côrtes da Europa. Encarregado pelo emprego de
    chronista-mór de ordenar as chronicas dos reis d'este reino, escreveu
    nove desde D. Affonso Henriques até el-rei D. Fernando, servindo em
    toda a sua vida com muita aceitação dos seus principes os empregos que
    lhe confiaram.



O PRINCIPE PERFEITO


O snr. Pinheiro Chagas, na sua estimadissima _Historia de Portugal_, tomo
III, pag. 155, relatando vigorosamente a ferocidade de D. João II, escreve:


«Estamos bem longe d'applaudir, com Ruy de Pina e Garcia de Rezende, estas
ferocissimas repressões, mas tambem não podemos concordar com o snr.
Camillo Castello Branco, que escreve o seguinte a respeito d'el-rei D. João
II:

«O real carrasco, a quem infamissimos aduladores da corôa chamaram
_principe perfeito_, surge hediondo diante da posteridade, alçando-se por
sobre a nuvem dos incensos, com que thuribularios abjectos cuidavam
escondel-o á execração dos vindouros. Raro ha quem se canse em esgaravatar
razões d'estado, que contrapesem a ferocidade do filho d'Affonso V. A
historia, á volta d'elle, o que encontra é cadaveres, oitenta cadaveres de
homens illustres, uns estrangulados, outros decapitados, estes mortos a
punhal, aquelles a peçonha. _Oitenta_, confessou elle o numero, quando a
morte lhe acenava de perto, e se lhe desabafava a consciencia, supplicando
ao papa contritamente o perdão dos seus peccados.

«Os lances capitaes de tão má alma contou-os a historia á tragedia. O
theatro portuguez já se enlutou com os quadros de canibalismo, trazidos á
rampa e ao grande brilho dos lustres, para que o povo visse justificada a
razão que teve a villanagem dos chronistas d'alligarem ao assassino do
duque de Vizeu o antonomastico epitheto de _principe perfeito_.»

«O illustre escriptor é demasiadamente severo com o grande rei a quem
Portugal deve tanto. Que a energia de D. João II degenerava em ferocidade,
é incontestavel, e não pretendemos absolvel-o dos crimes que pesam sobre a
sua memoria. Mas qual dos grandes homens, que figuram na historia, se
apresenta immaculado no tribunal da posteridade? No assassinio do duque de
Vizeu achamos, devemos confessal-o, em attenção aos costumes da época, D.
João II, menos hediondo do que no caso do duque de Bragança. É uma luta a
todo a transe entre D. João II e a nobreza, e el-rei, que teve por tantas
vezes a morte diante dos olhos e que sempre a affrontou sem empallidecer,
pôde, quando se lhe offereceu ensejo, antecipar-se aos seus adversarios, e
voltar contra elles o punhal com que o ameaçavam. O duque de Vizeu foi
ferido pela catastrophe que trazia pendente sobre a cabeça do seu
adversario; foi vencido na batalha. Se D. João II abusou da victoria, e não
soube, como nunca soubera, perdoar, culpemos d'isso a imperfeição humana.
Perdoar! Parece que no mundo só Christo soube cumprir essa maxima sublime,
que debalde prégou na sua santa doutrina. A civilisação, abrandando os
costumes e modificando as paixões, tem introduzido felizmente, no espirito
do homem, o horror do sangue derramado, mas, nos fins do seculo XV, ainda a
vida das creaturas da nossa especie estava longe de ter o caracter
inviolavel que hoje possue. Por tanto D. João II, aceitando de rosto
descoberto a batalha, e vibrando o punhal como vibraria a espada, tem uma
certa grandeza selvagem, que não desculpa mas attenua o crime.»


Até aqui o destro escriptor. Agora, a historia que os reis e as camarilhas
não deixavam estampar.

O punhal que D. João II vibrou ao peito do duque de Vizeu foi acto cobarde
que não póde ser attenuado por grandeza selvagem. O rei apunhalava o
adversario em quanto os braços possantes de um valente alcaide prendiam
pelas costas a victima desarmada.

Nas _Memorias_ ineditas de Diogo de Paiva e Andrade, author do _Casamento
perfeito_, faz-se menção do conflicto, e encarece-se a bravura do
coadjuctor de D. João II com uma anecdota bastante significativa da coragem
do fidalgo e da cobardia do rei.

Diz assim:


«D. Pedro de Eça, alcaide-mór de Moura, foi um fidalgo a quem a natureza
dotou de muito animo e grandes forças, e por isto el-rei D. João II o
escolheu, quando quiz matar a D. Diogo, duque de Vizeu, a quem abraçou por
detraz. Acontecendo em Moura matarem um homem uns criados seus, foram-se
dous irmãos do morto queixarem a el-rei e disseram-lhe que D. Pedro lh'o
mandára; pelo que o mandou vir á côrte, e esteve n'ella mais de dous annos,
posto que, tirada a devassa, o não acharam culpado. Enfadado D. Pedro disse
a el-rei que, pois sua alteza não queria crêr que elle não tinha culpa na
morte do homem, e os que o accusavam eram dous, que lhe fizesse mercê de
lhe mandar dar campo com ambos para assim se purificar; do que,
agastando-se el-rei, lhe disse que tomára elle ser um dos dous. E D. Pedro
lhe respondeu: «não fôra vossa alteza meu rei, e fosse com elles o
terceiro.»


Não temos o desvanecimento de sobre-excitar contra D. João II o animo do
nosso talentoso amigo; todavia, insinuamos-lhe a suspeita de que o homem
não era capaz de matar outro sem lh'o agarrarem pelas costas, tendo ainda
por cautela mais dous bravos que se chamavam Diogo de Azambuja e Lopo
Mendes do Rio.



AVE RARA


O poeta satyrico Antonio Lobo de Carvalho, fallecido em Lisboa aos 26 de
outubro de 1787, nasceu em Guimarães, não se sabe precisamente quando. Era
filho illegitimo de fidalgo, e tinha em Villa Real parentes maternos que o
educaram nas letras, consoante os frades da terra podiam ministrar-lh'as. O
bom que os frades tinham não o aprendeu o rapaz. Era poeta de lingua
farpada, da escóla de Gregorio de Mattos Guerra, o maior e mais sujo
talento que deram as plagas de Santa Cruz, desde a cidade de Jequitinhonha
até á cidade de Pindamonhamgaba.

Os cavalheiros villa-realenses andavam mordidos pelas vespas das suas
trovas. Lobo não perdia lanço de os satyrisar.

Em uma procissão de Corpus-Christi, o senado da terra ordenou que S. Jorge
fosse em andor e não em cavallo. A razão d'este descavalgamento não é bem
liquida. Ha muitos mysterios que nunca se hão de dilucidar, mormente em
cousas de cavalgaduras.

N'essa occasião, Antonio Lobo de Carvalho escreveu e divulgou o seguinte
soneto:

    _Patria de valentões, paiz guerreiro,_
    _Só tu, Villa Real! comtigo fallo!_
    _Vão Panças e Roldões jogar o talo,_
    _Ou vão na tua escóla andar primeiro._

    _Quem ha que os teus aguente no terreiro,_
    _Se até S. Jorge foram desmontal-o!_
    _Pois, indo nas mais terras a cavallo,_
    _N'esta é capucho o santo cavalleiro!_

    _Nos triumphos de Baccho a villa armada_
    _Uns com brancos arnezes, outros tintos,_
    _As meretrizes levam de assaltada._

    _Fez-lhe o entrudo os broqueis, compoz-lhe os cintos,_
    _E soltou um pendão co'esta fachada:_
    _«Todos são pobretões; mas mui distinctos.»_

Os fidalgos da villa dilecta d'el-rei D. Diniz,--que eram muitos, a julgar
pelos brazões musgosos em que as andorinhas dormem de verão e as corujas
assobiam de inverno--assanharam-se contra o poeta, fazendo-se representar
no desforço pelos seus moxillas.

Espancado e fugitivo, foi parar a Lisboa Antonio Lobo, onde conhecia um tal
Anacleto, que mais tarde foi juiz de fóra em Angeja.

A mãi do poeta era remediada de bens da fortuna, e quanto tinha quanto deu
ao estouvanado filho, que nunca procurou modo de vida, nem bajulou os
grandes, á imitação dos vates do seu tempo.

O duque de Cadaval, D. Miguel, ouvindo recitar versos de Antonio Lobo,
disse aos seus criados que lh'o levassem ao palacio... para se divertir. Um
lacaio de s. exc.^a procurou o poeta e deu conta do recado. Lobo mandou-o
esperar, improvisou um soneto, e remetteu-o ao duque. É o mais galhardo
feito de poeta do seculo XVIII. Dizia assim:

    _Se eu fôra, excelso duque, homem perito,_
    _Capinha, ferrador, cabelleireiro,_
    _De cães decurião ou cozinheiro,_
    _Em sopas mestre, em massas erudito:_

    _Se em letra antiga visse o que anda escripto_
    _Do vosso grande avô, João Primeiro,_
    _Que o gothico mostrasse ao mau caseiro;_
    _Que o tombo velho nunca está prescripto._

    _N'este caso, senhor, a vossa graça_
    _Mais quizera alcançar, que ter mil burras,_
    _Do metal louro que se ri da traça._

    _Mas como a sorte me tem dado surras,_
    _Não vou servir-vos só por não ter praça_
    _No livro mestre dos santões caturras._

Antonio Lobo indispoz-se em Lisboa com fidalgos e frades. A mezada que a
mãi lhe enviava permittia-lhe dispensar-se das sympathias de clero e
nobreza. Foi muito soado e mordido um soneto que elle dardejou contra um
frade leigo, dado a libações de certa taverna. Era d'esta laia o poema:

    _Borracha de estamenha, ôdre sarrento,_
    _Mil parabens te dou ao novo estado;_
    _Pois de estupido leigo a um jubilado_
    _Lente de rolhas vaes em largo vento._

    _Se ha longos annos mettes fogo lento_
    _N'essa pança que é mãi de vinho aguado,_
    _Frei Bourdeaux será hoje o teu prelado,_
    _A adega d'esta casa o teu convento._

    _Bebe, esponja claustral, té que a fumaça_
    _Das vasilhas de França encha as pichorras_
    _De umas bebadas tripas de outra raça;_

    _E, antes que os limos dos toneis escorras,_
    _Fuja o do Carmo, fuja o Leão da Graça,_
    _Que hoje o que reina é o Leão dos Borras._

Ao odio do clero e nobreza, ajuntou o poeta o odio do povo representado nas
pessoas dos capellistas, acirrados por estes versos:

    _Um rapaz a gritar como um cabrito_
    _Com saudades da mãi sobre o vallado,_
    _Que entre duas canastras vem deitado,_
    _Em burro de almocreve, ancioso e afflicto;_

    _Com rosario ao pescoço mui bonito,_
    _Descalço, de barrete e de cajado,_
    _C'um sacco á cinta, onde traz (coitado!)_
    _A sua côdda, o seu bacalhau frito._

    _Posto a pé este misero mamote_
    _Ora cahe, ora treme, ora encordôa,_
    _Um lhe prega um sopapo, outro um calote._

    _Pois esta figurinha ou má ou boa_
    _Faz qualquer capellista franchinote_
    _Quando vem do sertão para Lisboa._

N'esta vida de odios e irritações, viveu Antonio Lobo de Carvalho até aos
cincoenta annos. Se nos merecesse credito o que João Bernardo da Rocha
escreveu no _Portuguez_, tom. X, pag. 356, o atrevido vate haveria sido
aleivosamente assassinado por ordem de um tio do marquez de Olhão, a quem o
maldizente frechára com um soneto que abria assim:

    _Ferrabras, Satanaz, Fernão Zarolho,_
    _Cruel harpia das que o inferno encerra..._

Mas o snr. Innocencio Francisco da Silva, posto que não decida qual haja
sido a morte do poeta, com justificados motivos desabona a affirmativa de
João Bernardo da Rocha.

Eu tambem não sei. Ando n'essas pesquizas; e receio ir dar com elle no
hospital, expirando envolto em gloria... de cataplasmas de linhaça.



VERGONHAS NACIONAES


É notorio que o capitão Vicente Lunardi, natural de Luca, e empregado na
embaixada napolitana em Londres, effectuou em Lisboa, na tarde de 24 de
agosto de 1794, uma viagem aerea.

Mas ainda ninguem disse que o aeronauta, antes da ascensão, esteve preso á
ordem do intendente geral da policia Diogo Ignacio de Pina Manique, pelo
motivo de vir com tal novidade a Lisboa, onde a inquisição, por causa
identica, desejára queimar o padre Bartholomeu de Gusmão.

Os documentos que sobrevivem a tamanho opprobio são autographos,
authenticados pela assignatura do famigerado intendente.

Lunardi chegou a Lisboa em fins de maio de 1794. N'esse mesmo anno, em
janeiro, tinha elle em Madrid subido no seu balão, que desceu na provincia
da Mancha, onde os camponezes o receberam tão benignamente que o levaram em
triumpho á igreja parochial da villa de Orcajo.

Cuidou elle que a familia real portugueza o recebesse com igual agrado ao
da côrte hespanhola.

Logo que chegou a Lisboa, foi intimado a comparecer na corregedoria do
bairro, e obrigado a assignar termo de não subir ao ar, sem que a machina
fosse examinada por peritos. Este exame levava em vista satisfazer as
suspeitas do publico, receoso de artes diabolicas.

Assignou Lunardi o termo, e entendeu que dava plena satisfação ás
authoridades e ao publico, expondo o balão com todos os seus aprestos. E,
para isso, construiu uma barraca na praça do Commercio, e grudou nas
esquinas das ruas mais concorridas um cartaz em que minudenciosamente
explicava o balão exposto, e os mais instrumentos necessarios ás viagens
aereas. (Veja o _Panorama_, tom. VIII, pag. 15).

Apenas o estirado cartaz appareceu, o intendente geral da policia, officiou
ao desembargador Luiz Dias Pereira, corregedor do bairro dos Romulares, no
theor seguinte, e textual orthographia:


«Vm.^ce logo mandará hir seguro á sua presença Vicente Leonardi, Author da
Maquina Aereostatica, e na presença de um dos escrivães dos Lugares, que
vm.^ce está servindo, lhe perguntará, com que authoridade fixou os editaes,
contra o que se havia determinado no termo que elle assignou perante vm.^ce
por ordem d'esta intendencia; e não apresentando ordem por escripto,
_emenada_ (sic) das Secretarias de Estado, ou do seu Real Gabinete, ou
Gentil Homem da Camara ou _Garda_ (sic) Roupa do Dito senhor; vm.^ce o
mandará prender, mandando-lhe abrir assento á minha ordem; e dar-me[8]
parte do resultado d'esta diligencia acompanhando o Auto da declaração que
o mesmo Vicente Leonardi fizer. Deus guarde a vm.^ce Lisboa 10 de junho de
1794.==_Diogo Ign.^eo de Pina Manique.==Snr. Dz.^or Luiz Dias Pereira._»


Lunardi, conduzido pelos quadrilheiros ao corregedor, e interrogado, disse
que, tendo assignado termo de não funccionar sem que o balão fosse
examinado, cuidára dar a maxima prova de boa fé e sciencia estreme de
sortilegio, exhibindo ao exame de toda a gente a sua machina.

O corregedor achou-lhe razão. Não obstante, mandou-o esperar, em custodia,
novas ordens da intendencia, em quanto elle officiava e a resposta vinha.

Eis a resposta do Manique:


«Vm.^ce executará sem exhitação, ou duvida alguma, a diligencia que lhe
encarreguei em aviso da data de hontem a respeito do estrangeiro Leonardi,
author da maquina aereostatica; pois me consta com toda a certeza não ter o
mesmo Estrangeiro licença alguma de Sua Alteza Real o Principe Nosso Senhor
para o referido fim: e vm.^ce me dará conta por escripto da execução da
sobredita diligencia, na conformidade que lhe tinha ordenado. Deus guarde a
vm.^ce Lisboa 11 de junho de 1794.==_Diogo Ign.^eo de Pina Manique.==Snr.
Dz.^or Luiz Dias Pereira._»


Em vista d'isto, o aeronauta foi conduzido ao Limoeiro; e, n'esse mesmo
dia, o intendente elogiava o corregedor n'estes termos:


«Li a conta que vm.^ce me deu em que me participava a prisão do estrangeiro
Leonardi, o que vm.^ce tem executado com todo o acerto; agora porém vm.^ce
mandará arrancar todos os editaes, que o mesmo tinha afixado. Deus guarde a
vm.^ce Lisboa 11 de junho de 1794.==_Diogo Ign.^eo de Pina Manique.==Snr.
Dz.^or Luiz Dias Pereira._»


Não sei que tempo esteve o italiano em ferros; mas tenho plausiveis razões
para presumir que o principe regente o mandou soltar, pois que, volvidos
dous mezes, foi sua alteza que lhe deu licença para subir no balão.

Aos ouvidos do intendente chegaram rumores sinistros. Segredava-se que
algumas pessoas, influenciadas pelos frades de mais selvagem ignorancia e
acrisolada religião, tencionavam despedaçar a machina e o aeronauta,
suspeito de feiticeria. E, visto que sua alteza licenciára a subida do
balão, cumpria a elle intendente obstar que os fanaticos insultassem o
estrangeiro. No entanto, o sagaz magistrado, que tinha mais velhacaria que
syntaxe, não queria indispôr-se com o povo intimidando-o com o poder
armado, nem indispôr-se com o principe abandonando o aeronauta á ferocidade
das turbas. Neste proposito, officiou assim ao corregedor na véspera da
ascensão:


«Vou a prevenir a vm.^ce que não deve levar official algum de capote ámanhã
de tarde para hir assistir na Praça do Commercio, nem ainda mesmo os
quadrilheiros, e aquelle que não tiver cazaca o dispense vm.^ce e lhe dê
positiva ordem para não apparecer na mesma Praça do Commercio: o mesmo
tambem ordenará vm.^ce aos Cabos geraes do seu Bairro para não haver alguma
confuzão e obviar, que alguns malvados se queiram mascarar affectando serem
officiaes, para levarem as armas a seu salvo.

«Recomendo a vm.^ce a prudencia, procurando não comprometter a authoridade,
e respeito da justiça, e só, no caso indispensavel que ameace consequencias
é que deve vm.^ce ter o procedimento, pedindo auxilio da tropa para rebater
qualquer insulto que se queira praticar: o modo nestas occasiões, e a
polidez conduzem muito para se concluir o dia sem que seja preciso praticar
procedimento algum, e sem que tambem se suscitem conflictos de jurisdicção.
Tudo isto quer a prudencia, que recomendo a vm.^ce se pratique como sem
hesitação espero; e outro sim que não separe de si os seus officiaes para
que não vão fazer acção alguma que não seja por vm.^ce regulada. Deus
guarde a vm.^ce Lisboa 23 de agosto de 1794.==_Diogo Ign.^eo de Pina
Manique.==Snr. Luiz Dias Pereira._»


Na pagina em branco d'este officio, escreveu o corregedor: _Subiu no dia 24
d'agosto na real praça do Commercio depois das quatro horas e meia da
tarde. Eu o vi subir. Foi pelas oito horas e meia da noite cahir ás Vendas
Novas, voando depois a Magaina(?) sem que elle a podesse segurar, a qual
foi depois cahir a Veiros._

Vicente Lunardi escreveu depois a sua _Viagem aerea_, impressa no mesmo mez
e anno em Lisboa. Da sua escripta não transpira queixume dos portuguezes.
Apenas estas expressões denotam uma alma nobremente magoada: _Os applausos,
com que me tem honrado a nação portugueza, me fazem esquecer «as minhas
passadas desgraças» e me obrigam a dar-lhe, em prova do meu reconhecimento,
uma exacta narração de toda a minha viagem aerea_, etc. (Veja o _Panorama_,
tom. VIII, pag. 21 e seg.)

Estes «applausos» consistiram em uns endecasyllabos _anonymos_, publicados
n'essa occasião. Quem quer que fosse, o author não teve a coragem de
assignar os seus aleijados versos. Além d'isto, uma epistola do padre José
Agostinho de Macedo a Stochler; e, sobre tudo o _elogio_ que lhe consagrou
Bocage, em versos esplendidos, que podem aferir-se por esta estancia:

    _Portentoso mortal, que á summa altura_
    _Vaes no ethereo baixel subindo ousado;_
    _Que illusão, que prestigio, que loucura_
    _Te arrisca a fim tremendo e desastrado?_
    _Teu espirito insano, ah! que procura_
    _Pela estrada do Olympo alcantilado?_
    _Não temes, despenhando-te dos ares,_
    _Qual Icaro infeliz, dar nome aos mares?_

Lunardi descrevendo os trabalhos que passou até embarcar em Aldeia Gallega,
conclue assim a narrativa da sua viagem:


«Embarquei finalmente ás quatro horas da manhã, e com uma feliz viagem;
cheguei ás 7 horas da mesma manhã ao caes do Terreiro do Paço, onde achei
um grande numero de pessoas que me esperavam, e no meio de vivas de alegria
me conduziram á minha habitação.

«Estes signaes de verdadeiro contentamento, e o concurso continuo de
pessoas ainda das ordens mais respeitaveis, provam assás os sentimentos,
que produziu a minha viagem aerea, que tanto é mais famosa, quanto mereceu
os applausos de uma nação illustre, que pelo muito, que se empenha agora em
honrar-me, tem adquirido incontrastaveis direitos ao meu reconhecimento, e
eterna gratidão.

«Esta a narração fiel da minha viagem, e dos seus successos: e posto que
ella não contenha em si nada de extraordinario para os corações
indifferentes, deve com tudo interessar as almas sensiveis, e compadecidas,
que saberão estimar em seu justo valor as minhas fadigas, e os meus
soffrimentos. Para estas pois é que eu escrevo, na certeza de que, se não
lhes merecer os seus louvores, conseguirei ao menos a sua compaixão, e o
seu affecto, que é toda a minha ambição e o unico objecto d'esta pequena
descripção.--_Vicente Lunardi._»


Seduzido pelas ovações, que alguns poetas e rapazes lhe fizeram no Terreiro
do Paço, cuidou o aeronauta que lhe seria permittido renovar a ascensão, e
auferir d'ahi recursos com que voltar a Inglaterra onde tinha o seu emprego
na embaixada napolitana. Embalado pelas poesias de Bocage e Macedo, lhe
sorria a esperança, quando na madrugada do dia 29 de agosto, cinco dias
depois da primeira subida, o acordaram para lhe noticiarem que o seu
barracão na praça do Commercio se derruia esphacelado pelos machados de
quarenta carpinteiros, á ordem do corregedor.

Aqui tem o leitor, como coronal d'este padrão de vergonha patria, o officio
do intendente Manique ao corregedor que executou brutalmente a demolição da
barraca em que Lunardi gastára os seus poucos recursos:


«Vm.^ce logo mandará chamar o mestre carpinteiro Joaquim Pereira, que o foi
da Praça construida para a machina aereostatica de ordem do capitão Vicente
Leonardi, para dar logo principio a demoli-la e deita-la abaixo, não lhe
admittindo subterfugio algum a este fim, e devendo amanhan sesta feira dar
principio á demolição para o que lhe mandará embargar os carpinteiros de
obra branca e de machado, que lhe forem necessarios: igualmente mandará
vm.^ce notificar o dito capitão Vicente Leonardi para este mesmo fim. Deus
guarde a vm.^ce Lisboa 28 de agosto de 1794.==_Diogo Ign.^eo de Pina
Manique.==Snr. Luiz Dias Pereira[9]._»


Os frades e a estupidez tinham vencido.

Não sei se lhe abriram subscripção ao pobre italiano para o livrarem de
Portugal e das presas do Manique. O que sei é que os poucos, que o
applaudiram, apenas podiam dar-lhe... versos.

E, depois, a gente irrita-se quando os estrangeiros nos não enfileiram na
vanguarda da civilisação!...

    [8] Que grammatica a d'este afamado intendente geral!

    [9] Estes documentos autographos podem vêr-se na livraria do insigne
    bibliophilo, o snr. Innocencio Francisco da Silva, que me fez a honra
    de os aceitar.



RANCHO DA CARQUEJA


São justas as reflexões do estudioso antiquario o snr. Joaquim Martins de
Carvalho, redactor do _Conimbricense_.

Agora direi os argumentos, bem que menos valiosos, em que eu assentava o
meu erro.

Em 1805 divulgou-se em Vizeu um poema ou pasquim, injuriando os
magistrados. Houve devassa e um dos pronunciados foi o doutor Ferro, que
viveu no Porto, e aqui falleceu ha vinte annos, deixando, como prova do seu
mal empregado engenho, um notavel poema que diz respeito á invasão
franceza.

Em um volume de manuscriptos, tenho a celebrada satyra do Ferro, precedida
da seguinte nota: _Este libello é dedicado á memoria do Estopa e Carqueja,
dous heroes que tudo levavam a pau e espada em Vizeu, ahi pelos annos de
mil setecentos e tantos, e de um d'esses valentões tomaram o cognome os
estudantes de Coimbra chamados o Rancho do Carqueja._

Isto não obstante, a correcção do snr. Martins de Carvalho deve antepor-se,
visto que a sentença condemnatoria diz: «_Rancho que denominaram DA
Carqueja, originando este nome de haverem queimado com ella uma porta,
etc._»



BOM HUMOR

(AO NOTICIARISTA DA _ACTUALIDADE_)


Chamar a D. João III _principe perfeito_ podia ser lapso, sem ser
ignorancia; mas nem sequer foi lapso: foi proposito.

Vá o noticiarista ao escriptorio da typographia, onde as _Noites de
insomnia_ são impressas. Peça ao snr. Antonio José da Silva Teixeira,
honrado proprietario da typographia, que lhe mostre a primeira prova do
artigo intitulado D. JOÃO III, e encontrará _piedoso_, como estava no
original, emendado para _principe perfeito_, como está no livro. Se quer
saber por que motivo corrigi o que havia escripto em harmonia com a
historia official, respondo-lhe que está no meu arbitrio alterar os
cognomes que não derivam de razão justificada; e á luz da historia, tanto
monta para mim a _perfeição_ de D. João II, o algoz, como a _piedade_ de D.
João III, o fanatico. Uns historiadores chamaram ao filho de D. Manoel o
_Pai da patria_; outros o _Filho da igreja_; outros, authorisados por Paulo
III, o _Zelador da fé_. Eu chamei-lhe o _principe perfeito_, e cancellei na
prova o titulo de _piedoso_, que lhe dera de camaradagem com o snr. Viale,
por não querer manchar um adjectivo digno de S. Francisco Xavier ou de S.
João de Deus.

Além de quê: está rigosamente estatuido que sejam dogmas historicos a
_perfeição_ e a _piedade_ do D. João II e D. João III? Poderemos, com
juizo, associar-lhes taes epithetos, fóra de ironia? Ora assim como uns
historiadores cognominaram D. João III com variados titulos, dá-me o
noticiarista licença que eu chame _perfeito_ ao principe, e _sabio_ a sua
senhoria? A patarata é a mesma.

N'isto de acolchetar antonomasias, tanto aos reis como aos subditos, quero
e peço que haja liberdade plena. Por exemplo: o redactor da noticia da
_Actualidade_, conhecido entre os seus parceiros por um epitheto qualquer,
está sujeito a que a posteridade lh'o altere ou inverta. Eu, por em quanto,
circumscrevo os limites da minha phantasia a chamar-lhe tolo.



DECLARAÇÃO


Apesar de superfluo o meu testemunho, depois da asseveração do snr. Camillo
Castello Branco, declaro que é verdade ter o mesmo snr. escripto no
original: D. JOÃO III, _o piedoso_, e na prova que lhe enviei, e que
conservo em meu poder, ter o author emendado: D. JOÃO III, o _principe
perfeito_.

Não obstante attentar na emenda feita, mandei, como devia, que o typographo
a observasse.

                                                _A. J. da Silva Teixeira._


FIM DO 2.º NUMERO





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (de 12)" ***

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