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Title: Panegyrico de Luiz de Camões
Author: Coelho, José Maria Latino, 1825-1891
Language: Portuguese
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PANEGYRICO

DE

LUIZ DE CAMÕES



PANEGYRICO

DE

LUIZ DE CAMÕES


LIDO NA SESSÃO SOLEMNE

DA

ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA

Em 9 de junho de 1880

PELO

SECRETARIO GERAL

J. M. LATINO COELHO


LISBOA
TYPOGRAPHIA DA ACADEMIA
1880



Senhores.--Quando o viajante, ao cursar as ermas e dilatadas planicies,
onde entre o Eufrates e o Tigre, em seculos remotos floreceram as grandes e
conquistadoras monarchias asiaticas, collossos na amplitude e no poder,
revoca á mente scismadora as magnificas memorias d'aquelles soberbissimos
imperios, encontra em redor de si a aridez e a solidão. Mas as ruinas
monumentaes dos antigos e majestosos edificios nos logares hoje desertos,
onde outr'ora pompearam as cidades babylonias e assyrias, lhe estão ainda
ensinando com a mudez eloquente das ruinas venerandas, a imagem da grandeza
que passou.

Tudo é pequeno e transitorio n'este mundo, excepto a humanidade, a cadêa
ininterrupta, por onde as successivas gerações umas ás outras vão
transmittindo, accrescentado, o thesouro da commum civilisação.

Nascem, crescem, avigoram-se, florecem, decaem, e sepultam-se para sempre
no tumulo da historia as nações e os heroes, por mais procéras e giganteas,
que o destino lhes talhasse a estatura e as proporções.

Quando, após os esplendidos triumphos,--que em sua comparação, bem poderam
envergonhar de pequenas e obscuras as celebradas conquistas e expedições
dos povos dominadores na antiguidade,--volvemos os olhos para o que fomos,
e caimos na contemplação do que de tanto poderio hoje nos resta, o espirito
lastimado pela ingrata confrontação se entristece e se lamenta, de que
passasse tão veloz a edade heroica de Portugal. Como ao viandante solitario
nos plainos da Mesopotamia, parece-nos que sómente em volta se nos deparam
saudosas e melancolicas as memorias do glorioso imperio portuguez.

Onde está Ceuta, em cujas muralhas o rei cavalleiroso e os seus esforçados
paladinos, renovando com melhor fortuna e discrição o antigo duello entre a
christandade e o islamismo, hastearam seguramente o estandarte portuguez?
Onde está Arzilla, e Tanger, e Azamor, e Mazagão? Dentro d'aquelles muros,
cujas pedras são ainda hoje insignes testemunhos do heroico valor de
Portugal, resôa apenas o seu nome, envolto na penumbra da gloria e do
terror. Onde está Malaca, em cujos padrões ainda vivem as façanhas de
Affonso de Albuquerque? Onde Cochim, onde Meliapor, onde Bombaim? Onde este
vasto littoral, em cujas abras e enseadas as naus e os galeões de Portugal,
ao som das horrisonas bombardas dictavam a lei ás temerosas gentilidades?
Onde está a India, que Portugal, a custo de façanhas inauditas, navaes e
bellicosas, abriu ao tracto e ao commercio das nações occidentaes? Onde
está a India? Oh! não repitamos a lastimosa interrogação, que nos pode
ouvir, animada por um momento de redivivo e heroico patriotismo, aquella
ossada gloriosa do immortal navegador, que hontem fomos depositar no
grandioso monumento, consagrado aos nossos descobrimentos pelo rei
emprehendedor. Onde estão os archipelagos, a que nós demos nome e senhorio?
Onde estão esses mares procellosos e afastados, onde as quinas passeavam
triumphantes, fazendo do Oriente mais remoto o feudo de Portugal? Aonde?
aonde? Pisam extranhos mais felizes, não mais bravos, as terras que para a
Europa soubemos conquistar. De todo o immenso imperio portuguez já não ha a
circundar-nos mais do que melancolicas ruinas. Mas n'esta solidão ainda ha
para confortar-nos e engrandecer-nos uma voz eloquentissima, que resume nos
seus magicos accentos a altivez e a gloria de Portugal.

Já não tendes, portuguezes, a India, nem Ormuz, nem Malaca, nem Ceylão. Nem
ao menos vos deixaram como padrão aquelle cabo Tormentorio, cujas borrascas
temerosas vos não entibiaram, que não fosseis adiante ensinar á indolente
christandade os caminhos tenebrosos do Oceano. Não são vossos os dominios
materiaes. Embora. N'aquelles mesmos territorios, onde agora florecem e
dominam extrangeiros moradores, lá está sempre o vosso nome. É d'elles o
que é da terra, mas é vosso unicamente o que se não pode aniquilar, porque
é incorporeo e immortal. É d'elles a riqueza, o poder, o senhorio. Mas será
sempre vossa a gloria. Partindo aventurosos e resolutos desde os ultimos
confins da Europa occidental, cursastes os oceanos ainda virginaes, onde
tomastes o ronco estridor das tempestades pelo hymno triumphal das
esplendidas victorias. Abristes as portas do Oceano, e dissestes ás demais
nações da Europa: «Despertae da somnolencia medieva, e entrae após os meus
navegadores.» A velha christandade phantasiava o mundo nos fabulados
portulanos. E vós, estendendo aos vossos pés a terra inteira, como se fôra
ainda pequeno mappa, estudastes a geographia, sulcando as linhas nas aguas
com as vossas quilhas venturosas, entalhando-as na terra com o ferro
vencedor.

Isto diz, mas em carmes inspirados e em divinas modulações, o immortal
cantor dos feitos patrios. É a voz da gloria, que resôa perpetuamente,
vibrada pela tuba do maximo poeta e do mais ardente e devotado portuguez.
São os _Lusiadas_. É o Camões.

Quando pronuncía um portuguez o nome do Camões, a admiração e o orgulho de
contar como seu natural o grande epico, é o maximo elogio. E n'esta
occasião, em que festivamente celebra Portugal ao seu poeta, quando o povo,
estreitando os vinculos da patria em volta do seu mais illustre e
benemerito cantor, está pagando em publica e solemne apotheose, a homenagem
do seu culto ao altissimo engenho portuguez, parecera temeridade, quasi
diriamos sacrilegio, o buscar encarecer a gloria do Camões. Seria como
accender pallidas lucernas para que appareça fulgindo mais esplendido o sol
meridiano. E, senhores, se levanto n'este momento a minha voz, perdida e
abafada no côro unisono das acclamações universaes, é porque assim o
ordenou a Academia, mais zelosa na veneração ao épico immortal do que feliz
na eleição do orador.

Não espereis da minha voz um panegyrico, porque só farei em breves termos a
commemoração de um grande nome. No meio do fervoroso enthusiasmo, com que a
cidade de Lisboa, e as demais povoações de Portugal, solvem após tres
seculos na escassa e tardia moeda que lhe é dado dispender, o preço das
altiloquas estrophes, quando os arcos triumphaes, os prestitos solemnes, os
hymnos melodiosos, os bellicos tropheos, as bandeiras multicores, as
deslumbrantes illuminações annunciam publicamente que revive, como o
symbolo da patria, o nome do seu cantor, a nação, como que expiando
nobremente a culposa indifferença das passadas gerações, entalha n'estes
honrosos monumentos o nome de quem teceu de luz a heroica narração dos
feitos patrios. A Academia, associando-se a esta liturgia nacional em honra
do poeta, poz-me na mão o cinzel, e prescreveu-me que n'um recanto d'este
marmore, onde Portugal insculpe agora a sua e a gloria do cantor, eu deixe
tambem gravado o nome do Camões.

Fazer o elogio do Camões é tecer o panegyrico da patria. E é sempre grato a
um portuguez o encomiar a Portugal.

Nós temos, os portuguezes, um singular e raro privilegio. Somos nós entre
os modernos povos europeus o que tem um poema verdadeiramente nacional, um
poema, cujos cantos são as façanhas da nação enaltecidas pela mais florida
e opulenta phantasia, modeladas nas fórmas da epopéa. Celebram outras
gentes a fecundos e altissimos engenhos, cujos reflexos luminosos,
transcendendo os ambitos da patria, estão doirando e ennobrecendo a
litteratura universal. Mas nenhum povo tem como o portuguez um d'estes
felicissimos espiritos, que são ao mesmo passo o genio da nação, e o genio
da poesia, e em cujas obras respire ao mesmo tempo a patria e a humanidade,
a gloria privativa de um só povo, e o destino commum de uma inteira
civilisação. O Dante é immortal, mas o seu poema é inspirado pelo
mysticismo e a vingança. Immortal é o Tasso, mas a sua epopéa é a novella
cavalleirosa, que se enreda e desenlaça em redor dos sacros muros da triste
Jerusalem. Immortal é Shakespeare, mas a sua musa, que penetra e descobre
as mais occultas fibras do humano coração, é mais cosmopolita do que fadada
a conglobar a gloria dos bretões. Immortal é Cervantes, mas a figura entre
sublime e comica do seu heroe, é mais do que o symbolo da Hespanha, é a
personificação da humanidade, como abstrusa e paradoxal composição de
loucura e heroicidade. Immortal é o Camões, mas é immortal para os seus,
immortal para os extranhos. Para os seus, porque em versos admiraveis
divulgou as empresas, em que foram protagonistas. Immortal para os
extranhos, porque os feitos, que reconta, são o berço onde incubou fecunda
a novissima civilisação.

Manda a Europa, ainda então adormecida para as longas e trabalhosas
expedições, manda a Portugal que marche na vanguarda. Eram tenebrosos,
impervios, procellosos os mares, onde nenhum baixel se tinha aventurado.
Entrevia-se o Oriente como a quasi fabulosa região, d'onde vinham
magnificadas pela creadora phantasia os encantos e as maravilhas. Era a
terra das ardentes especiarias e das drogas perfumadas, a fecunda matriz
dos diamantes e das perolas. Os seus thesouros aguçavam o desejo ás gentes
occidentaes. Era como o paraiso da cubiça para esta velha Europa, já
cansada da sua gleba mais esteril que os ridentes vergeis orientaes. Todos
anhelavam porque se descobrissem faceis os caminhos, para que a todos fosse
commoda a peregrinação dos tractos lucrativos e das fructuosas mercancias.
Pois vá adiante Portugal e explore as sendas indomesticas d'aquella terra
de profana promissão. Vá adiante circumnavegando briosa e perseverante as
inhospitas margens africanas. Engolfe-se nos mares tempestuosos e descubra
as ilhas viridentes, onde as arvores por centenares de seculos, na perpetua
solidão das suas florestas, haviam ramalhado sem temer a hacha assoladora
do colono, onde os passarinhos, dominando sem rival, cantavam indolentes os
amores, pendurando nas vergonteas os seus ninhos, sem recear que a mão do
homem as viesse descobrir e profanar. Entrem os portuguezes, esta guarda
avançada, estes heroicos batedores da nova civilisação, entrem na sombria,
ignota e espessa escuridão das terras e das costas africanas, entrem
resolutos com as suas proas mal seguras nas bahias, nas abras, nas aguadas.
Vão nas suas aventurosas singraduras administrando pelo nome portuguez o
baptismo da civilisação ás selvaticas paragens, que descobrem, e
assignalando com padrões a possessão e o dominio. Pairem com os primeiros e
mais felizes navegadores nas aguas revoltosas do cabo Tormentorio, onde a
Africa, semelhante ao ferro agudo e penetrante de uma azagaia immensa, está
ferindo inexoravel o coração do Oceano. Sejam infatigaveis na aventura,
intrepidos no perigo, inabalaveis na ousadia, heroicos nas provações,
indomitos nos contrastes da fortuna. Avancem de cada vez mais um estadio na
róta, que traçaram. Abram nos mares desconhecidos a propria estrada, que
vão descortinando e percorrendo. Operem maravilhas de sciencia
cosmographica e prodigios de estoica paciência e milagres de valor e
galhardia. Deixem atraz o cabo temeroso e em fragillimos baixeis vão
singrando aventureiros o Oceano Indico. Aportem finalmente á celebrada
terra oriental, e a principio hospedes e forasteiros, venham a ser em breve
termo os altivos dominadores d'aquelles florentissimos imperios, agora
avassallados e sujeitos ao jugo portuguez. D'ali bracejem as extensas
vergonteas do descobrimento e da conquista até ás mais apartadas e
mysteriosas regiões. Entre a Europa escudada com o nome de Portugal na
China e no Japão. Vá lustrando nos portuguezes galeões os mais remotos
archipelagos. Deixe memorada na gloria dos seus feitos e nos nomes
portuguezes dos logares a passagem triumphal d'este povo pequeno na
extensão, gigante nos seus brios. Partindo do ultimo Occidente, de exiguo e
infantil feito gigante, confranja nos seus braços de ferro o globo inteiro.
Dissipe com o seu arrojo incontrastavel as neblinas, que escondiam o
Oceano, e rompa animoso e irresistivel o veo mysterioso, que encobria a
face da terra. Aponte ali aos que na sua assombrosa variedade a
desconheciam, as divisões e as fronteiras das terras e das aguas, como um
amoravel preceptor, arrancando o envoltorio, que tinha recatado um globo
geographico, ensina ao alumno pueril e curioso, as linhas que delimitam os
continentes e os mares. Diga finalmente á Europa entre assombrada e
invejosa: «A terra, que tu sonhaste, era a terra fabulosa, a terra debuxada
nas descripções phantasiosas dos antigos e nos mappas mentirosos da edade
média. A terra, que eu te dou, é a terra qual outr'ora saíu das mãos da
natureza para o homem primitivo, qual sae agora das minhas mãos para o
homem civilisado. É a terra, de que os antigos apenas conheceram uma nesga,
de que Alexandre, nas suas tão famigeradas expedições, soube apenas tanto
como a mais tarda e preguiçosa das minhas galés, talvez menos que o mais
frouxo dos meus aventureiros. A terra, que vós conheceis, é a terra de
Ptolomeu e de Strabão, a terra dos que não a viram, mas sonharam. Esta, que
vos dou, é a terra de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de Fernão de
Magalhães, de João da Nova, a terra, de que para vós tomamos posse, como os
primeiros que em todas as direcções a soubemos percorrer e navegar.»

A Europa, ouviu, estremeceu, levantou-se e invejou. As páreas copiosas dos
nossos descobrimentos, os despojos opimos das nossas expedições, os fructos
sasonados das nossas conquistas, tudo lhe deitámos generosos no regaço.
Para nós guardámos o que se não pode alienar: as glorias e os laureis.
Démos-lhe tudo o que havia de terrenal e de mundano. Recatámos como
thesouro inestimavel o que as nossas empresas memoraveis tiveram de
espiritual, quasi divino. Á semelhança do honrado e brioso cavalleiro, que,
com mais cicatrizes que veneras, no outono da sua existencia gloriosa,
pendurando na panoplia a espada reluzente e o murrião abolado nas requestas
sanguinosas, deixa que tudo lhe arrebate a má fortuna, mas não cede ou
vende a extranhos as insignias memoraveis, esculpidas como brazão e stemma
gentilicio na face do seu broquel.

Quando as glorias portuguezas são chegadas á brilhante culminação, quando
principia a resfriar o ardor primevo das empresas memoraveis, quando é
necessario colher na phase momentanea do seu maximo esplendor a heroicidade
portugueza, e como que photographal-a, ainda viva, recente, luminosa,
apparece o Camões na terra de Portugal.

O Camões é ao mesmo tempo a eloquente voz da posteridade, e a grandiosa
resurreição dos tempos heroicos de Portugal. A sua penetrante visão
intellectual descobre com a perfeição dos seus contornos immortaes as
figuras, sobre que se concentra mais viva e mais brilhante a purissima luz
da vida nacional. A sua previdencia admiravel adivinha que veem perto os
tempos calamitosos, em que a patria para morrer como Cesar com a grave e
severa alteza dos heroes, precisará de cingir-se na purpura da sua antiga
majestade, e compor-se e adereçar-se nas soberanas vestiduras da sua
gloria. Virão épocas escassas, em que extranhos arrogantes hão de buscar
descingir-lhe o gladio refulgente, desvestir-lhe a loriga impenetravel, e
murchar-lhe na fronte os loiros immortaes. Tudo poderão emprehender. Mas o
Camões, o soldado brioso das guerras africanas e indiaticas, o portuguez,
que amou a patria acima da mulher, e a mulher acima da fortuna, o poeta que
emulou nos antigos a belleza e a correcção, aos modernos superou no
sentimento, ali está colligindo e ordenando nos versos varonis de uma
epopéa nacional, as memorias da terra em que nasceu.

Será na carta da Asia a India portugueza um ponto apenas, mas um ponto como
estes que, em noites de serena atmosphera e de melancolica e tepida
escuridade, estão brilhantemente scintillando, e esculpindo no ceo a
distancias infinitas o seu vivo e eterno resplendor.

Perdemos em grande parte a dominação e o imperio n'aquelles immensos
territorios, onde outr'ora fluctuara, symbolo de empresas temerarias e
felicissimas victorias, a bandeira de Portugal. Mas ninguem nos pôde nunca
pleitear a gloria de as ter primeiro descoberto e avassallado. Que importa
ao nome portuguez, que d'esse vasto e opulento senhorio não restem quasi já
senão memorias?

Cada povo tem na sequencia historica a sua funcção, no grande e vario drama
da civilisação o seu papel. Uns em cada momento na evolução da humanidade
são protagonistas e heroes, a outros cahem no complemento e execução da
obra commum, officios mais modestos, mas não menos necessarias
attribuições. É o principio harmonico e fecundo da divisão do trabalho
applicado á cooperação mutua das nações, no empenho de fundir e aperfeiçoar
a civilisação no decurso das edades. E d'este modo a noção da patria
individual se esconde na penumbra da humanidade.

A nossa missão não era a de grangear para nós o mundo, mas sim de o
sujeitar e descobrir. Fomos com a espada os missionarios da velha Europa,
enviados a correr os primeiros lances, e affrontar os perigos, a que
ninguem ousara então metter o peito resoluto. A gloria de descobrir é maior
e mais duravel que a de fruir e dominar. A grandeza épica dos nossos feitos
immortaes, mais se aprimora e abrilhanta n'esta abnegação e desapego, com
que dos fructos das empresas sobrehumanas deixámos aos extranhos o
proveito, para nós tomámos a gloria por salario. Dos grandes e magnificos
descobrimentos, com que se accrescenta e se melhora a civilisação
intellectual e a humana condição, não ficou enfeudada a propriedade
exclusiva na geração e na familia dos gloriosos inventores. Kepler
interrogando os ceos e os planetas, rebeldes e indomaveis até ali,
clausurando-os no encerro perpetuo das suas orbitas ellipticas, vinculou o
seu formoso descobrimento no morgado commum da humanidade. Os segredos, que
o espirito de Newton soube roubar á mysteriosa natureza, doou-os generoso á
sciencia cosmopolita e á civilisação universal. O telegrapho electrico
transmitte o pensamento, sem que esteja agora recatado como cioso monopolio
na familia ou na raça dos seus engenhosos descobridores. A locomotiva
passeia sibilando pelo mundo, sem que antes do seu curso impetuoso esteja
esperando a venia e o signal de quem primeiro a ideou e construiu. Assim
tambem da terra que lustrámos nas suas mais afastadas e escondidas regiões.
A gloria de a revelar á Europa cubiçosa, vale mais que a vaidosa satisfação
de chamar nosso o que primeiro que ninguem soubemos procurar e descobrir.

Das nossas aventurosas navegações e das nossas empresas bellicosas nasceu
em grande parte o movimento operado na Europa desde o seculo XV. Tornámos
possivel a sciencia moderna, que era truncada e imperfeita antes que
ensinassemos as gentes européas a interrogar a natureza, e a descortinar as
maravilhas e os segredos de inhospitas paragens, de mares desconhecidos, de
um firmamento novo, onde brilham, escondidas aos antigos, novas e extranhas
constellações. Revelámos a fórma do nosso globo, a configuração dos
continentes, a continua successão do Oceano, a mudança e a condição dos
varios climas. Patenteámos as riquezas innumeraveis da natureza organica,
nos seus typos disseminados pela immensa vastidão das terras e dos mares.
Atámos novamente os vinculos já rotos e perdidos entre a nossa civilisação
e a nossa historia, e a historia e as civilisacões dos povos orientaes. Com
as nossas maravilhosas aventuras fizemos uma patria gloriosa e impozemol-a
á admiração de todo o mundo, mas acabámos empresa ainda maior, porque
fizemos tambem a nova humanidade, congraçando e tornando umas das outras
conhecidas as raças e as familias, que viviam pelos ambitos da terra sem
liame e sem commercio fraternal.

D'esta prodigiosa Renascença, em que a moderna christandade tornou a viver
no espirito e no genio da antiguidade, fomos nós os mais activos e fecundos
cooperadores. A outros coube a gloria de comprehender primeiro e divulgar
as formosas manifestações da intelligencia e da imaginação entre os
antigos; de recompor as estatuas, onde o ideal quasi se confundia com o
divino, de reconstruir os sumptuosos monumentos, de evocar das ruinas o
mundo classico, e ao bafejo da paciente erudição fazel-o resurgir na
apparencia da sua eterna belleza e perfeição. Mas em quanto os outros
recompunham a antiguidade, nós mais audazes e felizes do que elles,
alcançavamos completal-a e corrigil-a, penetrar onde ella não chegou, e
tornar mil vezes mais intensa a sua luz, enfeixando com ella a que em
remotas e sobrehumanas excursões se reflectiu na lamina das espadas
gloriosas, e nas colubrinas e bombardas dos nossos galeões.

Fizeram elles o renascimento do passado, dispertando-o do seu tumulo. Nós
fomos acordar o futuro das nações no berço onde nasce a aurora. Fizeram
elles resurgir as tradições da Grecia e Roma. Nós fizemos nascer e
avigorar-se o espirito da humanidade.

Os outros fizeram a sciencia da antiguidade, acurvados nos pulverulentos
manuscriptos e nas reliquias já truncadas da arte, da sciencia e da poesia.
Nós fizemos a doutrina, que se accumula navegando e combatendo, a perigosa
erudição, que se compra com sangue derramado, e enlaçámos aos loiros da
sciencia as palmas triumphaes.

Para entalhar no bronze da epopéa os feitos que resumem a vida nacional,
nasceu Camões.

Quem era? D'onde veiu? Onde nasceu? Onde passou a puericia? Onde aprendeu
na adolescencia os dois amores, que lhe exalçaram o espirito, cravando-lhe
de espinhos o coração,--o amor da patria, que elle idolatrou mais que
ninguem,--o amor da mulher, que mais do que nenhum poeta lyrico elle soube
divinisar?

A vida do Camões é em quasi todos os seus successos uma lenda, ou um
mysterio. Do poeta conhecemos perfeitamente o aspecto, em que se volta para
nós e para a patria. Ignoramos quasi inteiramente o que se occulta nas
escuras profundezas do coração e da existencia individual. É como estes
resplendentes corpos celestes, de quem apenas rastreamos a luz e o
esplendor, sem ao certo comprehender o que está por baixo da luminosa
superficie. Contemplamos no Camões reflectida com toda a sua clara
intensidade a vida nacional. Acostumámo-nos a vêr e admirar no seu espirito
a imagem heroica do povo portuguez. Os loiros, que lhe exornam a fronte,
são tambem os laureis que enramaram em seus triumphos a patria, quando era
gloriosa e invejada. A sua alma é a alma da nação. No seu poema não respira
apenas o estro de um cantor, palpita o coração de Portugal. É preciso que
haja o que quer que seja de vago, impessoal e indeciso n'esta figura
grandiosa, que tem á cinta o proprio gladio da nação, e desfere no seu
plectro, não os sons da sua propria inspiração, mas os hymnos collectivos
entoados por todo um povo á sua grandeza e á sua gloria. O Camões não é
apenas um poeta, é um côro triumphal, em que as vozes de muitas gerações,
na propria saudação dos seus heroicos feitos, se conglobam nos accentos de
uma voz predestinada.

São mal delineados, nebulosos, os contornos biographicos do Camões. Não se
sabe ao certo quando nasceu, porque n'estas imagens e personificações da
vida nacional, é bem que nos possamos illudir, suppondo que andaram largos
tempos voejando antes que começassem a luzir. Ignora-se a terra em que
nasceu. Em Lisboa? Em Coimbra? Em Santarem? Ninguem o pode á justa
discriminar. E é bem que assim acontecesse, para que nenhuma povoação se
possa gloriar, de que o poeta lhe pertence a melhor titulo do que a toda a
patria, que illustrou. Perguntam-nos onde o Camões viu a primeira luz?
Respondemos e basta: Em Portugal. Que nos importa discernir se era vulgar
ou generoso o sangue do poeta? Os monarchas da intelligencia não carecem de
tronco e dynastia. Não tem pelo espirito nem antecessores nem descendentes.
Não releva o inquirirmos d'onde veem, já que sabemos aonde vão. Nascem da
humanidade e vão para a gloria. Nascem do pó terreno e mundanal e caminham
luminosos á divina immortalidade. Sabemos do Camões que foi soldado
valentissimo entre os mais esforçados e briosos; sabemos que foi a mais
subida intelligencia em nossa terra, o primeiro épico moderno. Sabemos que
alcançou conciliar em harmonica união as graças e formosuras da mais solta
e inventiva imaginação, com as doutrinas mais severas da sciencia no seu
tempo. Sabemos que em Africa militou, para que seguisse em tudo as mesmas
sendas, por onde a gloria portugueza transitara. Sabemos que invejas, e
malquerenças, e damnadas tenções, como elle diz, lhe mesclaram na vida aos
jubilos e aos extasis da nativa inspiração, as tristezas e os opprobrios da
existencia amargurada. Sabemos que amou extremosamente. E como poderia esta
alma de eleição clausurar-se na solidão do sentimento, sem repartir o estro
e a paixão entre a patria e a mulher? Sabemos que padeceu asperos desterros
e carceres de affronta e provação. E como poderia esta luz intensissima do
engenho ferir, sem os offender e offuscar, os olhos dos seus ingratos
contemporaneos, que não buscassem afrouxal-a e desluzil-a, já que não a
podiam apagar? Sabemos que na India provou a forte espada nos recontros e a
estoica impavidez nos lances das armadas e nos perigos das tormentas.
Sabemos que a pobresa foi a socia inseparavel do seu viver aventureiro. E
que genio já houve em Portugal antigamente, que não tivesse a penuria por
contrapeso aos thesouros immortaes da sua gloria? Sabemos que na China
exerceu modesto officio, e que a fortuna ao Camões lhe destinou que para
não perecer á fome, rebaixasse o divino talento de poeta ao prosaico e rude
officio de exactor. Sabemos que a patria o desamparou nos annos
derradeiros, atirando-lhe á mão, quasi estendida á caridade, a esmola do
poder. Sabemos que morreu, quando a patria descaía no sepulchro, porque
elle era a voz da patria, o ultimo suspiro da nação agonisante, e era bem
que se extinguisse, quando Portugal jazia amortalhado no manto de
cavalleiro, tendo em redor do seu esquife as figuras sinistras e irónicas
dos seus desapiedados conquistadores. Sabemos que os seus ossos jazeram até
hontem esquecidos n'um desvão do convento de Sant'Anna, até hontem, em que
por nobre e patriotica impulsão da nossa Academia, lhe
pagámos--inanimado--na solemne apotheose, o que--vivo--os seus
contemporaneos lhe negaram em pão e em conforto. Sabemos que deixou o seu
nome intimamente vinculado ao nome e á propria existencia da nação. Sabemos
que os _Lusiadas_ os entalhou o brio portuguez com a espada nas mais
distantes e ingratas regiões, e os imprimiu com o rasto das suas quilhas
temerarias na face do Oceano e no dorso das tempestades, e o Camões os
trasladou a versos immortaes, diffundindo no mundo pelo genio o que
Portugal já tinha divulgado pelo immenso pregão do seu valor.

O Camões é a patria coroada de poeticos laureis. Os _Lusiadas_ são a
estatua da nação, cinzelada pelo escopro do maior engenho portuguez.
Glorifiquemos, pois, cada vez mais a epopéa e o cantor. Veneremos com elle
o nosso passado glorioso. Mas como estes destemidos argonautas, que elle
celebrou, os quaes se não ficavam inertes e parados após as mais felizes
singraduras, nem cifravam a sua honra em descobrir apenas o cabo de Boa
Esperança, volvamos o sentimento nacional aos tempos que já foram, e o
espirito moderno ás eras do porvir: ao passado, para que d'elle possamos
aprender o amor da patria, a tenaz perseverança nas empresas mais
difficeis; ao futuro, para que honrando o poeta nas suas mais largas e
videntes aspirações, possamos completar as nossas glorias pelo caminho que
a fortuna nos consente e nos deixou. Fizemos a epopéa sublime, traduzida
pelo Camões na divina linguagem do seu estro. Façamos hoje a epopéa mais
modesta da liberdade, da sciencia e do trabalho.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Panegyrico de Luiz de Camões" ***

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