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Title: A viagem da Índia - poemeto em dois cantos Author: Costa, José Fernandes, 1848-1920 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A viagem da Índia - poemeto em dois cantos" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) A VIAGEM DA INDIA _Poemeto em dois cantos_ por FERNANDES COSTA A VIAGEM DA INDIA JUSTIFICAÇÃO DA TIRAGEM 3 exemplares em papel de linho branco nacional 1:000 em papel de algodão de 1.^a qualidade QUARTO CENTENARIO DO DESCOBRIMENTO DA INDIA CONTRIBUIÇÕES DA SOCIEDADE DE GEOGRAPHIA DE LISBOA A VIAGEM DA INDIA _Poemeto em dois cantos_ POR FERNANDES COSTA LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1896 A Luciano Cordeiro O INICIADOR E INCANÇAVEL PROPUGNADOR DO MODERNO MOVIMENTO GEOGRAPHICO PORTUGUEZ CANTO PRIMEIRO A IDA CANTO PRIMEIRO A IDA I Onde vae, Tejo em fóra, a lusa armada?.. Naus altivas, possantes caravelas! Vae em busca da India enfeitiçada, Sobre as ondas azues, pandas as vélas. II E quem é, que essa gente assim conduz A cumprir o prodigio nunca visto? Accesa levam n'alma a viva luz Da fé, e nos pendões a cruz de Christo! III Mas já vão longe as quatro embarcações... Parecem quatro pombas a voar, Em demanda de ignotas vastidões, Onde vão novo ninho edificar. IV Romeiros da romagem longa e vaga, Que nova Terra Santa, ao longe, alveja? Deus vos leve, romeiros, Deus vos traga, E a vossa obra, eterna e benta seja! V Mas nas ondas o sol vae descaíndo, E quando o manto placido e sidereo Da noite, o céu cobriu e o mar infindo... Perdeu-se a lusa armada no mysterio. VI Nenhuns olhos humanos a seguiam; Espantadas, porém, da audaz empreza, No céu alto, as estrellas repetiam: «Vae ali a fortuna portugueza!» VII E aquella, que apontando sempre o norte, Sobre a cupula movel, firme está, Dizia: «Raça ousada! raça forte! Dentro em pouco, outra irmã vos guiará!» VIII E, dentro em pouco, respondendo ao voto Da irmã polar... lá vem surgindo a chamma, Sobre as ondas ignotas, astro ignoto, A divina _Akher-Nahr_, fanal do Gama! IX Porém, agora, que mysterio summo!.. Já sobre o _Carro_ se condensa um véu; O mar o engole, quando ao alto, a prumo, Anda o _Centauro_ percorrendo o céu! X E, emquanto a _Hydra_ vem subindo, enorme, Não baixa já, mas demandando a altura, Longe o _Dragão_, retorso e desconforme, Busca do mar a fria sepultura. XI Depois, na vaga, a _Cassiopêa_ tomba, E nascem estrellas, que ninguem conhece! Lá vem do Sul, a remontar, a _Pomba_, Quando ao norte, _Cepheu_ desapparece. XII Da armada a gente, a vista leva immersa, Com pasmo natural, que não surprende, N'aquella nova cúpula diversa, Que sobre mar e terra a noite extende. XIII Ergue-se, agora, da longinqua esphera, --Ó _Cruz_ maravilhosa e deslumbrante!-- O symbolo christão, que n'alma impera, Não vista, mas cantada pelo Dante! XIV E ao passo que ante os olhos vão surgindo Os segredos, que guarda a immensidão, Dir-se-ía, que da treva está saíndo, Á voz de Deus, segunda creação! XV E por todo o estrellado firmamento, De cada estrella, esta pergunta cáe: «Quem viu tal aventura, tal portento? D'onde vem esta gente, e aonde vae?» XVI No emtanto, os rudes peitos temerarios, Dentro das naves, perguntando vão: «Astros novos, propicios ou contrarios, Estes astros do céu, que estrellas são?» XVII Onde vae, mar em fóra, a lusa armada?.. Vae em busca do eterno vellocino. Olhos postos na cruz e a mão na espada, Leva em si Portugal e o seu destino. XVIII O destino de um povo! Assim tranquillo, Sob a luz das estrellas scintillando, De Moisés o destino andou boiando, N'uma cesta de vime, sobre o Nilo! XIX Na treva, ruge o mar sinistramente; Nas almas pésa a noite... Muito embora!.. Avançam para o fulgido Nascente, Hão de ver, no seu throno, a rosea Aurora! XX Vae ali cada um cumprir seu fado, E Deus fará, que seja bem cumprido; Em vão ha de rugir o mar irado, Em vão clamar o céu desconhecido. XXI Por todos foi jurado,--e cada um,-- Levar a cabo um feito, ao pé do qual, Não houvesse, em annaes de povo algum, Memoria d'outro feito assim igual. XXII Hão de tudo tentar que for preciso... Descer á eterna sombra do profundo, Escalar os humbraes do paraiso, Transpôr os proprios términos do mundo! XXIII Mal dá logar a crença, que os inflamma, Ás visões, que o pavor, na mente gera; Em frente, muito em frente, a India os chama... Atraz, já muito atraz, a patria espera! XXIV Vozes mil o silencio perturbando, Da treva densa, em côro, vão subindo! Serão monstros do mar, que estão bramando?.. Ou d'Africa os leões, que estão rugindo?.. XXV Mas nenhum peito, a vozes taes se atterra; A armada segue, pelo mar em fóra... É Portugal, que vae dizendo á terra: «É tempo já de despertar agora!» XXVI As ondas rugem; noite e dia, atroam; Batem, com furia, nos bojudos cascos; D'azas abertas, para os seus penhascos, Corvos marinhos, crocitando voam. XXVII Dir-se-íam bandos de crueis harpyas, No seu dominio temeroso e vasto, Aves d'agoiro, a reclamar, sombrias, Aquellas presas para o seu repasto. XXVIII Depois a calma, a infinda quietação! Negro aviso de morte ingloria e lenta, N'um mar de chumbo, sepulchral mansão, Que obriga a ter saudades da tormenta! XXIX N'isto, uma nuvem, caprichoso fumo, O azul remoto levemente empana; Ligeira avança, e traz do norte o rumo... É bom prenuncio... mas as naus engana! XXX Que extranha nuvem, é, porém, aquella?.. Corta a direito, consciente e viva!.. Trará no bojo horrisona procella? Ou sôpro brando á calmaria estiva? XXXI Pasmam de vel-a os arduos navegantes! Parece palpitar! que vida tem!.. São hostes mil de pombos emigrantes, Que as terras vão buscar d'onde elles vêm! XXXII E os pombos, a quem tarda o quente ninho, Vendo os mastros da armada festival, Julgam ser os pinhaes de Portugal Que foram recebel-os ao caminho! XXXIII E n'elles pousam confiadamente... Pelas enxarcias, nos ovens, nas pontes, São cachos vivos, são tropeis, são montes... Que as naus adornam sob o peso ingente! XXXIV Descancem ledos, nos humbraes sagrados!.. Ninguem lhes toca, n'um respeito mudo. Destinos altos! vão assim trocados! É Deus que o manda, Deus assim fez tudo! XXXV Mas quando, emfim, das naves se levanta Aquella nuvem, que escurece o dia, --Por que a levem á patria sacrosanta,-- Cada um, sua prece lhe confia! XXXVI Que traço argenteo, as ondas illumina? Uma estrada de luz!.. Talvez a esteira Deixada pela espuma crystallina, Da nau do Dias, que as cortou primeira. XXXVII Sempre ao Sul, sempre ao Sul, a estrada avança! De cada lado d'ella, o eterno escuro! Extendeu-a no mar a mão da Esperança, Na direcção da Gloria e do Futuro! XXXVIII Sempre ao Sul, sempre ao Sul, a estrada segue! Ao termo d'ella, encontra-se o Ideal! Em demanda do Sonho, que as persegue, Navegam quatro naves de crystal!.. XXXIX Partiram todas d'um paiz de fadas, As quatro envoltas em celeste alvor; Vão em busca das Ilhas Encantadas, Onde dorme o divino Encantador! XL O caminho é de luz; porém, infindo; Tem o termo, talvez, na immensidade! Quem vae as quatro naves dirigindo?.. Vae o genio immortal da humanidade! XLI Anjo indómito, prompto a combater. Curvado sempre ao seu destino mudo! Vae a Fé, vae a Força, vae o Querer, A Vontade, que emfim consegue tudo. XLII Inquebrantavel, vae da Historia a lei, Essa, que aos povos a missão traçou; O saber, o pensar de um grande rei, E a tradição, que um rei maior deixou. XLIII De noite, recortando o vivo argento, De dia, sobre as vagas de turqueza, Lá vae, de Portugal o pensamento, Ao leme de uma esquadra portugueza! XLIV Sempre ao Sul, sempre ao Sul! porém um dia Hão de as proas dobrar-se ao Oriente; Então perdida a esteira, que hoje os guia, Engano e trevas hão de ter sómente. XLV Sempre ao Sul, sempre ao Sul! eia! valor! Na cerração, que ao longe se condensa, Mal sabem, que os aguarda a voz immensa Do assombrado gigante Adamastor! XLVI Vão entrar nas paragens revoltosas, --Paragens que ainda hoje o homem teme,-- Onde luctam as ondas alterosas, E o vento, em turbilhões, contínuo geme. XLVII Onde, em furia, tres mares se combatem; Onde o encontro se faz de tres correntes; Portas de inferno, onde Cerbéros latem, De tripla fauce e triplicados dentes. XLVIII Portas divinas, onde Archanjos luzem, Sente-o o Gama, no crente coração; Portas de luz, que ao exito conduzem; Portas do Sonho! portas da Visão! XLIX Sempre ao Sul! sempre ao Sul! ao largo! em fóra!.. Mas a armada parece que se perde Nas liquidas montanhas de um mar verde, Que as naus afunda, e soffrego as devora! L E mais e mais ao Sul se aventuravam, As gastas equipagens consumidas, Em tal desesperar, que a Deus bradavam, As almas lhes guardasse, e não as vidas. LI Mas em que mares vão agora entrando, Que o sol, tão pouco tempo ali dardeja?.. É castigo de Deus, que os vae chamando Aos confins onde eterna a noite seja?.. LII Ali, a luz do sol se desvanece; É tres vezes menor que a noite, o dia; Em este despontando, logo desce Na treva immensa, cada vez mais fria! LIII Não é esse, não é, nem por signaes, Aquelle grande sol, de intensos brilhos, Que prateia as madeixas de seus paes, E aquece as cabecinhas de seus filhos. LIV Não é aquelle o sol, de vivos raios, Que pinta os verdes prados a matiz, Que faz abrir as rosas dos seus maios, E que doira os trigaes do seu paiz! LV O de lá, illumina com doçura, Beija a terra, e aquece-a com amor; Este, aqui, é um sol de sepultura, Mortiça luz, sem brilho e sem calor. LVI Não mais o sol verão da sua terra!.. Com que saudade o dizem! que saudade!.. Aperta-os ali dentro a immensidade! O espaço, como um tumulo, os encerra!.. LVII E sempre o Sul demanda a larga volta, Que nas azas do vento a armada leva, Para a morte, de certo, á véla solta, Para o silencio... a solidão... a treva!.. LVIII Cinco vezes, o Cabo, a armada affronta, Cinco vezes, a armada o Cabo investe! A costa retrocede, o céu remonta... É força as proas apontar a leste!.. LIX Foi Pero d'Alemquer, que o conseguiu, Largos dias de teima usando e manha; O piloto maior que o mundo viu, O que soube fazer maior façanha. LX Mas se foi Alemquer, piloto astuto, O que a volta avisada ao Cabo deu, Foi o genio do Gama, resoluto, Quem dobrou as vontades e venceu. LXI Assim o reconhece a armada inteira, Que em salvas, o saúda, de alegria!.. E Adamastor escuta, a vez primeira, A grande voz da lusa artilheria! LXII E quem desgraças taes prophetisou Áquellas gentes, mais que tudo ousadas, Ouviu, em plenas ondas subjugadas, A resposta, que a armada lhe enviou! LXIII Ruge o colosso do que viu e ouviu! Corre a envolvel-o a cerração distante. _Mudo e quedo_, o phantastico gigante, Humilhado, de nuvens se cobriu! LXIV Emquanto ao Sul desciam, mar em fóra, Tinha visto, de bordo a rude gente, Das costas africanas vir a aurora, Caír nas salsas ondas o poente. LXV Pasmava a gente, agora, do que via, Suppondo a natureza ser mudada; Sobre a terra, á sinistra, o sol descia! Erguia-se do mar a madrugada!.. LXVI Vão colhidos na gávea, agora, os pannos; Baixos os mastros; mas as naus correndo! Segredos são, que ninguem sabe; enganos, Com que a mãe natureza os vae mantendo. LXVII Vagas taes, ninguem viu, tão revolvidas! Agora, as nuvens tocam sempiternas! Depois, as naus inteiras engulidas, Precipitam-se em lôbregas cavernas. LXVIII E as naves, por não serem dispersadas. Cada uma, na gávea se allumia. --Como um grupo de estrellas conjugadas, Umas ás outras são pharol e guia!-- LXIX Onde vae, mar ignoto, a lusa armada?.. Nem enganos, nem trevas a detem! Vae á India levar a Cruz e a Espada; É ali, é ali, Jerusalem! LXX Ha contornos da magica visão, Nos vagos horisontes da miragem!.. Ninguem pense no termo da viagem, Sem que surja a fulgente apparição! LXXI Antes de ao mar a armada se fazer, Havia o forte Capitão jurado, De nunca, em caso algum, retroceder Nem um só palmo do caminho andado! LXXII E quando a desesperança algum vencia, Irado, o Gama, então lhe perguntava: «Quando elle a mortes cem desafiava, Quem é que uma só morte ali temia?» LXXIII E o mór peso tomando do seu cargo, Em vendo levantar-se a maior guerra, Quando a gente dizia: A terra! a terra!.. Gritava-lhes o Gama: Ao largo! ao largo!.. LXXIV Hão de ver, o que o mundo nunca vira: Surgir do mar a India abençoada, Acenando, de longe, á lusa armada, Em torres de esmeralda e de saphyra! LXXV Ou, então, enjeitados pela Gloria, Figurarem, terriveis e sombrios, Como espectros, no templo da memoria, Eternamente, os homens e os navios! LXXVI Á nova Terra Santa! em frente! em frente! Romeiros da romagem longa e vaga! Ah! Deus vos mostre a India refulgente! Deus vos leve, romeiros, Deus vos traga! CANTO SEGUNDO A VOLTA CANTO SEGUNDO A VOLTA I Porém que vejo agora?.. Empavezada, Sobre as ondas azues, e panda a véla, Do mar e das tormentas alquebrada, Vem subindo rasteira caravela! II Avança a panno largo, e com vontade; Na praia, atroam vozes retumbantes; Tocam sinos nas torres da cidade; É louvado o Senhor dos Navegantes! III Aos pontos altos, prestes e ligeira, Acode, a mais e mais, a multidão; Tremúla, á brisa, o regio pavilhão Sobre o Tejo, nos Paços da Ribeira. IV Que gentil! que bem segue a caravela, Embalada nas aguas crystallinas!.. Tem toda a gente os olhos postos n'ella! Vão salvando, na borda, as columbrinas! V Das naus respondem salvas redobradas: No castello o canhão tambem resôa; Por boas vindas dar, alvoroçadas Ostenta quantas galas tem, Lisboa. VI A barca é d'oiro!.. Que deslumbramento! Envolve-a toda, luminoso alvôr!.. É a barca do eterno Encantamento; Vem das Ilhas do grande Encantador! VII Em que espaço, em que ceus andou voando? Nunca d'antes, ninguem no Tejo a viu! Pomba perdida, não pertence ao bando, Que ha muito tempo do pombal saíu. VIII Nave extranha, que o Tejo não conhece, Traz cruz em pendão branco, por signal; --Mas traz, tambem, o que a ninguem parece-- Traz a gloria maior de Portugal! IX Gloria, que a especie inteira nobilita, E não sómente o nome portuguez! Grande empreza, phantastica, inaudita, Que outra maior jamais alguem a fez! X E a barca vae seguindo, rio em frente; Branca visão, que nada apagará! Sobre a esteira de espuma reluzente, O sulco aberto, aberto ainda está! XI E a barca vae seguindo, rio acima; É seu condão a eterna mocidade! Traz o sopro vital que tudo anima, Traz o genio immortal da humanidade! XII Traz aquelles, que os mares ignorados, Passaram, com assombro, e sem pavor; Os que foram ao longe ouvir os brados E as funestas visões do Adamastor. XIII Que sulcaram do mar a immensidade, Nas azas intangiveis da chimera, Os sonhos transformando na verdade, De polo a polo completando a esphera! XIV Os que viram as luzes do _Cruzeiro_, Dos tropicos na noite a scintillar, Depois de terem visto o céu primeiro, Com todo o norte, descaír no mar. XV Esses, de quem os astros repetiam, Ao vel-os persistir na sua empreza, Quando já nenhuns olhos os seguiam: «Vae ali a fortuna portugueza!» XVI Os que os astros ouviram perguntando, Na torrente de luz, que d'elles cáe: «Quem deu ser a taes homens? como e quando? D'onde vem esta gente, e aonde vae?» XVII Os que os astros ouvindo, responderam, Sem desalento algum no coração: «Ó astros, que jámais nos conheceram, Á India vamos; dae-nos vós a mão!» XVIII Esses, de quem as ondas murmuravam, Sob as quilhas pesadas das galeras, Quando as proas altivas as rasgavam: «Vão as portas abrir de novas eras!» XIX Os que viram, primeiro, o nunca visto, E o foram demandar, a tempo e azo, Na luz confusa de um saber previsto, Mas não levados pela mão do Acaso; XX Do velho mundo, os immortaes pioneiros, Em mundos novos demandando ingresso; Missionarios do Bem e do Progresso; Missionarios... e não aventureiros. XXI Os que foram, do caso conscientes, Quebrando sellos, descobrindo lousas, Perturbar em remotos continentes, A quietação dos homens e das cousas. XXII Esses, de quem os povos assombrados, Viram a altiva gente cavalleira, _Por mares nunca d'antes navegados_, Desenhando os confins da terra inteira. XXIII Esses, que em nova e pertinaz cruzada, --Povos inertes evocando á vida,-- Foram, sempre, deixando a patria amada, _Pelo mundo em pedaços repartida_. XXIV Esses, que foram longe, raça dura! Sondar o negro abysmo, sem receio, Desvendar os mysterios da natura, Meio mundo ensinando a outro meio. XXV Esses, que abandonando os deuses lares, Na mais ousada empreza de gigante, Para o seu curso dirigir nos mares, Uma estrella do céu não foi bastante! XXVI Os que a patria exaltaram portugueza, E quebraram, com brava galhardia, A maritima força de Veneza, E a fortuna da grande Alexandria. XXVII Os que o globo da terra devassaram, E dando um mundo novo ao mundo velho, Das columnas herculeas ao Vermelho, O negro continente recortaram. XXVIII Os que tendo arrancado ao fero Islam, Arzilla, Tanger, Ceuta e Azamor, Hão de agora affrontar-lhe a gloria van, E, em mar remoto, enchel-o de terror. XXIX E assim terão cumprido, heroicamente, Duas vezes, a épica missão, Os pendões abatendo do Crescente, Ante as glorias do symbolo christão. XXX Os que viram no céu diversos astros; Aquelles para quem o mar do Sul, Nos topes accendeu dos rijos mastros, Do Santelmo divino a chamma azul. XXXI Os que viram mil cousas portentosas, O sobre-natural, o sobre-humano; Descer do céu as trombas sequiosas, Bebendo em sorvos largos o Oceano. XXXII Os que investiram frias espessuras, Onde escuro docel a noite eleva, E demandando antarcticas alturas, Chegaram quasi ás regiões da treva. XXXIII Os que affrontando a propria natureza Foram a prima gente que sulcou, Altos mares, de infinda profundeza, Onde sonda nenhuma o fundo achou. XXXIV Os que tendo no peito a palpitar, De raça mais que humana o coração, Iam, á raça humana abrir o mar, Findando aquella eterna solidão. XXXV Os que foram, nas azas da vontade, Á India, refulgente de oiro e luz, Ver o berço da nossa humanidade, Como os Magos o berço de Jesus. XXXVI Os que foram do Tejo ao Malabar, Levando no regaço a paz e a guerra, Chamar á vida, despertar a terra, Do somno seu, profundo e secular. XXXVII Os que viram surgir a India ardente. Acenando, de longe, á lusa armada, Huri, rainha e fada do Oriente, Das torres de saphyra debruçada. XXXVIII Esses, que para erguer a patria historia, Foram tentar emprezas immortaes, D'onde se volta pela mão da Gloria, Ou d'onde nunca se voltou jamais. XXXIX Esses, que emquanto andavam completando Não vistos feitos, épicas acções, Já o céu lhes estava destinando A lyra inimitavel de Camões! XL Os homens grandes, cuja obra immensa, Deviam memorar, no tempo alem, --Refulgente prodigio de Arte e Crença,-- As naves portentosas de Belem! XLI Os que, salvos por Deus,--humilde gente,-- Nos riscos tormentosos, que correram, Sepultaram no mar, piedosamente, Tantos, tantos irmãos que lhes morreram! XLII Lá vae a caravela, rio acima! É ella a sombra da primeira armada! A nova que em si traz, é quem a anima: «Foi descoberta a India abençoada!» XLIII É isto o que ella clama e vae dizendo; É isto, o que ella a todos annuncía; O sol da Meia Idade vae descendo, O alvor desponta, já, de um novo dia! XLIV Mas, vendo-a, mal suppõe a multidão, Sobre a tolda contando a pouca gente, Que da gloria da humilde embarcação, Viverá Portugal, eternamente. XLV Agora, a nave, as ancoras largou; Içou, no mastro grande, o vellocino! A patria em boas mãos depositou A espada, a cruz, e todo o seu destino. XLVI Bemvindos sois ao berço hospitaleiro, Romeiros da romagem do Ideal! Pois fez, o esforço vosso, verdadeiro O sonho que tivera Portugal. XLVII Cumpristes um gigante pensamento; No mundo, o vosso nome, eterno sôa; Trouxe-vos Deus _a porto e salvamento_, A vossa obra foi bemdita e boa! XLVIII E, largo tempo,--esplendida visão!-- Se ha de ver, Tejo acima, a caravela, Como um barco de lenda, panda a véla, Bordada a cruz de Christo em seu pendão! XLIX E um dia chegará,--dia jocundo!-- Em que, no Tejo, que hoje aos pés vos corre, Hão de armadas estar, de todo o mundo, Saudando a caravela, que não morre! L Monarchas hão de vir de imperios novos, Em convivio fraterno, doce e amigo, Unindo n'um só laço, os reis e os povos, Saudar, em honra vossa, o reino antigo. LI E só por vós, se a mente me não erra, Vós, que fostes do Gama os companheiros, Marinheiros virão de toda a terra, Á patria dos mais rudes marinheiros. LII Sonhados impossiveis conseguistes, Vós, raça aventureira, omnipotente! Se muito foi, que a Portugal servistes, Mais servistes, ainda, a extranha gente. LIII Pois da aguia, que os reis d'outr'ora viram, Na terra inteira, as azas extendendo, As aguias, d'hoje em dia, andam colhendo As pennas, que das azas lhe caíram! LIV D'este povo, o passado causa espanto! O que teve! o que pôde dividir!.. Cada um dos pedaços do seu manto Dá hoje a um povo inteiro, que vestir! LV Quem havia de ver, o que se viu? Agora, é Prometheu acorrentado, Por famintos abutres devorado, Na montanha da Gloria, a que subiu! LVI Venham, pois, ver a nave abençoada, Do Tejo sobre as vagas diamantinas! Nave eterna!.. Na pôpa leva as quinas, E a figura do Gama, na amurada. LVII Que vejo?.. Quem tal quadro antecipou? Desusado fragor no grande rio!.. Vinte esquadras, que o mundo aqui mandou, Abrem alas ao fulgido navio! LVIII Em cada pôpa, um pavilhão ondula; Vistosas cores, alegrando os ares! Vêm ver, ainda, como audaz tremula O pavilhão que os precedeu nos mares! LIX Monstros de ferro, enormes couraçados, Venham aqui, de toda a terra, ovantes, Pousar no Tejo, que sustinha d'antes Sobre o seu dorso, galeões sagrados!.. LX Naus d'alto bordo, carregadas d'oiro, A mór riqueza, que se viu outr'ora! Dizêl-o ouvimos,--não hajaes desdoiro:-- «São bem mais leves estas naus de agora!» LXI E o Tejo, aberta a sua larga foz, Com justo orgulho, vos recebe e chama! Almirantes! sabeis, que honrar o Gama, É honrar o maior de todos vós! LXII Lá vae a caravela, altiva e calma No meio do bramir da artilheria! Não é sonho da nossa phantasia; É nitida visão que temos n'alma! LXIII Da justiça reluz o dia, a hora; O premio do serviço, emfim, chegou! Mil bandeiras, que o mar conhece agora, Vêm saudar a primeira, que o passou! LXIV Mas vós, povo indolente e descuidado, Que a patria tantas vezes esqueceis, Sêde digno, em memoria do passado, Das honras, que ao presente recebeis! LXV Não tem direito, ninguem tal o diga, A abandonar-se n'um dormir profundo, Quem, tão grande passado, a tanto obriga, Quem tal papel desempenhou no mundo! LXVI Um povo que se preza, não descança Nem á sombra dos loiros conquistados; A gloria é grande, mas pesada herança: Mantel-a pura, deve dar cuidados. LXVII O preceito deixámos esquecido, Embalados em vagas illusões; Hoje vemos um céu de inquietações, Por sobre as nossas almas extendido. LXVIII A gloria é armadura reluzente, Que veste os peitos e rebrilha ao sol; Não é fria mortalha, nem lençol, Que o corpo envolva d'um heroe jacente. LXIX A gloria é um deposito sagrado; Quem o deixa fugir, por mal seguro, As maldições merece do futuro, Mostrando ser indigno do legado. LXX Ainda o mesmo genio em nós palpita, O mesmo sangue, em nossas veias, corre; Somos o rijo povo, que não morre! Pois, se morto parece, resuscita! LXXI E a raça, que ascendeu a tal grandeza, Não póde figurar entre as nações, De mãos ligadas, amarrada e presa, Á columna das proprias tradições. LXXII Tem de viver no tempo indefinido, Em voz alta affirmando o seu direito De povo, que entre os povos escolhido, Aos povos, seus irmãos, impõe respeito. LXXIII E tu, que és mãe bondosa, patria amiga, Sê madrasta cruel, altiva e dura, A todo o filho que de ti mal diga... Nem descanço lhe dês de sepultura! LXXIV Pois não merece a luz que o allumia, E que o berço lhe veste de esplendor, Quem o nome de patria pronuncia, Sem, lá no fundo, estremecer de amor! LXXV Lá vae a barca d'oiro, enfeitiçada! Lá vae a deslumbrante caravela! Leva o Gama, de pé, junto á amurada, E uma cruz escarlate em cada vela! LXXVI Lá vae a Barca-Sonho, rio em frente! Pobre quem, dentro d'alma, não a vir! Se leva a gloria do passado ingente, Leva, tambem, a esperança no porvir! Acabou de imprimir-se Aos 24 dias do mez de agosto do anno M DCCC XCVI NOS PRELOS DA Imprensa Nacional de Lisboa PARA A COMMISSÃO EXECUTIVA DO CENTENARIO DA INDIA *** End of this LibraryBlog Digital Book "A viagem da Índia - poemeto em dois cantos" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.