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Title: As Saudades do Bardo Orthodoxo Author: Coutinho, Henrique Ernesto de Almeida, 1788-1868 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "As Saudades do Bardo Orthodoxo" *** of public domain material from Google Book Search) AS SAUDADES DO BARDO ORTHODOXO, POEMA. _Fù corto il tuo partir, lungo é'l mio affanno;_ _Nè gioia spero mai, ch'il riconsole._ _Tu ridi, io piango sempre; e sol compenso_ _Gli aspri martir, se di te parlo e penso._ L. Guidiccioni. PORTO: NA IMPRENSA DE ALVARES RIBEIRO, _aos Lavadouros N.º 16._ 1837. _On some fond breast the parting soul relies,_ _Some pious drops the closing eye requires;_ _Even from the tomb the voice of nature cries,_ _Even in our ashes live their wonted fires._ De ternos corações busca saudades 'Spirito que se ausenta, e extinctos olhos Querem piedoso pranto; a Natureza Lá do fundo das campas inda clama, Inda mesmo entre cinzas Sua chamma usual vive inexhausta. Gray, _cemiterio da aldea_. _Ao meu amigo,_ JOAQUIM TORQUATO ALVARES RIBEIRO. _Perdeste pais e irmãos, quaes vio apenas A suspirada em vão Saturnia idade; E, sob o imperio de Cruel saudade, Soffreo teu coração amargas penas. Carpir alheios lutos Quem os proprios carpio ah! não recusa; Nem com olhos de pranto sempre enxutos Simpathisar consegue a minha Musa. Mas hoje, amigo, mais propicia sorte, Por ver-te resarcido Do muito que has perdido, Deo-te, digna de ti, rara consorte, Dos thesouros do Ceo mimo escolhido. Oh! nunca, nunca vos separe a Morte!_ Henrique Ernesto d'Almeida Coutinho. As saudades DO _BARDO ORTHODOXO,_ POEMA. Oh que extase ineffavel!.. Nossas almas, Ao risonho alvejar da madrugada, Voando sobre as azas transparentes D'aura fragrante que soprava do Éden, Anciosas enlaçarão-se, em transporte De prazer todo angelico! Dest' arte Extremosos se abração dous amigos, Que adolescentes vinculára o instincto D'aurea Virtude em flor, e divididos Pelo undoso Elemento ha largos annos, Se, condoida em fim d'ausencia tanta, A Sorte os restitue um do outro aos braços. Oh quaes arcanos de ternura eximia, Toda celestial, vedada ao Mundo, Su' alma revelou á do consorte, Á da consorte extatica, engolfada Em luminosa alluvião de ditas, Onde de puro amor quasi que expira, E então resurge entre delicias novas, Que a flux e a qual mais viva lhe resfolgão Lá das mansões do sempiterno dia! Ficai-vos para sempre, ôcos fantasmas, Glorias mesquinhas que engodais a Terra; Vós sois menos que nada. Franco e livre Das terrenas prisões, agora exulto: Marilia é toda minha, Ercenio é della; Nossa união revive á luz do Empyreo, E revive sem fim, sem fim resplende, Ante a immortalidade anniquilou-se Tudo que era mortal.--E a um sonho eu devo Tão fagueira illusão!--Perfido sonho! Por que assim me exalçaste á summa Esfera, Para a final me despenhares neste Ferreo leito de dor, que em pranto alago? Oxalá nunca mais eu despertasse!-- Vem cá, fiel transumpto, que saudosa Esta mão debuxou, d'ausencia instada; Mostra-me essas feições, onde a Virtude Quasi que sinto respirar tão meiga; Vem consolar-me:--ás lagrimas d'Ercenia Tu pareces sensivel; mas aquella Alma querida, éco immortal dest' alma, Reluz no Ceo; oh como alli anciosa Voôu a minha, e se abraçarão ambas! Momentos divinaes! fosteis acaso Sonho fugaz, ou eternal presagio? Envôlta em orvalhoso véo sombrio, Vem surgindo a manhã. Fica-te, ó leito, Conscio de veladores pensamento, De bens sonhados, permanentes dores. É hoje o anniversario luctuoso, É esta a hora em que Marilia, a espôsa, Me disse o ultimo _adeos_, e foi no gremio Viver do Eterno, e possuir o Empyreo. Tu, que o harmonico ser deves ao tronco De longevo cipreste, e es socia em magoas, Acorda hoje tambem, acorda, ó lira, E ao sagrado recinto me acompanha. Eis-nos aqui já nelle.--Ves, ves esta Relvinha tenra, que o sepulcro veste! Meu pranto a fez crescer, meu pranto a orvalha, Como te orvalha as cordas, quando nellas Suspira melancolica saudade. Mas qual jocundo anhélito fragrante Me brinca na madeixa encanecida?-- São auras?--ou bafeja carinhosa Su' alma os dias meus quasi acabados, Para affastar-lhes o final momento? Perdôa, amada esposa! Os meus int'resses Melhor os sabe a Morte; ella conhece Que nunca mais desfructarei repouso, Senão a par de ti, senão comtigo. Do mundano bulicio ora liberto, Encósto a frente ao pedestal lascado Desta Cruz de granito, que protege Co' a veneranda sombra em tôrno as cinzas, Té que a resurreição lhes amanheça. Vós que jazeis nos lobregos abismos Da moral corrupção que empesta o Glôbo, Almas cobardes, onde não vislumbra Nenhuma idéa nobre, e que a Virtude, Affastada de vós por mui sublime, Sem poder arrostá-la, um nome a crêdes D'imagem desprovido, um sonho futil; Sabeis vós discernir qual prazer seja O de apertar ao peito ingenua virgem, Que, os braços maternaes deixando a custo, Córa entre os braços do feliz consorte?-- O consorte feliz!.. fui eu, por certo. Depois de lustros quasi seis, volvidos Em placida união, concorde affecto, Qual vacuo immenso não deixou nest' alma O golpe inesperado, a perda ingente! Em quanto o vulgo seduzido applaude Prodigios d'ambição, d'heroismo infrene, Que se nutre de sangue, e anhela estragos, Eu de louvores perennal tributo Pagarei á dulcissima consorte, Mimo celeste, Anjo de paz, que tantas Lagrimas vio correr, no espaço breve Da sua habitação cá neste exilio; E d'enxugá-las, se podesse, todas, Não cedêra a ninguem o emprêgo excelso. Envergonhai-vos, sordidos avaros! Sem ter, sem invejar vossos thesouros, Marilia mais que vós valeo ao pobre, Escutou bençãos, mereceo saudades, Lucrou gloria immortal; e a gloria vossa, Bem como esse ouro que adorais, é terra. Mãis indigentes! miseros filhinhos! Que da penuria, em máos conselhos fertil, Provais, logo ao nascer, o amargo absintho, Dizei os dons que de Marilia houvestes, Dizei quão meiga vos prestou auxilio, Fallai; que ella o não veda: inteiro um Mundo De vos, do afflicto Ercenio hoje a separa; E ao meu amor, ao meu amor sómente, É concedido percorrer, nos vôos, Distancia que entre nós se alonga immensa. Que digo!--Neste valle inda respira Fiel traslado teu, que, em verdes annos, Te segue, ó doce amiga, o trilho nobre, E do materno exemplo nao discrepa. Eia, rouba sequer ligeiro instante Ao summo enlêvo, aos canticos celestes, Deixa o lume pousar da vista affavel Sobre a terrena estancia, e te compraza Na filha tua, na florente Osminda, Se só aos Anjos, qual tu és, qual foste, Te é dado agora amar, tens nella um Anjo. Ditosos dias da existencia minha, Que é feito já de vós! fosteis apenas Mesquinha exhalação que os ventos varrem. Já nestes olhos meus cançados, tristes, Sinto engrossar a nuvem que os abrange. Tudo perdi no Mundo; só me resta A Providencia e Osminda. Antes de muito Ha de sómente a desvelada filha Ao sepulcro da mãi guiar meus passos. Assim outr'ora, em nebuloso clima, Do cantor de Fingal a nora amavel, A candida Malvina, a flor de Morveu, Ao jazigo dos seus encaminhava O sogro, idoso e cego. Trevas, lutos, Ante mim se revezão, se accumulão. Eis o Genio do mal campea ousado, E apregoando bens, traidor sorrindo, Empesta os corações, domina a Glôbo: Feroz se atea das paixões o embate, Chovem sobre a Virtude os improperios, E dos mortaes a deploranda insania Só ao Crime feliz prepara os louros. Ai! neste mar inquieto e procelloso, Que será pois d'Osminda?--Ó Ser dos seres, Estende o braço teu; que, á sombra delle, Perfeito amparo, bonançosos dias, Terá por minha morte, a filha amada, E será des de então só filha tua.-- Ah! tu tambem, ó suspirada espôsa, Lá das mansões ethereas nos contemplas, E te revês na filha, em cujo peito Repousa da innocencia a paz ditosa; Tu apresentas ante o Throno eterno Os votos incessantes que a bem della, Sobre as azas de férvido transporte, Enderéço ao Poder que escuda o debil. Espêssa nuvem, dardejando raios, Desça, e d'Osminda aproximar não deixe Os da vil seducção vipereos olhos, Ou desde já, e d'um só golpe, e a um tempo, Vida perecedoura em nós pereça, E vivamos comtigo immortal vida. Mas qual lembrança murmurar profunda Sinto nos seios d'alma?--Eis d'entre angustias Surde mimosa imagem d'aureos dias, Dias (ai derradeiros!) que passamos No campo, e no paterno herdado alvergue, Ora escutando as namoradas aves Saudar com meigo canto a Primavera, Ora embebidos no matiz fragrante Das apinhadas renascentes flores, Ou vendo os fructos avultar formosos, O pômo enrubecer, dourar-se a messe, E sorrir bemfazeja a Natureza: Em quanto a Guerra atroz, bramindo ao longe, Accumulando ruinas sobre ruinas, Fervendo mais e mais, rival do Inferno, Talava a ferro e fogo as margens ambas Do flavo Douro, que, ao fragor tremendo, Escondia nas humidas cavernas A desolada espavorida fronte. Ai! quanta ves, ao rebombar longinquo Dos bellicos trovões, piedoso pranto Vi de teus olhos deslizar-se em fio! Então no intimo d'alma deploravas A prematura morte desastrosa De tantos filhos, esperança extrema Roubada para sempre aos pais longevos; O miserando fim de tanto espôso, A quem a espôsa fida, e o penhor caro Que lhe sorrí pendente aos castos peitos, Nao mais tem de abraçar, no ermo da vida; Aqui e alli em borbotões fumando, Por homens desparzido, o sangue d'homens, Quando em fraterno laço indissoluvel, Uns aos outros prestando amor e auxilio, Lhes é suprema Lei viver unidos. Oh insania fatal! Oh ignominia! Recommendado á Fama, erguido aos astros, Genio conquistador, ebrio de sangue, Levando morte e horror de polo a polo, Consegue mausoléos, consegue altares; E tu, Anjo celeste, que na Terra Deixaste após de ti suave arôma, Que inda os vestigios da Virtude exhalão; Tu, mimo excelso, singular contexto De sisudez, candura, amor, piedade, Viveste alheia ao Mundo, e assim morreste: Nem mesmo do teu fim noticia exacta O circulo excedeo dos lares nossos; E reinava o silencio envôlto em trevas, Quando encerrada no ataúde escuro Fragil porção de ti, mas que eu venero, Foi trazida sem sequito, sem pompas, A descançar neste calado asilo, Onde a do somno extremo sacra terra, Sabida só de mim, te guarda as cinzas, Desprovidas de lousa e d'epitafio. Epitafio!--e se nelle memoradas Fossem virtudes que alojaste n'alma, Ah! poderia por ventura o Mundo, Qual o conheço, leviano e cego, Votar-lhes homenagem digna dellas, Ou arder no desejo d'imitá-las? Todo escarcéos, horrisono rugindo, Feroz prostrando as litoraes balisas, Sorvendo galeões, cidades, povos, O Oceano infunde respeitoso espanto; Mas o limpido arroio serpejante, Que vai por entre os prados entretendo A socegada veia, e repartindo Frescura ao sólo, nutrição ás plantas, Vive sem nome, e na lembrança é morto. Sim: de teus dias o fulgor modesto, Qual breve estrella nos ethéreos campos, Quasi sempre luzio furtivo e turvo No valle dos mortaes, e ora, sem nuvens, Claro brilha no Empyreo, que zeloso Se mostrou d'assumir esta obra sua, E no berço a plantar, donde emanára. Entretanto propicia a Natureza, Por entre o véo que os olhos meus envolve, S'esmera em me off'recer imagens tuas, E lida, mas em vão, por consolar-me. Se da flor que viceja me aproximo, Diz logo a flor: "contempla, afflicto espôzo, "Contempla em mim as pudibundas graças; "O sorrir virginal, os verdes annos, "Que Marilia enfeitavão, quando outr'ora "Tu, pela vez primeira, a viste absorto, "E, sem ella o saber, por ella ardeste. Se lanço a mão ao sazonado pômo, De que o pêzo gentil debruça os ramos, Se aqui observo a flavescente arista Espraiar-se opulenta, se negreja Em festões o racimo além suspenso, Sahe delles esta voz, e a mesma em todos: "Marilia, por quem foste já ditoso, "De nossa profusão compôs mil vezes "Os nobres dons com que nascer fizera "O sorrizo nos labios do indigente. "Contempla em nós o primoroso emblêma "Dessa riqueza d'alma e de virtudes "Que luzio para o Ceo, que o Ceo recolhe. Té na estação brumal, quando acurvada Aos rijos Aquilões, e sob os gêlos A Natureza esmorecida geme, Recordo então com que feliz destreza As longas noites encurtar soubemos, Em conversa amigavel, ou notando Entrechos, expressões, desastres, ditas, De mil ternas historias que eu te lia, E onde, depois d'acerrimos combates, A Virtude os laureis cingia ovante. Doces memorias! lisongeiros quadros! Em vós minh'alma s'embebece toda; Mas o caro protótypo... a consorte... Onde está, onde está?--de balde a busco. Ah! que vive nos Ceos.--D'agora em diante Hão d'ir todos alli meus pensamentos Purificar-se do terreno lôdo. Redobra, Anjo de paz, as preces tuas, E os Anjos, socios teus, orem comtigo Ante o summo Juiz; alcançai delle Que as imperfeições minhas aniquile No mar immenso das bondades suas: Eia, instai; que o momento se aproxima; Nas perfumadas auras que respiro, No palpitar do coração ancioso, Murmura fausto annuncio:--resolvida Foi no arcano eternal, e lá no Empyreo Firmada em estellantes caracteres A suspirada reunião ditosa. O momento feliz! vem consolar-me. Quando estivermos ante o Solio eterno, Rogativa incessante e afervorada Ha de occupar-nos em favor de quanto Nos foi caro na Terra; e o Ser supremo Escutará propicio as preces d'ambos. Mas qual congresso, de fulgor cingido, Sobre aureas nuvens magestoso assôma, Ares d'immortal gloria respirando?-- Alma toda celeste! eu reconheço Em teu lucido aspecto inda o sorriso Com que outr'ora os meus dias alegravas. Oh quão ditosas lhe pousais em tôrno Almas de nossos pais, almas de tantos, Que a Virtude illustrou, parentes nossos! Sim: vós quereis da reunião perenne O instante vigiar, quereis comnosco Ter quinhão neste júbilo ineffavel, E dar applauso eterno a eternas nupcias; Congratulai-vos; que se apressa o instante!-- E quando esfaima, para unir-se á tua, Os vôos sublimar além do Glôbo, E arraiada de luz, transpondo os astros, No gremio se acolhêr da Omnipotencia, Então, ó terra, ó podridão, ó vermes, Tomai, que é vosso, este involtorio fragil. FIM. *** End of this LibraryBlog Digital Book "As Saudades do Bardo Orthodoxo" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.