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Title: Uma família ingleza - Scenas da vida do porto
Author: Dinis, Júlio, 1839-1871
Language: Portuguese
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UMA FAMILIA INGLEZA



UMA FAMILIA INGLEZA

SCENAS DA VIDA DO PORTO

POR

JULIO DINIZ


Terceira Edição


Porto

Em casa de A. R. da Cruz Coutinho, Editor

18--Rua dos Caldeireiros--20


1875


TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
Rua Ferreira Borges, 31



UMA FAMILIA INGLEZA



I


ESPECIE DE PROLOGO, EM QUE SE FAZ UMA APRESENTAÇÃO AO LEITOR


Entre os subditos da rainha Victoria, residentes no Porto, ao principiar
a segunda metade do seculo dezenove, nenhum havia mais bemquisto e mais
obsequiado, e poucos se apontavam como mais fleugmaticos e genuinamente
inglezes, do que Mr. Richard Whitestone.

Por tal nome era em toda a cidade conhecido um abastado negociante de
fino tacto commercial e genio emprehendedor, cujo credito nas primeiras
praças da Europa e da America, e com especialidade nos vastos emporios
da Gran-Bretanha, se firmava em bases de uma solidez superabundantemente
provada.

Nos livros de registro do _Bank of England_, bem como nos de alguns
_Joint-Stock banks_ e dos banqueiros particulares da _City_ ou de
_West-End_, podia-se procurar com exito documentos justificativos d'este
credito florescente.

Não era Mr. Richard homem para seguir sómente caminhos batidos, nem para
empallidecer ao abalançar-se em veredas não arroteadas, onde se achava a
sós com os seus esforços e tenacidade.

Por vezes arriscára capitaes a inaugurar companhias, a plantar novos
ramos de commercio, a auxiliar industrias nascentes, aventurando assim
proveitosos exemplos, para serem seguidos depois, já com melhores
garantias de lucro, por seus collegas, caracteres em geral cautelosos e
positivos e sempre desconfiados a respeito de innovações.

Apesar d'isso, as crises, essas derruidoras tempestades tão frequentes
na vida do commercio, tinham passado por cima da casa Whitestone,
respeitando-a. Através das nuvens negras, que tantas vezes assombram o
mundo monetario, vira-se sempre brilhar a firma do honrado Mr. Richard,
com o esplendor tradicional; emquanto que não sorriram fados tão
propicios ás de muitos meticulosos e precatados, não obstante egoistas
abstenções.

Era o caso de mais uma vez repetir o _Audaces fortuna_... de já estafada
memoria.

Esta immunidade, em parte devida á lucida intelligencia, com a qual Mr.
Richard sabia superintender nos variados negocios do seu tracto, em
parte a não sei que benigno espirito, ou acaso feliz, a que muitas vezes
parece andar subordinada a fortuna, valera-lhe uma illimitada confiança
entre todos, com quem o negocio o ligava, confiança da qual, nem em
circumstancias frivolas, se mostrou nunca indigno depositario.

O quotidiano apparecimento do negociante estrangeiro na Praça--nome que
entre nós se dá ainda á rua dos Inglezes, principal centro de
transacções do alto commercio portuense--festejavam-o benevolentes
sorrisos, rasgadas e pressurosas reverencias, phrases de insinuante
amabilidade e affectuosos _shake-hands_, segundo o mais ou menos
adiantado grau de familiaridade, que cada qual mantinha com elle.

Ninguem se dispensava de qualquer d'estas demonstrações de estima, ou as
impozesse o prestigio dos avultados capitaes e da social liberalidade do
commerciante britannico, ou--como de preferencia opinarão os que melhor
conceito formam dos homens--um longo passado sem mancha, uma rectidão e
cavalheirismo, aquilatados todos os dias.

Mr. Whitestone não se deixava porém desvanecer com estas homenagens dos
seus confrades, aliás merecidas.

Decididamente não era a vaidade o seu defeito dominante. Aspirando essa
especie de incenso moral, que tão bem formadas cabeças atordôa, não
sentia, no intimo, turbar-se a limpidez, verdadeiramente crystallina, da
razão, n'elle pouco sujeita a esvaîmentos.

Os gêlos d'aquelle coração, formado e desenvolvido a cincoenta e um
graus de latitude septentrional, não se fundiam com tão pouco.

Lôas, hymnos encomiasticos, capazes, ainda que em prosa, de atemorisar
as modestias menos esquivas, protestos hyperbolicos de veneração a todo
o transe, tudo isso escutava friamente e sem nem sequer experimentar
certa agradavel e voluptuosa titillação da alma--se me admittem a
phrase--que em quasi todos os filhos de Eva,--primeira e mal estreiada
victima da lisonja--produzem sempre os panegyricos do merecimento
proprio, entoados por bôcas alheias.

A mesma indifferença, a mesma, se não absoluta impassibilidade,
estabilidade de razão pelo menos, com que, uns após outros, esvasiava
copos de cerveja e calices do Porto e Madeira, de _rhum_, de _cognac_,
de _kummel_, de _gingerbeer_, e até de absintho, libações, que a
qualquer pessoa menos inglezmente organisada ameaçariam, em pouco tempo,
com as mais pavorosas consequencias de um completo alcoolismo; essa
mesma indifferença e impassibilidade oppunha ao effeito, não menos
inebriante, das lisonjas de que lhe enchiam os ouvidos.

A eloquencia cortezã dos seus muitos enthusiastas mais do que uma vez a
recebia assobiando distrahidamente, mas sem a menor affectação, o
nacional _God save the queen_, ao qual marcava compasso com a cabeça ou
com a bengala.

Não se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro
cumprimento. Aquelles que teem por costume semeiar lisonjas, para depois
as colherem, em proveito proprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone
terreno ingrato para tal genero de cultura; não vingavam lá.

A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas
subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares
convencionaes, muito á moda nas salas e que variam com as épocas,
hesitar-se-hia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.

A delicadeza que elle praticava não era de facto essa. Fazia-a consistir
toda, a sua, nos sentimentos e nas acções inspiradas pelos eternos e
invariaveis dictames da consciencia e da razão, superiores portanto ás
fluctuações caprichosas da moda. Era uma delicadeza natural.

Verdadeiro inglez da velha Inglaterra, sincero, franco, ás vezes rude,
mas nunca mesquinho e vil, podia tomar-se por uma vigorosa
personificação do typico John Bull.

Alheio e pouco propenso á metaphysica, não o namoravam as transcendentes
questões de philosophia, que preoccupam doentiamente as intelligencias
da época; todo votado á contemplação da face positiva da vida, se não se
arroubava, como os exaltados optimistas, a considerar nos destinos
futuros da humanidade, evitava tambem o estorcer-se nas garras do
demonio da hypocondria, como se estorcem tantos, a quem prolongadas
meditações sobre os males que perseguem o homem acabam por envenenar o
pensamento.

Possuia em compensação Mr. Richard, e em alto grau, para luctar contra
as occorrentes resistencias da vida effectiva, aquella qualidade de
espirito, que, segundo Sterne, se diz _obstinação_ nas más applicações e
_perseverança_ nas boas.

Outra apreciavel disposição de animo caracterisava ainda o nosso
commerciante:--era a de não ser sujeito a longas mortificações, ou pelo
menos--e com mais rigor talvez--a de não as manifestar nos gestos ou por
quaesquer signaes exteriores.

Dir-se-hia, a julgal-o pelas apparencias, que espessa camada de
estoicismo lhe encrustára o coração, libertando-o da influencia dos
estimulos, que mais dolorosamente costumam commover essa viscera de tão
numerosas sympathias.

N'este mundo, ao qual os Heraclitos dos seculos christãos grangearam o
titulo lutuoso e elegiaco de _Valle de lagrimas_, não sabia successo
possivel, catastrophe realisavel, com força de alterar por muito tempo a
costumada expressão physionomica de Mr. Richard, de lhe desbotar sequer
o colorido vigoroso, ou,--como julgo se lhe chama em linguagem
technica,--o colorido quente, do qual lhe vinha ao gesto certo ar de
satisfação, despertador das mais justificadas invejas.

Nos typos inglezes, que as ondas do oceano arrojam todos os dias ás
nossas praias, é este phenomeno mais vulgar do que porventura se pensa.

Cada uma d'essas figuras britannicas vale por um protesto mudo, mas
eloquente, contra os velhos preconceitos de poetas e de escriptores
meridionaes.

Teimam de facto estes em que são indispensaveis os vividos raios do
nosso desanuviado sol, ou a face desassombrada da lua no firmamento
peninsular, onde não tem, como a de Londres--_a romper a custo um
plumbeo céo_--para verterem alegrias na alma e mandarem aos semblantes o
reflexo d'ellas; imaginam fatalmente perseguidos de _spleen_,
irremediavelmente lugubres e soturnos, como se a cada momento saíssem
das galerias subterraneas de uma mina de _pit-coul_, os nossos alliados
inglezes.

Como se enganam ou como pretendem enganar-nos!

É esta uma illusão ou má fé, contra a qual ha muito reclama debalde a
indelevel e accentuada expressão de beatitude, que transluz no rosto
illuminado dos homens de além da Mancha, os quaes parece caminharem
entre nós, envolvidos em densa atmosphera de perenne contentamento,
satisfeitos do mundo, satisfeitos dos homens e, muito especialmente,
satisfeitos de si.

Nem é para admirar que o romancista inglez James ousasse abrir o
primeiro capitulo de um romance seu com a seguinte exclamação:

«_Merry England! Oh, merry England!_» Alegre Inglaterra! oh! alegre
Inglaterra!

E por que se não ha de chamar alegre á Inglaterra? Como se generalisou a
infundada crença de que o inglez é por força melancolico?

É uma d'estas abusões, para lhe não dar nome peior, contra as quaes
ninguem se precavê com sufficiente criterio philosophico.

Repare o leitor imparcial para qualquer dos membros da colonia ingleza,
á qual Mr. Richard Whitestone pertencia, e verá que nem só nos tempos em
que a civilisação e a industria não tinham ainda arroteado as densas
florestas britannicas, seria cabido o jovial estribilho da canção que o
supracitado romancista pôz na bôca do legendario Robin Hood, seu
heroe:--«_Ho, merry England, merry England, ho_»; póde ainda cantar,
através dos nevoeiros e do fumo das fabricas, o inglez moderno, fiel
depositario d'aquelle folgado caracter nacional.

Eu tenho ha muito como ponto de fé, que ainda que o _spleen_ seja doença
indigena da Gran-Bretanha, não domina tão fatalmente sob o céo Londrino,
como muitos parece imaginarem.

Dryden affirma que as comedias inglezas possuem sobre as de todo o mundo
incontestavel superioridade.

E querem saber a que attribuem alguns esta superioridade da comedia
ingleza? Ao clima, a esse mesmo clima, que, em contrario, tantos accusam
de fomentador de hypocondrias e suicidios.

O clima inconstante da Inglaterra, explicam aquelles, é proprio para
favorecer o desenvolvimento d'esses caracteres excepcionaes e
extravagantes, precioso e inesgotavel pábulo do espirito comico da
Gran-Bretanha.--A jovialidade dá-se muito bem n'aquelle poderoso
imperio.

Tom Jones e o proprio Falstaff são typos mais inglezes talvez do que uns
sombrios caracteres, que Byron pôz á moda.

Ora Mr. Richard, o corajoso leitor do _Times_, o inimigo declarado da
França, apesar de certa seriedade de convenção, era metal inglez, livre
de toda a liga.

Nos maiores empertigamentos, a que o respeito pela pragmatica ingleza o
constrangia, lá lhe estava o gesto a denunciar, que era artificial tudo
aquillo.

Emquanto ao physico..., emquanto ao physico era Mr. Whitestone
caracterisadamente inglez.

Não supprirão estas palavras mais circumstanciada descripção?

Não ha entre nós quem, ao ver por ahi, nos maiores e mais mesclados
ajuntamentos, certa ordem de typos masculinos, hesite em attribuir-lhes
por patria a velha Albyon, a filha dos nevoeiros, a rainha dos mares, a
terra dos _meetings_, dos _puddings_ e de muitas cousas mais?

Pois bem, todos esses caracteres, todos esses signaes distinctivos dos
mais perfeitos exemplares da classe, achavam-se reunidos na pessoa de
Mr. Richard Whitestone, como certidão de naturalidade, limpa da menor
viciação.

Era aquella conhecida tez, quasi côr de tijolo; aquelles olhos azues, á
flor do rosto, a resplandecerem como saphiras; aquelles cabellos e
suissas ruivas, que, sem grande violencia de imagem, poder-se-hia talvez
comparar ás lavaredas do fogo, que lhe inflammava constantemente as
faces injectadas; os dentes regulares, como enfiaduras de perolas, e
alvos, como os caramélos das montanhas; a postura erecta; os movimentos
promptos, e no rosto o tal continuado ar de satisfação.

Do vestuario podia dizer-se quasi o mesmo.--Não falseava o typo. Era
ainda inglez de lei.

Um pequeno fraque de panno azul, fabricado nas melhores officinas de
Yorkshire ou do West of England; as calças, curtas e estreitas, dentro
das quaes as descarnadas tibias podiam fazer o effeito do embolo em
corpo de pneumatica; as botas esguias e compridas, onde a elegancia era
sacrificada á solidez; gravata e collete alvissimos, como os de um lord
do parlamento, e, de inverno, vestidura completa de _gutta-percha_ que,
n'estas épocas utilitarias e prosaicas, veio substituir as impenetraveis
armaduras da idade média--taes eram as peças principaes do guarda-roupa
do honrado negociante. Coroava finalmente tudo isto o chapéo, aquelle
chapéo de fórma invariavel, castello roqueiro inaccessivel ás ondas
destruidoras da moda; baluarte inabalavel no meio dos ventos encontrados
dos humanos caprichos; o chapéo, cujo molde classico dá a um grupo de
inglezes um aspecto, que é só d'elles; o chapéo, expressão symbolica da
indole industrial e fabril da famosa ilha, pois desperta lembranças das
chaminés, que ouriçam o panorama das suas mais manufactureiras cidades.

Respirando, havia mais de vinte annos, a atmosphera perfumada do nosso
clima meridional, e bebendo, em todo este tempo, da propria fonte o
predilecto das mesas britannicas, o genuino _Portwine_--esse nectar,
cujo aroma, ainda mais que os da nossa atmosphera, é grato ás
pituitarias inglezas, Mr. Richard Whitestone não conseguira, ou melhor,
estas influencias, com todos os outros feiticeiros attractivos da nossa
terra, ainda não haviam conseguido de Mr. Richard Whitestone dois
importantes resultados:--a adopção dos habitos de vida peninsular,
contra os quaes antes reagia sempre com a inteira inflexibilidade de
suas fibras britannicas, e o respeito á grammatica portugueza, que, em
todas as quatro partes, maltratava com uma irreverencia, com um
desplante de bradar aos céos e de desafiar os rigores da férula mais
indulgente.

Não desmentia Mr. Richard a asserção do auctor das _Lendas e
Narrativas_, quando affirma que sempre que um inglez, em casos
desesperados, recorre a algum idioma estranho, nunca o faz, sem o
torcer, estafar, e mutilar com toda a barbaridade de um verdadeiro
Kimbri.

De facto, as cinzas de Lobato e de Madureira deviam agitar-se na
sepultura sempre que Mr. Whitestone fallava, porque as regras mais
triviaes de regencia e de concordancia eram por elle atropelladas com
uma frieza de animo, com uma fleugma, com uma impassibilidade, somente
comparaveis ás de um membro do _Jockey-Club_, ao passar com o cavallo
por cima do corpo de algum transeunte inoffensivo ou competidor
derrubado na arena.

Não era mais feliz a prosodia, a alatinada prosodia d'este recanto
peninsular.

As combinações grammaticaes de Mr. Richard, ao fallar a nossa lingua,
saíam marcadas com um verdadeiro cunho britannico. Venus, a propria
Venus, perderia aquellas illusões, que nos refere o cantor dos
_Lusiadas_, se porventura ouvisse o portuguez que elle pronunciava.

Transparecia de alguma sorte nas orações do seu discurso o credito
liberal de um verdadeiro cidadão de Londres. O espirito conciliador e
ordeiro, o constitucionalismo arreigado n'aquelle animo inglez, e
adhesão aos principios interventores adoptados no seu paiz, parecia
haverem-se estendido, extravagantemente, ao campo da syntaxe portugueza,
levando Mr. Richard, n'um excesso de tendencia harmonisadora, a tentar
n'ella concordancias de substantivos e adjectivos contra a absoluta e
insuperavel repugnancia de generos e de numeros; e a modificar a
constituição grammatical de um paiz alliado, como a Inglaterra gosta de
modificar a sua constituição politica.

O effeito reunido d'aquella prosodia e syntaxe era ás vezes de uma
resultante comica que não actuava impunemente sobre os ouvidos, aliás
não muito pechosos, dos collegas commerciaes, em cujos labios sorrisos
de malicia mal disfarçada vinham por instantes afugentar a sisudez de
profissão.

Mr. Whitestone percebia-os e bem lhes suspeitava o sentido, mas era
completamente indifferente ao que percebia e suspeitava.

Se o contradissessem na pronuncia de uma palavra ingleza, embora das
mais controvertidas, se descobrisse um sorriso nos circumstantes, na
occasião em que elle estivesse fallando a patria lingua, então sim,
então era possivel que chegasse a exaltar-se a ponto de quasi ameaçar o
imprudente com uma irreprehensivel applicação da nobre sciencia dos
_boxers_, quasi divina arte do sôco, que, desde Jack Brougton, tem sido
cultivada em Londres «com fanatismo e ensinada com talento»--textuaes
palavras de um escriptor _ex-professo_.

Mas os sorrisos, que lhe valiam as atrocidades praticadas por elle nas
grammaticas estrangeiras, esses, soffria-os com impassivel indifferença
e não sei até se com certos vislumbres de orgulho e regosijo.



II


MAIS DUAS APRESENTAÇÕES, E ACABA O PROLOGO


O honrado chefe da casa Whitestone tinha dois filhos: uma gentil _lady_,
mimosa planta do Norte transplantada, aos dois annos, para o nosso
clima, e um rapaz, mais novo do que ella, e nascido já em Portugal.

Eram Jenny e Carlos.

Jenny era uma d'estas jovens inglezas, cuja suavidade e correcção de
contornos, alvura e delicadeza de tez e puro dourado dos cabellos, lhes
dão uma apparencia tão subtil e vaporosa, e, quasi direi, tão celestial,
que se espera a cada passo vel-as desprenderem-se da terra e
dissiparem-se, como instantanea visão luminosa, diante dos olhos, que
por momentos offuscaram.

Delicadas, como o arminho, que chega quasi a subtrahir-se á sensação do
tacto, de delicado que é, estas poeticas organisações septentrionaes
possuem tanto de vago, tanto de immaterial, que, junto d'ellas,
apodera-se de nós, entes profanos e grosseiros, certo invencivel
constrangimento, como se receiassemos com um sôpro desvanecel-as,
crestal-as com o olhar, maltratal-as com o gesto.

Os desejos não vôam até alli; rodeia-as uma atmosphera de virginal
castidade, no seio da qual esses filhos alados da imaginação abatem-se
asphyxiados.

Bellezas, como ella, foram por certo as que inspiraram as imagens de
virgens dos cantos de Ossian ao espirito de quem quer que foi seu
auctor, d'aquellas virgens, que o bardo comparava á neve da planicie e
cujos cabellos imitavam o vapor do Cromla, dourado pelos raios do
occidente.

Se no azul meigo dos olhos de Jenny se não concentrava o fogo das
paixões de um coração ardido, nem se descobria a scintillação
denunciadora de phantasias exaltadas, havia n'elle não sei que
mysteriosa e suave luz, como se de reflexo levado para alli do mais
intimo da alma; os labios, delgados e levemente comprimidos, não se
agitavam sob o imperio de tumultuosos sentimentos, mas fixavam-se em
continuo sorriso, expressivo de affabilidade e de brandura, promettedor
de placidas, mas duradouras felicidades; o seio, sempre modestamente
afogado no vestido liso e singelo, embora não tivesse o arfar
voluptuoso, que arrebata as imaginações, animava-se da ligeira
ondulação, denunciadora do sereno sentir da mulher, a quem Deus confia
os destinos da familia; d'esses sympathicos vultos de mãe, de irmã e de
esposa, por todos encontrados ou sonhados ao menos uma vez na vida,
astros inaccessiveis ás violentas tempestades, que tantas vezes ameaçam
o horizonte domestico, anjos pacificadores entre os seus, que com todos
repartem carinhos e afagos, que com lagrimas e sorrisos a todos consolam
e recompensam; se, vendo Jenny, podia ainda lembrar o amor, era o amor
da mulher sempre casta que, ao estender a fronte candida aos beijos
affectuosos do esposo, baixa ainda os olhos, córando com todo o pejo de
uma primeira entrevista, e fita-os no berço do filho adormecido sob a
vigilancia dos seus cuidados.

A estatura esbelta da joven ingleza, o andar, sem os requebros languidos
das nossas elegantes, a fronte pura e de gracioso modelo, coroada por um
diadema de formosos e desadornados cabellos louros, o olhar entre
affavel e melancolico, a voz meigamente sonora e cadenciada, tudo emfim,
de modo inexplicavel como variadas phrases da mysteriosa linguagem da
belleza, denunciava os encantos, as doçuras d'aquelle caracter feminino,
tão alheio a fraquezas mundanas, que mais se dissera angelico.

Sentia-se, vendo-a, que para ella nunca o amor seria um passatempo, um
capricho apenas, gosado entre risos, terminado sem lagrimas. Talvez
nunca tão violenta paixão a chegasse a dominar até; porém, se nascesse,
seria como essas plantas, que mal se desentranham em galas de folhagem e
de flores, mas que se prendem por tenazes e penetrantes raizes ao solo
d'onde brotaram.

Em Jenny, a paixão de amante, a ter de lhe inquietar o coração,
difficilmente se revelaria, a não ser adivinhada; mas depois, se o
fosse, ou havia de consagrar-se na de esposa, de sublimar-se na de mãe,
ou lentamente a consumiria; ser-lhe-hia fatal, se por não comprehendida,
não chegasse a realisar essa santificada evolução.

Almas assim estão talhadas ou para a felicidade celeste ou para a maxima
tortura; que eu não sei de outra maior, do que a d'aquelles que
concentram em si o soffrimento e suffocam todas as manifestações de dor,
quando ás vezes a revelação lhes poderá dar lenitivo.

Mas o céo de Jenny era ainda limpido, e amena a corrente da vida.

Um rapido e imperceptivel movimento de labios, um desvanecido contrahir
de fronte e--a não ser illusão isto,--um como escurecer do puro azul
d'aquelles olhos amoraveis, eram os unicos vestigios das raras luctas
travadas entre a sua razão poderosa, bem que de mulher, e os impulsos de
diversos affectos, lucta sempre decidida pela victoria da primeira.

Mas eram raras essas nuvens, tão raras como diaphanas, tão diaphanas
como passageiras.

Estava-lhe quasi sempre no seio aquella mesma placidez que se lhe lia no
semblante.

E nem porisso se julgue frio e insensivel o caracter d'ella; animavam-o
tambem os raios vivificadores dos sentimentos, que nos prendem á terra;
mas, com o influxo da vida, não transmittiam esses raios a lavareda que
destroe.

Será menos energico e abençoado o calor do sol, porque não inflamma os
bosques e as cidades, como o incendio que a mão do homem ateia? Mas um
cobre de verdura os prados e de flores os ramos, e alumia o hemispherio
inteiro; o outro calcina as plantas que abraça, e a pouca distancia
estende a sua claridade fatal; qual será mais poderoso e effectivo?

Em Jenny os affectos do coração pareciam-se com as chammas dos
lampadarios sagrados, que, em honra de Deus, illuminam o interior dos
templos. O vel-as luzir eleva o pensamento a meditar cousas do céo.

Ha entes assim, que tudo santificam; paixões, que n'uns acalentam
vicios, são n'elles efficazes impulsos para sublimes virtudes.

O calix, que, em mãos profanas, preside aos banquetes e ás orgias,
consagrado no altar, transforma-se em symbolo mysterioso da mais augusta
religião.

Deus desce tambem a muitas almas, para tornar em holocausto digno de si
as paixões originarias d'ellas.

Carlos era, sob muitos respeitos, differente da irmã.

Inglez pelo sangue, meridional pelo clima, onde vira, a primeira vez, a
luz do dia, onde passára a infancia, onde sentira as primeiras commoções
da adolescencia, o despertar da vida do coração, tinha um caracter que
se ressentia d'esta, de alguma sorte, dupla nacionalidade.

Da peninsula recebera o enthusiasmo, a viveza de imaginação, a
impetuosidade de sentimentos, que raras vezes reprimia; vinham-lhe da
Gran-Bretanha a força de vontade, a pertinacia, o estoicismo, com que,
em certas occasiões, surprendia a quantos julgavam conhecel-o;
vinham-lhe até, da mesma fonte, algumas excentricidades de manifesta
herança paterna--efficaz inoculação de britannismo, que não lhe
consentiria mentir á origem, se alguma vez o tentasse.

Ainda que algum tanto estouvado, não deixava porisso Carlos de possuir
um generoso e compassivo coração, alma sensivel a todos os infortunios,
olhos a que a piedade não permittia serem estranhas as lagrimas.

Se, por acções mal refreadas, por palavras irreflectidas, as fazia
tambem verter, era elle o primeiro a accusar-se, a compadecer-se, a
procurar enxugal-as por toda a qualidade de sacrificios.

Capaz de heroica abnegação em bem dos outros, se frequentemente se
esquecia de beneficios recebidos, como se poderia censural-o, quando,
habituado a realisal-os maiores, não exigia tambem dos favorecidos a
gratidão em recompensa, parecendo até desconhecer os direitos que tinha
a ella?

Corajoso até á imprudencia, liberal até á prodigalidade, sincero até á
rudeza desattenciosa, os seus maiores defeitos não passavam de nobres
qualidades, levadas ao excesso.

O que elle não sabia, ou não podia, era conserval-as no ordeiro meio
termo, tão respeitado pela sociedade.

O sangue dos vinte annos fazia doudejar aquella cabeça; os instinctos
generosos faziam o tormento d'aquelle coração, porque se uma, em
momentos de exaltação, conseguia romper com as generosas repugnancias do
outro, a reacção era infallivel, e este, mais tarde, obrigava-a a
arrepender-se, descobrindo, e exagerando até as nem sempre remediaveis
consequencias dos seus desvarios e caprichos.

Carlos era d'estes homens, que encerram e alimentam no proprio seio o
seu principal inimigo.

Entre Carlos Whitestone e o pae existia um cordial e puro affecto, ainda
que disfarçado, em ambos elles, sob apparencias de frieza e de reserva
da mais genuina indole britannica. Raras vezes se procuravam os dois, e
sempre que, nas occasiões ordinarias, se viam juntos, poucas palavras
trocavam. Quando mais solta se desenvolvia a loquacidade de Mr. Richard
na presença do filho, era ao saborear os ultimos calices, depois do
jantar de familia; mas, ainda então, a conversa quasi se reduzia a uma
especie de extenso e variado monologo, recitado por aquelle e
interrompido por este apenas com algumas phrases de assentimento, em que
predominavam os _Yess_, ao mesmo tempo que os labios se armavam de um
sorriso de complacencia--nem sempre segura fiança de attenção.

Carlos respeitava o pae, amava-o até com extremos capazes de lhe
inspirarem os maiores sacrificios, e comtudo evitava-o, como se, junto
d'elle, se não achasse á vontade.

E não achava, de facto.

Possuia Carlos um d'estes genios, que não supportam constrangimentos; ou
hão de romper com elles ou evital-os.

Calava-se, onde não podia abandonar-se aos caprichos de uma conversa
futil; entristecia, onde lhe fossem estranhadas as expansões de uma
alegria infundada, de um d'esses irresistiveis jubilos de creança, que,
como tal, em puerilidades se revela. Dessem-lhe a liberdade de poder ser
estouvado, vel-o-iam talvez sisudo; mas, forçado a isto, tornava-se
sombrio e de mau humor.

Ora a austeridade de costumes de Mr. Richard Whitestone, a rigidez dos
seus principios de decoro e de respeito ás praxes da etiqueta ingleza,
exerciam sobre Carlos uma influencia, contra a qual não tinha coragem de
revoltar-se; e porisso fugia-lhe.

No pae via quasi sempre um juiz severo e inflexivel, prompto a julgal-o
e a condemnal-o talvez; e Carlos, que habitualmente trazia na
consciencia algum peccado de juventude a remordel-a, e que não confiava
no seu poder de dissimular, furtava-se, quanto podia, ás investigações
do jury paternal, sempre antevistas por elle e bem longe ás vezes do
intento de Mr. Richard Whitestone.

Este, de seu lado, não amava menos extremosamente o filho; para as
verduras da mocidade era indulgente, como, em tempos passados, desejara
e precisara que fossem tambem comsigo; Deus sabe que esforços lhe
custavam até estes sisudos ares de convenção, tão oppostos ao fundo de
desafogada jovialidade do seu caracter, e que não conseguiam dissipar o
sorriso, que tinha como que stereotypado nos labios.

Julgava elle, porém, do dever de pae e natural mentor, que era de
Carlos, conservar sempre certo ar de hombridade e de quasi rudeza para
com o estouvado, que, não raro, lhe estava dando motivos para mais
severas penas.

Á sua precisão britannica repugnavam longos discursos de moral e
prolixas catecheses. Laconico, n'estas cousas, por systema e por
espirito nacional, nunca usava de parabolas para chamar ao aprisco a
ovelha tresmalhada.

Um unico «Ho!» mas pronunciado com aquella expressão, que só a larynge
britannica lhe sabe dar, um _ho_ aspirado, guttural, eloquente, inglez
emfim, combinado a um abanar de cabeça rapido e desapprovador, e a dois
ou tres particulares estalidos de lingua, eram os signaes de impaciencia
e de desagrado que Mr. Richard manifestava, e dos quaes mais se temia
Carlos, do que se temeria de qualquer menos concisa formula, sob que
podesse revelar-se a censura paternal.

Dia, em que aquelle fatal «_oh!_» lhe tivesse soado aos ouvidos, já não
se confiava despreoccupado a inteiro prazer; passava-lhe uma nuvem no
firmamento azul da juventude, limpido como o de poucas.

Promettia então emendar-se; solemnemente a si proprio o promettia, mas
cêdo a promessa era esquecida até que nova e similhante occasião a
renovava.

Outro era o sentir de Carlos para com a irmã.

Jenny era o seu anjo bom, e o anjo bom da familia toda, a meiga, a
benigna fada, cujo olhar serenava as tempestades, e desanuviava o sol.

Com sorrisos decidia, para o bem, os combates de paixões. Debil e
delicada era aquella mão, mas quantas vezes Carlos a encontrára
interposta entre si e o precipicio, para lhe servir de amparo! Delgado e
vacillante imaginar-se-hía aquelle braço, mas firme o sentia ella sempre
ao ter de sustentar o irmão na quéda imminente, ou de eleval-o até si.
Branda e suave lhe saía dos labios a voz, mas só ella se fazia escutar
dos ouvidos, quando o tumulo das paixões os ensurdecia.

Não havia segredo entre os dois. De pequeno se costumára Carlos a vir
contar a Jenny quasi todas as acções da sua vida, boas ou más que ellas
fossem.

Referia-lhe, um por um, e com sincera ingenuidade, os pensamentos
dominantes do dia, e mais do que uma vez conseguira vencer-se, quasi ao
ceder á tentação de actos menos generosos, só para não ter de os
confessar depois a este affectuoso juiz, e merecer-lhe uma amigavel
reprehensão entre sorrisos ou o mal reprimido movimento de desgosto
d'aquelles bonitos labios, o que devéras o magoava.

Nem menos o affligiriam os remorsos, se procurasse subtrahir-se á pena,
não denunciando o delicto. A consciencia costumava censurar-lhe tambem
estas faltas, nas raras vezes que as commettia.

Jenny, igualmente attendida pelo irmão e pelo pae, servia-se d'esta
duplicada influencia para harmonisar toda a familia, nos momentos de
receiada discordia.

Com uma palavra extinguia qualquer irritação, que as extravagancias de
Carlos podessem ter produzido no animo de Mr. Richard; com outra
dissipava no irmão as menores tendencias á insurreição, tão naturaes á
idade e temperamento d'elle contra alguma medida repressiva, posta, de
quando em quando, em pratica pelo pae, como em ultimo recurso.

Frequentes vezes o pequeno erario de Jenny abrira-se a solver dividas,
imprudentemente contrahidas por Carlos, e a remediar todas as más
consequencias das suas leviandades. Estava sempre prompta a advogar-lhe
os pleitos, a minorar-lhe as culpas.

Mas tambem o que ella não conseguisse de Carlos, ninguem mais na terra o
conseguiria.

Deixar adivinhar desejos, era formular pedidos; uma supplica,
timidamente expressa, valia por uma ordem imperiosa. E comtudo Jenny
nunca procurava tornar apparente este predominio; antes se esforçava por
o dissimular.

Conhecendo, mais por muito reflectir do que por experiencia, que não a
tinha, os mil mysterios e caprichos do coração humano, toda a sua
admiravel diplomacia feminina estava em saber fazer-se obedecida,
brincando; em aceitar e agradecer, como concessões espontaneas, o que
lhe dizia a consciencia ser o resultado de suas insinuações e pedidos.

Desenvolvia-se de ordinario uma perfeita tactica, e engenhosamente
tecida da parte de Jenny, em quasi todas estas conferencias intimas
entre os dois irmãos.

Virtuosa e sympathica hypocrisia, com que Jenny, para dominar, se
humilhava!

Quando os anjos nos imitam na dissimulação, ainda então não perdem a sua
candura. São sempre anjos. Roçam com as azas pelo lôdo do mundo, mas
levantam-se immaculados.

Quem ensinára a Jenny, cuja vida se deslisára quasi toda no tracto
intimo de sua pouca numerosa familia, esta sciencia do coração, que
dizem só adquirir-se no muito lidar com os homens e com o mundo? Já o
indicamos:--a sua indole pensativa, os seus habitos de reflexão. Mais se
aprende na leitura meditada de um só livro, do que no folhear
levianamente milhares de volumes. Assim tambem no estudo dos caracteres.
Observadores ha, que, após annos e annos gastos a viver com os homens,
morrem em ingenua ignorancia a respeito d'elles; outros que, na solidão
do gabinete, perscrutam no proprio coração os segredos dos mais,
decifram-os, porque, descobertas ahi as leis principaes e communs a toda
a natureza humana, facil é adivinhar depois as secundarias, d'onde
procedem as differenças. Surprende devéras quando se vê saír d'esses
cantos obscuros um homem a todos desconhecido, e que a todos parece
conhecer. Como e onde aprendeu este homem tudo isto? Pela observação
desapaixonada em si, ou, quando muito, nos seus mais proximos; depois a
intelligencia, vigorada por este ensino, abalançou-se, guiada por
vestigios na apparencia insignificantes, a inducções fertilissimas.

Carlos não sabia resistir muito tempo á irmã. Sem suspeitar que cedia,
recuava passo a passo. Aproximava-se do fim, onde a habil contendora o
queria levar, e, ao attingil-o, ficava surprendido de haver realisado,
com tão pouco custo, suppostos sacrificios, cuja ideia só, momentos
antes, o tinha feito desanimar de emprehendel-os.

Por não differentes processos, cada dia se vergava, por assim dizer, ás
mãos de uma creança o caracter geralmente considerado inflexivel de Mr.
Richard Whitestone.

E com tal habilidade aprendera Jenny a occultar estas pequenas, mas
importantes victorias, que a todo o instante obtinha sobre os seus, que
mal vinha á ideia do bom _gentleman_, quando, muito convencido do que
dizia, se jactava de ser firme nas suas resoluções, e pouco propenso a
revogar projectos formados, que, n'aquelle mesmo momento talvez, lhe
estavam dando seus actos solemne desmentido.

Taes eram os principaes membros da familia Whitestone, com quem
travaremos mais intimo conhecimento nos varios capitulos d'esta
singelissima historia, em cujo decurso, desde já o declaramos, para não
alimentar illusorias esperanças, a acção prosegue desimpedida de
complicadas peripecias.



III


NA AGUIA D'OURO


Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855.

Havia menos estrellas no céo, do que mascaras nas ruas. Fevereiro, esse
mez inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau
humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes severidades e
dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de nuvens negras que
se levantavam do sul. Graças á cheia do Douro, a cidade baixa podia bem
prestar-se n'aquella época a uma parodia do carnaval veneziano.

Á porta dos theatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos
vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoavam os
ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados nas
lojas circumvizinhas aos principaes salões de baile, pendiam vestuarios
correspondentes a todas as épocas e a todas as nações, e alguns, aos
quaes não era possivel assignar época, nação, classe ou condição social
conhecida.

Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de
mascaras á venda e tornavam o transito n'aquellas ruas quasi
impraticavel. Era uma fascinação analoga á que produz um conto de
Hoffmann em imaginações excitaveis, e exercida n'elles por tantas
mascaras enfileiradas, cuja diversidade comica de expressão e de gesto
lembrava um enxame de cabeças mephistophelicas, surgindo á luz para se
rirem das loucuras da humanidade.

Estes absortos contempladores a cada passo vinham a si,
desagradavelmente acordados pelas pragas energicas dos conductores de
carruagens, prestes a atropellal-os, ou pela interjeição pouco
harmoniosa dos cadeirinhas obrigados por causa d'elles a irregularidades
no andamento da sua grave e benefica tarefa. Só então, e ainda a custo,
se dispersavam, para, alguns passos mais adiante, se agglomerarem de
novo.

Se é licito comparar as grandes ás pequenas cousas, veremos n'estes a
imagem de todos os inoffensivos scismadores d'este mundo, a quem sempre
cruelmente vem despertar o embate dos afadigados em emprezas positivas.

A animação era geral na cidade.

Todos corriam com ancia... a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.

Alguma cousa havia tambem na Aguia d'Ouro, a anciã das nossas casas de
pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos,
particulares e artisticos d'esta terra; alguma cousa havia n'essa
modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os
olhares de quem passava.

Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcellanas,
o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das
vozerias tumultuosas, e dos _hurrahs_ ensurdecedores rompiam, como uma
torrente, do acanhado portal d'aquelle bem conhecido edificio; e por
muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos
rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda,
através do grande rumor, que enchia as ruas.

Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou
abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens
contradictorias, vinham apressar os collegas na cozinha ou entretinham
com promessas os impacientes convivas da sala.

No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade
estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo
culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se
sorrateiro e cabisbaixo.

Sob apparencias de modestia, a Aguia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada
de não sei que magestade, condigna do seu emblema.

A luz escassa de um lampeão da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que
corôa a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais
brilhantes do que os do costume.

Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que
entender a ministerios e a emprezarios lyricos, não podia haver duvida.

Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no
olhar certo ar de preoccupação, certa importancia no gesto, como se
effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.

O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da
hospedaria.

Estavam desertos os logares d'aquella abafada quadra, em cujas paredes
ainda então existiam, e ameaçavam perpetuar-se, reproducções, em lona,
dos combates que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz
amortecida dos candieiros não dissipava as sombras dos recantos.

O marcador do bilhar cabeceava com somno.

Os bailes de mascaras tinham derivado d'alli até os homens politicos.
N'aquella noite as discussões sobre a guerra da Crimeia, então na ordem
do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.

Não é pois n'este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu
pretendo demorar o leitor.

Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e
corredores, penetremos na sala d'onde provém o ruido de festa que já
noticiamos.

O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades
architectonicas não requerem tambem as fadigas da descripção.

É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.

Chegamos, porém, tarde.

O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar
vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.

Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas
as posições, algumas indescriptiveis.

A vozeria é atordoadora. A confusão póde dar uma ideia de Babel.

Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com
uma rapidez, que surprende e embaraça os proprios interlocutores;
attenção, que se desvie um segundo, é attenção perdida; não encontra
depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se;
momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos;
mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasiões, todas as bôcas
fallam, cada um se escuta a si; n'outras algum orador consegue por
instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um
gesto, restabelece a independencia primitiva. Dão-se tambem verdadeiros
encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve
ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros
objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a
expressão do pensamento.

Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar
o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto,
discute-se politica e julgam-se n'um momento, e com a mais desenganada
critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares
da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes
fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradavel prática, o
dialogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo
exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas
e ovações; juntos d'este, dois enthusiastas de hippicultura fazem a
historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria
philosophia allemã fornece alimento á animação dos discursos; e tudo
isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em
todas as linguas.

Seria igualmente difficil determinar o elemento commum dos individuos
reunidos alli.

Ha-os das mais diversas condições; desde o joven padre, que põe a
tractos a sciencia e a paciencia dos cabelleireiros para disfarçar,
quanto for possivel, os vestigios da tonsura, até o official do
exercito, todo possuido das branduras civilisadoras do seculo e para
quem a mesma caça é occupação barbara e afflictiva da sensibilidade;
ha-os das mais diversas idades, desde o collegial de hontem, ainda
imberbe e embriagado com as primeiras commoções da vida de adolescente,
até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de
lhe ir contando os annos, deixa passar a geração, contemporanea sua, e
insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; ha-os em diversas
circumstancias monetarias, desde o capitalista, que vê correr descuidado
a fonte dos seus rendimentos, com tranquillisadora confiança no
inesgotavel manancial que a alimenta até á classe dos _encostados_,
verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a
imaginação a fabricar systemas quotidianos para os manter, embora á
custa de humiliações n'aquella atmosphera, fóra da qual já não sabem
respirar; ha-os de todos os graus de intelligencia, desde o escriptor
applaudido e que, sem favor ou com elle, conquistou reputação nas
lettras, até o analphabeto, cujas sandices são saudadas com gargalhadas
que ninguem procura reprimir na presença d'elle proprio.

Finalmente, esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de
vista tão heterogeneos, é uma porção da sociedade, que pretenciosamente
se decora com o titulo de elegante e para pertencer á qual é difficil
fazer resenha dos requisitos necessarios; pois que nem a propria
elegancia--na verdadeira accepção do termo--é dote generico dos seus
membros.

O motivo do jantar... O jantar não tinha motivo e era esta outra
circumstancia que o caracterisava. Um jantar póde muito bem ser motivo
de si mesmo: sendo possivel d'elle dizer-se de alguma sorte, em
linguagem philosophica, que tem em si a «razão sufficiente da sua
existencia».

Na companhia encontraremos alguem já conhecido nosso.

E como, até agora, só tenho apresentado ao leitor tres pessoas, não será
prova de grande perspicacia, da sua parte, adivinhar qual d'essas tres
será.

Effectivamente é Carlos Whitestone um dos convivas e não dos mais
sisudos.

Ficava proximo da cabeceira da mesa. Carlos era quem mais vezes
conseguira encaminhar a um fito unico todas as attenções e modificar a
assembleia a ponto de se lhe poder referir o _conticuere omnes_ da
_Eneida_;--verdade é que não tão completamente o fizera como o heroe
troyano, pois nem tinha destruição de Ilion a descrever, nem a paciencia
dos tyrios a escutal-o.

Carlos Whitestone passava por estar muito em dia com os boatos comicos e
escandalosos, de que sempre e em toda a parte é tão sôfrego o paladar
social.

Por isso o escutavam todos com prazer.

Sinto que não chegassemos a tempo de ouvir o principio da narração, que
elle levava em meio.

--O nosso homem--dizia Carlos, accendendo um charuto no de um
jornalista; seu vizinho--apesar do aviso que recebera, resolveu na
melhor das boas fés...

--Então é a boa fé dos maridos--commentou a meia voz um padre, que,
atrazado nas operações gastronomicas, investia com denodo contra um
tymbale de pombos, ainda miraculosamente intacto, e acrescentou:--Não
sei de outra, que a exceda.

--Regula por essa a dos amantes ingenuos--acudiu Carlos ao commentario.

--Mas é de menos consequencias--respondeu o outro.

--Silencio, padre Manoel!--bradaram algumas vozes--Vamos lá, Carlos; e
depois?

--Depois--proseguiu Carlos--enfeitou-se, perfumou-se, aparamentou-se,
frisou-se...

--E tingiu-se; que não esqueça--acrescentou do fim da mesa uma voz.

--E tingiu-se; sim--disse Carlos--e feitos todos estes aprestos,
caminhou para a entrevista.

--E como se realisava essa entrevista?--perguntou um militar.

--De uma maneira muito singular;--proseguiu Carlos--o conselheiro, todas
as noites, depois de pousar na relva o chapéo, a bengala e as luvas,
trepava como um eschilo, pela faia que fica junto da varanda e...

--Ora! Impossivel!--exclamaram alguns, rindo.

--Palavra!

--Isso é contra todas as leis da mechanica, aquelle bojo...--principiou
a dizer um estudante da Universidade.

--Pelo contrario;--atalhou outro--é exactamente o bojo que o faz subir.
Lembra-te do principio de Archimedes. Os aereostatos...

A quéda do conselheiro seria uma bella experiencia para um curso de
physica...

--Divertida...--annotou uma voz.

--Como exemplificando as leis da quéda dos graves... um tão _grave_
personagem--concluiu o primeiro.

Estes sujeitos guindavam o _calembourg_ ao supremo grau da escala do
espirito.

--Então? deixem fallar Carlos; e depois?--disseram alguns curiosos.

Carlos continuou:

--N'aquella noite, porém, estava reservada ao conselheiro a mais triste
surpreza; ao entrar na espessura da folhagem, deu de cara com o outro.

--Com o Victor?

--Exactamente, com o Victor. Imaginem agora vocês o soberbo dialogo, que
se seguiu ao encontro.

--Devia ser preciosissimo! Que harmonioso certame de rouxinoes!

--O conselheiro principiou talvez por dizer-lhe:


  _Tytire, tu patulæ recubans sub tegmine fagi
  Formosam resonare doces Amaryllida silvas_


--Protesto contra o _recubans_. A posição de Victor era menos commoda.

--_Mutatis mutandis_, já se sabe.

--Ó padre Manoel, dize-nos como a tua latinidade exprimiria a posição em
que estava o Victor.

--Não interrogues o padre. Não vês que elle está, como os antigos
agoureiros, consultando as entranhas das aves? respeitemos a solemnidade
do acto.

--Mas as consequencias, Carlos, quaes foram as consequencias?

--As consequencias foram as que vocês já sabem, o conselheiro...

N'este ponto, a narração de Carlos foi interrompida por o criado da
hospedaria, que se aproximou d'elle para lhe entregar a carta.

--Com a sua permissão, meus senhores,--disse Carlos, preparando-se para
abril-a.

--Bravo!--exclamou o jornalista--temos carta de algum Ecco impaciente.

--_E un foglio a me lasció_--cantarolou um _dilettante_, voltando as
costas da cadeira para a mesa.

--É a proposta de capitulação de alguma Troya sitiada--disse o militar.

--Cheira-me a fumo de gambiarra e ribalda; temos intriga de camarim.

--Antevejo então uma descarga de bilhetes de beneficio, a que poucos
escaparemos.

Carlos sorria, ao abrir a carta.

--Ó Carlos, olha que são perigosos para as digestões os sobresaltos de
coração--notou o estudante de medicina.

--Socega; é um excitante a que já estou habituado--respondeu Carlos.

De repente tornou-se serio.

--Má nova!--disseram alguns.

--O caso complica-se.

--As exigencias da beneficiada sobem até o acrostico, querem ver?

--Não é isso; aposto que mais outro conselheiro trepa uma segunda faia,
e d'esta vez vinga o collega, na pessoa de Carlos.

Carlos não os escutava já. Ergueu-se, aproximou-se do aparador, e
escreveu no verso do bilhete, que recebeu, algumas palavras á pressa.

Emquanto fazia isto, os companheiros do festim, fingindo dictar-lhe a
resposta, diziam:

--Meu anjo, se no céo...

--Vôo nas azas do amor...

--Qual outro Leandro, eu, naufrago...

--Minha Heloïsa; se o infortunio de Abeillard...

--Julieta, quando o rouxinol...

Carlos voltou para a mesa, depois de fechar a carta e de entregal-a ao
criado.

Esforçava-se por manter nos labios o sorriso; mas o esforço era visivel,
circumstancia que, como sempre, lhe annullava o effeito.

--Que é isso?--disse o militar, que lhe ficava defronte--respiraste a
peste n'essa carta?

--O nosso Manrique terá de correr a salvar a sua Leonora das garras de
um conde de Luna?--disse o _dilettante_.

--Ulysses voltou aos lares domesticos; o que vale por um mandado de
despejo aos...

--Um capellista, menos attencioso, insiste pelo prompto pagamento de uma
avultada conta de enfeites.

--Um dominó leva a sua ingratidão até...

--Já vão numerosas as hypotheses--disse Carlos, enchendo um calix de
vinho e procurando conservar ás suas palavras o tom jovial do principio
da noite; depois acrescentou:--Este bilhete era para me recordar...

--Ai! recordações!...

  _Te souviens tu, de même,
  De nos transports brulants_...

--Para me recordar que era hoje o dia dos meus annos--concluiu Carlos.

--Devéras!

--É o que eu te digo.

  _Quan tu m'as dit: «je t'aime!»
  J'avais alors vingt ans_.

--E estavas calado com isso.

--Se o ignorava! Quando o soubesse a tempo, não me teriam aqui.

--Então? Receber-nos-hias em tua casa?

--Tambem não. Costumo consagrar estes dias exclusivamente á vida de
familia.

--Oh! oh! sentimentalismo!

--Britannico! Pés no _fender_, _punch_ na mesa, _Times_ na mão. E de
quando em quando um monossyllabo rosnado, ou uma interjeição, que produz
na garganta o effeito do acido prussico. Delicioso!

--Deve ser um céo aberto!

--Mas céo inglez, um pouco turvo de nevoeiros.

--E de carvão de pedra.

--Não esquecendo uma paraphrase de algum texto biblico.

--E umas variações vocaes sobre motivos do _God save_.

Carlos sorriu, respondendo:

--Creiam-me, de vez em quando, tem seus prazeres tambem um dia passado
assim.

Eu quero acreditar que, dos circumstantes, muitos, se não todos, sentiam
a verdade do que acabára de dizer Carlos, e tambem possuiam faculdades
para apreciar estes intimos gosos de familia; mas envergonhavam-se de
fazer tão claro, e em plena ceia de carnaval, tal confissão. Que querem?
não está em moda trazer o coração á vista. É costume tratar, como
ridiculas, todas as manifestações de sentimento; consideram-se como
pequenas fraquezas que com milhares de outras, só se devem confiar na
discrição das quatro paredes do nosso quarto.

Carlos porém não sabia dissimular; com verdadeira convicção e franca
ingenuidade, dissera aquellas palavras, que lhe valeram allusões
epigrammaticas ao que elles chamavam «respeitabilissima tendencia para
pae de familias».

O bilhete, que motivára esta scena e que parecia haver impressionado
devéras Carlos, era da irmã e dizia apenas:


«Charles.

É hoje o dia 19 de fevereiro. Fazes vinte annos. Julguei que seria
desnecessario pedir-te para nos dares o prazer de te vermos comnosco. O
pae esperava-te. Adeus.

_Jenny_.»


A este pequeno bilhete, Carlos respondeu apenas:


«Jenny.

Confiaste de mais na minha memoria; acredita que me esqueci. Não me
succederia o mesmo de certo, se, em vez do meu, fosse o dia do
anniversario de qualquer de vós. Fazes-me a justiça d'essa supposição,
não é verdade? Agora não posso valer-lhe. Obriguei-me a seguir até o fim
companheiros tão doudos como eu; e, quando os deixasse, não sei se ainda
iria em estado de poder, sem profanação, sentar-me ao teu lado, á santa
e patriarchal mesa de familia. Bem vês que nem vale a pena festejar o
dia, em que veio ao mundo mais uma cabeça leve. Ámanhã te pedirei
perdão... Como me lembrei tambem de fazer annos na segunda-feira de
entrudo?!

Teu mau irmão

_Charles_.»


A final, após algumas explicações mais, um dos convivas levantou-se e
empunhando o calix:

--Meus senhores, proponho que saudemos o anniversario de Carlos--bradou,
em tom de brinde.

--Apoiado--responderam todos, imitando-o.

--Carlos--continuou o primeiro--bebo aos teus vinte annos! Contes pelos
trezentos e sessenta e cinco dias, que se vão seguir ao de hoje, as
paixões que fizeres nascer; e possas tu...

--Não se admittem longos _speeches_; olá! Bebamos!--disse uma voz.

--É sempre mais expressivo o gole que entra, do que a phrase que
sáe--acrescentou outra.

--Até porque, devendo sempre dar-se a primazia ao mais sabio, é o vinho
que a merece; pois é elle, n'este momento, o que mais _sabe_.

--Ora faze-nos o favor de nos poupar, ao menos agora, á difficil
digestão dos teus _calembourgs_.

--Então? Bebamos!--insistiu o côro.

E o brinde foi geral.

Carlos correspondeu constrangido áquella saudação. Parecia-lhe estar
vendo Jenny a olhal-o com uma expressão de amigavel desgosto; Jenny, a
unica a fazer companhia ao velho negociante, que não pouco devia ter
sentido a ausencia do filho. Durante toda a noite já não era para o
pobre rapaz dissipar completamente aquella impressão penosa.

Apoderára-se de Carlos Whitestone um pensamento fixo, um quasi remorso
de se ver alli; e este effeito, se não lhe distrahia completamente a
attenção dos assumptos, que na sala se tratavam, enfraquecia-lhe a
intensidade d'ella a ponto de nem já tomar parte nas discussões, nem o
occuparem, por muito tempo, as ideias aventadas por os outros.

Á placa da camara escura, não preparada na officina photographica, é
comparavel o pensamento, em occasiões assim. Lá se gravam ainda as
imagens das cousas exteriores, mas, não as fixando a attenção,
dissipam-se rapidamente, removidos os objectos que as motivaram.

D'ahi o tom distrahido e indifferente das raras observações feitas por
Carlos no resto da noite, e a impaciencia de algumas respostas, que foi
forçado a dar.

Entre muita cousa, que se disse na sala, eis o que elle ouviu, sem
escutar; a qualquer d'estes assumptos não costumava Carlos, nas
ordinarias disposições de espirito, recusar attenções, nem esquivar a
concorrencia propria.

O jornalista, que ficava ao lado d'elle, interpellou-o pela preoccupação
em que o viu.

Ora uma observação qualquer da parte d'este jornalista tendia fatalmente
a degenerar em longa revista litteraria, que era difficil interromper.

--Que tem você, homem? O tal bilhete produziu um effeito quasi
apopletico. Coragem! É negocio de coração? Alguma loura e nevada _miss_?
hein? Oh! as inglezas! A desassombrada candura do seu suavissimo _to
flirting_!--d'aquelle _flartar_, como, com tanta razão, traduz Garrett,
á falta de melhor vocabulo.

E elle ahi principiava:

--Você já leu Garrett, Carlos? Que me diz d'aquellas _Viagens_, hein?
Oh! é inquestionavelmente o melhor dos seus livros. Prefiro-as ás de
Xavier de Maistre. Que eu não participo da admiração geral por Xavier de
Maistre; é preciso que saiba.

Pausa, durante a qual saboreou um gole de Xerez. Depois de alguma
asserção mais arrojada, a pausa era de rigor.

Carlos, já se sabe, não redarguiu. N'este intervallo, pôde ouvir o
conviva proximo, que dizia:

--Eu agora o que desejava era ter, pelo menos, trezentos contos de réis;
ia d'aqui a Paris; depois...

O jornalista proseguiu:

--Xavier de Maistre inspirou-se de Sterne; é evidente; ficou porém a
grande distancia d'elle. A _Viagem sentimental_, sim. Oh! A _Sentimental
journey_. É um livro delicadamente temperado de uma certa especiaria
philosophica, unica que se combina com vantagem á litteratura amena. O
_humour_ morreu com Sterne.--Pausa.--A demasiada philosophia gela a
inspiração litteraria. Ahi tem Pope. É frio, é árido, é
marmoreo.--Pausa.--Os poetas francezes não teem tanta tendencia para se
deixarem _philosophicar_, permitta-me o neologismo. Victor Hugo, ás
vezes... Qual prefere você, ó Carlos, Lamartine ou Victor Hugo? Victor
Hugo é mais byroniano. E é notavel que fosse Lamartine quem cubiçasse o
_Childe Harold_. Força de contrastes! Aquelle _Childe Harold_! aquelle
_Childe Harold_! Que me diz você áquelle _Childe Harold_? É o unico
poema verdadeiramente romantico, que se tem escripto até
hoje.--Pausa.--Perdôo-lhe o _Poor, paltry slaves_! com que nos mimoseia.
E note que eu não sou admirador cego do Byron.

Nova e maior pausa, durante a qual o orador accendeu um charuto.

Carlos continuava calado.

Percebeu então que n'um grupo vizinho se dizia:

--Quem tem uma bonita parelha é o visconde de Custoias.

--Melhor é a do Manoel Galveias.

E mais adiante:

--Perdão, menino; mas para mim a synthese não é uma mera condensação dos
factos analyticos; a synthese precede a analyse, e dá a esta a força que
vae buscar ao mundo interior, isto é, verte n'ella o immutavel, os
principios evidentes; Kant...

O jornalista continuava:

--Eu não me regulo pela critica convencional. É o meu systema. Não me
resolvo a entoar _amen_ á opinião dos povos.--Pausa.--Por exemplo, tenho
a sinceridade e a coragem de confessar que não me fascina Dante.

Grande pausa.

--Padre Manoel--dizia n'esta occasião, do fundo da mesa, um dos
convivas, apontando para o calix, que levava aos labios--_Ecce Deus qui
lætificat juventutem meam_.

O padre sorriu, mas não disse nada. Comia.

--Porque a final de contas--proseguiu o discursador--você ha de
concordar commigo; Dante é um rapsodista quasi como Homero. Que é a
_Divina Comedia_, senão o compendio das crenças religiosas d'aquelle
tempo?

Pausa.

--O que ha a respeito da revolução carlista em Pamplona?--ouviu Carlos
perguntar.

--Nada mais se sabe por emquanto, apenas que estão implicados alguns
sargentos, cabos e paizanos--respondia outra voz.

E continuava a dissertação litteraria:

--O grande merecimento de Dante é o da fórma. Lá essa qualidade tem
elle. Logo os primeiros versos:

  _Nel mezzo del cammin di nostra vite_...

Acho porém dotes superiores em Boccacio.--Então que quer? É um espirito
encarnado em corpo de menor vulto, mas... você já leu o _Decamaron_?
Deve ler. É um livro excepcional. Ha n'elle alguma cousa que vae além do
seculo, em que foi escripto. E esse é o signal supremo do genio. As
imitações de La Fontaine são pallidas. Desengane-se. La Fontaine, a
final, era contemporaneo de Luiz XIV. N'aquella côrte não podia existir
a verdadeira inspiração. Abomino a litteratura d'esse tempo. Detesto
Luiz XIV e o seu seculo.--Pausa.--Molière salva-se, mas porque? Porque o
genero comico tem uma índole especial. Não é a inspiração que o regula;
é a analyse, é a reflexão philosophica.

--Eu aposto--berrava um politico--que se os alliados se metterem a dar o
assalto a Sebastopol, não fica um só vivo.

--Veremos--questionava outro.--Deixa Omer-Pachá occupar a estrada de
Sebastopol a Simphirepol e depois fallaremos. Olha que elle já
desembarcou na Eupatoria com quarenta mil homens.

O jornalista continuou:

--Ha um unico homem que admiro, em qualidades comicas, mais do que
Molière, é Rabelais. Oh! o Rabelais é o meu livro! Ha tres livros que
nunca tiro da minha banca de estudo, nem da minha mala de viagem.

--É a _Biblia_, os _Lusiadas_ e o _Paulo e Virginia_. Já sei. É o
costume--disse emfim Carlos, levantando-se, já impaciente e procurando
subtrahir-se á torrente de perguntas, respostas, apreciações criticas,
cotejos e citações, que saíam, em tom categorico, da palavrosa bôca do
vizinho.

--Não ha tal--respondeu este, porém, tomando-lhe o braço e levantando-se
igualmente.--Esses são a formula dos tres grandes sentimentos da alma--o
da religião, da patria e do amor;--bem o sei; mas confesso-lhe, o que,
por temperamento, mais me seduz é a pintura social e a analyse das
paixões, e só tres homens as fizeram bem: Lesage, Richardson e Rabelais.
A creação de Pantagruel e Gargantua é famosa!

--Quem dizes tu que tem uma garganta famosa?--exclamou, voltando-se, um
_dilettante_, por traz de cuja cadeira os dois passavam n'aquelle
momento..--Fallas de Ponti? Oh! que mulher! Que vocalisação! Que
sentimento!

--Ahi tornas tu com a Ponti--disse um velho rapaz, pronunciado
adversario da prima-donna e um da numerosa seita, que passa metade do
anno a suspirar pelo theatro lyrico e outra a dizer systematicamente mal
das companhias escripturadas.--És capaz de sustentar que vae bem na
_Norma_. Se ouvissem a Rossi-Cassi...

--A Rossi-Cassi! Oh! por quem és, desalmado! Não sacudas reputações
cobertas pelo pó do tempo! Pff! Que poeira! Vive da actualidade.

--Fallar na Rossi com esse enthusiasmo de conhecedor equivale a um
assento de baptismo feito pelo menos em 1800.

--Nego--bradou embespinhado o velho rapaz.

--_Parce sepultis_--disse o padre.

--_Lascia la donna in pace_--trauteou outro _dilettante_.

Carlos e o jornalista tinham passado adiante. O jornalista ia já a
fallar em librettos de operas, em Felice Romani, em Manzoni, no _Ei fu_!
do _Cinque maggio_... etc., etc., etc...

Carlos foi retido agora pela mão de um rapaz, junto do qual tinham
chegado.

--Aqui está quem nos póde informar--dizia o que o segurava.--Ó Carlos,
dize-nos uma cousa: conheces a Laura Viegas?

--Não--respondeu Carlos, distrahido.

--Conheces por força. A filha do Viegas, d'aquelle brazileiro, que
comprou a quinta do Pedroso.

--E então?

--Mas conheces? Bem. Que dote achas tu que terá aquella rapariga?

Carlos encolheu os hombros, significando a sua ignorancia e preparava-se
já para seguir para diante, quando outro, a quem igualmente preoccupava
esta sciencia dos dotes, o segurou por sua vez.

--Não tem que ver; o Viegas não lhe póde dar mais de nove contos.

--Triplique, e não lhe faz favor nenhum--disse, do alto da mesa, o
padre, conseguindo passar esta nota por meio de uma briga travada entre
os mais disparatados assumptos.

--Ora ahi tens!--disseram os disputantes, aceitando o auxilio, como de
valia provada.

O padre limpava tranquillamente os beiços e enchia um calix de malvasia.

--Então diz o padre Manoel que o Viegas...

--O Viegas tem pelo menos...--dizia de lá o padre, elevando o calix
entre os olhos e a luz, e revendo-se na limpidez do licor; e antes de
completar a phrase, levou-o á bôca e despejou-o de um trago.

Depois continuou:

--Tem pelo menos ... pelo menos...

Aqui, enxugou os labios e emfim concluiu:

--Sessenta e sete contos de réis.

--Ora!

Carlos passára para o outro lado da mesa, seguido ainda do jornalista,
que lhe ía dizendo:

--É a questão do dia--O dinheiro--A litteratura resente-se...

E d'aqui passou a fallar de Alexandre Dumas, filho, de Emile Augier, de
Ponsard ... etc., etc...

--Deixa-te d'isso;--dizia no ponto da sala a que os dois chegavam, um
rapaz imberbe e ainda em estudos de preparatorios--a Emilia Victorina é
outra qualidade de mulher. Ainda hontem, em casa do barão de Tavares, me
encontrei com ella. Trajava de Maria Stuart. Era uma perfeita rainha,
uma mulher distincta, esplendida.

--Foi, foi; já não é. Descobriam-se-lhe os primeiros estragos, quando em
ti appareciam os primeiros dentes.

--A idade...--dizia outro.

--Ora a idade! a idade! A mulher tem sempre a idade que parece ter.

--Concordo; mas, depois dos quarenta e tantos annos, a mulher parece ter
a idade que tem.

--Barbaro! Ó Carlos, que dizes tu?

--Digo que sim--respondeu Carlos, que nem attendera á discussão.

--Está esta creança do Duarte a affirmar que prefere a Emilia Victorina
á Marianna Prazeres.

--E prefiro, repito.

--Não sejas impio. Quem não acha admiravel aquella bonita cabeça da
Marianna?

--E a mão? Aquella mão comprida e delgada, onde as veias se desenham em
azul; a verdadeira mão artistica, aristocratica.

--No assumpto «mãos», peço licença para citar a primeira...--das
provincias do Norte pelo menos, a da Clementina Rialva--lembrou um
individuo, a quem a conversa arrancou a uma quasi modorra.

--Apoiado!--entoaram muitas vozes.

--A proposito da Clementina Rialva--exclamou uma chronica viva de boatos
do dia--sabem que o Chico da Lousã, sempre a tira por justiça?

--Devéras?!

--Asseverou-m'o hontem o Brito, que, como sabem, é todo d'elle.

--Terrivel catastrophe!

--Deixa lá. O Chico o mais que quer é empregar-se. Ora o Rialva, pae,
tem influencia e, feitas as pazes do estylo...

--Sim, as pazes sentimentaes dos quintos actos dos dramas.

--Que influencia tem o Rialva?--perguntou, encolhendo os hombros, um
mallogrado aspirante á eleição popular.

--Não. Está feito! O cunhado é empregado na secretaria do reino...

--E o ministerio deve-lhe serviços.

--Estás enganado. Foi moda fallar-se ahi muito nos serviços eleitoraes
do Rialva; pois eu digo-vos que elle nem quatro votos arranjou ao
Roboredo.

--Como não arranjou? Ó menino! Pois quem levou lá o Roboredo?

--Quem levou lá o Roboredo, foi...

--Eu te digo, Pires; elle teve em tempo alguma influencia no ministerio,
mas depois de um certo emprego na alfandega que pediu para o sobrinho, e
que não obteve, abandonou a regeneração...

--Que sobrinho? O que nós em Coimbra chamavamos o gigante Polyphemo? Oh
que alarve!

--Sempre foi um homem, que teve a habilidade de concluir o curso, e que
nunca se pôde conformar com a existencia dos antipodas. Dizia elle que
até lhe fazia mal pensar na posição incommoda, em que haviam de viver
esses pobres diabos, se existissem...

--E um dia em que elle...

Unisona e estrepitosa gargalhada, partindo de um grupo, que estava já em
pé no outro extremo da sala, interrompeu a historia.

Todas as attenções e todos os olhares convergiram para alli.

Eram quatro os rapazes que riam e riam até lhes caírem as lagrimas dos
olhos. Junto d'estes, o quinto mostrava, em certo ar constrangido,
poucas disposições para expansão igual.

--É impagavel este homem!--dizia um dos que riam.

--Que foi? que foi?--perguntavam os que não faziam parte do grupo, rindo
já com anticipação tambem.

O dos ares constrangidos respondeu:

--Não façam caso; são doudos.

--Que foi? digam--insistiam todos na sala.

--É aqui o Claudio Pires, que fez uma das suas descobertas.

--Eu disse...--tentou este interromper.

--Silencio!--bradaram muitos a um tempo.

--O Claudio!--continuou um dos que mais ria--ouvindo aqui o Lourenço
fallar com elogio em um systema de comportas que viu no estrangeiro,
observou-nos que havia de se dar bem por lá, porisso que nada se lhe
accommoda melhor com o estomago, depois de jantar, do que as comportas.

--Comportas de marmellos, ou assim uma cousa, é o que eu disse.

A justificação foi suffocada por um côro geral de gargalhadas.

--O barbaro era capaz de roer os diques dos Paizes Baixos e sacrificar a
Hollanda a uma geral inundação.

--Que terrivel capricho estomacal!

--Vejam do que está dependente a sorte dos imperios! Esta escapou a
Volney!

E os ditos succediam-se, e cruzavam-se os epigrammas, e a confusão subia
de ponto com isto.

Até que emfim uma voz dominou o tumulto.

--Reparem que são onze horas e que é tempo de fazermos a nossa entrada
solemne nos bailes de mascaras.

Era o velho rapaz que fallava, e erguendo-se da mesa, exclamou, enchendo
o calix:

--Ás nossas conquistas d'esta noite!

--Apoiado!--disseram todos, imitando-o.--Ás nossas conquistas.

E seguiu-se tal arrastar de cadeiras, que parecia uma tempestade.

Passados alguns minutos, desembocavam do portal da Aguia os joviaes
companheiros, depois de um jantar, que durara oito horas.

Os passos de muitos resentiam-se do emprego d'esta terça parte do dia.

Um dos convivas, que estivera até alli quasi sempre silencioso, tomou
então o braço de Carlos e, apoiado n'elle, caminhou, com movimentos mal
seguros, por o largo da Batalha, dizendo em tom confidencial e quasi
commovido, estas palavras, que ia entremeiando com prolongadas
aspirações no tubo do volumoso cachimbo.

--Carlos, tu és meu amigo; talvez o único amigo que eu tenho... Por isso
vou confiar de ti a ultima das impressões que eu revelei em verso... Eu
gósto de fallar d'isto só com quem me entenda. Os poetas precisam de um
coração para ecco. Almas de sensitiva...

Apesar da intimidade, em que ia feita a confidencia, muitos dos que a
ouviram acercaram-se d'elle, porque tinha certa nomeada o engenho
poetico e improvisador do que fallava assim.

Alguns porém já tinham travado conhecimento com varias mascaras
desgarradas, que encontravam caminho do theatro. Dois seguiam cantando a
plenos pulmões o duetto da Lucia:

_O' sole più rapido a sorger t'apresta_

O poeta confidencial principiou a recitar com certo enthusiasmo quasi
selvagem, o seguinte hymno ao tabaco, o qual, devemos confessar, não era
muito para produzir ecco nos corações:

  No centro dos circulos
  De nuvens de fumo,
  Um deus me presumo,
  Um deus sobre o altar!
  Nem d'outros thuribulos
  Me apraz tanto o incenso,
  Como o d'este immenso
  Cachimbo exemplar!

  Em divans esplendidos,
  Cruzadas as pernas,
  Fuma, horas eternas,
  O ardente Sultão.
  Subindo-lhe ao cerebro
  O magico aroma,
  Esquece Mafoma,
  Houris e Alcorão.

  Longe, oh! longe o opio,
  Que os sonhos deleita
  Da misera seita
  Dos Theriakis!
  Horror ao narcotico
  Que vem das papoulas!
  E ao que arde em caçoulas,
  No altar do Caciz!

  Que a raça gentilica
  Das zonas ardentes
  Consuma as sementes
  Do arabio café.
  Despejem-se as chavenas
  Da atroz beberagem
  Da côr do selvagem
  Da adusta Guiné.

  E a tal folha exotica,
  Delicias da China,
  Por nossa má sina
  Trazida de lá,
  Servida em familia,
  N'um morno hydro-ínfuso?...
  Anathema ao uso
  Das folhas do chá!

  Nem tu, ó alcoolico
  Humor dos lagares,
  Terás meus cantares,
  Meus hymnos terás.
  Embora das amphoras
  Vasado nas taças,
  Aos outros tu faças
  A lingua loquaz.

  Cerveja britannica,
  De furor espuma!
  De cousa nenhuma
  Me podes servir.
  Quando ouço do lupulo
  Gabarem proezas,
  Ás bôcas inglezas,
  Desato-me a rir.

  Nem venha da camphora
  Prégar maravilhas
  O das cigarrilhas
  Famoso inventor.
  Raspail é scismatico
  E eu sou orthodoxo,
  O seu paradoxo
  Não me ha de elle impôr.

  Meu canto é da America,
  Paiz do tabaco,
  Perante o qual Baccho
  Seu sceptro partiu.
  A Europa, Asia, e Africa
  E a terra hoje toda
  Este heroe da moda
  De fumo cobriu.

  Até na Laponia,
  Da gente pequena,
  Se fuma; e no Sena,
  No Tibre e no Pó,
  No Volga e no Vistula,
  No Tejo e no Douro;
  Que immenso thesouro
  Se deve a Nicot!

  Meus áridos labios
  Mais fumo inda aspirem
  Que os parvos suspirem
  Por beijos, aos mil.

  Não quero outros osculos,
  Não quero outra amante.
  Qual mais doudejante
  Que o fumo subtil?

  Tornadas Vesuvios,
  As bôcas fumegam.
  De nuvens que cegam
  Vomitam montões.
  Fumar! Oh delicias!
  Prazer de Nababo!
  E leve o diabo
  Do mundo as paixões!

--Bravo!--disseram quantos o escutavam, devéras enthusiasmados com a
musa do recitador.

O proprio Carlos sorriu, menos preoccupado já. Principiava a
dissipar-se-lhe a nuvem.

--Quem compra uma senha?!

--S. João! quem quer?

--Doze vintens, meus amos, doze vintens.

Com estes analogos pregões caiu um bando de negociantes de senhas sobre
os recem-chegados da Aguia, que trataram de obter bilhetes da melhor
maneira possivel. Cêdo entravam no salão do theatro, onde já centenares
de pessoas morriam de calor, de asphyxia e de tédio; e eram trilhadas,
apertadas, esmagadas quasi, aos encontrões dos mascaras, arrebatados
n'um galope vertiginoso.

O leitor, que todos os annos costuma saturar-se de fastio alli tambem,
com boa vontade me dispensará de o constranger a repetir mais outra vez
a operação, recordando essas horas de insipidez, a que se sujeita, sob
pretexto de gosar o carnaval no Porto, e para fazer o que todos
fazem;--uma das mais poderosas razões dos nossos actos na vida.

Pedindo venia por tanto tempo o haver demorado, em diversão fóra dos
seus habitos, provavelmente mais pacificos--o que fiz só por a
necessidade que tinha de mostrar em acção o caracter do nosso heroe e
exemplificar o seu systema de vida e sua companhia habitual--concordo em
que nos retiremos e vamos a scenas menos agitadas do que estas, que nem
consolam, nem divertem.



IV


UM ANJO FAMILIAR


Vae adiantada a manhã do dia seguinte áquelle, em que se passaram as
scenas descriptas já. São mais de onze horas, Carlos dorme ainda.

Recolhera-se á hora critica, em que principiam a desmaiar as estrellas
no firmamento, a agitarem-se nos ninhos as aves e a soarem na rua os
sócos de alguns operarios mais matutinos. Que admira pois que durma, a
sonhar talvez a continuacão, favoravel aos seus desejos, de qualquer
aventura incompleta do baile da vespera?

A situação da casa de Mr. Richard Whitestone facilitava esta infracção
dos direitos do dia, que se fez para vigilias e trabalho, e não para
sonhos e repouso.

O leitor, que é do Porto, quasi me dispensa de dizer-lhe que era o
bairro de Cedofeita aquelle, onde a familia Whitestone vivia.

Esta nossa cidade--seja dito para aquellas pessoas, que porventura a
conhecem menos--divide-se naturalmente em tres regiões, distinctas por
physionomias particulares.

A região oriental, a central e a occidental.

O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o
brazileiro; o occidental, o inglez.

No primeiro predominam a loja, o balcão, o escriptorio, a casa de muitas
janellas e de extensas varandas, as crueldades architectonicas, a que se
sujeitam velhos casarões com o intento de os modernisar; o saguão, a
viella independente das posturas municipaes e á absoluta disposição dos
moradores das vizinhanças; a rua estreita, muito vigiada de policias; as
ruas, em cujas esquinas estacionam gallegos armados de pau e corda e os
cadeirinhas com o capote classico; as ruas ameaçadas de procissões, e as
mais propensas a lama; aquellas onde mais se compra e vende; onde mais
se trabalha de dia, onde mais se dorme de noite. Ha ainda n'este bairro
muitos ares do velho burgo do Bispo, não obstante as apparencias
modernas que revestiu.

O bairro oriental é principalmente brazileiro, por mais procurado pelos
capitalistas, que recolhem da America. Predominam n'este umas enormes
moles graniticas, a que chamam palacetes; o portal largo, as paredes de
azulejo--azul, verde ou amarello, lizo ou de relêvo; o telhado de beiral
azul; as varandas azues e douradas; os jardins, cuja planta se descreve
com termos geometricos e se mede a compasso e escala, adornados de
estatuetas de louça, representando as quatro estações; portões de ferro,
com o nome do proprietario e a era da edificação em lettras tambem
douradas; abunda a casa com janellas gothicas e portas rectangulares, e
a de janellas rectangulares e portas gothicas, alguma com ameias, e o
mirante chinez. As ruas são mais sujeitas á poeira. Pelas janellas quasi
sempre algum capitalista ocioso.

O bairro occidental é o inglez, por ser especialmente ahi o _habitat_
d'estes nossos hospedes. Predomina a casa pintada de verde-escuro, de
rôxo-terra, de côr de café, de cinzento, de preto... até de
preto!--Architectura despretenciosa, mas elegante; janellas
rectangulares; o peitoril mais usado do que a sacada.--Já uma
manifestação de um viver mais recolhido, mais intimo, porque o peitoril
tem muito menos de indiscreto do que a varanda. Algumas casas ao fundo
dos jardins; jardins assombrados de acacias, tilias e magnolias e
cortados de avenidas tortuosas; as portas da rua sempre fechadas.
Chaminés fumegando quasi constantemente. Persianas e transparentes de
fazerem desesperar curiosidades. Ninguem pelas janellas. Nas ruas
encontra-se com frequencia uma ingleza de cachos e um bando de creanças
de cabellos louros e de babeiros brancos.

Taes são nos seus principaes caracteres as tres regiões do Porto; sendo
desnecessario acrescentar que n'esta, como em qualquer outra
classificação, nada ha de absoluto. Desenhando o typo especifico, nem
estabelecemos demarcações bem definidas, nem recusamos admittir algumas,
e até numerosas excepções, hoje mais numerosas ainda do que então, em
1855.

É claro pois que era n'este ultimo bairro que residia o illustre Mr.
Richard, e sua familia.

O nome da rua sou obrigado porém a occultal-o, para evitar indiscrições
mal sofridas em terras, onde todos se conhecem.

A casa, essa posso descrevel-a, ainda que o farei com o devido
artificio, para a não trahir para com algum leitor mais desoccupado.

Era uma das taes casas escuras, com vidraças de caixilhos brancos,
retirada ao fundo de um jardim, nas grades do qual se entrelaçavam tão
intimamente as folhas sempre verdes das Australias e os ramos floridos
de japoneiras gigantes, que resguardavam de vistas curiosas as avenidas
irregularmente traçadas por entre relva digna de uma paizagem ingleza.

A casa tinha um andar apenas, além do mirante. Uma especie de pavilhão,
ou corpo lateral, seguia um dos lados do jardim, e vinha abrir tres
amplas janellas para a rua, que era das menos frequentadas da cidade.

Era n'este pavilhão o quarto de Carlos.

Toda aquella residencia respirava certo ar de commodidade, certo
_confortable_, esse sympathico adjectivo do vocabulario inglez.

Andavam-lhe por longe as vozes discordantes da industria e do commercio,
tão funestas ás encantadas visões dos somnos matinaes.

Tudo parecia fomentar aquelle dormir reparador de Carlos, que ia
absorvendo a manhã inteira, pelo menos segundo a maneira de contar o
tempo dos poucos, que ainda hoje começam a dar as boas tardes logo
depois do meio dia.

Jenny nunca podia adormecer emquanto não ouvisse entrar o irmão,
circumstancia que, não obstante, lhe occultava para o não constranger
nos seus prazeres, ou de que apenas o fazia conhecedor, quando n'esse
constrangimento prevía utilidade.

Tendo por isso notado a hora avançada a que, d'aquella vez, Carlos
voltára a casa, deixava-o agora dormir para que restaurasse as forças
perdidas pela vigilia da vespera e porventura necessarias para vigilias
novas.

Como uma joven mãe, solicita pelo somno do seu primeiro filho, desde
manhã cêdo a viam os criados apparecer nas proximidades dos aposentos do
irmão, a prevenir e afastar o menor ruido, que podesse despertal-o.

No extenso corredor, que medeiava entre o quarto de Carlos e o resto da
casa, passeiava, desde o alvorecer, e com passos levissimos, essa doce
figura de mulher, como se fora o anjo da guarda d'aquelle estouvado, que
nem suspeitava sob que azas protectoras adormecera.

Ás vezes parava junto da porta de Carlos, e applicando ahi o ouvido
attento, parecia espiar o menor rumor que de dentro saísse, a
denunciar-lhe o acordar.

Depois afastava-se e dirigia-se lentamente para a sala opposta, onde ía
inspeccionar e dirigir os preparativos do _lunch_ de Mr. Richard, cujas
horas se aproximavam já.

N'uma d'estas occasiões, em que voltava de dentro do quarto do irmão,
encontrou-se com um criado, rapaz ainda, o qual, encostado á ombreira da
porta do jardim, parecia tão dominado por pensamentos penosos, que nem
lhe deixaram perceber a aproximação de Jenny.

A joven ingleza olhou-o com bondade, e parando junto d'elle
perguntou-lhe:

--Como está sua mãe, José?

O rapaz voltou a si e tomando logo uma attitude de respeito, respondeu:

--Hoje ainda não sei, minha senhora; hontem porém deixei-a bem mal.

--Hoje não sabe?!--exclamou Jenny, desviando o olhar para o relogio do
corredor, que marcava onze horas e meia--Não sabe, e é perto de meio
dia!

--Então, minha senhora? Como o snr. Carlinhos se levanta mais tarde...

--Vá vel-a, José, vá. N'aquelle estado, coitada!... Sabe lá a falta que
lhe estará fazendo?

--Mas, se...

--Vá; Carlos não lhe importa. Eu lhe direi. Ande, vá.

--Então muito agradecido, minha senhora,--disse o rapaz, sensibilisado
com a bondade da sua joven ama.

Jenny continuou passeiando.

Ao passar junto das escadas do mirante, parou, affirmando-se em alguma
cousa, que via n'ellas. Subiu dois ou tres degraus e curvou-se para
observar melhor; era uma penna de ave, que o vento transportára do pateo
para alli. Jenny não pôde reprimir um pequeno movimento de desagrado.

O escrupuloso amor do asseio, radicado no caracter e nos habitos
inglezes, não lhe permittia ver com indifferença aquillo.

--Varreram-se hoje estas escadas, Pedro?--perguntou ella a um criado,
com longo avental branco, que n'aquelle momento passava no corredor.

--Varreram, sim, minha senhora--respondeu este.

--Repare--acrescentou Jenny.--A fallar verdade são bem pouco cuidadosos.
Veja esse corrimão cheio de pó.

--É que se tornou a sujar. O vento...

--Seria; mas não tira que se limpe outra vez.

--De certo; eu vou já.

--E olhe--continuou Jenny, indicando as vidraças, que davam para o
jardim--passe tambem com um panno humedecido por esses vidros tão baços
e dê lustro aos metaes dos fechos.

--Sim, minha senhora; e digo tambem ao hortelão que ensaibre o jardim;
depois da chuva que tem caído bem precisa d'isso--lembrou o criado, como
todos os d'esta classe, mais zeloso em superintender nas tarefas dos
outros do que em cumprir as suas.

Jenny fez um gesto de assentimento e passou para diante. Entrou na sala
de jantar.

Lançou o olhar para a mesa, onde, sobre toalha de alvissima bretanha,
brilhavam os mais puros crystaes e mais preciosa louça ingleza.

Esteve algum tempo a examinar com attenção as particularidades do
serviço, accusando por vezes no gesto algum defeito que percebia.

--Pedro--chamou ella por fim, apoiando a mão no espaldar da cadeira,
destinada a Mr. Richard.

O criado, que andava no corredor, acudiu ao chamamento.

--Então onde pôz a mostarda?

--Ai! é verdade.

O criado correu ao aparador a buscar esse indispensavel artigo da
cozinha britannica.

--Veja como dobrou esse guardanapo.

O criado apressou-se a corrigir a imperfeição notada.

--Aquelle pão não é o que o pae quer para os _lunchs_. Bem sabe.

--Tem razão, minha senhora.

O pão foi substituido com celeridade, verdadeiramente ingleza.

--Desvie mais para o centro aquellas flores. Tão perto do fiambre não;
chegue o prato mais para cá. Assim. Veja esse trinchador como ficou.
Ficou peior agora. Assim. Ponha o _Times_ ahi ao lado. Está bom. Póde
ir.

Ficando só, por suas proprias mãos deu ainda um geito particular a tudo,
attendendo a pequenas circumstancias muito do agrado de Mr. Richard e de
que só ella tinha conhecimento; necessidades pueris, mas necessidades a
final, e de que ninguem é isento. Correu as cortinas das janellas, para
dar á sala aquellas meias sombras discretas, tanto do gosto inglez, e
voltou de novo ao corredor.

Alguns passos dados, veio a ella uma criada, ainda nova, com os olhos
baixos e maneiras enleiadas.

--Que tem, Luiza?--perguntou-lhe Jenny.

--Venho dizer adeus a _miss_ Jenny, porque me vou hoje embora.

--Como vae embora! Quem a mandou?

--Ninguem, mas...

--Não está bem?

--Se estou, mas...

--Então?

--A _miss_ Jenny sabe que a minha irmã estava a servir ahi para fóra da
cidade. O trabalho era muito, coitada, e ella era tão fraca! Lidou
quanto pôde, até que emfim caíu doente. Vae para casa de minha mãe. Mas
como ha de tratal-a a pobre de Christo? ella, quasi entrevada e cega?
Meus irmãos andam todo o santo dia por fóra, e para pagar á
enfermeira?... Quem pensa n'isso? Assim vou eu... e, quando ella se
achar melhor, se a _miss_ Jenny me quizer outra vez...

--A Luiza não póde de modo nenhum deixar-nos agora.

--Mas...

--Escute; se quizer tratar de sua irmã, traga-a para ahi.

--Ó minha senhora...

--Prepare-lhe aquelle outro quarto do mirante.

--Seja por amor de Deus...

--Olhe, Luiza--apressou-se a interrompel-a Jenny--vá ver se me aprompta
aquelles punhos que eu lhe disse, vá.

--Vou já fazel-o, minha querida senhora--disse a rapariga, a quem
palpitava o coração alvoroçado de contentamento.

N'isto ouviram-se gritos agudos, desentoados, pungentes, que fizeram
parar Jenny e assombraram-lhe a fronte serena de uma nuvem de tristeza.
Vinham do andar superior aquelles gritos.

O criado, vendo-a parada a escutal-os, disse meio compungido, meio a
sorrir:

--É a snr.ª Catharina; tem estado desde hontem tão impaciente!

--Pobre Kate!--murmurou Jenny, suspirando--e subiu com ligeireza as
escadas, que conduziam ao mirante.

Catharina ou Kate, segundo a familiar abreviatura ingleza, era uma
criada octogenaria, que tinha sido ama de Mr. Richard e jazia agora,
paraplegica e demente, n'um dos quartos da casa, vigiada com carinho
pela familia Whitestone e com impaciencia, a custo reprimida, por os
criados e criadas. Em certos dias os accessos da velha eram furiosos e
as suas imprecações, em lingua mestiça de portuguez e de inglez, e os
seus gritos horripilantes punham em alvoroço toda a casa. Em momentos
assim era difficil apazigual-a; tão violentas gesticulações fazia, que
poucos eram os braços para impedir-lhe que se maltratasse.

--Cães!--bradava ella agora, n'aquelle estranho _imbroglio_ linguistico,
impossivel de reproduzir aqui e que fazia rir as criadas que a
seguravam--Cães! Teem-me aqui presa! Querem matar-me á fome! á fome! Mas
deixem estar que em vindo Dick... Elle ha de vir, ha de vir! Larguem-me!
Dick! Dick!--Era o nome familiar que ella dava ainda a Mr.
Richard.--Dick! pois assim queres matar-me? assim queres ver-me morrer?
Não tens pena de mim? Dick! Fui eu que te trouxe ao peito, eu... Olha
que sou a pobre Kate Simpleton. Dick! Dick! Livra-me d'estes demonios,
que me querem afogar. Que mal te faço eu, para me deixares morrer?
Larguem-me!

E por um esforço inesperado d'aquelles braços emaciados e fracos, soltou
os punhos das mãos, que os seguravam, e levando-os ás faces, feria-se no
rosto encarquilhado e contrahido.

N'isto entrou Jenny no quarto.

A velha apoderára-se de uma faca, que por descuido lhe tinham deixado ao
alcance da mão.

Jenny fez signal ás criadas para que se afastassem do leito e
aproximou-se d'elle.

--Cuidado, _miss_ Jenny!--disse a despenseira, gorda, ruiva e sardenta
matrona ingleza, que suava ainda com o esforço que sustentára.

--Cautela, menina!--repetiu a outra criada, musculosa portugueza dos
arredores da Maia--Olhe que ella é perigosa n'estas occasiões.

Jenny não as attendeu.

Chegou-se ao leito da velha demente e passou-lhe nos pulsos as mãos,
delicadas e debeis.

A velha estremeceu e fitou n'ella o olhar espantado e ameaçador.

--Bons dias, Kate--disse-lhe affavelmente Jenny, sem que no rosto,
risonho e sereno, se desenhasse a menor sombra de receio.

Kate ficou a olhal-a por algum tempo d'aquella maneira.

--Então que ruindade é esta hoje, Kate? Nem me conheces?

A velha principiou a socegar; conservava-se porém ainda muda, e não
desviava de Jenny os olhos espantados.

--Não me conheces, ama?--continuou esta, em tom mais affectuoso--Kate,
então? Já nem queres conhecer a Jenny?

O rosto da octogenaria illuminou-se com um sorriso estranho, selvagem
quasi; a cabeça principiou a agitar-se-lhe em movimento affirmativo,
que, pouco a pouco, augmentou de velocidade, até á rapidez de certos
desordenados gestos proprios d'aquelles estados de espirito; a mão
soltou a faca que ainda segurava.

--Eu logo vi que me conhecias--dizia Jenny, afastando-lhe
compassivamente os cabellos da fronte enrugada.--E has de estar quieta,
não has de?

--Sim, sim--dizia a velha, a rir como creança, e lançava os braços em
volta do collo de Jenny, aproximava-a do seio e beijava-a, murmurando
com voz chorosa as mais ternas expressões de affecto da lingua ingleza.

--Sim, sim, _poor thing_; sim--repetia muitas vezes, cingindo-a a cada
momento mais a si.

--Ai, _miss_ Jenny, _miss_ Jenny!--dizia a despenseira aterrada.

Jenny fez-lhe signal com o dedo, a impôr-lhe silencio, ou a mandal-a
saír.

A demente, tomando a cabeça de Jenny, principiou a balançar-se como a
adormecer creanças, e cantava ao mesmo tempo uma melancolica toada, com
a qual, havia cincoenta annos, adormecera já o pequeno Dick, actualmente
Mr. Richard Whitestone.

Eis o sentido da canção que, em dialecto escossez, ella cantava:

  Dorme, filho, que eu vigio,
  E emquanto dormes, sorri;
  Que a tua porção de lagrimas
  Eu as chorarei por ti.

Jenny não lhe offerecia resistencia. A velha chorava, cantando; a voz
ia-se-lhe a enfraquecer gradualmente; por fim tomou-a um d'aquelles
profundos somnos, que parece, n'esses estados, participarem já do
caracter do somno final, que não vem longe.

Adormeceu entoando em voz já mal percebida:

  A tua porção de lagrimas...
  Eu as chorarei... por ti...

Jenny desprendeu-se-lhe então dos braços, conchegou-lhe a roupa, fechou
a janella, e, recommendando silencio aos criados, desceu.

No fim dos degraus encontrou sentado o jardineiro da casa, com o rosto
entre as mãos e soluçando.

--Que é isso, Manoel?

O velho ergueu-se com sobresalto.

--Ai, menina Jenny, é que... veja.

E apontou para o degrau da porta do jardim, onde jazia partido um vaso
de porcelana com uma preciosa begonia.

--Como foi isto?--perguntou Jenny.

--O pae mandou-me trazer do quarto d'elle para a estufa este vaso e
tanto cuidado me recommendou! e vae eu... veja a minha desgraça, logo ao
descer a escada escorrego... Valha-me Deus, valha!

--Socegue. Meu pae não lhe ha de ralhar muito...

--Pois sim; mas se elle tanto me recommendou! E era um vaso de tanta
estimação! Ai, como me principia hoje o dia, Senhor.

Jenny viu, commovida, a afflicção do velho, que nem tinha coragem para
apresentar-se diante de Mr. Richard.

A bondosa rapariga baixou-se, e tomando os dois fragmentos do vaso, onde
se continha ainda a terra com a begonia, uniu-os cuidadosamente, e
descendo ao quintal, caminhou, segurando-os, em direcção da estufa.

--Onde vae, menina?--dizia o jardineiro admirado.

Jenny não lhe respondeu.

O velho seguiu-a.

Ao aproximar-se da estufa, onde Mr. Richard labutava em cuidados de
jardinagem, Jenny disse-lhe, levantando a voz:

--Não quiz confiar a ninguem este vaso, porque... Ai!

Era o vaso, que lhe caía das mãos, e vinha fazer-se pedaços no chão, á
entrada da estufa.

--Oh!--disse Mr. Richard, correndo em soccorro da begonia.

--Vêem, vêem!--dizia Jenny, fingindo-se consternada--como Deus me
castiga a presumpção!

--É verdade--disse Mr. Richard agachado--um vaso tão bonito! Creança!
Olhem para esta pobre begonia! Como ficou!

--Está vingado, Manoel--continuou Jenny.--Eu a desconfiar de si, e
vae...

O velho hortelão não podia fallar; emquanto Mr. Richard examinava os
estragos da begonia, elle cobria de beijos a mão de Jenny, que não pôde
retiral-a a tempo.

Era meio dia.

--Vamos,--disse Jenny a Mr. Whitestone--perdôe-me a culpa e venha ao seu
_lunch_.

Mr. Richard olhou affectuosamente para a filha, a quem afagou nas faces
e, separando-se com um suspiro da begonia, seguiu para casa, murmurando,
a sorrir:

--Estouvada! buliçosa!

No degrau da escada não escapou á vista aguda de genuino inglez a terra,
que ficára alli, como vestigio do delicto de Manoel. Jenny, que o
percebeu, apressou-se a dar uma causa ao facto.

--Fui eu que estive a mudar aquellas raizes, que vieram de Inglaterra...

--Já! Não sei se seria bom. Vamos ver como ficaram.

--Agora não, que são horas do seu _lunch_.

Mr. Richard não insistiu e dentro de alguns segundos procedia já aos
preparativos d'esta refeição matinal.



V


UMA MANHÃ DE MR. RICHARD


Mr. Richard era de uma rigorosa pontualidade nos seus actos de vida
domestica. Logo pela manhã, depois de uma leitura de _Biblia_ e de uma
revista á preciosa collecção de aves e de insectos de Inglaterra, que
possuia, consultando a proposito os livros de Yarrell, Shuckard, Rennie,
e de outros especialistas da localidade, passava a gosar no jardim das
bellezas matutinas e a exercer a sua paixão florista, cavando, mondando,
semeiando os seus bem guarnecidos canteiros. Esta occupação matinal de
Mr. Richard, forçoso é confessal-o, não era demasiadamente favoravel ao
horto, para com o qual elle tinha aliás as melhores intenções d'este
mundo.

Apesar de no seu gabinete se encontrarem constantemente abertos livros
de botanica e de horticultura desde a _Flora Londinensis_ de Curtis e as
obras completas de Lindley, até ás publicações periodicas das varias
sociedades horticolas de Londres, Mr. Richard Whitestone costumava fazer
sciencia por sua conta e risco. Despresando os preceitos dos escriptores
theoricos, juntamente com a experiencia provada do velho Manoel,
ensaiava ás vezes processos, não referidos nos manuaes de jardinagem,
com grave detrimento das mimosas e raras plantas, cuja acquisição, por
todo o preço, obtinha nos melhores mercados da Europa e principalmente
no _Covent-Garden market_ e no _Pantheon de Oxford Street_.

A natureza tinha sempre muito que fazer ao remediar os resultados da
arte do velho commerciante.

Felizmente para o aspecto geral do jardim, Mr. Richard Whitestone era
exclusivo nas affeições floristas. A uma unica planta dedicava, em cada
época do anno, os seus cuidados horticultores. Por aquelle tempo, eram
as begonias as suas predilectas. Ia um destroço n'ellas, occasionado por
tanto amor e cuidados, que consternava o velho Manoel, devéras
affeiçoado ás plantas.

Mr. Whitestone ensaiára nas pobres uma especie de rega, á qual grande
numero succumbiu. Era um liquido artificial de uma composição indigesta,
e em que elle procurára reunir todos os elementos, que julgára mais
proprios para lhes desenvolver a vegetação.

--Isso queima-lhe as folhinhas!--aventurára-se a dizer Manoel, vendo Mr.
Richard a temperar aquella caldeirada.

--Cala a bôca, tolo. Verás como ficarão viçosas.

Á vista do resultado, Mr. Richard teve porém de abandonar o processo,
mas sem se dar por vencido.

--É que estes vasos são pouco porosos... Hei de mandar vir de Londres
uns.

Era uma maneira muito de Mr. Richard, esta de sair das situações
apertadas. Appellava sempre para Londres, como fiel inglez que era.

N'estes entretenimentos levava pois o tempo até á hora do _lunch_.

Voltava então a casa. Era uma verdadeira hecatombe de ostras qualquer
refeição d'estas. O mercado do Porto a custo póde satisfazer as
exigencias dos numerosos malacozoofagos da colonia ingleza, entre os
quaes Mr. Whitestone occupava logar eminente. O _roast-beef_ á ingleza,
ou o fiambre, a mostarda, as batatas, a bolacha, a cerveja, o queijo de
consistencia pastosa forneciam tambem estes _lunchs_, accommodados á
robustez d'aquelle estomago saxonio, descendente dos que ainda no quinto
seculo da era christã eram antropophagos--segundo affirma o auctor da
_Viagem de Jersey a Gran-ville_.

Carlos fazia de ordinario companhia ao pae n'este repasto matinal. Mr.
Richard gostava de ver o filho junto de si, em tão solemnes momentos,
comquanto não trocasse com elle meia duzia de palavras; passados os
cumprimentos iniciaes, era costume seu abrir o _Times_ e acompanhar o
acto manducatorio da leitura d'este interminavel jornal, interrompendo-a
apenas por alguma certa phrase a recommendar ou criticar um ou outro
prato.

Porisso a ausencia de Carlos n'esta manhã cavou-lhe uma ruga de
descontentamento na fronte, que os ares do jardim haviam expandido, e
suspendeu-lhe a aria festiva, mas por elle um tanto estragada, que entre
dentes vinha trauteando ao entrar na sala.

Esta musica era a de uma das melodias de Russell, popularissimo
compositor e vocalista inglez, a cujas salas, por aquelle tempo, corria
em Londres a multidão ávida e enthusiasta, com o fim de o ouvir cantar
as proprias composições, que elle mesmo acompanhava ao piano. Nas salas,
nos theatros, nas ruas e nos campos, tanto na Inglaterra, como na
America do Norte, lê-se em noticias d'essa época, repetiam-se as
composições d'este musico notavel, cujo caracter nacional se
aperfeiçoara na convivencia da escola italiana, sem perder com isso,
diz-se, o cunho da originalidade.

De entre a collecção de melodias, ou cantos populares, publicadas
n'aquelle anno em Londres, e procuradas com alvoroço pelos amadores
nacionaes espalhados por todo o mundo, havia uma que Mr. Richard sobre
todas amava. Era essa a que vinha trauteando ao entrar na sala.

Tanto na indole d'este musico, como na da lettra, que assigna o nome do
dr. Mackay, encontrava-se de facto muito do caracteristico genio inglez,
para justificar de sobra esta preferencia.

É um canto de animação aos numerosos bandos de emigrados, que de todos
os pontos da Gran-Bretanha partem a cruzar os mares, á procura da
riqueza, e, sem lagrimas, se despedem do berço natal, que todavia amam
com fervor. Se é licito admittir que, n'estas luctas travadas no seio da
sociedade actual para conquistar a riqueza, póde ainda incidir um raio
d'aquelle esplendor épico, de que se illuminam os trabalhos analogos do
mythologico Jason, de certo os inglezes são os heroes d'essas epopeias
modernas. Aquelle desprendimento com que se separam do que amam quasi
com fanatismo--a patria e a familia--, aquella coragem estoica, que os
alenta nos revézes, e a firmeza de animo, que nas victorias lhes evita
os somnos perigosos, dão a esses argonautas do commercio um prestigio
respeitavel, que certas ridiculas exterioridades não podem suffocar.

Como complemento ao estudo do caracter de Mr. Richard Whitestone daremos
aqui a traducção dos versos do dr. Mackay, por ser o conceito d'elles
afinado pelo sentir do honrado negociante.

Era esta mesma canção a que os soldados inglezes entoavam na Crimeia,
durante a campanha d'aquelle tempo; e ao partirem da patria, emquanto os
instrumentos marciaes soltavam aos ventos as notas d'este canto popular,
milhares de espectadores cantavam unisonos:

  _Cheer, boys!, cheer..._

que são as primeiras palavras do hymno, que traduziremos assim:

«Eia! rapazes, eia! Longe de nós a ociosa tristeza. Almas varonis, a
coragem nos alentará no caminho! A esperança impelle-nos para diante, e
mostra-nos um esplendido ámanhã; esqueçamos portanto a escuridade de
hoje.

Adeus, pois, ó Inglaterra! Ficam-te ainda muitos filhos, que como nós te
amem.

Nós enxugaremos as lagrimas, que ao principio derramamos. Porque havemos
de chorar, ao soltarmos as velas em busca da fortuna? Adeus, pois,
adeus, Inglaterra! adeus para sempre.

Eia! rapazes, eia! pelo paiz! pelo paiz natal!--Eia, rapazes! a vontade
forte imprime vigor ao braço. Eia! a riqueza recompensa o trabalho
honrado; eia! eia, rapazes! pela nova terra, pela terra feliz!

Eia! uma favoravel briza sopra para nos impellir livremente sobre o
dorso do oceano; o mundo seguir-nos-ha pela esteira que deixarmos; no
Occidente brilha a estrella do imperio. Aqui temos fadigas e pouco a
recompensal-as; além a abundancia sorrirá ás nossas penas; e nossas
serão as planicies e as florestas, e o grão dourado amadurecerá para nós
em campos sem limites.»

Foi pois a musica correspondente a esta canção que Mr. Richard
interrompeu quando, ao entrar na sala, viu que com um unico talher
estava preparada a mesa.

--Carlos está ainda na cama?--disse, voltando-se para Jenny e n'um tom,
em que se revelavam ligeiros indicios de mau humor.

Cumpre-me avisar aqui os leitores de que, para dupla commodidade, minha
e sua, farei fallar portuguez a Mr. Richard e até segundo as regras de
uma grammatica, cuja auctoridade elle nunca reconheceu.

Jenny sentiu a necessidade de advogar a causa do irmão junto de Mr.
Richard, que, já bastante indisposto com a ausencia de Carlos no dia do
seu anniversario, encarava agora com maus olhos taes excessos de
indolencia filial.

Profundo admirador das bellezas d'este mundo sublunar, Mr. Richard
olhava o somno como um invejoso, que nos furta algumas horas de prazer
n'esta vida, e ao qual, obrigado a fazer ligeiras concessões, tratava
sempre como inimigo.

Á interrogação paterna, Jenny respondeu:

--Ainda.

--Ho!--acudiu Mr. Richard, com a sua monosyllabica e guttural
interjeição de desgosto, acompanhando-a dos accessorios do costume.

Jenny acrescentou:

--Charles teve de se recolher hontem mais tarde...

--Escolheu bem o dia.

--Não se lembrava...

--Exquisito!

--Creia que se não esqueceria assim, se se tratasse do dia 3 de julho,
do anniversario do pae.

Mr. Richard sentou-se e pôz-se a ler o _Times_.

Jenny sentou-se defronte d'elle, mas arredada da mesa.

--E, como se deitou tarde--proseguiu ella, passado tempo--e eu receei
que a falta de descanso lhe podesse fazer mal, ordenei que o não
chamassem.

--Então veio muito tarde?

--Julgo que ... ás duas horas...--balbuciou Jenny.

O criado, que começára a servir Mr. Richard, pensou fazer um obsequio
corrigindo:

--Perdão, miss Jenny, passava já das quatro.

--Ho!--repetiu Mr. Richard.

Jenny olhou para o criado de maneira, que lhe deu a conhecer a
inconveniencia da correcção.

--Foi uma promessa, que Charles fez a uns amigos...--disse ella--e só
soube o dia que era, quando já não ia a tempo de recusar.

Mr. Richard não precisava de ouvir mais nada, para suspender as suas
censuras. Tinha já perdido o habito de discordar da filha. Porisso só
respondeu, lendo o _Times_:

--Sim, sim. Está bom. O mal d'essas extravagancias é d'elle e porisso...

N'isto entrou, aos saltos, na sala um d'esses pequenos cães felpudos,
pretos e pardos, verdadeiros Atilas dos ratos e rivaes dos velhos
exterminadores d'esta raça perseguida.

--_O' Butterfly, good morning! How do you do, sir?_--exclamou Mr.
Richard, saudando o seu cão predilecto, que lhe estendeu a pata como
para um _shake-hand_. Havia n'isto um requerimento a uma fatia de
fiambre, o que o inglez não indeferiu.

O pequeno quadrupede sentou-se então com familiaridade na cadeira
devoluta ao lado do seu dono, fazendo a devida justiça ás sobras do
_lunch_, que lhe cabiam em partilha.

Jenny erguia-se a cada momento para servir o pae, attendendo a
particularidades, futeis de mais para merecerem a observação do criado
ou de outrem, que não fosse uma filha.

N'uma d'estas occasiões, Mr. Richard, como se não tivesse perdido ainda
o fio da conversa anterior, disse a meia voz:

--É que ha oito dias, que nem apparece no escriptorio e ... é feio isso.

Jenny não respondeu.

Era claro que durante todo o tempo, em que tinham guardado silencio, o
mesmo pensamento occupára o espirito de ambos.

Receio que os redactores do _Times_ não tivessem d'esta vez conseguido
captivar a attenção do seu leitor.

Levantou-se por fim o inglez.

Lavando as mãos e estendendo a vista pelos floridos taboleiros do
jardim, murmurava ainda:

--Parece mal. É mau costume.

E saíu da sala para o gabinete.

Jenny acompanhou-o.

--E demais nem tanto custa--dizia elle ainda, pelo caminho.

Enfiando o sobrecasaco e aceitando das mãos de Jenny o chapéo e a
bengala, continuou no mesmo tom:

--Dá logar a que se diga ... a que se repare...

Calçando as luvas de pellica côr de canna, por uma exquisitice
patriotica mandadas vir de Inglaterra directamente, resmoneou ainda:

--Não sei que custe muito estar alguns minutos no escriptorio.

E, passado um momento:

--É feio, é feio.

Parecia emfim disposto a saír, mas Jenny, costumada a observal-o,
descobria-lhe certa hesitação, como se se travasse n'elle uma lucta
entre duas resoluções encontradas.

--Até logo, Jenny--dizia Mr. Richard, mas sem acabar de partir.

--Não sei o que me esquece!--murmurou depois com manifesta perplexidade.

Jenny correu os olhos pelo quarto.

--O lenço?--perguntou, offerecendo-lhe um que vira sobre o toucador.

--Ah! o lenço, sim ... o lenço...

Era evidente que não estava satisfeito ainda.

--Agora ... não me falta nada; adeus.

Jenny julgou que d'esta vez sempre saíria.

--Ah! sim--continuava elle, parando novamente.

Jenny fitou-o com olhar interrogativo.

--Não sei o que... Ah!... Então... então Carlos... não se levanta esta
manhã?

--Se quer que o chame?

--Não, não... É que...

E depois, interrompendo-se:

--Não é nada.

--Deseja que lhe dê algumas ordens?

--Não... mas... Emfim, o que é tem tempo.

--Mas diga; Charles não deve tardar a erguer-se...

--É que...

E Mr. Richard, com certo modo embaraçado, aproximou-se da secretária,
abriu-a e tirou de lá um magnifico relogio e corrente, de construcção
ingleza, objecto que expressamente havia encommendado de Londres para
presentear o filho no dia dos annos d'elle.

A ausencia de Carlos na vespera impedira-lhe realisar o affectuoso
intento.

Agora como que sentia vergonha de ter a sua affeição resistido inteira
ao delicto filial, e de não lhe restar já no coração força bastante para
reprimir as expansões d'ella.

--Ahi está--dizia Mr. Richard a Jenny, procurando com um tom sacudido
tirar ás palavras a menor sombra de affecto.--Se quizeres, pódes dar
isso a teu irmão. Para elle é que eu o destinava, se hontem...

Jenny tomou o relogio das mãos do pae, a quem agradeceu com um sorriso
de ternura.

Mr. Richard proseguiu:

--Que eu não sei se Carlos o quererá; ainda que é objecto de preço...

--O maior preço é ser uma lembrança sua, senhor.

Mr. Richard resmoneou um monosyllabo inglez e ensaiou um gesto de
inveterado scepticismo, que não lhe saíu muito expressivo.

Jenny acrescentou:

--E de mais preço ainda, se das suas proprias mãos o recebesse.

--Queres talvez que vá acordar Carlos, para que me faça o favor de me
aceitar as minhas prendas?--perguntou o pae com certo azedume.

--Mas se... logo ao jantar...

--Talvez não nos dê a honra de nos fazer companhia.

--Oh! se Carlos soubesse...

--Nada, nada. Entrega-lh'o tu, se quizeres.

E, dizendo isto, saíu da sala, atravessou o jardim e dentro em pouco
tempo transpunha o portão da rua.

O criado, que o encontrou no corredor, ouviu-o murmurar ainda:

--Parece muito mal.

Mas, chegando á rua, já ia apparentemente satisfeito. Caminhava com a
rapidez, peculiar ao povo para o qual o tempo é dinheiro, dirigia ao
favorito _Butterfly_ phrases de cordial affecto e trauteava por entre
dentes o popular--_Cheer, boys, cheer!,..._



VI


AO DESPERTAR DE CARLOS


Jenny ficou ainda por muito tempo immovel junto da porta, onde se
despedira do pae. O olhar corria-lhe pelos objectos que a rodeiavam; o
pensamento porém não acompanhava o olhar.

Aquellas feições, em que se podia reconhecer, mysteriosamente, combinada
á candura de uma creança não sei que severidade, toda maternal, tomavam
agora um ar de preoccupação e melancolia, uma d'essas sombras, que as
ideias graves parece projectarem no semblante de quem não aprendeu a
dissimulal-as.

Jenny presentia haver chegado uma nova occasião de ser necessario
intervir com a sua influencia pacificadora e angelica para dissipar a
nuvem, embora tenue, que assomava no horizonte domestico.

Exercera já de um dos lados essa influencia, conseguira adoçar as
disposições acerbas de Mr. Richard para com o filho; faltava-lhe porém o
resto, estava ainda incompleta a obra; era preciso ensaial-a sobre
Carlos tambem.

E Jenny, que bem conhecia o irmão, tinha fé em que o não tentaria
debalde.

Rompia porisso um raio de confiança por entre as sombras d'aquella
preoccupação.

Foi n'este estado de espirito que chamou André para que fosse acordar o
irmão.

André era o mais antigo criado da casa, especie de mordomo jubilado, que
servia Mr. Whitestone desde o seu estabelecimento no Porto e trouxera já
ao collo os dois filhos do inglez.

--Vá,--disse Jenny--diga a Charles que eu o espero na bibliotheca.

Carlos dormia tranquillamente, quando o velho André lhe entrou no
quarto. A respiração profunda, pausada e regular denunciava um somno,
livre de pesadelos e de sonhos importunos.

O criado, depois de escutar algum tempo aquelle som, unico que, com o do
bater da pendula vizinha, se percebia no quarto, caminhou com precaução,
bem escusada a quem vinha para despertar, até uma das janellas, que
entreabriu.

Espalhou-se então no aposento uma meia claridade, coada através das
longas cortinas que, soltas das abraçadeiras douradas, rojavam pelo
tapete.

Pôde então o velho observar a completa desordem que ia n'aquella sala.

Estes raios de luz, menos felizes do que os evocados pelo _fiat lux_ do
_Genesis_, póde dizer-se que vieram ainda illuminar um cháos; pois
difficilmente se encontraria mais apropriada expressão para designar o
aspecto do aposento, a cuja vista se dissolveu em sorrisos toda a sisuda
gravidade, desenhada nos labios e nas feições do mordomo.

A scena, de facto, escapa á mais esmiuçadora descripção.

Parecia que todos os objectos, alli contidos, haviam, durante a noite,
entrado em dança phantastica, de tal sorte os surprendera o dia,
deslocados da natural situação.

As cadeiras, amontoadas em desordem no meio da sala, haviam usurpado as
attribuições dos guarda-roupas; estes, abertos de par em par,
patenteavam o interior desordenado e quasi vazio, como após um saque de
cidade conquistada.

Nas mesas, nos sofás, em _voltaires_, no chão, por toda a parte emfim,
menos nos logares competentes, via-se casacos, coletes, calças, mantas
de differentes côres e feitios. O pavimento achava-se literalmente
alastrado de objectos de impossivel enumeração; aqui, umas luvas,
calçadas pela primeira vez na vespera e já postas de lado como inuteis;
alli, alguns ramos de flores desfolhadas e murchas, cuja posse,
procurada talvez com incansavel insistencia, trouxe depressa após si o
abandono e o esquecimento; n'outros pontos, charutos meio consumidos, os
fragmentos de uma preciosa jarra de porcelana da India, um livro, que
commettera o delicto de não excitar a curiosidade, uma cadeira derrubada
com o fardo que lhe pesou sobre o espaldar; cartas, collarinhos,
retratos, lenços, chicotes. As esporas no logar do relogio; este pousado
na beira do marmore do fogão; sobre o leito, um dominó de setim;
pendente á cabeceira, o jornal da vespera e um longo cachimbo com tubo
de gutta-percha; aos pés polvorinho de caça, o robe-de-chambre de
damasco e o teliz da horsa favorita; no velador, um tinteiro de prata,
transformado em cinzeiro de charutos; um chapéo pendurado na chave da
porta; o candieiro no chão, alguns livros e mappas geographicos quasi
debaixo da cama. Um _abat-jour_ de cartão envernizado com figuras
extravagantes, representando chins em posições todas chinezamente
ridiculas, servia de barrete ao busto de Shakespeare, cujo pescoço
estava além d'isso diplomaticamente enfeitado com uma gravata de baile;
defronte, Byron, coberto com chapéo de feltro de abas largas, o qual lhe
pendia galhardamente sobre a orelha esquerda, parecia fitar com
petulancia o seu illustre conterraneo; no outro angulo, era aquella
figura séria e bondosa de sir Walter Scott, com não sei que ares de
acanhado debaixo do barrete turco, que a guerra da Crimeia pozera então
á moda; e finalmente um quarto busto occultava, sob mascara de setim
preto, a expressão de candura e de soffredora tristeza do cantor dos
combates dos anjos e demonios, o sublime Milton.

Dir-se-hia que estes grandes personagens da litteratura ingleza,
obedecendo á voz do carnaval, haviam surgido da sepultura, para virem
celebrar tambem entre si, com as suas cabeças pallidas, a mais estranha
mascarada.

No meio de toda esta confusão, um enorme _terra-nova_, de ventas
leoninas e corpulencia de touro, languidamente recostado nas molles
almofadas do sofá luxuoso, pousava as patas musculosas e pelludas sobre
um magnifico album de gravuras, com a mais absoluta irreverencia pela
preciosidade, que assim lhe servia de cabeceira e de estrado.

Imagine-se o resto.

André, o methodico André, sorria e abanava a cabeça no meio de tanta
desordem. Demorou-se alguns instantes a examinar todo aquelle
desarranjo, que bem simulava os vestigios de recente lucta; depois
caminhou para o leito, afastou vagarosamente, de má vontade ainda, as
cortinas brancas, que o resguardavam, e curvando a cabeça, fitou os
olhos na fronte espaçosa e liza de Carlos, sem que se resolvesse a
acordal-o de dormir tão tranquillo.

Carlos tinha a physionomia sympathica e expressiva. O melhor do typo
saxonio encontrava-se alli. Os cabellos louros, curtos e naturalmente
annelados, deixavam-lhe livre a fronte ampla, de bossas proeminentes, e
cujos angulos se prolongavam por sobre as temporas; as côres eram do
alvo delicado, proprio dos typos septentrionaes; o nariz de perfil, em
que não entrava o elemento da mais desvanecida curva; os labios, algum
tanto grossos e levemente encrespados n'um sorriso, entre ironico e
affectuoso, prompto a caracterisar-se com facilidade igual n'um ou
n'outro d'estes sentidos; as palpebras longas, salientes e nas quaes, em
curvas azuladas, transparecia uma rede de pequenas veias, e em torno ás
orbitas o circulo de côr desmaiadamente rôxa, vestigio de longas noites
de agitadas vigilias; taes eram os traços principaes d'aquella
physionomia aberta e attrahente, que, em alguns d'elles, offerecia o que
quer que era de Byron. Os olhos, n'aquelle momento velados, possuiam
fogo correspondente á vivacidade do espirito que os animava; as feições,
paralysadas agora pelo somno, gosavam em vigilia de mobilidade extrema e
eloquente, outro ponto de analogia com as do poeta inglez, segundo a
crença dos seus biographos.

André acabou emfim por o chamar, mas com voz, que parecia de quem
desejava não ser escutado.

--Snr. Carlos--disse elle.

Apesar de pronunciada em tom baixo, e quasi a mêdo, bastou esta palavra
para o despertar.

Abriu immediatamente os olhos, fitou-os no criado e, estendendo os
braços n'aquelle quasi involuntario movimento, com que todas as manhãs
despedaçamos as ultimas cadeias com que nos algema o somno, deixou-lh'os
cair em volta do pescoço, como para apoiar-se, dizendo ainda com voz mal
distincta:

--Bons dias, André. Que horas são?

--Meio dia.

Foi a resposta que obteve, acompanhada de significativo sorriso.

--_Save us!_--exclamou Carlos, imitando a despenseira ingleza, de quem
era esta a phrase habitual, e ao mesmo tempo voltou os olhos para o
relogio fronteiro, o qual, como em resposta a esta mimica
interrogatoria, bateu doze lentas e sonoras pancadas.

--Pois não me parecia--continuou Carlos, ao acabar de contal-as.--Ia até
estranhar-te a madrugada, sabes tu? E... e... o pae?

--Saíu já.

--E... e que disse?

André encolheu os hombros, respondendo:

--Nada.

Era a maneira de exprimir que alguma cousa dissera.

Carlos comprehendeu isto mesmo, mas não perguntou mais nada.

--Toca a pôr a pé, que são horas!--dizia o André, occupando-se a
levantar alguns dos objectos que via pelo chão.

--Deshumano, cruel, que me recordas?--respondeu-lhe Carlos em tom de
recitação tragica.

--Vamos, vamos, preguiçoso.

Carlos abriu ainda outra vez a bôca em gesto quasi sentimental de
despedida ao somno que se afastava; afagou com a mão o colossal
_terra-nova_, que veio pousar-lhe a cabeça nos joelhos, e abriu ao acaso
o livro que encontrou á mão, um romance de Dickens, do qual leu algumas
linhas distrahido.

--Então?--insistiu o André, vendo-o pouco disposto a levantar-se--Fica
ahi?

--Vae-me buscar o almoço, homem. Traze-me só café. Parece-me que inda
agora terminei aquelle turbulento jantar de hontem.

--Então quer almoçar aqui?

--E julgo que é uma resolução muito louvavel.

--Mas...

--Mas o quê?... Que objecções lhe pões? Falla.

--É que miss Jenny espera-o na bibliotheca.

Carlos de um salto sentou-se na cama.

--Ó pateta! e inda agora me vens com isso? Depressa--chega-me d'ahi esse
robe-de-chambre.--Isso não... não vês que é um dominó?... Anda...
avia-te... Aquelle lenço... O outro... Bem... Vae... Dize a Jenny que
n'um momento estou com ella.

E depois de proceder com a maior celeridade áquelle ligeiro _toilette_
de manhã, Carlos entrou na bibliotheca, onde Jenny o esperava.

Era n'esta bibliotheca que muitas vezes os dois irmãos se entregavam a
leituras communs, restos de habitos adquiridos na infancia, quando pelos
mesmos livros estudavam, formando um gracioso grupo de cabeças louras,
objecto das contemplações apaixonadas e das bençãos cordiaes de Mr.
Richard Whitestone.

--Bom dia, Charles--disse Jenny, estendendo-lhe a mão, que elle apertou
affectuosamente.

--Fiz-te esperar muito, filha? Perdôa-me; mas aquelle pateta não soube
dizer-me logo que tu...

--Desculpa mandar-te acordar, mas...

--Fizeste bem; senão, dormiria até á noite.

--Vieste hontem muito tarde, Charles--disse Jenny, abaixando-se
disfarçadamente para acariciar o _terra-nova_, que se lhe deitára aos
pés.

--Pois ouviste-me?

--Ouvi.

--Então acordei-te, Jenny? Não foi por falta de cautela, porém... sempre
sou um desastrado!

--Não, não acordaste. Eu não tinha adormecido ainda.

--Não tinhas adormecido! Ás quatro horas! Estiveste doente, Jenny?

--Não, mas...

Carlos olhou para a irmã com uns modos, que procurou tornar severos.

--Querem ver que foi por minha causa?... Então que te tenho eu dito,
Jenny? Fico de mal comtigo se tornas a ter essas canceiras por mim, a
ponto de...

--Não, não foi por canceira, é que...

--É que tu és uma teimosa e o que merecias...

--Não se trata agora d'isso. Dize-me: vens hoje mais cêdo?

--Hoje! Á terça-feira de entrudo! Ó Jenny! Deixa ao menos passar o
carnaval, deixa já agora acabar esta maldita época, e depois... depois
verás que hei de ficar muitas noites em casa ao pé de ti e de... Tens-te
enfastiado muito aqui só, não tens, pobre pequena?

--Ora, não fallo por mim; mas... é que... isso faz-te doente por certo,
Charles. Esses jantares tão longos... Essas noites tão mal dormidas...

--A mim?! A mim nada me faz mal, filha; lá por isso...

--E depois... Olha, Charles, ha devéras tanto tempo já que te não vemos
comnosco, á noite... Não é por mim que fallo, repito; mas o pae... bem
sabes, antigos habitos... gosta de nos ver reunidos todos... a certas
horas. Coitado! Não digo sempre, mas... ás vezes, de quando em quando,
se te não custasse...

--Pois sim, Jenny, pois sim. Deixa voltar o verão, que eu prometto...
prometto que, muitas vezes até, hei de fazer o que dizes. Mas as noites
de inverno! As noites de inverno, não obstante tudo quanto imaginou
aquelle bom Thomson nas suas _Estações_, são tão longas para se passarem
em casa!

--As de estio... depois... já sei... has de achal-as tão formosas que...

--Não--replicou Carlos, sorrindo;--então depois de eu te prometter havia
de... Mas, olha cá, Jenny, tu és muito boa, e já sei que me vaes até
ralhar por o que eu vou dizer; mas deves concordar em que de facto é
pouco agradavel, para um rapaz da minha idade pelo menos, a maneira por
que o pae costuma passar aqui as suas _soirées_. Aquelle eterno _Times_,
aquelle _Times_ sem fim aterra-me, Jenny. A _Biblia_ é um livro que
respeito e admiro, mas tremo um pouco das paraphrases dos nossos
reverendos lettrados; confesso que tremo. O _Tristam Shandy_ do Sterne
já o sei de cor; no _Tom Jones_ de Fielding, quando o não tivesse ainda
lido, não haveria já capitulo de que não fosse bem informado, á força de
o ouvir citar; e, a fallar verdade, ter de passar uma noite a escutar,
mais uma vez, os commentarios a um e outro, com que fatalmente nos
flagella o inesgotavel enthusiasmo paterno... a fallar verdade!

--Charles!--disse Jenny, em tom reprehensivo.

--E para cumulo dos males--proseguiu Carlos--estar sempre debaixo da
permanente ameaça de uma visita do _spleen_ de Mr. Morlays ou da, não
menos para temer, jovialidade de Mr. Brains, Heraclito, e Democrito,
inglezes que o sabor nacional tornou mais difficeis de digerir ainda, do
que os proprios philosophos gregos. Ahi está o que me faz procurar
aquelles logares onde, como diz Thomson: «sussurra um publico, possuido
de todos os assumptos, e animado de mixtos discursos».

Jenny não pôde deixar de sorrir ás reflexões do irmão; mas, como para
diminuir o effeito d'esta fraqueza, apressou-se a dizer-lhe:

--Pois sim, Charles; mas nem hontem! Hontem, na verdade!... no dia dos
teus annos!...

--Então que queres, menina? Não me lembrei de tal, realmente. Acredita.
Reputo tão pouco motivo para festas o facto do meu nascimento!

--Mas os que te estimam formam melhor opinião d'esse dia. Nem lhes
queres dar o prazer de t'o affirmarem?

--Daria se... se me lembrasse.

--O pae destinava-te uma surpreza. Coitado! Fez-me pena a maneira por
que elle me encarregou, ainda ha pouco, de te entregar este
relogio--disse Jenny, passando para as mãos do irmão o presente de Mr.
Richard.

--Devéras?! Pois elle... Pobre pae! Vês? E eu que lhe roubei esse
prazer! Ai Jenny, esta minha cabeça! Tu inda ao menos sabes o que me vae
no coração, não é assim?

--Sei, Charles, sei.

--Mas os outros...

--Todos te fazem justiça, só tu é que...

--Mas repara, Jenny, é um relogio magnifico este; pois não é?! Bem; não
ha que ver, snr. Carlos; é preciso que pela sua parte faça alguma cousa
tambem. Está dito; não esperarei pelo verão. O carnaval está a expirar;
acabando elle ... penitenciar-me-hei na quaresma.

--O carnaval! Muito divertidos devem ser esses bailes de mascaras, para
assim te attrahirem, Charles!

--Enganas-te, Jenny; são insipidos, mas... Tu não pódes talvez entender
isto, que não obstante é exacto... são insipidos, mas irresistiveis ao
mesmo tempo.

--Ora!

--Acredita-me. Rara é a noite em que me não encho de tédio, em que não
morro de semsaboria no meio d'aquelle infernal tumulto, e então, se de
lá me lembro de ti, do socego dos teus serões, do silencio das tuas
noites, do teu bonito quarto côr de violeta, pergunto a mim mesmo,
Jenny, por que me conservo longe d'alli, o que me afasta das portas
d'esse paraizo, voluntariamente perdido por este louco, que nem merece
ser teu irmão. Sinto vontade então de soltar uma lamentação como a de
Eva por errar n'um mundo, que ao pé do teu, Jenny, é tambem obscuro e
selvagem; por estar a respirar n'um ar bem menos puro.--Não é assim que
diz o Milton?--E comtudo não tenho nenhum archangelico poder a impôr-me
a expatriação. Vês?

--Estás a gracejar, Charles?

--Acredita que não. Outros te poderiam dizer o mesmo se...

--E é isso que te conservou por lá, ainda hoje, até ás quatro horas da
manhã?

--Hoje? Ah, mas... perdão, Jenny; tudo tem suas excepções. A noite de
hontem, por exemplo, não me deixou desagradavel memoria de si; devo
confessal-o.

--Então?

--Então... é que eu tenho que te contar, e se tiveres a paciencia de me
escutar e prometteres não me ralhar muito...

--Ah! pois temos culpas?

--Eu sei? Desconfio tanto de mim, que já me não atrevo a affirmar que
procedesse bem. Mas tu o dirás.

Jenny sorriu.

--Ouçamos--disse ella, preparando o almoço, que um criado acabava de
trazer para a sala.



VI


REVISTA DA NOITE


--Como te disse, Jenny,--principiou Carlos, procedendo áquelle
extemporaneo almoço, ás horas a que muita gente encetava a séria e
importante tarefa da digestão do jantar--hontem correu-me a noite mais
agradavel que de costume.

--Sim? Então que te succedeu?

--Eu te conto. Levantamo-nos da mesa ás onze horas; foi um longo jantar,
ao qual os brindes continuados não deixaram nunca desfallecer a
animação. Entrei no theatro, um pouco atordoado e um pouco pezaroso;
atordoado pelos effeitos excitantes d'aquellas muitas libações e
d'aquelle ruído todo...

--E pezaroso...

--Com os remorsos que a tua carta me veio despertar.

--Ah!... remorsos?!...

--Afianço-te que os tive. N'estas disposições de animo parecia-me um
inferno o theatro, verdadeiros demonios aquellas insulsas mascaras,
gritos de condemnados as desafinações da orchestra...

--E ficaste?

--E fiquei; fiquei, ancioso por que o final do divertimento me
auctorisasse a retirada. Já vejo que nem ideia fazes sequer d'estas
cousas, que aliás são verdadeiras. Deixa-me continuar.

--Continúa--disse Jenny, folheando ao acaso um livro de gravuras
inglezas, que estava na mesa.--Mas é devéras estranha essa maneira de te
divertires... martyrisando-te.

--É, confesso que é. Mas outros muitos estão n'este caso; pódes crel-o.

--Bem; vamos adiante--replicou Jenny, fitando os olhos nas lettras
douradas da brochura.

Carlos proseguiu:

--Deixei os meus companheiros e sentei-me extenuado; nem queria ver, nem
apreciava nada do que em torno de mim succedia. A final, porém, por
fazer alguma cousa, reparei nos vizinhos de hombro a hombro, entre quem
a sorte me arrojára.

Jenny ergueu para o irmão a vista, com um modo particular.

--Do lado direito, encontrei um homem gordo, que dormia. Como a
felicidade alheia não é espectaculo de que nos venha conforto, quando o
infortunio nos punge, desviei com despeito os olhos d'esta
bemaventurança e voltei-os...

--Para o lado esquerdo?

--Justamente; para o lado esquerdo.

--E... e o que achaste d'esse lado do coração, Charles?--perguntou
Jenny, sorrindo.

--Ai, Jenny! ai, minha pobre irmã! prepara a tua santa paciencia, que
aqui venho eu confiar-te mais uma das minhas paixões.

--Eu logo vi; não sei porque foi que t'o estava a ler no rosto. Então é
devéras uma paixão?

--Receio que sim.

--Pobre Charles! Que fatalidade!

--Estás a rir?--disse Carlos, sorrindo tambem e estendendo a chavena
para a encher outra vez--Ora ouve. Ao meu lado esquerdo, do lado do
coração, como dizes, estava um dóminó feminino, fitando-me de uma
maneira ... como nem te sei dizer... e com uns olhos... mal sabes que
bonitos olhos eram aquelles, Jenny!

--Os da mascara?--perguntou Jenny, preparando a chavena.

--Não; os da mascarada, os quaes eu percebia através das aberturas
oculares da elegante mascara de setim preto que ella trazia. A cabeça
descaía-lhe ligeiramente sobre o hombro em postura de tanta languidez e
melancolia, e n'esta posição a sêda da mascara descobria-lhe um canto de
labios e um principio de collo tão bem modelados, que eu não pude
desviar mais d'alli o olhar extasiado, e... e... Então que quer dizer
agora esse teu sorriso, Jenny?

--Estou a admirar a rapidez com que te apaixonas e extasias.

--É que não imaginas que bonito cortôrno o d'aquelle rosto; não
imaginas! Eu digo-te uma cousa, Jenny; bem sei quantas illusões andam
ligadas á mascara de sêda, que, por descuido estudado, se afasta um
pouco, o preciso... o conveniente... Porque na maior parte dos rostos ha
pequenos pontos fracos, que a mascara artificiosamente occulta, deixando
só apparecer as perfeições. Conheço que é facil illudir-se então o olhar
e phantasiar-se falsamente o todo pela parte que se póde ver, conheço...

--Basta, basta, Charles. Pena é que de tão pouco te sirva o tanto que
conheces, visto que ainda hontem...

--Hontem não havia, não podia haver illusão. Isso é que não. Aquella
cabeça não era d'essas cabeças buliçosas, como folhas de alamo, que
morrem por ser adivinhadas. Era uma cabeça scismadora, melancolica,
cheia de sentimento, estremecendo a cada belleza que, com pezar seu, não
podéra occultar...

--Ah! Que singular cabeça!

--E depois ha certos extremos de perfeição, que a natureza, quando os
cria, não os vae desperdiçar assim em qualquer rosto, que nas mais
feições destroe d'esses primores parciaes. E n'este caso estava tudo o
que eu vira do perfil da minha sympathica vizinha, a quem dirigi a
palavra!

--A quem dirigiste a palavra!

--Sim; que achas tu de extraordinario n'isto, para fazeres esse
movimento? N'um baile de mascaras prescinde-se das apresentações,
ridicula invenção da etiqueta, que eu desconfio ser originaria da nossa
diplomatica Inglaterra.

A reflexão historica transformou n'um sorriso o movimento de surpreza de
Jenny.

Carlos continuou:

--E depois vaes ver que tudo quanto lhe disse podia bem ser repetido á
mais ingenua lady n'um dos nossos bailes de familia. A final de contas,
irmanzita, eu, que arranjei por ahi, não sei bem como, a reputação de
atrevido, tenho ainda canduras, de que muitos dos mais timidos se riam
já aos quinze annos.

Esta confissão, na qual alguma cousa havia verdadeira, desafiou em Jenny
um gesto de duvida, que o mesmo sorriso affectuoso veio porém suavisar.

--Olha que é assim--proseguiu o irmão--e senão... escuta. Como te disse,
fallei á minha sympathica vizinha. Perguntei-lhe se estava muito
fatigada. Ahi tens; a pergunta é mais do que ingenua, é quasi ridicula.
Que lhe censuras tu?

--A essa, de certo que nada. E depois?

--Ella respondeu-me:--«Bem mais fatigada d'isto tudo do que esperava,
vindo aqui, snr. Carlos.»

--Como disseste?... Snr. Carlos?!

--É verdade, «snr. Carlos». Sabia o meu nome a mysteriosa incognita;
sabia o meu nome! Está de ver que augmentou a minha curiosidade.
Continuando a conversar, vim a saber d'ella que tinha vindo alli
acompanhada de outros dóminós femininos, cujo humor mais galhofeiro
contrastava com aquella melancólica seriedade. Ficamos a conversar um
com outro, amigavelmente, innocentemente, assim como eu converso agora
comtigo. E... queres que te diga? havia até alguma cousa do teu fallar,
maneiras de dizer tuas, na conversa d'aquella rapariga; e era isto
talvez o que me impunha certo acatamento para com ella, de que não podia
livrar-me. Não imaginas a graça, o bom senso, a viveza, que revelou em
todo aquelle dialogo commigo. Mostrou-se muito informada a meu respeito
e até a respeito da nossa familia; houve um momento, em que deu mostras
de querer fallar de ti; eu porém evitei a conversa...

--Porquê?!--perguntou Jenny, fingindo-se offendida.

--Porque...--balbuciou Carlos embaraçado, e depois, com mais resolução,
continuou:--Digo-te a verdade Jenny; respeito-te muito; tenho por o teu
nome uma veneração muito grande, para que me fosse agradavel ouvil-o
pronunciar n'aquelles logares, e pronunciado de mais a mais por...--não
obstante o favoravel conceito que continuo a fazer da
desconhecida--mas... por labios que... não sei ainda... que não tenho a
certeza se serão dignos d'isso. Passadas duas horas talvez n'este
inoffensivo conversar, chegaram, já fartos de alvorotar o salão, alguns
dos rapazes, que me tinham acompanhado. Foi-me pouco agradavel,
confesso-o, a presença dos meus amigos e sobretudo desagradabilissimos
os galanteadores conceitos que dirigiram á minha interlocutora e os
gracejos com que a respeito d'ella me mimosearam.

--Coitada!

--Coitada? Ai, se já principias assim a lamental-a ... mal vae á minha
historia.

--Pois acaso?...

--Escuta. Ao principio, ella não mostrou timidez; sustentou com
vivacidade o dialogo, aparando e retribuindo triumphantemente os
galanteios, que elles lhe dirigiram. Mas a lucta era desigual; porque
emfim os contendores, n'esta esgrima de palavras, tinham de reserva
armas, de que ella não podia servir-se. Foi então, ao reconhecer isto,
que se mostrou inquieta e ergueu-se para retirar-se; seguimol-a; á porta
do salão ella e as companheiras voltaram-se, viram-nos e pareceram
atemorisadas. Ella então, a desconhecida, dirigiu-se a mim e pediu-me
que lhes servisse de protector, appellou para a minha generosidade e
eu...

--Tu protegeste-as, não é verdade?--disse Jenny, juntando as mãos, e
fixando no irmão um olhar de sympathia--Protegeste, não protegeste?

--Fui, fui um D. Quixote de donzellas perseguidas. Então que queres tu?
Não te dizia eu que havia ainda em mim muito da candura dos quinze
annos?

--Não te arrependas, Charles, não te arrependas de ser generoso.

--É certo que consegui afastar os meus associados, o que não foi pequena
tarefa; fiz valer porém os direitos de descobridor e prometti-lhes
revelar o segredo d'aquella mascara, segredo cuja investigação me
competia. Feito isto, segui-as. Ao principio tudo foram effusões de
gratidão á minha nobreza de caracter, ao meu coração, aos meus
sentimentos, etc., mas, quando nos livramos das ruas mais centraes e
passou o perigo da perseguição que temiam, tudo mudou de figura e
principiaram já a pedir-me para tambem me retirar. Esta ingratidão
offendeu-me e recusei... Então? ahi estás séria outra vez!

--E com razão, Charles. Pois pediam-te e tu... Isso já não é de
generoso... Quem sabe os motivos?

--Perdôa-me, Jenny; tu é que não sabes nada d'estas cousas. Pouco
generosas eram ellas. E demais, esses pedidos seriam sinceros? A regra é
recusal-os sempre; e está certa de que quasi nunca a recusa offende.

--Basta que uma vez...

--Mas repara, Jenny... Valha-me Deus!... Ora vem cá. Tu estás-me ahi a
phantasiar uns bailes de mascaras á tua moda. Suppões que todos estes
dóminós eram... eu sei lá... outras tantas princezas disfarçadas ou
outras Jennys como tu.

--Pois bem, uma vez que o disseste, vamos que era eu?...

Carlos previu o mau terreno, em que se collocava, admittindo a hypothese
e porisso interrompeu a irmã, dizendo:

--Mas não supponho, nem posso suppôr, porque... porque ainda ninguem viu
uma Jenny n'aquelles logares; e demais ouve, que eu não sou ainda assim
merecedor de tantas severidades. Teimei, como disse, em seguil-as; para
desistir, exigia conhecel-as; ellas porém recusaram tirar a mascara e
sobretudo a tal, que eu mais desejava saber quem era. Ás tres horas e
meia estavamos aqui defronte de casa, aonde me tinham trazido
manifestamente para me tentarem a entrar. Resisti á tentação e transpuz,
sem hesitar, a porta, continuando a seguil-as. As companheiras da minha
incognita levavam já o caso a rir e acredito que não poriam grande
duvida em darem-se a conhecer; ella porém mostrava-se... ou fingia-se,
deveras afflicta; dirigiu-se a mim e de mãos juntas pediu-me que me
retirasse.

--E tu?...

--Eu... eu recusei.

--Ó Charles!

--Ouve. Ella insistiu. Disse-me que lhe poderia fazer muito mal se
teimasse, e eu insisti...

--Como és ás vezes tão mau!

--Mas se eu não acreditava na sinceridade d'aquelles mêdos, e agora
mesmo... Mas a final, a rapariga disse-me com uma voz chorosa e na qual
me pareceu descobrir tanta sinceridade: «--Peço-lhe este favor por...»
Adivinhas por quem ella me foi pedir?

--Não.

--«Peço-lhe este favor por sua irmã, por Jenny»; sim, por ti, foi por ti
que ella me pediu e fêl-o ajuntando as mãos com tal candura, que eu...
Precisas de perguntar-me se condescendi d'esta vez?

Jenny estendeu a mão ao irmão.

--Obrigada. A final o bem triumpha sempre no teu coração. Estava certa
d'isso.

Carlos baixou a cabeça, como mortificado com estes louvores da irmã.
Dir-se-hia que aquellas palavras lhe estavam a fazer sentir remorsos,
longe de os desvanecerem.

Depois de uma hesitação de momentos, terminou por dizer, com evidente
enleio:

--Olha, Jenny... eu por fim de contas não sou homem para aceitar
louvores que não mereço... repugna-me esta hypocrisia; custa-me deveras,
mas... sou forçado a dizer-te que... que não sou digno d'esses
applausos.

--Porquê?

--Porque... alguma cousa se passou... Eu não disse tudo ainda e... É
verdade que... condescendi... sim... mas não tão desinteressadamente
como... sim... porque exigi... usurpei... á maneira de compensação...

--O quê?

--Um beijo, ao qual a pobre rapariga não retirou a tempo a face e que a
lançou n'uma especie de desespêro, fingido talvez, de certo... mas bem
fingido...

Jenny reproduziu o gesto de desgosto.

--Mas não me condemnes, Jenny,--apressou-se Carlos a acrescentar--porque
a final eu nem lhe vi o rosto, e estou provavelmente condemnado a nunca
descobrir quem ella seja. Além d'isso cumpri religiosamente o
promettido, renunciando a acompanhal-a, o que me custou devéras; ainda
hoje me preoccupa o olhar, a voz d'aquella rapariga e quasi lamento...
Vamos, não continues a olhar-me d'esse modo. Pois recusas perdoar-me,
quando eu...

--A fallar verdade, mereces bem pouco que te perdoem. Mas, como cedeste
em meu nome, quasi me tiraste o direito de ser severa. O final... o
final... na verdade...

--E vês o meu endurecimento na culpa? foi isso de toda a aventura o que
me deixou mais agradavel memoria de si...

--Então!--disse Jenny, batendo-lhe com o livro na mão--Olha se queres
que retire ainda o perdão que já te dei. Que mais terás a pezar-te na
consciencia? aproveita o ensejo d'esta minha disposição benevola.

--Julgo que não tenho mais nada.

--Ahi está uma alma com excellente opinião de si! Visto isso, tens
cumprido todos os teus deveres?

--Mas... deveres de que genero?

--Que pergunta! Pois nem sabes os deveres que tens?! Maus indicios!
Deveres de christão, de cidadão, de filho, e de...

--O que ahi vae! o que ahi vae! Por quem és, Jenny! vamos por partes,
senão...

--Pois bem, quero fallar-te agora só de uns, que me parece teres
descurado um pouco.

--Falla.

--Dize-me: tens ido ao escriptorio?...

--Ai, o escriptorio!--disse Carlos, rindo--Então era d'isso que me
querias fallar? Bem longe estava eu de pensar no escriptorio.

--Tens lá ido?

--Eu não.

--Não!

--Ha já bastante tempo que lá não vou, ha... mas... achas isso grande
peccado?

--E pergúntal-o? Não é o trabalho um dever?

--O trabalho será.

--Então...

--É que faz sua differença. Tu não sabes como eu trabalho no
escriptorio? É outra d'essas imposturas sociaes, que me fariam rir
devéras, se não fossem tão fastidiosas. É preciso que saibas, minha boa
Jenny, que no escriptorio, o trabalho real, o trabalho util, o
trabalho--trabalho, está encarnado na pessoa de Manoel Quentino. Esse
sim. É quem alli faz tudo, quem a tudo dá solução, e parece-me que o
unico até capaz de o fazer. Exige-se que eu vá lá tambem, não para
trabalhar; a minha cooperação o mais que faz é impacientar o bom do
homem, distrahir os outros caixeiros e alterar a ordem methodica dos
papeis commerciaes. Eu vou só para fingir que entro n'aquellas cousas,
para representar de commerciante, embora não penetre em nenhum dos
segredos ou transacções, em que anda empenhada a firma. Hoje lembram-se
de me communicar o principio de certo negocio, do qual se julgam depois
tão dispensados de dizer-me o resultado, como eu de perguntar por elle;
ámanhã, dar-me-hão parte da conclusão de outro, cuja existencia eu
ignorava ainda. Ora aqui tens como eu sou commerciante. O pae gosta de
me ver lá em baixo, como representante da firma Whitestone & C.ª, e mais
nada. Chego ao escriptorio, abro a janella, mostro-me ao publico como
uma especie de taboleta da casa, dou tres passeios na Praça, converso em
tudo, menos no negocio, e venho embora. Se isto é trabalhar...

--Mas, já que te repugna essa ociosidade, porque não trabalhas devéras?

--Porque não é costume. O trabalho é para o guarda-livros. Nós somos uma
especie de padrinhos; damos o nome á creança e pagamos-lhes o enxoval,
mas não nos encarregamos das fadigas da sua educação. Comtudo, já uma ou
outra vez tentei trabalhar, por descargo de consciencia; mas lembrança
minha era saudada com uma risada do Manoel Quentino e com o riso mal
disfarçado dos outros caixeiros. Pelos modos era disparate certo.

--Pois bem; porisso mesmo que tão pouco se exige de ti é que devias ser
mais assiduo.

--Mas é tão monotono! Fazes lá ideia! Odeio aquella rua dos Inglezes,
Jenny; abomino-a.

--E preferes mortificar o pae, que já hoje se queixou das tuas faltas,
quando um pequeno sacrificio...

--Não lhe chames pequeno; mas, grande que seja, estou resolvido a
fazel-o para te agradar. Ámanhã...

--Ámanhã!--disse Jenny, encolhendo os hombros.

--Pois então? queres que já hoje?...

--E porque não?

--Mas vê que já é tarde...

--Mais tarde será se te demorares.

Carlos emmudeceu.

--E ao mesmo tempo--proseguiu Jenny--aproveitaria a occasião de mandar
saber d'aquella pobre viuva ingleza, que ha já tantos dias não apparece.
Não tenho querido que lá vá nenhum criado, porque, por mais que lhes
recommende, todos gostam de a aperrear, e ella, coitada, afflige-se
tanto... Se tu fosses hoje ao escriptorio, ficava-te em caminho...

Jenny sabia que qualquer acção generosa servia a Carlos de estimulo para
realisar sacrificios: por isso lhe lembrou esta visita de caridade a uma
das muitas pobres, que a familia Whitestone soccorria. Não se enganou a
previdencia da irmã.

--Está dito--disse Carlos com modo resoluto.--Vou hoje ... trabalhar.
Mal sabe Manoel Quentino, que é o grande motor d'aquella machina
commercial, o que lhe está imminente. O homem dá ao demo o meu auxilio;
mas que t'o agradeça, Jenny. Manda-me o José para me ajudar a vestir;
inda hoje me não deu o gosto de o ver, o mariola.

--Ai, o José?--disse Jenny, pousando a mão no hombro do irmão--Olha,
Charles, o pobre rapaz tem a mãe tão doente, que eu tive pena d'elle e
mandei-o...

--Basta, basta; fizeste bem. Eu não me lembrava d'isso, senão...
Passaremos sem o José, e não passaremos mal.

Jenny abraçou o irmão, e saiu contente da sala.

Em consequencia d'este dialogo, Carlos appareceu na Praça Commercial
pelas duas horas da tarde.



VIII


NA PRAÇA


Havia grande actividade na larga rua chamada dos Inglezes, á hora a que
o filho de Mr. Richard Whitestone alli chegou.

A vida commercial estava então no seu auge; numerosos grupos occupavam
os passeios, o centro da rua e os portaes das velhas casas, que de um e
de outro lado limitam. Presta-se a curioso estudo o aspecto da Praça em
occasião assim.

Nas posturas, no ademan e em varias outras exterioridades dos
differentes individuos, que compõem estes grupos, póde-se encontrar
indicios da posição commercial, que elles occupam.

Vêem-se homens de aspecto grave, de movimentos pausados, de palavras
medidas e espremidas, escutados, aqui e além, por um auditorio attento,
mudo, boquiaberto, cujas cabeças, balançando-se, como as dos bonecos de
porcelana, commentam com movimentos de approvação as palavras d'estes
oraculos;--são directores de bancos, ou de companhias commerciaes de
outra qualquer natureza, bem ou mal reputados as primeiras capacidades
da Praça; os accionistas, sempre inquietos pelo seu futuro dos capitaes,
meditam cada palavra d'elles, como as de uma mensagem de Napoleão III,
na abertura do parlamento francez.

Mais longe, passeiam, com ar de quem está confiado em si, outros que não
escutam os primeiros, mas que os saudam com fraternal familiaridade. Não
teem tão numeroso cortejo a rodeial-os, porém são igualmente
cumprimentados por todas as cabeças da Praça; chamam aos labios das
pessoas, a quem se dirigem, um sorriso de affabilidade, e obrigam-lhes o
tronco á inclinação expressiva de acatamento, pouco differente da
eloquencia persuasiva, a qual, segundo um escriptor humorista, é
representada por o angulo de 85º 1/2 com o horizonte.--São estes os
negociantes, que não administram capitaes alheios, mas que dispõem de
grandes capitaes proprios; de quem menos directamente depende portanto a
numerosa turba dos pequenos capitalistas, mas cujos destinos influem,
mais ou menos, sobre os de toda a Praça. Além d'isso teem a fazel-os
valer o prestigio da riqueza, prestigio que se impõe até aos que nada
esperam d'ella.

Observa-se ás vezes um espectaculo, á primeira vista de difficil
interpretação. Um homem, humildemente vestido, de aspecto triste, de
cabeça baixa e barbas crescidas, é escutado com anciedade na roda dos
mais esplendidos membros do corpo commercial; todos parecem esforçar-se
por não perder a menor palavra das poucas e sumidas, que o tal homem
pronuncia. De vez em quando, elle murmura não sei que phrase e limpa ou
faz que limpa uma lagrima, e os outros levantam as mãos ao céo, cruzam
os braços, encolhem os hombros, coçam a cabeça, dão uma volta, como a
distrahir mágoas, e tornam a acercar-se d'elle, como se fosse o centro
de attracção d'aquelles elementos dispersos; e toda a scena se produz de
novo. Que quer dizer isto?--É um negociante fallido de pouco e rodeiado
de credores, a quem, na sua humiliação, domina e que, de quando em
quando apavora, calculando com voz dolente o diminuto dividendo que lhes
concederá. Não ha posição social, situação na vida, por mais abjecta e
precaria que pareça, que não tenha a sua aristocracia. Os ladrões teem
os monarchas conquistadores; os homicidas, os duellistas e guerreiros; a
pobre, a opprimida, a miseravel classe dos devedores, tem os grandes
negociantes fallidos.

O olhar exercitado em estudar a physiologia da praça talvez possa
distinguir do negociante, cujos pagamentos ainda em época alguma foram
suspensos, aquelles, cujas remotas _fracturas_ teem sido miraculosamente
_consolidadas_ pelos dotes das esposas. Mas a segurança e franqueza de
maneiras é tão igual nas duas especies, que á nossa analyse não é
possivel a discriminação.

A contrastar com todos estes, vê-se uma turba, igualmente numerosa,
agitar-se na Praça, sempre a passo rapido, rapazes pela maior parte com
papeis, saccas ou amostras na mão; sáem de um portal para entrar em
outro; descem a calçada do Terreiro em direcção á alfandega, ao caes ou
a bordo de algum navio mercante; consultam os individuos dos grupos, que
já mencionamos, ou aguardam pacientes que elles os descubram e
interroguem; dirigem-se-lhes então, tirando o chapéo--attenção nem
sempre retribuida--; são estes os segundos caixeiros, os chamados «de
fóra», os praticantes de escriptorio, os cobradores, e ainda os
despachantes; aquelles, emfim, sobre quem mais pesada se exerce a carga
da vida do commercio e que menos proventos auferem d'ella. Distinguem-se
pelo grau de velocidade dos passos; a dos despachantes chega a ser
incommoda de ver-se.

É digna de nota tambem a posição que tomam mais ordinariamente os dois
interlocutores dos curtos dialogos, que a cada momento se travam no meio
da rua, entre os representantes das diversas hierarchias sociaes, que se
dizem--caixeiro e patrão--. O caixeiro está perfilado, com a mão na aba
do chapéo e os olhos fitos nos labios do negociante; este responde-lhe,
olhando para o lado e, ás vezes, sorrindo até para um collega, que de
longe falla por acênos--distracção perigosa para a clareza da ordem
dada, mas cujas consequencias são attribuidas depois a quem a recebeu;
os patrões mais accessiveis levam a sua bondade a ponto de puxarem por o
botão do casaco, ou de desapertarem o do collete do subordinado,
emquante lhe dão instrucções. Quando o caixeiro expõe o resultado da
commissão que executou, é-lhe permittido o accionado, mórmente se, na
execução d'ella, houve a vencer a renitencia de algum devedor emerito,
circumstancia, na qual póde até tentar um epigramma, com a certeza de
que agradará. Porém quando são mais modestos os ares do caixeiro e mais
impertinentes os do patrão, é quando o segundo está sendo convencido por
o outro de um erro, que repugna ao seu amor-proprio confessar.

Ha ainda outra classe, tambem inquieta, apressada, incansavel, porém
muito longe das disposições para a reverencia d'esta ultima, em que
fallamos. Ha nas suas cortezias rasgadas alguma cousa de artificial, que
não illude ninguem, e ás vezes a menos ceremoniatica familiaridade
substitue até essas apparencias de respeito. São espantosos de
tenacidade a perseguirem em certos casos o commerciante, que em vão
tenta fugir-lhes; passam-lhe da esquerda para a direita, da direita para
a esquerda; atravessam-se-lhe no caminho; entram com elle nos portaes,
sobem com elle as escadas, invadem-lhe o ádito dos escriptorios,
transpõem a barreira dos mostradores, encostam-se sem ceremonia ás
escrivaninhas, batem-lhe amigavelmente nos hombros, collocam-lhe diante
dos olhos garrafas, vidros, massos de fazenda, tabellas de preços,
amostras de todos os generos commerciaveis, de que andam constantemente
munidos e a custo se resolvem a soltar das mãos a victima, que chegaram
a atacar.--São estes os corretores e agentes de casas estrangeiras.

A classe dos primeiros guarda-livros é a porção aristocratica d'esta
_bureaucracia_ ou escriptoriocracia commercial. Mostra-se principalmente
á janella dos primeiros andares, onde vem, de vez em quando, descansar
das fadigas de uma escripturação. De ordinario, conservam a penna entre
os dedos, como para significar que é momentanea a pausa--o que nem
sempre succede. Mais necessarios, e porisso mais apreciados e
attendidos, gosam já de certas franquias e privilegios entre os da sua
classe. É-lhes concedido fallarem da janella para a rua com algum
collega ou amigo que passa; a alguns até se permitte fumar na varanda um
charuto, e ausentarem-se algum tempo do escriptorio sem prévia
requisição; na rua, saudam mais desassombrados os patrões e são menos
distrahidamente correspondidos por estes.

Acrescente-se agora a progenie ociosa dos grandes
capitalistas--commerciantes honorarios, cuja vida commercial se reduz,
como a de Carlos, a passeiar na Praça até ás quatro horas da tarde; o
brazileiro retirado, distrahindo-se a presenciar, como espectador, o
labutar do negocio, á maneira da maritimo velho que se senta á beira-mar
a olhar para as ondas, de que vive arredado já; acrescente-se ainda o
empregado da alfandega, fumando o cigarro, nas frequentes entreabertas
de descanso de suas laboriosas manhãs; os carrejões em disponibilidade,
estacionados a cada esquina; os moços de escriptorio encostados ás
ombreiras das portas: os meninos dos directores de companhias, confiados
á vigilancia de algum empregado subalterno; isto tudo composto de
inglezes ruivos, de allemães louros, de brazileiros escuros, de
portuguezes de todas as côres, e ter-se-ha imaginado o aspecto da Praça
commercial do Porto, á hora em que Carlos Whitestone a atravessou.

Carlos passava pelos differentes grupos alli reunidos como por entre
gente, que toda lhe era igualmente familiar.

Como sempre, e como em toda a parte, não se constrangia alli tambem.

O genio que tinha não lhe consentia etiquetas; a sua posição social não
deixava que ninguem lhe estranhasse as familiaridades.

Enfiava o braço no de um dos mais sisudos commerciantes, a quem tratava
pelo nome de baptismo; de repente, deixava-o, para accender o charuto no
cigarro de um segundo caixeiro de escriptorio, que o estava saboreando
ás occultas, e alli mesmo pactuava com este qualquer partida de caça.
Aproximava-se do grupo de capitalistas e barões, que discutiam
acaloradamente o relatório de uma companhia, e cêdo, com suas reflexões
e commentarios, fazia degenerar a conversa para assumpto mais frivolo e
jovial; abandonava-os, e ia abraçar alguns rapazes, tão laboriosos como
elle, que fallavam dos bailes da vespera ou abriam a bôca de enfadados;
d'alli dirigia-se a cumprimentar um inglez esgalgado, que passava sobre
uma hursa, mais esgalgada ainda, e examinava com olhos de conhecedor as
qualidades physicas do quadrupede e os expedientes da arte do
cavalleiro; tolhia a passagem do despachante que atravessava a correr a
Praça e, apesar de tantas pressas, conseguia fazel-o parar a escutal-o:
chamava pelo nome o gallego da esquina, para que lhe viesse sacudir a
lama das botas, e, durante esta operação, divertia-se a bater-lhe com o
chicote na copa do chapéo. Ás vezes ouvia com apparente attenção um
homem, que lhe vinha fallar de certo negocio pendente do escriptorio
Whitestone, mas, se a exposição se demorava, o seu interlocutor, quando
menos o esperasse, achava-se só, porque Carlos fora, sem ceremonia,
conversar com o guarda-livros, seu amigo, que avistára na janella de um
primeiro andar. Tão depressa entrava em um dialogo com o mendigo que lhe
pedia esmola, como com qualquer rapariga, cujas graças o attrahissem.

N'este genero de occupações se demorou Carlos Whitestone na Praça
aquelle dia, procurando ser visto pelo pae,--unico fim que tinha na
ideia.

Mr. Richard estava porém na Assembleia Ingleza ou Feitoria, da qual era
assiduo frequentador.

Um dos muitos grupos, de que Carlos Whitestone se aproximou, compunha-se
das mais graduadas individualidades da praça.

Carlos passou o braço por cima do hombro de um barão, enfiou o outro no
de um capitalista brazileiro, e cumprimentou familiarmente um velho
inglez, que estava na companhia tambem.

--O que não ha em toda a Europa é uma Bolsa assim como a do Porto--dizia
um commerciante bem intencionado, em quem se encarnára a balda, muito
portugueza, de pendurar no pinaculo da perfeição alguma cousa boa, que
temos ainda por cá.

O inglez estremeceu de pasmo.

--_What!!_--A exclamação saiu-lhe ingleza na violencia da explosão--Na
Europa! Que diz, senhor? Vocemecê já viajou?

--Nada, não, senhor; ainda não saí do Porto; mas dizem entendedores...

--Ora então... então... A Bolsa de Londres... o Royal Exchange... não
vamos mais longe... o Royal Exchange, o moderno; porque o primeiro Royal
Exchange foi do tempo da rainha Elisabeth, construido por um architecto
chamado Gresham, em 1500 e tantos; ardeu em 1667. Dois annos depois
levantou-se o segundo; este foi construido por Jerman; ainda me lembra
bem d'elle; ardeu em 1838. Estava eu em Londres. Em 1842 lançou-se a
primeira pedra de novo, que foi segundo o plano de Tite, e dentro em
tres annos estava completo.

--E esse quando ardeu?--perguntou Carlos.

O inglez sorriu, sem responder á pergunta, e preparava-se para entrar em
circumstanciada descripção da planta baixa e alta do edificio.

Carlos interrompeu-o outra vez:

--O que estou vendo, Mr. Lyons, é que ha em Londres uma terrivel
disposição para _arderem as bolsas_.

O barão e o brazileiro acharam extraordinaria graça ao dito de Carlos, e
batendo-lhe no hombro e chamando-lhe «maganão, patusco, cabeça de
vento», e outras injurias assim amaveis, não quizeram mais saber do que
lhe dizia o inglez, o qual se viu constrangido e engulir o resto da
noticia historica e architectonica.

--Mas, senhores!--dizia em outro grupo, para o qual Carlos se dirigiu, o
meticuloso possuidor de umas cinco acções de certa companhia, a um dos
directores da mesma--Eu não vejo as cousas bem figuradas. Para que hei
de estar a dizer o contrario? Negocios com o governo nunca me agradaram.
O governo! Quem é o governo? O governo a final não é pessoa que se
penhore; porisso voto que...

--Mas repare,--dizia o director com exemplar paciencia--repare que as
garantias offerecidas são das mais seguras; o governo compromette-se...

--E adeus, minhas encommendas!--tornou o outro--Ora que é scisma! Mas
quem é o governo? Eu não sei quem é o governo! Uns valdevinos, que hoje
são tudo e ámanhã são nada... Faz-se o contracto com uns e ámanhã
respondem por elle caras novas. Não me entendo com isso. Muito bonitas
fallas, sim, senhores; mas como não respondem por o que é seu... E os
nossos capitaes...

Estes capitaes eram cem mil réis por junto.

O director pedia resignação a Deus, para não romper com o obstinado.

Carlos representou aqui de enviado celeste. Tomou o braço do accionista
dissidente, e, sem lhe attender aos esforços, afastou-o para o passeio,
dizendo-lhe a meia voz:

--O senhor já sabe do que se trata hoje na Praça? Vae organisar-se uma
companhia monstro.

--Pois sim, sim; mas deixe-me, que tenho que discutir alli com o
senhor...

--Ouça--insistia Carlos--é negocio dos accionistas ganharem quarenta por
cento, avaliando muito por baixo.

O homem, que era de ingenuidade proverbial entre os collegas, olhou para
Carlos com gesto entre desconfiado e inquiridor.

Depois a phrase «quarenta por cento» era de uma sonoridade!

A physionomia de Carlos tomára uma expressão de sisudez irreprehensivel.

--Pois sim, mas... eu agora...--dizia ainda o homem.

Carlos insistiu:

--Olhe que lhe fallo serio. É uma companhia de capitalistas inglezes,
que se vae metter n'isso. Meu pae está encarregado do trabalho da
instituição. É porisso que eu...

--Mas que é a final?--perguntou o sujeito com curiosidade.

--Demais espera-se que o governo conceda um subsidio...

O homem teve vontade de perguntar quem era o governo, mas resistiu á
tentação d'esta vez.

--Mas qual é o fim?--perguntou em vez d'isso.

--E o commercio do Porto vae resentir-se vantajosamente d'este
commettimento--continuava Carlos, devéras embaraçado em organisar a tal
companhia.

--Mas o fim da empreza? ... o fim?--bradava já o outro.

--O fim? Um grande fim... uma nova via de trafego commercial entre a
cidade alta e a baixa.

--Como? Alguma rua...

--Não, senhor; aproveita-se uma riqueza ainda inexplorada, que ha no
seio da cidade.

Um enxame de ideias extravagantes esvoaçaram na imaginação do
accionista, que já com ardente curiosidade perguntou:

--Mas... que é? como?

--Nada menos do que tornar navegavel o rio da Villa.

O accionista dissidente olhou ainda alguns instantes para Carlos; mas
cêdo depois voltou-lhe as costas _desapontado_ e procurou o director,
que estivera interpellando; este porém aproveitára o ensejo e
desapparecera, esquivando-se a resolver o difficil problema que o outro
lhe apontára ao peito--Quem era o governo?

O leitor, que é do Porto, permitta-me que eu explique aos que o não são,
que este nome pomposo de rio da Villa é dado a um pequeno riacho de
aguas menos limpas que se despenha por uns sitios escusos e não mais
asseiados do que ellas, até desaguar furtivamente e como envergonhado,
no Douro.

O primeiro individuo de quem, depois d'este, Carlos se avizinhou, era
uma potencia commercial, que ouvia amavelmente o pedido que lhe fazia um
collega, para elle pedir a outro, para este pedir a terceiro e este
terceiro pedir ao ministro para o ministro empregar na alfandega o filho
do cunhado do primeiro que pedia. Esta complicação enredada de
pedidos--da qual inevitavelmente se havia de resentir o periodo, como
resentiu--parecia clarissima para o que estava sendo exorado, pois, sem
pedir explicações, e como homem que logo á primeira vista entrou no
ámago da questão, não fazia senão prometter applicar todo o seu
valimento e ser até importuno para servir o amigo.

Carlos chegou no meio d'essas promessas cordialissimas. É preciso que se
diga que Carlos sabia, por acaso, que este capitalista havia recebido,
aquella mesma manhã, uma carta de Lisboa, assegurando-lhe que fora
provido, no logar disputado, um parente seu. Esta circumstancia fez com
que o pouco dissimulado irmão de Jenny ficasse verdadeiramente abysmado
diante da impavidez, com que o negociante illudia o amigo. Obedecendo á
franqueza pouco de sociedade, que dissemos ser um dos elementos do
caracter d'elle, Carlos não pôde emfim reprimir-se, que não dissesse:

--Mas, senhor F., olhe o que promette; esqueceu-se de que o seu parente
C. foi, hontem mesmo, despachado para esse logar?

Seguiu-se uma careta entre os dois interlocutores, que trocaram algumas
phrases, em taes casos forçosamente tolas; fartos emfim de mastigar
orações sem nexo, separaram-se friamente.

O capitalista ralhou muito com Carlos; porém Carlos ainda ralhou mais
com elle pela sua pouca lisura.

E o certo é que ficaram amigos. Ha nos caracteres francos e generosos
como o de Carlos, o que quer que seja que dissipa resentimentos ainda
aos mais reservados e egoistas.

Resolveu finalmente o irmão de Jenny entrar no escriptorio.

Ao dirigir-se para lá, viu que lhe vinha ao encontro um homem gordo,
baixo e córado, que já de longe lhe estava fazendo cortezias.

Parou a escutal-o.

--V. s.ª passou bem?--disse o recem-chegado.

Carlos correspondeu ao cumprimento.

--Ora eu--continuou o homem--já ha pouco fui ao escriptorio de v. s.ª;
mas nem v. s.ª nem o senhor seu pae lá estavam. Eu não sei se v. s.ª me
conhece.

--Não, senhor--disse Carlos, entretido a olhar para o laço da gravata do
seu interlocutor.

--Eu sou o Anastacio Rebello, que fiz aquelle carregamento de laranjas o
anno passado...

Carlos fez distrahidamente um gesto affirmativo, e passou a examinar o
botão de peito do snr. Anastacio Rebello.

--Ora v. s.ª--proseguiu este--ha de estar certo de que ha dois mezes...
um meu correspondente de Braga me pediu... Eu não sei se o pae de v. s.ª
lhe disse... Talvez não dissesse...

--Talvez não--disse Carlos, sem o attender...

--Pois o negocio é simples: este meu correspondente... que é também meu
compadre... isto é, eu é que sou padrinho do filho d'elle, uma creança
de treze annos, que esteve ha mezes em minha casa, a banhos na Foz, por
causa de uns humores frios que...

Carlos assobiava já.

--Mas agora quer este meu compadre... Olhe; aqui está a carta que elle
me escreveu;--proseguiu o homem, procurando-a no casaco--eu julgo que a
trago commigo... Por ella fará ideia.

E principiou a tirar papeis sobre papeis, cartas, escriptos, ordens,
letras, contas, recibos... dizendo, ao passo que examinava cada qual por
sua vez:

--Não... isto é outra cousa... é a ordem para me pagarem uns cincoenta e
tantos mil réis... E já não veem sem tempo... Mas onde diabo puz eu a
carta?... Não é isto... Isto é o escripto de arrendamento da minha casa
do Forno Velho... Isto é... Que S. Pedro é isto?... Ah! a carta do
Maranhão... isto ... isto é uma encommenda que me fazem de Bragança...
V. s.ª não me sabe dizer onde se vende... a estampa da guerra da
Crimeia?

--Eu não, senhor--disse Carlos, dando dois passos para o escriptorio.

--Encommendaram-m'a e eu...--continuava o homem, seguindo-o--Ah! achei;
cá está a carta!--exclamou, segurando Carlos pela manga do casaco--Ora
quer ler?

--Eu não, senhor--respondeu este, tentando evadir-se.

--«Prezado amigo e compadre--principiou o homem a ler.--«Recebi a sua de
13 e agradeço-lhe as recommendações, que me manda. A comadre...--é a
mulher d'elle--recommenda-se á snr.ª D. Maria do Carmo--é a minha
mulher...--e o Juca...--é o tal meu afilhado...--manda muitos beijos ao
padrinho...

--Que é o senhor--disse Carlos, já impaciente com a massada.

--Justamente--respondeu o homem, sorrindo á perspicacia de Carlos.

--Pois sim, mas eu agora não posso demorar-me--acrescentou Carlos,
fazendo outra tentativa para fugir.

--Isto tambem não interessa...--concordou o homem--aqui mais abaixo é
que... tal, tal, tal... sim, senhores...--«A festa do Bom Jesus este
anno promette ser feita com espavento e eu espero que
vocemecê...»--Elles querem que eu...

--Com licença, que estou com pressa.

--Sim; isto tambem não faz ao caso. É aqui abaixo...--«A camara
municipal foi reeleita, como sabe; a gente da opposição levou uma
derrota que...»

Carlos já não podia mais.

--Ora, meu caro senhor, que tenho eu com isso? Faz favor de me dizer?

--Tem v. s.ª razão... É que eu julgava... Tal, tal, tal--«O seguro não
quer pagar os prejuizos do incendio da minha casa da rua do
Souto...»--Olhe que tambem isto de seguros...

--Adeus--disse Carlos, rompendo de todo com o snr. Anastacio Rebello.

--Ah! é aqui; agora sim--exclamou este triumphantemente--Cá
está...--Aquella encommenda que eu fiz para Inglaterra...

Justamente quando o snr. Anastacio chegava ao ponto desejado, através
d'aquelle mar, cheio de baixios, da carta do seu correspondente, Carlos
vendo uma galante costureira, que a passos apressados atravessava a rua,
deixou-o sem ceremonia para se dirigir a ella.

--Adeus, minha flor.

A rapariga respondeu-lhe:

--Ninguem o conheceu hontem no baile.

--Então esteve lá?

E proseguiu o dialogo, mesmo em presença de toda a sisuda classe
commercial, que ao filho de Richard Whitestone tudo desculpava.

Anastacio Rebello dobrou a carta do compadre, e afastou-se escandalisado
com o que via.

Outros rapazes aproximaram-se. A rapariga fugiu.

Carlos, depois de alguns instantes tomados por occupações analogas ás
que descrevemos, caminhou emfim para o escriptorio.

Era assim que elle tratava negocios na Praça Commercial; vejamos no
escriptorio.



IX


NO ESCRIPTORIO


Na velha sala de paredes cinzentas e de soalho carcomido pelo caruncho,
onde Mr. Richard Whitestone tinha o escriptorio, havia vinte annos que
escrevia, addicionava, subtrahia, multiplicava, e dividia algarismos, e
isto tudo resmoneando, cantarolando e tossindo, o snr. Manoel Quentino,
personagem da idade do seu seculo, primeiro guarda-livros da casa, e
homem de habitos de vida, tão beneficiadores da saude do corpo, como
mantenedores da serenidade do espirito.

Manoel Quentino era a alma d'aquelle recinto. Na confusão de papeis, com
que lidava, taes como:--correspondencias, facturas, contas correntes,
contas de venda, conhecimentos, primeiras, segundas e terceiras vias de
letras, minutas de seguros, recibos e mais documentos commerciaes, elle
só, habituado desde muitos annos áquillo, podia descobrir uma disposição
ordenada.

D'isto mesmo se gabava; o que não se devia taxar de presumpção da sua
parte.

Pedissem-lhe de repente a mais insignificante carta, que elle, sem
hesitar, iria dar com ella. Era porém seu o segredo d'esta singular
classificação, que dera ás cousas; para o proprio Mr. Richard,
antolhava-se um dédalo o escriptorio, dédalo onde, ao querer
orientar-se, não dispensava nunca o fio conductor das explicações do
guarda-livros.

Homem de habitos regulares, a mais não poder ser, invariavelmente ao
soarem as sete horas da manhã no verão, e as oito, no inverno, estava
Manoel Quentino movendo a chave na porta do escriptorio; e meia hora
depois, sentado já á banca, todo entregue ao trabalho da escripta. Ás
tres da tarde, no inverno, e ás quatro, no verão, movia segunda vez a
chave, mas em sentido contrario; exceptuando uma ou outra occasião
extraordinaria, em que a affluencia de serviço o obrigava a serões.

Não era Manoel Quentino d'estes guarda-livros de mão rapida, e de
prompto expediente, que n'um momento dão solução a muitos negocios
juntos. Elle tudo queria feito com tempo, e, como a cada momento dizia:
«para pressas é que não era»; graças, porém, á paciencia e á
regularidade de trabalho, que não perdia nunca, insensivelmente o
serviço adiantava-se-lhe nas mãos e difficil seria acharem-o atrazado
alguma vez.

Observava pontualmente o judicioso preceito: _festina lente_, e
comprovava, com o exemplo, a efficacia d'elle.

Queria Manoel Quentino immensamente áquelle escriptorio, tal qual se
achava, assim mesmo desataviado e nú. Por vezes, Mr. Richard, e
principalmente Carlos, haviam procurado realisar n'elle certos
melhoramentos, que o fizessem mais commodo; tiveram porém de recuar
diante das repugnancias do velho guarda-livros, que declarou affligir-se
devéras com isso; e, como era elle a parte mais interessada no caso,
visto que alli passava grande parte da vida, foi-lhe facil vencer.

Em resultado d'isso, continuava a deliciar-se com aquellas quatro
paredes escuras, com o tecto de castanho apainelado, que o tempo
ennegrecera, com o chão aspero e picado pelos insectos, com as janellas
de construcção antiga, de pequenos caixilhos, e abundantes em fechos,
aldrabas e postigos, com a porta de fortaleza, cujos gonzos perros
tinham um chiar, que era para Manoel Quentino como o timbre de uma voz
de amigo, agradavel ainda quanto pouco harmoniosa, com as escrivaninhas,
os mochos, os cabides, o lavatorio e toda a mobilia emfim, feita segundo
os velhos modelos dos escriptorios antigos.

Eram aquellas as testimunhas do encanecimento dos seus cabellos; como
taes as amava.

Além de Manoel Quentino, compunha-se o pessoal do escriptorio de dois
segundos caixeiros e um rapaz de serviço, a todos os quaes o
guarda-livros accusava constantemente de mandriões e ao mesmo tempo
quasi os impedia de trabalhar, pela excessiva disposição que tinha para
fazer tudo por suas mãos.

Momentos antes de Carlos chegar, Manoel Quentino havia dado aos
escripturarios duas cartas insignificantes a copiar e entregára-se elle,
com todos os seus cinco sentidos, á redacção da correspondencia para
Londres.

Dos escripturarios, um, tendo terminado a sua facil tarefa,
aproveitou-se da distracção de Manoel Quentino, tirou ás escondidas da
escrivaninha um romance de Paulo de Kock e pôz-se a lel-o, com a sôfrega
curiosidade dos dezesete annos; o outro occupou o tempo a escrever uma
carta de amores á dama dos seus pensamentos, carta em que, por
incidente, foram inclusas algumas allusões epigrammaticas ao
guarda-livros, a quem entre outras cousas se chamava «Argos
desapiedado»; o rapaz de serviço, deixado tambem em disponibilidade,
entretinha-se a perseguir as moscas da vidraça ou a traçar com o dedo
lettras maiusculas nos vidros, que humedecia com o bafo. Qualquer
d'estas tres occupações, sendo pouco ruidosa, mantinha-se no escriptorio
um silencio, que agradava a Manoel Quentino.

Elle era o unico a interrompel-o, graças ao singular monologo, que
estava de contínuo murmurando á penna com que escrevia.

Dava-se effectivamente em Manoel Quentino uma illusão singular.

Á força de lidar com a penna, á força de tão indissoluvelmente a ver
associada ao seu destino, o velho guarda-livros acabára por julgal-a
quasi dotada de certa intelligencia e fallava-lhe, animando-a,
reprehendendo-a, sopeando-lhe os impetos, como a caprichoso corcel que
se pretende guiar.

--Anda, anda,--dizia elle--que ronceira que estás hoje! Olha que não
temos esse tempo, que julgas... Então?... Que é isso agora?... Pois já
queres mais tinta? Depressa gastaste a que bebeste! Vá, avia-te...
Bonito R! Isso não esperava eu de ti!... Adeus! Agora mais este
cabello!... E sujas-me todo!... Trapalhona!... Ai, que impertinente que
estás!... Adiante! adiante! adiante!... Espera, espera... Lá te esqueceu
um D!... E agora?... Agora vê se te mexes entre essas duas lettras...
Assim... Ah! ... não toques nos SS ... assim... Bem... Continúa, mas com
tento... Então! Não querem ver que páras outra vez? Ora isto é
demais!... Deixa estar que... Oh!

Era um borrão, que lhe caía no meio da pagina e lhe inutilisava a
correspondencia quasi no seu termo.

  «Trai la rai, la rai, larai lai
  Trai, larai, larai, larão, lão
  Trai larai lai, larai larai lai,
  Trai lari, lari, lari, larão lão.
  Trai lari, lari, lari, larão lão.»

Isto era a trautear o hymno da Carta, cousa que elle fazia sempre
n'estas occasiões criticas. E sem mais alguma observação pôz a folha
suja de lado, preparou outra e encetou nova correspondencia, não sem
primeiro substituir a penna, dizendo-lhe ao deixal-a:

--Descansa. Hoje não estás nos teus dias. Vem cá tu--dizia para
outra.--Vê lá como te portas!

E, olhando fixo para ella:

--Umh! Não tens lá muito boa cara! não... Ora vamos a ver... Vá,
despacha-te, que tenho mais que fazer!... Abre os bicos... abre...
Assim... bem! Sim, senhora!... Bravo... Ninguem havia de dizer que tu...
Caspite!...

E com estas palavras de animação ia applaudindo o bom serviço da penna e
quasi lhe parecia vel-a trabalhar com mais ardor, assim estimulada.

Foi n'este momento que um valente encontrão abriu a porta do
escriptorio, e o _terra-nova_, precedendo Carlos Whitestone, invadiu o
até alli silencioso e tranquillo recinto, principiando logo por entornar
a infusa com agua, collocada a um dos cantos da sala.

Manoel Quentino, que estremecera com a subita apparição do quadrupede,
ao ver o estrago que a sua impetuosidade produzira, pôz-se a olhar
silencioso para elle e em seguida para a porta, como se contasse com
mais alguma invasão, não menos revolucionaria do que esta.

Effectivamente Carlos não se fez esperar.

--_Good Morning_, Mr. Manoel Quentino!--bradou Carlos do limiar, fazendo
para o guarda-livros uma reverencia muito rasgada.

--_Good Morning_, Mr. Charles--respondeu Manoel Quentino, encolhendo os
hombros e dando ás feições um ar de paciente resignação, uma especie de
bondoso mau humor.

Cumpre advertir aqui que Manoel Quentino fallava o inglez, graças á sua
longa convivencia com os _Her Majesty's subjects_ residentes na nossa
cidade; mas o inglez de Manoel Quentino era, até certo ponto, como o
portuguez do patrão. Causava especial sensação ouvil-o pronunciar todas
as palavras inglezas n'um tom, inflexão e maneiras, do cunho mais
genuinamente portuguez. Podia dizer-se que Manoel Quentino fallava
portuguez em inglez.

--Ditosos olhos que o vêem!--disse elle a Carlos; e depois para o rapaz
do escriptorio:--Olha aquella agua que se entornou...--e para Carlos
outra vez com gesto velhaco:--Então esteve doente?

--Eu? Tenho gosado a mais florescente saude do mundo--respondeu Carlos.

--Como não tem apparecido!--Anda, avia-te rapaz!

--Tenho-lhe talvez feito aqui muita falta?

--Umh!--resmungou Manoel Quentino.

Os caixeiros, que com a entrada de Carlos haviam escondido, um o
romance, outro o modelo epistolar, sorriram entre-olhando-se.

--E você como tem passado por aqui sem mim, minha flor?--perguntou
Carlos, mexendo-lhe nos papeis--Cada vez mais bonito, cada vez mais
contente.

--Adeus, adeus. Não bula ahi, homem! Que é o que quer? que é o que quer?

--Lumes. Não ha lumes n'esta casa? que diabo!...

--Eu logo vi. Não pensa senão em fumar. Espere lá, espere lá. Não me
desarranje isso. Eu dou-lhe lumes, eu dou. Ora ahi tem. E deixe-me.

Carlos accendeu um charuto e offereceu outro a cada um dos caixeiros,
que os afagaram com olhares ávidos, mas sem se atreverem a aceital-os.

--Fumem--insistia Carlos.

Manoel Quentino levantou os olhos e fixou-os nos dois rapazes.

Sob a influencia d'aquelle olhar, hesitaram ainda.

Carlos obrigou-os porém a aceitar, offereceu-lhes lume para accenderem,
e emquanto o faziam, voltou-se para Manoel Quentino, e vendo a cara de
contrariado com que ficava, aproximou-se d'elle:

--Que tem você, Manoel Quentino? Deixe fumar os rapazes. Não seja
fossil.

--Se o pae vier por ahi, cuida que ha de gostar de... E demais a mais, é
distrahil-os do serviço...

--Que serviço? Olhem o grande serviço que elles
faziam!--Rapaz--acrescentou logo depois, dirigindo-se ao perseguidor das
moscas da janella--vae á rua de Santo Antonio saber se aquelle meu
casaco está prompto... e chega de caminho ao theatro de S. João,
pergunta pelo bilheteiro e dize-lhe que vaes de meu mando tomar seis
cadeiras para a recita de quinta-feira... entendes? Seis cadeiras;
depois...

--E faz favor de me dizer quando é que elle ha de levar a
correspondencia ao correio?--perguntou com mau humor Manoel Quentino.

--Eu sei lá d'isso? Anda, vae...

--Mas...

--Ora! mande ao correio quem quizer... Avia-te. Salta.

O rapaz saíu a correr.

Manoel Quentino encolheu os hombros.

Carlos dirigiu-se á janella, que abriu de par em par. Uma rajada de
vento, entrando na sala, fez esvoaçar toda a papelada da banca de Manoel
Quentino.

--Lá vae! lá vae! lá vae tudo com os diabos!--exclamou o
guarda-livros--Adeus, minha vida; estou arranjado!

Carlos desatou a rir.

--Isso; ria-se, que tem muita graça! Então os senhores que
fazem?--perguntou, descarregando as iras sobre os caixeiros--Ponham-se á
palestra e a fumar, e eu que trabalhe; hein?

--Deixe estar que eu apanho isso--disse Carlos, continuando a rir.

E todos quatro principiaram a apanhar os papeis, dispersos por a sala.

--Vão lá saber agora...--proseguiu Manoel Quentino--vão lá saber agora a
ordem em que eu tinha tudo isto! Olhem... olhem... Ficou bonita a carta
do correspondente de Liverpool! Sim, senhores! Olhem para estas contas
da gerencia da capella ingleza! Tambem ficaram asseiadas! Pois estas
apolices... E o maldito cão a afocinhar-me na agua aquella minuta!...
Passa fóra! Eh!... passa fóra, tratante.

E voltando á escrivaninha pôz-se a coordenar outra vez os papeis.

--Ó Manoel Quentino--perguntou-lhe Carlos já da janella--quem é aquella
rapariga que está aqui defronte no terceiro andar? Aquella cara é nova
para mim.

--Eu sei lá d'isso, homem? Tomára que me deixassem.

--Quem é, ó Paulo, você ha de saber. Um rapaz da sua idade...--disse
Carlos, dirigindo-se familiarmente a um dos caixeiros.

Era este um rapaz ainda imberbe, pallido, com certo fundo de melancolia,
transparecendo por debaixo do jovial sorriso, proprio dos seus, ainda
incompletos, dezoito annos.

Á pergunta de Carlos, aproximou-se da janella.

--Não sei--disse depois de ver a pessoa designada--não a conheço. O
Pires ha de saber.

Pires era o nome do outro caixeiro, que por sua vez foi chamado.

E todos tres, em resultado d'esta conferencia, ficaram encostados á
varanda, praticando em varios assumptos de igual momento.

Manoel Quentino, que já tinha posto por ordem os papeis, olhava de
quando em quando para a janella e principiava:

 Trai la rai...

trauteava o hymno da Carta.

O vento, depois de prejudicar a papelada do guarda-livros, dirigiu os
seus furores contra a pituitaria do mesmo; Manoel Quentino começou a
espirrar.

--Deus me salve!--dizia elle de cada vez.

Á quinta não teve mão em si, que não dissesse a Carlos:

--O' snr. Carlos! Ora a fallar a verdade, homem! Isso sempre é um gosto
exquisito! Ahi posto á janella com este vento dos diabos! Eu já
estou...--e espirrava outra vez--já estou constipado.

--N'esse caso recolho-me--disse Carlos, fechando a janella e vindo
debruçar-se na escrivaninha de Manoel Quentino, o qual começára de novo
a correspondencia.

--Sim, senhor, snr. Manoel Quentino;--dizia Carlos expellindo uma
baforada de fumo, á qual o velho fez caretas--você será parente de
Quentino Durward, de que falla o Walter Scott? Você sabe quem era o
Walter Scott, Manoel Quentino?

--Eu não, senhor...--respondeu o velho, continuando a escrever.

--Walter Scott era um romancista. Sabe o que é ser romancista? Diga-me,
já leu algum romance?

--Não, senhor, que tenho mais que fazer.

--Pois deixe estar que lhe hei de emprestar romances para ler...

--Muito agradecido.

--O primeiro ha de ser _O Cavalheiro de_...

Os dois caixeiros fungaram do outro lado da sala.

--_De Harmental_--concluiu maliciosamente Carlos--e acrescentou:--Não
sei de que se riem estes senhores.

--É porque teem a vida muito canceirosa--respondeu Manoel Quentino.

--Depois hei de emprestar-lhe a _Mademoiselle_...

O mesmo effeito nos caixeiros.

--_Mademoiselle de La Seiglière_--delicada concepção de Jules
Sandeau--concluiu Carlos, olhando-os com gravidade comica.

--Adeus, já me fez enganar!--exclamou Manoel Quentino--Por sua causa
escrevi agora--cavalheiro--em vez de--Companhia.

--Isso emenda-se.

--Ha de emendar boas cousas.

--Emenda, sim. Olhe d'esse _a_ faz-se bem um _o_; depois o _m_ fórma-se
do _v_ e do...

--O remedio é outro...

E com exemplar paciencia começou nova carta.

--Oh! com os diabos! Então vae outra vez principiar?

--É o que o senhor faz.

--O caso é que você tem bonita lettra! Invejo-lh'a. Se me ensinasse a
escrever assim!

--Não precisa.

E, para fixar a attenção, ia dizendo em voz alta o que escrevia:

--Recebi o seu favor de 14 do corrente e em resposta...

--Não preciso? Preciso tal--proseguiu Carlos--rapariga a quem eu
escreva...

--Do nosso ajuste--dizia Manoel Quentino, e fallando para Carlos
alternadamente:--Elle ahi vem com as raparigas; o que eu lhe queria eram
os cuidados!...--O preço do genero...

--Então parece-lhe indigno o assumpto? Ora diga, Manoel Quentino, diga
se, quando era rapaz, não massava tambem com o tal assumpto os velhos do
seu tempo.

--E a competente commissão.--Não que eu, quando era rapaz, já tinha mais
em que cuidar...--Em vista pois das ordens recebidas...--Cuida que me
levantava ao meio dia para pensar em moças, e que me deitava lá por
altas horas, inda por causa d'ellas?

--Então que fazia você?--insistia Carlos, tomando a penna e desenhando
uma figura na margem do jornal do dia.

--Com lucros provaveis...--O que eu fazia bem o sei; ainda me não
esqueceram as madrugadas dos meus vinte annos...

--Ah! madrugadas!... Bem entendo!...

--Para trabalhar, para trabalhar! Está muito enganado, se cuida que
todos tiveram a sua vida. Bom era isso!--A fallencia da casa Rodrigues
e...

--Grande vida a minha!--continuava Carlos--Ha lá nada mais semsabor?
Veja que precioso tempo perdido n'esta soturna sala.

E ao dizer isto ia, insensivelmente, sem reparar no que fazia,
aproximando a penna da borda da carta, que Manoel Quentino escrevia, e
quasi principiava a desenhar algum ornato n'ella.

--Oh! oh!--exclamou o velho, arredando-lhe a mão--Que ia fazer? Se lhe
parece, suje-me agora a carta.

Carlos ergueu-se rindo e pôz-se a passeiar na sala.

--O pae inda não veio hoje aqui?

--Ha que tempos!

--E não volta?

--Ha de voltar, se Deus quizer.--É preciso fechar isto mais cêdo
hoje--continuou Carlos.--Estes senhores precisam de gosar o carnaval.

--Bom carnaval é o d'este mundo!

--Que horas são?

--Duas e vinte minutos--Respondeu Manoel Quentino, sem olhar para o
relogio e não errando meio minuto.

--Se meu pae...--principiava a dizer Carlos, mas foi interrompido pelo
ranger das botas de Mr. Richard, que se ouviu nas escadas.

Restabeleceu-se a ordem no escriptorio.

Os caixeiros pozeram-se a escrever, e o proprio Carlos pegou em uma
folha ingleza e fez que a examinava na secção commercial.

Manoel Quentino curvou-se ainda mais sobre a banca e moveu com maior
agilidade a penna sobre o papel paquete, em que estava escrevendo.

Mr. Richard entrou no escriptorio com o rosto jovial e assobiando uma
das suas predilectas toadas inglezas; mas, graças ao duro ouvido musical
de que era dotado o velho _gentleman_, tão transtornada lhe saía ella,
que o proprio auctor lhe custaria de certo a reconhecel-a.

O _Butterfly_, com a leveza, que justificava o nome de lepidoptero, que
lhe tinham posto, atravessou a sala e foi cumprimentar o seu companheiro
_terra-nova_, o qual, sentado, com a lingua de fóra, o recebeu com
benevola, mas sisuda, magestade.

Todos se ergueram á entrada de Mr. Richard, em cujo rosto um olhar,
exercitado em estudal-o, facilmente descobriria certa expressão de
contentamento, despertada pela vista do filho, o qual, elle, n'aquelle
dia, estava bem longe de esperar alli.

O plano de Jenny sortira bom effeito.

Mr. Richard dirigiu-se immediatamente ao seu gabinete particular. Carlos
foi ter com elle, para lhe pedir a benção e ao mesmo tempo aproveitou a
occasião para lhe agradecer o relogio e para desculpar-se de não ter
assistido na vespera ao jantar de familia.

Mr. Richard Whitestone já não tinha cousa alguma no coração contra o
filho. A vinda d'este ao escriptorio fora bastante para dissipar a menor
sombra de resentimento.

--Não teve duvida--repetia elle muitas vezes, interrompendo a longa
justificação de Carlos--não teve duvida, não teve duvida... Pois... esse
relogio é de um fabricante muito acreditado, e, segundo o homem affirma
aos compradores, não fará differença de meio minuto em cinco annos!
Talvez seja confiança de mais!--acrescentou, rindo com vontade.

--Ou cegueira paternal--observou Carlos, rindo como elle.

--Sim, sim, ou isso, cegueira paternal, sim--concordou Mr. Richard,
rindo cada vez mais e experimentando elle mesmo tambem os effeitos da
tal cegueira.

E em seguida destapou duas garrafas de cerveja de Bass, tirou do armario
uma copiosa provisão de bolacha e, na companhia do filho, celebrou a sua
terceira refeição d'aquella manhã.

Passados minutos, voltaram ambos ao escriptorio nas melhores disposições
d'este mundo.

Se Jenny os podesse ver então, como exultaria de contentamento!

Mr. Richard encaminhou-se para a escrivaninha de Manoel Quentino, Carlos
sentou-se na escrivaninha opposta, e fingiu examinar os livros
commerciaes.

Mr. Richard dirigiu varias perguntas ao guarda-livros, sobre alguns
negocios pendentes, ás quaes Manoel Quentino deu respostas laconicas,
mas peremptorias.

O inglez consultou depois algumas cartas, entregou outras ao
guarda-livros, tomou notas, expediu ordens, examinou a escripturação,
abriu o copiador e, de repente, voltando as costas a Manoel Quentino e
dirigindo-se a Carlos:

--Já leste a carta do nosso correspondente em Londres?--perguntou com
affabilidade.

--Ainda não, senhor.

--Manoel Quentino! Então porque lh'a não mostrou?!--disse o pae,
voltando-se outra vez para o guarda-livros; e depois acrescentou de novo
para Carlos:--Ha noticias importantes e que fazem prever a probabilidade
de ser este um anno de vantajosas transacções, se por acaso...

--É um homem diligente, Mr. Leeson--notou Carlos, querendo dizer alguma
cousa, mas com tanta infelicidade, que trocou o nome do correspondente
de Londres pelo do de Liverpool.

--Ho!--disse logo Mr. Richard, mortificado--Leeson!... de Londres!
Repara!... de Londres!?

Carlos conheceu que tinha sido inconveniente a observação, mas o peior
era que não sabia corrigil-a, pois que de todo lhe esquecera o nome do
tal correspondente.

--Ai, de Londres...--dizia elle embaraçado.--Eu julguei que... sim, de
Londres; é que me pareceu...

Mr. Richard esperava ouvir o verdadeiro nome, pronunciado por o filho;
mas não succedeu assim.

Manoel Quentino, que tinha bem fundados motivos--motivos, que o leitor
deve prever quaes fossem--para não julgar de instante necessidade pôr
Carlos Whitestone ao corrente das noticias commerciaes, abriu comtudo a
escrivaninha e, procurando a carta em questão, levou-a a Carlos, não
podendo disfarçar um sorriso, ao qual este correspondeu com ligeiro
movimento de hombros.

Carlos, em vez de citar o nome do correspondente, pôz-se portanto a
examinar a carta.

--Falle-lhe n'aquelle negocio da aguardente--disse Manoel Quentino quasi
ao ouvido de Carlos, antes de se retirar outra vez para a banca onde
escrevia.

Mr. Richard pozera-se a passeiar na sala, esfregando as mãos, e de
quando em quando parava junto da vidraça, onde tocava um ligeiro rufo.
Não estava ainda de todo restabelecido da má impressão que lhe causára o
haver encontrado o filho tão pouco sciente do nome dos correspondentes
da casa.

Carlos ficou a olhar para a carta commercial, mas julgo que nem a lia.
Estava pensando como havia de aproveitar o conselho, pouco explicito, de
Manoel Quentino e fallar ao pae no tal problematico negocio da
aguardente, para elle inteiramente mysterioso.

Temia, referindo-se-lhe aventuradamente, aggravar as difficuldades da
sua posição, longe de diminuil-as.

Manoel Quentino continuava a escrever, lançando para Carlos, ao molhar
da penna, um sorriso malicioso.

Este pousou a carta.

O pae olhava-o obliquamente, como a esperar alguma reflexão.

Carlos fitou ainda Manoel Quentino, o qual lhe fez um imperceptivel
signal.

Carlos aventurou-se:

--Emquanto ao negocio da aguardente...--disse elle com certa
hesitação--nada...

O effeito foi maravilhoso!

Mr. Whitestone voltou-se com viveza e, sem disfarçar a intima
satisfação, que lhe causava ver o filho tão bem informado, exclamou:

--Ah! tambem reparaste? Foi o que logo me deu que entender. Cuidei que
nem estavas ao facto!

Carlos, animado com o resultado, proseguiu com mais coragem:

--Como era negocio de vulto...

Manoel Quentino fez porém uma carêta, que o levou a corrigir.

--Isto é... de vulto não digo... mas...

--Mas que podia bem vir a sel-o para o futuro ... é assim--atalhou Mr.
Richard.

--Exactamente--concordou o filho.

Manoel Quentino sorria.

--Mas já estive a pensar--proseguiu Mr. Richard--talvez influissem
n'isto as condições do mercado em Londres. Subiria o genero a ponto de
exceder o maximo indicado nas nossas cartas.

--Póde ser, mas...--dizia Carlos, olhando para Manoel Quentino, á espera
de receber inspirações d'alli.

Este affeiçoou os labios como para pronunciar uma palavra, que a Carlos
pareceu dever ser «juro». Por isso abalançou-se outra vez a dizer:

--E tambem o juro...

Parou, porque devéras não sabia o que devesse dizer do juro, nem se era
natural imaginar que tivesse subido ou descido.

Manoel Quentino moveu a cabeça em direcção do tecto, exprimindo
mimicamente a primeira hypothese.

--Talvez o juro subisse--concluiu, em vista d'isto, Carlos Whitestone.

Mr. Richard aproveitou a insinuação do filho, e evidentemente satisfeito
notou com vivacidade:

--Effectivamente o juro está muito alto em Londres.

--Ha muito tempo que o não tivemos tão desfavoravel--apressou-se Carlos
em dizer, d'esta vez sem hesitar, visto que dava apenas nova fórma á
mesma ideia.

--É verdade que não. Creio até que ainda n'estes ultimos dez annos não
subiu tanto, como agora.

Carlos percebeu em Manoel Quentino um movimento de desapprovação, que o
animou a dizer:

--Isso é que não sei; dez annos será demais, comtudo...

--Olha que não é demais--insistiu Mr. Richard, devéras admirado das
informações do filho; e, depois de meditar algum tempo, continuou,
voltando-se para o guarda-livros:--Em que anno teve logar aquella quebra
da casa Blackfield de Londres, Manoel Quentino?

--Em outubro de 1847--respondeu este, sem levantar os olhos da escripta.

--Em 47?--Ai, então tens razão, tens; 47 a 55... 8... É isso... Porque
eu lembro-me de que estava então o juro a 8 por cento.

--E d'essa vez--acrescentou Manoel Quentino--o cambio era-nos mais
desfavoravel que hoje.

--É isso, é isso.

Esta conversa prolongou-se por algum tempo com visivel satisfação de Mr.
Richard, com bastante difficuldade para Carlos e com superior diplomacia
do bondoso Manoel Quentino, que estava sendo collaborador de Jenny, na
obra de pacificação domestica, encetada por ella.

Ouviram-se emfim tres horas na torre de S. Francisco, e Mr. Richard,
depois de ultimo exame aos livros e algumas recommendações mais, saíu do
escriptorio, dando as boas tardes a Manoel Quentino, fazendo a Carlos um
signal de despedida, menos sêcco do que de ordinario, e, o que mais era,
afagando na passagem o _terra-nova_, cousa que não praticava, senão em
occasiões de grande harmonia com o filho.

Ainda mal se tinha perdido nas escadas o som dos passos de Mr. Richard e
o dos latidos de contentamento do _Butterfly_, impaciente de liberdade,
já a carta do correspondente de Londres, descrevendo uma parabola, vinha
caír na escrivaninha ao lado de Manoel Quentino, e Carlos accendia novo
charuto e dispunha-se a seguir o exemplo paterno.

--Até que soou a hora da redempção!--exclamou elle, pondo o chapéo na
cabeça.

--Então já se vae embora?--disse Manoel Quentino, maliciosamente.

--E acha você que não tomei dóse bastante de commercio esta manhã? Isto
em pleno carnaval? Que impiedade!

--Eh! eh! eh! E que me diz do tal negocio da aguardente? Então com que,
está alto o juro, hein? Eh! eh! eh!

--Vi-me devéras embaraçado com a tal aguardente!

--Mas saíu-se bem.

--Agradeço-lhe o auxilio.

--Quer mandar dizer alguma cousa ao correspondente a tal respeito?

--Que vá para o diabo! Não me pôde occorrer o arrevezado nome d'esse
maldito. Como se chama elle?

--Então não sabe ainda? Woodfall Hope... Uma das primeiras firmas
commerciaes de Londres; e n'este negocio da aguardente...

--Não, isso mais devagar, Manoel Quentino--atalhou Carlos--não lhe aturo
nem mais uma palavra a respeito do tal negocio da aguardente. Boas
tardes. Adeus, meus senhores. Deixem isso e vão ver as mascaras. Adeus.

--_Farewell_! Mr. Charles... Eh! eh! eh!...

Dentro em pouco, ouvia-se o descer apressado de Carlos, e a pancada
violenta da meia cancella do portal impellida de encontro ao batente.

O escriptorio voltou ao primeiro silencio. A Praça estava quasi deserta.
Como era terça-feira de carnaval, terminára mais cêdo a azafama do
commercio. Os caixeiros bocejavam e o chiar da penna de Manoel Quentino
augmentavam o effeito somnifero do logar.

De repente porém foi mais ruidosamente interrompido o silencio por o
«Trai larai, larai, larai, lai» do guarda-livros.

O bom homem, revendo o trabalho feito, descobriu omissões e enganos, que
o obrigavam a refazel-o outra vez; a isto procedeu com exemplarissima
paciencia.

Voltou a si todas as culpas.

--Ora eu devia ter mais juizo. Ainda me deixo distrahir como as
creanças; merecia palmatoadas.

Depois, lembrando-se de Carlos:

--Aquelle traquinas tambem! Valha-me Deus!

Em seguida para os caixeiros:

--Os senhores podem ir embora. Vão ás mascaras, vão; e olhem se teem
juizo e não arruinem a saude. Adeus. Eu ainda fico.

--Mas se quer que o ajudemos, snr. Manoel Quentino...--disseram elles,
por deferencia.

--Eu quero, mas é que me deixem. Vão com Deus.

Os caixeiros não se fizeram rogar.

--Agora, juizo--continuou Manoel Quentino, ficando só--juizo, senão só
chego a casa á noite, e a Cecilia ha de estar com canceira já. Como se
transtornou hoje tudo! Eu, que contava acabar com isto mais cêdo, pois
levava o serviço adiantado e vae... Como diabo lhe deu o rapaz para vir
hoje ao escriptorio?... Bom moço, isso lá é, um coração de pomba... A
cabeça é que... E n'isto de negocio, então!... Eh! eh! eh!... E o pae a
imaginar ha pouco... A gente sempre tem cegueiras pelos filhos! Cala-te,
bôca, que tambem não pódes fallar! Coitados dos paes! E o velho quer-lhe
devéras... Toda a sua pena é o rapaz não tomar gosto para o commercio.
Aquillo tambem muda... Verduras! Bom rapaz! bom rapaz! Tem a quem saír.
O pae, um homem de bem ás direitas... a mãe era uma santa senhora...
Pois a irmã? Isso então nem fallemos... Um anjo! E pensar que não são
catholicos! A fallar a verdade! Ora adeus! protestantes d'estes, que
remedio tem S. Pedro senão ir recebendo-os no céo.

Em consequencia da visita de Carlos, só ás tres e meia foi que Manoel
Quentino pôde terminar a sua tarefa e fechar o escriptorio, para voltar
a casa com appetite no estomago e tranquillidade no coração. Já vê o
leitor que tinha razão Carlos ao assegurar que não era das mais
proveitosas a sua ingerencia nos negocios commerciaes.



X


JENNY


Jenny entrou no seu quarto, logo depois da partida de Carlos para o
escriptorio. Era um delicioso quarto, côr de violeta, onde se divisava o
bom gosto e a elegancia desaffectada, maravilhosamente unidos a um não
sei quê de austeridade ingleza, não em tal grau que destruisse a feição
leve e graciosa, que compete aos aposentos de uma mulher de vinte annos,
mas bastante para os despojar de certo excesso de ornamentos, que em
extremo agradam a alguns espiritos, mais que femininos, pueris.

Não lhe era cabida a descripção, que um romancista francez nos faz do
quarto de uma das suas heroinas, pintando-nos tão abundantes as
tapeçarias e alcatifas que, em todo elle, se não mediria uma pollegada
de madeira a descoberto, e tão flacidas e macias, que n'essa gaiola
perfumada poderia qualquer avesita voar, de canto a canto, sem receio de
magoar as azas.

Este requinte de molle elegancia parisiense mal se quadrava com a indole
séria e com a actividade natural de Jenny Whitestone. Ha em toda a
ingleza um pouco de puritana; no caracter das mais ternas conserva-se
sempre alguma cousa que, debaixo do ponto de vista moral, corresponde
áquelle esbelto e inflexivel de fórma, que lhes é proprio, tão diverso
do requebrar indolente e quasi morbido das mulheres meridionaes.

Não se encontrava no quarto de Jenny um unico objecto d'essa mobilia,
quasi de boneca, dos _boudoirs_ da moda, onde predominam o _papier
maché_, o pau rosa, a madeira branca e dourada; e os primores de uma
arte, que, á força de querer apurar em delicadeza os seus productos, os
faz ás vezes acanhados e ridiculos.

A elegancia, alli, não abdicava certa dignidade, á qual hoje é raro
combinar-se. Nenhum dos costumados artificios da industria moderna; tudo
era o que parecia ser; o marmore, marmore; o bronze, bronze; o damasco,
damasco; as rendas, rendas verdadeiras. Não havia nos moveis esses
tenuissimos folheados, mascarando, com madeiras de preço, outras de
menos valor; nenhumas d'essas maravilhas de imitação, obtidas com
vernizes e tintas; nenhuns metaes enfeitados, pelo galvanismo, com
falsos titulos de nobreza. Nem um só objecto mentia dentro d'aquelle
recinto.

Os caracteres, naturalmente observadores da boa fé, até n'estas cousas a
amam.

A côr predominante do quarto, de um tom que agradaria a pintores, fazia
vantajosamente sobresair a alvura dos cortinados do leito, castamente
descidos.

Côres mais garridas só as das camelias, que, em singelas jarras de
_biscuit_ e porcellana, adornavam o toucador e o fogão.

Não usurpavam o logar, devido ás pobres flores, essa profusão de
quinquilharias, hoje tanto á moda: vidros de essencias, de pomadas, de
oleo, cartonagens de todos os feitios, figuras de porcellana e de jaspe,
flores de pennas, de papel, de sola, de cascas de cebolas, de tudo com
preferencia ás verdadeiras; retratos de rainhas e de reis, sabonetes de
varias côres e fórmas e uma infinidade de pequenos objectos, que dão a
qualquer d'esses gabinetes a apparencia de bazar ou de exposição de
feira.

Alguns bronzes de arte, alguns purissimos crystaes de Inglaterra,
algumas bonitas floreiras e uma ou outra obra de litteratura ou de
religião, n'aquellas inimitaveis brochuras inglezas, era o mais que alli
se podia ver.

As paredes estavam limpas de arrebicadas lithographias coloridas,
representando meninas a disfarçarem um sorriso atraz do leque, a
brincarem com um gato, a cheirarem uma flor, a olharem-nos através de
uma luneta e em outras muitas posições todas affectadas, de tão
graciosas que querem ser; em vez d'este adorno, então commum nas salas
do Porto, notavam-se as mais afamadas producções do inexcedivel buril
britannico e algumas aquarellas, cópias fieis de paizagens inglezas.

A luz penetrava na sala por entre discretas venezianas e cortinas, que
lhe temperavam a intensidade, até o grau adequado aos habitos de viver
de Jenny.

De tudo emfim vinha a este quarto um aspecto de placido recolhimento, em
que se aprazia o espirito, pensador e inclinado á melancolia, da
amoravel irmã de Carlos.

Era alli dentro que, corridos os reposteiros e as cortinas, recostada ás
mãos a fronte pensativa, em silencio, a sós, tantas vezes, como agora, a
sympathica menina se entregava a meditações abençoadas de Deus, e das
quaes dimanavam jubilos suaves para quantos de perto a rodeiavam.

Agitado o coração de saudades, sempre vivas e pungentes, contemplava
n'esses momentos, com fervor quasi religioso, o retrato da mãe, fiel e
mimosa miniatura, que recatava como a mais preciosa das suas joias.

A imagem d'aquella, que a estremecera tanto e que parecia ainda olhal-a
com um bondoso sorriso, que nem a morte lhe apagára dos labios, produzia
em Jenny a mais poderosa impressão.

Ás vezes, á força de muito a contemplar, figurava-se-lhe que essas
amadas feições se animavam, que um ligeiro movimento lhe corria nos
labios, que um raio de vida fulgia, por instantes, nos olhos tão cheios
de piedade e de tristeza.

Que alegria para o coração da pobre Jenny! Persuadia-se de que a alma da
mãe, evocada pela sympathia filial, passára alli, illuminára
momentaneamente a imagem inerte, e abençoára a filha, que tão pequena
deixára orphã de apaixonadas caricias.

Esta illusão vivia com Jenny; era n'ella um d'esses intimos segredos do
coração humano, para os quaes não há confidentes possiveis. Perante a
amizade mais provada, perante o amor mais extremoso, a alma, por
expansiva que seja, não se revela toda. Ha uma parte obscura do nosso
mundo interior, sempre inaccessa aos olhares estranhos, onde se refugiam
esses muitos segredos do eu para o eu, segredos, de que nós mesmos nos
ririamos, se os labios ousassem pronuncial-os um dia;--que não ousam. Ha
exemplos de perfumes tão subtis, que, aberto o vaso que os contém, quasi
instantaneamente se dissipam na atmosphera; assim estes mysterios
interiores, inconsistente alimento da nossa phantasia, perdem-se tambem,
ao tentarmos communical-os.

Guarde cada um para si essa parte do pensamento, superstições
infundadas, crenças pueris, que não podem separar-se de nós, sem que nós
proprios as desconheçamos e com os estranhos zombemos d'ellas, das
pobres, que não nasceram para viver senão assim, presas á alma, de cuja
essencia parece receberem vida.

São como umas delicadas algas maritimas, cuja textura tenuissima se
expande na agua em formosas arborisações, illudindo as esperanças dos
que, namorados de tanta belleza, as arrancam de lá; fóra do ambiente, em
que vegetam, cêdo se mirram e desformam.

Bem lucida e forte era a razão de Jenny, e comtudo, no mundo interior,
nutria a crença illusoria--pelo menos illusoria me parece, a mim que de
fóra a examino--de que aquelle retrato de sua mãe não tinha uma
expressão invariavel.

Eu queria dizer que isto era sentido, e não pensado, pela bondosa
menina; mas não sei se o rigor philosophico me permittirá a linguagem; e
comtudo não vejo como de outra sorte dar conta d'este frequente
phenomeno psychologico--o da persistencia de certas crenças irracionaes,
nos espiritos mais vigorosos e logicos.

Dias havia, em que nos traços e delineamentos d'aquella miniatura, Jenny
julgava descobrir um ar de alegria, que logo se lhe insinuava no
coração; outros em que, pelo contrario, ganhavam vulto a seus olhos não
sei que sombras de tristeza que a faziam estremecer, como se fossem
presagio de mal.

Seriam reflexos de presentimentos proprios, que então a illudiam?
Talvez; e ficar-se-ha comprehendendo melhor o mysterio, interpretando-o
assim?

Presentimentos! Que espirito philosophico ha ahi, que os admitta?

Jenny era ainda uma creança, quando perdeu a mãe; no meio dos jogos e
dos brinquedos infantis veio um dia surprendel-a este profundo golpe no
coração; ao seu lado, crescera o mal ameaçador e terrivel, mas, no
descuido de tão tenros annos, só dera por elle, quando a victima lhe
caía prostrada nos braços. Feliz idade, a d'estas imprevidencias! N'um
momento a vida inteira se lhe affeiçoou muito diversa, do como até então
a antevira. Cêdo, muito cêdo, aquella creança franzina e debil, recebeu
a solemne investidura da sacrosanta missão de mulher; transmittiu-lh'a a
mãe, já moribunda; legou-lhe, nos derradeiros instantes, a tarefa
abençoada, que até o fim cumprira, sem um só dia de desalento.

Apertando nas mãos já frias as da filha lacrimosa, que só então vira a
morte, que, tanto havia, a ameaçava nos seus mais queridos affectos,
incumbiu áquelles poucos annos o pesado encargo da familia; e com a voz
trémula e os olhos turvados pelas sombras do adormecer final, disse-lhe
que a essas mãos ia deixar entregue a paz da vida interior, a felicidade
dos seus; que a ellas confiava os thesouros e balsamos de affeições e de
carinhos, com que, no lar domestico, se sanam tantas dores e
desillusões, colhidas lá fóra, nas luctas da sociedade; depois, cingindo
ao peito a filha, como em extrema recommendação, para a qual as palavras
lhe faltavam já, morreu beijando-a; ungiu-a de suas ultimas lagrimas e
impressionou-lhe a mente infantil a ponto que a orphã, depois de a
chorar sobre o tumulo, levantou-se mulher, mulher apesar dos seus doze
annos, mulher pela sisudez dos pensamentos, pela consciencia viva e
fervente da sua nova missão.

É um ensino efficaz o do infortunio! Desde essa hora fatal, como que se
abriram os olhos de Jenny para verem mais fundo no coração d'aquelles
que era dever seu tornar felizes. Só então principiou a reflectir que,
entre os corações mais nobres e puros, se estabelecem ás vezes
contrastes, de que podem resultar conflictos dolorosos; que o infortunio
e as miserias da vida nem sequer proveem da funesta influencia do mal,
de que se tenha deixado eivar completamente uma alma humana; que mais
vezes é do encontro de duas paixões, na essencia generosas, que a
tempestade se origina. No alto mar, um vento dominante póde governar o
movimento e a derrota de um navio, mas é necessario que seja extrema a
sua violencia, para que elle, por si só, o faça sossobrar; penetre porém
o vaso mais poderoso no seio d'esses redemoinhos, que formam os ventos
encontrados; e a submersão será quasi inevitavel.

É assim na vida.

Não basta que sejam grandes e sympathicos os caracteres, que laços de
familia ou de sociedade prendem uns aos outros, para que entre elles
exista harmonia. Que nas suas orbitas os animem movimentos contrarios, e
serão já de temer os embates e as perturbações fataes.

A natureza physica tambem nos mostra como venenos energicos resultam ás
vezes da combinação de elementos inoffensivos.

Tudo isto se foi esclarecendo, á força de meditações, no espirito da
pequena Jenny, que tão precoce adeus teve de dizer áquellas espontaneas
e não motivadas alegrias da infancia, que n'ella findaram com o ultimo
suspiro da mãe.

E cêdo foi, muito cedo para uma creança ingleza que, de ordinario, na
idade em que as outras principiam já a querer ser senhoras, brinca
alegre e descuidada nos parques, correndo, saltando, rindo, sem se
affligir por a fimbria dos vestidos ainda se lhe não humedecer na relva.

Esta livre expansão, que sabem e costumam dar á alegria as pequenas
inglezas, é talvez a causa de serem desaffectadamente sérias, quando
emfim a natureza, e não a arte prematura, as faz mulheres.

Cessaram pois em Jenny os risos d'essa idade, risos expansivos e
irreprimiveis, que a cada palavra, que á menor causa rebentam, como da
laranjeira florida chovem sobre o prado as pétalas nevadas e fragrantes,
á mais leve viração que lhe agita a folhagem.

Afez-se a reflectir, a votar-se toda á felicidade dos seus, procurando
insinuar-se nos pequenos segredos de caracter de cada um, para os
dirigir, sem lucta funesta, na mesma esphera de acção, no mesmo circulo,
em que tinham de viver.

Desde essa época principiou a crescer e a vigorar com rapidez o
predominio de Jenny em toda a familia--suave sujeição, grata aos que a
supportavam, como uma benção do céo.

Até então amára-se em Jenny uma creança meiga, cujas graças joviaes
faziam distrahir o espirito de preoccupações mais sérias; cêdo porém
tomou esse amor diverso e mais respeitoso caracter.

Em Mr. Richard Whitestone á affeição protectora, de que rodeiava a
filha, principiou a misturar-se uma deferencia, que tinha seus vestigios
de veneração; em Carlos, a familiaridade que as idades quasi iguaes e os
jogos e estudos communs haviam feito nascer entre ambos, degenerou
gradualmente em um sentimento de mais respeito, em uma docil submissão,
que em todos os seus actos se denunciava.

Forte com esta dupla preponderancia, ía cumprindo Jenny religiosamente o
legado da mãe, sempre com o pensamento n'ella, sempre com os olhos na
sua imagem, na qual julgava entrever os reflexos da alegria ou da
tristeza, que a sorte da familia devia por certo despertar n'aquella
alma de justa, que a contemplava do céo.

Este oraculo, para todos mudo, só eloquente para os sentidos da filha,
consultava-o Jenny com ardente fé ao encerrar-se sósinha no quarto, onde
a luz e o rumor de fóra penetravam discretamente, como convinha a logar
de tão piedosos mysterios.

Era triste a imagem d'esta vez!

Triste porquê?

Se os labios da irmã de Carlos trahissem n'aquelle momento as ideias,
que tão profundamente a absorviam, elles fallariam d'este modo:

--Pobre mãe! porque venho encontrar-te assim triste? Não passaria ainda
a nuvem d'esta manhã?... Mas era tão ligeira!... tão leve! que a mim
mesma me inquietou pouco. Que adivinhas tu, boa mãe?--Isto pensava, ao
beijar o retrato--Alegra-te; Carlos deve estar agora no escriptorio;
pobre Carlos! É tão bondoso aquelle coração! Como elle havia de amar-te,
como havia de acariciar-te, mãe, se ainda vivesses comnosco! Poucos o
conhecem bem. Mas por que estás ainda triste? Has de ver como voltarão
amigos. É facil reconciliar aquelles corações, que a final tanto se
estremecem! Uma ou outra nuvem, que passe entre ambos, gera-a o mesmo
excesso de amor. Parece-me que ia dizer como tudo se passou. A vista de
Carlos foi bastante para dissipar todo aquelle resentimento...
resentimento proprio de quem muito estima!... Então! Já não tens
confiança na tua filha? Bem vês como todos aqui me querem. Elles de
certo vêem em mim alguma cousa do teu espirito, mãe, para serem assim
tão doceis com uma pobre rapariga. É á tua alma, á tua alma, que me
acompanha, que elles obedecem a final. Continúa ao meu lado, mãe, e eu
serei forte; não me abandones, e verás que não ha fundamentos para
apprehensões. E ainda triste!--E beijava o retrato--E ainda!... e
ainda... e ainda!...--beijava-o repetidas vezes.

Depois tentava a razão dissipar aquelas piedosas illusões:

--Estou louca!--pensava então Jenny--Pois como póde um retrato...

Aproximava-se mais da luz.

As illusões voltavam outra vez, como volta o enxame de abelhas que o
vento afasta das flores.

--Não sei, não sei como isto é, não posso saber... mas esta expressão é
mais triste do que a de hontem... De que procede esta tristeza?... A
maneira por que me fallou do baile de hontem... O baile! ... acaso ...
aquela mascara?... Mas que póde resultar d'alli?... Meu Deus! diria que
ainda te pozeste mais triste! Deverei pois acreditar...

N'isto ouviu passos fóra da porta.

Quebrou-se o encanto! Como que se extinguiu toda a impressão do retrato
para os sentidos, meio allucinados, da commovida...
visionaria--chamar-lhe-hei assim?--Apressou-se em escondel-o.

A figura de Luiza, aquella mesma criada que já conhecemos, appareceu no
limiar.

--Que é, Luiza?

--É a filha do snr. Manoel Quentino.

--Ah! chegou finalmente Cecilia? Que entre, Luiza, que entre. Nem sei
para que a fez esperar--acudiu Jenny com vivacidade.

Era Cecilia uma das suas mais affeiçoadas amigas.



XI


CECILIA


Passados momentos, entrava no quarto, ligeira como uma andorinha,
risonha como uma creança, a filha de Manoel Quentino. Era a unica
familia que o velho guarda-livros tinha no mundo.

Jenny estendeu-lhe affectuosamente a mão ... e «beijaram-se», pensará a
leitora. Pois não beijaram, não, minha senhora; as inglezas poupam muito
mais esse thesouro dos beijos, do que as mulheres dos outros paizes; um
amigavel aperto de mãos, um sorriso, uma phrase affectuosa... e mais
nada. Será para os fazer mais apreciados, quando concedidos?

Cecilia era um modelo da belleza portugueza, e portuense talvez, nas
suas mais felizes realisações.

É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos leitores, a
belleza de uma mulher, classifical-a entre as hespanholas, entre as
italianas, entre as allemãs, e entre as inglezas, mas nunca entre as
nossas compatriotas, que soffrem, ha muitos annos, com sublime
resignação de martyres, esta velha e flagrante injustiça.

Parece que o typo nacional é indigno de referencia, e que só quando
d'elle aberra e, por um capricho da natureza, reveste a feição
estrangeira, é que uma figura de mulher merece as fórmulas, mais ou
menos sonoras e hyperbolicas, da nossa admiração.

É vulgar ouvir-se dizer:--«Como é bella! Ha n'aquelle todo vaporoso
certo ar germanico!»--«Que mulher! Tem o _salero_ de uma
hespanhola!»--«Que magestade! que _morbideza_! É uma perfeita _madonna_
italiana!»--«Que poetica gravidade! Dir-se-hia uma candida _lady_!» O
que porém se não ouve, pelo menos o que eu ainda não ouvi, é: «--Que
sympathica rapariga! É uma portugueza perfeita!»

A causa d'isto é o sermos nós uma nação pequena e pouco á moda, acanhada
e bisonha n'esta grande e luzida sociedade europeia, onde por obsequio
somos admittidos, dando-nos já por muito lisongeados, quando os
estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.

Falta-nos certo uso de sociedade, que ensina cada qual a occupar o seu
logar. Quando não encarecemos exageradamente as cousas patrias, á
maneira d'aquelle sujeito que vimos n'um dos grupos da Praça, caímos no
excesso opposto e nem sequer fallamos d'ellas, como se nos corressemos
da origem.

Bem que peze á vaidade nacional, é forçoso o fazer aqui, em familia, uma
confissão:--Nós temos o defeito d'aquelles provincianos que, nos
circulos da capital, suffocam envergonhados, como cousa de mau gosto,
uns restos de amor da terra, que ainha os punge, e deitam-se a exaltar,
com affectação altamente comica, os prazeres e commoções da vida das
grandes cidades, que ainda mal gosaram e ainda mal saboreiam;--fallam
dos theatros, dos bailes, da cantora da moda, do escandalo do dia, sem
se atreverem a dizer uma palavra pelo menos das arvores, das paizagens,
das tradições, dos costumes locaes, do conchego domestico da sua
provincia, o que porventura os outros lhe escutariam com mais vontade; e
no fim de tudo ficam mais ridiculamente provincianos, do que nunca.

Assim tambem os portuguezes, acanhados nos circulos da Europa, não ousam
conferir diplomas de excellencia a cousa que lhes pertença;
envergonham-se de fallar nas riquezas patrias, emquanto abrem a bôca,
por convenção, a tanta insignificancia que, em todos os generos, a
vaidade estrangeira apregôa como primores: levam o excesso da modestia,
se é só modestia isso, até receiarem que as vistas dos estranhos
averiguem do que lhes vae por casa, e agradecem, com effusões de
sensibilidade, uma ou outra phrase de louvor, que, em momentos raros,
elles lhes concedem.

Se ousamos fallar de Camões, ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de
Milton; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o de Xerez,
Chateau-Laffite e Tokay, é porque lhes deram lá fóra o diploma de
fidalguia; que por nós ... continuariamos, calados, a ler um e a beber o
outro, sem bem conhecermos a preciosidade que liamos e que bebiamos, ou
pelo menos correndo-nos de uma nos parecer sublime, e a outra deliciosa.

Ainda que se taxe um dos similes de menos delicado, é certo que o mesmo
succede com as bellezas femininas; costumamo-nos ás exclamações á
moda:--«Ah! as hespanholas!»--«Oh! as italianas!»--«Ai, as allemãs!» e
julgariamos de mau gosto dizer em publico:--«As portuguezas!» até sem
interjeição prévia a encarecer-lhes a valia.

E isto fazem-o até muitos, que nunca transpozeram as barreiras d'esta
cidade, onde não abundam os typos d'essas varias bellezas exoticas.

Eu porém atrever-me-hei a arvorar a bandeira puritana n'esta campanha
gloriosa.

De certo não serão os leitores que m'o levarão a mal.

Deus me defenda de querer, por forma alguma, ferir a fama tradicional de
todas as já estudadas e classificadas bellezas, admittidas e exaltadas,
como taes, no mundo inteiro; a minha tolerancia abrange todas; queria
sómente que se abrisse tambem logar para as nossas patricias, que bem
merecem essa distincção.

As portuguezas não formam typo especifico, dir-me-hão talvez; são uma
variedade apenas de especie mais vasta. Sempre desejava que conhecessem
Cecilia, para que depois me dissessem a qual dos typos femininos,
consentidos e sanccionados, pertencia a amiga de Jenny.

Se houvesse uma fórmula unica para a belleza feminina, chamar bella a
qualquer d'estas duas mulheres, agora reunidas diante do leitor, seria
condemnar a outra; tão diversas, tão oppostas até, eram aquellas duas
physionomias em tudo! Mas não succede assim; tem tantas maneiras de se
realisar a belleza, tantos meios de excitar em nós, no mais intimo do
nosso peito, essas mysteriosas vibrações que nos arrebatam, que seria
loucura disputar primazias em casos assim. E isto é como no mais.

Pois por serem bellos os vergeis do Minho, perdem a belleza as leziras
do Vouga, ou até as paizagens alpestres de Traz-os-Montes?

Cecilia não era loura nem trigueira, nem d'aquella côr pallida, que
sonham os poetas e de que os medicos desconfiam; tingia-lhe o rosto,
graciosamente oval, um colorido que, em linguagem artistica, julgo que
nem tem ainda palavra creada.

Se porém, á falta de termos, sempre lhe quizessem chamar pallida, deviam
acrescentar, que era de uma pallidez, através da qual se presentia o
sangue cheio de vida, que ás vezes a transformava na diffusa côr de rosa
de um rosto de creança; os cabellos que, por um ondado natural, se
erguiam levemente no alto da fronte, vacillavam entre o negro e o
castanho escuro; os olhos, sim, esses eram negros devéras, e,--qualidade
bem rara em olhos!--de uma discrição impenetravel. Olhos discretos,
quando de ordinario são elles os que primeiro atraiçôam e inutilisam a
reserva dos labios! Olhos, que ousam fitar-vos sem deixar fugir um
segredo, nem desviar-se, por desconfiarem de si proprios! Discretos, mas
expressivos de sympathia e de familiar bondade! Não se imaginam os
encantos de uns olhos assim! E não julguem que são por isso incapazes de
eloquencia; anime-os um dia a confiança e o amor, e verão os raios
offuscadores que despedem! Mas o que elles não fazem,--e bem hajam por
isso--é andarem por ahi a desperdiçar eloquencia, como esses implacaveis
falladores, que em toda a parte se occupam a declamar discursos. Na
conformação habitual dos labios, no sorrir, no mover da cabeça, em todos
os movimentos e gestos emfim, havia, em Cecilia, uma tão completa
ausencia de arte, tanta naturalidade e franqueza, que a vista deixava-se
ficar, com prazer suave e sem timidez, a contemplal-a.

Ha um meio de reconhecer o genero de belleza, a que pertencia
Cecilia--genero que eu sustento ser o nacional:--quando, junto de uma
mulher formosa, vos sentirdes á vontade, sem que a razão se vos
perturbe, sem que por galanteria vos julgueis obrigados a lisonjas, sem
que fermente em vós o tanto ou quanto de poesia, que encerram todos os
corações; quando suavemente dominados pela branda influencia de um olhar
sem requebros, podérdes sustentar com essa mulher uma conversa
affectuosa, sincera, leal, como a sustentarieis com um amigo ou com uma
irmã; quando, ao separar-vos d'ella, lhe apertardes cordialmente a mão,
sem que nem a vossa nem a sua estremeçam ao encontrarem-se, e finalmente
trouxerdes d'essa entrevista uma impressão agradavel, que mais vos
acalente do que vos agite os sonhos, ficae certos de que encontrastes um
dos typos de que fallo.

Aviso-vos porém que os não julgueis pouco perigosos, apreciando-os pela
placidez d'estes primeiros effeitos; se levaes em conta de ventura a
liberdade do coração, fugi-lhes emquanto é tempo; pois, continuando
n'essa convivencia intima, natural, insinuante, correis o risco de
insensivelmente vos deixardes prender, se um dia, ao tentar terminal-a,
surprendeis-vos devéras apaixonados; pela dor que experimentaes,
conheceis então que fundas raizes lançára já o affecto.

Eu por mim julgo mais irresistiveis as paixões que se geram assim; as
que nascem rapidas, teem evolução rapida tambem, e muitas vezes
apagam-se em pouco tempo.

Vendo n'isto de paixões uma especie de doenças da alma, como alguns
querem, era possivel talvez estabelecer n'ellas divisão analoga á que,
nas do corpo, admittem os medicos. Haveria assim paixões agudas e
paixões chronicas; umas, como as doenças do mesmo nome, geradas por
impressões subitas, rapidas na sua marcha, promptas na sua terminação;
outras adquiridas insidiosamente, por influencias de todos os dias, e de
que nem se suspeita mal, lavrando a occultas e revelando-se apenas,
quando o terreno já é seu e a victoria certa.

Quaes d'ellas zombam mais da arte, devem sabel-o medicos e doentes.

Mas, voltando a Cecilia, o seu conversar, ao qual dava realce o timbre
de voz, vibrante e sonoro, tinha uma vivacidade e animação, direi até
uma eloquencia natural, que entretinha a ouvir-se; no decurso de
qualquer conversação, era notavel a frequencia com que lhe passavam a
voz e as feições por contínuas e successivas alternativas de tristeza e
alegria; como alternam nas campinas a sombra e a claridade, quando
atravessam rapidas o ar, as nuvens impellidas pelo norte.

Era assim que, referindo acontecimentos tristes, uma ou outra
circumstancia d'elles desafiava-lhe um sorriso ou uma observação jocosa,
e que, no meio da historia mais jovial, não lhe passava despercebido
qualquer ligeiro vestigio de sentimento que ella tivesse, e de repente
lhe desapparecia o riso dos labios e os olhos reflectiam uma generosa
melancolia.

Um dia, por exemplo, contava ella a Jenny, e contava-o quasi a chorar, o
infortunio de um pobre centenario, a quem seu pae soccorrera. O
desgraçado velho vivia n'uma casa miseravel, e, abandonado de todos, ia
succumbindo á fome, quando Manoel Quentino o disputou compassivo a morte
tão tormentosa.

--Se visse o pobre homem!--dizia então Cecilia, com tremor de compaixão
na voz--se o visse! Como elle nos recebia, chorando e rindo, como me
pegava nas mãos para as beijar! Como erguia ao céo aquelles olhos, quasi
cegos pela velhice e pela desgraça! Fazia pena! Tão trémulo, tão
curvado!...--E, de repente, vindo-lhe aos labios um sorriso, que ella
não reprimiu, acrescentou:--E então n'aquella idade e n'aquella miseria
toda, o cuidado que o pobresinho tinha ainda com o rabicho, que usava na
cabelleira! Coitado!

De outra vez contava, rindo, o episodio caricato de certo operario, seu
vizinho, que voltára, uma noite, a casa em completo estado de
embriaguez, e atordoára a rua inteira com expansões de extemporanea
alacridade, altercando, cantando e tocando até altas horas. Tudo quanto
até alli referira lhe merecera sorrisos, mas, n'um instante,
cobriu-se-lhe o rosto de profunda tristeza, e suspirando, proseguiu,
cingindo a mão de Jenny:

--Mas não quer saber? Quando este homem estava mais contente, vieram
trazer-lhe um cão, que elle estimava muito e que n'aquella mesma noite
haviam envenenado nas ruas. Parece-me que estou ainda a ver como elle
ficou; esteve por muito tempo calado a olhar para o pobre animal e
depois desatou a chorar e a abraçal-o, chamando-lhe seu amigo, seu
companheiro, até...--acrescentou, sorrindo--até seu irmão. Mettia
realmente dó. E aquella gente a rir cada vez mais! Era aquillo para rir?
diga.

Justeza de observação, talento para apreciar todas as faces dos
sentimentos e das acções humanas, poucas vezes os dá o estudo no grau,
em que ella naturalmente os possuia.

Não se podia pois, repetimos, dizer Cecilia apaixonada como uma
italiana, pensativa como uma allemã, séria como uma ingleza, languida
como uma hespanhola, _coquette_ como uma franceza, porque de nenhum
d'esses typos se aproximava; era verdadeiramente portugueza, e, para
caracterisar estes, só conheço uma phrase, de que talvez o leitor se vá
rir, mas pela qual eu tenho inexplicavel predilecção. Associa-lhe o meu
pensamento tal conjuncto de qualidades physicas e moraes, que sempre que
a ouço applicar, ella só suppre para mim uma longa descripção, e se for
a analysal-a não lhe encontro de certo a comprehensão, que
instinctivamente lhe attribuo. Se ao leitor succeder o mesmo, conceberá
o typo de Cecilia depois de eu a pronunciar.

Cecilia era o que naturalmente a todos occorre chamar--uma pobre
rapariga.--N'esta expressão nada ha que faça suppôr a belleza da pessoa
a quem se applica, bem sei; nem em rigor se refere a qualidade alguma
moral.

É certo; porisso não analyso. Succede porém que, quando de qualquer
mulher, que não conheço, ouço dizer que é--uma pobre rapariga--, não sei
por que a imagino bella, bella de belleza nacional e com um coração...
como o coração de Cecilia.

Aqui temos a ingleza Jenny, que não poderia receiar confrontos com a sua
amiga, nem em gentileza nem em bondade; mas, não sei porquê, lembrou-me
chamar a Jenny anjo e fada, e hesitaria em definil-a, como defino
Cecilia.

Accusar-me-hão de dar á filha de Manoel Quentino uma feição
demasiadamente burgueza, com a phrase burgueza, pela qual a caracteriso.
Folgarei de que seja merecida a critica, porque...--vá aqui mais outra
confissão, em que revelarei a minha coragem--, eu sympathiso mais com os
typos burguezes do que com os typos aristocraticos,--e em mulheres
sobretudo. Rodeia-se de mais poesia aos meus olhos a rapariga burgueza,
e sem aspirações a deixar de sel-o, quando a trabalhar á luz do
candieiro, do que a elegante dos salões, gastando a imaginação em
problemas de toucador; a costura, a simples, a modesta costura, util e
abençoada applicação da agulha feminina, agrada-me bem mais do que as
bonitas futilidades do, reputado mais nobre, trabalho de bastidor; a
mulher que a si propria se penteia, acho-a mais merecedora da
contemplação do artista, do que a indolente que, reclinada n'uma
poltrona e folheando o jornal de modas, entrega a cabeça ás mãos de uma
criada ou do cabelleireiro. Esta, a ser copiada, basta-lhe por téla ...
um leque ou uma tampa de cartonagem.

Sim, Cecilia não tinha nada do typo aristocratico; n'isso era ella ainda
genuinamente do Porto, cidade cujo principal titulo de gloria é o ter,
em épocas em que a nobreza era tudo, previsto que podia e devia
prescindir d'ella, para se engrandecer.



XII


OUTRO DEPOIMENTO


--Esteve doente, Cecilia?--perguntou Jenny, accommodando o chapéo da
amiga.

--Não; porque m'o pergunta?

--Nem eu sei. Pareceu-me ler-lhe no rosto... e depois... veio tão tarde.

--Ai, menina,--replicou Cecilia, sorrindo e ageitando o cabello, que o
chapéo desordenára--é que se soubesse... Hoje fiz de fidalga.
Levantei-me depois das oito horas.

--Sim, preguiçosa? E querem então ver que se esqueceu de trazer aquelles
cabeções, de que me fallou.

--Ágora. Olhe; trago esses e até mais alguma cousa...

--Bem, bem; vamos ver isso tudo--atalhou Jenny, com curiosidade.

E as duas raparigas foram sentar-se, uma ao lado da outra, no sofá
proximo da janella.

--Veio só?--perguntou Jenny, momentos depois.

--Vim.

--Sem mêdo?... no dia de entrudo!...

--Mêdo nenhum. De minha casa aqui são caminhos, que podem dizer-se todos
de aldeia. Quasi sempre por entre quintas e campos... Encontrei umas
creancitas, que vinham da mestra, e conversei com ellas todo o tempo.

E continuando a revistar o interior de um sacco de marroquim verde com
fechos de aço, Cecilia proseguiu, mudando de tom:

--Não julgue que lhe vou mostrar nenhuma preciosidade; foi uma
distracção de meia hora no serão de sabbado. Esta semana tive tanto que
fazer, que não pude occupar-me com estas bagatelas. Bem sabe que não me
cresce muito tempo para brincar. Olhe.

E mostrava a Jenny um delicadissimo primor da arte feminina; um cabeção
apenas, mas do qual, se me auxiliassem conhecimentos technicos, poderia
fazer uma descripção, pelo menos do tamanho da que Homero consagrou ao
escudo de Achilles.

Mas a sciencia das leitoras e a ignorancia provavel dos leitores n'este
assumpto não lhes deixarão sentir a lacuna.

--Pois eu ia quasi dizer-lhe que inda acho este mais bonito, do que o
outro que me mostrou ha dias--disse Jenny, demorando-se a examinar o
cabeção.

--O desenho d'esse é mais delicado, mas... Ai!--acrescentou passando, a
sorrir, a mão pelos olhos, e suspirando--parece-me que nem vejo, de
somno que tenho!

--Somno! E levantou-se tão tarde! Que quer dizer isso hoje, Cecilia?

--É que me deitei hontem muito tarde tambem.

--A trabalhar?

Houve um intervallo de silencio, antes que Cecilia se resolvesse a
responder. Jenny insistiu, elevando ao mesmo tempo os olhos para ella.
Viu-a córando e como entretida a segurar um alfinete.

Os alfinetes são os principaes cumplices de todos os disfarces
femininos. Sempre que uma mulher precisa de occultar um sorriso, uma
turbação, um rubor, tem a certeza de encontrar estes amigos officiosos a
servirem-lhe de pretexto. Ha sempre um alfinete a pregar, a despregar, e
a repregar de novo.

A final porém, com visivel esforço sobre si mesma, Cecilia respondeu de
uma maneira, que em vão procurou tornar natural:

--Não, Jenny, não foi a trabalhar.

Jenny presentiu um segredo n'aquelle enleio e hesitação, mas não tentou
descobril-o; disfarçando as suas suspeitas, disse-lhe:

--Pôz agora de lado um trabalho de _crochet_, que me pareceu bonito.

Cecilia mostrou-lh'o, sem dizer nada.

E o silencio manteve-se algum tempo entre as duas, silencio de as
constranger a ambas; até que emfim Cecilia, n'uma d'essas subitas
resoluções tão frequentes n'ella, e pelas quaes parecia querer
apressar-se a realisar um bom pensamento, antes que ulteriores reflexões
viessem suffocal-o, pôz de lado, com certa impaciencia, toda a obra que
tinha estendida no regaço, e tomando as mãos de Jenny, fitou os olhos,
negros e cheios de vida, nos olhos azues e suavemente melancolicos, com
que esta a seguia admirada:

Cecilia conservou-se ainda alguns momentos silenciosa e indecisa; mas
por fim, córando mais e possuida de sobresalto, que não conseguiu
disfarçar sob sorrisos:

--Jenny--disse com a voz trémula de commoção--eu sei que a menina é
minha amiga, e julgo que o melhor é contar-lhe tudo...

--Seja o que for que tem para me dizer, se o que a faz hesitar é a
duvida da minha amizade, posso assegurar-lhe, Cecilia, que...

--Não, não é, não podia ser--acudiu Cecilia, e por um movimento rapido,
impensado, irresistivel, levou aos labios as mãos delgadas de Jenny, que
não lhe pôde fugir a tempo.

--Que está a fazer?!--disse Jenny, rindo.

--Deixe-me; sabe como eu lhe quero, sabe a confiança que tenho em si,
Jenny, pois não sabe? Mas é que ... ha certas cousas que sempre custam a
dizer.

Jenny sorriu com expressão particular; previa uma confidencia amorosa no
embaraço de Cecilia.

Cecilia comprehendeu a significação d'aquelle sorriso, porque se
apressou a dizer:

--Não, não é o que julga, Jenny. Não teria a menor hesitação em lh'o
dizer, se fosse isso. Póde crêl-o.

Apesar da segurança, com que Cecilia o affirmava, duvido de que, tão sem
custo, se resolvesse a fazer uma confidencia, que, sendo a primeira
d'esse genero, faz titubear os mais arrojados. Mas acreditemol-a sob
palavra, que não temos outro remedio.

--Seja o que for,--respondeu Jenny, procurando inspirar-lhe
confiança--não deve ter escrupulos em m'o revelar. Escrupulos porquê?
Não somos raparigas ambas? da mesma idade quasi?

--Mas a Jenny é tão differente de todas nós! Tem tanto juizo, que não
póde deixar de estranhar certas cousas, que nós, as que temos a cabeça
leve, fazemos sem pensar, e de que mais tarde nos arrependemos.

--Está a ser injusta ao mesmo tempo commigo e comsigo, Cecilia. Nem essa
cabeça é leve, nem eu da sisudez que me faz.

--Pois bem,--continuou a filha de Manoel Quentino--estou resolvida a
contar-lhe tudo, mas ha de prometter-me dizer no fim, com a maior
franqueza, o que pensa do que eu lhe contar, sim? Olhe que ficamos de
mal se me não disser a verdade, inda que me seja desfavoravel.

--Não ha de ser.

--Adivinho que será.

--Oh meu Deus! Cecilia, está a assustar-me--disse Jenny,
jovialmente.--Ha no seu rosto e nas suas palavras tal expressão de
terror, que me mette mêdo! Praticaria de facto algum crime?...

Estas palavras de Jenny, e inda mais o tom em que foram ditas, fizeram
rir Cecilia, e attenuaram muito a timidez com que luctára até alli.

--O que eu quero então--disse ella--é que me deixe continuar, emquanto
fallo, a cercadura d'este cabeção, que ficou em meio. Não sei de que é,
mas acho-me mais á vontade tendo os olhos entretidos.

--Como quizer; mas n'esse caso, deixe-me occupar tambem os meus,
examinando o fundo da sacca.

--Não trago mais nada, a não ser...

--Está bom, está bom: eu verei o que é. Principie.

Applicadas assim cada uma á occupação que escolheram, Cecilia
principiou:

--Não sei se já lhe tenho fallado nas filhas do major Mattos, minhas
vizinhas ha bastantes annos e antigas companheiras de mestra.

--Muitas vezes. Bem sei.

--Estas meninas são muito boas, muito minhas amigas, mas...

Jenny ergueu os olhos para Cecilia, sentindo-a hesitar.

Cecilia proseguiu:

--Mas sobretudo o que são...--digo-lhe isto a si, Jenny--são ainda mais
amigas de se divertir. O genio do pae, tão alegre como o de qualquer
rapaz de vinte annos, não desmereceu nas filhas, que todos os dias
inventam novos divertimentos.

--É uma felicidade ter um genio assim, pois não é?--disse Jenny,
examinando um pequeno bordado.

--Isso não vale nada,--acudiu Cecilia, reparando tambem--nem sei como o
trouxe ahi.

Jenny arredou-a com a mão e fez-lhe signal que continuasse.

--Mas emquanto ás minhas amigas,--proseguiu Cecilia--trabalhadeiras são
ellas; isso lá são, coitadas; mas, não faz ideia, n'uma hora de
descanso... ás trindades, por exemplo, já não pensam senão em como hão
de passar o domingo seguinte, e ahi vão lembrar ao pae um passeio pelo
rio acima, um jantar na Pedra Salgada ou em Fonte da Vinha, um almoço a
Leça ou á Foz, uma noite ao theatro, e é raro que o pae, que é perdido
por ellas, não as satisfaça em alguns d'estes projectos, que de mais a
mais lhe agradam a elle tambem, é preciso que se diga. Muitas vezes
convidam-me e, devo-o confessar, teem-me valido muitas horas de
verdadeira distracção, isso tem. É uma familia muito boa, e meu pae não
põe a menor duvida em deixar-me ir com ella para toda a parte.

--Estava á espera de uma confidencia que me fizesse estremecer,
espantar, e saem-me cousas tão naturaes e tão boas, que confesso-lhe,
menina, chego a estar desgostosa--disse Jenny, fechando o sacco de
marroquim, onde acabára de guardar todos os bordados e dando ás feições
um fingido ar de mortificação.

Cecilia sorriu a esta reflexão, mas acrescentou:

--Ainda é cêdo. Não se apresse a julgar, que póde ter de contradizer-se
depois. Havia muito tempo já... ora eu sei?... desde o anno passado, que
estas meninas tinham entre si combinado um projecto, mais difficil porém
de executar do que nenhum dos outros. Queriam por força que eu tomasse
parte n'elle. Ao principio disse-lhes que não; mas tanto me pediram,
tanto me convenceram de que não havia nada a receiar, que eu acabei por
prometter que sim. Repare, Jenny, repare. Olhe que principia aqui o mau
da minha historia. O projecto era...

--Espere; deixe ver se sei. Incendiar a cidade?

--Ora!

--Fazer uma revolução no paiz?

--Está a brincar?

--Partirem todas para a Crimeia?

--Jenny!

--Ás cautelas e hesitações, com que está...

--O projecto era irmos todas mascaradas ao theatro.

--Ah!--disse Jenny, não podendo reprimir um gesto e um movimento de
estranheza.

Cecilia, que elevára os olhos para ella, percebeu-lh'os.

--Eu não disse? Veja como principia já a...

--Não é por isso, mas... Continue--replicou Jenny, com mais curiosidade,
e não desviando já os olhos de Cecilia.

--Este projecto--proseguiu a filha de Manoel Quentino--tinha, como lhe
disse, grandes difficuldades. O major, tão amigo de fazer a vontade ás
filhas, não quiz ouvir fallar em tal. Ellas porém é que já não podiam
tirar aquillo da ideia.

--E foram?--perguntou Jenny.

--Havia muito que andavam á espera de occasião. E o carnaval a
fugir-lhes! Ha de haver porém tres dias que o major foi, por negocios
militares, obrigado a saír da cidade.

--E então?...

--As filhas ficaram sós em casa com uma tia d'ellas, muito boa senhora,
mas que não sabe recusar-lhes nada. Que mais queriam?

--Foram?

--Foram; hontem mesmo. Se parece que tudo se lhes preparou como ellas
desejavam!

--E a menina?--interrogou Jenny, cada vez mais preoccupada com o que
ouvia.

--Tinham-me convidado para ir de tarde a casa d'ellas. Depois de lá
estar, mandaram, sem que eu o soubesse, recado a meu pae de que eu
voltaria tarde, pois tinha de ir com ellas a uma reunião em casa de umas
senhoras suas amigas.

--Visto isso...

--Era noite, quando me apresentaram um dominó e me communicaram o seu
projecto. Eu ainda lhes puz algumas duvidas, mas...

--Foi?

--Fui. Ah! como está já tão séria! Não o dizia eu?

Effectivamente Jenny não teve poder de disfarçar a impressão, que lhe
estava fazendo a confidencia de Cecilia, já pela natureza d'ella, já
pela similhança, com a que do irmão ouvira poucas horas antes.

--Prometti dizer-lhe a verdade, Cecilia--principiou Jenny, tomando com
affecto as mãos da sua amiga, que interrompera o trabalho já--e seria
faltar á minha promessa occultar-lhe que me parece ter sido algum tanto
aventurada essa resolução. Umas poucas de senhoras, sós, n'um logar como
aquelle, onde dizem que concorre tanta e tão diversa qualidade de
gente!... Emfim eu não sei bem, e pelos resultados e que melhor se póde
julgar d'estes meus receios, que talvez sejam exagerados... e são de
certo.

--Não são, não, Jenny. Olhe; eu, ao principio, para lhe fallar verdade,
ia com certa curiosidade. Só me custava que tivesse sido necessario
enganar meu pae, mas, como não fazia a menor ideia do que fosse um baile
de mascaras, estava com desejos de ver; e, demais a mais, a irmã do
major ia comnosco...

--E depois?

--Entramos no theatro, seriam dez horas, íamos todas mascaradas. Por
signal que me ri muito com a mascara que levava a irmã do major. É
notavel! foi a primeira que appareceu, e tinha alguma similhança com a
cara d'ella. Assim como estas caricaturas, que logo á primeira vista se
conhece de quem são.

E Cecilia quasi se distrahia com a incidente reflexão ácerca da mascara;
Jenny chamou-a porém ao assumpto.

--Mas vamos ao que lhe succedeu.

--Ah! é verdade. Andamos primeiro por alguns camarotes, em que estavam
senhoras do conhecimento das minhas companheiras e a quem ellas
fallaram, sem serem conhecidas. Diverti-me com isto. Que graça achei a
uma senhora idosa, a quem se metteu na cabeça que nós eramos umas suas
parentes de Braga, terminando em chamar-me a sua Joanninha! Coitada!
ficou tão desconsolada, quando, espreitando-me os cabellos, conheceu que
se havia enganado, que deveras fazia pena!--«E não é! veem, que tristeza
a minha?!»--dizia ella tanto do coração, que eu não tive mão em mim, que
a não abraçasse e beijasse; arrisquei-me assim a ser vista e a dar a
conhecer as outras, que depois muito me ralharam por causa d'isto. Mas
se eu não pude!

--Vamos--disse Jenny, sorrindo á sensibilidade da amiga.--E o resto da
noite?

--Ai, Jenny, o resto da noite...--respondeu Cecilia, suspirando, como se
lhe fosse custosa a confissão, e continuou:--Entramos na sala. Nunca foi
a um baile d'esses? Pouco perdeu. Que calor! que confusão! Um quarto de
hora depois de alli entrar, já suspirava por saír; mas ellas nem
pensavam n'isso. Era meia noite talvez, vim sentar-me, cansada,
enfastiada de todo aquelle tumulto.

N'este ponto Cecilia parou, como se o que tinha para dizer lhe causasse
maior perturbação.

Jenny não pôde deixar de sorrir pela similhança que esta parte da
confidencia tinha com a do irmão.

--Pouco tempo depois--proseguiu Cecilia--veio sentar-se junto de mim...
uma pessoa...

Um alfinete fez sentir, não sei como, a necessidade de que as attenções
se applicassem todas para elle, e Cecilia não recusava attender, em taes
casos, ás reclamações dos seus alfinetes.

Occupada portanto a pregal-o, ou não sei se a despregal-o, continuou:

--Uma pessoa que eu conhecia; olhou para mim e... comquanto não
suppozesse quem eu era, fallou-me; respondi-lhe, e por muito tempo
ficamos a conversar.

--Em quê?--perguntou Jenny, com modo natural.

A esta pergunta, Cecilia hesitou.

Passados porém alguns instantes, respondeu:

--Eu sei? Em muitas cousas; e é certo que bem agradavelmente; mas cêdo
depois vieram outros, menos delicados do que este...

--Do que este?! Ai, visto isto era um homem? não tinha entendido
bem--notou Jenny, com ligeiro ar de malicia.

--Era; pois que tinha eu dito? Ah! sim... uma pessoa. Era um homem, era.
Os que vieram fizeram-me ver mais claro a imprudencia do passo que
tinhamos dado.

Jenny não perdia agora uma só palavra, uma só inflexão, uma só cambiante
de côr, que observava em Cecilia. Esta não o percebia, porque os
alfinetes estavam de uma impertinencia, que nem lhe deixavam attender a
mais nada.

No entretanto dizia:

--O mesmo succedeu ás minhas amigas; preparamo-nos logo para deixar o
baile. Vendo porém que nos seguiam, soccorri-me ao cavalheirismo do que
primeiro me fallou, e isso nos valeu.

--Ah!

--Serviu-nos de guia e protector através das ruas ainda cheias de
mascaras; mas insistia depois em nos conduzir a casa. Tremi ainda mais
com esta insistencia, do que com a dos outros. Este conhecia meu pae e
se soubesse... Oh meu Deus!... Por mais que lhe rogassemos, não queria
deixar-nos; eu, perdida de susto, pedi a Deus uma inspiração. A
inspiração veio, e foi poderosa. Elle deixou-nos a final, e nós entramos
em casa... mas eram quatro horas da manhã.

O que faltára á confidencia podia Jenny bem suppril-o de per si;
desviando porém os olhos disfarçadamente, ponderou como se pretendesse
desenganar-se:

--Falta-lhe agora dizer, Cecilia, para ser completa a confidencia, quem
era esse homem e qual foi a inspiração que Deus mandou á menina.

D'esta vez tambem os alfinetes de Jenny parecia exigirem certos
cuidados, que ella lhe concedeu.

Cecilia balbuciava com manifesto enleio:

--Ah! quem era?... não sei; isto é... quero dizer... era...

Jenny pegou-lhe na mão.

--Seja franca até o fim--disse-lhe em tom de insinuante amizade.--Esse
homem era meu irmão.

Cecilia estremeceu e olhou espantada para Jenny.

--Como o sabe?

--Sei tudo--replicou Jenny, apertando-lhe a mão com affecto.--E sei
tambem a inspiração que teve, e agradeço-lh'a.

--Sabe? Mas então...

--Carlos tem o costume de me contar tudo, e ainda esta manhã... ha
pouco... me tinha dito...

--Tudo?--perguntou Cecilia de uma maneira particular e córando.

--Tudo--respondeu Jenny, dando a esta palavra uma inflexão e animando-a
de um sorriso, que augmentaram a intensidade d'este rubor.

Como o leitor viu, tinha havido importante omissão na confidencia de
Cecilia, omissão que aquelle «tudo» de Jenny lhe mostrava agora ter sido
inutil.

--E que opinião fazia elle... que opinião fazia o snr. Carlos de
mim?--perguntou Cecilia com verdadeira inquietação.

Jenny revestiu-se de seriedade e reflectiu algum tempo, antes de
responder.

Não se imagina como se faziam extraordinariamente bellas as feições de
Jenny sob a influencia d'este ar de reflexão, que tão frequente lhe
fixava o olhar e lhe desenhava uma ligeira ruga na fronte.

Cecilia consultava com apparente sobresalto aquella physionomia
expressiva.

--Olhe, Cecilia,--disse Jenny por fim--como a menina ainda agora o
reconheceu, não foi por certo prudente o passo que deram. A necessidade
de o occultar de seu pae era bastante prova d'isso, quando nada tivesse
acontecido que melhor o provasse ainda. Carlos procedeu bem e mal; bem,
em as proteger; mal, depois. Elle devia ter sempre na ideia, como eu lhe
disse, que alguma pessoa bem educada, e que de facto tinha desejos de
occultar-se, podia ser essa mascara que elle, depois de proteger,
perseguia. Disse-lh'o ha pouco ainda, mas... sabe o que elle me
respondeu?

--Que foi?

--Se eu lh'o digo, Cecilia, é para que a menina faça sempre o que lhe
aconselharem os presentimentos do seu bom coração, e creia que são
excellentes as inspirações que lhe vierem d'ahi. Quando eu dizia a
Carlos que imaginasse que era eu mesma a que estava debaixo d'aquelle
dóminó, e a que me via perseguida, respondeu-me que não havia
probabilidade d'isso, porque... pessoas que...

--Oh! não diga mais, Jenny, não diga mais--atalhou Cecilia, quasi
fechando-lhe os labios com a mão; e os olhos inundaram-se-lhe de
lagrimas que, umas após outras, lhe rolaram pelas faces.

Era uma das irresistiveis expansões d'aquella impetuosa natureza.

--Bem vê, Cecilia--proseguiu Jenny com affecto--bem vê que não tinha
razão Carlos, no que suppunha. A culpa toda era d'elle. E agora não se
afflija, menina. Affligir, porquê? Foi uma brincadeira de raparigas e
sem consequencias além d'aquellas--acrescentou, sorrindo--de que nem a
inspiração, que Deus lhe mandou, a pôde livrar. E se isto a faz chorar
assim, o que ha de deixar para os infortunios reaes?

--Jenny, prometta-me nunca dizer a... a ninguem que era eu...

--Socegue. Dentro em pouco nem eu mesma o sei já.

--Oh! meu Deus só o suppôr!...

Jenny conseguiu serenar a rapida tempestade, que turvára o espirito de
Cecilia, e distrahir-lhe a attenção para outros objectos.

Antes de saír de casa de Mr. Richard, já ella tinha rido, e quando
entrou na sua, trazia o espirito tranquillo, e respirava com o desafôgo
dos dezoito annos, e d'aquella indole sem preoccupações.

Feliz idade e feliz coração!



XIII


VIDA PORTUENSE


Manoel Quentino habitava em uma rua proxima do extremo occidental da
cidade, afastada assim do maior bulicio d'ella--bulicio que, desde as
tres horas da tarde até ás seis da manhã, era para o guarda-livros
insupportavel.

Os gostos de Manoel Quentino tinham de facto variações diurnas tão
regulares, como as de um instrumento meteorologico.

Nas horas de vida commercial impacientava-o o socego do bairro em que
vivia; ao romper do sol por detraz dos outeiros, que elle avistava ao
longe das janellas do seu quarto, tomava-o a febre do trabalho; o cantar
matutino das aves por entre os arbustos do quintal, a não ser aos
domingos e dias santos, não o tentava a ficar a ouvil-as; parecia que
mais bellezas de harmonia achava nos gritos dos vendilhões, que enchem
as ruas da cidade baixa. Pelo contrario, ao declinar da tarde,
entrava-lhe no coração a nostalgia domestica; começava a odiar o
escriptorio, a rua dos Inglezes, o borborinho das praças, e a suspirar,
como o expatriado, pela alegria do regresso; extasiava-se em ver de casa
descer o astro do dia, e sumir-se no oceano; espectaculo magnifico, ao
qual da varanda da sala do jantar assistia com o prazer do espectador
que de um camarote de frente presenceia fascinado a vista final de
gloria de um drama sacro.

O arranjo interior da pequena casa de Manoel Quentino exprimia certo
bem-estar, certo conforto, que principiava a querer transpôr os limites
que o separavam do luxo.

Permittiam-o os ordenados que Manoel Quentino, como primeiro
guarda-livros, recebia das mãos de Mr. Richard, mãos nunca tão
apertadas, que não deixassem saír algumas mealhas mais do que o
ajustado.

Preciso é porém confessar que o espirito economico e a intelligente
administração de Cecilia concorriam em grande parte para este resultado.
Pelas suas mãos, de bem pequenas afeitas ao tracto domestico, tão
escrupulosamente regulados andavam os capitaes, que não só satisfaziam
ao necessario, mas derivavam-se ainda para o que se póde já dizer
superfluo.

Escusado é quasi acrescentar que Cecilia era o idolo de Manoel Quentino.
N'ella se concentravam todas as affeições do velho. Tinha apenas seis
annos a filha, quando lh'a deixára confiada a esposa, que elle chorava
ainda; emquanto cercava a innocente de constante vigilancia e de
cuidados assiduos que, por inspirações do coração, soubera amenisar de
carinhos e de meiguices verdadeiramente maternaes, robusteceu-se-lhe
aquelle amor a ponto de referir d'ahi por diante a elle todos os outros
sentimentos, que o moviam.

Nunca lhe pareceu demasiada qualquer despeza feita com Cecilia.

Empenhou-se em dar-lhe uma educação esmerada, e conseguiu-o.

Exultava de prazer, vendo crescer em vida, em intelligencia, em bondade,
aquella bonita creança, junto de cujo berço velára noites e noites,
scismando no futuro d'ella.

Pouco a pouco deixára-se possuir de um respeito, de uma veneração pela
filha, que tinham seus vislumbres de idolatria.

A primeira madeixa loura cortada aos cabellos de Cecilia, ainda menina,
trazia-a o velho sempre comsigo, como talisman milagroso; o menor
bilhete, dos que ella lhe escrevia para o escriptorio, a respeito de
qualquer negocio domestico, archivava-o, como reliquia, que seria
profanação deixar perder.

Tinha puerilidades Manoel Quentino!... puerilidades que só farão rir aos
poucos, que não as tenham tido iguaes. Movia-o, quasi até ás lagrimas,
qualquer phrase affectuosa d'aquellas insignificantes correspondencias.

Como elle era feliz lendo, no alto do bilhete, por exemplo: «Meu bom
pae» ou «meu querido pae», e no fim d'elle--«sua extremosa filha» ou
«sua filha obediente».

Por irresistivel impulso aproximava dos labios aquellas palavras e
beijava-as com fervor.

Quando, no meio do trabalho quotidiano, que elle, como vimos, executava
com uma fleugma e regularidade, que deviam fazer suppôl-o homem pouco
sujeito a expansões, a ideia de Cecilia lhe passava pelo espirito, tinha
movimentos de creança.

Pousava a penna, interrompia a conta, correspondencia, ou o que quer que
fosse em que estivesse occupado, para esfregar as mãos de contente, como
o rapaz de escola ao acudir-lhe de subito a lembrança de um feriado
proximo.

Ás vezes não resistia a dar dois passeios no escriptorio, trauteando, e
a vir á janella, com a penna na orelha, a espreitar, por entre os
vidros, a altura do sol.

Ao voltar a casa, Manoel Quentino não se distrahia pelas ruas; procurava
as travessas e atalhos mais solitarios, para evitar importunos;
tardava-lhe a conversa da filha.

Quando na presença d'elle se fallava em alguma epidemia, que
principiasse a ameaçar a cidade, já o bom homem não podia dominar um
terror intenso; revelava-se-lhe no semblante em caracteres bem evidentes
e havia-lhe conquistado a reputação de pusilanime, entre os seus
collegas mais novos; já até se divertiam, mal suspeitavam com que
crueldade, a despertar frequentes vezes estes receios pânicos.

A ideia do risco pessoal não era porém a que o fazia empallidecer; um só
receio, uma só lembrança o torturava então, era a do perigo que podia
correr a vida de Cecilia.

Não se concebe em que especie de loucura o lançou uma doença da filha. O
serviço do escriptorio foi pela primeira vez perturbado na sua marcha
regular, e a correspondencia, em cuja nitidez caprichava Manoel
Quentino, não raro lhe saía das mãos toda manchada de lagrimas. No dia
em que o medico lhe deu, sorrindo, a certeza de que Cecilia estava
salva, Manoel Quentino não teve mão em si, que se não atirasse, a rir e
a chorar, aos braços d'elle, chamando-lhe seu bemfeitor e beijando-o com
paixão.

Esta crise exacerbou aquelle já extremoso amor de pae.

Não havia sabbado em que Manoel Quentino, parco em excesso talvez
comsigo, e que por isso grangeára entre os amigos a immerecida reputação
de avarento, entrasse em casa com as mãos vazias, sem um mimo, uma
lembrança para Cecilia, arrostando com as meigas exprobrações d'esta e
com seus mal simulados arrufos.

Quantas vezes elle fazia, como costuma dizer-se, vista grossa para o
azulado ameaçador dos cotovêlos e das costuras do casaco, para as
quebras lastimosas do seu chapéo de seda, só com o fim de poupar algumas
libras e comprar um chaile, uma marqueza, um vestido novo a Cecilia!

Só depois de repetidas insinuações, pedidos, e até affectuosas ameaças
da parte da filha, só depois d'ella haver esgotado os mil recursos da
sua eloquencia, é que Manoel Quentino se decidia emfim a olhar por si e
a attender ás necessidades proprias.

O meio mais poderoso a que, para isso, Cecilia recorria era pedir-lhe
que a acompanhasse a um logar publico qualquer. Então o guarda-livros,
que não aprendera a recusar-lhe nada, promettia, scismava, coçava a
orelha, examinava o fato, torcia o nariz, resmungava e, no dia ajustado,
elle ahi se apresentava de uniforme novo para servir de cavalheiro á
filha.

A ideia de a fazer passar por uma vexação realisára o milagre e vencera
a sua modesta repugnancia.

Cecilia sabia-se objecto d'este culto, e retribuia-lh'o com attenções e
carinhos, que deixavam comprehender ao pae o que devia ser a felicidade
suprema.

O leitor, costumado a passar a noite no theatro, nos bailes ou nas
assembleias, mal póde fazer ideia do prazer intimo com que Manoel
Quentino via escurecer a tarde e scintillarem, ainda pallidas, as
primeiras estrellas no céo.

Preparava-se-lhe um d'esses gôsos placidos, que são mal concebidos por
quem d'elles anda arredado em habitos de vida mais turbulenta; mas aos
quaes não ha talvez caracter ou temperamento humano, que não corra o
perigo de habituar-se, se por algum tempo lhes experimentar as doçuras.

É mais facil, e mais vezes se realisa, a transição da vida errante,
tumultuosa e agitada para estes monótonos prazeres do viver domestico,
do que a inversa; como se o pendor natural da indole do homem o chamasse
mais para alli.

Os serões de Manoel Quentino, aquelles seus tão apreciados serões,
passavam-se todos com uniformidade tal, que, por um, se ficava, com
raras excepções, a conhecel-os todos.

O fim da tarde e a noite d'aquelle dia, em que se passou a parte das
scenas, que havemos descripto até aqui, podem offerecer-nos uma perfeita
amostra d'elles.

Manoel Quentino, depois de jantar, viera assistir, da varanda do
occidente, ao espectaculo do crepusculo e regalar a vista por sobre as
quintas, jardins, casas e alamedas do vasto panorama que o mar cingia de
zona prateada.

A tarde estava de chuva, mas o vento de sudoeste conseguira romper o
extenso manto, que cobria o firmamento, e mostrando um pouco do azul da
abobada celeste, deixava que o sol no occaso dourasse as ultimas nuvens,
que d'aquelle lado limitavam o horizonte.

As occupações domesticas de Cecilia só de quando em quando lhe
permittiam assomar tambem á varanda, e recostando então o braço ao
espaldar da cadeira do pae, fazia notar a este as particularidades de
belleza d'aquelle vasto quadro, que o espirito pouco analytico do velho
sómente apreciava em globo.

--Repare n'aquella nuvem côr de rosa. Não parece mesmo uma ave com as
azas abertas?--perguntava Cecilia, designando uma das taes nuvens, que o
sol tingia os reflexos afogueados.

--Uma ave!--dizia Manoel Quentino, fitando o objecto designado--Então
como te parece uma ave aquillo, menina?

--Pois não acha? Olhe; vê alli a cabeça, depois uma aza, depois a outra?
Olhe, agora inda parece mais; até a cauda se conhece bem...

--Eu... se queres que te falle verdade...--continuava Manoel Quentino,
sem perceber ainda a similhança.

--Olhem que pae este! Pois devéras não vê? Para onde é que está a olhar?

E Cecilia vinha collocar a sua bonita cabeça na posição da de Manoel
Quentino, e tão perto, que o pae não perdia o ensejo de lh'a beijar na
fronte.

--Ora diga, pois não lhe parece uma ave aquillo?--insistia Cecilia.

--Eu... Ah! agora sim!--exclamou o velho, tendo a final percebido a
similhança--Agora, sim, senhora! Lá está, e que grande bico que ella
tem! Eh! eh! eh!... Ora o diacho!

--A menina faz favor de chegar aqui.

Era a criada Antonia, que reclamava o conselho de Cecilia em alguma
difficuldade de administração domestica.

Antonia era um tão genuino typo de criada de servir, que dispensa a
descripção.

Cecilia retirou-se da varanda. Manoel Quentino permaneceu com os olhos
fitos no sitio, para onde lh'os dirigira a filha, até que a nuvem côr de
rosa de todo se descoloriu e desformou.

Então baixou-os para a terra e scismava... na sua felicidade.

Passados instantes, Cecilia aproximou-se pé ante pé, e, sem ser
presentida, veio por detraz d'elle e tapou-lhe os olhos com as mãos,
perguntando:

--Adivinha quem eu sou?

--Ora tem muito que adivinhar!--respondeu Manoel Quentino,
gracejando--pelas mãos se conhece logo. É a aguadeira.

--Ora vamos!--exclamou Cecilia, rindo--Mas para onde é que estava a
olhar assim entretido, que nem me viu?

--Estava a ver umas obras, que além se andam a fazer. Aquillo, se me não
engano, é na casa do conselheiro Arantes.

--Ora se ha de olhar para acolá, para aquellas arvores, põe-se a reparar
n'essas casarias! Não lhe appetecia estar alli, debaixo d'aquelles
carvalhos?

--Não é nenhum impossivel; se quizeres...

--Então promette levar-me lá?

--Prometto tudo o que tu quizeres.

--Veja o que diz! Depois, se lhe pedir alguma cousa difficil!

--Eu já estou costumado ás tuas exigencias.

--Sim? pois eu tenho uma cousa a pedir-lhe.

--Ha de ser grande.

--E é, promette fazel-a?

--Dize lá.

--Mas promette?

--Mas dize primeiro.

--Não, senhor, prometta antes.

--Bem sabes que te não digo que não.

--Mas então que dúvida tem em prometter?

--Está bom, prometto.

--Dá-me a sua palavra?

--Dou a minha palavra--disse Manoel Quentino, rindo.

--Pois o que eu queria pedir-lhe--disse Cecilia, passando os dedos por
entre os cabellos brancos do pae--era que comprasse outro guarda-chuva,
que, a fallar verdade, aquelle sempre está!...

--Ora! cuidei que era outra cousa!

--Não importa; mas prometteu.

--Pois sim; mas escuta...

--Ágora escuto, que tenho mais que fazer.

E retirava-se apressada para não ouvir, dizendo:

--Não quero saber, prometteu!

D'ahi a pouco era o pae que a chamava.

--Cecilia, ó Cecilia! anda depressa ver um vapor no mar.

Cecilia correu á varanda.

--Vês?

--Agora estou como o pae ha pouco com a nuvem.

--Pois não vês?! Olha; aqui mesmo ao direito d'aquella chaminé; entre
aquella entre-aberta de pinheiros.

--Bem vejo. Entra ou sáe?

--Quer entrar; mas com o rio assim! Aquillo é vapor inglez. Ora traze-me
o oculo.

--Agora é quasi noite e não póde distinguir nada. E demais está frio,
não será mau fechar a janella e vir cá para baixo. Eu tenho tambem de
trabalhar e preciso de accender luz mais cêdo.

--Pois então vamos.

Principiava então ainda mais agradavel passa-tempo para o honesto
guarda-livros.

Desciam para a sala contigua ao quarto de Manoel Quentino; sala
modestamente mobilada, mas em cada particularidade da qual se revelava o
bom gosto de Cecilia. Se alli dentro se não encontrava nenhum movel de
alto preço, nenhum objecto de elegancia luxuosa, não havia tambem as
ridiculas demonstrações de um gosto grosseiro, amontoadas sem ordem,
adquiridas sem escolha.

Descobria-se em todo aquelle recinto um asseio e conchego, que fazia bem
contemplar.

Manoel Quentino sentava-se junto da mesa do trabalho, em uma cadeira de
braços, verdadeiramente patriarchal; Cecilia trazia luz, fechava as
janellas, pousava a cesta da costura e vinha sentar-se ao lado do pae.

Manoel Quentino contava alguma cousa do occorrido no escriptorio;
Cecilia correspondia-lhe, referindo o que, na ausencia de Manoel
Quentino, succedera em casa.

N'aquella noite o pae fallou muito de Carlos, das suas travessuras, do
seu estouvamento, dos enganos que n'aquella manhã lhe fizera ter na
escripta, do episodio da agua-ardente, dos sentimentos de Mr. Richard
para com o filho, e sobre tudo do bom coração do rapaz.

Cecilia escutava-o com attenção, sem nunca o interromper com perguntas,
mas tambem sem nunca levantar os olhos da costura, para os fitar no pae.

N'isto retiniu a campainha do portal.

--Ahi está o homem--disse Manoel Quentino.

--Antonia, vá alumiar--bradou Cecilia.

Ouviu-se Antonia descer pesadamente as escadas, depois algumas palavras
trocadas no portal, os passos de duas pessoas subindo, e o _homem_, que
Manoel Quentino parecia esperar, entrava para a sala, tirando o chapéo e
cumprimentando os circumstantes com a invariavel fórmula:

--Muito boas noites, snr. Manoel Quentino; muito boas noites, menina.

Este _homem_ era um vizinho e amigo de Manoel Quentino, que, havia muito
tempo, ganhára o habito de vir todas as noites alli ouvir ler os
jornaes, tomar chá e sustentar com o guarda-livros o mais soporifero e
descosido dialogo que se póde conceber, retirando-se emfim, ao bater das
nove horas, depois de agasalhar o pescoço com uma manta de lã, a qual
levava sempre de prevenção para toda a parte. Chamava-se José Fortunato;
fora em tempo negociante de cereaes; n'esta época era proprietario de
predios velhos, possuidor de papeis de credito, homem de habitos
pacificos e ideias conservadoras, modesto no vestir, discreto no fallar,
fazendo ao jantar o seu forte no cozido, e, entre as maiores
extravagancias da sua vida actual, contando a de comprar, de quando em
quando, uma lagosta para comer de salada.

Era d'estes sujeitos, fieis observadores das leis commerciaes, e
rigorosos nas suas contas, a ponto de poderem parodiar uma das petições
do Padre-nosso, dizendo:--Fazei que nos paguem, Senhor, as nossas
dividas, assim como nós pagamos aos nossos credores.

Esta quotidiana visita a Manoel Quentino tornára-se já para o snr.
Fortunato uma necessidade, e de igual fórma a presença e o conversar do
ex-negociante de cereaes, com quanto pouco ferteis em distracções, não
eram menos precisas ao pae de Cecilia, que estava n'aquella idade, em
que os habitos imperam com mais força, e menos se amoldam os genios ás
exigencias de habitos novos.

Passados os cumprimentos de tarifa, José Fortunato tomava assento ao
lado de Manoel Quentino, e principiava entre elles um dialogo, que, com
as variantes que o leitor prevê, era d'este teor a fórma:

--Muito frio, snr. Fortunato--dizia um.

--E muita chuva--respondia o outro, ageitando-se.--Esteve hoje lá em
baixo?

Pergunta ociosa.

--Estive.

--Então que se diz de novo?

--Nada.

--O rio vae muito cheio?

--Parece que começa a abaixar um pouco.

--Sempre está um tempo, santo nome de Deus!

--E que desgraças tem já causado!

--Que eu dou-me melhor com o frio--acrescentava d'ahi a instantes Manoel
Quentino.

--Eu lhe digo, eu tambem, para que digamos, não passo mal no inverno;
tenho mais appetite; mas esta catarrhal...

Tossia, para exemplo.

Todos os dias diziam isto um ao outro.

--Para as terras é que isto vae mal.

--Já tudo está por a manta de Judas.

Phrase da linguagem popular, que quer dizer, não sei por quê, que tudo
está caro.

--Pois a carne?!

--Se deixam ir todo o gado para o estrangeiro! Devia fazer-se uma lei,
que prohibisse esse desafôro.

Alvitre economico, que ainda não perdeu de moda.

--Isto está o diacho!

Este apophthegma fechava quasi sempre e com chave de ouro o dialogo.
Calaram-se os dois.

Cecilia, que esperava por este silencio e já por habito sabia o que
significava, ia então buscar as folhas do dia e preparava-se para ler;
os dois velhos dispunham-se a escutar.

Qualquer d'elles experimentava um prazer indefinivel em ouvir ler
Cecilia.

Lia com tanta intelligencia e graça, que o snr. José Fortunato
confessava, que muitas vezes, ouvindo-a, entendia cousas, em que debalde
tentára penetrar, a grandes esforços de leitura propria.

Era uma scena curiosa aquella.

A compaixão paternal só perdoava a Cecilia a secção dos annuncios; o
mais tudo lhes lia a condescendente rapariga; o artigo de fundo, com
resignação; com intrepidez, as noticias estrangeiras; com curiosidade,
as locaes; o folhetim, com mais vontade; e tudo sem o menor
constrangimento, que podesse aguar aquelle prazer dos seus ouvintes.

O genio de Cecilia nem sempre lhe permittia proceder, sem commentarios,
áquella leitura toda. A apologia exaltada do governo interrompia-a ella
ás vezes com um áparte, capaz de produzir crise ministerial, se fosse
escutado nas camaras; uma catilinaria, acerbamente opposicionista,
desafiava-lhe reflexões, que neutralisavam o contagio anti-governamental
que principiava a fazer das suas nas profundas convicções de ordem do
snr. José Fortunato.

O leitor deve estar certo de que, por aquelle tempo, monopolisavam a
curiosidade publica as variadas peripecias da guerra da Crimeia.

Cecilia era obrigada a ler aquellas descripções de carnificina, que
todos os dias enchiam as columnas dos periodicos; isto o fazia ella
sempre com a fronte contrahida de desgosto.

Manoel Quentino era pelos alliados, José Fortunato esposava a causa dos
russos--um e outro sem saberem bem porquê. Cecilia era só pelos mortos e
feridos.

Um dia parou no meio da descripção de um dos mais sanguinolentos
encontros dos dois exercitos, para interpellar o pae sobre a causa
d'esta guerra implacavel.

A pergunta embaraçou consideravelmente Manoel Quentino, que olhou para o
snr. José Fortunato, como a ver se lhe vinha auxilio d'alli; o snr.
Fortunato o mais que pôde dizer foi:--«Que a guerra era lá por causa de
umas cousas».

Cecilia tambem não exigiu saber mais.

--«Os russos...--leu ella n'aquelle serão--fazem fogo durante a noite
sobre o campo dos alliados; estes absteem-se de responder.»

--Teem mêdo--commentou logo o snr. José Fortunato com um sorriso.

--Isso é plano!--acudia Manoel Quentino, com ares de quem entrava no
mysterio.

--«Os atiradores alliados respondem porém de dia com
proveito»--continuava a ler Cecilia.

--Então? era ou não era plano? Eu logo vi--exclamou Manoel Quentino,
exultando.

--Balas perdidas--replicava o outro, encolhendo os hombros com desdem.

--«Os soldados--proseguia Cecilia--pedem com enthusiasmo ao general em
chefe, que dê a batalha»--e, acabando de ler isto, fez um gesto de
aversão.

--Pois vão para lá!--respondia o snr. José Fortunato, como homem que
conhecia a preceito os recursos de defeza da praça.

--«Em Sebastopol ha duas mil bôcas de fogo»--lia ainda Cecilia.

José Fortunato olhou para o seu amigo, com gesto provocador e
triumphante; parecia que o convidava a atacar, propondo-se elle a
defender com aquelles auxiliares.

Em seguida Cecilia leu que Vassif-Pachá acabava de tomar o commando do
exercito da Asia.

Foi a vez de Manoel Quentino pagar o gesto do outro, como se depositasse
grande confiança no Vassif e nas operações campaes do exercito da Asia.
Mas o gosto de triumpho foi maior ainda quando ouviu que, a 30 de
janeiro, partira para a Crimeia, Ulrich, que elle não sabia quem era,
com a guarda imperial franceza; José Fortunato só teve, a compensar-lhe
o receio d'esta acommettida, a noticia de que estavam seis mil russos em
Pruth.

As noticias locaes eram o terreno neutro, onde caminhavam a par, e sem
conflicto, as curiosidades do auditorio.

Uma cousa não podia Cecilia perdoar aos localistas, era que tratassem
levianamente certos assumptos tristes: a prisão de um pobre, uma
desordem domestica, uma tentativa de suicidio, por exemplo.
Impacientava-se com isto, e formulava um voto de censura, que Manoel
Quentino e José Fortunato apoiavam.

O noticiario vinha então abundante de descripções de desastres, causados
pela cheia do Douro.

Era com consternação que Cecilia lia a narração de tantas miserias.
Commoveu-a sobre tudo um facto verdadeiramente tragico, do qual ainda
haverá talvez no Porto quem conserve memoria. O irmão de um piloto de um
dos navios que a corrente arrebatára, depois de tentar em vão salvar o
irmão em perigo, perdeu a razão, vendo-o succumbir; e esta dupla
catastrophe feriu de morte o velho pae de ambos. Manoel Quentino, que
tinha razões para saber o que era o amor de pae, limpou uma lagrima a
occultas. José Fortunato, com ser boa creatura, tinha, em circumstancias
assim, certas observações sêccas, de fazerem perder a paciencia a um
santo.

Ouvindo ler aquillo, disse:

--Ora! Isso é historia! Os gazetilheiros ás vezes...

--Historia! Ó snr. Fortunato, por quem é!--exclamou Cecilia
impaciente--Lembre-se de que é um irmão a querer salvar um irmão, e a
vel-o morrer; de que é um pae que perde dois filhos; não acha ainda
razão de mais para a morte ou para a loucura?

--Pois então o outro que não fosse metter-se ao perigo; devia
lembrar-se...

--Ora devia lembrar-se!... quem se lembra de nada n'aquelles momentos? O
snr. Fortunato tem cousas!

Fortunato já estava arrependido do que dissera.

--Com menos motivos--acudiu Manoel Quentino--se arriscou ha tempos na
Foz o Carlitos, lá o filho do meu patrão. Virou-se no meio do rio um
pequeno barco valboeiro, que ía governado por duas creanças, uma das
quaes nem sabia nadar; e elle, que andava ás gaivotas com outros
inglezes--que é o seu gosto--não esperou mais nada e zás... mergulhou
como um peixe e salvou a creança. Depois continuou a caçar, com a roupa
molhada no corpo, inda por muito tempo, em termos de ganhar qualquer
doença.

Cecilia estava tão entretida a examinar não sei o quê, que vinha no
periodico, tão perto tinha os olhos das lettras, que julgo nem dava
attenção ao episodio, narrado por Manoel Quentino.

É verdade que, assim que o snr. José Fortunato, depois de ouvil-o,
disse, com os seus modos sêccos:--«Estroinices», Cecilia levantou a
cabeça com impeto e fitou-o córando e com uma expressão, pouco
lisongeira para o velho.

Eu não sei bem explicar este movimento em uma pessoa distrahida, como
ella estava, movimento, que aliás não teve consequencias, pois, voltando
á posição anterior, passou a ler o folhetim.

Esta parte ouvia-a Manoel Quentino dormitando. Não lhe levem isto a mal
os folhetinistas. José Fortunato, pelo contrario, ouvia-a com ardor; a
maneira de ler de Cecilia inoculára-lhe o gosto dos romances. Tomava
agora pelas peripecias um calor exagerado. Para elle era ponto de fé que
tudo aquillo acontecera, e que tinham vivido, ou viviam ainda, os
personagens, entre quem se travava a acção. Censurava por isso com a
mesma violencia, e louvava com a mesma satisfação esses heroes
phantasiados, como se fossem membros reaes da sociedade.

Lido o folhetim, Cecilia passava o jornal ao snr. Fortunato, e ia tratar
do chá. Fortunato lia para si os annuncios.

Manoel Quentino passava então pelo somno.

Depois travava-se entre os dois um dialogo, todo cortado de bocejos
contagiosos;--os assumptos eram para estes effeitos. Eis o programma
d'esta noite:

Primeira parte:--Fortunato principia por dizer--«Pois é
verdade.»--Replica-lhe Manoel Quentino--que a vida estava para
elle.--«Queixe-se, que tem de quê»--diz o outro--«E não tenho
pouco»--responde Manoel Quentino. Dois bocejos de ambos os lados, e
pausa.

Segunda parte:--Manoel Quentino queixa-se de umas dores de
cabeça.--Fortunato attribue-as ao tempo e esfrega os olhos. Manoel
Quentino inclina-se a que seja antes do estomago. O outro aconselha-lhe
que não use de café ao almoço. Bocejos reciprocos.

Terceira parte:--O snr. Fortunato, olhando para o tecto, nota que a sala
tem diminuto pé direito. Manoel Quentino responde que, para a largura, é
o bastante. O outro diz algumas palavras sobre as vantagens dos
estuques. Manoel Quentino concorda e procura uma transição para fallar
contra os senhorios; Fortunato responde-lhe com uma diatribe contra os
caseiros. Reproduz-se um bocejo em Manoel Quentino, que se transmitte ao
outro.

Quarta parte:--Fortunato diz que está a expirar o carnaval. Manoel
Quentino replica que lhe não deixa saudades. Fortunato faz igual
declaração. Manoel Quentino vê com maus olhos a chegada da quaresma, por
causa das confissões. Discute-se quaes os confessores mais passa-culpas.
Manoel Quentino lembra-se de perguntar quem inventaria isto de
confissões. Fortunato fal-as remontar ao tempo dos romanos, supremo grau
de vetustez, e d'elle conhecido.

D'esta vez os bocejos ficaram em meio, graças á entrada de Cecilia e de
Antonia com o taboleiro do chá.

Era notavel a transformação, operada em Fortunato. Alegrava-o o aspecto
das tostas e do leite. Então que querem? Não era que o homem precisasse
d'aquillo; mas emfim todo aquelle apparato bulia-lhe com a sensibilidade
gustativa e, por os mysteriosos laços do physico e do moral, lá se lhe
ia entender com a alma por fim.

Esta satisfação interior desentranhava-se em amabilidades para com a
Hebe domestica d'aquella ambrozia--a snr.ª Antonia.

--Ai, snr.ª Antonia--dizia elle--assim é que é; cada vez mais nova.

--Não me diga isso, snr. Fortunato; logo eu, que estou acabada.

--Acabada! Ainda mal principiou...

Eu não sei se era intenção do snr. Fortunato terminar aqui a oração,
cujo sentido fica um tanto obscuro. E não o sei, porque n'este ponto
Cecilia interrompeu-o, dizendo-lhe:

--Faz favor de ver se está bom do assucar, snr. Fortunato.

--Excellente, menina; mas faz-me favor de mais uma colherinha. Assim,
muito bem; mais uma agora e mais nada... assim... agora mais não. Está
muito bem.

Depois de cada um tomar a sua posição respectiva, o snr. Fortunato
principiou a fallar, misturando na bôca as palavras com chá, com leite,
e com tostas e bolos.

--Pois, menina, eu estou morto agora por ver se o tal meliante escapa da
prisão.

--Pois quem foi preso?--perguntou Manoel Quentino, que, tendo estado a
dormir, não sabia que o seu amigo se referia ao romance, que vinha na
folha.

--Então não ouviu?--disse o snr. Fortunato, engulindo um bolo--Ella foi
bem pilhada, isso lá foi. Porque o homem, pelos modos, não sabia que o
desconhecido era o pae da rapariga, e tanto que elle ficou espantado
quando o outro lhe appareceu, vestido de preto, e lhe disse...--Aqui o
snr. Fortunato engrossou a voz.--«Eu sou a ultima das tuas victimas!»--E
o filho então é que veio a saber d'isto: sim, porque até alli não sabia
nada. Veio então a saber que a irmã do amigo do commendador é que tinha
dado o dinheiro, que elles entregaram á tal viuva do cunhado do
escrivão.

Manoel Quentino mexia machinalmente o chá, olhando boquiaberto para o
amigo, sem que percebesse uma só palavra, apesar do snr. Fortunato
gesticular, voltado para elle.

--Que diacho de embrulhada é essa? Eu se o entendo!

--Então não leu?--teimava o outro--Elles tinham combinado que, logo que
partisse o navio, o rapaz fosse accusado do roubo feito ao commendador;
e para isso mandaram dizer aos tios do defunto que as joias foram
encontradas na caixa do escudeiro do desconhecido, mas...

--Mas quem demonio é essa gente toda? Que mexerofada de
cousas!--exclamou Manoel Quentino, devéras impaciente.

--Então não ouviu?--insistiu o snr. Fortunato, cuja natural difficuldade
de expressão se exacerbava ao expôr as enredadas aventuras de um romance
francez.

Cecilia, que ao principio não attentára no dialogo comico, que se estava
trocando entre os velhos, não pôde deixar de rir com vontade, ao dar por
elle.

--Mas onde aconteceu isso tudo, homem?--perguntava Manoel Quentino.

--Em Paris. Pois não...

--O pae não vê que o snr. Fortunato está a fallar do romance?

--Ah! isso sim.

--Pois que cuidava?

--Eu sei lá o que cuidava. Eu cá de romances não entendo. E agora por
isso lembra-me que aquelle endiabrado rapaz, o Carlitos, teimava que me
havia de emprestar lá uns romances... Eh! eh! Tem diabo o rapaz.

--Tambem está um estroina!--disse o snr. Fortunato, que era dos que
tinham Carlos na conta de homem perigoso.

--Mas deixe lá, que é uma boa alma!--respondeu Manoel Quentino--Ninguem
lhe póde querer mal. É capaz de tirar a camisa do corpo para soccorrer
um pobre. Ahi está que uma vez viram-o, era ainda dia claro, entrar na
cidade, trazendo o cavallo á arreata e na sella vinha uma pobre velha,
que elle encontrou na estrada com um pé desmanchado; outro que fosse...
Ó Cecilia, então? onde tens tu o sentido, que nem reparas que alli o
snr. Fortunato tem ha tanto tempo a chicara vazia?

--Ai, perdão--disse Cecilia, córando pela distracção em que caíra.

Não sei bem por que isto a fez córar assim; mas o facto deu-se.

O snr. Fortunato, que havia muito tossia e suspirava com o fim de chamar
para si, e para a chicara, as attenções, disse por delicadeza:

--Não tinha pressa.

Manoel Quentino continuou tecendo louvores a Carlos.

--Mas emquanto á tal historia da mulher--dizia Fortunato, recebendo de
Cecilia a outra chavena--isso tambem foi parlapatice no rapaz, pois...

--Então; faz favor de ver se quer mais assucar--disse Cecilia, com um
certo modo desabrido, que eu tambem não sei explicar, e que contrastava
com a doçura que lhe era habitual.

O snr. Fortunato notou-o.

--Está muito bem, menina--disse elle.--Faz-me o favor de mais uma
colherinha. Está muito bem.

--Menos isso, snr. Fortunato--continuou Manoel Quentino.--Bem se vê que
não conhece o Carlitos. De imposturas é que elle nunca foi. Já em
creança...

--Meu pae, sirva-se antes d'estes bolos--disse Cecilia de modo tão
affectuoso, que alvoroçou a sensibilidade do velho.

--Deixa estar, filha, que eu cá me vou servindo.

--Pois sim--insistia o snr. Fortunato--mas que elle não é lá de muitos
bons costumes, isso é que é verdade.

--Antonia, sirva aqui o snr. Fortunato--disse Cecilia sêccamente, ordem
que, por excepcional, surprendeu a todos.

Tambem não sei bem explicar a razão d'esta ordem.

--Tudo isso não passa de rapaziada--proseguiu Manoel Quentino.--Mas o
que se chama fundo, boa alma, isso tem.

--Olhe, snr. Manoel Quentino, homem que não toma rumo de vida...

--Tambem ha muitas más almas á testa de grandes estabelecimentos, snr.
Fortunato. Se um modo de vida fosse garantia e probidade!--disse Cecilia
com ironia.

--Pois bem sei que não, menina, mas...

--Mas, mas, meu caro--disse Manoel Quentino--o que ninguem póde negar é
que está alli um homem de bem... é verdade isso... Muitos fazem peior
com menos a desculpal-os.

O dialogo proseguiu, discutindo-se muito Carlos. Cecilia porém
absteve-se de tomar parte n'elle.

Terminou o chá. O ardor da conversa baixou. Manoel Quentino presentia o
somno. José Fortunato sentia-se a digerir. Cecilia trabalhava e ás vezes
ficava parada com os olhos fitos na luz, como se ella lhe offerecesse
qualidades novas a examinar. Davam emfim nove horas.

--Ora vamos até casa--disse José Fortunato erguendo-se.

--Olhe se se agasalha--recommendou-lhe Manoel Quentino.

--Antonia, venha alumiar--disse Cecilia.

E o snr. Fortunato, feitos os seus cumprimentos, descia as escadas,
conversando com Antonia até á porta da rua a respeito de frieiras, e
mettia-se em casa, onde a imaginação teimava em recordar-lhe a doce
figura de Cecilia, e tudo quanto lhe dissera.

--Estranhei hoje os modos da rapariga--dizia elle ao deitar-se.

Uma perfida paixão começára, havia muito, a minar o coração do pobre
homem.

Manoel Quentino, como tinha de se levantar cedo, ia-se deitar pouco
tempo depois de Fortunato sair.

O dialogo entre o pae e a filha d'esta vez consistiu n'isto:

--Este snr. Fortunato ás vezes!...

--É caturra, é...

--E tem umas ideias! Boa noite, meu pae.

--Muito boa noite, minha filha. Deus te abençoe.

Cecilia retirou-se.

Apesar de na vespera se ter deitado tarde, como o leitor sabe, Cecilia
não sentia somno. Parecia-lhe estar ainda experimentando o atordoamento
do baile. Lembrava-lhe tudo quanto Carlos lhe dissera, e o mais que de
Jenny tinha sabido, e affligia-se então. Depois vinham as reflexões de
Fortunato, depois as palavras do pae e os episodios que de Carlos
Whitestone referira. A final cedeu ao somno. Pouco lucrou na transição.
Ha certo dormir que fatiga mais que a vigilia. Trava-se uma lucta de
sonhos, que nos deixa extenuados.

Cecilia imaginou que ia n'um barco, levado pela corrente impetuosa do
rio, em direcção da barra. O perigo era certo, e comtudo o barco ia
cheio de mascaras que dançavam. Cecilia gritava, mas ella propria não
escutava a sua voz. O barqueiro era o snr. Fortunato, e, cousa singular,
ao mesmo tempo que remava, ia tomando chá. Depois vinha Carlos, com um
cavallo pela rédea; mas o que mais a surprendia era que vinha pelo mar.
Carlos queria salval-a, tirando-a do barco, mas as outras mascaras e o
snr. Fortunato não deixavam. Porém o snr. Fortunato já não era o snr.
Fortunato, mas sim um dos personagens do romance, que tanto o
impressionára; e o mar tambem já não era bem mar, porque tinha camarotes
em volta. E comtudo o perigo persistia, sem saber bem como ou em quê, e
agora era ella a que fugia de Carlos.

Finalmente, o sonho era de um enredo complicado, tendo por elementos os
diversos acontecimentos e assumptos, que mais tinham preoccupado Cecilia
n'aquelle dia, mas tudo em desordem completa.

Em consequencia d'este sonho, acordou de manhã, pallida e abatida--o que
não pouco inquietou Manoel Quentino.



XIV


IMMINENCIAS DE CRISE


Emquanto Cecilia passava assim pacificamente o serão d'aquella noite,
andava Carlos procurando com anciedade, por todos os salões de mascaras,
a sua desconhecida da vespera.

Jenny notára a impaciencia, com que o irmão tinha aguardado a noite e,
ao vel-o sair, disse-lhe com modo particular:

--Adeus, Charles; quer-me parecer que te não recolherás d'esta vez pelas
quatro horas da manhã.

--Quem sabe, Jenny?

--Adivinho-o.

Effectivamente não eram ainda duas horas, quando Carlos Whitestone,
cansado de procurar em vão, em cada dóminó e sob cada mascara de seda, a
incognita do ultimo baile, voltou a casa em pouco agradavel disposição
do espirito.

Jenny, que o sentiu chegar, sorriu de novo e disse comsigo mesma:

--Inda bem, que terminou o carnaval. Charles, dentro em dois dias, já
pensará em outra cousa.

Acabára de facto o carnaval. Expirára essa época votada á folia e á
loucura sem rebuços e abria-se agora a da penitencia e dos sermões.

Em qual das duas ha mais verdades, mascaradas sob falsas apparencias,
deixo aos moralistas decidir. Ia principiar o reinado dos véos, durante
o qual a piedade e a moda levam ás sextas-feiras a multidão para a
igreja de S. João Novo, e ao domingo despejam meia cidade nos arrabaldes
proximos, para assistir á procissão dos Passos e ao respectivo sermão do
encontro.

Quasi toda a manhã de quarta-feira de Cinza passou-a Carlos em casa.

Contra o que era de esperar do caracter d'elle, dominava-o ainda a
lembrança da mysteriosa mascara; o despeito de a ter deixado escapar,
sem que lhe ficassem vestigios, pelos quaes podesse um dia vir a saber
quem ella fosse, concorria para o não deixar tranquillo agora. Estava
dando tratos á imaginação, para se lembrar de qualquer meio conducente á
solução d'aquelle problema de carnaval. Mas nenhum alvitre lhe offerecia
a imaginação atormentada.

Saíu emfim, sem saber para quê, nem para onde; em vez de procurar os
centros de reunião mais concorridos, e onde, de ordinario, se fazia ver
e ouvir, mudou de rumo, deixou-se ir ao acaso e, passado tempo,
caminhava por entre os pinhaes, que orlam a parte ainda não edificada da
rua da Boa Vista.

Nos seus habitos de vida, essencialmente urbana, eram tão raras as
occasiões de se ver assim entre arvores e fóra do povoado,
principalmente áquellas horas do dia, que o facto estava-lhe causando
uma impressão singular.

Parecia-lhe um mundo novo; e alli, a dois passos de casa!

Internou-se por pinhaes e campos, até perder de vista a estrada. Parou
emfim. N'um estado moral, como o de Carlos n'aquella manhã, não são
necessarios os grandes espectaculos da natureza para incitarem o
pensamento a uma d'essas divagações, a que anda tão sujeito o dos
poetas.

A vastidão do mar, o horizonte amplissimo, que se descobre do alto das
montanhas, o fragor da cataracta, que se despenha no valle, subjugam e
obrigam a meditar até os menos propensos a contemplações abstractas.

Haja porém um fermento de poesia no espirito de qualquer homem, ou
tenha-se apoderado d'elle a melancolia, que é uma poesia tambem, e
menores causas bastarão para se produzirem effeitos ainda maiores.

O caminhar do insecto ou o rastejar do verme por entre as folhas sêccas
do chão, a lande, desprendida do ramo e arrebatada na corrente, o raio
do sol, que vae colorir a maravilhosa teia que a aranha teceu nas
tojeiras, nas praias o movimento de expansão das actinias, ou rosas do
mar, esses verdadeiros forcados das fragas, e outros iguaes phenomenos,
sem importancia para quem os vê com animo distrahido, são já alimento
bastante para phantasias mais apuradas.

Carlos tinha a imaginação predisposta para estas impressões subtis, e,
como raras vezes se sujeitava a ellas, recebia-as agora com duplicada
intensidade.

Era pelas tres horas da tarde de um dos mais formosos dias, que nos póde
conceder fevereiro. Havia no campo aquella frescura, aquelle renascer de
vida que, após longos dias de chuva, traz um dia de sol claro. O céo não
tinha uma nuvem, nem lhe empanava o azul o véo transparente de nebrinas.
Os pinhaes estavam silenciosos, como se, julgando-se já na primavera, se
tivessem calado para escutar as aves; o vento, de debil que era, mal
podia agitar as folhas movediças das arvores que o inverno respeita. Era
tal a serenidade da tarde, que o fumo das casas rusticas subia ao ar
lentamente, em columnas direitas, sem que uma viração as quebrasse, e só
muito alto se dissipava na atmosphera.

Do logar onde parára, Carlos ouvia distinctamente a voz das raparigas do
campo, chamando o gado, rindo ou cantando.

Era de longe que partiam aquellas vozes, mas a amenidade da hora e o
silencio deixavam-as chegar até alli sonoras e perceptiveis.

Carlos sentiu-se enlevado por tudo aquillo.

--É uma singular loucura--pensou elle--julgar que se aproveitam os dias
da juventude da maneira por que eu vou passando os meus. Do homem, que
teve a minha vida, emquanto novo, costuma dizer-se que soube gosar
d'ella em tempo. E como é que eu d'ella gosei? Na atmosphera asphyxiante
de um café; na plateia de um theatro, onde se falla e pensa em tudo
menos na belleza da arte; nas assembleias semsabores; nas esquinas das
praças, ou em lojas á moda. Na verdade, que delicioso viver! E o
espirito, que parece sentir-se palpitar, agitar-se em nós, quando assoma
a mocidade, acaba por embotar-se, por adormecer; torna-se incapaz de nos
proporcionar certa ordem de gosos, para os quaes temos faculdades
creadas. E diz-se então que soube gosar da vida o que voluntariamente se
privou das mais gratas impressões, que podem sentir-se n'ella!

Isto dizia, ou antes, pensava Carlos, ao entranhar-se cada vez mais no
pinheiral, e respirando a pleno peito a atmosphera balsamica do logar.

--Nem eu sei--proseguia elle--como ainda experimento prazer, ao achar-me
aqui só. Nos habitos de vida, que fiz meus, perde-se até a faculdade de
saber sentir assim, a sós; quando é talvez d'esta maneira que a
imaginação mais subtil se mostra...

Vejam os leitores até onde iam já arrastando Carlos os attractivos
d'aquella solidão suburbana!

Operou-se porém uma transformação nas suas ideias, que parecia vogarem,
e á vela cheia, seduzidas pelas doçuras da vida de anachoreta. Um
pensamento, menos misanthropo, mais social, fel-as mudar de rumo.

--Mas não--reconsiderou elle--não basta sentir; é necessario transmittir
as expressões dos nossos sentimentos, e os troncos das arvores, a final
de contas, não são os confidentes mais proprios. Tudo precisa de
reflectir-se, para não perder na immensidade; a luz, n'um espaço vasto,
dissipa-se; o som esmorece; o sentimento parece tambem enfraquecer, se
outra oração, reflectindo-o, o não reforça. É porisso que a presença de
um amigo... Mas que amigos tenho eu?

Tremo devéras pelos chamados amigos de Carlos, ao vel-o disposto a
responder a esta pergunta, que fez a si proprio.

--F...,--continuou elle--cuja amizade não resistirá á primeira falta de
senso que lhe notar n'um folhetim; C..., que romperá commigo, se eu
tiver a franqueza de lhe apontar o menor defeito de equitação; L..., que
abandonaria o amigo, logo que o visse seguir um terreno, onde elle
corresse o perigo de enlamear as botas de polimento..., e todos os mais
da mesma força. Vão lá escolher um d'esses homens para companheiro
n'estas _viagens sentimentaes_.

Aqui interrompeu-se para observar um pequeno e agil lacerto, que fugiu
espavorido ao sentil-o aproximar, e do buraco, onde se occultára,
continuava espiando-lhe os movimentos com os olhos vivos e como
scintillantes. Carlos achava curiosissimo este espectaculo vulgar.
Depois seguiu caminho, distrahido ainda, e pensava:

--Ahi está; se eu dissesse a qualquer que me entreteve esse pequeno
reptil, correndo por entre os fetos e por sobre as pedras musgosas
d'aquelle muro, zombaria da minha candura; chamar-lhe-hia pieguice... Ha
certas vibrações de sensibilidade, que não se póde communicar... a não
ser... a não ser a um coração de mulher... Ellas sim, teem certas
puerilidades sublimes, que... Ora adeus! Temos outra como a dos amigos.
Se me recordar de algumas mulheres que tenho amado, que vejo eu? A S...,
mulher nervosa, que teria um deliquio só ao ver aquella
sardonisca--sensibilidade de toucador; a C..., essa então, mulher forte,
que só um terremoto como o de Lisboa seria capaz de commover; a E...,
belleza de salão, que se levanta ao meio dia, admira a natureza... nos
jardins, e lamenta que a solidão não tenha gente que veja como ella a
sabe apreciar...; e as outras regulam por isto. Verdade é que eu tambem
com isto me satisfazia; quem sabe se procurando de outra maneira...

N'este ponto tomaram as suas meditações outro caracter. Alguns passos
mais adiante, já elle meditava:

--Á força de me rir, em sociedade do amor sincero, desinteressado, dos
casamentos de paixão, da vida de familia, quasi me deixei persuadir de
que me ria convencido. E comtudo, se me sondar devéras... se aproveitar
estes momentos raros, em que sou franco e expansivo commigo mesmo...

O leitor sabe de certo até onde podem chegar as excursões do pensamento,
quando no terreno que o de Carlos ia seguindo agora; muito mais se, como
elle, se está em pleno bosque e longe do rumor da cidade; se o sabe, não
estranhará que, momentos depois, já assim estivesse pensando Carlos:

--Um amor bem verdadeiro, uma vida bem intima com uma mulher, a quem se
queira como amante, que se estime como irmã, que se venere como mãe, que
se proteja como filha..., é evidentemente o destino mais natural ao
homem; o complemento da sua missão na terra...

Quando Carlos Whitestone chegára a formular, no pensamento, esta
profissão de fé, que, uma ou outra vez, concebeu toda a cabeça de vinte
annos, ainda das mais azadas para desvairamentos, attingia a borda do
pinheiral opposta áquella, por onde havia entrado.

D'alli por diante o terreno, mais desimpedido de arvores, era occupado
por campos em cultura, vinhedos, quintas, e por as casas respectivas;
umas juntas, outras dispersas, e mais ou menos graciosas todas.

Carlos sentou-se no pequeno muro de demarcação do pinhal. O horizonte
que tinha diante de si, era vasto, e o olhar foi, quasi ao extremo
d'elle, fixar-se em uma das mais distantes d'aquellas casas, ainda que o
espirito não tomasse a menor parte n'aquella apparente contemplação.

Tinha esta casa dois andares; era a face posterior a que se avistava
d'alli. A varanda do primeiro andar estava toda entretecida de
trepadeiras, que subiam do quintal. No intervallo das duas janellas
florescia, em uma especie de alegrete, um arbusto, ao que parecia, de
camelias. Na varanda do andar de cima via-se, pendurada de uma corda,
que se estendia em todo o comprimento d'ella, alguma roupa branca, sobre
a qual o sol batia em cheio, fazendo-lhe realçar a alvura.

Como disse, demoraram-se n'aquelle ponto da perspectiva os olhos de
Carlos, sem que os seguisse, desde logo, o pensamento, absorto como
estava ainda na sequencia de meditações sobre os destinos do homem
n'esta vida.

Mas, instantes depois, alguma cousa se passou, que foi como que o laço
de união entre o objecto das contemplações dos olhos e o das do
espirito, que, desde então, se associou áquelles, no exame da modesta
vivenda, em cujas vidraças o sol simulava a apparencia de um vasto
incendio.

O phenomeno nada tinha de extraordinario comtudo. Na varanda de cima
apparecera uma mulher; nada mais. Mas esta mulher, ainda que a distancia
mal permittisse distinguil-a, mostrava, pela elegancia de estatura e
pela vivacidade de movimentos, ser ainda joven. Não era para estranhar
que a imaginação de um rapaz de vinte annos a suppozesse tambem formosa.

Viera examinar a roupa, que estava a córar ao sol; tirava uma e
substituia-a por a que trazia de dentro; mais adiante, mudava a face
exposta de outra; de quando em quando interrompia o trabalho e olhava
para fóra, pondo a mão por cima dos olhos, como a abrigal-os da
intensidade da luz; outras vezes, voltava-se para a sala e parecia
fallar a alguém de dentro. Depois desapparecia; voltava de novo, e
sempre, com manifesta solicitude, applicada ao trabalho.

Carlos seguia com prazer o ir e voltar d'aquella mulher, que a custo
distinguia, mas que nem por momentos imaginou que podesse ser uma
criada.

Elle, que estivera sonhando com os encantos do viver intimo, aprazia-se
de imaginar agora, n'aquella casa, um d'esses mundosinhos modestos, que
lhe estavam a appetecer.

--Uma esposa, nova por certo, canceirosa com os negocios
domesticos...--pensava elle--Deve ser um prazer indefinivel sentir-se a
gente viver sob os cuidados de um d'estes entes, votados assim
inteiramente á nossa felicidade...

Era natural, desde que pensou isto, que se lembrasse de Jenny.
Lembrou-se, é verdade; mas a imaginação sorriu affectuosamente áquella
doce imagem, e deixou-a. Ao estado do seu coração não satisfazia só o
sorriso fraternal e meigo que animava de bondade as feições da irmã. A
seu pezar, surprendia-se a aspirar a mais.

A tarde adiantava-se, e Carlos não se desviava d'alli; prendia-lhe as
attenções aquella casa e a sympathica visão da varanda.

A final fecharam-se as janellas. Pouco faltava para o sol se esconder de
todo no mar. Carlos reparou então que era tempo de voltar a casa.

Olhou mais outra vez ainda, e com saudade quasi, para a varanda. Os seus
poucos e imperfeitos conhecimentos da topographia d'aquella parte da
cidade não lhe permittiram conjecturar sequer qual fosse a rua a que
pertencia a habitação.

A nossa costumada discrição impede-nos de compensar este defeito.

Seguindo outra vez o caminho, por onde viera, Carlos voltou a casa, mas
a passos mais apressados.

Já proximo da porta, sentiu uma mão, que se lhe pousava no hombro.
Voltou-se; reconheceu um de seus amigos.

--Que fazes tu, homem?

--Recolho-me.

--D'onde vens?

--Do campo.

--Ah! cultivas a bucolica? a poesia pastoril?

--Ás vezes.

--Dou-te os pezames. Gessner envelheceu; Florian dorme o somno dos
inoffensivos. A proposito, já te mostrei o meu folhetim de critica, a
respeito do volume do Serrão?

--Ainda não.

--Apparece então no Guichard esta noite. O livro é um pretexto; o que eu
procuro é caracterisar a litteratura moderna, estremando os campos, hoje
um pouco confusos, de romanticos e de classicos. Sabes que é o meu
systema investigar nas pequenas apparencias as grandes revelações? É o
que faço d'esta vez ainda. Assim, n'este estudo, serviram-me de ponto de
partida duas palavras apenas; uma colhida de Racine, na _Berenice_;
outra de Victor Hugo, no _Ruy Blas_. São as palavras finaes de uma e de
outra tragedia. Antiochus vê partir Berenice e exclama: _Helas_! Ruy
Blas morre nos braços da rainha e murmura: _Merci!_ Basta-me
isto.--_Helas_!--é o grito de dor, é o desespêro, é a falta de coragem
no infortunio; é a ultima palavra de uma litteratura, que não tem
confiança no futuro, de uma litteratura, que vive só do passado.
_Merci_!--é, pelo contrario, a resignação, a esperança, o apuramento do
padecer até á essencia inebriante do soffrimento proprio, que chega a
confundir-se com o prazer... é pois a phrase digna de uma litteratura
viva, inspirada do futuro...

A prelecção continuou; e Carlos reconheceu, pela impaciencia com que a
estava escutando, a nenhuma disposição que tinha para apreciar n'aquella
noite a sociedade de seus amigos. Separou-se d'este o mais depressa que
pôde.

--Não serei eu que vá ao Guichard esta noite. D'esta vez farei a vontade
a Jenny. Ficarei em casa--disse elle, logo que conseguiu despedir-se.

E entrou justamente quando já a campainha chamava para o jantar.

Jenny, vendo-o chegar, e notando o ar grave que trazia, murmurou
comsigo:

--Ainda é cêdo para o restabelecimento. Esperemos.



XV


VIDA INGLEZA


O jantar correu, ao principio, silencioso, como de costume.

Mr. Richarde, apesar de tudo quanto promettia aquelle seu ar de
satisfação, fazia as honras da mesa, usando de monosyllabos, e não se
dava ao trabalho de formular uma oração inteira, sempre que com qualquer
palavra solta lhe era possivel exprimir o pensamento.

--_Roast beef_?... Salame?... Fiambre?... Ostras?--Era a maneira, pela
qual elle perguntava a Carlos ou a Jenny quaes os pratos, de que
preferiam servir-se.

--Mostarda... Queijo... Aquillo... Isto... Traz... Tira... Leva...--Eram
as ordens, que recebiam os criados, os quaes manobravam com uma
promptidão, seriedade e silencio, essencialmente britannicos.

Carlos não se mostrava mais expansivo. Além da pouca disposição para
fallar, que em regra sentia diante do pae, estava n'aquella tarde muito
fóra das habituaes condições de espirito, e em outra qualquer companhia
de certo lhe estranhariam igualmente a taciturnidade.

Jenny dava algumas ordens, em voz baixa, aos criados, que se inclinavam
diligentes para escutal-a; fazia, no mesmo tom, uma ou outra observação
a Carlos, e aventurava até algumas perguntas ao pae, sem que lhe fosse
possivel comtudo generalisar conversa.

Tudo isto, a regularidade e perfeito methodo de serviço, a gravidade e
asseio dos criados, e a meia claridade da sala, dava não sei que aspecto
solemne ao acto, como se fosse uma ceremonia funebre.

Á medida, porém, que se repetiam as libações e que o effeito dos
variados vinhos se combinava na cabeça de Mr. Richard, o velho inglez
principiou a despir-se d'esta soturna gravidade e a lingua a
desencadeiar-se-lhe, rompendo aquella especie de mutismo, que lhe
impunham as regras da etiqueta britannica.

Verificava-se n'isto uma opinião de Fielding, escriptor que disputava a
Sterne as predilecções litterarias de Mr. Richard; diz effectivamente o
auctor do _Tom Jones_ que o vinho tem a propriedade de trazer á luz o
verdadeiro caracter dos homens, caracter que, nos periodos de
sobriedade, o artificio consegue dissimular muitas vezes. Ora, como
dissemos, Mr. Richard Whitestone era sorumbatico, por convenção; mas no
fundo permanecia a jovialidade, que vinha á superficie, á medida que se
adiantava o jantar.

Ainda na presença de Jenny, já elle começára a ensaiar alguns gracejos,
a contar passagens da sua vida de Londres, travessuras da meninice, e
algumas extravagancias do tempo de rapaz.

Carlos procurava então maliciosamente o olhar da irmã, a qual, pelo
contrario, evitava com discrição o d'elle; porque estas historias ambos
as sabiam já de cór, tão infalliveis ellas occorriam em determinadas
circumstancias.

Sempre que, em taes alturas do jantar, Carlos via servir um perú
recheado, esperava já a narração de como, na sua infancia, Mr. Richard,
então chamado ainda o pequeno Dick, com mais outros companheiros do
collegio, tinham conseguido roubar uma d'estas aves do pateo do
reverendo Jackson, seu mestre, e do detestavel assado que depois, ás
occultas, fizeram com ella.

O lombo de vacca inevitavelmente lembrava a anecdota apocripha d'aquelle
rei de Inglaterra, que em um accesso de bom humor armou cavalleiro este
saboroso artigo comestivel, ao qual, desde então, se concederam as
honras de _baronet_, como parece indicar o nome de _Sirloin_ ou _Sir
loin_, com que os inglezes o designam.

Um prato de avelãs trazia quasi sempre comsigo a historia de uma celebre
aveleira, que havia em certo parque das proximidades de Londres, pelo
tronco da qual tantas vezes Mr. Richard, ainda creança, trepára com
feliz exito, até um dia em que, escorregando, ficou suspenso de um galho
por espaço de alguns minutos.

O _pudding_ era pretexto para fallar no monstruoso _pudding_ que se
cozinhava na Inglaterra, em não sei que solemnidade popular, e d'ahi a
enumeração de muitos outros usos, e costumes nacionaes e de varias
festas notaveis. Entre essas, a mais detidamente descripta era a do Lord
Mayor; n'esse dia, guardado por toda a City, como dia santo, o
personagem eleito para aquelle alto cargo é processionalmente levado á
presença do Lord Chanceller, com o fim de ser por elle confirmada a sua
eleição. Mr. Richard sabia e descrevia todas as particularidades do
ceremonial, bem como todas as attribuições dos multiplicados cargos de
que se compõe a excepcional corporação de Londres, desde o alto Lord
Mayor até o mais modesto bedel de parochia.

Como na procissão fluvial pelo Tamisa, celebrada n'aquelle dia, Mr.
Richard estivera de uma vez em riscos de se afogar, a referencia
minuciosa d'este caso pedia a de um outro analogo que lhe succedera por
occasião dos tumultos populares occorridos durante o processo de
divorcio de Jorge IV, e varias particularidades, pouco edificantes, a
respeito da rainha Carolina e do seu favorito Bergamy.

Carlos ouvia tudo isto calado, com ar de resignação e deferencia filial;
Jenny com uma physionomia mais attenta, ainda que nem sempre a attenção
do rosto lhe estivesse no espirito tambem.

Jenny era a primeira a retirar-se da mesa, segundo o discreto costume,
hoje mais seguido, mas originariamente britannico.

Então tomavam maior incremento ainda as libações de Mr. Richard
Whitestone.

Accendia um charuto e dava-se uns ares de familiaridade, que em nenhuma
outra occasião se repetiam.

Carlos, de ordinario, perdia tambem então um pouco do habitual
retrahimento para com o pae, e, fumando defronte d'elle, entrava com
mais desafogo n'este dialogo.

N'aquella tarde, porém, conservou-se ainda pouco expansivo, e quasi
distrahido, perante a crescente communicabilidade.

N'este dialogo _inter pocula_ eram infalliveis as referencias do
negociante ao seu livro favorito--O _Tristram Shandy_, de Sterne.

Mr. Richard apreciava tudo n'aquelle livro extravagante. Sabia-o quasi
de cór e, apesar d'isso, lia-o ainda e de todas as vezes ria com a mesma
vontade, não obstante não encontrar no decurso da leitura já alguma
cousa imprevista.

Carlos, ainda quando não tivesse lido a obra, tinha já razão para a
conhecer a fundo, graças ás quotidianas citações do pae; era porém
obrigado a escutal-o, como se tudo fosse novo para elle.

As dissertações philosophicas do pae de Tristram, as ingenuidades e
venetas guerreiras do tio Tobias, as argucias e façanhas do Corporal
Trim, as interminaveis e extravagantes divagações de Tristram, o
supposto auto-biographo, tudo Mr. Richard citava com enthusiasmo e com
vivacidade.

Nem lhe passavam por alto os episodios e as dissertações, que respiram
certas liberdades, verdadeiramente rabelesianas, capazes de alvoroçar os
ouvidos menos pechosos. O episodio dos amores do tio Tobias e os do seu
fiel camarada, de indole menos quixotesca, eram até das passagens
favoritas e das que com mais cordiaes risadas commentava.

Vinham luzes e proseguia o dialogo, nem sempre demasiado ingenuo.

Ao levantar da mesa, tomavam-se posições ao fogão; a conversa
continuava, mas o ponto culminante da loquacidade e da viveza de Mr.
Richard Whitestone tinha passado já.

N'este primeiro periodo de declinação sobrevinham as citações do _Tom
Jones_.

Mr. Richard não se cansava tambem de exaltar aquelles soberbos perfis da
penna de Fielding e as judiciosas reflexões que o auctor mistura á
narrativa.

Depois, a proximidade do calor do fogão, as exhalações do carvão inglez,
a preponderancia dos vapores do tabaco, e mais tarde o _punch_,
deprimiam ainda mais os espiritos do commerciante.

Passava a fallar de politica, citava o _Times_; n'esta noite disse a
Carlos que Lord Palmerston estava resolvido a dissolver o parlamento, no
caso de não encontrar apoio na camara dos communs.

Isto já foi dito em tom soturno. Carlos era de todo indifferente aos
destinos do parlamento inglez.

Depois fallou nos principaes movimentos e feitos de armas do exercito
alliado na Crimeia e no provavel exito da campanha; e d'aqui entrou em
considerações sobre o estado do commercio em Londres. Carlos luctava
heroicamente para reprimir bocejos de fastio.

Era noite cerrada; a voz de Mr. Richard tinha já umas entonações surdas,
que, combinadas ás pancadas do relogio da sala, produziam em Carlos um
effeito soporifero irresistivel.

Jenny, quando pelo silencio que reinava, sentia que tinham chegado as
cousas a este periodo critico, voltava outra vez á sala. Era então que o
irmão aproveitava a occasião para saír.

N'esta noite ficou.

Jenny olhou-o admirada.

Carlos respondeu-lhe, encolhendo os hombros, como a exprimir a resolução
de ser condescendente aquella vez, ficando.

A irmã agradeceu-lhe com um gesto; mas pensava comsigo:

--Bem sei. Ainda não te passou o desgosto pelo mau resultado da tua
aventura. Paciencia!

Carlos voltára a casa, como dissemos, reconciliado com a vida domestica
e convencido de que estava bem disposto para saborear os prazeres de um
serão inglez.

Resolveu por isso ficar. Mas a suspeita de Jenny era tambem fundada.

Desalentado pela falta de indicações em relação ao mysterio da mascara,
na qual a seu pezar pensava ainda, mingoava-lhe animo para saír, sem
esperanças de o elucidar.

Mas a vida domestica, tal como se passava ao fogão, junto do qual Mr.
Richard quasi dormitava, não era a que o podia satisfazer.

O viver intimo, cujos encantos Carlos julgára ter concebido aquella
tarde, era apenas o accessorio de alguma cousa mais essencial ao
coração, de alguma cousa, cuja necessidade começava a sentir emfim.
Sorria-lhe o conchego domestico, mas aquecido, mas illuminado por outras
chammas, que não eram as que lambiam o _fender_ do fogão; animado por
mais ardentes sentimentos do que os de um affecto fraterno, ainda que
dos mais estreitos, e do que os do respeito filial, ainda que dos mais
arreigados e extremosos.

Estava por isso experimentando agora o desengano, e a comparar a
monotonia d'aquella noite ingleza, com o prazer que imaginára poder
saboreiar-se, sem abandonar os lares domesticos.

Isto fazia-o ainda mais silencioso e sombrio, do que estivera em outras
noites que passára como aquella em casa.

Depois que veio Jenny succedeu o que quasi sempre succedia tambem. Mr.
Richard manifestou desejos de a ouvir tocar.

Em virtude d'isto, passaram a uma das salas proximas. Mr. Richard
sentou-se ao lado do fogão, tambem accêso alli; Carlos, proximo d'elle;
Jenny ao piano.

Jenny, conhecendo por experiencia as predilecções paternas, abriu a
collecção dos _Cantos populares_ de Russell e procurou uma poesia de
Morris; a qual tanto o pae como o irmão ouviam sempre com piedoso
recolhimento.

O motivo d'esta attenção estava sobre tudo na lettra, que parecia feita
de proposito para avivar, em toda esta familia, saudades da vida
passada. Foi a meia voz, mas com verdadeiro sentimento, que Jenny cantou
essa poesia, intitulada a _Biblia de minha mãe_, cuja traducção é a
seguinte:

«Este livro é tudo quanto me resta d'ella! Ao vel-o, sinto rebentarem-me
irreprimiveis as lagrimas dos olhos; com os labios tremulos, com a
fronte turvada, aperto-o ao coração. É esta a arvore de familia, á
sombra da qual já muitas gerações se teem abrigado.--As mãos de minha
mãe folhearam esta Biblia; foi ella mesma quem m'a legou ao expirar.

Ai, como me estão lembrando aquelles, cujos nomes me veem de envolta com
estas memorias! Tantos que, em torno do lar, costumavam reunir-se após a
oração da tarde, a conversar no que dizia este livro, em um tom que me
calava no intimo do seio; ha muito que elles estão com os mortos
silenciosos; mas sinto-os viver ainda aqui.

Meu pae lia este livro sagrado aos filhos, ás filhas, á familia toda!
Como era sereno o olhar de minha mãe, ao curvar a cabeça para escutar a
palavra de Deus! Aquella figura angelica! Ainda a estou a ver!--Que
memorias me occorrem em tropel n'este momento!--De novo parece reviver,
dentro das paredes d'este quarto, aquelle pequeno grupo.

Tu, ó Biblia! és o mais seguro amigo do homem! Eu tenho já experimentado
a tua constancia! Quando todos me trahiam, achei-te fiel; vi em ti um
conselheiro, um guia! As minas da terra não possuem o thesouro, que me
compre este livro. Ensinando-me a maneira de viver, elle tambem me
ensina como se deve morrer.»

O assumpto da canção ingleza, depois que Jenny a terminou, fez caír
naturalmente a conversa sobre diversas passagens da Biblia; Mr. Richard
citou um versiculo, outro e outro, até que uma duvida lhe impediu de
proseguir: d'ahi o pedido feito por elle á filha, para verificar a
exacta redacção do texto.

Jenny abriu pois o livro, que em todas as salas se encontrava sempre á
mão, e leu.

Carlos gostava de ouvir ler a irmã aquellas singelas e sublimes paginas
da Biblia.

Diz-se muito mal da lingua ingleza, e, de facto, ouvindo fallar certos
filhos da Grã-Bretanha, lembra logo os conhecidos versos:

  O mundo a porfiar que os bretões grunhem
  E os bretões, etc., etc., etc.

porém uma voz, como a de Jenny, meiga, melodiosa, e modulada com
intelligencia e graça, parece transformar essa lingua ingrata em não sei
que cantar de aves, que tem attractivos, até para os que não a
comprehendem.

O recolhimento religioso, com que Jenny lia os mais bellos episodios do
Velho ou do Novo Testamento, augmentava o effeito agradavel da sua voz.

Infelizmente, porém, a leitura descarnada e despida de commentos
d'aquellas paginas não bastava ao fervoroso anglicanismo de Mr. Richard
Whitestone, porisso, a cada passo, a interrompia para citar as
interpretações de alguns dos reverendos doutores da sua episcopal
igreja, ou os recentes desenvolvimentos, que ouvira ao ecclesiastico
inglez na missa protestante, do Campo Pequeno.

Jenny olhava para o irmão e fazia-lhe signal para que se reprimisse, e
pelo menos simulasse attenção ás divagações do pae. Serviu-se ás dez
horas chá preto, e Mr. Richard readquiriu um pouco de animação para, a
proposito do chá, fallar na importancia da companhia das Indias
Orientaes, nos serviços feitos por ella ao commercio, na sua historia,
nas difficuldades com que luctou, e nos meios de que dispunha. Em
seguida expôz um projecto de lavra propria sobre o engrandecimento das
colonias inglezas, formulou acerbas censuras ao systema colonial
portuguez, e em seguida uma expressa condemnação da politica franceza em
geral.

Mr. Richard odiava cordialmente a França. Ou elle não fosse inglez.

Emfim, ás onze horas cessou Mr. Richard de fallar; as palpebras
começaram a pesar-lhe; a chamma do fogão a amortecer, sem que as tenazes
fizessem o seu officio, avivando-a.

Meia hora depois, separava-se a familia, não tendo Carlos, em toda a
noite, dito uma duzia de palavras.

Jenny acompanhou ainda algum tempo o irmão através dos corredores, que
conduziam ao quarto de cada um.

--Então que tens tu a dizer da minha conversão? d'esta commovente e
miraculosa regeneração do filho prodigo?--perguntou Carlos a Jenny,
quando chegavam á porta da sala da livraria, onde deviam separar-se.

--Que não sei se será muito duradoura--respondeu a irmã.

--E como queres que o seja, Jenny? Não viste que narcoticas delicias as
d'este conversar ao fogão? Dormir é um prazer; mas na minha idade!

--Então, Charles!--disse Jenny, olhando para elle, com ar de
reprehensão.

--Olha, minha boa Jenny, acredita o que te digo; eu fui hoje sincero
devéras nas minhas tentativas de reconciliação com a fada do lar
domestico, com aquelle genio bom, que protegia a «gata borralhenta» na
historia que nos contavam em creança. Vim para casa, sonhando umas
delicias de viver intimo, as quaes, infelizmente, tive o desgosto de
achar que eram illusorias. Tanto azul e dourado que via transformou-se
em uma côr... pardacenta...

--Talvez tu sejas muito exigente.

--Ai, não o era, não. Mas que queres? Posso ter coragem para ouvir
ámanhã e depois e sempre a historia do perú do reverendo Jackson? a das
festas do Lord Mayor? a das assuadas á rainha Carolina? ou deve-se-me
estranhar que deserte diante das subtilezas theologicas dos doutores da
nossa igreja, ou...?

--Tens razão; é preciso principiar por educar o coração, antes de tentar
regenerar-te.

--O coração?! Que queres dizer?

--Tu vens para casa, como vaes para o theatro; procuras distrahir-te.
Ora é claro que este viver de familia não entretem uma imaginação como a
tua, se é só para satisfazeres a imaginação que ficas; e concebo que
tudo isto te deve ser insupportavel, se o coração se fechou já de todo
aos unicos gôsos, que nós podemos prometter-te.

--Não me faças tão endurecido, que não saiba já apreciar os tocantes
prazeres d'essa convivencia intima, Jenny. Julgas que não sei o que vale
a tua affeição e até a do pae? Mas ouve, filha, e não sejas muito severa
commigo. Emquanto o pae ha pouco fallava, muito á sua vontade, na
portentosa companhia das Indias Orientaes, eu estava a pensar...

--Em quê?

--Estava a pensar em que eram inteiramente falsas certas ideias, muito
bonitas, que, esta tarde, durante um passeio, que dei pelo campo...

--Pelo campo!... Tu?!

--É verdade, pelo campo, eu... mas... certas ideias, dizia, que me
haviam occorrido por lá. Agora vejo melhor; e penso que se não deve até
viver tão ligado, como era costume na antiga vida patriarchal. É justa,
ou desculpavel pelo menos, esta tendencia moderna para afrouxar um pouco
mais os laços de familia, sem amortecer de todo os sentimentos que a
animam e unem, mas tornando mais independentes os habitos de viver de
cada um. E é assim. Que se lucra em reunir em um feixe apertado dois ou
tres homens de indoles e de gostos diversos, só porque são parentes, a
ponto de impedir-lhes os movimentos, e a liberdade de acção? O mais que
succede, é nenhum d'elles poder dispôr de toda a energia das suas
faculdades; incommodam-se reciprocamente, de apertados que estão, e...
odio não direi... mas... ás vezes... certa má vontade... pequenas
dissensões, e... quando menos se espera, mais azedas discordias ainda,
são as inevitaveis consequencias d'isso.

Jenny abanava a cabeça, fitando o irmão, emquanto elle fallava.

--Que doutrinas!--disse ella por fim--que triste philosophia a tua... de
hoje. Cada vez te comprehendo menos, Charles.

Carlos pôz-se a rir.

--Então porquê, Jenny? Que achas tu em mim de tão incomprehensivel?

--Ha dias... na manhã que se seguiu a uma das muitas noites, que passas
fóra de casa, e quando era mais natural que estivesses n'estas ideias de
agora, fallaste-me com eloquencia e convencimento nas doçuras da vida de
familia; persuadirias d'aquella vez o mais extraviado. Foi, ainda me
lembro, a proposito de uns versos, escriptos por um amigo no teu album.
Hoje então...

--Tudo se explica; é pela razão, que eu disse. Tentei apertar-me nos
taes ambicionados laços, seduzido pelas promessas dos romancistas
moralisadores; a final vi que me magoavam como laços que eram... Mas que
versos foram esses, que me despertaram tão salutares ideias? Não me
recordo.

--Se queres que t'os leia?...--perguntou Jenny, pousando a mão na chave
da porta da bibliotheca, como preparando-se para abril-a.

--Se quero? peço-t'o.

Os dois irmãos entraram na sala quadrada, onde, até a meia altura da
parede, corria uma estante de palissandro, abastecida de magnificas
brochuras e encardernações inglezas. Havia no meio da sala uma solida
mesa rectangular, em estylo antigo, com embutidos de metal nos fechos,
lavores de primorosa talha nas faces, e apoiada em grossos pés, torcidos
em espiral,--um perfeito modelo d'essa bella mobilia ultimamente
resuscitada, graças sobre tudo ás predilecções dos inglezes, que a teem
tornado já rara, de muito que a procuram. Cobriam esta mesa varias
publicações recentes, periodicos estrangeiros e do paiz, e gravuras; e
em volta d'ella, commodas poltronas, e escabellos com assentos estofados
parecia convidarem á leitura.

Jenny pousou a luz, e, pegando em um album, que estava entre os outros
livros e periodicos, principiou folheando-o, emquanto o irmão se sentava
ao lado d'ella.

--Se me não engana a memoria--dizia Jenny--é a traducção de uma lenda
popular da Bretanha que se intitula...--Tendo encontrado justamente a
pagina que procurava, concluiu:--_Amel e Pennor_.

--Não tenho já a menor ideia do que seja.

--Ora ouve então.

E Jenny principiou a ler, com suavidade e graça inexprimivel, a seguinte
lenda, verdadeira ou falsamente attribuida por um moderno escriptor
francez á musa popular da Bretanha.[1]

  --Longe, longe d'aqui, nas costas da Bretanha,
  Poetico paiz, que um mar sinistro banha,
  Vivia, ha muito tempo, um pobre pescador,
  Que se chamava Amel, com a mulher Pennor.
  Tinham elles um filho, uma creança loura,
  Um anjo, que o porvir dos paes inflora e doura;
  Ao voltarem a casa, alegres, todos tres,
  Na praia os surprende a noite de uma vez.
  Crescia o mar veloz, medonho, ingente, forte!
  N'esse tempo as marés eram vivas. A morte
  Sobre as ondas boiava, indomita, cruel!
  Olhando para a esposa, assim lhe diz Amel:
  --«Pennor, vamos morrer! A vaga se aproxima!
  Viverás mais do que eu! Animo! Sobe acima
  Dos hombros meus, mulher. Pousa-te bem. Assim.
  E, ao veres-me sumir... ai, lembra-te de mim!»
  Pennor obedeceu. Firmando-se na areia,
  Desapparece Amel na vaga, que o rodeia.
  --«Amel! bradava a esposa; ai, pobre amigo meu!
  Qual de nós soffre mais?--tu, que morres, ou eu,
  Que te vejo morrer?»--E as aguas, que subiam,
  O corpo da infeliz no vortice envolviam.
  Olhando para o filho, assim lhe diz a mãe:
  --«Filho, vamos morrer! Olha a maré que vem!
  Viverás mais do que eu! Vá! filho, vá! coragem!
  «Sobe aos meus hombros, sobe! e ao tragar-me a voragem,
  Ai, lembra-te de mim e de teu pobre pae!»
  E o mar a submergiu. Chora a creança e vae
  Pouco a pouco afundir-se. Á flor da agua revolta,
  Apenas já fluctua a trança loura e solta...
  ...Uma fada passou sobre o affrontado mar;
  Viu o cabello louro, em baixo, a fluctuar;
  Estende a mão piedosa e, segurando a trança,
  Com ella attrahe a si a pallida creança.
  E, sorrindo, dizia:--«Ai, que pesada que és!»
  Mas viu cêdo a razão; inda segura aos pés
  Do filho estremecido, a pobre mãe começa
  A erguer tambem da onda a humida cabeça.
  Sorriu a boa fada, ao ver assim os dois,
  E repetiu ainda:--«Ai, que pesados sois!»
  É que, após a mulher, seguia-se o marido
  Estreitamente aos pés da terna esposa unido.
  Ao vel-o, inda outra vez a meiga fada riu,
  E, leve, para a praia o vôo dirigiu
  Com este cacho vivo, esta humana cadeia,
  Cujos élos o amor piedosamente enleia.

Pousando o livro, Jenny continuou:

--Seguem-se mais quatro versos, consagrados á moralidade do conto, os
quaes talvez me julgues dispensada de ler, por inuteis.

--De certo. A allegoria é transparente, até sem commentarios. Mas,
dize-me tu uma cousa, Jenny: que faria ou que diria a boa fada se,
pairando sobre a praia, um dia, em que as marés não fossem vivas, nem o
mar ameaçasse devorar a piedosa familia... que faria ou diria ella, se
encontrasse os tres formando o cacho vivo da imagem, tão ridiculo n'esse
caso, como tocante nas condições, em que o considera a lenda? A fada por
certo que sorria tambem, mas acrescentando d'essa vez: «Ai, que varridos
sois!» Dize-me agora se queres que eu ajunte alguma cousa tambem,
correspondente aos taes quatro versos de moralidade, que
supprimiste?--terminou Carlos, tocando levemente as faces de Jenny, e
com um sorriso triumphante, ao qual ella correspondeu com outro, mas
replicando:

--Não, não é preciso. Mas repara, Charles, que as tempestades no mar
formam-se ás vezes em um momento. E ninguem póde prever a época, em que
é para receiar o perigo. Não viste como os pescadores voltavam a casa,
«alegres todos tres», portanto confiados no mar? Se, tendo esta
confiança, se houvessem separado e não caminhassem com as mãos unidas?
Ao vir a maré, nem Amel procuraria que a esposa lhe sobrevivesse, nem
Pennor tentaria salvar o filho, nem o cabello louro da creança, vindo á
tona da agua, attrahiria as vistas da fada bemfazeja, dando-lhe occasião
de salvar aquelle ... cacho vivo... Entendes?

--E tão longe ando eu já, que vos não possa offerecer os hombros, se a
maré vier um dia ameaçar-nos?

--Não, Charles; nem é a ti, tal como és, que eu ralho e quero mal; mas a
um Charles, que ás vezes gostas de fingir. É singular! ha certas almas
generosas que teem o vicio opposto ao da hypocrisia: esforçam-se por
parecerem más! Para que has de estar a fazer mentir a tua bôca, dizendo
o que não sentes?

--Não nego que houvesse algum mau humor nas minhas palavras de ha pouco,
mas...

Jenny collocou-lhe a mão diante dos labios.

--Que esse «mas» fique para ámanhã. Por emquanto inda não confio muito
n'elle.

--Então negas-me a justificação?

--Não vês que, melhor do que tu, te está a justificar a minha confiança?
É por isso que não quero ouvir-te. É tarde. Boa noite, Charles.

--Boa noite, Jenny.

E os dois irmãos separaram-se, apertando cordialmente as mãos.

Carlos ía mais reconciliado outra vez com as doçuras da vida domestica.
Ficára-lhe muito agradavel impressão d'este dialogo com Jenny, para que
podesse deixar de ser essa a sua opinião final.



XVI


NO THEATRO


Dias depois, affixavam-se cartazes nas esquinas, annunciando a _Lucia de
Lammermoor_.

Mr. Richard Whitestone não era assiduo frequentador do theatro lyrico.

Havia porém uma circumstancia, que, infallivelmente, o levava lá, uma
vez pelo menos.

Tendo já desesperado de ouvir no theatro do Porto musica de compositores
inglezes, como Haendel, Gray, Arnold, Bishop e outros, cujos nomes a
cada momento citava com enthusiasmo, resignára-se a afagar sómente o seu
acrisolado patriotismo com ir ao theatro, quando se cantavam aquellas
operas, cujos librettos eram extrahidos de algumas das obras primas da
litteratura ingleza.

O _Othello_, o _Macbeth_, os _Capulletos_, as _Prisões de Edimburgo_, os
_Foscaris_, o _Marino Faliero_ e outras n'este mesmo caso, luctavam
vantajosamente com o seu muito amor pelo fogão e traziam ao publico
aquella physionomia, radiante de contentamento e expressiva de saude,
que o leitor já conhece.

Preparava-se de antemão, n'essa tarde, relendo a obra, que servira de
assumpto á opera, e ia depois com vontade para o theatro.

Não era porém Rossini, Verdi, Bellini, Ricci e Donizetti os que o
attrahiam e enlevavam; era Shakespeare, era Byron, era Walter Scott,
cujos grandiosos vultos lhe parecia estar vendo no palco evocados, por
sua vez, pelos mesmos personagens, que o genio d'elles tinha evocado
outr'ora.--A musica era o accessorio. Os applausos do publico roubava-os
Mr. Richard, por patriotismo, aos maestros, para conferir áquelles seus
famosos conterraneos.

No numero das taes operas contava-se _Lucia de Lammermoor_. Assumpto
escossez, tratado por penna escosseza, e das mais admiraveis em desenhar
typos sympathicos e immortaes, não era para Mr. Richard resistir-lhe.
Havia de ir por força.

Foi; mandou tomar um camarote para aquella noite. A plateia nunca lhe
agradou. Estava mais comsigo e com os seus no camarote; e isto de estar
comsigo e com os seus tinha para elle a força de necessidade.

Era costume invariavel de Mr. Richard convidar Manoel Quentino, n'estas
occasiões.

Grande mortificação causava a este tal convite, mas não se atrevia a
recusar. Aceitava e agradecia até, porém, a occultas, suspirava por ter
de privar-se uma noite dos suaves prazeres dos seus serões domesticos,
das attenções e cuidados filiaes de Cecilia e até das monótonas
reflexões do amigo José Fortunato; este não sentia menos pezar em
modificar habitos já inveterados n'elle e prescindir do chá e dos
bocejos do vizinho.

Mas não havia remedio. Manoel Quentino ía.

Depois de resolvido a isso, entendia então que tinha restricto dever de
chegar a tempo. Era o guarda-livros a pontualidade em pessoa; em tudo
observava o preceito de antes esperar do que ser esperado; e, comquanto
não fosse provavel que esperassem por elle para começar o espectaculo, é
certo que, pouco depois de anoitecer, viam-o já a passeiar no atrio do
theatro, aguardando que lhe abrissem as portas dos corredores.

Assim fez n'esta noite.

Logo que as viu patentes, comprou o libretto da opera; porque nunca pôde
tambem resignar-se a ouvir cantar, sem entender o que se cantava; subiu
para o camarote e, á escassa luz que havia ainda na sala, pôz-se a ler.

Depois assistiu ao accender das serpentinas, á afinação dos instrumentos
da orchestra, ao encher gradual da plateia, dos camarotes e das
varandas, o que para elle constituia uma parte da divisão e não das
menos curiosas. Aguava porém este inoffensivo prazer o cuidado que lhe
estava dando a demora da familia Whitestone; temia já que ella não
chegasse ao principio da opera. Isto não o deixava socegar.

Emfim ouviu abrir-se, atraz de si, a porta do camarote; voltou-se.

Eram Mr. Richard e Jenny, que chegavam.

Mr. Richard saudou, com familiaridade, o guarda-livros; Jenny
apertou-lhe a mão com affecto.

--Não o esperava agora aqui!--disse Jenny, tirando a capa e reparando as
leves desordens da sua _toilette_.

--O snr. Whitestone fez-me o favor de me dizer que viesse.

--E Cecilia?

--Cecilia!--disse Manoel Quentino, encolhendo os hombros--eu já lhe não
digo nada. Para quê? Com'assim, não se resolve nunca a vir.

Mr. Richard, emquanto a filha se preparava, viera á frente do camarote
passar um exame rapido á sala.

--E o Carlinhos?--perguntou Manoel Quentino a Jenny emquanto se
encarregava, com soffrivel galanteria, de acommodar a capa, que ella
acabava de tirar.

--É provavel que esteja cá--respondeu Jenny.

--Aonde? Na plateia?

--De certo.

--Tendo camarote! É vontade de gastar dinheiro!--pensou para si o
economico Manoel Quentino.

Depois de tomarem todas as respectivas posições, Manoel Quentino,
ficando junto da cadeira de Jenny, entendeu que não devia estar calado.

--Sempre me lembra--disse elle, portanto--quando venho ao theatro, de
ver representar a celebre Josepha Thereza Soares! Aquillo é que era
mulherzinha! Que tambem a Grata Nicolini... não sei se lhe diga... Se
quer que lhe falle verdade, menina, agradavam-me mais as peças, que se
representavam d'antes, do que as de hoje. Só os vestuarios e as vistas!
Agora são salas e casacas, casacas e salas e acabou-se. É o pae que quer
que a filha case com um velho rico; é a filha que quer casar com um
rapaz pobre, que é poeta; é o rapaz a descompôr o velho; a rapariga a
morrer... e passe por lá muito bem. Não lhe acho graça nenhuma. Eu
queria que vissem: _D. José II, visitando os carceres_--_Camilla ou os
subterraneos_--_O Barba rôxa_--_Ha dezeseis annos ou os
incendiarios_--_Os sete infantes de Lara_--_A Ignez de Castro..._

E Manoel Quentino dispunha-se a continuar esta revista theatral, quando
Jenny o interrompeu, perdendo assim a melhor occasião de se informar,
entre outras cousas, dos merecimentos da celebre Josepha Thereza, de
quem inda agora ouvimos fallar com saudades os frequentadores
reformados, cujos legitimos successores são os _dilletanti_ de hoje.

--Carlos tem ido ao escriptorio?--perguntou Jenny, a meia voz.

--Esteve lá ... no outro dia, na terça-feira, por infelicidade
minha--respondeu o guarda-livros, lembrando-se dos enganos a que dera
occasião a tal visita.

--Porque diz por infelicidade?

Manoel Quentino ia a contar a Jenny a especie de auxilio, que lhe
prestára Carlos no escriptorio; mas, parecendo-lhe ver em Mr. Richard,
ainda que apparentemente distrahido, certos indicios de estar prestando
attenção ao que elle dizia, julgou conveniente mudar de rumo e
respondeu:

--É que eu, apesar dos meus cincoenta e cinco annos, não tenho mão em
mim que não me distraia, vendo-o; e, com a minha palestra, nem trabalho
eu... nem...

Aqui hesitou alguns instantes, porque lhe parecia demasiado lisongeiro o
que ia dizer, mas a final sempre concluiu:

--Nem... nem... nem o deixo trabalhar a elle.

O proprio Mr. Richard mordeu os labios, para encobrir um sorriso.

Jenny, a mesma Jenny, não pôde conservar-se inteiramente séria; mas,
sorrindo, agradeceu com gesto de bondade as generosas intenções do
guarda-livros.

Pareceu-lhe, porém, conveniente desviar a direcção da conversa e porisso
lembrou a Manoel Quentino:

--Mas ainda não me disse por que Cecilia não veio.

--E eu sei lá? Não vem, porque não quer. Já d'antes era uma santa
historia para a resolver a aproveitar-se de qualquer convite, que a
menina tinha a bondade de lhe fazer. É lá de um genio particular aquella
pequena; e desde creança que assim a conheço! Que se lhe ha de fazer?
Mas agora sobre tudo... A rapariga tem o quer que é a affligil-a. Isso é
que tem. Ella bem faz por disfarçar; mas...

Manoel Quentino tomou n'este ponto ares de mysterio e proseguiu em tom
mais baixo:

--Eu não sei, mas... acho-a outra ha dias para cá. Não lhe tenho querido
dizer nada, porque... porque sei como ella é, e tenho mêdo de
mortifical-a ainda mais, porém...

--Mas então--perguntou Jenny, sinceramente attenta ao que Manoel
Quentino lhe dizia--o que é que lhe faz julgar?...

--Acho triste a rapariga. Olhos de pae não se enganam com essa pressa.
Os outros nada vêem, mas os meus... A Cecilia não era assim; quem a viu
d'antes! Ella ri e graceja ainda, é verdade; mas ha alli certo modo, que
eu lhe estranho. A menina, que bem a conhece, ha de ter visto...

--Não; não tenho notado mudança n'ella.

--Não que tambem... eu lhe digo... Ora deixe-me ver... Ella não voltou a
sua casa desde... desde terça-feira, não? É isso mesmo. De então para cá
é que eu mais tenho notado...

Jenny escutava com crescente curiosidade o que Manoel Quentino dizia.

--Ahi está que hoje...--continuou elle--depois de eu chegar a casa...
mas peço-lhe, por amor de Deus, que lhe não vá dizer estas cousas; ella
põe-se por lá depois a scismar...

--Fique descansado--disse Jenny, procurando não perder uma só das
palavras que ouvia.

--Pois esta tarde... Eu já notára que ella ao jantar não tinha comido
quasi nada... e eu, a fallar verdade, não gosto de ver aquillo.
N'aquellas idades é que é o comer, e as cousas não correm bem, quando
não ha appetite. Pois não lhe parece?

Jenny fez um movimento de affirmação, comquanto eu não dê por assentado
que ella tivesse sobre o appetite absolutamente as mesmas ideias que
Manoel Quentino.

--E depois?--perguntou ella.

--De tarde--continuou o velho--a pequena, contra o seu costume,
metteu-se para o quarto, a ponto de me assustar; não tive mão em mim,
que a não chamasse. Não me respondeu logo. Lembrou-me se lhe teria dado
alguma cousa, e, já sobresaltado, ia a descer as escadas, para ver o que
era, quando ella me appareceu, mas... ó menina, ou me engano muito, ou a
rapariga tinha chorado; ella vinha a rir, vinha, mas eu...

--Foi de certo illusão sua; por que havia Cecilia de chorar?

--Pois ahi está o que me afflige. É o não saber! Ás vezes lembra-me...
serei eu a causa? Ora é preciso que lhe diga que eu antes queria
trabalhar como um negro toda a minha vida, e não ter um triste bocado de
pão para comer, do que dar motivo a uma só lagrima d'ella.

E havia um tremor na voz de Manoel Quentino, ao dizer isto, que commoveu
Jenny.

--Socegue--disse-lhe ella, animando-o.--De certo não é a causa d'essa
tristeza, que lhe parece notar em Cecilia. Que mais póde fazer por ella,
do que o que faz?

--E tudo merece, menina, e mais! Assim eu podesse. É um anjo! Não
imagina.

--Não imagino, sei; pois não é ella a minha mais querida amiga?

Manoel Quentino não pôde ter-se, que não tomasse as mãos de Jenny e as
apertasse commovido.

N'isto rompeu a orchestra a symphonia da opera; fez-se silencio na sala.

As ideias de Manoel Quentino seguiram novo curso; esqueceu as
confidencias que tinham deixado Jenny pensativa, e, prestando ouvidos á
musica, fixou os olhos no panno, que esperava ver subir immediatamente.

--Pois a historia d'esta peca--dizia elle, emquanto o panno não subia--é
bem bonita, mas muito triste. Pelos modos, era um fidalgo..., não me
lembro agora d'onde...

E, depois de pensar um momento, acrescentou:

--De Hespanha, acho eu... Era, era de Hespanha...

Mr. Whitestone estava distrahido; mas não ha distracção possível que
impeça um inglez de corrigir qualquer inexactidão, que, embora de leve,
toque pela sua nacionalidade; por isso interrompeu immediatamente a
narrativa de Manoel Quentino, emendando-a.

--Ho! não, não. De Hespanha! Ho! Da Escossia, da Escossia. _In the
Lothian county_. _The bride of Lammermoor_, de sir Walter-Scott. É bem
conhecido isso.

--Ai, é verdade, é da Escossia, é. Já me não lembrava. Pois este
fidalgo, ao que parece, tinha lá umas birras com outro seu vizinho,
tambem muito nobre, é verdade, mas sem nada de seu. Eram rixas velhas e
até me parece que uma demanda dos meus peccados! Vae logo o... o S.
Pedro e faz com que este tal se namore da irmã do outro. Que isto
acontece muitas vezes.

N'este ponto foi o panno acima.

Manoel Quentino, depois de exame passado á scena, proseguiu:

--Esses homens de saias, que ahi estão, são os criados do tal fidalgo.
Andam á cata do amante, que vinha fallar com a rapariga ao jardim.

O argumento exposto por Manoel Quentino proseguiu por este teor e
estylo, sem que Mr. Richard nem Jenny lhe dessem attenção.

Depois da chegada do barytono e durante o recitativo d'este, ia Manoel
Quentino vertendo em vernaculo as phrases italianas que percebia, por
conseguinte aquellas que menos precisavam de ser vertidas.

«_Mortalnemico_»--recitava no palco o barytono.--«_Mortal
inimigo_»--traduzia o velho do camarote.--«_Di mia prosapia_»--dizia
um.--«_Elle mesmo confessa que tem prosapia_»--interpretava, e d'esta
vez desastradamente, o outro.--«_Io fremo_!»--acrescentava d'ahi a pouco
tempo o cantor.--«Diz que treme»--traduzia Manoel Quentino.

E assim por diante, até que Mr. Richard, ao principiar no palco a aria:

  _Cruda... funesta smania_.

pôz termo com ligeiro _psiu_ aos luminosissimos esclarecimentos do
guarda-livros.

Manoel Quentino calou-se logo, promettendo a continuação para o primeiro
intervallo.

Antes do fim do acto, deu-se na plateia um incidente vulgar no nosso
theatro, e cuja frequente repetição, em certos annos, mantem em perpetua
tribulação o espirito dos emprezarios.

Á entrada da prima-donna, e antes d'ella soltar a primeira nota,
romperam de um dos lados da sala alguns signaes de desagrado.

A maioria do publico, alheia ás altas questões de bastidor, elementos
d'estas subitas tempestades, estranhou ver assim reprovar quem, dias
antes, se applaudia com phrenesi, porventura exagerado.

Manifestou-se portanto reacção, extremaram-se os campos,
desenvolvendo-se, de parte a parte, um ardor, que, durante alguns
minutos, interrompeu o espectaculo.

Na plateia tudo era movimento e confusão; nos camarotes, os homens
penduravam-se, para observarem, _au vol d'oiseau_, a borrasca humana que
se lhes desencadeiava aos pés, e alguns, menos impacientes, formulavam,
lá de cima, acerbas censuras, que se perdiam no espaço; as senhoras
quasi desmaiavam de assustadas; outras, mais animosas, examinavam a
binoculo as peripecias da contenda; a orchestra, deixando de tocar, e
erguida em massa, passára a ser espectadora; os cantores cruzavam os
braços e imitavam-a; os habitantes das varandas,--porventura os unicos
espectadores de boa fé e de amor de arte sem mescla,--urravam de
indignados; a auctoridade punha-se em pé no camarote e pedia para ser
ouvida...

No meio d'este tumulto, Mr. Richard dava evidentes signaes de desagrado,
traduzidos por muitos _hos!_ por muitos estalidos de lingua, por muito
sacudir de cabeça, e por pancadas de impaciencia com os nós dos dedos no
encosto do camarote.

Manoel Quentino, igualmente escandalisado, era mais verboso na expressão
de sua indignação.

Esse fartou-se de fallar, de ralhar, de gesticular, de censurar as
auctoridades, de formular projectos absurdos de policia theatral, e isto
tudo, quasi debruçado no camarote, e fitando a massa escura da plateia,
cujo alvoroto ia crescendo.

Jenny olhava tambem na mesma direcção, mas o motivo era outro.

No camarote proximo ouvira fallar com severidade dos amotinadores da
sala, e, entre os nomes mencionados, escutára o do irmão. Jenny
estremeceu, e d'ahi vinha o cuidado com que examinava a plateia.

No entretanto, Manoel Quentino bradava:

--Eu, se fosse á auctoridade, mandava todos para o Carmo. Isto é um
desaforo. Vem uma pessoa para se divertir, e vae... e vae... e vae...

A hesitação no terminar a phrase era devida a ter alguma cousa attrahido
a attenção do velho para um ponto da sala.

--Oh! oh!--disse elle por fim--Ora, se elle lá não havia de estar!
Podera! A festa não se fazia sem elle. Estava de ver!

--Quem?--perguntou Jenny, receiando comprehendel-o.

--Lá está tambem o Carlinhos; pois não vê?

--Onde? Onde?--perguntou logo, com vivacidade, Mr. Richard.

Manoel Quentino sentiu ao mesmo tempo a mão de Jenny a apertar-lhe o
braço, como para recommendar-lhe discrição. Antes porém de a sentir, já
elle tinha percebido a necessidade de ser prudente.

--Acolá!--e apontou em direcção exactamente opposta ao logar, em que
estava Carlos.

--Aonde, homem?... Não vejo.

--Pois não será elle? Alli, ao pé d'aquelle sujeito de chapéo branco. O
snr. Richard ainda não vê... Admira!... Olhe, elle lá vae embora... Olhe
agora... Adeus, lá foi...

--Não era elle.

--Era, era... Até me parece que elle me fez signal de lá, como quem...
sim... como quem... estava zangado com este desaforo.

Principiava Manoel Quentino a prejudicar a causa que defendia, levando
longe demais a defeza. Era sestro seu.

Carlos achára-se effectivamente envolvido na maior força do tumulto,
ainda que com fim louvavel, qual era o de pacificar dois amigos, prestes
a entrar em combate por causa d'esta questão theatral. Levantando porém
occasionalmente os olhos para o camarote, percebeu um signal de supplica
e inquietação em Jenny, e porisso, emquanto os olhos de Mr, Richard,
guiados traiçoeiramente por Manoel Quentino, o procuravam em outro
ponto, cedeu elle o logar a novos apaziguadores e saiu da plateia.

Manoel Quentino, que lhe seguia os movimentos, respirou então, dizendo:

--Elle ahi vem; verá v. s.ª que não tarda. E tem razão em vir; não se
pôde estar lá em baixo com similhante gente.

Effectivamente Carlos não tardou a entrar. O primeiro olhar foi para a
irmã, que soube tranquillisal-o com outro, e habilital-o a comprehender
o papel, que lhe convinha representar diante do pae.

Carlos, entendendo-a, foi severo para com os desordeiros, o que
evidentemente agradou a Mr. Richard.

No entretanto, havia-se restabelecido a serenidade na sala; o primeiro
acto terminou sem outra novidade mais do que a de ser no fim a
prima-donna applaudida com enthusiasmo pelos mesmos que a tinham pateado
á entrada.

Mysterios de theatro, os quaes nunca pude penetrar.

Mr. Whitestone saíu no intervallo; Carlos ficou.

Manoel Quentino tomou então a palavra para prégar um sermão a Carlos,
sobre os perigos das más companhias. Carlos escutou-o, rindo e
commentando-lhe as sentenciosas palavras com ditos jocosos, que não
permittiam ao velho a manutenção d'aquella seriedade, que reclamava tão
substancioso assumpto.

Passado tempo, principiou Carlos a analysar as differentes _toilettes_ e
typos femininos, que adornavam os camarotes, critica em que nem sempre
era em demasia benevolo. De uma das occasiões em que, para proseguir
n'este exame, procurava limpar os vidros do binoculo, tirou do bolso um
pequeno lenço de mulher, com cercadura de renda, para o qual se pôz a
olhar admirado.

Depois, segurando-o por uma das pontas, e mostrando-o á irmã, disse,
sorrindo:

--Ainda me tinha esquecido isto, Jenny.

--O quê?

--Outra apprehensão que fiz, com esperança de por ella obter
esclarecimentos, e... que cabeça a minha!... nem já sabia que o tinha em
meu poder...

--Mas a que te referes?

--Então esqueceste-te já da minha confidencia, no dia do carnaval?

--Ah!--disse Jenny, olhando immediatamente para Manoel Quentino.

As vistas d'este tinham-se tambem fixado no lenço, e parecia examinal-o
cada vez com mais curiosidade.

--Dá-m'o--disse Jenny, estendendo a mão para recebel-o.

--Não posso--respondeu Carlos, retirando a sua, a rir.

--Dá-me licença?--disse Manoel Quentino, estendendo tambem a mão para
elle.

--Para o entregar a Jenny depois?

--Não, não é; queria ver...

--Que tem você a ver com este lenço?--perguntou Carlos, dando-lh'o.

Jenny mostrava-se cada vez mais inquieta.

Manoel Quentino examinava o lenço com attenção.

--É celebre!--dizia elle--É exactamente um dos lenços que eu dei a minha
filha no dia dos annos d'ella.

--Como?--perguntou Carlos, olhando para a irmã.

A inquietação de Jenny redobrava.

--Não que é exactamente!... as rendas... o bordado dos cantos... Só
falta... Ah... mas a marca também!... um C.!... Este lenço é de Cecilia!
Como é possível?!...

Jenny julgou que era tempo de intervir.

--Ora ahi temos o snr. Manoel Quentino embaraçado com uma cousa bem
simples--disse ella, rindo.--Esse lenço, é de Cecilia, é; que duvida?
Deixou-o ella, por esquecimento, ha dias... na terça-feira... em minha
casa. Este buliçoso tem o costume de levar tudo do meu quarto, sem me
consultar, e, julgando que era meu...

--Ah! bem me parecia que era o lenço que eu tinha dado a Cecilia. Estava
admirado!

Carlos olhava para Jenny e para Manoel Quentino, como sem saber ainda
bem o que pensar d'aquillo.

--Espero que m'o restituirás--disse Jenny--a mim é que compete
entregal-o a Cecilia.

Carlos ia a responder, talvez imprudentemente, quando um gesto da irmã
lhe impôz silencio e acabou de explicar tudo.

Emfim já não era mysterio para elle o nome da desconhecida do baile.

Tirando o lenço das mãos de Manoel Quentino e entregando-o á irmã,
disse, com entonação de intelligencia, para esta:

--Tens razão, Jenny. És tu, a quem compete entregal-o. Acredita que foi
por esquecimento que eu não te fallei n'este... roubo... O que reputo
uma felicidade.

--Porquê?--perguntou Jenny, fazendo-se séria.

--Por... por causa da surpreza que veio agora causar ao nosso amigo
Manoel Quentino.

--Não, eu só estranhei...

Jenny mudou o assumpto da conversa.

Carlos ficou pensativo. Voltou á plateia, ao principiar o segundo acto.
Todos lhe estranharam a distracção e a indifferença com que assistia á
discussão, que ainda durava, sobre o facto da pateada.

Nem mais attenções lhe mereceram os cantores e a opera.

Jenny observava-o do camarote, e não deixou de reconhecer essa
indiferença na posição invariavel, em que elle se conservou durante dois
actos e um intervallo inteiro, como alheio a tudo o que em volta de si
se passava.

--Que resultará agora de todo aquelle meditar?--pensava a irmã.

Ao principiar o ultimo acto, Carlos voltou ao camarote.

Manoel Quentino, não podendo luctar mais tempo contra a força do habito,
adormecera. Mr. Richard estava absorvido em um dialogo, com um seu
compatriota, de cabellos e suissas côr de neve, gravata da côr das
suissas, e tez côr de rosa de Alexandria; fallavam nos triumphos lyricos
da celebre Malibran, que ambos tinham, quando rapazes, escutado em
Londres; no estylo de canto da phenix dos tenores--o famoso Rubini, o
qual haviam admirado em 1831, no _Queen's Theatre_; no _D. Giovanni_, de
Mozart, musica de que nunca se saciam os tympanos britannicos; e na
_Beggar's Opera_ de Gray--protesto do gosto nacional contra a escola
italiana, que se riu do protesto.

Carlos, sentando-se junto da irmã, podia pois julgar-se a sós com ella.

--Então a minha bella incognita do dóminó de seda...--principiou elle.

Jenny olhou receiosa para Manoel Quentino.

--Não tenhas mêdo--disse Carlos.--Dorme e ameaça resonar.

--Estás agora convencido, Charles--disse Jenny ainda a meia voz--da
verdade do que eu te dizia aquella manhã?

--A respeito?...

--A respeito da tua aventura da noite de carnaval. Cecilia é uma menina
bem educada e de grande delicadeza de sentimentos. Deu imprudentemente
aquelle passo, que Deus sabe quantos desgostos lhe poderia vir a causar,
se a tua generosidade não prevalecesse a final sobre as tuas...
loucuras; como ha de continuar a prevalecer ainda, assim o espero. Não
estiveste tu mesmo para a perder no conceito dos que a não respeitam,
porque a não conhecem? Não terias agora remorsos?

--Mas Cecilia...

--No mesmo dia, em que tu me fallaste n'isso, me veio ella contar tudo.
Tambem tenho a sua confiança. E se soubesses com que receios o fez! se
visses com que lagrimas não fingidas me interrompeu, quando eu lhe ia a
confessar o que pensavas das mulheres, que se encontram sós e mascaradas
n'aquelles logares!

--Pois tu disseste-lhe... Ó Jenny!...

--O bastante para a acautelar de passos, como aquelle; visto que nem
sempre apparecem protectores que, no meio das suas velleidades,
conservem ainda uns restos de sentimentos generosos...

--Valha-te Deus, Jenny! Mas... na verdade que me custa ainda a
acreditar! Pois era Cecilia! Confesso-te, Jenny, que nunca suppuz que
aquella rapariga tivesse tanta graça, tanta intelligencia, tanto...

--Não é d'essa injustiça que eu desejo ver-te arrependido, Charles, mas
antes da do conceito que fizeste de Cecilia, do modo como a trataste, só
por a veres onde nem quizeste suppôr que podesse estar tua irmã...

--E repito!--acudiu Carlos, com vivacidade.

--Pois bem, Charles--respondeu Jenny placidamente, mas em tom
reprehensivo.--Digo-te eu então que as qualidades, que a vida inteira de
Cecilia dão-lhe direito a exigir de ti tanta consideração e estima, como
a que dizes ter-me. É ainda hoje a minha melhor amiga.

Carlos olhou para a irmã, admirado; tal era a gravidade, que lhe
descobriu no olhar e na voz.

Devemos confessar que elle nunca viu em Cecilia outra cousa mais do que
uma rapariga bonita, a qual muitas vezes lhe merecera olhares
complacentes, mas de quem tão depressa se esquecia, como d'ella se
afastava.

Recordo-me de haver dito, que esta qualidade, de não desafiar
immediatamente impressões profundas, caracterisava a especie de belleza,
que Cecilia possuia.

Nos seus dotes moraes nunca pensára Carlos; e para que havia elle de
pensar n'isso? Por estes motivos a seriedade, de que se revestira
subitamente o rosto de Jenny, impressionou-o.

--Bem, Jenny--respondeu elle, fazendo-se serio tambem.--As tuas palavras
rehabilitariam até aquelles que precisassem de ser rehabilitados. E
Cecilia, creio-o firmemente, não está n'esse caso. Censuras, em tudo
isto, só as mereço eu. Hei de provar-te que assim o penso.

Jenny estendeu-lhe a mão.

--Agora reconheço-te pelo que és. Agradecida.

E depois, apontando para Manoel Quentino:

--Escuso de lembrar-te que elle ignora tudo.

--E ficará ignorando.

Manoel Quentino sonhava-se agora no escriptorio, a fazer uma baralhada
conta de sommar.

Passados momentos, rodava pelas ruas da cidade a carruagem, que
transportava a casa a familia Whitestone.

Das tres pessoas, que ella conduzia, nenhuma fallou durante todo o
caminho.



XVII


CONTAS DE CARLOS COM A CONSCIENCIA


Impressionado pelas occorrencias d'aquella noite, que lhe afugentavam o
somno, Carlos ao voltar a casa, encostou-se pensativo á mesa e abriu
machinalmente um livro.

Quiz o acaso que fosse um volume das obras de Byron e nas _Horas de
Ocio_. Carlos leu:

  _Woman! experiance might have told me..._

a attenção já o não acompanhou ao segundo verso. Fora fatal a primeira
palavra:--_Woman_!--mulher!--Apoiada n'este magico substantivo, a
imaginação ganhou esforço e, deixando os sentidos seguirem os versos
restantes, divagou, á sua vontade, mais rapida e por mais longe do que
elles.

O caminho, que estes continuaram seguindo, provavelmente poderá o leitor
encontral-o, se quizer, na sua bibliotheca: deixaremos porisso Byron em
paz, e iremos, como podermos, atraz da imaginação de Carlos.

Principiou por se recordar da revelação que a um acaso devera momentos
antes. Recordar, disse eu? Para com rigor me poder servir do termo, era
necessario que tal descoberta lhe tivesse já, por instantes sequer,
deixado livre o campo do pensamento; e teria? É licito duvidar.

Entrou depois Carlos em tarefa mais activa, qual foi a de tentar avivar
a imagem de Cecilia, que apenas lhe apparecia como vaga reminiscencia, e
velada por uma nuvem, que elle em vão procurava dissipar.

Se o leitor já alguma vez pôz hombros a emprezas d'estas, deve saber que
desesperadoras difficuldades ellas trazem quasi sempre comsigo. Quanto
mais ardente é o desejo de recordar uma physionomia, que ainda não temos
bem gravada na memoria, tanto mais parece comprazer-se um maligno
espirito de impacientar-nos, alterando-lhe completamente o typo,
combinando os elementos physionomicos mais disparatados, debuxando a
capricho o perfil, colorindo mentirosamente os cabellos e a tez,
assombrando com a mais grosseira infidelidade as inflexões e os relevos.

Em uma palavra, Carlos, que tinha visto frequentes vezes Cecilia, ainda
que nunca muito attentamente, não pôde, por mais que o tentasse, tirar
da memoria uma imagem distincta d'essa rapariga.

Em compensação recordava-se do metal de voz sonoro, com que ella lhe
fallára no baile, da graciosa maneira de rir, de tudo quanto lhe
dissera, de todas as pequenas circumstancias d'aquella aventura do
carnaval, de todas, e tão profundamente se deixou embeber n'estas
cogitações que, apoiada a cabeça entre as mãos, os cotovêlos sobre a
mesa, e os olhos meio fechados, nem se lembrava de Byron, que
sinceramente julgava continuar a ler, nem sequer tinha consciencia do
logar onde estava.

A luz amortecida diffundia no aposento soturna claridade, e o silencio
era tal, que Carlos ouvia-se respirar.

De repente, como que tentando sair d'aquelle estado, afastou de si o
livro com vivacidade.

Vergou a cabeça para traz sobre as costas da cadeira, e passou a mão
pelos olhos, á maneira de quem desperta de um sonho. Mas, depois de
avivar a luz, caiu de novo na mesma abstracção de que saíra.

Foi porém só a mão esquerda que se encostou á cabeça d'esta vez,
emquanto que a direita pegou em uma penna e pôz-se a desenhar e a
escrever á tôa sobre uma folha de papel branco, que lhe estava ao
alcance.

Escusado é dizer que a alma não tomava parte n'isto.

Segundo a theoria de Xavier de Maistre, _la bête_ ou o _outro_, que, em
nós, devemos distinguir do _eu_, cansára-se de ler e escrevia agora. A
alma, essa continuava na tarefa anterior, meditava ainda.

Observo porém que são perigosas muitas vezes as occupações, a que o tal
_outro_ se entrega, quando sacode por momentos o jugo do companheiro. O
mesmo Xavier de Maistre aponta-nos exemplos d'isso.

Uma das distracções mais arriscadas é esta de escrever, A mão é
indiscreta; e a razão se se descuida, está sendo atraiçoada, quando
menos o pensa, por estes automaticos movimentos, que parecem sem
significação.

Olhae por cima do hombro do homem absorvido em graves pensamentos, cuja
mão move ao acaso a penna sobre uma folha de papel; entre muita cousa
insignificante, é raro que uma ou outra palavra, um ou outro signal não
symbolise, não denuncie a ideia dominante, que o possue.

Esse outro motor ou principio, que nos domina as acções, quando a
consciencia não as regula e dirige, parece ter, como a alma, uma memoria
tambem. Exerce-a sobre as particularidades insignificantes, que
acompanharam qualquer acontecimento de importancia para o nosso destino.
Impressionou-nos uma revelação? quando o pensamento se estiver occupando
d'ella, a memoria do _outro_ reproduzirá a maneira de trajar da pessoa,
de quem a ouvimos, a côr das paredes do aposento, onde a escutamos, uma
phrase dita simultaneamente por um homem que passava. Ora, muitas vezes
estes accessorios teem ainda bastante analogia com o facto principal,
para que um espirito investigador, sabendo-os, possa ir por elles, de
deducção em deducção, até o fundo dos nossos pensamentos.

D'ahi vem o perigo de confiar, em taes momentos, a penna da mão, que se
move sob a vontade d'este guia, o qual não tem a discrição necessaria
para não deixar no papel vestigios das suas curiosas memorias.

Era o que estava succedendo a Carlos.

Principiou por desenhar, distrahidamente, um elmo; isto parece nada ter
que ver com as provaveis cogitações do seu espirito, n'aquelle momento.
Cumpre-me, porém, declarar que, na occasião em que no theatro, pela
primeira vez, Carlos reparou em Cecilia, passava por diante d'elle um
individuo, embrulhado em um manto romano e com um elmo, exactamente
similhante ao do desenho.

Depois do elmo, delineou a penna uma meia mascara; aqui já a analogia é
mais evidente e dispensa commentarios; uma mão, depois; pensava talvez
na de Cecilia, cuja belleza notára ao apertar-lh'a, á despedida.
Adiante...--agora parece maior o desacerto--um lampeão de praça! É
verdade que havia um a illuminar a mysteriosa incognita, no momento em
que, na afflicção, invocára o nome de Jenny, e conseguira, graças a esse
nome invocado, evitar a ulterior perseguição de Carlos. E é provavel que
fosse esta a razão de similhante desenho, visto que, em seguida, a mão
escreveu por muitas vezes, e em diversas fórmas de lettra:--_irmã, por
sua irmã, por Jenny_! Depois chegou a vez de um orgão de
igreja;--esboço, que só julgará incoherente quem se não recordar da
santa do kalendario, da qual esse é o emblema. De facto, a ideia do
sacro instrumento veio de Santa Cecilia, e a ideia da santa não era das
que acudiriam á mente de um protestante, se, cá na terra, alguma
homonyma, por canonisar, a não chamasse lá. Após isto, escreveu uma
palavra absurda, singular, inqualificavel; foi esta:--_Ailicec_; mas
inverta-a o leitor e cessará a estranheza, que ella lhe possa causar;
seguiram-se-lhe outras, não menos exquisitas, e formadas de diversas
combinações das mesmas sete lettras, que emfim appareceram dispostas por
ordem natural na palavra: Cecilia. Mais abaixo,--singular
transição!--escreveu Carlos em caracteres bem
legiveis:--Papa;--depois:--Calvino; e, acto continuo, o nome de um
compatriota e amigo seu, que, mezes antes, tinha casado com uma senhora
catholica.--Veja o leitor se poderá interpretar estes signaes, e ao
mesmo tempo diga se não estava sendo de grande indiscrição para a alma,
o _outro_, companheiro inseparavel d'ella.

A final a mão traçou, muito de vagar, as duas seguintes palavras
reunidas:--Cecilia Whitestone.

A razão pareceu então despertar, e, espantada com o que viu feito na sua
ausencia, tentou pôr termo a similhantes imprudencias; e a mão
subitamente passou um traço por as duas ultimas palavras, logo depois de
escriptas.

Carlos levantou-se para passeiar no quarto.

Principiou então a convencer-se de que tinha de facto sido injusto em
formar tão levianamente um conceito pouco favoravel da mascara, e menos
cavalheiro do que devia, no seu procedimento para com ella. Jenny
havia-o reprehendido por isso tudo--e Carlos julgou ouvir a propria
consciencia applaudindo Jenny. Chegou a persuadir-se de que tinha
remorsos, e pareceu-lhe necessario imaginar alguma maneira de remediar
tão grandes culpas.

Ouviu duas horas, ainda a pensar n'isto.

Deitou-se vestido sobre o leito; e cada vez a parecer-lhe mais
necessaria e urgente uma resolução n'aquelle sentido!

Eram tres horas, quando julgou ter somno. Deitou-se por baixo da roupa,
e apagou a luz.

O socego, que o rodeiava, um d'estes socegos nocturnos, tão completos
que até o roer da larva invisivel, occulta no seio da madeira, se ouve
distinctamente, impacientava-o, longe de convidal-o ao repouso. Quando o
espirito está agitado, quando uma ideia qualquer nos inquieta, o
silencio, a tranquillidade exterior parecem-nos um escarneo e
irritam-nos.

Em menos de um quarto de hora já a cama estava em desordem, e a
travesseira no chão. Carlos accendeu de novo a vela, trouxe um livro
para a cama e esteve meia hora com elle aberto nas mesmas paginas.

Sentou-se impaciente no leito, e imaginou que tinha febre.

E assim se conservou até ás cinco horas da manhã, que foi sómente quando
adormeceu, ou antes se deixou caír exhausto por o cansaço, que produz a
insomnia.

E que resultou de tanto pensar? Vêl-o-hemos brevemente.

Vamos agora a casa de Manoel Quentino, onde nos encontraremos com
antigos conhecimentos.

Ao voltar do theatro, contára Manoel Quentino á filha, não só o enredo
da _Lucia_, que não podéra concluir no camarote, mas todos os principaes
successos da noite; esqueceu-lhe porém o episodio do lenço, ao qual não
dera importancia.

Cecilia escutou-o calada.--Dir-se-hia que já a impacientava ouvir tantas
vezes fallar em Carlos; porque, de facto, parecia proposito formado em
Manoel Quentino o ter sempre que contar do rapaz, d'essé estouvado, a
quem, apesar de todos os estouvamentos, o bom homem queria devéras.

A julgar pela apparencia de ligeira mortificação, que tomava n'esses
instantes o rosto de Cecilia, devia suppôr-se que existia n'ella uma
forte antipathia para com o predilecto do pae.--Mas será prudente não
confiar demasiado no rigor logico d'estas deducções physionomicas, e
muito mais em mulheres.

No dia seguinte pela manhã, ao partir para o escriptorio, Manoel
Quentino não deixou a filha menos melancolica do que nos anteriores; até
lhe pareceu mais falta de côr. Falta de côr! Deus sabe os intimos e
dolorosos estremecimentos, que estas palavras desafiam no coração de um
pae! São para elle as faces rosadas de uma filha, como o firmamento para
estas organisações impressiveis em excesso, onde, ao toldar-se de nuvens
o céo, se projectam as sombras da tristeza; onde, quando elle ostenta um
azul sem mácula, se reflecte a luz das alegrias.

Imagine-se o cuidado, com que devia partir o bom homem.

Que tratos não dava á memoria! Que concepções mais ou menos
extravagantes! que minuciosas investigações sobre todos os seus proprios
actos e palavras não vinha fazendo pelo caminho, só para descobrir a
causa d'aquella mal disfarçada melancolia! E tudo em vão!

No escriptorio não o deixou este cuidado; mais de uma vez, se surprendeu
com a penna, a incansavel companheira, parada no meio de uma palavra,
com os olhos fitos no papel, e sem verem cousa alguma; em completa
abstracção, elle, tão pouco propenso a isso!

Depois da morte da mulher--havia quinze annos--, e da doença de
Cecilia--havia seis--nunca tal lhe acontecera; estranhava-se.

Alguma razão tinha Manoel Quentino para estes cuidados.

Não que se podesse dizer Cecilia verdadeiramente triste; a imaginação do
pae, excitada pelo seu muito amor, exagerava o mal, á força de o temer;
mas perdera a despreoccupação, quasi infantil, que era natural n'ella;
desgostára-se de repente de alguns passatempos, que, no meio das
canceiras domesticas, ainda conservava de creança; tomára-se
inesperadamente do gosto de passeiar só pelos corredores e pelas ruas do
quintal, que não era proprio do seu caracter pouco meditativo, até então
pelo menos. Manoel Quentino estranhava, por exemplo, não a ver fazendo
saltar o agil e engraçado gato maltez, que não andava pouco sentido com
a mudança; não a ouvir já cantar a meia voz, quando trabalhava á janella
do quintal; ou formular observações, innocentemente satyricas, a
respeito de alguns vizinhos, e as impertinentes perguntas com que, muito
de proposito, costumava impacientar a criada; nem o mais ligeiro indicio
denunciava agora n'ella uma indole propensa ao jovial.

Na manhã, em que Manoel Quentino luctava com as apprehensões que estas
mudanças em Cecilia lhe despertavam, trabalhava ella no quarto com as
janellas fechadas, contra o seu costume, e tão distrahida, que não era
raro parar-lhe a agulha a meio caminho da costura.

Por mais de uma vez, Antonia, vindo consultal-a sobre negocios
domesticos, foi constrangida a repetir a pergunta, porque Cecilia não a
tinha comprehendido--o que, seja dito em abono da snr.ª Antonia da
Natividade, não procedia de falta de clareza na redacção da phrase.

De uma d'estas fundas abstracções, tão repetidas n'aquella manhã em
Cecilia, veio arrancal-a o toque impetuoso da campainha do portal.

A este som Cecilia estremeceu e dirigiu os olhos para o relogio da sala,
com um gesto de surpreza. Pouco passava da uma hora; não podia ainda ser
o pae que voltasse, e raras vezes outra mão que não a d'elle fazia assim
soar a campainha--muito menos áquellas horas do dia.

A estranheza augmentou e quasi degenerou em inquietação e susto com a
entrada da criada, cuja physionomia não era de facto, n'aquelle momento,
para tranquillisar ninguem.

A veneravel matrona trazia estampado no rosto, vigoroso de expressão, o
mais completo espanto.

Cecilia, vendo-a, ergueu-se de subito e fez-se pallida, como se já
aguardasse uma má noticia.

--Menina!... menina!...--dizia, a custo, a criada, fóra de respiração.

--Jesus! Que é, Antonia? que é?--perguntou Cecilia, batendo-lhe o
coração com tal violencia, que parecia despedaçar-lhe o peito.

--Ai que ainda não estou em mim! continuava a outra.

--Diga, mulher! diga o que é.

--Ora que ha de ser! Ai!... Não se assuste... Safa!... Eu sempre
fiquei!...

--E não diz!

--Digo, digo, menina. Pois porque não havia de dizer? Para isso vim.

--Pois não parece. Não vê o susto em que estou?

--Susto?! Não é caso d'isso, socegue... É que... aí, deixe-me, por amor
de Deus, respirar...

Cecilia ajuntou as mãos com impaciencia.

--É um senhor--disse por fim Antonia--um senhor todo asseiado e bonito,
que quer... Ai! sempre se me pregaram umas dores de cabeça!

--Que quer o quê, Antonia?

--Que quer fallar á menina.

--A mim! Você que diz, mulher? Isso póde lá ser!

--Tanto póde, que elle lá está.

--Lá! Aonde?

--Na sala das visitas.

--Pois mandou-o entrar?! Valha-me Deus!

--Então que havia eu de fazer? Se elle procurava a menina... Não, a
delicadeza não fica mal a ninguem; sobre tudo com pessoas delicadas
tambem. Havia de ver que modos aquelles tão bonitos! Obsequio vae,
obsequio vem; senhora para aqui, senhora para alli; não é lá como estes
cabouqueiros, que ás vezes veem por ahi, que julgam que todos foram
creados a borôa e a caldo verde, como elles. Não, senhora; bem se vê que
este é pessoa fina...

--Mas... é impossivel. Ha engano; não póde ser a mim que elle procura...
Você ouviu bem?

--Ouvi, menina, ouvi. Ora que scisma! Graças a Deus não estou tonta de
todo. Ia agora deixar entrar assim, sem mais nem menos, um homem pela
casa dentro, sem ouvir, sem perguntar... Credo, menina! melhor conceito
faça de mim. Olhem agora! Ora essa não está má! Não, se eu não entendia
aquillo, estava bem servida com a minha vida! Por as palavras se entende
a gente e nosso Senhor nos dê sempre ouvidos para ouvir, olhos para ver
e juizo para entender. Amen.

--Está bom, está bom. Já agora não ha remedio senão ir ver quem é. E o
pae não estar em casa!...

--Ora não temos nenhum ataque de ladrões. Nem que fosse alguma cousa do
outro mundo... Se a menina estivesse só, não digo ... mas na companhia
de uma pessoa de ... de representação...

Cecilia parecia ainda irresoluta.

Antonia insistiu:

--Então, menina! Olhe que isso até parece mal tambem. Fazer esperar
assim aquelle senhor! A final não sei de que tem receio. Então se a
gente vae a...

--Ora cale-se, mulher, cale-se. Se eu sei o que você tem estado para ahi
a prégar...--interrompeu-a Cecilia, já impaciente--Que hei de ir, sei
eu. Já que o mal está feito...

--O mal! Ó menina, não me diga isso, por quem é. Então queria que eu...

Cecilia, depois de rapidamente se ageitar ao espelho, voltou as costas á
snr.ª Antonia, e dirigiu-se para a sala onde a criada introduzira a
estranha visita, que tanto a estava inquietando.

Antonia seguiu-a, resmoneando o resto das suas reflexões.

Ao entrar, não viram ninguem. A pessoa, que alli esperava, saíra para a
varanda de pedra, que deitava sobre o quintal. Voltou porém, logo que
percebeu que as duas haviam entrado na sala, mas, como ficasse com as
costas voltadas á luz, não foi logo possivel a Cecilia reconhecer quem
fosse.

Cecilia deu alguns passos, com hesitação, dizendo:

--Ao que parece, v. s.ª deve ter vindo enganado.

--Não, minha senhora, não vim. É v. exc.ª mesma que eu procuro.

Cecilia parou estupefacta. A voz, que assim lhe respondia, era-lhe
conhecida; a pessoa não o era menos.

Ella reconheceu Carlos Whitestone.

O sobresalto e a confusão, que se apoderaram da filha de Manoel
Quentino, n'esse momento, são indescriptiveis, mas faceis de conceber
por quem tenha escutado, com Jenny, a dupla confidencia, de que atraz
fizemos menção.

Cecilia teve de apoiar-se ao encosto da cadeira proxima, para disfarçar
a sua turbação, as faces córaram intensamente e a custo pôde dizer, em
voz tremula e sumida:

--Ó snr. Carlos!... V. s.ª aqui!...

--Venho cumprir um dever, minha senhora.

--Queira sentar-se--disse Cecilia, quasi constrangida ella propria a
fazel-o para não cair.

--Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?--perguntou Carlos,
designando Antonia, com o olhar.

Cecilia, ainda mal senhora sua, fez signal á criada, que, collocada no
limiar da porta, mostrava poucas disposições de abandonar o posto, e por
isso fingiu não perceber a ordem, apesar de ter entendido bem até as
palavras de Carlos.

O genio de Cecilia precisava de reagir contra o enleio, que a tomára;
encontrou auxiliar na impaciencia com que repetiu a ordem, acrescentando
com certo desabrimento:

--Saia.

Antonia não resistiu. Subiu as escadas, de mau humor, resmungando:

--Olhem agora o peralvilho! Ora já viram! Louvado seja Deus! Sempre ha
gente n'este mundo! Que não vá eu descobrir o grande segredo! Melhores
barbas do que as d'elle teem confiado na filha de meu pae. O snr. doutor
Raposo, um lettrado de mão cheia... pois não punha nenhuma aquella em
fallar diante de mim dos seus autos e demandas. Servi tres annos o
doutor Dionysio, e, depois de jantar, contava-me tudo o que via e ouvia
por casa das familias, onde tratava de medico. E, graças a Deus! nunca
tiveram de se arrepender d'isso. Está para nascer o primeiro que tenha
razão de queixa da minha lingua... Olha agora .. O lerma, o magricellas,
o dois de paus...

E procurando parodiar burlescamente os modos de Carlos:

--Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?!... Tem duvida, tem,
sim, senhor; e então que acha?... Ou, se não tem, devia ter... Então
escuta-se assim um creancelho, um homem, que nem põe navalha na cara,
sem estar presente uma pessoa de juizo? Hein?--E ella então: «Saia!»
Gósto d'isto! «Saia»; não que elle não ha mais «Saia». Não sáe, não,
senhora, não sáe assim com essa pressa. Ora ahi está... Ou se sáe é
porque... é porque... é por a gente querer viver bem com todos; é o que
é... não é por mais nada!

A palinodia prolongou-se n'esta afinação; e a reputação de Carlos ficou
de rastos no conceito da snr.ª Antonia.

Logo depois de se perder nas escadas o som dos passos de Antonia,
Cecilia, tremula e confusa, continuou:

--Não posso ainda imaginar a que deva a honra...

Carlos não a deixou proseguir.

--Perdão, minha senhora, v. exc.ª deve suppôr qual o fim, que me levou a
solicitar este favor...

--Eu?!--perguntou Cecilia, a tremer.

--Sim, minha senhora--continuou Carlos--se v. exc.ª me conhecesse, se
tivesse aprendido a fazer-me justiça, devia prever, ao ver-me entrar
hoje aqui, em sua casa, que só um motivo me podia trazer.

--E era?--murmurou Cecilia, quasi receiando-se da resposta.

--Pedir-lhe perdão, minha senhora.

--Perdão!...

Cecilia sentiu o atordoamento precursor da vertigem, ao ouvir aquellas
palavras.

--Sei tudo, minha senhora--proseguiu Carlos--e acredite que tenho
sinceros remorsos de não haver adivinhado logo; nunca senti assim o
effeito das minhas leviandades.

--Mas... sabe... o quê, senhor?--balbuciou Cecilia, como se tentasse
ainda duvidar do que era já certeza para ella.

--Não me quer poupar ao desgosto de recordar uma scena, em que eu fui
tão culpado?

--Pois Jenny disse-lhe?--exclamou, quasi involuntariamente, Cecilia,
como fallando comsigo mesma.

E os olhos brilharam-lhe de lagrimas, prestes a desprenderem-se-lhe
pelas faces.

Carlos atalhou-a:

--Não, minha senhora; Jenny não foi indiscreta. O acaso revelou-me tudo
o que eu, desde aquella noite, tanto desejava saber. Minha irmã apenas
me fez comprehender bem toda a pouca delicadeza do meu procedimento e a
necessidade de uma justificação; é essa que eu venho aqui offerecer-lhe.
V. exc.ª tem direito a ella, como o teria Jenny e como eu o exigiria de
quem tratasse minha irmã... tão grosseiramente, como eu tratei v. exc.ª

--Mas, snr. Carlos, toda a culpa tive-a eu...

--Não diga isso! Insistir em não me reconhecer culpado é apenas uma
maneira delicada de recusar-me o perdão que, de proposito, vim aqui
implorar-lhe.

Cecilia não respondeu; Carlos proseguiu:

--V. exc.ª é a melhor amiga de Jenny; ella mesma, hontem, m'o disse.
Peço-lhe que me não julgue indigno da sua amizade tambem, minha senhora.
Eu supponho-me igualmente o melhor amigo de minha irmã. Duas pessoas,
que teem assim a estima de um anjo, como aquelle, devem estimar-se uma á
outra; não lhe parece?

--Mas eu, snr. Carlos, nunca tive motivos para... não tenho direito para
deixar de... estimal-o.

--Perdôa-me portanto?

Cecilia guardou por algum tempo silencio, depois, fazendo esforço sobre
si mesma, disse com vivacidade:

--Snr. Carlos, não fallemos mais n'isto, peço-lhe... Esqueçamos tudo,
como se tivesse sido um sonho... mau.

E terminando assim o pensamento, baixou os olhos, como desfallecida pela
violencia da lucta, que sustentára.

Carlos não replicou immediatamente. Houve um silencio de alguns
segundos, incommodo para ambos; emfim, olhando para Cecilia:

--Esquecer!--disse Carlos, de uma maneira, que parecia mostrar não lhe
ser demasiado grata a proposta, e depois acrescentou:--Pois sim...
Esqueçamos, visto que assim o quer. Mas eu tenho a esquecer,
arrependendo-me; já o fiz; v. exc.ª, perdoando; por que recusa fazel-o?
Perdôa?

Cecilia ia de novo negar-se a admittir-lhe a culpa, mas, erguendo os
olhos, viu Carlos que lhe estendia a mão e, sem bem attentar o que
fazia, estendeu também a sua, murmurando:

--Perdôo.

Quando, reflectindo, a quiz retirar, e juntamente a palavra, já não era
tempo.

Logo que ouviu de Cecilia o perdão, que viera de proposito solicitar
alli, Carlos levantou-se.

--Obrigado, minha senhora--disse elle.--Cumpri o meu dever; agora parto
satisfeito.

A pobre rapariga não podia responder mais nada; se ainda lhe estava
parecendo um sonho tudo aquillo!

--Mais duas palavras só;--disse ainda Carlos, pegando no chapéo--quando
v. exc.ª chegou, não estava eu aqui dentro; reparou? N'esse momento,
minha senhora, acabava de fazer uma singular decoberta.

--Uma descoberta?!

--Muito singular. Ha poucos dias--continuou Carlos, aproximando-se da
janella, junto da qual estava já Cecilia--passeiava eu n'aquelles
pinheiraes... acolá. Meditava... nem posso bem dizer em quê. Não sei de
que maneira me attrahiu a vista, e depois me occupou a imaginação, uma
casa, que avistei d'alli. Tinha a varanda revestida de trepadeiras, uma
roseira no intervallo das duas janellas e, no andar de cima, apparecia
frequentemente uma senhora, toda occupada em trabalhos domesticos,
n'esse lidar modesto, que rodeia, a meus olhos, de suave perfume de
poesia as mais bellas figuras de mulher.

Cecilia baixou os olhos, córando, e pareceu entretida a examinar a
andarella do castiçal de vidro, que lhe ficava á mão.

--Imagine agora a minha surpreza, quando, ha pouco, chegando aqui,
reconheci esta varanda, esta janella, esta roseira, por as mesmas que de
tão longe me haviam chamado a attencão. D'ahi--acrescentou,
sorrindo--facil me foi concluir quem era a senhora. Não haverá mysterio
n'isto? Não parece que esta roseira queria aconselhar-me de longe o
passo que hoje dei? Eu, por mim, estou tentado a crêl-o, e tanto que,
por gratidão, peço-lhe licença, minha senhora, para levar commigo uma
memoria d'ella. Permitte-me que córte uma d'aquellas flores?

Cecilia só pôde sorrir em resposta, baixando a cabeça.

Carlos aproximou-se da japoneira e cortou um botão, ainda mal
desabrochado; voltando á sala, curvou-se respeitosamente diante de
Cecilia, e, depois de mais outra phrase de cumprimento, saíu.

Ella viu-o saír, sem que fizesse o menor movimento, e por muito tempo
permaneceu no mesmo logar e na mesma posiçao em que havia ficado.

Dominava-lhe o espírito um turbilhão de ideias, que ora o mortificavam,
ora, não sei de que maneira, o embalavam agradavelmente.

Foi ainda Antonia quem fez cessar mais esta abstracção.

--Então quem era a final este senhor de tantos recatos e
cautelas?--perguntou a criada, a quem a curiosidade mordia com
verdadeira sofreguidão.

--Pois não conheceu? Era o filho do snr. Ricardo, do patrão do pae...

--Ai sim?! Como está um homem! A ultima vez que o vi, era elle uma
creança... Pois olhe que... a respeito de educação... póde com a que
tem... Sempre é herege!

--Por que diz isso?

--Então não viu o descôco, com que lhe pediu, e na minhã cara, para me
mandar embora? E a menina então... foi logo! E que queria por fim este
chincharabelho?

--Nada... E sabe?... Escusa de fallar a meu pae... n'esta visita...

--É porque... Jenny... e o irmão querem causar uma surpreza a meu pae...
para o dia dos annos d'elle e... avisam-me... por isso...

Decididamente Cecilia não tinha geito para mentir; hesitava, córava, a
dizer isto, que não era possivel illudir-se ninguem.

A criada que, segundo ella mesma dizia, tinha olhos para ver, notou este
rubor e confusão, e commentou-os a seu modo:

--Aqui anda cousa. Ora queira Deus, queira!... Nem sei se diga ao snr.
Manoel Quentino... Mas nada, nada; ella lá sabe voltar o pae para onde
quer e a final quem fica mal sou eu. Lá se arranjem... Humh! Uma
surpreza para o dia dos annos. Pois não foste! Para mim é que elles veem
com isto!

Cecilia, procurou encerrar-se no quarto; pegou de novo na costura; mas
posso afiançar que não adiantou o trabalho.

Manoel Quentino tinha razão; alguma cousa affligia a filha.



XVIII


CONTAS DE JENNY COM A CONSCIENCIA DE CARLOS


Saíndo de casa de Manoel Quentino, Carlos não ia menos agitado, do que
deixára a filha do guarda-livros.

Aquella visita de Carlos, visita que, a seus proprios olhos, elle
procurava fazer passar como a mais natural reparação de uma das suas
muitas leviandades, talvez perante a analyse imparcial tenha de receber
outra qualificação, que não a de um cumprimento de dever.

Se se tratasse de outra mulher, que não fosse Cecilia, de outra com
menos graças attractivas, embora com mais direitos ainda á reparação,
talvez Carlos não chegasse a convencer-se tão profundamente e tão
depressa, como parecia ter-se convencido, da instante e imperiosa
necessidade d'aquelle passo que dera; talvez o pensamento de tal visita
o não tivesse possuido toda a noite e, pelo menos, não se resolveria por
certo a realisal-o, sem haver consultado Jenny, a sua boa conselheira em
todos os actos da vida; mas, longe de a consultar, antes lhe andou
occultando com cuidado o projecto emquanto o meditava, como com receio
de ser dissuadido d'elle.

Ha certos homens, escrupulosos respeitadores da lettra das leis, que
praticarão desafogados qualquer acção, averiguadamente illicita, sempre
que possam sophismar os artigos do Codigo de maneira que se resalvem da
pronuncia judicial; dando-se-lhes pouco que o espirito, que os dictára
ao legislador, fique muito maltratado pelo sophisma.

Isto, que se pratíca com as leis civis, poucos são os que, todos os dias
e a cada momento, o não fazem tambem em relação ao codigo intimo da
consciencia. Raros ousam, se alguns, arrostar contra as prescripções
d'este juiz inflexivel e perscrutador, e confessar o delicio
desassombrados; quasi todos as discutem, as torcem, as commentam,
alteram e sophismam, até as pôrem em accôrdo apparente com os actos que
praticaram.

O orgulho leva muitas vezes o criminoso a recusar defender-se nos
tribunaes humanos; nem o despreso geral, nem as severidades da lei são
bastantes para o obrigarem a vergar a cabeça; tem coragem para adoptar o
crime, deixando-lhe o nome de crime; mas esse mesmo, a sós, no tribunal
da consciencia, procurará com ardor pleitear a causa, que abandonou
perante juizes, de cujas mãos pôde saír a sentença de morte.

Longe de nós o querer estabelecer analogias, muito intimas, entre estes
perpetradores de grandes maldades e Carlos, que, para com a consciencia,
só tinha a justificar-se de um d'esses peccaditos que, mais ou menos, ha
de forçosamente commetter quem tenha nas veias um sangue de vinte annos.

Mas é um tal jury o da consciencia, que, sempre que taes pleitos são
necessarios no seu tribunal, a causa é já por isso má. Para as justas
dispensa advogados.

Não procuremos illudir-nos nós, como Carlos; sem querer duvidar dos bons
sentimentos d'elle, póde-se ir buscar outras razões para a visita, cujos
promenores no ultimo capitulo relatamos.

O que é fóra de duvida é que depois d'aquella vigilia, em que o leitor o
viu, não teve Carlos pensamento e imaginação, senão para descobrir um
meio de tornar a encontrar-se com Cecília, e de fallar-lhe.

O resultado foi o que sabemos.

Se havia sido tão profunda a impressão produzida por a casual revelação
do theatro n'aquelle espirito affectado já de vagos preludios do mal,
mais a fundo se gravou ainda depois da visita feita a Cecilia.

Parecia que nas poucas palavras que n'essa entrevista Cecilia
pronunciára, Carlos tinha decifrado sentidos occultos; pensava n'ellas.

Depois a coincidência de ter sido quasi evocado por aquella mal
distincta figura de mulher, quando dias antes fitára de longe
distrahidaraente os olhos em uma janella, avultava-lhe agora como uma
cousa acima do simples acaso; por pouco estava a acreditar que a secreto
influxo lhe haviam n'esse dia obedecido os olhos.

Vejam se não é serio o estado do coração de Carlos, que assim está quasi
a tornal-o supersticioso.

Eram duas horas da tarde, quando Carlos chegou a casa. Tomando logo por
a rua do jardim, para onde se abriam as janellas do quarto da irmã,
parou por baixo d'ellas, e bateu nos vidros uma leve pancada.

Pouco depois agitaram-se, afastando-se, as cortinas, e o vulto de Jenny
acudiu áquelle signal.

--És tu, Charles?! A estas horas!

--Pódes fallar-me, Jenny?

--Entra.

Carlos tornou outra vez por a rua, por onde viera; entrou no portal;
atravessou alguns corredores e dentro em pouco achava-se no quarto de
Jenny.

Jenny estava occupada na feitura do enxoval de uma creança
recem-nascida, cuja pobre familia era soccorrida por a bondosa menina.

Carlos sentou-se ao lado da irmã.

Jenny continuou a trabalhar.

--Então que milagre é este? As magnolias do jardim haviam de fazer um
espanto ao verem-te entre si a estas horas do dia!

--Sabes d'onde eu venho?--perguntou Carlos, em vez de responder, e
brincando machinalmente com um colar de coraes, que tirára de cima do
toucador.

--Eu, não--disse Jenny sem olhar para o irmão.

--Venho de casa de Manoel Quentino.

--De casa de Manoel Quentino? E a que foste lá?

--Pedir perdão a Cecilia.

Houve um intervallo de silencio.

Jenny voltára-se subitamente para Carlos, fixando n'elle o olhar serio e
penetrante; Carlos com a cabeça baixa parecia todo absorvido na tarefa
de contar o numero de coraes, de que se compunha a enfiadura.

--Dizes a verdade, Charles?--perguntou Jenny, ainda immovel, e
continuando a fital-o.

--Então por que não ha de ser isto verdade?--replicou Carlos, tambem na
mesma posição.

-E fallaste-lhe?

--Fallei.

--Que lhe disseste?

--Confessei-me culpado de quanto tivera logar n'aquella noite do baile
e... pedi-lhe perdão...

--E ella?...

--E ella...--proseguiu Carlos, pousando emfim o colar--depois de algumas
modestas hesitações... perdoou-me.

--Ah! Charles, Charles! Essa tua cabeça!...--disse Jenny a meia voz, e
com inflexão benignamente reprehensiva.

--Então--tornou-lhe Carlos com modos de ligeiro enfado--Não fiz bem? Não
era esse o meu dever? Eu esperava até que me applaudisses a acção e
tu...

A estas palavras Jenny não pôde reprimir um movivento de impaciencia;
arredou a costura em que trabalhava, tomou as mãos de Carlos, e fitando
nos d'elle os olhos limpidos e serenos, como o céo de primavera,
perguntou-lhe com um meio sorriso:

--Falla-me a verdade, Charles. A verdade só, entendes? Para que
procuraste tu Cecilia?

--Que pergunta! Pois não te disse já? Não era do meu dever?...

--Não, não era. Melhor seria fingires sempre que ignoravas tudo, do que
dares áquella pobre menina motivo para córar na tua presença. Esse acto,
que dizes eu devia applaudir, não partiu do teu coração, que é muito bom
e muito generoso, partiu mas foi d'esta cabeça--e pousava-lhe a mão na
fronte;--d'esta cabeça, que é uma estouvada.

--És injusta d'esta vez, Jenny.

--Não sou. Quero acreditar que te illudisses a ti proprio; mas, se
pensares melhor, verás que tenho razão. Hontem, ao saíres do theatro,
estavas triste. Bem o senti. E por que estavas triste? Eram remorsos
pela má opinião, que tinhas formado de quem te merecia sómente
respeitos, que não tiveste?

--Eram.

--Não eram, Charles, não eram. Para que procuras tu enganar-me? Não
eram. Tu sómente lamentavas o fim de uma aventura, á qual tinhas
imaginado mais longa duração. O caracter da pessoa, de que se tratava,
mostrava-te, depois que a conheceste, que eram sem fundamento as tuas
esperanças, e tu então...

--Jenny!

--Para que o queres negar? Olha que eu tenho a vaidade, e o orgulho
tambem, de saber ler nos teus pensamentos. Ha muito o aprendi e tu mesmo
me auxiliaste.

Carlos baixou os olhos e principiou a torcer machinalmente a corrente do
relogio.

Desde este momento a victoria era de Jenny. Ella comprehendeu-o e
proseguiu:

--Depois a imaginação, essa travêssa imaginação, que nós ambos
conhecemos, pôz-se a trabalhar. Ella não podia resignar-se a ver
terminar tão depressa o romance, que phantasiára tão longo, e lidou, e
lidou, e apesar de te recolheres hontem mais cêdo, não durou a tua
vigilia menos do que a d'aquella celebre noite do carnaval; não é
verdade? Confessa. E o coração a dizer-te, muito baixo, que devias...
que era mais generoso deixar acabar tudo alli, e a imaginação a crear
difficuldades, a inventar deveres, a entreter-te de não sei que pontos
de honra muito exigentes; e então o coração, o pobre coração, que cada
vez ia perdendo mais terreno, a lembrar-te que pelo menos consultasses
tua irmã, Charles, e a outra, a má, nem isso te concedeu; provou-te a
vantagem de me occultares tudo! Tinha mêdo de que eu podesse
dissuadir-te! E tu a obedeceres á imaginação, e a levantares-te, a
partires, a procurares Cecilia, e a pedir-lhe um perdão de creança, que
em outras circumstancias te faria rir, e a pobre menina a conceder-t'o,
sem bem saber o que fazia. Confessa, Charles, confessa, a verdade
d'isto.

Carlos não pôde disfarçar um sorriso, e, levando aos labios a mão que a
irmã pousára na sua, murmurou:

--Feiticeira!

Jenny sorriu tambem.

--Na verdade!--proseguiu ella, d'ahi a pouco--é uma forte imaginação
essa tua, que tanta cousa consegue de ti! e comtudo...--acrescentou,
cobrindo-se de repente de mais seriedade--e comtudo eu prefiro ainda
dirigir-me ao teu coração, que tambem é forte, porque é muito sensivel e
muito generoso e que a ha de poder vencer; não é verdade? É a elle que
eu vou fallar, Charles, e espero que serei escutada.

--Falla, Jenny, falla. Aconselha-me. Bem sabes que ha muito te tenho por
meu bom anjo. Falla--disse Carlos, affectuosamente.

--Ora dize-me, Charles--continuou Jenny, cada vez mais commovida:--não
imaginas o que póde resultar d'essa tua phantasia, a deixares-te assim
arrastar por ella? Cecilia até hoje tem sido feliz. No passado não tinha
nada que a envergonhasse ou que lhe désse pena; no futuro não antevia
nuvem, que de longe a ameaçasse. Era uma vida aquella tranquilla e
serena, como não imaginas. Mas Cecilia tem dezoito annos, Charles, e um
coração cheio de confiança e uma imaginação... um pouco á similhança da
tua... Conheço-a, a ella tambem. Se alguma vez se apoderar d'aquelle bom
espirito qualquer ideia, se passar uma hora a acalentar qualquer
illusão, acredita que já não será sem esforço, e sem dor, que a
arrancará de si. E dize-me, Charles: a tua consciencia, que é justa, não
havia de querer mal, e muito, á tua phantasia, que é uma enganadora, se
ella fizesse, com seus conselhos, nascer essa illusão, obrigando-te a
sacrificar ao capricho de uma manhã o futuro inteiro de uma existencia?

--Mas de que maneira imaginas tu esse sacrificio?--interrogou Carlos,
levantando os olhos para a irmã.

--De que maneira? Pois dize-me: se Cecilia, que podia esquecer aquella
scena do baile e todas as suas consequencias, principiasse, depois da
tua visita, a pensar mais n'ella? se, sabendo-te senhor de um segredo
seu, principiasse a... a pensar mais em ti? se, córando na tua presença
de acanhamento ao principio, pouco a pouco... quem sabe lá?... viesse a
córar... de commoção... de... amor?...

E, ao pronunciar esta palavra, as faces de Jenny tingiam-se de desmaiado
carmim.

Carlos sorriu, vendo-o.

--Tu ris, Charles? É porque estranhas em mim estas palavras ou por
suppôres infundados os meus receios? Em qualquer dos casos não tens
razão. O que não conheço por mim, ha muito aprendi a conhecer por os
outros, e por ti, Charles, principalmente por ti. Eu sei como essas
cousas se passam; como o capricho se transforma em ideia fixa, como a
ideia arrasta após de si a paixão. Eu sei, Charles; que o tenho visto em
ti e sei que Cecilia tem imaginação, como a tua, que a póde conduzir a
esses extremos; com a differença de que em ti a paixão transforma-se
ainda em esquecimento, e n'ella... Se te viesse a amar...

--Que grande mal! Amal-a-hia eu tambem, Jenny.

Jenny desviou a cabeça, procurando exprimir enfado, e tornou-lhe:

--Eu a fallar-te ao coração, Charles, e tu a responderes-me com a
phantasia! Creança de vinte annos! quando se te poderá fallar serio?
Pois bem; ás creanças permitte-se-lhes brincar, menos com os objectos,
com que não sabem lidar ainda. Tu ainda não aprendeste a lidar com os
affectos e com o coração dos outros, sem perigo para elles. Por isso eu
te peço que não continues. Não imaginas o que poderia resultar d'ahi, em
que luctas te verias envolvido, se um dia...

--Eu tenho coragem para luctar--disse Carlos, um pouco estouvadamente.

--Guarda-a para quando a lucta for inevitavel; mas não provoques tu
mesmo a experiencia, que é sempre dolorosa.

--Não te comprehendo.

--Eu só te peço, Charles, que deixes de uma vez esse capricho, que te
senhoreia ainda, bem o vejo. Pára, Charles, pára, se queres evitar no
futuro o arrependimento tardío; pára, se te queres poupar a remorsos. É
a tua irmã, que te pede isto, e tu... dizias estimar-me...

--Não faltava senão que o duvidasses agora, Jenny--disse Carlos, meio
agastado.

--Não duvido, Charles, e tanto que tenho fé em que has de saber vencer
esse capricho.

Carlos baixou a cabeça e ficou silencioso por algum tempo.

--Não sei, Jenny--disse d'ahi a pouco, levantando-se e passeiando no
quarto--não sei até se é só capricho isto.

--Então é já paixão?--disse Jenny com olhar malicioso, e pegando outra
vez na costura, em que trabalhava--Uma paixão de dois dias! Como cresceu
depressa! Vamos, Charles; não sejas creança. Contento-me com que
interrogues desapaixonado a tua consciencia, e o que ella te disser...

--Ai, não te fies muito na minha consciencia, Jenny. Não vês como ella
me aconselha?

Jenny fez um gesto de incredulidade, olhando para o irmão.

--Ella? Então foi devéras a consciencia que te aconselhou a visita a
Cecilia? Falla com franqueza.

Carlos não pôde insistir.

Continuou passeiando com os olhos fitos no chão.

A final parou, e olhando para a imagem da irmã, que do espelho o fitava,
disse, com modo sacudido:

--Vou tentar obedecer-te, Jenny; mas receio...

--Não me falles em receios. Sem fé nada se alcança, incredulo. Coragem!
ainda ha pouco te gabavas de a possuir para as luctas.

--Adeus, Jenny. O que te posso dizer é que se podér desvanecer em mim
esta impressão que me causou Cecilia...--Bem vês que te estou fallando
agora com franqueza--não receiarei nunca mais pelo meu coração.

--Recordo-me de já me teres dito uma cousa assim... de outra vez.

Carlos ia a responder, mas, como se procurasse fugir a uma conversa que
o mortificava, saíu com precipitação do quarto.

Jenny viu-o saír e ficou pensativa.

Momentos depois entrou Elisa com uma carta.

--De quem vem isso?--perguntou Jenny.

--De casa do snr. Manoel Quentino.

Jenny conheceu a lettra de Cecilia. Abriu a carta e leu:

    «Minha boa Jenny.

    Contra o que lhe tinha promettido, não me é possivel hoje visital-a.
    Não me sinto boa, e receio ter de me conservar em casa por alguns
    dias. Meu pae mostra-se inquieto pela minha saude e ainda que não
    seja senão para o tranquillisar, preciso de privar-me do prazer de a
    ver. Jenny, lembre-se de mim e peça a Deus que me conceda a bondade
    de coração e a serenidade de espirito da menina, pois com este meu
    genio e cabeça, duvido da felicidade na vida. Adeus.

    Sua amiga,

    _Cecilia_».

--Ah! tambem ella!--murmurou Jenny, ao terminar a leitura, e ficou mais
pensativa do que antes, e uma pequena ruga desenhou-se-lhe na fronte.

O desalento, que parecia descobrir-se através das expressões d'aquella
pequena carta, que em vão Cecilia tentára tornar jovial, justificava a
ligeira nuvem que viera assombrar a fronte, habitualmente serena, da
bondosa Jenny; habituada como estava ás alegrias sem motivo, á
despreoccupação da sua amiga, tantas vezes reveladas em cartas e em
conversas anteriores, estranhava com razão estes indicios de tristeza.

Além d'isso, o que na vespera ouvira a Manoel Quentino sobre as mudanças
subitas da filha, não lhe tinha ainda esquecido.

Era no que pensava, quando Carlos a procurou no quarto; e foi essa a
causa principal da apprehensão, exagerada talvez, com que soube da
visita feita pelo irmão a Cecilia, e da anticipacão com que previa o
futuro d'esta, tão estreitamente ligado ao procedimento de Carlos.

O estado de Carlos tambem não satisfazia. A segurança que, diante
d'elle, affectára, ella propria a não sentia. Inquietava-a o acontecido,
sem saber bem porquê. A seu pezar, já nenhum outro pensamento a
distrahia d'aquelle.

Para tranquillisar-se, tratava de convencer-se de que eram infundados os
receios. Recordava todas as passageiras inclinações que conhecera no
irmão e que tão depressa, e sem consequencias más para ninguem, vira
desvanecer; esforçava-se em explicar de mil maneiras a inquietação de
Cecilia com exclusão d'aquella, que, não obstante, uma voz interior
teimava em repetir-lhe.

De pensamento em pensamento, foi levada áquellas disposições de
espirito, nas quaes se aprazia em contemplar as feições amadas da mãe, a
sua conselheira de além tumulo.

E assim, a piedosa filha, com a fronte pendida sobre aquelle retrato,
caíu em um meditar profundo, que por muito tempo se prolongou.

A final ergueu os olhos ao céo e pareceu dirigir-lhe uma oração mental.
O olhar do Senhor baixaria sobre este anjo, que o implorava para
serenar-lhe o espirito? É certo que, passados alguns instantes,
diffundia-se-lhe no semblante a costumada placidez.



XIX


AGGRAVAM-SE OS SYMPTOMAS


Com toda a sua natural bondade, e superior penetração de espirito,
commettera Jenny uma imprudencia.

Não hesitando em confessar ao irmão as apprehensões que sentia, ao
pensar nos resultados da visita feita por elle a Cecilia, deixando-lhe
entrever a possibilidade de que se originasse d'ahi, para a pobre
rapariga, um d'esses sentimentos, a que imprudentemente se abrem os
corações juvenis e que tão depressa adquirem ás vezes a força de paixão,
Jenny, a previdente Jenny, apressára o mal, que julgára conjurar assim.

Escutando-a, Carlos, longe de reflectir nas sérias consequencias que
podia arrastar comsigo tal paixão, se porventura nascesse, estava
sentindo um agradavel prazer em a ouvir fallar na possibilidade d'ella;
sorria-lhe já seductoramente esse amor, nas mal delineadas fórmas, sob
que lhe apparecia como cousa de futuro e contingente ainda, que era.

Toda a cautela é pouca com estas imaginações, sempre promptas a voar
para a região dos sonhos dourados.

É preciso usar para com ellas da prudencia que se deve ter com as
creancas, surprendidas á borda de um abysmo; o brado, que se solta
instinctivamente com o fim de as salvar, é que muitas vezes as
precipita; mais vale encommendal-as á Providencia e não lhes mostrar o
perigo, senão depois d'elle passado. Ha situações na vida em que tambem
o coração se aproxima, brincando, de um despenhadeiro; todo o conselho
n'este caso é igualmente arriscado; o sobresalto, que produz, póde
effectuar a quéda.

Aconteceu isto com Carlos Whitestone.

É notavel a importancia que, n'estas cousas de coração, damos á opinião
alheia! Andamos muito tempo a hesitar sobre o nome de certos
sentimentos, que nos inspira uma mulher, e apesar de contínuo reflectir,
não ousamos chamar-lhe amor; um dia, porém, encontramos o primeiro
estouvado, que se lembra impensadamente de o classificar como tal, e
logo a nossa opinião a curvar-se perante tão ponderosa auctoridade. Ha
exemplos até de alguem quasi se chegar a convencer de que ama uma
mulher, só á força de lh'o repetirem.

Mais desculpa tinha comtudo Carlos; porque não era Jenny sujeita a
formar juizos levianos, nem a exprimir suspeitas e receios, que não
tivessem fundamento.

Por isso tudo, saíu elle do quarto da irmã, muito peior do que viera.--E
perdoem-me as leitoras, se chamo peiorar ao progredir no caminho do
amor; não lhe chamaria por certo assim, se não fosse o cortejo de
contrariedades, que de ordinario acompanha esta paixão.

O resto do dia passou-o Carlos no quarto, em completa ociosidade.

Ociosidade! E poderá dar-se tal nome a esses longos intervallos de
repouso apparente, em que descansam os musculos, mas em que o cerebro
executa porventura os seus mais violentos e fadigosos exercicios?--Se o
leitor tem a infelicidade de não possuir um d'estes espiritos frios, que
sem cessar absorvidos pelo cumprimento dos deveres da vida positiva, não
sentem a necessidade de sacudir, de quando em quando, o jugo, para
correrem por dominios mais propriamente seus, dirá se era ociosidade
aquillo.

Desde esse dia, a vida de Carlos ia entrar em uma d'aquellas phases, que
ao romancista, não resolvido a illuminar os seus quadros de outra luz,
que não seja a da realidade, levantam serios embaraços.

Quando uma paixão sincera domina o coração do homem, exalta-se,
sublima-se n'elle o que é a vida subjectiva; mas a vida exterior, a
apparente, a que só avulta para quem não possue olhos que vejam, e
coração que entenda o coração d'este homem, essa, baixa ao nivel das
puerilidades.

Quando a dignidade varonil, o empertigamento masculino se conservam
irreprehensiveis e intactos no auge de uma paixão, é de receiar sempre
pela sinceridade d'ella.

Tudo quanto é convencional esquece então.

Ora, no homem mais grave e sisudo, ha sempre escondida a crença de
outros tempos. O elemento pueril não morre nunca de todo em ninguem. A
arte social applica-se com afan a occultar das vistas alheias esse
legado da infancia; os mais sisudos são os que melhor o conseguem; mas
basta um descuido de momento, uma distracção, e elle ahi vem á
superfície.

Assim se explicam as proverbiaes canduras dos mathematicos e dos
amantes.

Os jogos foram tambem inventados por esse motivo. Fingiu-se acreditar
que era uma cousa grave o _wist_, o voltarete, o _boston_, etc., etc.,
para qualquer pessoa poder, em publico, entregar-se a elles, sem offensa
da sisudez convencional; porque, se se não fizessem estas concessões á
creança humana, que ás vezes tem impertinencias, corria-se o risco de
mais escandalosas rebelliões da parte d'ella.

Mas, como dissemos, uma paixão verdadeira, uma d'essas, cada vez mais
raras, paixões, nas quaes o prazer de amar lucta, em intensidade, com o
de ser amado, absorve muito o espirito, para que elle possa exercer a
vigilancia precisa sobre a travêssa creança, de que fallamos.

E, a não haver indulgengia da parte de quem espia estas quebras de
seriedade, a victima da paixão corre o perigo de ser menos bem olhada.

Por isso temo fazer chronica do que se passou em Carlos, nos dias
successivos á conferencia que teve com a irmã; porque, em tudo, pouco se
nos deparará digno de um heroe de romance.

Appéllo porém para as reminiscencias dos leitores, para depois, sendo
necessario, parodiar a defeza de Christo á peccadora.

Um dos primeiros phenomenos manifestados em Carlos foi uma subita
timidez, n'elle verdadeiramente excepcional; uma perfeita timidez de
creança; completo contraste com os seus passados arrojos, que ainda o
haviam acompanhado na primeira visita feita a Cecilia.

Agora pela primeira vez se sentia acanhado.

Impellia-o o coração a tornar a ver Cecilia; saíu no meio da tarde com
esse intento, dirigiu-se para a rua, onde ella morava; de longe, ao
dobrar a esquina, pareceu-lhe descobril-a á janella. Que fortuna! Não é
verdade? Assim parece que deveria reputar o facto. Pois não teve coragem
de lhe passar pela porta e, sem ser visto, seguiu caminho differente.
Mas com que má vontade ia contra si proprio!

D'ahi a pouco assomava de novo á mesma esquina; não estava ninguem á
janella; pareceu animar-se com esta observação e caminhou para diante
d'esta vez.

Ia ao mesmo tempo contente e mortificado, por não ver ninguem. Não sei
se admittem que uma só causa tenha assim effeitos oppostos; fica-lhes
livre darem ao facto a interpretação que quizerem: eu limito-me a
registal-o.

Quando ia já proximo da casa, appareceu subitamente alguem á janella.
Era Cecilia; adivinhou Carlos que era ella, antes de reconhecer. Com a
apparição ficou mortificado e contente; outra vez o mesmo phenomeno
paradoxal.

Apressou logo os passos e tomou uns ares de homem atarefado, como se
quizesse dar a entender que a sua passagem por alli era puramente casual
ou motivada por negocio urgente.

«Incoherencia!» dirá um galanteador de profissão. Incoherencia, é
verdade; e pobre da paixão, que não dá para incoherencias. Se o rigor
syllogistico resiste a uma d'estas commoções do coração, não vale a pena
tomal-a a serio.

Ao passar por defronte da janella, Carlos cumprimentou Cecilia,
timidamente, quasi canhestramente, sem lhe sobrar coragem para a fitar e
não ousando voltar de novo a cabeça, em todo o resto da rua, que seguiu
até o fim.

Interiormente redobrava a impaciencia e má vontade contra si proprio.
Elle, que sempre se reconheceu arrojado, agora com acanhamentos de
namorado noviço!

Parou na alameda, que ficava ao fim da rua. Não lhe saíu aquillo da
ideia.--Que quer isto dizer?--pensava elle--Então não estou eu
transformado em estudante de quinze annos, que nem frieza de animo tem
para cumprimentar a prima, por quem julga morrer de amores? Acho-lhe
graça!

E enchendo-se de brios, preparou-se, passados momentos, com maior
denodo, para voltar.

Mas, apesar de todas as prevenções, a coragem ia-lhe faltando, á medida
que se aproximava do logar do perigo.

Justamente na occasião, em que o attingia, chegava Manoel Quentino á
porta de casa.

Era uma d'estas coincidencias felizes, de que, em outra occasião, Carlos
saberia tirar partido.

D'esta vez quasi sentiu que ella se désse.

Foi obrigado a parar, depois de ter, sem a menor apparencia de audacia,
cumprimentado de novo Cecilia, que estava á janella.

--Então por estes sitios!--disse-lhe Manoel Quentino admirado--O que o
trouxe por aqui hoje?

Carlos balbuciou algumas palavras, que não formularam resposta alguma.

Manoel Quentino sorriu maliciosamente.

--Ora ande lá, ande lá com Deus.

Carlos córou.--Córou!

--Acredite que vim... por acaso--insistia elle.

--Sim, sim; pois eu bem sei--continuava Manoel Quentino no mesmo tom.

Carlos estava sobre brazas.

--Serio...

--Serio, sim, serio... pois é lá homem que falle de outra fórma?... Ora
vá com nossa Senhora, vá... eh! eh! eh!...

Carlos não teve arte de demorar a conversa, durante a qual não aventurou
um só olhar para Cecilia e nem animo lhe assistiu para aceitar o
offerecimento que lhe fez Manoel Quentino de subir e descansar algum
tempo.

Partiu, cada vez mais desgostoso comsigo, parecendo ter sido o seu
principal empenho occultar, e não revelar, a Cecilia o que principiava a
sentir por ella.

E agora uma pergunta: não o comprehenderia Cecilia? Parece racional
dizer que não; mas quem póde lá adivinhar como o coração da mulher
adquire certa ordem de conhecimentos, sobre tudo se...

Mas ponhamos de parte _ses_ menos discretos; que os sentimentos de
Cecilia não são para se devassarem assim de passagem.

O resto do dia Carlos passou-o só no quarto, a ler.

Ha alguma cousa tambem de particular na maneira de ler, quando se está
em taes disposições de espirito.

Preferem-se os romances; mas não é pelo lado litterario, que mais se
apreciam; porém exactamente como os apreciam as creanças e a maioria das
mulheres--pelas peripecias do enredo;--e, permitta-se-me dizer, que
imagino ser esta a classe dos leitores, que mais deve lisongear o
romancista.

Seguem-se então com ardor as phases successivas de uma paixão descripta
alli; deixa-se tomar o coração de amor pela heroina; assume-se o
caracter do heroe; e não se perdoa ao auctor quando termina por alguma
catastrophe a historia, que escreve.

Isto aconteceu com Carlos. Symptoma terrivel! Leu em uma especie de
embriaguez um romance inteiro de Walter-Scott, e muito tempo depois
ficou a pensar no que lera; não tanto nas bellezas, que, em todos os
generos, abundam nas ainda menos afamadas obras do grande romancista,
como na felicidade dos noivos; porque, nos ultimos capitulos dos seus
romances, raras vezes Walter-Scott deixa de os unir sacramentalmente.

Á noite voltou Carlos a passar por casa de Cecilia. Havia luz na sala da
frente, luz que só se percebia por uma entreaberta das portas
interiores. Eram as horas do serão e do chá de José Fortunato.

Carlos saboreou um prazer indefinivel em observar aquella luz. Vão vendo
os leitores experientes se não é de inspirar receios o estado do Carlos.

Em casa evitava Jenny; receiava-se d'ella; Jenny, pela sua parte,
julgava prudente não provocar novas conferencias sobre o assumpto.

Se ella soubesse que já não era com estes meios brandos, que havia de
vencer!

No primeiro domingo, depois d'estas scenas, Carlos que, com toda a
diplomacia, soubera de Manoel Quentino ser a Cedofeita que elle e a
filha costumavam ir á missa, rompeu com os deveres de protestante e
aproximou-se da porta d'aquelle vetusto templo catholico, ás horas a que
sabia dever terminar alli o officio divino.

Passeiava na alameda lateral com toda a resolução de se fazer d'esta vez
notado.

Mas, ao saír a primeira gente da igreja, apoderou-se d'elle a costumada
timidez, e, já com receio de ser percebido, foi encostar-se ao portão de
ferro do cemiterio contiguo, por não ter tempo de ir mais longe.

Serviu o mal a inspiração;--mal e bem ao mesmo tempo; porque, ainda
n'aquelle momento, havia no espirito de Carlos o mesmo antagonismo de
aspirações, que era, havia dias, o seu estado habitual.

Coincidia com o receio de ser visto a vontade de ser descoberto. Não
póde haver logica na expressão, quando falta ao objecto que se exprime.

É certo porém que Manoel Quentino, saíndo da igreja com a filha,
encaminhou-se para o cemiterio.

N'aquelle cemiterio repousava a mãe de Cecilia, e raro era o domingo em
que Manoel Quentino, depois da missa, não ia orar alli, junto da
sepultura da esposa.

Quando Carlos percebeu a direcção, que elles seguiam, era tarde para
retirar-se. Manoel Quentino já o tinha visto; Cecilia tambem.

O pae sorriu-lhe com familiaridade; Cecília córou, ao corresponder ao
acanhado cumprimento de Carlos.

--Então veio orar pelos mortos?--disse Manoel Quentino, com malicia.

Carlos encetou vagas explicações da sua presença alli.

--Pois se veio orar pelos mortos, achou companhia--continuou o
velho;--que eu, infelizmente, tenho aqui por quem o faça. Ora deixe-me
ver se encontro o cóveiro, para que nos abra a porta do cemiterio.

E, com este intento, dirigiu-se para a sacristia, deixando sem ceremonia
Carlos só na presença de Cecilia.

Precisarei de dizer que este inesperado e involuntario encontro enleiou
sobremaneira os dois? Falla-se muito dos embaraços de uma primeira
entrevista. Não serei eu quem os negue; quer-me porém parecer que a
segunda é ainda mais difficil de sustentar, quando a primeira não foi de
todo insignificante.

O que é verdade é que a imaginação de Carlos não lhe suggeriu uma só
palavra que dissesse.

Nem sequer fallou no tempo! Cecilia não foi mais eloquente, fixou os
olhos na porta da igreja, por onde desapparecera o pae, e emmudeceu.

N'isto uma velha mendiga, d'estas que nunca faltam á porta das igrejas
ao findar a missa, aproximou-se d'elles, coxeando e gemendo.

--Meu rico senhor,--disse ella dolentemente a Carlos--tenha compaixão
d'esta velhinha, que já não o póde ganhar.

Carlos não lhe dava attencão.

A velha insistiu:

--Ora dê, dê, meu fidalgo; e que nosso Senhor o veja dar.

--Não póde ser--disse distrahidamente Carlos.

A velha recorreu a Cecilia.

--Minha linda menina, peça-lhe que me dê uma esmolinha, peça; e que
nosso Senhor os faça a ambos felizes, já que tão bem os talhou um para o
outro.

Cecilia tentou sorrir, mas a confusão obrigou-a a baixar os olhos;
Carlos não menos confuso tambem com o equivoco da mendiga, tirou do
bolso uma moeda de prata e deu-lh'a, dizendo:

--Ahi tem; e vá com Deus, mulher.

Mas a mendiga entendeu que não devia supprimir assim as competentes e
diffusas formulas da sua gratidão.

--Ora nosso Senhor os faça muito felizes e os deixe viver muito tempo na
companhia um do outro, já que tão bem os juntou! Coitadinhos! Eu hei de
rezar muito ao Senhor para que os abençoe e os tenha a ambos na sua
divina guarda. Adeus, meu senhor, adeus; adeus, minha senhora. Nosso
Senhor Jesus Christo os ha de sempre ver do céo e dar-lhes a felicidade
que desejam. Ora coitadinhos!... Padre nosso, que estaes no céo...

Carlos e Cecilia viram-a afastar-se e sorriram, sem olhar um para o
outro, e sem saber bem o que dissessem. Voltou Manoel Quentino e nenhum
lhe referiu o caso, que com certeza o faria rir.

Este silencio é, no meu entender, de maxima significação.

Carlos acompanhou Manoel Quentino e Cecilia até á modesta campa, sobre a
qual um nome, uma data e muitas flores marcavam o logar, onde jazia a
que os dois ainda então choravam com saudade. Ao chegarem alli, Cecilia
ajoelhou e recolheu-se por algum tempo em oração piedosa; Manoel
Quentino, de pé, encostado á grade, orava tambem.

O contagio d'aquella commoção apoderava-se da alma de Carlos. Não sabia
elle igualmente o que era ser orphão de mãe?

Duas almas, que receberam, ainda em plena infancia, a precoce provação
d'esta dolorosa experiencia, devem entrar mais rapidas em intelligencia
de affectos. Ha um laço invisivel a prendel-as já.

Quando no templo, ou junto de uma campa, uma se enleva na oração, a
piedade filial da outra adivinha todas as palavras d'aquella prece,
resente todas as angustias d'aquella dor.

Calado, triste, fitou Carlos os olhos na sympathica figura de mulher que
orava assim, e quasi se sentiu impellido a ajoelhar-se-lhe ao lado e a
orar tambem.

Ao erguer-se, encontrou Cecilia os olhos de Carlos, ainda fitos n'ella.
Havia tanta sincera compaixão, impressa n'aquelle olhar, tanta d'essa
sympathia, que desvanece hesitações e inspira confiança, que, pela
primeira vez, Cecilia ousou olhal-o de face, dizendo-lhe com gesto de
gratidão e commovida:

--Trouxemol-o a um triste logar, snr. Carlos. Perdoe-me se não poupei o
espectaculo, pouco de alegrar, das orações de uma filha junto do tumulo
de sua mãe.

--Ha muitas especies de alegria, minha senhora--respondeu Carlos.--Ás
vezes os sentimentos melancolicos trazem comsigo algum prazer tambem, um
prazer suave, intimo, consolador. Agradeço-lhe ter-me proporcionado um
d'esses prazeres.

E calaram-se.

Manoel Quentino, findas as suas orações, deu-se pressa em saír d'aquelle
logar, ao qual não era affeiçoado.

A dupla qualidade, doce e amarga, da saudade faz com que uns, para quem
a primeira predomina, gostem de renoval-a; e que outros, que pelo
contrario lhe sentem mais o travor do que a doçura, se apressem a
fugir-lhe. Manoel Quentino era dos ultimos.

Carlos saíu com elles do cemiterio. Cecilia caminhava adiante. Carlos,
com os olhos n'ella, entretinha com Manoel Quentino aturada conversa
sobre os mais diversos assumptos. O velho guarda-livros fallava da
agricultura, de emprezas de commercio, de politica patria, de
melhoramentos municipaes, parando muitas vezes, no meio da rua, para dar
mais forca ás suas reflexões. Carlos escutava-o com paciencia e
docilidade, até então sem exemplo, e pelas quaes o proprio Manoel
Quentino estava maravilhado.

Ás vezes, ao chegarem a uma travessa, que podia conduzir Carlos mais
directamente a casa, o guarda-livros dizia-lhe:

--Agora então vae por aqui?

--Não; eu acompanho-o mais algum tempo--respondia Carlos.

--Não, mas veja lá...

--Não tem duvida; sigamos.

Só muito próximo já da casa de Manoel Quentino é que este insistiu de
tal maneira com Carlos para que não fosse mais adiante, «a não querer
fazer-me companhia ao jantar»--acrescentava elle--que, a seu pezar,
Carlos condescendeu.

Despediu-se affectuosamente de Manoel Quentino e de Cecilia, com olhar
um pouco menos timido já do que os antecedentes, mas do qual ainda se
envergonharia qualquer galanteador dos menos arrojados. Ao dobrar a
esquina, que lhe devia roubar á vista o pae e a filha, ousou voltar-se
para olhar ainda.

Manoel Quentino desapparecia já do portal; Cecilia, que ficára um pouco
atraz, voltára-se... occasionalmente--julgo eu que occasionalmente--de
maneira que os seus olhares trocaram-se com os de Carlos.

Este facto, bem simples, foi durante todo o dia alimento para a
imaginação do rapaz.

Não ha imaginações que de menos se sustentem, do que a dos namorados.
Dê-se-lhe um facto insignificante, um sorriso, uma palavra, um olhar, e
ella saberá extrahir de tão pouco infinitas riquezas de alimentação...
espiritual. D'ahi em diante, o acaso...--não sei que fosse outra
cousa--fazia com que, todas as tardes, Cecilia estivesse á janella,
quando Carlos passava a cavallo, em direcção aos arrabaldes; e de noite,
quando o snr. Fortunato principiava a notar que ia já tardando o chá,
havia sempre um momento, em que Cecilia resolvia ir ver como estava o
tempo, ficando alguns minutos por dentro dos vidros a contemplar o céo.

Ora queria ainda o acaso...--continuando a suppôr que era elle o motor
de tudo isto--que fosse exactamente n'essa occasião, que voltasse Carlos
dos arrabaldes, para onde de tarde passára. Não lhe era possivel
desconhecer o perfil de Cecilia, assim apparente no fundo illuminado da
janella; por isso naturalmente a cortejava, e, como a luz de um lampeão
se reflectia n'aquelle momento sobre o cavalleiro, tambem Cecilia não
podia deixar de reconhecel-o, e por isso naturalmente lhe correspondia
ao cumprimento.

Successos d'esta importancia preencheram muitos dias mais. Não
terminaria este capitulo, se fosse a registral-os todos. Amplie-o a
memoria dos leitores. Póde fazel-o, porque este capitulo é commum aos
romances de toda a gente.

No entretanto estranhava Jenny cada vez mais o irmão, e Manoel Quentino,
de seu lado, cada vez mais se preoccupava com as mudanças no genio de
Cecilia.

Carlos rompera completamente com os antigos habitos de vida.
Notava-se-lhe a falta nos cafés, no theatro, nas assembleias, nos grupos
dos amigos.

Passava horas e horas no quarto; ás vezes, com a cabeça pousada nas
mãos, sem ler, sem escrever, sem fazer cousa alguma; outras, ouviam-o os
criados passeiar por muito tempo, fumando charuto após charuto, e
enchendo de fumo a atmosphera em que respirava.

Saía, ora a pé, ora a cavallo, mas quasi sempre os passeios eram para
fóra da cidade. Affeiçoára-se subitamente á companhia de um velho
inglez, o typo mais massador d'esta colonia portuense, a ponto de ir ás
vezes esperal-o ao escriptorio e acompanhal-o com paciencia admiravel
até casa--a qual ficava na direcção da de Manoel Quentino.

Se alguma vez succedia ficar ao pé de Jenny, esta admirava-se da mudança
de ideias, que se operára n'elle; se procurava mostrar-se jovial,
percebia-se-lhe o esforço para conseguil-o. Tudo isto dava muito que
pensar á irmã.

Um dia, Jenny viu-o arremessar de si, com manifesto enfado, um livro que
estava lendo.

Olhou e reconheceu um volume das obras de Byron.

--Que é isso?!--perguntou Jenny, sorrindo--Que má vontade é essa hoje
contra o auctor que tanto aprecias?

--Impacienta-me ás vezes este poeta lord, para te fallar sinceramente.
Ha tanta amargura e tanto sarcasmo em algumas d'estas paginas, que,
pouco a pouco, nos fazemos maus, depois de uma aturada leitura d'esses
admiraveis poemas. É sublime, mas é desconsolador. Leio-o com a cabeça
atordoada, mas com o coração confrangido. Os instinctos da aguia são
mais altos e heroicos do que os das pombas; mas nós todos queremos as
pombas mais perto de casa e não nos consolaria tanto a vizinhança da
aguia, embora nos excite mais a curiosidade quando, uma ou outra vez, a
fitamos.

Jenny, em vez de sorrir a estas reflexões do irmão, tão alheias ao seu
modo ordinario de pensar, fitou-o com maior seriedade e, depois de um
instante de silencio, disse-lhe:

--Olha para mim, Charles.--Carlos levantou os olhos para ella.--Dizes
isso do coração?

--Digo; por que m'o perguntas?

--Por desejar sabel-o.

E calou-se, abaixando de novo a cabeça para a costura, em que
trabalhava.

De outra vez, aproximando-se da irmã, que tambem estava trabalhando,
Carlos tirou-lhe da caixa da costura a Biblia, e, abrindo-a ao acaso,
leu algum tempo em silencio. Depois, pousando-a sobre a mesa, disse em
tom de gracejo:

--Sempre que recordo estes singelos costumes patriarchaes, descriptos no
_Genesis_, não posso deixar de pensar nos muitos esforços que o homem
parece ter feito para embaraçar, cada vez mais, o caminho da sua
felicidade. Vê tu, Jenny, a simplicidade com que se fez todo este
casamento de Isaac e de Rebecca, e compara-a ás mil impertinentes
difficuldades, que, sob o nome de conveniencias, hoje é preciso vencer,
para se realisar um intento similhante...

Jenny respondeu-lhe no mesmo tom:

--Que estás a dizer, Charles? Quererias tu devéras ver renovados esses
costumes? Se, imitando Abrahão, o pae mandasse um servo, á terra dos
seus avós, procurar mulher para o filho, aceital-a-hia este rebelde
Isaac, embora o servo tivesse, como o da Escriptura, pedido e recebido
antes de Deus a inspiração que lhe assistiu á escolha?

Carlos pôz-se a rir. Passados momentos, respondeu:

--Mas pelo menos, n'esses tempos, os que já se mettiam a talhar o futuro
dos outros, inspiravam-se de boa origem; hoje... a affabilidade da
mulher que abaixasse o cantaro para matar a sêde ao viandante e aos seus
camêlos, não bastaria por certo para mostrar n'ella a escolhida por
Deus. O servo de hoje, antes de lhe pendurar os pendentes nas orelhas, e
de lhe enfiar os braceletes nos pulsos, quereria saber das posses e da
posição social da rapariga...

Este dialogo, não menos do que o primeiro, deu que entender a Jenny.

Pela sua parte, Cecilia não fornecia menos motivos á estranheza do pae.

Todos aquelles symptomas, que Manoel Quentino já antes descobrira
n'ella, haviam recrudescido agora.

Exagerára-se em Cecilia a especie de exaltação, frequente nas mulheres
nervosas, que faz tão promptos n'ellas os risos como as lagrimas, sob a
influencia de motivos igualmente pueris. Um amanhecer chuvoso e sombrio,
uma flor desfolhada pelo vento, uma borboleta tolhida pela geada,
avultam como desgraças grandes; o dispersar das nuvens, os primeiros
rebentos de uma planta, a primeira andorinha que se vê passar, a
primeira manhã que o cantar das aves sauda, desafiam expansões, proprias
dos grandes jubilos.

Excita-se a impaciencia com uma palavra; vencem-se antigas aversões com
um só olhar; um nada basta para destruir longos projectos; novas
resoluções vigoram rapidas; acredita-se cegamente nas inspirações do
momento; desconfia-se de resoluções meditadas; em uma palavra, tudo
então é mobilidade no caracter da mulher. Nunca ha menos logica nos
sentimentos, do que em situações assim. O coração pulsa sem rithmo
regular, o rubor e a pallidez disputam incessantemente as faces
virginaes, trahindo mysteriosas luctas interiores.

Manoel Quentino, pouco versado n'estes phenomenos do coração, via-lhes
só as manifestações, que eram bastantes para o inquietarem. Ninguem lhe
tirava da ideia que a filha estava para caír doente, que a doença da mãe
se transmittiria a ella tambem. E com esta apprehensão o pobre homem era
quem adoecia devéras.



XX


MANOEL QUENTINO PROCURA DISTRACÇÕES


O dia 1.º de abril de 1855 caíu ao domingo.

Mencionamos esta circumstancia, cuja exactidão o leitor póde, se quizer,
verificar; porque não foi ella insignificante para os destinos das
differentes pessoas, entre as quaes vae travada a acção da historia que
escrevemos.

São estas cousas justamente as que tão falliveis tornam as previsões
humanas; do facto ligeiro e pêco rebentam ás vezes taes e tantos
successos estupendos, que não só revolucionam a sorte de um homem, mas
até a dos imperios.

Como a referida circumstancia não se realisaria, se não fossem os annos
bissextos, segue-se que, por tal facto, a sorte dos que figuram n'esta
narração ficou ligada a não menos graúdas; personagens do que Julio
Cesar e Gregorio XIII, que foram os que, em épocas successivas,
regularam n'este ponto o kalendario, tal como hoje está.

Feita esta reflexão de philosophia da historia, prosigamos.

Sendo domingo, jantou Manoel Quentino mais cêdo, e, como visse de tarde
que a tristeza da filha se não dissipava, insistiu com esta para que não
ficasse em casa. Lembrou-lhe uma visita a Jenny. Cecilia acolheu o
alvitre com repugnancia visivel.

Um sentimento de delicadeza obstava-lhe a que procurasse a sua amiga
mais intima. Na mesma casa, em que ella vivia, vivia Carlos tambem, e eu
julgo que o leitor terá percebido, sem que eu lh'o tenha dito, que não
era já o filho de Mr. Whitestone uma pessoa indifferente para Cecilia.

Manoel Quentino instou porém com a filha para que saísse «a tomar ar e
distrahir»--dizia elle--e pediu isto de maneira, que Cecilia resolveu
fazer-lhe a vontade, indo visitar as filhas do major Mattos, que moravam
algumas casas acima da sua.

--Vae, vae;--disse Manoel Quentino--sempre te distrahirás mais com
ellas, do que ficando toda esta santa tarde commigo.

--E então o pae ha de ficar só?

--Eu... eu estou bem assim...

--Isso é que não--replicou Cecilia--irei, se me promette que vae dar um
passeio tambem.

--Pois sim, sim. Tudo se ha de arranjar. Lá por isso não seja a duvida.

--Mas então vista-se.

--Deixa-me descansar.

--Eu não saio, sem o ver saír.

Manoel Quentino foi obrigado a condescender. Estava intimamente
persuadido de que era vantajoso para a filha passar aquella tarde com
alguem, que a distrahisse; porque elle, nas tristes disposições de
espirito em que se sentia, não via bem como o fizesse.

Saíu pois, para obrigar Cecilia a saír, e, ao mesmo tempo, ia em busca
de distracções tambem.

Era um excellente homem Manoel Quentino, mas dotado de pouca penetração
para investigar o enigma da tristeza de uma rapariga de dezoito annos. O
seu excessivo amor de pae não o deixava ver claro n'isto. Tudo se lhe
figurava presagio de doença, e essa ideia fixa privava-o da necessaria
frieza, para ver claro n'estas cousas.

Cada manhã, ao acordar, era um pensamento negro o primeiro que se lhe
apossava do espirito--«Irei encontrar Cecilia com doença
declarada?»--pensava elle.

Todas as tardes, ao voltar a casa, em vez de tremer com o anticipado
prazer de encontrar e abraçar a filha, tremia com o susto de a vir achar
enferma.

Por mais que fizesse para tirar aquillo da ideia, não o podia conseguir.
Dormindo, inquietava-lhe os sonhos; comendo, vertia-lhe fel na comida;
trabalhando, distrahia-lhe a attenção do trabalho.

Os amigos do guarda-livros viam-o com olhos inquietos e murmuravam, uns
com os outros, na ausencia d'elle:

--Este pobre Manoel Quentino tem cousa que o rala.

--Está acabado, está.

--Se assim continúa, bem póde o snr. Richard ir lançando, as vistas
sobre outro caixeiro, porque este...

N'esta tarde fez Manoel Quentino um esforço desesperado para saír
d'aquelle sobresalto, em que andava.

Mas o pensamento humano, quando devéras tomado por uma ideia fixa, em
vão se esforça por arrancal-a de si; em vão se desvia para direcções
diversas; um como pendor natural o faz voltar de novo a ella. Póde-se,
de alguma sorte, comparal-o a estes dados falsificados que, qualquer que
seja a maneira por que se arrojem á mesa, mostram sempre aos olhos a
mesma face, em virtude da desigual distribuição de massa na sua
espessura.--Os phenomenos de equilibrio moral parece obedecerem a leis,
comparaveis ás do equilibrio physico.--A estabilidade do pensamento está
intimamente dependente da proporcional intensidade das ideias que sobre
elle actuam. Agitem um pensamento e deixem-o depois entregue a si, sem
novas causas a solicital-o; a ideia mais grave lhe determinará a posição
de equilibrio; para que esta se possa indifferentemente verificar em
qualquer sentido, é necessario que todas as ideias o solicitem com força
igual--phenomeno só proprio dos espiritos fatuos.

Como vimos, Manoel Quentino não pensava por aquelle tempo senão na
tristeza da filha, tristeza por elle supposta preludio de doença, que
cêdo a viria disputar ao seu amor. Durante toda a tarde não houve
corrente de pensamentos, suscitados pelos objectos que via, que a final
de contas não terminasse n'aquelle.

Sempre que Manoel Quentino emprehendia um passeio, com o fim de se
distrahir, não hesitava na escolha do itinerario. Desde tempos
immemoriaes adoptára um e nem lhe passava por o sentido modifical-o.
Deixava-se conduzir por o habito n'isto, como em tudo o mais.
Atravessava a cidade até á Ribeira; seguia depois, pela margem direita
do rio, até Campanhã; chegando ao Esteiro, tomava pela estrada de cima,
que o levava ao jardim de S. Lazaro, e emfim recolhia-se a casa.

Foi o que fez n'aquella tarde. A cidade atravessou-a lidando ainda com o
pensamento de tristeza, com que saíra de casa.

A primeira diversão operou-a só a vista do mercado de peixe, na Ribeira.

As lanchas valboeiras tinham, n'aquelle instante, chegado ao caes. As
regateiras, os compradores particulares e os pescadores que vendiam,
animavam o mercado com movimento e vozeria.

Este espectaculo, cheio de vida commercial, não achou indifferente
Manoel Quentino. Agradava-lhe aquelle trafego; examinava com olhos
conhecedores a excellencia do peixe, e informava-se curioso dos preços
que regulavam o mercado. Ao saír d'alli, ia pensando:

--Não ha nada para arranjo domestico, como a pescada. É o peixe mais
innocente que ha. Com razão lhe chamam a gallínha do mar. Ahi está a
sardinha, que é gostosa; mas é mais doentia tambem. Que a sardinha de
Espinho ainda não tanto, mas esta da barra!... D'onde virá a
differença?... Pois não será toda ella o mesmo peixe?... Só se é da
praia aqui ser mais pedregosa e o peixe saír mais batido... Que esta
costa da Foz sempre é muito cheia de pedras!... Só o perigo que correm
as embarcações aqui!... Ainda no outro dia, aquella grande desgraça dos
oito pescadores que naufragaram!... Muita pena teve Cecilia, quando as
folhas contaram de um que deixou uma creancinha orphã! Pobre Cecilia!...
tem um coração!... Coitada!... É um anjo... Assim que me lembro
d'aquella tristeza em que anda...

E ahi estava a ideia fixa com elle! Parece que ella propria fora a que
dispozera esta fileira de ideias associadas, para conduzir a si o
pensamento.

A impressão produzida pelo mercado desvanecera-se de todo; Manoel
Quentino proseguiu no passeio, já outra vez melancolico.

Mais adiante, tendo passado a ultima casa, que lhe tolhia a vista do rio
e a da margem opposta, volveu naturalmente os olhos para o vulto
escalvado e sombrio da Serra do Pilar, coroada pelo seu convento em
ruinas e a sua igreja circular. Os tristes vestigios das guerras civis
estão ainda n'aquelle logar muito evidentes, para que a lembrança
d'ellas não acuda subita ao espirito de quem quer que o contemple por
momentos.

Manoel Quentino, como quasi todos os portuenses da sua idade, havia sido
mais do que simples espectador das scenas tragicas d'essas memoraveis
épocas.

--Ha vinte e tantos annos--pensava elle--não havia, a estas horas, tanto
socego, por aquelles sitios, não. Nem tambem estes passeios pela beira
do rio eram tanto de appetecer como agora. Havia mais perigos, do que o
dos nevoeiros do Douro. A fallar a verdade sempre era um tempo
aquelle!... O que eu passei!... Parece-me que ainda foi o outro dia, e
já lá vão vinte e tantos annos!... Oh! mas que alegria tambem, quando se
abriram as linhas!... N'esse tempo era ainda a mãe de Cecilia uma
creança. Só quatro annos depois é que eu principiei a pensar n'ella...
Pobre rapariga!... Parece-me que ainda a estou a ver!... delgadinha,
desmaiada, boa para todos, mas trabalhadeira ao mesmo tempo... É por
isso que receio... Valha-me Deus! assim que me lembro da tristeza da
pequena!...

E da Serra do Pilar e do tempo do Cerco conseguira aquella ideia
dominante achar caminho para se lhe insinuar de novo no pensamento. E, o
que mais é, parece que cada vez trazia comsigo maior cortejo de
sinistros presagios.

Ao chegar á fonte do Carvalhinho, subiu uns degraus de pedra que alli
ha, e beheu, mesmo do caneiro, alguns goles de agua; cousa que nunca se
esquecia de fazer, porque tinha fé particular nas virtudes medicinaes
d'aquella excellente agua.

--Ah!--dizia elle outra vez distrahido--Consola beber uma agua assim!
Para aguas o Porto! Dizem que em Lisboa são más as aguas! Pois é das
cousas mais precisas para a saude. É verdade que eu vejo por aqui tambem
muitas doenças, apesar das aguas boas. E sobretudo a gente nova está
saíndo tão franzina e tão fraca, que é uma cousa por maior! E o medo,
que eu tenho, quando reparo em Cecilia! É tão delicada, tão...

E ahi estava outra vez assombrado para grande espaço de tempo.

Chegou á quinta chamada da China,--um dos passeios favoritos das classes
populares portuenses.

Desciam a rampa, que antecede o portão, alguns bandos de gente do povo,
rindo, cantando, em plena festa; iam em direcção ao rio. As barqueiras
de Avintes aproximavam os barcos da margem para os receber; outras,
ainda a grande distancia, chamavam, com toda a força d'aquelles pulmões
robustos, as pessoas que vinham por terra. Cruzavam-se os barcos,
movidos pelos vigorosos braços d'estas engraçadas e joviaes remeiras, e
carregados com os frequentadores das diversões campestres do Areinho e
da pesca do savel. Tudo era riso e cantigas no rio.

Manoel Quentino via tudo isto, e escutava entretido o canto de uma
barqueira, que dizia:

  As riquezas d'este mundo
  Para mim não tem valor:
  Eu sou rica nos tens braços,
  Sou rica do teu amor.

E elle pôz-se a pensar:

--Como esta pobre gente vive satisfeita n'esta vida trabalhosa do
rio!... Ao vento, á chuva, e sabe Deus o que tem em casa para comer! E é
um gosto como ellas cantam e riem!... Raparigas de quinze e dezeseis
annos consola vel-as já mover aquelles remos, que esfalfariam um homem,
como eu. Não ha como estes ares e esta vida do campo, para fazer as
pessoas robustas. Se eu adivinhasse que Cecilia aproveitaria com
elles!...

E retomava o pensamento a posição de equilibrio estavel, de que por
instantes se desviára.

Chegou ao ponto da margem, chamado Rego Lameiro. Ahi opéra o Douro uma
das suas subitas e surprendentes transformações. Expiram as collinas
fronteiras de uma e outra margem, interrompidas por um valle
deliciosissimo, onde a vegetação é mais abundante, mais povoadas as
verduras, e onde se encorporam em riachos as aguas escoadas dos proximos
declives. Apreciam-se tão raros intervallos, em que o Douro, o severo
Douro, sorri, como se aprecia um raio de alegria em rosto habitualmente
carregado.

N'este sitio alarga-se o leito das aguas, diminue portanto a força da
corrente d'ellas, chegando, nas marés baixas, a permittir a formação de
pequenos ilhotes de areia, para onde vão brincar as creanças dos
pescadores. A tortuosidade das margens, furtando á vista o seguimento do
rio, dá a este a completa apparencia de um pequeno, mas pittoresco lago.
Os olhos descobrem, de um lado, o extenso areal de Quebrantões, ao qual
succedem prados e leziras sempre verdes, veigas fertilissimas, arvoredos
espessos e, escondidas por o meio, as risonhas casas de algumas pequenas
povoações campestres; adiante as quintas da Pedra Salgada, e através do
véo azulado da distancia, a aprazivel aldeia de Avintes; do outro lado o
palácio do Freixo com seus torreões e balaustradas e as quintas e
ribeiras de Valbom e Campanhã. E se é ao fim do dia, quando o sol doura
todo o quadro, reflectindo-se afogueado nas vidraças voltadas ao
occidente, e a viração da tarde enfua as velas brancas das pequenas
embarcações do logar, e o céo é azul e as aguas limpidas, a paizagem
compensa bem os privados de gosar as bellezas mais celebradas por
viajantes e poetas, as analogas das quaes só a nossa cegueira nos não
deixa ás vezes ver a dois passos da porta.

Era aqui que Manoel Quentino se sentava sempre durante alguns minutos,
sobre uma pedra solta da margem.

--Como isto é bonito!--pensava elle--É que nem ha outro passeio assim,
nos arredores do Porto. E a tarde então está tão serena e socegada, que
até se percebe d'aqui tudo o que se diz no Areinho. Se eu tivesse
dinheiro, era onde comprava uma quinta. Chegando aos sabbados, saía do
escriptorio e mettia-me n'um barco... ou a pé mesmo... A final é um
passeio... É verdade que se viesse Cecilia, sempre era longe. Ainda que
ella não se cansa... Não se cansa?... não se cansava... agora...

E a ideia negra, aquella pertinaz ideia negra, a tomar outra vez posse
de Manoel Quentino! e, com o ir adiantando-se a tarde, parecia cada vez
mais negra, como se as sombras crescessem para ella tambem!

D'ahi em diante, não se modificou o processo das cogitações do velho.
Uma fabrica de cortumes, umas creanças, a quem deu esmola, uns armazens,
tudo quanto viu, após varias oscillações do pensamento, faziam caír
Manoel Quentino na preoccupacão anterior.

De maneira que o passeio, aquelle passeio que o devia distrahir, antes
lhe exacerbou o mal, que o atribulava.

Subia elle já a íngreme costeira, que leva do Esteiro de Campanhã até o
sitio do Padrão. A tarde arrefecera subitamente. Ou fosse o resultado
d'aquelle contínuo pensar em cousas tristes ou influencias de outras
causas, é certo que Manoel Quentino principiou a não se sentir bom.
Pesava-lhe a cabeça, como ourada; dobravam-se-lhe os joelhos de
fraqueza; sentia um geral quebrantamento no corpo, que lhe dificultava
já o regresso a casa; e depois a melancolia a condensar-se-lhe no
coração, que parecia que lh'o estava a apertar com mão de ferro.

Quasi se arrastava por aquella custosa estrada acima desalentado e
melancolico.

Chegando a uma das vendas, onde, aos domingos de primavera e estio,
costumam celebrar festivas merendas alguns joviaes habitantes da cidade,
chegaram-lhe aos ouvidos cantos e risadas, que, no atordoamento em que
ia, o incommodavam; pareceu-lhe ouvir pronunciar o seu nome, no meio
d'aquella vozeria; mas já não podia dispor da attenção para escutar o
que diziam. Continuou caminhando.

De repente, appareceu á porta um dos da companhia a chamal-o.

Manoel Quentino voltou-se lentamente para elle, sem dizer palavra.

--Então d'onde vem, snr. Manoel Quentino?

--D'ahi de baixo--respondeu, com voz fraca.

--E não encontrou ninguem conhecido pelo caminho?

--Eu, não.

--Pois ainda agora o procuraram aqui.

--A mim?!

--Sim; então não sabe o que ha?--disse o sujeito, que lhe fallava com
certos modos de importancia e cuidado.

O coração de Manoel Quentino principiou a bater desordenado.

--Eu não...

--Pois vieram, ha poucos minutos, procural-o aqui, para que fosse, já,
já, a casa, porque...

--Porque?...--interrogou Manoel Quentino, passando-lhe um calefrio por
todo o corpo e seccando-se-lhe subitamente a bôca, como em accesso de
febre.

--Porque... pelos modos... sua filha... estava bastante doente...
Disseram que o tinham antes ido procurar ao escriptorio... mas...

Manoel Quentino já não escutava; encontrando forças no seu amor,
sobresaltado assim, quasi deitou a correr por o mesmo caminho, pelo qual
com dificuldade se arrastára até alli.

O que lhe dera o aviso pôz-se a rir, ao vel-o partir com tal pressa.

--Venham ver, venham cá ver!--dizia elle para os companheiros.

Um d'elles chegou á porta.

--Pobre homem! Chama-o. Olha que isso póde fazer-lhe mal.

--Ó Manoel Quentino! Psiu! Olhe que é hoje o l.°de abril, homem! Manoel
Quentino!

Mas o pobre velho nem o ouviu; cada vez corria mais.

Estes homens tinham celebrado o 1.° de abril--este dia que, não sei por
quê, o uso popular consagra a reciprocas mystificações--ferindo no mais
doloroso o coração de um pae! E ainda poderam rir!

Louvado seja Deus! Ha gente assim graciosa no mundo!

--Vão lá agora segural-o,--disse o mystificador--deixa-o, maior alegria
o espera ao chegar a casa.

E voltou a divertir-se.

No entretanto Manoel Quentino proseguia n'aquella marcha rapida,
desordenada, como se desejasse fazer desapparecer de subito a distancia,
que inda o separava da filha, e ia murmurando:

--Cecilia... pobre filha!... Ó nossa Senhora!... que desgraça! que
desgraça! para que saí eu?... Não póde ser... Mas para me virem assim
chamar... Quem sabe se... Grande perigo! grande perigo, por certo!
Virgem Santa! E este caminho é tão longo!... E ella morta talvez por me
ver chegar... Ó filha, filha...

E as lagrimas caíam-lhe em fio pelas faces.

O atordoamento de cabeça augmentava; a energia muscular, que a nova
recebida momentaneamente lhe dera, cedia de novo logar ao mesmo
desfallecer, que, antes, lhe vergava os membros. O pobre velho
aterrava-se ao perceber isto.

--Oh! dae-me forcas, Senhor, dae-me forças para chegar depressa! Por
misericordia!--dizia elle, tremendo--A minha pobre filha!...

E os ouvidos zuniam-lhe cada vez mais; diante dos olhos, passavam-lhe,
de quando em quando, faiscas, manchas avermelhadas, nuvens de sangue;
ouvia o bater das fontes e das carotidas; furtava-se-lhe o chão debaixo
dos pés; andava e não se sentia andar; já não tinha poder de regular os
movimentos, que se succediam sem a coordenação regular.

Uns homens, que passaram por elle, pararam a examinal-o, e Manoel
Quentino ouviu-lhes ainda dizer:

--Olha como vae aquella alminha! ha de custar-lhe a dar com a porta de
casa.

Estas palavras affligiram ainda mais este pobre pae, já tão afflicto.
Tinha chegado á capellinha do Padrão.

--Que angustias, meu Deus! Valei-me, nossa Senhora!--murmurou elle.

Encostou-se algum tempo ás grades da porta, porque já não podia andar.

Fez uma oração fervente, d'estas orações que, se não abrirem de prompto
caminho até o throno de Deus, é porque para sempre se fecharam já as
portas do céo a todas as preces da humanidade. Mais sentida, mais do
coração, do que aquella, é que se não fazem no mundo.

Pareceu ganhar vigor por um pouco. Proseguiu, mas com o andar mais tardo
e vacillante. Cêdo porém voltaram as ameaças do mal. Um entranhado
terror apoderou-se-lhe do coração, uma como mysteriosa consciencia de
proximo perigo.

As luzes da illuminação publica appareciam-lhe coloridas de vermelho. A
perturbação de vista augmentou; tudo girava em volta d'elle; os objectos
tornavam-se-lhe indistinctos, afigurava-se-lhe que o terreno descia de
repente, e em uma descida tão rapida, que elle teve de parar para não
caír. Encostou-se á ombreira de uma porta.

Ouviu a voz de alguem, que já nem viu, dizer-lhe:

--O senhor não está bom? Entre para descansar.

--Não--disse elle com certo desabrimento, como se aquelle conselho lhe
desvanecesse cruelmente a illusão, que fazia por conservar ainda.

E de novo tentou caminhar.

Estava proximo do cemiterio publico, chamado do Repouso; deu mais alguns
passos.

Os mesmos symptomas atacaram-o de novo e com maior violencia; a vertigem
foi completa; o chão pareceu faltar-lhe.

O bom do homem ainda pôde murmurar:

--Senhor!... Senhor!... por piedade!... pois hei de morrer aqui, sem ver
minha filha?!...

E caíu sobre um dos bancos de pedra da alameda que está em frente do
cemiterio.



XXI


O QUE VALE UMA RESOLUÇÃO


Cecilia, pensando que o pae não prolongaria demasiado o passeio, voltou
a casa ainda com dia.

Anoiteceu, porém, sem que Manoel Quentino apparecesse.

Tudo era sombras na rua: para o lado do mar coloria-se o céo do rubor
inflammado do crepusculo... e ninguem!

O coração de Cecilia principiou a ennevoar-se de vagos receios, que ella
até fugia de definir.

Mas estas nevoas foram-se condensando em cerração, á medida que descia a
noite, e Manoel Quentino sem apparecer! A imaginação de Cecilia começava
já a lembrar-lhe mil escuras explicações d'aquella extraordinaria
demora.

A boa rapariga não podia socegar.

Vinha á janella com esperanças de avistar o pae no principio da rua, e
retirava-se para dentro outra vez, pezarosa e assustada porque o não
via.

Fallava a Antonia, desejando ouvir d'ella alguma supposicão, que a
tranquillisasse; mas a criada, tambem assustada com a demora do amo,
longe de a animar, aterrava-a com as suggestões da sua fertil
imaginativa.

--Olhem agora!--dizia ella--Não que uma demora assim! Eu nunca vi!...
Quem sabe lá? Não lhe fosse por ahi acontecer alguma!...

--O que lhe havia de acontecer, mulher? Você tambem!--disse Cecilia,
tranzida de susto com esta vaga insinuação da criada.

--O que lhe havia de acontecer?--proseguiu esta--Ellas em qualquer parte
se armam. Até na cama se quebra uma perna. Veja aquelle velho, que
passava d'antes todos os dias por aqui para a alfandega. Então não
escorregou um dia no degrausito da porta, que não tinha mais do que
isto--e indicava uma mão travessa;--caíu, e de tal maneira, que no fim
de oito dias estava enterrado.

Cecilia empallidecia só de ouvir estas palavras.

--Mas, se tivesse succedido alguma cousa, tinha já mandado dizer.

--Conforme, menina... Ás vezes acontecem os males em sitios, onde
ninguem conhece uma pessoa, e se se não póde fallar... Ahi está que...

--Havia logo de succeder tudo mal. Nem que o pae fosse para algum sertão
de selvagens. Você tem cousas!

--Pois sim, mas o que é certo é que se a demora fosse natural, elle é
que já tinha mandado aviso. Pois então não havia de saber a canceira e
susto que causava á menina?

Cecilia afastou-se, impaciente, d'esta Cassandra de cozinha, e voltou á
janella.

Estavam já accesos os lampeões da rua. As sombras da noite parecia
estenderem-se ao coração de Cecilia.

--A menina quer que traga luz?--perguntou a criada, entrando na sala.

Esta pergunta, obrigando-a a notar o adiantado da hora, soou
funebremente aos ouvidos de Cecilia.

--Não--disse ella, com voz alterada.--Luz, tão cêdo!

--Cêdo?! Onde vão as sete, menina! Está de ver que não vem.

--Que não vem! Que não vem! Você está douda, mulher? Pois não ha de
vir?--exclamou, com dobrada impaciencia e quasi com raiva, Cecilia,
debruçando-se mais na janella.

--A menina não faz nada em o esperar assim. Lá por estar ahi não é que
elle vem mais depressa--ponderou tolamente a snr.ª Antonia.

--Não lhe importe; deixe-me--disse-lhe sêccamente Cecilia.

--Uma cousa assim!--proseguiu a criada--Não que quando a gente mal se
precata! Sáe uma pessoa muito socegada de sua casa e só Deus sabe para
quê! Para onde iria tambem aquella creaturinha do Senhor? Quem póde lá
dizer o que lhe succedeu? Sume-te! Eu lembro-me de que um dia meu pae...

--Vá buscar luz, vá--ordenou Cecilia, para escapar ao caso, que Antonia
apparelhava, com o piedoso intento de tirar d'elle talvez uma inducção
pouco de tranquillisar.

Antonia saíu.

Cecilia, de assustada que estava, já não sabia o que fizesse.

Qualquer vulto, que assomava ao principio da rua, lhe parecia o pae;
seguia-o com anciosa curiosidade, cêdo transformava-se em desalento esta
curiosidade, porque o via passar indifferente para além da porta da
casa.

Andavam já bem perto dos olhos as lagrimas em Cecilia, quando Anlonia
voltou com a luz.

--Então, ainda nada?--perguntou a criada.

Cecilia não lhe respondeu.

--Quer que feche as janellas?

--Não.

--Não tem que ver; a cousa não é natural. O pae é amigo de recolher-se
cêdo e não era homem que não mandasse recado, no caso de, de todo em
todo, não poder vir. Ninguem me tira d'isto. Aquillo foi cousa que lhe
succedeu por lá.

O relogio deu meia hora depois das sete.

--Já sete e meia! Sempre é demais! Ó menina, eu vou extrahir o chá, não
acha?

--Não; cale-se para ahi. Quero lá saber de chá. Bem me importa a mim o
chá. Você perdeu o juizo?

--É que o snr. José Forrunato não tarda por ahi...

--Pois se vier, veio. Não tenho mais em que pensar, senão no snr. José
Fortunato! Deixe-me, deixe-me.

Antonia era d'estas pessoas, a quem as maiores inquietações não fazem
perder a ideia das suas obrigações habituaes. Emquanto o espirito se
perturba e a bôca lhe traduz os pensamentos, as mãos, independentes da
imaginação, proseguem na tarefa do costume.

Cecilia não; caracter apaixonado, era toda da ideia que a possuia. A
irresolução, que devia áquelle estado de anciosa duvida, para tudo a
inhabilitava.

Em nada consentia que lhe fallassem n'aquelle momento, nada queria
escutar, de nada queria saber.

Anciada, nervosa, impaciente, febril, passava de uma para outra janella,
voltava ao interior da sala, chegava ao patamar, e corria á janella
outra vez.

Em uma d'estas occasiões ouviu duas mulheres, que passavam na rua,
dizerem:

--Uma desgraça assim! Foram todos; uns morreram, outros ficaram
aleijados para toda a vida.

O coração de Cecilia bateu com violencia ao ouvir aquillo. Não pôde
reprimir-se, que não perguntasse ás mulheres de que desgraça fallavam.

E tremia de ouvir a resposta. Disseram-lhe que era de uma saibreira, que
desabára na vespera sobre uns trabalhadores. Respirou!

De outra vez, era um homem que viera a correr desde o principio da rua e
parára defronte da casa, irresoluto, como quem procurava reconhecer uma
de entre aquellas diversas moradas. Cecilia queria perguntar-lhe quem
elle procurava, mas quasi não tinha voz para o fazer, tal era o intenso
terror, que se apossou d'ella, ao ver este homem.

Parecia-lhe impossivel que não fosse algum mensageiro de desgraças.

A final conseguiu fallar-lhe. O homem procurava um vizinho.

Cecilia guiou-o, ainda mal restabelecida do susto que sentira.

Tendo voltado á sala ouviu tocar a campainha do portal.

Estremeceu alvoroçada de esperanças e de temores.

--Será elle?

N'este tempo já Antonia vinha no corredor e com fleugma inalteravel
atalhou:

--É o snr. José Fortunato; são as horas.

Cecilia voltou as costas despeitada e triste. Sentiu no coração uma
quasi má vontade contra o nocturno visitador.

Era de facto o snr. José Fortunato que chegava.

--Muito boa noite, menina; passou bem?--disse José Fortunato, ao entrar
para a sala.

--Muito afflicta, snr. José Fortunato, muito afflicta, não faz
ideia!--respondeu Cecilia.

--Sim?!--tornou o outro, pousando os varios artigos do seu complicado
vestuario, guarda-chuva, capote, _cache-nez_, luvas, chapéo, a caixa do
tabaco, e tomando assento no logar do costume.

--Pois não quer saber?--continuou Cecilia--meu pae saíu esta tarde, a
dar um passeio, e são as horas que vê, e não voltou ainda a casa!

--Na verdade, é... é celebre! Succeder-lhe-hia alguma cousa?

Pergunta suficientemente tola.

José Fortunato rivalisava com Antonia, na maneira de intervir na
presente crise; as suas palavras, longe de serem tranquillisadoras,
tinham por effeito exacerbar a inquietação e o susto.

Cecilia sentiu esse effeito, porque chegou logo á janella, com maior
anciedade ainda, dizendo a tremer:

--Que lhe havia de succeder?...

--O snr. Manoel Quentino--continuava José Fortunato, placidamente
sentado á mesa--havia já alguns dias que andava assim não sei como. Eu
disse-lhe ainda antes de hontem:--«Homem, é preciso olhar por isso,
antes que vá a mais; consulte alguem.»--Mas elle, não, senhor; _tinha_
lá aquelle genio.

A escolha do tempo para o verbo era para fazer redobrar os terrores de
Cecilia. _Tinha_! Este bom homem de José Fortunato era d'estas cousas;
dir-se-hia que, para elle, Manoel Quentino já não podia merecer as
honras do presente de um verbo! Não contente com isto principiou:

--Estas mudanças de tempo não são nada boas, sobre tudo em certas
idades. Tem havido por ahi muitas molestias repentinas. Ahi está que
aquelle Gambôa, que era empregado na camara, teve hontem um ataque de
apoplexia e foi-se, enquanto o diabo esfrega um olho.

--Jesus! snr. Fortunato; por quem é, não falle n'essas cousas!--exclamou
Cecilia angustiada--Se tivesse succedido alguma desgraça a meu pae, não
havia já de ter vindo alguem dizel-o aqui? Aquillo é que se demorou...

--Pois eu não digo, menina, que... mas ás vezes; olhe que a gente para
adoecer basta estar vivo e depois um desastre... Ahi está que tambem o
pae tinha um outro mau costume, de que eu tambem o avisei muitas vezes;
ia sempre áquelles vapores inglezes, quando elles entravam, e, apesar de
ser homem pesado, porque já não é creança, usava n'ísso de muito pouca
cautela, e, ás vezes, na atracação... Olhe que é uma cousa perigosa!
Para quem não sabe nadar...

As palavras de José Fortunato soavam aos ouvidos de Cecilia, como um
dobre a finados.

--Snr. José Fortunato!--disse ella, quasi erguendo as mãos--Não vê que
com essas palavras me mata? Demais, meu pae não tinha hoje de ir a bordo
de vapor algum. Hoje ao domingo! Estou a dizer-lhe que foi passeiar.

--Socegue, menina. Eu espero tambem que não tenha succedido nenhuma
desgraça. Isto era um modo de fallar. Deus é bom e sabe a falta que o
snr. Manoel Quentino cá fazia ainda. Nem quero que me lembre similhante
desgraça! Credo! Santissima Trindade! Ainda se elle fosse homem, que
tivesse regulado os seus negocios; mas parece-me que não fez ainda
disposições. Eu bem sei que tudo quanto elle tem é da menina, mas ainda
assim, havia ahi uns dinheiros mal parados... e... e... sempre é bom
olhar por essas cousas...

Cecilia não pôde reter o pranto, que lhe acudiu aos olhos a estas
lugubres considerações do seu interlocutor.

--Então não se afflija--dizia este, no mesmo tom de voz.--Que fazemos
nós em nos estarmos a affligir? não fazemos nada; por isso... E demais,
se fosse vontade de Deus que alguma desgraça acontecesse, a menina não
ficaria desamparada; tem amigos e protectores... Perdia um bom pae, isso
perdia; mas.

--Ó snr. José Fortunato, pelas almas, não me falle assim! Isso é
crueldade.

--Eu não digo isto para a affligir. Socegue. Mas n'estas cousas é bom
suppôr o peior.

E, ainda que nas melhores intenções, continuou o snr. José Fortunato
n'este homoeopathico systema de conforto.

A agitação de Cecilia augmentava.

--Antonia!--bradou ella, vendo passar a criada no corredor--Tenha
paciencia; eu não posso socegar. Esta incerteza mata-me, vá, vá você ao
escriptorio, vá por ahi, vá saber... vá procurar... O snr. José
Fortunato está agora aqui e... Vá. vá.

--Ó menina! não vê que é noite fechada?! Uma mulher só por essa cidade
abaixo, feita uma Maria tola!

--Ó creatura, então que tem?

--Ora essa? Então que tem?!

--Não é bonito, não--concordou José Fortunato, tomando posição mais
commoda.

Cecilia não lhe deu resposta, correu de novo á janella.

A rua estava deserta.

--Olhe se lhe faz mal esse ar--dizia José Fortunato.--A menina parece
que está já um pouco tomada da garganta. É preciso cautela; estas
constipações despresadas... Seria bom beber alguma bebida quente.

Ah! snr. José Fortunato, snr. José Fortunato! ahi anda já um pouco de
egoismo; a hora do chá vae passando. Ó barro humano!

--Não sei bem o que tem mão em mim, que não vou eu mesma!--exclamou
Cecilia ao voltar da janella--E se isto continúa assim, não respondo por
o que farei. Oh! Não ser eu rapaz!

José Fortunato não comprehendeu qual era o seu dever n'esta occasião.
Foi defeito de percepção e não de vontade.

A intelligencia era-lhe ronceira e as boas lembranças acudiam-lhe, mas
tarde; quando já não era tempo de realisal-as. Foi por isso que só teve
a dizer:

--Pois olhem o milagre! Se a menina fosse rapaz!... Mas desengane-se,
snr.ª D. Cecilia, se tiver succedido alguma desgraça ao pae, mais
minuto, menos minuto, ella ha de saber-se.

--Agradecida, pela consolação!--não pôde deixar de dizer Cecilia, com
manifesto mau humor.

--De uma vez tinha eu ido a um magusto, ahi para os lados da Cruz da
Regateira, e ao voltar...

Lá parecia ao snr. José Fortunato aquella occasião apropriadissima para
contar um caso.

Antonia dispunha-se para ouvil-o.

Cecilia fez um movimento de impaciencia e voltou para a janella.

No momento, em que chegou alli, avizinhava-se vindo da extremidade da
rua, opposta aquella d'onde ella esperava o pae, um homem a cavallo.

Era Carlos; voltava do costumado passeio extra-urbano.

Cecilia reconheceu-o, e acudiu-lhe uma lembrança.

Emquanto o cavalleiro vencia a distancia que o separava ainda de casa,
Cecilia voltou-se para dentro, dizendo:

--Então não querem ir saber de meu pae, não?

O emprego do verbo no plural foi um empuxão dado á pêrra intelligencia
do snr. José Fortunato, o qual, pela primeira vez, se lembrou de que
podiam ser de algum prestimo os seus serviços.

--Ó menina! mas não vê que é noite fechada?--disse Antonia, como, havia
pouco tempo, dissera já.

O snr. Fortunato estava ainda elaborando mentalmente a descoberta que
fizera. Cecilia não esperou pelo resultado de tal elaboração.

Carlos Whitestone estava por baixo das janellas d'ella, e cortejava-a.

Cecilia não hesitou.

--Snr. Carlos--disse com a voz tremula de sobresalto.

Carlos, surprendido por se ouvir chamar assim, aproximou logo o cavallo
da janella.

--Minha senhora?

--Perdôe-me, por quem é, isto que faço;--continuou Cecilia--mas desde o
principio da tarde que meu pae saiu e ainda não voltou a casa, nem
d'elle tenho noticia! Imagine o meu susto! Sabe por acaso, se...

--E para onde foi elle, quando saiu?

--Disse-me que ia passeiar... mas...

--E não voltou!--atalhou Carlos, estranhando tambem aquella excepcional
demora.

--Que lhe terá succedido, meu Deus?!--exclamou Cecilia, recebendo a
communicação da surpreza de Carlos e transformando-a logo no mais
apprehensivo terror.

As resoluções em Carlos eram tão promptas, como morosas em José
Fortunato.

--Socegue, minha senhora. Eu vou já saber d'isso e conte que, dentro em
pouco, lhe trarei aqui seu pae.

--Oh! muito agradecida, snr. Carlos, muito agradecida!--disse Cecilia,
com a voz repassada de gratidão.

Carlos cortejou-a de novo e partiu a galope.

Ao vel-o partir, a consolação de uma esperança entrou pela primeira vez
no coração de Cecilia.

Carlos era para ella um d'estes homens, que, se um dia tentam o
impossivel, conseguem-o.

Ao voltar-se, achou Cecilia, a dois passos de si, Antonia e o snr. José
Fortunato, que olhavam com physionomias estupidamente pasmadas.

--Que foi fazer, menina?!--disseram elles quasi ao mesmo tempo.

--Aquillo a que me obrigaram. Se podesse, ia eu. Ha muito que não
estaria aqui já, cansando inutilmente o espirito a procurar explicações
e só a encontral-as assustadoras; se tivesse mais alguem a quem
recorrer, não iria incommodar uma pessoa, a quem...

--Mas, n'esse caso, porque me não disse? então não estava eu
aqui?---perguntou José Fortunato, com a maior candura d'este mundo.

Cecilia fitou-o com olhar de raiva e nem lhe pôde responder.

--A fallar a verdade--disse Antonia--não sei o que parece! Pois a menina
vae assim, sem mais nem menos, fallar da janella para baixo, com aquelle
senhor?...

--Se a vizinhança por ahi visse...--acrescentava o outro, espreitando
para verificar se a sobredita vizinhança teria de facto visto--E então
quem? Um cabeça no ar... o filho...

--Basta!--exclamou Cecilia, não podendo já reprimir-se mais tempo--Era
escusado isto, era, se outras pessoas tivessem tido já a lembrança e a
caridade de o fazer. Ha uma hora que me vêem n'esta afflicção e só sabem
dar-me consolações, que fariam rir a quem não tivesse no coração esta
agonia que eu tenho. Agora então veem com os reparos da vizinhança; a
vizinhança não me tira uma só das canceiras com que estou, para que eu
me deva importar com ella.

José Fortunato estava deveras condoído por se não ter lembrado a tempo
dos seus deveres. Era sestro do homem.

--Ó snr.ª Antonia, faz favor de me vir alumiar--dizia elle, procurando
já munir-se dos seus numerosos petrechos de campanha.

--Onde vae? onde é que vae?--perguntou Cecilia--Já agora o que está
feito, está feito. Quando o snr. Fortunato fosse ao fim da rua, já o
snr. Whitestone teria corrido a cidade toda. É melhor ficar.

José Fortunato ficou.

Tambem era qualidade sua esta pouca tenacidade, com que pugnava pelas
resoluções tomadas.

No entretanto Carlos voava por toda a cidade, que, em pouco tempo,
atravessou de norte a sul.

Por milagre não atropellou ninguem. Muitos dos que escaparam áquella
carreira impetuosa, áquella velocidade, comparavel á do acrolitho,
ficavam a murmurar phrases, mais ou menos impacientes, contra o
imprudente cavalleiro.

Chegou, no fim de alguns minutos, ao escriptorio da rua dos Inglezes.

O silencio d'aquelle logar, a essas horas, formava perfeito contraste
com a animação que alli reinava nas manhãs dos dias de semana.

Carlos fez estremecer a casa com as rijas pancadas que descarregou na
porta.

Alguns vizinhos chegaram á janella.

O criado do escriptorio correu a receber as ordens do seu patrão mais
novo.

Carlos, mesmo a cavallo, perguntou-lhe se tinha visto Manoel Quentino
n'aquella tarde.

Disse-lhe o criado que o vira atravessar o mercado do peixe, em direcção
a Campanhã; que, sendo esse o seu passeio predilecto, era provavel
que...

Carlos não ouviu o resto, partiu a galope outra vez, na direcção
indicada.

--Sume-te!--disse o criado comsigo--Parece que leva diabo no corpo.

Com igual rapidez seguiu Carlos toda a margem direita do rio, horas
antes trilhada por Manoel Quentino. Era preciso ser excedente
cavalleiro, para se não esbarrar por um caminho d'aquelles, a taes horas
da noite e com tal impetuosidade de carreira.

Carlos dirigiu-se ao armazem de vinhos, que a casa Whitestone possuía em
Campanhã. Nas vizinhanças morava o mestre tanoeiro, que acudiu a saber
quem era e o que pretendia o nocturno cavalleiro, que ameaçava rebentar
as dobradiças das grossas portas de castanho do armazem.

Vendo Carlos, ficou espantado. Carlos perguntou-lhe por Manoel Quentino.

O homem respondeu que, ao cerrar da tarde, o vira subir a estrada do
Padrão, e que devia ter já voltado a casa havia muito tempo.

Carlos proseguiu a sua corrida, deixando tão estupefacto este, como
deixára o criado do escriptorio.

Na estrada passou por um grupo de sujeitos, que regressavam, cantando,
do «bom retiro» campestre, onde, á mesa e á sombra da ramada, haviam
passado a tarde inteira.

Carlos conheceu-os. Eram alguns dos mais folgazãos membros da classe
commercial, pela maior parte conhecidos de Manoel Quentino.

Ia a passar-lhes adiante, quando se lembrou de informar-se com elles
tambem a respeito do velho.

Responderam-lhe rindo e contaram-lhe da mystificacão, que o leitor sabe
já, porque eram estes os mesmos que nós já encontramos. Os homens riam
ainda, ao lembrarem-se da pressa com que Manoel Quentino galgára a
costeira de Campanhã.

--Que estupida graça!--disse Carlos, preparando-se para seguir o
caminho.

--Ora essa!--respondeu um do bando--Até será uma alegria para o velho,
quando chegar a casa e vir que...

--Se não tiver morrido antes pelo caminho--atalhou Carlos; e, picando o
cavallo, partiu a galope.

--O homem vae doudo--disse um.

--Esbarra-se!--acrescentou outro.

--É um inglez de menos. Que o leve o diabo.

E continuaram a cantar e a rir.

Carlos chegou em um momento á capella do Padrão.

D'ahi seguiu, a trote mais moderado, pela estrada, informando-se aqui e
além a respeito de Manoel Quentino. Poucos indicios colheu, até que por
acaso interrogou a mulher, á ombreira de cuja porta o velho
guarda-livros se encostára.

Esta deu-lhe assustadoras informações do estado em que o viu, e agourou
mal do destino do homem.

Verdadeiramente inquieto, proseguiu Carlos nas suas pesquizas, até
chegar á alameda do Repouso.

Em um dos bancos de pedra pareceu-lhe distinguir o vulto escuro de um
homem. Aproximou-se.

Com sentimento de verdadeira alegria, reconheceu Manoel Quentino.

Cêdo porém succedeu o susto a esta primeira impressão.

O velho estava immovel e com as feições transtornadas, como se fora
cadaver já.

Carlos segurou-lhe o braço, que sacudiu com violencia.

--Manoel Quentino! Manoel Quentino--bradava elle.

Respondeu-lhe um som rouco e inarticulado.

Carlos chamou-o mais alto outra vez.

Áquella voz conhecida, Manoel Quentino abriu lentamente os olhos e fixou
em Carlos a vista esgazeada.

--Que é isto, Manoel Quentino? Que faz aqui? Que tem? Diga: que lhe
succedeu?

Depois de alguns esforços, o velho conseguiu exprimir uma resposta
desordenada.

--Eu... eu vinha... não sei o que senti em mim... Quando me disseram
da... doença de Cecilia... quiz correr... e... e faltou-me a vista...
e... Eu já não estava bom... O frio... julgo que foi o frio... Por mais
que quiz ver se me movia... Agora mesmo.

--Socegue. Sua filha está boa e só com muito cuidado pela sua demora.
Veja se póde erguer-se.

--Mas... alli... em baixo... disseram-me...

--Foi uma estupida graça de uns senhores, que, avaliando a delicadeza
dos sentimentos dos outros por a dos seus, julgaram dever solemnisar o
1º de abril d'aquella maneira cruel.

--Deus lhes perdôe, se assim foi...

--Foi; disseram-m'o elles mesmos. Ande, venha. Não faça maiores
inquietações em casa, do que as que já vão por lá.

--Pobre filha!... Eu vou... mas não sei se...

Manoel Quentino tentou levantar-se, porém vacillaram-lhe os passos e
caíu sentado outra vez.

Carlos estava irresoluto; não sabia o partido que tomasse.

--Então, Manoel Quentino, veja se ganha forças. Experimente se póde
montar a cavallo.

Novo esforço do velho, succedido de igual resultado.

O embaraço de Carlos augmentava.

Pensava já em o levar na garupa, quando passou na estrada uma sege de
aluguer, que voltava para a cidade. O boleeiro deixava ir os cavallos a
passo e assobiava; uma especie de jockei dormia ao lado d'elle; Carlos
conheceu o boleeiro.

--Ó Gonçalo.

--Quem me chama?

--Vae vasio o carro?

O boleeiro reconheceu Carlos.

--Ah! é v. s.ª? Vae vasio, vae, sim senhor, meu patrão.

--Então ajuda-me a transportar para lá este sujeito, que está doente, e
leva-nos a toda a brida para a rua de...

O boleeiro correu a prestar o auxilio pedido.

--E tu--acrescentou Carlos, para o improvisado jockei--monta n'esse
cavallo, e leva-m'o a casa. Avia-te!

Carlos era obedecido como um dos freguezes de mais prompto e generoso
pagamento que havia na cidade.

--E olha--disse elle ainda para o jockey--de passagem vae ainda a casa
do doutor F. e pede-lhe que venha sem demora ver o snr. Manoel Quentino,
a sua casa. Dize-lhe que vaes do meu mando. Anda.

O rapaz partiu como um foguete.

Carlos e o boleeiro ajudaram Manoel Quentino a entrar na sege; dentro em
pouco faiscavam as pedras das calçadas sob as patas dos cavallos,
fustigados com toda a alma por o boleeiro, cujo ardor o estimulo de uma
gorgeta excepcional instigava.

Carlos tinha cumprido a promessa feita a Cecilia.

Foi com um grito de jubilo, que Cecilia, cujos terrores haviam
recrudescido com a demora, viu parar a carruagem á porta de casa e saír
d'ella o pae, amparado cuidadosamente pelo braço de Carlos Whitestone.

Os primeiros momentos absorveram-os inteiramente as expansões de
alegria.

Correu ao portal e ahi recebeu nos braços o pae, chorando commovida.
Desentranhava-se aquelle piedoso sobresalto em phrases soltas, sem nexo,
em exclamações, em perguntas, em beijos, em lagrimas e em sorrisos.

Manoel Quentino subiu as escadas apoiado de um lado em Cecilia, do outro
em Carlos. Foi assim que entrou para a sala, onde Antonia e José
Fortunato, no meio de felicitações, de perguntas, e até de conselhos,
lançavam olhares de desconfiança a Carlos, que nem attenção lhes dera
ainda.

Passada a primeira explosão de alegria, incoherente e irreflectida,
houve logar no coração de Cecíiia para duas ordens de sentimentos
oppostos.

O primeiro foi de gratidão para Carlos.

Estendendo-lhe amigavelmente a mão, disse-lhe, com um olhar, uma
inflexão de voz, e um rubor de faces, que multiplicavam o pouco valor da
palavra:

--Muito obrigada.

Phrase insignificante, que n'esta occasião teve mais eloquencia, do que
um discurso.

Depois inquietou-a outra vez o estado em que via o pae. A decomposição
do rosto, a pallidez, a tristeza não habitual, reproduziram vivos os
receios, que a chegada d'elle serenára.

Interrogou-o então sobre os promenores do succedido. Carlos deu uma
rapida explicação. Cecilia escutava-o com o sobresalto do susto e
lagrimas de reconhecimento. Antonia e José Fortunato acharam nos factos
pretextos para formularem conselhos de prudencia, a que elles só deram
attenção.

Cecilia redobrou de cuidados para com o pae: que os aceitava com certa
frieza morbida, que a assustava.

Carlos associou-se por vezes á joven e carinhosa enfermeira e, com tão
intelligente solicitude, que obteve d'ella frequentes sorrisos de
approvação e de agradecimento.

Quando o medico chegou, ainda Carlos não deixára a casa.

O facultativo informou que tinha sido aquillo uma das oito fórmas de
congestão cerebral, admittidas por o professor Andral, e das mais
benignas. Descreveu os symptomas, apreciou as causas, formulou o
tratamento, sangrou e saiu.

Manoel Quentino achava-se melhor.

Carlos despediu-se mais tranquillo e prometteu voltar.

Á saída, Cecilia apertou-lhe a mão com affecto.

Antonia resmungou.

José Fortunato recolheu-se a casa perto da meia noite e pouco satisfeito
com a sua pessoa.



XXII


EDUCAÇÃO COMMERCIAL


Manoel Quentino foi constrangido pela força das circumstancias a
conservar-se de cama, nos dias seguintes a este.

Impozera-lh'o o facultativo, que lhe assistira; pedira-lh'o Cecilia, e
exigira-lh'o Carlos e o proprio Mr. Richard Whitestone, que viera, pela
manhã, visitar o guarda-livros.

Esta necessidade de abstenção de exercício era o que mais affligia
Manoel Quentino. Figurava-se-lhe que os negocios commerciaes caminhariam
desordenados sem a sua cooperação; mortificava-o a ideia do cháos em que
o escriptorio cairia, se por muito tempo a doença se prolongasse.

--Valha-me Deus! Como ha de ser isto agora?--dizia elle, devéras
aterrado com a ideia, quando na presença de Cecilia e de Carlos, que
demorára a sua visita, mais do que Mr. Richard, tomava a custo um caldo
adietado, unico alimento que lhe permittia a arte medica.

--Que canceira lhe está a dar essa ninharia!--disse Carlos, procurando
desvanecer aquelles cuidados--Socegue; a sua doença será de pouco tempo;
a casa Whitestone não se perde com essa pressa. Lá estão os outros
caixeiros.

-Ora os outros, sim!... Os outros!... É bom de dizer...

--Mas então, meu pae, que se lhe ha de fazer? Quando Deus lhe der saude,
trabalhará dobrado. Agora veja, mas é se toma esse resto de caldo...

--Nem quero que me lembre! Em que desordem não irei encontrar tudo por
lá! E depois, a escripturação atrazada!... Ó filha, bastará de caldo por
agora.

--Só duas colhéres mais.

--E por que não ha de o Paulo fazer a escripturação?--insistiu Carlos.

Manoel Quentino fitou n'elle um olhar de espanto.

A sciencia da escripturação era para o velho guarda-livros da tal
difficuldade e transcendencia, que a pergunta de Carlos soára-lhe aos
ouvidos e irritára-lhe os nervos, como uma imperdoavel heresia.

--O Paulo?! O senhor tem cousas!... Cuida que escrever nos livros
commerciaes é o mesmo que fazer um rol de roupa suja?!

--Ao principio não duvido que se lucte com alguma difficuldade, mas no
fim de tres dias...

--Tres horas, tres horas... é melhor tres horas... Valha-o Deus! Ó
Cecilia, eu não posso levar ao fim este caldo... Tira para lá, filha...

--Era uma colhér só--disse Cecilia, fingindo que lhe obedecia, mas com
um modo, que quebrou a Manoel Quentino a coragem de resistir-lhe.

--Então dá cá.--E, fechando os olhos, esgotou até ás fézes aquella
especie de taça de amargura, fez uma careta, e respirou no fim, como se
alliviasse de enorme encargo.

D'ahi a pouco, a ideia de faltar ao escriptorio incommodava-o outra vez.
Antevia mil complicações sérias nos negocios pendentes, e tão longe ia,
n'este caminho, a sua fertil imaginação, que não parava senão em
imminente fallencia.

Homem habituado a não passar um só dia ocioso, exagerava as
consequências da sua falta; guarda-livros, que adquirira, por trabalhosa
experiencia, o saber commercial, suppunha indispensaveis annos para
habilitar qualquer intelligencia a adquirir igual saber e a ordenar a
escripturacão dos livros de commercio.

Por isso ouviu com espanto acompanhado de zombaria a proposta que, como
extremo e efficaz recurso, Carlos acabou por lhe fazer, depois de em
longa discussão sobre o assumpto ter, com o auxilio de Cecilia,
combatido aquellas apprehensões.

--Está bom; socegue--disse Carlos.--Deixe-se ficar na cama o tempo que
quizer e que lhe for preciso, porque, emquanto á escripturacão, eu
encarrego-me d'ella.

Manoel Quentino conservou por algum tempo os olhos, muito abertos,
voltados para o filho de Mr. Richard; lá lhe parecia tão extravagante
aquella promessa em um homem, de cuia experiencia commercial sabia o que
pensar, que nem com resposta atinou que lhe désse.

Á própria Cecília surprendeu o offerecimento. Ambos julgaram isto um
gracejo da parte de Carlos. Comtudo era tão séria a expressão que tomou,
n'aquelle momento, a physionomia d'elle, que Cecilia principiou logo a
acreditar que não era zombaria a proposta.

Manoel Quentino não se convenceu tão depressa.

--Então com que... encarrega-se da escripturacão?--perguntou o velho,
não podendo reter um sorriso, o primeiro que se lhe desenhou nos labios
esta manhã.

--Encarrego, sim.

--Olhem que fortuna para a casa! Agora é que ella prospéra... Eh! eh!
eh! Valha-o Santo Antonio.

--Então faz-me a injustiça de me suppôr incapaz de applicar as minhas
forças a uma empreza qualquer, quando d'ahi possa provir algum bem para
um amigo?

Desde que Carlos fez esta pergunta, Cecilia esposou logo mentalmente a
causa d'elle: não só acreditou na sinceridade do offerecimento, mas
até--vejam que confiança!--até na possibilidade, ou mais ainda, na
probabilidade da sua realisação.

Manoel Quentino não era tão facil de mover dos seus juizos. Comtudo
tambem o abalaram as palavras de Carlos, ainda que em outro sentido.

--Não, homem;--disse o guarda-livros, meio commovido--eu não duvido da
sua boa vontade, nem do seu animo decidido para sacrificios. Bem
recentes tenho provas que me não deixam duvidar. Sei que lhe devo talvez
a vida. Não pense que sou ingrato. Mas, venha cá, ouça: como quer
encarregar-se de um serviço, ao qual tem sempre andado estranho? Era
como se eu me mettesse a ir salvar a nado alguem, que estivesse a
afogar-se no meio do rio. De que me valeriam os bons desejos, se iria ao
fundo, como um prégo, antes de lá chegar?

--Mas tão difficeis lhe parecem essas cousas de commercio, que, dentro
em dois ou tres dias, com alguns conselhos e explicações suas, eu não me
habilite a comprehendel-as?

Manoel Quentino encolheu os hombros.

--Homem, que conceito faz da minha intelligencia?!--insistiu
Carlos--Demais, eu alguma cousa aprendi no collegio, que talvez me
sirva. Póde ser que não ande de todo já perdida uma sciencia que, devo
confessar, tenho deixado fóra do serviço desde... desde que a adquiri.

--Ora adeus! Onde vão as chuvas do anno passado? Olhem com o que elle
vem! O que aprendeu no collegio!...

--Emfim tentemos. Não se perde nada em tentar. O Manoel Quentino não vae
esta semana, nem talvez estes quinze dias ao escriptorio...

--Longe o agouro!

--Não vae, que não deve ir. Eu estou resolvido a experimentar a minha
aptidão commercial. Quem sabe? Póde ser que adquira até gosto pelo
negocio.

--Quem dera!

--Pois póde ser. Encarrega-se de me dar lições? Tres bastam-me.

--Havia de fazer boas cousas com tres lições!

--Apostemos?

--Vá, vá á sua vida. Divirta-se. Isto não é uma brincadeira como...

Carlos revestiu-se de toda a sua gravidade.

--Então, Manoel Quentino! tão leviano me julga, que não admitte que eu
falle serio alguma vez?

--Não, mas...

Cecilia tomou, a mêdo, a defeza de Carlos.

--Uma vez que o snr. Carlos se offerece para o ajudar, por que não
aceita?

--Ahi vem a outra! Ora para o que lhe deram hoje! Este rapaz engana-se a
si proprio. Eu já disse que não duvido dos seus bons sentimentos, mas...

--Mas--atalhou Carlos--uma palavra só! Quer dar-me algumas lições de
escripturação commercial? Bem vê que não perde nada com isso.

--Hão de ser curiosas!

--Sejam ou não sejam. Quer ou não.

--Não seja essa a duvida.

--Até á noite, meu mestre--disse Carlos, pegando no chapéo para sair.

--Até á noite--respondeu Manoel Quentino, divertido com a resolução de
Carlos, em cujo exito não depunha fé, mas divertido a ponto de se rir
com vontade e de quasi se lhe desvanecerem as apprehensões a respeito do
escriptorio.

Ao saír, Carlos despediu-se de Cecilia, dizendo-lhe:

--Estão empenhados os meus brios, minha senhora. Dentro em tres dias
prometto ser um caixeiro consciencioso e expedito.

Cecilia sorriu, estendendo-lhe a mão.

--Agradecida por tanta generosidade, snr. Carlos.

--E acredita que seja só generosidade?

--Então?

Carlos não replicou. Correspondeu, sorrindo, ao cumprimento de Cecilia,
e saiu, sentindo um intimo contentamento ao dizer a phrase trivial:

--Até logo.

Cecilia ficou a pensar no que poderia haver, além de generosidade, no
procedimento de Carlos.

Em todo aquelle dia andou tão satisfeita a filha de Manoel Quentino, que
os cuidados, que a saude d'ella tinham causado ao pae, diminuiram
consideravelmente; o que não foi para elle pequena garantia de melhora
na saude propria.

Carlos d'alli foi para o escriptorio.

Não causou pequena surpreza a Mr. Richard ver Carlos estabelecido na
banca de Manoel Quentino, examinando, com solicita attenção, os livros
commerciaes, as correspondencias do dia, e algumas atrazadas; os outros
caixeiros não estavam menos admirados do insolito phenomeno; e muito
mais o ficaram, quando Carlos lhes dirigiu algumas perguntas sobre o
andamento de certos negocios, e quando inclusivamente o viram attender
alguns freguezes, que vinham pedir informações ao guarda-livros, e
responder a muitos já com verdadeiro conhecimento de causa.

Em toda a Praça se fallou n'aquillo; foi um verdadeiro acontecimento no
mundo commercial. Houve curioso que phantasiou negocios, só para se
informar, por seus olhos, do que lhe constára.

A prompta intelligencia de Carlos, auxiliada pela educação que era
creança tivera, permittiu-lhe ver claro nos processos de escripturacão,
onde espiritos, menos cultos e atilados, só conseguem achar caminho,
depois de muitos esforços e tentativas.

Os pontos capitaes recordou-os ou comprehendeu-os á força de reflexão;
restavam-lhe pequenas duvidas, difficuldades de segunda ordem, que a
experiencia de Manoel Quentino, em poucos momentos, deveria elucidar.

Estas duvidas e dificuldades, é preciso dizer-se, eram principalmente
sobre a utilidade dos complicados processos de escripturação, que Manoel
Quentino, fiel aos velhos systemas, escrupulosamente seguia. Carlos
previa methodos mais simples e expeditos para executar certos
lançamentos e operações, e, vendo adoptados os mais extensos e
tortuosos, sentia-se embaraçado, suppondo haver alguma razão para a
preferencia e não a podendo descobrir.

Ao sair do escriptorio levava Carlos muito adiantada a sua instruccão
commercial. Havia muito tempo que não tivera tão laboriosa manhã!

Á noite, quando se preparava para ir a casa do mestre, encontrou Jenny
no corredor, a qual, como gracejando, lhe disse:

--Será verdade, Charles, o que acabo agora de saber?

--Então que soubeste tu?

--Que foste hoje um canceiroso guarda-livros e que a todos maravilhaste
no escriptorio com a tua applicação ao negocio.

--É verdade; tive esta manhã esse capricho.

--Capricho? Será somente capricho essa febre subita de trabalhar, que te
acommetteu?

--Então que mais ha de ser?

Jenny esteve algum tempo calada, sem desviar os olhos do irmão.

--Tens razão. Será capricho. É de certo; mas talvez não tão innocente e
sem importancia como o queres fazer.

--Ahi está que tambem tu és inconsequente, Jenny.

--Porquê?

--Ralhavas-me, ha dias, por o meu desapêgo aos negocios do escriptorio;
agora vejo-te com vontade de me ralhares pela minha applicação.

--Se não houvesse n'ella uma intenção, de que eu desconfio!

--Uma intenção?...

Jenny mudou de tom.

--Deixas-me fazer-te uma pergunta?

--Dize.

--Aonde vaes tu agora?

Carlos perturbou-se ao responder:

--A casa de Manoel Quentino.

--Ah!...

--Bem vês que o pobre homem está doente...

--Soube agora que passou bem a tarde. Mandamos lá perguntar. Por isso,
se te custa a visita...

--Mas... prometti...

--Ah!... prometteste!...

--Olha, Jenny. Digo-te a verdade. Para tranquillisar o bom homem, que
não podia resignar-se a deixar o escriptorio ao desamparo, prometti-lhe
encarregar-me do serviço, Mas bem sabes, ou deves suppôr, até onde
chegam os meus conhecimentos commerciaes. Para tornar effectiva a
promessa, careço de informações, que só Manoel Quentino me póde dar, por
isso...

--E não receias que, doente como está, lhe faça mal a applicação de
espirito, a que o vaes obrigar?

--São certas duvidas apenas.

--E se as expozesses antes ao pae?

Na fronte de Carlos desenhou-se uma ligeira ruga de impaciencia.

Jenny, com ar de tristeza, acrescentou, suspirando:

--Bem vejo, Charles, que esqueceste a palavra que me tinhas dado.

--Não te entendo.

--Entendes, entendes. Dize-me, se eu te pedisse que não fosses hoje a
casa de Manoel Quentino?...

--Tinha que ver Jenny com caprichos, exactamente como outra qualquer
mulher! Não nasceste para essas fraquezas femininas, minha boa, minha
sisuda irmã.

E pegando, a rir, nas mãos de Jenny, levou-as aos labios e partiu
apressado para não a escutar de novo.

Jenny viu-o sair, e uma dolorosa expressão gravou-se-lhe no semblante.

--Já não está na minha mão valer-lhe!--disse ella com amargura--Como
findará isto, meu Deus!

Foi muito desagradavelmente surprendido n'essa noite o snr. José
Fortunato, ao encontrar Carlos Whitestone em casa de Manoel Quentino.
Descobriu elle n'isto indicios de grandes transtornos nos seus uniformes
habitos de vida.

A primeira noticia do facto recebeu-a de Antonia, que não via tambem com
olhos favoraveis aquella intrusão.

Antonia e José Fortunato eram duas potencias alliadas e ciosas das suas
prerogativas e influencias para com Manoel Quentino.

--Temos cá o homem!--dissera Antonia a meia voz, ao snr. José Fortunato
quando lhe abriu a porta.

--Quem?--perguntou este, parando nos primeiros degraus da escada.

--O de hontem... O inglez...

--E a que vem elle cá?

--Eu sei. A modo que me não vae agradando isto. Pelos bonitos olhos do
pae não é que...

Um negrume toldou o horizonte do coração do snr. José Fortunato.

Entrou para a sala do serão, o qual se fazia agora no quarto de dormir
de Manoel Quentino, visto recommendar-lhe a medicina a prudencia de não
abandonar o leito.

Á habitual saudação do recem-chegado responderam Manoel Quentino e a
filha, e, no parecer do homem, alguma cousa mais distrahidamente do que
do costume.

Não lhe agradou aquella distracção. Carlos fez-lhe um ligeiro signal de
cumprimento e voltou á tarefa, em que parecia occupado.

Procedia-se, n'aquelle momento, á primeira lição commercial.

José Fortunato não podia comprehender o que via.

Manoel Quentino, sentado no leito, tinha no rosto a gravidade do
professorado, temperada por certo sorriso de duvida nas boas intenções e
na efficacia do estudo do discipulo.

De um lado do leito, sentava-se Carlos Whitestone, partilhando a
attencão entre as prelecções de Manoel Quentino e as festas ao gordo
gato maltez, que se lhe viera roçar pelas mãos--prova de confiança, que
nunca dera a José Fortunato, apesar de mais longa convivencia.

Havia ainda outro objecto a attrahir as attenções de Carlos e porventura
a maior ou mais preciosa porção d'ellas,--era Cecilia.

Em pé, do outro lado da cama, tendo na mão a costura, de que
frequentemente se descuidava, seguia com curiosidade as prelecções
paternas e as objecções, com que as interrompia Carlos, e não podia
disfarçar de todo o riso, que a singular lição lhe desafiava.

A chegada de José Fortunato não alterou esta disposição de cousas e de
pessoas; não era elle homem para constranger ninguem.

--Ora vamos a isto;--começou Manoel Quentino--para lhe fallar a verdade,
não sei bem por onde principie.

--Eu lhe digo...--ia Carlos a responder, quando Manoel Quentino o
interrompeu.

--Então, então! Não principie já a atrapalhar, senão não temos nada
feito. Ora espere lá... Deixe-me cá ver...

E, depois de pensar algum tempo, continuou:

--Usam-se no commercio tres livros principaes...

Este começar _ab ovo_ não agradou ao discipulo, que o atalhou dizendo:

--Já sei.

--Já sabe! Como já sabe?

--Pois nem isso havia de saber?! Creia que esta manhã, no escriptorio,
levei a minha instrucção commercial ainda muito mais longe.

--Ora adeus!

--Verá.

--Então, se já sabe, escuso eu de...

--Sei que ha tres livros principaes em commercio, que se chamam: Diario,
Razão e Caixa, e que ha tambem os auxiliares.

Manoel Quentino estava devéras admirado de Carlos saber tanta cousa!

--O pae de que se admira? Eu mesma, parece-me que sabia isso
tambem--disse Cecilia.

Manoel Quentino olhou para ella, e encolheu os hombros.

--Com que gente eu estou mettido! Bem;--acrescentou pouco depois para
Carlos--então faça favor de me dizer o que é que não sabe, para eu lh'o
ensinar.

--Olhe: eu o que desejo é obter esclarecimentos, em relação a certos
pontos, sobre o que tenho duvidas. O processo da escripta a final não é
cousa tão complicada, que não se possa comprehender, examinando-a com
attenção; muito mais se, conseguindo despertar a memoria, alguma cousa
ella nos vem tambem auxiliar. Só me parece que esse processo ainda podia
ser mais simples do que o fazem.

--Não podia, não, senhor. Não venha agora para cá com modernices. Tudo é
preciso.

--Não é tal. E senão vejamos: A escripturação póde fazer-se por partidas
chamadas simples e dobradas; não é verdade?

--É, sim, senhor.

--E differem ellas...

--Eu lhe digo--atalhou Manoel Quentino.--Supponha o senhor que alli o
snr. José Fortunato compra dez pipas de vinho á casa. Percebe?

--Que havia eu de fazer a tanto vinho?--resmoneou o snr. José Fortunato,
para dizer alguma cousa.

--As quaes pipas importam--continuou Manoel Quentino--em dois contos de
réis. Percebe?... O senhor escreve no Diario, em lettras grandes--sempre
em lettras grandes--percebe? José Fortunato deve, por dez pipas de vinho
a duzentos mil réis--dois contos de réis. Percebe?

--Sim; isso já eu sei... mas...

--Espere lá. Ou homem! Já sabe, já sabe! O senhor sabe tudo! Então se já
sabe!... Este é o methodo de partidas simples.

--Perdão. Entendo que o methodo de partidas simples não se resume a tão
pouco, pois que...

--Se é assim, pouco mais difficil é do que aquelle, pelo qual faço a
escripturação da nossa casa--disse Cecilia, rindo, e emquanto ageitava a
dobra do lençol, que Manoel Quentino desordenára.

--E creia, minha senhora--acudiu logo Carlos, no mesmo tom--que, a final
de contas, muitos dos nossos caixeiros deviam tomar por modelo a
simplicidade dos methodos de v. exc,ª, pois valem mais do que as
baralhadas e mysteriosas escripturações de certos livros, nos quaes a
melhor vista não consegue penetrar. Parece-me.

--Pois parece-lhe uma tolice--disse Manoel Quentino, a quem
impacientavam estes levianos juízos criticos sobre uma arte, para elle
tão transcendente como perfeita.

José Fortunato bocejava.

--Mas vamos cá--proseguiu Manoel Quentino.--Quer ver agora como fazia
aquelle lançamento por partidas dobradas? Se o snr. José Fortunato,
comprando o vinho, aceitasse uma lettra ou lhe endossasse alguma,
pagavel á ordem d'elle; percebe? O senhor escrevia no Diario: Lettras a
receber a vinho...--Note que os nomes do crédor e do devedor se escrevem
sempre em lettra grande.--Percebe? Depois explicava a transacção por
baixo d'estes titulos...

Não pretendendo os leitores provavelmente instruir-se em sciencia
commercial, dispensar-me-hão de transcrever na integra a prelecção de
Manoel Quentino.

Durante ella, manteve-se sempre em conflicto o espirito prático, o
respeito ás velhas formulas, a experiencia intransigente do mestre, com
o arrojo innovador, as tendencias simplificadoras e a aversão a inuteis
complicações do discipulo.

Mais uma vez se verificou a eterna lucta entre a theoria e a prática;
uma, com seus instinctos de joven, com seus habitos de actividade, com
seus amores pelo futuro e pelo progresso; outra, com a frieza da idade
madura, com uma indole, essencialmente prosaica e conservadora; fiel ao
passado, que foi sem mestre, desconfiada do futuro, que não conhece,
severa para com as ideias novas, cujos humores travêssos a impacientam.
Uma, brincando e esperando no dia de ámanhã, como creança; outra,
ralhando e suspirando pelo dia de hontem, como avó; uma, apaixonada do
ideal e reparadora de _tuertos_, como D. Quixote; outra, odiando
utupias, e contente com a ordem estabelecida de cousas, como Sancho. Em
todos os campos da sciencia humana se encontram, frente a frente, estas
duas filas de contendores. Emquanto o medico novo baseia raciocinios e
assenta diagnosticos sobre recentes descobertas physiologicas, o prático
velho encolhe os hombros, sorri, formúla ou opéra; emquanto o joven
lettrado desenvolve theorias de sciencia social, vistas transcendentes
de philosophia de direito; o jurista, encanecido no fôro, examina os
artigos do codigo, esmiuça a lettra da lei, aconselha as partes e
despacha os autos.

No exemplo que temos á vista, Manoel Quentino era o representante das
ideias conservadoras; Carlos, o apostolo do progresso.

Por vezes o inabalavel rochedo da experiencia do guarda-livros foi
rudemente açoutado pelas objecções, que a lucida intelligencia de Carlos
contra elle despedia. Manoel Quentino fazia porém como o rochedo; não as
repellia, deixava-as passar por si e ficava firme.

Manoel Quentino explicára, por exemplo, a Carlos a maneira de fazer os
lançamentos, no caso de uma supposta remessa de lã para Liverpool.

Carlos combateu a longura e complicação dos processos seguidos, expondo
a maneira como, no seu entender, se podia e devia simplificar a
escripturação; parecia-lhe que muitas indicações feitas nos livros
escusavam de ser registradas, e n'este caso estavam todas aquellas
contas que, pelo processo de Manoel Quentino, eram creditadas e
debitadas simultaneamente; desnecessario julgava fazer menção d'ellas,
visto que ficavam logo por esse facto saldadas.

Os methodos indicados por Carlos eram tão simples, tão racionaes, tão
despidos de minuciosidades defeituosas, despojavam os livros de tantas
indicações superfluas, ronceiramente consagradas pelo habito, que Manoel
Quentino não soube como combatel-os.

Imagine-se a contrariedade que experimentou com isto!

Não era elle homem porém que rompesse com habitos velhos e renegasse,
perante as primeiras objecções de um rapaz inexperiente, o classico
systema, a que fora fiel durante os muitos annos do seu tirocinio
commercial; por isso retorquiu com acrimonia:

--Não sei de contos; assim é que se faz.

--Será; mas não se podia fazer tambem da maneira que eu digo?

--Podia... não podia... isto é... podia... não podia, não, senhor.

--Porquê?

--Porque não.

--Mas é, sem comparação, mais simples.

--E é com o que lhe dá! É mais simples, é mais simples... e acabou-se!
Deixal-o ser!... Não se trata aqui de ser mais simples, nem menos
simples... É como é e como deve ser... Estava-se mesmo á espera do
senhor para vir fazer descobertas!... Até agora temos andado todos ás
aranhas... Faltava cá o snr. Carlos com as suas simplicidades! Ora não
está má!... É mais simples!... Pois peior; nós não queremos cousas
simples... Será mau o processo, mas olhe que se tem feito e guiado muito
boas casas com elle. Fie-se lá nas suas escripturações simples, e verá o
que vae! Theorias!... Estou de pé atraz com ellas! Não provam bem.
Negociante de theorias, fallencia no caso. É mais simples!... Olhem a
grande cousa!... Mais simples era não fazer lançamento nenhum, se vamos
a isso.

Carlos pôz-se a rir. Comprehendeu a repugnancia que devia encontrar
Manoel Quentino em ceder n'aquella discussão e respeitou-lh'a. Recuando
generosamente n'este campo, avançou n'outro; porque Cecilia soube ser
grata áquella delicadeza de proceder para com o pae.

Manoel Quentino anciava por uma desforra; encontrou-a.

Duante a passada discussão, tendo-se fallado muitas vezes em facturas, o
velho voltou-se agora de subito para Carlos, perguntando-lhe
_ex-abrupto_ se sabia fazer uma factura. Carlos não respondeu logo.

O homem prático presentiu n'esse campo completo triumpho. Não admittiu,
por cautela, explicações verbaes; mandou vir papel, penna e tinta, e
disse para o discipulo:

--Risque e encha.

Carlos hesitou. Manoel Quentino saboreou as doçuras de uma victoria.

--Ora ahi está,!--exclamou elle--Ahi está do que servem as theorias! É
isto sempre... Fallam que nem um bacharel... e vae-se a trabalhar e...
passe por la muito bem! não atam nem desatam!... Então? Veja se se
lembra de algum methodo mais simples de sair do aperto... Qual!... Aqui
é que eu os quero ver... No fogo é que se conhecem os soldados... Isto
de queimar polvora em fogos presos não presta para nada... Ora escreva,
escreva lá, faça o que eu lhe disser e deixe-se de theorias. Não tenha
vergonha de aprender. Todos aprendem até á morte.

E principiou a indicar-lhe a maneira de riscar o papel, as inscripções
que tinha a fazer, as verbas que devia registrar, e isto tudo sem lhe
deixar passar por alto a minima particularidade.

Carlos obedecia-lhe com tal docilidade de discípulo, que fazia rir
Cecilia.

--Vá; escreva ahi, no alto da folha--disse Manoel Quentino--Factura
de... agora um genero qualquer que queira carregar.

--De paciencia então, que é genero de que o Manoel Quentino bem precisa
agora para aturar a molestia.

--Então! está a brincar ou que faz? paciencia preciso, mas é para o
aturar a si.

--Paciencia confiada ao cuidado de meu pae!--dizia Cecilia--Valha-nos
Deus! que não é homem que tenha cautela com a mercadoria.

--E adeus! Estão as duas creanças a brincar. E eu que as ature!

Se Manoel Quentino tivesse mais algum conhecimento dos pequenos
mysterios do coração, não fallaria assim collectivamente de Carlos e
Cecilia, isto de os confundir debaixo da denominação generica de
creanças era imprudente, no estado actual dos sentimentos de ambos.

Proseguiu a indicação da maneira de encher a factura e com isto terminou
a lição.

Em seguida, serviu-se o chá, que n'aquella noite não soube a José
Fortunato, como de costume.

Manoel Quentino, apesar das suas impaciencias, estava, de si para si,
espantado de tanto que sabia Carlos.

--Que esperteza de rapaz!--dizia elle para Cecilia, quando esta, depois
de todos se haverem retirado, fazia engulir ao pae a ultima chavena de
caldo d'aquelle dia e lhe arranjava os travesseiros para o somno da
noite--Tem diabo! Como entende tão bem estas cousas de commercio, a que
andou sempre estranho! Era capaz de enrodilhar outro, que não tivesse a
experiencia, que eu tenho! Uma cousa assim! Parece até que adivinha! É
até um peccado andar fóra da vida do negocio... Deem-lhe alguns annos de
pratica, e verão o que d'alli sáe.

Cecília calava-se.



XXIII


DIPLOMACIA DO CORAÇÃO


A educação commercial de Carlos continuou e com os mais rapidos e
auspiciosos progressos. Á segunda noite espantava elle Manoel Quentino,
apresentando-lhe os lançamentos, que pela manhã fizera e nos quaes o
experimentado guarda-livros nada teve que notar.

A custo pôde convencer o fogoso discipulo de que não convinha que elle
proprio escrevesse nos livros geraes, onde era contra as praxes
apparecer lettra de mais do que um individuo. Bastava, dizia o velho, e
já não era pequeno serviço, que Carlos o auxiliasse no expediente e
deixasse tudo preparado para que, ao terminar o seu impedimento, elle,
Manoel Quentino, só tivesse a transcrever no _Diario_ e no _Razão_ as
transacções operadas durante essa época.

No fim de tres ou quatro serões, Manoel Quentino já não tinha que
ensinar mais ao discipulo.

Elle sabia tudo!

Terminaram pois as lições, mas não terminaram com ellas as visitas de
Carlos, como seria natural que acontecesse. Mudaram apenas de caracter
aquelles serões.

Carlos era agora o que se encarregava da leitura das folhas, com grande
mágoa de José Fortunato, que não podia encontrar na diversão metade do
prazer que n'ella recebia, quando a leitura era feita por Cecilia.

De mais a mais, Carlos divertia-se muitas vezes á custa do velho.
Sabendo de Manoel Quentino que elle era possuidor de varios papeis de
credito, raro era o dia em que, no decurso da leitura, não improvisava
noticias e insinuações, que faziam entrever uma imminente baixa de
fundos e porventura uma banca-rota.

José Fortunato declamava então contra os governos presentes, passados e
futuros, com toda a acrimonia que lhe era possivel.

Quando os dois velhos tratavam ás vezes alguma discussão acalorada,
Carlos aproveitava a occasião de entrar com Cecilia em um dialogo, cuja
indole era cada vez mais perigosa para o coração de ambos. E senão,
ouçamos.

Cecilia trabalhava, certa noite, em uma camisa de panninho para o pae.

--Que nome se dá a isso que está a fazer?--perguntou Carlos, curvando-se
sobre a costura.

--É uma camisa--respondeu Cecilia, sorrindo. Pois nem conhece!?

--Que é uma camisa sei eu; não perguntava isso; mas... essa costura em
que está agora a trabalhar, como se chama?

--Isto? É um posponto.

--Ah! um posponto!... Um posponto é a mesma cousa que um sobre-cosido;
pois não é?

Cecilia desatou a rir a esta pergunta.

--Não, senhor, não é. Nem tem nada uma cousa com outra.

--Não?! Pois olhe... parece, porque... posponto é... como quem diz:
depois do ponto; sobre-cosido, sobre ou depois do cosido, e portanto...
depois do ponto tambem.

--Será; mas... em todo o caso, são cousas diversas.

--Então que differença fazem?

--Ora que curiosidade! Ha de interessar-lhe muito agora conhecer essa
differença.

--E porque não? Não vê que ando com vontade de ampliar os meus
conhecimentos? Não tem reparado na minha docilidade a ouvir as lições de
escripturação?

--Mas essas podem servir-lhe.

--Mas vamos; um posponto é isso; muito bem. E agora um sobre-cosido?

Cecilia, rindo, procurou na obra, que estava a fazer, o exemplo já
realisado de um sobre-cosido e mostrou-o a Carlos, dizendo:

--Ahi está um sobre-cosido. Agora estude a differença, a ver se a sabe
explicar.

Carlos examinou-o com apparente attenção e a mais composta seriedade.

E Cecilia interrompia o trabalho, só por causa d'isto.

--Então?--perguntou ella maliciosamente, quando Carlos deu mostras de
haver terminado o exame.

--Reconheço que de facto são cousas diversas, mas não posso bem dizer em
que consiste a differença.

--O que o deve affligir muito.

--Mas diga--insistia Carlos, que parecia devéras empenhado em elucidar
este negocio dos pospontos--todas as costuras se fazem a posponto?...

Cecilia não podia escutar com seriedade este inquerito inesperado.

--Não, senhor;--respondeu a rir--conforme a qualidade da obra, assim se
prefere a qualidade do ponto.

--Ah! visto isso, o posponto... é um ponto tambem?

--Pois está claro. É um ponto que se dá assim. Ora repare.

E Cecilia, acompanhando a palavra com a acção, principiou a trabalhar
com todo o vagar, ao passo que Carlos assistia á demonstração com a
attenta seriedade de um discipulo. Ainda que me parece que menos vezes
lhe seguiam os olhos os movimentos da agulha, do que se fixavam a
admirar a perfeita modelação e delicado colorido da mão que a movia.

--Repare--dizia Cecilia--dá-se, supponhamos, o primeiro ponto; maior ou
menor, conforme a delicadeza da obra, já se sabe. Assim. Ora agora, a
agulha entra aqui mesmo pelo meio d'este primeiro ponto... Vê?... E vae
saír adiante, de maneira que este segundo ponto tenha o mesmo
comprimento do primeiro. Entende? A terceira vez entra por onde saíu a
primeira, a quarta por onde saíu a segunda... e assim por diante...
Entende agora?

--Muito bem. E o sobre-cosido?

--Mas como lhe deu para querer saber doestas cousas?

--É uma esquisitice. Concordo. Mas... então que quer? Mau é que eu tenha
um d'estes desejos. Incommodo-me deveras, se os não satisfaço.

--Ah! Não sabia que era assim caprichoso!

--E não concebe esta maneira de sentir?

--Eu, não.

--Não diga que não. É impossivel. A imaginação feminina, sem duvida mais
delicadamente sensivel do que a nossa, não póde ignorar estes pequenos
caprichos. O capricho é, a meu ver, uma prova de superioridade moral em
que o tem. Vamos; termine a minha lição.

--Então que quer saber agora?

--Que é um sobre-cosido?

Cecilia condescendeu ainda em lhe explicar o que era o sobre-cosido,
como já lhe explicára o que era o posponto. Carlos deu-se no fim por
satisfeito.

Agitou-se ainda algum tempo a discussão a respeito de assumptos d'esta
natureza.

Carlos foi durante ella sempre serio; Cecilia, a cada momento, a
interrompia com o riso, que lhe desafiava a estranha lição, que nunca
esperára ter de dar a um discipulo d'este genero.

Em quasi todos os serões, passados em casa de Manoel Quentino, os
colloquios entre Carlos e Cecilia versaram sobre objectos de igual
transcendencia e sustentaram-se em um tom da mesma gravidade que este,
que registamos.

Ahi estão uns colloquios inoffensivos e inconsequentes, pensará talvez o
leitor. Pois engana-se, se pensa assim. Recorde-se da sentença de quem,
n'estas cousas de amor, escreveu _ex-professo_:

    _Parva leves capiunt animos_.

De facto, nada ha de tanta influencia para o coração como um colloquio
assim, bem futil, bem insignificante, no estado a que haviam chegado os
sentimentos de Carlos e de Cecilia.

Quanto mais ligeiro, quanto mais pueril é o assumpto de um dialogo
d'estes, tanto mais se empenham os corações dos que o sustentam.

Os dialogos amorosos, que estamos costumados a escutar entre o galan e a
primeira dama, no tablado dos theatros, ou a ler nos capitulos dos
romances, dialogos cortados de interjeições e cheios de subtis theorias
do mais acrisolado sentimento, são excepções na vida real; e, quando se
dão, sáe-se d'elles mais livre, mais disposto a esquecer, menos propenso
a sonhar; servem como de expansão aos affectos accumulados--expansão em
que estes ás vezes completamente se dissipam. Mas os constrangimentos,
os silencios, dos quaes a imaginação em vão procura livrar-se, e sobre
tudo o conversar aturado sobre mil cousas futeis e indifferentes, isso
sim, que é bem mais para temer; porque, emquanto dura a troca reciproca
de formulas insignificantes, o coração põe em campo outros emissarios
secretos e invisiveis, que adiantam consideravelmente as negociações
pendentes e conseguem realisar a entrega da praça, sem o minimo combate
manifesto.

Digam-o os numerosos pares, para quem voam as horas e desapparece o
mundo, de enlevados que se entregam a esses interminaveis dialogos,
motivo de zombarias apparentes e de occultas invejas dos que os não
podem gosar; digam se, quando mais sinceros sentiam em si os affectos,
eram metaphysicas e transcendentes especulações sobre o amor o que assim
lhes absorvia as attenções e os cuidados; digam se, quando, ao terminar
um d'esses felizes dias, tentavam reproduzir as impressões recebidas no
decurso d'elle, recordando as palavras ditas e escutadas n'aquellas
longas entrevistas, outra cousa lhes conseguia avivar a memoria que não
fosse dialogos pouco dramaticos, banalidades sobre assumptos
indifferentes, mas sob cujo disfarce o coração achára meio de dizer
muito, e até mais eloquentemente, do que ainda poeta algum o pôde
exprimir--nem o proprio Petrarca nos seus trezentos e dezoito sonetos.

Isto aconteceu a Carlos Whitestone. Poucas vezes voltára a casa mais
possuido d'essa intima e indefinida alegria de quem assiste em si ao
ateiar de uma paixão, do que na noite, em que se verificou o dialogo,
que o leitor provavelmente julgou sem consequencias.

Prolongou-se este estado de cousas. O medico, a quem fora confiado o
tratamento de Manoel Quentino, prudente em demasia, apenas lhe promettia
esperanças de o deixar saír passada uma semana mais.

Carlos não pensava com frieza de animo no termo d'aquelle praso.
Poderia, sem causar estranheza, continuar, ainda depois d'elle, as
visitas que lhe eram já tão necessárias? Até alli servia-lhe o pretexto
de vir dar contas a Manoel Quentino do serviço da manhã; mas depois?

Carlos continuou a ser diligente nos negocios do escriptorio. Mr.
Richard ainda não acabára de conformar o espirito áquella mudança do
filho.

Em casa de Manoel Quentino, só este era quem talvez não suspeitava um
segundo motivo na assiduidade de Carlos. Antonia e José Fortunato já a
commentavam havia muito.

E Cecilia? Respondam por mim as leitoras.

Uma noite ia o snr. José Fortunato a retirar-se, e entre elle e Antonia
travou-se, já no portal, o seguinte dialogo:

--Então, snr.ª Antonia, que lhe parece este inglez aqui sempre mettido?

--Que quer que lhe faça? O que me admira é o snr. Manoel Quentino não
reparar...

--Mas diga-lhe que...

--Eu?! Deus me livre! O snr. José Fortunato é quem...

--Eu?! Nada; n'essa me não metto; mas a snr.ª Antonia tem quasi
obrigação de...

--Eu lhe digo... Eu, como o outro que diz, não quero fallar, sem
primeiro me encher de razão... Hei de tirar umas informações a respeito
do inglez, e depois...

--Informações de quem?

--Mesmo defronte da casa d'elle vive uma cunhada do homem da sobrinha de
uma comadre minha, de quem eu sou muito conhecida e amiga; ámanhã, se
tiver tempo, sempre hei de lá chegar. Porque a mim consta-me que este
rapaz é um estoira-vergas dos meus peccados...

--Elle lá se vê!

--Ora o que nos havia de apparecer!

E os dois despediram-se; José Fortunato para ir curtir em casa as cruas
mágoas do coração; Antonia para assentar, no repouso do travesseiro,
sobre a maneira de obter da cunhada do homem da sobrinha da sua comadre
as informações de que precisava, para se encher de razão.



XXIV


EM QUE A SENHORA ANTONIA PROCURA ENCHER-SE DE RAZÃO


A cunhada do homem da sobrinha da comadre da senhora Antonia habitava,
como da bôca da dita senhora soubemos, defronte de Mr. Richard
Whitestone. Era a morada uma pequena casa terrea, a cuja meia porta
passava a inquilina metade do tempo, observando ou transmittindo aos
outros o resultado das suas observações.

Se o amor de saber define etymologicamente o philosopho, difficil será
encontrar algures individualidade tão bem acondicionada para se lhe
encabeçar o disputado titulo, como a snr.ª Joséfinha da Agua-benta; que
por este nome era sua graça conhecida em todo o bairro.

Era mais que amor de saber o que a possuia; era ancia, era febre, era
delirio!

Ás nove horas da manhã do dia seguinte áquelle, em que entre José
Fortunato e Antonia se tramára, _in limine_, aquella conspiração, de que
lavramos acta, achava-se a diligente criada de Manoel Quentino,
inflammada no santo ardor domestico, á porta da sua, conhecida e amiga,
no louvavel intuito de colher informações a respeito de Carlos
Whitestone.

--Snr.ª Joséfinha!--chamou a snr.ª Antonia para dentro de casa,
elevando, em desentoado falsete, a voz inclassificavel.

--Hui!--respondeu de dentro outra voz, digna de emparelhar com esta.

--Passou bem?

--Mas quem é?

E uma figura de mulher de meia idade, perfeito typo de mulher de
soalheiro, foi pouco e pouco tomando vulto e relevo no vão escuro da
porta, e assomou emfim á cancella.

--Ai, pois é vocemecê, snr.ª Antonia? entre.

--Ai, nada, não entro, que não me posso demorar.

--Então que pressas são essas hoje?

--Bem vê que são nove horas, e preciso de olhar pelo jantar.

--Isso tem muito tempo--disse a snr.ª Joséfinha da Agua-benta,
encostando-se á cancella, e proseguiu:--Então quem a trouxe por estes
sitios?

--Fui alli adiante a um recado do patrão, e sempre quiz bater para saber
de si.

--Muito obrigada. Então ainda se dá bem na casa?

--Vamos andando. Da maneira por que hoje as cousas estão, ainda não é
das peiores.

--Diz bem. A soldada, a fallar a verdade... acho que não é lá das de
tentar, mas...

--Está feito, está feito; ha-as melhores e ha-as peiores--disse a snr.ª
Antonia, que não gostava de entrar em particularidades da sua vida, nem
para isso vinha.

--Elle tambem...--insistia a outra--não póde alargar-se muito. Um
caixeiro...

--Deixe lá. Ha por ahi patrões, que vivem em maiores apertos.

--Diga-m'o a mim, snr.ª Antoninha. Olhe a minha Luiza... Conhece? A
filha do nosso Antonio. Pois esteve alli abaixo a servir seis mezes em
casa do commendador Collaço e saíu de lá porque aquillo chega a pouca
vergonha. Os criados passavam fome de rato. Olhe que chegavam a dar-lhe
pão de uma semana e a comprar sardinha da caravella para a ceia d'elles.
Pois quem via aquillo na rua, parecia que tinham as rendas do bispo.

--Pschi! E quando ao menos são promptos na soldada!

--Promptos?! Isso sim! A uma criada, que lá esteve tres annos, ainda
hoje estão a dever um anno inteiro. Ora isso é mesmo uma dor de
consciencia, não acha?

--Mas então que quer? O luxo é muito.

--É assim, é. Diz bem. É uma cousa por maior! Vocemecê ha de conhecer
aquelle Maltez, que é não sei o quê na administração, um homem bem
afigurado, que anda sempre com um cão preto...

--Ai, bem sei. O cunhado d'aquelle militar de quem dizem as más
linguas...

--Tal e qual. Pois não sei se tem reparado no luxo com que se apresentam
as filhas e a mulher. Ó santo Deus! Emfim uma cousa é ver, outra é
dizer. Aqui ha dias passaram ahi todas e eu benzi-me e tornei-me a
benzer! Não que nem a rainha póde luxar assim. Qual! Ora, veja a snr.ª
Antoninha, o pae dizem que não ganha mais de trezentos mil réis por
anno. Milagres não se fazem... O dinheiro não nasce no quintal...

--Deus sabe d'onde elle vem.

--Eu tambem sei alguma cousa, vamos lá. Sei a quem magoam muitas
d'aqúellas grandezas. Olhe que a senhora d'elle tem chegado a pedir
emprestado a uma rapariga, filha de uma amiga minha, que esteve lá a
servir muitos annos. A rapariga, coitadinha, que se mata a trabalhar...
porque ella hoje é engommadeira, teve vergonha de dizer que não, e
adeus, minha vida.

--Tola foi; cá para mim é que elles vinham bem guiados.

--Por isso eu digo: a snr.ª Antoninha não é das que tem razão de queixa.

--Ai, não sou, não, senhora; isso não sou; graças a Deus.

--O passadio é bom?

--É bom, é, sim, senhora; lá n'isso não ha que dizer...

--O peior que alli tem é a prisão; pelos modos sáe poucas vezes. Tirante
lá, aos domingos, o ir visitar o Senhor ao Carmo.

--Bem vê que o patrão quasi nunca está em casa... e é uma menina só...

--E a pequena não tem por ahi já a sua inclinação? Ha de ter...

--Não... Que eu saiba...

--Ha de ter, ha de ter. Hoje em dia! Olhe a snr.ª Antoninha aquella
rapariga do Cosme Villas-boas, uma creança se póde dizer... pois o que
ahi vae já com ella por causa do filho do escrivão!

--Sim. Então?...

--Ora! nem quero que me lembre! É um desafôro! O pae d'ella, no outro
dia, pescou-o a fallar com a pequena, e correu para o rapaz com uma
navalha. O rapaz fugiu, e a mãe d'elle veio então á janella e pôz-se a
berrar com o velho. Sempre disseram cousas uma á outra aquellas duas
creaturas! Um passo assim!

--Não que ha gente n'este mundo!

--O pae pelos modos queria-a casar com o brazileiro, que anda a fazer
aquellas casas em Santa Catharina.

--Isso era uma mina para a rapariga!

--Mas então que quer? Virou-se lá para o filho do escrivão.

--Forte tola!

--E elle então que é uma figura! Não o conhece?

--Eu não.

--É mesmo cinco réis de gente. Um desconjuntado, um lorpinha...

--São gostos.

--É assim; diz bem. Mas então a sua ama...

--Essa... por emquanto... É aqui como a sua vizinha.

--Qual?

--A do inglez, a filha do patrão lá do meu amo.

--Ah! Essa então! É aquillo que alli está. É uma boa menina, isso é;
muito amiga da pobreza... Exquisita como todas as inglezas, mas no
mais... Olhe que, desde que somos vizinhas, ainda não teve uma palavra
que me dissesse! Á janella ninguém a vê, e quando passa por aqui, faz-me
uma cortezia muito séria e mais nada.

--Ella é muito da menina lá de casa.

--É. Eu tenho visto a sua ama vir ahi muitas vezes.

--É uma boa familia esta.

--É, isso é. Não ha que se lhe diga.

--O velho julgo que é pessoa capaz.

--É, é assim meio maniaco, mas a final não é mau sujeito, não. Tem suas
venetas, como quasi todos os inglezes... mas...

--E o rapaz mesmo...

--O snr. Carlos? Ai, por amor de Deus, não me falle n'isso.

A snr.ª Antonia chegára emfim ao topico desejado.

--Então?

--Isso é uma peça de fazenda!

--Que me diz!

--Faz lá ideia do que alli está! Um estroina assim não ha! Recolhe-se a
casa lá porque altas horas da noite. Dorme até ao meio dia. Ora veja a
snr.ª Antoninha que vida póde ser a d'elle.

--Então joga?

--Elle joga, elle fuma, elle passa a vida nos botequins e nos theatros,
elle bebe, elle anda sempre com más companhias.

--Que tal! Hein!

--Isso não faz ideia! Em casa anda tudo a ferver por causa d'aquelle
menino. Não falla com o pae, a irmã passa um martyrio com elle. Disse-me
a Susana, que é ainda minha prima, e que esteve lá a servir oito dias,
que aquillo é uma pouca vergonha. Ás vezes está a mortificar aquella
pobre irmã, e ralha, e ralha, e torna a ralhar, e ella então,
coitadinha, chora que é uma dor do coração. Ha dias em que não faz outra
cousa.

--Arrenego eu o Judas Iscariote!

--E então, snr.ª Antoninha, é um menino a quem tudo faz conta. Não sei
se me entende? Seda e chita é tudo panno para elle fazer obra. Dizia o
Luiz, que foi muito tempo criado d'elle, que eram tantas as cartas que
recebia de differentes, que era uma cousa por maior!

--Tratante! O que elle precisava...

--Diz que ahi com uma comediante do theatro gastou elle contos de réis
ao pae. Até o velho quiz mandal-o para Inglaterra.

--Fosse e nunca voltasse! Arrenego-o eu!

--É da pelle do mafarrico. Depois então diz que bebe!

--Faltava mais essa!

--Pois se elle é inglez! Às vezes, quando vem para casa, já de dia
claro, chega a ser preciso deital-o na cama, porque não da accôrdo de
si.

--Olhem que vergonha! Uma pessoa fina, e... A gente sempre vê cousas!...

--Aqui ha tempos... Vá vendo a snr.ª Antoninha; ia eu já a abrir a porta
da rua, pela madrugada, e entrava aquella creaturinha para casa. Vinha
amarello, esgadelhado; bem se conhecia o estado d'aquella cabeça.

--Não, tambem com uma vida assim não póde ir muito longe.

--Pois não, não... E é até uma felicidade para elle, se morrer.

--Aposto que a estas horas ainda dorme?

--Abriu agora mesmo as janellas. Hoje madrugou.

--Então é alli o quarto d'elle?

--É, é alli mesmo á entrada. O pae e a irmã saíram logo pela manhã cêdo.
Pelos modos diz que chegou da Inglaterra um inglez muito rico com uma
filha, a quem elles foram visitar. Disse-me a Dorotheia, que é a
despenseira, que o velho quer ver se casa o filho com a tal ingleza.

--E o rapaz?

--O rapaz?... bem pensa elle n'isso!... Olhe lá se elle os foi visitar.

Haviam chegado as duas mulheres a este ponto do dialogo, quando entrou
na rua uma sege da praça, puxada com toda a força por dois vigorosos
cavallos, e veio parar á porta da casa de Mr. Richard Whitestone.

O boleeiro saltou immediatamente da taboa para receber as ordens da
pessoa que vinha dentro e que as gelosias corridas das portinholas
furtavam á curiosidade das duas mulheres.

Em seguida tocou á campainha; appareceu-lhe, passado algum tempo, o
criado particular de Carlos; trocadas poucas palavras entre ambos, este
retirou-se, voltando cêdo depois com a resposta.

Tendo-a ouvido, o boleeiro veio abrir a porta da carruagem, da qual saiu
então uma senhora de elegante apparencia, toda vestida de preto e cujas
feições se occultavam em um longo véo, impenetravel aos olhos ávidos de
Antonia e da sua amiga.

Esta senhora desappareceu pelo portão do jardim em companhia do criado
de Carlos.

A snr.ª Antonia e a snr.ª Joséfinha trocavam entre si olhares
eloquentes.

--Mas...--murmurou Antonia.

--Que é?... Diga.

--Não me tinha dito que o pae e a filha haviam saído?

--Ha mais de uma hora.

--Então...

--Então o quê?

Os olhos proseguiram algum tempo o dialogo.

--Ora sempre é desafôro!--disse a snr.ª Antonia, após o dialogo, dos
olhos.

--É isto que vê.

--Conheceu-a?

--Eu não.

--Mas com este descaro?!

--É para que veja.

--Não, pois não saio d'aqui, sem descobrir quem ella é, ou pelo menos...

--Ora diga a snr.^a Antoninha se isto não é fazer pouco caso da
vizinhança.

E as duas continuaram n'estes santos commentarios. A snr.ª Joséfinha
chegou a adiantar algumas perguntas ao boleeiro, que lhe viera pedir
lume para accender um cigarro. Este, porém, só lhe pôde dizer que era
uma senhora ainda nova e bonita, que morava em Santa Catharina.

Antonia tomou conta na rua.

As conjecturas continuaram até que de novo appareceu no portal a pessoa
que era objecto d'ellas. Agora acompanhava-a Carlos, que, com toda a
galanteria, a ajudou a entrar no carro, entrando tambem atraz d'ella,
depois de haver dado algumas ordens ao boleeiro.

E o carro partiu outra vez, com toda a velocidade, pelo caminho por onde
viera.

Estavam estupefactas as duas espectadoras da scena.

--Reparou?--disse a snr.ª Joséfinha.

--É que já me não escapa mais.

--Pareceu-me nova.

--E bonita.

--Então que me diz a isto?

--Que estou atordoada!

--Já viu um descaramento assim?

--Eu não.

A snr.ª Antonia retirou-se d'alli, devéras indignada e decidida a
intervir em casa do amo, para desmascarar o libertino, que se
introduzira sorrateiramente n'ella a pretexto de serviços
desinteressados e de falsa amizade.

Antonia conseguira o seu intento, enchera-se tanto de razão, que já
ameaçava trasbordar por ella fóra.



XXV


TEMPESTADE DOMESTICA


Ás quatro horas da tarde d'este mesmo dia voltava Mr. Richard Whitestone
a casa, com aquelle ar de satisfação ingleza, que já lhe conhecemos, e
em passo vagaroso, como de homem que terminou as tarefas sérias e
principiou a gosar as doçuras do _não fazer nada_. Parte da manhã
passára-a com um compatriota, pae de uma nevada e loura lady, a quem de
facto Mr. Richard estimaria ver matrimonialmente ligado o filho.

Como n'estas intenções do discreto inglez conseguira entrar a
despenseira, não sabemos nós; mas é certo que, ou por força de logica ou
por occulta inspiração, havia ella acertado, ao informar a snr.ª
Joséfinha da Agua-benta. Comquanto o não ter sido acompanhado pelo filho
n'aquella visita matinal houvesse algum tanto desagradado ao inglez,
consolava-se, esperando que elle condescenderia em o acompanhar á noite,
na segunda visita que tencionava fazer.

Ia pensando n'isto o velho commerciante, precedido da ligeira
_Butterfly_, impaciente com a morosidade do dono, que tão a miudo a
obrigava a retroceder.

Trauteando por entre dentes o predilecto: _cheer_, _boys_, _cheer_,
caminhava vagarosamente Mr. Richard pela rua das Flores acima, e pascia
a vista nas bem providas exposições de ouro, que adornam um dos lados da
rua, quando de repente parou defronte de uma taboleta, como se
impressionado por algum objecto que vira n'ella.

Por muito tempo durou este exame.

Havia alli o que quer que fosse que o inglez tomava a peito investigar.
E não o conseguindo de fóra do mostrador, entrou na loja.

--Faz favor de deixar-me ver um relogio, que está ahi exposto?--disse
elle para o ourives.

O ourives, com sorriso amavel e maneiras delicadas, satisfez-lhe
promptamente ao pedido.

Mr. Richard examinou o relogio com minuciosa attenção.

--É um bello relogio!--dizia o ourives--Valioso por todos os respeitos.

Mr. Richard fez um signal afirmativo com a cabeça, e proseguiu calado no
exame.

--É inglez, não é verdade?--perguntou d'ahi a instantes.

--É, sim, senhor. De fabricantes muito acreditados.

--E então... mandou-o vir directamente da Inglaterra?

--Não, senhor...

O ourives principiou a olhar para Mr. Richard com mais cuidado. O que
estava pensando, ao olhal-o assim, não sei; mas uma sombra de
desconfiança parecia anuviar-lhe o semblante. Passados alguns instantes
continuou:

--Para fallar com franqueza a v. s.ª, ainda não ha muitas horas que o
comprei.

--Ah! E... póde saber-se a quem?...

--Comprei-o a um rapaz, que eu conheço de vista, mas cujo nome ignoro...
Supponho que é tambem inglez... Vinha em carro com uma senhora...

Mr. Richard abriu muito os olhos, fitando o ourives e repetiu:

--Com uma senhora?...

--Sim, uma senhora ainda nova, vestida de preto, que ficou á espera
d'elle. O rapaz entrou aqui, disse que estava para ir para fóra da
terra, e propôz-me a compra do relogio e da corrente... Entramos em
ajuste...

--Bem, bem; pouco me importa isso--disse Mr. Richard, com ligeiras e
convulsivas contracções de labios, que eram n'elle indicio de cólera
reprimida.--Vamos a saber: Por quanto m'o vende agora?

O ourives fez valer os seus direitos a algum modico lucro, direitos que
Mr. Richard não lhe contestou, vindo a final a comprar, pela segunda
vez, o relogio e a corrente, com que havia já presenteado o filho.

Porque não havia para elle duvida, e escusa de a haver para o leitor, de
que eram exactamente aquelles mesmos os objectos que tinha agora
presentes.

Ao sair da loja, Mr. Richard ia com a physionomia outra vez serena, mas
lá por dentro, quem o podesse perscrutar, encontraria um grau de
irritação, a que raras vezes lhe subia o genio fleugmatico.

O criado, que estava á porta quando Mr. Richard chegou a casa, era o
mesmo que recebera pela manhã a visita, que tanto indignára a snr.ª
Antonia.

--A que horas saíu hoje o snr. Carlos?--perguntou Mr. Richard, em tom de
voz sêcco e aspero.

--Ás... ás dez horas--respondeu, já sobresaltado, o criado.

--Só?

O rapaz teve vontade de dizer que sim, mas Mr. Richard fitava-o com um
olhar, que lhe desvaneceu toda a impassibilidade precisa para isso.

--Só?--repetiu o inglez, com mais força.

--Não... não senhor...--respondeu o criado.

--Então?

--Com... com...

--Com quem?--perguntou Mr. Richard, cada vez mais imperioso.

--Com uma senhora, que... que veio procural-o... mas... era já de
idade--acrescentou o homem, como correctivo.

Porém Mr. Richard já lhe havia voltado as costas, entrando para casa.
Jenny estranhou-o. Habil na leitura d' aquella physionomia, nem uma só
ruga, que accidentalmente a carregasse, podia passar-lhe despercebida e
sem lhe excitar desejos de decifral-a.

Mr. Richard respondeu benignamente, mas em poucas palavras, ás perguntas
de Jenny, e quiz saber se Carlos já tinha vindo para casa.

Recebendo resposta affirmativa, acrescentou que, antes de jantar,
desejava ir ao quarto d'elle.

Era esta resolução tão extraordinaria, que Jenny, ao ouvil-a, olhou
fixamente para o pae.

Conheceu que alguma cousa tinha occorrido, capaz de trazer após si uma
d'essas scenas violentas, que ella tanto fazia por afastar.

Pretendeu conjural-a.

--Pois vamos--disse a sorrir, e dispondo-se a acompanhar o pae.

--Não, não--respondeu Mr. Richard, afastando-a com doce violencia.--Eu
pretendo... preciso de fallar-lhe a sós.

Jenny soltou-lhe o braço, a que já se apoiára desanimada com a frieza,
mal occulta, d'aquellas palavras.

Mr. Richard tentou abrandar a impressão do primeiro movimento, dizendo:

--É de negocios que se trata... Até já!... No entretanto, pódes mandar
servir o jantar.

Jenny viu-o partir sobresaltada e procurando em vão adivinhar a razão
d'aquella entrevista.

Mr. Richard n'este tempo appareceu no quarto do filho.

Muito longe de esperar aquella visita, Carlos, recostado no canapé,
pensava... em Cecilia provavelmente.

Ao ver o pae, que tão raro o procurava no quarto, levantou-se com
alvoroço e mal occulto espanto.

Mr. Richard caminhou para elle, e tirando do bolso o relogio e a
corrente disse, quasi gaguejando, como sempre lhe acontecia quando sob o
dominio de violenta commoção:

--Ahi tem. Quando vender as... as dadivas das... das... pessoas que...
que o estimam... seja para... fins que... que o não envergonhem, nem...
deponham tristemente contra... o seu caracter...

Á vista do relogio foi tal a commoção que se apoderou de Carlos, que
nada pôde responder; baixou os olhos, confuso, corou intensamente, como
se a consciencia lhe estivesse dizendo que a severidade das arguições do
pae era merecida.

Estes signaes foram por Mr. Richard interpretados como tacita
confirmação das suas suspeitas.

Cresceu n'elle com isto a irritação.

--Seja extravagante muito embora... mas... mas... nunca seja... nunca
seja vil...

Carlos estremeceu ao ouvir aquella palavra, e levantou com vivacidade a
cabeça.

--Senhor!--exclamou, mal conseguindo o respeito filial suffocar-lhe a
indignação que sentira.

--Vil, sim--repetiu Mr. Richard com mais força, como se excitado por
aquella apparencia de reacção.--Quero que não faça d'esta casa theatro
das suas... aventuras... escandalosas.

--Mas...

--Lembre-se de que é aqui--proseguiu, sem o attender, o pae--aqui,
debaixo d'estes tectos, que não tem a delicadeza de respeitar, que é
aqui que embranqueceram os cabellos de seu pae... que foi aqui que sua
mãe morreu... que é aqui que vive sua irmã.

--Creio que ainda não dei motivos para...

--Quem o procurou esta manhã? Com quem saiu de carruagem? Com que fim
vendeu esse relogio?

Carlos calou-se. Parecia resolvido a guardar silencio, em relação
áquellas perguntas; nem era de animo tão docil, que ouvisse, sem se
irritar tambem, estas severas recriminações, feitas antes de julgamento
minucioso.

O seu orgulho revoltou-se.

--Não posso explicar nada d'isso, mas dou-lhe a minha palavra que...

Mr. Richard atalhou-o:

--Nem eu quero tambem averiguar dos actos da sua vida. Teem-me chegado
aos ouvidos rumores de muita extravagancia sua, de que não tenho feito
caso. Mas quero, mas exijo... E inda tenho força bastante para o
conseguir, póde crêl-o... Quero e exijo que se respeite o meu nome e...
e a minha casa. Fique entendendo.

--Mas eu já lhe dei a minha palavra de honra de que todos os meus actos
d'esta manhã não podiam deshonrar nem o seu nome, que é o meu tambem,
nem esta casa, que eu respeito como...

--A sua palavra de honra! Não basta. Bem vê que tenho motivos para
duvidar d'ella... e porisso...

--N'esse caso, como não tenho outra garantia a offerecer, calo-me.
Depois de uma resposta como essa, quando é de um pae que a recebemos,
não nos resta outro partido, além do silencio--disse Carlos, com
decidida resolução de não continuar este dialogo, receiando com razão
que a impetuosidade do genio o levasse a esquecer a qualidade da pessoa,
que altercava com elle.

Mr. Richard calou-se tambem e deu em passeiar no quarto. Depois disse,
ainda com severidade, mas em tom menos elevado:

--Parece-me que concordará commigo em que me assiste o direito de pugnar
pelo decôro da minha casa?

Carlos não respondeu.

--É um dever imperioso de todo o chefe de familia. A excessiva
benevolencia é também immoralidade--disse ainda o pae.

O mesmo silencio da parte de Carlos.

--Espero que não tenha deixado adormecer em si tão profundamente os
sentimentos de honra, que não comprehenda já este dever da minha parte.

Nenhuma resposta ainda.

Mr. Richard, que conhecia o filho, percebeu que em vão esperaria d'elle
defeza ou desculpa.

Saiu portanto do quarto.

Quando fechou atraz de si a porta, Carlos atirou ao chão, com movimento
de raiva, que havia muito a custo reprimia, uma preciosa jarra da China,
que se fez pedaços; em seguida pôz-se a percorrer o quarto a passos
largos, e ai do objecto que encontrava na passagem!

A campainha soou emfim, chamando para o jantar.

Carlos tentou dar á physionomia um aspecto de serenidade, no que foi mal
succedido. Lá estava o olhar de Jenny a espial-o, e não era ella a que
se illudiria com estes fingimentos pueris.

Imagine-se como correu o jantar, principiado sob taes auspicios.

O tinir dos talheres e dos crystaes era o unico ruido que interrompia o
solemne silencio da sala. Até os criados andavam em bicos de pés,
dominados por aquella como atmosphera pesada, que se respirava alli
dentro.

Jenny ainda tentava sorrir ás vezes, mas, coitada, gelava-se-lhe o
sorriso nos labios, á vista das frontes ligeiramente contrahidas do pae
e do irmão. E sem poder descobrir o motivo d'aquella animadversão entre
elles! Como tão de repente se condensára esta tempestade, que ella nem
tempo tivera para tentar desvanecer?

O jantar terminou como começára, silencioso e triste. Carlos foi o
primeiro a levantar-se da mesa. Mr. Richard não teria d'esta vez
companhia para o seu tão apreciado pospasto.

O inglez começava a sentir mentalmente os effeitos de uma mudança de
pensar. Estava-lhe já parecendo que havia sido muito severo para com o
delicto do filho.

Podia muito bem ser que tivesse peccado por inexacta a interpretação que
dera ao facto, e ainda quando não fosse, era a final uma leviandade de
rapaz, que talvez não merecesse tão asperas censuras.

O tolerante inglez só esperava por o primeiro ensejo para naturalmente,
airosamente, realisar a reconciliação com o filho. Onde ia já o seu
resentimento?

Ficou pois devéras mortificado, assim que viu Carlos levantar-se para
saír, levando comsigo as esperanças do almejado ensejo.

Olhou para Jenny, a ver se d'ella partiria alguma tentativa para reter o
irmão.

Jenny, absorvida a estudar a physionomia de Carlos, não deu pelo gesto
do pae.

Já Carlos ia no meio da sala, quando Mr. Richard disse, em voz alta, as
primeiras palavras que, desde que se sentára dissera:

--Chegou hontem á noite... Mr. Smithfield, de Londres...

Carlos parou, ficando por alguns instantes a olhar para o pae, como se
esperasse ouvir d'elle mais alguma cousa; depois continuou a caminhar
para a porta.

--Chegou Mr. Smithfield e a filha, Alice Smithfield--disse ainda Mr.
Richard.

Carlos tornou a parar, e vendo que o pae não acrescentava mais nada, deu
ainda alguns passos.

--É um homem, a quem a nossa casa deve muitos favores, tanto commerciaes
como... pessoaes--disse Mr. Richard.

Estas palavras suspenderam outra vez Carlos, que ia já proximo da porta.

E como Mr. Richard se calasse, o filho estendeu a mão para o reposteiro.

--Estivemos lá, esta manhã, eu e Jenny.

Carlos não disse nada; esperou ainda.

Mr. Richard acrescentou:

--E ficamos de voltar esta noite... Elles partem ámanhã para o Minho
e... Perguntaram por... por ti.

Mr. Richard realisára um grande esforço: pozera de parte o tom
ceremoniatico com que até ahi tratára o filho.

Carlos, que já desviava o reposteiro, vendo que o pae não proseguia,
curvou-se respeitosamente e saíu, como se não tivesse comprehendido o
sentido d'aquellas insinuações.

Mr. Richard viu-o saír, e de novo se lhe carregaram as feições, que
haviam já desanuviado de todo; ao mesmo tempo estalava-lhe entre os
dedos uma avelã, com que estivera brincando, tal foi a força, de que a
contrariedade lhe animou n'aquelle momento os musculos.

Jenny vira tudo isto, afflicta e irresoluta. Para sanar o mal, era
necessario conhecer-lhe a causa, e ella ainda a não sabia. Levantou-se e
foi encostar-se ao hombro do pae.

--Que tem?--disse-lhe com voz affectuosa.

--Faço quanto posso para viver em paz, mas já vejo que não é possivel.

--Então por quê?

--Pois não viste?

E levantou-se, dando alguns passos agitados na sala.

--Carlos tem vinte annos--acrescentou, passeiando ainda.--Aos vinte
annos, ha já deveres para todo o homem... E se elle se esquece de que os
tem e de que os deve e ha de cumprir... eu que sou pae...

À entrada de um criado interrompeu-o.

Mr. Richard sentou-se, pôz-se a ler o _Times_ e recaiu no silencio, de
que nada mais o tirou. Seria o _Times_ que o absorvia assim? O que é
certo é que em toda a tarde não desviou os olhos da primeira columna do
jornal.

Muito enigmatica devia vir esta primeira columna, que tanto custava a
ler!

Jenny dirigiu-se ao quarto do irmão.



XXVI


INEFFICAZ MEDIAÇÃO DE JENNY


Jenny foi encontrar o irmão apparentemente entretido a torcer as longas
orelhas do _terra nova_; mas não era necessario ser muito versado em
physiognomia, para perceber que lhe não estavam n'aquillo as attenções.

--Que foi isto, Charles?--disse Jenny, com a voz ainda turvada de
commoção--Por amor de Deus, isto que é?

Carlos levantou a cabeça, e respondeu, fingindo sorrir:

--Não te assustes, Jenny. Eu e o pae representamos hoje uma peça do
antigo repertorio, do repertorio da infancia. Elle lembrou-se de me
ralhar, como a uma creança; eu fiz como as creanças costumam, amuei.
Ora, aos dez e doze annos, scenas d'estas tinham para mim uma feição de
tragedia; aos vinte, predomina n'ellas o caracter de perfeita comedia...

--Mas... o que se passou entre vós, que désse logar a isto?

--Nada ou quasi nada. Interpretaram mal uma acção minha. Eu podia, mas
não devia, explical-a; afiancei porém, sob minha palavra de honra, que
não era exacta a interpretação que lhe davam; e meu pae, que acabava de
se apregoar respeitador e mantenedor da boa fama do nome Whitestone, foi
o primeiro a manchal-o, duvidando de uma palavra de honra firmada com
elle.

--Jesus, Charles!... Que has de sempre ter d'essas susceptibilidades com
uma pessoa de quem não deves suspeitar que possa nunca fazer do teu
caracter conceito algum desfavoravel!

--Mas se m'o assegurou!

--Pobre pae! E imaginas que era friamente que elle te reprehendia? Eu
não sei ainda o motivo que deu origem a essa scena, que disseste, mas...

--Um motivo insignificante. Esta manhã precisei de dinheiro; era urgente
a necessidade e a somma avultada. Não gósto de recorrer a outra pessoa,
quando posso recorrer a mim. Demais, estava só em casa. Commigo só tinha
um objecto, que promptamente me podia valer a quantia de que precisava.
Era o relogio e a corrente, que recebi do pae quando...

--E foste?... Ó Charles!--disse Jenny, olhando com desapprovação para o
irmão.

--Tirei da corrente este pequeno sinete de agatha, a parte menos valiosa
do presente, para conservar uma memoria d'elle. Sabes que não é pelo
preço dos objectos, que me offerecem, que eu os aprecio. Vendi o mais;
confesso que vendi. Passadas horas o acaso fez-me o favor de conduzir
meu pae pela mão justamente até á loja do ourives, onde relogio e
corrente estavam já expostos á venda. Reconheceu-os, comprou-os de novo,
e trouxe-m'os, dizendo-me por essa occasião algumas palavras que... que
só a elle poderia, e deveria, ter a paciencia de ouvir.

--Mas... que má cabeça a tua! Para que foste vender aquelle relogio, que
elle, coitado, com tanto gosto mandára vir para ti?

--Porque se tratava de alguma cousa mais importante e mais grave do que
os arrufos de um pae, por mais respeitaveis que elles possam ser.

Jenny fez involuntariamente um gesto de duvida.

--Acredita-me, Jenny. Não duvides tu, como elle duvidou. Affirmo-te,
tomando os mais sagrados testimunhos, que, se ainda se désse o motivo
que se deu, não hesitaria, apesar do que houve, em vender outra vez este
mesmo relogio e esta mesma corrente.

--Então que forte motivo foi esse?

--Não posso dizer-t'o.

--Já me não contas, como d'antes, os teus segredos, Charles?

--Este não é meu.

Jenny calou-se.

Carlos olhou por algum tempo para a irmã; depois veio pegar-lhe nas
mãos, dizendo:

--Olha bem para mim, Jenny. Tu estás a duvidar tambem da minha palavra.

--Não... Charles... não duvido.

--Dize: pódes acreditar que teu irmão, com todos os seus estouvamentos,
commetta uma vileza?

--Ó Charles! Que pergunta!

--Pódes acreditar que elle se esqueça por um momento do muito respeito e
amor que te deve, Jenny? e da veneração que sempre teve pela memoria da
mãe, que mal chegou a conhecer?

--Não, Charles, não. Para que me perguntas isso? Ninguem, melhor do que
eu, te conhece o coração e te avalia os sentimentos; bem o sabes.
Ninguem te faz mais justiça--respondeu Jenny, sensibilisada com a
manifesta commoção, que se conhecia na voz de Carlos, quando lhe fallára
assim.

--Pois de tudo isto me accusaram ha pouco... E foi meu pae!

--E julgas que o pensava, ainda quando t'o dizìa... se o disse?

--Se o não pensasse, calar-se-hia ao ver o mal que me causavam aquellas
accusações e a maneira por que eu as repelli... mas insistiu.

--Perdôa-lhe tu tambem isso. Vamos; comquanto eu não faca a injustiça de
te suppôr capaz de acções, tão carregadamente más, como essas que
dizias, acredito tambem que não seja de tudo um justo este incorrigivel
irmão que tenho, e creio que precisará um pouco da indulgencia, que
recusa ter para com os outros. Tudo isso passou já. Olha, meu Charles,
tu deves fazer como os lagos e como os prados, que não conservam
vestigios das nuvens que os assombraram, ao passarem por diante do sol.
Se visses como o pae ficou, assim que te retiraste da mesa! Coitado! Se
foi injusto comtigo, está pagando bem cara a injustiça! Acredita que a
sente mais do que tu. Eu estava a reconhecer n'elle o desejo de te pedir
desculpa por alguma cousa, de que se arrependia já. Mas, que queres?
estas passagens não se podem fazer assim depressa, ainda que haja a
melhor vontade. E tu não lhe déste tempo. Serias um anjo, Charles, se
fosses bom e generoso a ponto de...--E olha que era uma vingança
tambem.--Se fosses bom e generoso a ponto de voltares para a sala e
vires fazer companhia ao pae esta tarde...

--Tu, que me conheces, Jenny, como pódes lembrar-te d'essa proposta? Não
sabes como eu sou? Percebeste alguma vez em mim a aptidão para
dissimular, de que precisaria, se quizesse fazer o que me indicas? Os
meus resentimentos são curtos, é verdade; mas, emquanto duram, não sei
disfarçal-os. Ámanhã já nada terei na memoria talvez de tudo isto; mas
hoje, mas agora, aggravaria o mal, se me apresentasse tão cêdo diante do
pae.

Jenny não insistiu, porque reconheceu a verdade d'esta reflexão do
irmão. D'ahi a pouco, disse-lhe:

--Dou duas horas de vida ao teu resentimento, e já é suppôl-o muito
vividouro. Ao anoitecer, nem sombras haverá d'elle. Acompanhar-nos-has
então a casa de Mr. Smithfield, o que será o maior prazer que pódes
causar ao pae; e o dia de ámanhã virá sem nuvens.

--Não, Jenny, não vos posso acompanhar esta noite.

--Não digas que não, Charles. Então és assim reservado?

--Não; mas... tenho destino para esta noite já.

--E de tanta urgencia, que não possas...

--Não posso faltar, não.

--Ó Charles, não ouviste o que o pae disse?--«Mr. Smithfield é um homem
que tem feito serviços á casa...»

--Hoje não posso; amanhã visitarei esse senhor.

--Ámanhã partem elles para o Minho.

--Tanto peior. Vêl-o-hei na volta.

--Vaes desafiar uma tempestade, recusando-te a tão pequeno sacrificio.

--Que querem? Digam a esse homem, que eu tenho mau caracter, que sou
desagradecido, intratavel, grosseiro, egoista; e que por isso não deve
estranhar a minha pouca pressa em ir dar-lhe os emboras pela sua feliz
viagem.

Carlos disse tudo isto com impaciencia, que sobresaltou a irmã.

Foi com ligeiro tremor de voz, que ella lhe respondeu:

--Tu bem sabes que não é isso que eu posso dizer de ti, Charles, nem
deixar que os outros, na minha presença, digam.

Carlos abrandou inimediatamente, ao ouvir estas palavras.

--Pobre Jenny! És a unica pessoa que me conhece devéras.

--E tu a que te conheces menos--respondeu a irmã, com doçura, e depois
acrescentou:--Vens?

--Não posso.

-Charles!

--Mas se eu prometti!... Olha, Jenny, se és minha amiga, não insistas
mais a este respeito; que não seja o dia de hoje tão aziago para mim,
que esteja destinado a receber durante elle desgostos das pessoas a quem
mais estimo.

As lagrimas assomaram d'esta vez aos olhos de Jenny.

--Era para t'os evitar, que eu insistia, Charles... Perdôa-me se...

E a commoção não a deixou continuar.

Carlos apoderou-se-lhe das mãos, que cobriu de beijos.

--Minha boa Jenny! minha generosa irmã! perdôa-me tu, perdôa a este
estouvado, que nem sabe o que diz. De joelhos te devia implorar, filha,
eu, que te pago em lagrimas os sorrisos que me dás. Tu a pedir-me
perdão! Eu a perdoar-te, Jenny! O quê?... O conforto que me tens dado
sempre?... Esta serenidade, que me fazes durar na vida, anjo? As
caricias e cuidados de mãe que me ensinaste a conhecer? pobre mãe, só
dois annos mais velha do que este mau filho, que não sabe senão
affligil-a! É isto que tenho a perdoar-te? Dize. Não repares para as
loucuras d'esta minha cabeça. E agora escuta-me. Eu desejava fazer-te a
vontade, mas... hontem... o... Manoel Quentino mostrou-me desejos de
celebrar na minha companhia o ultimo dia de reclusão, a que a doença o
tem obrigado. Ámanhã já elle sáe. É uma pequena e suave festa de
familia, e na qual sómente servem de galas os affectos e as flores. Esta
manhã não pude ir visital-o, como elle me pediu... Era agora, á noite,
que eu tencionava ir... Queres que eu deixe de satisfazer o desejo do
pobre homem?

Jenny, depois de fitar por algum tempo o irmão, suspirou, baixando os
olhos.

--Responde, Jenny--repetiu Carlos--e se julgares que, no meu logar,
poderias fazel-o, sem que um pequeno remorso t'o estorvasse, eu
obedeço-te e... não irei.

Jenny permanecia calada.

--Então?--repetiu Carlos.

--Que queres que te responda, Charles? Seria sem hesitação que eu te
diria «vae», se estivesse convencida de que é esse sentimento de
generosidade o que te chama lá.

--Então duvidas do que eu disse?

--Não. Mas duvido, e ha muito, do conhecimento que tens de ti proprio.
Ensinaste-me a ler em ti, Charles, n'aquelles tempos, em que me
communicavas todos os teus pensamentos; habituei-me então, e leio ainda
agora, que evitas essas longas conferencias de outras épocas...

--Que evito! Pois imaginas?...

--Não imagino, sei. Cuidas tu, Charles, que tenho perdido de vista o
irmão, que tão longe d'ella tem procurado andar? Ai, não tenho, não.

--E que tens visto a essa distancia?--perguntou Carlos, gracejando.

--O bastante para me affligir; o bastante para pedir a Deus que me
inspire um dia, em que talvez seja mais carregada do que nunca a nuvem
que venha ameaçar-nos.

--Visionaria!

--Oh! se o fosse!

--Não me dirás tu, Jenny, como te deu para seres tão apprehensiva d'esta
vez! Logo d'esta, em que não é um capricho o que se apoderou do coração
de teu irmão!

--Não é?

--Não, digo-t'o afoutamente, não é. É um sentimento novo para mim
aquelle, a que ando sujeito... Ahi volto eu ás velhas confidencias de
outros tempos; não reparas?

--D'esta vez, Charles, ha duas pessoas, que ambas me são caras,
empenhadas n'isto; eis uma causa da minha inquietação. D'esta vez, se de
um dos lados sómente houver sinceridade...--e será do teu lado, a
havel-a sómente de um?--recaírá sobre o outro todo o peso de
irremediavel infortunio; outra causa que me faz estremecer. E quando
sejam sinceros ambos, não haverá tantas luctas a travar? tantos
obstaculos a vencer? É de tudo isto que vem as minhas apprehensões.

--Socega, Jenny; eu tenho mais confiança no futuro do que tu.

N'este ponto, entrou um criado com recado de Mr. Richard a Jenny, de que
eram horas de preparar-se para a visita a Mr. Smithfield.

--Então, Charles... Vens?--disse ella ainda uma vez para o irmão.

--Por quem és, Jenny, não insistas mais. Basta que te diga que não sei
de motivo tão forte que me podesse obrigar hoje a faltar á minha
promessa. O mais que fazes é perturbar-me o socego de espirito para toda
a noite, com o remorso de não ter condescendido comtigo.

Jenny curvou a cabeça e saíu do quarto.

Carlos correu a retel-a á porta, para dizer-lhe ainda uma vez:

--Perdôa-me, Jenny.

Ella só pôde responder-lhe, commovida:

--Vae.

Passados minutos, vieram da parte de Mr. Richard perguntar a Carlos, se
elle o acompanharia á visita ao compatriota Smithfield. Carlos respondeu
que lhe era impossivel fazel-o aquella noite.

Recebendo esta resposta do filho, Mr. Richard pôz-se a esfolhar com
impaciencia uma rosa que tinha na mão.



XXVII


O MOTIVO MAIS FORTE


Meia hora depois, ouviu Carlos o rodar da carruagem, que levava Mr.
Richard e Jenny á hospedaria, em que estava alojado Mr. Smithfield.

Julgára que respirarìa satisfeito, quando tivesse emfim conseguido ficar
toda aquella noite á sua propria disposição; mas cêdo reconheceu que o
esperára em vão.

Ha situações na vida era que, para qualquer lado que a resolução nos
encaminhe, gera-se-nos sempre no animo um remorso, mais ou menos
intenso, por haver abandonado os outros.

Em uma d'estas dilemmaticas contingencias se tinha achado o espírito de
Carlos.

Na vespera havia de facto promettido, não a Manoel Quentino, como á irmã
dissera, mas a Cecilia, o que maior força dava ainda á promessa, que não
faltaria á festa, disfarçadamente planeada por ella, para celebrar o
restabelecimento do velho.

Era uma especie de innocente conspiração entre os dois; e é provavel que
o leitor ou leitora não ignorem o ardor com que, de ordinario, o coração
se vota a este genero de emprezas, com este genero de allianças.

Carlos não tinha coragem de faltar, nem que fosse para suspender
aquellas lagrimas que vira imminentes nos olhos da irmã. Resistiu pois,
como vímos.

Mas a resistencia deixou de si vestigios dolorosos; aquelle pezar,
causado a Jenny, sentia-o ainda o coração de Carlos; ficára-lhe a dor
intima, que até os alvoroços de prazer, excitados pela lembrança da
proxima entrevista com Cecilia, pareciam exacerbar.

Porque ha d'estas contradicções nos sentimentos humanos; é por a mesma
razão que, ás vezes, a negrura dos presagios mais se condensa entre os
maiores fulgores da felicidade, e que se aviventa a luz de vagas
esperanças nas mais tenebrosas situações da vida.

As horas porém adiantavam-se, e Carlos preparou-se para o serão festivo,
que o esperava.

N'esta noite empregou na tarefa de se vestir um esmero, para que raras
vezes lhe sobrava paciencia.

Parecia estar-se apromptando para um baile.

--Que importuna occasião escolheu este Mr. Smithfield para a sua
visita!--pensava Carlos, emquanto ajustava ao espelho o laço da gravata
de seda--Por causa d'elle é que Jenny me deixou assim pezaroso... Mas
d'onde virá a exagerada apprehensão, que ella mostra d'esta vez?--E
vestia o collete branco.--Não a devia tranquillisar o conhecimento que
tem de Cecilia? Não devia até desejar que o meu coração se fixasse aqui,
que não fosse mais longe? Só se receia de mim... Verdade é que o meu
passado... Oh! mas d'esta vez...

No meio de uma turba de agradaveis pensamentos desvaneceu-se a impressão
penosa, que lhe deixára a despedida da irmã.

Afagando-os a todos, terminou Carlos a sua acurada _toilette_ e
dispôz-se a partir, acompanhado por um cortejo de esperanças, tão vivas
e palpitantes, que nem lhe deixavam sentir já o ligeiro remorso que, de
mistura com ellas, lhe havia entrado o coração.

Ia já a transpôr o limiar da porta, quando um subito rumor de vozes, de
passos apressados e gritos agudos, como arrancados por a mais dolorosa
tortura, o fizeram parar.

Informou-se, cheio de inquietação, do motivo d'aquelle ruido.

--É a snr.ª Catharina, que está com um dos seus ataques--respondeu o
criado, a quem elle se dirigiu.

Eram tão frequentes estes accessos na velha Kate, que, desde que Carlos
soube ser essa a causa do rumor que ouvira, não lhe deu mais importancia
e caminhou outra vez para a porta.

Redobrou porém a violencia dos gritos, e tanta e tão crescente angustia
exprimiam, que o génio de Carlos não lhe permittiu mais tempo ouvil-os
impassivel; obedecendo a generoso impulso, subiu apressado as escadas e
entrou n'aquelle mesmo quarto, onde já acompanhamos Jenny.

Illuminava o aposento apenas a froixa claridade de uma lamparina, quando
Carlos entrou alli.

Em volta do leito da velha ingleza agrupavam-se todas as criadas da
casa.

A pobre louca estrebuxava tão violentamente com os braços, que ellas mal
conseguiam segural-os.

Gesticulando com movimentos desordenados, soltando, entre gritos agudos,
palavras sem nexo, reunindo syllabas sem significação, descomposta e com
os cabellos em desordem, aquella desgraçada inspirava ao mesmo tempo
compaixão e terror.

Carlos aproximou-se do leito.

A velha Kate, vendo chegar uma nova figura junto de si, fitou n'elle um
olhar de expressão quasi selvagem e, depois de algum tempo, pôz-se a rir
e a bater as palmas, com os modos infantis proprios d'aquelles estados
de embecilidade.

--Olhem!... É elle!... é elle!... --dizia ao mesmo tempo, reparando cada
vez mais em Carlos--Como veio para aqui?... Inda bem que vieste!...
Agora sim!... Quero ver agora quem me fará mal?... Vem cá, Dick, vem
cá!... Agora sim!...

E acenava-lhe para que se aproximasse do leito.

Carlos condescendeu.

--Vejam! vejam!--dizia a velha, passando as mãos pelos cabellos de
Carlos--É outra vez o Dick, que eu conheci... Este sim!... Já não tem
nenhuns cabellos brancos... Este sim... Eu bem dizia que havia de
voltar. O outro não era verdadeiro... Agora já não receio esses
malditos, que me teem aqui presa ha tanto tempo!... Que venham!... Tu
não me has de deixar só com elles outra vez, Dick, não? Olha que me
matam!

--Socega, Kate, socega--disse Carlos carinhosamente--Ninguem te quer
fazer mal.

--É porque tu não sabes ainda o que elles me teem feito!... Olha;
repara... Não vês o cadeiado que me pozeram aos pés?... Nem os posso
mover... nem os sinto!... E agora... metteram-me aqui no peito um
ferro... aqui... cá o sinto dentro.... Arde, como se estivesse em
braza... E este laço?... não vês este laço, que me deitaram ao
pescoço?... não vês como está apertado?... suffoca-me!... Ai!... ai!...

E respirando a custo, apertava com ancia, o braço de Carlos, que a
segurava.

--Então, Kate, vê se descansas;--dizia elle--eu vou já mandar tirar-te
tudo isso, que te afflige assim...

--Então... manda... manda! Por compaixão, Dick, manda; não deixes
martyrisar assim a velha Kate!... Por amor de teus filhos, Dick! Eu não
tenho forças para soffrer tanto! Estou muito velha, Dick, muito
velha!... tem compaixão de mim!...

E rompia em soluços tão expressivos de dor, que até as criadas não foram
superiores á commoção.

Depois encostou a cabeça ao hombro de Carlos, dizendo-lhe ao ouvido, com
expressão de susto e de mysterio:

--Foram ellas que me fizeram todo este mal, não foram?

--Não; socega...

--Foram! foram, sim!--bradou, elevando a cabeça com violencia e
inflammando-se-lhe outra vez o olhar, que parecia despedir faiscas, como
sempre que era contrariada.

--Pois foram, foram; mas...

--Então não fiquemos aqui. Vamos outra vez para a Inglaterra, Dick. Para
que me trouxeste tu para esta casa? Para quê?

--Descansa, que havemos de ir; mas é preciso que estejas socegada.

--Estou... não vês que estou?... mas... não me deixes só,
não?--acrescentava, com entonação de supplica, quasi infantil.

--Então não vês aqui tanta gente?

--Não a quero. Manda-a embora; a todos... manda-os a todos embora!... Eu
quero estar só comtigo...

--Mas...

--Manda-os embora, por amor de Deus, manda-os embora!

Carlos não teve coração para resistir a este pedido da louca.

Á sua ordem saíram as criadas do quarto, deixando Carlos só com ella.

--Fecha, fecha essa porta, para que não entrem outra vez, fecha.

Carlos fechou a porta.

--E agora vem cá; senta-te aqui, ao pé de mim; eu não posso dormir, se
tu aqui não estás... E eu queria dormir... Tenho somno.

E tomou entre as suas as mãos de Carlos.

Carlos sentiu que as d'ella começavam a arrefecer, d'essa frialdade de
gêlo, que excita em nós uma repulsão instinctiva. Pela primeira vez lhe
acudiu a ideia de que podia ser aquella a ultima noite da pobre mulher.

Este pensamento fel-o olhar para ella com mais attenção.

A escassa luz da lamparina ainda lhe permittiu conhecer a profunda
alteração de feições, que a pobre demente apresentava.

Deram nove e dez horas, e Carlos não saíra de junto da velha criada,
que, segura ás mãos d'elle, estremecia ao menor movimento que sentisse,
como receiando ser abandonada outra vez. Era tal o terror que mostrava
de ficar só, que tirou o animo a Carlos de tentar sequer deixal-a.

Assim as horas, que elle contava passar na companhia de Cecilia, iam-lhe
correndo junto d'esta desgraçada octogenaria, que com discursos
incoherentes, de mistura com risos e com prantos igualmente expressivos
de desvario, o conservou alli.

Pouco a pouco, principiou a tornar-se-lhe mais tardia e inintelligivel a
pronuncia, mais sumida a voz, mais ennevoado o olhar.

--Pozeram-me estes ferros...--murmurava ella, interrompendo-lhe a ancia,
a cada instante, as palavras sem nexo que dizia--pensam que eu não
sou... Kate?... sou Kate, sou!... Foi á viuva do fogueiro... que eu
dei... o vestido verde... O fogueiro morreu... morreu no mar... É porque
não são bons christãos... Não foi o gallo que cantou, foi a coruja...
Dizia que eram esmeraldas e... assim é que a irmã se perdeu... O cedro
chorava... era o pae d'ella...

Carlos, pousando-lhe a mão no pulso, mal o pôde já perceber... Tentou
sair, para chamar alguem que ministrasse os soccorros precisos, mas a
contracção, com que a velha o segurou, o estremecimento que lhe correu
pelo corpo, ao sentir a tentativa de Carlos, obrigaram-o a desistir.

--E para quê?--pensava elle--ninguem já agora arrebatará esta presa á
morte. Pelo menos que seja tranquillo o passamento. Deixal-a morrer em
paz.

E ficou, ficou elle só, unico espectador d'aquella scena lugubre,
d'aquelle espectaculo pouco talhado para a sua juventude, para a sua
indole e para os vestidos de gala, com que, para bem outros fins,
esmeradamente se preparára.

Era notavel o contraste. A velha caiu em silencio profundo, apenas
cortado de surdos gemidos.

Dava meia noite, quando uma respiração mais ampla, após um profundo
repouso, fechou o circulo d'aquella longa existencia.

Carlos conheceu que tinha diante de si um cadaver.

Depois de por algum tempo a encarar melancolicamente, desceu-lhe, com
piedoso respeito, as palpebras sobre os olhos amortecidos.

Foi n'este piedoso mister que o vieram encontrar Jenny e Mr. Richard.
Voltando da visita a Mr. Smithfield e sua filha, souberam no portal que
Carlos não havia saído, em consequencia do violento accesso que
acommettera Kate.

Ahi mesmo se desvaneceu toda a irritação de animo em Mr. Richard.

--Então não saíu?

--Não, senhor,--disse o criado--havia-se vestido para saír, mas até
agora tem estado só no quarto da snr.ª Catharina.

O velho inglez, que tinha ainda pela que fora sua ama uma verdadeira
affeição, sentiu-se commovido ao ouvir isto.

Elle e Jenny correram então ao aposento de Kate.

--Expirou agora--disse Carlos, ao vel-os entrar.

O pae e a filha acercaram-se apiedados do leito.

Jenny não recusou lagrimas de saudade áquella velha mulher, que ella,
tão longe, quanto lhe ia pelo passado a memoria, se recordava de ver
sempre junto de si.

Mr. Richard curvou tambem a cabeça, perante aquelle tão solemne
espectaculo.

Carlos ficava-lhe defronte e ao lado a irmã.

Jenny, enxugando os olhos, voltou-se para elle.

E, como se obedecesse a irresistivel impulso do coração, apertou-o nos
braços, dizendo:

--É n'isto que te reconheço, Charles. Quem poderá duvidar ainda da
generosidade da tua alma?

Carlos correspondeu ao abraço da irmã, beijando-a affectuosamente na
fronte.

E ao descingir-se-lhe dos braços, encontrou a mão de Mr. Richard, que se
estendia francamente para a sua.

--O seu proceder foi o de um homem de bem e... de coração, Charles.
Honra-o--disse, com voz tremula, o inglez.

Carlos apoderou-se d'aquella mão, que se lhe estendia, e curvou-se para
beijal-a.

Perante aquelle leito mortuario desvanecera-se de todo a tempestade
domestica.

Foi assim que Carlos faltou á promessa que tinha feito a Cecilia, falta
que horas antes pensava e dizia não haver motivo tão forte que o levasse
a commetter.

Resistiu de facto aos resentimentos do pae, resistiu,--e mais custoso
lhe foi--ás lagrimas da irmã; mas não teve animo para resistir á
compaixão por uma pobre mulher, velha, demente e moribunda.

Ficou, para lhe fechar os olhos.

Era assim o caracter de Carlos.



XXVIII


FORMA-SE A TEMPESTADE EM OUTRO PONTO


A snr.ª Antonia não perdera o seu precioso tempo, nem desaproveitára a
sciencia adquirida por meio das observações da manhã.

Ao voltar a casa, encontrára na rua o snr. José Fortunato, e a elle,
como fiel alliada, communicára logo alli o peculio de descobertas, com
que enriquecera o thesouro dos seus já numerosos conhecimentos.

José Fortunato horrorisou-se com a serie de estupendas noticias, que
ouviu de tão auctorisada bôca.

--Não ha que fiar nos homens de hoje!--foi a sentença que elle lavrou,
depois de ponderar os famosos artigos d'aquelle libello diffamatorio.

--A mim não me enganou o melro--fez-lhe notar a snr.ª Antonia.

--Pois olhe que a mim...

--Agora o que é preciso é abrir os olhos fechados, que ha lá por casa.

--Abrir?!... Melhor seria fechar alguns, que já se abriram de mais para
elle... Não sei se me entende?

--Entendo, entendo. Não ha de ter duvida. Socegue.

E a snrª Antonia, serenando assim as apprehensões do seu protegido,
entrou para casa. José Fortunato ia pensando:

--Se eu avisasse o pae, mas de maneira que não soubesse que era eu...

Cecilia andava contente aquella manhã.

O seu bom coração deixára-se repassar todo de alegrias, d'essas alegrias
travêssas, agitadoras, de quem não quer reflectir no que as faz nascer;
alegrias que, vindo á luz, gosam da luz como as creanças, as quaes a
festejam com risos e cantares, ainda sem saudades do passado, nem
incertos temores do futuro, a amargurarem-lhes tão ingenuo prazer.

Pobre rapariga! Mal sabia ella, que bem de perto a seguia a nuvem, que
havia de assombrar-lhe o fulgor d'aquelle contentamento!

Antonia machinava em silencio contra ella. Á similhança da aranha, em
traiçoeira emboscada, aguardava paciente que aquella buliçosa borboleta,
que voava em volta de si, viesse prender as azas na sua enredada teia.

Cecilia demorava-se porém pouco tempo junto d'ella, e pouco tempo em
toda a parte. Lembrava uma avezita prisioneira, quando, ao amanhecer de
um dia de sol desanuviado, após longos de nuvens e de chuva, bate as
azas, salta de poleiro em poleiro, esvoaça de encontro ás grades da
gaiola, e ensaia de novo o canto, havia muito interrompido.

Occupada com os preparativos do que ella chamava a festa do pae, Cecilia
não parava um momento. Descia ao quintal, para colher flores;
escondia-se no quarto, para formar ramos, e com elles enfeitar as
jarras; passava á sala de Manoel Quentino, para que a ausencia não fosse
estranhada, e com o fim de dizer ao pae algumas palavras de affecto;
depois voltava ao quintal e sempre com a ligeireza e agilidade, proprias
d'aquelle corpo flexivel e elegante e d'aquella nervosa compleição.

De quando em quando, chegava tambem á janella, esperançada em que um
feliz acaso lhe satisfizesse não sei bem que secretas aspirações, as
quaes talvez a leitora adivinhe.

Foi em uma d'estas occasiões, que Antonia, encontrando-se com ella no
corredor, lhe disse á queima-roupa:

--Já esta manhã vi o snr. Carlos.

Cecilia perturbou-se; mas inquiriu, affectando indifferença:

--Aonde?

--Ia a saír de casa. Entrou com uma senhora nova para uma carruagem...

--Havia de ser Jenny, a irmã...

--Ai, não; não era, não, senhora. Essa tinha saído com o pae, logo pela
manhã, que m'o disse a snr.ª Joséfinha. Esta tal, que eu digo, chegou de
fóra. Pelos modos... é das taes comediantes do theatro... que elle
conhece.

--Comediantes?!--disse Cecilia, não procurando já disfarçar a
inquietação.

Após este preludio, a snr.ª Antonia entrou de alma e coração na materia,
que esgotou completamente. Disse quanto ouviu, quanto viu e, mais ainda,
quanto pensou e concluiu de tudo o que ouvira e vira, graças áquelle
vigor de deducção logica, que era dos mais caracteristicos dotes d'esta
senhora.

Cecilia, comquanto lhe parecessem exageradas as opiniões da criada,
sentia que se lhe ia enlutando o coração ao ouvil-a; e que toda aquella
disposição para rir e cantar, com que lhe principiára o dia, se lhe
estava transformando em irresistivel desejo de chorar.

No estio dos nossos climas amanhece ás vezes o dia puro e formosissimo;
o céo é azul; resplendentes os raios do sol; tepida e perfumada a
viração, que agita as folhas dos arvoredos; pouco a pouco, parece que o
sol desmaia; que desbota o azul do céo; que nos abafa a atmosphera
inflammada; accumulam-se no horizonte, e espalham-se depois por todo o
firmamento, nuvens de um azulado de chumbo;--fórma-se a trovoada.

Esta manhã de Cecilia foi bem similhante a um d'estes dias de verão.

Quando Antonia acabou de expôr as conceituosas reflexões a respeito do
caracter e vida de Carlos, e de provar á saciedade ser elle possuidor
das peiores qualidades d'este mundo, Cecilia separou-se subitamente
d'ella e correu a fechar-se no quarto.

Foi com as faces pallidas e com os olhos vermelhos que ella appareceu
diante do pae ao jantar. Contrastava tanto com estes vestigios de
tristeza o sorriso, a que pretendia obrigar os labios, que o effeito era
mais triste ainda.

Todo se alvoroçou o coração de Manoel Quentino, ao vel-a; tão contente
pela manhã, e agora assim! Olhava para a filha, mas não se atrevia a
interrogal-a.

Cecilia bem fez por se mostrar jovial; fallou sempre durante o jantar,
mas havia tanto de facticio n'aquella vivacidade, que ninguem se podia
illudir, quanto mais o pae!

Reinou, durante todo o dia, entre Manoel Quentino e a filha aquella
especie de mutua desconfiança, que se dá sempre com duas pessoas, quando
ha entre ellas um segredo, guardado por uma e suspeitado por outra, e no
qual ambas evitam fallar.

Aproximou-se a noite.

José Fortunato foi pontual.

Cecília estava cada vez mais agitada; o coração era-lhe disputado por
esperanças, misturadas de receios, de ver chegar Carlos á hora
promettida, e por o presentimento, que lhe segredava que elle não viria
aquella noite.

A impaciencia, que d'aqui lhe nascia no espirito, revelava-se nas mais
pequenas cousas. Quanto mais se fechava a noite, tanto mais era para
notar em Cecilia aquella especie de excitação nervosa, em que as
occorrencias do dia a haviam lançado.

Chegou a ser cruel para com José Fortunato.

Ás vezes, até as respostas, que dava ao pae, saíam-lhe com certo
azedume, de que immediatamente se arrependia, empregando depois tanto
ardor nas desculpas, que ainda mais afligiam e inquietavam o velho.

Segundo o costume, era ainda á doença, e só á doença, que elle attribuia
aquillo tudo, e por vezes, chamando a filha a si, insistiu, depois de a
beijar, em lhe tomar o pulso.

Manoel Quentino, que não entendia cousa alguma de organisações nervosas,
julgava ver na frequencia das pulsações em Cecilia um symptoma evidente
de febre e, por sua vontade, já teria rodeiado a filha de todo esse
apparato medico, com que, sob pretexto de combater uma doença, tantas
vezes se aggravam incommodos ligeiros.

Deram sete, oito, nove horas, e Carlos não apparecia.

A snr.ª Antonia andava com ares triumphantes. José Fortunato trocava
olhares de intelligencia com ella.

--Estou muito admirado da demora de Carlos!--dizia Manoel
Quentino.--Está decidido que não vem.

--Será melhor trazer o chá--lembrou Antonia.

--Será melhor esperar que lh'o mandem trazer--acudiu Cecilia com frieza.

Manoel Quentino, ao ouvir o tom d'esta resposta, fixou tristemente os
olhos na filha. Estranhava-a.

--O snr. Carlos teve pelos modos hoje outras distracções--observou José
Fortunato.

--E eu que o diga--acrescentou Antonia.

--Que diabo estão vocês a rosnar?--perguntou Manoel Quentino.

--É que...--ia Antonia a explicar-se, quando Cecilia a interrompeu.

--Ande, Antonia, ande; traga então o chá, ande; avie-se.

E disse isto com a impaciencia de quem não admittia demoras.

Antonia obedeceu. Cecilia deixou tambem por um pouco a sala.

O snr. José Fortunato aproveitou o ensejo para fazer o seu amigo sciente
do que havia, em relação a Carlos.

Muito contra o que esperava, em vez de o ver indignado e horrorisado
quasi, achou-o com umas disposições para levar o caso a rir, que o
maravilharam.

--Aquella cabeça não toma rumo!--dizia Manoel Quentino--Nem eu sei como
por tanto tempo aturou o serviço do escriptorio! E olhe que foi bom e
real serviço o que elle fez! Inda estou para saber como aquelle diabo de
rapaz pôde em tão pouco tempo fazer o que a muitos leva annos! Mas então
com que... esta manhã... Hein? Fugiu o passaro da gaiola? E de
carruagem! Fugirá a sobredita senhora com o rapaz para o deserto? Eh!
eh! eh!... Bem; então... n'esse caso... vamos nós tomando o nosso chá,
snr. Fortunato, vamos. Já o podiam ter dito; escusavamos de ter alterado
as horas...

Quando Cecilia voltou á sala, inda Manoel Quentino ria, a bom rir.

--Cecilia--disse-lhe elle--vamos ao nosso chá; voltamos hoje aos nossos
antigos habitos, filha. Isto de passaros novos fogem, pilhando a gaiola
aberta... Os que ficam são estes, como o snr. José Fortunato, que já
estão trôpegos de todo... Eh! eh! eh!...

O snr. José Fortunato não gostou demasiadamente da imagem. Manoel
Quentino proseguiu:

--Aqui o amigo contou-me agora a historia de uma certa carruagem e de um
certo rapaz, que Antonia lhe disse... é muito engraçada... Eh! eh! eh!

--Eh! eh! eh!--fez o snr. José Fortunato tambem--mas ficou-lhe bastante
caro o entrar no duetto, visto que Cecilia o castigou, dizendo:

--Engraçada? Então é por excepção. Não é essa a principal qualidade das
historias do snr. Fortunato.

José Fortunato pôz-se logo muito serio; Manoel Quentino olhou espantado
para a filha.

Episodios d'estes reproduziram-se durante todo o serão d'aquella noite.
Que triste não era a alegria que Cecilia affectava, ao trazer para o
quarto do pae as flores, que preparára de manhã, cheia de contentamento!
Lidar com flores, assim, com tanta melancolia, só quando se enfeita com
ellas um tumulo. Marejava-lhe nos olhos o pezar do coração; de pouco lhe
valia o sorriso nos labios. O serão acabou cêdo. Cecilia precisava de
estar só; queria-se livre de todo o constrangimento, queria poder
chorar, sem receio de vistas curiosas, de perguntas indiscretas, de
reflexões impertinentes.

Será necessario dizer que velou toda a noite?

Levantou-se na madrugada seguinte com resolução formada.

--Eu é que era louca--pensava ella--illudi-me sem fundamento...
acreditei... e por que acreditei eu?... De que me queixo?... Nem direito
tenho a resentir-me. Paciencia!--dizia a meia voz, suspirando--Hei de
ter força bastante para tirar esta loucura d'aqui.--E levava a mão á
cabeça, e, depois de reflectir, murmurava, mais baixo ainda, descendo-a
para o logar do coração:--E d'aqui nada terei que arrancar?

Manoel Quentino foi n'essa manhã para o escriptorio. A convalescença era
completa, mas para o ser tambem a sua alegria seria preciso que, ao
despedir-se da filha, não tivesse notado no semblante d'ella outra vez a
antiga expressão dolorosa.

Horas depois d'elle saír, passava Carlos, segundo o costume, por baixo
das janellas, d'onde ordinariamente Cecilia o esperava.

D'esta vez, achou-as fechadas, e corridas as cortinas.

Carlos estranhou aquillo, e por muito tempo não desviou os olhos
d'ellas.

Através d'essas desapiedadas cortinas alguém o observava porém. Era
Cecilia.

Vejam como ella tentava arrancar da cabeça, ou antes do coração, o que
chamára «loucura»?

E desejaria devéras arrancal-a?

Sem ser vista, seguia todos os movimentos de Carlos; viu-o passar; olhar
com attenção para as janellas; caminhar mais de vagar á medida que se
afastava; parar, e, parecendo tomar uma subita resolução, retroceder,
atravessar a rua e entrar para o portal da casa.

Cecilia recuou, como se podesse temer ser vista de fóra.

Cêdo ouviu tocar a campainha da cancella.

Cecilia estremeceu e dirigiu-se ao corredor.

Já ahi encontrou Antonia, que descia para ver quem tocava.

--Antonia--disse-lhe rapidamente Cecília--se for alguem a procurar-me...
diga-lhe que... que não posso fallar, que... estou doente... Seja quem
for... Entende?

--Entendo, sim, menina--respondeu Antonia, com um sorriso de quem
entende de mais.

Foi com modos desabridos que recebeu Carlos...

Este perguntou-lhe se Manoel Quentino tinha ido de facto para o
escriptorio, porque, vendo todas as janellas fechadas, lembrára-se de
que tivesse talvez recaído.

Antonia respondeu:

--Pois fique descansado. Foi para o escriptorio, foi, sim, senhor. Elle
agora está de todo. E a menina manda dizer que não póde fallar a
ninguem, porque está doente.

--Doente?!--perguntou Carlos com uma inflexão de voz, que fez quasi
arrepender Cecilia, que o escutava, da ordem que dera á criada.

--Não é cousa de cuidado, graças a Deus;--proseguiu esta--mas, em todo o
caso, não a deixará tão cedo receber visitas... de ceremonia. E ha de
dar-me licença, que tenho a minha vida.

E, acto contínuo, ouviu-se o bater da cancella, que se fechava.

--Antonia--disse Cecilia á criada, assim que esta chegou ao patamar,
trazendo nos labios um sorriso de victoria--a fallar a verdade você foi
de uma grosseria!

--Ora deixe lá, menina. Tudo é preciso com certa gente.

Carlos, ao sair do portal, pensava:

--Despeitos! Será por eu não ter vindo hontem? Deus o queira; tudo se
explicará em meu abono e depois o direito a uma compensação será optimo
advogado na minha causa. A indifferença era peior.

D'alli foi Carlos para o escriptorio, onde deu a Manoel Quentino os
parabens, pelo seu restabelecimento.

--Sinto--acrescentou--não ter podido hontem festejar, como tencionava, o
seu ultimo dia de doença, mas o que houve lá em casa... Já sabe?

--Já sei--respondeu Manoel Quentino, que se mostrava algum tanto
embaraçado.

--Esta manhã ia com tenção de saber de si--continuou Carlos.--Vendo
todas as janellas fechadas, receiei que se tivesse sentido peior. Soube
porém que era sua filha que se achava incommodada.

--Cecilia?!--exclamou Manoel Quentino, já assustado.

--Socegue--respondeu Carlos, sorrindo, porque o espanto de Manoel
Quentino acabava de confirmar as suspeitas, que tivera--pela maneira por
que me fallou a criada, imagino que não é de gravidade o incommodo. Nem
tempo tive de averiguar d'isso, tal foi a pressa com que ella me fechou
a porta. A boa mulher parecia ter mêdo de mim. Fallou-me com um
arreganho!

Manoel Quentino fez que sorria; mas era evidente que alguma cousa lhe
pezava no coração.

Depois de curta hesitação, aproximou-se de Carlos, e ainda com modo
constrangido, disse-lhe, chamando-o de parte:

--Snr. Carlos, eu tenho-o por um homem de bem; por isso prefiro
fallar-lhe com franqueza a andar com jogo encoberto, que nem é para o
meu genio, nem para o seu.

Carlos ficou surprendido com aquellas palavras, tão inesperadas como
mysteriosas.

--Então que temos, Manoel Quentino? Falle. Parecem communicações graves
as que tem para me fazer--dizia elle, olhando-o interrogadoramente.

--Escute. Eu sei os favores que lhe devo e sei a fé que se póde
depositar no seu caracter, que será tudo quanto quizerem, menos capaz de
uma infamia.

Carlos escutava-o cada vez mais admirado.

Manoel Quentino proseguiu, augmentando-se-lhe o embaraço com que
principiou:

--Mas... no mundo, em que vivemos, ha a verdade e ha as apparencias,
e... não basta sómente attender á primeira, é preciso tambem salvar as
outras...

--Mas a que vem tudo isso?--perguntava Carlos.

--A propósito de uma... de uma loucura, mas que, apesar de saber que o
é, eu tenho obrigação de attender. Esta manhã veio ter ao escriptorio
pela porta interna uma carta anonyma. Queira lel-a, e depois dirá o que
devo fazer.

A carta, cuja lettra era visivelmente disfarçada, dizia:

«Alguem, que toma a peito a reputação dos seus amigos, avisa-o de que as
visitas do snr. Carlos a sua casa, estão já dando que fallar á
vizinhança. Lembre-se de que, pela sua reputação, esse rapaz é uma
visita pouco propria em qualquer casa, onde existe uma menina de dezoito
annos.»

Assignado: «Um amigo desinteressado.»

Carlos, acabando de ler esta carta, passou-a para Manoel Quentino,
dizendo-lhe com profundo despreso:

--Estas são ferroadas de insectos, que se esmagam com o pé.

--Não julgue que me deixo levar por esses protestos de amizade
desinteressada;--disse Manoel Quentino--mas, tanto peior se, como
suspeito, ha antes malevolencia n'isto. A bôca, d'onde saíram estes
conselhos, espalhará a calumnia; e, se tenho coragem para me rir d'ella,
quando se refira a mim só, estalar-me-hia o coração, se de minha filha
se dissesse uma só palavra que a affligisse, que lhe causasse uma
lagrima.

--Tem razão--respondeu Carlos, curvando a cabeça, pensativo.

--Agora diga; que me aconselha que faça? Confio no seu cavalheirismo, e
por isso é a si e a mais ninguem que peço conselho.

--Obrigado, Manoel Quentino--respondeu Carlos, apertando-lhe a mão.--É
preciso que se me fechem as portas da sua casa.

---Carlos! O senhor bem vê que eu não lhe mereço essa ironia.

--Não é ironia. É effectivamente preciso que eu deixe de visital-o. Eu
saberei comprehender a sua posição; acredite-me. É justo que pague a
leviandade, com que me afiz a habitos, que, reconheço-o hoje, não eram
talvez os que a minha indole me pedia. Paciencia.

Manoel Quentino abraçou-o commovido.

Á noite, Mr. Richard e Carlos e muitos dos seus amigos assistiram na
capella ingleza do Campo Pequeno ás ceremonias funebres pela velha Kate,
em cuja sepultura o proprio Mr. Richard lançou, segundo o costume
inglez, os primeiros punhados de terra.

No fim do enterro, Carlos despediu-se de Manoel Quentino, que viera
assistir ao acto.

O bom homem, já habituado á companhia de Carlos nos serões, não teve mão
em si que lhe não dissesse:

--Venha commigo, Carlos; ao menos hoje ainda. Riremos um bocado; isto de
ir para casa com as ideias de um enterro na cabeça, não é grande
cousa... Venha. É dar muita importancia ao mundo, privarmo-nos, por
causa d'elle, da...

--Não, Manoel Quentino; convem por agora interromper as minhas visitas.
Talvez um dia o procure, mas... Adeus, adeus.

E voltou a casa.

Jenny viu-o tão melancolico, que lhe disse:

--Charles, quando d'antes tinhas alguma cousa que te affligisse,
confiavas-m'a. Por que já o não fazes agora?

--Jenny, concede-me algum tempo. Talvez, dentro em pouco, eu tenha muito
que te dizer e muitos conselhos a pedir-te.

Foi a resposta que obteve.

Carlos não faltou á palavra que dera a Manoel Quentino.

Dois dias se seguiram a este sem que a vizinhança do guarda-livros
tivesse que reparar nas assiduas passagens de Carlos por aquella rua,
nem a snr.ª Antonia de soffrer a contrariedade das suas visitas.

Mas, se na sobredita vizinhança houvesse quem depois da meia noite
estivesse acordado, poderia ás vezes ver passar um homem por diante das
janellas fechadas d'aquella casa, e olhal-as como se esperando que ellas
a final se cansassem de sua desesperadora discrição.

Taes eram já as proporções que havia tomado em Carlos o que Jenny
chamára uma phantasia!

Porque esse homem era elle.

Chegára-se a maio. Era uma d'estas noites de luar, serenas, tepidas,
perfumadas, em que um instincto irresistivel nos leva a procurar as
arvores, a escutar de perto o murmurio das fontes. Abafa-se nas salas.

Demorára-se Carlos d'esta vez diante das janellas de Cecilia em uma
d'aquellas contemplações, de que só os espiritos frios podem ter animo
de zombar, quando certo rumor na pequena janella de grades, que se abria
no muro do quintal de Manoel Quentino, lhe chamou a attenção.

Carlos retirou-se para a parte assombrada da rua e esperou. A janella
abriu-se, e o luar, batendo em cheio do lado d'ella, illuminóu a suave
figura de Cecilia.

Carlos permaneceu immovel.

Cecilia estava só; e quem, se não ella, tinha n'aquella casa imaginação
bastante para se seduzir com os encantos de uma noite assim?

Recostando-se á janella, a filha de Manoel Quentino conservava-se tambem
immovel. Havia tanta languidez no reclinar da cabeça sobre a mão, tanta
belleza e poesia n'aquella figura pallida, que a phantastica luz do luar
mais pallida fazia, que, ainda sem ter a imaginação de Carlos, era
possivel quasi acreditar por momentos ser aquillo uma apparição de noite
de estio, como, nas suas lendas, as concebe a phantasia popular.

Que lisongeira voz segredou ao ouvido de Carlos, que era n'elle que
aquella mulher pensava? Vaidades de coração, e tantas vezes mentirosas
illusões dos desejos, quem ha ahi que possa gabar-se de nunca vos ter
experimentado?

Cecilia foi subitamente despertada d'aquelle quasi sonho, em que parecia
arrebatal-a a claridade do luar, por a voz de alguem que lhe pronunciava
o nome por baixo da janella.

Cecilia reconheceu, estremecendo, aquella voz. Era a de Carlos.

--Ó snr. Carlos!--exclamou ella, sobresaltada e fazendo um movimento
instinctivo para retirar-se.

--Escute--disse Carlos--escute-me. São poucas palavras só as que tenho a
dizer-lhe. Vim aqui sem esperança de lhe fallar. Contento-me ha muitos
dias com menos. Ver as janellas da casa em que mora tem-me bastado. Mas,
uma vez que o acaso a trouxe ahi, deixe-me não perder a unica occasião
que tenho agora para lhe dizer o que desejava...

--Mas bem vê que...

--Ouça-me. Dei a minha palavra a seu pae de que não voltaria a esta
casa. Houve alguem interessado em interromper as minhas visitas, e
conseguiu-o, porque eu mesmo julguei necessario interrompel-as.
Acreditará que o fiz sem custo, Cecilia?

Cecilia não respondeu, porque não podia.

--De hoje em diante só um motivo me póde trazer de novo aqui, a sua
casa, á luz do dia, e aos olhos de todos; mas antes, preciso interrogar
o seu coração, Cecilia. Elle só me póde auctorisar a adoptal-o, esse
motivo que digo.

Cecilia ganhou coragem e conseguiu emfim responder:

--Snr. Carlos, a doença de meu pae acabou. O generoso procedimento que
teve para com elle, durante os dias d'essa doença, creia que fez nascer
em mim sentimentos de... gratidão, que nunca mais esquecerei. Recordo-me
de que fui a primeira a implorar o seu auxilio, e sei de que importancia
foi o que me concedeu. Por nós quiz o snr. Carlos abandonar, e por muito
tempo, habitos de vida proprios da... sua idade, e... da sua posição...
O ultimo dia da enfermidade de meu pae, pelo menos, devia para si, snr.
Carlos, ser o primeiro dia de liberdade e... e foi. Se meu pae entendeu
que devia exigir... ou pedir-lhe que terminasse o... sacrificio, não me
compete a mim ir de encontro ás resoluções de meu pae. Não vejo a
necessidade de adoptar qualquer motivo para renovar umas visitas, que
hoje não teem razão para serem renovadas... por isso...

--Mas, Cecilia, e se essa razão, e forte, e irresistivel, e urgente,
estiver em mim, no meu coração?...

--Snr. Carlos, espero que me faça a justiça de acreditar que...--e a voz
de Cecilia tremia ao dizer isto--que eu sou ainda superior a esses
galanteios. Se as circumstancias, que acompanharam o nosso primeiro
encontro, lhe poderam deixar impressões que o levem a tratar-me assim,
peço-lhe que se recorde de que Jenny, de que sua irmã, ainda me trata
como amiga, depois de saber tudo quanto n'aquella noite se passou.

--Cecilia!

--Adeus, snr. Carlos. Sei que ha muita nobreza de sentimentos na sua
alma e por isso espero d'ella que comprehenda a necessidade de acabar
com isto. Adeus.

E retirou-se apressadamente da janella.

Carlos ficou por muito tempo immovel no logar em que Cecilia o havia
deixado, e sem saber como explicasse tão rigorosa severidade.

Não tinham decorrido muitos minutos, assomou á mesma janella um vulto
que, curvando-se para a rua, disse em tom de zombaria, para Carlos:

--Muito boa noite. Com licença.

E fechou as portas da janella.

Era a snr.ª Antonia, que tinha espiado de longe Cecilia, sem que
conseguisse ouvir o dialogo d'ella com Carlos.

Logo que a sua jovem ama se retirou, correu a observar quem estava na
rua, viu e reconheceu Carlos ainda junto do muro.

Carlos, achando-se surprendido, estremeceu e partiu d'alli inquieto.

--Saberia ella que a ouviam e por isso fallaria assim? Ou espial-a-hão
sem que o desconfie? Alguma cousa deve ter-se passado, desfavoravel para
mim, para ser assim tratado. A minha falta só não explica...

E chegou a casa, pensando n'isto tudo.



XXIX


OS AMIGOS DE CARLOS


A scena, que descrevemos no precedente capitulo, aggravou o estado moral
de Carlos.

Cada vez mais concentrado, passava horas inteiras no quarto ou
entranhava-se pelas ruas de verdura do jardim; cada vez mais triste, nem
Jenny podia já inspirar-lhe aquellas promptas alegrias de outros tempos
e tanto do caracter d'elle.

Jenny convenceu-se de que era mais do que um mero capricho o que assim
se assenhoreára do coração do irmão.

E em Cecilia que seria?

A filha de Manoel Quentino havia desde muito evitado a presença de sua
amiga. D'isto mesmo desconfiava Jenny.

--É preciso sondar aquelle coração tambem, e se o encontrar assim...
então... então...

Esta reflexão terminou-a ella sentando-se á secretária e escrevendo:

«Cecilia.

É amanhã o dia dos meus annos. Não me reservará para então a surpreza de
me assegurar que ainda vive? Repare que ha dois longos mezes que a não
vejo. Fico esperando-a, desde o romper do dia de ámanhã.

Sua amiga

Jenny_.»

O dia seguinte era de facto o do anniversario de Jenny.

Cecilia recebeu a carta e hesitou sobre o que lhe convinha fazer. Tinha
receio de ir, temia encontrar-se com Carlos; tinha remorsos de recusar,
havia tanto que evitava a companhia d'aquella que sempre lhe dera provas
de tanta estima! Além de que, terminára com a doença do pae o pretexto
com que ella justificava a ausencia. Era demais um dia santo o dos annos
de Jenny, e, como tal, mais livre para Cecilia. Em toda a noite não
resolveu comtudo o que fizesse, nem fallou a alguem do convite recebido.

Começou o dia seguinte.

Carlos acordára com a resolução formada de abraçar algum partido
decisivo. Era-lhe insoffrivel a incerteza, em que estava vivendo.

Com a cabeça apoiada entre as mãos, todo recolhido ao mundo interior e
cortadas as relações com o externo, procurou assim descobrir o melhor
caminho, por onde saísse d'aquella situação, insupportavel para o genio
d'elle.

Não sei se deva aconselhar o meio como efficaz. Talvez seja mais
prudente pensar com os olhos abertos para o mundo que nos rodeia, visto
que n'elle vivemos e actuamos, e que, a não o incluirmos como elemento
nos nossos calculos, corremos o risco de adoptar resoluções, que mais
tarde nos valham choques incessantes e dolorosos conflictos.

O pensar com os olhos fechados é só bom quando se trata de cousas
puramente metaphysicas; mas procurar assim regras de procedimento na
vida, é imprudente.

O resultado que produziu em Carlos este systema de pensar, foi a
seguinte carta, que elle escreveu com vivacidade quasi febril:

    «Cecilia.

    Ha dias recusou ouvir-me, quando o acaso me aproximou de si; não
    leve o rigor ou a desconfiança a ponto de desviar os olhos d'esta
    carta que escrevo, subjugado por uma necessidade irresistivel, por
    uma violencia do coração. Quando lhe fallei com toda a sinceridade,
    que inspira uma paixão vehemente, Cecilia tomou as minhas palavras
    por um simples galanteio e recusou escutal-as; e não haveria na
    minha voz alguma cousa a assegurar-lhe que eu não mentia? Como
    poderei esperar agora que seja mais efficaz esta carta, á qual não
    posso transmittir aquillo que se não traduz em palavras: o
    sentimento? Como a poderei convencer, Cecilia? Se imagina sequer o
    respeito, a veneração que tenho pelo nome de minha irmã, não
    acreditará que possa mentir, invocando-o, ao affirmar-lhe que a amo,
    Cecilia; se crê que a memoria de minha mãe é para mim de tanta
    adoração e saudades, como as que se apoderavam do coração de Cecilia
    e lhe transluziam no rosto, quando a vi ajoelhada no tumulo da sua,
    pela memoria de minha mãe lh'o juro tambem Que mais quer? que mais
    exige? Não me julgue pelo passado; entre elle e a minha vida de hoje
    elevou-se uma barreira, no dia em que principiei a trazer a sua
    imagem no pensamento e o seu nome, etc., etc...»

Eu pouparei ao leitor a transcripção na _integra_ d'esta carta, que
proseguia assim por mais algumas paginas e em estylo que, provavelmente,
lhe deve ser familiar.

Carlos terminava por pedir a Cecilia, que lhe revelasse tambem o estado
dos seus sentimentos. «Qualquer que seja a resposta, obrigar-me-ha a um
passo decisivo para o meu futuro», terminava elle.

Acabava de assignar, fechar e sobrescriptar esta carta, e pensava na
maneira de a enviar ao seu destino, quando ouviu um som de passos e de
vozes, que cada vez parecia mais proximo, até que muitas, repetidas e
violentas pancadas fizeram oscillar a porta do quarto, como se ameaçasse
um arrombamento.

Carlos levantou-se em sobresalto, sem que lhe occorresse logo a
explicação de todo aquelle ruido.

--Olá, santo ermitão--dizia uma voz pelo buraco da fechadura--abri a
porta a uns pobres romeiros, que de longe vem, attrahidos pela fama da
vossa piedosa vida.

--_Monsieur Charles_--continuava outra voz--_lás des soins d'ici bas, se
retira loin du tracàs_, á maneira do rato da fabula, que se penitenciava
em um queijo; queira Deus que este tambem...

--Por causa de uma mulher recolheu-se Achilles á tenda, abandonando os
companheiros. Os invulneraveis teem destas fraquezas.

--Alto lá, a insinuação é grave ou, pelo menos, anticipada. Nada de
condemnar antes de ouvir.

--Abre, abre, Carlos; por ordem superior!

Carlos teve ainda alguns momentos de hesitação.

A vozeria redobrava; repetiam-se, com mais violencia, as pancadas na
porta.

Resolveu-se emfim a abril-a.

Entraram. Eram os principaes companheiros dos seus passados
divertimentos, muitos dos quaes já encontramos n'aquelle jantar da Aguia
d'Ouro. Fartos de o aguardarem todas as noites, sem que em nenhuma de
tantas o vissem apparecer, tinham resolvido procurar esse transfuga dos
seus arraiaes.

Operou-se completa mudança de scena, digna, pela celeridade, de um
tablado inglez.--Em poucos momentos, um bando de rapazes invadiu o
quarto; e cêdo, cadeiras, mesas, sofás e leito foram occupados por
elles, como por um enxame de abelhas.--Tudo era desordem minutos depois.

--Então que é isto? que é isto? Que quer dizer esta mysteriosa
reclusão?--perguntava um, estendendo-se no sofá, em postura digna do
sultão.

--Como se ha de explicar este eclipse total de um dos mais luminosos
astros da nossa brilhante pleiade? A Venus do proscenio de S. João chora
por ti; o genio que preside á feitura das costelletas da Aguia esmorece;
no Guichard a deusa do paradoxo lamenta um dos seus mais fervorosos
servos; é uma serie de calamidades por ahi além. Como as explicas
tu?--Isto dizia outro, vasando meio vidro de _curious essence_ sobre o
fino lenço de bretanha.

--Expliquem-as como quizerem--respondeu Carlos, sentando-se com enfado,
que não procurava encobrir.

--Ora que tem isso que explicar? disse o do sofá--Não fallaram ahi em
eclipses? As minhas recordações de lyceu dizem-me que o eclipse é em
geral o resultado da interposição de um astro entre nós e o eclipsado.
Procurem aquelle que nol-o tem occulto...

--Imaginem que estive doente--acudiu Carlos, tentando desviar a conversa
da direcção que este seu amigo lhe dera.

--Rejeitada a explicação por maioria--bradou um rapaz louro e de modos
feminis, typo de Apollo de _cake_, cartaz vivo de cabelleireiros e
alfaiates, ageitando ao espelho as complicadas madeixas de um cabello
monumental.

--Por unanimidade--bradaram mais dois.

--Adopto-a eu--contradictou um occupado a despejar quantas gavetas
encontrava, á procura de lumes para accender o charuto.--Carlos está
doente, mas... do coração... Pois que é o amor?

  --_Ah nhe d'amore
  La fiamma io sento_

trauteou o do toucador, cantando a aria de Rosina.

--A tua alma está doente, Carlos--sentenciou um estudante de medicina,
que era tido na conta de espirituoso.--E essa pathologia é a minha
especialidade.

--Que falle a sciencia então; que falle a sciencia--exclamaram alguns.

O estudante sentou-se ao lado de Carlos, revestiu-se de um ar de
gravidade doutoral, e tomando-lhe'o pulso, principiou:

--A alma padece de mui variadas fórmas. Temos os pruridos da duvida,
doença chronica nos philosophos que procuram a certeza; hypertrophias de
crenças, mal frequente aos vinte annos; aneurismas de aspirações, muito
vulgares em bachareis formados; ictericias de desespêro, nos chefes de
familia numerosa; fracturas de caracter, nos homens politicos; luxações
de senso commum, nos poetas; paralysias de ociosidade, nos empregados
publicos; dyspepsias de indignação, nos contribuintes; _noli me tangere_
de susceptibilidades, nos deputados fluctuantes; convulsões de
enthusiasmo, em afilhados de ministros; marasmos de desalento, em
pretendentes sem protecção; cancros de exigencias, em diplomatas
indispensaveis; epilepsias de ciumes, nos maridos; e as cataractas do
amor, em...

--É a doença de Carlos, é a doença de Carlos.

Carlos moveu-se com impaciencia.

--Pois é terrível doença!--continuou o orador--Vejamos. Causas:--É hoje
inquestionavel que esta especie de cegueira procede de ordinario da
exposição do doente ao fogo e esplendor de uns olhos e ao halito
embalsamado de uns labios de mulher. Para evitar o contagio
construíram-se em tempo varios estabelecimentos hygienicos a que
chamaram conventos. A doença porém zombou d'elles, como costumam fazer
as verdadeiras epidemias dos lazaretos e cordões sanitarios, e até no
famoso hospicio de Thebaida se manifestaram casos d'ella. A mocidade é
condição favoravel para se contrahir o mal; porém na velhice é elle mais
para temer, por de mais tristes consequencias. De resto, traz de
ordinario comsigo esta molestia sérias complicações.

Carlos mordia os labios de impaciencia; o amigo continnuou, entre as
gargalhadas dos outros:

--Os symptomas são variados. Em geral o doente tem physionomia de parvo
caracteristica; no intervallo dos accessos cáe em uma especie de
beatifica idiotia, da qual nem os causticos o arrancam. Nos paroxismos
chega a arrepellar os cabellos, a amarrotar os collarinhos, a soltar
gritos, que bolem com a vaidade dos tigres, e arrulhar de maneira que
causa o desespêro dos pombos. Nos casos mais fortes, a doença toma um
caracter de malignidade e o doente faz-se poeta. N'este estado o medico
perde as esperanças e reclama os sacramentos... do matrimonio.

--E o tratamento? e o tratamento?--perguntaram alguns rindo.

--A hygiene é tudo, meus amigos; mal vae se a profilaxia não atalhou a
molestia. Nas _Confissões_ de João Jacques allude-se, como preservativo,
ás mathematicas. Não approvo. Para mim é averiguado que as mathematicas
tem só por effeito o imprimir á doença a feição perniciosa. O
mathematico amoroso é a mais rebelde especie de doente, de que ha
noticia. Entra nos incuraveis. Os meus preceitos são outros. Recommendo
a gastronomia, porque as funcções do estomago e do coração são
antagonistas. Aconselho a leitura do _Feliz independente_, e de todas as
obras de bom senso--antidoto do amor.--Mas se a molestia, apesar de
tudo, progride, então o especifico mais heroico para radicalmente a
curar...

--Qual é?--perguntaram simultaneamente.

--O casamento.

De todos os circumstantes foi Carlos o único que não applaudiu a
dissertação do amigo. Passeiava a passos largos com impaciencia
crescente.

--Peço-lhes, por especial favor, que me deixem em paz--disse elle,
acalmada a trovoada de gargalhadas.

--Deves-nos uma confidencia--tornou-lhe o do sofá, tomando uma posição
ainda mais orientalmente commoda.

--É uma satisfação--acrescentou outro, empunhando um florete, e pondo-se
em posição de esgrima.

Carlos nunca se sentira de tão má vontade para com os seus amigos.

--A cousa é facil de explicar--disse elle sêccamente.--Sabem que sou,
que sempre fui homem de caprichos. A agradavel convivencia dos meus
amigos principiara a enfastiar-me de morte. Resolvi pois furtar-me ao
prazer--invejavel--de os ver. Ahi teem. Passando-me isto,
encontrar-me-hão de novo talvez, e talvez que não.

--Nada, nada. A camara, ouvidas as explicações do ministro, não se dá
por satisfeita, nem passa á ordem do dia--replicou o do florete.--Ha
ainda cousas a esclarecer. Você deve-nos um relatorio. Aquella celebre
mascara? aquelle mysterioso dominó, que prometteu seguir até o fim do
mundo, nas vesperas da sua sequestração? Nunca mais se fallou em tal, e
ha quem insista em ver ahi o principio de tão subita conversão.

Carlos recebeu uma desagradavel impressão com a importuna lembrança e
sentiu vontade de tomar a serio a posição bellica, que o interpellante
conservava, e fazel-o arrepender de possuir tão boa memoria.

Limitou-se porém a responder:

--Não me perguntem cousa alguma a esse respeito, porque nada lhes posso
dizer.

--Ah! mysterios!... Ai, amor! amor!--exclamou o do espelho, e continuou,
cantando:

  _Dove non ride amore
  Giorno non v'ha sereno..._

--Deixem Carlos; um juramento, feito a horas mortas, tendo por
testimunhas as estrellas, e uns olhos, mais brilhantes ainda, é sagrado.

--Nada posso dizer, porque nada sei--acudiu Carlos, despeitado pela
interpretação que deram ás suas primeiras palavras.

--E nada sabes, porque nada viste? Meu caro, a tua discrição vae sendo
de mau gosto--disse o do sofá, executando um movimento, em virtude do
qual lhe subiram as pernas cincoenta centimetros e lhe desceu outro
tanto a cabeça.

--_Eureka_! _Eureka_!--bradou um que se aproximára da mesa--uma prova
irrecusavel do crime!... O instrumento do delicto! Uma carta!...

A estas palavras Carlos estremeceu. O da descoberta empunhava com gesto
triumphante a carta escripta momentos antes a Cecilia.

--Uma carta! E de que especie?--perguntava o côro.

--Ora! _papier rose_ e _odeur enivrant_--respondeu o outro,
aproximando-a do nariz, com gesto expressivo.

Carlos teve vontade de atirar pela janella fóra aquelle seu amigo, que
proseguiu:

--E o sobrescripto diz...

--O quê?... o quê?...--perguntaram todos, acercando-se d'elle com
ardente curiosidade.

--É indiscrição de mais!--exclamou Carlos, levantando-se para lhe
arrancar a carta das mãos.

Os outros detiveram-o.

--Que é isso? D'onde te surgiram, á ultima hora, esses escrupulos de
donzella ingenua?

--Prohibo-lhes que... -- dizia Carlos, esforçando-se por se lhes livrar
dos braços.

--Ora deixa-te de pieguices--respondiam elles, rindo e continuando a
segural-o.--Lê tu d'ahi depressa, antes que o leão se solte. Olha que
está furioso! Não imaginas.

--«Excellentissima senhora»--lia vagarosamente o da carta, como para
prolongar mais a scena que o divertia.

--Ah... Ex... cel... len... tis... si... ma!--repetiam os outros,
accentuando cada syllaba.

--Cecilia de...--continuava o que lia.

--Ce... ci... lia! Oh nome musical!

--Phylarmonica invocação!

--Santa patrona da harmonia!

--Inspiradora da harpa!

Por um movimento mais energico e imprevisto, Carlos conseguiu afastar o
grupo, que lhe estorvava a passagem, e correndo á mesa, tirou finalmente
a carta das mãos do que a havia descoberto.

--Ha certas familiaridades, para que não auctoriso ninguem--disse elle,
pallido e agitado de indignação e de raiva.

Depois tocou a campainha com violencia.

Acudiu ao chamamento o seu criado particular.

Carlos entregou-lhe a carta, dizendo:

--Leva ao seu destino.

Ia o criado a retirar-se, quando elle o reteve para lhe dizer ainda a
meia voz:

--Se te perguntarem... dize que é do mando de... _miss_ Jenny.

O criado, mostrando ter comprehendido, saíu.

Todos haviam guardado silencio até então, seguindo com pasmo os
movimentos de Carlos.

Depois do criado se retirar, ainda este silencio se manteve por algum
tempo; a final uma voz disse:

--Bonito final de acto! O criado sáe, Carlos senta-se sorumbatico, e os
outros actores contemplam-o attonitos e... aparvalhados--_Tableau_.

A estas palavras, todos se entre-olharam e, como se se achassem uns aos
outros ridiculos, soltaram unisona gargalhada.

Carlos julgou melhor sorrir tambem, ainda que interiormente se lhe
estivesse redobrando a impaciencia.

--Palavra de honra!--continuou um--que nunca vi Carlos assim. Está
romantico.

--Ultra!

--Furioso!

--Como um leão!

--Como um touro!

--Como um turco!--disse o de tendencias orientalistas.

--Vá, vá, Carlos; observa os bons principios. O amor fez te selvagem.
Civilisa-te.

--Conta-nos a historia d'essa Cecilia.

--É alta ou baixa?

--Morena ou loura?

--Typo grego ou oriental?

--Aposto que é a do dóminó.

--Com certeza.

--Vá, homem; conta-nos como isso principiou.

--Olha que uma paixão concentrada é um ninho de aneurismas;
cautela!--disse o medico das doenças de alma.

--Cecilia! É euphonico na verdade!

--Peço-lhes que não continuem a fallar assim de um nome que eu...
respeito.

Uma risada geral acolheu o pedido.

--Ah! ah! ah! Estás muito bom!

--Está delicioso!

--Nunca o vi apurado a este ponto!

--Ó Carlos!

--_Povero amico~_!

O rubor de despeito e de cólera tingiu as faces de Carlos.

--Repito. Que eu respeito. Julgo que me darão licença para poder fallar
serio alguma vez.

--Ah! de certo. Mas, sempre que isso acontecer, eu não me hei de poder
ter com riso.

--Tu a fallares serio!

--Então de facto estás apaixonado? Pois conta-nos isso. Bem sabes que os
amigos são para as occasiões.

--_Amicus certus..._

--Canta a tua aria de confidencia, que o côro te secundará...

--Quando não, procuraremos, descobriremos, e depois então seremos
implacaveis, crueis! Vê lá!

--Fatal dóminó!

--Pois acreditas?

--É elle com certeza.

--Ó Carlos, acautela-te. Colheste a flor em mau terreno; apanhaste a
perola em agua bem envolta, um baile de mascaras!

Carlos tentou obrigal-os ao silencio pelo silencio.

--Estou resolvido a não lhes dar explicações. Por isso quando quizerem
deixar de ser inutilmente importunos...

Ainda por muito tempo não adoptaram elles essa resolução. A assembleia
manteve-se em ruidosa e desordenada discussão por mais de meia hora.
Carlos fingiu ler.

Emfim viu-os sair e respirou, como se livre de um peso, que lhe
comprimisse o peito.

--Adeus, Carlos, _muchas venturas_!--dizia um.

--Faço votos pela tua felicidade--secundava outro.

--Adeus, adeus.

Um cantava:

  Ai quem me dera em Sevilha,
  Onde a travêssa hespanhola
  Sob a elegante mantilha
  As negras tranças enrola.

E a alegre companhia abandonou tumultuariamente o quarto.



XXX


PESO QUE PÓDE TER UMA LEVIANDADE


Com a saída dos amigos, não se dissipou immediatamente em Carlos a má
impressão que lhe deixára aquella visita.

Não sei que haja alguem tão indifferente e sobranceiro á opinião alheia,
que possa ouvir, sem se commover e revoltar, o nome só que seja de
qualquer pessoa estimada, pronunciado menos reverentemente por labios
estranhos e de mistura com as phrases e palavras de uma conversa
leviana.

Um delicado pudor de coração sobresalta-se, quando assim exposto a
olhares profanos o idolo do seu mais puro e secreto culto.

Desgostoso com os outros, não estava Carlos mais satisfeito comsigo.
Soltára inconsideradamente da mão a carta escripta a Cecilia, e só agora
reflectia na pouca delicadeza com que o fizera, e na inconveniente
escolha de emissario. Um outro motivo de inquietação o perturbava ainda.
No momento de expedir o criado com a mensagem, esquecera-lhe que, sendo
dia santo, Manoel Quentino estaria provavelmente em casa; e como poderia
Cecilia occultar-lhe o conteúdo da carta, ainda quando lhe dissesse que
era de Jenny?

Todas estas considerações foram, a pouco e pouco, levando Carlos a um
d'esses estados de impaciencia e de agitação de espirito, inconciliaveis
com o repouso do corpo, o qual provocam a acção, ao movimento.

As indefinidas aspirações que, em taes estados, sentimos, sendo
superiores aos meios de que dispomos para satisfazel-as, accumulam em
nós excessos de energia, que se revelam por uma actividade sem plano,
sem fim, á qual cedemos como a necessidade organica, não tentando, nem
conseguindo regulal-a ou conduzil-a.

Por isso, como se no limitado espaço do quarto abafasse, Carlos
levantou-se para saír.

Transpunha já a porta, que abria do quarto para o jardim, quando o
estalar da areia sob o pizo leve de alguem que caminhava na rua proxima,
lhe fez desviar a cabeça.

Por pouco lhe escapava dos labios uma exclamação de prazer.

Era Cecilia.

Esta inesperada apparição vinha tão completamente realisar os secretos e
vagos desejos, que o estavam agitando; parecia tanto ser o mysterioso
effeito das evocações do proprio coração, que--illusões só concebidas
por quem já assim as sentiu alguma vez--Carlos quasi acreditou ser
verdadeiro milagre de amor a presença de Cecilia, alli, n'aquelle
momento. E tanto se convenceu d'isso, que nem tentou dissimular o que
estava sentindo. Viu-a e persuadiu-se de que viera ao appêllo, que elle
lhe dirigira, de que a leitura da carta bastára para a determinar, de
que, cheia de confiança, vinha para dizer-lhe que aceitava a homenagem
do amor, que elle lhe offerecia, e o pagava com o seu.

Dominado por este pensamento, do qual rirá sómente o leitor, que tenha
já passado os quarenta annos, Carlos estendeu a mão tremula para a pobre
rapariga que, mais tremula ainda, o fitava, e murmurou:

--Oh! obrigado, Cecília; obrigado por ter vindo!

Cecilia olhava-o admirada; não comprehendia ou receiava comprehender
demasiado o sentido d'aquellas palavras.

--Agora ouça-me, ouça-me por piedade, Cecilia; quero dizer-lhe tudo o
que em mim se tem passado desde que pela primeira vez a encontrei;
ouça...

E naturalmente Carlos conservava entre as suas a mão de Cecilia, e esta,
como surprendida ainda pela subita scena que estava bem longe de
esperar, parecia haver perdido a consciencia do que se passava, e nem
tentava retirar-se.

Carlos proseguiu:

--Cecilia, se veio, foi porque acreditou que havia sinceridade nas
palavras que eu lhe disse, não é verdade? Não é verdade que não
suspeitará nunca mais que seja um simples galanteio, indigno de si, o
que me leva a repetir-lhe uma, e mil vezes, que a amo?

Estas palavras restituiram a Cecilia a consciencia que perdera quasi. O
sangue abandonou-lhe subitamente as faces, para cêdo affluir com mais
violencia a ellas; saiu-lhe dos labios um grito que mal pôde reprimir, e
tentou retirar a mão, que Carlos continuava a segurar nas suas.

--Snr. Carlos!--disse ella, com a voz agitada de sobresalto e confusão.

--Não se retire assim, Cecilia. Nada receie. Amo-a muito, mas respeito-a
tanto, quanto a amo; e mais depressa...

Não pôde continuar; um rumor de passos e de vozes, que se ouviu na rua,
e já proximo ao portão do jardim, fel-o estremecer.

Teve um presentimento; obedecendo-lhe attrahiu rapidamente Cecilia para
dentro do quarto, em cujo limiar se passára esta curta scena, e fechou
sobre si a porta com precipitação.

Cecilia olhava-o assustada.

Ia a bradar, quando Carlos lhe pôz a mão na bôca, dizendo:

--Silencio por piedade!

Foi prudente. O jardim era já de novo invadido por a mesma turba de
estouvados que, momentos antes, abandonára o campo. Chegaram ainda a
tempo de verem fechar a porta do quarto e saudaram a descoberta com
gargalhadas.

Passados momentos, escutavam-se-lhes as vozes de fóra.

--Abre a porta, abre a porta; agora é inutil a dissimulação, Carlos.
Seguimol-a, tivemos um presentimento; vimol-a entrar. Ha de ser ella.
Não o negues. Abre!

Cecilia, ao escutar estas palavras, sentia-se desfallecer.

--Oh! meu Deus!--exclamou, erguendo assustada as mãos para o céo.

Carlos parecia fulminado.

--Então, Carlos, então? Abre, que maneiras novas são essas? Tu não eras
assim.

--Isso fica-te mal.

--Só queremos vel-a e retiramo-nos.

--Vel-a e apresentar-lhe os nossos respeitos.

--Então, então?

Carlos teve um momento de desespêro. Sem bem attender no que fazia, sem
calcular consequencias, deu um passo em direcção da porta, com o olhar
inflammado e os labios tremulos de cólera.

Impediu-lhe porém a passagem Cecilia, que quasi lhe caiu de joelhos aos
pés.

--Quer-me perder, snr. Carlos!--dizia ella com a voz tomada de
afflicção--Quer-me perder?!

Carlos parou, e tentando erguel-a disse, não menos commovido:

--Cecilia; juro-lhe pelo que ha de mais sagrado que...

N'este momento uma das vozes dizia:

--Então, avarento, não nos queres mostrar essa tua Cecilia?...

Estas palavras fizeram estremecer a filha de Manoel Quentino.

Ao ouvir assim o seu nome pronunciado, e d'aquella maneira, por labios
estranhos, ergueu-se com um movimento energico, cheio de orgulho e de
dignidade revoltada, e, cobrindo-se-lhe as faces do rubor da indignação,
disse, voltando para Carlos o olhar cheio de amargura:

--Em que lhe tinha merecido eu isto, senhor?

--Cecilia!...--balbuciou Carlos, empallidecendo.

Foi ella a que d'esta vez, afastando-o com soberana altivez, caminhou
para a porta em passo firme e seguro.

Carlos collocou-se diante d'ella.

--Que vae fazer?--exclamou com voz supplicante.

--Deixe-me! Menos de receiar para mim é, alli fóra, a presença d'essa
gente, do que aqui a sua protecção _generosa_.

Esta ultima palavra saiu-lhe dos labios quasi expressiva de despreso.

--Cecilia, pois julga?...

--Alli póde haver crueldade, que nem as minhas lagrimas commovam, mas
aqui... ha peior... ha a infamia... que me feriu no coração.

E o tom commovido, com que disse isto, mostrava começar a dissipar-se já
a energia, de que se inspirára ao principio.

Á palavra «infamia» Carlos deixou tambem o irresoluto embaraço, que o
enleiára até então; tomando as mãos de Cecilia e olhando-a em face,
disse-lhe, tendo na voz toda a eloquencia da sinceridade:

--Cecilia, não ha tempo agora para me justificar. Mas aceite-me um
juramento. Pela memoria de minha mãe, pela vida de meu pae, pela
felicidade de minha irmã lhe juro que não mereço essas suspeitas.

Um hypocrita poderia pronunciar este mesmo juramento, mas não com o tom
de persuasão e de verdade que a voz de Carlos possuia n'aquelle
instante.

Não se mente assim.

Cecilia acreditou-o; todas as suspeitas, que por momentos lhe haviam
assombrado o espirito, se desvaneceram.

Extincta a indignação, com a força ficticia que emprestára áquella
natureza feminina, readquiriu o imperio perdido á brandura propria do
sexo, que com razão n'ella confia, como na mais irresistivel arma.

Assomaram-lhe por isso, e abundantes, as lagrimas aos olhos, e, cortada
de soluços, só pôde murmurar, apertando convulsivamente a mão de Carlos:

--Salve-me! Salve-me então, snr. Carlos; que estou perdida!

O ruido que, durante esta rapida scena, mais rapida a passar-se do que a
descrever-se, não havia cessado, redobrava agora de vehemencia.

Carlos só achou um meio para sair d'aquella situação. Correu á sala da
bibliotheca, e abriu-a. Cecilia fugiu para ella e quasi instinctivamente
fechou a porta atraz de si.

O expediente era arriscado ainda, porque os criados podiam ver apparecer
Cecilia d'aquella parte da casa, o que não menos a comprometteria. Não
occorreu outro porém á lembrança de Carlos.

Depois de procurar por alguns instantes desvanecer todos os vestigios da
agitação, que a scena descripta lhe causára, foi abrir finalmente a
porta aos seus importunos amigos.

--Então tomaram-me hoje para victima de motejos, meus senhores?

--Deixa-te de ares de tyranno de comedia, que te não vão bem. Vamos a
saber que é d'ella?

--Quem?

--Ora, quem! A rapariga?

--Continuam as zombarias?

--Homem, não o negues. Encontramol-a alli acima, á esquina. Não sei qual
foi de nós que teve um diabolico presentimento. Seguimol-a de longe.
Vimol-a hesitar, ao chegar ao portão. Symptoma infallivel! A final
entrou. Corremos. Ainda assistimos ao fechar da porta... e agora esta
demora pouco delicada... a tua má vontade... Demais, a alguns pareceu
ouvir rumor de vozes aqui dentro. Ora vamos; confessa.

--Não te faças piegas; que sentimentalismos são esses?

--Tu que n'estas cousas foste sempre dos mais exigentes; que sempre
pugnaste por os direitos de boa camaradagem!...

--Eu que o diga. Lembras-te, d'aquella vez na Carriça?

--E em Leça commigo? Cheguei a desesperar com as exigentes curiosidades
d'este senhor.

--Vê lá se preferes que a procuremos.

--Querem obrigar-me a ser incivil, mandando-os saír?

--Incivil estás tu sendo já.

--E tu a fazeres drama, Carlos! Desconheço-te.

--Está decidido--disse o louro adamado--o homem reage. O remedio é
facil. Procuremol-a. Elle por certo que a não confiou á familia para
guardar. Deve estar escondida aqui.

--Batamos a mata. A gazella ha de apparecer.

E n'um instante principiou desordenada pesquiza em todo o aposento. Não
houve movel nem escondrijo, que não fosse revistado.

--E na bibliotheca?--disse por fim uma voz.

--É verdade! Na bibliotheca!--repetiram os outros. E todos caminharam
para lá.

Carlos tremeu por Cecilia.

--Prohibo-lhes que abram essa porta!--exclamou, com voz perturbada.

--Bravo! Acertamos! Ouvem-o?

--Ah! _diavolo_! Está fechada por dentro.

Carlos respirou.

--É a primeira vez que me lembra achal-a assim. Mysterio! Deixa ver se
pela fechadura...

--Carlos, abre ou manda abrir esta porta.

--Escutem. Ha rumor lá dentro.

--Deixa ouvir.

--É ella.

O que espreitava, continuou:

--Pareceu-me que vi agora o vestido de uma mulher.

--Ah!

--Foi ler _Paulo e Virginia_. Conselho de Carlos, que está dado a
leituras brandas.

--Ah! ah! ah!

--Pschiu! Calae-vos.

Carlos levantou-se desesperado.

--E eu exijo silencio. Alguem se aproxima. É ella. _Incessu patuit
dea..._ É mais razoavel do que tu; veio ás boas.

Carlos lembrou-se da anterior tentativa de Cecília e receiou que se
renovasse.

Agora já elle lhe não poderia impedir os passos. Perdeu com esta ideia
toda a força moral; sentiu-se desalentado.

A chave girou na fechadura.

--Desbarretem-se, meus senhores. Eil-a emfim!--disse um dos do rancho.

Carlos fechou os olhos, como se na presença de perigo imminente; a mão
apertava-se-lhe convulsamente sobre a caixa de revolvers que tinha perto
de si.

Em vez porém do tumulto que esperava ouvir, e que Deus sabe a que
excesso o arrastaria, seguiu-se tão profundo silencio, que o obrigou a
erguer a cabeça surprendido.

Todos os rapazes, havia pouco ainda tão turbulentos, recuavam agora
calados e descobertos e como procurando occultar-se uns com os outros.

No lìmiar da porta, que se abria, apparecia a figura candida e serena de
Jenny, com o braço passado pela cinta de Cecilia, a cuja cabeça,
suavemente animada por um sorriso de melancolia, sustentado a custo,
servia o seu hombro de apoio.

Jenny conservou-se por algum tempo assim, olhando-os com gesto composto
e admirado, que parecia subjugal-os.

Havia n'esta scena um quadro que impressionava.

As feições angelicas da irmã de Carlos revelavam tanta doçura e tanta
nobreza ao mesmo tempo, e as de Cecilia tanta melancolia e tambem tanta
confiança na amiga a que se amparava, que os mais levianos do bando
curvaram respeitosamente a cabeça diante d'aquellas duas mulheres.

Só um olhar como o de Carlos, exercitado no estudo do rosto da irmã,
podia notar-lhe nos labios um leve tremor, a denunciar que áquella
apparente placidez não correspondia uma completa serenidade de coração.

Era comtudo affavel e segura a voz com que ella se dirigiu aos amigos de
Carlos.

--Peço desculpa de os ter feito esperar. _Julgamos_ que meu irmão tinha
já saído e _viemos_ ambas procurar um livro.

E depois, mostrando-lhes Cecilia:

--É minha amiga... ou mais do que amiga... é quasi minha irmã.--E
acrescentou, sorrindo para ella:--Cêdo o será, não é verdade?

Cecilia estremeceu e voltou para Jenny o olhar admirado. Ia talvez a
fallar.

Jenny reprimiu-a, apertando-lhe occultamente a mão; e proseguiu,
sorrindo:

--Perdôe-me a indiscrição, Cecilia; talvez até nem indiscrição fosse já,
porque... estes senhores são... os amigos de meu irmão Carlos.

E estas palavras soube dizel-as Jenny com delicada inflexão de ironia na
voz, que augmentou o embaraço dos que a escutavam.

Curvando-se ligeiramente para elles, Jenny saíu da sala com Cecilia.

Carlos não ousou erguer os olhos para a irmã.

Vendo-a saír, voltou-se para os seus antigos companheiros, que
principiavam a formular desculpas, e disse-lhes com provocadora frieza:

--Espero que estará satisfeita a sua curiosidade. Ordenam mais alguma
cousa?

--Desculpa, Carlos; nós julgamos...

--Tu bem vês que não sabiamos...

--Ó menino, acredita que...

--Palavra, que pensei que era a do dóminó.

--Tambem eu.

--Espero que não leves a mal.

--Aquillo era brincadeira.

--Adeus, Carlos; apparece. Faze-te visivel.

--Mil perdões e... e parabens.

E deixaram o quarto.

Na rua diziam:

--E esta!

--Carlos casar-se!

--_Requiescant in pace_!

--Amen.

A porta a fechar-se sobre o ultimo, e Carlos a correr á bibliotheca para
ajoelhar aos pés da irmã.

--Jenny! Jenny! O amor que eu te tinha é pouco para o que te devo. É
preciso adorar-te, minha irmã.

Jenny ergueu-o, e, olhando-o com expressão triste e meiga, disse:

--Deixa esse excesso de affeição para alguem, que já agora tem mais
direito a ella do que eu.

E apontou para Cecilia, que, chorando, escondia o rosto no seio da
amiga.

Carlos dirigiu-se a ella commovido:

--Cecilia Cecilia, quererá perdoar-me?

Cecilia estendeu-lhe a mão, sem responder, nem levantar o rosto.

Carlos curvou-se para beijal-a.

Uma lagrima assomou aos olhos de Jenny.

Erguendo-os ao céo, murmurou, dirigindo-se talvez á imagem da mãe,
presente á sua imaginação:

--Obrigada! obrigada!

Que lhe agradeceria Jenny? A inspiração que d'ella lhe viera, de certo.



XXXI


O QUE SE PASSAVA EM CASA DE MANOEL QUENTINO


Voltando ao principio da manhã d'este dia, vejamos o que se passára em
casa de Manoel Quentino, que assim é indispensavel á intelligencia dos
ulteriores successos que temos de narrar.

Ao acordar n'aquella manhã, Cecilia não tinha ainda resolvido se
aceitaria o convite de Jenny. Prolongára-se até então a lucta de
resoluções, entre as quaes vacillava.

Era dia santo, como já dissemos. Manoel Quentino não tivera portanto de
saír cêdo para o escriptorio. Depois de proceder a uma _toilette_, mais
escrupulosa do que a dos dias e trabalho, envolveu-se no classico capote
de cabeção, traste rico em memorias da vida passada, e desceu ao
quintal, a fazer horas para a missa. Ahi, passeiando por baixo das
ramadas, que de todos os lados o orlavam, e que já n'aquella época do
anno se revestiam de folhas viçosas, aproveitava Manoel Quentino os
raios de um desanuviado sol de primavera, cedendo pouca attenção ás
flores dos alegretes lateraes, e ao gorgeio dos passaros, que por sobre
a cabeça lhe andavam festejando a manhã.

O pensamento de Manoel Quentino vagueava longe d'alli.

Efectivamente todo o sombrio cortejo de ideias tristes, que a melancolia
de Cecilia, havia pouco tempo, lhe suscitára, voltava a assenhorear-se
de novo d'elle, e com a passada persistencia.

--Tambem esta vida, que ella passa, é de tão poucas distracções! A
fallar a verdade! Aos dezoito annos! Sim... É preciso espairecer. Em vez
de estar aqui a perder tempo, o que eu devo é ir por ahi fóra com ella.

E pensando assim, foi caminhando para casa.

--Cecilia--disse, ao encontrar a filha--a manhã está tão bonita! Vamos
nós por ahi fóra?

--Aonde?

--Por ahi. Damos uma volta, antes da missa. Nós que fazemos aqui
mettidos?

Cecilia, julgando satisfazer os desejos do pae, condescendeu.

Meia hora depois saíram ambos. Cecilia pensava ainda se se resolveria a
assistir á festa do anniversario de Jenny.

Poucas palavras se trocaram entre o pae e a filha, durante todo o
passeio. Vieram terminal-o a Cedofeita, aonde assistiram á missa.

Á saída do cemiterio, que, segundo o costume, foram depois visitar,
Cecilia pareceu pela primeira vez saír da hesitação, em que desde a
vespera estava, e disse, parando á entrada da rua, que a devia conduzir
pelo mais curto caminho a casa de Mr. Richard Whitestone:

--Nem sei o que faça. Jenny pediu-me para ir passar hoje o dia com ella.

-Hoje!

--Sim, escreveu-me para m'o pedir...

--Como quizeres, filha... Ainda que hoje é dia santo e eu...

Manoel Quentino ia exprimir a pena que lhe causava o prescindir
n'aquelle dia da companhia da filha, mas calou-se, receiando com isso
constrangel-a. Cecilia comprehendeu-o porém.

--Eu sei, pae, eu sei que não gosta de se ver só n'estes dias, que passa
em casa--e bem poucos são! Mas olhe, ha tambem certas companhias, que
mais nos entristecem do que ainda a mesma solidão; e a minha hoje não
podia alegral-o muito.

--Que dizes, Cecília? Que lembrança!

--Acredite-me.

--E por quê?

--Porque me sinto triste, e não poderia, por mais que fizesse,
constranger-me.

Manoel Quentino commoveu-se a ponto de lhe apontarem lagrimas aos olhos.

--Eu já tinha notado essa tristeza, Cecilia, já. Não m'a descobres tu,
que ha muito ella me dá cuidado--Mas, já que me fallaste n'ella, dize-me
a razão: o que te afflige, o que é que tens? Não te sentes boa?

--Não me pergunte nada, meu pae; que não lhe posso... que não lhe sei
responder.

Manoel Quentino ficou por algum tempo com os olhos na filha, que
desviava os seus, e não pôde soltar palavra.

--Pois então vae--disse por fim Manoel Quentino--vae. A menina Jenny é
boa e estou que te saberá consolar melhor do que eu... Vae! não serei eu
que te aparte da companhia d'aquelle anjo.

Cecilia beijou a mão do pae, que, ao separar-se d'ella, lhe viu lagrimas
nos olhos.

Á entrada da rua, por onde Cecilia seguiu, permaneceu Manoel Quentino
até a perder de vista.

--Aquellas lagrimas! aquellas lagrimas!--murmurava elle, de mal comsigo
mesmo por não as saber explicar--E eu que a não posso ver assim sem me
dar vontade de chorar tambem! É forte cousa!

E continuou, com a cabeça baixa, a caminhar para casa.

Manoel Quentino, de distrahido que ia, não cortejou a vizinhança, acto
de polidez, a que raras vezes faltava; e por pouco não ia passando além
da porta de casa sem a conhecer.

Antonia, ao vel-o entrar só, perguntou admirada:

--Então a menina?

--A menina não janta em casa.

--Ora essa! E não me disseram nada!

--Ella resolveu agora mesmo.

--Sempre fazem cousas! E aonde foi ella jantar?

--A casa de Jenny.

--De quem?!

--De Jenny, do snr. Whitestone...

--Que me diz!

--Sim; a casa do snr. Richard Whitestone.

--Está bom, está! Bem digo eu!

--Então que é que tem?

--Nada; não tem nada. Visto isso, quer que tire o jantar?

--Sim, tire.

Manoel Quentino jantou pouco. Jantar, a que não assistisse Cecilia, não
era jantar que lhe prestasse.

--Então o senhor não come?--dizia-lhe, a cada passo, Antonia.

--Não tenho vontade.

--Boa te vae!

Manoel Quentino levantou-se da mesa e foi sentar-se á janella.

Antonia, depois de sacudir a toalha, tossiu como quem tinha alguma cousa
a dizer.

Manoel Quentino não deu por isso.

Antonia resolveu-se a tomar a iniciativa.

--Ora agora que já jantou, sempre lhe quero dizer uma cousa, snr.
Manoel.

--Diga lá.

--Ainda que, a fallar a verdade, eu não devia talvez...

--Pois então, não diga.

--Mas, por outro lado, é tambem da minha obrigação...

--Pois então, diga.

Antonia percebeu a grande indifferenca de animo, em que estava o patrão,
e sentiu vontade de instigal-o um pouco.

--Ora diga-me, snr. Manoel Quentino, o senhor é cego?

--Julgo que não.

--Pois olhe que o parece. Então não tem conhecido mudança de genio cá na
menina?

A pergunta alterou de facto o tom das respostas do velho guarda-livros;
foi já voltado pàra a criada e com vivacidade, que respondeu:

--Tenho, sim, por quê? Você tambem?...

--Pois podéra! Aquillo são lá os modos d'ella?

--Não são, Antonia, isso não são.

--Nem para lá caminham.

--E você não sabe o que aquillo será? ella não se lhe tem queixado de
algum mal, de alguma doença?...

--Doença? ora adeus! Que eu saiba não. Elle ha muitas doenças...

--Isso sei eu.

--Pois sim, mas... algumas, em que não pensa, é que... Doença do
coração.

--Do coração!--exclamou Manoel Quentino, fazendo-se pallido--Pois
Cecilia queixou-se do coração? Que diz, mulher.

--Adeus, que me não entende! Quero eu dizer... Olhe... a final as cousas
são assim! A menina tem dezoito annos...

--Olhem que novidade! Isso sei eu; mas queixou-se?...

--Então se sabe, se sabe, snr. Manoel Quentino, e se se não lembra de
mais nada, não sei que lhe faça.

Uma ideia surgiu pela primeira vez ao espirito de Manoel Quentino, e,
força é confessar, que não veio muito cêdo.

--Pois será?...--voltando-se para a criada, acrescentou com modo
grave:--Antonia, você diga o que sabe. Bem vê que preciso de olhar por
isso. Falle, mulher.

--Pois n'esse caso... snr. Manoel Quentino--disse a criada, como se,
sómente convencida d'estas razões, se resolvesse a fallar--eu não quero
encargos de consciencia, e, para seu governo, sempre lhe digo que deve
vigiar por este negocio.

--Que negocio? Por que negocio hei de eu vigiar? Eu não a entendo.

--Pois não tem visto devéras o que por ahi vae?

--Eu não; você bem sabe que eu fecho a casa com as costas e por isso...

--Então aquellas visitas do filho do inglez...

--Adeus, adeus! Cuidei que era outra cousa!--redarguiu Manoel Quentino,
encolhendo os hombros--Ahi vem você tambem. Pobre rapaz! Lá por ter suas
verduras, já não póde entrar em uma casa, que não digam logo... Que
mundo este!...

--Ai, e julga que não é assim? Então está bom. Pois ande lá, ande...

--Mas na verdade você imaginou? Ó mulher, não viu como foi e porque foi
que aquelle pobre moço veio aqui a primeira vez?

--Eu, não, senhor. Pois olhe que tenho pensado bem n'isso.

--Pois não se lembra d'aquella tarde em que eu tardei e que Cecilia...

--Se me faz favor, não foi essa a primeira vez.

--Foi, sim.

--Não foi, não, senhor.

--Ó mulher! que demonio de cabeça a sua! pois, na verdade, não se
lembra?...

--Eu só me lembro de que, muito tempo antes d'esse dia, veio aqui uma
tarde aquelle senhor; perguntou pela menina, disse que lhe queria
fallar; eu mandei-o entrar para a sala; a menina foi ter com elle; ao
vel-o fez-se vermelha, como uma romã, e mandou-me sair; e eu ouvi-os
estar a conversar perto de meia hora...

--Você está douda, mulher?

--Não estou, não, senhor.

--Quando foi isso?

--Logo depois do entrudo. Lembra-me bem de que foi tres ou quatro dias
depois d'aquelle em que deixou ir a menina com as do Mattos; cousa que
eu, no seu logar, não fazia, mas...

--Mas Cecilia não me fallou nunca n'essa visita!

--Isso sei eu.

--E você?...

A menina recommendou-me que não lhe dissesse nada, porque era uma
surpreza que lhe queriam fazer... Mas, por mais que eu lhe perguntasse o
que era, nada de novo.

Manoel Quentino principiava a sentir-se inquieto. Comtudo a confiança
que depositava em Cecilia era tal, que, não obstante conhecer o caracter
leviano de Carlos, hesitava ainda em suppôr mal do que, pela primeira
vez, ouvia.

--E depois voltou?

--Até o tal dia, em que o senhor adoeceu, não; mas quem o quizesse ver
era chegar, ahi a certas horas da manhã, e ao cerrar da noite, á
janella.

--Sim; eu lembro-me de que ás vezes...

--Alli, a estanqueira é quem me fez reparar.

--Mas isso lá...

--Pois não tem nada, bem sei; mas, quasi sempre a menina, ás mesmas
horas, estava á janella...

--Cecilia?!

--É verdade. E d'esse tempo é que vem aquella mudança n'ella.

Manoel Quentino passou a mão pela testa, como para arredar de si uma
ideia afflictiva.

--Depois então--continuou Antonia--veio o pé da sua doença e dos
negocios do escriptorio, e ahi o tivemos mettido em casa. Então julga o
snr. Manoel Quentino devéras que elle teria paciencia para assim aturar
tanto tempo, se...

--Cale-se, mulher!--exclamou Manoel Quentino, com voz alterada--Carlos é
generoso. Para servir um amigo, não hesita em sacrificios.

--Será; mas olhe que não fui eu só que desconfiei.

--Era preciso ser muito infame para abusar assim da confiança de um
homem velho, honrado e doente... Não; nem Carlos nem Cecilia entrariam
n'essa indigna combinação!...

--Eu não digo que fosse combinação de ambos; tanto não digo eu; mas
emfim... além de mim, houve quem pensasse...

--Isso sei eu; e cá recebi o golpe. A carta anonyma não deixou de me
chegar ás mãos. Mostrei-a a Carlos; e saiba então que foi elle, elle
proprio, que resolveu não voltar cá mais.

--Ai, sim? pois essa não sabia eu! Agora é que vejo de que casta elle é.
Então quer que lhe diga? Depois que elle deixou de cá vir, uma noite
ouvi correr o fecho da porta do quintal.

Era noite de luar; ainda estava a pé e espreitei á janella. A menina
descia a escada do pateo.

Manoel Quentino olhava para a criada com o gesto desfigurado, e a
respiração quasi suspensa.

--E depois?

--Deu-me uma pancada no coração e fui, pé ante pé, pelas escadas abaixo.
Cheguei ao quintal. A menina estava á janella de grades e fallava para a
rua com alguem. Com mêdo de ser vista não pude chegar-me perto e não
ouvi o que diziam. Fui dar a volta, pelo lado dos limoeiros, d'onde
podia ouvir melhor, mas, quando cheguei, ia a menina embora. Fui á
janella, e lá o vi a elle...

--Mente! mulher! você tem estado a mentir desalmadamente!

--Ora essa, snr. Manoel Quentino! Assim Deus salve a minha alma! Isto
era lá cousa que eu dissesse, se não fosse verdade?!

Manoel Quentino levantou-se e pôz-se a passeiar no quarto, com agitação.

--Pois será possivel, meu Deus, que assim possa haver maldade no coração
de um homem? Carlos! Carlos, a quem eu estimava como filho, a quem eu
sempre defendia, quando o accusavam de estouvado! Carlos, que se dizia
meu amigo! que parecia incapaz de uma acção infame!

--Por esse mesmo tempo andava elle de carro com as comediantes...

--Se tudo isto é verdade... então... Oh! mas Cecilia tambem... Cecilia!
Ella dissimular, fingir... enganar-me! Ella!...

E o pobre velho quasi se suffocava a chorar.

--Custa-me estar a affligil-o assim, snr. Manoel Quentino; as então? que
se lhe ha de fazer?--continuava Antonia--Quando ha pouco me disse que a
menina tinha ido jantar a casa do inglez... veja lá, sabendo eu o que
sabia... veja como devia ficar.

--Jenny foi quem a chamou; junto d'aquella nada receio por Cecilia... De
todos posso vir a duvidar--quem sabe o que terei ainda de aprender?--mas
de Jenny, d'essa!...

--E seria de facto a snr.ª Jenny quem mandou chamar a menina?

Manoel Quentino fitou a criada com olhar fulgurante de indignação.

--Que damnada tenção tem você hoje de me inquietar, mulher? Que maldita
suspeita é essa, lingua de vibora? Não vê que póde matar-me com essas
palavras envenenadas, não vê, demonio?

--Deus me perdoe, snr, Manoel Quentino, que não faço isto por mal. Mas,
sabe o amor que tenho á familia, e não queria que alguma desgraça
acontecesse...

--Cale-se, mulher, cale-se! Eu sei que são boas as suas intenções; mas
Cecilia disse-me que Jenny fora quem a convidara.

--Pois eu não digo que não. Eu sei até que a menina hontem recebeu uma
carta de mando da snr.ª Jenny; ella não me disse o que ella continha,
nem eu lh'o perguntei. Mas, esta manhã, logo depois que saíram, veio ahi
um criado de lá com outra carta; não era o mesmo, mas sim um que eu vi,
no dia do passeio com a comediante, e que, pelos modos, é criado só do
rapaz.--De quem vem essa carta? perguntei-lhe eu.--«Vem, disse o
brejeiro, com modos avelhacados e sorrindo, vem de miss Jenny». Mas, eu
não sei... a carta é tão differente das que...

--E essa carta?--perguntou Manoel Quentino, fóra de si.

--Essa carta está lá dentro.

--E Cecilia?...

--Esta não a leu ella, porque veio depois que saíram.

--Vá buscar-m'a.

--Mas talvez seja da filha, talvez; eu...

--Vá buscar-m'a--exclamou Manoel Quentino, elevando mais a voz.

Em poucos momentos foi executada a ordem.

Manoel Quentino passeiava, levava as mãos á cabeça, fechava os olhos,
aspirava com ancia, parecia louco.

Antonia trouxe a carta. Manoel Quentino lançou os olhos para o
sobrescripto e estremeceu.

Reconhecera o talhe da lettra de Carlos!

Deixou-se cair com desalento na cadeira que tinha proxima.

--Ó meus Deus! estarei destinado a este infortunio?...--murmurava elle,
com a cabeça escondida entre as mãos, através das quaes passavam as
lagrimas.

Depois, com movimento de raiva, tentou abrir a carta que conservava
ainda nas mãos; mas suspendeu-se por um melindroso sentimento de
delicadeza, que não conseguiu vencer.

--Não, não a abrirei! Não ha infamia que desculpe uma villeza.

Antonia, que promettera farto alimento á curiosidade, suspirou de
despeito.

--Então não lê?

--Não--respondeu sèccamente Manoel Quentino, que principiou de novo a
passeiar pela sala a passos largos. Depois, tomando uma subita
resolução, parou e disse, erguendo a cabeça:--Antonia, o meu chapéo e o
meu casaco.

Antonia abriu para elle os olhos espantados.

--Credo! que vae fazer, senhor?

--O meu chapéo e o meu casaco!

--Snr. Manoel Quentino! onde é que quer ir? O senhor não está em si!

--Não ouviu, mulher?! O meu chapéo e o meu casaco!

Havia na voz do pae de Cecília uma entonação especial, que, sendo nova
para a snr.ª Antonia, não pôde a experiencia d'ella dizer-lhe de que
seria presagio, e por isso prudentemente resolveu obedecer, sem mais
commentarios.

Dentro em pouco, voltou com os objectos pedidos, dizendo apenas, como a
mêdo:

--Mas, aonde vae, senhor?

--Saber a verdade--respondeu Manoel Quentino; e, sem ulterior
explicação, desceu apressado as escadas.

Antonia parecia paralysada de espanto.

--Sume-te!--dizia ella--O homem vae varrido! Ora queira Deus! queira
Deus que elle não vá para ahi fazer alguma! Nossa Senhora nos livre de
tentações do demonio e dos mais inimigos da alma.

A snr.ª Antonia professava um odio, desenganadamente cordial, contra os
taes inimigos que mencionou.



XXXII


OS CONVIVAS DE MR. RICHARD


Na mesma manhã, em que se realisaram os acontecimentos narrados nos
ultimos capitulos, Mr. Whitestone, depois de muito lidar no jardim e na
estufa, transplantando, mondando, alporcando, semeiando, regando as
varias plantas da sua collecção, com não pequeno detrimento de muitas,
recolhera-se emfim ao gabinete, e por curiosidade abrira o volume da
_Vida e Opiniões_ de Tristram Shandy, mina inesgotavel de prazer e de
instrucção para o bem disposto _gentleman_. De cada vez que o lia--e
raro era o periodo de vinte e quatro horas que passava sem o
fazer--descobria no livro cousas novas, sérias, jocosas, philosophicas,
de profundeza especulativa, de utilidade prática, tudo emfim. Mr.
Richard mostrava-se intimamente convencido da opinião expressa por o
proprio Sterne, a respeito d'esta obra singular e de difficil
classificação: «O verdadeiro _Shandeismo_ dilata os pulmões e o coração
(diz elle algures), e á maneira de todas as affecções que participam
d'esta propriedade, faz com que o sangue e os outros guias vitaes do
corpo corram livremente em seus canaes e que gire livre e desimpedida a
roda da vida.»

Ora effectivamente meia hora de leitura de uma pagina humoristica de
Sterne era em Mr. Richard remedio efficaz contra melancolias e
contrariedades na vida.

Abrira Mr. Richard o livro ao acaso, e lia agora a pagina, em que se diz
como o pae de Tristram, ao saber da morte de um dos filhos, encontrára
lenitivo, em lhe ser este acontecimento pretexto para considerações
philosophicas a respeito da morte.--«Um bem que encadeiasse a lingua de
meu pae (diz Tristram), e um infortunio que a soltasse, eram quasi
iguaes para elle, e ás vezes era o infortunio o mais apreciado dos
dois.»

Estas palavras deram que pensar a Mr. Richard; elle imitava estes
apreciadores de vinho que conservam muito tempo no paladar cada gole que
sorvem, e olham com indignação para os grosseiros bebedores, que
despejam de um trago tão preciosa bebida.

--E é assim;--reflectia elle, pousando o livro e saboreando a
consideração que lera--ou mais ou menos succede o mesmo com toda a
gente. Se fosse possivel fazer correr o mundo tanto á vontade dos que
d'elle murmuram constantemente, que se lhes tirasse todo o pretexto de
murmurar, causar-se-lhes-hia não pequena mortificação.

Estes pensamentos foram interrompidos por o criado, que entrou para
annunciar:

--Mr. Morlays.

--_Verbi gratia_--disse para si Mr. Richard, depois de ter dado ordem de
mandar entrar o annunciado.

Effectivamente o inglez, que chegava, era um d'estes pessimistas, para
quem o universo inteiro se apresenta tingido das mais escuras côres; era
uma victima, ao mesmo tempo lastimavel e insupportavel, do _mau humor_,
que o douto _Feuchtersleben_ chama--prosa vulgar da vida, irmão do tédio
e da preguiça e envenenador que lentamente traz comsigo a morte.

Mr. Whitestone, homem laborioso e contente do mundo, estava em constante
opposição ao seu compatriota e amigo, que era d'estes que teem feito
adquirir aos nevoeiros de Londres a immerecida fama de fomentadores do
_splen_--fama, contra a qual principiam, com muito criterio, a
protestar os homens pensadores, descobrindo antes na ociosidade,
favorecida por as fabulosas riquezas de alguns _lords_, a causa
d'aquelle mal de suicidas.

O aspecto de Mr. Morlays denuncial-o-hia á medicina antiga como uma
victima d'esse mysterioso humor negro, que ella chamou _atrabilis_. Era
a variedade do inglez, que póde denominar-se escura; e a escuridade, que
lhe estava no rosto, projectava-se-lhe tambem nas disposições moraes.

O gabinete, em que se reuniam os dois inglezes, era um compendio do
quanto póde tornar o curso da vida facil e suave; tudo alli respirava
conforto; tudo favorecia aquelle doce repousar de fadigas melhor do que
por ninguem saboreado pelos _Her magesty's subjects_, residentes nos
nossos climas meridionaes.

Cadeiras de varias fórmas e mecanismos, nas quaes se esmerára o genio
inventivo em multiplicar e variar as molas, em distribuir as
articulações, em combinar os movimentos, em contornar os angulos e
saliencias até accommodal-as, o mais possivel, a todas as posturas, por
mais caprichosas e extravagantes, que o instincto do repouso as podesse
suggerir; tapetes, onde os pés se profundavam como na relva dos campos;
cortinas a temperarem a intensidade da luz, e finalmente o fogo,
companheiro inseparavel d'estas organisacões do norte, ainda n'aquelle
mez quasi de estio, a crepitar e a lamber com a lingua inflammada as
grades do fogão. Mr. Whitestone pensava como S. Francisco de Salles, a
quem attribuem a opinião de que o fogo é bom durante doze mezes no anno.

Mr. Morlays encontrou em tudo isto motivos para observações de critica
atrabiliaria.

--Maus habitos, Mr. Richard, maus habitos! Estes costumes
elanguescedores são os que tem operado a visivel degeneração da raça
humana. As escrofulas...

--Misericordia, Mr. Morlays! Que feia palavra para antes de
jantar!--exclamou Mr. Richard, rindo.

--São os males da civilisação. Depois do assucar, o peior inimigo do
nosso organismo é o fogão.

--Então o assucar tambem?

--O assucar! Eu tenho para mim que a mais lastimosa descoberta da
industria do homem foi a d'esse pó insidioso, que traiçoeiramente nos
tem envenenado o corpo todo, misturando-se ao sangue...

--É celebre! Eu tinha ideia de que Mr. Morlays era até apaixonado pelo
doce!

--E que prova isso? A nossa natureza é feita assim. Adquirido o habito
do mal, até o mal, até a dor, lhe é indispensavel.

Mr. Richard ficou algum tempo calado, como a meditar sobre a lei do
habito enunciada pelo seu amigo.

Depois perguntou:

--Não haverá meia hora na vida, durante a qual Mr. Morlays veja este
mundo com bons olhos?

--O defeito não está nos meus olhos, creia; mas no que a elles se
apresenta de contínuo. Este é o peior dos mundos, acredite.

--Tristram Shandy--disse Mr. Richard, sorrindo--lamenta tambem não ter
nascido na lua ou em outro qualquer planeta, excepto Jupiter e Saturno,
por causa de serem muito frios; por isso que, diz elle, em outro
qualquer não lhe podiam ter corrido as cousas peior do que n'este, o
qual elle julga ter sido feito com os acrescimos e as aparas dos
outros... Eh! eh! eh!... Mr. Morlays não hesitaria em dizer o mesmo;
estou vendo.

--E por que havia de hesitar?

O criado, entrando outra vez, annunciou Mr. Brains.

--Oh! oh!--disse Mr. Richard--ahi vem o antidoto contra a sua influencia
pessimista.

--Este vê tudo azul-celeste!--notou Mr. Morlays, com sorriso de
commiseração.

Ouviu-se no corredor uma voz cantando jovialmente:

  _God save Victoria!
  Long live Victoria!
  God save the Queen!_

E Mr. Brains, inglez que reagia pertinazmente contra a sisuda etiqueta
nacional, entrou com grande exhibição de cumprimentos e mesuras para a
direita e para a esquerda, simulando atravessar por entre filas de
personagens, que o saudavam, e ia dizendo:

--Mylords! myladies! gentleman! sem incommodo! sem incommodo!--e
chegando perto de Mr. Richard:--Bons dias, lord Whitestone, bons dias;
folgo muito de vos ver tão bem disposto. Oh! nosso leal subdito, lord
Morlays!--como vae o diabo preto, que vos acompanha para toda a parte?

--Não tão bem disposto como o diabo côr de rosa de Mr. Brains.

--Nem por isso, nem por isso. Descuidou-se hoje, deixando-me varrer
todas as ostras do mercado, sem me reservar nenhuma! Cheguei a acreditar
que Mr. Morlays tinha razão; o mundo tem provações! Eh! eh!...

--Ria, ria. Eu confesso que me seria difficil imaginar outro mundo
peior.

--Oh! Para isso basta supprimir as ostras da creação. Perde logo
cincoenta por cento do valor que tem. Eh! eh! eh! Uma comida leve, que
não compromette o estomago! antes o predispõe a mais substancial
refeição.

Não acompanharemos, através das diversas transições, o longo e
substancioso dialogo mantido entre os tres inglezes.

As questões mais graves, que agitavam então as intelligencias e pejavam
de papeis os gabinetes diplomaticos da Europa, o destino das nações, a
futura sorte dos povos, tudo, n'aquella manhã, foi tratado por elles e
decidido em termos categoricos e com tanta consciencia e
infallibilidade, como só a dá e permitte o fôro de subdito inglez, cujos
privilegios, debaixo d'este ponto de vista, parece não terem limites.
Monarcas, generaes, ministros, diplomatas, publicistas, todos passaram
em comprida procissão aos olhos d'este triumvirato, que os julgou e
sentenciou com a impavidez e precisão proprias do espirito britannico.

A guerra da Crimeia historiaram-a elles a seu modo: com grande exaltação
da Inglaterra, e acerba critica da França, a cujo exercito nada mais
concediam senão uma fanfarronice, ás vezes feliz.

Escusado será dizer que tudo isto era condimentado com reflexões
lugubres de Mr. Morlays e com ditos joviaes de Mr. Brains. O primeiro,
para deprimir a França, inventava exemplos de crueldade, e quasi de
canibalismo, commettidos pelo soldado francez: o segundo, com o mesmo
patriotico fim, contava anecdotas comicas, nas quaes se demonstrava o
quixotismo dos alliados da velha Inglaterra. Mr. Whitestone aceitava
tudo de boa vontade.

A illacão, que dos seus arrazoados tirava Mr. Morlays, era quasi sempre
esta:

--Este mundo é um covil de feras!

A de Mr. Brains formulava-se de ordinario assim:

--Este mundo é um grande theatro.

Pouco a pouco, ascendeu a conferencia a mais sublimados assumptos. A
questão politica abriu campo a mais vasta questão social, onde os dois
inglezes continuaram a conservar cada um a sua provada individualidade
ao serviço da causa da patria commum.

Mr. Brains, o optimista, abraçava-se com entranhado affecto ás utopias.
N'este momento, estendendo a vista através dos seculos futuros, estava
percebendo ao longe a tão almejada unidade dos povos, realisada por uma
só nação, por uma legislação unica, por uma lingua commum; a suppressão
da palavra «guerra» d'esse vocabulario universal, em consequencia de não
ter objecto a que se applicar; e depois a materia, subjugada pela
intelligencia, obrigada a trabalhar, e o espirito, livre da attenção as
impertinentes exigencias da vida positiva, a entrar em especulações de
ordem superior, em concepções metaphysicas.

--Então é que se realisará o ultimo fim do homem na terra! Que não viva
eu, Mr. Whitestone, para saudar esse grande dia! Que não possa dizer, na
lingua universal de então, o meu «bom dia» ao sol que romper!

Mr. Richard, sorrindo com ares de quem não tinha fé muito ardente em tão
dourado futuro, perguntou:

--E que lingua será essa, Mr. Brains? alguma das existentes hoje, que se
generalisará; ou outra nova, que terá de se formar ainda?

--Quem o póde dizer, Mr. Richard? Isso é segredo do futuro. Mas não ha
duvida que existem grandes plausibilidades a favor da ingleza.

--Ah! sim?

--Por certo. Primeiro que tudo, é a Inglaterra a primeira nação
colonial. Em todas as cinco partes do mundo é já familiar o inglez. A
joven America, nos seus elementos mais vigorosos, nos que hão de vencer
os outros, é de origem ingleza tambem. E depois, meu caro Mr. Richard, a
França tem em si inoculado o principio destruidor, que ha de
sacrifical-a; a França é papista, o que vem a ser o mesmo que estar
condemnada á morte. Demais, o caracter philosophico da lingua ingleza...

Não o seguiremos agora na dissertação philologica, cujo corollario foi
que, com o andar dos seculos, toda a humanidade fallaria inglez--lei
que, se se realisasse, talvez concorresse a produzir grave desafinação
na celebrada harmonia dos orbes, pelo lado da humanidade.

Mr. Morlays tomou a palavra para ir á mão ao compatriota.

Como era de prever, não tinham tanto de lisongeiras as vistas de Mr.
Morlays sobre os destinos sociaes. A humanidade, principalmente a que
não era ingleza, não devia, pensava elle, bater as palmas ao futuro, que
se lhe antolhava.

Sempre que meditava n'estas cousas, Mr. Morlays, em vez de sorrir a
utopias, sonhava catastrophes. Foi por isso que ponderou em tom lugubre:

--Não creio, Mr. Brains, não creio que seja possivel realisar-se d'essa
maneira e por o successivo progresso dos povos essa nacionalidade
univesal. Segundo o que eu tenho lido, o mundo, em que pousamos os pés,
é essencialmente sujeito a convulsões; encerra um nucleo inflammado,
que, a cada momento, lhe está alterando a superficie. Grandes
cataclismos tem já presenciado a humanidade, e quem sabe quantos
presenciará ainda? Parte dos continentes que habitamos, segundo se lê
nos livros dos naturalistas, foram outr'ora todos cobertos de aguas;
sendo de crer que nações de outros tempos estejam sepultadas hoje nos
abysmos do mar. Ora, se no futuro se operarem ainda d'essas revoluções,
como é plausivel acreditar, a parte continental do globo será submergida
e do seio das aguas surgirão superficies não povoadas. O que é possivel
é que, em virtude das especiaes condições geographicas da Inglaterra e
da sua natureza insular, ella não participe da sorte dos grandes
continentes, dos quaes está desligada; que prevaleça e sobreviva á ruina
e submersão d'elles, vendo até acrescerem ao seu territorio as novas
terras, que o cataclismo arrancar do fundo dos mares. Então talvez, e só
assim, se poderá realisar o futuro, que Mr. Brains imagina, sendo os
inglezes os unicos possuidores do globo.

Depois, como se receiasse que esta tão extravagante como patriotica
theoria geologica não tivesse sido comprehendida, acrescentou:

--Porque... reparem. Vejam este chapéo--e tomou para exemplo o chapéo de
panno, que servia a Mr. Richard durante as suas operações
horticolas.--Supponhamos esta copa o mundo; sendo as saliencias das
dobras os continentes, e as cavidades os mares; aquella pequena
saliencia do meio, que fica isolada das outras, seja a Inglaterra.
Carregando eu nas saliencias exteriores, até as desfazer, as cavidades
elevam-se e vão augmentar a saliencia do meio. Vêem?

E, como para não perder a feição pessimista ainda n'esta concepção,
concluiu:

--Talvez fosse uma felicidade que todas as saliencias se desfizessem de
vez!

Já vêem os leitores que, embora por processos differentes, os dois
compatriotas de Peel aguardam com fé viva o mesmo phenomeno na historia
do futuro:--O soberano predominio da nação ingleza sobre o mundo
inteiro.

Esta é de facto a crença de todo o verdadeiro inglez, diversificando
apenas, como os dois grandes exemplares que o leitor tem á vista, na
maneira de concebel-a realisada.

Mr. Richard sorriu á theoria historico-geologica do amigo.

--Será bom que, por cautela, nos vamos passando para a ilha, Mr.
Morlays. O fundo dos mares não é grande clima para viver, e o consul de
sua magestade não nos isentará de sermos engulidos como simples
portuguezes.

Mr. Brains applaudiu cordialmente a observação do amigo Richard.

Á medida que se adiantava a manhã e que os odoriferos vapores da
cozinha, atravessando as salas, chegavam ás pituitarias, britannicamente
apuradas, dos convivas, a conversa principiou a baixar das alturas, por
onde pairara, para assumptos mais terrenos e comesinhos.

Ás tres horas, sentindo o instincto a impellil-os para a mesa do jantar,
abandonaram os tres inglezes o gabinete de Mr. Richard e passaram para a
sala de recepção, onde Jenny e Cecilia, sentadas uma junto da outra,
conversavam intimamente.



XXXIII


EM HONRA DE JENNY


--Oh! fez bem em vir, Cecilia;--disse Mr. Richard, caminhando com a mão
estendida para a filha de Manoel Quentino--fez bem em vir alegrar a
festa de Jenny.

--Alegrar!--repetiu Cecilia, trocando com a sua amiga um olhar de
melancolia e de intelligencia.

--Alegrar, sim--respondeu Jenny, apertando-lhe as mãos com
affecto.--Então cuida que não é alegria sufficiente a que a sua presença
nos dá?

Cecilia suspirou.

--Está doente, Cecilia?--perguntou Mr. Richard, reparando para o ar de
abatimento que se lhe lia no semblante.

--Uma ligeira indisposição, de que me prometteu hoje mesmo curar-se, em
attenção aos meus annos, não é verdade?--respondeu Jenny por ella e em
ar de gracejo.

Mr. Morlays, o lugubre, aproximou-se n'este momento de Jenny.

--Miss Jenny--disse elle--eu costumo saudar com jubilo os anniversarios
das pessoas que estimo, como mais um passo dado para o livramento da
vida.

--Oh! Mr. Morlays--respondeu Jenny, sorrindo--tão pesado lhe parece o
captiveiro, para assim suspirar pelo termo d'elle?

--Deixe-o fallar, miss Jenny;--acudiu Mr. Brains--o mau humor de Mr.
Morlays explica-se até pela presença de algumas brancas entre os seus
cabellos ruivos e pelas duas sinistras pégadas de pata que já se lhe
divisam no canto das orbitas.

Mr. Morlays fez uma careta e encolheu os hombros; mas não respondeu.

--Nós outros--acrescentou Mr. Brains--nós outros, os feios e fortes da
humanidade--eh! eh! eh!... temos razão para nos lamentar, á aproximação
das horas do occaso; mas as que na vida nos servem de astros... essas
são sempre brilhantes; porque, até no occidente, nos encantam as
estrellas. Veja pois sem cuidado correr o tempo, miss Jenny.

Esta galanteria, de um requinte britannico, mereceu a desapprovação de
Mr. Morlays.

--É inexacta comparação--tornou sisudamente--essa dos astros á vida do
homem. A quéda e o extinguir dos astros são ficticios. Occultam-se-nos,
mas não se apagam. Melhor se compararia a vida a um foguete.

--Oh! A um foguete? Singular comparação!--exclamou Mr. Brains, rindo.

--Vamos lá a ver, vamos lá a ver--disse Mr. Richard Whitestone,
sentando-se.

Mr. Morlays, medindo a sala a passos largos, desenvolveu a imagem,
assim:

--O homem, como o foguete, principia a animar-se por uma faisca que se
ateia; eleva-se então com chamma e estrondo, pára um momento... e
depois... estoura, e cáe veloz, silencioso, extincto, deixando na terra
sómente o esqueleto que o fogo já não anima.

Mr. Richard sorriu á original imagem do seu amigo e conviva.

Mr. Morlays tem razão.

--E quando daremos nós o estouro da metaphora?--perguntou o risonho Mr.
Brains, mostrando uma fileira de bem ordenados dentes, e depois
acrescentou:--Concordo com Mr. Morlays; mas peço-lhe que note que se ha
foguetes que descem como elle diz, silenciosos e extinctos, a arte
pyrotechnica tem inventado tambem alguns, cuja quéda é alumiada por
lagrimas de côres, que os acompanham até á terra. Eu por mim imitarei ao
caír o foguete de lagrimas... Eh! eh! eh!

A conversa continuou n'este teor e fórma, até á chegada de Carlos.

Cecilia, vendo-o entrar, aproximou-se da janella, onde Jenny se lhe foi
em breve reunir.

Mr. Brains saudou Carlos, cantando:

  _I'm afloat! I'm afloat, etc., etc._

que são as primeiras palavras de uma popular canção ingleza.

Carlos correspondeu, sorrindo, ao cumprimento.

Mr. Morlays não foi menos caracteristico do que o companheiro.

--Ainda mais outro anno nos encontramos aqui, Mr. Charles. Quem sabe
onde para o anno terá de ir quem nos quizer procurar?

Mr. Brains apressou-se a responder.

--Ao cemiterio do Campo Pequeno, de certo que não, Mr. Morlays; porque,
quando para alli resolvesse ir, escusado seria procural-o lá, porque é
de crer que não estivesse de humor para tratar de negocios. Eh! eh!
eh!...

A hilaridade não se communicou a Mr. Morlays, que pelo contrario ficou
mais sombrio.

Mr. Whitestone, desde que o filho entrára, occupava-se em uma singular
tarefa. Foi sentar-se ao piano e principiou a correr os dedos pelas
teclas com presteza e com uma desharmonia só supportavel ao seu ouvido
inglez.

Esta especie de divertimento era d'aquelles, a que, por excentricidade,
mui frequentemente se entregava.

Felizmente para os dois convivas, os ouvidos d'elles não eram mais
pechosos em cousas de harmonia, do que os de Mr. Richard; porque se não
fosse isso, nem eu sei calcular os resultados gravissimos que podia ter
aquella barbara occupação.

Cecilia, Jenny e Carlos, esses estavam muito absorvidos por os proprios
pensamentos, para que os incommodasse o selvagem prazer de Mr.
Whitestone, sob cujos dedos gemia, como um suppliciado, o magnifico
piano de Erhard, victima d'esses caprichos anti-musicaes.

Emquanto isto se passava, Cecilia dizia a Jenny:

--Por favor lh'o peço, Jenny! Deixe-me ficar aqui! Eu não sei se poderia
por muito tempo suster esta tristeza que se me pôz no coração. Tenho
mêdo de chorar.

--Creança!--respondia Jenny--Não estou eu ao pé de si? Não seja assim
fraca. Esse seu coração deu-se agora a phantasiar desgraças impossiveis,
que não se concebem.

--Impossiveis?!

--Impossiveis, sim. Olhe, Cecilia; eu andei primeiro do que a menina em
imaginar futuros negros. Cecilia ria ainda e eu estava já séria. Este
Carlos tem-me obrigado muitas vezes a isto e d'esta vez sobre tudo...

--Jenny!

--D'esta vez sobre tudo, porque eu sabia que era um coração que elle
encontrára no caminho e... aquelle estouvado podia não reparar... e
magoal-o. Avisei-o.

--Ó Jenny!

--Avisei-o; porque, bem vê, Cecilia, todos os sacrificios são dolorosos.
Sacrificar orgulhos, sacrificar vaidades, sacrificar até caprichos, tudo
é sacrificar; e eu não imagino que isso se faça sem esforço; mas os
sacrificios do coração... oh! esses...

--Matam!--concluiu Cecilia, quasi insensivelmente.

--Pois não matam? Isso sabia... quero dizer--emendou a sorrir--isso
suppunha eu. Por isso pedi a Carlos que se esquecesse... Sim, que se
esquecesse; no tempo em que eu lhe pedia isto, talvez ainda não viesse
d'ahi grande mal.

Cecilia não respondeu. Um suspiro respondeu por ella.

--E quem sabe--proseguiu Jenny, olhando-a--se seria eu que me enganava
ao pensar assim? É certo porém que meu irmão não me obedeceu.

--Não?--interrogou Cecilia, com expressão de duvida.

--Não; longe de esquecer, avivou impressões, e em poucos dias eram já
tão fundas, que me assustavam.

Cecilia meneou a cabeça ainda, como quem duvída.

--Vamos, Cecilia; não me olhe d'essa maneira. Quem lhe ensinou a
desconfiar assim? Com quem aprendeu esses modos de sorrir, tão pouco da
sua idade?

Cecilia baixou, silenciosa, a cabeça.

--Convencida de que se passavam cousas novas no coração de meu irmão...

--E convenceu-se d'isso?

--Convenci. Não eram os antigos caprichos, muito meus conhecidos. Não
eram aquellas phantasias, que tão bem se davam com os seus habitos de
vida, que nem o obrigavam a alteral-os.

--Não eram?

--Não. Com grande espanto meu, vi-o mudar. Fez voluntariamente o que nem
os meus rogos...--pois eu creio que bem vontade teria de me
satisfazer--o que nem os meus rogos haviam conseguido. Desde que o
percebi, desde que assim o vi tão outro do que sempre fora, mudei tambem
de pensar. O meu unico fim, Cecilia, creia, era a felicidade de Carlos e
a sua. Emquanto julguei que ella estava no esquecimento a tempo,
trabalhei por apressal-o; desde que me convenci de que este esquecimento
era impossivel, desde que me convenci de que não era n'elle que estava a
felicidade... então... voltei os esforços em direcção diversa.

Tocou a campainha, annunciando o jantar.

Os dois inglezes, tão insensiveis ao escandalo musical perpetrado por
Mr. Richard, estremeceram agora á voz do instrumento, tocado pela
desembaraçada mão do escudeiro na sala do jantar.

--Para a mesa!--exclamou Mr. Richard, deixando em paz o piano--Não temos
a esperar por ninguem.

Em consequencia da recente morte de Kate, os convites não se tinham
estendido além dos dois intimos da casa--Morlays e Brains.

Os dois inglezes e Carlos encaminharam-se para as duas senhoras.

Cecilia, vendo-os, disse segurando a mão de Jenny:

--Jenny, Jenny; se é minha amiga, deixe-me ficar aqui!

--Que diz, Cecilia?

--Não posso, sinto que não posso forçar-me a ponto de...

Calou-se, estremecendo.

Carlos estava junto d'ella, offerecendo-lhe o braço para a conduzir á
sala do jantar.

Jenny tinha fitado attentamente a sua amiga, e parecera convencer-se de
que lhe seria effectivamente custoso o constrangimento de algumas horas,
a que se ia sujeitar.

--Não, Charles;--disse, em vista d'isso e sem desviar os olhos
d'ella--Cecilia não póde fazer-nos companhia. Está incommodada e precisa
de alguns minutos de repouso.

Mr. Richard aproximou-se, perguntando o que era.

--Nada;--respondeu Jenny--mas seria crueldade constrangel-a. É um
incommodo passageiro, mas, em todo o caso, é um incommodo.

--Será bom retirar-se ao quarto de Jenny.

Cecilia escusou-se, dizendo que ficaria bem alli.

Jenny prometteu vir em breve fazer-lhe companhia.

Mr. Whitestone indicou uma poltrona propria para descanso, e foram
jantar.

--Que quer isto dizer, Jenny?--perguntou Carlos, encontrando-se com a
irmã á porta da sala.

--Que está a chegar o momento de dizeres adeus ás tuas leviandades,
Charles. Quero ver que fundo de sisudez ha n'este meu estouvado irmão.

--Mas...

--Repara que esperam por nós.

E entrando para a sala, tomaram logares á mesa.

O leitor não espera de mim a fiel enumeração de todos os pratos, com que
se adornou n'este dia a mesa, sempre abundante e variada, de Mr.
Richard.

Nada faltou de tudo quanto possue o cunho caracteristico da cozinha
britannica, desde o _roast-beef_ ao _plum-pudding_, desde a batata ao
_chester_.

Os tres inglezes fizeram as devidas honras á maestria do cozinheiro. Mr.
Morlays chegou a sorrir; Mr. Brains esgotou todas as interjeições do
vocabulario patrio e assegurou que nem no _Erectheum club_, em St. James
_square_, se jantava melhor; Mr. Richard Whitestone contou todas as suas
historias e expôz theorias de culinaria.

Jenny e Carlos eram os unicos silenciosos e preoccupados. Jenny via com
impaciencia a morosidade do jantar e escutava distrahida os cumprimentos
dos convivas. Carlos tremeu, como nunca, perante o inesgotavel thesouro
das reminiscencias paternas.

Com todos os vagares foi o jantar aproximando-se d'aquella phase critica
dos jantares, especialmente inglezes, em que a gravidade e a etiqueta
são postas de lado inteiramente, em que a parte feminina levanta
arraiaes e foge amedrontada ante as bandeiras da orgia que, aos
primeiros _toasts_, começam a desenrolar-se; e em que os convivas
masculinos, livres do unico laço que os refreiava, preparam-se a
reproduzir nas salas scenas vulgares em mais baixos tablados.

Nada falta: vinhos entornados, crystaes partidos, _toasts_
interminaveis, discussões em que ninguem sabe o que discute, corpos
estendidos por debaixo da mesa e, em alguns, um somno digno dos sete
dormentes.

Tinha attingido o jantar de Mr. Whitestone este periodo de transição.

Jenny agradecera os primeiros brindes que lhe foram dirigidos.--O
proprio Mr. Morlays fora diffusissimo na sua saudação, que parecia haver
modelado por a de um personagem de Dickens, como se verá do seguinte
excerpto:

--E sendo Mr. Richard Whitestone um dos raros caracteres honrados que se
encontram na vida--terminára Mr. Morlays--e sendo miss Jenny Whitestone
em tudo digna filha de Mr. Richard Whitestone, eu faço votos pela
felicidade de Jenny Whitestone, para que possa assim recompensar Mr.
Richard Whitestone pela sua honradez, probidade, cavalheirismo;
recompensa que Mr. Richard Whitestone não póde nem deve esperar do
mundo. Sendo demais miss Jenny Whitestone a terna irmã de Mr. Charles
Whitestone, coração leal, generoso, sem fermento de maldade social, eu,
bebendo á saude de miss Jenny Whitestone, brindo tambem Mr. Charles
Whitestone, porque o sentimento fraterno faz uma só d'aquellas duas
almas, da mesma sorte que miss Jenny Whitestone receberia, como dirigido
a si, um _toast_ a Mr. Charles Whitestone, seu affectuoso irmão. De
maneira que este brinde individual a miss Jenny Whitestone transforma-o
a sympathia cordial que liga esta familia exemplar em um brinde
collectivo á familia Whitestone. Miss Jenny Whitestone!

E bebeu.

--_Hear_! _hear_!--applaudiu Mr. Brains, batendo com os nós dos dedos na
mesa, o que já fizera durante todo o _speech_, mais por força de habito,
do que por se tornar necessario o recommendar attenção em tão limitada e
attenta assembleia.

Jenny agradeceu modestamente o eloquente discurso.

Mr. Richard brindou os hospedes em termos não menos laconicos.

Carlos, em poucas palavras, desempenhou-se de identicos deveres.

E os _toasts_ succediam-se e o nivel do liquido descia nas garrafas de
crystal.

Jenny levantou-se. Era tempo de deixar sós os convivas. Ia soar para
elles a hora de liberdade.

Carlos viu com inveja o movimento da irmã. Não a poder imitar! Ficou
porém.

A desapparecer atraz do reposteiro da sala a ultima dobra do vestido
branco de Jenny e uma transformação completa a operar-se na scena.

Mr. Brains passou a perna por cima do braço da cadeira e deixou-se
escorregar até ficar com a cabeça á altura da mesa. Mr. Morlays estendeu
os cotovêlos por esta adiante, metteu a cabeça entre as mãos, posição na
qual as faces lhe tomaram um geito de caricatura, eminentemente comico;
Mr. Richard, esse fez balançar a cadeira sobre os dois pés posteriores.

Àccenderam-se charutos, cobriu-se de fumo a atraosphera da sala,
encheram-se e despejaram-se copos sobre copos.

Os criados retiraram-se discretamente.

--Uma canção, Mr. Brains--disse Mr. Richard Whitestone.

--Mr. Morlays que cante--respondeu aquelle.

--Ho! Mr. Morlays! Seria capaz de nos cantar um _dies illa_--notou Mr.
Richard, rindo.

Mr. Morlays fez uma careta, com pretensões a sorriso.

--As digestões costumam reconciliar Mr. Morlays com a humanidade--dizia
Mr. Brains.

--As feras saciadas são menos terriveis--acrescentou Mr. Richard
jovialmente e batendo com familiaridade no hombro do seu amigo Morlays.

Este tornou a sorrir, a seu modo.

--Vamos á canção!--insistiu Richard, voltando-se para Mr. Brains--Vamos
á canção.

--Mas a presença aqui do amigo Morlays faz receiar que succeda como no
brinde de Lucrecia. Lembra-se? Se nos saía vinho de Syracusa?

Depois dos risos, concedidos á reflexão de Mr. Brains, este dispôz-se a
cantar.

Nós, os portuguezes, que mais de que uma vez alcunhamos de sorumbaticos
e melancolicos os nossos alliados bretões, somos talvez na Europa o povo
mais sisudo e grave dos tempos modernos.

Eu creio que nem a philosophia e o _landwehr_ da Allemanha; nem o
_knout_ e a sombria política da Russia; nem os fuzilamentos e o
militarismo da Hespanha; nem os _meetings_ e os _fenians_ da Inglaterra;
nem o suffragio universal e a febre napoleonica da França, teem
conseguido tornar as respectivas nações mais avêssas ao canto, do que a
nossa. Com o nosso céo, com a nossa vegetação, com os nossos vinhos e
com a nossa lingua e com tão pouca disposição para nos occuparmos de
cousas sérias--e n'esse particular nenhum povo nos leva a palma--esta
quasi aversão que temos ao canto, denota uma indole essencialmente
sisuda e pouco de gente do meio-dia.

Em qualquer jantar nacional, qual seria o conviva que teria coragem para
imitar Mr. Brains, satisfazendo ao pedido do seu amphitryão e
dispondo-se a cantar?

E, se algum houvesse, com que olhos de escandalisados o não encarariam
os outros?

Ninguem ha mais pussillanime diante do ridiculo do que o portuguez;
ninguem que mais corajosamente o encare de face, do que o cidadão
britannico. Ora o ridiculo imita os costumes insidiosos de certos cães,
que mordem as pessoas que lhes fogem, e recuam diante de quem os espera
a pé firme.

O que é verdade é que Mr. Brains, vergando-se sobre as costas da
cadeira, com as pernas estendidas, os olhos meios fechados, a mão
pousada sobre o corpo, principiou a cantar com voz de impossivel
classificação, em timbre nazal e em musica inglezamente monótona, uma
canção de Sharpe feita para occasiões como esta.

O sentido era pouco mais ou menos este:

  Vá! sem mêdo enchei os copos
  De vinho, côr de rubim;
  Levem-o aos labios as damas;
  Consagral-o-hão assim.

  No peito o vinho alimenta
  Da amizade o almo calor,
  E o engenho d'elle regado,
  Ascende em vôo maior.

  Enchei os copos, fiae-vos
  N'esta bebida de reis
  Com tanto que...

Estava escripto que os dotes vocaes e os talentos artisticos de Mr.
Brains não seriam devidamente apreciados. A lembrança da scena do
banquete da Lucrecia fora até certo ponto fatidica!

De facto, quando o inglez chegava áquelle verso da canção, um forte e
cada vez mais proximo rumor, como de passos precipitados, de vozes em
confusão, de supplicas e de ameaças, partindo da sala immediata, veio
emmudecer a larynge do cantor e enrugar a testa de Mr. Whitestone, a
quem, á hora solemne do jantar, impacientavam interrupções.

Quando ia a elevar a voz para saber a causa d'aquelle desacato, abriu-se
com violencia a porta da sala, e aos olhos espantados de todos os
presentes desenhou-se a figura de Manoel Quentino, pallido, agitado,
como nenhum d'elles o tinha ainda visto.

Ao mesmo tempo Jenny, attrahida pelo ruido, apparecia á outra porta da
sala.

Mr. Richard Whitestone olhou pasmado para o guarda-livros.



XXXIV


MANOEL QUENTINO ALLUCINADO


Melhor do que qualquer dos personagens d'esta scena, prevê o leitor os
motivos do apparecimento de Manoel Quentino na sala e do estado de
perturbação em que se apresentou.

As revelações da criada tinham-o feito já, como vimos, sair
desorientado. Chegando a casa de Mr. Richard, soube do criado de Carlos,
que Cecilia havia entrado pela manhã no jardim; mas conjecturava este
que ella provavelmente se retirara já, porque a não vira mais em
casa.--Os criados, que serviam á mesa, confirmaram a conjectura,
assegurando a Manoel Quentino que Cecilia não tinha assistido ao jantar.

Não é possivel dizer que ideias se succederam no espirito de Manoel
Quentino ao ouvir tudo isto. Correu-lhe pela vista o véo das nevoas, que
antecedem uma vertigem. Tomou-se-lhe o coração de dor e de cólera;
esqueceu todas as considerações que poderia ainda sopeal-o, e rompendo,
em vociferações incoherentes, por entre os criados que o rodeiavam,
appareceu, como vimos, verdadeiramente allucinado diante de Mr. Richard
e dos estupefactos convivas.

O olhar de Manoel Quentino, animado por expressão estranha, correu em um
momento a sala.

A ausencia de Cecilia acabou de perturbar o velho.

Fitou Carlos, cheio de raiva prompta a fazer explosão, e atravessando,
com andar mal seguro, o espaço que o separava d'elle, veio pousar-lhe a
mão no hombro, dizendo em voz suffocada e tremula por o esforço que
fazia a reprimir a violencia da paixão crescente:

--Snr. Carlos, eu venho aqui saber de minha filha.

A estas palavras, Jenny descórou. Os dois inglezes conservaram-se
boquiabertos; Mr. Whitestone não desviou mais de Manoel Quentino e de
Carlos o olhar penetrante.

--Snr. Carlos!--repetia Manoel Quentino, com uma expressão em que se
revelava ao mesmo, tempo a angustia e a cólera--Sou eu!... eu ... repare
bem! É um pae, que lhe vem pedir contas de sua unica filha!

Carlos, a quem a surpreza parecia haver paralysado,--a surpreza e
porventura ligeiros remorsos de consciencia tambem,--olhava para Manoel
Quentino e, córando e empallidecendo, permanecia como subjugado pelo
olhar de irritação d'aquelle velho, que o interrogava assim.

Manoel Quentino, ao ver esta perturbação, perdeu todo o poder que ainda
conservava sobre si.

--Carlos--disse elle--o senhor abusou da confiança do homem que lhe
abriu sem hesitar as portas de sua casa; o senhor zombou cruelmente
d'estes cabellos brancos, que foram creados em serviço honrado e sem
vergonha; o senhor esmagou o coração que se lhe abrira, como o de um
pae... o senhor é... é um infame!

Quem visse a postura e o rosto de Carlos julgaria verdadeira a
accusação. Surprendido inesperadamente por ella, faltou-lhe a reacção
para repellil-a.

Mr. Whitestone, ao escutar as ultimas palavras de Manoel Quentino,
empallidecera, phenomeno raro n'elle, e que se julgaria
irrealisavel.--Cêdo porém o sangue reagiu contra a repressão que o
expellira das faces, e affluiu com maxima intensidade a ellas. Os olhos,
brilhando com fulgor extraordinario, não se desviavam do filho, como á
espera de vel-o protestar contra aquella grave accusação.

Jenny, erguendo a cabeça, por um movimento cheio de dignidade,
adiantou-se na sala. Subira-lhe tambem ás faces um rubor de impaciencia,
vendo o irmão emmudecer perante uma accusação, que ella sabia ser
injusta.

Com fogo no olhar e vivacidade na voz, que eram pouco do caracter
d'ella, disse, dirigindo-se a Manoel Quentino:

--Manoel Quentino, acaba de fazer uma accusação, que o deshonra, porque
é falsa.

O velho guarda-livros voltou-se para Jenny, e em lucta entre a duvida e
a esperança, perguntou anciosamente:

-Falsa?

--Sim, falsa;--repetiu Jenny com firmeza--tão falsa, como cruel! Eu sei
o que a motiva.... Mas se, em dezoito annos de convivencia com
Cecilia,--que são todos os que ella tem de vida,--Manoel Quentino
aprendesse a conhecel-a, se depositasse mais fé nos nobres sentimentos
d'aquelle coração, que é obra sua, se tivesse mais confiança na sua
propria filha, hesitaria sempre ao accusal-a, e não viria aqui soltar
essas expressões que a poderiam perder, embora innocente...

A porta da sala, em que Cecilia ficára, abriu-se, e a filha de Manoel
Quentino appareceu, pallida e sobresaltada, porque tinha reconhecido a
voz do pae e suspeitado tudo.

Jenny, vendo-a, caminhou apressada para ella, e, apertando-a nos braços,
disse para Manoel Quentino:

--A filha, de quem vinha saber, estava commigo. Receia ainda por ella?

Manoel Quentino correu para Cecilia e abraçou-a com phrenesi.

Mas as suspeitas, que as informações de Antonia lhe haviam feito nascer,
não estavam de todo suffocadas n'aquelle espirito.

Reparando na pallidez e no ar de abatimento da filha, e lembrando-lhe a
anterior confusão de Carlos, Manoel Quentino afastou-a brandamente de
si, fitou-a por algum tempo em silencio e perturbado, e depois disse com
tristeza e affecto:

--Por que estás assim pallida e commovida, filha? Por que perdeste
aquella alegria de outros tempos? Por que choraste?

E, voltando-se para Carlos, acrescentou já sem a primeira vehemencia,
mas ainda com amargura:

--A quem hei de eu pedir contas d'estas lagrimas, snr. Carlos? Das
d'ella... e das minhas?

Cecilia, ouvindo-o dizer isto, encostou-se vacillando ao seio de Jenny.

--Basta, Manoel Quentino!--disse esta com voz severa--Respeite-se! Essa
exaltação é indigna de si. Respeite-se e peça perdão a Deus do que está
fazendo padecer a este anjo com essas palavras. Vamos, Cecilia, não
podemos ficar mais tempo junto de quem, devendo ser o primeiro a
fazer-lhe justiça, é o primeiro a offendel-a, duvidando de si. Vamos.

Manoel Quentino ergueu as mãos para Jenny.

--Espere! espere! E se tem poder para me tirar do coração isto, que m'o
esmaga, faça-o, faca-o! Por muito que os outros soffram, quem soffre
aqui mais sou eu!

Havia na voz do pobre pae a commoção mais sincera!

Jenny parou a escutal-o.

Manoel Quentino estendeu para ella a carta de Carlos, que trouxera
comsigo.

--Quem escreveu esta carta a minha filha?

Jenny ficou enleiada á vista da carta; olhou para Carlos, cuja
physionomia lhe disse tudo.

Cecilia ergueu tambem a cabeça com espanto.

Em Manoel Quentino, que notou a perturbação de Jenny, redobrou com isto
a anciedade, e sem attender a que ia sacrificar Cecilia, insistiu
imprudentemente:

--Quem escreveu esta carta a minha filha? Esta carta recebida ainda ha
poucas horas? Ella ahi está ainda como me chegou ás mãos. Abram-a,
leiam-a, e, se o que contiver não justificar as minhas suspeitas...
se...

E Manoel Quentino, ao dizer isto, ia já abrir a carta, quando a voz de
Mr. Richard o deteve.

--Não é preciso. Essa carta é minha.

Eram as primeiras palavras ditas por o velho inglez, desde o principio
da scena, á qual assistira até então immoyel e silencioso. Mr. Richard
Whitestone era homem de rapida percepção e de resoluções não mais
demoradas.

Entrando-lhe a intelligencia em uma corrente de pensamentos, em poucos
instantes lhe attingia o fim e, acto contínuo, formulava a si mesmo um
plano de procedimento, que logo punha em pratica. Tinha já comprehendido
tudo; a confusão de Carlos e o seu grau de culpabilidade, os fundamentos
da accusacão de Manoel Quentino e a generosa e nobre intervenção de
Jenny. Previu a imminente derrota da filha, perante um documento, cuja
existencia ella não suspeitava; previu as consequencias d'esta scena; o
perigo que corria a reputação de Cecilia; o descredito que resultaria
para o nome de Carlos, que era tambem o d'elle--Richard--e o de Jenny; e
immediatamente talhou para si papel em uma situação na qual elle só
poderia intervir com bom exito.

Manoel Quentino, ouvindo ao patrão aquellas palavras, ditas em tom firme
e seguro, ficou a olhal-o embaraçado.

Jenny fitou as feições inalteradas do pae e comprehendeu-o.

A boa e generosa menina sentiu desejos de se lhe lançar ao collo, para
lhe agradecer aquella prompta e feliz resolução.

Carlos conheceu que lhe córavam as faces, ao ver quanta magnanimidade
havia no procedimento do pae.

Era a segunda lição, que, n'aquelle dia, recebia dos seus; lição de
grandeza de alma, salvadora da reputação de uma pessoa, que elle
sinceramente amava, mas que, com actos irreflectidos, segunda vez ia
perdendo.

--Esta carta é de v. s.ª?--repetia Manoel Quentino, deixando
insensivelmente cair a carta, que conservára na mão.

Jenny correu a apanhal-a e passou-a para as mãos de Mr. Richard, que
trocou um olhar de intelligencia com a filha.

Travára-se n'aquelle momento tacita alliança entre os dois para salvar a
reputação de uma rapariga, innocente e indefeza.

--É minha, sim--continuou Mr. Richard, tomando a carta e abrindo-lhe
naturalmente o fecho.--É minha... ou melhor, é... de nós
ambos--acrescentou, designando Carlos com a mão, mas sem o
fitar.--Tinhamos resolvido preparar uma surpreza a Jenny hoje, que é dia
de seus annos, convidando Cecilia, que ha muito tempo não viamos aqui.
Mas gorou-se o plano, porque Jenny, já antes de nós, a tinha convidado;
e fez muito bem. Ahi está o que é... Esta carta foi escripta por Carlos
e dictada por mim... E se duvída?--concluiu, fazendo o gesto de entregar
a carta a Manoel Quentino.

Era um d'estes expedientes heroicos, que tudo podem perder ou salvar.

Servem-se d'elles, em occasiões assim, os homens de coragem e de
sufficiente confiança em si proprios, para não receiarem trahir no
semblante a posição critica, em que ficam collocados, depois de os
empregarem.

A esses taes é quasi sempre o meio efficaz e salvador.

Manoel Quentino não ousou aceitar a prova, que se lhe offerecia.--Os
habitos de respeito, contrahidos em longos annos de serviço e que um
momento de indignação, quasi de delirio, lhe tinha feito esquecer,
dominaram-o de novo, restituindo-lhe a sua natural brandura e timidez de
caracter.

--Perdão--disse elle, quasi com humildade e como arrependido já da
excitação anterior.--Perdão; eu julguei...

--Está bom, está bom--atalhou Mr. Richard com modo de quem não desejava
continuar no assumpto.--É preciso ser menos... prompto em obedecer a...
certas exaltações... inconvenientes.

O epitheto foi dito depois de alguma hesitação em adoptal-o.

Manoel Quentino ia ainda a abrir a bôca para desculpar-se, porém Mr.
Richard o impediu.

--Não fallemos mais n'isto.... Não vale a pena. Sente-se e faça-nos
companhia á mesa.

--Perdão, Mr. Richard, mas...

Mr. Richard fingiu que o não ouvia; chamou por um criado para preparar
logar e talher para Manoel Quentino. Este sentou-se, quasi sem bem
reparar no que fazia.

Jenny e Cecilia saíram outra vez da sala.

O jantar continuou.

Tinha porém perdido para sempre a feição jovial do principio.

O que se passára e a presença de Carlos e de Manoel Quentino, qual
d'elles mais constrangido e sombrio, inutilisavam todos os esforços de
Mr. Richard para restabelecer no dialogo a perdida animação.

As libações repetiram-se, mas sem longos _toasts_.

--A seu sobrinho, Mr. Brains!--dizia por exemplo Mr. Richard, bebendo.

Mr. Brains fazia uma mesura a agradecer. Os outros levavam os calices
aos labios.

--A seu amigo Roxboy, Mr. Whitestone!--dizia em seguida Mr. Brains.

Mr. Whitestone agradecia; os outros repetiam a saudação como
anteriormente.

--Mr. Morlays, a seu tio das Indias!

Mesura de Mr. Morlays. Os outros como antes.

Estes mesmos laconicos _toasts_ terminaram. A feição da assembleia
carregava-se cada vez mais.

Mr. Richard fez um ultimo esforço para a desanuviar.

--Outra canção, Mr. Brains!--disse elle, enchendo-lhe o copo.

O inglez fitou Mr. Richard com olhos de estremunhado.

--Eu cantar! Para a transição ser menos sensivel, que cante Mr. Morlays
primeiro.

Mr. Morlays grunhiu um monosyllabo imperceptivel e esvasiou até á ultima
gotta o calix, que tinha defronte de si.

--Então cante Mr. Morlays--insistiu Mr. Richard, sem grandes esperanças
do convite ser aceito.

Contra a espectativa geral, o sorumbatico inglez levantou-se e enfiando
as mãos nos bolsos do collete, pronunciou, era tom funebre, o nome da
canção que se propunha a cantar.

--_The old saxton_--o velho cóveiro--de Park Benjamin.

Mr. Brains fez um gesto de arripiado. Mr. Morlays, imperturbavel,
principiou cantando.

Eis o sentido da canção que elle, com exquisito tacto da opportunidade,
julgou dever escolher:

«Junto de uma sepultura, cavada de pouco, estava o velho cóveiro,
encostado á enxada, já gasta pelo uso. Tinha terminado a tarefa e parára
á espera do cortejo funeral que transpunha n'aquelle momento a porta
aberta do cemiterio. Era uma relíquia do tempo passado este velho! Os
cabellos estavam-lhe tão brancos, como a espuma do mar; e dos labios
tremulos saíam-lhe, em voz submissa, estas palavras:--Venham venham! que
eu os guardo todos! Eu os guardo todos!

Sim, eu os guardo! Para homens e para creanças, anno após anno, uns de
pezares, outros de alegrias, edifiquei essas casas que por ahi jazem em
torno, em cada recanto d'este funereo terreno. Mãe e pae, filhos e
filhas, um por um, vieram acolher-se á minha solidão. Mas, ou estranhos
ou parentes, venham! venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!

Sim, eu os guardo! Muitos estão commigo, e comtudo estou só! Eu sou o
rei dos mortos! Meu throno faço-o de um sepulcro de pedra ou de frio
marmore, e o meu sceptro de commando é a enxada, que empunho. Todos os
homens são meus vassallos, quer cheguem da choupana, quer cheguem das
salas, todos, todos, todos! Agitem-se embora na ancia do prazer ou na
ancia do trabalho! Venham! venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo
todos!

Sim, eu os guardo! Seu leito final é aqui; aqui debaixo, no escuro seio
da terra.»--«E o cóveiro calou-se, porque o cortejo funeral passava
silenciosamente n'aquella planicie. E eu disse commigo: Ao findar dos
seculos, uma voz, mais poderosa do que a d'este velho cóveiro, bradará
mais alto do que o tremendo clangor da trombeta final: Venham! venham!
que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!»

Imagine-se o effeito que a voz do cantor, a musica e a lettra da canção
produziriam depois de um jantar.

A musica obrigava a repetir por mais de uma vez o estribilho final de
cada estancia no original.

--_I gather them in, gather, gather, gather, I gather them in_--cantava
Mr. Morlays, com entonação, que fazia lembrar um sino dobrando a
finados.

Não se concebe estomago que ficasse imperturbado após uma sobremesa
d'estas.

O cantor seguia com malignidade, verdadeiramente satanica, o effeito do
canto sobre o acto visceral dos seus amigos.

Mr. Brains reprimia a custo a indignação que sentia.

Acabando de cantar, Morlays sentou-se e bebeu novo calix de vinho.

Apenas um monosyllabo sêcco de Mr. Richard Whitestone o congratulou.

A misanthropia de Mr. Morlays, azedada com o escandalo de Manoel
Quentino, folgou com a vingança que tomára. D'ahi por diante todos
somente suspiravam por se levantar da mesa.

Mr. Brains foi o primeiro, que ousou fazel-o. Á indole jovial do
Democrito inglez repugnava a atmosphera pesada que estava respirando
alli. Mr. Morlays imitou-o. O mau humor d'este crescera de ponto com as
occorrencias do dia. As suas caprichosas digestões estavam em risco de
serem perturbadas, e em consequencia d'isso teve a humanidade muito que
soffrer no conceito de tão hypochondriaco personagem.

Carlos retirou-se tambem ao quarto.



XXXV


A SENTENÇA DO PAE


Manoel Quentino, ficando só na presença do patrão, não se sentia á sua
vontade. Foi pois com verdadeira satisfação que recebeu um recado de
Cecilia, a pedir-lhe que a acompanhasse a casa.

Despediu-se de Mr. Richard, a quem dirigiu pela segunda vez mal
formuladas desculpas, que o inglez recebeu com affabilidade, e ao mesmo
tempo com ares de quem preferiria não ouvir fallar mais em tal.

Manoel Quentino foi ter com Cecilia, que estava na outra sala com Jenny.

--Cecilia, perdôa-me se duvidei de ti;--disse elle com a voz
suffocada--perdoa a minha imprudencia de ha pouco, filha; foi uma
loucura. Bem o vejo agora. Perdôa-a ao muito amor de teu pae...

A commoção não o deixou continuar.

Cecilia lançou-se-lhe, chorando, nos braços.

--Manoel Quentino, que está a fazer?--disse Jenny--Não vê como a
afflige?

--Menina--respondeu Manoel Quentino, voltando-se para ella--perdôe-me
tambem se pude imaginar que a sua protecção de santa...--de verdadeira
santa, miss Jenny--que essa abençoada protecção podia deixar-se vencer.
E, por quem é, não se esqueça de velar por ella, por minha filha!

--Mais valiosa protecção encontra Cecilia era si mesma--respondeu
Jenny.--É um coração forte.

Manoel Quentino tinha a cabeça da filha encostada ao peito; ouvindo
estas ultimas palavras, cingiu-a ainda mais a si, e murmurou para Jenny,
procurando não ser percebido por Cecilia:

--Forte?... Era... emquanto lhe pertencia.

Jenny demorou o olhar nas feições do velho.

Aquella resposta dava a entender que algumas suspeitas lhe restavam
ainda da verdade; que elle podia estar convencido já da innocencia da
filha, que podia julgar com menos severidade e duvida as tenções e
procedimento de Carlos, mas sem haver fechado de tal maneira os olhos á
evidencia, que suppozesse que nada havia de commum entre os corações dos
dois.

Jenny respondeu, percebendo isto:

--Forte ha de sel-o sempre; resta fazel-o feliz.

--Se miss Jenny o não conseguir, quem mais o conseguirá?

--Trabalharei--disse Jenny, sorrindo.

--Dê-lhe a serenidade do seu coração e tel-a-ha salvado.

Jenny, que abraçava n'este momento Cecilia, ouvindo estas palavras,
meneou a cabeça, e, entre risonha e melancolica, disse ao ouvido da sua
amiga:

--Não é assim que eu desejo salvar-te.

Pela primeira vez a tratava por tu.

Emquanto se passava esta scena, Carlos de volta ao quarto engolfava-se
em pensamentos profundos. Tudo quanto succedera lh'o estava reproduzindo
a memoria, e cópia de affectos e de paixões agitavam-lhe o coração em
palpitar desordenado.

Que lhe competia fazer? Como devia sair da posição em que se achava? De
que maneira compensar com uma resolução nobre, digna dos sentimentos que
percebia no coração, a insuperavel timidez, que durante o jantar se
apoderára d'elle.

N'isto pensava Carlos, quando o criado lhe entrou no quarto, annunciando
que Mr. Richard Whitestone o mandára chamar ao gabinete.

Carlos esperava esta entrevista, que, depois do succedido, podia
dizer-se inevitavel; elle proprio a procuraria talvez espontaneamente;
mas, apesar d'isso, não se sentia preparado para ella; nem outra cousa
lhe succederia, talvez, quando mais espaçada fosse.

Causou-lhe pois o effeito de imprevista.

Vacillavam-lhe os passos ao dirigir-se ao gabinete do pae, como se fora
um réo, caminhando para o tribunal, em que vae ser julgado.

Quando Carlos entrou, Mr. Richard estava em pé, encostado ao marmore do
fogão. Tinha a expressão tão severa, quanto era possivel á sua
physionomia ingleza, e conservava na mão a carta de Carlos, como quem
acabava de a ler n'aquelle momento.

Carlos parou no meio da sala, esperando que o pae lhe dirigisse a
palavra.

Mr. Whitestone estendeu para o filho a carta aberta, perguntando com
modo rapido e incisivo:

--Que ha de verdade n'isto que se diz aqui?

--Tudo--respondeu Carlos, procurando dar á voz a firmeza, que não
sentia.

Mr. Whitestone enrugou a fronte ao ouvir a resposta; fez um leve
movimento de hombros e de labios, e, passando a carta para o filho,
apenas lhe disse:

--Ahi a tem. Rasgue-a, queime-a. Deve fazel-o... porque destruirá assim
a prova de uma nova... infamia.

As faces de Carlos cobriram-se de intenso rubor.

--Meu pae!--balbuciou elle.

--Repito-o; de uma infamia--proseguiu Mr. Richard com redobrada
acrimonia.--Não sou eu o primeiro que lh'o diz; e se já se calou
vergonhosamente diante da primeira accusação, não é muito que escute a
segunda com a mesma... humildade.

E acabando de dizer isto, pôz-se a passeiar no quarto, como costumava
quando assim exaltado, e continuou:

--É falso orgulho esse que... todo se alvoroça ao ouvir uma palavra e
com tanta facilidade se conforma, ao que é bem peior, á feia acção que
ella exprime. É orgulho de theatro... Não comprehendo devéras.

Carlos respondeu:

--Eu posso estranhar que a accusação me venha de quem me devia conhecer
melhor, e de quem não está dominado, como o primeiro que me accusou, por
um excesso de paixão violenta, mas desculpavel. Estranho e lamento que,
no curto periodo de alguns dias, tenha já ouvido duas vezes de meu pae a
accusação de... infame.

Mr. Richard, que, emquanto o filho fallára, ia augmentando a velocidade
dos passos, com que media a sala, parou repentinamente n'este ponto e
fitou Carlos com um olhar cheio de fogo.

--Estranha, por quê? Faz favor de me dizer? Não me apontará algum nome
mais exacto para dar ás suas acções?... Devéras que não sei... Julgo que
não quererá arguir-me de demasiado severo?... Repito o que já lhe disse
no outro dia. Tenho sido em excesso benevolente comsigo, tenho fechado
de proposito os olhos a muitos desvarios seus, desculpando-lh'os com o
verdor dos annos. Mas acções ha, que nem a creanças se desculpam... E,
sempre que nos actos de um homem existe o caracter de... baixeza...

Carlos não pôde suspender um movimento instinctivo de reacção, ao ouvir
esta palavra.

Mr. Richard, percebendo-o, repetiu com mais força, e olhando fixamente
para o filho:

--De baixeza... e de villania!... Em taes casos, é criminosa a
indulgencia; e nunca é demais toda a severidade de opinião contra esse
homem. Escusa de protestar com esses movimentos e gestos. Mais
severamente do que eu, o accusava ha pouco a sua propria consciencia,
obrigando-o a calar-se e a abaixar a cabeça diante das arguições
d'aquelle homem... que... que... que tentára deshonrar.

--Eu já lhe disse, senhor--acudiu Carlos, com vehemencia desusada para
com o pae--que tudo quanto escrevi n'essa carta é verdadeiro. Seria
imprudente, fui de certo; d'isso me accuso eu; mas diz-me a consciencia
que estou sendo severamente julgado e por isso...

--Era bom que a sua consciencia tivesse acordado mais cêdo. Escusava de
ter deixado que da bôca de um estranho, e diante de testimunhas, caisse
sobre o nome de seu pae e de sua irmã uma accusação grave e que nós
mentissemos para o salvar. Esses escrupulos veem bastante tarde. Deve
confessar.

Carlos curvou a cabeça e ficou silencioso.

Mr. Richard ficou tambem algum tempo calado, depois proseguiu:

--É verdadeiro tudo quanto diz n'essa carta! Lembre-se de que ainda ha
poucos dias marcava n'esta mesma casa, na casa em que habita sua irmã,
entrevistas a...

Carlos não o deixou continuar:

--Peco-lhe que não renove essa insinuação, senhor; já dei a minha
palavra em como ella era injusta. Não posso offerecer prova mais
convincente, mas custa-me devéras ver que me recusam esta. No dia em que
succedeu o facto, a que allude, n'esse dia em que pela primeira vez ouvi
o epitheto de infame da bôca de meu proprio pae, já eu me sentia bem
outro do que tinha sido até alli. Creia-me, senhor; não é uma vã
inclinação, um ephemero capricho de rapaz, o que sinto por Cecilia. A
unica importante mudança de caracter, que tenho experimentado na vida,
operou-a ella sem uma palavra, sem uma tenção formada, sem denunciar um
desejo. Adivinhei-a talvez, mas não que ella se me revelasse nunca.
Cecilia só de per si conseguiu, e sera esforço, o que nem as
reprehensões de meu pae, nem os conselhos e os pedidos de Jenny haviam
conseguido nunca, por isso creio na sinceridade dos meus pensamentos
para com ella, por isso...

Mr. Richard escutava o filho com manifesta impaciencia; parecia que lhe
seria quasi tão desagradavel o ver Carlos conseguir justificar-se, da
maneira por que o estava fazendo, como persistir sob a accusacão de
menos leal, que lhe tinha sido feita.

O amor proprio de Mr. Richard--porque emfim é forçoso confessar que Mr.
Richard tinha amor proprio tambem--não se sentia muito lisongeado com
esta sincera paixão de Carlos por Cecilia, a filha do seu guarda-livros.

Um enxame de preconceitos se alvoroçava todo a esta ideia; preconceitos
que a razão clara e forte de Mr. Richard se pejaria de reconhecer como
legitimos, mas aos quaes, sem o saber, se sujeitava.

Eram de diversas ordens.

Preconceitos de inglez, primeiro que tudo; nunca é com absoluta
indifferença que o filho da Gran-Bretanha vê uma mulher de outro paiz
roubar-lhe o coração de algum dos seus parentes. Ha em toda a alma
ingleza a profunda convicção mais ou menos declarada de uma
superioridade de raça, que a não deixa encarar desapaixonada alliancas
d'estas.

Depois sobrevinham os preconceitos de commerciante, o qual, por mais
consideração e estima que tenha por um guarda-livros, não póde de todo
em todo olhal-o como de natureza igual á sua, e não se lisongeia
demasiado com obter nora ou genro em casa d'elle.

Ainda o preoccupavam preconceitos de capitalista; por mais philosophicas
doutrinas que estes expendam sobre a vaidade das riquezas, na pratica da
vida não abstrahem d'esse elemento quando combinam calculos para
resolver o problema da felicidade. Finalmente até preconceitos de pae
lhe offuscavam a luz da inlelligencia, pois não obstante a severidade
das arguições que lhe ouvimos, é certo que poucas mulheres no mundo lhe
pareciam dignas do seu Carlos. Tudo isto o fazia pois escutar de má
vontade a declaração do filho, a quem interrompeu precipitadamente.

--Está bom. Eu não preciso saber a historia das transformações do seu
caracter, o qual até me parece ser demasiadamente sujeito a ellas. E se
é essa a garantia unica que tem da sinceridade dos seus sentimentos, ha
de concordar que é bem fraca. Mas seja como for; depois do succedido,
parece-me escusado indicar-lhe o melhor partido que tem a abraçar.

Carlos elevou para o pae o olhar interrogador.

Mr. Richard guardou, por instantes, silencio; depois acrescentou:

--Dentro em oito dias sae um vapor para Londres...

--Mas...

Mr. Richard fingiu não ouvir a interrupção, e continuou:

--Ha muito que se faz necessaria uma entrevista pessoal com Mr. Woodfall
Hope, porque...

--Não sei se me será possivel obedecer-lhe, senhor.

Mr. Whitestpne voltou-se com vivacidade para o filho, e, visivelmente
irritado, disse:

--Espero que não commetta a baixeza de querer demorar-se aqui, depois do
que se passou. Não me faça envergonhar de o ter por filho.

Carlos desacostumára-se a arrostar por muito tempo com a severidade do
pae. Sentia-se incapaz de reagir diante d'aquelle olhar. Baixou a cabeça
e calou-se.

Mr. Richard acrescentou instantes depois, em voz ainda severa, porém já
menos rispida:

--Póde retirar-se e faça por ser homem de bem. Ha erros que deixam
vestigios, que nunca se apagam mais. Respeite as familias, porque o
contrario é deshonrar a sua. Se se lembrasse de que tinha uma irmã...

N'este ponto ouviu-se rumor á porta do quarto.

--Que temos?--perguntou Mr. Richard, impaciente.

Era um criado que vinha do mando de Jenny perguntar se Mr. Richard a
podia receber.

Mr. Richard fez um signal affirmativo, e voltando-se para Carlos:

--Saia. Sua irmã precisa fallar-me.

Carlos curvou a cabeça e saiu sem dizer palavra. Era ainda o réo que
deixava o juiz, não o filho que se despedia do pae.

Carlos encontrou-se com a irmã na sala contigua. Ella estendeu-lhe a
mão, dizendo:

--Vês, Charles, vês o resultado das tuas loucuras?

--Loucuras, Jenny! Pois ainda lhes chamas assim?

--Principio a ter vontade de lhe dar outro nome, principio; e é por isso
que venho aqui.

--Que vens fazer?

--Advogar a causa de uma má cabeça, em attenção a um pobre coração, que
não tem culpa nenhuma em andar unido áquella estouvada.

--Ó Jenny!--exclamou Carlos, tomando, cheio de confiança, as mãos da
irmã.

--Então! Deixa-me, que o pae espera-me.

E separando-se do irmão, disse a rir:

--Que difficil papel me fazem representar em toda esta historia!



XXXVI


A DEFEZA DA IRMÃ


Jenny abriu vagarosamente a porta do gabinete de Mr. Richard.

Este andava ainda de um para o outro lado, a passos largos, com a cabeça
baixa e as mãos atraz das costas.

Ao ouvir abrir a porta, parou, aguardando quem chegava.

--És tu, Jenny?--disse, ao ver o rosto da filha, e usando de uma
affabilidade, que formava completo contraste com a aspereza com que se
dirigira a Carlos.

Jenny aproximou-se do pae e, apoderando-se-lhe da mão, beijou-a com
affecto.

--Que quer dizer isso, Jenny?--disse Mr. Richard, procurando retiral-a.

--Deixe-me agradecer-lhe, senhor, uma acção generosa, nobre, digna de
si, e que me fez sentir, mais do que nunca, o orgulho de ser sua filha.

--Ora essa, Jenny. E foi para isso que vieste?--perguntou Mr. Richard,
sorrindo e já sem o menor vestigio de rugas na fronte, momentos antes
contrahida.

--E para mais alguma cousa--respondeu Jenny, com a respeitosa
familiaridade de filha, a quem diz a consciencia que nada lhe será
recusado.

--Então falla.

--Sabe tudo, não é verdade?

--Sei; infelizmente sei.

--E que tenciona fazer? E perdôe-me o querer assim penetrar as suas
resoluções; mas tantas vezes voluntariamente m'as confia, que me
animo...

--Fazes bem, Jenny, fazes bem--atalhou Mr. Richard, affectuosamente--Eu
não me esqueço de que és uma boa conselheira.

--Bem; então d'esta vez?...

--Já reflecti; e tomei algumas providencias. Carlos partirá para Londres
no vapor que...

Jenny moveu a cabeça, em signal de desapprovação.

Mr. Whitestone, percebendo o gesto da filha, olhou para ella em silencio
alguns momentos.

--Parece que não approvas, Jenny.

Jenny calou-se.

--Responde, falla. Com toda a franqueza dize-me o que pensas d'esta
medida.

--Pois bem; direi. Não era isso que eu esperava de meu pae.

--Então?--perguntou Mr. Richard, com levissimo tom de despeito.

--O seu proceder de ha pouco deixou-me esperar outra resolução mais...
mais... mais acertada--concluiu, depois de modesta hesitação e
corrigindo a força da phrase com a brandura da expressão.

--Que podia eu fazer?

Jenny, em vez de responder directamente, continuou:

--Quer obrigar a partir Charles, quando elle levaria comsigo, no
coração, alguma cousa que o não deixaria ser feliz no desterro--porque é
um desterro a que o vae condemnar; quer obrigal-o a partir, quando,
atraz de si, aqui, deixaria alguem, que sentiria essa ausencia como uma
condemnação cruel...

Mr. Richard olhou admirado para a filha, ao ouvil-a fallar assim;
depois, com ar mais grave do que até ahi, respondeu, parando defronte
d'ella:

--Não, Jenny; quero obrigar a partir Charles para acabar a tempo com um
capricho, que podia vir a fazer a infelicidade d'elle e...--depois de
hesitar por algum tempo, o velho inglez concluiu:--e d'ella, d'esse
alguem de quem tu fallas, supponho eu. Não vês que é uma inclinação de
dois dias essa de Carlos?

--Não é, senhor, não é. Eu sinto que não é. D'esta vez bem vejo que é
sincera.

Mr. Whitestone encolheu os hombros, sorrindo.

--A Jenny ainda não aprendeu a conhecer seu irmão.

--Tenho seguido passo a passo, desde o principio, esta paixão de
Charles. Já desconfiei d'ella tambem; já receei por Cecilia, e tentei
dissuadir meu irmão do que imaginei não passar n'elle de um capricho.
Depois reconheci que me enganára.

Mr. Richard abanou a cabeça, em signal de duvida.

--Ha quanto tempo te convenceste da sinceridade d'essa paixão em
Carlos?...

--Ha muitos dias; desde...

Mr. Richard sorriu...

--E se eu tiver provas de que, ainda ha bem poucos, teu irmão era ainda
o mesmo irreflectido e estouvado rapaz de outros tempos?

--Provas?...

--Se eu te mostrasse que elle hoje, ainda como d'antes, não hesita, para
satisfazer doudas e pouco delicadas phantasias, em cortar por certas
contemplações, respeitaveis para quem possue intactos os sentimentos de
familia, ridiculas talvez para elle?

--É injusto... demasiadamente severo para Charles, senhor.

--Pergunta-lhe se foi em homenagem a essa rapariga, por quem o imaginas
apaixonado ha tanto tempo, que elle vendeu o relogio, de que no dia de
seus annos eu lhe tinha feito presente. Affligiu-me este facto, não por
o valor do objecto, mas porque me revelou uma fraqueza na alma de meu
filho, uma tibieza nos sentimentos de dignidade, que não esperava
encontrar n'elle.

--Charles affirmou-me que fora um motivo poderoso o que o obrigára...

--Mentiu!--disse Mr. Richard com azedume.

--Ó senhor!--exclamou Jenny, como exprobrando-lhe a dureza da expressão.

--O motivo sei eu qual foi...

--Terá provas certas de que o sabe?

Mr. Richard vacillou a esta pergunta, dizendo depois:

--Quasi evidentes.

Jenny sorriu ao repetir:

--Quasi.

Mr. Richard, como excitado por aquelle sorriso, insistiu:

--De certo não foi Cecilia a pessoa que n'esse dia procurou teu irmão e
o acompanhou de carruagem até á loja do ourives, onde se effectuou a
venda.

Jenny soube pela primeira vez estas particularidades, mas, animada pela
confiança que o irmão lhe souhera inspirar, disse sem hesitação:

--E são esses os unicos fundamentos da accusação?

--E julgo que...--e mudando repentinamente de tom, acrescentou:--Mas,
deixando isso, a não fazer o que fiz, que querias tu que eu fizesse?

Jenny, desviando os olhos para um periodico de gravuras que estava sobre
a mesa, respondeu:

--Não sei que mal haveria em ceder ao impulso d'aquelles dois corações,
visto que...

Mr. Richard bateu, algum tempo impacientemente, uma pancada com a mão na
secretária, junto da qual tinha parado.

--Julguei que Jenny não conhecia o mundo por o ter visto nas paginas dos
romances.

--Não, senhor; não o conheço d'ahi; mas tambem o não conheço por
experiencia pessoal. Das lições de meu pae obtive o pouco que d'elle
sei; por isso avalio o bom e o mau das nossas acções na vida, á luz do
dever e da consciencia. Não foi o que me ensinou?

Mr. Richard aceitou com um sorriso a correcção filial.

--Pois foi á luz do dever e da consciencia que eu procedi.

--Julguei que, depois do acontecido, o dever lhe aconselharia outra
cousa.

--Algum absurdo? Loucuras?... Phantasias? És mulher a final, Jenny!

Jenny aproximou-se do pae, que viera sentar-se em uma cadeira junto do
fogão; apoiou-se-lhe ao hombro e, a meia voz, disse-lhe como a brincar:

--Desejava agora, por um momento só, deixar de ser sua filha, senhor.

--Para quê?

--Para me atrever a fazer-lhe uma pergunta.

--Auctoriso-te a fazel-a, Jenny--respondeu o inglez, completamente
desarmado contra a diplomacia da filha.

--Auctorisa? Eu sei?!

--Exijo até que a faças.

--Sou mulher a final! disse o pae... Póde ser... E como mulher tenho
talvez o meu fraco pelo sentimento--preconceitos do coração... Não é
isto?... Mas... era a pergunta que eu, se não fosse sua filha, lhe
quereria fazer: mas esse seu espirito, recto, esclarecido e forte...
julgará sem preconceitos d'esta vez?

--Que preconceitos queres que sejam os meus?--perguntou Mr. Richard,
desviando os olhos.

--Quem sabe lá? Cecilia é filha de Manoel Quentino, um homem honrado,
mas... subalterno; fiel, mas pobre; um caracter generoso, mas... educado
na escola da obediencia; capaz de se sacrificar por nós, mas... vivendo
dos ordenados da nossa casa.

--Douda! Então não me fazes a justiça de acreditar que a força da minha
razão seria bastante para vencer esses preconceitos de educação...
quando os tivesse?--disse Mr. Richard, porém de modo, que estava
justificando Jenny.

--Assim o espero; por isso é que...

--Não--interrompeu Mr. Ricnard--não é isso o que me faz hesitar. O
motivo é diverso. É porque não creio na duração dos sentimentos de
Carlos; é porque lhe conheço o caracter leviano, e hesito por essa razão
em fazel-o chefe de uma familia, que elle não saberia guiar e que
tornaria desgraçada.

--Não é justo para com seu filho, senhor. Elle herdou os dotes do seu
coração. É leal e generoso. E será salval-o, fazel-o entrar pelo coração
no caminho do dever.

--Dizes-te amiga de Cecilia, Jenny, e não hesitas em arriscar-lhe assim
imprudentemente a felicidade?

Jenny demorou algum tempo sobre o pae um olhar quasi malicioso.

--Eu, pelo menos--disse ella por fim--tenho uma garantia: é o coração de
Charles, que está do meu partido; mas ainda ha bem pouco tempo que o pae
concebia outra alliança para meu irmão, á qual até este pequeno auspicio
faltava. Que fez da confiança, que então depunha em seu filho, ao querer
fazel-o chefe de uma familia? Por que não hesitava então, e hesita
agora? Ser-lhe-hia indifferente a felicidade de Alice Smithfield, da
filha do seu amigo? De certo que não; mas é que sabia que Charles,
promettendo fazel-a feliz, havia de ser fiel a essa promessa. E agora...

Mr. Richard não atinou com a resposta que désse a este argumento da
filha.

Ergueu-se e voltou a passeiar.

D'ahi a instantes parou, e dirigindo-se a Jenay, disse:

--E demais, se, depois do que succedeu diante de testimunhas, eu fosse
seguir o teu conselho, não soffreria a reputação d'essa pequena com
isso? O mundo não veria n'este acto, que póde ser... que creio mesmo que
seja, muito justo, mas que é preciso confessar tambem que não é natural,
não veria n'esse acto a reparação de offensa maior?

Jenny sentiu-se alentada ao ver a nova face, que o pae dava á discussão.

--E a partida repentina e inesperada de Charles, depois dos factos que
succederam, não dará logar a vozes menos favoraveis ainda para ella,
para elle e... para nós todos?

Mr. Whitestone não respondeu.

--Eu conheço pouco o mundo, é verdade;--proseguiu a filha--mas parece-me
que, em todo o caso, elle fallará; o que se tem a fazer é dar ás nossas
acções a feição mais natural, para que menos curiosidade lhe excitem.
Conduzamol-as de modo a deixar-lhe entrever os motivos, que nos convier
que elle supponha; mas sem mostrarmos o proposito de revelar-lh'os, para
que não desconfie da intenção e procure então os verdadeiros.

Mr. Richard olhava para a filha com um sorriso, já muito desanuviado.

--Bravo! que machiavelismo! Não te sabia tão diplomata. Vamos á
applicação ao caso presente.

Jenny sorria tambem, mas de intima satisfação, porque se presentia
victoriosa.

--Trata-se de diminuir pouco a pouco a estranheza do acto, que o faz
hesitar; preparar as opiniões para aceital-o como natural.

--E como? Que queres que eu faça?

--O que lhe dictar o coração. Não é a mim que compete aconselhal-o.

Mr. Whitestone baixou a cabeça, com ar de reflexão.

Jenny principiou a dizer, como se fallasse para si propria, mas de
maneira que fosse escutada por o pae:

--O mundo é assim. Dá-se-lhe a verdadeira explicação dos factos, raras
vezes a acredita. Forja-se outra ás vezes menos natural e plausivel,
quasi sempre a prefere. Principalmente se a verdadeira é generosa e
nobre, e a falsa interesseira e mesquinha. A alliança de Charles com a
filha de Manoel Quentino, tendo por explicação sómente o affecto dos
dois, seria estranha e incomprehensivel; mas se Manoel Quentino, em vez
de ser guarda-livros, fosse um socio da casa...

Mr. Richard, ouvindo estas palavras, desviou para a filha o olhar. Viu-a
distrahida, examinando, com apparencias de attenção, um pesa-papeis de
crystal.

Mr. Richard teve uma lembrança.

Aproximou-se da secretária, e, tomando uma folha de papel, escreveu
n'ella algumas linhas.

Jenny sorria, como se estivesse de longe lendo tudo o que o pae se
pozera a escrever.

No fim o inglez releu com attenção o que havia escripto; dobrou
cuidadosamente o papel e entregando-o á filha, disse com rapidez, como
se receiasse que a resolução, que abraçára, lhe fugisse ainda:

--Ahi tens. Entrega isso a Manoel Quentino. É uma memoria dos teus vinte
e dois annos.

Jenny, que astuciosamente deixára ao pae o prazer e a gloria da boa
ideia, cuja insinuação viera d'ella, suspeitou logo qual a natureza do
escripto e disse com effusão:

--Agora sim! Torno a reconhecer o seu coração generoso.

--Então já sabes o que isso contém?

--Adivinho-o sem o ler. Attendendo aos antigos serviços prestados por
Manoel Quentino á casa Whitestone, meu pae associa-o de hoje em diante
ao negocio e á sua firma. Não é verdade?

--Quasi por formaes palavras--respondeu Mr. Richard, passando
amigavelmente a mão por as faces da filha.

--Que mais ordena, miss Jenny?--perguntou jovialmente o inglez.

--Peço mais uma cousa.

--Dize.

--Peço para não fazer desde já uso d'este papel.

--Então?

--Este facto, que serve para preparar a opinião publica para o outro...
não é verdade?

--Eu não prometti ainda...

--Este facto--continuou Jenny, fingindo que não ouvia a
resposta--causaria ainda estranheza, se não fosse preparado tambem com
antecedencias.

--Como?

--Recordo-me de que não ha muitos dias o pae me fallou de um negocio
commercial, em que esteve para tomar parte a casa Whitestone, o que não
fez por instancias de Manoel Quentino, instancias que a salvaram de um
abalo, talvez fatal para ella. Não foi assim?

--Foi. O homem mostrou d'essa vez um tino commercial...

--A quantas pessoas fallou já d'esse serviço do seu guarda-livros?

--Que eu saiba a nenhuma. Certas tentativas, por felicidade frustradas,
não é muito conveniente revelal-as, pois podem abalar a confiança na
prudencia da casa...

--Pois, se me permitte dar-lhe um conselho, deixe que se faça d'esta vez
excepção á regra. Durante esta semana, eu se estivesse no seu logar,
fallaria a toda a gente n'aquillo. O nome de Manoel Quentino havia de
andar, n'estes oito dias, nos ouvidos de todos. Toda a Praça havia de
ficar sciente dos seus prestantes serviços... e depois que haveria que
estranhar quando se enviasse ao pae de Cecilia este documento, em cujas
dobras vae a felicidade de duas pessoas?

--E julgas tu que a gratidão é facto mais natural para o mundo, do que a
iniciativa no beneficio? Se subtrahires da explicação o elemento
«interesse», o facto será incomprehensivel.

--N'esse caso é deixar ao mesmo tempo suspeitar que Manoel Quentino tem
conseguido accumular riquezas, e que da nossa parte...

Mr. Richard sorriu.

--Mais aceitavel será o facto á opinião, ainda que... É uma trabalhosa
semana a que me destinas! Não recuso porém a tarefa; veremos o que é
possivel fazer. Mas o meu egoismo não me consente ver-te assim
desoccupada, emquanto eu trabalho.

--Então em que tenho a occupar-me?

--Na justificação de teu irmão. O meu assentimento aos teus ultimos
projectos, Jenny, fica dependente d'essa condição. Emquanto não me
convenceres de que foi nobre o motivo que levou Carlos a vender aquelle
relogio, não esperes de mim...

--Mas Charles insiste em occultar-m'o.

--Pois fosse a empreza facil, que não a confiaria de ti. Não julgues
isto capricho da minha parte. Tu bem deves comprehender a importancia
d'essa justificação. A fé não basta; é mister provas. Os teus planos
baseiam-se na excessiva confiança em teu irmão; é fraca base para a
felicidade da pessoa, de quem advogas a causa.

--Procurarei obter provas.

--Então dentro de oito dias.

--Dentro de oito dias.

E o pae e a filha separaram-se do melhor accôrdo.

Os preconceitos de Mr. Richard não haviam absolutamente serenado; mas
Jenny tinha conseguido, por assim dizer, destacal-os do intimo, em que
elles viviam dominando, e apresental-os á vista do pae que,
envergonhando-se d'elles, os renegou.

Mr. Richard estimaria ainda encontrar outra solução á crise presente;
mas por causa alguma consentiria já em se mostrar sob o imperio dos seus
preconceitos clandestinos.



XXXVII


COMO SE EDUCA A OPINIÃO PUBLICA


No dia seguinte Manoel Quentino saíu cêdo para o escriptorio.

Andou toda a manhã pensativo o guarda-livros.

Quanto mais reflectia na scena da vespera e em outras antecedentes,
tanto mais confirmada lhe parecia a vaga desconfiança de que não fora
inteiramente verdadeira a explicação de Mr. Richard.

Mas não lhe queria mal por ella o velho guarda-livros; antes
inteiramente lh'a agradecia. Assustava-o porém o estado do coração de
Cecilia. Seria ainda tempo de arrancar de lá aquella affeição tão louca,
que por imprevidencia deixára crescer.

Nisto pensava ainda Manoel Quentino, quando entrou no escriptorio um dos
mais sisudos e abastados negociantes da Praça, e muito affavelmente o
cumprimentou, dirigindo-lhe as mais lisongeiras expressões sobre os seus
relevantes serviços á casa Whitestone e applaudindo a sagacidade com que
antevira a suspensão de pagamentos de uma poderosa casa de Londres e
evitára que a firma Whitestone soffresse na quebra. Manoel Quentino
ficou surprendido com o inesperado cumprimento. Elle já nem pensava
n'aquillo, nem imaginava que Mr. Richard, unico que o podia contar, o
conservasse tão presente na memoria.

O grande conceito, em que tinha o negociante que lhe fallára, não
deixava porém ser-lhe indifferente o louvor recebido d'elle.

A surpreza do velho augmentou, quando a este primeiro se succedeu outro
e quando todos os que n'aquella manhã entravam no escriptorio pareciam
apostados a reproduzir, com pequenas variantes, phrases iguaes de
louvor.

A consideração que Mr. Whitestone gosava na Praça fizera com que por
toda ella se espalhasse com rapidez a fama dos serviços prestados por
Manoel Quentino, a quem o honrado inglez, fiel ás promessas que fizera a
Jenny, exaltou com uma vehemencia de phrase e de expressão, pouco
habitual á sua fleugma britannica, e que por isso mesmo leve dobrado
effeito.

Como sempre acontece, á medida que a noticia se transmittia,
ampliavam-se os serviços de Manoel Quentino. A opinião publica, que até
então nem attentára n'elle, suppondo-o um ente inteiramente nullo,
soffreu um d'estes reviramentos subitos, de que por certo os leitores
hão de conhecer exemplos.

Em um grupo de negociantes, estacionados no passeio da rua dos Inglezes,
discutiu-se toda a manhã Manoel Quentino. Um insistia em dar a entender
aos collegas que havia muito adivinhára o homem; outro proclamava-o já o
primeiro guarda-livros do Porto; outro fazia valer o seu profundo
conhecimento da lingua ingleza; outro a sua perfeição calligraphica;
outro a sua actividade, o seu desembaraço em operações e escripta
commerciaes, e a sua longa pratica, etc., etc.

--Disse-me ha pouco Mr. Whitestone--acrescentou a isto tudo um
barão--que o homem tem já o seu peculio bem bonito.

Mr. Whitestone não se esquecera d'esta parte do plano de Jenny.

--Que duvida!--disseram alguns.

--Sabem o que alli está?--fez notar um brazileiro--É um bom director de
banco.

--E olhe que é verdade.

Esta opinião prova a que ponto subira, em poucas horas, o credito de
Manoel Quentino. Julgal-o apto para director de um banco era o mais alto
grau a que podia eleval-o o conceito publico. Tal foi o effeito do
artificio de Jenny.

Mr. Richard via com prazer o bom exito do plano. O amor proprio de
artista estava a suffocar o resto de preconceitos, que ainda sobreviviam
n'elle. Por prudencia chamou de parte Mr. Brains, que viu na Praça, e
deu-lhe a entender que convinha não fallar na scena do jantar da
vespera.

--Porque, Mr. Brains--disse elle--bem vê que aquelle pateta de Carlos
portou-se de maneira, que será pouco airoso para um inglez se se vier a
saber...

Feita esta reflexão, o orgulho nacional terminava a obra, encadeiando a
lingua de Mr. Brains; a de Morlays tambem a mesma causa foi, além da
misanthropica incommunicabilidade, sufficiente para a refreiar.

N'esta mesma manhã, Cecilia, achando-se só em casa, julgou ouvir uma
carruagem parar-lhe á porta.

Indo á janella, ficou agradavelmente surprendida vendo Jenny, que descia
de um elegante carro descoberto, entrar para o portal.

Cecilia correu a recebel-a nos braços.

--Este sol não me deixou desde pela manhã ficar quieta,
Cecilia--disse-lhe Jenny.--Appeteceu-me tomar ar e vim, para me fazeres
companhia.

--Eu?

--Sim, tu; e desde já te declaro que não me sinto de animo para aceitar
desculpas. Veste-te e vamos.

--Mas, Jenny... repare...

--Reparo que são dez horas e que não tenho paciencia para esperar mais.
Queres que te leve á força?

--Mas estou só...

--Emquanto te vestes alguém virá de certo, e se não vier... Emfim estou
resolvida a cortar por todas as objecções, ainda que seja de uma maneira
absurda. Vê lá se pódes luctar commigo.

Cecilia sorriu a este capricho de Jenny; era tão pouco sujeita a elles,
que a filha de Manoel Quentino suspeitou que alguma ideia occulta andava
n'isto.

Retirou-se porém para obedecer-lhe.

Jenny ficou só na sala.

Não esteve muito tempo sem que ouvisse passos na escada.

Era Antonia que voltava de fóra.

Antonia não suspeitava a presença de Jenny em casa. O jockey, para
evitar o resfriamento da horsa, conduzira o carro até o fim da rua, de
maneira que Antonia, ao chegar, nada viu á porta, que lhe denunciasse a
visita.

Achando a sala aberta, suppôz que era Cecilia que estava alli e ainda do
corredor principiou a clamar:

--Bem se diz: não ha nada que o tempo não descubra. Agora mesmo acabo de
saber aonde mora a tal sujeita, com quem o snr. Carlos saiu de carruagem
aquella manhã. Não que nem de proposito! Ia eu...

Aqui interrompeu-se de subito, porque reconheceu que estava fallando a
Jenny, em vez de Cecilia.

--Boa te vae--exclamou Antonia, mortificada. Mas já tinha dito bastante
para que Jenny não a deixasse retirar.

--Espere, acabe. Aonde mora essa senhora? Diga.

Antonia estava visivelmente embaraçada.

O typo inglez de Jenny mostrou-lhe immediatamente que era na presença da
propria irmã de Carlos, que ella tinha imprudentemente avançado aquellas
palavras.

Jenny não lhe deu tempo de dominar esta primeira impressão e de tomar um
partido.

--Não se constranja. Falle. Está diante da irmã de Carlos. Sei o facto a
que se refere. Eu tambem tenho o maior interesse em conhecer a pessoa de
quem fallava. Por isso acabe o que ia a dizer...

--Ora nem vale a pena. A minha ideia não era....

Jenny resolvera não abandonar aquelle ensejo de resolver o mysterio, que
se promptificára a elucidar em oito dias. Um secreto presentimento lhe
assegurava que d'esta pesquiza resultaria a justificação do irmão.

--Vamos--insistiu ella, dando ás palavras o tom de familiaridade propria
a inspirar confiança.--Dizia que tinha descoberto a morada d'aquella
senhora...

--Eu não disse...

--Não negue. Ouça-me. Eu sei tudo o que se tem passado entre meu irmão e
Cecilia.

--Sabe?!

O que Jenny não sabia era quaes as ideias da snr.ª Antonia sobre este
assumpto, e por isso continuou com a maior precaução:

--Sei, e bem vê que, não só como irmã, mas como amiga, devo... preciso
de...

--Mas quaes são as tenções da senhora?

--Concorrer para evitar o infortunio de ambos--respondeu Jenny,
ambiguamente.

Antonia interpretou a seu modo a resposta.

--Pois bem; eu sei que a senhora tem muito juizo, e por isso digo-lhe,
esta manhã...

N'isto ouviu-se Cecilia fechar a porta do quarto.

--Silencio;--disse Jenny--Cecilia vem ahi. Vamos sair juntas. Não lhe
diga nada, emquanto não fallar commigo. É para bem d'ella. Ámanhã pela
manhã procure-me. Sabe onde moro?

--Sei, sim, minha senhora.

--Então não falte. Vocemecê é uma mulher de juizo, e por isso quero
fallar-lhe. E não diga a Cecilia!

--Esteja descansada--disse Antonia, a quem as ultimas palavras de Jenny
tinham em extremo lisongeado e ganho de coração para a causa d'ella.

Cecilia chegou á sala.

Dentro em pouco, ambas aquellas duas mulheres de belleza incontestavel,
ainda que de tão diversa indole, partiam no elegante carro, conversando
e rindo, com a despreoccupação da juventude.

Jenny tinha com anticipacão dado as ordens para o passeio.

Seguiram pela estrada da Foz. Passaram quasi toda a manhã á beira-mar.
Jenny parecia outra. A sua seriedade ingleza cedera o logar a uma
vivacidade de conversação e a um contentamento, quasi de creança.

Tudo lhe era motivo para alegria, que pouco a pouco se communicou a
Cecilia tambem.

Ha poucas cousas tão fatalmente contagiosas como a alegria das pessoas
sérias.

Foi uma deliciosa manhã a das duas raparigas. Cecilia estava muito longe
de prever em que terminaria aquillo.

Á uma hora voltavam para o carro e ás duas entrava elle, com grande
surpreza e sobresalto de Cecilia, pela rua dos Inglezes, então em plena
actividade commercial.

A presença das duas amigas causou sensação na Praça. Todos conheciam
Jenny; raros, se alguns, podiam dizer quem fosse Cecilia.

Um inglez veio cumprimentar Jenny. Ella aproveitou a occasião para lhe
apresentar Cecilia. Dentro em pouco corria voz na Praça de que era a
filha de Manoel Quentino a senhora que acompanhava a ingleza.

Mr. Whitestone veio receber a filha ao portal. Ao ver Cecilia, trocou um
sorriso de intelligencia com Jenny. Com toda a galanteria as ajudou a
descer do carro.

Foi grande a surpresa de Manoel Quentino, vendo entrar a filha no
escriptorio.

Jenny applaudiu o espanto do velho, rindo com vontade. Mr. Richard
tambem não ficou sério.

Não menos surprendido foi Carlos com o encontro, que estava bem longe de
esperar.

Entre Cecilia, Carlos e Manoel Quentino conservou-se invencivel
constrangimento.

Perto das tres horas, os grupos que estavam ainda na Praça, viram sair
do portal do escriptorio a familia Whitestone, Cecilia e Manoel
Quentino, e todos tomarem logar no carro. Momentos depois este, guiado
por Carlos, atravessava por entre esses grupos, e seguia toda a extensão
da rua, deixando atraz de si uma esteira de commentarios.

Manoel Quentino ia enleiado; Cecilia, pensativa; Jenny, contente.



XXXVIII


JUSTIFICAÇÃO DE CARLOS


No dia seguinte pela manhã, era a snr.ª Antonia introduzida com muita
deferencia no quarto de Jenny. A criada de Manoel Quentino estava
penhorada com tantas attenções, e era já, de corpo e alma, creatura da
inglezinha, como ella chamava a Jenny Whitestone.

Jenny fel-a sentar junto de si e pediu-lhe que lhe dissesse quanto sabia
da tal senhora, a quem alludira na vespera.

Antonia com muitas digressões, a que era inclinada, contou como
n'aquella manhã, passando por a rua de Santa Catharina, vira estar o
snr. Paulo, segundo caixeiro do escriptorio de Mr. Richard, fallando, da
rua para a janella, com uma senhora, que lhe sorria com affecto.
Antonia, obedecendo a natural curiosidade, affirmou-se na tal senhora e
reconheceu-a a mesma que procurára Carlos e saíra com elle n'aquella
manhã, em que Antonia viera colher informações da snr.ª Josefinha da
Agua-benta.

--Era ella sem tirar nem pôr. Emquanto a mim, alguma comediante do
theatro, porque dizem... mas perdôe-me a senhora o eu estar com isto.

Jenny fingiu não attender á opinião de Antonia e perguntou:

--E diz então que mora?

--Na rua de Santa Catharina.

E entrou na minuciosa descripção da casa, com todas as particularidades,
que a podessem fazer conhecida.

Jenny já não tinha nada mais a saber de Antonia.

Ao recompensar generosamente a boa vontade da informação, disse, como
para acalmar os escrupulos ficticios de Antonia:

--Creia que lhe fico ainda obrigada por o que me contou. E agora tenho a
pedir-lhe outra cousa.

--Diga, minha senhora, diga.

--A snr.ª Antonia não ha de dizer que veio aqui.

--Ora essa!

--Estou certa de que não diz; além d'isso, falle verdade, quer muito mal
a meu irmão?

--Eu, minha senhora?--disse Antonia, visivelmente enleiada com a
interpellação.

--É provável que sim. Quasi todos são injustos para Carlos, antes de o
conhecerem. Depois, vendo como elle é bom, generoso e delicado, acabam
por adoral-o.

A snr.ª Antonia ficou abalada nos seus juizos a respeito dos dotes
criticos da cunhada da sobrinha do homem da sua comadre.

--Ora diga--continuou Jenny--não são prevenções sómente as que tem
contra meu irmão?

--Sim... eu... quero dizer... a fallar a verdade...

--Pois bem; só lhe peço que, durante alguns dias, não pense bem nem mal
de Carlos, até... até ter noticias minhas.

--Ó minha senhora, pois eu pensava lá...

--Vá, vá, snr.ª Antonia, para que Cecilia não desconfie. Não lhe diga
cousa alguma, nem falle na tal senhora...

--Esteja descansada.

Logo que Antonia saiu, Jenny deu ordem para prepararem o carro.

E quando lhe annunciaram que esta ordem estava cumprida, desceu ao
portal e entrando para o carro, disse ao criado, que a ajudou a subir:

--Ao alto de Santa Catharina.

Em pouco tempo, achou-se transportada lá. Jenny, pelos signaes que
recebera de Antonia, e conservava de memoria, pôde reconhecer a casa da
tal senhora e mandou parar defronte d'ella.

Só então hesitou pela primeira vez n'esta serie de actos, a que
obedecera como subjugada por quasi instinctiva violencia.

--Em casa de quem vou eu entrar?--pensou ella---Que mulher será esta?
Carlos afiançou-me... porém...

Á porta da casa contigua estava um criado, olhando com curiosidade para
o carro era que viera Jenny.

Jenny mandou perguntar a este criado informações a respeito da senhora
que vinha procurar.

Obteve a resposta de que morava na tal casa uma senhora viuva, na
companhia do filho.

Jenny não hesitou mais; saltou para o passeio e tocou a campainha.

Passados minutos, era recebida em uma modesta, mas asseiada sala, por
uma senhora ainda bella, apesar de haver já passado o verdor da
juventude.

Jenny foi direita ao fim da visita.

--Minha senhora--disse ella--eu chamo-me Jenny Whitestone.

A senhora estremeceu de surpreza. Jenny proseguiu com uma concisão,
verdadeiramente ingleza:

--Venho de proposito procural-a, e não sei ainda a quem tenho a honra de
fallar. O fim da minha visita é este: Meu irmão, Carlos Whitestone, saíu
ha dias de casa na companhia de uma senhora; entrou em uma loja de
ourives, e vendeu um relogio, que, pouco tempo antes, recebera de meu
pae.--Este facto foi sabido; meu pae experimentou com isto grande
desgosto, e esta acção de Carlos tem sido interpretada de maneira
desfavoravel para elle e trazido comsigo dissensões domesticas, que
trabalho por aplacar. Meu irmão afiança não ter sido indigno o motivo do
sacrificio que fez d'aquella dadiva do affecto paterno; insiste porém em
não o explicar. Eu creio na palavra de Carlos, porque o conheço; mas nem
todos depositam n'elle a mesma confiança. Soube por acaso que era v.
exc.ª a senhora, que n'aquella manhã acompanhava meu irmão. Poderei
obter de v. exc.ª provas para a justificação de Carlos?

Emquanto Jenny fallava, a senhora mostrava-se cada vez mais agitada,
como se diversas sensações se combatessem n'ella. Ao ouvir-lhe esta
pergunta, respondeu com as lagrimas nos olhos:

--Póde, sim, minha senhora; mas... depois de v. exc.ª as ver, dirá se me
será possivel deixar de pedir-lhe que não use d'ellas.

--Como?--perguntou Jenny, admirada.

Em vez de responder, a senhora levantou-se e aproximou-se de uma
secretária, que abriu. Voltou dentro em pouco, trazendo alguns papeis na
mão.

--Eu sou a mãe de Paulo, o caixeiro do escriptorio do snr. Whitestone.

--Ah!

--Queira ler esta carta, minha senhora.

Era uma carta de Paulo á mãe.

Jenny leu; a meia leitura, saltavam-lhe já as lagrimas dos olhos e
comprehendia tudo.

N'esta carta Paulo confessava-se criminoso e dizia-se perdido para
sempre. O muito amor, que tinha á mãe, tornára-lhe insupportavel a ideia
de que a menor privação fizesse sentir á pobre senhora as amarguras de
unia existencia, para cujo amparo só elle ficára, depois da morte de seu
pae.--Este sentimento piedoso perdeu-o. Não bastando para tratal-a, como
desejava, os ordenados do escriptorio, contrahiu dividas primeiro; para
as saldar, jogou nas loterias; acresceu o mal; e mais tarde, em um
momento de desespêro, durante o mez da doença de Manoel Quentino,
subtrahiu uma avultada somma da caixa, fechando os olhos ás
consequencias.--A confiança de Carlos era facil de illudir; mas na
vespera do regresso de Manoel Quentino ao escriptorio, Paulo previu que
o desconfiado guarda-livros cêdo descobriria tudo. Após o susto, veio o
remorso, e após o remorso, a resolução desesperada. Para evitar o
suicidio, resolveu fugir da cidade. N'esta carta despedia-se portanto da
mãe, e recommendava-lhe que pedisse protecção a Mr. Richard e sobretudo
a Carlos, em cujo caracter generoso o pobre rapaz confiava cegamente.

--Ó meu bom Charles!--disse Jennv, ao acabar de ler--eu bem sentia que
havia de ser digno de ti o motivo, que te levou áquillo. Comprehendo
tudo, meu irmão...

--Seu irmão é uma alma sublime, a quem Deus pagará em venturas as
lagrimas de gratidão, que elle me tem feito derramar.

Jenny apertou commovida as mãos da senhora, que chorava.

Contou a mãe de Paulo os promenores das scenas, que se passaram
n'aquella manhã: como, ao acordar, dera pela ausencia do filho e
encontrára esta carta a explical-a; o seu desespêro, a sua irresolucão;
a ignorancia, em que ficou sobre o destino de Paulo.--Disse depois como
o bilhete de um amigo desconhecido, indicando a Paulo a hora a que devia
estar a bordo do navio, lhe dera indicios.

Depois contou toda a entrevista com Carlos, a quem ella recorrera
desesperada. A prompta disposição d'este para valer-lhe, como, obtida
com a venda do relogio a somma do alcance de Paulo, Carlos a acompanhára
á Foz, até bordo do navio, e lhe restituira o filho, que ella já
suppunha perdido.

--Horas depois--concluiu ella--recebia eu em casa este bilhete de Paulo.

Jenny leu-o. Dizia apenas:

«Tudo está salvo, minha boa mãe. A generosidade do snr. Carlos livrou-me
da deshonra. Resta-me o dever da regeneração, que sinto agora mais vivo
do que nunca.»

--E agora diga, minha senhora, devo accusar meu proprio filho? Não era
por mim que elle se perdia? E devo pagar-lhe assim? É de justiça, bem
sei; mas... perdôe-me se me falta a coragem. Não desculpará esta
fraqueza a uma mãe?

Jenny abraçou-a com ternura.

--Tranquillise-se, minha senhora. Não é a esse coração que eu pedirei
tal sacrificio. Deus me inspirará algum meio de valer a todos. Sinto-me
agora com força para tudo.

--Pobre Paulo! O muito amor que me tem foi que o levou áquillo. Ainda
hoje sente remorsos tão vivos!... Elle bem faz por se alegrar, mas...
conheço que lhe peza esta pena dentro da alma. «Se eu fosse só--disse-me
elle ha dias--se a minha desgraça não podesse cair sobre a cabeça de
mais ninguem, eu já teria confessado tudo! Envergonho-me de mim mesmo,
quando penso no meu silencio.» E eu, senhora, que abençoaria a hora, em
que espontaneamente elle o confessasse, não tenho coragem para
dizer-lhe: Falla! Parece-me quasi uma ingratidão... Era como se eu
propria, sabendo que elle se deshonrára por mim, o apontasse deshonrado
aos olhos dos outros.

Jenny consolou a pobre mãe e prometteu-lhe não revelar a alguem o que
d'ella acabára de saber.

Saíu d'alli com a alegria no coração a generosa irmã de Carlos.

De caminho ia pensando na maneira de proceder para patentear ao pae a
innocencia de Carlos, sem trahir a confiança, que a mãe de Paulo
depositára n'ella.

De subito acudiu-lhe uma ideia, que a fez sorrir. E, em vez de voltar
para casa, como tencionava, deu ordem para que a conduzissem ao
escriptorio da rua dos Inglezes.

Mr. Richard, que passeiava na Praça, vendo chegar a filha, aproximou-se
d'ella sorrindo.

--Que madrugada é esta, Jenny?

--Admira-se? pois ha muito que ando por fóra.

--Então é dia de feira?

--Não, senhor; mas tenho hoje de lhe dar contas de um trabalho de que me
encarreguei.

--Qual?

--Um problema que prometti resolver em oito dias.

--Ah! e então?...

--E então, nem tanto tempo me foi preciso; já possuo a solução; agora só
me resta uma difficuldade.

--Qual é?

--Achar a maneira apropriada de lh'a fazer saber.

--Isso não custa a imaginar.

--Não é muito facil, porque prometti que não serei eu que a diga.

--E então quem ha de ser?

--É o que venho procurar.

--Aqui?

--Lá acima, ao escriptorio, onde me deixará subir e demorar algum tempo.

--Como quizeres. E póde saber-se se a solução é satisfactoria?

--A melhor possivel.

--Duvido.

--Verá.

--Verei.

--Duas palavras mais; os seus caixeiros sabem todos inglez?

--Manoel Quentino...

--Esse sei que sim; os outros?

--Paulo não o falla, mas entende-o; o outro nem o entende, nem o falla.

--Bem. Outra cousa. Ha de fazer-me uma promessa.

--Dize.

--Quando souber a solução do problema, se reconhecer que foi severo de
mais para com seu filho, será, em compensação, indulgente para com o
verdadeiro culpado.

--Pois ha culpados?

--Promette?

--Mas...

--Prometterei, porém...

--Até logo. Ou eu me engano muito, ou, d'aqui a meia hora, póde vir
saber o resultado.

--De ti?

--De mim não. Até logo.

E desappareceu, subindo com ligeireza as escadas carunchentas do
escriptorio.

Ao entrar alli dentro, Jenny revestiu-se de um d'aquelles ares graves e
pensativos, que tão bem lhe iam á physionomia sympathica.

Estavam na sala Manoel Quentino, Paulo e o outro caixeiro, e todos se
levantaram, ao verem entrar a joven ingleza.

--Por favor, deixem-se estar como estão--disse ella, sentando-se ao pé
de Manoel Quentino.--Quero descansar algum tempo aqui; mas não
interrompam os trabalhos.

--Estava bem longe de a esperar hoje por estes sitios, miss Jenny--disse
Manoel Quentino, continuando a trabalhar.

--Precisei de fallar com o pae... Mas que tem, Manoel Quentino?
Parece-me triste; Cecilia como está?

--Graças a Deus, menina, Cecilia... não está mal.

--Então não esteja triste. Para tristezas basto eu.

--Então miss Jenny está triste?

--E não pouco, Manoel Quentino.

Manoel Quentino sorriu, como quem duvidava.

--De que se ri? Julga-me incapaz de sentir a tristeza?

--Não, mas não vejo o que possa causar-lh'a.

--Então ouça e diga se o motivo não é para estes e peiores effeitos.

Jenny, passando de repente a fallar inglez, como se desejasse ser
sómente comprehendida por Manoel Quentino, a quem se dirigia em tom
confidencial, proseguiu:

--Charles tem excellente coração, como sabe; mas uma cabeça!... Sem o
querer, é o motivo de continuados desgostos em casa. Ahi está que se dá
agora com elle um facto, bem singular, que é a causa da minha tristeza.

E Jenny principiou a contar a Manoel Quentino a historia do relogio, o
desgosto de Mr. Richard, a insistencia de Carlos em occultar as razões
que o moveram áquella venda, razões que elle se limitava a affirmar não
serem vis.

--Mas que quer?--proseguia Jenny--quem o acreditará? Eu e mais ninguem.
O conceito que geralmente fazem de meu irmão, não lhe serve de fiança
valiosa. Isto tem feito existir entre Charles e o pae, ha já muitos
dias, uma frieza... mais do que frieza, uma quasi hostilidade, que me
afflige. Se soubesse, Manoel Quentino, o que tenho chorado por causa
d'elles!...

Jenny que, como dissemos, fallava agora em inglez e como quem não
receiava que alguem mais a comprehendesse na sala, lançava de quando em
quando olhares furtivos para Paulo e via-o mudar de cor, passar de
pallido a córado, empallidecer de novo, córar outra vez, emquanto mal
segurava na mão tremula a penna, com que escrevia.

Jenny seguia com prazer todos estes signaes, e por elles conjecturava
que estava sendo entendida.

--Verduras!--disse Manoel Quentino, procurando desculpar Carlos.

--Que importa que o sejam? São motivo bastante para nos fazer soffrer a
todos.

Jenny insistiu muito n'isto, exagerou as côres sombrias com que pintou o
horizonte domestico. N'isto fallava ainda, quando Mr. Richard entrou no
escriptorio. Jenny receiou que qualquer pergunta d'elle inutilisasse
todo o artificio, e por isso correu ao encontro do pae e, fingindo
abraçal-o, disse-lhe ao ouvido:

--Não se refira a nada do que ha pouco lhe disse e demore-se aqui no
escriptorio.

Mr. Richard fez, sorrindo, um signal de assentimento.

Jenny sustentou uma conversa insignificante, sem nunca perder de vista
Paulo, cuja turbação indicava uma violenta lucta interior. Jenny
agourava bem do que ia observando n'elle.

Emfim deixou afrouxar a conversa e fez ao pae signal para que entrasse
no gabinete. Mr. Whitestone assim o fez.

A agitação de Paulo cresceu. Jenny espiava-lhe todos os movimentos e
expressões. Viu-o pousar a penna e erguer-se, como movido por forte
resolução. Jenny tremeu de sobresalto! Depois fez-se pallido, passou a
mão pela fronte e sentou-se outra vez. Jenny desanimou. Ergueu-se emfim
resoluto, e sem parar um momento mais, dirigiu-se ao gabinete de Mr.
Richard e pediu licença para entrar.

--Entre--disse de dentro a voz do negociante.

Paulo entrou, fechando a porta atraz de si.

Jenny não pôde conter-se; saíram-lhe involuntariamente dos labios estas
palavras:

--Está ganha a causa!

Manoel Quentino olhou para ella admirado.

Jenny pôz-se a rir.

--Se soubesse, Manoel Quentino, que se está agora mesmo desmoronando o
ultimo e pequeno estorvo, que se oppunha á sua felicidade!...

Manoel Quentino cada vez a comprehendia menos.

Jenny nada mais disse.

A conferencia de Paulo e de Mr. Richard durou muito tempo. De fóra só se
percebia um indistincto rumor de vozes, sem se distinguir uma só
palavra.

A final abriu-se a porta outra vez.

Passou por Jenny o tremor de incerteza.

O primeiro que saiu foi Paulo; trazia as faces afogueadas, os olhos
vermelhos; mas, por entre estes vestigios de tristeza, transluzia certo
ar de contentamento de alma, que tranquillisou Jenny.

Momentos depois saiu Mr. Richard. Através da impassibilidade e frieza
apparente da physionomia do velho, o olhar de Jenny percebeu que lhe ia
muita alegria no coração.

Mr. Richard deu algumas ordens, fez algumas recommendações, e depois,
voltando-se para a filha, disse-lhe que estava á disposição d'ella.
Retirava-se do escriptorio a uma hora excepcional.

Jenny acompanhou-o.

--Saíste-te perfeitamente da tua incumbencia, Jenny--disse-lhe o pae,
quando a sós com ella no carro.

--Então não saí?

--E como o conseguiste?

--Mais de vagar!... Esse é o meu segredo. Diga, não estará Carlos ainda
justificado?

Um sorriso foi a resposta que obteve esta pergunta; sorriso de orgulho,
de affecto, de commoção, que tudo estava então experimentando aquelle
coração de pae.

--Carlos tem uma alma generosa, leal; eu tenho sido devéras injusto com
elle.

Jenny exultou ao ouvir esta confissão.

--Escuso de perguntar--disse ella--se foi indulgente com o culpado:
tenho até a pedir-lhe perdão de ter antes exigido a promessa d'aquillo,
que por certo espontaneamente faria.

--Enganas-te; eu castigo.

Jenny olhou-o inquieta.

--O castigo é um dever moral--proseguiu o pae.--É o meio de regeneração.
As almas fracas e vis castigam-se com rigores; só o mêdo póde
refreial-as. Mas Paulo, apesar da sua fraqueza, tem vigorosos ainda os
instinctos da honra; para estes o castigo, que regenera, é o pagar a
culpa com o beneficio. No mesmo dia, em que Manoel Quentino for meu
socio, Paulo será nosso guarda-livros, ser-lhe-hão augmentados os
salarios e confiada a caixa.

Jenny beijou as mãos do pae.

--Deus não castigaria por outra fórma.

--Não digas heresias, Jenny.

Haviam chegado a casa.

--Agora pódes fazer a Manoel Quentino o teu presente--disse Mr. Richard.

--E depois...

--Depois examinaremos de vagar o resto das tuas loucuras.



XXXIX


CORÔA-SE A OBRA


Manoel Quentino estava ainda em casa, na manhã do dia seguinte, quando
Antonia lhe veio annunciar que a «inglezinha» chegára em uma carruagem e
perguntava por elle.

Cecilia e Manoel Quentino correram ao encontro de Jenny.

--Estranham-me a madrugada? Que querem? Não pude dormir toda a noite com
a lembrança d'esta visita. Desejava encontrar ainda em casa o snr.
Manoel Quentino e como sei dos seus habitos matinaes...

--Ainda tenho meia hora--disse o guarda-livros, consultando o relogio.

--O fim da minha visita é simplesmente entregar-lhe em mão propria uma
mensagem de meu pae. Quer ver?

E passou para as mãos do velho a carta, que o leitor conhece já.

Emquanto Manoel Quentino se dispunha a lel-a, Jenny dizia a Cecilia:

--Então como vae esse coração?

--O coração?

--Sim; eu não quero que elle se deixe curar senão por mim. Entendes?

--E acha-o doente?--perguntou Cecilia.

--E acha-o são?--perguntou Jenny, imitando-a.

Cecilia ia a responder, mas suspendeu-se, olhando para o pae.

--Jesus! Que tem meu pae? Olhe!

Manoel Quentino, que acabára de ler a carta de Mr. Richard, estava
efectivamente perturbado; fizera-se pallido, e tremia olhando para o
escripto, que conservava na mão.

Jenny sorriu.

Cecilia correu para o pae.

--Que é isso? que é o que tem?

Manoel Quentino mostrou-lhe em silencio a carta do inglez.

Cecilia leu-a em um relance de olhos. No fim, banhada de lagrimas,
abraçou o pae com transporte.

--Oh que felicidade, meu pae!

O velho parecia hesitar ainda entre a alegria da nova e não sei que
amargo pensamento, que teimava em enlutal-a.

--É de certo á influencia d'este anjo--disse Cecilia, designando
Jenny--que devemos esta ventura.

O guarda-livros olhou tambem para Jenny, e, com certa perturbação de voz
mal disfarçada, perguntou-lhe:

--Miss Jenny, a que serviços devo eu uma tão generosa recompensa?

--Serão poucos os de dezoito annos de fidelidade, Manoel Quentino?
Vamos--continuou sorrindo--querem ver que nos sáe um desconfiado?
Asseguro-lhe eu, Jenny--continuou com voz firme e grave, porque julgou
divisar um raio de desconfiança no olhar de Manoel
Quentino---asseguro-lhe eu, que vi escrever essa carta e que beijei,
reconhecida, a mão que a escreveu, asseguro-lhe que póde e que deve
aceitar a mercê--se mercê se póde chamar--com a certeza de que a obteve
por nobres e reaes serviços.

Estas palavras desarmaram Manoel Quentino. Todas as sombras suscitadas
pela leitura se desfizeram.

Havia-lhe de facto occorrido, que lhe queriam compensar d'aquella
maneira as tenções, menos leaes, de Carlos para com a filha, e, com esta
ideia, o orgulho e o despeito, mal sopeados ainda, revoltaram-se-lhe no
coração outra vez.

Mas o conceito, em que tinha Jenny, não lhe deixava supportar estes
escrupulos, desde que por ella os via condemnados.

Agora porém era Cecilia a que ficava pensativa.

Passada a primeira expansão de alegria, que a felicidade do pae lhe
despertára, acudiu a reflexão a fazel-a meditar sobre as tenções de
Jenny.

Esta, que observava a amiga, chamou-a de parte.

--Que ares graves são esses, Cecilia?

--Jenny, deixa-me fazer-lhe uma pergunta?

--Não; se for feita de maneira tão ceremoniosa. Vê que não é assim que
eu te trato.

--Mas...

--É condição para que te escute. Falla.

--Diga-me...

A um gesto de Jenny, corrigiu, sorrindo:

--Dizes-me toda a significação d'isto?

--De quê?

--D'esta generosa acção, que eu sinto vir da... tua inspiração?

--Então não te basta a explicação que dei? Tão impossivel te parece já a
gratidão, que...

--Não, mas as circumstancias, que occorreram... o que se passou...

--Que tem tudo isso?

--Jenny, perdôa-me; mas a minha consciencia obriga-me a pôr de parte
todas as reservas e a fallar-te com franqueza...

--E inda agora o fazes?

--Responde-me... Quaes são as tuas tenções?

--Que tenções?

--As tuas tenções... a meu respeito?

--Ah!... As melhores tenções d'este mundo... Fazer-te feliz.

--Mas repara, Jenny, que eu não o posso nunca ser, á custa de
sacrificios alheios.

--E quem é que se vae sacrificar?

--Não sei, mas... acudiu-me um pensamento... louco por certo... mas
inquieta-me... A tua generosidade é capaz de tudo...

--Vamos lá a ver esse pensamento louco, que te occorreu.

--N'aquella manhã, no dia dos teus annos, quando me appareceste, como o
anjo de misericordia, em um momento de afflicção... lembras-te?

--Vamos adiante... O anjo de misericordia é que veio de mais ahi...

--N'esse momento, ouvi-te dizer algumas palavras, que tremi de
comprehender, depois quando disseste a... teu irmão que eu tinha
direitos a exigir d'elle a affeição que...

--E não tinhas?

--Ouve-me, Jenny. D'aquella vez a tua angelica presença bastou para me
salvar; mas se não bastasse, quando eu tivesse sido surprendida, como o
acaso me arriscou a ser, alli, só, n'aquelle logar, e ficasse perdida na
opinião de todos, coberta de vergonha e de despreso, ainda assim
preferiria retirar-me só com a minha consciencia, que me não accusava, a
usar dos direitos a essa reparação, que dizias. Exigir affeições! Repara
bem, Jenny:--Exigir!--E podem lá exigir-se affeicões? Receber as
apparencias d'ellas, em vez da realidade! E a quem dá isso venturas?

--Tens razão, Cecilia. Vê; eu também sou do teu pensar, e comtudo teimo
em fazer-te feliz. E sinceramente confesso que isto hoje é um passo dado
no caminho, em que entrei e que estou disposta a seguir até o fim.

--Mas...

--Com franqueza, Cecilia. Falta-nos o tempo para rodeios. Acreditas ou
não na affeição de Carlos?

--Não.

--Que _não_ tão desenganado!--tornou Jenny, sorrindo--Ha de custar-me a
perdoar-t'o. Não sei se sabes que tomei sobre mim o justificar meu
irmão. Já tenho alcançado muitas victorias. Meu pae confessou-se já
hontem injusto para com elle. A tua criada Antonia está meia abalada
tambem.

--Antonia?!

--É verdade. Eu suspeitei que meu irmão tinha n'ella um inimigo, e
parece-me ha ver acertado. E senão dize-me: não foi Antonia quem te
contou a historia de certa visita, que Carlos recebeu?

Cecilia desviou os olhos, ao ouvir a referencia ao delicto, que com tão
amargas censuras lhe fora de facto contado pela criada.

--Bem vejo que me não enganei--continuou Jenny.--Pois até Antonia se
dará por vencida a final. Emquanto á tal visita... dir-te-hei de
passagem que tudo está satisfactoriamente explicado.

--Como?--perguntou Cecilia com vivacidade.

--É segredo que meu irmão te poderá revelar, quando... entre ti e elle
não devam existir segredos.

--Tarde viria então, para me aproveitar, o esclarecimento.

--Até lá contenta-te com a minha palavra; ou tambem duvídas d'ella?

A volta de Manoel Quentino á sala interrompeu o dialogo.

Cecilia ficou no fim d'elle com mais confiança no futuro, e mais
frequentes lhe assomaram os risos aos labios no resto da manhã.

Espalhou-se rapidamente na Praça, durante aquella manhã, a nova da
promoção de Manoel Quentino.

Choveram-lhe parabens de todos os lados, cresceu na opinião publica a
reputação do guarda-livros.

Conceituando altamente a classe commercial, não podia Manoel Quentino
ficar indifferente, ao sentir-se guindado por ella na escada da
consideração. Deixava-se possuir de legitimo orgulho, que, não obstante,
o não fazia soberbo.

Paulo foi no mesmo dia nomeado guarda-livros, com augmento de ordenado.

O pobre rapaz recebeu com lagrimas a nomeação. Estas lagrimas estavam
vingando Mr. Richard.

As manifestações publicas de intimidade entre as duas familias
repetiram-se, graças aos artificios de Jenny.

Uma noite, Cecilia, obrigada por ella, appareceu no theatro.

Os amigos de Carlos reconheceram-a, e os boatos do proximo casamento de
Mr. Richard com a filha do seu novo socio principiaram, desde então, a
transpirar na cidade com certa insistencia.

A phantasia de alguns novelleiros explicava o facto por motivos
occultos, dando a entender que os serviços, que devia a casa Whitestone
a Manoel Quentino, eram maiores do que os reconhecidos por ella e que as
economias do velho guarda-livros tinham valido para atalhar os males
causados pelos arrojos do patrão. Desde que se achára assim meio de
fazer intervir na explicação o elemento interesse, os animos aceitavam-a
de mais boa mente.

Tinha Mr. Richard razão.

Partira porém um vapor para Londres e, após o primeiro, outro e outro,
sem que o velho commerciante inglez fizesse lembrar ao filho o
cumprimento da sua sentença.

Uma manhã, estava Mr. Richard no gabinete, enthusiasmado na contemplação
da chamada «Águia dourada», ou technicamente: _Aquila Chrysaetos_, raro
visitador dos suburbios de Londres, que elle recebera nas vesperas de um
seu amigo de Boxhill, onde fora caçada e morta, quando d'este quasi
extase de colleccionador o arrancou o rumor da porta do gabinete que se
abria; Mr. Richard voltou-se e viu o rosto da filha, que espreitava para
dentro.

--Entra, Jenny, entra--disse elle, com a affabilidade com que sempre lhe
fallava.

Jenny entrou.

--Que te traz por aqui, tão de madrugada?

--Encarreguei-me de uma apresentação, que peço licença para fazer-lhe.

--De uma apresentação?! De quem?

--De uma pessoa--respondeu Jenny maliciosamente--que lhe quer pedir as
suas ordens para Londres. Ha muitos dias já que tinha de partir para lá.

Mr. Whitestone olhou, sorrindo, para a filha, cujas palavras, com o seu
sahor epigrammatico, o deliciavam.

--Que entre, que entre o teu recommendado.

Jenny abriu a porta e introduziu Carlos na sala.

Apesar da timidez, que sentia sempre na presença do pae, Carlos recebia
agora coragem da consciencia de ter ganho de antemão a causa, que vinha
por formalidade advogar alli.

--Meu pae--disse elle, adiantando-se para Mr. Whitestone--não ha muitos
dias, que pela sua bôca ouvi qualificada como infamia uma acção minha;
venho pedir-lhe agora que me deixe usar do unico meio, que tenho, para
evitar que a arguição seja, até certo ponto, merecida.

--Qual é?--perguntou concisamente Mr. Richard.

--Procurar Manoel Quentino e pedir-lhe para offerecer o meu nome,
honrado por meu pae com uma vida inteira de probidade, a essa menina,
que as minhas imprudencias, e nunca as minhas intenções, iam
sacrificando. Salvou-a uma vez a generosidade de minha irmã; outra, a
sua, senhor. Deixe-me pois seguir o exemplo tão nobre que me apontaram e
com elle o que, ao mesmo tempo, me aconselha o coração.

--E já pensaste bem, Carlos;--disse Mr. Richard, que tinha já perdido
toda a sua rispidez--já pensaste bem no que vaes fazer? Não temes que
venhas ainda a arrepender-te d'esse passo pouco reflectido? Não receias
tornar-te o instrumento da infelicidade d'essa menina? Estás preparado
para as obrigações, que, como chefe de familia, vaes chamar sobre ti?

--Eu sei que o passado poucas garantias me póde conceder; mais tenho fé
em que o futuro me justificará...

--Fé?--disse Mr. Richard, rindo--É o unico fiador que tens por ti?

Jenny pousou a mão no hombro do pae, dizendo com suavidade:

--E eu.

Mr. Richard voltou-se.

--Tu? Tu afianças Carlos?

--Afianço.

--É arrojo!

--Não é a primeira vez. E o pae sabe qual de nós tem tido razão de se
arrepender. Se eu, da minha confiança; se o pae, das suas suspeitas.

--Á falta de melhor, aceito a garantia.

E voltando-se para o filho:

--Parta então, Carlos; e lembre-se de que, depois do passo que vae dar,
é... deve ser outro homem.

E Mr. Richard Whitestone estendeu a mão para o filho, que a beijou,
antes de partir.

--Não sei se fizeste bem, Jenny--dizia o pae, vendo-o saír do quarto.

--Consultei a memoria de minha mãe, tendo os olhos no retrato d'ella.
Tenho fé nas resoluções que me veem assim.

Mr. Richard olhou algum tempo para a filha com amor, e depois,
apertando-a ao peito, disse:

--Deus te ouça!... E ha de ouvir, que bem lh'o mereces.

--E nós, senhor, ficamos aqui?--perguntou Jenny.

--Pois que mais queres tu ainda?

--É natural que seja Charles o primeiro a tratar este negocio em casa de
Manoel Quentino; mas será delicado que seja o unico?

Mr. Richard tocou a campainha.

--Que apromptem o carro para já--disse ao criado que acudiu ao signal.

--E agora que mais queres?

--Agradecer-lhe.

E depois de abraçar o pae, saiu a correr da sala.

Esta scena teve em casa de Manoel Quentino os seguintes resultados:

Estava o pae de Cecilia preparando-se para sair, quando viu entrar
Antonia no quarto com inquietação e sobresalto.

--Que é, Antonia? Que temos nós?--disse Manoel Quentino, surprendido com
o aspecto da criada.

--Está alli alguem a procural-o, snr. Manoel Quentino.

--Ainda algum importuno a dar-me parabens. Emquanto eu fui
guarda-livros, ninguem me procurava... agora...

E preparou-se para ir ver quem era.

Cecilia, ao ouvir a criada, córada de maneira particular e sob não sei
que pretexto, recolheu-se ao quarto.

É que se lembrou, n'aquelle momento, de um bilhete, que na vespera
recebera de Jenny, com estas sós palavras:

«Desejo-te e agouro-te muito risonhas madrugadas.»

Assignada--«Tua irmã, _Jenny_.»

Logo que Cecilia saiu, Antonia chegou-se ao pé de Manoel Quentino e
disse-lhe em ar de mysterio:

--É elle outra vez!

--Elle quem?

--O filho do inglez.

--Carlos?!

Foi com alvoroço que Manoel Quentino desceu as escadas e chegou á
presença do irmão de Jenny.

Carlos não estava menos agitado. Nos seus gestos e palavras havia uma
gravidade, que Manoel Quenlino lhe estranhou.

Não se sentiam á vontade um na presença do outro, o que não é para
admirar depois das scenas occorridas entre ambos.

Carlos rompeu primeiro o silencio.

--Manoel Quentino, eu venho aqui para um fim muito serio e de maxima
importancia para nós ambos.

Depois de curto intervallo de pausa, acrescentou:

--Venho aqui pedir-lhe a mão de sua filha.

Manoel Quentino deu um salto na cadeira, em que estava sentado.

--Pedir a...?

--A mão de Cecilia--repetiu Carlos, com firmeza.

Uma nuvem toldou por momentos o espirito de Manoel Quentino. As
suspeitas, mal acalmadas, agitaram-se de novo áquellas palavras.

Carlos, notando-o, acrescentou:

--Não lhe occulto agora que ha muito sinto por sua filha uma affeicão,
que em vão procurei combater. Curvei a cabeça ante as suas accusações,
Manoel Quentino, não porque me exprobrasse a consciencia alguma tenção
infame, mas porque pelas minhas imprudencias podia de facto ter
arriscado a boa fama da pessoa, que eu quereria defender por todo o
preço, á custa de todos os sacrificios, e tinha remorsos d'isso. Não é
reparação, que venho aqui oferecer; Cecilia não carece d'ella; venho
pedir-lhe a minha felicidade.

Manoel Quentino permanecia como estupefacto.

--De meu pae tenho já o consentimento; tenho tambem a approvacão de
Jenny; falta-me apenas...

--E Cecilia?...

--Interrogue-a.

Manoel Quentino, quasi sem saber o que fazia, dirigiu-se á porta para
chamar a filha. Esta não estava longe, como é de prever.

Ao entrar na sala, o rosto tinha-lhe dito mais, do que se podia esperar
das palavras.

Manoel Quentino não era para mais hesitações e reservas. Atirou-se ao
pescoço de Carlos; abraçou-o, beijou-o, chamando-lhe seu querido filho.

--Cecilia--dizia Carlos d'ahi a pouco, aproximando-se d'ella--se, para
avaliar os seus sentimentos, esperasse que m'os revelasse, duvidaria
ainda, sabe?

--Mas não duvída?

--Não, porque... os adivinho; julgo eu que os adivinho.

--E que mais quer? Infelizes dos que não sabem adivinhar assim. Esses...
não amam devéras. Não lhe parece?

--E adivinha tambem?

--Espero que sim.

--Mas ainda ha tão pouco tempo que duvidava!

--Ou queria obrigar-me a duvidar.

--E não o conseguiu?

--Bem vê que creio, antes de ouvir a justificação.

--Prometto-lhe que não abusarei d'essa generosa confiança--respondeu
Carlos, beijando-lhe a mão, que ella lhe estendia.

Ora succedeu que a snr.ª Antonia surprendesse esta scena. Rica de tal
descoberta, correu a dar parte d'ella ao amo, que cantarolava na sala
contigua.

Mas qual não foi o seu espanto, ao ver Manoel Quentino receber ás
risadas a communicacão do delicto!

Um raio de luz atravessou o entendimento d'aquella prudente senhora.

Tinha ella bastante tino politico para deixar de imitar os deputados
que, aos primeiros indicios de mudança ministerial, teem a cautela de se
passarem, com armas e bagagem, para a opposicão, com o fim de no dia
seguinte amanhecerem do lado do poder.

Teve cêdo a snr.ª Antonia occasião de manifestar este tacto politico.
Ouviu-se tocar a campainha do portal, e Antonia, que veio abrir a
cancella, achou-se na presença do snr. José Fortunato, o qual a vinha
prevenir de que vira passar Carlos na rua.

--Olhem o milagre! Se elle está cá em cima!--disse Antonia, encolhendo
os hombros.

--Lá em cima!--exclamou o outro.

--Temos grande novidade. A cousa agora é a valer.

--O quê? o que é a valer, snr.ª Antonia, o que é a valer?

--Desconfio que ha casamento tratado.

O snr. José Fortunato fez uma careta.

--Que me diz?!

--Sim; então que ha ahi de maior? Talhados são elles um para o outro. Da
mesma idade e...

Não pôde continuar; o carro de Mr. Richard parava junto do portal, e o
velho inglez saltou lepidamente d'elle e ajudou Jenny a saír.

--Santa Virgem, que ahi vem tudo!--exclamou Antonia, correndo pelas
escadas acima a annunciar os recem-chegados.

A curiosidade do snr. José Fortunato venceu o despeito e fel-o entrar
tambem para ver.

Viu um singular espectaculo!

Jenny abraçava Cecilia com effusão; Manoel Quentino era gravemente
abraçado por Mr. Richard; depois era Carlos, que apresentava Cecilia a
Mr. Richard, dizendo:

--Trago-lhe mais uma filha, senhor.

E Mr. Richard, que respondia, abraçando-a:

--Agradecido, Carlos. É um verdadeiro thesouro, que me dás.

Cecilia beijava commovida a mão do inglez. Manoel Quentino, soltando
phrases desordenadas, abraçava toda a gente. Antonia dava parabens a
todos e de ninguem era attendida.

O snr. José Fortunato viu e voltou as costas ao que vira. Desceu as
escadas, despercebido de todos, sacudiu na soleira da porta o pó dos
seus sapatos, e, resmoneando palavras inintelligiveis, saiu para não
voltar.



CONCLUSÃO


Vencidas as difficuldades, que as differentes religiões de Carlos e de
Cecilia traziam comsigo, o casamento fez-se. Não exponho agora aqui as
condições do contracto, por me parecerem de pouco interesse para o
leitor.

Manoel Quentino não desceu no conceito publíco. Pelo contrario, passou a
ser um d'estes homens, que em certas épocas o Porto julga indispensaveis
e cujos nomes passam a figurar em quantos cargos, sociedades e
commissões se organisam n'esta emprehendedora cidade.

Tem sido successivamente director de um banco, mordomo da Santa Casa e
camarista.

Mr. Richard continúa com os seus habitos de vida ingleza e com as
leituras do Sterne.

Os seus compatriotas Brains e Morlays são ainda o que sempre foram; um,
o inglez que chora; outro, o inglez que ri.

Preciso de acrescentar que Cecilia e Carlos vivem felizes?

Nem eu sei se teria coragem de lhes escrever a historia dos amores se
esse não fora o resultado.

E Jenny?

Jenny é sempre o anjo bom da familia.

Nunca Mr. Richard teve de pedir-lhe contas da fiança que dera por
Carlos. Este não lhe tem offerecido ensejo para isso.


FIM.


[1] Paul Feval.



INDICE

I--Especie de prologo, em que se faz uma apresentação ao leitor

II--Mais duas apresentações, e acaba o prologo

III--Na Aguia d'Ouro

IV--Um anjo familiar

V--Uma manhã de Mr. Richard

VI--Ao despertar de Carlos

VII--Revista da noite

VIII--Na Praça

IX--No escriptorio

X--Jenny

XI--Cecilia

XII--Outro depoimento

XIII--Vida portuense

XIV--Imminencia de crise

XV--Vida ingleza

XVI--No theatro

XVII--Contas de Carlos com a consciencia

XVIII--Contas de Jenny com a consciencia de Carlos

XIX--Aggravam-se os symptomas

XX--Manoel Quentino procura distracções

XXI--O que vale uma resolução

XXII--Educação commercial

XXIII--Diplomacia do coração

XXIV--Em que a senhora Antonia procura encher-se de razão

XXV--Tempestade domestica

XXVI--Inefficaz mediação de Jenny

XXVII--O motivo mais forte

XXVIII--Fórma-se a tempestade em outro ponto

XXIX--Os amigos de Carlos

XXX--Peso que póde ter uma leviandade

XXXI--O que se passa em casa de Manoel Quentino

XXXII--Os convivas de Mr. Richard

XXXIII--Em honra de Jenny

XXXIV--Manoel Quentino allucinado

XXXV--A sentença do pae

XXXVI--A defeza da irmã

XXXVII--Como se educa a opinião publica

XXXVIII--Justificação de Carlos

XXXIX--Corôa-se a obra





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