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Title: Luiz de Camões marinheiro
Author: Eça, Vicente de Almeida de, 1852-1929
Language: Portuguese
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LUIZ DE CAMÕES

MARINHEIRO


ESTUDO

POR


ALMEIDA D'EÇA


DAVID CORAZZI--EDITOR
EMPREZA HORAS ROMANTICAS
Rua da Atalaya, 40 a 52
1880


      Quem deixará, até onde cheguem as suas forças, de concorrer para
      illustrar o nome do Poeta extraordinario que emprehendeu e levou a
      cabo o levantar o monumento da nossa gloria nacional?

            Visconde de Juromenha. _Obras de Camões._ Vol. I, pag. 7.

      O perscrutar os mais fundos recessos do espirito de um poeta como
      Camões, não é indigno da critica, nem um estudo vasio de interesse.

            J. G. Monteiro. _Carta ácerca da ilha dos amores_, pag. 11.


A maior parte das observações, que vão ler-se, foram feitas longe da
patria, quando o poema de Camões era o unico amigo intimo com quem
desabafavamos saudades e soffrimentos. Concluimos depois este humilde
estudo em uma aldeia de Portugal, onde faltavam os bons livros e mestres,
cuja consulta seria indispensavel para que elle fosse menos que imperfeito.
Sirva isto de desculpa á rudeza d'estas linhas, que só pretendem ser
homenagem de agradecimento áquelle que tão bem soube fallar ao coração do
marinheiro.

Abril de 1880.



I


O nosso Epico, o immortal auctor dos _Lusiadas_, o escriptor que fez com
que o estrangeiro não esquecesse de todo o nome portuguez,--tudo isto se
diz que foi Luiz de Camões. A fibra patriotica julga-se quite da divida de
gratidão ao grande Poeta com ter-lhe erigido um monumento de gosto
duvidoso, em sitio acanhado da capital, e com pronunciar o seu nome quando
lhe dizem os desalentados que Portugal é uma terra morta. Mas, por se
orgulharem tanto de ser filhos do mesmo torrão em que nasceu Camões, nem
por isso esses, que tantas vezes lhe citam o nome, sentem tentação de tomar
conhecimento, sequer passageiro, do que elles dizem ser um padrão das
nossas glorias; e, não fallando nos que propriamente se dedicam aos estudos
litterarios, porque a esses incumbe o dever de conhecerem as obras do nosso
Poeta, raro se encontrará nas classes illustradas um portuguez que dos
_Lusiadas_ tenha lido mais que as poucas oitavas _selectas_, que se
encontram nos compendios de instrucção.

Assim, ao passo que o inglez, o allemão ou o francez menos dado ás lides
litterarias, mas que se preze de ter uma educação regular, conhece, possue,
lê e cita amiudadas vezes Shakespeare, Milton e Byron, ou Schiller e
Goethe, ou Molière e Lafontaine, nós, despresando as joias de metal sem
liga pelos enfeites de ouropel, fallamos de Camões quasi como os cegos
poderão fallar da luz. E o mal é tanto maior quanto uma audaciosa escola
contemporanea tenta arrogar-se o exclusivo de fallar verdade, de
_photographar_ a natureza, como dizem os seus corypheus, dando a entender
que o que antes d'elles se escreveu era tudo falso, que ninguem tinha
habilidade para copiar a natureza, e que só elles sabem chamar as cousas
pelo seu nome!

Não nos permittem as nossas poucas forças entrar na liça contra essa
escola, que hoje parece ter assambarcado o gosto e os louvores do publico;
só quizeramos pedir respeitosamente aos thuriferarios do novo idolo, que
consintam a algum _retrogrado_ da arte o conservar no mais intimo do seu
espirito a crença de que, em tempos que já lá vão, houve quem escrevesse
com realidade, quem pintasse a natureza tal como ella é; consintam-lhe que,
lendo o pobre Camões, encontre n'elle descripções verdadeiramente reaes ou
_realistas_, porque são apenas verdadeiras.

Para se ser poeta, verdadeiramente poeta, para se fallar poeticamente da
natureza ou das artes, não basta ter a inspiração do rythmo, saber alinhar
palavras ora altisonantes ora docemente musicaes; é necessario conhecer a
natureza, conhecer as artes e as sciencias de que se quer fallar, é
necessario sentil-as, consubstanciar-se com ellas. Para fallar de
astronomia, ainda mesmo poeticamente, é necessario conhecer os astros; para
fallar do mar é necessario ter percorrido os oceanos, ter presenciado as
tempestades, ter soffrido com o marinheiro, porque

      quem não sabe a arte, não na estima
                        (Lus. V, 97.)

Quem não tiver conhecido exactamente e sentido as cousas que quer
descrever, só póde copiar uma natureza subjectiva, filha da imaginação,
pura invenção do seu cerebro. É por isso que vemos hoje um Pharaó montado
em corcel andaluz, mastodontes em correrias desenfreadas pelas florestas
virgens da Europa contemporanea, condores pousados graciosamente nos
calices das rosas, e... _il resto no lo dico_.

Mas Camões viu os continentes e as ilhas, os oceanos e as montanhas, e por
isso é o grande pintor da natureza; Camões foi soldado, e por isso é o
veridico narrador das batalhas; Camões serviu cargos do estado, e por isso
dos seus versos se póde tirar um tratado completo de politica; Camões,
finalmente, navegou muito, e por isso é, como diz Alexandre de Humboldt, um
grande pintor maritimo.

Espiritos elevados e intelligencias altamente illustradas tem já
considerado o nosso Poeta debaixo de alguns d'estes pontos de vista.
Parece-nos, comtudo, que ainda se não explorou sufficientemente um dos
veios mais ricos d'essa riquissima mina. Tentaremos nós, em rapido esboço,
mostrar como na sua palheta de multiplices côres tinha Camões algumas das
mais brilhantes e apropriadas para descrever o mar e pintar os homens que
n'elle vivem. Procuraremos mostrar como Camões foi um marinheiro, mas um
marinheiro de alma e coração divinamente inspirados; procuraremos
demonstrar como lhe assenta bem o epitheto de _Naval Poet_, que lhe deu um
escriptor inglez, e teremos assim justificado o titulo que demos a este
despretencioso trabalho.



II


Para poder tratar da sciencia e da arte do marinheiro com a provada
exatidão e superior proficiencia, que se observam nas suas obras, devia
Camões ter tido um longo tirocinio maritimo, pois só com largas viagens
sobre o mar poderia elle adquirir esses conhecimentos tão variados.

Se ainda hoje, com tantos tratados e livros ao alcance de todas as
intelligencias, é comtudo difficil, a quem não viu o mar e os seus
trabalhos, fazer d'elles uma idéa aproximadamente exacta, muito mais
acontecia isso no tempo do Poeta, quando a geographia, a astronomia e a
nautica eram sciencias, alem de atrasadas, possuidas por poucos, de modo
que a maioria das pessoas, ainda mesmo das classes illustradas, faziam de
tudo o que dizia respeito á navegação, idéa vaga e por vezes muito afastada
da verdade, confundindo-se no seu espirito os verdadeiros perigos do mar
com os horrores e medos imaginarios, que eram ainda restos da tradição do
Mar Tenebroso. Os escriptores, que não tinham navegado, ao descreverem
scenas maritimas, serviam-se de um padrão uniforme, successivamente copiado
ou imitado, e em que a natureza muitas vezes tinha pouca parte. E
realmente, como poderá descrever com exactidão uma tempestade quem nunca
tenha visto alguma? Como poderá descrever com verdade o alvoroço sentido
pelo marinheiro ao avistar terra, depois da longa e trabalhosa navegação,
aquelle que nunca saiu do remanso da patria e do conchego da familia?

Mas o nosso Poeta foi n'esse ponto mais feliz que nenhum outro, porque
navegou e viajou muito, e de si podia dizer o que poz na bôca do Gama:

      Os casos vi, que os rudos marinheiros,
      Que tem por mestra a longa experiencia,
      Contam por certos sempre e verdadeiros,
      Julgando as cousas só pela apparencia;
      E que os que tem juizos mais inteiros,
      Que só por puro engenho e por sciencia
      Vêm do mundo os segredos escondidos,
      Julgam por falsos ou mal entendidos.
                        (Lus. v, 17.)

Antes, pois, de vermos como o Poeta tratou das cousas do mar, recordemos da
sua biographia o que diga respeito ás navegações que fez.

Luiz de Camões embarcou pela primeira vez pelos annos de 1546. Este
primeiro embarque parece ter sido um castigo motivado ou pelos seus
malfadados amores com D. Catharina d'Athayde ou por qualquer outra causa,
talvez um duello dos muitos que lhe originava o seu genio ardente e
cavalheiroso, que lhe valeu dos companheiros e quiçá dos emulos a alcunha
de Trinca-fortes. Certo é que partiu para Ceuta, e em tão boa ou má hora
que, logo n'essa viagem, teve um recontro com corsarios barbarescos,
suppondo-se que foi então que perdeu o olho direito.

Voltou de Africa em 1549 em companhia de D. Affonso de Noronha, que tinha
sido capitão de Ceuta, e que, chegado a Lisboa, foi nomeado vice-rei da
India por D. João III. Vinha o Poeta já com tenção de se alistar para a
India, o que fez com effeito em 1550 na _nau dos Burgalezes_, que pertencia
á armada em que D. Affonso de Noronha devia seguir viagem. Não partiu,
porém, n'essa occasião, mas sim tres annos depois, a 24 de março de 1553,
na armada que levava por capitão-mór Fernão Alvares Cabral. Era tal o seu
desejo de partir, ou para deixar a patria onde o perseguiam os desgostos,
ou para ver se melhorava de fortuna e podia realisar as aspirações do seu
coração, que trocou com outro _homem d'armas_, e embarcou na capitaina, que
era a nau _S. Bento_.

N'esta viagem experimentou Camões os duros trabalhos do mar, porque a
armada, poucos dias depois de saír de Lisboa, foi assaltada por um temporal
que a dispersou. Chegado ás alturas do Cabo pagou o Poeta o tributo devido
ao Genio d'aquellas paragens, que elle havia de immortalisar. Essa
tormenta, que elle descreveu na sua elegia III, inspirou-lhe com certeza o
bello episodio do Adamastor. Não podendo já seguir a viagem pelo canal de
Moçambique, ou por ter passado a monção ou por causa das correntes
contrarias, a nau _S. Bento_ fez a derrota por fóra da ilha de Madagascar,
correndo n'aquelle parallelo até á latitude da India. Finalmente, em
setembro, chegou o Poeta a Goa, depois de seis mezes de uma viagem, que,
parcendo-nos hoje aborrecida e longa, não foi comtudo das peores para
aquelle tempo.

A vida dos militares portuguezes na India era um tecido de continuas
expedições ora terrestres ora maritimas, predominando comtudo estas
ultimas. Por isso, mez e meio depois de ter o Poeta chegado a Goa, já o
vemos acompanhar o vice-rei em uma d'essas expedições, que tinha por fim
soccorrer o rei de Cochim. Ahi teve elle occasião de observar desembarques
e combates em terra. Logo em seguida a esta viagem ao sul de Goa fez o
Poeta outra ao norte, embarcando na armada que foi correr a costa
meridional da Arabia e cruzar no golfo de Aden, a qual era commandada por
D. Fernando de Menezes, filho do vice-rei. N'esta expedição teve Camões
desembarques, assaltos de fortalezas, combates navaes, e um cruzeiro
enfadonho em que muitas vezes contemplou com desgosto a triste aridez do
Guardafui, até que em setembro de 1554 regressou a Goa.

Dois annos depois, sendo já governador da India Francisco Barreto, foi o
nosso Poeta para a China, na armada de Francisco Martins, para occupar o
cargo de provedor dos defuntos e ausentes.

O nosso primeiro estabelecimento na China tinha sido na cidade de Liampó, e
chegou a tão grande altura de riqueza e prosperidade commercial, como se
póde ver das descripções que Fernão Mendes Pinto faz das festas com que ali
foi recebido o famigerado Antonio de Faria. Perdeu-se este estabelecimento
em 1542, por causa das desordens provocadas pelo negociante Lançarote
Pereira. Em 1544 conseguiram os portuguezes estabelecer-se em Chincheu, mas
tambem d'ahi foram expulsos em 1547 por causa das malversações e
expoliações de Ayres Botelho de Sousa, capitão-mór e prevedor dos defuntos.
Finalmente, faziam o seu commercio em Lampacau, quando em 1557 obtiveram
dos chinas o estabelecerem-se na peninsula de Macau, como premio de terem
expulsado dos seus portos um temivel pirata? É, pois, provavel que o nosso
Poeta fosse ainda tomar parte n'esse combate, que deu aos portuguezes a
posse d'aquelle estabelecimento, e a elle a do logar para que ía nomeado.

Querem a maior parte dos escriptores, que tratam da vida de Camões, que a
ida d'elle para a China fosse degredo imposto por Francisco Barreto, por
causa da critica acerba que o genio mordaz e independente do Poeta fazia ás
cousas da India, mas o erudito biographo de Camões e seu editor moderno, a
quem nos encostamos n'estes apontamentos, defende a memoria do governador,
e julga que se não deve considerar castigo a nomeação para um logar tão
rendoso.

Foi o Poeta infeliz em Macau, porque, dois annos depois de chegar, nos
primeiros mezes de 1558, veiu preso para Goa, á ordem do governador, por
accusações sobre a sua administração dos bens dos defuntos e ausentes. Quem
sabe se elle vinha pagar as culpas do seu antecessor Ayres Botelho? Foi
n'esta viagem de regresso a Goa que elle naufragou na costa de Camboja na
Cochinchina, salvando-se a nado com o seu poema, e perdendo tudo o mais que
possuia. A este naufragio allude elle quando diz que o rio Mé-kong

            receberá placido e brando
      No seu regaço o Canto, que molhado
      Vem do naufragio triste e miserando,
      Dos procellosos baixos escapado,
      Das fomes, dos perigos grandes, quando
      Será o injusto mando executado
      Naquelle, cuja lyra sonorosa
      Será mais afamada do que ditosa.
                        (Lus. X, 128.)

Chegado a Goa, onde já estava o novo vice-rei D. Constantino de Bragança,
foi o Poeta solto, tendo-se justificado das accusações por que vinha preso.
Desde então até 1567 succederam-se as suas viagens por todo o Oriente, e é
provavel que acompanhasse D. Diogo de Menezes a Malacca e d'ahi fosse
percorrer as Molucas e chegasse mesmo ao Japão.

Voltou a Goa pelo meiado de 1567, e foi agraciado pelo vice-rei D. Antão de
Noronha com a sobrevivencia no cargo de feitor de Chaúl, logar de
representação e bom ordenado. Não chegou, porém, o Poeta a tomar posse
d'elle, porque, cansado de perseguições e soffrimentos, aproveitou o
offerecimento de passagem que lhe fez Pedro Barreto, o qual ía por
capitão-mór para Moçambique, e com elle deixou Goa em 1567, fazendo assim a
sua ultima viagem no oceano Indico. Em Moçambique esteve cerca de dois
annos, e foi ahi que terminou e aperfeiçoou o seu poema, feito quasi todo
já durante o tempo em que elle esteve em Macau, já durante as suas viagens
e expedições, pois diz elle dirigindo-se ás Nymphas do Tejo e do Mondego:

      Olhae que ha tanto tempo que _cantando_
      O vosso Tejo e os vossos Lusitanos
      A fortuna me traz perigrinando,
      Novos trabalhos vendo e novos damnos,
      Agora o mar, agora exp'rimentando
      Os _perigos mavorcios_ inhumanos;
      Qual Canace, que á morte se condena,
      _N'uma mão sempre a espada e n'outra a penna._
                        (Lus. VII, 79.)

Finalmente, em 1569, arribou a Moçambique a armada que regressava ao reino,
e na qual íam os amigos do Poeta, os quaes, tendo pago as suas dividas, o
trouxeram a Portugal na nau _Santa Clara_, «nau a mais rica, diz o sr.
visconde de Juromenha, que tinha vindo de carreira da India, pois trazia a
seu bordo Luiz de Camões e Diogo do Couto.»

Fundeou a nau na bahia de Cascaes em abril de 1570, e assim terminaram as
longas perigrinações do Poeta.

Dez annos depois, a 10 de junho de 1580, morria Luiz de Camões, pobre e
desamparado, e «vereis todos, escrevia elle pouco antes de deixar o mundo,
que fui tão affeiçoado á minha patria, que não sómente me contentei de
morrer n'ella, mas de morrer com ella!»



III


Temos visto como Luiz de Camões percorreu em repetidas viagens o Oceano
Atlantico e o Indico, o mar da China e os Estreitos. Para vermos como a sua
intelligencia superior aproveitou este longo tirocinio, appropriando-se e,
por assim dizer, assimilando-se tudo quanto observára, phenomenos do mar,
costumes dos marinheiros, sciencia de navegação, etc., basta abrir o seu
immortal poema, porque ahi, sempre que elle tem de se referir ás cousas do
mar, fal-o com a maxima propriedade, com toda a verdade de descripção.

Respiguemos, pois, n'essa vasta campina de tantas flores e fructos.

A vida do marinheiro tem tormentos e prazeres desconhecidos aos homens de
terra. A lucta constante com os elementos torna-o _rudo_, epitheto que o
Poeta a miude lhe dá. A monotonia dos longos dias em que se não vê _mais
que mar e céu_ (Lus. V, 3), faz com que elle procure abreviar o tempo com
historias e contos, torna-o investigador curioso das cousas novas que vae
vendo. A saudade da patria faz-lhe alvoroçar o coração com a lembrança
d'ella, e é por isso que elle procura ser o primeiro a dar o alegre brado
de--«Terra á vista!»--brado que faz esquecer todos os trabalhos e males
passados.

Tudo isto observou Camões.

Deixa o marinheiro a patria e despede-se dos parentes e amigos, que o vão
acompanhar ao embarque, não fallando nos curiosos que não perdem o
imponente espectaculo que offerece um navio ao fazer-se de véla. Concorre
pois, muita gente,

      Uns por amigos, outros por parentes,
      Outros por ver sómente,
      Saudosos na vista e descontentes.
                        (Lus. IV, 88.)

Os que deixam a patria vão

      Para os bateis caminhando.
                        (Lus., ibidem.)

Não o fazem a olhos enxutos; as lamentações dos que os acompanham redobram
de intensidade á medida que se aproxima a hora fatal; a extrema afflicção
faz perder a esperança do regresso; lamentam-se todos,

      As mulheres c'um choro piedoso,
      Os homens com suspiros que arrancavam;
      Mães, esposas, irmãs, que o temeroso
      Amor mais desconfia, acrescentavam
      A desperação e frio medo
      De já nos não tornar a ver tão cedo
                        (Lus. IV, 89.)

É doloroso aquelle transe, mas o dever e a necessidade fazem calar a voz do
coração. Para evitar mais lagrimas esconde-se a hora exacta da partida, e
embarcam-se

      Sem o despedimento costumado.
                        (Lus. IV, 93.)

E partem, ficando-lhes,

            na amada terra
      O coração, que as maguas lá deixavam,
                        (Lus. V, 3.)

Dura ha muitos dias a viagem. O vento é de feição, o mar plano, os
horisontes claros e extensos. Navega-se de escota folgada. O commandante,

            já cansado
      De vigiar a noite,
      Breve repouso aos olhos dava.
                        (Lus. II, 60.)

Dá meia noite, rendem-se os quartos,

      Os do quarto da prima se deitavam,
      Para o segundo os outros despertavam
                        (Lus. VI, 38.)

Como é desagradavel deixar o conchego da maca ou do beliche, quando
estavamos no melhor do somno, quando talvez a imaginação nos tinha
transportado á patria _em dôces sonhos que mentiam_, para ir fazer um
quarto em cima da tolda, aguentando o aspero frio da noite! Por isso os
pobres marinheiros

      Vencidos vem do somno, e mal despertos,
      Bocejando a miude, se encostavam
      Pelas antenas, todos mal cobertos
      Contra os agudos ares que assopravam;
      Os olhos contra seu querer abertos,
      Mas esfregando, os membros estiravam.
                        (Lus. VI, 39.)

Não ha manobras a fazer, não ha cousa alguma que distráia, porque, com
tempo tão excellente, só é preciso estar álerta. Como se hão de passar
aquellas quatro horas e afugentar o somno teimoso?

      Remedios contra o somno buscar querem,
      Historias contam, casos mil referem,
                        (Lus., ibidem.)

E ahi começa o orador, o _beau-diseur_ da companhia, a contar uma historia
interessante, que entretem a todos e faz voar as horas.

Mas nem tudo são rosas durante a viagem; bem pelo contrario, os espinhos
são em numero muito superior. Aos dias de bom tempo succedem as
tempestades, que tornam o marinheiro

      Confuso de temor, da vida incerto
                        (Lus. VI, 80.)

e durante os quaes elle muitas vezes

      Chama aquelle remedio santo e forte
      Que o impossivel póde;
                        (Lus., ibidem.)


            chama
      Aquelle que a salvar o mundo veio
                        (Lus. VI, 75.)

A navegação demorada e aborrecida tem exacerbado as saudades e irritado os
animos; já se não juntam os grupos pelas amuradas a contar historias.
Escaceia a aguada, a bolacha está avariada, azedou o vinho; vae-se a meia
ração e a menos; aproxima-se o terrivel espectro das viagens prolongadas, o
escorbuto. Assim vivem por muito tempo os marinheiros _coitados e
perdidos_,

      De fomes, de tormentas quebrantados
      E do esperar comprido tão cansados,
      Quanto a desesperar já compellidos;
      Corrupto já e damnado o mantimento
      Damnoso e mau ao fraco corpo humano,
      E alem d'isso nenhum contentamento,
      Que sequer da esperança fosse engano.
                        (Lus. V, 70, 71.)

A tudo se resigna o marinheiro e vae

      Soffrendo tempestades e ondas cruas,
      Vencendo os torpes frios no regaço
      Do sul e regiões de abrigo nuas,
      Engolindo o corrupto mantimento
      Temperado c'um arduo soffrimento
                        (Lus. VI, 97.)

E peor é ainda quando chega a terrivel doença, _crua e feia_, de que já
fallámos, com a qual

      Tão disformemente ali lhe incharam
      As gengivas na bôca, que crescia
      A carne e juntamente apodrecia
            c'hum fetido e bruto
      Cheiro que o ar visinho inficionava
                        (Lus. V, 81, 82.)

Assim se passam as semanas e os mezes. Anceia o marinheiro por pôr termo a
uma navegação já aborrecida, por ter algum descanço n'aquelle lidar diario.
Suspeita-se que está proxima a terra; porfia-se em qual será o primeiro que
a veja; algum mais desejoso de ganhar as alviçaras sobe á _celsa_ gavea, e
percorrendo o mar com a vista, enxerga

      Terra alta pela prôa
                        (Lus. VI, 92.)

e logo

      «Terra, terra!» brada
                        (Lus. V, 24.)

Quem ha que fique indifferente a este brado? Os mais occupados largam tudo
por mão, os que dormem levantam-se estremunhados dos catres, e

      Salta no bordo alvoroçada a gente
      Co'os olhos no horisonte,
                        (Lus., ibidem.)

devorando com elles as fórmas ainda mal distinctas da terra, e começando

      Á maneira de nuvens
      A descobrir os montes.
                        (Lus. V, 25.)

Deu-se fundo. Acabaram os trabalhos e perigos, e quasi já esqueceram. Tudo
é curiosidade dos marinheiros em observar as pessoas que de terra vem a
bordo;

      A gente se alvoroça; e de alegria
      Não sabe mais que olhar a causa d'ella.
                        (Lus. I, 45.)

Como não podem chegar-se e interrogar esses individuos, porque elles estão
conversando com o commandante, contentam-se com espreital-os, e por isso

      Está a gente maritima
      Subida pela enxarcia.
                        (Lus. I, 62.)

Por fim a curiosidade vence o respeito, e elles vão-se chegando pouco a
pouco para ouvir as novidades;

      A gente se ajunta a ouvir.
                        (Lus. VII, 29.)

Chega depois a noite; são horas de descançar e dormir pela primeira vez com
socego. Mas o marinheiro esquece-se d'isso para, ou a sós comsigo, ou dando
largas á sua loquacidade, fazer commentarios sobre o que viu e ouviu;

      Qualquer então comsigo cuida e nota
      Na gente e na maneira desusada.
                        (Lus. I, 57.)

Não escapou a Camões a qualidade ou defeito caracteristico do marinheiro
portuguez, principalmente do algarvio, sempre fallador e gritador. Ainda
hoje, com a disciplina moderna, é facil conseguir do marinheiro que elle
faça tudo, que soffra as maiores privações, que arroste os maiores perigos;
mas é difficilimo conseguir que elle esteja calado. Ha sobretudo certas
manobras em que é quasi impossivel obter um silencio completo, e no tempo
das descobertas, diz-nos o Poeta que os marinheiros suspendiam

            as ancoras
      Com a nautica _grita costumada_,
                        (Lus. II, 18.)

e largavam

      A véla, que _com grita_ se soltava.
                        (Lus. IX, 11.)

E em outro logar ainda diz-nos que

      A _celeuma medonha_ se alevanta
      No rudo marinheiro que trabalha.
                        (Lus. II, 25.)

Mas, se é inconveniente a gritaria dos marinheiros, bem pelo contrario é
necessario que o official que commanda a manobra tenha voz sonora e
vibrante, que domine o ruido do temporal e incuta coragem nos subordinados.
Por isso nos Lusiadas, quando ruge a tempestade e é preciso que _não falte
accordo_, o mestre dá as vozes do commando _rijamente_ e _a grandes brados_
(Lus. VI, 71, 72.)

Quando o seu navio fundeou no porto, começam para o homem do mar dias mais
alegres e socegados que os passados na viagem. É então que elle se esquece
da vida que levou durante tanto tempo e vae a terra,

      Que não ha nenhum d'elles que não sáia,
                        (Lus. IX, 66.)

como gente que é

      De ver cousas estranhas desejosa
      Da terra.
                        (Lus. V, 26.)

Ahi encontra sempre divertimentos, e quando os não encontra, improvisa-os.
Outras vezes recebe elle a bordo as pessoas de terra, e faz-lhes as honras
da sua morada com a satisfação e liberalidade que o caracterisa.

As festas de bordo fazem-se sempre _com a prata da casa_, e comtudo é por
extremo agradavel a vista que offerece um navio preparado para celebrar
qualquer data memoravel, ou para festejar a visita de um personagem.
Galhardetes e bandeiras com as côres symetricamente dispostas adornam os
mastros; outros forram os toldos e formam sanefas pelas amuradas; lustres e
troféus feitos com armas e instrumentos nauticos transformam a tolda do
navio em salão de baile elegantemente adornado; os proprios pandeiros de
cabos colhidos com arte desenham no nitido convez florões e iniciaes, ou
servem de divans aos convidados. Os altos personagens são recebidos com
marchas tocadas pelas cornetas e tambores, com musicas executadas pelas
charangas, com revista da guarnição a postos de combate, com salvas de
artilheria. De noite illumina-se o mar com foguetes e tigellinhas. De tudo
isto fallou Camões.

      Começa a embandeirar-se toda a armada,
      E de toldos alegres se adornou
      Por receber com festas e alegria;
                        (Lus. I, 39.)

      Sonorosas trombetas incitavam
      Os animos alegres, resoando;
                        (Lus. II, 100.)

      Outros
      Instrumentos altinosos tangiam.
                        (Lus. II, 90.)

      Vem arnezes, e peitos reluzentes,
      Malhas finas e laminas seguras,
      Escudos de pinturas differentes,
      Pelouros e espingardas de aço puras,
      Arcos e sagittiferas aljavas,
      Partazanas agudas, chuças bravas;
      As bombas vem de fogo e juntamente
      As panellas sulphuras tão damnosas.
                        (Lus. I, 67, 68.)

      Não faltam ali os raios de artificio
      Os tremulos cometas imitando;
      Fazem os bombardeiros seu officio,
      O céu, a terra, e as ondas atroando
                        (Lus. XI, 90.)

Ás salvas de bordo _agradecem_ as fortalezas de terra, salvando tambem:

      Respondem-lhe de terra juntamente
      Co'o raio volteando com zonido;
                        (Lus. II, 91.)

e o canhão faz ouvir tanto e tão repetidas vezes a sua voz atroadora que as
festas e cumprimentos entre gente maritima são sempre

      Á maneira de peleja.
                        (Lus., ibidem.)

Veja-se agora se n'este assumpto, aliás secundario, esqueceu ao Poeta
alguma circumstancia notavel!



IV


Se dos costumes dos homens do mar passamos aos trabalhos manuaes, que
constituem a parte pratica da sua arte, vamos encontrar nos Lusiadas
descripções e allusões a quasi todas as fainas e manobras tão variadas, que
são necessarias para fazer servir essa complicada machina que se chama
_navio_.

É imponente o espectaculo que offerece a tolda de um navio em faina geral
de fazer-se de véla. Por mais numerosa que seja a guarnição, todos tem o
seu posto detalhado e todos tem que fazer. Descreve Camões essa faina da
maneira seguinte:

      Já nas naus os bons trabalhadores
      Volvem o cabrestante, e repartidos
      Pelo trabalho, uns puxam pela amarra,
      Outros quebram co'o peito a dura barra,
      Outros pendem da verga e já desatam
      A véla.
                        (Lus. IX, 10, 11.)

Está o ferro a _pique_, redobram os esforços dos marinheiros para o
suspender;

      As ancoras tenaces vão levando,
                        (Lus. II, 18.)

e ao mesmo tempo

      Da proa as vélas _sós_ ao vento dado,
                        (Lus., ibidem.)

obrigam o navio a _fazer cabeça_, e eil-o que vae em demanda da barra.

Nos versos que acabamos de citar estão compendiadas todas as manobras
necessarias para um navio se fazer de véla. Não o faria melhor o Bonnefoux
ou o Bréart!

Na descripção da tempestade do canto VI, encontram-se todas as manobras de
que se lança mão debaixo de tempo. O mestre, que presente o golpe de vento,
_apita á gente_ e manda _carregar e ferrar joanetes_,

      Os traquetes das gaveas tomar manda,
                        (Lus. VI, 70)

Mal estão carregados os joanetes, já o vento está a contas com o navio.
_Carrega a véla grande!_

      «Amaina a grande véla!»
                        (Lus. VI, 71.)

Não se carregou a maior a tempo, por isso ella se rasgou, e o navio, dando
a borda de sotavento, metteu dentro uns poucos de _mares_;

      No romper da véla a nau pendente
      Toma grão somma d'agua pelo bordo.
                        (Lus. VI, 72.)

É preciso allivial-o, quanto seja possivel, dos pesos, e esgotar a agua.
Por isso o mestre ordena:

      «Alija tudo ao mar,
      Vão outros dar á bomba, não cessando!»
                        (Lus., ibidem.)

e não se esquece de reforçar a _gente do governo_, pondo ao leme

      Tres marinheiros duros e forçosos,
                        (Lus. VI, 73.)

passando-lhe ainda para mais segurança

      Talhas d'uma e d'outra parte.
                        (Lus., ibidem.)

Chega o navio a um porto pouco conhecido. Ao _investir_ a barra depara-se
com uma pedra á flor d'agua. É necessario _safar_ d'ella e quanto antes.
Aqui é inevitavel alguma confusão; não se sabe para que lado será melhor
_guinar_, e por isso os marinheiros

      Maream vélas, ferve a gente irada
      O leme a um bordo e a outro atravessando;
      O mestre da poppa brada.
                        (Lus. II, 24.)

Com similhante contratempo é melhor não commetter a barra e _fundear em
franquia_; por isso o commandante

      Não entra pela barra, e surge fóra.
                        (Lus. I, 102.)

Mas depois de reconhecida a barra já se póde tentar a entrada; então

            já as proas se inclinavam
      Para que amainassem;
      A gente e marinheiros
      Tomam vélas; amaina-se a verga alta;
      Da ancora o mar ferido em cima salta;
                        (Lus. I, 48.)

e por fim

      Pega no fundo a ancora pesada;
                        (Lus. II, 74.)

e aqui temos nós uma descripção completa da faina de fundear.

Surto o navio no porto, nem por isso cessam as suas manobras e fainas. Uma
das mais importantes consiste na limpeza do costado do navio, que depois de
uma viagem prolongada se acha coberto de incrustações, molluscos e algas
marinhas, principalmente nas obras vivas. Quando os navios não eram
forrados de cobre, como hoje são, esta operação era indispensavel, posto
que difficultosa, sendo muitas vezes necessario _espalmal-os_, isto é,
varal-os na praia, e até _viral-os de querena_. Não se esqueceu o Poeta
d'este serviço maritimo, descrevendo-o assim:

      Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,
      Nojosa criação das aguas fundas,
      Alimpamos as naus, que dos caminhos
      Longos do mar vem sordidas e immundas.
                        (Lus. V, 79.)

É tambem um dos primeiros cuidados nos portos o renovar a aguada, e por
isso o commandante, logo que póde, determina

      De vir por agua a terra;
                        (Lus. I, 84.)

      E vão a seu prazer fazer aguada.
                        (Lus. I, 93.)

Para este serviço, bem como para todas as communicações com a terra dentro
dos portos, serve-se a gente do mar dos _bateis_ ou embarcações miudas.
Estas embarcações são quasi sempre movidas por meio de remos, cuja manobra
é diversa e variada conforme a maior ou menor pressa e outras
circumstancias. Assim, quando o commandante vae a terra fazer uma visita
official, a embarcação que o transporta vae de _voga larga e descançada_, e

      O remo _compassado_ fere frio
      Agora o mar, depois o fresco rio,
                        (Lus. VII, 43.)

mas quando, por qualquer motivo, é preciso chegar rapidamente, não se póde
perder tempo com essas elegancias de manobra; _pica-se a voga_ e _aperta-se
o remo_ (Lus. V, 32), duplicando a força de impulso e fazendo saltar o
escaler por cima das ondas.

Não esqueceram ao Poeta os combates navaes, em que o marinheiro se torna
soldado com duplicado valor, pois tem de combater ao mesmo tempo os
tormentos e o inimigo. Ora é um desembarque:

      Apercebido vae
      Em tres bateis.
                        (Lus. I, 85.)

      Eis nos bateis o fogo se levanta
      Na furiosa e dura artilharia;
      A gente
      A povoação
      Esbombardea, accende e desbarata.
                        (Lus. I, 89, 90.)

Ora é um combate entre as embarcações miudas dos dois contendores:

      Huns vão nas almadias carregadas;
      Hum corta o mar a nado diligente;
      Quem se afoga nas ondas encurvadas;
      Quem bebe o mar, e o deita juntamente.
      Arrombam as miudas bombardadas
      Os pangaios subtís.
                        (Lus. I, 91)

Ora é finalmente uma verdadeira batalha naval entre duas armadas, quando

            em sangue e resistencia
      O mar todo com fogo e ferro ferve.
                        (Lus. X, 29.)

Primeiro combatem de longe com a artilharia; segue-se depois a abordagem; e
o combate decide-se por ultimo á arma branca. Assim o vencedor

      Das grandes naus,
            co'a ferrea pella
      Que sahe com trovão do cobre ardente,
      Fará pedaços leme, mastro, vela;
      Depois, lançando arpéos ousadamente
      Na capitaina inimiga, dentro nella
      Saltando, a fará só com lança e espada
      De quatro centos despejada.
                        (Lus. X, 28.)



V


Mostrámos até aqui como Camões conhecia e comprehendia os homens do mar,
não lhe escapando nem uma das mais pequenas circumstancias, que tornam o
seu modo de viver e pensar tão caracterisco e differente do dos homens da
terra. Mostrámos tambem com que propriedade e conhecimento elle introduziu
no seu poema a descripção ou antes a viva pintura das manobras e fainas que
constituem o officio do marinheiro. Vamos agora tentar mostrar como o Poeta
comprehendeu o theatro em que se passam as scenas tão variadas da vida do
homem do mar.

O mar, esse elemento imponente e magestoso, que enche de espanto o homem
que, pela primeira vez, o encara, parecendo á primeira vista tão uniforme e
tão igual, apresenta mil aspectos diversos, que são outras tantas
manifestações das forças creadoras que abriga em seu seio. D'essas, a mais
grandiosa, aquella que irresistivelmente se impõe e subjuga a alma mais
destemida, é a tempestade. Nem o volcão vomitando fogo e lavas; nem a
trovoada fusilando raios, atroando com o ribombar do trovão e inundando com
as catadupas de agua; nem o terramoto abalando os edificios e fazendo
ondular os montes; nem o kahmsin do deserto enterrando as caravanas com as
suas nuvens de areia, nada póde rivalisar com uma tempestade maritima. Esta
reune tudo o que os outros cataclysmos tem de bello e horroroso, e é ainda
mais sublime e medonha. E são tão variados os espectaculos offerecidos pela
natureza, que ainda nas tempestades maritimas ha differenças e
especialidades que as distinguem entre si. Assim o temporal dos Açores não
se parece com a tempestade do Cabo, como o cyclone do Oceano Indico differe
do tufão do mar da China. São diversas as causas que as originam, diversas
as circumstancias meteorologicas com que se manifestam, diversos, se é
possivel, os horrores que inspiram.

E, comtudo, Camões apanhou essas differenças, conheceu essas circumstancias
especiaes. Duas são as principaes descripções de tempestades maritimas que
elle nos offerece no seu poema. A primeira é de um temporal no Cabo da Boa
Esperança, e constitue o episodio do Adamastor, que não transcreveremos por
o julgarmos conhecido de todos. A tempestade começa por uma nuvem _temerosa
e carregada_

            que os ares escurece;
                        (Lus. V, 37.)

e effectivamente uma das circumstancias peculiares das tormentas do Cabo é
escurecer-se completamente a athmosphera. É tambem notavel a altura que
attingem as ondas n'essas occasiões, pois nenhum navegador as viu em parte
alguma maiores ou iguaes. Camões notou esta circumstancia na elegia III,
onde, descrevendo a sua viagem para a India, diz que

            chegando ao Cabo da Esperança
      Eis a noute com nuvens se escurece,
      Do ar _subitamente_ foge o dia
      E todo o largo Oceano se embravece;
      Em _serras_ todo o mar se convertia.

Voltando aos _Lusiadas_ observaremos que todo o horror do Cabo da Boa
Esperança está n'aquella prophecia do Gigante:

            Quantas naus esta viagem
      Fizerem de atrevidas,
      Inimiga terão esta paragem
      Com ventos e tormentas desmedidas.
                        (Lus. V, 43.)

E é assim. Não ha paragem alguma do globo onde as tempestades sejam mais
frequentes, podendo-se dizer que no Cabo é estado normal o mau tempo, sendo
excepção a bonança. A tempestade

            c'um medonho choro
      Subito d'ante os olhos se apartou,
      Desfez-se a nuvem negra e c'um sonoro
      Bramido muito longe o mar soou.
                        (Lus. V, 60.)

Aqui se observa como um pesado aguaceiro vem abater as ondas encapelladas,
ouvindo-se comtudo por muito tempo o surdo rumor que ellas produzem como
féras, mau grado seu, subjugadas pelo chicote do domador.

Mais desenvolvida é a descripção da tempestade no Indico. N'esse mar é
conhecida a parte que fica entre a cabeça de Madagascar e as Seychelles
pelos frequentes cyclones e golpes de vento que a açoutam e tornam perigosa
a navegação. E, pois, ahi

      Já nos mares da India,
                        (Lus. VI, 6.)

que o Poeta colloca o temporal, o qual começa, como é sabido, por uma
pequena nuvem que desponta no horisonte, e dentro em pouco, tocada pelo
vento com vertiginosa velocidade, occupa toda a athmosphera. A
impetuosidade e o repente do assalto não dão tempo a manobras; muitas vezes
é necessario _picar os mastros_, se o cyclone se não encarrega d'isso. O
mar cava-se em ondas desencontradas e altissimas, e os relampagos e
coriscos vem augmentar o terror. Eis estas scenas successivas da terrivel
tragedia pintadas pelo mestre:

            O vento cresce
      D'aquella nuvem negra que apparece.
      Dá a grande e subita procella.
      Não esperam os ventos indignados
      Que amainassem (a véla grande), mas juntos dando n'ella,
      Em pedaços a fazem.
      No romper da véla a nau pendente
      Toma grão somma d'agua pelo bordo.
      Os balanços, que os mares temerosos
      Deram á nau, n'um bordo os derribaram (os marinheiros.)
      Nos altissimos mares, que cresceram,
      A pequena grandura d'um batel
      Mostra a possante nau.
      A nau grande
      Quebrado leva o mastro pelo meio,
      Quasi toda alagada.
      Agora sobre as nuvens os subiam
      As ondas,
      Agora a ver parece que desciam
      As intimas entranhas do profundo.
                        (Lus. VI, 70 a 76.)


      Os ventos que lutavam,
      Como touros indomitos bramando;
      Mais e mais a tormenta accrescentavam,
      Pela miuda enxarcia assoviando;
      Relampagos medonhos não cessavam,
      Feros trovões.
                        (Lus. VI, 84.)

Mas não são apenas os traços geraes da descripção que reproduzem a exacta
verdade. Até nas mais pequenas minudencias se mostra rigorosa exactidão. Os
ventos são

      Noto, Austro, Boreas, Aquilo,
                        (Lus. VI, 76.)

recordando assim a direcção successivamente differente do vento,
percorrendo todos os quadrantes, como se nota nas tempestades de rotação.
Os golphinhos ou toninhas, esses graciosos companheiros do navegador
durante a bonança, desapparecem d'aquelle theatro de desolação, e são
substituidos pelos maçaricos, as _almas do mestre_, como lhes chama a
poetica imaginação dos marinheiros, que vem augmentar com os seus pios
lamentosos a tristeza do espectaculo:

      As Halcyoneas aves o triste canto
            levantaram,
      Os delfins namorados entretanto
      Lá nas covas maritimas entraram,
      Fugindo á tempestade e ventos duros,
      Que nem no fundo os deixa estar seguros.
                        (Lus. VI, 77.)

Isto é perfeito, isto é enexcedivel. E comtudo ha mais ainda; ha a
descripção de outro phenomeno do mar, que, posta em prosa, occuparia o
logar de honra no melhor tratado de meteorologia. É a das trombas marinhas.
N'este phenomeno em que _as nuvens do mar sorvem as aguas do Oceano_,
começa a levantar-se

      No ar um vaporsinho e subtil fumo,
      E do vento trazido, rodear-se;
      D'aqui levado um cano ao polo summo
      Se via, tão delgado que enxergar-se
      Dos olhos facilmente não podia;
      Da materia das nuvens parecia.
      Hia-se pouco a pouco accrescentando
      E mais que um largo mastro se engrossava;
      Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
      Os golpes grandes de agua em si chupava;
      Estava-se co'as ondas ondeando;
      Em cima d'elle uma nuvem se espessava,
      Fazendo-se maior, mais carregada,
      Co'o cargo grande d'agua em si tomada,
      Qual roxa sanguesuga
            se enche e a alarga grandemente,
      Tal a grande columna, enchendo, augmenta,
      A si e a nuvem negra que sustenta.
      Mas, depois que de todo se fartou,
      O pé que tem no mar a si recolhe,
      E pelo céu chovendo em fim vôou;
      Ás ondas torna as ondas que tomou,
      Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
                        (Lus. V, 19 a 22.)

Quem escreveu isto? Foi Bravais? Foi Fitz-Roy? Não; foi Luiz de Camões.

Camões tudo vê, de tudo falla. Ao fogo santelmo chama

            lume vivo,
      Que a maritima gente tem por santa,
      Em tempo de tormenta e vento esquivo,
      De tempestade escura,
                        (Lus. V, 18.)

Tambem falla nas correntes maritimas, cujas leis eram pouco conhecidas dos
primeiros navegadores, causando-lhes muitos embaraços. Ainda hoje no canal
de Moçambique se não póde contar com a corrente, ou antes deve-se esperar
que ella seja sempre contraria, porque, _como no mar tudo são mudanças_,
tão depressa correm as aguas ao norte como no dia seguinte correm ao sul, e
com tal velocidade que vencem muitas vezes a força do vento regular. É,
pois, a corrente, como descreve o Poeta

            tão possante
      Que passar não deixava por diante;
      Era maior a força em demasia,
      Segundo para traz nos obrigava,
      Do mar, que contra nós ali corria,
      Que por nós a do vento que assoprava.
                        (Lus. V, 66, 67.)

Superior á meteorologia é a sciencia astronomica, de todas a mais
necessaria ao homem do mar. É ella que lhe ensina a conhecer onde está, a
que parte do vasto Oceano o levaram os ventos e correntes; é ella que lhe
mostra o caminho a seguir no meio da vasta solidão. Estava esta sciencia
bastante atrasada no tempo do Poeta, pois que reinava ainda o errado
systema de Ptolomeu. Mas este systema é por elle descripto tão exactamente,
que um abalisado professor contemporaneo, ao ter de explical-o nas suas
lições de cosmographia, nunca deixava de citar a descripção de Camões.
Ptolomeu, fazendo da terra centro immovel de todo o universo, collocava a
lua, o sol, os planetas e as estrellas em outras tantas espheras
concentricas a ella, e que, sobre um eixo que passava pelos seus polos,
giravam com velocidades diversas. Todas estas espheras eram envolvidas por
uma ultima, o Empyreo, alem do qual estava o Ser Infinito, pois

      Quem cerca em derredor este rotundo
      Globo e sua superficie tão limada,
      He Deus.
                        (Lus. X, 80.)

Começando, pois, a enumerar as superficies concentricas, cujo conjuncto
fórma o systema, diz Camões:

      Este orbe, que primeiro vae cercando
      Os outros mais pequenos, que em si tem,
      Que está com luz tão clara radiando,
      Que a vista cega e a mente vil tambem,
      Empyreo se nomea.
                        (Lus. X, 81.)

Segue-se o primeiro mobil:

      Debaixo d'este circulo,
            que não anda,
      Outro corre tão leve e tão ligeiro
      Que não se enxerga: he o mobile primeiro.
                        (Lus. X, 85.)

Vem depois os dois crystalinos e logo o céu das fixas, entre as quaes o
Poeta não se esqueceu de nomear as doze constellações zodiacaes bem como as
outras mais notaveis do firmamento:

            Est'outro debaixo esmaltado
      De corpos lisos anda e radiantes,
      Que tambem n'elle tem curso ordenado
      E nos seus axes correm scintillantes;
            se veste e faz ornado
      Co'o largo cinto d'ouro, que estellantes
      Animaes doze traz affigurados,
      Aposentos de Phebo limitados.
            Por outras partes a pintura
      as estrellas fulgentes vão fazendo:
      A Carreta, a Cynosura,
      Andromeda e seu pae, e o Drago,
      Cassiopea, Orionte, o Cysne,
      A Lebre, os Cães, a Nau e a Lyra.
                        (Lus. X, 87, 88.)

Seguem-se por sua ordem os céus dos sete planetas então conhecidos,
contando n'esse numero o Sol:

      Debaixo d'este grande firmamento
            o céo de Saturno;
      Jupiter faz logo o movimento,
      E Marte abaixo;
      O claro olho do céo no quarto assento;
      E Venus;
      Mercurio;
      Com tres rostos debaixo vae Diana.
                        (Lus. X, 89.)

Em seguida á Lua vem finalmente os quatro elementos:

            o _fogo_ e o _ar_, o vento e a neve
      Os quaes jazem mais a dentro,
      E tem co'o _mar_ a _terra_ por assento.
                        (Lus. X, 90.)

Alem d'esta descripção, que é completa, ha por todo o poema allusões ao
firmamento e aos seus brilhantes luzeiros, espectaculo maravilhoso e divino
em que se enlevam os olhos do marinheiro durante as longas horas da noite.
Citaremos apenas a allusão ao Cruzeiro do Sul:

      Lá no novo hemispherio nova estrella,
      Não vista de outra gente, que ignorante
      Alguns tempos esteve incerta d'ella;
                        (Lus. V, 14.)

á qual se segue logo a allusão áquella parte do firmamento perto do polo
sul, onde as estrellas são mais raras, e que os astronomos modernos chamam
o _Sacco de carvão_:

            a parte menos rutilante,
      E por falta d'estrellas menos bella,
      Do polo fixo.
                        (Lus., ibidem.)

Para acabarmos com a astronomia de Camões diremos ainda que nem sequer se
esqueceu elle de fallar da _nautica_, parte pratica ou applicação d'aquella
sciencia á navegação, a qual mais directamente ensina o marinheiro a _ver
em que parte está_ (Lus. V, 26), isto é, a _pôr o ponto na carta_, pois que
nos falla do

            novo instrumento do Astrolabio
      Invenção de subtil juizo e sabio;
                        (Lus. V, 25.)

que servia, como hoje o sextante, para

            tomar do Sol a altura.
                        (Lus. V, 26.)



VI


Está já cançada a penna de fazer transcripções, é tempo de pôr termo a este
trabalho, e ainda não temos percorrido toda a escala de variadissimos tons
com que Luiz de Camões teceu a sua harmoniosissima composição sobre as
cousas do mar. Fallaremos ainda, antes de terminar, da Geographia, sciencia
que o Poeta possuiu em subido grau, e que, como a astronomia e a
meteorologia, é tambem essencialmente necessaria ao marinheiro.

Os _Lusiadas_ são por si só um completo tratado da sciencia da terra. Não
ha ponto conhecido no mundo do seculo XVI de que o Poeta não falle,
assignando a cada um a sua feição geographica caracteristica, a sua
especialidade ethnographica. Mas as suas descripções tem ainda a
particularidade de serem essencialmente maritimas. Effectivamente ao
marinheiro o que mais importa saber, depois da posição dos logares, é a
fórma com que elles se apresentam vistos do mar, fórma que o marinheiro
precisa de gravar na memoria para poder distinguir uns dos outros montes,
cabos, praias ou enseadas aliás muito similhantes. Para isto serve-se
muitas vezes o navegador da comparação com objectos conhecidos, e foi de
certo elle quem inventou os nomes de Sombreiro, Barrete de S. Fillippe,
Bonet de Jockey, Nariz de Nelson, e tantos outros, para designar e reter na
memoria a fórma de certas saliencias da superficie da terra banhadas pelo
mar. Ora, nas descripções geographicas de Camões, nota-se que elle procura
muitas vezes dar o relevo da costa, e que quasi sempre refere a ella a
descripção dos outros logares notaveis do interior, por modo que as suas
descripções são preciosissimas para um roteiro e ensinam muitas
_conhecenças_ do _debuxo da costa_ (Lus. X, 120), conhecimento altamente
necessario ao navegador. Não se esquece tambem o Poeta de notar qualquer
circumstancia, cujo conhecimento seja util ao navegante, como os productos
da terra, a maior ou menor facilidade de se acharem mantimentos, a
qualidade dos portos, etc.

Não sendo possivel transcrever todos os logares dos _Lusiadas_ que tratam
de geographia, porque seria preciso copiar dezenas e dezenas de estancias,
citaremos apenas alguns poucos exemplos, e seja o primeiro a descripção da
Europa:

      Entre a zona que o Cancro senhorea,
      Meta septentrional do Sol luzente,
      E aquella que por fria se arrecea
      Tanto, como a do meio por ardente,
      Jaz a soberba Europa, a quem rodea,
      Pela parte do Arcturo e do Occidente,
      Com suas salsas ondas o Oceano,
      E pela Austral o mar Mediterrano.
      Da parte donde o dia vem nascendo
      Com Azia se avisinha; mas o rio,
      Que dos montes Rhipheios vae correndo
      Na alagoa Meotis, curvo e frio,
      As divide, e o mar, que fero e horrendo
      Viu dos Gregos o irado senhorio,
      Onde agora de Troia triumphante
      Não vê mais que a memoria o navegante.
      Lá onde mais debaixo está do polo,
      Os montes Hyperboreos apparecem,
      E aquelles onde sempre sopra Eolo,
      E co'o nome dos ventos se enobrecem;
      Aqui tão pouca força tem de Apollo
      Os raios, que no mundo resplandecem,
      Que a neve está continuo pelos montes,
      Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
                        (Lus. III, 6, 7 e 8.)

A esta descripção geral da Europa segue-se a especial dos seus paizes. Como
não as podemos descrever todas, lembraremos a da Italia:

      Da terra um braço vem ao mar, que cheio
      De esforço, nações varias sujeitou,
      Braço forte de gente sublimada
      Não menos nos engenhos que na espada;
                        (Lus. III, 14.)

a de Hespanha:

      Eis aqui a nobre Hespanha,
      Como cabeça da Europa toda;
      Com Tingintina entesta, e ali parece
      Que quer fechar o mar Mediterrano,
      Onde o sabido Estreito se enobrece
      Co'o extremo trabalho do Thebano;
      Com nações differentes se engrandece
      Cercadas com as ondas do Oceano;
                        (Lus. III, 17, 18.)

e a de Portugal:

      Eis aqui, quasi cume da cabeça
      Da Europa toda, o reino Lusitano,
      Onde a terra acaba e o mar começa
      E onde Phebo repousa no Oceano.
                        (Lus. III, 20.)

Veja-se como em duas palavras se demonstra a importancia do porto de
Moçambique:

      Esta ilha pequena
      He em toda esta terra certa escala
      De todos os que as ondas navegamos
      De Quiloa, de Mombaça e de Sofala;
      E por ser necessaria procuramos,
      Como proprios da terra, de habital-a;
                        (Lus. I, 54.)

e como com outras duas se descreve a ilha de Mombaça:

      Estava a ilha á terra tão chegada
      Que um estreito pequeno a dividia;
      Uma cidade n'ella situada,
      Que na frente do mar apparecia,
      Como _por fora ao longe_ descobria,
      Regida por um Rei de antiga idade;
      Mombaça é o nome da ilha e da cidade.
                        (Lus. I, 103.)

A grande peninsula indostanica, esse theatro de tantas glorias nossas, é
pintada assim:

      Alem do Indo jaz, e aquem do Gange,
      Um terreno mui grande e assaz famoso,
      Que pela parte austral o mar abrange
      E para o Norte o Emodio cavernoso;
      Jugo de Reis diversos o constrange
      A varias leis; alguns o vicioso
      Mafoma, alguns os idolos adoram,
      Alguns os animaes, que entre elles moram.
      Lá bem no grande monte, que, cortando
      Tão longa terra, toda Azia discorre,
      Que nomes tão diversos vae tomando,
      Segundo as regiões por onde corre,
      As fontes sahem, donde vem manando
      Os rios, cuja grão corrente morre
      No mar Indico, e cercam todo o peso
      Do terreno, fazendo-o Chersoneso.
      Entre um e outro rio, em grande espaço,
      Sae da larga terra uma longa ponta,
      Quasi pyramidal, que no regaço
      Do mar com Ceilão insula defronta.
                        (Lus. VII, 17, 18 e 19.)

Nomea depois o Poeta as principaes nações indianas, e não lhe escapa
lembrar a serra dos Gates, que é uma boa _marca_ por ser visivel de muitas
leguas ao mar:

      Aqui se enxerga, _lá do mar undoso_,
      Um monte alto, que corre longamente,
      Servindo ao Malabar de forte muro
      Com que do Canará vive seguro;
      Da terrra os naturaes lhe chamam Gate.
                        (Lus. VII, 21, 22.)

E ao passar pelos seus portos não se esquece de notar o phenomeno a que os
modernos geographos francezes dão o nome de _raz-de-marée_, que em alguns
d'elles se observa, principalmente em Madrasta:

      Do mar a enchente _subita grandissima_,
      E a vasante que foge _apressurada_.
                        (Lus. X, 106.)

Fallando de Aden, lembra o Poeta a circumstancia bem conhecida de nunca lá
chover:

            a secca Adem,
            pedra viva,
      Onde chuva dos céus se não deriva.
                        (Lus. X, 99.)

E estas duas palavras--_pedra viva_--são por si só uma completa descripção
d'aquelle arido rochedo, onde já correu muito sangue portuguez.

A Ieddah attribue Camões toda a importancia que esse porto tem por ser a
unica communicação para os peregrinos que, por mar, vão a Mecca:

      Lá no seio Erythreo
      Não longe o porto jaz da nomeada
      Cidade Meca;
      Gidá se chama o porto aonde o trato
      De todo o Roxo mar mais florecia.
                        (Lus. IX, 2, 3.)

Mas a descripção verdadeiramente magnifica, arrebatadora, é a que abrange
todas as descobertas e conquistas na Africa, Asia, Oceania e America.
Aquellas cincoenta estancias do canto X (91 a 141) com as que no canto V
contem a _derrota_ de Vasco da Gama desde Lisboa até Melinde, são um
compendio de geographia das descobertas até ao seculo XVI. Ao lel-as
parece-nos que se repete para nós a magica visão que Tethys offerecia na
ilha dos Amores aos olhos surpresos do afortunado descobridor da India;
parece-nos que vemos desenrolar-se a nossos olhos o mappa immenso de tantas
ilhas, portos, montanhas, rios e promontorios; parece-nos que se agitam
diante do nós tantos centenares de povos e nações, com os seus usos tão
oppostos, com os seus trajos ora tão singelos ora tão complicados e
custosos, com a riqueza de suas minas ou de suas industrias, com a sua
historia tão cheia de contrastes. E um espectaculo deslumbrante, unico, que
obriga o mais fervente admirador dos genios modernos a render-se á
superioridade evidente de Camões; porque Camões, e só elle, poude, sem ser
monotono nem faltar á mais escrupulosa verdade, fazer de uma longa
enumeração de terras e mares uma formosissima galeria das mais variadas
paisagens e marinhas; porque só elle soube ser successivamente Claude
Lorrain e Vernet, ficando ainda superior a estes e a todos os pintores,
ficando sempre o grande, o incomparavel, o divino marinheiro LUIZ DE
CAMÕES!



VII


      No mais, musa, no mais, que a lyra tenho
      Destemperada e a voz enrouquecida,
      E não do canto, mas de ver que venho
      Cantar a gente surda e endurecida.
                        (Lus. X, 145.)

Perdoe-se ao pigmeu a ousadia de applicar a si as palavras do gigante. Mas,
na verdade, para que serve continuar? Se houvessemos de citar todos os
logares em que Luiz de Camões se mostrou eximio pintor da natureza, e
principalmente da natureza maritima, teriamos de copiar quasi todo o seu
poema. Cremos, porém, que o que fica transcripto é sufficiente para
demonstrar a nossa asserção, de que o Poeta foi um marinheiro tocado da
divina scentelha da inspiração, que lhe fez ver os grandiosos espectaculos
da natureza taes como elles se manifestam.

E, comtudo, de que serve esta demonstração? Que póde ella fazer em prol do
melhoramento do actual gosto litterario?

Nada.

Acontece com a historia das litteraturas como com a das nacionalidades.
Quando o espirito de uma nação está decaído, quando faltam os nobres
impulsos que a impelliram no seu progresso ascendente, quando está morto o
patriotismo que centuplica as forças do individuo, quando o egoismo tórpe
substituiu a abnegação e o amor da patria, é então que se recordam os
tempos de gloria e se levantam monumentos aos heroes que já não é possivel
imitar; são os vãos lamentos dos filhos de Israel captivos em Babylonia,
suspirando pela liberdade de Sião, que tão mal souberam defender.

E assim com as litteraturas. Quando passaram, para nunca mais voltar, os
seus tempos de explendorosa florescencia, vem os commentadores estudar as
obras primas, mas não apparece um só que os imite. Onde estão hoje as
pennas que escreveram os _Lusiadas_ e as _Decadas_? E, deixando esses
monumentos, que são como que as estrellas de primeira grandeza de um
firmamento de eterno brilho, onde estão os successores de Diniz, de Bocage,
de Garção, de Alexandre Herculano, de Rebello da Silva, de José Estevão, de
Garrett, de Castilho? Transformaram-se os lagos cristalinos em charcos
nauseabundos, as campinas viridentes em aridos pragaes; calaram-se os
trinados dos rouxinoes, só se ouve o coaxar das rãs; e a consciencia
publica, festejando o tri-centenario da morte de Luiz de Camões, manifesta
em doloroso grito o arrependimento que sente por se ter deixado resvalar no
plano inclinado do mau gosto, e marca na historia da litteratura portugueza
o periodo da ultima decadencia.


FIM





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