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Title: A penalidade na India segundo o Código de Manu Author: Figueiredo, António Cândido de, 1846-1925 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A penalidade na India segundo o Código de Manu" *** images generously made available by the Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica) at http://gallica.bnf.fr) *A PENALIDADE NA INDIA SEGUNDO O CÓDIGO DE MANU* * * * * * Sociedade de Geographia de Lisboa A PENALIDADE NA INDIA SEGUNDO O CÓDIGO DE MANU Memoria apresentada á 10.ª sessão do congresso internacional dos orientalistas por CANDIDO DE FIGUEIREDO S. S. G. L. LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1892 * * * * * *A PENALIDADE NA INDIA SEGUNDO O CÓDIGO DE MANU* *I* Historiar a penalidade indiana sería tão vantajoso como diffícil. Vantajoso, porque, de todos os historiadôres do direito penal, nenhum, de que saibamos, se occupou seriamente da penalidade entre os povos hindus: uns guardam sôbre ella absoluto silencio; outros, contra todas as leis ethnográficas e filológicas, agrupam, de relance, os indios com os chinas e japonêses, e segregam-n'os injustamente da legislação comparada; e outros ainda, os que viveram antes dêste século, não podiam occupar-se largamente da antiguidade indiana, porque ainda não estavam explorados os riquissimos filões, de onde os mineiros da sciencia extraíram os assombrosos monumentos da velha literatura indiana. E sería diffícil, dissemos, historiar a penalidade na India, pela escassez de commentadôres e guias em tão árido caminho. Abeirando-nos apenas do importantissimo assunto, que daria volumes, o que procuraremos sinthetizar em poucas páginas, aventurâmo-nos, sem mestres nem guias, a devassar a enredada legislação de Manu, procurando e separando o que é puro direito penal, d'aquillo que é religioso, civil ou político, visto que a regulamentação das várias esferas da actividade humana se acha ali amalgamada, como succede nos códigos primitivos de todas as sociedades. *II* O código de Manu é, para muitos orientalistas, o mais antigo monumento legislativo que se conhece na história da humanidade. Ponderando que este código reflecte toda a simplicidade antiga dos dogmas religiosos; que ali ainda se fala de um Deus único, _Brahmá_, e não se faz referencia a _Vichnu_ nem a _Sívá_, que com _Brahmá_ constituem a trindade indiana, a _Trimurti_; ponderando que no código não se fez menção das incarnações de Vichnu, e que das personagens históricas, ali alludidas, nenhuma é posteriôr ao século X antes da nossa era; e ponderando, ainda, que o legisladôr desconhecia a grande revolução religiosa de Budhá, revolução que, como se sabe, precedeu déz séculos a era christan, concluem os modernos intérpretes do código que elle já vigorava na India no século XIII antes de Christo. O código de Manu (_Manava-Dharma-Sastra_, no original sanscrito), abrange dôze livros; e as disposições penais deparam-se-nos especialmente no VIII, IX e ainda no XI, se bem que este se occupe sobretudo de penitencias e expiações religiosas. *III* Quem não é de todo estranho á sciencia do direito penal, sabe que a penalidade póde encarar-se, pelo menos, por quatro faces: incriminações, penas, competencia e processo. Sôbre incriminações e penas, podemos colhêr no código de Manu disposições abundantes e claras; mas, sobre competencia e processo, o código é excessivamente resumido, ou, antes, excessivamente vago. Na organização judicial indiana, o rei é o principal julgadôr, e até executôr em alguns casos, se attendermos unicamente á letra da lei. Lê-se no código de Manu: «Depois de tomar em toda a consideração o logar e o tempo, os meios de punir e os preceitos da lei, é que _o rei inflige a punição_ com justiça áquelles que se entregam á iniquidade[1].» [1] Livro VII, çloka 16. E mais adiante: «O ladrão, quer elle morra logo com os tratos que _o rei lhe dê_, quer, tendo sido deixado por morto, haja escapado, fica lavado do crime; mas, se _o rei_ não castiga, o crime do ladrão recái sôbre elle[2].» [2] VIII, 316. Talvez dêstes textos se possa deduzir que o rei, além de juíz, tinha attribuições de executôr da justiça. Não achâmos todavia no código logares parallelos, que nos confirmem o conceito. O que sabemos é que o rei occupava o primeiro logar na jerarquia judicial. Acompanhado de bráhmanes e de seus conselheiros, e trajando modestamente, apparecia no tribunal; e, sentado ou de pé, com a mão direita levantada[3], examinava os negócios judiciários; consultava as leis e o direito consuetudinário da nação, das classes e das familias[4], e decidia as causas que o código agrupa sob dezoito titulos: [3] VIII, 1 e 2. [4] VIII, 3. Causas sobre dívidas; Depósitos; Venda de objecto alheio; Emprêsas de associações commerciais; Subtracção de coisa dada; Pagamento de salários; Execução de contratos; Annullações de compra e venda; Questões entre amo e criado; Extremas de propriedades; Maus tratos e insultos; Roubos; Salteadôres e violencias; Adultérios; Devêres entre marido e mulher; Partilhas de heranças; Jogo e combates dó animais[5]. [5] VIII, 4 e 7. «As contestações dos homens,--são expressões do código,--referêm-se em geral a estes artigos[6]». [6] VIII, 8. * * * * * Embora o rei fôsse o principal julgadôr, vemos consignados no código os tribunais collectivos, embora a civilizações menos antigas se haja attribuído esta importantissima instituição. Com effeito, abrindo o código, no livro VIII, çloka 9 a 11, vemos que o rei, quando não póde por si examinar as causas judiciárias, encarrega um bráhmane instruído de desempenhar essas funcções. Este bráhmane entra no tribunal, acompanhado de três accessôres, e examina as causas sujeitas á decisão do rei. A autoridade, que se liga a esta assembleia do juízes, é enorme, porque é divina; e o código consagra-lhe expressões tais, que, ao lê-las a primeira vez, naturalmente nos occorrem aquellas palavras amoráveis do nosso Christo: _Ubi sunt duo vel tres congregati in nomine meo, ibi sum in medio eorum._ O código de Manu tinha dito, muitos séculos antes de Christo: «Onde quer que estejam três bráhmanes, versados nos _Vedas_, e presididos por um bráhmane sapientissimo escolhido pelo rei, esta assembleia é chamada pelos sábios o tribunal de Brahmá quatrifronte[7].» [7] VIII, 11. O rei póde escolhêr juízes entre a classe dos bráhmanes, e até entre as dos kchatriás e a do vaysiás, mas nunca entre os _çudras_. Se bem que estas palavras _çudras_, _vaysiás_, _kchatriás_, _bráhmanes_, não encerrem mistérios para quem tenha alguma notícia do sistema das castas indianas, afigura-se-nos que não virá fóra de ponto uma ligeira explanação do assunto, visto como os vicios capitais da penalidade indiana estão subordinados ao sistema das castas. *IV* Como é sabido, a velha civilização indiana tinha por bases o sistema das castas e o dogma da transmigração das almas. Pondo de lado este dogma, que é hoje alheio ao nosso intúito, não omittiremos uma explanação summária do sistema das castas. O livro I do código refere que _Brahmá_, o deus supremo, o primeiro de todos os sêres, para povoar a terra produziu da sua bôca o _bráhmane_, do seu braço o _kchatriá_, da sua côxa o _vaysiá_ e de seus pés o _çudra_. Os _çudras_ constituem a última classe, a servil; os _vaysiás_ a terceira, a dos artistas e agricultores; os _kchatriás_ a segunda, a dos militares e dos reis; e os _bráhmanes_ a primeira, a sacerdotal. Comquanto dos _kchatriás_ sáiam os reis, o govêrno do país pertence de facto á casta sacerdotal, e a preponderancia brahmânica faz-se resentir em todos os monumentos que nos restam da civilização indiana, e até nos monumentos da antiguidade teocrática europeia. Um dos resultados da organização sacerdotal do govêrno indiano, organização trazida para a Europa pelos celtas-arianos, e reproduzida pelo druidismo, é que os monumentos mais assombrosos da India antiga e da Europa medieval são os templos, os conventos o os cemitérios[8]. [8] Ch. Steur, _Ethnogr._ vol. II, pag. 300. A desigualdade perante a lei, na criminalidade indiana, está, como vamos vêr, subordinada aos privilégios das castas e ás linhas que as separam. Mas, antes de falar de incriminações e penas, assuntos em que mais resalta aquelle vicio, cumpre falar das _provas_ judiciais admittidas pelo código de Manu, e, em geral, da ordem do processo. *V* A acção não se intentava sem que os parentes das partes litigantes procurassem conciliá-las; costume seguido também pelos celtas e germanos, e até por outros povos europeus até ao século passado[9]. [9] Steur, cit., pag. 303. Se os parentes não podiam conciliair as partes, recorria-se para uma assembleia, formada de homens da mesma casta; da decisão dêstes podia apellar-se para os habitantes de toda a communa; dêstes apellava-se para os _juízes reais_, e dêstes emfim para a decisão do rei numa assembleia composta de bráhmanes. * * * * * A _prova_ principal no processo indiano é o depoimento das testemunhas, que nunca podem sêr menos de três[10]. [10] Cod. de Manu, VIII, 60. Para testemunhas, hão de escolhêr-se pessoas dignas e desambiciosas, e não as pessoas interesseiras, nem os amigos, nem os inimigos, nem os fraudulentos, nem os inválidos, nem os criminosos[11]. [11] VIII, 63 e 64. O theólogo hábil, o estudante, o o asceta, não devem chamar-se para testemunhas, porque são despendidos de relações mundanas. O proprio rei, um artista de baixa categoria, como um cozinheiro, o velho, a criança, um homem só, o ébrio, o dôido, o esfomeado e o sedento, o apaixonado, o colérico, o ladrão, não podem sêr chamados a depôr em cáusas judiciárias[12]. [12] VIII, 65-67. Mulheres só podem depôr a favôr de mulheres. E, diga-se de passagem, não deveremos estranhar muito esta disposição da lei indiana, visto como em pleno século XIX, o código civil português não permitte que as mulheres sejam testemunhas em testamentos[13]. [13] _Cod. civ. port._, art. 1966, n.º 2. Os _çudras_ podem depôr a favôr dos _çudras_; mas, quando se trata do um facto succedido em logar occulto, como num bosque, ou quando se trata de um assassínio, póde depôr quem quer que presenceie o facto. Nêstes casos, á míngua de melhores testemunhas, póde acceitar-se até o depoimento de uma mulher, de uma criança, de um velho, de um discipulo, de um parente, de um escravo ou de um serviçal[14]. [14] VIII, 68-70. Quando as testemunhas estão reunidas na sala da audiencia, em presença do demandante e do defendente, ordena o código que o juíz as inquira, exortando-as brandamente, desta fórma: «Declarai francamente tudo quanto sabêis sôbre esta matéria, porque se pretende aqui o vosso testemunho[15].» [15] VIII, 79 e 80. O legisladôr disserta largamente sôbre a obrigação moral, que ás testemunhas cabe, de dizerem a verdade, e sôbre a responsabilidade e os castigos que importa comsigo um falso testemunho. *VI* Outro meio de prova judicial é o juramento, que o juíz defere ás partes litigantes, quando não há testemunhas, que possam depôr sôbre o facto controvertido[16]. [16] VIII, 109. O juíz fará jurar o _bráhmane_ pela sua veracidade; o _kchatriá_ pelos seus cavallos, pelos seus elefantes e pelas suas armas; o _vaysiá_ pelos seus rebanhos, pelas suas searas e pelo seu oiro; os _çudras_ por todos os crimes[17]. [17] VIII, 113. *VII* Falaremos agora de outra prova judicial, muito conhecida e muito usada na Europa da idade média, e que innegavelmente foi trazida para o occidente pela corrente das emigrações arianas. Alludimos aos chamados _juízos de Deus_. Algumas espécies destas provas absurdas e talvez ímpias, deixaram vestígios no Japão, na Africa occidental, na Escandinávia, na Grécia e na Irlanda. Prova-o Michelet, fundado em testemunhos irrefragáveis[18]. [18] _Origines du droit_, chap. VII. Os _juízos de Deus_ acham-se consignados nas leis dos bárbaros, foram sanccionados e regulados pela legislação dos concilios visigóticos, e podemos talvez dizêr que eram ainda invocados, quando já alvorecia a nacionalidade portuguêsa. Em França puseram-n'os em vigôr as _Capitulares_ de Carlos Magno, e foram ao depois confirmados na legislação do tempo de Carlos o Calvo[19]. [19] Desmaze, _Supplices, prisons et grace en France_, chap. II, III. A ignorancia que na idade média fez da instrucção um privilégio da classe sacerdotal, deixou que os _juízos de Deus_ maculassem mais uma página da história da humanidade. Intendendo-se que o homem, creatura frágil, podia faltar á verdade, intendeu-se que a naturêza, que no panteismo oriental so consubstancía com a divindade, essa não podia mentir. E assim, quando o juíz pretendia uma prova decisiva, consultava-se a naturêza e tentava-se a Deus, pedindo-lhe uma revelação: sujeitava-se o réu á prova do _fôgo_, da _água fervente_, do _ferro em brasa_, do _veneno_, da _cruz_; e, se elle não saísse illeso destas provas bárbaras, é porque estava realmente criminoso. Se elle estivesse innocente, Deus havia de inverter as leis da naturêza, e fazêr que o fôgo ou os demais supplicios não arrancassem um gemido, nem deixassem um vestigio na carne da pobre víctima. Para todas essas provas, havia formulários em latim, que podem ver-se minuciosamente na collecção de Baluze, tom. II, col. 642 e seg. Por agora, reproduziremos apenas uma dessas fórmulas, em linguagem nossa: «O culpado tomará na presença do todos o ferro em brasa, e o conduzirá pelo espaço de nove pés; liguem-se-lhe as mãos ao ferro em brasa, durante três noites, e, se ao depois apparecer illeso, dêm-se graças a Deus; mas, se o ferro em brasa tiver escaldado, e se apparecer rubôr e inflammação nos vestigios do ferro, seja julgado criminoso e immundo[20].» [20] Baluze, tom. II, col. 644. * * * * * Pois bem. Este símbolo, que nos é tão conhecido pela história da penalidade medieval, encadeia-se com quási todos os símbolos jurídicos através dos tempos e dos povos, e vai entroncar nas instituições da India. E só da India é que podiam derivar os _juízos de Deus_. Lá, no berço das sociedades, a humanidade, ainda criança, sente-se subjugada pelo império da naturêza. O homem, desprendendo-se do nada, ergue os olhos e dobra os joelhos, adorando a natureza-mãi. Se os arreboes purpureiam os horisontes, adora _Mitrá_; se o astro do dia se levanta, adora _Suryá_; se os ventos agitam a floresta, adora os _Maruts_; se a tempestade estrondeia nos céus, adora _Indrá_; se os riachos lhe serpenteiam aos pés, adora _Varuná_; se a terra floresce e frutifica, adora _Prithivi_; se o fôgo lhe aquece os membros, adora _Agni_, e o poeta dos Vedas consagra-lhe cânticos de reconhecimento[21]. [21] _Rig-Veda_, II, 6. Os indios tributam ao _fôgo_ uma adoração especial; e por isso a prova do _fôgo_ sobresái entre os ordálios da legislação indiana. Além da prova do _fôgo_, a India exibe mais oito espécies destas provas: a _balança_, a _água_, o _veneno_, o _arrôz_, a _água em que se lavou um ídolo_, o _azeite a fervêr_, o _ferro em brasa_, e a _imagem de ferro e prata_[22]. [22] Hastings, _Asiatic researches_, I, (Michelet, loc. cit.) Se percorrermos todo o _Digest of hindu law_, poderemos acrescentar áquella enumeração de Hastings o _chumbo derretido_. Não sendo porém propósito nosso percorrêr toda a legislação indiana, e soccorrendo-nos apenas ao código de Manu, especializaremos a prova do _fôgo_. No famoso poema épico, o _Ramayana_, muito anteriôr ao código de Manu; naquêlle grande e dulcíssimo poema que Michelet chamou um _mar de leite_[23], já se nos depara a prova do _fôgo_. Na última parte do poema, o herói, havendo libertado sua esposa _Sitá_, duvída de que ella lhe guardasse fidelidade, emquanto estêve nas mãos do roubadôr. _Sitá_, desfeita em lágrimas, faz acendêr uma pira, invoca a protecção do _fôgo_ contra as accusações de seu esposo, e precipita-se nas chammas; mas o _fôgo_, o _testemunho incorruptível do mundo_ como lhe chama o Homero indiano, comprovou a sua innocencia, porque não molestou sequer a esposa de _Ramá_. [23] _Bible de l'humanité_, pag. 3 O código de Manu reconhece esta prova judicial; e sôbre ella, e sôbre a da água, preceitua o seguinte: «O juíz, segundo a gravidade do caso, mandará áquêlle, cuja veracidade quer conhecêr, que tome lume nas mãos; ou mandá-lo-á mergulhar na água... «Aquêlle, a quem o fôgo não queima, a quem a água não afoga, e a quem não succede logo sinistro, deve sêr reconhecido como verídico em seu juramento. «... O fôgo é a prova da culpabilidade e da innocencia de todos os homens[24].» [24] VIII, 114-116. *VIII* Falemos agora dos delictos e das penas, consignados no código de Manu. Segundo o código, os crimes mais graves e assim declarados pelos legisladôres, são: Matar um bráhmane; Roubar o dinheiro de um brâhmane; Bebêr licores fermentados; Commettêr adultêrio com a mulher de seu pai natural ou espiritual; E ainda quaesquer relações com o homem, que tais crimes praticou[25]. [25] XI, 54. Alem dêstes crimes, são punidos pelo código: Qualquer assassinio; O roubo; A injúria e a calúnia: O falso juramento; O estupro; A negação de dívida ou de objecto depositado; Dar asilo e alimento a ladrões; A demolição de tanques, edificios e pontes; Falsificação de cereais; E outros delitos secundários. * * * * * Entre as penas, applicadas aos differentes delitos, devemos especializar: A pena de morte; O confisco; A amputação dos membros; A multa pecuniária; A prisão; O exilio; A escalvação; O azeito a fervêr, etc. A _pena capital_ applica-se, por exemplo, áquêlle quo roubou a pessoas de boa familia, principalmente se o roubo é de mulheres ou jóias de grande prêço[26]. [26] VIII, 323. O _confisco_ applica-se, entre outros casos, aos ministros que, encarregados dos negócios públicos, danificam os interesses, cuja manutenção lhes é confiada[27]. [27] IX, 231. O _exílio_ aos que juram falso[28], o aos adúlteros[29]. [28] VIII, 123, 219. [29] VIII, 352. A _multa pecuniária_ ao insulto em geral, e aos factos de somenos importância[30]. [30] VIII, 267-271, 332, etc. A _mutilação de membros_ ao ladrão que dêlles se serviu para fazêr mal[31]; e a outros criminosos[32]. [31] VIII, 334. [32] VIII 325, etc. O _azeite a fervêr_ lança-se nos ouvidos e na bôca do que ousou admoestar um brâhmane sobre o cumprimento dos seus deveres[33]. [33] VIII, 272. *IX* Conforme já indicámos, observa-se que, na penalidade indiana, as penas não são tão graduadas pelos delitos, como pela classe dos delinquentes e daquêlles que são lesados. Assim: Na petição de juros, o credôr poderá exigir de um bráhmane _dois_ por cento ao mês, de um kchatriá _três_ por cento, de um vaysiá _quatro_, e de um çudra cinco[34]. [34] VIII, 142. Um kchatriá, se injuriou um bráhmane, pagará a multa de 100 panás[35]; um vaysiá a multa de 150 ou 200 panás; e um çudra terá pena corporal. [35] _Paná_, moeda de cobre. A maior multa eleva-se a 1:000 panás. (VIII, 138). Um bráhmane terá apenas a multa de 50 panás, por ultrajar um homem da classe militar; se o ultraje fôr contra um homem da classe commerciante, pagará 25; e 12, se fôr contra um çudra[36]. [36] VIII, 267 e 268. Se um çudra injuriar gravemente um dwidja[37], ser-lhe-á cortada a língua, ou introduzido na bôca um ferro em brasa, porque é a mais desprezível criatura humana[38]. [37] _Dwidja_ é qualquer homem das três primeiras classes, que foi investido do _cordão sagrado_. [38] VIII, 270 e 271. Se entre um bráhmane e um kchatriá houve insultos recíprocos, o brâhmane será condenado á pena ínfima, e o kchatriá á pena média[39]. [39] VIII, 276. Para comprovar ainda o facto de desigualdade legal na applicação das penas, citaremos finalmente o texto seguinte: «Um bráhmane adúltero é comdenado a uma tosquia ou escalvação ignominiosa, nos mesmos casos em que um homem das outras classes é punido com a morte[40]. [40] VIII, 379. *X* Não obstante a desigualdade perante a lei, vício capital na penalidade indiana, entrevê-se, de espaço a espaço, no código de Manu, um clarão do justiça, que não illuminou por certo todos os códigos menos antigos. E, com effeito, o legisladôr indiano ordena que o rei não deixe de punir seu proprio pai, seu mestre, seu amigo, sua mãi, sua esposa, seu filho, se elles não cumprirem seus devêres[41]. [41] VII, 17,18, 30. Ácerca da naturêza da pena, há no código de Manu ideias que ressumbram uns longes de alta filosofia e de profunda moralidade: «A punição é a justiça,--diz admiravelmente o código;--a punição é um rei cheio de energia, e um sábio admnistradôr da lei. «A punição governa e protege o gênero humano; a punição véla, emquanto todos dormem. «A punição não póde sêr infligida convenientemente por um rei que não tem bons conselheiros, que é imbecil, ambicioso, cuja intelligencia se não aperfeiçoou no estudo das leis, e que é dado aos prazêres dos sentidos[42]. [42] _Esprit des lois_, chap. XIII. *XI* Consignada perfunctoriamente a lêtra e o espírito do _Manava Dharma Sastra_, com referência á penalidade, desta ligeira exposição resalta a virtude, o defeito e a importancia daquêlle sistema penal; e ainda a convicção de que a penalidade indiana é, nalguns pontos, mais plausível que a penalidade dos povos europeus, em épocas que nos são mais próximas. Nota-se na penalidade indiana a desigualdade, e talvez a arbitrariedade; mas, até os fins do século passado, qual foi na Europa a sociedade, em que as leis se libertaram daquêlle vício? Por outro lado: as penas não eram só applicadas com mais barbaridade, do que ao depois o foram, na vigência do código visigótico, das ordenanças da dinastia carolina, em França, e da justiça ecclesiástica em todo o sul da Europa. Mais ainda: não se vê consignada no código de Manu a ideia de vingança; em todos os códigos da Europa, até o seculo XVIII, sabemos que a pena procedia da ideia de vingança. O termo _vindicta_ consubstanciou-se com a legislação penal da Europa; e, quando os legisladôres viram que era tempo de afastar da penalidade a ideia de vingança particular, fizeram que a pena derivasse da _vindicta_ pública... Nos proprios tribunais ecclesiásticos, o _ministério público_ era exercido por um agente especial, que se chamava _vindex religionis_ (vingadôr da religião). Para que desapparecesse esta falsa ideia sôbre a origem das penas, foi mister que a sciencia e a consciencia erguessem a vóz da justiça; que Montesquieu protestasse contra a barbaridade das penas[43]; que da Italia se levantasse o grito eterno de César Beccária; e que por fim os Estados Gerais de 1789 escrevessem na primeira folha da grande revolução: «A lei é a mesma para todos, premiando ou punindo. «Ninguem é prêso, senão nos casos fixados na lei. «A lei só estabelece penas estricta e evidentemente necessárias; e ninguém é punido, senão em virtude da lei estabelecida e promulgada anteriormente[44].» [43] O marquez de Beccária publicou em Monaco (1764) o seu _Tratado das penas_, que em dois annos teve seis edições. [44] _Déclaration des droits de l'homme_, art. 6.º, 7.º e 8.º * * * * * O direito penal é uma sciência progressiva. Lentamente embora, o direito penal moderno vai accusando salutares progressos; e, se não é permittido aspirar á realização das utopias de Girardin[45], é licito confiar em que o progresso arrastará comsigo a sciência penal; e em que os princípios da justiça social e as noções superiôres do direito hão de ir allumiando as páginas de todos os códigos, radicando-se cada vêz mais na consciencia universal. [45] _Le droit de punir_. _Lisboa, 1892, maio._ CANDIDO DE FIGUEIREDO. *** End of this LibraryBlog Digital Book "A penalidade na India segundo o Código de Manu" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.