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Title: Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal
Author: Guimarães, Delfim, 1872-1933
Language: Portuguese
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produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)



     *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
     existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
     versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
     o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
     corrigidos.

     Rita Farinha (Maio 2008)



Theóphilo Braga

E

A LENDA DO CRISFAL



Obras de Delfim Guimarães


PROSA:

*Alma dorida*, com prefácio de Teixeira Bastos, 1 vol broch.      500 réis

*A Viagem por terra do snr. João Penha*, (crítica literária)      1 folh. 100 »

*O Rosquedo* (Scenas da vida de província).     Esgot.^o

*Ares do Minho* (Contos) 1 vol. broch.     200 réis

*Bernardim Ribeiro*: O poeta Crisfal (Subsídios para a Historia da
literatura portuguêsa) 1 vol. broch.     800 »


EM PREPARAÇÃO:

*Luis de Camões.--Diogo Bernardes.*


VERSO:

*Lisboa Negra*, 1 fol.     200 »

*Confidencias*, 1 vol. broch.     400 »

*Evangelho*, 1 vol.     400 »

*Não! Mil vezes não!* 1 fol.     200 »

*Sim! Mil vezes sim!* 1 fol.     100 »

*Sonho Garretteano*     Esgot.^o

*A Virgem do Castelo*, (2.^a edição) 1 fol.     100 reis

*Outonaes*, 1 vol. broch.     500 »


NO PRELO:

*Flores do mal* (interpretação em versos portuguêses de poesias de
Carlos Baudelaire)


TEATRO:

*Aldeia na Côrte*, drama em 3 actos, de colaboração com D. João da
Camara, representado no D. Amelia, 1 vol. broch.     500 réis

*Juramento Sagrado*, comedia n'um acto em verso, representada no D.
Maria II, 1 fol.     200 »


A PUBLICAR:

*Domingo de Páscoa*, peça de costumes minhotos.


OUTROS TRABALHOS:

*A Dama das Camelias*, de _Dumas, filho_ (tradução), 1 vol. broch.     200
réis

*Saudades*, (História de Menina e moça), de _Bernardim Ribeiro_, edição
revista (vol. 29 da Colecção Horas de Leitura)      200 »

*Trovas de Crisfal*, de _Bernardim Ribeiro_, edição revista     300 »

*Versos portuguêses*, de _Sá de Miranda_, edição revista      500 »



DELFIM GUIMARÃES


Theóphilo Braga

E

A Lenda do Crisfal


1909
Livraria Editora
GUIMARÃES & C.^a
68, Rua de S. Roque, 70
LISBOA



THEÓPHILO BRAGA
E A LENDA DO CRISFAL



I

Razão de ser d'este livro


Quando em maio de 1908 tornamos pública a conclusão a que haviamos
chegado de ser _Crisfal_ um pseudónimo do autor da _Menina e moça_, como
procurámos demonstrar no volume recentemente dado á estampa: *Bernardim
Ribeiro* (_O Poeta Crisfal_), tinhamos o convencimento pleno de que uma
tal nova, divulgada pela imprensa, seria bem acolhida por quantos se
interessam pelo estudo da nossa História literária, com excepção apenas
do snr. dr. Theóphilo Braga. O laureado professor do Curso Superior de
Letras não perdoa a quem quer que seja que ouse discordar de suas
sentenças, nem vê com bons olhos que outros, que não s. ex.^a, encarem
problemas que se prendam com a História da literatura portuguêsa.

E n'este caso do _Poeta Crisfal_, mais do que em nenhum outro, o snr.
dr. Theóphilo Braga não desejava que ninguem bulisse, pelo motivo que
teremos ocasião de apontar no decurso d'este livro.

Não contavamos com o acolhimento benévolo do infatigavel escritor. Para
fundamentar o nosso juizo, bastava-nos invocar os precedentes sabidos,
tristemente lembrados, e, muito em especial, o desforço pouco generoso
do snr. dr. Theóphilo Braga para com a memória d'esse desventurado que
se chamou Antero,--porque o poeta incomparavel dos _Sonetos_ ousara
flagelar o dogmatismo scientífico do antigo camarada universitário; o
fel que o plumitivo da *Historia da Litteratura* deixa transparecer nas
apreciações com que, baldadamente, procura amesquinhar a figura
gigantesca de Herculano,--porque o insigne historiador nacional jàmais
se associou aos turibulários do filósofo comtista (sem calemburgo);--o
desdem com que o professor de literatura apoda, soberanamente, de
_gramático_, o distinto romanista, snr. Epiphánio Dias,--por este haver
despedaçado, com a autoridade do seu nome, aquela invenção alegre dos
_cantos de ledino_, em que o snr. dr. Theóphilo continua a persistir,
apesar de tudo, com manifesta falta de sinceridade.

Mas não ignorando taes precedentes, e conhecendo que o estudo que iamos
apresentar ao público não deixaria de nos acarretar a má vontade do
autor da _História da Litteratura Portugueza_, nem por um momento
hesitamos em levar a bom termo o nosso trabalho, tendo em atenção tam
sòmente que se tratava de desfazer uma lenda, estúpida como tantas
outras lendas, que privava de parte da glória a que tinha jus o nome
aureolado de um dos maiores poetas portuguêses, o delicado e inditoso
Bernardim Ribeiro, o nosso querido Bernardim.

Derruíamos a coluna em que se firmava um espantalho, mas erguiamos a um
pedestal mais grandioso e altívolo a figura amoravel do grande
bucolista.

A literatura portuguêsa só ganhava com a descoberta. Que, se alguma
cousa perdesse, era sobeja compensação o que se conquistava para a
verdade histórica...

Mas a proclamação de uma tal verdade ia prejudicar um livro, ou livros,
do snr. dr. Theóphilo Braga... Não havia dúvida. Que importava isso?
Para reivindicar para Bernardim Ribeiro a autoria da Carta e da Écloga
de _Crisfal_, não valeria a pena sacrificar uma das muitas produções do
operoso escritor?

Bernardim Ribeiro é um dos astros fulgurantes da rútila constelação que
brilha, intensa e perduravelmente, no ceu de Portugal. Já conta alguns
séculos, e ainda hoje nos deslumbra o seu fulgor...

Após a local produzida pelo snr. dr. Alfredo da Cunha no seu _Diario de
Noticias_, dando conta dos nossos trabalhos de investigação, que punham
termo á lenda de _Crisfal_, tivemos a ventura de ver que o snr. José
Pereira Sampaio (_Bruno_) havia chegado a conclusão idêntica á nossa,
como foi registado n'um brilhante artigo de João Grave no _Diario da
Tarde_, do Porto, confirmado inteiramente por uma carta de _Bruno_,
reproduzida no jornal citado, em que o prestigioso publicista, com a
reconhecida autoridade do seu nome, que nada deve ao reclamo, afirmava
de maneira absoluta que estavamos com a verdade; que o _trovador_
Cristovam Falcão era simples produto de uma lenda, que o criptónimo
_Crisfal_ pertencia a Bernardim Ribeiro.

Do artigo do nosso camarada João Grave, e da carta do ilustre escritor
snr. José Sampaio, não faremos citações n'esta altura. Ambos os
preciosos documentos se encontram integralmente exarados no nosso livro
_Bernardim Ribeiro_. Não os desconhecem, por certo, aqueles que nos dão
a honra da leitura d'este trabalho.

Como recebeu o snr. dr. Theóphilo Braga essas comunicações do _Diario de
Noticias_, de Lisboa, e do _Diario da Tarde_, do Porto?

--Passando a José Pereira Sampaio (_Bruno_), e a nós outros, um diploma
de ignorantes!

Em 29 de maio, um amigo salientou-nos no jornal _A Epoca_ a secção que o
escritor snr. Silva Pinto tinha a seu cargo, e que n'essa data
estampava, reproduzida do _Diario da Tarde_ do Porto, a seguinte carta
do snr. dr. Theóphilo Braga:


     _«Meu caro João Grave_:--Encantou-me o favor da sua carta,
     communicando-me o problema litterario que preoccupa o nosso velho
     amigo e luminoso critico José Sampaio sobre a apochryficidade do
     auctor do «Crisfal», e que annuncia o primoroso litterato Delfim
     Guimarães. É sempre boa a vindicação d'uma verdade em qualquer
     campo: no campo litterario e artistico, isso tem o relevo d'uma
     conquista, d'um triumpho.

     Ninguem mais desejaria que fossem possiveis, isto é realidade
     demonstrada, as descobertas de Sampaio (Bruno) ou de Delfim
     Guimarães, sobre a identidade de Christovam Falcão em Bernardim
     Ribeiro. *Isso, porém, não passa d'uma miragem, por falta de
     conhecimento dos existentes recursos historicos*[1].

     Diogo do Couto falla em Christovam Falcão como celebrado auctor do
     «Crisfal», quando narra factos praticados por seu irmão Damião de
     Sousa. Ora, Diogo do Couto, contemporaneo d'este na India,
     inventava-lhe um irmão? E tendo sido impresso o «Crisfal» sem nome
     d'auctor, (no _pliego-suelto_ da Bibliotheca Nacional de Lisboa)
     dava-o como auctor d'essa celebrada écloga a capricho seu? O Padre
     Antonio Cordeiro, na «Historia Insulana», (resumo das «Saudades da
     terra», do dr. Gaspar Fructuoso, amigo de Camões) tambem faz as
     mesmas referencias ao _poeta_ Christovam Falcão. E a edição de
     Ferrara, de 1554, e a de Colonia, de 1559, inscrevendo o seu nome?
     E Frei Bernardo de Brito, fazendo a «Silva de Lisardo», ou segunda
     parte do «Crisfal», falla nas serras de Lor-vam, onde esteve D.
     Maria Brandão, a namorada d'este poeta do «Crisfal».

     Nada d'isto leva a admittir a hypothese. No emtanto, que tragam a
     lume os seus resultados. A vantagem é de nós todos.

     Com um abraço do seu, etc.

                                                  Theophilo Braga.»


Para o professor do Curso Superior de Letras, a conclusão a que, tanto
_Bruno_ como nós, haviamos chegado, não passava *d'uma miragem, por
falta de conhecimento dos existentes recursos historicos*, e esta
sentença autoritária vinha a público quando o snr. dr. Theóphilo Braga
ignorava em absoluto quaes os argumentos com que nós e o insigne
publicista nosso conterráneo procurariamos fazer vingar nossas teses.

Magoou-nos a impertinência, confessamos, e não resistimos a manifestar
publicamente a impressão em nós produzida pela prosa do snr. dr.
Theóphilo Braga, dirigindo n'esse mesmo dia a seguinte carta a João
Grave, que este distinto jornalista fez inserir no numero de 1 de junho
do _Diario da Tarde_:


     «_Meu prezado camarada João Grave_:--Acabo de ler, reproduzida por
     Silva Pinto na «Epoca», a carta que o snr. dr. Theóphilo Braga
     dirigiu ao meu caro João Grave a propósito do trabalho que preparo,
     em que me proponho demonstrar que «Crisfal» foi simplesmente um
     anagrama cabalístico de Bernardim Ribeiro, pertencendo por
     conseguinte a este lírico as poesias que uma lenda fez atribuir a
     Cristovam Falcão.

     O nosso bom amigo e erudito escritor José Pereira
     Sampaio--_Bruno_--, como se viu da interessante carta que estampou
     no «Diario da Tarde», como complemento ao artigo que o meu caro
     João Grave publicou sobre o assunto, chegara a conclusões eguaes, e
     para mim foi extremamente grato que o nome prestigioso de Bruno
     viesse valorizar a minha descoberta com a grande autoridade do seu
     concurso.

     Ao ilustre professor, snr. dr. Theóphilo Braga, afigura-se isto uma
     «_miragem, por falta de conhecimento dos existentes recursos
     historicos_», que cita, desde Diogo do Couto a frei Bernardo de
     Brito.

     Peço-lhe, pois, meu caro João Grave, a fineza de dizer no seu
     jornal que conheço perfeitamente os _recursos históricos_ a que
     alude o incansavel historiador da _Litteratura Portugueza_, como
     não podia deixar de conhecer pela leitura das edições do «Bernardim
     Ribeiro e o Bucolismo» do snr. dr. T. Braga.

     Que Bruno não ignora nenhum d'esses _recursos_, estou convicto,
     que, de resto, nem o distinto escritor snr. dr. Theóphilo Braga
     póde ter dúvidas a tal respeito, porque isso seria fazer ofensa ao
     justificado nome literário de José Sampaio.

     Para fechar, devo ainda dizer-lhe, meu bom amigo, que de modo
     nenhum eu vou sustentar que não existiram vários _cavalheiros_ com
     o nome de Cristovam Falcão. Se estes não tivessem existido não
     tomaria vulto até aos nossos dias a lenda do «Crisfal»!

     Não o enfado mais.

     Creia-me, com verdadeira estima,

                                      seu amigo, adm.^{dor} e obg.^{do}

     S/C. Lisboa, 29-maio/90.

                                               Delfim Guimarães.»


A _Bruno_ tambem não passou despercebido o _amavel_ diploma do professor
do Curso Superior de Letras, e que o ilustre escritor se sentiu
melindrado prova-o suficientemente a carta que dirigiu a João Grave, e
que, confiados na benevolência do sr. José Pereira Sampaio, vamos
trasladar das colunas do jornal _A Epoca_, que a reproduziu do _Diario
da Tarde_:


     «_Meu caro João Grave_:--Novamente o venho importunar, pois entendo
     que, perante a carta, aliás tão bondosa e honrosa para mim, do dr.
     Theophilo Braga, hontem inserta no seu jornal, me cumpre consignar
     em publico, ainda uma vez, que após o apparecimento do livro de
     Delfim Guimarães, defendendo a propozição de que Christovam Falcão
     não é mais do que Bernardim Ribeiro, eu publicarei o meu, já por V.
     na sua folha duas vezes amavelmente annunciado, e onde, entre
     outros, sustentarei egualmente o mesmo ponto, pensando que
     refutarei ahi cabalmente as asserções, na sua carta de hontem no
     «Diario da Tarde», pelo nosso doutissimo confrade e illustre
     publicista produzidas, mostrando então, com todo o respeito devido
     a tão indefesso e insigne trabalhador, que a minha hypothese (e de
     Delfim Guimarães) não é tal uma miragem e que, pelo contrario, o
     ensino corrente no assumpto é que é inteiramente phantastico e
     chimerico.

     A V., prezado collega, reitero os protestos do meu agradecimento.

                                                        Todo seu

     Porto, 27 de Maio de 1908.

                                          José Pereira Sampaio (Bruno).»


O snr. dr. Theóphilo Braga achou que era prudente não voltar á estacada,
e assim deixou passar em julgado a nossa carta e aquela em que o snr.
José Sampaio, por uma fórma categórica, visando directamente as lições
ministradas pelo professor de literatura, declarava que o ensino
corrente sobre Cristovam Falcão era _inteiramente phantastico e
chimerico_.

Na elaboração do livro: *Bernardim Ribeiro* (_O Poeta Crisfal_)
obedecemos ao propósito de não converter o nosso trabalho n'uma
diatribe, e procuramos suavizar quanto possivel a situação em que eramos
forçados a colocar o snr. dr. Theóphilo Braga, em obediência á verdade,
e não porque nos animasse qualquer desejo de ser desagradaveis ao
infatigavel vulgarizador. E, procedendo assim, entendiamos cumprir um
dever, que tinha sobeja justificação nos cabelos brancos do professor do
Curso Superior de Letras, cuja primeira edição do seu _Bernardim
Ribeiro_ coincidiu com o ano do nosso nascimento. Não esquecemos nunca
que fomos educados no respeito devido á velhice.

No trabalho da revisão das provas do nosso estudo, em que fomos
auxiliados pela prestante amizade de Henrique Marques, mais de uma vez
modificámos referências feitas ao professor que contraditavamos, e
sempre da melhor vontade substituiamos um adjectivo, suavizavamos a
saliência de um erro do Mestre, desde que o nosso amigo Henrique
Marques, com o seu apreciavel critério, nos fazia notar que uma palavra,
uma frase nossa, poderia ser tomada como um desprimor para com o snr.
dr. Theóphilo Braga.

Queriamos fazer vingar uma obra de justiça; não era nosso intento
agravar quem quer que fosse.

E que não fomos descortêses, nem violentos, nem injustos, para com o
professor que contraditavamos, prova-o o testemunho insuspeito do
eminente publicista snr. José Caldas, que nos honrou com uma carta
penhorantíssima, de que reproduziremos neste lugar algumas linhas:

«*A delicadeza das suas referencias, com relação aos auctôres cujas
conclusões não acceita ou impugna, é verdadeiramente modelar.*»

Se houvessemos sido menos cortêses para com o snr. dr. Theóphilo Braga,
s. ex.^a não se julgaria, com certeza, no dever de agradecer-nos a
oferta do exemplar do nosso trabalho que entendemos enviar lhe. E o
professor do Curso Superior de Letras escreveu-nos a agradecer o livro,
embora na sua carta transpareça o despeito que lhe produziu o nosso
estudo sobre Bernardim Ribeiro, em que desvendamos vários erros contidos
em volumes da _Historia da Litteratura Portugueza_.

Registâmos aqui essa carta do snr. dr. Theóphilo Braga, que não deixa de
constituir um documento interessante para aqueles que seguirem com
atenção a marcha dos acontecimentos provocados pela pendência literária
em que estamos envolvidos.

É, textualmente, como segue:


     «Lisboa, 25 de Novembro de 1908


                                           _...sr. Delfim Guimarães
                                            e meu presadissimo amigo_


     Muito me penhora a honrosa offerta do seu recente trabalho, em que
     apresenta o seu processo para a identificação do poeta Bernardim
     Ribeiro com o Crisfal ou Christovam Falcão. A ninguem interessaria
     tanto o conhecimento d'este problema, como a mim, que esbocei uma
     biographia de Christovam Falcão com elementos historicos
     (documentos authenticos) comprovando dados genealogicos. Tive de
     ler immediatamente o seu livro, para vêr que materiaes traria para
     o aperfeiçoamento do meu trabalho. Mesmo no prologo fez-me V. a
     justiça de que eu aproveitaria tudo quanto se prestasse a futuras
     emendas. Desde as noticias genealogicas trazidas por Braancamp
     Freire sobre D. Maria Brandão, que Christovam Falcão amou, sendo
     ambos muito creanças, via-me forçado a tomar o nascimento d'elle no
     fim do primeiro quartel do seculo XVI. Isto me impossibilitava de
     continuar a admittir as relações pessoaes de Christovam Falcão com
     Bernardim Ribeiro já velho e dementado em confidencias de amor com
     um rapaz no viço da mocidade; e por tanto as Eclogas em que elle
     figurava interpretativamente tinham de ser lidas a outra luz. V.,
     acabando de fazer a destrinça entre o Poeta e seu primo mais
     antigo, deu-me elementos para uma melhor interpretação das Eclogas
     de Bernardim, (eliminadas as relações com Christovam Falcão), e
     mostrando como realmente as poesias d'aquelle, como mestre,
     influiram no mais moço, que como novel chega a fazer centões e
     intercalações de versos de Bernardim Ribeiro. Ha uma affirmativa
     historica, de Diogo do Couto, na sua _Decada VIII_, que, fallando
     de Damião de Sousa Falcão, accrescenta como reforço historico:
     «irmão de *Christovam Falcão*, aquelle que fez aquellas cantigas
     nomeadas do Crisfal...» E tambem no seculo XVI Fructuoso (resumido
     pelo P.^e Antonio Cordeiro na Historia insulana) diz de Christovam
     Falcão: «parente do Barão velho e do famoso poeta Christovam
     Falcão, que fez a celebre Ecloga Crisfal das primeiras syllabas do
     seu nome...» Tambem nas edições de Ferrara e Colonia, feitas por
     curiosos sem criterio litterario se repete a attribuição «_que
     dizem ser_ de Christovam Falcam, ho que parece alludir o nome da
     mesma Ecloga». Não se podem refutar por negativa estes testemunhos
     de homens de letras do seculo XVI, e que se reflectiram nos
     genealogistas. A Ecloga do Crisfal não podia ser publicada pelo seu
     auctor, nem pelo seu consentimento porque era uma _inconfidencia_
     de antigas relações amorosas com uma senhora que estava casada. A
     edição sem data, de Lisboa, só podia ser feita por 1542, quando
     Christovam Falcão estava em Roma; e quando Camões foi para Ceuta em
     1547 na carta que d'ali escreveu emprega muitos versos do
     _Crisfal_, que então, andava no gosto. Na edição de Lisboa vem duas
     estrophes supprimidas no texto de Ferrara e Colonia, por que
     continham uma _inconfidencia_. Isto leva a explicar como Christovam
     Falcão tentaria apagar a paternidade da Ecloga fundamentando-se-lhe
     a imputação com o anagramma das primeiras syllabas do nome. Os
     logares communs a Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão provam mais
     a favor da imitação de um discipulo, do que á fusão dos dois
     poetas, repetindo-se o mestre na decadencia. Emfim ha dois schemas
     de paixão amorosa que se não confundem: o de Joanna e Fauno, Aonia
     e Bimnarder, e o de Maria e Crisfal. São duas almas, sentindo em
     situações differentes. Através de todo o hypercriticismo o livro
     sobre Bernardim Ribeiro revela um trabalhador fervoroso, que me
     veio revelar a existencia de um exemplar da edição de Ferrara, no
     Porto, e que aqui descobriu o texto precioso da Ecloga _Alexo_
     assignada por Sá de Miranda. Felicitando-o pelo seu importante
     estudo, sou


                                           admirador obr.^{mo} e amigo

                                                    Theophilo Braga»


Começa a carta do snr. dr. Theóphilo Braga por um _rebuçado de ovos_: o
tratamento de «prezadissimo amigo», que não tinha qualquer
justificação... Isto é, tinha uma justificação única, qual era a de nos
adoçar a bôca, para engulirmos sem relutância aquela amargosa pílula com
que fecha a epístola de s. ex.^a, quando, com generosa magnanimidade,
confessa que o nosso livro _revelou um trabalhador fervoroso_, que ao
professor do Curso Superior de Letras foi _revelar a existencia de um
exemplar da edição de Ferrara, no Porto_, e que em Lisboa _descobriu o
texto precioso da ecloga_ *Alexo* _assignada por Sá de Miranda_.

E, graças a estas _revelações-revelativas_, a que não ligavamos
importância de maior, o historiador da *Litteratura Portugueza*
felicitava-nos pelo nosso _importante estudo_, que, volvidas algumas
semanas, havia de classificar de fruto de _processos á tôa_!

Na devida altura, comentaremos largamente a carta substanciosa do snr.
dr. Theóphilo Braga.

Por agora, continuemos na catalogação das peças d'este processo, para
que os leitores julguem da justiça que nos cabe, e avaliem da
sinceridade, da correcção, e dos processos do professor intangivel.

No jornal _O Mundo_, de 3 de dezembro de 1908, na local consagrada á
sessão da Academia das Sciencias de Portugal realizada no dia 2, vimos
que o snr. dr. Theóphilo Braga fizera uma comunicação, que outra cousa
não era senão um desmentido formal e gratuito ás conclusões do nosso
livro,--mas sem a mais leve citação ao nosso obscuro nome, sem a menor
referência ao nosso desluzido trabalho, embora aproveitando-lhe os
subsídios. Comprehende-se: o ilustre académico não desejava contribuir
de modo nenhum para o reclamo que a imprensa estava dispensando ao
volume sobre o _Poeta Crisfal_.

Transcrevemos do _Mundo_ o periodo referente a tal comunicação...
scientífica:


     «...finalmente, trata de Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão,
     mostrando como a vida amorosa d'este oscilla entre 1525 e 1526,
     sendo n'aquella data moço fidalgo, tendo pelo menos 12 annos, ao
     passo que aquelle era já edoso; evidencia como na Ecloga
     transparecem diversas situações da vida de Christovam Falcão, e
     termina por invocar as opiniões de Diogo Couto, Gaspar Fructuoso e
     outros que comprovam a existencia das duas individualidades que
     apesar de similhantes n'algumas situações da vida, não podem jàmais
     confundir-se».


Ante este procedimento do nosso _prezadissimo amigo_, não pudemos ficar
silenciosos, e, como um desforço legítimo, inadiavel, apelamos para o
snr. dr. Brito Camacho, pedindo-lhe se dignasse publicar nas colunas da
_Lucta_ a seguinte carta, que o ilustre jornalista fez inserir no numero
de 4 de dezembro do seu diário:


                                     _«Ex.^{mo} Snr. Dr. Brito Camacho,
                                                meu prezado amigo:_


     Pelos extratos, publicados em alguns jornaes de hoje, do que se
     passou na sessão de hontem da Academia de Sciencias de Portugal, vi
     que o snr. dr. Theóphilo Braga disse o que quer que fosse,
     procurando refutar o meu recente trabalho sobre Bernardim Ribeiro,
     e insistindo na lenda do _poeta_ Cristovam Falcão de Sousa.

     Não me admira que o original autor da «Historia da Litteratura
     Portugueza» persista n'um erro crasso, só para não se confessar
     vencido, porque já o caso engraçadíssimo dos _cantos de ledino_ era
     precedente bastante para se ajuizar que o afamado professor do
     Curso Superior de Letras prefere manter um absurdo a ter de
     reconhecer publicamente que errou. Está no seu direito, e ninguem
     lh'o contesta.

     Parecia-me, porem, que, publicado o meu estudo sobre Bernardim
     Ribeiro, em que não torci a meu bel-prazer a verdade, nem
     falsifiquei documentos, o snr. dr. Theóphilo Braga tinha o dever
     moral de, pela imprensa ou em livro, dizer da sua justiça, antes de
     ir para o seio de uma agremiação, a que eu não pertenço, impor um
     desmentido formal e dogmatico, ao mesmo tempo que gratuito, ao meu
     trabalho.

     E tanto mais estranhavel se me afigura o procedimento do snr. dr.
     Braga, contestando á porta fechada a minha tese, quanto é certo que
     s. ex.^a não desconhece que o insigne publicista snr. José Pereira
     Sampaio (Bruno) prepara um livro sobre o mesmo assunto do meu.

     Se o afamado professor do Curso Superior de Letras está de boa fé,
     quem lhe assegura que os argumentos de Bruno não conseguirão
     convencê-lo, já que os meus, conforme de resto eu esperava, tal não
     conseguiram?

     É tempo de pôr de parte o _magister dixit_, porque, felizmente, os
     processos crìticos dos Farias e Bernardos de Brito são coisas que
     passaram á _historia_, e que não se ressuscitam já facilmente.

     Muito especialmente me obsequeia o meu bom amigo dando publicidade
     na nossa _Lucta_ a esta minha carta, que representa o legítimo
     desabafo de um trabalhador que se preza de ser honesto, e que como
     tal tem jus a ser considerado.

     Mais uma vez agradecido o que se confessa, por estima e dever,


                                                     De V. Ex.^a

                                             amigo, admirador e obrigado

     S/C, Lisboa, 3-12-908.

                                                   Delfim Guimarães.»


Com o espírito de rectidão que todos, amigos e adversários, são
concordes em reconhecer ao snr. dr. Brito Camacho, o brilhante
jornalista deu acolhimento benévolo á nossa carta, acrescentando-lhe as
seguintes linhas de saudação ao professor do Curso Superior de Letras:


     «O nosso ilustre correligionario dr. Theóphilo Braga tem as
     columnas d'este jornal ás suas ordens para dizer da sua justiça,
     como quizer. Trata-se d'uma questão de facto em historia literária,
     e não d'uma birra entre dois homens. Muito prazer teremos em que
     seja o nosso jornal o campo em que se dirima o pleito.»


Não correspondeu o snr. dr. Theophilo Braga á gentileza do director da
_Lucta_; e até para comnosco estamos persuadidos de que, desde o momento
em que s. ex.^a viu a nossa carta irreverente no jornal de que Brito
Camacho é a alma, o pontífice da _Litteratura Portugueza_ excomungou o
intemerato jornalista. Que o dr. Camacho nos perdôe a excomunhão que,
involuntariamente, lhe acarretamos!

Guardou silêncio o snr. dr. Theóphilo Braga durante semanas, mas não
esteve inactivo, ao contrário do que muitos poderiam supor. Com todo o
engenho e arte, s. ex.^a consagrou-se ao fabrico de uma peça, que não
podemos classificar de literária, porque é a negação de todos os
processos literários dignos de este nome, mas a que poderá caber a
designação de produto de arte... culinária. Como _pastelão_, faria honra
a um cozinheiro, mas cremos bem que o snr. dr. Theóphilo Braga deseja
passar á posteridade como um discípulo fervoroso de Augusto Comte, e não
como aprendiz ilustre da _sciência_ de Vatel.

A redacção do jornal _O Dia_, seguindo a praxe dos anos anteriores,
honrou o snr. dr. Theóphilo Braga pedindo lhe um artigo sobre o
movimento literário português em 1908, para o numero de 31 de dezembro
d'esse ano. Como nunca, recebeu o snr. dr. Theóphilo Braga jubilosamente
o amavel convite. Tinha ensejo para impingir... o _pastelão_. Era o
momento oportuno para respostar á nossa carta publicada na _Lucta_, sem
nos dar a honra de deixar sair dos bicos da pena aprimorada a confissão
de que havia lido o nosso protesto. Podiamos, porventura, esperar outro
procedimento por parte do snr. dr. Theóphilo Braga? Não, evidentemente.
Pois não haviamos nós,--cúmulo das audácias!--ousado protestar contra a
comunicação do presidente da Academia de Sciencias de Portugal?!

Reproduzimos do _Dia_ de 31 de dezembro do ano findo a parte do artigo
do snr. Theóphilo Braga que diz respeito á questão literária suscitada
pelo nosso livro:


     «...No recente fasciculo (do Archivo historico português) ficou
     publicada uma interessantissima monographia sobre a antiga Feitoria
     de Flandres, um dos mais necessarios capitulos da nossa historia
     financeira e administrativa; o sr. Braancamp Freire intitula-o
     _Maria Brandoa a do Crisfal_, por que o pae d'esta dama, que
     inspirou o amor e a Ecloga de Christovão Falcão, foi o pae d'ella,
     João Brandão Sanches, segundo encontrara no nobiliario de Diogo
     Gomes de Figueiredo.

     Em dois nobiliarios da bibliotheca da Ajuda tambem se acha esta
     mesma inscrição: _Maria Brandoa a do Crisfal_; e nos livros dos
     linhagistas Manso de Lima e Rangel de Macedo, da Bibliotheca
     Nacional, vem o mesmo schema genealogico, vendo-se toda a
     parentella da inspiradora de Crisfal no titulo dos Brandões
     Sanches, confundidos por vezes com os Brandões do Porto, com os de
     Coimbra e com os de Elvas. O sr. Anselmo Braancamp Freire, escreve
     em uma nota: «Sei que se trata de provar, que a Ecloga de Crisfal
     não foi escripta por Christovam Falcão, mas por Bernardim Ribeiro,
     e que por tanto a heroina não é Maria Brandão, mas sim a mesma do
     romance _Menina e Moça_ d'aquelle auctor.» E accrescenta que o sr.
     Delfim Guimarães empenhado na interessante averiguação o
     consultara, communicando-lhe as bases em que fundava a sua
     argumentação, as quaes não conseguiram demovel-o da rotina.

     Quasi ao mesmo tempo, o sr. Delfim Guimarães publicava o seu livro
     _Bernardim Ribeiro_--_o Poeta Crisfal_, em que resume o já sabido
     da biographia do auctor da _Menina e Moça_, forçando interpretações
     de versos a significarem os factos que imagina. Como lhe nasceu no
     espirito a ideia de fazer esta descoberta? Pela impressão que lhe
     causára a leitura dos versos de Bernardim Ribeiro e os de
     Christovam Falcão,--«dois poetas de temperamento semelhante, com
     eguaes influencias e educações litterarias, com eguaes episodios
     nos seus infortunados amores, e havendo entre ambos versos
     absolutamente eguaes.» D'aqui o identificar os dois poetas em um
     unico; como conseguil-o? Considerou a individualidade poetica de
     Christovão Falcão como uma lenda estupida formada pelos
     genealogistas, e formou o nome de _Crisfal_ indo buscar á tôa as
     palavras _Crisma falsa_, tirando-lhes as syllabas iniciaes para
     designarem a seu talante Bernardim Ribeiro. «Fez-se então uma
     grande luz no nosso espirito. Não se tratava de dois poetas muito
     parecidos, de um creador e de um imitador. Bernardim Ribeiro e
     Crisfal eram um e mesmo poeta. O trovador Christovam Falcão era o
     producto de uma lenda nascida da interpretação dada pelo vulgo
     (![2]) ao anagrama _Crisfal_.» (Op. cit., p. 10). «Alcançada a
     convicção de que _Crisfal_ era um anagramma de Bernardim Ribeiro, e
     norteados pelo conhecimento de que nas suas producções o poeta
     mudava constantemente os seus nomes pastoris, com pequeno trabalho
     de raciocinio não nos foi difficil deduzir a constituição do
     cryptogramma, que era formado pelas primeiras syllabas das palavras
     _Crisma_ e _Falso_.»

     E depois d'este processo que, na opinião do sr. Gonçalves
     Vianna--honra a erudição portugueza,--ataca as fontes genealogicas
     d'onde Diogo do Couto e Gaspar Fructuoso acceitaram «como ouro de
     lei o peschesbeque de uma lenda estupida tecida pelo vulgo
     ignorante, e posta a correr mundo graças á inepcia dos editores dos
     escriptos legados por esse grande e infortunado poeta que foi
     Bernardim Ribeiro!» (Ib. p. 11.) E mais adiante, volta a repetir:
     «A uma lenda estupida deveu esse rebento inglorio de John Falconet
     a celebridade que durante seculos usufruiu, em prejuizo do renome
     litterario do verdadeiro _Crisfal_, o doce, o inimitavel e
     inegualado Bernardim Ribeiro, etc.» (p. 185.) Mas, como se póde
     chamar estupida a lenda genealogica se os nomes contidos na Ecloga
     de _Crisfal_ condizem com os seus parentes taes como o de
     _Pantaleão_ Dias de Landim seu avô, e a Joanna, que lhe denuncia o
     casamento clandestino, uma prima, como o notou o sr. Jordão de
     Freitas?

     Os manuscriptos conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam ligados com
     os de Christovam Falcão, como se vê pela descripção do n.^o 180 da
     Livraria do Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá de
     Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão; tambem o Arcediago
     do Barreiro, dr. Jeronymo José Rodrigues, examinou no Porto um
     manuscripto analogo ao das edições de 1559, em que vinham a _Menina
     e Moça_, duas eclogas de Bernardim Ribeiro--«e até se acham no fim
     algumas poesias de Christovão Falcão, do que se faz menção no mesmo
     logar de Nicoláo Antonio.» (Innocencio, _Dic. Bibliog._)

     Para que chamar ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e de
     Colonia de 1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos
     como os encontraram? Quando o sr. Delfim Guimarães trabalhava para
     destruir uma miragem de seculos, foi communicar ao sr. dr. Alfredo
     da Cunha «a descoberta que tinha feito e que, sem falsa modestia,
     reputava de alta importancia para a historia das lettras
     portuguezas.» Era uma Noticia litteraria de sensação, o dr. Alfredo
     da Cunha deu alentos á grande descoberta de que a figura do poeta
     Christovam Falcão «pertence exclusivamente ao dominio da lenda, por
     isso que tal poeta só existiu na imaginação d'aquelles que viram
     n'um anagrama cabalistico de Bernardim Ribeiro a encarnação de
     outra individualidade.»

     No noticiario de outro jornal sairam affirmações absolutas,
     proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade
     inconsciente que affasta de todo a ideia de ironia. A verdadeira
     descoberta pertence ao sr. Braancamp Freire determinando a epoca em
     que esteve em Flandres João Brandão Sanches, e quando elle morreu,
     dando nos assim a data em que existiram os amores de sua filha
     unica D. Maria Brandão, a do Crisfal, que plausivelmente se fixam
     em 1530. O documento de 1527 referindo-se a Christovam Falcão, com
     a tença de môço fidalgo, leva a deduzir que nascera em 1512. Ha
     portanto a eliminar todas as relações pessoaes entre Christovam
     Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos nos nossos estudos,
     corrigindo a interpretação da Ecloga I e III de Bernardim. Os
     logares communs a Christovam Falcão e Bernardim Ribeiro provam a
     distancia da edade que levou o mais novo a imitar aquelle que já
     era admirado, cujos versos, Camões, na sua Carta de Africa,
     intercalava na sua prosa.»


Esta produção peregrina do snr. Dr. Theóphilo Braga veio publicada no
jornal _O Dia_ com a assinatura do professor do Curso Superior de Letras
em _fac-simile_, e ainda bem, para que não se pudesse ajuizar tratar-se
de uma brincadeira de mau gosto de quem quer que fosse.

Quando lemos um tal documento, a primeira impressão que se apoderou de
nós foi a de revolta; mas logo um outro sentimento veio substituir
esta--um sentimento muito fundo de tristeza, de sincera mágoa...

E, sem prazer, pudemos constatar que a impressão que o snr. Dr.
Theóphilo Braga deixára nos leitores inteligentes do seu tendencioso
_Movimento Litterario_ era egual á nossa,--uma sincera mágoa.

Mas no artigo do eminente professor eramos tam directamente alvejados, e
o nosso trabalho depreciado com tal rancor e má fé, que não podiamos
ficar silenciosos.

No jornal a _Lucta_, do dia 3 de Janeiro d'este ano, como protesto,
publicamos o artigo que vamos reproduzir:


*Os processos... scientíficos do snr. dr. Theóphilo Braga*

Não se dignou o sr. dr. Theóphilo Braga aceitar o oferecimento que o
distinto jornalista que dirige _A Lucta_ lhe fez em 4 de dezembro
ultimo: pondo á disposição de s. ex.^a as colunas deste diário, para que
o professor do Curso Superior de Letras dissesse da sua justiça em face
da carta que tive ensejo de dirigir ao meu bom amigo snr. dr. Brito
Camacho, estampada n'este jornal, motivada pelo procedimento estranhavel
seguido para comigo pelo snr. dr. Theóphilo Braga.

Passaram-se dias, passaram-se semanas, e, quando todos julgavam que o
professor do Curso Superior de Letras adoptara de Conrado o prudente
silêncio, eis que o sr. dr. Theóphilo Braga, a pretexto de pôr os
leitores do _Dia_ ao corrente do movimento literário no ano findo, com
ares dogmáticos e desdenhosos, enche perto d'uma coluna d'aquele jornal
com um aranzel cheio de lugares comuns, procurando refutar as conclusões
do meu recente estudo sobre Bernardim Ribeiro.

Não me surpreendeu o rancor que transparece no artigo do snr. dr.
Theóphilo Braga. Imagino quanto deve ser doloroso para o professor do
Curso Superior de Letras o ter de refundir mais uma vez dois dos volumes
da sua chamada edição integral da _Historia da Litteratura Portugueza_:
«Sá de Miranda» e «Bernardim Ribeiro». Isto, junto ao conhecimento que
possuo da maneira de ser do snr. dr. Theóphilo Braga, é para mim
explicação bastante do seu ressentimento, que a prosa do infatigavel
«carreador de materiaes» não consegue disfarçar.

A todos os pontos tocados no aranzel do snr. dr. Theóphilo Braga, darei
resposta em livro, e d'essa tarefa procurarei desempenhar-me em curto
praso, com a largueza e documentação que o assunto requer, o que não é
compativel com o espaço que a trabalhos d'esta espécie pode dispensar um
jornal da índole da _Lucta_.

Por hoje, e certo da amabilidade com que me distingue o meu prezado
amigo snr. dr. Brito Camacho, desejo apenas salientar, muito ao de leve,
algumas inexactidões flagrantes do artigo _Movimento litterario_, do
snr. dr. Theóphilo Braga, que bem demonstram a _correcção_ dos
processos... scientíficos do professor do Curso Superior de Letras.

Referindo-se ao ultimo tomo do _Archivo Historico_, a revista dirigida
pela superior competência do snr. Braamcamp Freire, em que este escritor
encetou a publicação da sua monografia sobre Maria Brandão, diz o snr.
dr. Th. Braga que a monografia «ficou publicada», procurando assim dar a
entender que o estudo do snr. Braamcamp Freire está ultimado, quando é
facto que ainda lhe falta o capítulo em especial referente a Maria
Brandão, destinado por certo a ser o mais curioso, pela luz que ha de
fazer jorrar sobre a figura da suposta amada do poeta _Crisfal_.

Mas ao snr. dr. Theóphilo Braga conveio torcer a verdade, para que com
maior presteza os leitores ingénuos acreditassem nos seguintes períodos
ardilosamente engendrados:


    «O sr. Anselmo Braancamp Freire escreve em nota: «Sei que se trata
    de provar que a Ecloga de Crisfal não foi escripta por Christovam
    Falcão, mas por Bernardim Ribeiro, e que por tanto a heroina não é
    Maria Brandão, mas sim a mesma do romance _Menina e Moça_ d'aquelle
    auctor». E accrescenta, que o sr. Delfim Guimarães, empenhado na
    interessante averiguação, o consultara, communicando lhe as bases em
    que fundava a sua argumentação, as quaes não conseguiram demovel-o
    da rotina.»


Ao contrário da afirmação do snr. dr. Theóphilo, o snr. Braamcamp Freire
não declara tal que eu o consultara sobre a averiguação que fiz, como
não escreveu na nota citada pelo snr. dr. Theóphilo Braga aquilo que s.
ex.^a gratuitamente lhe atribue.

Reproduzo textualmente o período que o snr. dr. Theóphilo Braga
interpretou a seu bel-prazer, para melhor juizo dos que me lêem:


    «O sr. Delfim de Brito Guimarães, que anda empenhado na interessante
    averiguação, teve a bondade de me comunicar as principaes bases que
    servirão de alicerce á sua argumentação: entretanto, emquanto não
    apparecerem os considerandos e a sentença sobre a prova nelles feita
    não transitar sem apelação em julgado, não me compete intervir no
    pleito e continuarei com a rotina.»


Como se vê, o snr. Braamcamp Freire não escreveu que eu lhe comunicara
as _bases_ em que fundava a minha argumentação, mas sim unicamente _as
principaes bases_, e o consciencioso investigador não declarava que taes
bases _não conseguiram demovê-lo da rotina_, mas sim que «em quanto não
aparecessem os considerandos e a sentença sobre a prova nelles feita não
transitasse sem apelação em julgado, _não lhe competia intervir no
pleito e continuava com a rotina_».

Para que torceu, a seu talante o snr. dr. Theóphilo Braga a nota cheia
de correcção do ilustre escritor?--Para se servir, como de um escudo
protector e cómodo, do nome prestigioso de Braamcamp Freire, procurando,
com tal engenho e arte, fazer acreditar aos papalvos desprevenidos que
tinha a apoiar o seu desmentido formal ás conclusões do meu trabalho a
individualidade, a todos os títulos eminente, do ilustre director do
_Archivo Historico_.

Ora a nota invocada pelo snr. dr. Theóphilo Braga encontra-se logo na
2.^a pagina do estudo do snr. Braamcamp, e foi produzida quando o
erudito escritor traçou os primeiros períodos do seu trabalho,
conhecendo apenas as «bases principaes» com que elaborei o meu livro
_Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal)_.

Depois da leitura do meu modesto estudo, o snr. Braamcamp Freire teve a
gentileza de me comunicar que os meus argumentos haviam logrado
convencê-lo. E por tal fórma o convenceram que o ilustre escritor logo
abandonou a rotina, não carecendo para isso que a sentença sobre a prova
feita transitasse em julgado--muito embora isto pese ao snr. dr.
Theóphilo Braga, que até viu com desgosto que o abalisado professor snr.
Gonçalves Viana, achasse que o meu livro _Bernardim Ribeiro_ fazia honra
á erudição portuguêsa.

Mais, o snr. Braamcamp Freire não só me felicitou calorosamente pelo
éxito do meu trabalho, que representava a justa reparação devida a um
dos maiores poetas da nossa terra, como teve a bondade de enviar-me a
prova tipográfica de uma passagem do seu estudo, então no prélo, em que
o conceituado escritor confessava publicamente que Maria Brandoa, a
lendária amada do Crisfal, passara á historia...

Foi fazer companhia aos _cantos de ledino_...

Tal passagem se encontra a pag. 402 do ultimo tomo do «Archivo
Historico», mas o snr. dr. Theóphilo Braga seguindo os processos...
scientíficos que o enaltecem, ocultou-a propositadamente,
intencionalmente, aos leitores do seu artigo estampado no _Dia_.

É como segue:


     «...do catalogo porém limitar-me-ei agora a extrair os nomes dos
     oficiaes da feitoria, reservando-me para aproveitar d'elle, n'outro
     capitulo, um dado importante para a biographia de *Maria Brandôa,
     já, coitadita! quando este estudo aparecer a publico, apiada de
     heroina da ecloga Crisfal*.»


Ás afirmações, em apoio da minha tese, feitas em maio de 1908 no _Diario
da Tarde_, do Porto, pelo insigne publicista snr. José Pereira Sampaio
(_Bruno_), refere-se tambem o snr. dr. Theóphilo Braga da seguinte
maneira:


     «No noticiario de outro jornal sairam afirmações absolutas,
     proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade
     inconsciente que afasta de todo a idéa de ironia».


O snr dr. Theóphilo Braga, referindo-se, com desdem, á _sinceridade
inconsciente_ de Bruno, não nos magôa sómente a nós, que votamos uma
grande estima ao ilustre escritor portuense: ofende as Letras
Portuguêsas, que teem no snr. José Sampaio uma das suas mais legítimas
glórias.

Tristes processos está seguindo o snr. dr. Theóphilo Braga!


                                                  Delfim Guimarães



O snr. dr. Brito Camacho, dando hospitalidade nas colunas da _Lucta_ ao
nosso artigo, nòvamente pôs o seu jornal á disposição do snr. dr.
Theóphilo Braga, para que s. ex.^a, querendo, dissesse de sua justiça. O
professor do Curso Superior de Letras não aceitou o oferecimento que
pela segunda vez lhe era feito.

E, em verdade, que havia o autor do artigo _Movimento Litterário_ de
dizer em contestação do libelo documentado que tinhamos produzido?
Nenhuma justiça lhe assistia, e por consequência não ousou reclamar.
Recolheu-se ao silêncio,--áquele prudentíssimo silêncio que se seguiu á
publicação do notavel trabalho do Dr. Sílvio Romero sobre a _Patria
Portuguêsa_.

No artigo que publicamos na _Lucta_, de 3 de janeiro do ano em curso,
tomámos o compromisso de tratar em livro todos os pontos tocados pelo
snr. dr. Theóphilo Braga no seu aranzel do _Dia_, com a largueza e
documentação que o assunto exige, em homenagem á memória de Bernardim
Ribeiro; pelo dever moral que nos impusemos de contribuir, quanto em
nossas mingoadas forças caiba, para que justiça seja feita, embora
tardia, a um dos mais belos temperamentos poéticos da nossa terra.

Uma lenda é fácil de forjar, e com facilidade toma corpo e lança raizes,
obcecando muitas vezes os mais esclarecidos espíritos.

A nossa Historia Literária está cheia de lendas e embustes, graças aos
Farias e Sousa e Bernardos de Brito. Mas a Verdade, superior a todas as
lendas, e a todas as reputações de historiadores burlões e de críticos
trapaceiros, acaba sempre por triunfar, embora isso leve anos, embora
decorram séculos.

Na defeza da causa que prosseguimos, que é nobre e justa, não nos animam
quaesquer intuitos de evidenciação, não nos move qualquer mesquinho
sentimento de despeito; lutamos pela verdade, procuramos contribuir com
o nosso esforço de modestos obreiros das letras para desfazer um erro
que a ignorância engendrou, que a rotina não-te-ralesca impôs como um
dogma, e que a vaidade irritada e irritante do snr. dr. Theóphilo Braga
persiste em sustentar, a torto, que não a direito, impondo-o
autocraticamente a quantos vêem no professor do Curso Superior de Letras
o pontífice máximo, ditador inviolavel e sagrado da Republica... das
letras portuguêsas.



II

O snr. dr. Theóphilo Braga, descobrindo a verdade, e procurando
enterrá-la


Ao preparar os materiaes para a refundição de seu livro sobre Bernardim
Ribeiro, o snr. dr. Theóphilo Braga teve ensejo de reconhecer que a
figura do _trovador_ Cristovam Falcão era mero produto de uma lenda, mas
não teve a coragem precisa para vir a público declarar que tinha errado
ao dar á estampa o seu primeiro volume sobre os poetas bucolistas, em
que, seguindo a rotina, dera existência real ao suposto poeta, que já
havia classificado de *ultimo eco do alaúde provençal, modificado pelo
gosto hespanhol de Padron e Stuniga*.[3]

E não querendo confessar que errara, como se semelhante facto
constituisse desdoiro ou apoucasse de qualquer fórma seus méritos, o
autor do livro _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_ procurou, por um
processo que não nos atrevemos a chamar genial, enterrar a verdade,
sepultando-a sob um pedregulho enorme, para que ali dormisse um sono de
séculos, tantos séculos pelo menos como a lenda contava, para que,
assim, ninguem pudesse aludir ao erro em que se deixara enredar o
professor do Curso Superior de Letras.

Como o snr. dr. Theóphilo Braga procedeu, vão os leitores conhecer, e
depois ficarão habilitados a julgar da sinceridade com que o infatigavel
escritor impugna o nosso livro sobre o poeta _Crisfal_.

A pag. 356/7 do seu livro _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_, na parte
respeitante a Cristovam Falcão, escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga:


     *«O primeiro documento historico que encontramos acerca do poeta,
     de um modo irrefragavel, é datado de 1517; é uma graça régia
     motivada talvez pela sympathia que suscitava a sua desgraçada
     paixão, ou apparentemente pelos serviços de seu pae. Em um alvará
     ao Almoxarife de Coimbra foi passada ordem para que dê o rendimento
     d'este anno de 1517 a Christovam Falcão: 97:000 réis. Recebeu-os o
     seu procurador Mestre Jorge.»*


Como se vê da transcrição feita, o autor declarava que o documento
invocado referia-se ao suposto poeta *de um modo irrefragavel*, isto é:
«*irrecusavelmente, incontestavelmente*.» Esse documento dizia respeito,
segundo inculcava o snr. dr. Theóphilo Braga, a _uma graça régia_, mercê
de _97$000 réis_, concedida ao suposto bardo _talvez pela sympathia que
suscitava a sua desgraçada paixão, ou apparentemente pelos serviços de
seu pae_.

Ora fazendo taes afirmativas, autoritária e catedraticamente, o snr. dr.
Theóphilo Braga abusava da boa fé dos seus leitores, por isso que s.
ex.^a muito bem conhecia que estava deturpando a verdade, a seu
bel-prazer, que nada d'aquilo que apregoava como autêntico era
verdadeiro.

Nem o alvará de 1517 dizia respeito ao suposto poeta, nem semelhante
alvará mencionava a verba de 97$000 réis.

Tratava-se de uma tença de 97$734 reis (resultante de dois padrões) que
pertencia a Cristovam Falcão, senhor da vila de Pereira, e não ao
suposto poeta Cristovam Falcão de Sousa.

Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga a existência dos dois
padrões constituitivos da referida tença?--Não ignorava. E a prova de
que os não desconhecia está nas citações que s. ex.^a faz a paginas
331/2 do seu mencionado livro, atribuindo-os a quem eles diziam
respeito, isto é a Cristovam Falcão, senhor da vila de Pereira, que nada
tinha que ver com o suposto poeta, como o snr. dr. Theóphilo Braga, de
resto, muito bem estabelecia.

Mas a existência de uma tença de 97$000 reis, pelas alturas de 1517, a
favor de Cristovão Falcão de Sousa, comprovaria de certo modo a data em
que o snr. dr. Theóphilo Braga fixou habilidosamente o nascimento do
_ultimo eco do alaúde_, e permitia ao fantasioso escritor justificar tam
rasgada mercê régia atribuindo-a á _sympathia que suscitava a sua
desgraçada paixão_.

D'esta maneira, servindo-se de um alvará que não dizia respeito ao
suposto poeta, e alterando-lhe caprichosamente a quantia mencionada, o
snr. dr. T. Braga creava um _recurso histórico_ graças ao qual os
discípulos do professor do Curso Superior de Letras podiam aceitar que
pelas alturas do ano da graça de 1517 já existia um afamado poeta com o
nome de Cristovão Falcão, tam desventurado em seus amores que el-rei,
compadecido, lhe fizera mercê da tença, verdadeiramente principesca, de
97$000 réis! E sucedendo um _caso_ d'estes em nossos dias, ainda ha quem
ache estranho que Faria e Sousa e frei Bernardo de Brito improvisassem
(é este o termo próprio?) documentos... históricos!

Ao publicarmos o nosso trabalho sobre Bernardim Ribeiro, não salientamos
devidamente estes pouco recomendaveis processos do snr. dr. Theóphilo
Braga, poupando, com generosidade, o nome do encanecido trabalhador, em
respeito aos seus cabelos brancos.

E á nossa manifesta generosidade correspondeu o aclamado professor
apodando os nossos processos críticos de:--processos... á tôa!

Que nome conceder a esses processos do snr. dr. Theóphilo Braga?

Mas não ficaram por aqui as habilidades de que se serviu o autor da
_Historia da Litteratura Portugueza_. E chamamos-lhes _habilidades_, por
não encontrarmos á mão um termo mais anodino, mais suave, mais doce,
para definir o feito, e não por qualquer propósito agressivo.

Existem na Torre do Tombo cartas autógrafas do suposto autor do
_Crisfal_. A simples publicação d'essas cartas constituiria um golpe
decisivo na lenda que atribuia produções de Bernardim Ribeiro a
Cristovão Falcão de Sousa, por isso que taes documentos revelam que
este, alem de iletrado, não escrevia meia dúzia de linhas sem uma
enfiada de asneiras...--«_uma acumulação de tolices_», no dizer
insuspeito de uma ilustre escritora.

Que fez o snr. dr. Theóphilo Braga?

Publicou essas cartas, alterando-lhe, paternalmente, a ortografia e a
gramática, e deixando assim transparecer que o autor de taes escritos
poderia muito bem ter produzido as poesias bucólicas que lhe atribuiam.

Para que se não ajuízasse que faziamos uma afirmação gratuita ao dizer
que o snr. dr. Th. Braga publicara _emendada_ a obra... em prosa de
Cristovam Falcão, démos no volume _Bernardim Ribeiro_ (O Poeta Crisfal)
uma reprodução foto-zincográfica de uma das cartas do suposto poeta, e,
não desejando colocar n'uma situação pouco invejavel o professor do
Curso Superior de Letras, escrevemos, procurando desculpar o seu
procedimento:


     «........o copista, a quem o distinto professor encarregou de
     reproduzir o documento existente na Torre do Tombo, forneceu-lhe
     uma reprodução _com summa deligencia emendada_, que o snr. dr.
     Theóphilo, com a melhor boa fé, estampou no seu livro, e que muito
     se afasta do original.»[4]


Nem na sua comunicação á Academia das Sciências de Portugal, nem no seu
artigo do jornal «O Dia», nem na carta que nos dirigiu, se referiu,
embora ao de leve, o snr. dr. T. Braga á carta de Cristovam Falcão de
Sousa... Compreende-se. O documento é tam esmagador, que o infatigavel
polígrafo foge d'ele como dizem que o diabo foge da cruz.

Mas, embora isso não agrade a s. ex.^a, vamos dar aqui a reprodução
paleográfica de outra carta de Cristovam Falcão de Sousa, devendo
elucidar os leitores que o snr. dr. Theóphilo Braga já deu publicidade a
tal documento a pag. 368/70 do seu _Bernardim Ribeiro_ (edição
refundida). Mas deu-lhe publicidade: _emendando-o_...

Como não temos a peito celebrizar o alto engenho e mais partes que
concorriam na pessoa do suposto poeta, reproduzimos a carta fielmente,
e, para desfazer algum erro de leitura ou qualquer _gralha_ que passe á
revisão, juntamos em foto-gravura o seu _fac-simile_.

Eis a carta:

[Figura: Reproducção foto-zincográfica da carta de Cristovam Falcão de
Sousa]


     «Sñor. mjnha jrmã dona bracajda faleceo da ujda presemte a dez dias
     deste mes pasado estando eu nesa corte [~e] serujço de v. a. onde
     me foy a noua pera [~q] viese prover [~e] alg[~u]as cousas da su
     alma por me ela dejxar por seu testam[~e]tejro cõ seu marido ejtor
     de figuejredo. fiquou-lhe h[~u] só filho e doutro marido [~q] deste
     não ouve nenh[~u] e tão Riquo [~q] me diz[~e] que foy posta a
     faz[~e]da de seu pay quãdo faleceo (que eu não era no Rejno) [~e]
     doze contos. fez meu pay antes [~q] eu de la partise petição a uosa
     a. [~q] lhe mãdase [~e]tregar seu neto e tirar de poder de seu
     padrasto. sayo lhe na petição [~q] Requerese ao Juiz dos orfãos da
     uila donde ho moço está que he borba donde seu padrasto he natural
     e alquajde mor pelo duque de bragança e que ele prouerja e que não
     no faz[~e]do proverja [~e]tão vosa a. a qual delig[~e]cia eu tenho
     fejto que Requery ao Juiz [~q] lho tjrase de poder e que fose loguo
     por [~q] eu tjnha sabjdo [~q] eitor de figueiredo detremjnaua
     quasar ho moço cõ sua f.^a no fim deste mes [~e] que lhe diziã que
     ho moço faz quatorze anos pera ho matrimonjo ser valioso. mãdou ho
     Juiz dar ujsta de meu Requerim.^{to} a eitor de figueiredo e njsto
     e [~e] ele Responder pasaram ojto dias e nestes me fizerão mujtos
     agrauos alomgãdo me ho tempo e me fizerão perdediça h[~u]a petjção
     dagrauo na qual agrauaua pera v. a. apresemtandoa eu [~e] audiencja
     onde foy lida e jsto tudo por ele ser alquajde mor e ser toda a
     ujla de seus paremtes e criados e por [~q] da li não pasão os
     agrauos se não pera ho ouujdor do duque onde tão b[~e] me deterjão
     pera ho moço chegar ao termo dos quatorze anos detremjney dejxar a
     cousa neste termo e fazelo saber a v. a. pera [~q] proueja njsto
     como lhe parecer serujço de deos e seu que mjlhor proueja [~q] pois
     t[~e] tal faz[~e]da que v. a. ho quase cõ qu[~e] ouuer por seu
     serujço [~q] não [~q] ho orfão seia asy Roubado. no que v. a. deue
     loguo prouer como pay dos orfãos [~q] he quanto mais [~q] quarega
     jsto sobre cõcj[~e]cja de v. a. por h[~u] alu.^{rá} que vosa a.
     pasou a ejtor de figueiredo ao t[~e]po [~q] quasou cõ mjnha Jrmã
     pelo qual tjrou a titorja a meu pay de seu neto por lha dar a ele.
     ao qual agora ajnda se pega, como se não fose cerada a cousa por
     morte de mjnha Jrmã. e o [~q] me parece [~q] se deue fazer he pasar
     v. a. logo alu.^{rá} por esta quarta [~q] pode serujr de petjção,
     [~q] polo qual mãde a h[~u] dos quoReiadores destremoz elvas ou por
     talegre [~q] qualquer deles va a borba e tjre ho moço de poder de
     seu padrasto e [~e]tregue sua p.^a a meu pay seu auô ou a meu jrmão
     barnabé de sousa [~q] t[~e] faz[~e]da p.^a ho mjlhor mãter [~q]
     biue [~e] portalegre onde ho moço t[~e] parte de sua faz[~e]da e
     lhe he já dado por tutor desta fazemda e despois do moço tjrado
     prouer v. a. [~e] qu[~e] seia seu tutor e seja ouujdo ejtor de
     figuejredo das Rezomis [~q] diz ter pera [~q] ho moço quase cõ sua
     f.^a mas jsto deuela ser amte v. a. [~q] qua não sey quãto se
     gardara Justiça e ho aluará pode v. a. mãdar dar a demjão de sousa
     meu irmão [~q] la amda [~q] ele ho fará vir cõ mujta delig[~e]cia
     [~q] eu fiquo qua esperamdo p.^a ho Requerer e apresemtar. e
     l[~e]bro mais a uosa a. [~q] mãde ao mesmo coReiador que
     [~e]t[~e]da nas partjlhas e jmb[~e]tajro [~q] doutra manejra será
     Roubado ho orfão e asi [~q] o t[~e]po aquaba p.^a fim deste mes e
     eu s.^{or} neste trabalho nõ pretendo mais [~q] fazer ho [~q] deuo
     e tenho dejxado os Requerjm.^{tos} que trago cõ v. a. [~e] mão de
     fernão daluarez peço a v. a. que nõ perqua por ausente de ser
     despachado. a qu[~e] deos a ujda e Real estado acrec[~e]te. de
     portalegre sete de novembro. as Reajs mãos de v. a. bejjo. xpouão
     falcão de sousa.»[5]

     !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


Ao leitor deixamos a faculdade de comentar a carta _primorosa_ do
sarrafaçal engenho que durante alguns séculos gosou da fama de poeta
insigne, em prejuizo do nome aureolado de Bernardim Ribeiro.



III

Anotações á carta que nos dirigiu o snr. dr. Theóphilo Braga


*1*

     «A ninguem interessaria tanto o conhecimento d'este problema, como
     a mim, que esbocei uma biographia de Christovam Falcão com
     elementos historicos (documentos authenticos) comprovando dados
     genealogicos.»

                                        _Carta do snr. dr. Th. Braga._



Não ha a menor dúvida quanto á primeira parte d'esta afirmação.

Com efeito, o snr. dr. Theóphilo Braga esboçou uma biografia de
Cristovam Falcão, e ninguem ousará contestar-lhe o mérito de haver sido
o Plutarco do suposto trovador.

Esboçando-lhe a biografia, o abalisado professor de literatura serviu-se
de documentos autênticos... mas utilizando alguns que não diziam
respeito ao pseudo-poeta, e sim a um outro Cristovam; e interpretando,
modificando e adulterando outros documentos ao sabor do seu paladar, ao
capricho da sua fantasia.

No capitulo XIX do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro destrinçamos os
documentos históricos que o snr. dr. Theóphilo Braga propositadamente
confundiu, e restabelecemos o texto de uma das cartas de Cristovam
Falcão de Sousa que o habil professor _emendara_, com o zelo de Plutarco
cioso do bom nome do seu heroe... lendário.

No segundo capítulo d'este livro, ficou tambem fielmente reproduzida
outra carta de Cristovam Falcão, que o infatigavel historiador havia
_corrigido_, como se se tratasse de um tema de algum discípulo seu.
Mesmo quando se entrega a trabalhos de reconstituição histórica, o snr.
dr. Theóphilo Braga não se esquece de que é professor de literatura
portuguêsa!

Depois de isto, como ousa o snr. dr. Theóphilo Braga invocar os
documentos autênticos de que tam mau uso fez?


*2*

     «Tive de ler immediatamente o seu livro, para ver que materiaes
     traria para o aperfeiçoamento do meu trabalho.»

                                     _Carta do snr. dr.  Th. Braga._


Tem graça, e não ofende!

Se leu imediatamente o nosso livro, não foi para ver que novos subsídios
forneciamos para o estudo da história da literatura portuguêsa, mas sim
para conhecer quaes os materiaes que lhe facultariamos para o
aperfeiçoamento do seu trabalho...

Cabe n'esta altura, a talho de foice, deixar consignada certa passagem
de uma palestra que o snr. dr. Theóphilo Braga teve com um dos seus mais
inteligentes discípulos a propósito da publicação do nosso livro sobre
Bernardim Ribeiro:

«V. compreende... Eu sou como um mestre de obras... na construção de um
edificio. Ha vários pedreiros... Vão-me chegando ás mãos diversas
pedras... Aproveito aquelas que se me afiguram de feição, geitosas,
convenientes para a minha obra, e as outras ponho as de parte, deito-as
fóra.»

E a um distinto confrade nas letras, ainda por motivo da publicação do
nosso livro, o professor do Curso Superior de Letras teve ensejo de
referir-se á nossa obscura pessoa, fazendo o favor de nos reconhecer
talento, mas... _que os estudos de investigação histórica eram umas
teclas muito dificeis, muito complicadas_...

O apreciado _mestre de obras_ (segundo a frase de s. ex.^a) escusava de
ter lido o nosso trabalho. O sub-título do livro, _O Poeta Crisfal_,
demonstrava suficientemente ao snr. dr. Theóphilo Braga que nenhuma
pedra de feição poderiamos proporcionar-lhe para o _aperfeiçoamento_ da
sua obra, porque o nosso livro lhe atirava a terra com os alicerces em
que se firmava o edificio... ou monumento erguido ao falso _Crisfal_.

Foi um castelo de cartas que um sopro deitou ao chão...

Oh! os estudos de investigação histórica são realmente... umas teclas
muito complicadas!


*3*

     «Mesmo no prologo fez-me V. a justiça de que eu aproveitaria tudo
     quanto se prestasse a futuras emendas.»

                                        _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Não escrevemos tal no prólogo do nosso livro que o snr. dr. Theóphilo
Braga aproveitaria d'ele _tudo quanto se prestasse a futuras emendas_.

O que nós escrevemos a pag. 24 do nosso estudo sobre Bernardim é o
período que segue:

«Embora, em resultado da nossa descoberta, o snr. dr. Theóphilo Braga
tenha de refundir mais uma vez os seus trabalhos sobre Bernardim Ribeiro
e Sá de Miranda, estamos plenamente convencidos de que ninguem estimará
mais do que o incansavel professor do Curso Superior de Letras a luz
derramada sobre a figura do grande poeta bucolista, amigo de Francisco
de Sá.»

Nas linhas transcritas, o que havia da nossa parte era um cumprimento de
cortesia,--uma gentileza, uma amabilidade, própria de quem, não tendo
qualquer agravo do snr. dr. Theóphilo Braga, procurava colocar s. ex.^a
em bom terreno, oferecendo lhe, por assim dizer, uma ponte, uma táboa de
salvação, pela qual, sem quebra de linha, o escritor consagrado pudesse
atravessar, reconhecendo, ou fingindo reconhecer, o mau terreno que
estava pisando, e abraçando honestamente a verdade evidenciada.

Era um cumprimento, repetimos; não um acto de justiça, que a ele não
tinha jus o infátigo escritor. E da mesma natureza, no decurso do nosso
trabalho, outras demonstrações de cortesia ficaram assinaladas,
prestando homenagem á vida laboriosa do escritor encanecido cujos erros
combatiamos.

Mas como as amabilidades se agradecem, e os actos de justiça não são
credores de qualquer agradecimento, aprouve ao snr. dr. Th. Braga ver
nas nossas palavras um acto de justiça.

Não lhe queremos mal por isso, pode crer o venerado professor.

Cada qual segue os impulsos do seu temperamento.


*4*

     «Desde as noticias genealogicas trazidas por Braancamp Freire sobre
     D. Maria Brandão, que Cristovam Falcão amou, sendo ambos muito
     crianças, via-me forçado a tomar o nascimento d'elle no fim do
     primeiro quartel do seculo XVI.»

                                        _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Quando chegámos a esta altura da preciosa carta do snr. dr. Theóphilo
Braga ficamos verdadeiramente surpreendidos, para não dizer
boquiabertos!

Lemos e tornamos a ler o período transcrito, pesamos detida e
pacientemente cada uma das palavras que o constituem, e, ao cabo,
alcançamos o convencimento de que uma tal afirmação constituia uma
habilidade, um processo, uma engenhoca,--deixem chamar-lhe assim, embora
o termo destôe, por menos académico,--a que o professor de literatura
recorria para não confessar ter sido o nosso trabalho que o obrigava a
aceitar o nascimento do suposto poeta no fim do primeiro quartel do
seculo XVI.

Fôra pelas noticias genealogicas trazidas pelo snr. Braamcamp Freire
sobre D. Maria Brandão que o snr. dr. Theóphilo Braga, conforme nos
escrevia, se vira forçado a não insistir no nascimento do pseudo Crisfal
no ano de 1497, se não antes!

Mas como podia isto ser, se o trabalho do ilustre escritor invocado pelo
snr. dr. Theóphilo ainda não fôra dado á estampa?

Teria o professor do Curso Superior de Letras recebido qualquer
comunicação sobre o assunto por parte do snr. Anselmo Braamcamp
Freire?--Não, não tinha recebido, como o demonstram eloquentemente os
seguintes períodos de uma carta que em 5 de dezembro de 1908 nos
dirigiu, em resposta a uma nossa, o primoroso director do _Archivo
Historico_:


     «Vamos agora á sua pergunta de hoje originada pela carta do dr.
     Teofilo Braga. Elle não conhece nada do meu trabalho sobre a Maria
     Brandoa, e faça-me a justiça de crer que, não lho tendo mostrado a
     si, não o mostraria a mais ninguem. Não lho mostrei a si, porque
     nas 150 paginas já impressas, de que em breve lhe mandarei um
     exemplar, nada digo a respeito de Maria Brandoa: trato dos Brandões
     do _Cancioneiro_ e da Feitoria de Flandres.»


Depois da transcrição d'estas linhas, eloquentes e insuspeitas, do snr.
Braamcamp Freire, tornam-se desnecessários de nossa parte quaesquer
comentários á afirmação sem base do snr. dr. Theóphilo Braga.

Passemos adeante sobre este caso triste!


*5*

     «Isto nos impossibilitava de continuar a admittir as relações
     pessoaes de Cristovam Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e
     dementado em confidencias de amor com um rapaz no viço da mocidade;
     e por tanto as Eclogas em que elle figurava interpretativamente
     tinham de ser lidas a outra luz. V. acabando de fazer a destrinça
     entre o Poeta e seu primo mais antigo, deu-me elementos para uma
     melhor interpretação das Eclogas de Bernardim, (eliminadas as
     relações com Cristovam Falcão), e mostrando como realmente as
     poesias d'aquelle, como mestre, influiram no mais moço, que como
     novel chega a fazer centões e intercalações de versos de Bernardim
     Ribeiro.»

                                        _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Pelo exposto, entende o snr. dr. Theóphilo Braga que nós lhe demos
elementos para uma melhor interpretação das éclogas de Bernardim, o que
importa implicitamente a afirmação de que não soubemos interpretá-las,
ou que erramos a exegese com que julgavamos ter corrigido as lições
ministradas pelo ilustre professor.

Aguardemos, pacientemente, que o snr. dr. Theóphilo Braga refunda mais
uma vez o seu livro sobre Bernardim Ribeiro, para então apreciarmos as
novas interpretações que o imaginoso historiador se propõe apresentar
das éclogas de Bernardim, e ficarmos tambem conhecendo quaes os _centões
e intercalações_ de versos de Ribeiro que o novel Falcão introduziu nas
suas produções... em prosa, únicas que obrou. Obrou, no sentido de:
produziu, claro está.


*6*

     «Ha uma affirmativa histórica, de Diogo do Couto, na sua _Decada
     VIII_, que fallando de Damião de Sousa Falcão, accrescenta como
     reforço historico: «irmão de *Cristovam Falcão*, aquelle que fez
     aquellas cantigas nomeadas de Crisfal...» E tambem no seculo XVI
     Fructuoso (resumido pelo P.^e Antonio Cordeiro na Historia
     insulana) diz de Cristovam Falcão: «parente do Barão velho e do
     famoso poeta Cristovam Falcão, que fez a celebre Ecloga Crisfal das
     primeiras syllabas do seu nome...» Tambem nas edições de Ferrara e
     Colonia, feitas por curiosos sem criterio litterario, se repete a
     attribuição «_que dizem ser_ de Cristovam Falcão, ho que parece
     alludir o nome da mesma Ecloga». Não se podem refutar por negativa
     estes testemunhos de homens de letras do seculo XVI, e que se
     reflectiram nos genealogistas.»

                                        _Carta do snr. dr. Th. Braga._


A habilidade, ou antes o processo habilidoso, ou, melhor, a tendenciosa
redacção d'estes períodos não consegue iludir ninguem... Julgou talvez o
snr. dr. Theóphilo Braga que nos desnortearia com esta subtileza de
processos... críticos. Tal não conseguiu, como terá de reconhecer no
foro íntimo da sua consciência.

Vamos por partes:

Foram os editores de Ferrara e Colónia que propagaram pela imprensa a
lenda de que a paternidade da carta e ecloga de Crisfal era atribuida a
Cristovam Falcão, e, fazendo-o, limitaram-se, com honestidade, a
escrever: «que dizem ser... ao que parece aludir o nome da mesma
ecloga». Ao contrário do que o snr. dr. Theóphilo Braga procura fazer
incutir, tendenciosamente, os editores citados não repetiram uma
atribuição de homens de letras do seculo XVI...

Os homens de letras do seculo XVI é que repetiram, fazendo-a certa, a
atribuição feita com reservas pelos editores das obras de Bernardim
Ribeiro em 1554 e 1559. Aceitaram por boa, sem se darem ao trabalho de a
verificar, uma simples atoarda.

Quem eram os editores de 1554 e 1559 das obras de Bernardim Ribeiro?

Di-lo, judiciosamente, o snr. dr. Theóphilo Braga na carta que vamos
analisando:

Eram «*curiosos sem critério literário*».

Será a estes obscuros obreiros do século XVI que o laureado professor
quer guindar á categoria de homens de letras com foros de autoridades?

Não, os editores de 1554 e 1559 foram realmente creaturas sem o menor
critério literário, e por isso deram alentos á lenda forjada pelo vulgo;
mas não resta a menor dúvida de que eram pessoas de bem, porque
consignaram uma _tradição vaga_, sem se atreverem a registá-la como um
facto positivo, indiscutivel, incontroverso. A cobrir a sua
responsabilidade de editores conscienciosos, lá estamparam: «que dizem
ser... ao que parece aludir.» Outros fossem eles, que asseverassem que
as duas produções, carta e écloga, pertenciam a Cristovam Falcão
incontestavelmente, irrefragavelmente!

Ignorava, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga que os editores da obra
de Bernardim Ribeiro, ao produzirem as rúbricas respeitantes ao suposto
autor do Crisfal, mencionavam apenas uma atoarda, uma vaga tradição?

Não; o venerado professor não ignorava isso. Testemunha-o o que s. ex.^a
escreveu a paginas 21 da sua chamada edição crítica das obras de...
Cristovam Falcão:

*«As rubricas do editor de Colonia, encerram as tradições vagas, que,
passados nove annos, ainda corriam ácerca d'aquelle infeliz namorado.»*

Para que veio pois o snr. dr. Theóphilo Braga asseverar que _tambem nas
edições de Ferrara e de Colonia se repete a atribuição_?

Mais diz o apreciavel escritor que «não se podem refutar por negativa»
as atribuições que Diogo do Couto e Frutuoso fizeram, repetindo _como
certo_ o que os editores das obras de Bernardim registaram _sob
reservas_.

Não se podem refutar por negativa, não; mas podem refutar-se cabalmente,
pondo em confronto da obra poética atribuida a Cristovam Falcão a obra
em prosa que ninguem ousará disputar ao suposto trovador.

E a admitir alguem, de reconhecida inteligência e critério, que o autor
das cartas em prosa podia ser o poeta da Carta e da Ecloga de _Crisfal_,
o mesmo equivaleria a aceitar como razoavel que Rosalino Candido pudesse
firmar as obras do snr. dr. Theóphilo Braga, e que, consequentemente, o
laureado professor de literatura fosse capaz de produzir a obra
gigantesca de Victor Hugo.

É realmente desolador, para a fabula consagrada, que a Torre do Tombo
conserve os autógrafos de Cristovam Falcão de Sousa!


*7*

     «A ecloga de Crisfal não podia ser publicada pelo seu autor, nem
     pelo seu consentimento porque era uma _inconfidencia_ de antigas
     relações amorosas com uma senhora que estava casada.»

                                      _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Esta bizarra revelação do snr. dr. Theóphilo Braga constitue,
naturalmente, uma desenfastiada brincadeira de s. ex.^a.

Pois qual é a obra _lírica_ onde se não encontrem _inconfidências_
semelhantes ás da ecloga de Crisfal?

O snr. dr. Theóphilo Braga, que aos catorze anos já se entregava a
devaneios poéticos, não deixou certamente de dar publicidade a versos em
que foi decantada alguma dama unida pelos laços matrimoniaes... E
estamos convencidos de que ninguem chamou _inconfidências_ aos suspiros
poeticos do trovador açoreano. As inconfidências não servem de tema ás
locubrações dos vates; onde existe arte, no bom sentido da palavra, não
ha inconfidências, embora n'este ponto estejamos em absoluta
discordância com a doutrina exposta pelo professor do Curso Superior de
Letras.

Em toda a obra, prosa ou verso, de Bernardim Ribeiro, vive, palpita, a
história ingénua da sua vida, o trama dos seus mal-aventurados amores
por uma dama que trocou a afeição do poeta pela de um outro zagal. Foi
um inconfidente o magoado Bernardim?--Não, foi um artista, foi um poeta
apaixonado, alma de eleição que da sua dor fez um poema, como diria
Goethe. E que adoravel e sentido poema nos legou o grande poeta
bucolista!

Mas não vale a pena insistir mais n'este ponto. A afirmativa do snr. dr.
Theóphilo Braga constitue, naturalmente, um gracejo inofensivo de s.
ex.^a.


*8*

     «A edição sem data, de Lisboa, só podia ser feita por 1542, quando
     Cristovam Falcão estava em Roma; e quando Camões foi para Ceuta em
     1547 na Carta que d'ali escreveu emprega muitos versos do
     _Crisfal_, que então andava no gosto.»

                                      _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Reproduzamos aqui o que o autor da _Historia da Litteratura Portugueza_
escreveu a paginas 394/5 do seu volume _Bernardim Ribeiro_ (edição
refundida):


     «N'esta folha volante não vem a _Carta_, nem as _Cantigas_ e
     _Esparsas_ incluidas na edição de Colonia. Parece mais uma
     vulgarisação popular, talvez uma das muitas que tornaram a Ecloga
     _muy nomeada_, e de que a reprodução de 1571, feita em Lisboa
     (existiu na Livraria de Joaquim Pereira da Costa) seria o typo que
     serviu para a reprodução de 1619, em que apparecem elementos só
     conhecidos pela edição de 1559.

     «A folha volante _sem data_ diverge do texto de Colonia
     profundamente; basta observar as variantes entre as lições das
     estrophes 51 e 52. Attribuimos a impressão das _Trovas de Crisfal_,
     a 1536, quando appareceram tambem em folha volante as _Trovas de
     Dois Pastores_ (Ecloga III) de Bernardim Ribeiro.

     «A vinheta do Pastor com capuz e cajado no _Crisfal_ é a mesma que
     serve nas _Trovas de dois Pastores_; o typo gothico corpo 12 do
     titulo do folheto de 1536 é o empregado no texto do _Crisfal_.
     Tambem a vinheta da Dama, que vem no titulo, appareceu empregada em
     outra folha volante de 1536, intitulada _Tragedia de los amores de
     Eneas y de la reina Dido_.»


Procedemos ao mesmo exame a que o snr. dr. Theóphilo Braga sujeitou o
_pliego-suelto_, e chegamos a egual conclusão. Algumas vezes nos
haviamos de encontrar em concordância de vistas com s. ex.^a. E porque o
nosso pensar sobre o assunto egualava o do ilustre professor, escrevemos
a pag. 119 do livro _Bernardim Ribeiro_ (O Poeta Crisfal), aludindo ao
folheto sem indicação de data nem de lugar de impressão:

[Figura]

«...mas reconhecendo-se, pelo confronto com outros folhetos, ser de
1536).

«Como muito bem observou o snr. dr. Theóphilo Braga, etc.»

Seguiu-se a transcrição do parágrafo do snr. dr. Th. Braga que atrás
reproduzimos.

Mudou o abalisado professor de opinião quanto á data do _pliego-suelto_,
querendo agora fixar-lhe o ano de 1542, como poderia fixar-lhe o de 1552
ou 1562, arbitrariamente.

Se ao menos s. ex.^a tivesse a condescendência de indicar-nos quando
seguiu os _processos inductivos da crítica moderna_! Ao fixar a data de
1536 ou quando arbitrou a de 1542?

Em folha apensa, damos uma reprodução foto-zincográfica das primeiras
páginas dos tres folhetos que levaram o snr. dr. Theóphilo Braga a fixar
a data da primeira edição conhecida das _Trovas de Crisfal_ em 1536.

Se nos perguntarem se estamos dispostos a quebrar lanças para sustentar
a antiga opinião do historiador da _Litteratura Portugueza_,
responderemos, com toda a franqueza, negativamente. O que não podemos
admitir é que se procure agora determinar-lhe _com precisão_ a data de
1542, com o simples fundamento de que n'esse ano estava em Roma o seu
suposto autor...

Alude o snr. dr. Theóphilo Braga ao facto de Camões empregar versos do
_Crisfal_.

A explicação, a nosso ver, é muito simples:

Em Faria e Sousa, o insigne fabulista, autor muito da predilecção do
snr. dr. Theóphilo, encontra-se uma afirmativa, que constitue em nosso
juizo uma das raras que merecem algum crédito, não obstante a impureza
da _fonte_.

Referindo-se a Bernardim Ribeiro, escreveu Faria e Sousa: «poeta bien
conocido y a quien llamava su Enio el divino Camões.»

Não desconhece isto o professor do Curso Superior de Letras, porque a
pag. 131 da primeira edição do seu _Bernardim Ribeiro_ reproduziu da
_Fuente de Aganipe_ o dizer de Faria.

Como demonstrámos no volume sobre o _Poeta Crisfal_, Camões glosou o
magoado solau da _Menina e moça_, de Bernardim Ribeiro.

Em uma das cartas atribuidas ao cantor dos _Lusiadas_, encontra-se uma
alusão directa ao autor das _Saudades_, indicando-lhe o nome: _Bernardim
Ribeiro_.

Se Bernardim era o seu _Enio_, naturalíssimo é que Camões se deixasse
influenciar pelo Mestre, imitando alguns dos seus versos.

A não ser que o snr dr. Theóphilo Braga queira concluir que, sendo
Bernardim o _Enio_ de Camões, Cristovam Falcão era o _Enio_ numero 2 do
mesmo poeta,--assim a modos de um _Enio_ barato, para trazer por casa.

Prossigamos...


*9*

     «Na edição de Lisboa vem duas estrophes supprimidas no texto de
     Ferrara e Colonia, por que continham uma _inconfidencia_. Isto leva
     a explicar como Cristovam Falcão tentaria apagar a paternidade da
     Ecloga fundamentando-se-lhe a imputação com o anagramma das
     primeiras syllabas do nome.»

                                     _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Salvo erro, o snr. dr. Theóphilo Braga quer referir-se apenas a uma, e
não a duas estrofes.

E á estrofe que reza:


    Muitos pastores buscaram
    mas um pastor por ser-te amigo,
    e outro por ser-te enemigo,
    um e outro se escusaram.
    E dão-lhe logo comigo
    gados que farão mil queijos;
    mas como se despediam
    é já mostrar que temiam
    que o sabor dos teus beijos
    na minha boca achariam!


Falava-se em _beijos_... Era uma _inconfidência_, e gravíssima, e por
isso a estrofe foi suprimida nas edições de Ferrara e de Colónia! Está
claro, e tam claro que, no dizer do snr. dr. Th. Braga, «_isto leva a
explicar como Cristovam Falcão tentaria apagar a paternidade da
Ecloga_...»

Ora admitindo por um momento que Cristovam Falcão houvesse sido poeta, e
tivesse a lembrança de escrever uma écloga abundante em
_inconfidências_, pespegava-lhe, sem mais nem menos, com um anagrama
deduzido das primeiras sílabas do seu nome, para que toda a gente logo o
apontasse a dedo como _inconfidente_?

De mais a mais, como quer o snr. dr. Th. Braga na sua exegese, se o
suposto poeta empregasse os nomes verdadeiros de todas as personagens
que a écloga alvejava, isso constituiria um _apagamento_ de paternidade
muito pouco apagado...

Todo o mistério, o discreto veu da fantasia, a cobrir a realidade dos
episódios que a écloga do _Crisfal_ menciona, equivaleria á ingenuidade
infantil d'aquela antiga adivinha: «Branco é, galinha o põe»!

Ponha se o snr. dr. Th. Braga no lugar do pseudo-trovador, imagíne que
resolvia arquitectar uma écloga cheia de _inconfidências_, e diga-nos,
com franqueza, se, desejando apagar a paternidade de um tal feito,
assinaria a sua produção com o anagrama _Theobra_?

Logo os seus discípulos concluiriam, triunfalmente: «Cá temos mais um
poema do Mestre!» E fosse lá s. ex.^a convencê-los de que não era tal o
autor da _inconfidência_!


*10*

     «Os logares communs a Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão provam
     mais a favor da imitação de um discipulo, do que á fusão dos dois
     poetas, repetindo-se o mestre na decadencia.»

                                    _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Com o respeito devido ao professor de literatura, de modo nenhum podemos
aceitar a sentença de s. ex.^a

A _subtileza_ do snr. dr. Theóphilo Braga, proclamando que os lugares
comuns a Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão provam mais a favor da
imitação de um discípulo do que á fusão dos dois poetas, é da natureza
do conhecido artifício pelo qual se póde sustentar que cinco vintens não
são um tostão, ou vice-versa!

Admitindo que Cristovam Falcão tivesse sido um imitador de Bernardim,
como quer o abalisado professor, explica-se porventura que levasse tam
longe a sua improbidade literária, que roubasse por inteiro versos e
cantigas ao seu mestre, com a maior desfaçatez? Pois o autor da _Carta_
e da _Eclóga de Crisfal_, a ser um imitador, não teria o bom senso
suficiente para reconhecer que, roubando versos de Bernardim, não
alcançaria renome de poeta, mas o apodo de salteador literário?

Um imitador, por mais inexperiente e tacanho, não se aproveita dos
textos que imita de maneira a que lhe possam apontar os versos
_palmados_. Ou não será isto o que a lógica permite conjecturar?

Como ignoramos _os processos inductivos da critica moderna_, é possivel
que estejamos em erro, e que da mesma ignorância resulte não alcançarmos
o sentido das palavras do snr. dr. Theóphilo Braga quando afirma que o
mestre (Bernardim Ribeiro) se repetiu na decadência.

Que repetições? e que decadência?


*11*

     «Emfim ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem: o de
     Joana e Fauno, Aonia e Bimnarder, e o de Maria e Crisfal. São duas
     almas, sentindo em situações differentes.»

                                      _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem, diz o snr. dr.
Theóphilo Braga na carta que, pacientemente, estamos anotando.

É verdadeira esta afirmativa?

--Não, não é verdadeira, e o professor do Curso Superior de Letras sabe
muito bem que o não é.

Em 1897, ao publicar a sua edição refundida do livro _Bernardim
Ribeiro_, confrontando versos de Bernardim com os atribuidos a Cristovam
Falcão, escreveu o professor de literatura.

«Vê-se que á medida que *a situação dos amores de Bernardim Ribeiro
seguia o mesmo desfecho dos amores de Cristovam Falcão*, os dois poetas
communicavam entre si os seus versos, sendo por este modo que se
salvaram as poesias do auctor do _Crisfal_.»[6]


Ha dois schemas de paixão amorosa que se não confundem, diz s. ex.^a,
procurando agarrar-se a uma boia salvadora...

Mas tanto a paixão é uma só que o snr. dr. Theóphilo Braga, na écloga em
que Bernardim se personifica sob o nome bucólico de _Persio_, viu n'essa
personagem *Cristovam Falcão*! E estamos em crer que o ilustre professor
não irá agora sentencear que a écloga primeira de Bernardim tambem foi
elaborada pelo suposto trovador...

Pois se o snr. dr. Theóphilo Braga até concluiu que tanto Bernardim como
Cristovão Falcão sofreram as agruras do _carcere privado_!

Como póde suceder que o distinto escritor já se não recorde do que
escreveu a pag. 76/78 da sua edição refundida do livro «Bernardim
Ribeiro», arquivemos aqui algumas das suas passagens:

     «...Não ignorava Bernardim que o namorado de Maria tambem estivera
     em carcere privado:

         _Vi-me já preso_; contente
         A meu mal queria bem.

     «Na Carta, que escreveu _estando preso_, e mandou áquella com quem
     estava casado a furto, diz Christovam Falcão:

         Mal cuja dor se não crê
         de _prisão_ e de ausencia!
         .............................

         Bem se enxerga nos meus danos
         _que estou preso ha cinco annos_,
         afóra os que heide estar...

     «Retratando o cuidado de Persio, diz Bernardim Ribeiro:

         Logo então começou
         _Seu gado a emagrecer,
         Nunca mais d'elle curou_,
         Foi-se-lhe todo a perder
         Com o cuidado que cobrou.

     «Em Christovam Falcão lê-se:

         Crisfal não era entam
         dos bens do mundo abastado,
         tanto como de cuidado,
         que por curar da paixão
         _não curava do seu gado_.

     «E continuando o parallelismo, por onde se vê que os dois poetas
     eram mutuos confidentes, e se influenciaram, temos mais estes
     traços com que Bernardim Ribeiro retrata o _Crisfal_:

         Sentava-me em um penedo
         Que no meio d'agua estava;
         Então alli só e quedo
         A minha frauta tocava.

     «E no _Crisfal_, quasi pela mesma maneira:

         Alli sobre uma ribeira
         de mui alta penedia,

         d'onde a agua d'alto caía,
         dizendo d'esta maneira
         estava a noite e o dia...

     «Bastam estas comparações para se reconhecer a communhão artistica
     entre os dois namorados poetas.»


Depois de haver escrito o que acaba de ler-se, como se compreende que o
snr. dr. Theóphilo Braga venha proclamar, com a maior sem-cerimónia, que
ha _dois schemas de paixão amorosa que se não confundem_!

Quanto a _Fauno_, nome pastoril que, em uma das éclogas, Bernardim dá ao
seu amigo, confidente e colega Francisco de Sá de Miranda, quer o snr.
dr. Theóphilo Braga que seja a personificação do próprio B.
Ribeiro,--talvez para não confessar que nós acertamos na interpretação
apresentada no _Poeta Crisfal_.

Temos certa curiosidade em saber se na futura refundição do livro sobre
os poetas bucolistas o seu autor transferirá para Sá de Miranda o crisma
de _Persio_, na impossibilidade de continuar a ver na mesma figura os
traços de Cristovam Falcão...

De uns versos de Francisco de Sá, imitando uma canção de Petrarca, já o
ilustre professor concluiu que o amigo de Bernardim sofrera a prisão,
por motivo de amores... É meio caminho andado para que, na fantasia de
s. ex.^a, o douto Sá de Miranda vá tomar o pouso do derreado Falcão.

A ver vamos... como dizia o cego, e cada vez via menos!


*12*

     «Através de todo o hypercriticismo, o livro sobre Bernardim revela
     um trabalhador fervoroso, etc.»

                                       _Carta do snr. dr. Th. Braga._


Duas palavras apenas:

A nosso juizo, aquele _através_ está a substituir, amavelmente, o
advérbio _apesar_... É o que julgamos depreender da sequência da frase.

No nosso modesto e desvalioso estudo, o snr. dr. Theóphilo Braga apenas
viu _hipercriticismo_, o que de modo nenhum póde agradar ao historiador
da _Litteratura Portugueza_, que só emprega os modernos processos da
crítica scientífica,--graças aos quaes... se vê obrigado a refundir
amiude os seus trabalhos!

Continuaremos, impenitentes, a cultivar o _hipercriticismo_, deixando ao
snr. dr. Theóphilo Braga o uso exclusivo dos seus processos, que não nos
seduzem, com toda a franqueza o dizemos.



IV

A comunicação do presidente da Academia das Sciencias de Portugal


No seio da sociedade scientífica e litéraria, de que é ilustre
presidente, proclamou o snr. dr. Theóphilo Braga, á porta fechada, isto
é, em reunião privativa dos sócios d'aquela Academia, que a vida amorosa
de Cristovam Falcão «_oscila entre 1525 e 1526, sendo n'aquella data
moço fidalgo, tendo pelo menos 12 annos_».

Cristovam Falcão de Sousa era moço fidalgo em 1527, como se demonstra
indubitavelmente pelo registo exarado n'um livro que existe no arquivo
da Torre do Tombo, registo que reproduzimos com fidelidade a paginas
168/9 do nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro.

Na sua erudita comunicação á Academia das Sciencias de Portugal, afirmou
o snr. dr. Theóphilo Braga que o suposto autor do _Crisfal_ tinha _pelo
menos 12 anos á data de 1525_...

Não indicou o douto académico o documento ou _recurso histórico_, em que
se estribava para sentencear, sem admitir réplica, que o pseudo-trovador
tinha _pelo menos 12 anos á data de 1525_, mas é possivel que s. ex.^a
esteja munido de concludentes provas para demonstrar a justeza da sua
afirmativa, se alguem se lembrar de contestar-lhe tam peremptória
opinião.

Se o ilustre professor não possue a tal respeito documentos bastantes,
póde dar-se o caso de alguem vir àmanhan, quando mais não seja para
fazer pirraça a s. ex.^a, declarar que Cristovam Falcão de Sousa, á data
de 1525, não era ainda nascido, ou, quando muito, teria doze mêses, e
não 12 anos...

Mas é possivel que o snr. dr. Theóphilo Braga tenha conseguido descobrir
qualquer documento em que apoie a sua sentença. É até muito possivel!

O importante, por agora, é verificar que o laureado académico fixou o
ano do nascimento do pseudo-poeta em 1513, poucos mêses mais, poucos
mêses menos, se a lógica não é uma cantata para adormecer meninos.

Ora, sendo assim, vê-se que alguma cousa se ganhou com a publicação do
nosso livro sobre o _Poeta Crisfal_, onde a paginas 176 escrevemos:

«*Quanto a Cristovam Falcão de Sousa, moço fidalgo em 1527, por muito
que se queira afastar a data do seu nascimento, não poderá esta ser
fixada em ano anterior a 1510. Fixando-se o seu nascimento entre os anos
de 1510 a 1515, é natural que se fique muito próximo da verdade.*»

O snr. dr. Theóphilo Braga, em face do nosso estudo, escolheu o ano de
1513, cifra que se encontra compreendida _entre 1510 a 1515_, salvo
erro.

Nós, porém, com inteira franqueza o dizemos, temos ainda suas dúvidas, e
após recentes pesquizas, em que vamos prosseguindo, inclinamo-nos a
ajuizar que o pseudo-_ultimo eco do alaúde_ ainda não era nascido no ano
de 1516...

Mas, para aclarar este ponto de capital importância, aguardemos a nova
versão que o snr. dr. Theóphilo Braga tem na forja sobre os poetas
bucolistas.

Além de ter modificado a sua antiga doutrina sobre a epoca em que
floresceu o falso _Crisfal_, na sua comunicação ao grémio literário a
cujos destinos preside, o snr. dr. Theóphilo determinou que a vida
amorosa do homenzinho oscilara *entre 1525 e 1526*,--isto é no período
ingénuo e viçoso dos doze para os treze anos, quando a suposta mulher
amada pelo Xpouão contaria, na melhor das hipóteses, as suas fagueiras e
menineiras dez primaveras...

Mas, decorrido menos de um mês sobre a comunicação... scientífica, o
egrégio conferente emendou este seu parecer, como se verá quando
analisarmos o artigo epigrafado _Movimento litterario_.

Segundo o extrato publicado no jornal «O Mundo», que condizia com os de
outras gazetas, o snr. dr. Theóphilo Braga «_evidenciou que na ecloga
«Crisfal» transpareciam diversas situações da vida de Cristovam
Falcão_.»

Infelizmente, os jornaes não nos forneceram qualquer pormenor
elucidativo sobre a referida _evidenciação_, pelo que ficamos, com
verdadeiro pesar, privados de reconhecer a maneira engenhosa pela qual o
distincto professor de literatura conseguiu demonstrar, _urbi et orbi_,
que na magoada écloga de Bernardim Ribeiro transpareciam _diversas
situações da vida de Cristovam Falcão_.

É possivel, porém, que na próxima futura refundição do seu livro sobre
os bucolistas, o snr. dr. Theóphilo Braga inclua um largo capítulo em
que trate o assunto com o devido desenvolvimento, completando o extrato
que os jornaes fizeram da sua apreciavel comunicação, com o que
preencherá uma sensivel lacuna. Oxalá assim suceda.

Terminou o conferente a sua palestra por invocar, mais uma vez, Diogo do
Couto e Gaspar Frutuoso; e mais uma vez afirmou que as duas
individualidades (Bernardim Ribeiro e Cristovam Falcão de Sousa) _não
podem jàmais confundir-se_.

Perfeitamente de acordo, n'esta parte, com o venerado professor!

Cristovam Falcão, o iletrado autor das _Quartas_, não póde jàmais
confundir-se com Bernardim Ribeiro, o mavioso autor da _Carta_ e da
_Ecloga de Crisfal_...

Pelo que, implicitamente, fica demonstrado que nós não temos dúvida em
adoptar uma ou outra das conclusões do presidente da Academia das
Sciencias de Portugal, apesar de todo o nosso hipercriticismo, como está
vendo o nosso _prezadíssimo amigo_!



V

O artigo «Movimento litterário»


Como os leitores viram, pela reprodução que fizemos no primeiro capítulo
d'este trabalho, no artigo que publicamos nas colunas do diário «A
Lucta», sob a epigrafe: «_Os processos... scientificos do snr. dr.
Theóphilo Braga_», salientámos várias inexactidões contidas no capcioso
desarrazoado que o professor do Curso Superior de Letras estampou no
jornal «O Dia», a pretexto de dar notícia do movimento literário
português no ano de 1908.

Não insistiremos sobre os pontos já visados, embora prestassem o flanco
a mais largas considerações, mas nem o tempo nos é sobejo nem tam pouco
desejamos abusar da benevolência dos que nos lêem, prolongando
demasiadamente este comentário desenfastiado e despretencioso ás
refutações embrogliadoras e falhas de sinceridade do snr. dr. Theóphilo
Braga.

Sem a publicação do artigo _Movimento litterário_, aguardariamos
pacientemente a futura refundição do livro consagrado ao estudo dos
poetas bucolistas pelo egrégio professor, e só em face das novas
exegeses fantasiadas pelo snr. dr. Theóphilo Braga viriamos a público
dizer o que se nos oferecesse, defendendo, o melhor que soubessemos e
pudessemos, as conclusões que apresentámos no nosso trabalho sobre o
_Poeta Crisfal_.

Não o quis assim o distinto escritor açoreano. Seja feita a sua vontade!


*1*

     «...o snr. Delfim Guimarães publicava o seu livro _Bernardim
     Ribeiro--O Poeta Crisfal_, em que resume o já sabido da biographia
     do auctor da Menina e Moça, forçando interpretações de versos a
     significarem os factos que imagina.»

                               _Do artigo «Movimento Litterario_.»


Na opinião soberana do consagrado professor, no nosso livro sobre
Bernardim Ribeiro resumimos o _já sabido_ da biografia do autor da
_Menina e moça_, e forçámos interpretações de versos a significar os
factos que imaginámos!

Tem carradas de razão o implacavel crítico quando proclama, desdenhoso,
que nós resumimos o que já era sabido da biografia do grande poeta
bucolista.

Resumimos quanto pudemos, exageradamente talvez, o que _já era sabido_
da biografia de Bernardim Ribeiro, mas muito de propósito assim
procedemos, para que ninguem, em face do nosso trabalho, pudesse dizer
com justiça que fôra nosso intento fazer substituir no mercado o livro
do snr. dr. Theóphilo Braga pelo nosso.

É certo que nos poderiamos ter conduzido pela mesma fórma adoptada pelo
consciencioso escritor ao _resumir_ no seu _Garrett_ o trabalho
desenvolvido de Gomes de Amorim, mas não quisemos seguir semelhante
conduta, muito embora pudessemos invocar, como modêlo, o exemplo que nos
fornecia o historiador da *Litteratura Portugueza*.

Não quisemos enveredar por esse caminho, e não estamos arrependidos,
apesar do remoque com que fomos alvejados. Cada qual segue os processos
que muito bem entende, mais em harmonia com o seu temperamento ou
educação.

Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim, é um facto; mas tivemos
o cuidado de não aproveitar aquela descoberta mais que problemática que
localizou a _Quinta dos Lobos_ na _Quinta da Piedade_, em Sintra, e nem
por um momento nos passou pela cabeça perfilhar as palavras do snr. dr.
Theóphilo Braga quando vê «*a persistencia do elemento mauresco, na
paixão exaltada do poeta e no calor surprehendente da sua
linguagem*».[7]

Não seguimos tam pouco na esteira do eminente exegeta quando s. ex.^a
pinta, ao sabor da sua fantasia rocamboliana, Bernardim Ribeiro:
«*moreno, fino e enchuto de carnes, com a perdição no olhar e a
fatalidade invencivel no amor*.»[8]

Resumimos o já sabido da biografia de Bernardim, alto e bom som o
declaramos; mas alguns erros tivemos ocasião de apontar ao biógrafo
ilustre do autor da _Menina e moça_, para que os corrija, querendo, nas
futuras edições, pelo que nenhum agradecimento nos deve, seja dito.

Que teria perdido o renome universal do Mestre em se mostrar, não
diremos mais benevolente, mas mais justo? Oh! o positivismo!...

Mas assevera o snr. dr. Theóphilo Braga que nós *forçamos interpretações
de versos a significarem os factos que imaginamos*!

Onde viu s. ex.^a essas interpretações forçadas?

Tendo-as visto, por que motivo não veio indicá-las em público, para
exautoração do nosso _hipercriticismo_, para maior glória do seu
laureado nome, para mais intenso fulgor da nossa História literária?

Forçâmos interpretações de versos!

Se o professor de literatura estivesse de boa fé, e entendesse realmente
que nós haviamos errado a interpretação de versos de Bernardim, que lhe
competia fazer, que lhe cumpria fazer?

--Indicar-nos onde haviamos errado, fazendo-nos ver que estavamos em
erro; e quando s. ex.^a nos convencesse da razão das suas corrigendas,
ou reprimendas, acredite o snr. dr. Theóphilo Braga que havia de ver-nos
confessar, com honestidade, sem o menor rebuço, que tinhamos errado, e
não fugiriamos a apregoar que o ilustre censor nos aplicara umas
palmatoadas merecidas.

Mas quando mesmo (o que não está demonstrado) tivessemos incorrido em
erros ao interpretar versos de Bernardim, tinha, porventura, o snr. dr.
Theóphilo Braga a precisa autoridade para os apontar por aquela fórma
agressiva, com semelhante crueza?

--Não tinha. S. ex.^a não póde arguir quem quer que seja de _forçar
interpretações_, porque ninguem como o professor do Curso Superior de
Letras é useiro em amoldar interpretações de versos ao sabor da sua
imaginação.

Para que ninguem nos incrimine de injustos para com o snr. dr. Theóphilo
Braga, vamos demonstrar com exemplos colhidos em obras do Mestre algumas
_interpretações_ bizarras, que oferecemos ao critério dos que nos lêem:

N'uma das éclogas de Bernardim Ribeiro, o poeta bucolista, referindo-se
a uma visita que lhe fez o seu amigo Sá de Miranda, escreveu a narrar o
facto:


    .......................
    e neste mêo chegou
    um pastor seu conhecido,
    e que dormia cuidou.

    Franco de Sandovir era
    o seu nome, e buscava
    [~u]a frauta que perdera,
    que elle mais que a si amava.
    Este era aquelle pastor
    a quem Celia muito amou,
    ninfa do maior primor
    que em Mondego se banhou,
    e que cantava melhor.

Veja-se como o snr. dr. Theóphilo Braga anotou estes versos:


     «*Deve entender-se que foi o pastor, que se banhou no Mondego, e
     não Celia, como pode inferir-se*.»

                          _Sá de Miranda e a Eschola Italiana, p. 49_


       *       *       *       *       *


Na écloga em que Bernardim adoptou o criptónimo _Crisfal_, descreve o
poeta a aparição da mulher amada, que vê em sonho


    vestida de *arenoso*,


ou seja de amarelo, a côr simbólica do pesar ou desespero, o que
qualquer bronco namorado de aldeia sertaneja não ignora.

Pois o snr. dr. Theóphilo, querendo fazer da mulher amada por _Crisfal_
uma freira cisterciense, interpretou a passagem aludida pela seguinte
maneira:


     «*Crisfal viu a sua Maria vestida de côr de arenoso, ou do habito
     amarellado da Ordem cisterciense*...»

                                  _Obras de Christovam Falcão, p. 11_


Ora o hábito da Ordem de Cister não era amarelado, mas branco!

Não obstante, seguindo o mesmo critério, o distinto professor tambem
quis reivindicar para o suposto poeta Falcão a paternidade de uma poesia
de Bernardim Ribeiro consagrada a _uma senhora que se vestiu de
amarelo_...


    Té aqui me pude enganar,
    mas agora que podeis
    trazer a *côr do pesar*
    pera mim só a trazeis...


que o snr. dr. Theóphilo Braga comentou pelo seguinte processo
_inductivo_:


     «*Ora o amarello só podia ser côr de pezar no caso de representar a
     cúgula cisterciense; e em vista dos factos sabidos, só estava no
     caso de escrever esta cantiga Christovam Falcão, e não Bernardim
     Ribeiro pelo que se sabe da sua vida*.»

                                      _Obras de Christovam Falcão, p. 12_


Mas, felizmente para a memória do poeta bucolista, a poesia em questão
foi uma das que o benemérito Garcia de Rèsende reproduziu no Cancioneiro
Geral, publicado em 1516, quando Cristovam Falcão de Sousa... ainda
andava de coeiros, se é que já pertencia ao numero dos vivos...

Ora que distinção concederia o ilustre professor áquele dos seus
discípulos que, interrogado sobre a _côr branca_ do cavalo de Napoleão
1.^o, lhe respondesse que o sobredito imperial cavalo _branco_... era
_amarelo_?


       *       *       *       *       *


Em uma das suas éclogas, o poeta-filósofo Sá de Miranda, aludindo ao
Amor, causa da desventura do seu camarada Bernardim Ribeiro, expressa-se
por esta fórma:


    Amor burlando vá, muerto me deja;
    Tiene de que por cierto; a su merced
    Como de señor vine; armó la red,
    Puso me en prision dura, ende me aqueja;
    Cada ora mas se aleja
    De mi, mucho cruel. Quien me desmiente?
    Ah que lo saben todos! quien ganó
    El precio de la lucha, ese perdió!
    Enemigo señor que tal consiente!


Pois no Amor, no travesso, inconstante e cruel Cupido, o snr. dr.
Theóphilo viu nada menos que a personificação do favorito d'el-rei D.
João III, D. António de Ataíde, conde da Castanheira!

Para que os leitores não julguem que fomos nós que interpretamos mal
quaesquer palavras do arguto exegeta, reproduzimos a sua anotação:


     «...*aquelle retrato do inimigo senhor que tal consente, bem se
     parece com o omnipotente valido o conde da Castanheira*.»

                         _Sá de Miranda e a Eschola Italiana, p. 206_


       *       *       *       *       *


Por um recente trabalho do nosso estimado camarada Hemetério Arantes
sobre Frei Agostinho da Cruz, já os leitores não ignoram que o professor
do curso Superior de Letras fez de *um gato bravo... uma cavalgadura*, e
do *Monte do Lobo... um lobo* carniceiro que devorou, chamando-lhe um
figo, a sobredita cuja cavalgadura!

Para fechar esta exposição, referiremos ainda mais um interessante
episódio exegético da obra do Mestre:

Em uma das poesias líricas de Luis de Camões, alude o grande poeta á
desventura que desde a infância o perseguia, como se vê dos seguintes
magoados versos:


    Foi minha ama uma fera; que o destino
    Não quis que mulher fosse a que tivesse
    Tal nome para mi, nem haveria.
    Assi criado fui porque bebesse
    O veneno amoroso de menino...


de que tambem se conhece a seguinte variante:


    Por ama tive [~u]a fera, que o destino
    Não quis que melhor fosse a que tivesse
    Para o que elle de mi fazer queria...


Em face da segunda versão, concluiu o snr. dr. Theóphilo Braga,
arguciosa e sibilinamente:


     «*Esta versão tira todo o sentido figurado á antecedente, e d'aqui
     se conclue, que Camões fora amamentado por uma alimaria, etc.*»

                    _Historia de Camões, Parte II, Livro II, p. 564_


Esta ideia verdadeiramente original de interpretar os versos de Camões,
dando-lhe por ama uma *alimária*, ou seja uma cavalgadura ou uma besta,
corre parelhas com a interpretação dada á _gineta_ de Frei Agostinho da
Cruz.

Não se póde dizer que o eminente professor faça de um argueiro um
cavaleiro, mas não ha a menor dúvida de que s. ex.^a transforma um gato
bravo e uma brava ama de leite... em cavalgaduras!

Pelo que respeita á ama de Camões, o que vale ao snr. dr. Theóphilo
Braga é o facto do nosso grande épico não poder, com facilidade,
escapulir-se do túmulo em que repousa no Panteão dos Jerónimos, _si vera
est fama_! De contrário, o _Trincafortes_ era capaz de fazer uma das
suas.


Parece-nos que fica suficientemente demonstrado quem é que fórça
interpretações de versos alheios a significarem aquilo que imagina...


*2*

     «Como lhe nasceu no espirito a ideia de fazer esta descoberta? Pela
     impressão que lhe causára a leitura dos versos de Bernardim Ribeiro
     e os de Christovam Falcão--«dois poetas de temperamento semelhante,
     com eguaes influencias e educações litterarias, com eguaes
     episodios nos seus infortunados amores, e havendo entre ambos
     versos absolutamente eguaes.»

                                    _Do artigo «Movimento litterário»_


Pela transcrição que o snr. dr. Theóphilo Braga indica, póde alguem
acreditar que foram realmente aquelas as palavras por nós empregadas no
nosso estudo. Não foram. O ilustre professor modificou a seu bel-prazer
o que nós escrevemos, que se lê a paginas 6 do nosso livro sobre
Bernardim:


«Muito embora o temperamento dos dois poetas fosse semelhante, mesmo
muito semelhante, e eguaes as influências e educações literárias que
houvessem recebido; embora fossem eguaes os episódios dos seus
infortunados amores, é estranho que por fórma tam absolutamente
semelhante traduzissem o seu sentir, revelassem o seu temperamento
artístico, chegando a empregar versos absolutamente eguaes! etc.».


Porque não reproduziu, _fielmente_, o snr. dr. Theóphilo Braga aquilo
que escrevemos? Estranha maneira de exercer a crítica... moderna!


*3*

     «D'aqui o identificar os dois poetas em um unico; como conseguil-o?
     Considerou a individualidade poetica de Cristovam Falcão como uma
     lenda estupida formada pelos genealogistas, e formou o nome de
     _Crisfal_ indo buscar á tôa ás palavras _Crisma falsa_,
     tirando-lhes as syllabas iniciaes para designarem a seu talante
     Bernardim Ribeiro.»

                                   _Do artigo «Movimento litterário»_


Afirma o snr. dr. Theóphilo Braga que consideramos a individualidade
poética de Cristovam Falcão como uma lenda estúpida formada pelos
genealogistas... Onde encontrou s. ex.^a a base em que firma a sua menos
verdadeira afirmativa?

Vamos reproduzir o que escrevemos a paginas 9/10 do nosso livro, para
desfazer a arbitrária interpretação do venerado professor.


     «Cotejámos então as referências de Bernardim a Francisco de Sá com
     a alusão que na écloga de _Crisfal_ haviamos interpretado como
     visando esse poeta, e qual não foi a nossa alegria, a nossa viva
     satisfação ao reconhecer que os versos de _Crisfal_ que alvejavam
     Miranda condiziam perfeitamente com as referências das éclogas de
     Bernardim ao seu grande amigo e confidente! Não condiziam apenas:
     completavam, aclaravam, a nosso ver, essas alusões.

     «Fez-se então uma grande luz no nosso espírito. Não se tratava de
     dois poetas muito parecidos, de um creador e de um imitador.
     Bernardim Ribeiro e _Crisfal_ eram um ùnico poeta. O trovador
     Cristovam Falcão era o produto de uma lenda nascida da
     interpretação dada pelo vulgo ao anagrama _Crisfal_.

     «E, para que o nosso convencimento mais se robustecesse, lá estavam
     os dizeres alusivos á ecloga de _Crisfal_ da edição de Colónia,
     revelada pelo snr. dr. Th. Braga, e estudada pelo snr. Epiphánio
     Dias: «_que dizem ser_ de Cristovam Falcão, _ao que parece aludir_
     o nome da mesma écloga.»

     «_Que dizem ser_... _ao que parece aludir_...

     «Isto, a nossos olhos, era decisivo. «Os editores de 1559 das obras
     de Bernardim Ribeiro, e antes de eles os de 1554, como depois
     viemos a apurar, tinham registado com relação á écloga uma fábula
     que devia datar da primeira edição das _Trovas de Crisfal_, etc.»


O que nós dissemos, pois, e isso sustentâmos, é que a individualidade
poética de Cristovam Falcão nascera da errada interpretação prestada
pelo vulgo ao anagrama _Crisfal_,--fábula que os editores de 1554 e 1559
das obras de Bernardim Ribeiro tinham registado, _sob reservas_.

Como haviamos nós de propalar terem sido os genealogistas que formaram a
lenda, se os genealogistas, depois de 1554 e 1559, é que foram buscar as
_tradições vagas_ recolhidas pelos editores de Bernardim?

Onde estão os genealogistas anteriores ás edições de Ferrara e de
Colónia que se fizessem éco da fábula do _Crisfal_?

Ah! malfadados _processos inductivos da crítica moderna_!


Diz o snr. dr. Theóphilo Braga que nós fomos buscar _á tôa_ as primeiras
sílabas das palavras _Crisma_ e _falso_ para a nosso alvedrio designarem
Bernardim Ribeiro!

Não foi _á tôa_, como inculca o nosso acerbo censor, que conseguimos
apurar a constituição do criptónimo _Crisfal_; e que não foi á tôa
sabe-o muito bem o implacavel critico, que não deixou de ler, e que até
a reproduziu, a explicação que sobre tal facto demos:


     «Alcançada a convicção de que _Crisfal_ era um anagrama de
     Bernardim Ribeiro, e norteados pelo conhecimento de que nas suas
     produções o poeta mudava constantemente os seus nomes pastoris, com
     um pequeno trabalho de raciocínio não nos foi dificil deduzir a
     constituição do criptograma, que era formado pelas primeiras
     sílabas das palavras _Crisma_ e _Falso_.»


E corroborando estes dizeres do prólogo do nosso livro (p. 10),
escrevemos mais adeante (p. 82/83) ao tratar da interpretação da écloga
atribuida ao suposto _Crisfal_, Cristovam:


     «Bernardim deduziu o anagrama com que se denomina n'esta écloga das
     palavras _Crisma_ e _Falso_, de que aproveitou as primeiras
     sílabas, formando assim a palavra _Crisfal_.

     «Os nomes pastoris que figuram n'esta écloga, obedecendo á ideia
     que fundamentou a composição, são todos êles _crismas falsos_,
     sendo dificil profundar quaes as personagens reaes que o poeta pôs
     em scena, o que deu lugar a erradíssimas interpretações,
     contribuindo para que tomasse vulto a lenda, que resultou do
     próprio anagrama _Crisfal_, que foi tomado como deduzido dos nomes
     de Cristovam Falcão.»


Não foi á tôa mas seguindo uma orientação criteriosa, que alcançámos a
verdade, que nenhuma subtileza conseguirá destruir já agora.

Outro-tanto não se póde dizer da maneira pela qual o snr. dr. Theóphilo
Braga conseguiu, por exemplo: decretar os *cantos de ledino, estampar
como documento do século XVI um apócrifo contendo versos do século
XVIII, e fazer Camões bacharel formado... em latim pela Universidade de
Coimbra*!

Se nós, invocando esses precedentes, ousassemos retorquir que _á tôa_
costumava proceder o escritor que contraditâmos, caía-nos em cima o
Carmo e a Trindade!

_Á tôa!_... É realmente forte, e não deixa de ofender.


*4*

     «Mas, como se póde chamar estupida a lenda genealogica se os nomes
     contidos na écloga de _Crisfal_ condizem com os seus parentes taes
     como o de _Pantaleão_ Dias de Landim, seu avô, e a Joanna, que lhe
     denuncia o casamento clandestino, uma prima, como o notou o snr.
     Jordão de Freitas?»

                                  _Do artigo «Movimento litterário»._


_Lenda genealógica_, chama o snr. dr. Theóphilo Braga á lenda do
_Crisfal_, como se fossem os genealogistas que a inventassem, quando s.
ex.^a muito bem sabe que estes não tiveram tal primasia... O caso está
sobejamente debatido, e por isso não vale a pena perder mais tempo com
tam ruim defunto.

Tratemos do _Pantaleão_...

Na eclóga de _Crisfal_, refere se Bernardim ao _Val de Pantaleão_...

O snr. dr. Theóphilo Braga, interpretando erradamente uma passagem da
_Pedatura_ do genealogista Alão de Moraes, em que se mencionava o
casamento de uma parenta remota de Maria Brandôa com um João _Patalim_,
escreveu a pag. 344 do seu livro _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_:


     «Pelo Manuscripto já citado de Alão de Moraes acha-se noticia do
     aqui chamado _Val de Pantaleão_: D. Joanna, tia avó de D. Maria
     Brandão, casara a primeira vez com João _Pantalião_; etc.»


No nosso estudo sobre Bernardim Ribeiro, desfizemos esse erro,
escrevendo a pag. 159:


     «O ilustre professor equivocou-se na leitura do texto. Não se trata
     de nenhum João _Pantalião_, como erradamente leu, mas sim de um
     João _Patalim_, que é o que se lê no manuscrito de Alão de Moraes,
     como verificámos por nossos próprios olhos.»


Desfeita essa interpretação, não se dá o snr. dr. Theóphilo Braga por
vencido, e vae agarrar-se a um avoengo de Maria Brandôa para justificar
a referência ao _Val de Pantaleão_...

Quanto á _Joana_, o caso não é menos interessante...

Vejamos o que, no seu _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_ (pag. 342),
escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga em 1897:


     «Esta Joanna, que denunciou os amores de Crisfal e Maria, era D.
     Joanna Pereira, sua irmã mais velha; Maria era a mais nova, de
     cinco filhos que tinha o Contador João Brandão.»


Foi esta mais uma _gaffe_ em que o snr. dr. Theóphilo incorreu, por
haver confiado demasiadamente nos créditos do genealogista Alão de
Moraes.

A pag. 162 do nosso livro sobre o _Poeta Crisfal_, desfizemos esse erro,
escrevendo:


     «Maria Brandão, a lendária amada do _Crisfal_, não teve nenhuma
     irman! era filha única!»


Em face da corrigenda, o distinto escritor não se sentiu com coragem
para sentencear que Joana era irman natural de Maria Brandôa, mas
procurou arranjar (iamos a escrever _á tôa_, mas não tivemos coragem)
outra Joana, e, á primeira que encontrou á mão, chamou-a em seu auxílio.

Dera-se o caso de o snr. Jordão de Freitas, distinto funcionário da
biblioteca da Ajuda, no louvavel empenho de auxiliar aqueles que
quisessem discutir a questão literária suscitada pelo nosso livro,
publicar no «Diario de Noticias» o resultado das suas pesquizas nos
arquivos, reproduzindo quanto julgou interessante para o estudo do
problema.

Fez s. ex.^a menção de uma parenta de Maria Brandôa com o nome de
Joana...

Como um naufrago, que se agarra á primeira táboa que lobriga ao alcance
da mão, o snr. dr. Theóphilo agarrou-se (no bom sentido da palavra, bem
entendido!) á sobre-dita Joana, e, radiante de contentamento,
exclamou:--«Estou salvo!»

E, julgando-se, realmente, salvo da rascada, escreveu ufano:


     «...a Joanna, que lhe denuncia o casamento clandestino, uma prima,
     como o notou o sr. Jordão de Freitas.»


A esse engano de alma, ledo e cego, foi arrancá-lo o snr. Jordão,
desapiedadamente na carta que, a propósito, dirigiu ao «Dia», e de que
reproduziremos a parte essencial:


     «O sr. dr. Theóphilo Braga equivocou-se na sua referencia a Joanna
     e ao que diz ter sido notado por mim.

     .................................................................


     ...tive unicamente em vista assentar que Joanna Brandão não era tia
     avó de Maria Brandão, como erroneamente escrevera o sr. dr.
     Theophilo Braga, mas sim sua prima remota.

     «Tão remota, direi agora, que era neta de um irmão (Diogo Lopes
     Brandão) do 4.^o avô (Gonçalo Brandão) de Maria Brandão
     (Bibliotheca Real da Ajuda, 49-XII-28, pag. 259).

     «Sendo assim, nem é presumivel que aquella chegasse a viver no
     tempo de Maria Brandoa, quanto mais que andasse a pastorear com
     ella, etc.»[9]


Veremos, depois de este insucésso, que nova Joana nos apresentará na
primeira oportunidade o distinto escritor...

Quem sabe se a Joana do _Crisfal_ não teria sido aquela encantadora
Joaninha dos olhos verdes, que tanto enfeitiçou Garrett... Mas não; em
caso contrário o autor das _Viagens_ não deixaria de mencionar essa
circunstância!

       *       *       *       *       *

Na estrofe de Bernardim Ribeiro, na écloga _Crisfal_, em que a amada do
poeta se refere a ter passado para o _casal da Figueira_ do _Val de
Pantaleão_, designações que a nosso ver disfarçam, sob _falsos crismas_,
os nomes verdadeiros da casa e localidade para onde se transferiu,
talvez após o casamento, a decantada _Aonia_, encontra-se, nítida, a
alusão á ultima entrevista dos namorados:


    «Quando contigo falei
    aquela ultima vez,
    o choro que então chorei,
    que o teu chorar me fez,
    nunca o esquecerei.
    Foi esta a vez derradeira,
    mas começo de paixão,
    passando-me eu então
    pera o casal da Figueira
    do Val de Pantalião.»


Achamos interessante reproduzir, n'esta altura, do capítulo XXVIII da
_Menina e moça_, os periodos referentes á ultima entrevista de
_Bimnarder e Aonia_ para que os leitores, com maior facilidade, possam
orientar o seu juizo, verificando a absoluta identidade entre as duas
produções de Bernardim Ribeiro:


«...Buscando achaque de querer lá ir pera detraz das casas, levando Enis
consigo, ouve tempo pera Aonia entrar onde elle (Bimnarder) estava então
deitado, escontra a outra parte da parede, chorando, porque não vira
Aonia ao passar, que bem se podera elle erguer. E como isto perdera,
cuidava tambem que avia de perder a tornada; porque um mal nunca lhe
viera sem outro; pelo que estava no maior pranto do mundo, antre si.

«Entrada Aonia, deteve-se um pouco, e sentiu que elle chorava, e
suspirava baixo, de maneira que como, naquello, se forçava a si mesmo.

«Ella, para ver se poderia saber o porquê, que tudo desejava saber
d'elle, deteve-se ainda mais; mas elle, com pensamentos muitos, que
sobrevinham ao choro, mais o acrescentava do que o diminuia.

«Assentando-se então Aonia na borda d'aquella sua pobre cama, lhe pôs a
mão, e quisera-lhe dizer alguma cousa, mas não pôde, que lhe faleceu o
espirito.

«Virando-se Bimnarder, e vendo a, tambem lhe faleceu o seu.

«Estiveram assi ambos um grande pedaço sem se dizerem nada um ao outro:
e elle, com os olhos postos em Aonia, e Aonia postos os seus no chão,
que, em se virando Birmnarder, tomou vergonha. Levando-os assi á terra,
cobriu-se-lhe o seu fermoso rosto de uma tamalavez de côr, alem da
natural; e soía dizer meu pae (que parte d'esta historia em seu tempo se
soubera) que não parecia se não que viera aquella côr como por ajudar
ainda Aonia escontra Bimnarder, tam formosa a ella, formosa, fizera.

«Mas, estando assi nisto elles ambos, e não estando elles ambos ali,
chegou Enis muito rijo á porta, dizendo que se queriam já ir, e que a
mandavam chamar.

«Assi, foi forçado levantar-se Aonia, e ir se, e Bimnarder ver tudo, e
ficar.

«Mas Aonia, que bem via os olhos de Bimnarder como ficavam, tomou uma
manga de sua camisa, e, rompendo-a, pera remedio de suas lagrimas lh'a
deu, significando, na maneira só de como lha deu, o pera que lh'a dava;
que parece que a dor grande que sentia não lh'o deixou dizer por
palavras; mas, em lh'a dando, pôs os olhos nos seus, dizendo-lhe só
assi:

--«Pesa-me, pois a minha ventura ou desaventura, não quis que eu vos
deixasse de magoar com o que eu não quisera.»--

«E estas palavras lhe disse já fora da porta.

«E com ellas, e com o que sentiu ao dizer d'ellas, duas e duas, lhe
começaram as lagrimas a correr dos seus fermosos olhos, e, pelas suas
faces fermosas abaixo, lhe iam fazendo carreiras por onde iam, que
Bimnarder a tanto pranto convidou quanta era a rezão d'elle, pois perdia
a vista.

«Foi tanto o choro, que não lhe abastavam os seus olhos ás suas
lagrimas...»


*5*

     «Os manuscriptos conhecidos de Bernardim Ribeiro andavam ligados
     com os de Christovam Falcão, como se vê pela descripção do n.^o 180
     da Livraria do Conde de Vimieiro: Obras em prosa e verso de Sá de
     Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão;»

                                _Do artigo «Movimento litterário»._


É com verdadeiro pesar que vemos o encanecido trabalhador recorrer a
processos como o que ressalta da afirmação que deixamos transcrita, só
pela caturrice de não querer confessar que errou...

O leitor desprevenido ficou julgando, certamente, por honra da firma que
subscrevia o artigo _Movimento litterario_, que na livraria do Conde de
Vimieiro tinham existido _os manuscritos conhecidos de Bernardim
Ribeiro_, que _andavam ligados com os de Christovam Falcão_...

Pois, se tal ficou julgando, enganou-se redondamente.

O snr. dr. Theóphilo Braga adulterou a verdade dos factos, procurando
talvez iludir-se a si proprio, pois não podemos admitir que s. ex.^a
imaginasse, por tal processo, mistificar alguem. É até possivel,
muitissimo provavel mesmo, que o ilustre escritor não pesasse
devidamente as palavras de que se serviu, e que assim incorresse, na
melhor boa fé, n'uma indesculpavel inexactidão.

Vejamos onde o snr. dr. Theóphilo Braga foi fazer a descoberta preciosa
dos _manuscritos conhecidos de Bernardim Ribeiro_...

Ao n.^o 180 do catalogo da Livraria do Conde de Vimieiro, como consta do
tomo V da _Colleçam dos documentos, e memorias da Academia Real da
Historia Portugueza_.

O distinto professor não indicou a _fonte_, certamente por lapso, mas
nós conseguimos descobri-la sem carecer do auxílio de _dunguinha_.

Ouçamos agora a conferência do Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de
Menezes, em relação ao codice N.^o 180:


     «Tem o volume que examinei 287 folhas, as quaes nos primeiros
     numeros eram 330, porem as que lhe faltão, parecem mudadas para
     outras Collecções, e sendo a letra, e papel de duzentos annos de
     antiguidade, pois a folhas 122 se acabão as noticias com a morte
     del Rei D. Manoel, que foi a 13 de Dezembro de 1521; se conserva
     este manuscripto inteiro, e em bom estado.......................

     (Traz a divisão do livro em 5 partes e segue:

     «A segunda divisão deste livro consiste em algumas Memorias de
     successos raros de Europa, como são uma carta del Rei Ludovico de
     Hungria para o Emperador na ultima batalha que deu ao Turco, uma
     Relação dos infelizes principios de Luthero, e outros. Seguem-se
     cartas de homens celebres d'aquelle tempo pelo seu engenho, e
     graça, que entre as alusões jocoserias descobrem memorias
     particulares: deste genero são sete de Antonio Ribeiro Chiado, duas
     de Lourenço de Caceres, e outros. As obras em prosa, e verso de
     Francisco de Sá de Miranda, as de Bernardim Ribeiro, Christovão
     Falcão, André Soares, Francisco de Moraes, Gil Vicente, Duarte de
     Oliveira, o Barão D. Diogo Lobo, e outros Poetas antigos, servem de
     verificar as varias lições das impressas, e de restituir as
     manuscriptas.»[10]


Como se vê, por uma fórma irrefragavel, não se tratava dos manuscritos
conhecidos de Bernardim Ribeiro, como não se tratava egualmente de
manuscritos de Cristovam Falcão...

Tratava-se de uma miscelánea manuscrita, em prosa e verso, que continha
produções de vários poetas, e, entre essas, as que se atribuiam ao
suposto _Crisfal_. A simples citação do nome de Cr. Falcão logo após o
de Bernardim não bastará para se ajuizar que no manuscrito havia cópia
das poesias que nas obras de B. Ribeiro vinham atribuidas, sob reservas,
ao suposto trovador?

Se nós, para documentarmos o nosso livro _Bernardim Ribeiro_, tivessemos
recorrido a expedientes semelhantes, como não seriamos julgados pelo
snr. dr. Theóphilo!


*6*

     «tambem o Arcediago do Barreiro, dr. Jeronymo José Rodrigues
     examinou no Porto um manuscripto analogo ao das edições de 1559, em
     que vinham a _Menina e Moça_, duas eclogas de Bernardim Ribeiro--«e
     até se acham no fim algumas poesias de Christovam Falcão, do que se
     faz menção no mesmo logar de Nicoláo Antonio.» (Innocencio, _Dicc.
     Bibliog._)»

                                   _Do artigo «Movimento litterario»._


O arcediago do Barreiro, invocado pelo snr. dr. Theóphilo Braga, era o
arcediago do Barroso, cujos apontamentos manuscritos foram explorados
por Innocencio.

Vejamos o que o benemérito bibliófilo escreveu a pag. 379 do seu
_Diccionario Bibliographico portuguez_:


     «Nos apontamentos manuscriptos do arcediago de Barroso Jeronymo
     José Rodrigues, de que já outras vezes me aproveitei n'este volume,
     encontro ácerca do auctor da _Menina e moça_ o trecho que se segue:


         «As obras de Bernaldim Ribeiro (que assim se acha escripto o seu
         nome no manuscripto que lemos, e assim diz Nicolau Antonio na
         _Bibl. Hispanica_, que vulgarmente era chamado) por sua muita
         raridade são difficeis de encontrar, e duvidamos que se hajam
         impresso todas. A _Bibl. Lus._ faz só menção da Menina e moça, ou
         _Saudades de Bernardim Ribeiro_. Além das impressões que alli cita,
         que são tres, faz Nicolau Antonio menção de uma, impressa em Lisboa
         em 1559, em 8.^o, que em tudo tem muita semilhança com o
         manuscripto, que tivemos alguns tempos em nossa mão, e que vamos
         aqui extractar. O titulo em nada desmente do que traz a _Bibl.
         Hisp._, e até se acham no fim algumas poesias de Christovam Falcão,
         de que se faz menção n'este mesmo logar de Nicolau Antonio.--O
         titulo que se lê no manuscripto é: _Historia da Menina e moça, por
         Bernaldim Ribeiro_. Principia: «_Menina e moça me levaram de casa
         de minha may para muito longe_», e acaba: «_Com demasiada ira disse
         contra a Donzela que ho aly trouxera estas palavras_». Consta de
         historia em prosa, e inclue em alguns lugares poesias de gosto são
         e pura linguagem, etc. E além da historia, acham-se no manuscripto
         duas eclogas de que o abbade Barbosa talvez não teve noticia. Na
         primeira são interlocutores Persio e Fauno; principia: «_Nas selvas
         junto do mar_», e consta de trinta e quatro estancias de dez versos
         cada uma.--Na segunda são interlocutores Jano e Franco, principia:
         «Dizem que havia um pastor», e acaba: «Tambem tempo é tormento.»

         «De tudo o que diz aqui o arcediago de Barroso concluo, que não só
         elle ignorou a existencia da moderna edição da _Menina e moça_,
         feita em Lisboa no anno de 1785, mas tambem só conheceu de nome as
         edições anteriores sem que lograsse ter presente algumas d'ellas,
         pois que a tel-as visto, nenhuma novidade encontraria nas duas
         éclogas que cita do tal manuscripto, onde pelo que se mostra
         faltavam todas as outras já então impressas.»


Não conheceu Innocencio a edição das obras de Bernardim Ribeiro
publicada em Ferrara em 1554, porque se a houvesse conhecido logo
concluiria que o manuscrito examinado pelo arcediago de Barroso outra
cousa não era mais do que uma cópia incompleta d'essa edição.

Ignora o, porventura, o snr. dr. Theóphilo Braga?

Se o não ignora, para que veio a público com a citação incompleta da
passagem do Diccionário de Innocêncio?

Bom serviço prestou o arcediago de Barroso trasladando o período inicial
na novela na edição de 1554, conforme o manuscrito que teve entre mãos:
«Menina e moça me levaram de casa de minha may...»


*7*

     «Para que chamar ineptos aos editores de Ferrara de 1554 e de
     Colonia de 1559, por terem reproduzido esses textos manuscriptos
     como os encontraram?»

                                 _Do artigo «Movimento litterario»_.


Chamámos ineptos aos editores das obras de Bernardim Ribeiro, e que não
erramos em nossa apreciação demonstra-o evidentemente o próprio snr. dr.
Theóphilo Braga, quando na carta que nos escreveu, referindo-se ás
edições de Ferrara e de Colónia, diz terem sido feitas _por curiosos sem
critério litterário_.

Se esses curiosos não fossem ineptos, podia porventura o ilustre
professor negar-lhes _critério_?

As rúbricas da edição de Colónia, em 1559, são reprodução das de 1554,
como o snr. dr. Theóphilo Braga não desconhece.

Pertencem as rúbricas da edição de 1554 ao seu editor ou este não fez
mais do que reproduzi-las da primeira edição?

Sem que seja conhecida a edição principe das obras de Bernardim Ribeiro,
não é possivel aclarar este ponto, mas o que ninguem póde dizer com
autoridade é que taes rúbricas: «que dizem ser... ao que parece
aludir...» pertencessem aos manuscritos do infortunado Bernardim.

«Por terem reproduzido _esses textos_ manuscriptos como os encontraram»,
escreveu o snr. dr. Theóphilo Braga, procurando incutir que taes edições
foram feitas sobre os manuscritos pertencentes ao Conde de Vimieiro e
sobre o outro examinado pelo arcediago do Barroso!

A primeira edição das obras do poeta bucolista resultou dos manuscritos
de Bernardim Ribeiro, recolhidos após a morte do apaixonado cantor de
Joana, ou no ultimo período da sua desventurada existência, e dados á
estampa por qualquer curioso sem critério literário...

E proclamando isto, que representa a expressão do nosso sentir pessoal,
estamos convencidos de que está com a nossa opinião o snr. dr. Theóphilo
Braga, que sempre tem sustentado que as edições das obras de Bernardim
se fizeram sobre os manuscritos encontrados no seu espólio....

Mudará s. ex.^a de orientação? Até prova em contrário, não acreditamos.


*8*

     «...o dr. Alfredo da Cunha deu alentos á grande descoberta...»

                                   _Do artigo «Movimento litterário»_


«_Grande descoberta_», é como o snr. dr. Theóphilo Braga chama,
ironicamente, ao resultado dos nossos trabalhos... Pequena ou grande
descoberta, o facto é que està de pé, não conseguindo o abalisado
professor destrui-la.

Compreendemos bem que isso seja pouco agradavel a s. ex.^a, que tanto se
havia empenhado em pôr um pedregulho sobre o caso do poeta _Crisfal_,
mas nós, só pelo prazer de ser agradaveis ao ilustre escritor, é que não
vamos ressuscitar o trovador Cristovam Falcão. Deixá-lo dormir em paz,
serenamente.

Quanto a descobertas grandes, lembra-nos citar uma que _in illo tempore_
fez o snr. dr. Theóphilo Braga...

Dirigia o distinto poeta snr. Joaquim de Araujo uma publicação
camoneana, cujo título nos não ocorre.

Vae se não quando recebe uma comunicação do snr. dr. Theóphilo Braga...
Uma descoberta importante... Nada menos que um parente ignorado do
grande épico Luis de Camões.

Chamava-se o homem _Pero Camões_, segundo o ilustre professor lera,
radiante, em determinado texto...

Pois, senhores, na volta do correio, Joaquim de Araujo prevenia
generosamente o Mestre de que este errara a leitura do texto... O _Pero
Camões_ do snr. dr. Theóphilo Braga era um simples e inofensivo *pero
camoês*!


*9*

     «No noticiario de outro jornal sairam affirmações absolutas,
     proclamando a sensacional descoberta, com uma sinceridade
     inconsciente que affasta de todo a ideia de ironia.»

                           _Do artigo «Movimento litterário»_


Por esta fórma pouco... _generosa_ se referiu o snr. dr. Theóphilo Braga
ás palavras de caloroso elogio com que o ilustre escritor snr. José
Pereira Sampaio, em carta publicada no «Diario da Tarde», do Porto,
valorizou com o prestígio do seu nome o fruto do nosso trabalho.

Contra a injusta apreciação do professor do Curso Superior de Letras, já
lavrámos o nosso protesto, de amigos e admiradores de _Bruno_, no artigo
que publicámos na «Lucta» e que vae transcrito no primeiro capítulo
d'este livro.

Quando mesmo, o que não sucede, o ilustre escritor portuense estivesse
em erro, era digna de todo o respeito a sua opinião, e não seria nunca o
snr. dr. Theóphilo Braga, com a sua consciente falta de sinceridade,
quem teria direito para o arguir pela maneira insólita por que o fez.

Será, porventura, o _positivismo_ inimigo inconciliavel da Justiça?


*10*

     «A verdadeira descoberta pertence ao snr. Braancamp Freire
     determinando a epoca em que esteve em Flandres João Brandão
     Sanches, e quando elle morreu, dando nos assim a data em que
     existiram os amores de sua filha unica D. Maria Brandão, a do
     Crisfal, que plausivelmente se fixam em 1530. O documento de 1527
     refere se a Christovam Falcão, com a tença de moço fidalgo leva a
     deduzir que nascera em 1512.»

                                  _Do artigo «Movimento litterário»_


Fixa o snr. dr. Theóphilo em 1530 os amores do suposto poeta com a sua
suposta amada Maria Brandôa.

Muito bem.

Admitindo que assim fosse, só depois de 1530 Cristovam Falcão poderia
ter produzido a _Carta_ e a _Écloga_ que lhe foram atribuidas...

Ora como podia isto ser, em face dos _processos inductivos da critica
moderna_, tam preconizados pelo snr. dr. Theóphilo Braga?

Ouçamos a lição autorizada do ilustre professor, que se lê a pag. 4 da
sua chamada edição das obras de Cristovam Falcão:


     «*Se Christovam Falcão escrevesse depois de 1527, quando Sá de
     Miranda propagou as fórmas da poetica italiana, teria então
     adoptado o verso endecasyllabo, a fórma da OUTAVA e do TERCETO, o
     SONETO, e teria perdido o conceito provençalesco dos poetas que
     seguiam o INFERNO DO AMOR; Falcão desconheceu esta nova poetica.*»


Pela mesma maneira se exprimiu o snr. dr. Theóphilo Braga na sua edição
de _Bernardim Ribeiro e os Bucolistas_.

Repudia s. ex.^a o que com tanta clareza e precisão deixou estampado?

Seria caso para invocar o _era, não era, andava lavrando_...

Para o nascimento do pseudo-trovador, escolhe o snr. dr. Theóphilo
Braga, em ultima análise, a data de 1512, sem se lembrar talvez de que
por essa fórma caía em contradição consigo proprio...

Vejamos:

Na carta que nos dirigiu, escreveu o distincto escritor:

«...D. Maria Brandão, que Cristovam Falcão amou, _sendo ambos muito
crianças_...»

Ora tendo Cristovam nascido em 1512, como afirma o snr. dr. Theóphilo
Braga, e fixando-se as suas relações amorosas em 1530, como quer s.
ex.^a, tinha o mancebo quando começou a namoriscar os seus dezoito anos
seguros...

A um rapazola de 18 anos ninguem com propriedade poderá classificar de
_muito creança_, a não ser por troça,--salvo melhor opinião.


*11*

     «Ha portanto a eliminar todas as relações pessoaes entre Cristovão
     Falcão e Bernardim Ribeiro, como julgamos nos nossos estudos,
     corrigindo a interpretação da Ecloga I e III de Bernardim.»

                                    _Do artigo «Movimento litterário»_


Não só corrigimos a interpretação das eclogas I e III de Bernardim
Ribeiro como todas as outras do desventurado poeta... Mas o snr. dr.
Theóphilo Braga entende em seu alto critério que só ha a corrigir as
duas que citou, e essa correcção reserva-se s. ex. fazê-la, certamente.
Aguardemos a futura refundição do livro sobre os bucolistas, para
ajuizarmos da fertilidade inventiva do ilustre professor,--_de fantasia
fertil em combinações_, no dizer autorizado da senhora D. Carolina
Michaëlis.


*12*

     «Os logares comuns a Cristovam Falcão e Bernardim Ribeiro provam a
     distancia da edade que levou o mais novo a imitar aquelle que já
     era admirado, cujos versos, Camões, na sua carta de Africa
     intercalava na sua prosa.»

                                  _Do artigo «Movimento litterário»_


Como comentário único, permitir nos-emos endereçar algumas perguntas ao
snr. dr. Theóphilo Braga:

Estando Bernardim Ribeiro louco no ano de 1532, como o próprio snr. dr.
Theóphilo tem sustentado, como explica o ilustre professor que no
espólio do poeta bucolista fossem encontradas as composições atribuidas
ao falso Crisfal?

Na edição refundida do seu livro sobre os bucolistas, em 1897, o snr.
dr. Theóphilo Braga explicou o facto da seguinte maneira:


«...*os dois poetas communicavam entre si os seus versos, sendo por este
modo que se salvaram as poesias do auctor do Crisfal.*»


Ora não podendo o abalisado professor continuar persistindo em que
Bernardim Ribeiro teve por amigo e confidente Cristovam Falcão de Sousa,
como poderá s. ex.^a explicar que entre os manuscritos legados por
Bernardim se encontrassem as composições do... _último eco do alaúde_?

Para prevenir qualquer subtiliza de argumentação, é conveniente não
esquecer s. ex.^a que na écloga _Crisfal_ se encontram lugares comuns a
todas as éclogas de Bernardim Ribeiro e á própria novela _Menina e
moça_.

E não esquecer egualmente que, após a publicação do nosso estudo sobre o
_Poeta Crisfal_, já o snr. dr. Theóphilo Braga foi obrigado a reconhecer
que: não podia continuar a admittir _as relações pessoaes de Cristovam
Falcão com Bernardim Ribeiro já velho e dementado em confidencias de
amor com um rapaz no viço da mocidade_.

Bernardim nasceu em _1482_, é bom não olvidar tambem.

Cristovam Falcão de Sousa nasceu em... _1512_, conforme a ultima versão
apresentada pelo articulista do _Movimento litterário_.

Os amores de Falcão e Maria Brandôa foram fixados pelo snr. dr.
Theóphilo Braga, em ultima análise, no ano de _1530_.

Ora na _Carta de Crisfal_, fala o poeta na prisão de amor que está
sofrendo _ha cinco anos_... Logo, ou não ha lógica, uma das composições
do suposto trovador foi elaborada pelo ano da graça de _1535_, quando
Bernardim havia já três anos que fôra ferido pela desgraça que o levou
ao hospital de Todos os Santos, onde veio a acabar seus desventurados
dias em _1552_.

Consignado o que fica exposto, aguardemos a resposta ás perguntas atrás
formuladas, e, para fechar o capítulo, façamos nossos os seguintes
versos de Bernardim:


    Baste o que tenho dito
    pera aver, por galardão,
    tres regras de vossa mão,
    pera resposta das quaes
    ......... fique o mais
    que aqui escrever devera,
    se o escrever podera.



VI

Uma patranha genealógica


Seguindo a lição de vários genealogistas, démos curso, no nosso estudo
sobre Bernardim Ribeiro, á atoarda que fazia Cristovam Falcão de Sousa
descendente de certo John Falconet, cavalheiro inglês que viera para o
nosso país na comitiva da desposada d'el-rei D. João I, Filipa de
Lencastre. Antes de nós, os snrs. Epiphánio Dias e dr. Theóphilo Braga
haviam incorrido no mesmo erro.

Publicado o nosso trabalho, honrou-nos o erudito escritor sr. Anselmo
Braamcamp Freire com o seguinte esclarecimento, que registamos com
prazer:


     «...Julgo-me obrigado a advertil-o que publiquei um documento no
     _Archivo histórico_, suficiente para destruir a petarola inventada
     pelos genealogistas dos Falcões descenderem do tal Falconet.
     Catorze anos antes deste chegar a Portugal já existiam Falcões,
     proprietarios em Evora, e vassalos de D. Fernando (_Arch. hist._
     III, 407.) É uma minucia que não influe em nada no seu têma; mas,
     repito, entendo dever meu avisál-o».


Não será este, certamente, o único erro em que teremos incorrido no
nosso trabalho, e de que nos penitenciâmos sem a menor relutância.

Errar é próprio dos homens, como afirma o conhecido aforismo latino; o
que é condenavel é persistir no erro.

Não temos a estulta vaidade de haver produzido um trabalho sem defeitos,
e de bom grado aceitaremos as correcções que nos ministrarem, e com que
o nosso critério se conforme. Somos incapazes de persistir n'um erro por
simples capricho de amor-próprio, indesculpavel em assuntos de natureza
_histórica_.

Bem presentes conservâmos as palavras sensatíssimas do professor
bracarense Pereira Caldas: «Em _história_, ha sempre que discutir,
sempre que examinar, sempre que emendar, sempre que aditar.»



VII

O criptónimo «Fileno»


No numero do jornal _O Dia_, de 15 de dezembro de 1908, consagrou-nos o
conceituado filólogo, snr. A. R. Gonçalves Viana, uma das suas
interessantes _Palestras filológicas_.

É aquela que vamos registar, e que em seguida comentaremos:


     «Delfim Guimarães, no seu livro recentemente publicado, e que faz
     honra á erudição portuguesa, com o titulo *Bernardim Ribeiro*, e o
     sub titulo *O poeta Crisfal*, aventa a idea de que o criptónimo
     _Fileno_ seja o disfarce do adjectivo _felino_, latim _felinus_,
     procedente do substantivo _felis_, «gato», por alusão ao apelido
     _Gato_, do marido de Joana Tavares, sua apaixonada.

     «Não se pode aceitar esta origem do dito nome, porque tal adjectivo
     não existia em português ao tempo do poeta. É êle modernissimo na
     lingua, pois nem Bluteau o incluiu no seu *Vocabulario portuguez e
     latino*, nem mesmo no próprio *Diccionario portuguez* de Morais e
     Silva figura tal adjectivo atè á 3.^a edição, feita no anno de
     1823, «correcta e acrescentada.» Vê-se pois que a introdução do
     vocabulo _felino_ é não só posterior, e muito, ao século XV, mas
     até aos começos do XIX, e que o poeta o desconhecia portanto.

     «Assim, pois, o nome Fileno, masculino, foi talvez fabricado
     conforme o femenino Filene, que os gregos usaram, e cujo radical
     será o de _Filipe_, por exemplo.»


Em primeiro lugar agradecemos ao snr. Gonçalves Viana o cumprimento
amabilissimo com que nos penhorou, que muito bem sabemos representar uma
gentileza, que não um acto de justiça. A benevolência usada para
comnosco por s. ex.^a motivou um remoque do snr. dr. Theóphilo Braga, do
que resulta tornar se ainda maior a nossa dívida de reconhecimento para
com o sábio poliglota, o que temos a peito deixar registado nas páginas
d'este trabalho.

Consignado isto, digamos o que se nos oferece sobre a _palestra_
motivada pelo nosso livro:

Coube ao snr. visconde de Sanches de Baena a interpretação do nome
_Fileno_ como criptónimo de _Felino_, em alusão a *Pero Gato*, que o
referido titular apresenta como marido de Joana (_Aonia_).

Nós não acreditamos na existência do Pero Gato do snr. Sanches de Baena,
como com inteira franqueza deixamos exarado nas páginas do nosso
trabalho; mas não nos repugnou admitir que o criptónimo invocado
alvejasse a alusão a um animal felino. E assim escrevemos a pag. 87 do
nosso estudo sobre Bernardim:

«O anagrama _Fileno_ oculta, provavelmente, um individuo que tinha por
nome, apelido ou alcunha o nome de um animal _felino_. Seria Pantaleão?
Seria Gato? Estamos em crer que o assunto ainda poderá ser resolvido,
como outros muitos pontos por aclarar respeitantes á vida de Bernardim.»

E na mesma página, a propósito do nome de _Lor_, ou _Lor-Vão_, referido
nalgumas edições da écloga de _Crisfal_, escrevemos nós:

«Desde que se apure, *com segurança*, quem fosse o marido de Joana etc.»

O não se ter ainda apurado quem fosse o feliz rival de Bernardim, não se
nos afigura motivo para pôr de parte, por em quanto, a interpretação
enunciada pelo snr. visconde de Sanches de Baena quanto a Fileno, aceite
pelo snr. dr. Theóphilo Braga, e a que nós tambem demos curso, embora
sob reservas.

O facto dos antigos dicionários não fazerem menção do vocábulo _felino_
não constitue razão para que se abandone essa hipótese, que póde não ser
exacta, mas que é sem dúvida racional. Como o snr. Gonçalves Viana muito
bem sabe, desde que no latim existiam os vocabulos _felis_, _felinus_,
com o significado de _gato_, ou _respeitante a gato_, nada mais natural
do que um escritor ter introduzido, lógicamente, o termo português
_felino_. E ninguem poderá contestar que Bernardim Ribeiro tivesse
envergadura sobeja para crear essa palavra. Bacharel formado em direito,
e poeta bucolista não ignorava certamente o vocábulo latino.

A ser exacta a maneira de ver do snr. Gonçalves Viana sobre semelhante
assunto, como poderiam justificar-se tambem os numerosos neologismos com
que Luis de Camões enriqueceu a lingoa portuguêsa?

Hoje mesmo, após recentes trabalhos de dicionaristas distintos, quantos
vocábulos portuguêses não falta ainda registar?!

A hipótese, porém, que o ilustre filólogo apresenta merece ser ponderada
devidamente, sendo até possivel que s. ex.^a tenha resolvido o problema
quanto ao nome do marido de Joana Tavares, que poderia muito bem ter
sido _Filipe_.

N'um _pliego-suelto_ castelhano do século XVI, de que existe um exemplar
na secção dos _Reservados_ da Biblioteca Nacional de Lisboa, ha um
dialogo em verso entre as personagens: _Alethio_ e _Fileno_.--Aleixo e
Filipe? Talvez!

Em fim, parafraseando o que já escrevemos: Quando se apure _com
segurança_ quem foi o marido da mulher amada por Bernardim Ribeiro,
estarà implicitamente resolvido este problema.



VIII

In terminis


Não estamos sós no combate que tivemos a satisfação de iniciar em prol
da obra de Bernardim Ribeiro.

Ao nosso lado contamos a individualidade cheia de prestígio do snr. José
Pereira Sampaio, que em breve defenderá em livro tese idêntica á nossa,
demonstrando que o Poeta Crisfal é o bucólico Bernardim.

Se de estímulo carecessemos para prosseguir confiadamente na tarefa que
nos impusemos, seria incentivo bastante o contarmos já entre aqueles que
se confessam convencidos pelo nosso trabalho, alem de muitos outros
espìritos esclarecidos, os nomes preeminentes dos srs. Anselmo Braamcamp
Freire, José Caldas e dr. Sylvio Romero.

Não conseguiremos nós fazer vingar em nossos dias, por uma fórma
absoluta, a obra de justiça a que metemos hombros? Não será dada essa
satisfação ao ilustre escritor snr. José Sampaio?

--Que importa? As sementes estão lançadas, o solo não é ingrato... As
sementes hão de vingar; a verdade triunfará, alastrando, impondo-se...

Por fim, só nos resta endereçar, muito comovidamente, um aperto de mão,
agradecido e sincero, a quantos--bons amigos, camaradas e simples
conhecidos--nos teem bafejado com palavras de elogio e incitamento por
motivo da publicação do livro que deu origem a este novo trabalho.


                                      _Amadora, 16 de março de 1909_.



APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
AO LIVRO
"Bernardim Ribeiro
(O POETA CRISFAL)"



«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


Delfim Guimarães é um poeta e um contista que há muitos annos firmou
brilhantemente o seu nome. Alma delicada de poeta, é, ao mesmo tempo, um
prosador elegante e correcto que conhece a sua lingua e sabe maneja-la.
Afastado de todas as egreginhas literarias, isento de todos os
snobismos, sem perder tempo nos cenaculos dos cafés, Delfim Guimarães
tem-se destacado e destaca se entre os da sua geração, sem dever nada ao
reclamo.

Admirador entusiastico, apaixonado, de Bernardim Ribeiro, Delfim
Guimarães apurou um facto da mais alta importancia para a historia
literaria do seu paiz:--que Christovão Falcão e Bernardim Ribeiro são
uma mesma entidade.

É essa demonstração, consciente, documentada, que o nosso amigo vem de
fazer neste livro--_Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)_--que é digno de
ser lido por quantos querem conhecer a historia das letras patrias.

A Delfim Guimarães, os nossos parabens pelo seu valioso trabalho.

                        (Do jornal _O Mundo_, de 16 de Novembro de 1909)



«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


É um livro de incontestavel valor, este que o sr. Delfim Guimarães acaba
de publicar, editado pela Livraria Guimarães & C.^a, da rua de S. Roque.
Fructo de um aturado e consciencioso estudo, n'elle se demonstra que
Bernardim Ribeiro e _Crisfal_ representam um unico poeta, e que
_Crisfal_ é apenas um criptogramma formado pelas primeiras syllabas das
palavras _Crisma_ e _Falso_, não passando, portanto, de uma lenda a
existencia do poeta Christovão Falcão. Como se vê, o assumpto d'este
livro do laborioso e intelligente escriptor é de molde a interessar
vivamente todos quantos se dedicam ao estudo da nossa litteratura
patria.

                       (Do jornal _O Seculo_, de 16 de Novembro de 1909).



«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)

     _Subsidios para a história da literatura portuguesa_, por Delfim
     Guimarães.--Lisboa, 1908. Livraria Editora Guimarães & C.^a, 274
     pág. 800 réis.


É o livro sensacional da semana que hoje finda. É o desabar de uma lenda
secular. A ineptidão de uns editores quinhentistas insinuara a crença de
que as trovas de _Crisfal_ eram de _Cristovam Falcão_, cujo nome era
representado pelo anagrama, formado da primeira silaba do nome e a
primeira do apelido.

A lenda criou raizes; e, não obstante as hesitações e dúvidas de alguns
criticos, ninguém, até hoje, contestara abertamente em publico a
personalidade poética de Cristovam Falcão.

Mas Delfim Guimarães, estudando Bernardim Ribeiro, editorando-lhe as
_Saudades_, e confrontando os trabalhos dos bucolistas do século XVI,
chegou á convicção de que, tendo havido algumas personalidades com o
nome de Cristovam Falcão, este nome não pertencia a nenhum poéta, e as
trovas de Crisfal eram obra de Bernardim Ribeiro.

Documentando e justificando a sua convicção, acaba êle de dar á estampa
o substancioso volume que hoje noticiamos.

No prefácio da obra, expõi o autor, com a devida lealdade, as
circunstâncias e o processo que o levaram á absoluta rejeição da
referida lenda, e congratula-se justamente por ter agora a noticia de
que o ponderado publicista Pereira de Sampaio (Bruno), tinha já
adquirido convicção análoga, que esperava justificar em livro.

Metodizando as provas e a documentação de que o poeta _Crisfal_ não é
outro, senão Bernardim Ribeiro, Delfim Guimarães faz minuciosamente a
biografia crítica do poeta, estuda e analisa a primeira edição das obras
de Bernardim, dá nos a história e a genealogia do suposto poeta Falcão;
e, depois, de nos dar a exegese de numerosos factos e documentos, cerra
o seu volume com a reproducção da _Carta_ e da _Écloga_ de _Crisfal_, e
de _três_ poesias mais de Bernardim Ribeiro, até agora ignoradas.

Claro é que, de um livro de tal significado e alcance, mal se podem
formular juizos e sentenças em meia dúzia de linhas do nosso registo
bibliográfico; e temos de nos restringir a dar da obra ideia sumária,
chamando para ela a atenção, e naturalmente o apreço, de quantos se
interessam pelos mais momentosos problemas da nossa história literária.

Mas remorder-nos-ia a consciência, se cerrássemos já a presente noticia,
sem significar a Delfim Guimarães a satisfação que nos deu o seu
melindroso e arrojado trabalho, e o encanto com que repassamos os olhos
pelo ingénuo e delicioso bucolismo dos avoengos da poesía nacional.

Formoso livro e serviço memorável.


                                         Dr. Candido de Figueiredo


         (Do _Diario de Noticias_, de Lisboa, de 28 de novembro de 1908).



O poeta Chrisfal

     _Delfim Guimarães_: Bernardim Ribeiro (o Poeta Crisfal)--Subsidios
     para a historia da literatura portuguêsa--1908--Livraria Editora
     Guimarães & C.^a--68, R. de S. Roque, 70--Lisboa.


Ha uns espiritos fortes, solidos--e que tanto abundam n'esta nossa bôa
terra de Portugal--que hão de sentir-se escandalisados com a arrogancia
d'alguem que, contra a opinião dogmatica e ensinamento incontestado dos
grandes Sacerdotes, se abalança a demonstrar que os bucolistas Bernardim
Ribeiro e Chrisfal (pretenso anagramma de Christovam Falcão) são uma e
mesma pessoa; isto é: que o glorioso auctor da 1.^a parte da novella
pastoral «Menina e Moça» é igualmente auctor da celebre peça poetica
conhecida pelo nome da «Egloga de Chrisfal»--n'uma palavra, que o poeta
Christovam Falcão nunca existiu e que a maioria das composições poeticas
que andam com o seu nome pertencem de juro e herdade ao principe do
bucolismo entre nós, a esse surprehendente Bernardim Ribeiro, que é, em
toda a nossa litteratura, o vaso d'eleição d'onde mais trasborda o
sentimento augusto da alma portugueza.

Mas outra raça d'espiritos não menos solidos sorrirá piedosamente (e,
n'este caso, o sorriso é uma outra fórma de nos sentirmos
escandalisados) perante a utilidade proxima ou longinqua que póde
adquirir-se d'uma descoberta d'esta ordem.

Que importa ao bem do individuo ou da collectividade de hoje, que uns
versos repassados d'uma verdade sentimental, á força de sentida quasi
incomprehensivel,--versos, demais a mais vasados n'uma trama ingenua,
bucolica, pastoril, sejam obra d'um ou d'outro recuado quinhentista ou,
mesmo, tenham sido levados á conta d'um lendario personagem que, como
poeta, nunca tivesse existido, a não ser na phantasia d'uns novelleiros
de profissão que, com o rodar do tempo, conseguiram guindar a sua
improbidade litteraria aos pinaculos d'uma certeza irrefutavel?!

Pois essa arrojada impiedade e esse improductivo bysantinismo--esse
magno escandalo--acaba de perpetral-os o meu velho amigo Delfim
Guimarães, poeta de verdade, infatigavel estudioso, paciente
investigador, acurado cultista em materia litteraria, com a publicação
do seu recente estudo «_Bernardim Ribeiro_ (_o poeta Chrisfal_)», cujo
apparecimento estas ligeiras notas intentam celebrar.

O mesmo é dizer que me não sinto com forças para, pormenorisadamente,
passo a passo, ir vincando as passagens exegeticas d'este trabalho
masculo e delicado que revela, no seu auctor, uma erudição e um methodo
que eu entendo precisos n'aquelles que se propuzerem critical-o.

Não é, pois, um artigo critico o que vou fazer; mas se uma affirmação
sincera e sentida, de valor nimiamente critico, me é permittido
accentuar desde já, eu direi: Delfim Guimarães está na verdade.
Christovam Falcão, poeta, nunca existiu. Chrisfal é um pseudonymo de
Bernardim Ribeiro.

E isto porquê?!

Porque todos os que se occupam de Falcão o dizem pessoa de
qualidade--pertencia á primeira fidalguia portugueza, diz o sr. dr. Th.
Braga--e, quanto ao valor do seu estro, tanto era que mereceu ser
confundido com Bernardim Ribeiro seu amigo e confidente, quando não seu
predecessor. Como se explica, pois, que um tão illustre personagem não
figure no Cancioneiro de Resende, onde aliás se encontram, com tão
assombrosa profusão, nomes que, nem pela clareza da estirpe nem pelo
fulgor do engenho, se impunham á consideração dos posteros?!

É crivel que o erudito, o dedicadissimo collector que se chamou Garcia
de Resende--o homem, do seu tempo, que mais larga e intensamente privou
na corte dos nossos reis--não tivesse noticia d'uma individualidade tão
fortemente accentuada e tão parecida com o então e já apreciadissimo
Bernardim?! Não me parece.

Seria qualquer despeito, qualquer d'estas pequeninas miserias que se
transmudavam em acerbos espinhos d'odio (e ao tempo e antes e depois e
sempre tão vulgares!) que levariam mesquinhamente o celebre collector do
Cancioneiro a relegar, da convivencia dos seus 351 poetas, esse illustre
Chrisfal e ao mesmo tempo (segundo o ensinamento do sr. dr. Theophilo
Braga) a recolher, como de Bernardim Ribeiro, versos de Falcão?!

Não me parece. Gil Vicente, como é sabido, apodára cruelmente Resende, e
nem por isso deixou de figurar no Cancioneiro.

Estes simples e, quero crel-o, contestaveis argumentos levavam-me de ha
muito, a duvidar da existencia poetica de Christovam Falcão, só muito
mais tarde posta em fóco, entre outros, por Faria e Sousa, cujos
_escrupulos_ de caracter são por demais conhecidos.

Mas a simples argumentação sobre cancioneiros nem sempre é de colher,
como um facto recente me leva a constatar.

Ha dois annos (outomno de 1906) appareceu nas livrarias a seguinte
publicação: _Odysséa dos Tysicos--Album de Musicas para piano e canto,
original de Raul Pereira, sobre versos de poetas portugueses?_ É obra
musical do sr. Raul Pereira que, á falta d'outra indicação, entendo
dever tambem consideral-o como collector das varias poesias que o album
encerra.

A primeira d'estas poesias, posta em musica apparece sob um retrato com
esta epigraphe: _Guilherme Braga (1845-1874)_, e tem este titulo «_A
Jesus Crucificado_», e é como segue:


    A Vós, correndo vou, braços sagrados
    N'essa cruz sacrosanta descobertos
    Que para receber-me estaes abertos
    E, por não castigar-me, estaes cravados.

    A Vós, olhos divinos eclypsados
    De tanto sangue e lagrimas cobertos:
    Que para perdoar-me estaes despertos
    E por não devassar-me estaes fechados.

    A Vós, pregados pés, por não fugir-me;
    A Vós, cabeça baixa, por chamar-me;
    A Vós, sangue vertido para ungir-me;

    A Vós, lado patente, quero unir-me,
    A Vós, cravos preciosos, quero atar-me,
    Para ficar unido, atado e firme.


Devo confessar que ao ler este soneto nasceram-me duvidas--muito vagas,
é certo--sobre a sua authenticidade quanto ao nome que o firmava. E como
não o encontrasse entre as poesias colligidas nas _Heras e Violetas_,
assentei, á falta de melhor solução, que se tratava de uma poesia solta,
religiosamente recolhida por pessoa intima ou admiradora convicta do
insigne e mallogrado poeta portuense.

N'isto estava, quando o acaso d'uma busca litteraria me levou a folhear,
na Bibliotheca Publica, _O Ramalhete_, «jornal de Instrucção e Recreio»
(2.^a série, n.^o 165, 4.^o anno) e a encontrar, a paginas 112 do vol.
IV, o mesmissimo soneto, sem descrepancia d'uma unica palavra, sob esta
assás curiosa rubrica:


«_No momento derradeiro da vida humana, qual o estado de moribundo, nada
excita amor e conforto como a doce inspiração de abraçar um crucifixo,
unico remedio d'alma. Por este motivo fez o dr. Manuel da Nobrega o
seguinte soneto: «A Jesus Crucificado»_».


Portanto, teremos nós: os vindouros, que não leram o _Ramalhete_, a
attribuir a Guilherme Braga (que, segundo o sr. Raul Pereira, nasceu em
1845, embora Innocencio nos diga 1843) uns versos do dr. Manuel da
Nobrega, que vieram á estampa em 1841.

Veiu isto a proposito da confiança absoluta a depositar nos
cancioneiros. Verdade seja que entre Garcia de Resende e o sr. Raul
Pereira (que eu não tenho a honra de conhecer), o unico elo que os
prende deve ser, se não laboro em erro, o laço musical...

Outras razões, porém, antes do trabalho de Delfim Guimarães, me levavam
a pender para o arrocho da não existencia poetica de Christovam Falcão.
É certo que a Renascença produzira uma eclosão genial em todos os ramos
da vida sentimental, artistica e scientifica do occidente europeu, e que
nós tivemos largo quinhão nas benemerencias d'esse glorioso Sol--e tão
grande que ainda hoje d'elle vivemos. Mas é igualmente certo que, por
grande que fosse, e foi, a prodigalidade do estro que nos coube, não era
natural que dois vultos geniaes, a um tempo, surgissem tão parecidos,
tão irmãos na concepção sentimental, na realisação artistica e
até--suprema coincidencia--nos azares da vida amorosa! Delfim Guimarães
embrenha-se em trabalhos de genealogia e de exegese litteraria,
pacientemente cuidados, para nos infiltrar o convencimento que eu, sem
razões de peso e sem auctoridade para as formular, de ha muito _sentia_
da existencia d'um só poeta na obra de Bernardim e na obra de Chrisfal.

É, pois, para mim um livro de consolação. Por um lado, simplifica, no
meu espirito, um caso que se achava enredado nas malhas autoritarias,
embora convencionaes, de nomes respeitados; por outro, entorna, no meu
coração, o intimo, o ineffavel jubilo de ver alguem da minha estima e do
meu tempo elevar-se tanto, pelo trabalho intelligente e probo, n'uma
manifestação eloquente de força moral e espirito combativo de que tanto
carecemos.

E esta probidade litteraria não é coisa de pouca monta ou que alguem
possa dispensar-se de a encarar com o mais profundo respeito, porque me
hei de lembrar d'aquelle supremo prefacio do _Disciple_ de Paul Bourget,
quando elle se dirige á mocidade da sua terra: _Dentro de vinte annos
tereis em vossas mãos a fortuna d'esta velha patria, nossa mãe commum.
Vós sereis a propria patria. Que tereis recolhido nas nossas obras?
Pensando n'isto, não ha homem de lettras, por mais modesto que seja, que
não deva tremer de responsabilidade_...


                                                Hemeterio Arantes.

                     (Do _Diario Illustrado_, de 2 de dezembro de 1908).



«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)

     _Subsidios para a historia da litteratura portugueza_, por Delfim
     Guimarães. 1 vol. de 278 pag. Livraria editora Guimarães & C.^a
     1908 Lisboa, typ. Libanio da Silva.


A velha sentença portugueza--_o seu a seu dono_ viria muito a propósito,
noticiando o apparecimento d'este livro, com que se pretende, e consegue
a nosso ver, reivindicar para o nome do grande poeta quinhentista a
autoria e a glória de differentes producções que inconscientemente
andavam attribuidas a outros. E se não fosse a bella coragem do sr.
Delfim Guimarães, nosso antigo e presado amigo, que sendo poeta muito
primoroso é tambem investigador ordenado e pacientissimo, o deploravel
engano continuar-se-ia por muito tempo, ou, peor ainda, não se
desvaneceria jámais talvez.

Entre outras, a lenda de que existira um Christovam Falcão, pretenso
poeta de tão alto valor como Bernardim Ribeiro, e, assim, auctor tambem
de maviosos versos, principiara a correr mundo em 1554, dois annos
depois de fallecido este, e teria origem, parece, em certa nota posta
n'uma edição pouco criteriosa feita n'aquelle anno, de differentes
poesias, esparsas umas, outras logo colligidas após a morte de
Bernardim, edição onde veem de mistura com a _Historia de Menina e
Moça_, diversos motes, cantigas e églogas e entre estas, (diz a tal
nota) «_h[~u]a muy nomeada e agradavel... chamada Crisfal, que dizem ser
de Christovão Falcam, ho que parece alludir o nome da mesma egloga_...»

D'isto, e de outras investigações pacientemente realizadas pelo sr.
Guimarães resulta a presumpção de provir a dita lenda principalmente
d'aquellas vagas referencias e a allusão que o editor julgou encontrar
em o nome de Crisfal do facto de serem as duas syllabas de que elle se
compõe eguaes ás primeiras dos dois nomes *Cris*tóvam e *Fal*cão. Mas
isto, que não constitue prova e não passa de mera hypothese, teria de
cahir redondamente, quando se verificasse que esse Falcão era homem de
poucas lettras e, portanto, incapaz de produzir trabalho de tanta valia
como é a _Égloga de Crisfal_.

E assim succederia talvez se o sr. dr. Theophilo Braga não houvesse, em
má hora, pretendido transformar a hypothese em lei, apresentando como
definitivamente adquirida para Falcão a paternidade d'aquella e de
outras poesias de altissimo valor litterario.

Não seguiremos o sr. Delfim Guimarães na critica acerba, se bem que
correctissima, com que se refere a este erro do sr. dr. Theophilo Braga
e ainda a muitos outros. Este operoso escriptor dirá de certo da sua
justiça, não deixando, d'esta vez, mal parada a sua fama de erudito. E,
sendo como é, sempre consciencioso nos seus trabalhos de historiador
litterario, virá certamente á estacada, para explicar a razão do seu
engano.

Muitos outros descobrimentos são indicados n'esta valorosa
reivindicação, não se mostrando possiveis mais duvidas a respeito da não
existencia de Christovam Falcão, poeta, e parecendo ao contrario
definitivamente provado que o nome de Crisfal fôra um dos muitos
pseudónymos e anagrammas adoptados por Bernardim Ribeiro nas suas obras.
Tambem graças ao indefesso trabalho do sr. Delfim Guimarães ficará
pertencendo irrevogavelmente ao poeta de _Menina e moça_ não sómente a
celebre égloga, mas ainda outras poesias attribuidas a diversos e que
veem apontadas ou reproduzidas n'este volume.

Em compensação, porém, algumas até agora emprestadas ao bucólico poeta,
lidima gloria das lettras portuguezas, terão de passar para outros, com
o que, seja dito de passagem, a exceptuarmos o solau[11]--_Pensando-vos
estou filha_, que o sr. dr. Theophilo Braga deu, tambem levianamente,
como de Bernardim, sendo aliás de Camões, nada virá a perder o nome de
Bernardim Ribeiro--antes pelo contrario!

N'este trabalho notavel do sr. Guimarães, obra de paciente investigação
e bem disciplinado criterio, faz-se referencia a muitos outros factos
interessantes, que nos abstêmos de contar, porque do livro apenas
pretendemos dar rapida noticia; mas todos os elogios serão poucos a quem
com coragem estréme veio inteirar a gloria de Bernardim Ribeiro que,
desventuroso poeta, de uma parte d'ella havia sido espoliado.

Muito agradecemos a captivante offerta de um exemplar de _Bernardim
Ribeiro_, com que fomos brindados pelo auctor.

 (Da _Mala da Europa_, de Lisboa, n.^o 669, de 6 de dezembro de 1908).



Ainda Chrisfal


Longe estava de ver tão depressa e amplamente confirmada a minha
asserção de que o trabalho de Delfim Guimarães «_Bernardim Ribeiro (o
Poeta Crisfal)_» era, para mim, um «livro de consolação», quando o
_Diario de Noticias_ de 3 do corrente, sob a epigraphe «_Academia de
Sciencias de Portugal_» me trouxe esse verdadeiro manjar (para lhe não
chamar capitoso petisco...) espiritual á minha insaciavel fome de
aprender.

É como segue a passagem, que me interessa da local jornalistica em
questão:


«_Em seguida_ (o sr. dr. Theophilo Braga) _realisa uma communicação
sobre Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão mostrando como a vida
amorosa d'este oscilla entre 1525 e 1565, senão n'aquella data moço
fidalgo, e tendo pelo menos 12 annos, ao passo que aquelle era já idoso;
evidencia como na Égloga transparecem diversas situações da vida de
Christovam Falcão, e termina por invocar as opiniões de Diogo Couto,
Gaspar Fructuoso e outros que comprovam a existencia das duas
individualidades que apesar de similhantes n'algumas situações da vida,
não podem jámais confundir-se_».


Eu imagino estar vendo estas palavras cahir do labio venerando, sobre a
douta assembleia, como outras tantas perolas que, depois de serem ali
devidamente apreciadas, resvalaram cá p'ra fóra, para o monturo anonymo,
offerecidas em repasto magnifico aos cerdos iconoclastas.

Bacorejemos, pois, as preciosas gemmas...

Diz o Mestre que a _vida amorosa_ de Christovam Falcão oscilla entre
1525 e 1565, sem ficarmos sabendo se a sua _vida poetica_ tambem oscilla
dentro do mesmo periodo, isto é: se a actividade _amorosa_ e a
actividade _poetica_ de Chrisfal se confundem, caminham a par-e-passo ou
se, pelo contrario, é o amoroso que precede o vate, se este antecede o
namorado.

Eu, por mim, se alguma coisa entendo n'esta complicada psycologia, estou
em dizer que, em geral, as duas actividades se confundem, são
isochronas, e, segundo este criterio, Falcão só poetou com exito desde
1525.

Não póde elle, pois, ter figurado no Cancioneiro de Resende, que tem a
data de 1516, como o sr. dr. Theophilo Braga pretendia até ha uma duzia
d'annos atraz--opinião que depois modificou no seu trabalho, sobre
Bernardim Ribeiro, que veio á estampa em 1897.

Mas o Mestre, em 1897, deixou de lhe dar entrada no Cancioneiro pela
subtil razão de que Chrisfal não poetára nos Serões da côrte por
pertencer ao _ramo pobre_ dos Falcões. Lembrança exegetica que nos leva
a concluir que todos os poetas do Cancioneiro poetaram nos ditos serões
e demais a mais com a escarcella bem provida d'aureos recursos--embora
muitas e muitas poesias d'aquella grandiosa collecção resvalem da
casuistica amorosa, que é a caracteristica da poetica palaciana, para a
lucta dos interesses em que se revela a necessidade do vil metal.

Mas agora que o insigne Professor colloca a vida amorosa de Falcão entre
1525 e 1565, pergunto eu: permanece este argumento para a sua exclusão
do Cancioneiro ou teremos de assentar que Chrisfal n'elle não figurou
pela simples razão de, em 1516, andar ainda com coeiros?

Naturalmente teremos de optar por esta ultima versão e, portanto, pôr de
banda a sua amisade e apregoadas confidencias com o auctor das
_Saudades_.

Fica de vez assente, pois, que Christovam Falcão não foi poeta do Seculo
XV.

Proponho-me agora provar, _currente calamo_ (como não pode deixar de ser
tratando-se d'alguem que se não familiarisou com _os processos
inductivos da critica moderna_... ) que Christovam Falcão tambem não foi
poeta do Seculo XVI, como agora pretende o sr. dr. Theophilo Braga.

E isto porquê?!

Porque eu posso duvidar (ainda que me apodem de irreverente pedantismo)
das, por vezes, arrojadas conclusões chronologicas do insigne Professor.
Mais anno menos anno, mais seculo menos seculo são, para os grandes
Generalisadores, coisas d'uma importancia mediocre. Outro tanto me não
succede, quando a generalisação visa um assumpto basilar na essencia, no
modo de ser do facto scientifico.

E é este o caso. Cristovam Falcão foi poeta entre 1525 e 1565?!

Ouçamos o sr. dr. Theophilo Braga:


    «Se Cristovam Falcão escrevesse depois de 1527, quando Sá de Miranda
    propagou as formas da poetica italiana, teria então adoptado o verso
    endecasyllabo, e a fórma da _outava_, do _terceto_, e trocaria pelo
    _soneto_ o conceite provençalesco dos que ainda seguiam o typo do
    Inferno de Amor (_Bern. Rib. e os Bucolistas_, pag. 141)».


Na edição refundida do seu Bernardim Ribeiro, publicada em 1897, esta
affirmação cathegorica permanece igual ou identica, como, aliás, não
podia deixar de ser.

Demos de barato que se possa ter opinião diversa da do insigne lente do
Curso Superior de Lettras, o que ninguem póde é contrariar a _realidade
historica_, porque, como é sabido, contra factos não ha argumentos.

E esta _realidade_ diz-nos que, depois de Sá de Miranda, não houve um
uníco poeta que não tivesse experimentado as formas petrarchinas e o
verso heroico.

Houve um dr. Antonio Ferreira que nunca em sua vida fez um verso de
_medida velha_; houve muitos, e entre elles o proprio iniciador da
poetica italiana, que não desdenharam a redondilha e os velhos
agrupamentos metricos. De quem poetasse _exclusivamente_ pelos antigos
processos... não consta.

Logo, a não ser que rasguemos a _logica_ do Mestre e a _verdade_ da
Historia, Christovam Falcão não encontra cadeira onde se sente, nem na
vasta saleta da poesia palaciana, nem no refulgente salão do Seculo de
Quinhentos!

       *       *       *       *       *

Uma passagem do meu ultimo artigo teve o condão d'excitar duas
communicaçôes que amavelmente me foram endereçadas.

A primeira, d'um amigo, que me escreve: «Sobre o soneto attribuido a
Guilherme Braga, devo dizer-lhe que o auctor do mesmo não é o dr. Manuel
da Nobrega, mas sim outro poeta.»

Claramente, corri logo a casa d'este amigo que me aconselhou uma
intervista com o insigne bibliophilo e bibliographo sr. Annibal
Fernandes Thomaz, o que, para mim, foi d'um prazer espiritual, como, de
ha muito, me não era dado gosar.

Annibal Fernandes Thomaz é pessoa familiar a todos que n'este paiz se
occupam de livros e--coisa rara!--a todos sorri, a todos mette no
coração e em todos tem um admirador dos seus vastissimos conhecimentos
e, o que é mais, um amigo devotado das suas grandes qualidades.

Disse-lhe ao que ia; mas, como da nossa conferencia resulta uma resposta
á segunda communicação que recebi, é bem que n'este momento aqui fique
exarada essa communicação.

Trata-se d'um bilhete-postal anonymo, e, se quebro a minha velha praxe e
o bom-conselho de todos de lançar para os papeis inuteis esta ordem de
documentos, é porque se trata d'um assumpto litterario e o meu
correspondente, por qualquer razão se não querer fazer conhecido, o que
muito me contraria. Diz assim:

«O soneto que v. reproduziu no _Diario Illustrado_ tem mais de dois
seculos. Bastava o estylo para o denunciar seiscentista; mas a prova
positiva está em a Nova Floresta, terceiro tomo, tit. V, apopht. LIV.
Permitta-se a um obscuro padre dizer mais. Com essa ancianidade de taes
versos toma nova força o contra argumento de v. sobre o silencio dos
cancioneiros a respeito de Crisfal. Na margem do soneto pag. 207, da
edição da _Nova Floresta_ de 1759 (4.^a impressão que tenho á vista) lê
se o nome do autor assim: _Do Doutor Manuel da Nobrega_. Quem fez um tal
soneto, tão seriamente engenhoso, apesar do gongorismo, e tão bem
metrificado, havia de ter mais poesias: e sendo _doutor_, não era um
desconhecido. Que temos d'elle na _Fenix Renascida_? Quem o conhece?
Alguns annos ha, o soneto reproduzido anónimo em muitos livros devotos,
foi publicado em o _Novo Mensageiro do Coração de Jesus_ (revista
piedosa mas de muita litteratura) com a indicação, que a minha memoria
aproveitou agora, da _Nova Floresta_, e com uma nota que dizia ser o
nome do Dr. M. Nobrega desconhecido dos bibliographos.»

Vamos agora, rapidamente, ao resultado das pesquizas com Fernandes
Thomaz.

O soneto _A vós, correndo vou, braços sagrados_ encontra-se a fechar uma
dedicatoria a «Jesus Christo Senhor Nosso Crucificado» d'um curiosissimo
livro de 1734 intitulado «_Anacephaleosis medico theologica, moral e
politica_, etc., etc.», obra d'um tal Bernardo Pereyra, medico do
partido da villa do Sardoal.

O meu primeiro correspondente, que conhecia o livro, attribuiu
facilmente a Pereira a autoria do soneto, por não reparar nas palavras
que precedem a sua reproducção, e que dizem:

«...e finalmente como se consegue a gloria que é a melhor conclusão que
se tira depois de sahir da Universidade do mundo para as Escollas do
Céo; mas será bem, meu amoroso Jesus, _que antes de tudo diga com hum
devoto_ que hoje para renacer do estado da culpa ao da graça, que de vós
espero, para seguir o caminho por onde não vá precipitado, mas antes com
a vossa direcção fortalecido!

«_A vós correndo vou, braços sagrados_, etc., etc.»

Mas (e vae isto em resposta ao anonymo correspondente) tanto Barbosa, na
sua _Bibliotheca_, como Innocencio, no _Diccionario_, citam Manuel da
Nobrega, como auctor do _Epicedio inconsolavel á morte do Ser. Principe
de Portugal D. Theodosio que falleceu em 15 de maio de 1653_ e como
collaborador nas _Memorias funebres de D. Maria de Athayde_ fallecida em
22 de agosto de 1649.

É livro muito interessante estas «_Memorias funebres sentidas pelos
engenhos portugueses na morte da Senhora D. Maria de Athayde_». N'ellas
se encontram poesias em portuguez, francez, hespanhol, italiano, latim,
assignadas pelos nomes dos poetas mais illustres do tempo e, para não
citar outros, bastará lembrar os de Soror Violante do Céo e D. Francisco
Manuel de Mello.

Ao que parece tratava-se d'uma extremada formosura _doublée_ (como hoje
se diz) d'uma alma de eleição. _O Doutor Manuel de Nobrega_ concorre a
este florilegio poetico com um soneto e uma egloga. O soneto:

_Aquelle bello Sol, que amanhecia_, não desmerece, antes tem grandes
ares de familia com o que tem sido causa d'esta palestra... algo pesada.

Não quero, porém, terminal-a sem exarar o meu parecer de que o Soneto,
embora _culterano_, tem tão pouco de _gongorico_ que Guilherme Braga, ou
qualquer outro grande poeta de hoje, não desdenharia assignal-o, se essa
fosse _a sua corda_.


                                               Hemeterio Arantes.

          (Do _Diario Illustrado_, de Lisboa, de 9 de dezembro de 1908).



«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)

     Subsidios para a Historia da literatura portuguesa, por Delfim
     Guimarães. 1908--Liv. ed. Guimarães & C.^a Lisboa--8.^o, 274 pag.

     Delfim Guimarães, Bibliographia: Prosa: _Alma Dorida_, com prefacio
     de Teixeira Bastos, _O Rosquedo_ (scenas do Minho), _Ares do Minho_
     (contos).--Critica litteraria: _A viagem por terra do sr. João
     Penha_.--Verso: _Lisboa negra_, _Confidencias_, _Evangelho_, _Não!
     mil vezes não!_, _Sim! mil vezes sim!_, _Sonho Garretteano_, _A
     Virgem do Castello_ e _Outonaes_.--Theatro:--_Aldeia na Côrte_, de
     collaboração com D. João da Camara. (3 actos--Th. D. Amelia),
     _Juramento sagrado_ (1 acto, verso.--Th. D. Maria). Traduziu a
     _Dama das Camelias_, de Dumas, filho; reviu e publicou as
     _Saudades_ de Bernardim Ribeiro e as _Trovas de Crisfal_, do mesmo
     auctor. Fundou e dirige a Bibliotheca Classica Popular. Collaborou
     longo tempo na _Mala da Europa_, _Provincia_, _O Lima_, _Chronica_,
     _etc._ Varias obras de Delfim Guimarães teem já 2.^a edição,
     estando algumas outras exgotadas.


Desde longos tempos até este anno 1908 da era de Xpõ, como escreviam os
nossos velhotes, tudo era suppor que, ahi por alturas de mil quinhentos
e tal da mesma era do Senhor, viveu, floresceu, e ninguem mais soube
d'elle, certo _Crisfal_, poeta e namorado, que toda a gente indicava
como sendo Christovão Falcão, um Christovão Falcão que se sabe agora
escrever como um carreiro e ter mais erros de orthographia do que
cabellos tinha na cabeça... se a Historia não provar que elle era
careca. Indicava se Christovão Falcão tacteando. Para manter a suspeição
havia só o corresponder o pseudonymo _Cris fal_ ás primeiras sylabas do
nome do supposto poeta. Longo tempo a mentira prevaleceu e longo tempo
os doutos acceitaram de boamente a patranha, uns supplementando-a com
fabulações _á priori_, outros asseverando que tal era porque era e «por
ser verdade passavam a presente que assignavam».

Caminhava tudo em doce paz quando Delfim Guimarães, publicando o livro
de que nos occupamos, desfez a lenda, tombou os castellos e pôz a cousa
nos devidos termos. Mas vamos ao que importa.

«De como e porquê Delfim Guimarães achou que _Crisfal_ não passou de um
pseudonymo de Bernardim Ribeiro e de cousas varias que ao deante se
verão», é um capitulo que, n'esta critica, deve interessar o leitor,
agora que já sabe que tal _Crisfal_ nunca existiu.

Delfim Guimarães é um estudioso e um devotado. Manuseia os classicos com
a mesma curiosidade com que aguarda o ultimo livro de Anatole France ou
o novo romance de Octave Mirbeau.

Ha tempo, dirigindo uma collecção, publicou as _Saudades_ do nosso
Bernardim, auctor que, por sua natural tristura e dulçorosidade, desde
menino e moço mais o prendia e captivava. Tudo estaria bem até aqui se,
mente cogitativa e emprehendedora, não scismasse em publicar uma
Bibliotheca de Classicos animado pelo exito das _Saudades_. Uma
Bibliotheca de vulgarisação, destinada a mostrar á alma do vulgo o
escrinio das melhores joias dos nossos antepassados.

Anteriormente uma natural curiosidade o levara a estudar os poetas que
se apontavam como maiores amigos de Bernardim: Sá de Miranda e
_Crisfal_, o celebrado Christovam Falcão que hoje deve ás musas a
celebreira que por seculos desfructou,--elephante que conseguiu passar
por canario, o animal.

A extraordinaria semelhança de _Crisfal_ a Bernardim, os mesmos
lamentos, a mesma situação amorosa, os mesmos queixumes; a ausencia
absoluta de noticias e referencias na obra de Sá de Miranda e Bernardim
ao poeta coevo e imitador, tudo isto deu a Delfim Guimarães a certeza de
que _Crisfal_ e Bernardim era o mesmo, só, e altissimo poeta. Além
d'isto nenhum documento da epocha autorisava a pôr a carapuça _Crisfal_
em cabeça de Christovam Falcão. O mesmo editor de Bernardim, edição de
1554, onde se acha incorporada a «Egloga chamada Crisfal» escreve,
referindo-se-lhe: «_que dizem ser_ de Christovam Falcam, ho que parece
alludir ho nome da mesma Egloga».

Estudado o contemporaneo Christovão Falcão, vê-se que elle era pouco
menos de bronco e não poderia ser nunca o auctor da _Egloga_. Adquirida
a certeza, que era _Crisfal_? E logo, deductivo, Delfim Guimarães achou
a chave. É _crisma falso_, pois que na Egloga se move a mesma
passionalidade de Bernardim com supositicios nomes--falsos crismas.

O livro do escriptor é ilustrado com um fac-simile de uma carta do
pretenso Christovam Falcão e acompanhado de uma arvore genealogica dos
Falcões. De uma logica cerrada e inteligente, preciosamente documentado,
é um trabalho collosal que dará echoantissimo nome ao seu auctor. E
enquanto se não perder na memoria das gerações o nome do bardo amoroso,
o triste Bernardim, o nome de Delfim Guimarães não se desacorrentará da
gloria de ter focado com intensa luz um tão curioso e deturpado caso da
litteratura portugueza.

Lá fóra esta obra faria não só a gloria mas o nome de um trabalhador. As
Academias levar-lhe-hiam o seu _fauteuil_ estofado, e os editores
disputariam a honra de lhe pagar.

Cá dá desgostos, nada mais.

O illustre publicista José Sampaio (Bruno) chegára ás mesmas conclusões.
Anselmo Braamcamp Freire vae publicar um trabalho curiosissimo sobre
Maria Brandão; José Caldas é da opinião de que se achou a verdade. Quem
resta? Carolina Michaelis, cuja opinião importa saber, e Theophilo
Braga, que discorda.

As impugnações que Delfim Guimarães fez aos livros de Theophilo estão em
aberto. E Delfim veio com este seu trabalho não só elliminar um
Christovam da litteratura e uma Maria das muitas Marias enamoradas, mas
fazer luz sobre uma poesia de Camões falsamente attribuida a Bernardim
Ribeiro, e documentar que _sómente_ Sá de Miranda foi o introductor da
Escola Italiana em Portugal. Bernardim Ribeiro foi o introductor mas das
novas eglogas vergilianas.

Raro talento, muito estudo, aturada analyse, observação profunda e um
grande serviço prestado á litteratura, eis como julgamos o livro
_Bernardim Ribeiro_. Com ares impugnativos veio o sr. Jordão A. de
Freitas no _Diario de Noticias_ carretar materiaes para o rude e
esforçado prelio a travar-se. Não crêmos que o haja. Theophilo Braga,
porém, que tem estado silencioso, dirá de sua justiça. O trabalho de
Delfim Guimarães é probo e consciencioso. Merece o applauso
incondicional de todos, e que rejubile a litteratura que ainda tem
artistas que, fructo de seu labor, lhe dão tão bellas obras.


                                          Albino Forjaz de Sampayo.

           (Do jornal _A Lucta_, de Lisboa, de 16 de dezembro de 1908).



«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


A obra que Delfim Guimarães acaba de publicar é o producto d'um lucido
criterio aliado a uma habil quanto meticulosa investigação. Sem ser um
erudito nem rebuscador d'archivos, Delfim Guimarães, antes de encetar
quaesquer pesquizas, teve a maravilhosa intuição--ou elle não fosse um
poeta--de que os admiraveis versos do _Crisfal_, desirmanados no
decorrer do tempo da obra litteraria de Bernardim, constituiam com o
poetico romance de _Menina e Moça_, reflexos d'um mesmo espirito,
vibrações d'um unico coração.

É que o illustre critico interpretára com verdadeiro sentimento o genio
do infortunado poeta, levando a tal ponto a sua predilecção por elle,
que com as _Saudades_ abrira essa galeria de publicações classicas
portuguezas em edições populares vulgarisadas, cujo inicio no nosso meio
litterario a Delfim Guimarães se deve.

Toda aquella paixão do enternecido bucolista das _Saudades_, a fluidez
incomparavel d'essa linguagem que é na sua simplicidade uma mimica
d'alma e tem a harmonia d'um fio d'agua gorgolejante, tudo isso,--o
sentimento, que é a vida na obra d'arte, Delfim Guimarães foi encontrar
nas composições erradamente attribuidas a Cristovam Falcão.

Obtida a prova subjectiva de que o poeta das _Saudades_ era o trovador
do _Crisfal_--na realidade um criptogramma formado pelas primeiras
syllabas das palavras _crisma_ e _falso_--o distincto escriptor encetou
a investigação historica do que para elle fôra um presentimento e pelo
estudo feito sobre os documentos da epoca, seu confronto e
interpretação, conseguiu destruir n'uma argumentação irrefutavel e cheia
de brilho, a lenda feita tradição e cimentada pelo mais auctorisado
critico da nossa litteratura, que o trovador do _Crisfal_ nunca poderia
ter sido Cristovam Falcão.

A carta d'este moço fidalgo a D. João III, que Delfim Guimarães
transcreve na integra e que na edição de Theophilo Braga apparecera
deturpada, é inquestionavelmente a prova mais evidente--e outras não
houvesse com relação a datas--de que nunca o espirito trivial que
alinhavou aquelles periodos--se é que ali os ha--idealisaria a
enternecida ecloga do _Crisfal_, que é ainda, a alguns seculos de
distancia, n'esta epocha em que a arte possue riquissimos processos de
technica e a linguagem tanto ganhou em expressão emocional,--uma soberba
joia litteraria.

Nesta obra, tão cheia de revelações, começa o auctor por fixar em bases
positivas as _étapes_ da infortunada vida de Bernardim, desde o seu
nascimento no Alemtejo em 1482 até á sua morte no Hospital de Todos os
Santos, de Lisboa, em 1552, submerso nas trevas horriveis da loucura.
Depois com o esboço dos seus amores da adolescencia e paixão tragica que
votou a Joanna Tavares, que foi a mais intensa affeição de Bernardim e a
inspiradora do seu triste trovar, entra-se nos capitulos da exegese,
sendo todo o livro uma refutação completa das idéas correntes sobre a
problematica personagem do trovador do _Crisfal_. Nêle se visionam
muitos pontos de vista até então desconhecidos e se estabelecem novas
pistas para norteamento dos estudiosos, as quaes, certamente, muito
contribuirão para que todo o interessante enigma literario se desvele em
absoluto.

Nas suas curiosas investigações, fez Delfim Guimarães preciosos achados
que denotam uma grande subtileza nas suas faculdades de critico, como a
da poesia de Camões, erradamente atribuida a Bernardim, que se acha no
cancioneiro de Luis Franco, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa,
tão interessantemente descoberta, e o das tres poesias constantes d'um
_pliego-suelto_ de 1656, da mesma Biblioteca, que o distincto escriptor
filia com boas razões no estro de Bernardim.

Mercê da linguagem castiça, tão saborosamente portugueza, de que o
auctor se serve, assim identificada com o thema historico versado, a
obra é por si só, e independente da maneira de vêr do auctor, o trabalho
honesto de um escritôr que é ao mesmo tempo um artista, n'essa evocação,
d'um tão forte relevo, das saudosas edades em que os poetas amavam mais
sinceramente e eram menos complicados, a arte não sendo como hoje um
_métier_ lucrativo, mas a manifestação espontanea d'um espirito no vôo
errante da inspiração.

Fecha o livro um curioso estudo sobre a vida de Cristovam Falcão e sua
genealogia, certamente o mais completo até agora.

Felicitamos Delfim Guimarães pelo seu valioso trabalho que vem deslocar
cómodos preconceitos arreigados e abrir novos horizontes aos que se
interessam--que são todos os portuguezes--pelo estudo da litteratura
portugueza no periodo aureo d'esta nacionalidade.

               (Do jornal _O Dia_, de Lisboa, de 9 de janeiro de 1909.)



«Bernardim Ribeiro»
(O Poeta Crisfal)


É esta obra que perpetuará o nome do seu auctor, se bem que Delfim
Guimarães em precedentes trabalhos litterarios tenha já adduzido sobejas
provas para que lhe possâmos reconhecer um elevado grau de
intelligencia.

Com a publicação do volume cujo titulo encima esta noticia, o serviço
prestado por Delfim Guimarães á historia da litteratura patria está
sendo louvado tão extraordinariamente a ponto do sr. Albino Forjaz de
Sampaio, primoroso chronista da _Lucta_, não ter duvida em afirmar que
no Estrangeiro tal publicação franquearia ao seu auctor as portas d'uma
Academia.

O livro apresentado é o producto d'uma ardua tarefa em que pacientes
faculdades de investigação, alliadas a uma singular vivacidade, removem
com cauteloso tino os escabrosos obstaculos que tão ingrato estudo
frequentemente depára. Por isso é que, sem receio de contradicta, nos
afoutamos a asseverar que em Portugal ninguem melhor do que Delfim
Guimarães conhece o periodo da historia litteraria a que o mesmo
assumpto directamente respeita. E nem isso pode causar surpreza ao
leitor illustrado, uma vez que a arrojada affirmativa do illustre
publicista, que é por signal a _negação_ da existencia de Christovam
Falcão, como trovador quinhentista, demandava um minucioso exame
analytico a todos os documentos litterarios de então; e nisso só a mais
escrupulosa cautella conjugada com uma aguda perspicacia, como já
deixamos dito, poderia lograr o exito desejado.

Os materiaes que Delfim Guimarães colligiu para invalidar a
personalidade litteraria de Christovam Falcão, deixa-os elle dispersos
nos varios capitulos do seu livro, os quaes sobrepostos uns aos outros,
á medida que se vai avançando na leitura, introduzem em qualquer
espirito a certeza da these que o auctor se propoz comprovar.

De envolta com os persuasivos esclarecimentos allegados em prol do seu
proposito, o auctor rectifica raciocinios errados e affirmações
insustentaveis de Theophilo Braga, se bem que o sabor acre d'essas
frequentes correcções seja attenuado ou neutralisado quasi pelas
assucaradas referencias ao passado de tão incançavel trabalhador.

Pelo volume a que estamos alludindo vê-se que a obra de Bernardim
Ribeiro chegou para fazer a reputação de dous homens, vindo o nome de
Christovam Falcão usurpar em seu proveito algumas das produções
d'aquelle mavioso lyrico, e sendo, portanto, a sua memoria um nefasto
saprophyta que do merito alheio foi vivendo durante um longo periodo de
tempo. A duplicidade desapparece agora com as aturadas canceiras de
Delfim Guimarães que assim reivindica para o grande corypheu do
bucolismo em Portugal todos os fructos do seu prodigioso talento,
corrigindo um erro em que os bibliophilos laboraram durante seculos.
D'aqui resalta--e é esse um dos evidentes intuitos do auctor do livro em
questão--o desenho da verdadeira figura de Bernardim Ribeiro, com as
proporções proprias da sua gigantesca estatura litteraria, em cima do
seu elevado pedestal de gloria, pedestal a que algumas pedras foram
subtrahidas para sobre ellas figurar o ficticio vulto trovadoresco de
Christovam Falcão.

Em Portugal abundam os devotados enthusiastas de Camões e Camillo,
apparecendo agora um ardente propugnador d'outro nome tambem illustre, a
legitima-lo como uma das maiores glorias litterarias de que se pode
ufanar um povo. Esse nome é Bernardim Ribeiro e entrelaçado n'elle
apparecerá d'oravante o de Delfim Guimarães, que acaba de restituir a
obra do immortal bucolista á sua primitiva integridade.


                                                 Antonio Ferreira

  (Do _Commercio do Lima_, de Ponte do Lima, de 9 de Janeiro de 1909).



«Bernardim Ribeiro»


Com este titulo e o sub-titulo de _O Poeta Crisfal_, tambem o distincto
escriptor a cujo nome, já tão merecidamente aureolado, fica feita
referencia na rubrica anterior, publicou recentemente um interessante
volume, apodado por esse proprio auctor de _subsidios para a historia da
litteratura portugueza_, e que não é nem mais nem menos do que a
demonstração a nosso vêr evidentissima, digam os _mestres_ pilhados em
deturpação o que quizerem, de que Bernardim Ribeiro e _Crisfal_ são uma
e a mesma pessoa, não sendo _Crisfal_ pseudonimo de Christovão Falcão,
mas sim um composto das primeiras sylabas das palavras _Crisma falso_,
de que Bernardim Ribeiro fez uso. Percorrendo se, com olhos de ver, e
com vontade de acertar com a demonstração explanada por Delfim
Guimarães, todas as 200 e tantas paginas do volume em questão,
adquire-se o convencimento de que ficaram por terra, uma a uma, «as
pedras basilares com que o nome consagrado do sr. dr. Theóphilo Braga
ergueu o monumento, aparentemente solido, que offertou ás lettras
patrias, fazendo quase real, palpavel, uma miragem secular»--que dava
_Crisfal_ como sendo Christovão Falcão, quando este não pertence senão
ao dominio da lenda, sendo uma perfeita mystificação a sua pretendida
existencia de litterato.

O trabalho de verdadeiro erudito, que representa o livro de Delfim
Guimarães, assignala de um modo inconfundivel o seu alto valor de
estudioso, de investigador benemerito e de operoso trabalhador das
nossas lettras. Felicitando-o cordealmente por esta nova prova das suas
excepcionaes qualidades, cumprimos apenas um dever.


                                                            A. B.

            (Do _Jornal das Colonias_, de Lisboa, de 13 janeiro de 1909).



«Bernardim Ribeiro»


Temos retardado a noticia do apparecimento d'este livro notavel do
illustre poeta e prosador, sr. Delfim Guimarães, porque quizemos
consagrar á sua leitura algumas horas socegadas, afim de poder estudar
convenientemente o problema litterario que em suas paginas se debate.

Esta obra é o resultado de longas e aturadas investigações e de um
estudo conscienciosissimo, não só da obra de Bernardim Ribeiro, mas
ainda da obra de todos os poetas, apontados como seus amigos e
companheiros.

Cotejando os versos do iniciador do lirismo portuguez com os que se
attribuem a Cristovão Falcão, o sr. Delfim Guimarães facilmente
reconheceu que, embora pudésse admittir-se que a educação litteraria dos
dois poetas tivesse sido a mesma, não era possivel que as suas
tendencias esteticas fossem por tal maneira similhantes, que os seus
versos chegassem a confundir-se. Um d'elles teria sido seguramente o
imitador do outro.

Continuando nas suas indagações, e apreciando demoradamente a obra
supposta contemporanea de Cristovão Falcão, notou ainda o sr. Delfim
Guimarães que era frequente Sá de Miranda referir-se a Bernardim Ribeiro
nas suas obras poeticas, havendo tambem allusões repetidas, nos versos
d'este poeta, ao seu amigo e confidente. Ao auctor do _Crisfal_ não
notou a mais leve referencia.

N'aquelle bello poema havia allusões que alvejavam claramente Sá de
Miranda, e foi do estudo attento d'essas allusões, que perfeitamente
condiziam com as referencias das éclogas de Bernardim Ribeiro ao seu
amigo, que resultou chegar aquelle illustre escriptor a conclusões
inteiramente satisfatorias.

A analise de varios documentos de caracter historico e juridico produziu
no espirito do sr. Delfim Guimarães a convicção de que a personalidade
litteraria de Cristovão Falcão não existiu, sendo a obra que se lhe
attribue toda do autor das _Saudades_.

Houve, é certo, um Cristovão Falcão de Sousa, que foi moço fidalgo em
1527 e capitão da fortaleza de Arguim em 1545, mas este personagem, na
opinião de Delfim Guimarães, era incapaz de escrever a mais
insignificante das quadras de Bernardim Ribeiro.

Como se vê, é realmente muito notavel este livro, que os eruditos e
todos os que se interessam pelo movimento litterario portuguez,
certamente deverão apreciar pela intensa luz que projecta sobre um dos
principaes capitulos da historia da poesia nacional.

(Do jornal _O Primeiro de Janeiro_, do Porto, de 20 de janeiro de 1909).



«Bernardim Ribeiro»
por Delfim Guimarães


Não pode um povo viver sem ideal e esse ideal ha de ser como a flôr que
firma as raizes no terreno proprio das suas tradições. O futuro ha de
ser explicado pelo passado em que potencialmente está contido.

Assim, comprehende-se quanta importancia tem para a vida intellectual e
artistica d'um povo o conhecimento de tudo quanto se refere á evolução
litteraria dos generos e ás condições mesologicas em que os seus grandes
prosadores e poetas produziram monumentos de dura.

É por isso que lá fóra se não considera trabalho inutil todo aquelle que
consiste em escavar no passado, com paciencia e com intelligencia, para
d'elle desenterrar uma ideia, uma verdade, a correcção d'uma data, a
explicação de um texto obscuro.

É sobre este trabalho á primeira vista inglorio que philosophos e
historiadores edificam as largas syntheses, cuja necessidade é
redundancia encarecer para a comprehensão da psychologia d'um povo.

Entre nós, modernamente, nada ou quasi nada se tem feito n'esse sentido.
Os nossos manuaes de litteratura repetem cegamente o que estava dito e
feito, antes da descoberta dos modernos processos de critica e
interpretação do passado.

Apenas o sr. Theophilo Braga com louvavel tenacidade se tem consagrado á
especialidade, nem sempre sendo feliz, não só pela sua tendencia a tudo
systhematisar, forçando os factos para os encaixar nas suas concepções
aprioristicas, mas tambem pela vastidão do assumpto que é impossivel ser
abrangido pelo trabalho de um homem só, principalmente quando não teve
quem lhe preparasse o terreno.

Estas considerações accodem-nos a proposito do livro de Delfim
Guimarães--BERNARDIM RIBEIRO--que representa incontestavelmente o
acontecimento mais importante em historia litteraria do nosso tempo.

O facto, que é já do dominio publico, é este: Christovão Falcão, que
passava por auctor da ecloga «Crisfal», uma das joias da nossa
litteratura, foi na realidade um mediocre fidalgo, incapaz de produzir
aquella obra prima. O auctor d'esta foi, effectivamente, Bernardim
Ribeiro, o meigo poeta das «Saudades» que serviu de modelo e estimulo a
Luiz de Camões.

O livro de Delfim Guimarães, que é um modelo de investigação paciente e
de critica leal não deixa duvidas a tal respeito. Seria descabido aqui
repetir os argumentos que por ora ninguem desfez em que o auctor
fundamenta a sua sensacional descoberta.

Limitamo-nos simplesmente a consignar que se Delfim Guimarães revelou
uma extraordinaria sagacidade estabelecendo «a priori» a identidade de
Bernardim Ribeiro e do auctor de «Crisfal», a fórma cheia de probidade
por que procurou «a posteriori» justificar a sua opinião honra não
sómente as suas faculdades de investigador, mas tambem o seu caracter.

Quer nos parecer que, depois d'este precioso livro, a ninguem é licito
alimentar duvidas a tal respeito. E se se perde para o quadro dos nossos
poetas um nome, fica enriquecido e aureolado com gloria nova, mas que
lhe pertencia o doce e encantador namorado da «Menina e Moça».

A Delfim Guimarães os nossos parabens e, com elles, os nossos
agradecimentos.

        (Do _Jornal de Noticias_, do Porto, de 8 de fevereiro de 1909).



Divagações

I


Só agora,--ainda que me não creiam--, só agora acaba de morrer, neste
anno da graça de 1909, um dos grandes bucolicos da época de ouro dos
escriptores quinhentistas!

Esse macrobio das letras, Mathusalem portuguez, de nome e de nação, era,
sem mais nem menos, Chistovam Falcão de Sousa, que, embora quatro vezes
secular, me parece, indefinidamente vivo continuaria se não o tivessem
acaso assassinado...

Companheiro, amigo e confidente de Bernardim Ribeiro, houvera entre os
dois, segundo Theophilo Braga, a infeliz conformidade de uma sorte
infeliz; pois, ao passo que aquelle se desperdiçava por amores, tambem
este por amores se perdia...

As celebradas «Trovas de Chrisfal» collocavam a figura de Maria Brandão,
«com a casta graciosidade de uma virgem de Cimabue, dentro de paisagens
que pareciam ter os traços do pincel de Giotto»; e toda a tradição
popular, já assignalada pelo chronista Diogo do Couto, era unanime em
considerar esse nome de «Chrisfal» como formado das duas primeiras
syllabas do prenome e appellido de Christovam Falcão. De outra parte, o
poema das «Saudades», ou a «Menina e moça», de Bernardim Ribeiro,
lembrava a desventurada paixão do poeta pelo typo feminil de Joanna
Tavares, que elle disfarçava com o pseudonymo pastoril de «Aonia».

Tão notavel se afigurava a individualidade literaria de «Chrisfal» que,
para a illustre romanista D. Carolina Michaëlis, elle teria sido o
creador do genero bucolico em Portugal, e Bernardim apenas o seu
immediato imitador; mas, tambem, a semelhança entre elles era tal que,
conforme a judiciosa observação do professor Simões Dias, «as obras de
um podiam passar como feitas pelo outro.»

E assim se devia entender e ensinar nas escolas, até que um novo
escriptor lusitano, o sr. Delfim Guimarães, nos apparecesse com um
trabalho recente e valioso, onde a toda luz demonstra, com grande
escandalo dos mestres, que Christovam Falcão é, sem menos nem mais, o
mesmo Bernardim Ribeiro, que adoptara nas «Trovas» o chris (ma) fal (so)
de Chrisfal». E a «Maria» de taes versos tambem constituia, a seu turno,
mais um cryptonymo de amor...

Por certo que existiu Christovam Falcão, e existiu naquelles mesmos
annos, mas o sr. Delfim Guimarães prova que semelhante personagem era um
ignorantaço de marca.

--Arranque-se-lhe, por conseguinte, e para sempre, o rutilante diadema
de poeta com que lhe cingiram a cabeça romantica... Puramente emprestada
era a luz que o sobredourava na historia,--luz que lhe não provinha do
merito, senão antes da phantasia dos criticos.

Em todo o caso, e emquanto houver a memoria dos homens, viverá o seu
«renome», attribuido apenas á felicidade do «nome»...

Se elle, como escriptor, morreu, ha de ser, comtudo, evocado nas obras
de erudição, ao menos, quiçá, como testemunho de quanto podem os enganos
e a tardia justiça dos homens.

O trabalho consciencioso do sr. Delfim Guimarães honra a sua fina
argucia, e nos leva a confiar no indefectivel juizo da historia cuja
precaria relatividade é razão sobeja para nos empenharmos contra os
«tortos» iniquos de que nos faça réos a precipitação ou a desidia. A
averiguação do que pertence a cada um não transcende as raias da
judicatura terrestre; e, para os que esperam na vida futura, parece que,
perante o seu tribunal supremo, com jurisdicção apenas sobre o bem e o
mal, não se levarão os problemas de preeminencia literaria, nem
scientifica...

Á posteridade é que compete extremar as glorias de cada autor; sendo
que, muitas vezes, a injustiça ou a ignorancia dos coevos, não impedem
que as gralhas sejam finalmente despojadas do atavio das pennas do
pavão.

Recordando o padre Manuel Bernardes o costume romano de ser punido, com
o venablo e a nota de infamia, o legionario fanfarrão que enchia a boca
de mentirosas façanhas, accrescenta que, se houvera de andar semelhante
correição pelos ostentadores de engenho, muitos funccionarios exigiria a
devida e cabal applicação da pena, que, na velha organisação militar,
era privativa dos «tribunos». Verifica-se, porém, que, com o correr dos
tempos, nunca faltam «tribunos» da milicia literaria, para o castigo dos
soldados, «que blasonam falsas valentias», ou para que se desmascarem os
miseraveis impostores da sciencia. Se até os reis, desde Homero, e, como
dizia Camões,


    «Dão os premios, de Ajace merecídos,
    Á lingua vã de Ulysses fraudulenta»


vêm mais tarde os divinos aedos, que, no tribunal dos pósteros,
pleiteiam e ganham a causa dos que foram injustamente aggravados.

Não permitte, afinal, o criterio dos competentes, que um simples
erudito, como Ptolomeu, usurpe, inappellavelmente, a fama devida ao
saber mathematico de Hipparcho.

Este não é precisamente o caso de Christovam Falcão de Sousa, que não
póde responder pelo erro dos que lhe enfiaram na modesta fronte uma
corôa gloriosa de poeta. Elle, se vivo fôra, repugnaria acceitar o que a
outrem pertencia de direito; pois, se os elogios que não merecemos, nos
deprimem, em vez de exaltar-nos, o protesto da nossa consciencia não
deve tardar quando aquillo que nos dão representa o resultado de uma
espoliação alheia.

Reproduzindo a carta que ainda se encontra na Torre do Tombo, o sr.
Delfim Guimarães apurou, e deixou de manifesto, que o suposto trovador
tinha apenas a instrucção rudimentar dos moços fidalgos do seu tempo.

Se «idiotas», na accepção archaica de--«sem letras», eram, como sabemos,
os barões da edade media, que até disso mesmo se ufanavam, a ponto
de--«o condestavel Duguesclin nunca ter querido sujeitar-se á
doutrinação de um mestre», nem ainda na aurora da Renascença pareceu
melhor a cultura de certos homens, apesar de illustres.

Francisco Pizarro, logar-tenente de Sua Alteza, cavalleiro da ordem de
Santiago e conquistador do Perú, ouviu ler, deante do Grande Concelho
dos nobres de Hespanha, a minuta do decreto que o fazia senhor de todas
terras descobertas e por descobrir;--e, como, na expressão de Heredia,
não pudesse assignar o protocollo,


    «Fit sa croix, déclarant ne savoir pas écrire,
    Mais d'un ton si autain que nul ne put en rire.»


Á vista de tal exemplo, não ha extranhar, no gentil-homem Christavam
Falcão, nem as faltas de grammatica, nem as de orthographia, patentes em
sua carta a el-rei, conforme o documento que ainda se conserva na Torre
do Tombo... Mas essas faltas e a rudeza geral do estilo são bastantes
para que não mais o tenhamos na conta de um emulo do suave e
melancholico Bernardim Ribeiro, autor incontestavel das «Trovas de
Chrisfal», depois de tantos argumentos sagazmente colhidos de uma
profunda analyse psychologica e linguistica.

Um dos mais fortes indicios (aliás não aproveitado pelo sr. Delfim
Guimarães) consiste na estrophe 77, das «Trovas», com o começo, em
prosa, do poema das «Saudades»:


    Por ti me vi desterrada
    em estas estranhas terras
    de donde eu fui criada,
    e, por ti, antre estas serras,
    em vida, são sepullada:
    onde, a se me perderem
    a frol dos annos se vão;
    ora julga se é rezão
    das minhas lagrimas serem
    menos daquestas que são!


Ha aqui uma clara allusão ao mesmo facto referido no trecho:


«Menina e moça me levaram de casa de meu pae para longes terras; qual
fosse então a causa daquella minha levada, era pequena, não na soube.»


O sr. Delfim Guimarães deixa agora envolta em trevas a personalidade de
Christovam Falcão; mas o raio de luz que deste se afasta, só serve de
augmentar a gloria de Bernardim Bibeiro, cujo peregrino talento até hoje
scintillava repartido pela auréola de dois nomes de poeta...


                                              Silvio de Almeida.

(Do jornal _O Estado de S. Paulo_, de S. Paulo, Brasil, de 29 de março
de 1909).



Divagações

II


Que extranha e mal debuxada figura não era a desse Christovam Falcão, a
quem, de principio, a gente ignara, depois editores sem critica, e, por
fim, os mesmos autorisados mestres, attribuiram a paternidade das
«Trovas de Crisfal», sem outro algum motivo que só este, aliás, deveras
pueril: conjugarem-se na palavra «Crisfal» as duas primeiras syllabas de
«Christovam» e de «Falcão»!

Unicamente, pois, a sorte de seu «nome» lhe grangeára o dilatado
«renome» de quatro seculos, cheios de uma admiração que tanto (segundo o
costume) tinha de enthusiastica, quanto mais era infundada e gratuita.

Aos phantasistas nada, certo, importava que jamais fosse o ideal
trovador, nem uma vez, referido no volumoso in-folio do «Cancioneiro» de
«Rezende», em cujo indice se catalógam até as mediocridades pulhas
daquelle tempo. Nem cuidaram tampouco que a sua unica pretendida obra
lyrica (não sem causa deparada entre os papéis, que foram, de Bernardim
Ribeiro)--versava o mesmo assumpto predilecto deste ultimo, reflectia o
mesmo gosto da paisagem, era fundida nos moldes do mesmo estilo, vinha
molhada pelas lagrimas da mesma dorida commoção!

A todos que tenham olhos de ver, demonstra agora o sr. Delfim Guimarães,
com miudezas de analyse, que certos passos das «Trovas», ou reproduzem
heptasyllabos das pastoraes ribeirescas, ou correspondem a phrases
similares do romancete das «Saudades».

Deixando, porém, de lado dezenas de significativas coincidencias
esparsas, como entre o verso da egloga 4.^a:


    «Coitado, não sei que diga,


e o da estrophe 21 de «Crisfal»:


    «Mas, triste, não sei que digo»;


eu apenas aqui darei o que não expoz o novél escriptor portuguez, ou
aquillo que elle só levemente adduziu.

Já na carta prefacial das «Trovas», cujo tom dagua chorosa nos suggere o
«memento» do «Cancioneiro», os versos:


    «Cuidai quanto nos quisemos,
    e não vos possa mudar
    dizer que vos podem dar
    outrem que tenha mais que eu»,


perfeitamente combinam com a 1.^a egloga:


    «Veio ahi outro pastor ter:
    com o que prometteu ou deu
    se deixou delle vencer»,


e com a «Menina e moça»:

--«...succedeu, no castello, um filho de um cavalleiro muito valído e
rico nesta terra, que por meio de vizinhos desejou Aonia por mulher»;

--«...bem lhe pareceu que se não descontentaria Aonia do esposo, porque
era bem aposto cavalleiro e dos bens do mundo abastado».

Note-se, mais, que a locução--«dos bens do mundo abastado», tambem
inserta na 2.^a bucolica, reapparece na 5.^a estrophe de «Crisfal», cujo
introito (conforme com as eglogas 1.^a, 2.^a e 5.^a) faz das «selvas
junto do mar» o delicioso theatro dos amores dos dois zagaes.

A descripção desse local (de Sintra e de seu Val de Lobos), apenas
esboçada no começo das «Trovas», melhor se delineia da estrophe 55 em
deante:


    «Vão alli grandes montanhas
    de alguns valles abertas,
    todas de soutos cubertas,
    aos naturaes extranhas,
    mas á saudade certas.
    .......................
    Cuberta era a fonte
    de tam fresco arvoredo,
    que não sei como o conte,
    muito quieto e mui quedo,
    por ser antre monte e monte.
    .............................
    Ao pé de um castanheiro
    me pus, triste, assentado,
    ouvindo o tom de um ribeiro.
    Meus olhos e eu passámos
    alli a noite em amores.
    .............................
    Naqueste tempo corrompe
    a ave que chamam leal
    o silencio do seu mal,
    que é quando a alva rompe
    e ao dia faz signal».


Depois disso, abram o livro da «Menina e moça», e façam-me o favor de
ler:

«Neste «monte mais alto de todos» (que eu vim buscar pela suavidade de
outros que nelle achei) passava eu a minha vida como podia; ora em me ir
«pelos fundos valles que os cingem dearredor», ora em me pôr do mais
alto delles olhar a terra como ia acabar ao mar; e depois o mar como se
estendia logo após ella, pera acabar onde ninguem o visse».

--«E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte)
determinei ir-me pera o pé deste monte, «que d'arvoredos grandes e
verdes ervas e deleitosas sombras» é cheio, «por onde corre um pequeno
ribeiro» de agua de todo o anno, que nas noites caladas, o rogido delle
faz no mais alto deste monte um «saudoso tom, que muitas vezes me tolhe
o sono».

--«Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre um verde ramo
que por cima da agua se estendia, «veio pousar um rouxinol».

Para completar a symetria e a belleza idyllica da pintura, nem faltou a
esse quadro o vultinho animado da mesma «ave leal» de que nos. falavam
as «Trovas».

Quanto ao par apaixonado, a referencia da 2.^a estrophe de «Crisfal»:


    «Sendo de pouca edade,
    não se ver tanto sentiam
    que o dia que se não viam,
    se via na saudade
    o que se ambos queriam».


ligada á da 77:


    «a frol dos annos se vão»,


e á da 84:


      «Quando vos dei a vontade,
    inda vós ereis menina,
    e eu de pouca edade»,


em nada discrepa da do capitulo 18 das «Saudades» de Bernardim:


--«...a senhora Aonia, que ainda então era donzella d'antre treze ou
quatorze annos...»;

--«...a barba um pouco espessa e um pouco crescida, que a elle traz,
parece que é aquella a primeira ainda...»


Em relação ao poeta, a 2.^a egloga positivamente declara que contava os
seus vinte e um de edade quando se fez «servidor» de Aonia.

Mas dos parentes desta a interesseira má vontade, que «Crisfal»
vehemente assignala, assentou de lhe curar o coração doente de mulher
pelo processo sedativo de um apartamento para «longes terras» (expressão
egual da estrophe 7.^a e do 1.^o capitulo da «Menina e Moça»).

Ainda na 2.^a egloga, Bernardim, que com os italianos aprendera o
reavidado uso das allegorias de Vergilio, se manifesta como um pastor
nascido «antre Tejo e Odiana»; e muito é para notar que nas «Trovas»
tambem exista o mesmo verso (6.^o da 30.^a estrophe).

Attingido o pegureiro (na 2.^a bucolica) do encantamento de amor,


    «logo então começou
    seu gado a emagrecer:
    nunca mais delle curou.»


E «Crisfal», outrosim (como réza a 5.^a estrophe),


    «...por curar da paixão,
    não curava do seu gado».


O mesmo pensamento se exprimiu, pois, aqui, sómente com tal ou qual
superioridade artistica, que não é a injusta superioridade de Christovam
Falcão sobre Bernardim Ribeiro, senão antes a deste sobre si proprio, no
progressivo burilamento da fórma impeccavel.--Mas o artista, como que
apostado em exceder-se cada vez mais, só achou a sua melhor expressão
esthetica quando depois insistiu, na estrophe 22:


    «descuido matou meu gado,
    cuidado matou a mim».


A antithese (que tira de duas idéas oppostas a scintillação do choque de
duas pedras) constitue quasi sempre o ultimo resultado de uma longa
elaboração mental.

Ha, na melancholia das «Saudades», um topico onde o seu autor diz que,
já de affeito ás dores, parecia viver nellas. E tal conceito assume, na
10.^a estrophe das «Trovas», uma formulação mais abstracta e geral:


    «O longo uso dos danos
    se converte em natureza».


A hypothese de «Crisfal» ser Christovam Falcão exigiria, portanto, que
delle fosse, tambem, um simples reflector o nosso, aliás original,
Bernardim Ribeiro; ou isso, ou, então, plagiario o outro...

Gemeos intellectuaes, e ainda irmãos no infortunio de seus affectos,
nunca se houvera visto, sequer em dois relogios, uma tão completa
concordancia!

Mas, dentre o suffocante accumulo de provas contrarias, uma, sobretudo,
victoriosamente resalta da egloga «Alejo» de Sá de Miranda, o
«philosopho» amigo e confidente do «ternissimo» Bernardim Ribeiro.

Alli diz o Miranda, disfarçado sob o cryptonymo de «Antonio»:


    «Vine por Ribero ver,
    como otras vezes solia.»


Pois bem: Esse mesmo «Antonio» apparece na estrophe 32 de «Crisfal», que
delle assevera:


    «Aqueste é o pastor
    que aqui vêo buscar-me.»


De semelhante parallelismo não ha concluir senão que «Ribero» e
«Crisfal» representam um só e mesmo «pastor», o que vale dizer «poeta»,
na linguagem allegorica do bucolismo.

Demais:

Os versos que se acham em «Alejo»:


    «Io sonava que me via
    entre unas cerradas breñas;
    de una parte i de otra peñas,
    do nunca el sol descobria»,


traduzem no castelhano os da estrophe 7.^a das «Trovas»:


«esconderam-me antre serras,
onde o sol nunca era visto,»


Ora, se (a paginas 188 de sua obra refundida sobre Sá de Miranda)
reconhece Theophilo Braga, como todos, em «Alejo», uma segunda figura de
Bernardim, deverá reconhecer ainda que «Crisfal», sendo «Alejo», é
Bernardim tambem.


A gloria do sr. Delfim Guimarães foi de haver apanhado a verdade, que
tão fóra andava da corrente unanime do parecer dos mestres.

Mas, já das muitas adhesões que elle conquistou, licito me seja destacar
o voto preponderante da senhora dona Carolina Michaëlis de
Vasconcellos,[12] como primeira autoridade--que ella o é--da moderna
philologia portugueza.

Tambem, no Brasil, Sylvio Romero entende que estão reivindicados, de uma
vez, os direitos de Bernardim Ribeiro «a essa bella parte da sua obra
que a lenda lhe andava a tirar estupidamente»...


                                                Silvio de Almeida.

(Do jornal _O Estado de S. Paulo_, de S. Paulo, Brasil de 5 de Abril de
1909).



Indice


Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal



I. Razão de ser d'este livro      5

II. O snr. dr. Theóphilo Braga descobrindo a verdade, e procurando
enterrá-la     29

III. Anotações á carta que nos dirigiu o snr. dr. Theóphilo Braga     37

IV. A comunicação do presidente da Academia das Sciencias de Portugal 59

V. O artigo «Movimento litterário»      63

VI. Uma patranha genealógica      97

VII. O criptónimo «Fileno»      99

VIII. In terminis      103


       *       *       *       *       *

Apreciações da imprensa ao livro:


«Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal)»


Do jornal «_O Mundo_», de Lisboa      107

»     »   «_O Seculo_», »    »       109

»     »   «_Diario de Noticias_», de Lisboa,--artigo do snr. dr. Candido de
Figueiredo     111

»     »   «_Diario Illustrado_», de Lisboa,--artigos
do snr. Hemetério Arantes      113 e 125

»     »   «_A Mala da Europa_», de Lisboa      121

»     »   «_A Lucta_,» de Lisboa,--artigo do snr. Albino Forjaz de Sampayo 133

»     »   «_O Dia_», de Lisboa      139

»     »   «_O Commercio de Lima_», de Ponte do Lima--artigo do snr. dr.
Antonio Ferreira      143

»     «_Jornal das Colonias_», de Lisboa,--artigo de A. B. 147

»     jornal «_O Primeiro de Janeiro_», do Porto      149

»     «_Jornal de Noticias_», do Porto      151

»     jornal «_O Estado de S. Paulo_», de S. Paulo, Brasil,--artigos do snr.
Sílvio de Almeida 155



*Notas:*

[1] O _normando_ é nosso.

[2] Este _ponto de admiração_ pertence exclusivamente ao snr. dr.
Theóphilo Braga.

[3] T. Braga.--_Obras de Christovam Falcão_, Porto, 1871--pag. 4.

[4] _Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal)_, pag. 180.

[5] Torre do Tombo--Gaveta 20--maço 5--n.^o 10.

[6] Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, pag. 63-64.

[7] _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_, pag. 19.

[8] _Bernardim Ribeiro e o Bucolismo_, pag. 19.

[9] Carta do snr. Jordão de Freitas no jornal «O Dia» em 2 de janeiro de
1909.

[10] Conferencia de 8 de Junho de 1725 pelo Conde da Ericeira, na
Colleçam dos documentos e memorias da Academia Real da Historia
Portugueza.

[11] Aliás, as glosas ao solau.

                                                   _Nota de D. G._

[12] Reproduzindo integralmente o artigo do nosso ilustre confrade
brasileiro, cabe-nos o dever de declarar que a insigne romanista,
senhora D. Carolina Michaëlis, que nós saibamos, ainda não manifestou a
sua opinião.

                                                   _Nota de D. G._



Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  |#pág.   12| auxilados           | auxiliados           |
  |#pág.   28| impondo-a           | impondo-o*           |
  |#pág.   29| Pedron              | Padron*              |
  |#pág.   32| paternalmente       | paternalmente,*      |
  |#pág.   38| primeiro            | segundo*             |
  |#pág.   85| com o               | como                 |
  |#pág.   90| empenhada           | empenhado            |
  |#pág.   94| com todas           | como todas*          |
  |#pág.   95| Falção              | Falcão*              |
  |#pág.  102| portuguesês         | portuguêses          |
  |#pág.  107| Chistovão           | Christovão           |
  +----------+---------------------+----------------------+


* correcções feitas com base na errata do próprio livro.

As figuras da página 34 e da página 49 estão ilegíveis, motivo pelo qual
não foram adicionadas. Fica no entanto a sua indicação.





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