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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05
Author: Herculano, Alexandre, 1810-1877
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05" ***


Nuno Lopes (Projecto Enclave) and edited by Rita Farinha



OPUSCULOS V



*OPUSCULOS*

POR

A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA

SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA

SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO
DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE
TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.

*TOMO V*

CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS

TOMO II


LISBOA

VIUVA BERTRAND & C.^a SUCCESSORES CARVALHO & C.^a

73, Chiado, 75

M DCCC LXXX VI



COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE



AO

ILL-^{MO} E EX.^{MO} SENHOR CONSELHEIRO

ANTONIO DE SERPA PIMENTEL

DEDICAM

OS EDITORES



Compõe-se este volume de tres escriptos já impressos em outras épochas,
mas provavemente desconhecidos da maior parte dos leitores actuaes, e
bem assim de um notavel estudo inedito ácerca do Feudalismo, que o
auctor não chegou a concluir, e em que trabalhava quando a morte o
surprehendeu.

Pouco diremos a respeito d'aquellas primeiras composições.

As noticias da vida e obras de alguns historiadores portuguezes são
extrahidas do _Panorama_. Destinadas, apenas, a satisfazer a curiosidade
dos leitores habituaes d'este genero de publicações, nas quaes a
variedade e a concisão são requisitos essenciaes, essas noticias não
teem todo o desenvolvimento que o auctor hoje lhes daria, se houvesse de
aproveital-as para algum d'estes volumes; mas, apezar d'isso, cremos que
o leitor folgará de as encontrar aqui reunidas, não só pelo seu
indisputavel merecimento, mas tambem por serem invocadas em todos os
artigos do _Diccionario bibliographico_, onde coube ao laborioso
Innocencio da Silva tractar dos escriptores a que ellas dizem respeito.

As _Cartas sobre a historia de Portugal_ sairam á luz nos tomos 1.^o e
2.^o da _Revista universal lisbonense_, precedidas das seguintes
palavras do illustre redactor d'este semanario: «Temos em nosso poder a
preciosa serie de cartas, cuja primeira publicamos hoje. N'ellas
descobre o nosso infatigavel e eloquentissimo antiquario, o sr.
Alexandre Herculano, um grande numero de importantes verdades ácerca dos
principios de Portugal--da constituição, natureza e relações mutuas das
classes, n'esses tempos tão obscuros e tão pouco averiguados. N'estes
escriptos, que não são mais do que o preludio de uma obra, que sem falta
sairá cabal, sobre a materia, faz o sr. Herculano á sua pátria, e
geralmente á sciencia, um presente de altissima valia, de que a _Revista
universal_ devidamente aprecia a honra de ser mensageira.» Com effeito,
estas cartas, publicadas em dezeseis numeros d'este semanario, desde 7
de abril de 1842 até 3 de novembro do mesmo anno, foram então
interrompidas, porque o auctor, conscio já das proprias forças, dedicou
d'ahi em deante todos os cuidados ao immenso valor da obra monumental,
que lhe havia de conquistar o primeiro logar entre os historiadores do
seu paiz.

O terceiro dos opusculos agora reunidos, isto é, a carta em defeza de
algumas asserções do primeiro volume da _Historia de Portugal_,
appareceu, tambem, na _Revista universal_. O auctor mantem e defende as
suas idéas, combatendo um artigo de critica publicado em 2 de abril de
1846, e firmado com as iniciaes D. S. M. de Vilhena Saldanha, que
suppômos serem a assignatura do respeitavel ancião D. Sancho Manuel,
fallecido em 30 de maio de 1880. Como esta carta não trazia titulo, e
nós tinhamos de lhe dar algum, pareceu-nos conveniente alludir á pessoa
que escreveu o artigo a que ella responde: tanto mais que a cortezia de
ambas as composições tornava desnecessario qualquer resguardo.

Até aqui falámos de trabalhos que já tinham visto a luz publica, e a
respeito dos quaes é sufficiente o que fica dicto. Agora, porém,
chegados á parte inedita e mais valiosa do presente volume, procuraremos
satisfazer a justa curiosidade do leitor, descrevendo minuciosamente o
manuscripto, e declarando o systema que seguimos ao dal-o à estampa.

O luminoso estudo ácerca da existencia ou não existencia do feudalismo
em Portugal compõe-se (no estado em que chegou ás nossas mãos) de oito
capitulos completos e um apenas começado, além de algumas folhas
avulsas, de que adeante nos occuparemos.

Os primeiros seis, que neste livros abrangem as paginas 193 a 242, foram
escriptos em 1875, isto é, dois annos depois da publicação do _Ensaio
sobre la historia de la propriedad territorial en España_, como o auctor
declara, e chegaram a estar no escriptorio da _Revista occidental_, onde
todavia não poderam sair impressos, por ter acabado esta _Revista_ em
julho do mesmo anno. Acham-se lançados em meias folhas de papel almaço,
escriptas de um só lado, e promptos para a imprensa, não offerecendo,
por isso, difficuldade alguma de leitura. O grande escriptor calculava
n'esse tempo ser esta a terça parte do que lhe seria necessario dizer em
relação a tão interessante e debatido ponto historico.

Ou por essa occasião ou pouco tempo depois, accrescentou os capitulos
VII e VIII, não já em meias folhas, mas em oitavos do mesmo papel,
formato que lhe permittia, não só intercalar quaesquer novas provas ou
argumentos, que lhe fossem occorrendo, mas ainda dar diversa collocação
aos paragraphos, se de futuro a deducção das idéas e a harmonia da
composição o exigissem.

Incommodos de saude mais ou menos graves, trabalhos litterarios de outra
indole, e varios negocios domesticos, impediram então o auctor de
proseguir n'este importante assumpto, e foram causa de não possuirmos
hoje completo mais um livro serio, coisa de extrema raridade nos tempos
que vão correndo.

Quando, d'ahi a muitos mezes, recuperada a saude e dispondo do tempo
necessario, pôde dedicar-se de novo ao exame da obra do sr. Cárdenas,
tudo nos persuade de que trazia profundamente alterado o plano primitivo
do seu trabalho. Achou-se, sem duvida, apertado e tolhido nos estreitos
limites em que a principio o circumscrevera, e resolveu abrir mais largo
campo, onde podesse desenvolver a grande copia de noticias que
enthezourara, e que directa ou indirectamente se prendian com o assumpto
em discussão.

Foi este, a nosso, ver, o motivo por que, voltando atraz, tomou nota de
numerosas proposições do _Ensayo_, transcrevendo as passsagens
respectivas em meias folhas de papel de pequeno formato, e pondo no alto
da primeira a cota: «_IV_ (_Continuação_)». O leitor encontrará este
additamento desde paginas 242 até o fim do capitulo.

Resolvido, pois, a dar maior amplidão ao seu trabalho, tractou o auctor
de reconstruir os capitulos VII e VIII, que hoje apresentam em mais de
um logar graves difficuldades de leitura, por causa das transposições,
emendas, entrelinhas e accrescentamentos, de que estão cheios os
respectivos borrões.

Apezar d'isso, o capitulo VII--o magistral estudo do _Codigo
wisigothico_--póde considerar-se completamente organisado, tanto na
doutrina como na forma, embora deixe vêr, aqui ou alli, «as arestas
vivas do cunho», porque o auctor não chegou a pôr-lhe a ultima lima.

Não acontece, porém, outro tanto com o VIII, destinado ao estudo do
_Direito consuetudinario_. Este capitulo compõe-se de 32 oitavos de
papel, que a principio tinham tido outra ordem, e cuja disposição
definitiva não ficou claramente marcada senão até o 17, isto é, até
paginas 283 d'este livro. D'ahi em deante os embaraços crescem, porque
alguns d'esses oitavos não teem numeração antiga nem moderna, e,
formando sentido completo, sem dependencia de outros anteriores ou
posteriores, tornam sobremodo difficil acertar com o seu verdadeiro
logar: quer-nos parecer, porém, que não contrariámos demasiado a
intenção do auctor, dando-lhes a ordem em que vão impressos.

Além dos já referidos, encontrámos uma serie de oitavos numerados de 1
até 10, mas sem designação do capitulo a que eram destinados. O ultimo
d'elles está acabar, o que indica que foi ahi que se interrompeu o
trabalho do insigne escriptor. Por esta circumstancia, e tambem por ser
a materia de que ia tractar (a divisão da propriedade territorial) a que
justamente se devia esperar, na ordem dos apontamentos que tomara do
livro do sr. Cárdenas, não tivemos duvida em os considerar como
principio do capitulo IX, marcando, comtudo, entre paretheses este
numero de ordem.

Restavam ainda duas folhas da primeira composição, que não tinham sido
aproveitadas, nem podiamos introduzir no texto, embora se conheça que
deviam fazer do capitulo que ficou por acabar. São, porém, tão
importantes, e formam por si sós um corpo de doutrina tão perfeito, que
julgamos prestar um serviço, formando com ellas o Esclarecemento A, no
fim do volume.

No mesmo caso está uma nota relativa á intelligencia que se deve dar á
palavra _Feudo_, nas raras vezes que apparece nos documentos d'aquella
edade. Esta nota estava lançada tambem em folhas inteiras, e tanto pode
servir de elucidação ao que se diz na Carta 3.^a sobre a Historia de
Portugal (pag. 79), como de prova da affirmativa do auctor a pag. 199,
onde fizemos a competente chamada. Constitue o Esclarecimento B.

Resumindo: os primeiros seis capitulos estavam promptos para serem
impressos, segundo o plano primitivo; a continuação do VI, o VII e o
VIII, conservavam-se no primeiro borrão, e portanto dependentes de
ulteriores modificações, tanto na sua disposição geral, como no estylo,
que não tinha recebido ainda as ultimas correcções; o que reputamos IX
ficou apenas principiado; e as folhas avulsas, que aproveitámos para
Esclarecimento, esperavam o seu futuro destino.

Se attendermos, agora, ás doutrinas contidas nos extractos do livro do
sr. Cárdenas, com que o auctor ampliou o capitulo VI do seu trabalho,
reconheceremos que elle se propunha estudar detidamente a divisão da
propriedade territorial, as relações das diversas classes entre si, o
serviço militar, a administração da justiça, o poder central e seus
representantes locaes; a organisação social, em summa, do nosso paíz
n'aquellas épochas remotas. Já não era, pois, um simples opusculo que
tinhamos a esperar da sua penna auctorisada: era um livro precioso, que
viria supprir, em grande parte, o V volume da _Historia de Portugal_, se
não no desenvolvimento e discussão erudita de todos os pontos
controvertidos ou ignorados, com certeza nos resultados finaes a que
chegara o seu longo estudo e admiravel lucidez de espirito.

Entre Fernão Lopes e fr. Antonio Brandão mediaram dois seculos. Entre o
douto cisterciense e o auctor d'este livro outros dois, e bem medidos.
Oxalá que, d'esta vez, seja mais curto o prazo, em que tenha de
apparecer o continuador idoneo dos trabalhos, que Alexandre Herculano
deixou interrompidos.

(1881).

_Os editores_.



HISTORIADORES PORTUGUEZES

1839--1840



I

*Fernão Lopes*


Tão raros ou tão pouco lido andam os antigos escriptores portuguezes,
que muitas pessoas ha, não de todo hospedes nas letras, que apenas de
nome os conhecem, e frequentes vezes nem de nome. Grave mal, por certo,
e mui de lamentar é tal e tão ingrato desamor áquelles que assim lidaram
em suas doutas vigilias ou para nos transmittirem as heroicas façanhas
de nossos antepassados, ou para nos doutrinarem com virtuosos conselhos,
ou para nos consolarem com um brado de poesia de mais singelas eras, ou,
finalmente, para nos herdarem sua sciencia; que muita e boa a tiveram.
Assustam os livros pesados e volumosos do tempo passado as almas debeis
da geração presente: a aspereza e severidade do estylo e linguagem de
nossos velhos escriptores offende o paladar mimoso dos affeitos ao
polido e suave dos livros francezes. Sabemos assim quaes são os
documentos em que estribam glorias alheias: ignoramos quaes sejam os da
propria, ou, se os conhecemos, é porque estranhos nol-os apontam,
viciando-os quasi sempre. Symptoma terrivel da decadencia de uma nação é
este; porque o é da decadencia da nacionalidade, a peior de todas;
porque tal symptoma só apparece no corpo social quando este está a ponto
de dissolver-se, ou quando um despotismo ferrenho poz os homens ao livel
dos brutos. Desenterra a Allemanha do pó dos cartorios e bibliothecas
seus velhos chronicons, seus poemas dos Nibelungos e Minnesingers; os
escriptores encarnam na poesia, no drama e na novella actual as
tradições populares, as antigas glorias germanicas, e os costumes e
opiniões que foram: o mesmo fazem a Inglaterra de hoje á velha
Inglaterra, e a França de hoje á velha França: os povos do Norte saúdam
o Edda e os Sagas da Irlanda, e interrogam com religioso respeito as
pedras runicas, cobertas de musgos e sumidas no amago das selvas: todas
as nações, emfim, querem alimentar-se e viver da propria substancia. E
nós? Reimprimimos os nossos chronistas? Publicamos os nossos numerosos
ineditos? Revolvemos os archivos? Estudamos os monumentos, as leis, os
usos, as crenças, os livros, herdados de avoengos?

Não.--Vamos todos os dias ás lojas dos livreiros saber se chegou alguma
nova semsaboria de Paul de Kock; alguma exaggeração novelleira do
pseudonymo Michel Massan; algum libello antisocial de Lamennais. Depois,
corremos a derrubar monumentos, a converter em latrinas[1] ou tabernas
os logares consagrados pela historia ou pela religião...

E, depois, se vos perguntarem: de que nação sois? respondereis:
Portuguezes!

Callae-vos; que mentis desfaçadamente.

Mas nós faremos lembrada, ao menos aqui, a nossa gloria litteraria.

Como o pae da historia nacional, como o velho Fernão Lopes, começámos a
escrever as memorias que d'elle restam moralisando primeiro, do mesmo
modo que elle moralisava antes de entrar na materia. Não se nos leve a
mal um defeito, se o é, em que já caiu o nosso principal chronista,
quando é d'elle que devemos fallar.

Escassas são as noticias que chegaram até nós ácerca de Fernão Lopes. A
epocha do seu nascimento ignora-se; mas parece que devia ser na da
gloriosa revolução de 1380, ou alguns annos antes. O abbade Barbosa e
outros dizem que fôra secretario d'el-rei D. Duarte, quando infante, e
de seu irmão D. Fernando, e cavalleiro da casa do infante D. Henrique.
Em 1418 foi encarregado por D. João I da guarda do real archivo, cargo
que até então andava unido a um emprego da fazenda publica.

Por trinta e seis annos serviu Fernão Lopes de guarda dos archivos, e de
todo este tempo existem varias certidões, passadas por elle, _das
escripturas da torre do castello da cidade de Lisboa_. Depois de tão
largo periodo foi substituido por Gomes Eannes de Azurara, que D.
Affonso V nomeou em logar de Fernão Lopes, _por este ser já tam velho e
flaco, que per sy non podia bem servir o dicto officio_, dando-o a
outrem _por seu prazimento e por fazer a elle mercê, como é rezom de se
dar aos boõs servidores_, segundo diz a carta de nomeação de Azurara. A
epocha da morte do chronista ignora-se absolutamente; mas sabe-se que
ainda vivia em 1459, cinco annos depois de ter sido exonerado do cargo
de guarda do archivo.

Quando D. Duarte subiu ao throno (1434) deu _carrego a Fernão Lopes, seu
escripvam, de poer em caronyca as estorias dos Reys, que antygamente em
Portugal forom; e esso mesmo os grandes feytos e altos do muy vertuoso e
de grandes vertudes El-Rey seu senhor e padre_ (D. João I), dando-lhe
por isto quatorze mil libras cada anno, mercê que foi confirmada em nome
do moço principe, por influencia do infante D. Pedro, tão sabio quanto
infeliz, pae e protector das letras.

Foi, com effeito, Fernão Lopes o primeiro que poz em _caronyca_, isto é,
em ordem, as _estorias_ da primeira dynastia dos reis portuguezes, e fez
a bella Chronica de D. João I. Até ahi havia apenas algumas memorias
espalhadas, alguns breves compendios dos successos publicos. N'este
numero deve entrar um manuscripto que existia em Sancta Cruz de Coimbra,
feito, segundo parece, nos fins do seculo XIV, em que mui de leve se
mencionam os acontecimentos mais notaveis dos tres primeiros reinados, e
d'elle talvez se houvessem de contar as antigas chronicas, que Duarte
Nunes reformou, ou estragou, e que muito desconfiamos sejam as mesmas
que _colligiu_ Acenheiro no principio do seculo XVI, e que serviram de
fundamento a Ruy de Pina e Galvão: sobre tudo o que pesam ainda muitas
sombras, ao menos para nós, parecendo-nos, todavia, indubitavel que
alguma cousa havia escripta antes de Fernão Lopes; porque a alguma cousa
eram essas _estorias_ dos antigos reis, mencionadas na carta de nomeação
de Fernão Lopes, e que n'esse documento se distinguem claramente dos
_feitos_ de D. João I.

De quanto Fernão Lopes escreveu, o que hoje existe conhecido e impresso
é a Chronica de D. Pedro I, a de D. Fernando e a D. João I. Comtudo, por
averiguado se tem que elle escrevera as dos outros reis anteriores, e
até Damião de Goes lhe attribue uma de D. Duarte. Seja o que for, é
certo que para a gloria de Fernão Lopes são monumentos sobejos as tres
chronicas que d'elle existem.

O nosso celebre critico Francisco Dias, o homem, talvez, de mais apurado
engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de escriptores,
diz que Fernão Lopes fôra o primeiro, na moderna Europa, que dignamente
escrevera a historia: com razão o diz, e poderia accrescentar que poucos
homens teem _nascido_ historiadores como Fernão Lopes. Se em tempos mais
modernos e mais civilisados houvera vivido e escripto, não teriamos por
certo que invejar ás outras nações nenhum dos seus historiadores. Além
do primor com que trabalhou sempre por apurar os successos politicos,
Lopes adivinhou os principios da moderna historia: a _vida_ dos tempos
de que escreveu transmittiu-a á posteridade, e não, como outros fizeram,
sómente um esqueleto de successos politicos e de nomes celebres. Nas
chronicas de Fernão Lopes não ha só historia: ha poesia e drama: ha a
edade media com sua fé, seu enthusiasmo, seu amor de gloria. N'isto se
parece com o quasi contemporaneo chronista francez Froissart; mas em
todos esses dotes lhe leva conhecida vantagem. Com isto, e com chamar a
Fernão Lopes o Homero da grande epopea das glorias portuguezas, teremos
feito a tão illustre varão o mais cabal elogio.



II

*Gomes Eannes de Azurara*


A Fernão Lopes succedeu no cargo de guarda dos archivos Gomes Eannes de
Azurara, como dissemos no primeiro artigo, com o consentimento d'elle,
que por velho e doente de boa vontade resignou o emprego, que tão
dignamente servira. Foi Gomes Eannes filho de João Eannes de Zurara ou
de Azurara, conego de Evora e de Coimbra. Entrou, sendo mancebo, na
ordem de cavalleria de Christo, onde chegou a ter o grau de commendador
de Alcains, a qual commenda possuia em 1454, e que depois trocou pelas
do Pinheiro-grande e da Granja de Ulmeiro, que achamos serem suas pelos
annos de 1459.

Parece que durante a sua mocidade Gomes Eannes, segundo o costume dos
cavalheiros d'aquelles tempos, se occupou inteiramente no exercicio das
armas, sem curar de instruir-se nas boas letras. Verdade é que o abbade
Barbosa o faz erudito na historia desde mancebo; mas o mestre Matheus de
Pisano, seu contemporaneo, preceptor de D. Affonso V e auctor de uma
chronica da conquista de Ceuta, escripta em latim, diz que, sendo já de
idade madura, se applicàra ao estudo, mas que até então fôra
inteiramente hospede em litteratura.

Foi depois d'esta epocha que Gomes Eannes entrou no serviço d'el-rei D.
Affonso V, como guarda da Torre do Tombo, segundo se colhe da carta de
sua nomeação, passada a 6 de Junho de 1454; como bibliothecario da
livraria real fundada por aquelle monarcha, do que nos informa mestre
Matheus na obra citada; e como encarregado de escrever varias chronicas
das cousas portuguezas, conforme o diz o proprio Azurara no capitulo II
da Chronica do conde D. Pedro de Menezes.

Documentos d'aquelle tempo provam D. Affonso V fizera grande estimação
de Gomes Eannes. Morava este em umas casas d'el-rei á porta do paço de
Lisboa; tinha uma tença de doze mil reaes brancos; e fez-se-lhe mercê,
em 1467, de uma capella que vagara para a corôa, graça esta que, como
observa o abbade Corrêa da Serra, era n'aquelles tempos assaz
extraordinaria. Doou-lhe, tambem, el-rei umas casas em Lisboa, do que se
acha memoria no livro 3.^o dos Misticos. Antes d'isto, porém, Gomes
Eannes era homem abastado, segundo se colhe de outros documentos coevos.

Ácerca d'este chronista se conserva ainda uma lembrança curiosa no
Archivo da Torre do Tombo. Em 1461 uma pelliteira viuva e rica, chamada
Joanna Eannes, o adoptou por filho, constituindo-o seu herdeiro. O já
citado abbade Corrêa nota, com razão, que tal adopção de um homem
nobilitado por seus cargos e pela qualidade de cavalleiro, feita por uma
plebea, era inteiramente opposta ás idêas do seculo XV, devendo-se por
isso suspeitar que Azurara foi d'aquellas pessoas, para quem o respeito
ao dinheiro é o principal de todos os respeitos.

São incertissimas todas as datas relativas á vida de Gomes Eannes:
apenas se póde dizer que vivera pelo meado do seculo XV. A maior parte
das memorias que d'elle fallam não mencionam nem a epocha do seu
nascimento, nem a da sua morte. Algumas ha que dizem fôra nomeado
chronista em 1459: ignoramos se existe ainda a carta de tal nomeação;
mas d'isso duvidamos. O que se póde affirmar é que Azurara acabou uma
das suas chronicas (a do conde D. Pedro) em 1463, porque elle proprio o
diz. Antes d'esta compozera a da tomada de Ceuta, que serve de terceira
parte á de D. João I escripta pelo immortal Fernão Lopes; e depois
d'ella a de D. Duarte de Menezes. Estas são as tres obras, que com
certeza se podem attribuir a Azurara. Quer, todavia, Damião de Goes que
na Chronica d'el-rei D. Duarte, attribuida vulgarmente a Ruy de Pina, e
cuja melhor parte elle julga de Fernão Lopes, houvesse tambem alguma
cousa de Gomes Eannes.

Apesar da estimação e respeito que merecera Fernão Lopes aos seus
contemporaneos, parece que o seu immediato successor lhe levou n'isso
conhecida vantagem, posto que muito inferior lhe fosse em merito.
Azurara, tendo de escrever sobre cousas de Africa, passou áquellas
partes, e lá fez larga demora para conhecer miudamente os logares e
circumstancias das façanhas que tinha de narrar. Estando alli, recebeu a
celebre carta de D. Affonso V, que anda impressa no principio da
Chronica de D. Duarte de Menezes. Este documento prova quão bella era a
alma d'aquelle monarcha, a quem podemos sem receio chamar o ultimo rei
cavalheiro, e cuja honrada memoria teem pretendido escurecer aquelles
que só em seu filho encontram um grande homem. Vê-se nesta carta que D.
Affonso entendia que uma penna vale bem um sceptro, e o engenho um
throno. De irmão para irmão não houvera mais affavel e affectuosa
linguagem, e mais generosas animações e mercês. Bem nos pêsa que não
seja possivel, pela extensão d'esse documento, o lançal-o n'este logar;
não para exemplo de reis, mas de quem mais do que elles carece de tão
formosa lição, neste seculo que se diz allumiado, e em que ha homens que
em nome da patria votam miseria e fome para àquelles que mais bem
merécem.

Do merecimento litterario de Gomes Eannes de Azurara diremos em breves
palavras o que entendemos. Pode-se de algum modo comparar ao italiano
Alfieri, posto que pareça pouco exacta qualquer comparação entre um
auctor de chronicas e um poeta dramatico. E todavia muito ha em um que
do outro se possa dizer: ambos chegaram á idade viril sem possuirem os
rudimentos sequer das boas letras: nos escriptos de ambos apparece o
resultado d'esta falta de educação litteraria: ha em um e outro certa
inflexibilidade feroz e ausencia inteira d'aquellas graças de estylo que
nascem do coração amaciado desde a infancia pela cultivação do espirito:
as concepções nascem-lhes do entendimento, como Minerva da cabeça de
Jupiter, cubertas, por assim dizer, de um arnez de ferro. Louva-se em
Azurara, e de louvar talvez é, a sinceridade bravia, com que lança em
rosto aos heroes, cujas façanhas escreve, os defeitos que tiveram, os
erros e culpas em que cairam: n'isto se parece tambem, de certo modo,
com Alfieri. Mas nós preferimos o systema de Froissant e Fernão Lopes:
para cada um dos seus heroes havia n'estas almas generosas um typo ideal
a que procuravam assemelhal-os, engrandecendo-os: e por ventura que mais
proficua é assim a historia ao genero humano. Para acabarmos um
parallelo, que poderiamos levar mais longe, notaremos a tendencia dos
dois escriptores, que collocámos em frente um do outro, para
_philosophar trivialidades_, e ostentar elegancias rhetoricas e
erudições suadas para elles, impertinentes para os leitores. Move a riso
ver o pobre Azurara a lidar em pôr claro como a luz do dia, com a
auctoridade de S. Jeronymo, Sallustio, Fulgencio, e _casy todolos outros
auctores_, que são temiveis as más linguas, como causa somno o observar
os tractos que o illustre dramaturgo italiano dá ao juizo para nos fazer
odiar a tyrannia, ácerca da qual escreveu um volume, cousa muito
escusada na moderna litteratura. Todavia, em ambos elles a sinceridade
das intenções suppre de algum modo a aridez e o vazio da obra.

Posto, porém, que Azurara esteja em grau inferior a Fernão Lopes, não
deixou de fazer com seus escriptos bom serviço à litteratura patria.
João de Barros o tinha em subida conta, e até no estylo d'elle se
comprazia. Não assim Damião de Goes, que foi o primeiro em notar-lhe as
affectações rhetoricas. Infelizmente para Azurara, Goes era melhor juiz;
e a posteridade, confirmando a sentença do perspicaz chronista de D.
Manuel, rejeitou o parecer do historiador da India.



III

*Vasco Fernandes de Lucena--Ruy de Pina*


O nome de Lucena parece vir pouco a ponto em uma noticia dos
historiadores portuguezes, porque d'elle não resta uma só pagina
_original_ sobre historia; mas julgamos dever fazer menção de Vasco
Fernandes, não só por ter sido um dos homens mais celebres do seu tempo,
como tambem, e principalmente, por ser d'entre elles o primeiro que,
depois de Azurara, teve o cargo de chronista-mór. Encarregado de varias
missões politicas nos reinados de D. Duarte, D. Affonso V e D. João II,
e vivendo, por tal motivo, a maior parte da vida em paizes extranhos,
occupado, além d'isso, quando residíu no reino, em grandes negocios
d'estado, não pôde provavelmente occupar-se dos estudos historicos
necessarios para poder desempenhar as obrigações do seu cargo, do qual
fez desistencia em Ruy de Pina no anno de 1497.

Escreveu, todavia, Vasco de Lucena varias obras que, ou se perderam, ou
jazem manuscriptas em parte que se não sabe. Da _Instrucção para
Principes_, de Paulo Vergerio, traduzida por elle de ordem do infante D.
Pedro e que Barbosa diz existir na bibliotheca real, não achámos o menor
vestigio, apesar de consultarmos um catalogo anterior, segundo nos
parece, a 1807. Das outras obras suas, de que faz menção Barbosa, tambem
nenhum rasto encontramos, ao passo que existe uma, que não duvidamos de
lhe attribuir, e que o nosso illustre bibliographo não conheceu. É esta
uma traducção franceza de Quinto Curcio, feita no anno de 1468, a qual
pertenceu a Philippe de Cluys, commendador da ordem de S. João de
Jerusalem, e que actualmente se guarda entre os manuscriptos do Museu
britannico.[2]

       *       *       *       *       *

Ruy de Pina succedeu, como dissemos, a Vasco Fernandes, em 1497, no
cargo de chronista-mór, postoque muito antes exercitasse o officio de
historiador. Dos primeiros annos de Ruy de Pina apenas se sabe que foi
natural da Guarda, mas ignora-se o anno do seu nascimento, ainda que
haja algumas suspeitas de fosse pelos annos de 1440. Em 1482 diz elle
que fôra por secretario da embaixada mandada por D. João II a Castella,
e o mesmo cargo serviu d'ahi a dous annos na embaixada de Roma. Parece
que, voltando de desempenhar esta commissão, o encarregou el-rei de
escrever as chronicas do reino, apesar de então ser chronista-mór
Lucena, o que se deprehende de uma provisão de D. João II, em que lhe
manda dar uma tença de nove mil e seiscentos réis «esguardando ao
trabalho e á occupação grande que Ruy de Pina escripvão da nossa camara
tem com o carrego que lhe demos de escrepver e assentar os feitos
famosos _asy nossos_ como de nossos regnos que _em nossos dias são
passados_, e ao diante se fizerem[3].» Em outra provisão lhe concede
tambem seis mil réis de mantimento.

Depois d'esta epocha ainda Ruy de Pina serviu em outra embaixada a
Castella e andou envolvido nos difficeis negocios publicos d'aquelle
tempo, até que, succedendo na corôa D. Manuel, não só lhe confirmou as
mercês do seu antecessor, mas fez-lhe outras novas, dando-lhe finalmente
o cargo de chronista-mór, e guarda-mór da Torre do Tombo e da livraria
real.

Em 1504 tinha Ruy de Pina concluido os seus trabalhos historicos, porque
n'esse anno recebeu de D. Manuel uma nova tença de trinta mil réis pelas
chronicas de D. Affonso V e de D. João II, accrescentando a esta somma
cinco moios de trigo em Ceuta e um cazal d'el-rei no termo da Guarda.

«Cheio de honras e de recompensas, diz o abbade Corrêa, que para aquelle
tempo eram grandes, viveu Ruy de Pina todo o reinado de el-rei D.
Manuel, alcançando ainda alguns annos do d'el-rei D. João III, que lhe
encommendou a chronica de seu pae, que deixou adiantada até a tomada de
Azamor, e de que Damião de Goes confessa ter-se servido para a
composição da sua.»

É Ruy de Pina de todos os nossos antigos chronistas o de que nos restam
maior numero de chronicas. Escreveu elle a de D. Sancho I, D. Affonso
II, D. Sancho II, D. Affonso III, D. Diniz, D. Affonso IV, D. Duarte, D.
Affonso V e D. João II. As duas ultimas são sem duvida escriptas
originalmente por elle. Na de D. Duarte, segundo parece a Damião de
Goes, o substancial da historia é de Fernão Lopes; o que é relativo á
expedição de Tangere, de Gomes Eannes de Azurara; e de Ruy de Pina
apenas a coordenação d'esses diversos trabalhos. Quanto ás da primeira
dynastia, quer o mesmo Goes (e esta opinião prevalece hoje) que não
sejam mais que uma recopilação ou resumo do primeiro volume das
chronicas de Fernão Lopes, que existia em poder de um tal Fernão de
Novaes, e que D. João II mandou fosse entregue a Ruy de Pina. Impossivel
parece hoje averiguar até a certeza esta opinião; porque esse volume de
Lopes ou se perdeu, ou foi aniquilado por Pina, que, ambicioso de pouco
suada gloria, quiz, pobre corvo de D. João II, adornar-se com as
brilhantes pennas de pavão do Homero de D. João I.

Segundo o testemunho de João de Barros, Ruy de Pina foi uma potencia
litteraria no seu tempo. O historiador da India refere que o grande
Affonso de Albuquerque tivera a fraqueza de enviar joias a Ruy de Pina,
para que se não esquecesse d'elle na sua historia. Aquella cujo nome
devia encher o mundo não teve a consciencia de que era o maior capitão
do seculo, é creu que a sua immortalidade dependia de um chronista
obscuro! Triste documento de que os genios mais portentosos estão como
os homens ordinarios sujeitos às mais ridiculas fraquezas.

O abbade Corrêa da Serra põe Ruy de Pina acima dos chronistas que o
precederam. É talvez o juizo litterario mais injusto que se tem
pronunciado na republica das letras. Que elle exceda Azurara não o
contestaremos nós; mas que seja anteposto a Fernão Lopes é no que não
podemos consentir: as narrações de Ruy de Pina, postoque superiores ás
de Gomes Eannes, estão mui longe da vida e _côr local_ que se encontra
nos escriptos do patriarcha dos chronistas portuguezes.

Parece que os fados de Ruy de Pina eram ganhar nome e celebridade á
custa do trabalho alheio: ajudou elle o seu destino em quanto vivo;
ajudaram-lh'o outros depois de morto. Em 1608 publicou-se em Lisboa um
volume em 8.^o com o titulo de _Compendio das grandezas e cousas
notaveis d'entre Douro e Minho_, obra que no frontispicio é attribuida a
Ruy de Pina. Este livro, porém, nada mais é do que o que compoz mestre
Antonio, _fisiquo e solorgiam_, natural de Guimarães, e que em antigos
codices anda juncto ás chronicas de Ruy de Pina, bastando ler uma pagina
d'elle para nos convencermos de que é escripto em um periodo da lingua
anterior á epocha d'este chronista, e que elle talvez não fez mais que
copial-o, com intento de lhe chamar seu, podendo-se-lhe applicar aquelle
distico francez:

     Pour tout esprit que le bon homme avait, Il compilait, compilait,
     compilait.



IV

*Garcia de Rezende*


Com os começos do reinado de D. Manuel os horizontes da nossa
litteratura estenderam-se consideravelmente. Era a epocha do esplendor
nacional e, ao passo que as nossas conquistas e poderio se dilatavam,
dilatavam-se tambem os progressos litterarios dos portuguezes. A
imprensa tinha produzido o magnifico livro da _Vita-Christi_, e com isso
dava mostra de que Portugal possuia, esse motor maravilhoso que devia
conduzir a Europa com passos agigantados pela estrada da civilisação e
do progresso. N'este reinado de gloria e de predominio--mas de uma
gloria differente da antiga e de um predominio que assentava sobre base
tão incerta como eram os milhões de ondas do oceano em que elle se
estribava--proseguiu em maior escala o triste systema de D. João II de
substituir a agricultura pelo commercio, como fonte principal da riqueza
publica. Era então que a monarchia, aniquilando os derradeiros restos da
sociedade feudal nas Ordenações Manuelinas, e assentando-se na larga e
firme base do direito romano, realisava e completava, por um lado o
pensamento politico, por outro o pensamento economico do manhoso filho
do nosso ultimo rei cavalleiro. As palavras _e da conquista, navegação e
commercio da Ethiopia_, etc., que D. Manuel accrescentava ao dictado de
_senhor de Guiné_, que D. João para si tomara, eram a expressão mais
simples e mais exacta da idêa commercial e monarchica, isto é, de que o
commercio obtido por meio das conquistas e navegações pertencia ao
_senhorio real_, e a historia dos ciumes de D. João II e do seu
successor sobre os novos descobrimentos confirma a nossa opinião. Assim
o estado se confundia ou, antes, se incorporava na corôa, e se
constituiam essas formas politicas dos reinados seguintes que resumbram
em toda a legislação posterior, e a que, talvez, possamos chamar meio
termo entre o absolutismo e o despotismo, como a organisação social
portugueza antes das côrtes de 1481 se póde também considerar como um
meio termo entre o absolutismo e a monarchia representativa.

Substituida, portanto, a agricultura, que era do povo, pelo commercio
exclusivo, que era da corôa, e extinctas as tradições feudaes na nova
compilação Manuelina, a idade media morrera, com o seu systema de luctas
e resistencias, e começara esse seculo XVI, cujo caracter essencial em
politica foi a unidade monarchica. Este phenomeno explica o novo aspecto
que tomou a historia e o apparecimento de uma litteratura cortezan e
paceira, que visivelmente se distingue nos poetas mais modernos do
cancioneiro, nas obras latinas que por esse tempo appareceram,
principalmente nas de Cataldo Siculo, e nos autos do Aristophanes
portuguez Gil-Vicente, compostos para alegrar as horas de tedio nos
paços de D. Manuel. A chronica tomou logo o sabor do elogio historico, e
Garcia de Rezende, velho cortezão, escreveu a vida de D. João II debaixo
dos tectos dos sumptuosos paços da Ribeira. A este pobre homem não cabe,
todavia, a gloria da invenção d'aquelle genero historico: Ruy de Pina
foi o seu inventor. A Chronica de D. João II escripta por este foi o
modelo ou, antes, o original da de Garcia de Rezende, que apenas lhe
accrescentou alguns dictos e feitos do seu heroe, algumas anecdotas
desenxabidas e triviaes de antecamara, em que não esqueceram as
acontecidas com o proprio auctor. Garcia de Rezende não fez senão
aperfeiçoar a chronica individual e tornal-a, ainda mais que Ruy de
Pina, uma biographia real. E que outra fórma podia ter a historia n'uma
epocha em que a organisação social tinha sumido o povo, a nobreza, e
ainda o clero, debaixo do throno do monarcha?

Seria uma das comparações mais curiosas a do caracter historico da
Chronica de D. João I por Fernão Lopes com o da Chronica de D. João II
por Garcia de Rezende, se ao mesmo tempo se comparasse o estado da
sociedade portugueza no meado do seculo XV com o em que se achava no
principio do XVI. Esta comparação nos parece serviria para explicar as
formulas historicas pelas politicas, e vice-versa estas por aquellas.

Que distancia espantosa não ha, com effeito, entre o grande poema de
Lopes e a mesquinha collecção de historietas de Garcia de Rezende, onde
apenas avultam algumas paginas com o supplicio de um nobre, o assassinio
de outro, e o mysterio de um rei que morre, ao que parece; envenenado?
Que distancia espantosa de um cadafalso, de um punhal, e de uma taça de
veneno, ao cerco de Lisboa, à batalha d'Aljubarrota, ao baquear de
Ceuta? No livro de Garcia de Rezende vê-se o aspecto triste, e a vida de
agonia, e o sorrir forçado de um rei sem familia, rodeado de cortezãos,
cujos nomes pela maior parte se resolvem em fumo com o morrer de seu
senhor, a quem seguem os ginetes de Fernão Martins, os bésteiros e
espingardeiros da guarda, não para pelejarem com estranhos, mas para o
defenderem contra os odios de seus naturaes. Ahi o vulto real abrange
quasi os horizontes do quadro, e só lá no fundo, mal desenhadas e
indistinctas, se enxergam as personagens historicas d'aquella epocha, e
as multidões agitadas ou tranquillas a um volver d'olhos do monarcha,
mas nullas tanto em um como em outro caso. Na chronica de Fernão Lopes
ha, pelo contrario, a historia de uma geração: é um quadro immenso de
muitas figuras no primeiro plano. Nos degráus do throno de D. João I
estão assentados guerreiros e _sabedores_, e monges e clerigos, e povo
que tumultua e brada com vóz de gigante--_patria_! Ao pé da imagem
homerica de Nunalvrez vê-se a fronte serena e sancta do arcebispo de
Braga, e a face meditabunda e enrugada de João das Regras, e os vultos
terriveis do Ajax portuguez Mem Rodrigues, e do esforçadissimo Martim
Vasques, e de tantos outros cavalleiros a quem difficilmente sobrepuja o
rei popular, o Mestre de Aviz. O chronista faz-vos acompanhar as
multidões quando rugem amotinadas pelas ruas e praças; guia-vos aos
campos de batalha onde se dão e recebem golpes temerosos; abre-vos as
portas dos paços ao celebrar das côrtes, ao discutir dos conselhos;
arrasta-vos aos templos onde trôa a voz do monge eloquente; lança-vos,
emfim, no existir dos tempos antigos, e embriagando-vos com o perfume da
idade media, e deslumbrando-vos com o brilho da epocha mais gloriosa da
historia d'esta nossa boa terra portugueza, evoca inteiro o passado, e
rasgando-lhe o sudario em que jaz, com o sopro do genio dá alma, e vida,
e linguagem ao que era pó, e morte, e silencio.

Em Ruy de Pina raro se encontra a historia da nação: em Garcia de
Rezende talvez nunca. Fernão Lopes e Azarara tinham escripto no tempo de
Affonso V: estes escreviam no de D. Manuel. D'ahi provém a differença.

Em poucas palavras o pouco que se sabe da biographia de Rezende.

Ignora-se a epocha do seu nascimento; mas sabe-se que era natural de
Evora é irmão do celebre André de Rezende, o traductor de Cícero. Foi
pagem da escrevaninha de D. João II e seu predilecto. Grato por isto,
lhe escreveu a vida, a qual se imprimiu Evora em 1554.[4] Compoz tambem
uma relação da ida infanta D. Beatriz para Saboia, e outra da viagem
d'el-rei D. Manuel a Castella, e finalmente umas trovas satyricas que
intitulou _Miscellanea_. Colligiu em um volume as poesias avulsas que no
seu tempo tinham mais celebridade, tanto dos poetas d'quella epocha,
como de outros mais antigos. Este volume, que foi dado á luz por elle em
Lisboa em 1516 com o titulo de _Cancioneiro Geral_, é hoje um dos mais
raros monumentos da nossa litteratura, e o verdadeiro titulo de gloria
de Garcia de Rezende.

Em 1514 foi a Roma como secretario de embaixador Tristão da Cunha,
mandado ao papa por el-rei D. Manuel. Voltando á patria morreu em Evora,
não sabemos em que anno, e jaz no convento do Espinheiro.



CARTAS SOBRE A HISTORIA DE PORTUGAL

1842



*CARTA I*

1 d'abril de 1842.


Srs. Redactores da _Revista universal lisbonense_.--A reforma ha pouco
feita no seu estimado jornal; o agasalhado que n'elle se concede a tudo
quanto se chama fructo de sciencia humana; a maior extensão de
escriptura que nas suas paginas se póde hoje encerrar; e sobretudo a
ambição, que desperta nos entendimentos ainda humildes, de se acharem á
meza da sciencia em tão honrada companhia litteraria como a dos
collaboradores da _Revista_; tudo isso me excitou a dirigir-lhes esta
carta, que folgarei mereça a honra da publicação, e que se o merecer
será seguida por outras sobre o mesmo objecto, porque traçando e
alevantando a _Revista_ um formoso edificio de civilisação n'esta pobre
terra de Portugal, posto que eu saiba serem as pedras que posso cortar e
carrear para o monumento toscas e mal desbastadas, sei tambem que até
estas teem sua cabida e serventia, quando para mais não sejam ao menos
para sumir lá nos alicerces e na grossura dos muros, em quanto os
artifices de primor vão aperfeiçoando as portadas, columnas, cimalhas,
remates, e mais exterioridades de desenho, em que os architectos da obra
põem as suas complacencias d'artistas.

Entendi eu, que o entreter alguns momentos os leitores da _Revista_ com
diversos estudos sobre a nossa antiga antiga historia, não seria
fazer-lhes mau serviço. Ha n'este fallar das recordações de avós o que
quer que é saudoso e sancto, porque a historia patria é como uma d'estas
conversações d'ao pé do lar em que a familia, quando se acha só, recorda
as memorias do pae e mãe que já não são, de antepassados e parentes que
mal conheceu. Mais saboroso pasto d'espirito que esse não ha talvez,
porque em taes lembranças alarga-se o ambito dos nossos affectos: com
ellas povoamos a casa de mais entes para amarmos; explicamos pelos
caracteres e inclinações dos mortos os caracteres e inclinações dos que
vivem; os habitos actuaes pelos habitos e costumes dos nossos velhos.
Se, abastados e engrandecidos, viemos de humildes e pobres, pretendemos
muitas vezes fazer esquecer ao mundo o nosso berço; mas no abrigo
familiar, deixada tão viciosa vergonha, abrimos o larario domestico e
tiramos d'elle os deuses da meninice, grosseiros simulacros da imagens
paternas, e folgamos de os contemplar, e de recontar ou de ouvir a sua
historia, que temos recontado e ouvido mil vezes, que todos os da casa
bem sabem, mas que sempre narramos ou escutamos com attenção e deleite,
e talvez com enthusiasmo. As recordações da terra da patria não são,
porém, mais que as memorias de uma numerosa familia.

Ha muito que para ellas voltei as minhas predilecções. E não sei, até,
quem possa deixar de o fazer em tempos como os que ora correm. Se o rico
e poderoso que nasceu dos minguados e chãos vai pedir ao passado frescor
e regalo para o espirito, como deixará o que se vê abatido e em
amarguras de lembrar-se de opulentos e nobres avós? Qual será a nação
que amarrada ao poste do padecer, ludibriada e appupada por tudo,
despida, cuberta de lodo, cheia de pisaduras e de feridas, se não volte
para os tempos que passaram quando esses tempos foram feracissimos de
muitos generos de grandezas e de glorias, e como o Salvador no Calvario
lhes não diga: _Tenho sêde_? Quem, vendo diante de si desfolharem-se-lhe
uma a uma todas as esperanças, se não retrahe do presente, e não vai
pelo campo sancto dos seculos buscar e colher saudades de consolação?

Separado, e não de poucos dias, d'esse tumulto e ruido da sociedade
actual, que Deus louvado não entendo nem desejo entender, e em cujas
opiniões e idéas, ou por demasiado grandiosas ou por vergonhosamente
pequeninas, não acho medida pela qual afira e concerte as minhas, que
não passam de triviaes e means; ajuramentado com a propria consciencia
para deixarmos seguir o mundo seu caminho, bom ou mau, com tanto que não
nos embargue o nosso, tenho procurando estudar algumas epochas da tão
poetica e formosa historia da gente portugueza. É para varios d'esses
estudos imperfeitissimos que eu peço algumas columnas da _Revista
universal_, não porque elles preencham completamente os fins da
instituição d'este Jornal--a instrucção; mas porque poderão mover os que
valem e sabem muito a que, pretendendo corrigir erros sobejos, em que
por certo cairei; instruam verdadeiramente o commum dos leitores da
_Revista_, e os chamem a contemplar o espectaculo da nossa sociedade
antiga.

Estes estudos, feitos por um systema d'historia como me pareceu que
elles deviam ser feitos, apparecerão na _Revista_ soltos, em quanto de
mais perfeito modo os não posso trazer á luz da imprensa. Fragmentos são
os que unicamente se hão-de e devem lançar nas columnas de uma folha
volante, entre cujos meritos a variedade é talvez o que mais se busca.
Trabalhos completos são para livros, e livros d'historia estou eu (sem
humildade hypocrita o digo) bem longe ainda de os poder fazer. Todavia
darei a estas Cartas, quanto em mim couber, um certo nexo, que a
natureza da materia requer. Um dos principaes defeitos dos trabalhos
historicos do nosso paiz parece-me ser a _insulação_ de cada um dos
aspectos sociaes de qualquer epocha, que nunca se conhecerá, nem
entenderá, em quantop a sociedade se não estudar em todas as suas formas
d'existir, em quanto se não contemplar em todos os seus caracteres.

Estas Cartas, se merecerem a approvação de vv. ss., poderão algum dia
servir, no que tiverem bom, se tiverem, de esclarecimento e notas a uma
parte da Historia Portugueza, como eu concebo que ella se deveria
escrever: historia não tanto dos individuos como da Nação; historia que
não ponha á luz do presente o que se deve ver á luz do passado;
historia, emfim, que ligue os elementos diversos que constituem a
existencia de um povo em qualquer epocha, em vez de ligar um ou dois
d'esses elementos, não com os outros que com elle coexistem, mas com os
seus affins na successão dos tempos, grudados pelos tôpos
chronicologicos com massa de papel feita das folhas _Arte de verificar
as datas_.



*CARTA II*


Quando, volvendo os olhos para os tempos remotos, indagamos a historia
de nossos antepassados e da terra em que nascemos, a primeira pergunta
que nos occorre para fazermos ás tradições e monumentos é naturalmente a
seguinte: onde, quando, e como nasceu este individuo moral chamado a
Nação? O berço da sociedade de ser, com effeito, a primeira pagina da
sua historia.

Quem, examinando uma carta topographica da Peninsula espanhola, vê esta
faixa de terra chamada Portugal, estreitada entre o oceano e o vulto
enorme da Hespanha, sem divisões nascidas da natureza do solo e fundadas
na geographia physica, que a separem naturalmente della, e quando depois
disto sabe que por sete seculos, com a curta interrupção de sessenta
annos, os habitadores deste cantinho do mundo conservaram intacta a sua
independencia e individualidade nacional, prevê desde logo nesses
homens, que assim souberam conservar-se livres d'estranho jugo, grandes
virtudes e generoso esforço, e na organisação social do paiz uma
extraordinaria robustez e uma harmonia notavel com as suas necessidades
e indole; porque as instituições e costumes de qualquer povo são a sua
physiologia, pela qual se lhe explica principalmente o curto ou o
dilatado da vida. A curiosidade então volta-se para a primeira infancia
desse povo, para a epocha em que disse a si mesmo: _Eu existo_. Na
disposição daquelles tenros annos devem-se-lhe achar já os annuncios do
vigor da juventude e da idade viril.

Tanto que o imperio wisigodo desabou em ruinas ao embate violento do
enthusiasmo e pericia militar dos arabes, e a policia e civilisação
destes substituiu nas Hespanhas a muito mais viciosa e incompleta
civilisação dos godos, a reacção christã e europea contra a violencia
mahometana e asiatico-africana começou immediatamente. Desde a batalha
do Chryssus ou Guadalete, em que expirou o imperio fundado por
Theodorico e estabelecido em toda a Peninsula por Leovigildo, até o
encontro de Canicas ou Cangas, em que pôde dizer nasceu o reino de
Asturias, bem curto espaço mediou. Restituido pela desgraça a esse
punhado de godos o antigo valôr e energia, em quanto os arabes perdiam o
primeiro nos ocios do triumpho, nos deleites de uma civilisação immensa,
e malbaratavam a segunda nas luctas intestinas, os territorios e o
poderio christão cresceram e prosperaram até o tempo d'Affonso III rei
d'Oviedo, ao passo que o imperio arabe se achava já decadente no rei
reinado de Abdallah, antecessor e avô do celebre Abderranhhman III
(Annassir). Mas Abderrahhman, o maior dos Ommaijadas, restabelecendo a
unidade do governo na Hespanha arabe, regendo os povos com justiça e
sabedoria, resistindo aos valentes reis de Leão e Asturias, Ordonho II e
Ramiro II, e aproveitando habilmente, depois da morte destes, as
dissenções dos christãos para exercitar sobre elles uma especie de
patronato, segurou para largos annos na Peninsula o dominio do Islam.
Seguiram-se as variadas e terriveis guerras de mais de dous seculos
entre as duas raças inimigas que disputavam o dominio das Hespanhas, e a
representação dos dramas ensanguentados que mancham torpemente tanto as
paginas dos annaes christãos como as dos musulmanos. Ora os arabes levam
de vencida os netos dos godos, ora estes os arabes; de dia para dia as
fronteiras indecisas das duas nações inimigas circumscrevem-se ou
alargam-se prodigiosamente: as divisões intestinas de um dos campos são
por via de regra o signal de victoria para o campo contrario; grandes
capitães sobem aos thronos, e d'ahi a pouco os thronos se derrocam
debaixo dos pés de reis inhabeis, viciosos, ou crueis.

Durante mais de cinco seculos a Peninsula foi um cahos, e a sua historia
é um mixto confuso e monstruoso de todas as virtudes e de todas as
atrocidades. Entre os arabes, apezar da cultura intellectual,
predominava a barbaria moral: as letras e as sciencias, levadas a um
alto gráu d'esplendor, não suavisaram jámais os costumes ferozes dos
mahometanos, porque a civilisação moral nunca existiu na terra senão por
beneficio do christianismo. Nos estados christãos, pelo contrario, era a
rudeza intellectual que destruia as influencias moraes do evangelho. As
paixões desenfreadas no meio do estrondo de uma lucta de morte entre
homens diversos por origem, lingua, instituições e religião, corriam
despeadas, e os fratricidios, os homicidios, os roubos, as violações, os
incendios, os sacrilegios multiplicavam-se por toda a parte. As leis
calavam-se, a espada imperava, e a bruteza do povo era tal, que o
proprio clero, classe distincta no tempo dos wisigodos por sua cultura,
tinha caído na extrema barbaridade. Ainda nos fins do seculo XI os
conegos de Compostella eram comparados por um escriptor, que vivia entre
elles, a animaes brutos e indomados[5], comparação que justificam
milhares de successos conservados nos documentos e memorias desses
tempos.

Da somma, porém, dos acontecimentos daquella epocha vêem-se resultar
dous factos geraes--a decadencia da sociedade arabe, e os progressos de
organisação na sociedade christã. Tendia a dissolver a primeira a grande
variedade de tribus e nações africanas, asiaticas e europeas, que
estanceavam pelas diversas provincias da Hespanha, umas vezes sujeitas
ao khalifado de Cordova, outras rebelladas contra elle[6]. Estas tribus
e nações, unidas unicamente pela crença commum, guerreavam-se atrozmente
a todos os instantes, e para maior desordem por entre ellas vivia a raça
gothica-romana, conhecida pelo nome pouco proprio de mosarabes[7] que,
sujeitando-se aos arabes na occasião da conquista, forçosamente devia
desejar o triumpho e predominio dos seus correligionarios. Por outro
lado a civilisação dos arabes, assentando sobre a falsa base do
Islamismo, brevemente envelheceu e tornou-se em corrupção de costumes,
enfraquecendo e envilecendo os animos. O quadro da decadencia moral da
Hespanha mahometana no meado do Seculo XII, que no livro intitulado
_Regimento de principes e capitães_ faz Ben Abdelvahed, é espantoso, e
quanto ao estado politico a situação dos arabes não era melhor. Não
havia paz nem segurança em parte alguma, e o imperio caía em pedaços no
meio das dissenções civis[8]. Accrescentavam o mal as estreitas relações
e unidade politica do imperio de Cordova com as provincias da
Mauritania, cujas revoluções estendiam os seus effeitos até a Peninsula;
e as repetidas mudanças de predominio das tribus e dynastias, por via de
regra, procediam das alterações e guerras que se alevantavam na Africa.

Pelo contrario os reinos christãos da Hespanha eram mais homogeneos:
havia ahi muitas dissidencias de ambição; porém as incompatibilidades de
raça quasi que não existiam, porque só no reinado de Affonso VI os
francezes vieram influir na Peninsula, mas como individuos e não como
nação, e esta influencia foi ainda ecclesiastica do que politica. Não
houve uma colonisação franceza nos dominios de Affonso VI: houve sim a
collocação de bispos daquelle paiz em muitas dioceses, o chamamento de
muitos principes e cavalleiros da França aos cargos politicos e
militares. Estes estrangeiros traziam as idéas e as instituições da sua
terra natal, traziam ás vezes a oppressão, mas incorporavam-se na raça
goda. Se impunham habitos e costumes estranhos, acceitavam tambem muitos
usos e idéas da nova patria, os seus filhos eram inteiramente
hespanhoes, e este elemento adventicío de povoação, em vez de contribuir
para o enfraquecimento da força social, servia realmente para a
fortalecer.

Os resultados das invasões e conquistas, que de continuo arabes e
christãos faziam mutuamente nos territorios dos seus a adversarios, eram
tambem diversos. Ainda rebaixando no que dizem os escriptores arabes
sobre a excessiva povoação das Hespanhas, é indubitavel que nas
provincias dominadas pelos serracenos ella foi muito mais numerosa do
que hoje é. Esta povoação, porém, era em grande parte romano-gothica ou
mosarabe, e, como já disse, para ella as invasões feitas pelos homens da
mesma crença não podiam ser consideradas como destinadas a subjuga-la
mas a quebrar-lhe o jugo dos infieis. Esta circumstancia tornava-se
tanto mais importante, quanto é certo que os wisigodos que acceitaram o
dominio arabe, ficaram na mesma situação civil[9] em que se achavam no
momento da conquista, e por consequencia possuidores de riquezas,
senhores de servos, superiores por isso forçosamente a uma parte da
população arabe, e iguaes da mais abastada. Assim não só eram um
poderoso auxilio para os christãos no meio dos inimigos, mas por muitas
vezes bastaram por si sós para expulsar d'algumas povoações os
conquistadores sarracenos[10].

Desde os meados do undecimo seculo apparece na Hespanha um systema
regular d'organisação. O concilio, ou côrtes, de Leão convocado em 1020
por Affonso V constitue uma data importante na historia social da
Peninsula. N'este concilio, ou côrtes, se estabeleceram leis politicas e
civis geraes para todas as provincias do reino leonez, que eram Leão,
Galliza, Asturias e Castella. Fernando I celebrou igualmente côrtes em
1046, 1050, e 1058.

O caracter principal das resoluções d'estes parlamentos (á excepção do
ultimo que elle convocou para dar validade á divisão do reino entre seus
tres filhos) é o de regular e fixar o direito de propriedade. A par
d'estas leis geraes, os _fueros_ propriamente dictos (foraes) tendiam a
augmentar a povoação, estabelecendo as communas e ligando-as por muitos
modos ao corpo politico. Alguns d'estes foraes conhecidos remontam ao
tempo de Affonso V, mas multiplicam-se cada vez mais com o correr dos
tempos. Isto é, o pensamento de organisação vigora e cresce cada vez
mais. A sociedade christã da Hespanha revela no seculo XI um progresso
constante de vida, de ordem, e de energia.

E a sociedade arabe?--A queda do imperio dos Ommaijadas (1037), o qual
durara perto de tres seculos, foi o resultado das dissenções civis.
Tirado este centro d'unidade, que nos seus ultimos tempos era apenas um
nome, os diversos bandos travaram luctas duradouras e sanguinolentas. A
Hespanha arabe retalhou-se em tantos principados, quantos eram os
cabeças de partido. A guerra civil prolongou-se por quasi todo o seculo
XI; e bem que nos estados christãos as houvesse tambem entre os tres
filhos de Fernando Magno, estas tinham passado rapidamente, e Affonso
VI, vencidos seus irmãos, reinava por fim tranquillo nas Asturias,
Galliza, Leão e Castella, e rei de uma nação energica e unida
conquistava, ou fazia tributarias da sua corôa, as principaes cidades e
provincias dos sarracenos da Peninsula.

Para as suas guerras brilhantes muitos nobres cavalleiros francezes
atravessaram os Pyreneus. Foi entre estes que Henrique de Borgonha veio
á Hespanha, para ser o fundador da independencia dos portuguezes.



*CARTA III*


A origem da independencia de Portugal, e a sua separação do reino
leonez, tem sido uniformente attribuida pelos nossos historiadores ao
casamento do principe borgonhez Henrique com D. Thereza, filha de
Affonso VI. É cousa assentada que o rei leonez, casando sua filha, lhe
dera _em dote_ a terra de Portugal, que, tendo estado já separada da
Galliza, então o foi de novo ficando-lhe servindo de limite o Minho.
Esta opinião que até hoje tem passado inconcussa, sendo ainda recebida
por um sabio dos nossos dias, respeitavel por todos os titulos,
parece-me todavia involver difficuldades insuperaveis.

Até á invação dos arabes, os godos conservaram nas Hespanhas tenazmente
as instituições germanicas ácerca dos dotes. Pelas suas leis, contrarias
ao que estatuiam as leis romanas, era noivo quem dotava a mulher.
Similhante costume dos barbaros, porventura mais nobre que o romano, foi
regulado por uma lei de Chindaswintho, inserida no _Codigo
wisigothico_[11]. Esta lei, assim como as mais disposições d'aquelle
codigo, atravessando o dominio dos arabes, que deixaram aos vencidos o
governarem-se civilmente pela sua legislação e pelos seus magistrados,
continuou a vigorar, não só até o tempo de Affonso VI, mas porventura
até a publicação da lei das Partidas[12]. Não havia pois na legislação
d'Hespanha, nem nos usos nacionaes, n'esta parte perfeitamente accordes
com ella, causa alguma para o rei de Leão se lembrar de pôr em pratica,
no casamento de sua filha, um costume romano, provavelmente até ignorado
por elle.

Seria este acto insolito uma imitação de costumes francezes? Fica dicto
foi no reinado de Affonso VI, principalmente, que as idéas e
instituições francezas se introduziram na Peninsula. Nas suas vastas
empresas contra os arabes, este rei ajudou-se grandemente de cavalleiros
francezes, a quem enriquecia e honrava, ao mesmo passo que enchia as
cadeiras episcopaes de bispos d'aquella nação.

A predilecção que elle sempre mostrou pelas cousas de França, e que
tanto contribuiu para alterar os costumes wisigodos, podiam tê-lo movido
a seguir, casando suas filhas com os principes borgonhezes Raimundo e
Henrique, e outra com o conde de Tolosa, os costumes d'aquelle paiz, se
elles n'esta parte fossem contrarios aos das Hespanhas.

Mas não acontecia assim. Ainda n'aquelle seculo era commum por toda a
Europa a instituição germanica ácerca dos dotes. Em Ducange, á palavra
_Dos_, se acham colligidas as disposições dos diversos codigos europeus
a este respeito, bem como documentos de que os factos não eram
contrarios á legislação: o que sempre é necessario examinar na historia
da idade media, na qual a confusão social, e a ignorancia em que jaziam
todas as nações, faziam que a pratica das relações civis contrastasse ás
vezes com os preceitos legaes.

A difficuldade de acceitar a tradição de um facto incomprehensivel para
os individuos por quem se diz praticado seria bastante para o tornar
mais que suspeito. Mas ainda occorrem contra elle outras considerações.

É incontestavel que Raimundo, o marido de D. Urraca, senhoreou a Galliza
e Portugal, antes de Henrique; e que a porção do territorio hespanhol
dado a este para governar como conde, ou consul, foi desmembrada do
territorio governado pelo conde Raimundo antes do fallecimento d'este.
Se Portugal foi dado em dote a D. Theresa com direito hereditario,
segundo affirma a chronica latina do imperador Affonso Raimundez,
provindo d'essa circumstancia o governo de Henrique, como se ha-de
suppor que D. Urraca, filha mais velha e incontestavelmente legitima,
não recebesse em dote tambem, _jure haereditario_, as terras que seu
marido governou? E se assim foi, como e porque se destruiu em parte este
direito, dando em dote de outra filha uma porção do que já era dote de
D. Urraca, e isto sem que Raimundo se queixasse, antes fazendo pactos de
concordia e mútua alliança, como o que fez com o conde Henrique?

Além d'isso, D. Elvira, irmã de D. Theresa e casada com o conde de
Tolosa, não recebeu em dote terras algumas: diz-se que fôra a causa
d'isto o possuir Raimundo de S. Gil estados em França. Mas que lei ou
costume d'Hespanha obstava a que elle possuisse um condado em outro
paiz, conjunctamente com os estados que tivesse em Leão? E se não havia
legislação ou uso em contrario, porque consentiu este principe, mais
poderoso que os outros dois, que fossem para elles estas liberalidades,
ao passo que ficava sem quinhão na monarchia hespanhola, que assim se
faz retalhar loucamente pelo habil Affonso VI?[13].

Mas admittindo que isto acontecesse, ainda resta difficuldade maior.
Além de Urraca, Theresa e Elvira, Affonso VI teve uma filha chamada
Sancha e outra Elvira[14], nascidas da rainha Isabel, a primeira das
quaes casou com o conde Rodrigo Gonçalves e a segunda com Rogerio, duque
de Sicilia. Quanto a este, nada accrescentarei ao que já disse ácerca do
conde de Tolosa, Raimundo de S. Gil. Mas no conde Rodrigo Gonçalves não
se dava por certo a circumstancia de ser principe estrangeiro, com
estados fóra d'Hespanha, e todavia não consta que el-rei dotasse a
infanta D. Sancha com terras ou provincias que elle devesse possuir
_hereditariamente_, antes pelo contrario, possuindo o conde Rodrigo as
honras de Asturias de Santillana, lhe foram estas tiradas por suas
turbulencias, e reconciliado depois com Affonso VI lhe deu el-rei o
governo de Segovia, e a alcaidaria de Toledo, que tornou a tirar-lhe
passados tempos, ao que parece, por seu genio inquieto[15]. Porque seria
excluido, porém, o conde Rodrigo, nobre, natural, e poderoso, do
beneficio que recebera um estrangeiro pobre, embora illustre e valente?
É na verdade inexplicavel similhante contradicção.

A estes raciocinios, fundados em factos incontroversos, nenhum
argumento, nenhuma auctoridade se póde oppor senão uma phrase do
chronista anonymo de Affonso Raimundez, que, fallando de D. Theresa, não
directamente mas por occasião da guerra de Affonso VII com seu primo
Affonso Henriques, diz--que Affonso VI a casara com o conde Henrique, e
a dotara magnficamente, dando-lhe a terra portugalense com _dominio
hereditario_. Este testemunho singular, porque todas as outras memorias
coevas guardam silencio a similhante respeito, será porém de tal peso
que nos faça acreditar um facto contrario á legislação e aos costumes da
epocha, e laborando nas difficuldades que apontei? Não o creio. A
chronica latina é proxima, porém não contemporanea do reinado de Affonso
VII, segundo o diz seu auctor, _que ouviu contar os successos d'aquelle
reinado aos que os tinham presenciado_[16], o que por certo não poderia
dizer do reinado de Affonso VI, começado, pela segunda vez, 54 annos
antes do de seu neto. E sendo d'aquelle reinado o casamento de D.
Theresa, deve-se confessar que para o A. da chronica eram as
circumstancias d'elle tradições um pouco remotas.

Ajunte-se a isso que d'esta historia apenas restavam copias incorrectas
e incompletas quando, depois de Berganza, a publicou Flores, e que ella
passou pelas mãos do celebre falsario, consocio de Fr. Bernardo de
Brito, o padre Higuera[17]. Será portanto bastante por si só para
dissolver as dúvidas apontadas? Aconselha-lo-ha a boa critica? Parece-me
que não.

Mas suppondo a chronica d'Affonso VII esteja correcta e sem
interpollação, e que a sua auctoridade se deva acceitar como a de um
testemunho contemporaneo, ainda assim ella provaria quando muito que D.
Affonso VI dera a seu genro, em attenção a D. Theresa, o governo de
Portugal para si e seus filhos perpetuamente, visto que o hereditario se
ía introduzindo nos cargos administrativos como na corôa. Tal seria pois
n'esse caso a significação da palavra _dote_, que então era mui diversa
da que hoje lhe damos, e correspondia a _donatio_, como se vê claramente
dos diplomas que vão indicados em nota[18].

Mas o conde Henrique governou Portugal em quanto viveu. D. Theresa o
governou igualmente depois da morte d'elle, em 1112[19], até seu filho a
desapossar da suprema auctoridade em 1128. Este, finalmente, tomando o
titulo de rei, firmou para sempre a separação e independencia de
Portugal dos reinos de Leão e Castella. Como se consummou similhante
facto? Qual foi a historia d'este successo, verdadeira ou pelo menos
provavel?[20]

Como seu primo Raimundo conde de Borgonha; como os demais cavalheiros
francezes que n'aquella epocha vinham exercitar nas Hespanhas a maxima
virtude do seculo--o guerrear o Islamismo, Henrique IV, filho de outro
Henrique senhor de Borgonha ducado, serviu ao que parece por muito tempo
nos exercitos de Affonso VI. As conquistas de Fernando Magno tinham
alargado os ambitos do imperio leonez. Affonso VI seguiu a carreira
gloriosa de seu pae, e Toledo, a antiga capital dos godos, caiu em suas
mãos. Pelo lado de Portugal os dominios de Fernando Magno tinham-se
estendido até Coimbra. Seu filho continuou a guerra por esta parte, e
chegou a apossar-se temporariamente de Santarem, Lisboa e Cintra, mas
empregou principalmente as forças para o lado de Toledo. O conde
Raimundo de Borgonha, marido de sua filha D. Urraca, foi por elle
encarregado do governo da Galliza, incluindo n'esse territorio tudo o
que corre desde o Minho até o Mondego, e depois até o Téjo: o que n'esse
tempo ora se considerava como parte da Galliza, ora como um ou mais
condados distinctos d'ella[21], constituindo no todo, talvez, a mais
vasta provincia do reino de Leão e Castella.

Mas esta mesma grandeza tornava necessaria a divisão do territorio;
porque, estabelecida a auctoridade militar, civil, e politica no centro
da actual Galliza, não era facil nem admnistrar bem os logares mais
remotos para o sul, nem preseguir com energia e actividade a guerra na
frontaria dos mouros. Este pensamento deu provavelmente origem á escolha
de Henrique para governar as terras que se estendiam desde o Minho até
as raias da provincia conhecida entre os arabes pelo nome generico
d'_Algarb_;[22] e por ventura a derrota que padece o conde Raimundo
n'uma entrada que fizera até Lisboa[23] pelos annos de 1094 serviu para
apressar a realisação d'este pensamento. Ou Henrique fôsse já conde e
genro d'el-rei, ou n'esta occasião casasse, e recebesse esse titulo[24]
pelo governo que se lhe encarregava, o que é certo é que no principio de
1095 elle governava Coimbra, em 1096 o territorio de Braga,
incontestavelmente desde o Minho até o Téjo em 1097.[25] Se ao principio
esteve subordinado a Raimundo na administração parcial de Coimbra e de
Braga; se logo governou independente d'elle toda a parte de Portugal
moderno, conquistada já então aos mouros, é cousa que me parece não se
poder affirmar nem negar, e que talvez algum dia se haja de resolver,
quando venha a ser conhecido maior numero de documentos d'aquella
epocha.

O novo conde deu provavelmente então toda a actividade á guerra com os
sarracenos; ainda que as noticias dos primeiros annos do seu governo
sejam bastante escassas. A viagem, porém, que emprehendeu á Terra-Santa
nos primeiros annos do XII seculo retardou por certo as suas conquistas.
Esta viagem, intentada depois de 1100, estava indubitavelmente concluida
em 1106, em que Henrique apparece fazendo uma doação a dous presbyteros
de uma herdade em Céa.[26] Desde então até à sua morte, em 1112[27],
elle proseguiu na administração do territorio que lhe fora confiado por
Affonso VI, e foi no periodo que decorre de 1109, epocha da morte do rei
de Leão, que elle se prepararou para tornar estado independente o
condado que lhe fora dado para reger como simples consul ou governador.
É a este tempo que me parece pertencer o pacto successorio entre
Henrique e Raimundo, isto é, aos fins de 1106 ou principios de 1107,
anno do fallecimento de Raimundo[28]. Henrique foi mais feliz
sobrevivendo ao sogro, e recusando depois da morte d'este reconhecer a
supremacia de D. Urraca, que succedera a seu pae por falta d'herdeiro
varão, tendo morrido na batalha d'Uclés o infante D. Sancho, para quem,
parece, elle procurava a eleição dos hespanhoes, por seu fallecimento.

Affonso VI foi incontestavelmente um habil e valoroso rei: a morte porém
de Sancho destruiu todos os seus intentos, e abreviou-lhe por ventura a
vida. Proximo a morrer, viu que a Hespanha leoneza se dividiria em
facções, e a experiencia do passado lhe ensinava que isto seria a causa
da sua ruina. Assim, tendo já dado dous annos antes a investidura da
Galliza a seu neto Affonso Raimundez[29], cuja mãe e sua filha mais
velha, a viuva D. Urraca, ficava, na falta de filho varão, successora do
reino, ordenou a esta casasse com Affonso o _Batalhador_, rei d'Aragão,
rude e grosseiro soldado, mas por isso mesmo capaz de conservar a
integridade do estado do leonez[30]. Por morte de D. Urraca a corôa
devia passar para Affonso Raimundez, que entretanto possuiria a Galliza.
Estas disposições de Affonso VI cumpriram-se; mas não produziram todo o
effeito salutar, que elle d'ahi esperava, pelo caracter das personagens
a quem respeitavam, ou que deviam contribuir para o seu cumprimento.

A dissolução dos costumes n'aquelles seculos era geral, e D. Urraca não
escapou a ella. Naturalmente d'ahi nasceram as suas dissensões com o rei
aragonez, que com a brutalidade propria dos tempos chegou a
espanca-la[31]. A separação dos dous conjuges deu aso á guerra civil, e
ás suas terríveis consequencias n'uma epocha em que o vicio, a
perversidade, e a cubiça se apresentavam em todo o seu vigor barbaro, e
sem o veu hypocrita com que n'estes tempos mais politicos se costumam
esconder. Os nobres e cavalleiros, a titulo de pertencerem a este ou
àquelle bando, apossavam dos castellos de que eram alcaides, ou
construiam-nos de novo, e d'alli faziam guerra por sua conta, ou os
convertiam em covis de salteadores, d'onde sahiam a roubar ou matar os
viandantes e mercadores. Tal é pelo menos o quadro que do estado da
Galliza faz a _Historia Compostellana_, e que era provavelmente
similhante no resto do imperio leonez. Tal pelo menos no-lo devem fazer
suppôr as palavras de Pelaio de Oviedo, quando assevera que por morte
d'Affonso VI o lucto e as tribulações cobriram o solo da Peninsula.

Foi no meio d'estas perturbações que o conde Henrique pôde assegurar,
senão de direito ao menos de facto, a independencia das terras que
governava. Ora mostrando-se favoravel ao moço Affonso Raimundez contra a
mãe e padrasto, que se tinham temporariamente congraçado, e incitando
Pedro Froylaz, conde de Trava, aio do infante, a sustentar animosamente
a causa do seu pupillo, quando o veio[32] sobre isso consultar; ora
colligando-se com o rei d'Aragão contra D. Urraca, divorciada de novo do
marido no anno seguinte de 1111[33]. Henrique evidentemente procurava
aproveitar nas dissensões civis a occasião de constituir independente o
seu condado, e, com effeito, procrastinadas as perturbações da Hespanha
quasi até 1126, elle falleceu em 1112[34], deixando o governo a sua
mulher D. Theresa, sem nunca submetter o collo ao jugo de D. Urraca.

É resumidamente nisto que me parece encerrar-se a historia da separação
de Portugal da monarchia leoneza. Sobre a origem d'este facto tem-se
discursado muito, porque com a legitimidade d'elle quizeram legitimar a
nossa independencia os escriptores portuguezes, e com a sua
illegitimidade impugna-la os escriptores castelhanos. Ha um ou dois
seculos tal materia poderia ainda parecer grave á luz politica; hoje,
porém, não sei eu se tocaria, a similhante luz, as raias de ridicula.
Qual é a nação que não vae achar no seu berço uma violencia ou uma
illegalidade? E que tem com isso o presente? _Somos independentes porque
o queremos ser_: eis a razão absoluta, cabal, inconstrastavel, da nossa
individualidade nacional. E se essa não bastasse, ahi estão escriptos
com sangue, desde Valdevez até Montes-Claros, por toda esta nobre e
livre terra de Portugal, os títulos da nossa alforria. Com subtilisar ou
torcer a historia não é que se defende a patria: a sua defensão está em
saberem seus filhos pelejar por ella, quando o soldado estrangeiro ousar
accommetter a terra que nos herdaram nossos paes, e onde elles morreram
livres, como nós havemos de morrer.

O eruditissimo auctor das _Memorias_ sobre as origens de Portugal e
sobre o conde Henrique segue algumas opiniões acerca d'estes primeiros
tempos da monarchia differentes das minhas. O peso, que o respeitavel
nome d'aquelle sabio dá a todos os seus escriptos, obriga-me a
accrescentar varias considerações em abono da opinião, que o estudo
d'essa epocha e dos seus monumentos me constrange a seguir.

Destruida, como me parece ficou, a tradição de haver sido dado _em dote_
a D. Theresa _o dominio_ de Portugal, resta averiguar se não se fundaria
em outros motivos legaes o procedimento do conde Henrique,
alevantando-se com o condado de Portugal, e convertendo-o em estado
independente.

Digo _alevantando-se_, e digo-o muito de proposito, porque esta
expressão é a que designa exactamente o facto que resulta dos documentos
d'aquella epocha. A somma dos diplomas que colligiu J. P. Ribeiro[35],
relativos ao governo em Portugal do conde Henrique, levam á evidencia
que, emquanto viveu Affonso VI, seu genro se considerou sempre como um
consul ou governador de provincia dependente do rei, segundo o systema
politico e administrativo da Hespanha, e que por morte d'aquelle
principe é que este reconhecimento de dependencia desapparece dos
documentos. Não constando, porém, de acto ou diploma algum publico a
separação legal do condado d'Henrique, antes pelo contrario, não se
fazendo menção d'ella ajunctamento que antes de morrer, para deixar a
Galliza a seu neto, e fazer acceitar D. Urraca por successora da
monarchia, póde concluir-se que a independencia do conde foi apenas uma
revolta, que as circumstancias das divisões intestinas coroaram de bom
successo.

O respeitavel auctor das _Memorias do conde D. Henrique_ diz que «a
practica d'aquella edade parece _em certo modo_ favoravel ás pretenções,
que os leonezes e castelhanos tiveram a este respeito. Os muitos e
grandes senhores, que então havia em Leão, Castella e Galliza, e
governavam algum grande territorio com o titulo de condes, eram sujeitos
_como feudatarios_ aos reis...» Seja-me permittido dizer que n'estas
palavras ha talvez uma notavel confusão d'idéas. Eram as _instituições_,
não a _practica_, que, não _em certo modo_, mas _postivamente_, eram
favoraveis a essas pretenções. Os grandes senhores que governavam
condados eram sujeitos á corôa, não _como feudatarios_, mas como
exercendo uma _delegação do soberano_. As instituições feudaes
essencialmente diversas das da Hespanha christã, central e occidental.
Um conde, um senhor (_princeps terrae_), um alcaide de castello
(_municeps_) eram n'este paiz existencias e castelleiros (_castellani_)
dos paizes feudaes. A influencia franceza introduziu na Hespanha muitas
fórmulas da organisação aristocratica chamada feudalismo, mas na
essencia a indole wisigothica da sociedade hespanhola subsistiu sempre
atravez d'essa influencia. É isto o que nos dizem claramente as leis e
os factos, os documentos, os monumentos e a historia.

No seculo XI o systema feudal chegou ao seu desenvolvimento completo. Os
feudos, amoviveis a principio, tinham-se tornado hereditarios, e a
feudalidade tinha-se estendido não só á terra, mas aos cargos, ao
serviço publico, a tudo. A perpetuidade foi o seu primeiro caracter: a
soberania do feudatario em seu feudo, o segundo. Satifeitas as
obrigações dos serviços do senhor territorial para com o suzerano, elle
exercitava livremente em suas terras todos os actos, que n'um governo
absoluto dos tempos modernos póde exercitar o rei. O terceiro caracter
do feudalismo, que consistia nas relações mutuas entre os nobres e entre
estes e o monarcha ou suzerano supremo, era todo, por assim dizer,
exterior á organização interna do dominio feudal. Estes tres caracteres
são os que distinguem essencialmente aquelle systema politico. Tudo o
mais é variavel, accessorio, incerto[36]. Dão-se porém esses caracteres
no que se chama feudalidade hespanhola? Não; porque as instituições do
paiz lhes eram contrarias. O feudalismo invadindo a Peninsula aninhou-se
geralmente nas fórmulas, mas nunca pôde penetrar no amago da organização
social.

Eu já lembrei o absurdo que resulta de suppôr que ao _dote_ de D. Urraca
se tirou uma porção para dar tambem _em dote_ a D. Theresa. O mesmo
absurdo resultaria de suppôr que ao feudo do conde Raimundo se tinha
tirado um fragmento para infeudar a Henrique. Mas já na instituição
d'aquelle feudo da Galliza occorre outra difficuldade: ou os condes e
senhores, que vemos governarem differentes districtos de Galliza e
Portugal antes de Raimundo, tinham todos morrido e _sem filhos_, quando
este foi posto no governo do territorio gallego e portuguez, ou d'este
successo resulta igual absurdo. Associar com taes factos a idéa de
feudalismo é em meu intender gerar uma monstruosidade; é pretender
destruir incompatibilidades indestructiveis; é tirar ao feudalismo o seu
primeiro caracter.

A célebre carta de Affonso VI ao conde Henrique, ácerca da demanda que
corria entre o bispo de Coimbra e um tal D. Cibrão sobre a aldêa de
Golpelhares, em que diz que não a concederá (_outorgabo_) ao D. Cibrão
se pertencer ao mosteiro de Vacariça[37], seria um attentado flagrante
contra o direito feudal, como elle se achava já constituido n'aquella
epocha; seria offender a soberania do feudatario dentro dos seus
territorios, se Portugal fosse possuido pelo conde segundo os principios
da jurisprudencia feudal.

Lemos na _Historia Compostellana_[38] que, tendo o conde Raimundo feito
uma lei para obviar a certas vexações que padeciam os burguezes de
Compostella, na qual impunha aos transgressores penas pecuniarias, vindo
depois Affonso VI fazer as suas devoções a Sanctiago, os cidadãos e o
proprio consul Raimundo lhe pediram a confirmação d'ella para que fosse
valedoura no futuro. Ou Raimundo, tendo vindo do paiz do feudalismo,
ignorava completamente os principios essenciaes do direito feudal, ou
não se considerava de modo algum como senhor feudatario da Galliza,
aliás regeitaria similhante confirmação.

Poderia citar centenares de factos análogos, que estão demonstrando que
taes feudatarios não existiam na Hespanha. Mas a demonstração capital
d'esta verdade resulta da impossibilidade em que estava o paiz de
admittir esses extensos feudos.

As situações hierarchicas dos senhores de terras nos paizes feudaes eram
n'aquelle tempo diversas. Os _vavassores majores_, ou _barões_, eram os
feudatarios da corôa; abaixo d'estes ficavam os simples _vavassores_ e
_castellani_, subfeudatarios dos primeiros[39]. Esta graduação era
possivel em França, por exemplo, porque no tempo das conquistas dos
francos nas Gallias, os capitães das hostes (_herzoge, koninge_),
tomando para si vastas extensões de territorio, as tinham repartido pelo
seus guerreiros. Passando da vida errante á existencia fixa, os barbaros
sentiram logo a necessidade do principio hereditario applicado á
propriedade territorial. D'aqui os feudos e subfeudos, e as obrigações
diversas inherentes aos possuidores d'elles. Mas as hierarchias não se
alteravam á mercê suzerano supremo; o filho do barão era barão como seu
pae, o filho do vavassor, vavassor como este. Os factos que se possam
apresentar de algum modo em contrario, ou foram practicados em terras
que fossem primitivamente _allodios reaes_ (correspondentes aos nossos
_reguengos_), que o rei podia infeudar a um vavassor para o elevar á
hierarchia de _Baro_, ou custaram muitas guerras, incendios, e mortes;
isto é, nasceram da violencia e da extra-legalidade, e não das
instituições feudaes, a que seriam perfeitamente contrarios.

Na Hespanha, porém, a elevação de Raimundo e de Henrique não foi
resultado de uma conquista. Os territõrios da Galliza dados áquelle, e
os de Portugal dados a este, para governarem como condes, estavam
libertados do jugo árabe, na sua maxima parte, e regidos por condes,
senhores, maiorinos, alcaides, etc., que, admittindo ser então a
organisação politica da sociedade Hespanhola feudal, eram (pelo menos os
condes) _barões_, isto é, feudatarios immediatos do rei. E como
consentiriam estes _vavassores majores_ em passar para a classe de
simples _vavassores_, o que de necessidade aconteceria se na realidade
se tivessem creado então estes dous grandes feudos? Como não apparece o
menor vestigio de resistencia a essa violação do direito politico do
paiz?

Sei que os que imaginam existirem na Hespanha instituições feudaes
poderão talvez soccorrer-se ás clausulas, que no pacto successorio entre
Raimundo e Henrique assentam nos principios de direito feudal[40].
D'estas passagens muitas outras se poderiam colligir dos diplomas e
memorias d'esse tempo; mas n'este documento, que era um tractado
secreto, não admira que os dous principes, sendo ambos francezes,
contractassem debaixo dos principios da jurisprudencia patria, ou que,
bem como acontece nos outros diplomas, em que se acham passagens
analogas, houvesse n'elle um abuso de terminologia feudal accommodada ás
instituições hispanicas, vindo assim a significarem as palavras _ut sis
inde meus homo, et de me eam habeas domino_, que o conde Henrique
ficaria com o governo de Toledo, como conde delegado n'aquella
provincia, reconhecendo a supremacia real de Raimundo n'esse districto,
emquanto Portugal ficava sendo estado separado e independente.

Que se fazia este abuso de termos da Peninsula é incontestavel. O
_Feudum reddibile_ não existia ainda n'aquella epocha, porque só
appareceu quando, degeneradas as instituições feudaes, a palavra
_feudum_ começou a servir para indicar todo o genero de transmissão
incompleta de propriedade[41]. Não podia, portanto, ser conhecido na
Hespanha no principío do seculo XII um genero de falso feudo, que se
oppunha á mesma essencia da propriedade feudal--o hereditario e a
perpetuidade. Todavia a _Historia Compostellana_ assevera que o
arcebispo de Santiago dera ao de Braga certas propriedades _ad tempus
pro feudo_, e este declara que as recebera _in praestimonium sive
feudum_, d'onde claramente se vê que então se tomava _feudo_ por
synonymo de _prestano_, sendo aliás coisas diversissimas[42]. A rainha
D. Urraca, tendo comprado ao mesmo arcebispo de Santiago o castello de
Cira, pediu-lh'o depois _in pheodum_, diz o historiador compostellano, e
elle lh'o concedeu com a condição de que logo que lhe fosse pedido o
entregasse[43]. Se entendessemos, porém, a palavra _pheodum_ na sua
verdadeira accepção, não houvera sido impossivel similhante contracto?

Vemos, pois, que a idéa de ter sido dado Portugal em feudo ao conde
Henrique é tão repugnante e inadmissível como a de lhe ter vindo em dote
de sua mulher. Resta só um meio para deixar de attribuir pura e
simplesmente á revolta do conde a sua independencia politica.

Este meio consiste em suppôr que, morrendo Affonso VI sem filhos varões,
o conde julgasse que o reino se devia dividir entre suas filhas; que a
sua mulher tocava, pelo menos, a provincia que elle governava; e que
finalmente se estribasse n'este fundamento para não se reconhecer
subdito de D. Urraca. Similhante idéa parece ter occorrido ao
respeitavel auctor das _Memorias do conde D. Henrique_, quando por
occasião do célebre pacto successorio, diz que «_os dois condes_, vendo
que a _herança_ de tão vastos e ricos estados, a que por suas mulheres
_tinham direito_, lhes escapava das mãos..... isto devia.....
inspirar-lhes o pensamento de se prevenirem, etc.»

Tal reflexão, creio eu, não fizeram os dois condes pela mui simples
razão de que não a podiam fazer; tal motivo não tiveram porque não o
podiam ter. A razão do pacto, a meu ver, não foi mais que um calculo de
forças: os dois condes unidos assim eram naturalmente mais fortes que
qualquer outro competidor ao throno que por morte de Affonso VI se
alevantasse. O conde Raimundo entendeu, e entendeu bem, que valia a pena
de sacrificar uma parte de territorio á ambição de Henrique, com a
condição de cingir a corôa d'Hespanha. Do theor o pacto successorio se
vê que este negocio começou a ser tecido em Cluni; porque este celebre
mosteiro era então o foco de todos os grandes enredos politicos, e
exercia uma influencia immensa na curia romana, sempre prompta para
proteger novidades uma vez que estas lhe produzissem as celebres
_benedictiones_[44], de que tantas vezes falla á _Historia
Compostellana_. E com effeito o negocio tinha assim todas as
probabilidades de bom resultado, se a morte, como costuma, não viesse
baralhar as combinações humanas.

Disse que Raimundo e Henrique não podiam ter tido por motivo do pacto a
consciência de um direito commum a ambos; porque tal direito seria
sonhado. Que!? A coròa do reino leonez-castelhano era alguma herdade,
aldêa, mosteiro, _testamento_[45] emfim, que se repartisse entre
herdeiros, ficando a este o quarto, a outro o sexto, a aquell'outro o
resto? Se o fosse, que deveriamos nós chamar a Raimundo, o qual se
contentava com tomar para seu quinhão _hanc totam terram Regis
Aldephonsi_, ou ao conde Henrique, que promettia ajuda-lo em tão sancta
e louvavel empreza? Porque haviam assim de ser espoliadas as outras
filhas de Affonso VI, entre as quaes se contam algumas com mais
segurança legitimas que a mulher de Henrique?[46] Raimundo poderia
talvez julgar-se com justiça na successão, por ser sua mulher a filha
mais velha de Affonso VI: o hereditario da corôa começara de havia muito
a fixar-se por direito consuetudinario opposto ao direito politico
escripto, e Urraca devia succeder a seu pae por este _costume_, que
apenas deixava a sentença do codigo wisigothico a tal respeito, como
simples e mera formalidade: Henrique, porém, nada tinha que vêr em
similhante negocio, e só legalmente lhe cumpria obedecer ao novo
monarcha, como obedecia a Affonso VI.

Mas, dir-se-ha, Raimundo podia d'antemão ceder uma parte da monarchia,
que lhe havia de pertencer, a Henrique, seu cunhado, primo e companheiro
d'armas, a fim de que este o ajudasse com a força a tornar effectivo o
seu direito de successão, se este direito existia[47]. Não! A indole das
instituições hespanholas oppunha-se formalmente a similhante cessão.

É preciso em todas estas averiguações não esquecer nunca um grande facto
social d'aquella epocha, facto que o historiador-philosopho Martinez
Marina provou irrecusavelmente, e que derruba pelos fundamentos essas
explicações violentas de um acontecimento mui simples--a revolta do
conde Henrique. Este acontecimento não deshonra o conde, porque elle não
podia ter as idéas de estreita legalidade, que nós hoje exigimos e
devemos exigir dos homens politicos. No seu tempo a força corria
trivialmente parelhas com o direito: era esta uma das infinitas e
pessimas consequencias moraes da barbaria e rudeza dos tempos. Do mesmo
modo nenhuma nódoa póde pôr nos fastos gloriosos da nação essa origem
menos ajustada pelas regras da jurisprudencia politica d'aquellas eras.
Toda a nação independente legitimamente o é, seja qual for a historia do
apparecimento da sua individualidade ou da sua organisação. Nem a França
recusa a usurpação de Pepino, ou de Hugo, nem a Inglaterra a conquista
de Guilherme o _Normando_: essas nações possuem sobeja luz de gloria
para desvanecer taes sombras. Será o velho Portugal mais pobre e obscuro
do que ellas?

O facto, digo, de que nunca nos devemos esquecer é, que a monarchia
fundada por Pelaio nas Asturias, e que depois se chamou Leão e Castella,
não foi uma nova sociedade que appareceu; não foi uma nova raça que pela
conquista substituísse no dominio da terra uma sociedade conquistada o
dissolvida. A monarchia leoneza foi a reacção wisigothica contra a
invasão arabe: mais nada. O throno de Leovigildo recuou deante do throno
dos califas até as margens do Deva, e d'abi voltou a Toledo. Ida e volta
foi por uma estrada coberta de cadaveres, e a viagem gastou tres
seculos. Mas com esse throno, na fuga e no triumpho, as instituições, as
leis, quasi os costumes, que o rodeavam, subsistiram por largo tempo. As
_Partidas_ de Affonso o _Sabio_ são a declaração de que a sociedade
wisigothica tinha emfim expirado, depois de dilatada agonia. Este codigo
feudal-canonico-romano é o verdadeiro ponto d'intersecção entre a
monarchia germanica e a monarchia moderna; e ainda áquem das _Partidas_,
quantas reminiscencias, quantos costumes, quantas leis, enraizadas no
solo Peninsula pela cuidadosa cultura dos godos, melhor radicadas talvez
ainda, como as arvores robustas, pelo tufão terrivel da conquista arabe,
não ficaram vivas, perennes, activas, no meio da sociedade moderna!
Ninguem mais que nós os filhos das Hespanhas se abraça ternamente com as
usanças do passado. É que ainda em nossas veias gira muito sangue dos
godos. Na historia das instituições, os povos da Peninsula são mais
velhos do que elles pensam.

Todos sabem que o codigo das _Partidas_ pertence á segunda metade do
seculo XIII, e que a epocha de Affonso VI pertence aos fins do XI, e
primeiros annos do XII. Para outro logar deixamos o exame das
alterações, quasi todas formaes e poucas substanciaes, que os francos
introduziram na organisação politica da Hespanha: é, porém, indubitavel
que a natureza da monarchia não tinha sido mudada. A substituição do
hereditario ao electivo na successão havia-se convertido em uso, é
verdade; mas este uso não pertencia exclusivamente aos tempos
posteriores a Pelaio. Anteriormente aos arabes, os godos tinham
conhecido a vantagem immensa d'aquelle systema de transmissão da corôa
ao systema electivo; e a successão de paes a filhos começava a fixar-se
como principio politico na côrte de Toledo, quando justamente uma
offensa feita a esse principio na enthronização de Rudericus (Rodrigo)
produziu a guerra civil, que abriu o caminho aos conquistadores
sarracenos.

A eleição do rei lá ficou, todavia, escripta na lei da terra, no codigo
wisigothico, e as consequencias naturaes do principio electivo
designadas nesta lei, e além d'isso traduzidas nos factos. A acclamação
do novo imperante, o _hominium_ ou preito e menagem que lhe faziam os
barões convocados a côrtes (_concilium_), e até a expressão de
_electus_, de que muitos reis de Oviedo e Leão usaram nos diplomas
fallando de si, provam que elles não se esqueciam de qual era o
fundamento legal da sua existencia politica[48]--a escolha dos godos.
D'esta circumstancia, d'este pensamento, que por assim dizer se achava
como incorporado no facto contrario--a successão hereditaria--e
modificava esse facto, nascia que todas as outras disposições do codigo
wisigothico, relativas ás obrigações contrahidas pelos reis no momento
da acclamação, se conservavam em vigor como nos tempos em que a
monarchia era na realidade electiva. Entre estas obrigações era uma das
mais importantes o prestarem juramento de nunca alhearem os bens ou
estados da corôa, e de não herdarem a seus filhos senão as terras ou
bens que adquirissem antes de subirem ao throno, ficando no patrimonio
do estado tudo o que depois da sua eleição n'elle tivessem
accrescentado[49]. Era a esta lei, observa Martinez Marina[50], que D.
Affonso o _Sabio_ se referia no seculo XIII, dizendo: «foro e
estabelecimento fizeram antigamente em Hespanha, que o senhorio do rei
nunca se dividisse ou alheasse.»[51] A tradição d'esta antiga
jurisprudencia veio ainda reflectir de algum modo entre nós na feitura
da _Lei mental_.

Similhante instituição obsta a que qualquer cessão de Raimundo a seu
primo tivesse validade ainda quando subisse ao throno, quanto mais sendo
apenas um simples pretendente. Assim, ao passo que se vê não ser o pacto
successorio mais que um documento da ambição dos dous condes, conhece-se
tambem que é escusado procurar n'elle o titulo da independencia
portugueza. Ainda, repito, subindo ao throno, Raimundo teria exorbitado
das suas attribuições: teria offendido uma das partes essencialissimas
do direito politico da Hespanha, se houvesse alheado da corôa uma tão
importante porção de territorio como Portugal, sem consentimento do
_concilium_, ou _côrtes_. Fernando Magno tinha entendido isto
perfeitamente quando, para dividir a monarchia em tres estados que
herdassem seus tres filhos, as convocou em Leão a fim de obter o
consentimento nacional[52].

Nestas considerações, a meu ver, está a razão capital de se dever
recusar a sancção historica a essas tradições de dotes, d'infeudações,
de direitos hereditarios, que se tem acceitado de antigas chronicas com
demasiada boa fé.

Não concluirei já agora, sem accrescentar alguns reparos aos argumentos
negativos, que faz o sabio auctor das _Memorias do conde D. Henrique_, a
favor da opinião que sustenta a legalidade do acto de separação que deu
origem á monarchia portugueza.

Aquelle erudito illustre observa que, practicando o conde depois da
morte d'Affonso VI todos os actos de um soberano independente (e isto,
creio eu, ninguem contesta hoje), não appareceu um documento público em
que os leonezes accusassem Henrique e depois D. Theresa de _rebeldes_,
ou em que exigissem vassalagem d'elles; que não _ha prova alguma
positiva e certa de que por esse singular motivo fizessem a guerra aos
portuguezes_; que finalmente nenhuma das _numerosas_ chronicas
d'aquelles tempos haja feito menção da dependencia de Portugal, salvo a
_Historia Compostellana_, a que, n'esta parte, o illustre auctor das
citadas _Memorias_ parece recusar o seu assenso por ser obra d'estylo e
modo d'historiar _exaggerado_, e ás vezes manifestamente apaixonado.

O governo do conde Henrique divide-se em dois periodos distinctos: o
primeiro, que corre de 1096 até 1109, isto é, até a morte _d'Affonso_
VI: o segundo desde esta epocha até a morte d'elle proprio em 1112[53].
Quanto á primeira não pode haver questãpo sobre a sua dependencia do
monarcha: os diplomas d'esse tempo não consentem a menor sombra de
dúvida a similhante respeito. Quanto á segunda tambem me parece
indubitavel que o conde saccudiu o jugo de Leão; mas o que não posso
admittir é que os leonezes legalisassem este facto com o seu
reconhecimento antes do tempo de D. Affonso Henrique.

Bastaria dizer aqui que um argumento negativo bem pouco fôrça pode ter
contra provas em contrario deduzidas da propria natureza, instituições,
leis e costumes do paiz. Mas não ha só isso; considerando em si o
argumento, elle não parece dos mais vehementes no seu genero. Vejamos.

Primeiro que tudo, _as numerosas chronicas d'esses tempos_ parece-me uma
expressão demasiado vaga e incerta. Se o respeitavel sabio, a que
alludo, intende por _chronicas d'esses tempos_ os escriptores
_contemporaneos_ do conde e ainda de D. Theresa, que lhe sobreviveu 18
annos, eu desejaria saber onde existe esse grande numero d'ellas, para
as lêr, e evitar assim os avultados erros, em que por ignorancia das
fontes historicas terei provavelmente caído. Se intende os escriptores
dos tempos immediatos, seja-me permittido lembrar-lhe que Rodrigo de
Toledo, escrevia na primeira metade do seculo XIII[54], concorda com a
_Historia Compostellana_ em chamar _rebellião_ ao procedimento do
conde[55], e n'esse caso não é _singular_ o testimunho d'aquella
importante historia.

Eu sei que existe um certo numero de _chronicons d'esses tempos_,
publicados pela maior parte nos appendices da _Hespanha Sagrada_. Mas
infelizmente para o nosso caso, aquelles em que os successos vem mais
particularisados, e que mereceriam não o nome de _historias_, mas
talvez, alguns pelo menos, o de _chronicas_[56], não ultrapassam a
epocha d'Affonso VI. Taes são o d'Isidoro de Béja, o do Biclarense, o de
Sebastião de Salamanca, o de Sampiro, o Monge de Sillos etc. Os que
passam áquem da morte d'Affonso VI são apenas um aggregado de datas
relativas aos seculos XII e XIII e aos anteríores, datas estremes de
nascimentos, batalhas, obitos e phenomenos naturaes. Em taes monumentos,
essencialmente chronologicos, como fôra possivel encontrar a menção do
facto que pela sua propria natureza devia ser lento, e concluido por uma
série de actos graduaes e escuros, praticados successivamente durante
annos? Como se poderia achar uma historia politica em rudes apontamentos
de monges ignorantes, que muitas vezes para indicarem uma batalha
importante contentavam-se com dizer: _Era de tal_--_Foi a de Sagralias:
foi a d'Ucles_? Eu, ao menos, não creio que similhante espécie ahi se
podesse encontrar.

Mas, se abstrairmos d'estes _chronicons_, que obras historicas nos
restam escriptas n'esse tempo ou proximamente, com tal extensão, que
devamos buscar n'ellas noticia d'este facto politico e complexo? Conheço
apenas tres: a _Historia Compostellana_, a _Chronica d'Affonso VII_, e o
livro de D. Rodrigo Ximenes _Das coisas de Hespanha_. Como já notei, a
primeira e terceira chamam rebellião a esse facto: a segunda é que
guarda silencio a similhante respeito. Tire d'aqui o leitor a conclusão
que quizer, não se esquecendo que já ponderei sobre o valor historico
que me parece têr a _Chronica d'Affonso VII_.

O clarissimo auctor das _Memorias do conde D. Henrique_ regeita, ao que
parece, n'este ponto a auctoridade dos historiadores compostellanos
(postoque na _Memoria sobre a origem de Portugal_ os houvesse
qualificado de _não suspeitos_) por serem _exaggerados_ e _apaixonados_.
Esta observação é exactissima. Quem ler dez ou vinte capitulos d'aquella
chronica ficará plenamente convencido de tão inquestionavel verdade, sem
que lhe seja preciso ter presente a extensa dissertação de Masdeu a este
respeito.[57] Mas o que _exaggeram_ os tres conegos de Sanctiago
auctores do livro?--A perversidade de D. Urraca, e as virtudes do
arcebispo Diogo Gelmirez. Não ha injúria que elles não vomitem repetidas
vezes contra aquella rainha, que sem ser sancta, ou pelo menos beata,
como a pinta Flores, não foi tão detestavel mulher como os tres honrados
conegos a descreveram. Por outra parte não ha lisonja ridicula ou louvor
despropositado que não dirijam ao seu velhaco, hypocrita, cubiçoso e
violento patrono. Porque serão pois elles suspeitos mostrando-se
favoraveis ás pretensões de D. Urraca ácerca de Portugal, quando, além
d'isso, não tinham motivo nenhum de odio contra D. Theresa, que
beneficiou a sé de Compostella, e que até, andando Diogo Gelmirez com a
rainha D. Urraca devastando o Minho, lhe deu aviso de que sua irmã o
queria prender ou matar? É realmente incomprehensivel para mim o motivo
por que na questão da legitimidade ou illegitimidade da separação de
Portugal a _Historia Compostellana_ haja de ser-nos suspeita por
exaggeração e parcialidade.

Finalmente, a exigencia de um documento leonez, pelo qual conste a
pretendida sujeição de Portugal, parece-me demasiado violenta. Qual
devia ser o documento? Um manisfesto? No seculo XII não creio existisse
ainda essa divindade dos homens honestos, chamada opinião pública. Nas
questões politicas recorria-se ás armas para obter justiça ou desforço,
e não se faziam allegações. Se apparecesse um tal documento, a prova da
sua falsidade seria a sua existencia; e todavia só por um manifesto
poderiam constar directamente as pretensões de D. Urraca e de Affonso
VII. Indirectamente, porém, na propria _Memoria_, a que alludo, se
lembra seu respeitavel auctor do que D. Urraca se intitúlava _rainha de
toda a Hespanha_. Que mais podia fazer? Doações em Portugal de bens da
corôa? Ninguem lh'as quizera, porque não se effeituariam, visto que
Portugal não a tinha por senhora. Providencias governativas? Não lhe
obedeceriam. De que titulo, pois, pode resultar a prova directa que se
exige?

Prova directa digo, porque só esta tinha em mente por certo o sabio, de
cuja opiniões me vejo constrangido a afastar-me, quando escreveu que não
existe documento pelo qual _conste a pretendida sujeição_[58]. Era
impossivel que elle se não lembrasse do tractado que traz Brandão[59] em
cujo preambulo se lê: «É este o juramento e convenio que faz a _rainha_
D. Urraca a sua irmã a _infanta_ D. Theresa.» Desejaria eu saber porque,
intitulando-se a viuva do conde Henrique constantemente _regina_ nos
documentos de Portugal, consentiu em um tractado de paz com sua irmã que
esta reservasse para si similhante titulo, e lhe désse unicamente o
d'_infanta_? Como se registou tal denominação no _Liber Fidei_ de Braga,
d'onde a tirou Brandão, sendo assim offensiva da legitima independencia
e senhorio real de D. Theresa?

Accrescentarei uma conjectura. O documento produzido por Brandão não tem
data. Quem lêr attentamente os capitulos 40 e 42 do livro 2.^o da
_Historia Compostellana_ poderá talvez attribui-lo ao anno de 1121, em
que D. Urraca acompanhada do guerreiro arcebispo Diogo Gelmirez entrou
por Portugal dentro, e o devastou, chegando D. Theresa ás estreitezas de
se ver cercada no castello de Lanhoso. Distraídos pelos perigos do seu
heroe Gelmirez, que n'esta occasião D. Urraca, dizem elles, quiz prende,
esqueceram-se de narrar expressamente as consequencias politicas da
guerra. Mas dos factos referidos n'esses capitulos se pode deduzir que
as duas irmãs fizeram pazes, e até os dois campos inimigos conviveram
familiarmente[60]. Aquelle tractado não é por ventura mais que o
desfècho da invasão; bem como as condições vantajosas que por elle devia
obter D. Theresa, o repentino intento de prender o arcebispo, e a
notoria perfidia e turbulencia d'aquelle sancto varão, me fazem
suspeitar que elle tramaria alguma traição contra a sua soberana, a qual
odiava cordialmente, e tractando secretamente com D. Theresa (cujo
repentino accésso de amor por um homem que lhe devastava o paiz é aliás
inexplicavel) pretenderia com a juncção das suas forças ás portuguezas
aniquilar D. Urraca. Se assim foi, porque isto é apenas uma conjectura
verosimil, habilmente andou a rainha em conceder uma paz vantajosa a sua
irmã, para poder desaggravar-se da traição de Gelmirez. Admittida esta
hypothese, o documento do _Liber Fidei_ e a _Historia Compostellana_
concorda e explicam-se excellentemente.

O titulo d'_infanta_, dado com exclusão de outro a D. Theresa, não
apparece unicamente no _Liber Fidei_. Remettendo Bernardo, arcebispo de
Toledo, a Diogo Gelmirez copia de certas letras apostolicas relativas ao
celebre Mauricio Bordino, arcebispo de Braga, envia-lhe com ellas outras
dirigidas á _infanta dos portuguezes_[61]. Vê-se d'esta passagem, da
carta do primaz que tal era o titulo diplomatico com que na côrte de
Toledo se designava D. Theresa; titulo vago, que mostra, a meu vêr, a
incerteza d'aquella côrte entre o facto, que provavelmente não tinha
fôrça para annullar, e o direito de supremacia, que julgava evidente.

Ficarei aqui pelo que toca ao facto da origem da independencia de
Portugal: algum dia examinaremos como ella se consolidou e legalisou.
Chama-nos mais grave assumpto--a historia social do nosso paiz n'essa
épocha.



*CARTA IV*


A folhinha d'algibeira, tecendo o catalogo dos nossos reis, divide-se em
quatro dynastias: a 1.^a Luso-Capêta, a 2.^a, do Mestre d'Aviz, a 3.^a
dos Philippes, a 4.^a Brigantina. A folhinha resume e representa o
estado da sciencia historica do nosso paiz.

Mas a folhinha, salvo o incompleto e inexacto d'aquellas divisões
dynasticas, tem razão. Ella tece o catalogo das familias reaes. Quem não
tem razão é a sciencia, que, annunciando a _Historia de Portugal_, em
vez de distribuir as épochas chronologicas pelas transformações
essenciaes da sociedade, sujeita a ordem dos acontecimentos sociaes ás
mudanças das raças reinantes. Isto é altamente absurdo.

Mr. Thierry, fallando das divisões dynasticas applicadas á historia
franceza, já observou a impropriedade de similhante systema[62].
«Supponde (diz elle) que um estrangeiro, pessoa de juizo, que não seja
hospede na leitura dos historiadores originaes da decadencia do imperio
romano, e que nunca houvesse aberto um volume moderno da nossa historia;
supponde, digo, que ao encontrar a primeira vez um livro d'estes lhe
corra o indice, e divise ahi por balizas, ou antes por fundamentos da
obra, a distincção das diversas raças. Que idéa quereis que faça d'estas
raças e do pensamento do auctor? Ha-de provavelmente crer que tal
distincção corresponde á de diversas gentes, ou gaulesas ou peregrinas,
cuja mistura produziu a nação franceza; e quando souber que se enganou,
que são unicamente diversas familias de principes, sobre as quaes versa
todo o systema da nossa historia, ficará sem duvida cheio
d'assombro.»--Esta reflexão do mais célebre historiador francez da
épocha presente, é inteiramente applicavel ao nosso paiz.

Com effeito, quem, á vista das diversões estabelecidas na _Historia de
Portugal_, imaginará, por exemplo, que os acontecimentos sociaes do
ultimo quartel do seculo XIII, isto é, do reinado de D. Diniz, consituem
uma divisão naturalissima, uma verdadeira épocha historica, ao mesmo
tempo que a intrusão dos Philippes apenas mereceria tal nome? Quem
adivinhará que no reinado de D. João II se completa uma revolução
capital na indole da organisação politica do paiz, ao passo que a
revolução de 1640 traz á sociedade portugueza levissimas mudanças no seu
mode de existir? Ninguem o crerá, se attendendo unicamente ás épochas
assentadas pelos historiadores se persuadir de que a historia é a
biographia dos individuos eminentes.

A historia pode comparar-se a uma columna polygona de marmore. Quem
quizer examina-la deve andar ao redor d'ella, contempla-la em todas as
suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é
olhar para um dos lados, contar-lhe os veios da pedra, medir-lhe a
altura por palmos, pollegadas e linhas. E até não sei dizer ao certo se
estas indagações se teem applicado a uma face ou unicamente a uma
aresta.

Mas é similhante trabalho desprezivel? Não por certo. Este exame miudo,
feito com consciencia, tem grande applicação, e ainda em si é
importante; mas dar-nos isso como a historia da nação é, salvo erro,
enganar redondamente o genero humano; é não perceber os fins da
historia, a sua applicação como sciencia; é sobretudo fazer uma coisa, a
que podêmos chamar novella, distincta sómente d'aquellas a que se dá tal
titulo, pelo tedioso, árido e sem sabor da leitura que offerece.

As divisões historicas actuaes nasceram d'este modo falso (por
incompleto) de considerar o passado. A necessidade de estabelecer uma
chronologia rigorosa era evidente: os factos politicos e a vida dos
homens publicos precisavam de ser fixados com exacção no correr dos
tempos, principalemente para o julgamento dos diplomas, genero de
monumentos, em que as gerações extinctas se pintam melhor, que em
nenhuns outros. O erro, a meu vêr, foi acreditar que ficando-se aqui
existia a historia: erro digo, e completo; porque nem se quer a
biographia dos homens eminentes surgiu de taes averiguações. Temos a
certidão do seu nascimento, baptismo, casamento e morte. Se foi um
guerreiro, temos a descripção das suas batalhas; se legislador, a medida
intellectual e moral de seu espirito, os seus habitos e costumes, não os
conhecemos. E porque? Porque esse homem é uma abstracção: está separado
do seu seculo. As opiniões, os costumes, os usos, todos os modos, emfim,
de existir da épocha em que viveu, são desconhecidos para nós; e todavia
tudo isso, toda essa existencia complexa de muitos milhares de homens, a
que se chama nação, devia ter uma influencia immensa, absoluta,
n'aquella existencia individual do homem illustre, que o historiador
acreditou poder fazer-nos conhecer com os simples extractos de quatro
chronicas, cosidos com bom ou máu estylo ás respectivas certidões de
baptismo, de casamento e de obito.

É por isso que, além de ser absurdo em these geral resumir e representar
a sociedade nos individuos, tal absurdo se torna mais monstruoso, quando
os tomamos como medida das phases da sociedade. O homem, assim collocado
fóra de todas as relações sociaes, que lhe modificaram d'este ou
d'aquelle modo o aspecto moral, podendo representar todas as épochas,
pertencer a todos os tempos, tomar todas as physionomias, nada
representa, a nada pertence, nenhuma physionomia tem; e quando n'elle
buscâmos a imagem do seu tempo, não a achâmos, até porque nem a d'elle
proprio existe. Ajunctem-se, porém, estas individualidades abstractas,
embora na ordem do tempo constituam uma dynastia, uma série de capitães,
de legisladores, de magistrados; junctas ou separadas, ellas nunca
poderão representar uma épocha historica; o seu apparecimento ou a sua
falta nunca serão balisas verdadeiras das diversas transformações pelas
quaes passam os povos na sua vida de seculos.

Abramos os livros de qualquer historiador nosso. Sejam os do homem que
mais attingiu o espirito da sciencia historia, exceptuando Antonio
Caetano do Amaral de João Pedro Ribeiro: sejam o terceiro e quatro
volumes da _Monarchia Luzitana_, por Fr. Antonio Brandão. Brandão
começou a sua narrativa com o conde Henrique e concluiu-a com D. Affonso
III, ou porque sentisse que este era rigorosamente o primeiro periodo da
nossa historia, ou por mera casualidade, o que eu não creio[63].
Corram-se esses dois volumes; estudem-se as physionomias do conde, de D.
Affonso I, e dos seus successores até D. Affonso III: comparem-se com as
mais bem conhecidas dos nossos reis modernos; com a de D. João IV, de D.
Affonso VI, de D. Pedro II, de D. João V. Creremos que foram
contemporâneos uns dos outros: a sua côrte parece-se com as d'estes; o
teor da sua vida, domestica ou publica, os pensamentos politicos, a
fórma de administrar, de legislar, de fazer guerra são, com levissimas
excepções, similhantes; e resumindo n'essas physionomias falsificadas,
n'essas mascaras historicas, o aspecto social da épocha, ficam os
seculos XII e XIII similhantes necessariamente á segunda metade do XVII
e primeira do XVIII. A nossa imaginação transporta para aquelles tempos
a côrte esplendida, ceremoniatica, erudita, hypocrita e louçan de D.
João V; ou as intrigas mulherís, os odios covardes, os mexericos
fradescos, e as vinganças tenebrosas do tempo de Affonso VI e de D.
Pedro II, cobertos com um manto de decencia, de compostura, de
regularidade nas fórmas.

Assim, crendo que temos lido a historia portugueza dos seculos XII e
XIII, apenas saberemos as datas d'esses primeiros reinados, a
antiguidade d'algumas familias, os successos militares ou politicos de
então. Quanto ao resto, não só ignorâmos o que era a sociedade
primitiva; mas, o que é peior, compomos d'ella uma fabula com as
reminiscencias da nossa vida, com as tradições de nossos paes, ou com as
anecdotas, que estes ouviram aos seus. Feito isto, está feito o nosso
bastimento de sciencia historica.

       *       *       *       *       *

Mas voltemos os olhos para os monumentos d'aquellas eras antigas, em que
ellas fielmente se reflectem, e fechemos os livros: busquemos a historia
da sociedade e deixemos por um pouco a dos individuos. Os primeiros
documentos que nos cairem nas mãos destruirão essas illusões: sentiremos
a infinita differença entre uns e outros tempos: veremos que os reis, os
nobres, o clero, os cidadãos, os camponezes de então, eram reis, nobres,
clero, cidadãos, e camponezes bem diversos dos actuaes. Pouco bastará
para nos persuadirmos de que a biographia das familias ou dos
inidividuos nunca pode caracterisar qualquer épocha; antes, pelo
contrario, a historia dos costumes, das instituições, das idéas, é que
ha de caracterisar os individuos, ainda quando quizermos estudar
exclusivamente a vida d'estes, em vez de estudar a vida do grande
individuo moral, chamado povo ou nação.

Transcreverei varios documentos relativos ao primeiro periodo da nossa
historia. Serão os que successivamente me occorrerem, sem fazer escolha.
Reflicta n'elles o leitor, que conhecer os nossos livros historicos. Que
julgue se algum d'estes lhe faz suspeitar ao menos o que por aquelles
anteverá de golpe--um modo d'existir n'essas eras remotas alheio
inteiramente das formas da sociedade presente.

       *       *       *       *       *

I--«Se algum bispo ou pessoa d'ordens sacras tiver o vicio da
embriaguez, ou se emende ou seja deposto.»

«Se um sacerdote ou qualquer clerigo se embriagar, que faça penitencia
por 20 dias. Se vomitar com a embriaguez, faça penitencia por 40 dias.
Se for com a Eucharistia, faça penitencia por 60 dias.

Quem vomita a hostia, e esta é comida por algum cão,
faça penitencia um anno.[64]

       *       *       *       *       *

II--Achando-se a rainha D. Urraca (1127) em Compostella, o povo
opprimido pelo bispo Gelmirez revolta-se e accommette a sé e o palacio
episcopal. Eis como a _Historia Compostellana_ pinta uma commoção
popular do seculo XII.[65]

«......é accommettida a egreja do apostolo com repetidos assaltos: as
pedras, as settas, os dardos, voam por cima do altar...... Estes homens
perdidissimos deitam fogo á egreja de Santiago, e incendeam-na toda,
porque uma grande parte d'ella era coberta de ramos de tamargueira e de
taboas.................»

«Depois que o bispo e a rainha vêem a egreja incendiada....fogem para a
torre dos sinos.... Os compostellanos....accommettem a torre, e despedem
pedras e settas contra o bispo e a rainha. Mas os que estavam com elles
defendem-se bem.... Finalmente os compostellanos....valem-se do fogo e,
unindo os escudos por cima das cabeças, deitam-no dentro por uma fresta
aberta na parte inferior da torre. O fogo atéa-se e trepa contra os que
estavam n'ella.»

«...... Clamavam de fóra: «a rainha se quizer que saia: a ella só
concedemos permissão de sair e de ficar viva: os outros hão de morrer a
ferro e fogo». Ouvido o que, e crescendo o incendio, a rainha
constrangida pelo bispo, e recebendo d'elles palavra de seguro, saiu da
torre. As turbas, tanto que a vêem sair, accommettem-na, agarram-na e
levam-na a rastos para um lodaçal; arrebatam-na como lobos, e rasgam-lhe
os vestidos: fica nua dos peitos para baixo, e assim jaz por muito tempo
descomposta diante de todos. Muitos quizeram apedreja-la, e até uma
velha lhe deu com uma pedra na cara.»

Qual foi o resultado d'estas gentilezas de canibaes? A rainha, escapando
da cidade como pôde, d'ahi a pouco:

«.......consentiu em fazer um pacto de reconciliação com os
compostellanos.»[66]

Fazendo queixas de seu marido, o rei d'Aragão, a mesma D. Urraca dizia
diante dos fidalgos da Galliza:

«.....não sómente me deshonrou com palavras affrontosas, mas tambem é de
sentir para toda a nobreza que me enxovalhasse as faces com as suas mãos
immundas, e me désse pontapés.»[67]

É preciso confessar que havia alguma differença da côrte de Affonso o
_Batalhador_ á de D. João V.

       *       *       *       *       *

III--«....... O clero bracharense, carecendo de quem o guiasse, desejava
fosse como fosse obter um pastor; mas não podera achar em todo o bispado
pessoa digna d'aquella cadeira.

«Quando (S. Giraldo) entrou na cidade de Braga, e viu o estado bravio
d'aquelle logar despovoado e sepultado em ruinas, ficou attonito.»[68]

Louvando o procedimento exemplar e excepcional de S. Giraldo, diz o seu
discipulo e biographo:

«Nunca tractou de falcões, nem de caça com cães, ou de jogos d'azar.»

Eis um caso que elle refere, e que representa bem um aspecto dos
costumes do seculo XII.

O arcebispo havia excommungado por incestuoso certo cavalleiro:
«Aconteceu, porém, n'aquelle tempo, que por mandado do conde Henrique,
que então dominava na terra portugallense, todos os próceres
portuguezes, e com elles o excommungado por incestuoso, se ajunctassem
em Guimarães. Ao qual conventiculo, por assim ser necessario, veio
tambem o varão de veneravel vida. Celebrando, pois, missa o homem de
Deus na egreja vimaranense, e estando ahi presentes o conde Henrique e a
formosa rainha Theresa, com grande numero de próceres, viu que
sobredicto excommungado estava na egreja com os mais. Immediatamente,
suspendendo o officio divino, perante todos proclamou incestuoso aquelle
homem.... Este, inspirado pelo espirito diabolico,....recusou sair da
egreja. Saiu finalmente por ordem do conde, e aos empuxões dos outros.»

Para se ver qual era o estado de segurança individual, e do que dependia
a honra e fazenda das pessoas no seculo XII, extrahirei outro fragmento
do mesmo livro.

«Havia n'aquella região certa matrona chamada Toda, que, sendo
d'illustre sangue, era abastada por grande cópia de herdades e
muitissimo dinheiro[69], de cuja opulencia invejosos alguns magnates de
Portugal trabalhavam por perde-la e deshonra-la, para de algum modo lhe
havarem ás mãos as riquezas. Assim, deram traça a um villico[70] do
egregio conde Henrique, chamado Ordonho, homem de raça servil, como a
raptasse e casasse com ella, de modo que manchada por tal casamento
perdesse a dignidade da honra[71]. Seguindo a traça dos fidalgos, o
víllico arrebatou a matrona, deu um grande banquete, arranjou o thálamo,
e dispoz-se para commetter a maldade.»

Perto da noite, D. Toda, mandando deitar uma serva no leito nupcial,
fugiu com os trajos d'esta, e escondeu-se nos bosques. Quando o víllico
deu no engano:

«Grandemente irado, lançou muitos vigías com _mastins_ pelas saídas dos
caminhos, pelos desvios dos montes, e pelas brenhas selvaticas em busca
da nobre mulher.»

Da sequencia da historia se vê que o honrado víllico ficou impune d'esta
e de mais atrocidades, que depois commetteu, até que outros,
provavelmente tão bons como elle, o assassinaram no castello de Lanhoso.

       *       *       *       *       *

IV--Invadindo o imperador Affonso VII a terra de Portugal, saiu-lhe ao
encontro Affonso I em Valdevez. Devia ser esta uma batalha decisiva para
a independencia de Portugal. D. Affonso Henriques tinha assentado as
tendas na estrada por onde marchava seu primo Affonso Raimundo dez. O
imperador chegou:

«Logo que vinha alguem da banda do imperador para uma especie de jôgo ou
torneio, a que os populares chamam bufúrdio, immediatamente lhes saíam
ao encontro alguns da parte do rei de Portugal, a torneiar com os
adversarios, e assim aprisionaram Fernando Furtado, irmão do
imperador,....e muitos outros.... Vendo o imperador que tudo saía
prosperamente ao rei de Portugal....mandou chamar o arcebispo de Braga e
outros homens bons, e pediu-lhes que viessem ter com o rei de Portugal,
para que firmassem boa paz com as condições que a tornam perpetua. Assim
se fez, porque o rei e o imperador se ajuntaram em uma tenda,
beijaram-se, comeram e beberam juntos, e fallaram a sós, voltando cada
qual em paz para a sua terra[72].»

       *       *       *       *       *

V--«Memoria das malfeitorias que el-rei D. Sancho I fez a D. Lourenço
Fernandes, e das que lhe mandou fazer, e executou Vasco Mendes.
Primeiramente tirou-lhe setenta moios em pão e vinho, e vinte e cinco
entre arcas e cubas, e quarenta escudos, e dois colxões e dois
travesseiros, e entre bancos e leitos onze, e caldeiras e mezas, e
escudellas e muitos vasos, e chapéos de ferro, e dez porcos, ovelhas e
cabras, e quinze maravedis, que levaram dos seus homens, aos quaes
fizeram uma espera, e muitas outras armas. Além d'isto ermaram-lhe
setenta casaes, perdendo-se por isso a colheita d'este anno que ahi
tinha, e a do anno que vem, e cem homens de maladia[73], que assim
perderam. Depois lançaram-na de modo que nada ficou. E derribaram da
torre o que poderam, e ao que não poderam deitaram fogo, o qual deu cabo
d'ella, de modo que não póde ser concertada, e para a fazer de novo nem
com mil e quinhentos maravedis. E quantos casaes tinha tantos lhe
queimaram, e de mais levaram-lhe um moiro alentado.»

«Saibam todos os que virem esta escriptura que eu Lourenço Fernandes não
fiz nem disse coisa, por onde houvesse de padecer tal destruição e
malfeitoria.»[74]

       *       *       *       *       *

VI--«Estas são as dividas que tem de pagar Pedro Martins d'appellido
Pimentel... Aos filhos de Durazia de Pardelhas tres libras de uma vaca
que lhe tomei. Além disso mando cinco maravedis velhos pela rapina que
fiz aos homens do castello de Vermuim,... Mando tambem oito libras ao
senhor arcebispo de Braga pela rapina que fiz na terra de Panoias; e aos
homens de Barró cinco libras, se acharem seus donos, senão deem-nas
pelas almas d'elles. Mais: em Morangáus cinco libras que roubei....
Mando além d'isso que, se apparecer alguem a quem eu deva ou tenha
roubado alguma coisa, se lhe faça e justiça e restituição.»[75]

       *       *       *       *       *

VII--«Os servos, homicidas, ou adulteros, que vierem morar na vossa
villa, sejam livres e ingénuos.»

«O morador da vossa villa, que matar homem estranho a ella, não pague
coisa alguma: e se o de fóra matar o da vossa villa, pague tresentos
soldos.»[76]

       *       *       *       *       *

VIII--No cêrco de Silves por D. Sancho I os sitiadores tinham aberto e
abandonado a mina:

«Aprouve ao rei continuar a mina; e com os seus....proseguiu outra vez
no trabalho com animo constante.»[77]

       *       *       *       *       *

IX--«Coutamos as casas em esta maneira, quer sejam d'homens nobres, quer
d'outros: convém a saber, que nenhum não seja ousado de matar, nem de
talhar membro, nem em nenhuma guisa de malfazer a seu inimigo em sua
casa. E outrosim não seja ousado de lh'a romper em nenhuma guisa.
Outrosim mandamos que nenhum do nosso reino não seja ousado que pelos
homizios sobredictos matem homens de seus inimigos, nem lhes cortem
membros, nem lhes façam mal em nenhuma guisa, senão áquelles que com
seus senhores ou por si lhe fazem mal ou deshonra.»[78]

       *       *       *       *       *

Estes extractos são os primeiros que me occorrem. Podia accrescentar
milhares d'outros similhantes. O que nos revelam elles, bem que
imperfeitissimamente? Que a sociedade dos seculos remotos era uma coisa
absolutamente diversa da actual. O que significam esses bispos e
presbyteros que se embriagam, que por embriaguez são sacrilegos, e cujo
castigos consiste em penitencias de dias ou de mezes; esse povo
selvagem, que combate dentro de templo, incendeia-o, e arrasta uma fraca
mulher pelas ruas espancando-a e rasgando-lhe as vestiduras, quando esta
mulher se chama a rainha de toda a Hespanha; esse rei cavalleiro que
commette contra sua espôsa brutaes violencias que hoje envergonhariam
qualquer homem honrado; esse clero que não acha entre si um individuo
digno de receber a dignidade episcopal, n'uma cidade romana convertida
em ruina, e que vai buscar um estrangeiro, no qual se tem por especial
virtude o não ser caçador ou jogador; esses cavalleiros e prelados, que
se affrontam mutuamente perante o supremo senhor do paiz, dentro da
egreja; esses villicos ou auctoridades administrativas, de origem
servil, que podem violentar damas nobres e ricas impunemente; esses
exercitos, que resolvem as questões politicas mais graves em recontros
singulares; esses capitães, que fazem pazes como a plébe termina as suas
brigas, comendo e bebendo junctos no campo de batalha; esses reis, que
se vingam por suas mãos, talando, roubando e queimando as propriedades
do seu inimigo pessoal, ou que trabalham no fundo das minas como simples
gastadores; esses salteadores, que morrem tranquillamente no seu leito
declarando-se ladrões cadimos; esses fóros, que convertem as povoações
em covís de homicidas e adulteros, dando aos seus moradores
gratuitamente o direito de assassinos, ao mesmo tempo que para os outros
põe uma taxa de sangue; essas leis emfim, que sanctificam o homicidio e
a mutilação, limitando-os a casos e individuos determinados? Qual é o
resumo d'estes poucos factos avulsos, colhidos ao acaso entre infindos
outros egualmente alheios ás idéas modernas de vida civil? É a
condemnação dos nossos livros de historia. Em nenhum d'elles se percebe,
ao menos de leve, por entre as averiguações de datas, por entre as
descripções de batalhas ou de triumphos, de noivados ou de saímentos de
grandes e senhores, que ao lado disso, e dando individualmente gesto e
côr a esses mesmos factos pessoaes, passaram gerações com costumes,
crenças e instituições diversas, ou antes oppostas em grande parte ás
nossas; que d'essa sociedade, d'esses homens, na successão da eras e da
natureza, veio a sociedade moderna, veio a geração actual; que para
existir a espantosa differença d'aspecto, que ha entre o presente e os
tempos primitivos, foram necessarias grandes revoluções na indole social
da nação. Todavia o grave e severo objecto da historia devera ter sido
principalmente este, se o estudo do passado não é uma vaidade inutil, um
commentario sem sabôr do livro das linhagens, que, de caminho seja
dicto, é muito mais historico que boa meia duzia d'escriptos dos nossos
historiadores[79].

Subsequentemente veremos quaes são as verdadeiras épochas da historia
portugueza, considerada a similhante luz, que é a unica importante, a
unica verdadeiramente historica.



*CARTA V*


Na carta antecedente fiz, segundo creio, sentir quão mesquinho e
incompleto era o systema seguido, quasi sem excepção, nos nossos
escriptos historicos. Mostrei como esses escriptos dão aso a
transfigurarmos o aspecto do passado, e como apenas servem para nos
transmittirem o conhecimento de uma das faces da historia, e ainda esse
muitas vezes errado ou incompleto. Do novo systema, que deve substituir
aquelle, fallarei depois, avaliando em abstracto um e outro. Para
seguir, porém, a ordem do que alli disse, restringir-me-hei agora a
algumas considerações geraes sobre as grandes epochas da nossa historia.
O caracter individual de cada uma d'ellas, e as differenças successivas
que de uma para outra vão apparecendo aos olhos de quem as estuda, só se
podem julgar e distinguir ao tracta-las especialmente. É o resultado
geral d'esse estudo; é a synthese dos muitos seculos, que para clareza
deve preceder a analyse de cada um d'elles.

Tenho fé que similhante analyse nos virá confirmar as considerações que
vou fazer, e que são, se não me engano, o resumo da philosophia da
historia nacional.

Que ponto na ordem dos tempos será aquelle em que devamos buscar os dias
de infancia d'este individuo moral, chamado nação portugueza, ou, por
outros termos, que rigorosamente significam o mesmo, onde é que
principia a historia de Portugal?

A resposta a esta pergunta, a ser verdadeira e exacta, involve em si a
rejeição de metade do que se tem escripto sob o titulo de historia
portugueza, e que o é tanto como os Annaes da China, ou o Cosmogonia de
Sanchoniaton. A nossa historia começa unicamente na primeira decada do
seculo XII; não porque os tempos historicos não remontem a uma epocha
muitissimo mais remota; mas porque antes d'essa data não existia a
sociedade portugueza, e as biographias dos individuos collectivos, bem
como as dos singulares, não podem começar além do seu berço.

No seculo XVI o renascimento invadiu a historia, como invadia tudo. As
sociedades modernas faziam visagens e momos de um ridiculo sublime, para
se mascararem á romana. Assim como os legistas substituiam as
instituições do imperio ás instituições da edade média; assim os
eruditos ajustavam as letras e as sciencias pelo typo classico de gregos
e romanos. Pensava-se pela cabeça d'Aristoteles, fallava-se pela lingua
de Varrão, historiava-se pela nórma de Tito Livio, e a picareta
vitruviana roçava os lavores poeticos dos templos e palacios da
architectura normando-arabe. Se Jupiter não expulsou Jesu-Christo dos
altares, milagre foi da Providencia: todavia que sabio do tempo de D.
Manuel ou de D. João III ousaria jurar á fé de Christão?
_Mehercule_!--diria elle, e dicto isto, teria mui eruditamente jurado.

No meio d'essa furia latinisante e grecisante como passaria Portugal,
este filho legitimo da edade média, baptizado em sangue d'infieis n'um
campo de batalha, sem o sancto chrisma da religião latina? Portugal era
uma palavra inharmonica, monstruosa, incrivel. Qual academia, qual
universidade quereria acceita-la no seu gremio? Nonio Marcello, se
vivesse, rejeita-la-hia com horror. Como dar uma desinencia latina pura
e suave ao nome brutal e feroz dos portuguezes? Os _portugallenses_ dos
velhos pergaminhos transudavam por todos os poros a barbaridade. Cicero,
se tal nome escutasse no senado, ficaria mudo e estupefacto no meio da
sua mais eloquente verrina. Tudo isto pezaram os sabios d'aquella
épocha, e depois de longo scismar acertaram com um alvitre maravilhoso
para se esquivarem á dura alternativa, em que se viam, de renegarem da
patria ou de offenderem os manes de Varrão e de Nonio. A erudição
salvou-os com o leve sacríficio da verdade e do senso commum.

Houve antigamente na Peninsula iberica uma tribu selvagem, conhecida
entre os romanos pelo nome de _Lusitani_, e o tracto da terra em que
vagueavam pelo de _Lusitania_. Este territorio abrangia parte do moderno
Portugal: nada mais foi preciso para nos rebaptizarmos na fonte
inexgotavel das euphonias do Lacio. No seculo XVI os eruditos teceram á
gente portugueza a sua arvore de geração. Quando a aristocracia
estrebuxava moribunda aos pés do throno dos reis, foi que a nação, por
beneficio dos sabedores, achou a sua origem nobilitada nos seculos pela
escura historia de um ou dois milheiros de celtas selvagens, que
estancearam outr'ora na Extremadura, na Beira, e pelo sertão da moderna
Hespanha ainda até além de Mérida[80].

D'aqui; do exaggerado amor da antiguidade, e da fatua pretensão que as
nações, bem como as familias, teem a uma larga serie de avós, nasceu, a
meu ver, a necessidade de ir começar a nossa historia nos mais remotos
limites dos tempos historicos; de ir destroncar das escassas memorias de
Carthago, dos annaes romanos, das chronicas dos barbaros do norte,
invasores das Hespanhas, fragmentos incompletos e inintelligiveis da
historia d'esses povos que passaram na Peninsula, e que no meio das suas
luctas d'exterminio, ou se aniquilaram uns aos outros, ou se confundiram
em uma raça mixta, que passados seculos de novo se transformou, no
cadinho eterno das revoluções humanas, em sociedades differentes, com as
quaes os habitantes modernos das Hespanhas teem apenas uma relação
imperfeita--a identidade de territorio. Foi por essa mania que nós,
habitantes de um canto da vasta provincia da Europa chamada Peninsula
hispanica, buscámios para avoengos uma das mil tribus barbaras, que a
habitaram nos tempos ante historicos, e que, confundidas todas por
invasões repetidas, aniquiladas em parte por guerras atrozes,
incorporadas na massa muito mais avultada de successivos conquistadores,
deixaram de existir completamente alguns seculos antes de Portugal
nascer. Mas que é essa imaginaria ascendencia senão um alentado
desproposito, que parece impossivel tenha sido acceito sem reflexão
ainda até os nossos dias?

De feito, não será necessario, para existir a unidade social de duas
raças remotissimas entre si, que alguns laços as unam, que algum titulo
de parentesco se dê entre ellas? Não será preciso que, no meio das
revoluções pelas quaes qualquer povo commummente passa no correr dos
tempos, fiquem sempre de uma geração para outra largos vestigios do seu
caracter primitivo, da sua lingua, dos seus costumes; que ao menos
subsista a identidade do territorio em que os dois povos habitaram? E
quando nada d'isto resta, com que fundamentos se dirá de um povo que
elle procede d'outro, do qual apenas achamos o obscuro nome sumido nas
largas e gloriosas paginas dos annaes das nações conquistadoras?


       *       *       *       *       *

Entre nós subsistem ainda grandes vestigios da dominação romana;
subsistem na lingua, subsistem até nos costumes populares: mais
evidentes são ainda os das raças germanicas; temo-los nas instituições,
nas leis, nas crenças moraes: o mesmo e mais podemos dizer dos arabes;
destes nos ficaram em boa parte os habitos e a linguagem domestica, o
systema d'agricultura, e emfim até as similhanças do gesto, e a
violencia das paixões e affectos. Mas que nos resta dos lusitanos? Do
pouco que ácerca d'elles sabemos pelos escriptores gregos e romanos, que
particularidade do seu character, da sua lingua, dos seus costumes, os
liga comnosco? Porque titulo são elles nossos avós?

Se o terem habitado em uma parte do nosso solo pode identifica-los
comnosco, e obrigar-nos a urdir a téa da nossa historia desde tão
apartados tempos, essa tèa tem de ser ainda mais vasta: cabe-nos tambem
historiar as escassas recordações das tribus barbaras que demoravam
pelas outras provincias da Hespanha--a Tarraconense e a Bética. Strabão
diz que antigamente a Lusitania começava, do poente, nas margens do
Tejo: fallae-nos, pois, das tribus da Bética, porque o Alemtejo e o
Algarve foram habitados por ellas. Ainda depois da divisão feita por
Augusto a parte da Gallecia antiga, que hoje fórma as provincias de
Tras-os-Montes e Minho, pertenceram á Trarraconense: escrevei por tanto
a sua historia. Escrevei a historia da Hespanha inteira, se quereis que
a identidade de territorio constitua unidade nacional entre duas raças
diversas.

Custa-nos assim maguar os curiosos de genealogias populares, os crentes
dos _autem genuit_ historicos; mas por obrigação temos fallar verdade. A
familia portugueza conta apenas seis seculos d'existencia: é plebea
entre as mais plebeas nações. Não receemos, porém, que o seu nome se
apague na memoria dos homens, se algum dia ella deixar d'existir: este
nome peão está escripto com a espada na face das cinco partes do mundo.
É como _Portuguezes_, não como lusitanos, que nós seremos para sempre
lembrados.

O que fica ponderado ácerca d'esta tribu primitiva é quasi inteiramente
applicavel ás differentes nações conquistadoras da Peninsula ibérica.
Carthaginezes, romanos, germanos, arabes, todos passaram na Hespanha;
todos n'ella deixaram ruinas de diversas sociedades, fragmentos de
diversas civilisações. D'essas ruinas e d'esses fragmentos se formou o
reino de Oviedo, Leão e Castella: d'este veio por linha transversal
(permitta-se-nos a expressão) a monarchia portugueza, e por linha recta
a monarchia hespanhola ou antes castelhana; porque hespanhoes tambem nós
somos. A Castella, como mais velha, como morgada, e como
incomparavelmente mais poderosa, pertencem esses tempos remotos. Sejam
seus: não lh'os invejamos. N'outro genero de gloria somos maiores do que
ella--na gloria de lhe havermos resistido sempre, pequenos e pobres; de
lhe havermos ensinado, a ella e ás outras grandes nações, o caminho das
conquistas e do poderio; na gloria finalmente de termos dado ao mundo os
mais subidos exemplos de quanto é forte uma nação pouquissimo numerosa,
quando crê na propria virtude e confia na protecção de Deus.

Ainda mal que memorias, e só memorias, são tudo o que d'essa gloria nos
resta!

É pois na separação de Portugal do reino leonez que a nossa historia
começa: tudo o que fica além d'esta data pertence, não a nós, mas á
Hespanha em geral: é essa a primeira balisa para a divisão das nossas
épochas.

       *       *       *       *       *

Em dois grandes cyclos me parece dividir-se naturalmente a historia
portugueza, cada um dos quaes abrange umas poucas de phases sociaes, ou
épochas: o primeiro é aquelle em que a nação se constitue; o segundo o
da sua rapida decadencia: o primeiro é o da edade média; o segundo o do
renascimento.

Limitar-me-hei n'estas cartas a fallar do primeiro cyclo, porque o julgo
o mais importante, ou antes o unico importante, se considerarmos a
historia como sciencia de applicação. Antes de dividir e characterisar
os seus differentes periodos, seja-me licito fazer algumas reflexões
geraes sobre ambos os cyclos. N'ellas estão os fundamentos da
importancia exclusiva que attribuo ao primeiro.

Habituados pela educação, e até por um estudo superficial e
irreflectido, a considerar o seculo decimo sexto como a verdadeira era
da grandeza nacional, parece-nos que o mais rico thesouro das nossas
recordações historicas está na pintura dos reinados brilhantes de D.
Manuel e D. João III, na maravilhosa narração das façanhas dos grandes
capitães d'aquelle tempo, e no espectaculo dos nossos descobrimentos e
conquistas do Oriente e da America, do engrandecimento do nosso
commercio, e do respeito e temor, que por isso nos catava o resto do
mundo--a nós, nação composta de um punhado de homens, mas homens como
nunca a terra vira; homens cujo braço era de ferro, cujo coração era de
fogo, que achavam seu remanso nos braços das procellas, seu folgar nas
batalhas de um contra cem, e que, na morte, buscavam para sudario em que
se involvessem ou as enxarcias e velas das náus voadas e mettidas a
pique, ou os pannos rotos de muros de castellos e fortalezas derrocadas;
homens que sogigaram os mares e fizeram emmudecer a terra; homens,
emfim, que saldaram completamente com o islamismo e com a Asia a
avultadissima divida de desar e affronta, que a Cruz e a Europa lhes
deviam desde os tempos em que as desventuras e revezes das Cruzadas se
completaram pela perda fatal de Constantinopola.

Mas, se a historia não é um passatempo vão; se, como toda a sciencia
humana, deve ter uma causa final objectiva, ao contrario da arte que por
si mesma é causa, meio, e fim da sua existencia; se no estudo da
historia patria cada povo vai buscar a razão dos seus costumes, a
sanctidade das suas instituições, os titulos dos seus direitos; se lá
vai buscar o conhecimento dos progressos da civilisação nacional, as
experiencias lentas e custosas, que seus avós fizeram, e com as quaes a
sociedade se educou para chegar de fragil infancia a virilidade robusta;
se d'essas experiencias, e dos exemplos domesticos, desejamos tirar
ensino e sabedoria para o presente e futuro; se na indole da sociedade
antiga queremos ir vigorar o sentimento da nacionalidade, que, por culpa
não sei se nossa se alheia, está esmorecido e quasi apagado entre nós;
não é por certo n'aquella brilhante épocha que havemos d'encontrar esses
importantes resultados do estudo da historia; porque a virilidade moral
da nação portugueza completou-se nos fins do seculo XV, e a sua velhice,
a sua decadencia como corpo social, devia começar immediatamente.

Arriscadas parecerão talvez estas opiniões; mas, se não me engano, o
exame dos factos nos ha-de conduzir á demonstração d'ellas.

As nações são em muitas coisas similhantes aos individuos: facil fôra
instituir, não poeticamente, mas como todo o rigor philosophico, muitas
analogias entre a sociedade e o homem physico. No individuo, cuja
organisação é viciosa ou incompleta, a edade viril passa rapida, e quasi
sem intermissão se decae da mocidade para o pender da velhice: é esta
uma verdade physiologica. Dae a qualquer sociedade uma organisação
incompleta, errada, ou sequer extemporanea; torcei-lhe as tendencias do
seu modo de existir primitivo; vergae os elementos sociaes, concordes
com esse modo de existir, a uma formula politica em parte diversa; e
ficae certos de que esse vicio de constituição não tardará em produzir
seu fructo de morte. A razão, bem como a experiencia dos seculos, dá
pleno testimunho d'esta verdade. Resta saber se ella é applicavel ao
nosso objecto.

Nós veremos, para deante, como atravez da meia edade, principalmente no
seculo XV, o elemento monarchico foi gradualmente annullando os
elementos aristocratico e democratico, ou, para fallar com mais
propriedade, os elementos feudal e municipal, annullando-os não como
existencias sociaes, mas como forças politicas. Veremos este pensamento,
ou antes instincto da monarchia, revelado em um grande numero de factos,
mas resumidos em quatro que me parecem capitaes--o estabelecimento dos
juizes letrados--as contribuições geraes substituidas ás contribuições
de foral como systema de fazenda publica--a promulgação da lei mental--e
as resoluções das côrtes de 1482, principalmente as relativas a
jurisdicções. É depois d'estas côrtes que o principio monarchico se
torna unica força politica, que a unidade absoluta se characterisa
rigorosamente e, sem aniquilar as classes sociaes, as dobra, subjuga e
priva de acção publica. Servas, ellas se corrompem rapidamente; a
gangrena eiva por fim o proprio throno; e em menos de um seculo na nação
portugueza desapparece debaixo das ruinas da sua nacionalidade e
independencia.

Mas esses homens extraordinarios, que avultam no seculo decimo sexto?
Mas esses incansaveis ceifadores de cidades e reinos, que assombraram o
mundo? Mas a actividade incrivel d'aquella épocha? Mas o poderio, a
opulencia, a gloria de D. Manuel e de D. João III? Não era a unidade
absoluta da monarchia a creadora de tantas maravilhas? Não pertenciam os
portuguezes d'então a essas classes, que degeneravam e se corrompiam por
falta de vida politica? Não era com as instituições primitivas
annulladas e mortas que se obravam tantos milagres de valor, de virtude
e de patriotismo?

Estas perguntas, que examinadas superficialmente parecem destruir a
these que estabeleci, occorrem naturalmente; e todavia pouca reflexão
basta para vermos que não teem grande valor, emquanto subsequentes
averiguações nol-as não demostram de nenhum momento. Se quizermos
attender á data, em que os primeiros symptomas palpaveis e definidos da
decadencia do nosso poder e gloria começam a apparecer claramente,
ver-nos-hemos forçados a confessar um facto, que de algum modo responde
a todas essas perguntas.--A geração, a quem verdadeiramente pertence
tanta gloria, foi educada pelo seculo anterior. Os grandes homens do
reinado de D. Manuel tinham conhecido o nosso ultimo rei cavalleiro;
tinham sido educados na épocha da robustez moral da nação. O seculo
decimo sexto nada mais fez que aproveitar a herança da edade média.

As phases da vida dos povos são incomparavelmente mais lentas que as da
vida humana: n'esta á edade viril segue-se a edade grave, á edade grave
a velhice, á velhice a decrepidez, á decrepidez a morte; e essas
mudanças demandam ás vezes meio seculo. Foi o que bastou ás glorias de
Portugal para descerem do apogéu ao occaso. Para ellas chegarem á
sepultura em 1580, não devia ter a nação declinado, ao menos moralmente,
desde D. Manuel?

       *       *       *       *       *

Reflictâmos nos derradeiros momentos de quatro famosos capitães
portuguezes, que viveram em diversas épochas. N'essas quatro horas de
agonia me parece ver um symbolo do periodo que abrange a virilidade,
edade grave, velhice, e decrepidez da nação portugueza. Este symbolo
resume, se não me engano, a historia da transformação moral d'esse
periodo.

Em 1449 o conde d'Abranches, Alvaro Vaz d'Almada, expira em
Alfarrobeira, rodeado de cadaveres e cançado de derribar seus
contrarios, defendendo a honra e innocencia do grande infante D. Pedro;
porque, cavalleiro, cria na virtude d'outro cavalleiro, do seu amigo, a
quem antes da batalha, cujo exito d'antemão ambos sabiam, jurára sobre a
hostia consagrada não sobreviver.

Em 1515 Affonso d'Albuquerque, o maior capitão do mundo, afóra Cesar e
Bonaparte, depois de estampar as quinas como em signal de servidão na
fronte da Asia, e de obter dos infieis o nome de leão dos mares, morre
de desgosto, por ver turbada contra si a face do monarcha; morre, crendo
que um enrêdo mesquinho de cortezãos póde offuscar a sua gloria, que
allumia a terra; morre, porque se desconhecem seus serviços.

Em 1548 D. João de Castro acaba jurando que não roubara um cruzado á
fazenda publica, nem acceitara uma só peita para torcer a justiça. Era
necessario o juramento do moribundo para que passasse pura á posteridade
a memoria de um homem honesto.

Em 1579 D. João Mascarenhas, coberto de cãs e farto de recompensas,
calca aos pés a corôa de loiros que obtivera em Diu, e como o mais vil
usurario estende da Borba do sepulchro a mão descarnada para receber de
Castella o preço, por que vendera a patria; e expira, se não cheio de
remorsos, ao menos rico de oiro e ignominia.

Em 1580 a independencia de Portugal não existia: e o Diabo do Meio-dia,
por me servir da frisante denominação dada por Sixto 5.^o a Philippe II,
reinava em todas as Hespanhas.

As differentes circumstancias companheiras da hora extrema de quatro
homens eminentes, d'essa hora em que o espirito se mostra nú aos olhos
da posteridade, revelam o seu estado moral e as suas convicções, e
n'elle e n'ellas o estado moral e as convicções da geração a que
pertenceram. No primeiro ha uma individualidade vigorosa, que tem fé na
propria virtude e no testimunho da consciencia. No segundo ha ainda a
virtude, mas não ha a consciencia d'ella; substituiu-a o juizo do
monarcha: a gloria crê precisar da confirmação dos cortezãos; crê
precisar de um diploma que a legalise. No terceiro ha tambem virtude,
mas já como que duvidosa de si; a individualidade desappareceu
completamente; o homem nobre e virtuoso crê que o seu nome se hade
submergir na corrupção geral que o cerca, e ergue-se no seu leito de
agonia para bradar aos vindoiros: «juro-vos que fui honesto.» No quarto,
emfim, a gloria prostitue-se á traição; a nacionalidade é levada ao
mercado das ambições de estrangeiros; um homem illustre cospe na face da
patria, expira contando os saccos de oiro que lhe valeu sua perfidia, e
a nação dissolve-se como um cadaver gangrenado.

Eis aqui porque eu considero todo o seculo decimo-sexto como um seculo
de decadencia. O viço da arvore dura algum tempo depois de se lhe haver
entranhado o gusano no âmago do tronco; porque as folhas nasceram e
crearam-se quando a seiva ainda era pura. É após isso que as folhas
amarellecem e caem; os ramos engelham e torcem-se; o tronco secca e
apodrece. Então passa o sôpro das tempestades, e a arvore desaba em
terra.

Mas, dirá alguem, todos esses factos, que constituem o facto complexo da
decadencia, foram acasos; foram decretos do destino. Explicação
insensata! As palavras _acaso_ e _destino_ são apenas desculpas vãs, a
que os entendimentos tardos se acoitam para se esquivarem á indagação
das causas dos phenomenos historicos. Os acontecimentos que caracterisam
a generalidade de uma épocha, e que reunidos constituem a synthese
d'ella, teem sempre origem na indole intima da sociedade, na natureza da
sua organisação. Se houve uma grande mudança na existencia politica de
um povo, o caracter da geração que foi educada pelas antigas
instituições e antigos costumes, e que assistiu a essa transformação,
poderá ser modificado por ella, mas conservará sempre os principaes
lineamentos que lhe imprimiram as formulas sociaes que passaram. São os
homens que vem depois os que traduzem em obras as novas formulas, e é
pela analyse d'essas obras que a revolução deve ser julgada; porque só
então os factos são exclusivamente gerados por ella.

Applicando estes principios á transformação preparada durante a edade
média, e concluida pelo duro coração e robusta intelligencia de D. João
II, acharemos facilmente a solução d'esse mysterio da força e esplendor
do reinado subsequente, e da rapidez quasi incrivel com que tudo isso se
abysmou em pouco mais de sessenta annos. Virá um dia em que, indagando o
estado social do seculo XV, achemos ahi as causas dos successos do
primeiro quartel do decimo sexto; das prosperidades e glorias do reinado
de D. Manuel.

       *       *       *       *       *

Bem que rapidamente, tenho procurado fazer conhecer quaes sejam os
fundamentos da these que estabeleci--de que a decadencia da nação
portugueza, começando apparentemente nos ultimos annos do reinado de D.
João III, principia essencialmente nos primeiros do reinado antecedente,
ou, com mais rigorosa data, nas côrtes d'Evora de 1482. Para vermos como
debaixo da grandeza e brilho exterior d'esses dois reinados ia já
lavrando a dissolução social, seria necessario saír do cyclo a que me
pareceu deverem limitar-se estas cartas, isto é, do que propriamente se
póde chamar edade média portugueza.

Nas considerações que fiz, n'esta rapida e necessaria digressão sobre o
verdadeiro character do seculo decimo sexto, está, mais que no respeito
á chronologia, a razão para havermos de preferir o estudo da edade média
ao do seculo das nossas glorias. No estudo da épocha vulgarmente chamada
do renascimento, nome que talvez só por antiphrase ou cruel escarneo lhe
conviria, fôra preciso fechar os olhos ao brilho de apparentes
grandezas, e allumiar com o facho da historia o corpo enfermo da
sociedade portugueza, que apressava a sua hora de morrer com a febre das
conquistas. Seria necessario vê-lo desmaiar e definhar-se esmagado
debaixo do pêso da sua grandeza, e depois descer ao sepulchro carcomido
pelo cancro da propria corrupção moral. Mais um motivo pessoal é esse
para nos esquecermos d'elle. Para fartar de amargurar os corações que
amam a terra da patria, não é necessaria a historia; sobra-nos a vida
presente.

Mas a razão capital da preferencia, que devemos dar ao estudo da edade
media, está no que ha pouco ponderei ácerca dos fins objectivos da
historia. Nem descobrimentos, nem conquistas, nem commercios
estabelecidos pelo privilegio da espada, nem o luxo e magestade de um
imperio immenso, nos podem ensinar hoje a sabedoria social. Os
instinctos maravilhosos de uma nação que tende a constituir-se; as
luctas dos diversos elementos politicos; as causas e effeitos do
predominio e abatimento das differentes classes da sociedade; os vicios
das instituições incompletas e incertas, que obrigaram não só nossos
avós, mas toda a Europa, a deixar o progresso natural e logico da
civilisação moderna para se lançar na imitação necessaria, mas bastarda,
da civilisação antiga; a existencia emfim intellectual, moral, e
material da edade media é que póde dar proveitosas lições á sociedade
presente, com a qual tem muitas e mui completas analogias.

Abstraiâmos, com effeito, da enorme distancia de civilisação que nos
separa d'esses tempos; abstraiâmos da quasi constante antinomia entre a
vida civil da edade media e a vida civil actual, e consideremol-as ambas
unicamente nas suas tendencias politicas. Dizei-me: não ha uma parecença
notavel entre tão afastadas épochas? Imaginae um periodo da historia do
genero humano, em que os diversos principios de governo se combatessem
sem cessar, buscando enfraquecer-se mutuamente, equilibrando-se por
algum tempo, vencendo-se por fim uns aos outros, e achando brevemente na
victoria a propria ruina. Imaginae um periodo, em que as crenças
politicas fossem convertidas em odios implacaveis, herdados muitas vezes
de paes a filhos; em que as garantias sociaes estivessem muitas vezes
nas leis e faltassem quasi sempre nos factos; em que cada uma das
classes accusasse as outras de oppressoras, iniquas, violentas, quando
subjugada, e fosse iniqua, oppressora, e violenta apenas obtivesse o
poder; em que a espada do homem de guerra resolvesse frequentemente os
problemas politicos, e em que ao mesmo tempo a superioridade
intellectual do individuo tivesse commummente mais acção nas phases da
sociedade que a auctoridade publica; em que se junctassem no mesmo povo,
na mesma classe, e até no mesmo homem, os extremos de nobres affectos e
da corrupção e maldade mais torpes. Imaginae um periodo com estes
caracteres, e buscae-o depois na historia. Onde é que o encontrae? Na
edade media. Mudae agora uma palavra; chamae ás classes partidos--e essa
mudança será apenas de nome, porque os partidos representam os
interesses diversos das diversas classes--e dizei-nos a que épocha vos
parece quadrarem taes caracteres? Indubitavelmente á nossa. Porque taes
coincidencias em tempos distantes? Examinel-o; que em similhante exame
acharemos mais um motivo para estudarmos com preferencia os quatro
primeiros seculos da sociedade portugueza.

A edade media foi o largo e custoso lavor da Europa para transformar a
unidade do imperio romano na individualidade dos povos modernos. A
organisação do imperio era essencialmente falsa e absurda; as suas
partes eram heterogeneas. Se assim não fosse, a furia dos barbaros
septemtrionaes, ou se teria quebrado embatendo nas fronteiras, ou apenas
teria trazido ao seu seio o mesmo que as invasões dos tartaros na
China--apenas revoluções dynasticas. Se a alluvião d'homens do norte não
desmembrasse o imperio romano, desmembrar-se-hia elle por si. Mais tarde
ou mais cedo as raças diversas que o compunham, sem o constituirem, se
haviam de separar, e reconstituir-se na sua individualidade, se as
tribus septemtrionaes não viessem substituir a acção vigorosa e rapida
da conquista á acção branda e lenta do tempo. O restabelecimento da
variedade sobre as ruinas da unidade absoluta é o grande principio que a
meu ver a edade media representa: esse principio está impresso na maior
parte das fórmas sociaes, nas instituições, na separação dos idiomas, e
até na litteratura. Por dez seculos a Europa, que fôra romana, não fez
mais de que agitar-se á roda d'este principio. Da profunda ignorancia em
que, como era natural, ella caiu ao expirar da civilisação antiga,
nasceu a sua impotencia para o fazer predominar duravelmente nos varios
aspectos da vida das nações: mas as nações ficaram. As diversas
nacionalidades, separadas por caracteres profundamente distinctos, foram
o unico resultado importante de mil annos de luctas, de revoluções,
d'incertezas. Foi só isto que o renascimento não soube nem pôde
condemnar como abusão e mentira.

O renascimento não foi unicamente uma rehabilitação do pensar romano na
arte e na sciencia: foi a restauração completa da unidade como principio
dominador e exclusivo, salva a distincção das nacionalidades, que ficou
subsistindo. Cada povo converteu-se, não sei se diga n'uma imagem, se
n'um arremedilho ou farça do imperio. Faltou um Cesar, ou para melhor
dizer appareceu em cada paiz o seu--D. João II em Portugal, Isabel em
Hespanha, Luiz XI em França, Henrique VII em Inglaterra, Maximiliano na
Allemanha. Era que em cada um d'estes paizes as instituições nacionaes
tinham cedido o campo ás Institutas e Pandectas.

O que são as revoluções politicas do nosso tempo? São um protesto contra
o renascimento; uma rejeição da unidade absoluta; uma renovação das
tentativas para organizar a variedade. Hoje os povos da Europa atam o
fio partido das suas tradições da infancia e da mocidade. O seculo XIX é
o undecimo do que exclusivamente se póde chamar socialismo moderno. Os
tres que o precederam foram uma especie d'hybernação em que o progresso
humano esteve, não suspenso, mas latente e concentrado nas
intelligencias que iam accumulando forças para o traduzir em realidades
sociaes. Eis d'onde procedem as analogias dos seculos chamados barbaros
com a épocha em que vivemos.

Esta interrupção das fórmas exteriores da vida politica moderna foi,
absolutamente fallando, um mal ou foi um bem? Não o sei; mas sei que foi
uma necessidade. A lucta continua em que viviam as classes para defender
ou dar o predominio aos respectivos interesses; a desegualdade de forças
entre os elementos politicos; a barbaria moral, que sabe misturar muitas
e grandes virtudes com a corrupção dos costumes, principalmente
domesticos; a falta d'ordem publica e de melhoramentos materiaes, pelo
imcompleto da administração geral, que devia regular e supprir a curta
acção das administrações municipaes; a ignorancia extrema, que reinava
por toda a parte, na fidalguia por systema, no clero por depravação e
fanatismo, no povo pela carencia absoluta d'educação; tudo isto tornava
necessaria a acção da monarchia pura. Era preciso que as nações se
habilitassem, no tirocinio da oppressão, para a liberdade; que os
elementos sociaes se descriminassem e repousassem; que a
intellectualidade se desenvolvesse; que, emfim, as diversas
nacionalidades existissem _em si_, como existiam _entre si_.

Porque cumpre confessar que, se o absolutismo pesou duramente na Europa,
tambem facilitou de um modo admiravel a ligação e harmonia do corpo
social. A edade media dividira por limites quasi indestructiveis as
differentes nacionalidades; fizera-as, como disse, existir entre si: o
principio caracteristico do socialismo moderno--a variedade--tinha sido
n'esta parte, senão um pensamento, ao menos um instincto imperioso,
definido, claro e activo; mas a nacionalidade, repito, não existia em si
ou para si. A variedade ia até o individualismo, isto é, separava ou
antes fazia inimigas as classes, as hierarchias, as povoações do mesmo
paiz, os individuos da mesma povoação; e d'este modo aquelle principio,
que estremára os povos, tendia a annullar a propria obra, levando ao
excesso a sua intolerancia contra o principio opposto.

Quando, algum dia, chegarmos ao exame do estado da sociedade portugueza
na epocha wisigothico-feudal, que abrange o periodo decorrido desde o
conde Henrique até D. Affonso III, em que a influencia das instituições
romanas mal despontava, acharemos a prova d'esta verdade: veremos,
digamos assim, a raiva da divisibilidade; vel-a-hemos não parar nas
divisões das classes, antes retalhar cada uma d'estas em variadas
hierarchias. Mais: veremos a desunião, ou para melhor dizer, a guerra
posta de permeio entre municipio e municipio, e legalisada politicamente
nos foraes, civilmente nos costumes ou leis tradicionaes; vel-a-hemos
entre os mesmos burguezes, de familia para familia, de homem para homem:
vel-a-hemos de geira de terra para geira de terra, da behetria para o
senhorio, do couto para a honra, da terra da corôa para o reguengo; em
todos os logares e por todos os modos. E qual era a fórmula material,
que exprimia esta divisibilidade quasi infinita? O privilegio. O
privilegio era uma especie d'escada de Jacob; tinha degràus
innumeraveis. A maior parte consistia em alguns direitos de liberdade
para o que a elles subira; muitos em direito de opprimir os pequenos; e
todos em representarem uma idéa falsa, isto é, que a abjecção extrema
era a regra geral, e que todas as vantagens sociaes vinham por excepção.
Felizmente a regra geral dava-se em um numero d'individuos menor que a
excepção; e o privilegio, tomando esta palavra na accepção que hoje
se-lhe-liga, vinha por essa facto a perder completamente a sua natureza
excepcional.

Todos os seculos teem ufanias vãs e infundadas: uma das do nosso, que
pertence a esta especie, é a de havermos sido inexoraveis liveladores de
direitos e condições. Enganamo-nos. Mil vezes mais que nós o foi o
grande principio de unidade politica chamado monarchia absoluta. Nós
aniquilámos alguns privilegios, que elle conservára, porque eram mais
d'apparato que de substancia: nós derribámos meia duzia de tripodes,
onde alguns vangloriosos se empoleiravam, porque, pobres tacanhos,
precisavam d'isso para que os víssemos. A monarchia derribou gigantes;
partiu em pedaços miudos a escada immensa do privilegio. Verdade é que
metade d'esses privilegios eram foros de liberdade, que pertencem a
todos os homens; mas, como já disse, a edade media lhe ensinára que a
servidão mais abjecta só deixava d'existir por privilegio, e a monarchia
não podia assim esquecer tão repetida lição.

Não consente o bom methodo que antecipe aqui o desenvolvimento das idéas
que em resumo tenho apontado; por isso limitar-me-hei a só mais uma
observação. O principio da liberdade pertence incontestavelmente á edade
media, porque, se não me engano, a liberdade não é mais que a
facilitação da variedade nos actos humanos, e a variedade é, como tenho
repetido, o caracter essencial d'essa épocha. O principio da egualdade
dos direitos e deveres fêl-o porém surgir, e converteu-o em facto geral,
o predominio da monarchia. Esta condição social, que nos parece hoje tão
inconcussa, tão obvia, não poderia subsistir na épocha da completa
desegualdade. Era necessaria a existencia d'uma entidade politica que,
estando acima de toda a sociedade, tendesse constantemente a nivelar,
pelo menos em relação a si, as outras entidades, e que finalmente o
alcançasse. Era preciso que a opinião do poder divino dos reis chegasse
a sanctificar-se com a decisiva victoria do elemento monarchico, para a
egualdade civil se comprehender. As idéas actuaes a este respeito são
apenas a conclusão inteira de certos postulados, dos quaes a monarchia
tirára principalmente as consequencias relativas a si.

Obrigado, pelo empenho que tomei de mostrar a importancia do grande
cyclo historico chamado edade media, a fazer sentir que o posterior a
elle foi um periodo de decadencia, e por isso forçado a representar em
parte os males sociaes produzidos pela monarchia absoluta, era
necessario que mencionasse egualmente os factos que abonam o seu
triumpho. Pesar uns e outros, e comparal-os pela totalidade dos seus
resultados, careceria d'averiguações que não tenho feito, e de um grau
de perspicacia que provavelmente não possuo. Foi por isso que já
confessei ignorava se esse grande acontecimento tinha sido um mal ou um
bem, contentando-me com saber que havia sido uma necessidade. As
considerações que fiz me parecem indical-o sufficientemente. No
proseguimento d'estas cartas espero que achemos provas completas d'estas
simples indicações.

Um reparo se póde fazer ainda ácerca da idéa fundamental sobre que tenho
procurado fixar a attenção do leitor, isto é, sobre a conveniencia de se
estudar exclusivamente, ou pelo menos com preferencia, a historia da
edade media, se do estudo da historia queremos tirar applicações para a
vida presente. Este escrupulo, analogo ao que resulta da grandeza
apparente do seculo decimo sexto, e da acção vigorosa da unidade
absoluta predominando exclusivamente na organisação politica d'essa
épocha, resolve-se por um modo tambem analogo áquelle de que me servi
para resolver o primeiro.

Se a monarchia absoluta como elemento politico trouxe reformas
necessarias; se é verdade que lhe devemos principalmente o haver dado
nexo a este corpo moral chamado nação, o ter feito nascer e progredir
até certo ponto a egualdade civil e a centralisação administrativa; será
por ventura escusado o conhecimento da sua influencia na organisação
social? Não deverá esse conhecimento ser mais profundo e exacto, se o
buscarmos na épocha em que a acção politica da monarchia era unica, e em
que todas as resistencias dos outros elementos tinham desapparecido, ou
estavam subjugadas pela preponderancia illimitada da corôa? E não é ao
seculo decimo sexto e aos dous seguintes que pertence este grande facto?

Eis-aqui, pois, ainda outra difficuldade, que se póde oppôr á minha
theoria; difficuldade que apresentei com toda a força de que é
susceptivel. Esta força, porém, achal-a-hemos só apparente, se quizermos
attender ao verdadeiro modo de considerar a questão de que hoje nos
occupamos.

O elemento monarchico não surgiu repentinamente nos fins do seculo XV.
Quem não o sabe? Nos acontecimentos humanos tudo vem successivamente;
cada facto é um annel da cadeia eterna das causas e effeitos. O
principio da unidade nunca deixou d'existir; porque os mesmos povos que
destruiram o imperio absoluto, o despotismo dos Cesares, e retalharam o
orbe romano, traziam comsigo nos capitães das hostes guerreiras, nos
cabeças das tribus barbaras da Germania, esse elemento, esse principio.
Depois dos graves e profundos trabalhos historicos de Agostinho Thierry
quasi ninguem ignora qual era o valor politico dos Xeques e Caciques dos
antigos selvagens da Europa; o que eram os Alariks, Hlodewigs, e
Theoderiks, que os escriptores dos tres ultimos seculos poliram e
enfeitaram com os titulos pomposos de principes e monarchas. Mas a sua
existencia, e a especie de supremacia, de que a eleição ou a propria
superioridade physica e intellectual os revestia, é incontestavel. Elles
não eram reis; os barbaros não lhes davam um nome que correspondesse á
idéa que este titulo representa; mas os habitantes das provincias
romanas, que elles conquistavam, lh'o deram. Isto mostraria, se d'isso
não houvesse outras provas, que suas attribuições de algum modo se
approximavam da idéa a que entre os povos civilisados do imperio tal
expressão cabia. Tomada até certo ponto a barbaria dos vencedores pela
policia dos vencidos, estes reis na lingua romana, foram-no, mais ou
menos completamente, na realidade dos factos. As monarchias modernas lá
vão achar sua origem.

Atravez de toda a edade media, em que o christianismo, conjurado n'essa
parte com os costumes dos barbaros, bradava independencia e liberdade á
corrupta civilisação antiga, esta lhe respondia com o brado de ordem e
paz. Trinta gerações vacilharam entre estes dous gritos, que ambos
soavam nos corações; porque ambos representavam as primeiras precisões
sociaes. Por fim os povos, cansados do vacillar de mil annos, cairam,
como era natural, aos pés da paz e da ordem. As necessidades, para as
quaes offerecia remedio a civilisação romana, tinham-se tornado mais
fortes no meio de tantas luctas para as unir com as que nasciam da
civilisação do evangelho e do instincto da natureza. A monarchia
mostrára sempre, no meio d'essas largas e trabalhosas tempestades
humanas, que era a herdeira das tradições do imperio; a unidade do poder
provára por muitas vezes que ella só possuia o segredo da paz e da ordem
publica. D'ahi veio o seu inevitavel triumpho.

No estudo da edade media portugueza acharemos uma prova incontestavel
d'estas observações. Veremos a lei civil geral substituida gradualmente
á lei civil local; o systema de fazenda dos tributos geraes substituido
ao irregular das contribuições de foral; a administração do estado
nascer sobre as ruinas das administrações do municipio e do senhorio
quasi feudal, tudo por influencia da corôa; e veremos tambem d'essas
causas, e d'outras analogas a ella, resultar a ordem e a organisação do
nosso paiz.

É ahi que nós podêmos comprehender o elemento monarchico; é ahi que a
sua acção apparece energica, civilisadora, progressiva; é ahi que elle
disputa o predominio aos outros elementos, e que se faz popular
annullando-os. Obtido o triumpho, assemelha-se a todos os vencedores:
degenera e corrompe-se nos ocios da victoria; sáe das raias de
organisador, e converte-se em oppressão. Nem d'outro modo podia
acontecer: elle representava unicamente a ordem e a paz, e os elementos
d'onde podia nascer a independencia e a liberdade tinham sido
completamente esmagados ou constrangidos ao silencio.

Assim, no fim do seculo XV ha verdadeiramente um ponto de intersecção na
vida da monarchia: a actividade que ella estava habituada a empregar nos
seus rijos combates com a aristocracia, e em buscar a alliança da
democracia para a fazer suicidar ao passo que d'ella se ajudava para
vencer o privilegio; essa actividade, digo, espraia-se nos
descobrimentos e conquistas, porque não tem já objecto nas fórmulas
sociaes: n'estas a sua acção benefica cessa porque está completa, e
principia a sua acção deleteria; no logar da ordem põe a servidão; em
vez do repouso da paz produz a quietação do temor; á moralidade
substitue a corrupção dos costumes. Pervertida a indole nacional,
enfraquecida a energia interior do povo, o poderio exterior começa a
desmoronar-se logo: o primeiro symptoma de morte claro e indubitavel
apparece no desamparar as praças d'Africa em tempo de D. João III. O
ultimo arranco da nação não tarda: é o estertor dos moribundos nos
campos de Alcacer-Kebir.

Eis de que modo a propria monarchia, considerada como principio social,
como elemento de civilisação, se deve com preferencia estudar na épocha
em que se preparava, mas ainda não existia, o seu predominio absoluto.
Eis-nos assim outra vez encerrados no cyclo da edade media, do qual
parecia que ella nos obrigaria a sair.



RESPOSTA ÁS CENSURAS

DE

VILHENA SALDANHA


1846



Ajuda, 8 de Abril de 1846.


Ill.^{mo} sr. redactor da _Revista Universal_.--São bem poucas as
publicações periodicas que tenho occasião de ver: entre estas poucas uma
é a que v. s.^a tão dignamente redige. Recebendo hoje o num. 41, n'elle
encontro um artigo que diz respeito a um livro recentemente publicado
por mim, o primeiro volume da _Historia de Portugal_. Na breve
advertencia que precede aquelle trabalho deixei estampadas as minhas
previsões sobre a resistencia que em muitos espiritos haviam de
encontrar as opiniões que n'elle segui. Era naturalissima essa
resistencia, e eu seria demasiado imprudente se esperasse que não
apparecessem adversarios para as combater; mas a tenção que desde logo
formei foi a de não replicar, ao menos por agora. Lembrava-me (se é
licito buscar para as cousas pequenas grandes exemplos) a sorte da
_Historia critica de Hespanha_, de Masdeu, que não passou dos fins do
seculo XI, porque o illustre historiador consumiu os ultimos annos da
vida em satisfazer cabalmente aos reparos e criticas que de toda a parte
choviam contra aquelle grandioso monumento da litteratura castelhana. O
artigo do seu jornal me fez, todavia, reflectir de novo no concebido
proposito. Occorreu-me o receio (e havia motivos para me occorrer) de
que o silencio se me lançasse á conta de uma orgulhosa e ridicula crença
na propria impeccabilidade litteraria, e de que os auctores d'esses
escriptos se persuadissem de que eu menoscabava os seus louvaveis
esforços em refutarem aquillo que lhes parecera um erro, e que talvez o
é. Longe de mim tal pensamento. Não pretendi nem pretendo escrever a
melhor historia de Portugal possivel; mas tenho a consciencia de que o
meu trabalho é o mais sincero e despreoccupado que n'este genero se fez
ainda entre nós; tenho a consciencia de haver buscado a verdade com todo
o empenho que em mim cabia. Este louvor, quer m'o concedam, quer m'o
neguem, sei que o mereço. Quanto a erros, facil é que n'elles cahisse.
Os que impugnam lealmente as doutrinas, que julgam ser inexactas, na
arena onde essas materias se tractam e perante o supremo juiz, o
publico, esses merecem respeito e não despreso. O despreso pertence aos
bufarinheiros litterarios, aos criticos de soaleiro e incruzilhada, que
discreteam nas tertulias de ignorantes, porque teem medo de confiar á
imprensa aquillo que poderia servir-lhes de corpo de delicto e de
instrumento de castigo. O despreso é para aquelles que, tendo vivido
sempre d'uma reputação immerecida, só sabem explicar a obra da
intelligencia e do amor da verdade por motivos abjectos e torpes.
Pertence-lhes o despreso: não o nego; mas ainda assim não posso dar-lhes
o que é seu. Prohibe-m'o o coração. Destes desgraçados tenho dó; dó como
Dante o tinha das sombras empégadas no Malebolge. Sinto unicamente que a
sinceridade me não consinta dizer-lhes com o fero ghibelino:

«Giá t'ho veduto coi capelli asciuti.»

A razão por que hei-de abster-me de responder por emquanto aos que me
combatem ou combaterem, é porque, fazendo-o, satisfaria o meu amor
proprio; não o fazendo, cumpro o meu dever. Annunciei a publicação
annual de um volume da Historia Portugueza: é uma obrigação que contrahi
para com muitos centenares de maus cidadãos, como eu, que não se
escandalisam da _falta de patriotismo_ que reina no mal aventurado
livro. Se não quizer faltar ao empenho que tomei, cumpre-me não consumir
o tempo, que tão rapido foge, em debater as objecções da critica. Hei-de
estudar todas as que se estribarem em argumentos e provas serias; hei-de
aproveital-as quando me convencer de que sou eu que não tenho razão. Mas
pretenderem que abandone a prosecução do trabalho principal para voltar
atraz, e discutir de novo vinte vezes aquillo que só escrevi depois de
larga discussão comigo mesmo, seria pretenderem o impossivel. Se nunca
se me offerecer ensejo para dissolver as duvidas que se me opposerem, ou
se as não apreciar bem, ou se, emfim, ellas forem concludentes, outros
virão depois de mim, que por esses marcos levantados no terreno da
historia possam evitar os fojos em que eu tiver caído. Quando mais
nenhum serviço houvera feito ás lettras patrias, ao menos deve-se-me ter
sido a causa de que mãos mais robustas que as minhas levantem esses
padrões á sciencia, e contribuam assim para a gloria litteraria do nosso
paiz.

Apesar, porém, da necessidade que tenho de guardar silencio em defesa
propria, não posso acabar comigo que cerre aqui o discurso. Ha tanta
cortezia no artigo do seu collaborador, que seria talvez pouco decente o
recusar comparecer no tribunal aonde me cita. Ha juizes por quem o reu
condemnado conserva respeito: ha outros que elle detesta ainda depois de
absolvido. N'aquelles a nobreza do animo e a honestidade de proceder
explicam o phenomeno; n'estes explicam-no a rudeza do entendimento e a
brutalidade ou injustiça nas fórmas. Pertence ao numero dos primeiros o
nobre censor a quem me refiro; por isso assentar-me-hei por algum tempo
no banco dos criminosos para lhe responder.

Duas ponderações graves ha no artigo, a que alludo, contra o meu livro:
ponderações que a serem exactas importariam a accusação merecida de
haver eu defraudado a nação da sua arvore genealogica, e d'um dos mais
importantes feitos d'armas--a conquista da cidade que veio a ser a
capital da monarchia. Culpa da vontade ou culpa da intelligencia; fosse
o que fosse, o livro era condemnavel. Puz a doutrina, e acceito-a em
todo o rigor para mim: mas o que não acceito, sem que o digno auctor do
artigo do seu jornal as reconsidere, são as provas que apresentou contra
mim.

Estabeleci por tres modos a não identidade dos lusitanos com os
portuguezes: não identidade de territorio; não identidade de ração; não
identidade de lingua. O auctor do artigo sentiu como eu que, na falta
complexa d'estes tres principaes caracteres dos que distinguem a
individualidade das grandes familias humanas chamadas nações, a sua
unidade na successão dos tempos desapparecia. Tratou, portanto, de
provar-me que não era essa unidade uma simples preoccupação sem
fundamento historico. Procurarei examinar os seus argumentos com a
brevidade e clareza possiveis.

Diz elle que, sendo Estrabão o que mais estreitou os limites da
Lusitania, a dilatou entre o Tejo e o Douro, isto, é pela Beira e
Extremadura; que, formando estas duas provincias o centro e _base_
principal do moderno Portugal, não pódem os portuguezes deixar de se ter
na conta de descendentes dos lusitanos, pois os _accessorios_ são sempre
absorvidos pelo principal; e que a Extremadura hespanhola não pode
chamar-se Lusitania por ficar alguma porção d'esta fora dos limites de
Portugal.

Eis aqui o primeiro argumento a favor do nosso lusitanismo. Mas o que
quiz o nobre critico dizer chamando á Beira e Extremadura _base_ de
Portugal? Será em consequencia de serem _hoje_ as duas provincias
centraes de Portugal no continente da Europa? Não posso alcançar como
esta circumstancia d'ellas estarem no meio deva fazer com que todos os
portuguezes se considerem como representantes de uma tribu ou aggregado
de tribus que ahi estancearam, em parte, ha dois ou tres mil annos.
Permitta-me elle lembrar-lhe que, por esse titulo, outros com maior
rigor geographico exigiriam que fossemos entroncar a nossa historia com
as dos pretos d'Africa; porque dos territorios que pela lei politica do
paiz constituem actualmente o reino do Portugal e Algarves, é de certo
modo a Africa o territorio mais central da monarchia. A verdade é que o
estar tal ou tal provincia actualmente no centro, ao sul, ou ao norte,
nada significa n'esta questão. O que importaria realmente seria saber se
a Lusitania, antes dos romanos, occupava a maior porção do territorio,
em que se constituiu depois definitivamente a nação portugueza no seculo
XIII, e se ahi foi o nucleo da monarchia, aggregando-se depois a essa
provincia as outras ao sul e ao norte. É o que o illustre auctor do
artigo parece pretender chamando á Beira e Extremadura _principal_ parte
de Portugal, e ás duas provincias ao norte do Douro e ás duas ao sul do
Tejo _accessorios_. A geographia e a historia conspiram, porém, contra
elle neste ponto. Tira à Extremadura o bem medido terço d'ella que
demora ao sudoeste do Tejo, reuna com a Beira os dois que ficam, e
diga-me depois se o Minho, Tras-os-Montes, Alemtejo, terço da
Extremadura, e o Algarve, offerecem uma superficie menor do que a Beira
e a Extremadura ao noroeste do Tejo. Repugna não menos a historia á
denominação de _accessorio_ dada ás provincias de Tras-os-Montes e
Minho. Durante a reacção christã da monarchia asturiana-leoneza contra
os sarracenos, a Beira é que foi _accessorio_ de Tras-os-Montes e Minho;
e existindo já Portugal como reino independente, a Extremadura é que foi
_accessorio_ das tres provincias ao norte d'ella. Se o facto da accessão
serve para alguma cousa na materia, nós temos de entroncar-nos com os
antigos callaios, mais do que com os lusitanos.

Não cabe n'um artigo de jornal mostrar com a auctoridade do maior e mais
antigo historiador da conquista romana na Hespanha, Polybio, citado (de
um dos seus livros perdidos) por Strabão, que uma tribu de turdetanos ou
turdulos se estabelecera na parte occidental da Beira, _ficando separada
dos callaicos pelo Douro_;--que, assim, nem sequer pelo lado do oceano
os limites de Portugal são os mesmos dos lusitanos ante-romanos;--que
ainda quando os vettões não fossem uma tribu lusitana, o que é muito
duvidoso, nem por isso a Lusitania deixaria de entrar pela Extremadura
hespanhola;--e que, por tanto, não concordando por nenhum lado
circumscripção territorial daquellas tribus com a do nosso paiz, não ha
identidade de patria entre a raça antiga e o povo moderno, tanto mais
que é certo ser o territorio dos _lusitani_, antes das divisões romanas,
a menor porção do Portugal constituido definitivamente, com a conquista
da provincia sarracena de Chenchir, no meado do seculo XIII.

O nobre auctor do artigo critico ao meu livro, parecendo accusar-me a
mim de confundir as divisões administrativas da Hespanha debaixo do
dominio romano com a divisão anterior dos povos indigenas, é quem na
realidade confunde as duas especies para me provar que o Alemtejo era
territorio dos lusitanos, fazendo os successos do tempo de Viriato
anteriores ao dominio romano. Pois este dominio não estava estabelecido
desde o tempo de Publio Cornelio Scipião? Não foi a guerra do chefe
lusitano um verdadeiro levantamento? E por onde ha-de provar-me que no
tempo dos pretores o territorio do Alemtejo não foi juncto á Lusitania
propria só administrativamente, e que era povoado de lusitano? Não se
oppõe a similhante opinião o texto formal do mais antigo e
particularisador dos geographos que descreveram a Hespanha, Strabão, o
qual nos diz: «Tago _transmisso_ (lusitani) _finitimos infestarunt_»?

Eu não disse, como o meu critico assevera, que _toda_ a Andaluzia e
Extremadura hespanhola se podiam arrogar o titulo de lusitanas: o que
disse foi que, se o haverem os lusitanos estanceado _n'uma parte_ do
nosso territorio nos désse o direito de os considerar como antepassados,
_esse direito_ pertenceria tambem à Extremadura, à Galliza, e à
Andaluzia. A differença infinita das duas proposições é obvia. Não creio
a segunda mui difficil de demonstrar, tanto mais sendo certo que a parte
lusitana é a que constitue a menor _porção_ do nosso paiz.

Tractando da prova de não identidade deduzida da transformação das
raças, o auctor do artigo por paridade de circumstancias estende as
conclusões, que d'ahi tirei para provar a minha doutrina, á Inglaterra e
á França. Essa objecção nenhuma força me faz. Creio tanto que por este
lado os inglezes e os francezes representem os kimhris e os gaels, como
creio que nós representamos os lusitanos. A historia incertissima
d'esses povos só pertence á França e á Inglaterra por identidade de
territorio. É uma consolação para os genealogicos d'aquellas duas nações
que não estou resolvido a invejar-lhes.

Diz o meu adversario, a quem não posso deixar de attribuir o epitheto de
prodigo pelos demasiados elogios com que adoça as suas reprehensões,
que, apesar de todas as conquistas em qualquer paiz, a raça indigena
sempre fica sendo muito mais numerosa. Não sei se assim devemos
figurar-nos as associações ou substituições de raças, principalmente
tractando-se das migrações asiaticas que povoaram o sul da Europa. Essas
tribus celticas, cimmerias, indo-germanicas, ou o que quer que fossem,
deviam ser mui pouco numerosas pelas razões que ponderei no meu livro.
Logo que começou a occupação da Peninsula pelas nações civilisadas,
phenicios, carthaginezes, e romanos, os homens capazes de combater (e
entre os selvagens são-no quasi todos) principiaram a sair da Hespanha
pelos motivos que tambem lá se apontaram, ao passo que as colonias
d'essas nações se estabeleciam largamente n'este solo. Quero
conceder-lhe que a vinda de gregos, phenicios e carthaginezes não
transformou senão por um terço o sangue indigena; que tambem a
colonisação immensa e systematica dos romanos não o alterou senão por
outro terço; e que a chamada especialmente invasão dos barbaros só por
outro terço o corrompeu. Chega depois a conquista sarracena. Veem á
Peninsula bereberes, arabes, negros; quantas castas de gente na Africa e
em grande parte da Asia seguiam o islamismo; estabelecem-se; repartem as
terras; fundam ou povoam cidades: os mosarabes, ou descendentes, dos
romano-godos, ficam como sumidos no meio d'esta alluvião de novos
habitadores de ambos os sexos, de todas as condições e idades. A reacção
começa nas Asturias; a guerra dilata-se; a assolação e a morte reinam
por seculos; os francos veem d'além dos Pyreneos ajudar frequentes vezes
os seus correligionarios; a Berberia é um manancial perenne de novos
collonos africanos; os chefes sarracenos usam da antiga politica romana,
e levam milhares e milhares de mosarabes para os empregarem nas suas
empresas além do estreito: e a Hespanha continúa a ser celtica! Na
segunda metade do seculo XII achamos Affonso I e Sancho I povoando com
colonias estrangeiras os _desertos_ da Extremadura e do Alemtejo;
_desertos_ porque a guerra tinha sido viva por estes districtos durante
trinta ou quarenta annos; e todavia, apezar de quinze ou vinte seculos
de invasões e guerras, talvez ainda mais atrozes, a raça lusitana
predominava nos rareados habitantes de Portugal! Talvez. Mas a mim
figura-se-me isso como uma idéa absurda. Repugna-me. Será curteza
d'intelligencia.

Quanto á lingua não contesta o meu contendor que a origem da nossa seja
a romana: o que affirma é que a mudança essencial de lingua não prova a
mudança essencial de raça. Uma cousa que desejava me explicasse era
porque n'aquellas partes da Hespanha, da França, e da Inglaterra, onde
pela historia sabemos que as conquistas e colonisações successivas
d'estranhos não poderam no todo ou na maior penetrar ou fixar-se, os
dialectos que ainda ahi se fallam hoje discordam absolutamente das
linguas geraes d'estes paizes e se derivam das primitivas. Tracto com os
conquistadores mais civilisados tiveram-no sempre os welshes, os
bretões, os biscainhos: a differença esteve só em não se estabelecerem
fixamente entre elles os novos senhores do seu paiz. Uma cousa me ha-de
conceder o nobre critico, e é que os lusitanos, tão curiosos de não
deixarem perder a sua casta no meio de tantas revoluções e da entrada de
tantas gentes estranhas por vinte e cinco ou trinta seculos, andaram um
pouco descuidados n'este negocio da lingua.

Pelo que respeita a dialectos, e a grammaticas, e a artes, e a medalhas
anteriores ao dominio romano, falta provar que isso tudo é vestigio, não
dos phenicios, gregos e carthaginezes, que se haviam estabelecido na
Peninsula antes dos romanos, mas sim das tribus celticas. Quanto ás
medalhas de lettras desconhecidas, permitta-me o atilado censor que, com
Peres Bayer e Masdeu, antes as tenha por phenicias, punicas, gregas, e
ainda latinas, do que por celticas.

Não chamei selvagens ás tribus da Hespanha antes da civilisação romana:
chamo-lh'o antes de toda a civilisação, quer phenicia, quer grega, quer
carthagineza, quer romana. Não está mais na minha mão: cada vez que
fallo n'um lusitano, n'um callaico, n'um pelendão, n'um arevaco, dos
primitivos e puros, figura-se-me logo um aymore, um tapuia, um
tupinamba, serapintado e cuberto de pennas, de quem juro que nenhum dos
actuaes brazileiros quer ser descendente; e o mais é que lhe acho alguma
razão, apesar de que teem decorrido pouco mais de tres seculos desde o
tempo em que no Brazil só havia d'essa gente, e desde que ahi se teem
estabelecido colonias, não de cinco povos civilisados e de seis ou sete
barbaros, mas só de portuguezes e até certo ponto de hollandezes.

Nunca pensei que os lusitanos me fizessem tornar a escrever tanto na
minha vida! Vamos a assumptos mais serios.

A segunda para da censura involve uma questão de critica historica. Na
opinião do nobre censor a minha não foi das melhores quando narrei a
tomada de Lisboa. Vejamos porque:

1.^o As duas fontes a que quasi só podemos recorrer sobre este facto são
as relações dos dois testemunhas oculares, Arnulfo e Dodechino: ora
estas foram escriptas por estrangeiros, e _como taes_ ávidos de gloria
para si e para os seus: logo a sua narrativa é suspeita. Os portuguezes
contentaram-se com a tradição.

2.^o Não é provavel que os portuguezes nada fizessem senão subirem á
torre de madeira para de lá descerem atterrados pelos tiros dos
cercados.

3.^o O combate de Sacavem não se segue que não existisse por se não
mencionar nas dictas narrativas. Entre Santarem e Lisboa havia povoação
moura. Que coisa mais natural do que ser Sacavem um ponto fortificado,
que servisse de atalaia a Lisboa? O combate n'esse logar é não só
provavel, mas quasi necessario.

4.^o Um auctor não pode desprezar de todo as tradições para dar inteira
fé aos documentos, quando estes não teem todos os caracteres que o
mereçam, senão em parte.

Eis as objecções criticas á narrativa da tomada de Lisboa. Não alterei
senão a ordem d'ellas, porque me facilita o resumir-me na resposta.

1. Não é exacto que quasi só tenhamos as relações de Arnulfo e Dodechino
para a tomada de Lisboa. Além de muitos outros historiadores coevos
estrangeiros, que tractaram do successo mais ou menos largamente, temos
os portuguezes: quatro que o mencionam em poucas palavras, e um, o
auctor do _Indiculum_ de S. Vicente, que o refere com maior extensão
ainda que Dodechino. Servi-me de todos para apurar uma ou outra
circumstancia. Do _Indiculum_, que é portuguez, tirei tudo o que alli se
encontrava. E já se vê que é inexacto o que o illustre censor diz sobre
o ficar entre nós só a tradição. Cinco escriptores para o mesmo
acontecimento, em tempos nos quaes se escrevia pouquissimo, não me
parecem provar que os nossos avós se mostrassem inclinados a entregar á
tradição oral (a que o censor se refere segundo creio) a memoria da
tomada de Lisboa. Tambem não me parece que tenha razão em affirmar que a
narrativa de estrangeiros, porque eram estrangeiros (_como taes_), fica
suspeita. Salvo se o censor me demonstrar que elles n'aquella épocha
eram mais mentirosos que os portuguezes. Faz-me isto lembrar
involuntariamente de que em Paris um francez é para dois inglezes, em
Londres um inglez para dois francezes; em Lisboa um portuguez para
trinta castelhanos, e em Madrid um castelhano para trezentos
portuguezes. São opiniões. Eu estou tão persuadido de que, em regra, um
homem é para outro, como o estou de que tanto pode fallar verdade ou
mentir um portuguez como um mouro, um judeu, ou um chim.

É natural, não o nego, que pertencendo Arnulfo e Dodechino ao corpo dos
cruzados se mostrassem mais attentos a narrar as façanhas dos seus que
as dos portuguezes; mas que queria o nobre auctor da censura que eu
fizesse? Que inventasse outras para attribuir a Affonso Henriques e aos
seus guerreiros? De certo não. O que me cumpria era examinar se a
narrativa dos dois estrangeiros continha alguma cousa improvavel para a
rejeitar. Aponte-me, porém, o que ha improvavel no que aproveitei d'essa
narrativa. É omissa a respeito dos portuguezes? Mas estes podiam fazer
maravilhas sem que os estrangeiros deixassem de praticar o que d'elles
contam os dois cruzados. Do que eu não tenho culpa é de que não chegasse
até nós a memoria de taes maravilhas.

Peço ao douto censor que observe bem a relação do _Indiculum_. O frade
portuguez (ao menos tenho-o por tal em quanto se não provar o contrario)
é o que faz os maiores encarecimentos sobre o valor dos cruzados. D'elle
é o periodo que transcrevi em nota a pag. 377. Em toda a carta de
Arnulfo nada se lê que iguale esse periodo. Porque não diz o frade outro
tanto dos seus? Quem o souber que o explique.

Mais: Affonso I mandou durante o cerco construir dois cemiterios--o dos
francos e o dos inglezes--um ao oriente, outro ao occidente, para
sepultar os martires de Christo que morriam pelejando. Porque não mando
construir outro ao norte para os portuguezes? Parece que morriam menos,
e os que morriam se accommodavam com os hospedes. O facto dos dois
cemiterios não é de Arnulfo; é do _Indiculum_.

2.^o O que é verdade é que Affonso I era um homem grande; grande capitão
e grande politico quanto um soldado rude o podia ser. Sem esses dotes
não se funda uma monarchia, sobretudo no meio das difficuldades que elle
superou. O mais natural é que poupasse os seus veteranos para outras
occasiões arriscadas, que não lhe faltariam, nem faltaram, e que na
tomada de Lisboa se aproveitasse habilmente do caracter cubiçoso,
violento e audaz dos alliados para poupar quanto fosse possivel os
subditos. Quem anda lido nos chronistas d'aquella epocha sabe que os
taes martyres de Christo em presentindo avultado despojo atraz de
qualquer muralha eram capazes de a desfazer com os dentes; e Affonso I
lhes cedera o sacco da cidade. Vertendo o sangue para conquistar esta,
trocavam-n'o por ouro; perecendo, conquistavam o ceu. N'aquelle tempo
associavam-se bem o enthusiasmo religioso e a cubiça.

A historia de vacillarem os portuguezes no eirado da torre de madeira,
nem é improvavel, nem os deshonra. Elles estavam habituados a combates
campaes e não a assedios regulares de grandes praças. O testemunho de
escriptor coevo, Ibn-Sahib, nos assegura que o systema ordinario do rei
de Portugal para se apoderar dos castellos mussulmanos era o dos
commettimentos nocturnos e inesperados, não o dos sitios regulares.
Accresce, como consolação, que esta circumstancia mostra terem entrado
em combate os portuguezes no dia do ataque decisivo.

3.^o Suppondo que o recontro de Sacavem fosse provavel, não era isso
motivo para mais do que para o narrar, se o tivesse encontrado em algum
escriptor, não digo coevo, mas ao menos do seculo XIII ou ainda do
principio do XIV; mas onde apparece pela primeira vez mencionado tal
acontecimento? N'um documento do seculo XVI. O enfeixador de patranhas
Duarte Galvão não apanhou esta. É pena que o tal documento, em cuja
feitura interveiu o grande velhaco de D. Christovam de Moura, não fosse
conhecido de Galvão nem de Acenheiro, aquelle famoso historiador que nos
conta os espantosos casos dos pés de malvas, de que se fizeram trancas
de portas, e do ouriço que comeu o pintainho dentro da casca do ovo. Mas
aos olhos de uma pessoa de juizo, como reputo o meu censor, bastariam
para desacreditar a tal tradição, que esteve escondida quatro seculos
sem que d'ella houvesse a menor noticia, as circumstancias absurdas de
que vem lardeada, como entrarem no combate de Sacavem mouros de Thomar,
isto é, de um territorio _deserto_ (Bulla de Urbano III aos templarios,
no Archivo Nacional gav. 7 mac. 9) doado em 1159 por Affonso I áquella
ordem que ahi fundou Thomar em 1160 (Inscripção, no _Elucidario_, t. 2
p. 359), e a outra circumstancia de andar, antes da tomada de Lisboa,
Affonso Henriques passeando em Cintra, o ponto mais forte e importante
que os sarracenos possuiam no districto de Belatha, salvo Santarem e
Lisboa, segundo o testemunho do contemporaneo Edrisi, e cuja conquista,
conforme a chronologia da chronica dos Godos e dos chronicons
conimbricense e lamecense, foi posterior ao menos de alguns dias á de
Lisboa.

No que me parece que o meu erudito impugnador se deixou levar demasiado
da sua imaginação, é em suppôr _quasi necessario_ o combate de Sacavem,
_porque era provavel_ que ahi houvesse um castello ou logar forte. O seu
raciocinio é este:

     Entre Santarem e Lisboa havia gente moura:

     _Atqui_: É provavel que entre Lisboa e os christãos houvesse um
     ponto fortificado, que servisse de atalaia a esta cidade, e Sacavem
     era o ponto mais apto para isso, porque tolhia o passo aos
     christãos.

     _Ergo_: Vieram mouros de Thomar soccorrer Lisboa; Affonso I, tendo
     passado por onde não podia passar, mandou gente atraz para os
     repellir; e o combate foi quasi por força em Sacavem.

O monstruoso e desconnexo d'este raciocinio é obvio. Quanto ao passar
Affonso Henriques por onde não podia passar, dir-se-ha que elle fez um
quarto de conversação á direita e marchou por Loures sobre Lisboa. Isso,
na supposição de estar fortificada a passagem de Sacavem, ou de não
haver ahi passagem (o que é mais natural), ocorre facilmente; mas é
preciso confessar que os engenheiros sarracenos, que empregaram braços e
dinheiro em fazer uma obra que não defendia nada, nem servia para nada,
mereciam pingados e aspados, segundo a forma espedita da justiça
mussulmana, para os seus collegas tomarem tento em não malbaratarem
assim os morabitinos do Estado em destemperos de taipa e pedregulho.

4.^o Vamos á ultima observação, que é a primeira na ordem em que as fez
o meu respeitavel impugnador. Quer elle que eu me ativesse ás tradições,
não dando inteira fé aos documentos, quando estes não a merecem
plenamente. Já fica provado que a sua regra não serve para o caso
presente. Mas, ainda em geral, ella me parece falsissima por falta de
distincção. Que não se dê fé inteira a um documento que não a merece em
todas as suas partes, é uma d'estas verdades como--o sol dá luz--que não
vale a pena de se escrever; mas o que eu não vejo é que de ser
insufficiente ou, até, nulla a auctoridade de um documento ou monumento
coevo ou quasi coevo se siga que a tradição fica forte e segura. Se ella
for absurda ou infundada, continúa a sel-o, valha ou não valha o
documento. Parece-me que o simples senso commum basta para assim se
crer.

É preciso, todavia, convirmos sobre a idéa que havemos de associar á
palavra _tradição_. Se entendemos a tradição oral, que só apparece,
dizendo-se muito, muito, muito antiga, tres ou quatro seculos depois do
facto a que se refere, sem que d'ella se encontre a menor sombra nos
monumentos coevos ou quasi coevos em que naturalmente se devia
mencionar, confesso ao meu douto impugnador que o unico sentimento que
essa tradição produz em mim é uma grande vontade de rir; porque já, pela
experiencia, prevejo que ha-de ser absurda. Um proloquio certissimo da
nossa terra é que mais depressa se apanha um mentiroso que um coixo.
Tenho-o verificado tão frequentemente que cada vez estou mais Pharaó,
obdurado de coração, contra as taes tradições. Peço ao meu nobre censor,
que me parece pessoa que estuda a historia seriamente, que deixe aos
poetas o gritar a favor da tradição oral. Eu ja fui do officio, e sei
que elles teem razão. Os estudos superficiaes pertencem-lhes por direito
divino e humano. Se fossem empallidecer sobre os feixes mofentos de
pergaminhos velhos que estão por esses archivos, deixavam de ser poetas,
porque matavam a imaginação, e eu declaro sinceramente que antes quizera
que nunca houvesse historia do que o inconveniente de perder o paiz um
grande poeta. Portugal tem incomparavel mais gloria em haver possuido
Camões que em ter tido Fr. Antonio Brandão e Antonio Caetano do Amaral.
No que me parece que elles não são justos é em pretenderem que os
historiadores, gente chan e humilde, sejam por força poetas. N'isso é
que anda amplicação rhetorica de mais.

Se por tradição o meu nobre adversario entende a escripta, subscrevo
inteiramente ao seu voto. A tradição escripta é aquella de que se
encontram vestigios nos monumentos ou nos documentos até a epocha em que
viveram os homens que podiam presenciar o facto a que ella se refere, ou
aquelles que da bocca d'esses homens podiam ter ouvido a relação do
mesmo facto. Esta tradição é segura, se alias não ha circumstancias que
a invalidem ou modifiquem. Similhante tradição é a que a historia pode
approvar; mais: é aquella que a igreja só admitte para conjunctamente
com a auctoridade dos livros sagrados servir de prova historica ao
complexo das suas doutrinas. Esse illustrado e respeitavel systema do
catholicismo, tão injustamente calumniado pelas igrejas dissidentes,
estava já expresso, muitos seculos antes de nascer a critica profana, na
regra contida na bella e profunda formula de Vicente de Lerins: «_Quod
semper, quod ubique, quod ab omnibus..... creditum est_.»

Um ou dous anneis, que faltem lá no cabo d'éssa cadeia da tradição,
bastam historicamente para tirar ao facto toda a certeza; porque muitas
vezes as fabulas não esperam nenhuns duzentos annos para nascerem e se
incrustarem no tronco da historia. Não raro estas fabulas são devidas á
ignorancia e não á má fé. Uma passagem e, até, um nome mal interpretado
podem dar-lhes motivo. O erro sobre a origem grega do conde D. Henrique,
erro que grassou entre os antigos escriptores hespanhoes, proveiu, como
o meu censor sabe, de se interpretarem as palavras de Rodrigo de Toledo
«_ex partibus bisontinis_» _das partes de Constantinopla_, em lugar de
se traduzirem _das partes de Besançon_; mas o que talvez não lhe occorra
é que já Affonso X de Castella ignorava a verdadeira origem d'este seu
avoengo, que fallecera ainda não havia seculo e meio quando elle começou
a reinar. Effectivamente na _Chronica General_, escripta por elle ou
debaixo dos seus olhos, diz-se que o conde D. Henrique era _de tierra de
Constantinopla_ (_Cron. gener._ fl. 300 v.), Mais: o erro do Nobiliario
attribuido ao conde D. Pedro, erro adoptado por outros escriptores, de
que D. Mafalda mulher de Affonso I era hespanhola e filha do senhor de
Molina, acha-se já n'um resumo de chronica dos nossos primeiros reis,
lançado no principio de um dos volumes das Inquirições de Affonso III,
no Archivo Nacional. Ahi, por assim dizer, encontra-se a verdade em
transformação flagrante para mentira. Maurienne, donde era D. Mafalda,
pronunciava-se _Moriana_, palavra corrompida n'essa especie de chronica
em _Moliana_. O auctor d'ella já suppunha que os condes de Haro eram os
senhores de _Moliana_: os que se seguiram _rectificaram_ Moliana em
_Molina_, e a fabula tomou definitivamente o logar da historia. Outras
vezes, porém, conveniencias politicas ou de diversa ordem faziam
espalhar mentiras em épochas tão proximas áquellas a que se referem, e
sobre factos tão notaveis, que chega a parecer incrivel como havia
audacia para tanto. Tal é a historia da acclamação em Ourique,
mencionada n'um documento original de Palmella, do meado do seculo XIV.
Ha para a desmascarar mais alguma cousa do que as ponderações que fiz em
a nota XIV do meu livro: é um documento do Archivo Nacional anterior
trinta ou quarenta annos apenas ao rollo de Palmella, e de que este é
quasi textualmente copiado, em que nenhum vestigio se acha da anecdota
da acclamação, donde fica mais facil apurar a data da fabula, e o
descubrir as causas por que foi engendrada. Mas isto para seu tempo, que
a presente resposta já vai demasiado larga. Possa ella não impedir que o
meu cortez adversario continue a examinar criticamente a _Historia de
Portugal_, e a apontar aos historiadores futuros os escolhos em que a
minha pobre barca tiver naufragado!



DA EXISTENCIA OU NÃO-EXISTENCIA DO FEUDALISMO NOS REINOS DE LEÃO,
CASTELLA E PORTUGAL


1875-1877



I


Um membro da Academia da Historia, de Madrid, o sr. D. Francisco de
Cárdenas, publicou ha dous annos o 1.^o volume de uma Historia da
propriedade territorial em Hespanha, pondo ao seu livro o modesto titulo
de Tentativa. Só em 1874 tive noticia da obra e alcancei lêl-a.
Abstrahindo de outras questões, em que divergimos mais ou menos, eu e o
auctor do novo livro, ha um importante ponto historico em que as nossas
opiniões são diametralmente oppostas. É o da existencia ou
não-existencia do feudalismo nos paizes centraes e occidentaes da
Peninsula, em Oviedo e Leão, em Portugal e em Castella, durante a epocha
em que elle predominou na Europa. Em mais de um escripto, sobretudo n'um
livro que corre com o titulo de _Historia de Portugal_, affirmei a minha
convicção de que a indole das instituições ou, antes, do direito
publico, escripto ou consuetudinario, da velha monarchia
ovetense-leonesa e das que d'ella procederam, não só foi estranha, mas
até repugnante á indole do feudalismo. É talvez um erro de que estou
imbuido; mas, cumpre dizêl-o, não me parece que o livro do sr.
Cárdeanas, por mais que medite nos seus argumentos, tenha de ser o
missionario que me converta á opinião contraria.

E, todavia, a obra do meu consocio (permitta-me o sr. Cárdenas que lhe
dê este nome, tendo ambos a honra de pertencer á Academia da Historia)
está longe de ser um d'esses acervos de erros envoltos em phrases
sibyllinas, d'essas syntheses historicas de uma historia que ainda em
grande parte não existe, e que hoje são de moda; syntheses a que não
precede a analyse, e que apenas servem á ignorancia, com escaceza de
estudo e sobejidão de audacia, para armar á admiração dos nescios. Com
gosto confesso que o _Ensayo sobre la historia de propiedad territorial
en España_ é um trabalho que denuncia largar vigilas e attentas
cogitações, e que esclarece mais de uma obscuridade da historia social
da Peninsula; e que, em summa, é um livro sério, ao qual fora injusto
corresponder com o silencio, a que ás vezes obriga os homens de sincero
estudo o sentimento da proprio dignidade.

Mas é por isso mesmo que se tracta da doutrina de um escripto notavel,
que entendi dever submetter ao auctor d'elle varias considerações sobre
o que se me afigura um erro capital do _Ensayo_: capital, digo, porque
attinge e vicia radicalmente a historia do mechanismo da sociedade
peninsular, pelo menos desde o seculo IX até o XIII, na sua manifestação
essencial; n'aquillo a que chamamos hoje direito publico interno.

O sr. Cárdenas sustenta como verdade historica ter sido a Hespanha
occidental, similhante n'isto aos estados do centro da Europa, um paiz
feudal. Tolera-se esta doutrina nos discursos parlamentares, nos artigos
da imprensa politica, nos escriptos de certos publicistas que sabem, com
mais ou menos arte, fazer das suas generalisações semi-poeticas um leito
de Procusto para a Historia. Em trabalho, porém, de consciencia e
circumspecto, emprehendido por um membro da corporação á qual na
Hespanha especialmente incumbem as investigações d'esta natureza, a
affirmativa que tende a manter similhante doutrina não passará, por
certo, n'aquelle paiz, sem o devido reparo. Entretanto, a Portugal, que,
bem como Castella, traz a sua origem da monarchia ovetense-leoneza, tóca
tambem intervir n'uma questão que, resolvida no sentido da opinião do
sr. Cárdenas, parece-me viria collocar a luz falsa as primitivas
instituições d'este paiz. Assim, em quanto outros mais habilitados
guardam silencio, seja-me lícito a mim, para quem taes estudos são hoje
apenas reminiscencias, indicar algumas especies que possam esclarecer o
assumpto.

Eis o que a similhante proposito nos diz o sr. Cárdenas:

«Por este exame ficarão tambem desvanecidas as duvidas que ainda
restassem ácerca da existencia do feudalismo em alguns dos nossos
antigos reinos. Teem sustentado varios escriptores que o systema feudal
europeu, posto que estabelecido em Catalunha e Valencia, não chegou a
vigorar em Aragão, nem na Navarra, nem, sobretudo, em Leão e Castella.
Para estribar esta opinião allega-se que nem as leis nem os antigos
documentos d'estes reinos mencionam os _feudos_, como se a mesma
instituição não podesse existir com differentes nomes em regiões
diversas. Pondo de parte não ser absolutamente exacta aquella
affirmativa, o que importa é averiguar se, bem que com outras formas e
denominações, existiram em toda a Peninsula os _elementos essenciaes do
feudalismo_, visto que o fim util e practico de taes investigações não é
esquadrinhar nomes nem resolver questões de palavras, mas sim determinar
com exacção as similhanças e dessimilhanças que havia entre as
instituições sociaes e politicas da Hespanha e as instituições
contemporaneas dos paizes estranhos, para assim provar a identidade de
origem, indole e tendencia entre a nossa civilisação e a civilisação da
Europa. E de feito, sem vigorar na Peninsula o codigo feudal, que, como
additamento ao de Justiniano, servia de direito commum n'essa materia;
sem existirem n'algumas provincias pequenos estados com o nome official
de feudos, acharemos em todas ellas os elementose essenciaes do
feudalismo, e a organisação feudal mais ou menos acabada e perfeita.»

Depois de exprimir o conceito que faz dos caracteres que distinguem o
feudalismo de qualquer outra formula de instituições sociaes e
politicas, conceito que depois hei-de apreciar, o auctor prosegue:

«Taes eram tambem os caracteres e attributos de uma parte notavel da
propriedade territorial nos vastos reinos de Hespanha. Não só em
Catalunha e Valencia, mas egualmente em Leão e Castella, em Aragão e
Navarra, havia muitas terras cujo dominio directo involvia o direito de
exigir fidelidade e serviços militares dos individuos que as possuiam ou
ahi residiam, exercendo poder e jurisdicção sobre elles, e cujo dominio
util era limitado no interesse do senhor e das propriedade, que em
certos reinos estranhos se chamou feudo, denominava-se em Hespanha
_prestimonio_, _mandação_, _encommenda_, _terra_, _tenencia_, _honra_ ou
_senhorio_, excepto em Catalunha, Valencia e Ribagorça, onde tambem era
conhecida com aquelle nome europeu. Foi mais geral e uniforme n'esses
reinos do que nos de Leão e Castella; mas em nenhum faltou, visto que em
todos deixou evidentes e numerosos vistigios. Que vale, pois, a varia
denominação de tal regimen, se em substancia era o mesmo que em outras
partes se conhecia com a de feudal?[81]»

Não é menos precisa a seguinte passagem:

«Tambem em Castella concedia el-rei certas terras em feudo, embora o
tenham negado alguns escriptores celebres. Dado que essa palavra não
apparecesse em nenhum documento antigo do reino, seria temerario
affirmar que o systema feudal ahi não fora conhecido nem usado. Com
effeito, que são as _commendas_, as _mandações_, os _senhorios_, as
_honras_, as _terras_, senão feudos mais ou menos disfarçados?[82]»

Escolhi estas passagens do livro, porque me pareceu serem as que
exprimem com mais concisão e clareza as idéas do auctor em relação a
esse ponto historico, idéas que se reproduzem com maior ou menor
precisão em varios logares onde cabe inculcál-as. Creio, porém, que mais
detido exame das fontes historicas o levaria a estabelecer a proposição
diametralmente opposta; isto é, durante o predominio do systema feudal
além dos Pyreneus, nunca existiu feudalismo nos territorios centraes e
occidentaes da Peninsula. Aqui, nos rarissimos monumentos anteriores aos
meiados do seculo XIII em que se encontra a palavra feudo, ella tem
valor diverso do que se lhe ligava na Europa central.[83] Nem as
commendas nem as mandações, nem as honras, nem as tenencias ou terras,
foram feudos, disfarçados ou não disfarçados, qualificações
incomprehensiveis quando se tracta do modo de ser das sociedades na
idade media. Hoje é facil achar um ou outro exemplo de como o
absolutismo sabe aninhar-se debaixo das formulas do governo
representativo, e de como a reacção se colloca á sombra das liberdades
conquistadas laboriosamente n'este seculo para tentar reconduzir as
gerações actuaes e futuras ás instituições tenebrosas dos seculos
passados. Hoje, cesarismos talvez tão corruptos e oppressores como o de
Roma decadente esteiam ás vezes o seu predominio nas exaggerações e
malevolencias democraticas. A idade media, essa era demasiado grosseira.
Não podem attribuir-se-lhe taes astucias. Descubrir disfarces nas suas
instituições é vêl-a atravez da sociedade actual.


II


Um dos homens mais eminentes de que a Peninsula se honra, e a quem
principalmente se devem os seus recentes progressos nos trabalhos
historicos, foi Martinez Marina. O livro sobre a antiga legislação e
sobre as compilações de leis de Leão e Castella significa um passo
gigante dado pela Hespanha no estudo da historia da sua idade media. Os
outros escriptos de Marina, embora de menos valia, não podem dizer-se
indignos do auctor. É certo que na _Theoria das Côrtes_ e ainda no
_Ensaio historico sobre a antiga legislação_ elle chega, em parte, a
conclusões inexactas pela preoccupação que o dominava de justificar a
liberdade moderna pela tradição nacional. Mas se attribuiu valor
exaggerado aos vestigios da intervenção popular no regimen da sociedade,
e sobretudo se deu á vida municipal de outros tempos demasiada amplidão
e influencia, escriptores houve tambem de grande e merecida reputação
que desconheceram ou apoucaram esses vestigios, ainda reduzidos ao valor
real que tiveram, sem que por isso se hajam de menosprezar os resultados
das suas investigações em relação a outros aspectos da historia.
Parece-me que em Hespanha existe certa tendencia para contrariar ou,
antes, para pôr de parte as opiniões e assertos do celebre conego de S.
Isidro. Em Portugal, entre os homens competentes, Martinez Marina é um
nome respeitado. A sua apreciação dos monumentos e as inducções que
d'elles tira teem indubitavel auctoridade, e é só quando outros e mais
precisos textos lhes repugnam, que essas inducções são combatidas, sem,
todavia, se deixarem occultas em desdenhoso silencio. Não esquecendo o
muito que se deve a Masdeu, embora a sua critica seja excessiva e até
leviana, ás vezes, parece-me que, em relação á idade media, Antonio
Caetano do Amaral entre nós, e Martinez Marina em Leão e Castella podem
considerar-se como os fundadores da historia social dos dous povos da
Peninsula.

A especie de desfavor que entre os nossos vizinhos tem assombrado a
memoria de um dos seus mais illustres sabios não procederá, ao menos em
parte, do juizo desfavoravel que d'elle fez o maior historiador
publicista de França, Guizot, na _Historia das origens do governo
representativo_?[84] Este livro notavel, escripto ha mais de meio seculo
e estimado na Europa, deve ter tido em Hespanha um influxo nocivo á
reputação de Martinez Marina. E todavia Guizot, que parece haver
conhecido só a _Teoria de las Cortes_, em vez de julgar o auctor pelo
complexo das suas obras, julga-o por um escripto mais de partido que de
sciencia, mas onde, ainda assim, brilham não raro a illustração e o
talento historico do erudito hespanhol.

De todos os escriptores que conheço de Portugal ou de Hespanha, que mais
ou menos dedicaram as suas investigações ao estudo do mechanismo social
dos estados peninsulares nos seculos primitivos da reacção christan, foi
justamente Martinez Marina o primeiro em protestar contra a existencia
de feudalismo na monarchia das Asturias e nas que d'ella derivaram. «O
governo--diz elle--dos reinos de Asturias, Leão e Castella era
propriamente um governo monarchico, e a sua constituição politica, por
qualquer lado que se considere, a mesma do imperio gothico e
diversissima dos outros governos então conhecidos na Europa. Essa
constituição repugnava absolutamente nos principios, na legislação e nas
circumstancias ás monstruosas instituições dos governos feudaes»[85].

Em nota a esta passagem, Marina allude ao predominio que a idéa
contraria obtivera em Hespanha, e dá uma explicação d'esse facto, que
não só me parece verdadeira para aquelle epocha, mas tambem inteiramente
applicavel ao tempo presente. «Alguns jurisconsultos e escriptores
nacionaes--observa o auctor do _Ensayo historico_--confundiram a antiga
constituição gothica e castelhana com o governo feudal tão vulgar na
Europa durante a idade media, e confundiram-na por terem sido pouco
diligentes em examinar a nossa legislação primitiva e as memorias
historicas que nos restam dos tempos antigos. Seguindo nas suas
investigações o rumo de alguns sabios estrangeiros que escreveram com
erudição a historia dos governos feudaes, adoptaram-lhes os erros e
equivocos em que cairam quando quizeram expôr a antiga situação de
Castella de que apenas tinham conhecimento».[86]

Como prova do seu asserto transcreve uma passagem do celebre Robertson,
que na introducção á _Historia de Carlos V_ pinta os reis hespanhoes da
idade media completamente despojados da soberania, e esta exercida pelos
vassallos ainda, se é possivel, de mais completo modo do que nos paizes
verdadeiramente feudaes.

Á injustiça, com que Marina fora tractado em França por um dos primeiros
cultores da historia, deu reparação a circumspecta Allemanha. O
fallecido professor Schaefer, cujos trabalhos relativos á idade media,
tanto de Portugal como de Hespanha, são os mais notaveis que teem
apparecido além dos Pyreneus, reivindicou para Marina o logar de guia e
mestre que lhe pertence. N'uma nota da continuação da _Historia de
Hespanha_ por Lembke, assim se exprime o illustre professor de Iena:
«Sou obrigado a recordar aqui a excellencia d'esta obra (_o Ensayo
historico_) de cuja ultima edição, com bem magua minha, não pude
aproveitar-me. Pela profunda e ampla investigação das fontes historicas,
pela luminosa e conveniente distribuição das materias, mas, sobretudo,
pela mais completa imparcialidade, este livro é superior a outro mais
conhecido do mesmo auctor, a _Teoria de las Cortes_. Um estudo aturado
das diversas partes da obra convenceu-me de que na exposição que vou
fazendo devia tomar Marina por guia quando as suas indagações se
referiam ao assumpto de que eu tractava[87].»

E é por isso que Schaefer foi talvez o unico escriptor estranho á
Peninsula, que soube evitar completamente o erro commum de attribuir á
monarchia christã das Astúrias a indole feudal. Preoccupados por esta
idéa, á qual aliás numerosos monumentos lhes parecia repugnarem, alguns
buscaram conciliar as duas doutrinas oppostas, affirmando que o reino de
Oviedo e Leão fôra um paiz de feudalismo, porém modificado. «A
verdade--diz o professor Secretan--está, quanto a nós, entre os dous
extremos. O feudalismo existiu em Hespanha, mas com um caracter
inteiramente especial, sobretudo nos estados de Leão e Castella[88].»
Terei occasião de examinar se o assumpto admitte esta especie de
transacção entre as duas affirmativas contrarias.


III


Pondo, porém, de parte as opiniões de estrangeiros mais ou menos
habilitados para intervir na questão, venhamos aos escriptores
nacionaes. Apesar do _Ensayo historico_, e dos ulteriores estudos sobre
os antigos monumentos, a idéa de que no centro e occidente da Peninsula
predominara o feudalismo não se abandonou. Tanto em Hespanha como em
Portugal fala-se todos os dias nos tempos, nos costumes e nas
instituições feudaes. Os escriptores mais sisudos teem cedido a essa
preoccupação, sem examinarem sériamente se ha fundamentos que a
legitimem. Coelho da Rocha, um dos mais eminentes professores da nossa
Universidade e que menos imperfeitamente expoz a indole da antiga ordem
politica do paiz, não se esquivou ao erro vulgar[89]. Um auctor mais
moderno, recentemente fallecido, que gosou da reputação de habil
jurisconsulto, mas cuja sciencia historica era por certo inferior á de
Coelho da Rocha, quasi que chega a compadecer-se da ignorancia dos que
não creem ter existido entre nós o feudalismo[90]. Do mesmo modo, em
Hespanha, os auctores dos _Elementos de Direito civil e penal_, os srs.
La Serna e Montalban, viram no _Foro Velho de Castella_ a desinvolução
do systema feudal, cujas sementes já anteriormente germinavam;[91] e D.
José Pidal, na dissertação que com o titulo de _Addiciones_ ajunctou, na
edição de 1847, ao prologo do mesmo _Foro Velho_ por Asso e Manuel, ao
passo que por um lado expõe as relações entre o rei e os subditos de um
modo que parece excluir o feudalismo, suppõe, em contrario, a existencia
de feudos[92]. Omittindo outros auctores, lembrarei o nome de um dos
homens mais competentes nestes assumpto que teem honrado as letras no
reino vizinho. É elle um exemplo frizante de como os preconceitos
litterarios ou scientificos não são menos difficeis de extirpar do que
as preoccupações radicadas das classes pouco instruidas. Refiro-me a
Munõz y Romero, erudito infatigavel, cuja morte prematura foi uma perda
profunda para a litteratura historica da Peninsula. Os seus constantes
estudos sobre a edade média tinham-no convencido da inanidade da
doutrina que dotava Leão e Castella com um feudalismo imaginario. Na
refutação que escreveu da obra de Helfferich e Clermont intitulada:
_Fueros francos_. _Les communes françaises en Espagne et en Portugal
pendant le moyen-âge_, publicada em Berlim em 1861, exprime-se assim:
«Os monges cluniacenses tentaram introduzir em Hespanha o espirito
feudal, mas debalde, porque as classes inferiores.... rechaçaram _as
idéas francezas_[93].» Refutando a obra collectiva com outra de um dos
dous auctores, o sr. Helfferich, o qual accusa de ter duas opiniões
encontradas, uma para os francezes, outra para os allemães, diz com elle
que o direito feudal francez contrariava o direito peninsular[94]. Por
isso não duvida de affirmar pouco depois que «os costumes e o direito
hespanhoes repugnavam á índole do feudalismo»[95]. Nada mais positivo do
que esta doutrina que o aturado estudo dos monumentos tinha impresso na
clara intelligencia de Muñoz y Romero. E todavia é elle proprio, elle
que sobre o assumpto contrapunha um ao outro os dous escriptos do sr.
Helfferich, que na mesma _Refutação_ nos diz que nos reinos de Castella,
Aragão e Navarra tambem o feudalismo se desenvolveu, e que os germens
d'aquella organisação já existiam nos reinos da Peninsula antes da
influencia franceza[96]. É que as primeiras phrases exprimiam as
convicções da sciencia, e as ultimas a transigencia com a prevenção
vulgar.

Assim, n'esta materia continuam fluctuantes as idéas, não só dos que
ignoram, mas ainda de eruditos taes como Muñoz y Romero. Porque? Porque
a questão nunca foi tractada de modo exclusivo e completo dos Pyreneus
para cá, ao menos até onde eu sei. O proprio Marina não deu á sua these
o desenvolvimento que poderia dar-lhe, nem a firmou em tal numero de
provas que bastassem a encerrar desde logo o debate. Fál-o-hei eu agora?
Não m'o permittem nem as circumstancias do meu viver actual, nem o
limitado da minha competencia, nem as condições de um simples estudo.
Com habitos de vida estranhos ás lettras, rodeado de poucos livros e de
notas tomadas em grande parte ha mais de vinte annos, notas claras e
intelligiveis para quem de continuo pensava em assumptos de tal ordem,
mas desordenadas e muitas vezes obscuras para quem raramente pensa hoje
n'elles, é antes uma serie de observações e duvidas que submetto á
apreciação do sr. Cárdenas, do que uma doutrina completa que estabeleço
em solidos fundamentos. Digo isto para que se não dê ás seguintes
reflexões maior importancia do que ellas merecem.


IV


Qual é o primeiro passo a dar para chegarmos á solução d'este difficil
problema historico? Quando affirmamos ou negamos que a indole de taes ou
taes instituições corresponde a certo typo de organisação social, a
simples boa-razão nos ensina o caminho que devemos seguir. Esse typo tem
forçosamente caracteres que, ou singularmente ou no seu complexo, são
essenciaes, intrinsecos, exclusivos n'elle, embora varie em accidentes
n'esta ou n'aquella sociedade. É como na estructura e na physiologia
hamanas, identicas sempre na essencia, mas indefinitamente varias nos
accidentes individuaes. Para apreciar, portanto, se as instituições de
um paiz foram feudaes, cumpre determinar previamente as condições
impreteriveis, a indole e os caracteres exclusivos do feudalismo.

O sr. Cárdenas diz-nos em que consistem esses caracteres essenciaes, que
reduz a tres: 1.^o--Separação entre o dominio util e o directo,
reservando para si o possuidor d'este ultimo a faculdade de exigir do
possuidor do primeiro fidelidade e serviços militares e politicos:
2.^o--União ao dominio directo da terra de uma parte maior ou menor da
auctoridade publica em relação aos individuos que ahi habitam, quer como
naturaes, quer como colonos: 3.^o--Restricções á faculdade de dispôr de
qualquer dos dois dominios, umas por utilidade das familias que n'elles
devem succeder, outras para não padecerem diminuição os direitos do
dominio directo. Onde a propriedade territorial com estes tres
caracteres determina e firma as relações do individuo com o estado, com
a auctoridade local, e com a familia, existe o feudalismo[97].

Um dos escriptores francezes d'este seculo que mais profundamente
estudaram o mechanismo da sociedade feudal, e que em dotes de
historiador difficilmente encontrou emulos entre os seus compatricios,
Guizot, entende tambem que a sociedade feudal se caracterisa por tres
factos essenciaes, elementos constituitivos d'aquelle regimen. O
primeiro de todos, na opinião do celebre historiador, era a natureza
especial da propriedade territorial, effectiva, inteira, hereditaria, e
todavia havida de um superior e envolvendo na posse, com pena de
commisso, certas obrigações pessoaes. O segundo facto é a incorporação
da soberania na propriedade, isto é, a attribuição ao proprietario do
solo, em relação á universalidade dos que ahi habitavam, de todos ou
quasi todos os direitos que constituem o que chamamos soberania, e que
hoje só o estado, o poder publico, possue. O terceiro facto é a
existencia de um systema hierarchico nas instituições legislativas,
judiciaes e militares, que ligavam uns aos outros os possuidores de
feudos constituindo assim a sociedade geral[98].

Ao primeiro aspecto, entre as duas maneiras de caracterisar o feudalismo
não ha grande distancia; mas examinadas com mais attenta analyse
conhece-se quão profundamente divergem. Guizot contempla-o como
publicista; o sr. Cárdenas como jurisconsulto. Guizot busca a influencia
que elle teve no modo de ser da sociedade; o sr. Cárdenas a que teve no
modo de ser da propriedade. O estudo dos feudos por qualquer das faces é
egualmente legitimo e util. Onde está, pois, o erro do sr. Cárdenas, se
tal erro, como me parece, existe? Está na confusão de duas épochas e da
instituição civil com a instituição social; e está em considerar como
erroneo o resultado de uma apreciação de indole totalmente diversa da
indole da sua apreciação.

Os tres factos especificados por Guizot constituem caracteres essenciaes
e exclusivos da sociedade feudal, porque nenhum d'elles se realisa
completamente n'outro molde social. O seu complexo repugna a qualquer
organisação politica anterior ou posterior aos seculos verdadeiramente
feudaes. Representam e resumem esses factos o largo periodo entre duas
transformações, entre duas revoluções lentas, postoque não pacificas, da
tempestuosa juventude de uma parte das modernas nações da Europa. Pode
dizer-se o mesmo das tres condições caracteristicas que o sr. Cárdenas
attribue ao feudalismo? Correspondem ellas a factos então actuaes? Creio
que não. De certo o auctor do _Ensayo_ teve presente o modo como o
grande historiador da civilisação franceza caracterisava a sociedade
feudal; mas preoccupado pela idéa de um feudalismo _sui generis_, o
feudalismo hespanhol, modificou um typo que desde logo sentiu lhe seria
difficil de conciliar com a indole da sociedade néo-gothica. Na
constituição do feudo o sr. Cárdenas vê a separação do dominio util do
dominio directo, simples relação civil do direito de propriedade, como o
é na emphyteuse moderna, e por tanto ficando no feudatario o util e no
suzerano o directo. Guizot vê o que realmente foi exclusivo do
feudalismo, o dominio territorial completo no feudatario, dominio em que
se incorpora o poder publico e que leva este comsigo na transmissão
hereditaria. O que ligava o feudatario ao suzerano era o dever pessoal e
politico de fidelidade e de prestação de serviços de natureza alheia ás
obrigações e direitos privados entre dous co-proprietarios. Pode
chamar-se a isto separação dos dominios directo e util? Os serviços
militares e politicos de que fala o sr. Cárdenas constituiam relações de
vida publica: o dominio directo e o util constituem apenas relações de
vida civil. No senhor do feudo estavam incorporadas a propriedade e a
soberania, mas nem por isso eram identicas; nem por isso eram porções de
um direito unico e homogeneo. Tinham origens e naturezas diversas. Se na
praxe se confundiam, não podem confundir-se na historia. É o que os
trabalhos de Championnière tornaram evidente[99].

A segunda caracteristica attribuida pelo sr. Cárdenas ao feudalismo
afigura-se-me como não menos inexacta. Quanto a elle, o possuidor do
dominio directo accumulava uma parte maior ou menor da auctoridade
publica sobre os _naturaes e colonos_ que habitavam no territorio em que
esse dominio recaía. Porei de parte a divisão das populações sujeitas em
naturaes e colonos, inintelligivel para mim, applicada ás classes
inferiores d'aquella épocha. Segundo o auctor do _Ensayo_ a soberania
era exercida no feudo, não pelo feudatario, mas pelo suzerano. Ora
Guizot suppõe, e com razão, o contrario. Para elle o direito de
propriedade do primeiro é pleno, e se o poder publico se associa com a
propriedade, é elle que o exerce. Se, porém, a auctoridade andasse
annexa á suzenaria na terra do feudatario, não estaria de modo algum a
soberania incorporada na propriedade, nem o poder central se teria
annullado, porque no vertice da pyramide feudal estava o rei. E todavia
essa incorporação é o facto culminante do feudalismo, porque é o que
sobretudo o distingue no meio das transformações sociaes e politicas,
por que tem passado a passado a Europa civilisada[100].

A terceira caracteristica da sociedade feudal, no systema do sr.
Cárdenas, consistindo em certas restricções á faculdade de dispôr de
modo absoluto do dominio, quer util, quer directo, é tão pouco uma
condição especial e exclusiva do feudalismo, que se dá no nosso actual
direito emphyteutico, o que não obsta a que a sociedade portugueza seja
perfeitamente livre sem deixar de ser monarchica, e onde seria difficil
encontrar o menor vestigio de feudalismo. Na opinião, porém, de Guizot,
o terceiro facto que discrimina a épocha feudal é o complexo de
instituições legislativas, judiciaes e militares, acommodadas a
constituir uma sociedade geral no meio da desmembração da auctoridade,
não pela divisão de funcções, mas pela individuação collectiva d'estas,
e pela sua aggregação á propriedade territorial. De feito, aquelle
complexo de instituições, se instituições lhes podemos chamar, pertence
exclusivamente á épocha feudal. Simulando dar unidade à dispersão,
limites ao illimitado arbitrio, ordem á anarchia aristocratica, esse
nexo politico, mais apparente que real, não tardou a alluir-se, e logo a
desmoronar-se ao embate do elemento monarchico, que readquirira vigor, e
do elemento monarchico, que surgia vingativo e implacavel. «O
feudalismo, diz Guizot, era uma confederação de pequenos soberanos, de
pequenos despotas de diversas graduações, ligados entre si por mutuos
deveres e direitos, mas revestidos, cada um, dentro dos proprios
dominios, de poder absoluto e arbitrario sobre os que lhes estavam
pessoal e directamente sujeitos[101]». No meu modo de vêr, é a definição
mais concisa e mais exacta do feudalismo, ao passo que na terceira
caracteristica proposta pelo meu illustre consocio parece-me haver o
mesmo equivoco da primeira--a confusão ou, antes, substituição das
relações de direito publico pelas de direito privado.

Sei que a doutrina que considera o senhorio feudal como uma especie de
propriedade dividida, similhante á moderna emphyteuse, em dous dominios,
o directo do suzerano e o util feudatario, tem o seu fundamento na
jurisprudencia dos feudistas, mas esta jurisprudencia começou a
ordenar-se quando o feudalismo, como expressão do que hoje chamamos
direito poblico, dava já signaes de proxima ruina. O _Liber feudorum_,
que era nas escholas o texto principal dos commentadores, nem remontava
além da ultima metade do seculo XII, nem era verdadeiramente um codigo.
A sua auctoridade, mais scientifica do que legal, provinha de ter sido
mandado explicar na eschola de Bolonha pelo imperador Friderico I[102].
No notavel livro de Championnière, onde se apresenta sob novo aspecto a
organisação feudal, separando-se juridicamente a soberania da
propriedade, reconhece-se que a definição de feudo no _Liber feudorum_ é
inexacta[103]. Na opinião do escriptor, tão cedo roubado aos estudos
profundos, n'esta parte accorde com a historia, essa definição applicava
erradamente as idéas de direito romano sobre propriedade e usofructo a
um modo diverso de dominio territorial. A divisão d'este em directo e
util, desconhecida em direito romano, desconhecida na praxe da épocha
rigorosamente feudal, foi uma fórmula scientifica de origem obscura,
trazida pela necessidade de exprimir, não o estado real do direito
publico dos seculos X, XI e XII, mas sim o estado civil a que, pelo
predominio gradual do elemento monarchico, ficou reduzido o feudalismo.
A esta luz, póde dizer-se que elle subsistiu até os nossos dias, sem que
por isso chamemos seculos feudaes aos que teem decorrido desde o XIII
até o presente. A distincção entre as duas especies de feudalismo,
presentida já por Dumoulin (Molinêo), não creio que seja licito
esquecêl-a depois das observações de Montesquieu[104].

Que o sr. Cárdenas labora n'esse equivoco parece mostrál-o com clareza a
proposição de que o codigo feudal (allude necessariamente ao _Liber
feudorum_), addicionado ao codigo de Justiniano, servia de direito
commum. Se o auctor do _Ensaio sobre a historia da propriedade_ se
referisse ao estado social das nações modernas no periodo decorrido dos
fins do seculo IX até os principios do XIII, poderia dizer isto?
Exceptuando uma parte da Italia, como o demonstrou Savigny, as
disposições de direito romano, que se introduziram nos codigos barbaros,
ou que regeram as populações romanas em quanto as leis foram pessoas e
não territoriaes, eram as do codigo theodosiano, e dos codigos
conhecidos pelo nome de _Lex romana_, d'elle derivados. A influencia
practica, não especialmente do codigo de Justiniano, mas das Pandectas,
do Codigo, das institutas, e do _Authenticum_[105] começou no occaso do
feudalismo politico, pelo valor juridico que esse corpo de direito
adquiriu no decurso do seculo XII com o magisterio da celebre eschola de
Bolonha. O _Decretum_ de Ivo de Chartres, onde se encontram numerosos
textos de direito justinianeo, pertence já a este seculo, e as
_Exceptiones legum romanarum_, a que Savigny attribuiu maior
antiguidade, provou Laferrière que eram posteriores ao _Decretum_[106].
Antes d'isso, aquelle corpo de direito, sobretudo conhecido pelas
_Novellas_ na compilação de Juliano, apenas tinha exercido uma acção mui
limitada nas instituições e nas leis civis das épochas beneficiaria e
feudal. É por isso que com razão diz Laferrière: «O esplendido
renascimento do direito romano (justinianeo) na edade media deve-se á
eschola de Irnerio e dos glossadores. A eschola de Bolonha foi um
apostolado juridico.»

É no ensino d'esta eschola, e não na praxe dos tempos anteriores, que o
_Liber feudorum_ se associa ao direito de Justiniano. O _Livro dos
feudos_, longe de representar a sociedade feudal, representa apenas uma
phase da lucta do poder central contra a dispersão da soberania e contra
a sua incorporação na propriedade. Foi um resultado indirecto das
victorias de Friderico Barba-roxa e da dieta de Roncaglia (1154).
Compilado por mão desconhecida e offerecido ao imperador victorioso,
este ordenou, como já disse, que se lesse na eschola de Bolonha,
junctamente com os textos de direito romano. Por isso é bem pouca a sua
importancia como monumento do direito publico feudal.

O que foi, na expressão mais comprehensivel, o feudalismo como
organisação social, se em boa verdade fosse licito dar-lhe tal nome? Foi
o despotismo de uma aristocracia anarchica, que de longe e visto atravez
do prisma da nossas idéas actuaes nos apparece debaixo do falso aspecto
de systema politico. Dentro do seu feudo, e satisfeitas as condições com
que hereditariamente o adquirira, o feudatario era soberano absoluto.
Leis, fazia-as elle ou admittia as que lhe convinham. A administração
publica e o poder judicial estavam nas suas mãos. Tributava a seu
bel-prazer, batia ou falsificava a moeda, e fazia a guerra aos outros
feudatarios, e em certas hypotheses ao proprio suzerano, ou celebrava
pazes e formava allianças conforme o seu capricho ou os seus interesses.
A monarchia, a imagem do poder central, existia; mas na dependencia dos
grandes feudatarios, e não como manifestação e instrumento da unidade
social. O rei só podia considerar-se como verdadeiro soberano nos seus
dominios particulares, que ás vezes não eram mais amplos do que os de
alguns dos grandes vassallos. Cumpridos os deveres publicos d'estes para
com essa especie de suzerano dos suzeranos, a acção do rei cessava. Não
era a tyrannia de um principe despotico, que pesa na razão directa dos
meios de resistencia e a que mais facilmente escapam as condições
humildes e obscuras: era a tyrannia assentando-se á porta de todos os
oppressos, certificando-se por si propria dos gemidos de todas as
victimas. A unidade repugnava radicalmente ao feudalismo. As multidões,
as classes abjectas, isto é, laboriosas, estavam á mercê, não de uma
classe nobre, mas de nobres individuos. Não havia uma oligarchia; havia
oligarchas. As republicas aristocraticas podem constituir um estado
regular, forte, pacifico, onde imperem leis geraes civis e
administrativas, onde a segurança dos subditos, a recta distribuição da
justiça, a equidade e moderação no tributo não sejam cousas
desconhecidas. O feudalismo estava bem longe d'isso. A sua indole era
tão estranha á dos governos aristocraticos, como á das monarchias puras
ou das democracias. Era uma especie de communismo invertido e
hierarchico, isto é, um d'esses estados sociaes, em que os povos
consideram o advento do absolutismo regio como uma enorme conquista de
paz, de justiça, e, em certas relações e debaixo de certos aspectos, até
de liberdade.


V


Indirectamente, o feudalismo foi consequencia das invasões germanicas,
da ruina e desmembração do imperio romano, e das luctas travadas entre
os barbaros sobre a posse dos fragmentos do imperio; mas não foi um
resultado directo d'esses grandes factos, como alguns o teem pintado.
Derivou do modo por que, desde os fins do seculo V até os do IX, se
foram conciliando e limitando reciprocamente os elementos da vida
publica, ás vezes analogos, ás vezes repugnantes entre si, da raça
vencedora e da raça vencida; da barbaria e da civilisação. Como o feudo
foi a manifestação prominente das sociedades da Europa central dos fins
do seculo IX até o XIII, assim nos quatro seculos anteriores o foi em
maior extensão o _beneficio_. A hereditariedade transformou estes
n'aquelles, nos estados nascidos da desmembração do imperio de Carlos
Magno, transformação gradual, que, depois da morte d'aquelle homem
extraordinario, progrediu com rapidez e se caracterisou melhor,
englobando a final em si a vida social inteira.

A decadencia senil do imperio romano no periodo decorrido do IV ao VI
seculo manifestava-se no systema militar, como em tudo. O serviço de
guerra, que para os antigos romanos fora um privilegio dos cidadãos,
converteu-se em encargo dos subditos, tornando-se privilegio em vez de
deshonra a exempção d'elle. Não tardou que esse privilegio se
transformasse em expediente fiscal, e a exempção comprada, locupletando
o fisco, rareou as legiões. Mas o imperio, enfraquecido por luctas
intestinas, era ao mesmo tempo devastado pelas correrias das gentes
septemtrionaes. Buscou-se então novo expediente para esteiar o edificio
politico que ameaçava ruina. Achou-se que o melhor meio de defesa, sem
onus para o erario, consistia nas colonias militares, compostas de
barbaros, distribuidas pelas fronteiras. Tornavam-se assim os agressores
em defensores, ao menos na apparencia. Alistavam-se troços de germanos e
de outros povos do norte, e davam-se terras nos districtos de frontaria
a esses homens robustos e audazes, com obrigação de serviço militar,
obrigação que se transmittia de paes a filhos com o quinhão de terra que
se distribuira a cada individuo. Quando esses auxiliares eram germanos,
denominavam-se _letos_ (_laeti_); quando pertenciam a outras tribus
não-germanicas, designavam-se pela palavra _gentios_ (_gentiles_). A
concessão da propriedade territorial com a natureza de hereditaria,
tendo por fundamento e por impreterivel condição o serviço militar de
qualquer modo exigido, chamava-se _beneficium_[107].

É curioso ver como o systema feudal, que vulgarmente se reputa
consequencia dos costumes germanicos, está mais proximo de uma
instituição do imperio decadente, do que da clientela militar dos
barbaros. É conhecida a distincção entre as tribus mais ou menos
sedentarias, que estanceavam para além dos limites do imperio na Europa,
e as agglomerações ou bandos de guerreiros, que, saindo do seio d'essas
tribus, se precipitavam sobre as provincias romanas, quer como
invasores, quer como alliados, e que em todo o caso eram elementos
deleterios introduzidos no corpo enfermo do estado. Os letos ou os
gentios, meio romanizados, afazendo-se á propriedade territorial e aos
habitos que ella gera, representavam um termo medio entre a civilisação
e a barbaria. Defendendo o imperio, facilitavam de certo modo as
invasões, porque habituavam o romano á convivencia e logo ao predominio
do barbaro, e o barbaro a apreciar melhor as vantagens da vida
civilisada e a desprezar menos o romano quando subjugado. É por isso que
na lenta transformação das provincias do mundo latino em embriões dos
estados modernos achamos mantidos, emquanto o direito conserva o
caracter pessoal e não toma o territorial, os costumes e as leis civis
do imperio para os vencidos, ao passo que nos codigos dos vencedores
vamos encontrar substituidas ou modificadas muitas das antigas usanças
germanicas por doutrinas de direito romano.

Entre os barbaros, os chefes das hostes que vagueavam nos confins do
imperio, e que não raro invadiam e devastavam as provincias, obtinham
rodear-se de uma clientela de guerreiros, mais ou menos numerosa, pelo
sustento e por dadivas de armas offensivas e defensivas, de cavallos de
combate, e de objectos analogos. Depois da conquista, os novos
dominadores, que encontravam por toda a parte milhares de compatricios
constituindo corpos de soldadesca, retribuidos, cada um d'elles, com o
producto do respectivo predio, adoptaram o systema dos beneficios, mas
accommodando-o aos proprios habitos. Em vez de constituirem familias
militares, succedendo os filhos aos paes na posse do predio ou predios
beneficiarios, com a sujeição aos encargos pessoaes ligados a esses
predios, os antrustiões, leudes, fieis, vassos, etc., isto é, os
clientes dos reis, dos magistrados, e dos chefes militares, recebiam dos
seus patronos em _beneficio_ terras que representavam, de modo mais
amplo e mais regular, os antigos alimentos e dadivas, mas que, todavia,
eram concessões temporarias e revogaveis, ou quando muito vitalicias.
Foi só depois, na transformação do beneficio em feudo, que as obrigações
beneficiarias se acharam associadas com o dominio pleno e a
hereditariedade, restaurado assim de certo modo o beneficio romano[108].

Além da aristocracia procedida do exercicio de cargos eminentes, e sobre
tudo das altas funcções militares, analoga, portanto, á aristocracia
romana, os novos estados conservavam uma nobreza de berço ou de raça,
distincção social de origem germanica. Se não absolutamente, as duas
aristocracias confundiam-se em geral, porque de ordinario as funções
mais elevadas recaíam nessas familias illustres. Era, até,
exclusivamente do seio de algumas d'ellas que saiam pela eleição os
_koninge_ ou reis barbaros. Os membros mais poderosos d'esta
aristocracia guerreira e turbulenta, tendo-se apoderado em larga escala
da propriedade territorial, concediam beneficios aos seus apaniguados
para os acompanharem, quer nas guerras entre os diversos estados que
laboriosamente se constituiam, quer nas _faidas_ ou rixas privadas, que
diariamente se alevantavam entre elles proprios. Assim generalisado cada
vez mais, o beneficio, instituição, como acabamos de vêr, radicalmente
romana, tornou-se um modo vulgar de usufruir a terra. Na essencia,
porém, o que era elle? Certa forma economica de retribuição. Era o
soldo, o ordenado, o vencimento, a gratificação, pagos em troco de
serviços, entre os quaes, n'aquella épocha tormentosa, avultuava mais
que todos o tracto das armas. O beneficiario, em vez de receber do
estado ou do poderoso a quem servia uma retribuição pecuniaria, recebia
directamente em trabalho, em productos, ou em moeda, do tributario, do
colono, ou do servo da gleba, do productor, em summa, que fecundava a
terra, o que nos tempos modernos recebe do erario ou da bolsa do
opulento. O beneficio, temporario ou vitalicio, podia ser e era um mau
systema de retribuição publica ou privada, mas de certo não era
obstaculo á constituição de uma sociedade regular, ao passo que o feudo,
como elemento predominante das instituições politicas, não fazia senão
dar a uma anarchia despotica as apparencias de ordem e de regularidade.

Muitos escriptores teem considerado o advento do feudalismo como
necessidade fatal; como phase indispensavel no progresso das nações
modernas. Duvido da solidez d'esta doutrina, e parece-me que a historia
social das Hespanhas a torna mais que problematica. Se os successores de
Carlos Magno, assim como herdaram os vastos estados que elle lhes legou,
houvessem herdado o seu genio, e se as discordias de familia não
tivessem enfraquecido o principio da unidade e o poder central que elle
constituira vigoroso, é possivel que a hereditariedade dos beneficios
nunca chegasse a predominar, e que, pelo menos, as varias magistraturas
não se convertessem em propriedade dos que as exerciam. É sobretudo
n'este ultimo facto, cuja individuação é necessaria para bem se apreciar
a sua influencia na transformação que se operava, que vamos encontrar a
causa proxima e dobradamente efficaz da organisação ou, antes,
desorganisação feudal.


VI


As varias gentes de raça germanica, apoderando-se das provincias romanas
e constituindo ahi nações diversas, achavam n'essa nova patria um
mechanismo administrativo, judicial, e militar, que não saberiam
substituir, porque, embora oppressivo, era admiravelmente harmonico,
previdente e efficaz. Adoptaram-no, modificando-o n'aquillo que
repugnava ás suas rudes instituições ou usos inveterados. Em relação aos
caracteres e condições das magistraturas superiores de cada districto
davam-se analogias entre a sociedade germanica e a romana. Os _gravios_
teutonicos correspondiam não só aos _praesides_, _rectores_ ou
_judices_, magistrados que nas circumscripções provinciaes do imperio
exerciam o mais alto poder administrativo e judicial, mas tambem aos
_comites_ de diversos graus que dirigiam a milicia conjunctamente com os
_duces_, inferiores aos _comites magistri militum_, e ainda aos _comites
dioeceseon_, mas superiores aos _comites minores_. O _gravio_ germanico
era o principal magistrado civil e militar de cada _gau_, ou districto,
que constituia uma unidade social entre os povos teutonicos. Era elle
que presidia ás assembleas dos homens livres do _gau_, (adelingos,
arimanos, rachimburgos, etc.), que lhes distribuia justiça, e que os
acaudilhava na guerra. Como o _dux_ entre os romanos, o _herzog_
(conductor do exercito), chefe transitorio e electivo, capitaneava a
hoste, acervo dos bandos armados dos diversos _gaus_, e as suas funcções
cessavam acabada a guerra. A denominação de _koning_, que ás vezes e em
dadas circumstancias designava aquelles d'estes chefes cuja supremacia
se mantinha indefinidamente nas longas luctas da invasão e conquista,
traduziram-na os romanos pela palavra _rex_, á falta de vocabulo que
rigorosamente lhe correspondesse. D'ahi a idéa inexacta que se ligou á
natureza do poder que exerciam, e que contribuiu para se elevar esse
poder, convetendo-o em verdadeira soberania, durante o prolongado
cataclysmo donde surgiram as nações modernas.

Abaixo do _koning_, do _herzog_, do _gravio_, como abaixo do _praeses_,
do _dux_, do _comes_, havia, sobretudo na jerarchia militar, varios
cargos subalternos, uns de origem germanica, outros de origem romana.
Durante os quatro seculos em que predominou o systema beneficiario,
tanto os cargos inferiores como os superiores, romanos e germanicos,
vieram aqui juxta-pôr-se, acolá confundir-se, agora modificar-se, logo
substituir-se, e a mesma confusão reinou não raro nas attribuições que
lhes competiam, e até nos vocabulos que os designavam. Estes ficaram
sendo latinos ou teutonicos conforme preponderava nas novas sociedades o
elemento romano ou o germanico. Ás vezes empregavam-se indistinctamente
uns ou outros, tomando aliás o nome teutonico uma desinencia do idioma
latino, que se tornava geralmente a lingua official. Sirva de exemplo a
denominação do chefe superior de uma circumscripção territorial, do
_judex ordinarius_, que no latim corrupto das leis e documentos
posteriores ao V seculo, ora se chama _comes_, ora _graphio_, isto na
mesma épocha e no mesmo paiz.

Todos esses individuos que constituiam a jerarchia administrativa,
judicial, e militar, recebiam uma retribuição correspondente á sua
categoria. Além dos bens de raiz que se lhes concediam a titulo de
beneficio, desfructavam uma porção dos tributos publicos, tanto de
origem romana, os quaes se mantiveram atravez de toda a épocha
beneficiaria[109], como de origem germanica. Tal era entre os ultimos a
terça fiscal (_fredum_) das composições pelos crimes contra as pessoas
(_wehrgeld_), da qual tocava ao _judex_ o terço; tal a multa por
desobediencias ao chamamento ás armas (_heribanum_), cujo terço
egualmente pertencia ao _judex_, quer _dux_, quer _comes_, quer
designado com outra denominação.

A épocha beneficiaria não foi mais tranquilla, nem menos anarchica,
postoque por diverso modo, do que a feudal. Os monumentos d'aquelle
periodo de devastações e morticinios, as chronicas, as hagiographias, as
leis, os actos publicos, os documentos particulares, revelam-nos a cada
passo a soltura das paixões, a sanctificação da força, o vilipendio do
direito. O mechanismo social e politico era menos monstruoso que o
feudalismo, mas os costumes eram mais brutaes e ferozes. A ambição
ignorava ainda os cultos disfarces dos tempos modernos. Ao passo que o
detentor do beneficio forcejava por tornar hereditaria a posse d'elle,
os magistrados e chefes militares, sobretudo os da classe mais elevada,
buscavam supprimir a incommoda supremacia dos reis. A unidade do estado
representada pelas monarchias barbaras, mal coordenadas com os
fragmentos do imperio romano, era debil. Os dynastas não tinham melhor
titulo do que a superioridade dos recursos do proprio valor e
capacidade, e a velha nobreza de familia, nem mais segurança do que
preparar de antemão os meios para que a successão recaísse nos seus. O
principio electivo, mantido em varias partes, fazia lembrar que nas
florestas da Germania o _koning_ exercia uma auctoridade limitada e, por
duradoura que fosse, radicalmente transitoria. A tradição dizia aos seus
barões, aos seus _optimates_, aos seus _vassi_, que esse homem, chamado
rex na lingua dos vencidos, teria sido no paiz da commum origem egual a
qualquer d'elles e inferior a todos considerados collectivamente.
D'estas cogitações deviam tirar força o orgulho e a cubiça. Por outro
lado, o exemplo dos simples possuidores de beneficios, que já se não
contentavam da posse vitalicia, e que frequentemente alcançavam da
fraqueza do poder central a concessão perpetua e hereditaria d'elles, a
troco dos mesmos serviços pessoaes, limitados, e muitas vezes mal
definidos, a que estavam adstrictos, era incentivo para os funccionarios
da mais alta jerarchia, e ainda os de grau inferior, envidarem esfórços
para transformar a soberania que representavam e os proventos annexos ás
funcções que exerciam em patrimonio hereditario. Mal podiam monarchias,
sem a solidez que lhes dá o rijo cimento dos seculos, contrapôr-se a
esse conjuncto de interesses e ambições. O genio de Carlos Magno reteve
por algum tempo o impeto da revolução; mas quando a morte removeu o
obstaculo, a torrente precipitou-se com dobrada violencia. Retalhava-se
indefinidamente a auctoridade. Se o funccionario incorporava n'uma
propriedade facticia a soberania, os tributos, e os bens fiscaes, o
beneficiario, convertido em proprietario, convertia-se tambem em
soberano dentro do seu beneficio, usurpando a auctoridade dos
usurpadores. Completava-se assim a dispersão do poder central, e a
unidade do estado mantinha-se apenas pelo tenue fio das obrigações
pessoaes que ligava de menor para maior a generalidade dos
proprietarios. O capitular de Kiersy (Junho de 877), reconhecendo a
hereditariedade dos cargos, com todas as suas attribuições e direitos,
não fazia uma revolução; sanccionava uma transformação. O systema
beneficiario estava transformado e o feudalismo definitivamente
constituido.

Esta evolução vê-se despontar, crescer, precipitar-se, e triumphar a
final, desde o seculo VII até quasi os fins do IX. Corre parallela com o
ultimo periodo da monarchia wisigothica na Peninsula hispanica, com a
sua ruina pela conquista mussulmana, e depois com a fundação e
desenvolvimento da nova monarchia gothica de Oviedo e Leão. Se o
feudalismo chegou a constituir-se na restaurada monarchia christan, é
necessario que causas, senão identicas, pelo menos analogas, produzissem
o mesmo resultado. Buscal-as-hei na historia social dos wisigodos, e nos
primordios da sociedade néo-gothica. Se não as descubrir, ser-me-ha
licito duvidar de um effeito sem causa, e interrogar os monumentos que,
directa ou indirectamente, nos revelam o organismo politico e social do
occidente da Peninsula no periodo correspondente ao predominio do
feudalismo, isto é, do fins do seculo XI até os principios do século
XIII. Não é, de certo, impossivel que a ruim semente, trazida de fóra,
nascesse e prosperasse no solo da Hespanha. São tambem os monumentos que
nos hão-de dizer se os factos nos obrigam a recorrer a essa hypothese.

       *       *       *       *       *

É necessario que eu ponha deante dos olhos do leitor o que me parece
essencial na exegese da legislação wisigothica, d'onde o auctor do
_Ensayo_ deduz as suas consequencias feudaes. Só assim se poderá fazer
idéa da exacção ou inexacção das interpretações que dá ás leis, das
inferencias que d'ellas tira, e apreciar se, com effeito, n'esta ou
n'aquella instituição, n'esta ou n'aquella praxe juridica, estão como
incubados alguns elementos de feudalismo.

Transcreverei, portanto, as passagens do _Ensayo_[110] que servem de
fundamento á sustentação da these.

Eis o que o auctor nos diz: «Para dar a conhecer e, sobretudo, para
explicar devidamente a organisação da propriedade em Hespanha durante a
edade media, é indispensavel ter presente a que lhe haviam dado as leis
e os costumes dos wisigodos, quando occorreu a invasão sarracena.
D'esses costumes e leis, das necessidades que provieram da reconquista
do territorio, e do exemplo de outros paizes, conquistados tambem
n'outro tempo pelas tribus septemtrionaes e possuidos ainda por ellas,
nasceu essa organisação, tão feudal na essencia como a de Catalunha,
postoque com formas e nomes diversos. Vejamos, pois, como os principaes
elementos que vieram a constituil-a (a organisação feudal do occidente
da Hespanha) se encontravam já na sociedade e na legislação
wisigothicas.

Era um principio de direito publico entre as nações antigas que o
conquistador, por isso que o era, adquiria não só o dominio eminente,
mas tambem o dominio privado de todo o terreno que o seu poder
abrangia.[111] Em virtude d'este principio, capitães e soldados tomavam
para si as terras que, conforme a jerarchia ou merito respectivos, lhes
cabiam na repartição, deixando só aos vencidos uma parte maior ou menor
do territorio, não como reconhecimento do direito d'elles, mas sim por
considerações de conveniencia publica. Apropriaram-se, portanto, os
wisigodos as duas terças partes das terras cultivadas, e deixaram aos
hespanhoes só o terço das que possuiam.

A propriedade repartida entre a corôa, os godos conquistadores, e os
hespanhoes, veio a servir de vinculo entre as varias classes de pessoas
e de fundamento á nova organisação social. Os godos, que tiveram quinhão
na rapina, ficaram mais obrigados que d'antes a seguir na guerra e a
auxiliar com outros serviços o chefe da monarchia. Os reis distribuiram
uma boa parte das suas terras pela igreja que os ajudava a governar os
subditos, pelo curiaes e provados de côrte, e pelos servos fiscaes que
faziam produzir as herdades e contribuiam com as rendas d'ellas e com os
proprios haveres a satisfazer os encargos publicos. Os capitães e
senhores godos fizeram repartimentos analogos pelos seus clientes e
buccellarios, tanto para tirar proveito dos seus latifundios, como para
manter a propria jerarchia com servidores e defensores numerosos.

Os godos nobres foram proprietarios allodiaes e liberrimos possuidores
das terras conquistadas; mas, postoque, adquirindo-as, não contrahissem
com o estado ou com o rei nenhuma nova obrigação por lei ou por pacto,
as que já tinham para com os chefes, debaixo de cujas bandeiras haviam
militado voluntariamente, deviam effectivamente ser mais efficazes,
assim por interesse de «conservar as vantagens obtidas, como porque,
tendo residencia fixa e propriedade de raiz, era mais facil de exigir o
cumprimento d'ellas.

As terras adquiridas d'este modo foram origem de um sem numero de novas
relações individuaes, elementos necessarios d'aquella organisação
social. É sabido que nos povos de raças ou costumes germanicos existia o
patronato, em virtude do qual cada chefe ou homem poderoso tinha á sua
devoção uma clientela numerosa, que o servia na paz e na guerra e á qual
dispensava favores e dadivas. Até a conquista, costumavam estas
consistir em armas e manjares; mas quando os godos se viram donos de
vastas herdades, a cuja cultura não podiam prover por si mesmos,
repartiram muitas d'ellas pelos seus clientes ou buccellarios com
condições expressas e como paga dos seus serviços. Novidade tão
importante teve notaveis consequencias no que tocava ás relações
sociaes, porque com ella o vinculo do patronato tornou-se mais apertado
e duradouro. Familias numerosas, que d'antes vagueavam à mercê dos
accidentes da guerra ou conforme o capricho dos seus senhores, fizeram
assento em sitios certos, defendendo-se com as armas, povoando-os com os
filhos, e fecundando-os com o trabalho. Patronos e clientes ficaram
assim identificados por um interesse commum mais efficaz do que o que
poderia haver quando apenas se enlaçavam por presentes e banquetes. E
não pode duvidar-se de que, estabelecidos os godos em Hespanha, se
serviram dos seus herdamentos para constituir e estender os patronatos,
visto que uma lei do _Forum Judicum_, estatuia que o patrono que tomava
para si um cliente alheio lhe concedesse _terra_, para que elle largasse
a terra e o mais que tivesse do anterior patrono.»

O auctor declara _exorbitantes_ os direitos do patrono sobre o cliente
entre os wisigodos: 1.^o--a perpetuidade do patronato e clientela de
paes a filhos: 2.^o--a tutela das filhas do cliente passando por morte
d'este ao patrono, e perdendo ellas os bens herdados havidos do patrono
por seu pae, se casavam com individuo de condição inferior:
3.^o--pertencer ao patrono o que o cliente adquiria com seu saião ou
agente judicial: 4.^o--perder o cliente que trahia o patrono quanto
d'elle houvera, e metade do que afóra disso adquirira: 5.^o--ter o
patrono o direito de julgar, castigar e açoutar o cliente. O unico
direito do cliente era o de deixar o patrono quando queria, e de possuir
o que d'elle houvera em quanto o não deixava ou não lhe era infiel. O
sr. Cárdenas vê n'estas relações do patrono e do cliente a _verdadeira
origem_ das que se deram posteriormente entre senhores e vassallos nos
feudos propriamente dictos, e nos senhorios similhantes a elles. Depois
continua:

«Muitas das terras adjudicadas á corôa foram repartidas pelos _curiaes_
e _privados de côrte_, e pela igreja. Parece que se chamavam curiaes e
privados aquelles que, em razão das propriedades que disfructavam,
contribuiam para o erario com certos censos e prestações de fructos e
cavallos. _Eram fidalgos_, postoque possuidores de terras tributarias.

Dava além d'isso o rei as terras da corôa aos seus _fieis_, isto é, aos
que estavam ás suas ordens, que lhe faziam serviço e que guardavam a sua
pessoa.» Estes não deviam ser privados da propria dignidade nem dos bens
havidos do rei, que poderiam legar, salvo no caso de traição. «Por
ventura--continúa o auctor--não eram na essencia diversos dos que,
depois, Chindaswintho chamava _curiaes_ e _privados de côrte_, com a
differença de que uns podiam dispor dos seus bens e outros não. Davam-se
outras terras da corôa a _servos fieis_ para que as cultivassem e
contribuissem para o erario com parte dos fructos d'ellas. Era a
condição d'estes servos mui superior á dos outros.» O auctor enumera
depois em que consistiam estas differenças de que terei ainda occasião
de falar.

Omitto n'estes extractos o que é relativo á propriedade ecclesiastica.
Sejam quaes forem as reflexões que a similhante respeito o trabalho do
sr. Cárdenas possa suscitar, pouco serviriam taes reflexões para
investigar os elementos de feudalismo que elle crê encontrar na
contextura da sociedade wisigothica. Por egual razão deixarei de parte o
que pondera ácerca das manumissões e dos libertos, dos colonos, e dos
cultivadores por titulo precario. A transformação da servidão em
colonato, em adhesão á gleba, e o gradual desapparecimento do homem
livre de condição humilde, do trabalhor rural, e até do pequeno
proprietario, na grande massa dos adscriptos foi um phenomeno social,
que nem acompanhou de modo synchronico a transformação do systema
beneficiario em feudalismo, nem derivou d'este, nem finalmente
contribuiu para a sua existencia. Só mencionarei a singular
interpretação que o sr. Cárdenas dá a uma das leis do Código wisigothico
mais importantes para illustrar a obscura historia das instituições
sociaes d'essa épocha, d'aquillo a que chamamos hoje relações de direito
publico. É a que se refere á transmissão de terras pelos proprietarios a
cultivadores. «Uma lei wisigothica--diz elle--alludindo aos colonos que
os proprietarios costumavam pôr nas suas terras, suppõe ser inherente
nos mesmos colonos a obrigação de pagar ao dono certas prestações ou
censos. Dá-se a entender n'essa lei, apesar da sua obscuridade no
original latino, que se o colono (_accola_) posto pelo dono na herdade
transmittia a outro o terço d'ella (_tertiam_), isto é, a porção de
terra deixada aos romanos, o cessionario devia pagar por ella ao
senhorio do mesmo modo que o fazia o cedente. D'esta lei deduzem-se dous
factos importantes: 1.^o que os patronos davam terras de colonia aos
seus clientes: 2.^o que o terço das deixadas aos indigenas costumava ser
possuido por esses como colonos e debaixo do patronato do dono dos
outros dous terços.»

O sr. Cárdenas suppõe que desde a entrada dos godos os hispano-romanos
ficaram como estes obrigados ao serviço militar; mas reconhece que tal
obrigação não se ligava com a posse da propriedade territorial. «Os
godos de raça..... julgavam-se obrigados... a defender, ajudar e servir
o monarcha... Os hispano-romano... estavam á mercê dos seus dominadores,
tanto para os encargos da paz como para as lidas da guerra. Uns e outros
haviam de cumprir fielmente aquella obrigação nos tempos immediatos á
conquista.» E depois de lembrar as leis que coagiam ao serviço de
guerra, e sobretudo as severas providencias de Wamba, prosegue: «Bem que
todas estas apertadas disposições não se note relação alguma entre o
goso da propriedade e as obrigações militares, uma lei posterior de
Egica offerece alguns indicios d'essa relação, postoque vagos. Os servos
ficaes, que, como já disse, costumavam possuir terras da corôa, com
condições similhantes ás dos vassallos feudaes da edade media, tinham
sem duvida recebido, no acto de serem emancipados, elles ou seus
ascendentes, alguma porção d'aquellas terras, ou outra doação do seu
real patrono... Estes libertos não deviam a principio ter entre as
demais obrigações suas a de vestirem as armas, porque indubitavelmente
nos primeiros tempos era isso privilegio dos godos originariamente
livres.» Confessa o auctor, depois, que as leis de Wamba abrangiam
tambem os libertos fiscaes. Entretanto vê na lei de Egica a prova da
insufficiente efficacia d'aquelloutras leis em relação a esta classe de
libertos, ou qualquer conveniencia de uma lei especial a respeito
d'elles, e accrescenta: «Não se deve presumir que o fundamento d'esta
obrigação (a imposta especificadamente por Egica) foi a concessão de
terras que a corôa costumava fazer aos seus servos no acto de lhes dar
alforria?

Tambem existem indicios da mesma obrigação na que tinham os curiaes e os
clientes para com os respectivos patronos, derivada das suas relações
especiaes, e das liberalidades que estes faziam áquelles. Conforme uma
lei já citada, os _curiaes e privados de côrte_ deviam dar cavallos ao
rei (_caballos ponere_) o que na linguagem d'aquelle tempo significava
servir o principe com cavalleiros armados. Tendo os curiaes os seus bens
gravados com este encargo, é claro que a posse d'elles envolvia em si o
dever do serviço militar. Outras leis do mesmo codigo mostram que os
patronos davam aos seus clientes armas ou outras cousas que estes
perdiam quando deixavam o serviço d'elles; donde deve inferir-se que os
buccellarios contrahiam a obrigação de servir com ellas aos seus
senhores, do mesmo modo que os clientes aos patronos germanicos, e os
vassallos aos senhores feudaes.

A jurisdicção e o poder publico egualmente se não consideravam ainda
como derivando do dominio privado da terra... Porém, se não era esta a
origem immediata da jurisdicção, já começava de certo modo a fundal-a
creando relações sociaes que a produziam, embora limitada. Exercia-se a
jurisdicção em geral por delegados regios, chamados duques, condes,
vigarios, _assertores pacis_, tiuphados, millenarios, centenarios,
decanos e defensores, ou pelo rei pessoalmente, e ás vezes pelos bispos.
Mas, afóra isso, existia outra especie de jurisdicção privada, a dos
senhores sobre seus escravos, e a dos patronos sobre os seus clientes. A
primeira procedia do dominio senhorial, e postoque inicialmente não
tivesse nenhuma relação com a propriedade territorial, chegou de certo
modo a depender d'ella quando os servos ficaram perpetuamente adscriptos
á gleba e se lhe reconheceu por costume o direito de não serem separados
dos predios onde trabalhavam. Transmittida tal jurisdicção com esses
predios, claro está que o adquirente obtinha, em virtude da acquisição,
a auctoridade correlativa sobre aquelles que ahi habitavam e os
grangeavam. Quando estes servos eram manumittidos com a condição de
ficarem adscriptos ao solo, sem duvida melhoravam de situação; mas não
saíam de todo do poder dos seus senhores, os quaes continuavam a ter
sobre elles a mesma jurisdicção que tinham anteriormente.

As leis wisigothicas.... ordenavam que os servos, réos de homicidio ou
d'outro crime capital, fossem sujeitos ao julgamento publico e não
julgados pelos senhores... A jurisdicção dominical estendia-se a todos
os delictos não capitaes, e ainda aos capitaes consentindo-o os juizes.

Tambem as leis wisigothicas presuppõem nos patronos a faculdade de
castigar com açoutes os que estavam postos debaixo do seu patrocinio,
que eram os libertos e os clientes ou buccellarios. Não especificam
essas leis os limites d'este poder nem a fórma de o exercer; mas
reconhecem-no positivamente, declarando irresponsavel aquelle que, no
acto de castigar o seu pupillo, patrocinado, ou servo, lhe causava
involuntariamente a morte.»

       *       *       *       *       *

É do complexo das precedentes disposições legaes, e dos factos que
d'ellas crê resultarem, que o sr. Cárdenas deduz, como já vimos, que,
embora a propriedade entre os wisigodos não tivesse _todos_ os signaes
caracteristicos do feudalismo, encerrava como em incubação _todos_ os
germens d'elle.


VII


É, pois, quasi exclusivamente nas leis do Codigo wisigothico que o sr.
Cárdenas vai encontrar os elementos feudaes que, na sua opinião, se
desenvolveram e completaram nas monarchias neogothicas. Para apreciar o
valor d'este celebre monumento cumpre dizer algumas palavras sobre a sua
origem e sobre a sua historia.

Na exposição e interpretação das leis d'esse codigo, em que o auctor do
_Ensayo_ pensa estribar a propria doutrina, ha, a meu ver, um defeito
grave. É a confusão das épochas, o que não raro o illude sobre o valor e
significação dos textos. No estado em que chegou até nós, essa
compilação legal é um complexo, uma collecção de leis quasi
exclusivamente civis, criminaes, e relativas à ordem do processo,
estatuidas em diversos tempos atravez de dous seculos: é o resultado de
successivas reformas de um codigo primitivo; e representa modificações
graduaes realisadas, ou pelo menos tentadas, nas relações civis e na
administração da justiça. Para a historia da propriedade, como para a de
outra qualquer condição da existencia social, é indispensavel que não
apreciemos aquelles monumentos legislativos como juxta-postos n'um plano
uniforme, mas que os observemos na sua concatenação chronologica.

O Codigo wisigothico ou _Livro dos Juizes_, dividido por materias, ao
menos intencionalmente, e em livros e titulos, deve, como fonte
historica, dividir-se de diverso modo. Posta de parte a intenção
scientifica da sua distribuição, as leis n'elle contidas constituem tres
grupos distinctos:--o das que na respectiva rubrica são designadas pela
palavra _antiqua_;--o d'aquellas que na rubrica se attribuem
expressamente a tal ou tal rei;--finalmente, o das leis em cuja rubrica
nem se exprime o nome do auctor, nem apparece a designação de _antiqua_.

Infelizmente as numerosas copias que serviram para a edição d'este
importante monumento, feita pela Academia de Madrid nos começos do
seculo actual, são comparativamente modernas, e em todas ellas as
rubricas foram transcriptas com maior ou menor negligencia, de modo que,
faltando a qualificação de _antiqua_ e não sendo o auctor de qualquer
lei uniformemente designado em todos os codices ou mencionado no proprio
texto da lei, só por conjecturas chegaremos a approximar-nos da certeza
sobre o reinado em que foi promulgada ou se pertence á collecção antiga.
Se existissem exemplares dos traslados authenticos que se mencionam no
proprio codigo[112], seria possivel determinar as differenças entre as
varias redacções d'elle, e assignar a épocha de cada uma das leis
avulsas ahi inseridas successivamente, para o que as rubricas seriam
guia segura; mas nenhum de taes exemplares é conhecido nem provavelmente
existe. Não devendo a ultima redacção ser posterior aos fins do VII
seculo, e não remontando cópia alguma das existentes além do IX[113], á
falta de qualquer outro indicio, não haverá razão para crer que o
copista d'esta épocha fosse menos negligente do que os do X ou XI, ou
que não a estes mas áquelle tivesse servido ou deixado de servir de
texto um antigo exemplar authentico.

Abstraindo, porém, dos erros e omissões em que n'este ponto possam ter
caido os copistas dos varios codices que restam do _Liber Judicum_, a
proproção entre os tres grupos, na ordem em que ficam mencionados, é
proximamente e em numeros redondos 220, 240, 110. D'estas ultimas cumpre
diminuir as 15 que constituem o livro I e que não são actos
legislativos, mas sim considerações de ordem moral ácerca dos deveres do
legislador e dos caracteres da lei. As restantes são na maxima parte
qualificadas de _antiquae_ n'um dos manuscriptos mais auctorisados, o do
cabido de S. Izidro de Leão, manuscripto que parece ter sido considerado
no tempo de S. Fernando, elle ou outro texto identico, como texto
official para se fazerem as versões vulgares[114].

A Academia de Madrid omittiu a qualificação de _antiqua_ quando faltava
na maioria dos codices, embora se encontrasse em algum e nas rubricas
dos outros não se attribuisse a lei a nenhum rei determinadamente. Mas
parecendo razoavel acceitar em geral o texto legionense como mais digno
de fé, ainda suppondo que nas indicações d'elle haja um ou outro
equivoco, pode dizer-se que as leis denominadas vagamente _antiquae_
excedem em numero as que na rubrica individuam o nome do respectivo
legislador. D'aqui resulta evidentemente que na conjunctura da invasão
sarracena havia na legislação gothica duas partes distinctas: uma que se
considerava como principal fonte do direito escripto; como corpo de
doutrina, digamos assim, impessoal, representando a tradição juridica da
antiga sociedade gothica: outra que continha as reformas e as novas
codificações de Chindaswintho e de seu filho Receswintho, de Ervigio e
de Egica, em que se incluiam algumas constituições avulsas de outros
reis godos adoptadas pelos mais recentes reformadores. Na minha opinião,
as _antiquae_ correspondem á épocha decorrida de Eurico a Leovigildo; e
as novas á que se estende do reinado de Reccaredo até o reinado de
Egica. No pequeno numero d'aquellas em cuja rubrica se lêem as palavras
_antiqua noviter emendata_ é que não é possivel distinguir o que
pertence a cada uma das duas épochas.

A publicação de um fragmento do primitivo codigo dos wisigodos
conservado n'um palimpsesto do mosteiro de Corbie, fragmento descuberto
pelos maurienses, transcripto modernamente por Knust, e dado á luz por
Bluhme em 1847[115], lançou luz inesperada sobre as origens da
legislação dos godos. Seguindo as indicações de Lucas de Tuy, Bluhme viu
neste fragmento uma parte do resumo do codigo gothico que o auctor do
_Chronicon Mundi_ attribue ao filho do Leovigildo. O professor Gaupp
combateu com razões vehementes os fundamentos da opinião de Bluhme,
attribuindo muito maior antiguidade ao fragmento, e estribando-se n'uma
auctoridade mais solida do que a de Lucas de Tuy, a de S. Isidoro, para
lhe dar por auctor Eurico. Merkel, o erudito editor da _Lex Alemanorum_
na grande Collecção de Pertz, tomou vigorosamente a defeza da opinião de
Bluhme, mostrando a impossibilidade de se attribuirem a Eurico as leis
do _Liber Judicum_ denominadas _antiquae_, que são evidentemente a
reproducção mais ou menos alterada do codigo de que fazia parte o
fragmento do palimpsesto. Pétigny, n'um trabalho que se distingue pela
penetração e lucidez, assenta que esse antigo codigo, cuja existencia é
indisputavel á vista do manucripto de Corbie, teve por auctor o mesmo
Alarrico II que promulgou o _Breviarium_ como lei pessoal dos seus
subditos gallo-romanos e hispano-romanos. É a hypothese que me parece
mais plausivel[116].

A lei 277 do fragmento obriga forçosamente a escolher entre a opinião de
Bluhme e a de Pétigny. Resulta d'essa lei que o auctor d'aquelle codigo
era filho e successor de um rei legislador. Ora pelo testemunho de S.
Isidoro sabemos que antes de Eurico, pae e antecessor de Alarico II, os
wisigodos não tinham leis escriptas, regendo-se por costumes
tradicionaes, e depois d'isso o unico rei o que celebre bispo de Sevilha
menciona como reformador do código gothico é Leovigildo, pae de
Reccaredo I. Depois de Reccaredo só consta da existencia da compilação
de Chindaswintho e Receswintho, que representa uma tentativa de
conversão do direito pessoal em real ou territorial, e que com as
successivas modificações de Ervigio e algumas leis de Egica constitue o
que hoje chamamos Codigo wisigothico.

Na opinião de Lardizabal (em cujo tempo era desconhecido o texto do
palimpsesto de Corbie), opinião adoptada por Gaupp e por Haenel, as
_leges antiquae_ representam o codigo gothico primitivo, e pertencem á
compilação legislativa que S. Isidoro parece attribuir a Eurico. Assim o
fragmento de Bluhme, cuja similhança com as _leges antiquae_
correlativas é evidente, constituiria uma parte desse codigo primordial
de Eurico. Mas uma simples observação de Bluhme destroe a opinião
adoptada por Gaupp e Haenel. É que o capitulo 285 do texto palimpsesto é
a reproducção da _interpretatio_ do _Breviarium_ ao liv. II, tit. 33, l.
2, do Codigo theodosiano. Sendo, porém, o _Breviarium_ compilado por
ordem de Alarico II, e promulgado nos primeiros annos do seculo VI, não
podia o seu antecessor ter ido nos meados do V seculo buscar lá o texto
de uma lei. Independente d'isso, e conforme já se advertiu, o fragmento
do palimpsesto, ou por outra o codigo a que pertenceram inicialmente as
_antiquae_, não póde attribuir-se a um principe, cujo pae não fosse
legislador, como se deduz do proprio fragmento, e supposto o facto
attestado por S. Isidoro de que anteriormente a Eurico os godos se
regiam por costumes tradicionaes, e não tinham leis escriptas. É por
isso que, excluido Reccaredo, a nenhum outro rei anterior a Leovigildo
se póde attribuir o codigo a que pertencia o fragmento de Corbie senão a
Alarico.

Tudo, pois, conspira em levar a um alto gráu de probabilidade a opinião
de Pétigny, cujos fundamentos se podem ver no seu excellente trabalho,
regeitada não só a hypothese de Bluhme, mas tambem a de Lardizabal e de
Gaupp, embora esta pareça fundar-se na grande auctoridade de S. Isidoro.

Digo _pareça_, porque a interpretação que se tem dado a duas passagens
da _Historia Gothorum_ não a creio indisputavel[117]. Na primeira diz S.
Isidoro que os godos _principiaram_ (_coeperunt_) no reinado de Eurico a
ter disposições legislativas por escripto; porque antes d'isso regiam-se
_tão somente_ (_tantum_) por usos e costumes. A inferencia rigorosa
d'estas palavras não se me afigura ser de que Eurico incorporou n'um
codigo escripto os usos e costumes dos godos; mas sim que promulgou por
escripto as proprias leis, as quaes vigoraram a par do direito
tradicional. A passagem relativa a Leovigildo deve, a meu ver,
significar que, no corpo ou collecção das leis (_in legibus_), este
principe corrigiu ou aclarou as disposições legislativas de Eurico que
pareciam confusas, suscitando além d'isso algumas leis omittidas, e
supprimindo muitas inuteis. N'esta referencia á refórma de Leovigildo
vejo a existencia de um codigo, ou de uma collecção, na qual se contém
certo numero, maior ou menor, de leis confusas de Eurico que Leovigildo
corrige, e onde ao mesmo tempo introduz certas leis, necessarias ou
uteis, bem que postas de parte, e supprime muitas caidas em desuso e por
tanto inuteis. Não alcanço bem como se emendariam as obscuridades, as
confusões dos actos legislativos de Eurico, pondo e tirando leis na
collecção. São evidentemente dous factos distinctos. _In legibus, ea
quae ab Eurico inconditè constituta_, etc. é forçosamente diverso de
_Leges ab Eurico inconditè conflatas_, como diria S. Isidoro, se
existisse um corpo de leis ou codigo de Eurico, e as correcções feitas
por Leovigildo a esse codigo tivessem consistido em restituir leis
omittidas por elle, o que supporia a existencia de um codigo mais
antigo, e em supprimir as inutilmente conservadas.

Admittido, porém, o que seria por si só assás provavel, isto é, que
Alarico, ao passo que fazia redigir o _Breviarium_ para uso dos subditos
gallo-romanos e hispano-romanos, coordenava para os homens da sua raça
um codigo contendo as leis de Eurico, as modificações que aos antigos
usos e costumes germanicos traziam forçosamente as novas condições
sociaes dos godos, e bem assim as disposições de direito romano
convenientes ou necessarias á sociedade barbara como se achava agora
constituida, o palimpsesto de Corbie e a passagem de S. Isidoro
esclarecem-se mutuamente. Na épocha de Leovigildo tinha passado quasi um
seculo desde que Eurico dilatara os estreitos limites de Westgothia e
constituira um estado assas vasto no sul das Gallias e na Hespanha. As
leis que esse engrandecimento tinha obrigado o conquistador a promulgar,
e que do palimpsesto vemos terem sido incluidas ou mandadas guardar no
codigo gothico de Alarico, agora que os godos se tinham achado por tanto
tempo em intimo com a civilisação romana, deviam carecer de
modificações, e não só ellas, mas tambem outras leis do codigo em que
estavam contidas. Das reformas politicas feitas por Leovigildo
restam-nos vestigios, embora obscuros e fugitivos[118]. A revisão das
leis civis e criminaes era um conectario natural d'essas reformas,
factos ambos tornados indubitaveis pela affirmativa de uma testemunha
tal como o celebre bispo de Sevilha.

Escriptor contemporaneo, e um dos homens mais instruidos se não o mais
instruido do seu tempo, S. Isidoro, irmão de S. Leandro e seu successor
no episcopado, fôra testemunha e naturalmente actor no drama politico da
substituição do catholicismo ao arianismo como religião do estado. S.
Leandro fizera n'essa mudança o principal papel, e de certo a nenhum dos
dous irmãos era cara a memoria de Leovigildo, grande principe, mas
ferrenho ariano. Escrevendo resumidamente a historia dos godos, S.
Isidoro não podia deixar de mencionar um dos factos mais importantes do
reinado de Leovigildo--a reforma do codigo. Por maioria de razão, se
algum dos principes catholicos, desde o converso Reccaredo até Suintila,
em cujo reinado termina a sua _Historia Gothorum_, houvesse emprehendido
e levado a cabo uma nova revisão do codigo, elle não esqueceria esse
notavel facto, elle que tanto os exalta sem exceptuar o proprio
Suintila, cuja deposição depois ajudou a sanccionar no IV concilio de
Toledo. O silencio de S. Isidoro é eloquente.

Mas ha uma circumstancia que me parece decisiva no assumpto. As leis
contidas no fragmento de Corbie correspondem geralmente a outras tantas
leis do _Liber Judicum_ designadas como _antiquae_. Raras correspondem
ás _antiquae noviter emendatae_, e apenas quatro, de que só restam
poucas palavras soltas, podem suspeitar-se analogas a quatro leis da
compilação moderna, que n'uns codices teem a qualificação _antiqua_,
n'outros são attribuidas a Chindaswintho. Entre as que estão completas
ou quasi completas e as _antiquae_ correspondentes ha numerosas mudanças
de phrase, que ás vezes modificam a substancia da lei. Sendo, porém, o
inedito publicado por Bluhme um fragmento do primitivo codigo, é forçoso
que as _antiquae_ pertençam á reforma de Leovigildo, visto não constar
da existencia de outra revisão anterior á de Chindaswintho e
Receswintho.

Confirma isto mesmo a especificação dos principes que promulgaram as
outras leis successivamente addicionadas ao codigo, especificação que
não remonta em nenhum manuscripto além de Reccaredo. É preciso não
esquecer que a revolução religiosa sanccionada pelo habil filho de
Leovigildo alterou profundamente as condições politicas da sociedade. O
elemento hispano-romano, pela influencia que os concilios desde o III de
Toledo começaram a exercer nas cousas temporaes, punha-se politicamente
a par do elemento germanico. Abstrahindo dos oito nomes gothicos dos
bispos que abjuraram o arianismo, os nomes greco-latinos da quasi
totalidade dos prelados que intervieram n'aquella assemblea são
sobejamente significativos. A preponderancia do clero catholico ou
hispano-romano trouxe, como não podia deixar de trazer, importantes
modificações no estado social. Na legislação, como em muitas outras
cousas, a figurada conversão dos godos divide a historia do dominio
d'estes na Peninsula em duas épochas: a _antiga_ do codigo alariciano
reformado por Leovigildo; a _moderna_ das leis avulsas que o modificaram
ou augmentaram, e que com elle foram systematisadas primeiramente nos
reinados de Chindaswintho e Receswintho, depois nos de Ervigio e de
Egica.

Disse que esta épocha moderna corre desde o reinado de Reccaredo I até o
de Egica. Tem-se duvidado se existem actos legislativos de
Reccaredo[119]. De uma lei de Sisebutho consta, porém, com certeza que
elle promulgara uma constituição ácerca dos escravos dos judeus[120].
Effectivamente no III concilio de Toledo, em que se começaram a tractar
assumptos de ordem civil, embora por indicação do rei e com assenso dos
officiaes palatinos, estatuiu-se no canon 14 que os judeus não podessem
ter mulher, creada, ou escrava christan, e que os filhos havidos d'estas
fossem baptizados. As leis hostis aos judeus romantam, pois, áquelle
reinado, e a referencia de Sisebutho a uma constituição de Reccaredo,
d'onde se vê que se estendeu a disposição do concilio aos escravos do
sexo masculino, prova que, ao menos em relação a este assumpto, é
Reccaredo que deve contar-se como o primeiro legislador da épocha
moderna; nem é impossivel que varias leis do codigo que em mais de um
dos textos manuscriptos se lhe attribuem sejam realmente d'elle. Deve
ultimamente notar-se que nas referencias feitas nas leis dos successores
de Reccaredo a alguma das designadas pela rubrica _antiqua_, a
referencia é sempre impessoal, é sempre ás _priscae leges_, e que
Sisebuto referindo-se á constituição ácerca dos judeus exprime o auctor
da lei.

Existem, pois, em geral dous corpos distinctos na legislação dos
wisigodos: a compilação alariciana revista e alterada por Leovigildo; e
a reforma posterior á victoria do catholicismo, reforma representada
pela substituição de um codigo territorial ao direito pessoal, ás _leges
wisigothorum_ e á _lex romana_, codigo ainda uma vez accrescentado e
alterado pouco antes da dissolução da sociedade godo-romana. Mas
notes-se bem: esta distincção chronologica refere-se em geral á doutrina
das disposições contidas no _Liber Judicum_, e nem sempre á sua letra e
forma externa. Há alterações evidentes de redacção n'algumas _antiquae_,
em que aliás falta a rubrica _antiqua noviter emendata_. Podem estas
ser, não intencionaes, mas resultado ou da irreflexão ou da inhabilidade
com que foram transferidas para o moderno codigo.


VIII


Considerado como um dos diversos modos de usufruir a terra, luz a que os
civilistas principalmente o vêem, o systema feudal pertence ao direito
civil, e quasi se confunde com o systema emphyteutico. Mas, quando
dizemos que em qualquer épocha ou em qualquer paiz dominou o feudalismo,
formulamos uma concepção de ordem inteiramente diversa; referimo-nos ás
instituições sociaes; ao que hoje chamamos direito publico. Para
podermos, pois, affirmar que na sociedade wisigothica estavam em
incubação todos os elementos do organismo feudal, os quaes sem a
conquista mussulmana teriam produzido na Hespanha um feudalismo
inteiramente similhante ao da Europa central, é preciso que examinemos a
estructura do corpo politico e o complexo das relações do individuo com
a sociedade. Mas para isto bastará acaso recorrer ao Codigo wisigothico,
quer na parte antiga quer na moderna? Creio que não. Que se me permittam
algumas considerações geraes antes de expôr os motivos d'esta minha
incredulidade.

Queremos achar estatuido sempre nos codigos barbaros o direito que regia
quer a vida civil quer a vida publica dos homens d'aquelles tempos.
Vemos a cada momentos a edade media pelo prisma dos nossos habitos;
pelas idéas que nos tornou congenitas uma civilisação incomparavelmente
mais adeantada. As proprias locuções com que o escriptor precisa de
exprimir-se para evitar longas periphrases, ou para ser comprehendido
por aquella parte do publico, á qual os livros sobre taes assumptos são
especialmente destinados, conduzem os leitores a conceberem
inexactamente os factos. Os vocabulos _instituições_, _direito_, _lei_,
e outros analogos, despertam em nós a idéa de preceitos, de regras de
vida civil, escriptos n'alguma parte, absolutos, precisamente definidos,
com data sabida, promulgados com solemnidade, e applicados
permanentemente aos casos previstos n'esses preceitos ou regras. Nas
relações juridicas, o modo de ser das novas sociedades em via de
formação era diverso. Na minha opinião, os codigos barbaros,
considerados cumulativamente e no todo de cada um d'elles, longe de
representarem as instituições juridicas iniciaes, espontaneas, da varias
tribus germanicas que, avassallando as provincias do imperio, começavam
a constituir as nações actuaes, representam antes a lucta da esplendida
civilisação que expirava e dos arrebóes da civilisação que ia nascer com
a barbaria triumphante. Por profundas que sejam as trevas em que achemos
submerso o espirito humano nas épochas tristes da sua historia, sempre
ha no meio d'essa immensa noite intelligencias que se alteiem como
pharoes e liguem com os seus clarões, ás vezes bem tenues, a luz que foi
com a luz que ha-de ser. Nas regiões do direito, os legisladores
barbaros foram estes pharoes. A _lex romana_, promulgada ou antes
mantida por toda a parte para uso dos vencidos, era a pompa funebre da
civilisação que expirava: a _lex barbara_, wisigothica, salica,
burgundia, ripuaria, bavara, etc. era o protesto e o testamento, mais ou
menos rude, incompleto, confuso, d'essa mesma civilisação em beneficio
do futuro. Assim, na penumbra d'aquelles codigos, emmaranhados e
fluctuantes na phrase, desordenados na contextura, insufficientes no
complexo das suas disposições, estavam os costumes juridicos
tradicionaes das tribus germanicas, que descortinamos ás vezes n'uma
allusão obscura; costumes que resistiam e se mantinham independentes da
lei escripta, e até ás vezes apesar d'ella.

Se pozermos de parte, digamos assim, as nossas preoccupações
scientificas, o nosso poder de generalisação, os nossos habitos de
regularidade, os nossos methodos e formulas, o cumulo, em summa, dos
grandiosos resultados de alguns seculos de civilisação sempre crescente,
e nos transportarmos em espirito ao meio d'aquelles como que embryões de
sociedades, conceberemos facilmente qual deva ser a insufficiencia dos
codigos barbaros para nos revelarem o quadro completo da vida juridica
d'então. Porque e para que, n'uma épocha em que a escriptura era por
muitos motivos obra difficultosa e rara, se haviam de pôr por escripto,
e decretar como deveres legaes, actos ordinarios da vida civil que todos
practicavam, ou reconhecer direitos que se podiam offender, mas cuja
legitimidade ninguem disputava? Que vantagem havia em crear legalmente a
funcção e o funccionario que já existiam? O consuetudinario dispensava o
legislativo, quando a lei não tinha por objecto restringir, modificar,
ou abolir a instituição ou o costume. A difficuldade toda estava em
tornar effectivas essas reformas que se contrapunham a praxes e a
opiniões inveteradas. Quantas vezes a lei escripta seria letra morta e o
uso tradicional continuaria a dominar? Os actos legislativos de uma
épocha, em que se renovam disposições estatuidas já n'um épocha
anterior, não significam senão a impotencia da lei ante os usos
radicados. A má distribuição e circumscripção das funcções publicas e
magistraturas, exercidas de ordinario por homens sem nenhuma especie de
disciplina intellectual, e habituados a dirigir-se pelas normas
recebidas de seus maiores, eram tambem poderosos obstaculos á realisação
practica dos codigos barbaros, quando contrariavam antigas idéas e
antigas praxes. Não raro os que deveriam ser os seus principaes
mantenedores seriam os primeiros em postergal-as.

Estas considerações, applicaveis em geral aos monumentos legislativos da
edade media, especialmente aos mais antigos, são-no sobretudo ao direito
escripto dos wisigodos, no qual, além d'isso, se dá uma circumstancia
digna de notar-se.

O _Liber Judicum_, como chegou até nós, é o que este titulo exprime: é o
manual, o guia do _judex_, o livro que o dirige no exercicio da sua
auctoridade, menos intensa, menos independente que a do juiz dos tempos
modernos, mas incomparavelmente mais extensa, porque da distincção do
judicial, do administrativo, e do fiscal, apenas existiam vislumbres nas
monarchias barbaras. O _Liber Judicum_ tem um destino especial,
restricto. Não organisa a sociedade: suppõe-na constituida. Suppõe a
necessidade de punir delictos e de resolver collisões de direitos.
Quando Receswintho abroga toda e qualquer legislação diversa do novo
codigo, a forma por que promulga este é caracteristica. Não sancciona em
abstracto direitos e deveres communs: vê apenas o libello ou o debate
forense, e prohibe que se invoque no fôro outro corpo legal. Dirige-se,
não aos subditos, mas aos juizes, a quem recommenda mandem rasgar
qualquer corpo de leis que alguem ouse invocar apresentando-o no
tribunal[121].

Assim, é obvio que o _Livro dos Juizes_ não pode subministrar-nos senão
especies incompletas sobre a constituição do estado, sobre o organismo
da sociedade; e isso mesmo de modo indirecto. É, portanto, necessario
buscar ao lado d'esse direito escripto, d'essas leis exclusivamente
destinadas á solução dos pleitos, a tradição juridical da vida
collectiva dos wisigodos. Essa tradição, abrangendo tambem as principaes
relações da vida privada, devia achar-se frequentes vezes em
contradicção com as leis escriptas, em que é impossivel desconhecer,
ainda nas mais remotas, a influencia das doutrinas de direito romano
luctando contra os costumes germanicos, e supprindo a insufficiencia
d'estes para reger a nova situação em que depois da conquista se achava
a sociedade barbara.

No proprio _Liber Judicum_ se descobre ás vezes a lucta latente dos
costumes com o direito escripto. Achamos ahi, por exemplo, entre as
_antiquae_, a lei penal relativa ao homicidio voluntario:

«Quem quer que, não por acaso, mas de proposito matar alguem, seja
punido pelo homicidio.»[122]

Mas qual era a punição? É o que a lei não diz. A punição a que a lei
allude pode ser a _faida_, a vingança privada dos parentes do morto;
pode ser a composição ou _wehrgeld_ facultativo ou forçado. Vejamos se
alguma lei diversa esclarece esta notavel obscuridade.

Prevê-se no codigo a hypothese de que algum desattendo simulando uma
aggressão ou vibrando em tropel confuso um golpe ao acaso, d'ahi resulte
um homicidio. Provado que não houvera má tenção, a lei estatue o
seguinte:

«O que feriu não ficará infamado de assassino nem sujeito á pena de
morte, visto não ser voluntario o homicidio.[123]»

É indirectamente, quando se tracta de uma hypothese em que se exclue a
applicação d'ella, que o legislador declara ser a morte a pena do
homicidio.

Na parte moderna do codigo a lei contra os homicidas promulgada por
Chindaswintho, ou, segundo o codice legionense, refundida por elle, é
perfeitamente explicita.

«Se alguns homens livres de commum accordo resolverem a perpetração de
um homicidio, o matador será condemnado á morte, e os cumplices,
postoque não matassem, por isso que intervieram na trama, recebam
duzentos açoutes, e sejam descalvados.[124]»

No complexo d'estes textos descobrimos o progresso gradual das idéas
juridicas. Na épocha verdadeiramente gothica a repressão social dos
crimes contra as pessoas titubêa ainda ante a tradição germanica da
vindicta privada, substituida já então, postoque não de todo, pela
composição, pelo _wehrgeld_. É muito depois que o legislador affirma sem
hesitação que a vindicta passou do individuo para a sociedade; que ao
assassinio corresponde o ultimo supplicio. Mas ainda assim a doutrina da
lei realisava-se nos factos? Não o acredito. O systema das composições
devia continuar-se na praxe. Era já um grande passo na manutenção da
ordem publica, e o _fredum_, ou quota tributaria deduzida do _wehrgeld_,
um dos principaes proventos do fisco. A composição pecuniaria, eximindo
da pena afflictiva, apparece-nos francamente estatuida nos delictos
menos graves e, digamos assim, meia occulta na penumbra das leis
draconianas relativas aos crimes atrozes. Tomemos como exemplo a lei
contra os incendiarios, qualificada como _antiqua_ na edição da
Academia, mas sem auctor nem rubrica nos principaes codices.[125] É uma
d'aquellas que nos revelam a existencia da sociedade real atravez, por
assim dizer, da sociedade legal. É curiosa a sua analyse.

Por esta lei o incendiario, que _na cidade_ lançava fogo a uma casa,
tinha a pena de ser queimado vivo. Quaesquer damnos que do incendio
resultavam para o offendido, bem como o valor da casa queimada, tudo era
pago pelos bens do reu. _Fóra das cidades_ o incendiario devia receber
cem açoutes, e restituir o valor de tudo quanto ficasse queimado. Esta
differença monstruosa entre crimes identicos, differença determinada
pela diversidade de logar, lança luz inesperada sobre a indole da
sociedade n'aquella obscura épocha. São a tradição juridica dos
hispano-romanos e a dos godos que se accumulam na redacção de
Chindaswintho e Receswintho sem que possam fundir-se. Todos sabem quanto
repugnava aos germanos viver no ambito das cidades, e como as populações
romanas ou romanisadas se agglomeravam de ordinario nos grandes centros
urbanos. Durante a invasão dos barbaros os habitantes da Peninsula
deviam refugiar-se, concentrar-se ainda mais nas cidades, e os
conquistadores, apoderando-se de dous terços de grande numero de
propriedades ruraes, das _sortes gothicae_, estabeleciam naturalmente a
residencia nos seus predios immunes, mantendo ahi os velhos costumes da
raça germanica. Assim, a profunda differença da penalidade que a lei
applica ao incendiario da habitação urbana e ao incendiario da habitação
rural pode explicar-se por esse facto. O hispano-romano concebia e
acceitava a pena capital em muitos delictos; mas é pouco crivel que as
tradição dos godos admittissem a pena de morte[126]. O barbaro acceitava
nos crimes contra as pessoas a vindicta particular, e em logar d'ella a
composição que a remia. Tambem a pena de açoutes, tão largamente
applicada pelo codigo wisigothico a grande numero de delictos, e que
n'esta mesma lei é imposta ao incendiario fóra das cidades, é
essencialmente germanica. Na épocha descripta por Tacito os sacerdotes
germanos tinham a prerogativa de punir por esse modo os crimes, não como
magistrados, mas como ministros da divindade, e os costumes conservaram
depois da conversão dos barbaros a antiga usança religiosa na tradição
civil.

Se d'aqui a alguns seculos, dos variadissimos monumentos que hão-de
instruir os vindouros ácerca do modo de ser das sociedades actuaes, não
restasse mais nada senão a legislação e alguns raros e desconnexos
documentos e memorias, os historiadores de então podiariam provar com as
leis na mão que a usança estolida e feroz do duello deixara ha muito de
existir. Mostrariam, além d'sso, o absurdo, o anarchronismo, a
incongruencia de suppôr que, no meio da nossa immensa civilisação, da
brandura dos nossos costumes, appellavamos nas questões mais graves do
homem de hoje, as da sua honra, para o mais barbaro e inepto dos
_Ordalia_ ou _Urtells_[127] germanicos, fazendo connivente a justiça de
Deus com a força ou com a destreza.

A existencia do combate singular, de que o moderno duello é uma
degeneração, omitte-se no _Forum Judicum_ como prova judicial. Dos
_Urtells_ apenas ahi parece transigir-se, em casos restrictos, com a
prova da agua a ferver (_caldaria_), e ainda assim como prova incompleta
e apenas indicio para se proceder aos tractos[128]; sendo, porém, de
notar que a lei se limita a determinar os casos em que esse meio de
averiguação deve ser usado. Não o descreve, não lhe assignala condições.
É evidentemente uma cousa que todos conhecem, que está na praxe, e de
que o legislador se aproveita para em certas hyptheses evitar o abuso
dos tractos. O que absolutamente elle parece não tolerar nos costumes e
tradições germanicas é o combate singular. Não ha em todo o Codigo, como
hoje o possuimos, a menor allusão a elle. E, todavia, sabemos que o
duello judicial se perpetuou entre os wisigodos até os ultimos tempos da
monarchia. Os districtos que além dos Pyrenéus constituiam parte do
reino wisigothico, pela invasão dos sarracenos e com as victorias de
Carlos Martelo e dos seus successores, vieram a unir-se ao vasto imperio
de Carlos Magno. Não só a população gallo-romana, mas tambem os godos
que estanceavam por aquelles districtos, e muitos dos da Peninsula que
alli buscavam refugio, ficaram assim incorporados nos estados frankos, e
a respeito d'elles mais de uma providencia se encontra nos capitulares.
Tanto para uns como para outros devia ser direito commum o _Liber
Judicum_ na ultima redacção de Erwigio e de Egica. E, todavia, um
escriptor coevo, o auctor anonymo da Vida de Luiz o _Bondoso_,
revela-nos um facto importante. Esses godos sollicitaram d'aquelle
principe que lhes consentisse o combate como prova judicial, visto ser
isso direito privilegiado da sua raça[129]. D'aqui resulta que as
formulas legaes eram na praxe postas de parte, ao menos em certos
litigios, quando entre entre si litigavam dous godos.

De um documento do seculo seguinte[130] resulta o mesmo que se deduz da
narrativa do anonymo. A população mixta d'aquella parte da destruida
monarchia, unificada na intenção de Chindaswintho e de Receswintho,
conservava-se, ainda nos começos do seculo X, separada pela diversidade
de raça, continuando a subsistir entre ella, não juizes godos e romanos,
mas sim juizes dos godos (_judices gothorum_) e juizes _dos_ romanos
(_judices romanorum_). Que indica esta distincção de magistraturas,
senão o uso na praxe do direito pessoal posposto o territorial?

Abrogando a lei antiga, que prohibia os consorcios entre os individuos
de raça hispano-romana e goda, negando a faculdade de invocar no foro
leis estrangeiras e nomeadamente a legislação romana, e estatuindo que a
nova reforma do codigo civil e penal e as leis que de futuro se
promulgassem regessem exclusivamente e sem distincção de origem os godos
e os hispano-romanos, Chindaswintho e seu filho Receswintho quizeram
substituir, como já notei, o direito territorial ao direito pessoal,
fundindo n'uma só as duas nacionalidades. Virtualmente, o _Breviarium_,
a _Lex Wisigothorum_ de Alarico II, e a redacção de Leovigildo, tudo
devia ser lacerado pelos magistrados judiciaes apenas lhes fosse
apresentado[131].

Se attribuirmos ao Codigo wisigothico uma efficacia, uma acção na vida
real tão completa como geralmente se crê, as duas sociedades, até ahi
juxta-postas porém não confundidas, achavam-se emfim encorporadas e
constituindo uma sociedade só. Tractando-se de direitos e deveres,
referir-se a godos ou a romanos seria theoricamente absurdo, porque não
havia nem uma nem outra cousa: havia o estado e os subditos, mais nada.
O absurdo, porém, cessa desde que sabemos que o legal não correspondia
ao real; que uma cousa era a doutrina e outra cousa o facto. É assim que
naturalmente se explica a existencia, nas monarchias neo-gothicas e
ainda em tempos mais modernos, de condições de vida publica e civil, de
origem germanica e de origem romana, estranhas e a até contrarias á
doutrina ou á índole do Codigo wisigothico na sua mais recente fórma, o
qual, todavia, continuou a ser a lei official n'essas novas monarchias.
Explicar o phenomeno por imitações de usanças ou instituições analogas
d'além dos Pyrenéus, o menor defeito que tem, a meu vêr, é o ser uma
hypothese inteiramente gratuita.

Um eminente escriptor contemporaneo[132] notou já que o _Liber Judicum_
participara dos tres caracteres, de lei, de sciencia, e de sermão. É
possivel que o descobrimento de monumentos hoje desconhecidos, ou mais
attento estudo dos que restam, nos venham provar que a parte de parenese
e de sciencia juridica é n'aquella compilação mais ampla do que se
cuida, embora se manisfeste debaixo da fórma preceptiva de lei.

Que me seja licito accrescentar ás precedentes observações as que a
similhante proposito fazem dous dos mais atilados e eruditos criticos
contemporaneos. «Em quanto estes povos (os germanos)--diz Mr. de
Pétigny[133]--se conservaram como em si eram; em quanto não sairam da
terra natal, nem obedeceram a estranho dominio, regeram-se por costumes
tradicionaes, e póde dizer-se que o aferro ao direito consuetudinario e
a aversão ás leis escriptas são caracteres permanentes da sua raça.»
«Não se dá todo o peso que se devera dar--observa Mr. de
Rozière[134]--ao facto da fraca auctoridade que na edade média tinha o
direito escripto, e do imperio absoluto que o consuetudinario exercia.»

Este aferro ao direito não escripto, á tradição juridica, aferro commum
aos godos como ás outras raças germanicas, tornava dobradamente efficaz
a resistencia á acceitação practica, effectiva de um codigo em que
muitas das usanças barbaras eram esquecidas ou alteradas, ou positiva e
completamente abrogadas. Pela natureza das cousas, os godos constituiam
em geral a aristocracia, e a aristocracia era quem exercia
principalmente a auctoridade, tanto civil como militar, que de ordinario
andavam unidas. A revolução, ainda mais politica do que religiosa, que
substituiu o arianismo pelo catholicismo trouxe, na verdade, uma grande
influencia social ao elemento hispano-romano, influencia que até ahi não
tivera; mas esta era exercida especialmente pelo alto clero orthodoxo,
que por via de regra pertencia á raça latina. Na aristocracia secular e
guerreira ficou sempre predominando largamente o elemento gothico; e
quanto mais pela auctoridade dos concilios o clero buscasse romanisar a
sociedade, mais fortes deviam ser as repugnancias, as resistencias da
classe nobre. A reforma da legislação, que tendia a fundir as duas raças
pela unificação do direito e pela liberdade dos consorcios entre ellas,
foi iniciada por Chindaswintho e levada ao cabo por seu filho. É
altamente provavel que n'essa conjuctura fosse consultada mais de uma
tradição juridica de origem barbara, que existiria no codigo wisigothico
de Alarico II e ainda na reforma de Leovigildo. Mas entre o reinado de
Receswintho e a ruina do imperio gothico mediou apenas meio seculo. Não
é crivel que em tão curto periodo, no meio de luctas intestinas, da
corrupção da sociedade, das resistencias da nobreza, e até, por ventura,
dos proprios hispano-romanos, a transformação do direito pessoal em
territorial e, muito menos, a fusão das duas raças podessem facilmente
realisar-se. Assim, os documentos de além dos Pyrenéus, anteriormente
citados, não devem por modo algum causar-nos a menor estranheza.

A importancia d'estas considerações havemos de sentil-a, sobretudo,
quando tivermos de apreciar o modo de ser politico e social da monarchia
ovetense-leoneza. Instituições e praxes que nos hão-de parecer novas
explicar-se-hão facilmente pela persistencia de duas tradições juridicas
extra-legaes mantidas pelos costumes: a germanica, representada
principalmente pelos foragidos das Asturias, e a romana, representada
sobretudo pelos mosarabes, que deviam pertencer na sua grande maioria á
raça hispano-romana, como opportunamente terei occasião de mostrar.


(IX)


Tanto o sr. Apezechéa (_Introducc. al Libro de los Juices_, c. 5, § 93,
edic. de 1847) como o sr. Cárdenas interpretam a lei 15, do tit. 1 do
liv. X, por modo que annullam a importancia d'ella dando-lhe uma
intelligencia erronea. Se a considerassem em relação á idéa predominante
n'este titulo, cujo principal objecto é regular os effeitos da divisão
da propriedade territorial entre godos e romanos, e sobre tudo se a
confrontassem com a immediata (lei 16), d'ahi lhes teria vindo luz para
uma interpretação, a meu vêr, mais clara e mais exacta. Ordena a lei
que, transmittido por alguem o seu predio a um ou mais cultivadores ou
colonos (_accolae_), succedendo depois que o transmittente tenha de
ceder o dominio da terça parte d'elle a outrem, a situação de cada um
dos diversos cultivadores seja determinada pela condição dos respectivos
senhorios. Estatue-se na lei seguinte que os juizes e agentes fiscaes
tirem por execução immediata as terças dos romanos a quem quer que as
tenha occupado e lh'as restituam a elles. A lei accrescenta ao
dispositivo a sua razão de ser. Tracta-se--diz ella--de evitar perdas
para o fisco. A intima correlação das duas leis é obvia. Ambas ellas no
codice legionense trazem a qualificação de _antiqua_, e nos outros
codice não se lhes indica auctor conhecido. Evidentemente são
disposições do codigo wisigothico primitivo, disposições que se
conservaram no codigo reformado de Leovigildo, e nas ultimas redacções
desde o reinado de Chindaswintho até o de Egica. Da segunda lei resulta
que as sortes gothicas, isto é, as duas partes dos latifundios de que os
conquistadores se haviam apoderado, eram immunes, ficando as terças
deixadas aos antigos possuidores gravadas com os encargos tributarios do
tempo do imperio, ainda subsistentes para os hispano-romanos. Assim, a
lei 15 vinha a ser em rigor, postoque indirectamente, uma lei fiscal.
Immune o predio inteiro em quanto possuido integralmente, e por isso
indevidamente, pelo godo, immunes ficavam os que o cultivavam, quer por
emprazamento (_ad placitum_), quer por outro qualquer contracto, ou por
colonia. Restituida a terça ao romano, o accola ou o colono das terras
dessa terça, a quem até ahi se estendera a immudade do possuidor
illegitimo, entrava pela mudança do patrono ou senhorio na classe dos
tributarios.

Em quanto as leis da monarchia wisigothica foram pessoaes, era facil de
realisar a appropriação das terças usurpadas, quando a prescripção de 50
annos não tivesse absolvido a usurpação. Mas, desde o reinado de
Chindaswintho, tornada a legislação, ao menos theoricamente, territorial
e commum para as duas raças juxtapostas, e abrogada no de seu filho
Receswintho a lei que prohibia os consorcio entre os individuos de uma e
de outra, o direito de successão legitima e testamentaria, os dotes, as
execuções por dividas, etc., confundiam naturalmente a propriedade
exempta com a tributaria. Havia apenas um meio practico de evitar a
confusão: era descerem por um lado a immunidade, e pelo outro o tributo,
do homem para a terra e fixarem-se ahi; e isto era tanto mais natural e
exequivel, que as restituições, encarregadas aos magistrados e
funccionarios pela _lex antiqua_, deviam já ser raras ou nenhumas na
épocha de Chindaswintho e Receswintho, seculo e meio depois da
conquista, porque, onde e quando tivesse deixado de se cumprir a lei, a
prescripção legalisara abuso. Effectivamente, outra lei (liv. V, tit. 4,
l. 19), attribuida a Chindaswinto, mas que o codice legionense qualifica
de _antiga_, e cujo auctor se omitte no codice toledano, que cremos de
origem mosarabe, vem confirmar a idéa de que a natureza de terras
immunes ou a de tributarias, em vez de se determinar pela circumstancia
de ser o possuidor godo ou hispanho-godo, ligava-se ao predio conforme
este representava ou uma primitiva _sors_ gothica, ou uma _tertia
romanorum_. Doutrinalmente, essa lei condemna as alienações feitas pelos
curiaes e privados (_curiales vel privati_) a individuos estranhos á sua
classe. Não as prohibe, porém, absolutamente, comtanto que o comprador
continue a pagar os tributos que o vendedor pagava, especificando-se os
encargos no contracto de transmissão. Entre si curiaes e privados podem
livremente alienar quaesquer bens. Aos plebeus (_plebei_) é que toda a
especie de alienação é absolutamente prohibida. A sua gleba (_glebam
suam_) é inseparavel d'elles. Quem lhes comprar vinhas, campos, casas,
escravos, perderá infallivelmente o preço da compra.

Dado o facto de que a _sors_ gothica era immune e de que a propriedade
do hispano-romano ficara tributaria, como o fôra antes da conquista
wisigothica, a população subjugada, não falando dos escravos, entres
humanos, porém não pessoas civis, constituia, pois, tres categorias ou
classes, a dos curiaes, a dos privados, e a dos plebeus, regidas pela
_Lex romana_, isto é, pelo _Breviarium_ com as modificações da
_Interpretatio_. Eram as mesmas que existiam nas provincias do imperio.
As designações d'essas classes é que em parte se achavam alteradas, e
modificado ou, antes, simplificado o imposto. Sabemos o que eram os
curiaes na sociedade romana do tempo dos imperadores, e não ha motivo
para suppôr que se alterasse na essencia a condição dos membros da
curia, continuando as leis e instituições romanas a reger depois da
invasão e conquista dos barbaros a população submettida. Evidentemente,
os _privati_ são os antigos _possessores_, isto é, os proprietarios que
não tinham os requisitos legaes para serem membros da curia. Como uns e
outros eram sujeitos á solução dos impostos, as mutuas vendas, doações,
ou trocas, não offereciam inconveniente em relação ao fisco. Por isso se
omittem em toda a amplitude. Os _plebei_ são os antigos _coloni_ do
imperio, pessoas civis, mas que não podiam separar-se da gleba que
cultivavam. A lei exprime essa idéa quando se refere á gleba dos plebeus
(_glebam suam_). Não se estatue uma disposição nova; recorda-se um
principio, uma regra anterior (_Nam plebeis_). Como consequencia d'essa
regra, declara-se que quem comprar um gleba ao colono perderá sem
remissão o que tiver dado por ella. O pensamento fiscal revela-se
egualmente aqui. É o colono do proprietario hispano-romano, do curial,
ou do privado, que o legislador tem em mente. O colono não-servo sob a
administração romana pagava ao senhorio o canon ou renda (_redditus_) e
ao estado a contribuição pessoal (_humana capitatio_). Assim, de modo
nenhum convinha ao fisco que as glebas situadas nas _tertias_ se
incorporassem nas sortes gothicas, e nem, sequer, na parte não
colonisada das proprias _tertias_ a que pertenciam, cujo imposto
territorial ficaria o mesmo, desapparecendo o imposto pessoal do colono.
Se interpretei rectamente a lei 15 do tit. 1 do liv. X, o legislador,
embora falasse em geral das glebas, pouco devia curar das que eram
situadas nas sortes gothicas, immunes da _humana capitatio_, do mesmo
modo que o todo do predio o estava da contribuição territorial. Era
unicamente ao senhorio godo que no predio immune interessava a alienação
ou não alienação da gleba. De certo o poder publico forçaria o colono da
_sors_ a respeitar a regra da adscripção, quando o _dominus_ a
invocasse; mas não imporia ao immunista tal ou tal especie de relações
de dominio e uso entre elle e o seu _accola_.

Debaixo da administração romana os _possessores_ constituiam a parte
mais numerosa e que hoje chamamos a burguezia, a classe media, isto é,
os proprietarios territoriaes. Na verdade os curiaes eram em rigor
tambem _possessores_, mas, como a adscripção no _album_ da curia os
collocava n'uma situação excepcional e os convertia na realidade dos
factos em funccionarios publicos, a palavra _possessor_ nas
constituições theodosianas, que são as mesmas do _Breviarium_,
restringe-se a significar o proprietario não curial. Tomando assento no
sul das Gallias e das Hespanhas, e apoderando-se de uma parte da
propriedade territorial, os godos convertiam-se tambem em
possessores[135].

       *       *       *       *       *

_E sulle dotte pagine
Cadde la stanca man_!



ESCLARECIMENTO



A

(Sortes gothicas)


O sr. Cárdenas affirma que entre as nações antigas era principio de
direito publico que o conquistador em virtude da conquista adquiria, não
só o dominio eminente, mas tambem o pleno dominio particular de cada
propriedade no paiz conquistado. É demasiado vaga a expressão _nações
antigas_. Applicada ás hostes e tribus barbaras da Germania, a doutrina
parece-me infundada. Pelo menos ignoro quaes sejam os monumentos da
existencia de tal principio de direito publico entre os barbaros. É mau
de crer que essas gentes rudes, sem leis escriptas, regulando as suas
relações privadas por costumes tradicionaes, que variavam de federação
para federação, e ás vezes de tribu para tribu dentro da mesma
federação, tivessem idéas geraes e portanto principios de direito
publico e das gentes. O que tinham eram paixões, instinctos, e a
consciencia de que podiam fazer o que quizessem dos vencidos e do que
estes possuiam. Tinham o sentimento da força. Para a exercer não
careciam de idéas geraes ou de principios. As circumstancias do momento
determinavam o seu proceder. Os frankos, a federação mais poderosa de
todas as que vieram constituir as nações modernas nas provincias
romanas, não dividiram as propriedades entre si e os antigos
possuidores: ao que parece, occuparam integralmente algumas d'ellas. Os
burgundios no primeiro impeto da invasão tomaram para si metade de cada
habitação e da area ou jardim contiguos, dous terços das terras
cultivadas, e um terço dos escravos, ficando communs as florestas. Aos
que chegavam depois da conquista dava-se-lhes apenas metade de alguns
dos predios rusticos ainda indivisos e nenhuns escravos. Na Italia os
ostrogodos apoderaram-se da porção de cada propriedade que já os herulos
tinham tomado para si, e portanto pode em geral dizer-se que nada
tiraram de novo aos romanos. Os longobardos deixaram estes de posse das
terras que cultivavam por seus colonos e servos, e exigiram dos
proprietarios o terço do producto bruto do respectivo grangeio, o que
era mais do que o terço, porque se eximiam da despeza do cultivo, isto
é, da quota dos colonos ou da manutenção dos escravos, encargos que
vinham a recair sobre o proprietario[136]. Da legislação dos wisigodos
pode inferir-se que no sul das Gallias e na Hespanha os conquistadores
tomaram a um certo numero de possuidores da latifundios duas terças
partes d'estes. Os factos vem portanto confirmar aquillo mesmo que era
facil de suspeitar; isto é, que não havia nenhuma regra, nenhum
principio geral, que guiasse os barbaros no modo de se apropriarem uma
parte da riqueza territorial das provincias submettidas.

Contrahindo a questão á sociedade wisigothica, o auctor do _Ensayo_, em
harmonia com a doutrina que estabeleceu, assenta que entre os wisigodos
a propriedade derivava da conquista. N'esta fórma absoluta a proposição
é evidentemente inexacta. Ainda admittindo a opinião vulgar de que todas
as propriedades ruraes cultivadas foram repartidas entre os
conquistadores e os antigos proprietarios, ficando a estes apenas um
terço d'ellas, é preciso confessar que ao menos este terço não procedia
da conquista: mantinha-se a posse anterior. Mas corresponde essa idèa
dos dous terços attribuidos aos conquistadores á realidade dos factos?
Tenho hoje a esse respeito as mesmas duvidas que outros escriptores teem
tido[137]. Em primeiro logar cumpriria admittir um facto desmentido
pelos monumentos, isto é, que os invasores correspondiam numericamente
aos proprietarios hispanoromanos, para haver um godo que se apoderasse
de dous terços de cada propriedade. Imaginar, por outro lado, que se fez
cumulativamente a divisão, para depois se distribuir o cumulo das
_sortes gothicae_ pelos conquistadores, é admittir a existencia de uma
operação que seria hoje difficil, e que então era impossivel. Accresce
que no proprio Codigo wisigothico se acham claros indicios de que um
repartimento absoluto e completo não existiu. A divisão que se fez de
_uma porção de terras_ e de mattos--diz a lei--entre um godo e um romano
não se altere, _provando-se que houve a tal divisão_[138]. Sabemos em
geral que as hostes e tribus germanicas que se estabeleceram nas
provincias romanas eram muitissimo menos numerosas que os antigos
habitantes. Clovis, esse _koning_ que se apoderou da maior parte das
Gallias e se considera como o fundador da monarchia dos frankos, era o
chefe de cinco ou seis mil guerreiros, e a nação dos Burgundios, que
luctava com as nações barbaras circumvisinhas, compunha-se proximamente
de sessenta mil homens[139]. Se ignoramos qual era apopulação wisigoda,
podemos d'aqui inferil-o, ainda suppondo migrações successivas. Os godos
começaram por fazer assento no sul e poente das Gallias, dilatando
depois o seu predominio áquem dos Pyreneus, e embora perdessem
successivamente grande parte das provincias gallo-romanas, conservaram
sempre a Septimania. As sortes gothicas não abrangiam portanto só a
Peninsula; abrangiam tambem o meio-dia das Gallias. Como, pois,
acreditar que n'uma grande extensão do actual territorio francez e em
quasi toda a Hespanha houvesse godos bastantes para se tornarem
coproprietarios de todas as propriedades grandes, mediocres, ou
pequenas? No ultimo quartel do V seculo, com as conquistas de Eurico, a
Westegothica tinha por limites no territorio da moderna França, ao norte
o _Liger_ (Loire), ao nascente o _Rhodanus_ (Rhône), e ao poente o mar.
Pertencia-lhe na Hespanha a Tarraconense, ao passo que, exceptuadas a
Gallecia e a Lusitania, onde dominavam os Suevos, os romanos iam pouco a
pouco cedendo aos godos o resto da Peninsula.

Não chegou até nós um unico monumento que directamente descreva o facto
da divisão de uma parte da propriedade territorial entre godos e
romanos. Sabêmol-o, porque as leis gothicas o presuppõem. A épocha em
que se realisou; se foi um facto unico, se repetido; e que
particularidades acompanhavam essa divisão; podemos apenas
conjectural-o. A historia é n'este ponto forçadamente hypothetica; mas,
para a hypothese ser acceita, é preciso que não repugne a factos
conhecidos nem á natureza das cousas.


B

Feudo


A palavra _Feudum_, _Feodum_, não apparece em nenhum documento, nem nas
leis, nem nas memorias historicas, de Leão e de Portugal, desde a
constituição do feudalismo no seculo X até a sua degeneração nos seculos
XIII e XIV, ao passo que tão vulgar é nos monumentos dos povos
neo-latinos da Europa central. Este facto bastaria para levar os homens
circumspectos a duvidarem da existencia da instituição entre nós.

Ha, todavia, uma excepção a esta regra. É a _Historia Compostellana_. Em
mais de um logar os auctores d'ella se referem a terras ou bens
concedidos _in pheodum_. Entre outras, ha uma d'essas concessões que,
pelos debates a que deu origem, nos habilita para apreciarmos com que
exacção os biographos do arcebispo Gelmires usavam d'aquelle vocabulo,
verdadeiro neologismo na linguagem juridica do reino leonez n'aquella
épocha.

Existia dentro dos limites do territorio immune de Sanctiago um castello
real denominado _Cira_. Entendeu o astuto prelado que lhe convinha
adquiril-o. A razão adivinha-se: turbulento e audaz como era,
considerava-o como um padrasto que o sofreava. Propoz o negocio, e
obteve que a rainha D. Urraca lh'o vendesse por 150 marcos de parta,
ficando assim _hereditas_ da igreja de Sanctiago. Sobrevieram as
discordias da rainha com Gelmires, discordias em que frequentemente a
lucta era dissimulada sob apparencias de paz. Então «Regina castrum
illud a domino archiepiscopo _in pheodum_ petivit, cujus petitioni ipse
condescendens, municipium illud quod petebat illi concessit, ea
videlicet conditione et eo pacto ut, cùm ipse vel suus successor
_castrum suum recuperare vellet_, ipsa regina domino archiepiscopo aut
suo successori, _quod suum erat et quod emerat_, quiete et absque ulla
rebellione _redderet_.» Morreu a rainha deixando ordenado a um _miles_,
«sub cujus jure et dominio pretaxatum castrum tenebatur,»..... que....
«archiepiscopo.... redderet.» Repugnou. Preparou-se Gelmires para lh'o
tirar de mão armada, depois de obter de Affonso VII a confirmação e
repetição dos preceitos de sua mãe, e auctorisação para empregar a
força. Vendo a resolução em que estava o arcebispo, o _miles_ fez
_hominium et fidelitatem_ ao prelado, promettendo ir á corte e entregar
o castello _se o rei lh'o ordenasse_; mas, precedendo o arcebispo que
tambem ia para a corte, obtivera por via de protecções «ut rex Scirense
castrum _in pheodum_ sibi concederet, et _hominium atque fidelitatem_
ipsi regi..... fecerat.» Chegado o arcebispo queixou-se. Respondeu-lhe o
rei «se castrum illud Joanni Didaci (era o _miles_) _in pheodum_ teste
curia jam dedisse, nec se illi amplius posse auferre, quod hominium et
fidelitatem pro illo castro.... jam recepisse.» Continuava o arcebispo a
insistir, mas o rei respondia-lhe que «se nunquam militem suum......
illo castro ablato expoliaturum, neque se quod coram omnibus curiae
primoribus fecerat, inconstantis et levis viri more, aliquatenus
cassaturum.» Gelmires tractou então de corromper os validos do rei,
dando 10 marcos de prata ao _maiordomus curiae_ (que o historiador
compostellano chama _majorinus domus regis_), promettendo outro tanto
_alii conciliario_, e por fim, dando ao proprio rei 50 marcos, obteve
uma especie de julgamento pelo qual lhe foi restituido o castello.

É da propria narrativa do compostellano que se conhece que não se
tractava de um feudo, mas do dominio e posse de um castello; e que o
_miles_, que o tinha, fazia _preito e menagem_ (hominium et fidelitatem)
ao senhor do castello, uso que subsistiu entre nós, como já existia no
seculo XI, depois de ter o systema feudal desapparecido nos paizes onde
imperou, isto é, no seculo XVI. Assim, D. Urraca vende ao arcebispo o
castello. Depois elle dá-lh'o _in feodum_, mas com a condição de elle ou
os seus successores lh'o tirarem cada vez que quizessem. Isto repugna á
essencia das concessões feudaes: é menos que um _beneficium_, menos
talvez que um _prestimonium_. No estado de continuas luctas civis e com
os sarracenos, a Peninsula estava coberta de castellos, que eram
verdadeiros instrumentos de guerra, postos militares que podiam importar
como meio de rebellião, de oppressão, ou de defesa, mas não como
organisação de propriedade e de rendimento. O proprio Gelmires deu o
castello de Faro a Affonso VII, porque não só estava longe de
Compostella, mas tambem porque «nihil fere utilitatis ipsi
compostellano, excepto solo nomine, conferebat, immo pro eo custodiendo
et vigilando plurima stipendiariis militibus unoquoque anno erogabat.»
Construia-os quem queria e podia, e, longe de serem um elemento de
organisação social e de ordem, como era o feudalismo, eram justamente o
contrario: eram apenas um instrumento de rapinas, de violencias e de
anarchia.

Os historiadores compostellanos eram francezes; tinham sido creados n'um
paiz feudal, na épocha da definitiva constituição do feudalismo. O
preito e menagem dos castellos, como as concessões de prestimonios, como
a instituição dos ricos-homens, tenentes, ou senhores de districtos,
como as doações perpetuas de bens da coroa, assemelhavam-se nas
exterioridades ás formulas da organisação feudal. Não admira por isso
que, para designar esses factos diversos, usassem de uma expressão com
que estavam familiarisados e que correspondia a factos analogos do seu
paiz. Entende-se assim como, por uma excepção singular, a _Historia
Compostellana_ nos fala da existencia de feudos no occidente da
Pensinsula.

Achamos no liv. 2, c. 87, § 6 outro exemplo de um castello egualmente
concedido como _hereditas_ a Sanctiago, exemplo que prova bem quanto o
senhorio d'estes castellos diversificava dos feudos, e que não passava
de uma tenencia ou concessão temporaria e amovivel. Promette Affonso VI
doar _causa mortis_ ao arcebispo Gelmires o perpetuo dominio do
_castrum_ de S. Jorge «et comes Rodericus, qui illud castrum _mòdo_ a
_tenet, hominium et fidelitatem_ vobis de illo castro faciat, ut _in
morte mea_ illud vobis liberum et solutum omnimodo _dimittat_; et si
Rodericus comes _mortuus fuerit_, vel castrum _quoquomodo amiserit_, et
_alius princeps à me_ acceperit, prius quam accipiat hominium et
fidelitatem similiter vobis et vestrae ecclesae faciat, ut illud castrum
vobis absque ulla rebellione tradat.» A tenencia do conde Rodrigo é
menos que um _beneficium_ e talvez que um _prestimonium_: é uma funcção
retribuida provavelmente pela renda de bens ou tributos annexos ao
castello (_castellaticum_).

FIM.



INDICE


HISTORIADORES PORTUGUEZES
(1839-1840)


Fernão Lopes
Gomes Eannes de Azurara
Vasco Fernandes de Lucena--Ruy de Pina
Garcia de Rezende


CARTAS SOBRE A HISTORIA DE PORTUGAL
(1842)


Carta 1.^a
  »   2.^a
  »   3.^a
  »   4.^a
  »   5.^a


RESPOSTA ÁS CENSURAS DE VILHENA SALDANHA
(1846)


Carta ao redactor da _Revista universal_


DA EXISTENCIA E NÃO EXISTENCIA DO FEUDALISMO
EM PORTUGAL
(1875-1877)


I.
II.
III.
IV.
V.
VI.
VII.
VIII.
(IX).


ESCLARECIMENTOS


A. Sortes gothicas
B. Feudo



LIVRARIA BERTRAND

LISBOA--73, CHIADO, 75



OBRAS DE ALEXANDRE HERCULANO

*POESIAS*


1 Vol Contendo: Livro I. _A harpa do crente_.--A semana santa--A voz--A
Arribida--Mocidade e morte--Deus--A tempestade--O soldado--A victoria e
a piedade--A cruz mutilada.--Livro II. _Poesia varias_.--A perda
d'Arzilla--A rosa--O mendigo--O bom pescador--Tristezas do desterro--O
mosteiro deserto--A volta do proscripto--N'um album--A felicidade--Os
infantes em Ceuta.--Livro III. _Versões_.--O seccar das folhas
(Millevoye)--A noiva do sepulcro (imitação do inglez)--O canto do
cossaco (Béranger)--O caçador feroz (Burger)--O cão do Louvre
(Delavigne)--Leonor (Burger)--A costureira e o pintasilgo morto
(Lamartine).


*ROMANCES*


_Eurico e Presbytero_, 1 vol. (Epocha wisigothica, 1.^o vol. do
_Monasticon_)

_O Monge de Cister_, 2 vol. (Epocha de D. João I--2.^o e 3.^o vol. do
_Monasticon_)

_O Bobo_, 1 vol. (Epocha de D. Theresa, 1128)

_Lendas e Narrativas_, 2 vol. Contendo: Vol. I: O Alcaide de Santarem
(950-961)--Arrhas por foro d'Hespanha (1371-1372)--O castello de Faria
(1373)--A abobada (1401).--Vol. II: A dama Pé-de-Cabra (seculo XI)--O
bispo negro (1130)--A morte do Lidador (1170)--O parocho da aldeia
(1825)--de Jersey a Granville (1831).


*HISTORIA*


_Historia de Portugal_, 4 vol. (1.^a Epocha, desde a oriegm da monarchia
até D. Affonso III)

_Historia da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal_, 3 vol.


*OPUSCULOS*


Vol. I. _Questões publicas_, tom. I. Contém: Advertencia previa--A voz
do propheta (1837)--Theatro, moral, censura (1841)--Os egressos
(1842)--Da instituição das caixas economicas (1844)--As freiras de
Lorvão (1853)--Do estado dos archivos ecclesiasticos do reino (1857)--A
suppressão das conferencias do Casino (1871).

Vol. II. _Questões publicas_, tom. II. Contém: Monumentos patrios
(1838)--Da propriedade litteraria (1851) e Appendice (1872)--Carta á
academia das sciencias (1856)--Mousinho da Silveira (1856)--Carta aos
eleitores do circulo de Cintra (1858)--Manifesto da associação popular
promotora da educação do sexo feminino (1858).

Vol. III. _Controversias e estudos historicos_, tom. I. Contém: A
batalha de Ourique: I. Eu e o clero (1850).--II. Considerações pacificas
(1850).--III. Solemnia verba (1850).--IV. Solemnia verba (1850).--V. A
sciencia arabico-academica (1851)--Do estado das classes servas na
Peninsula, desde o VIII até o XII seculo (1858).

Vol. IV. _Questões publicas_, tom. III. Contém: Os vinculos (1856)--A
emigração (1870-1875).

Vol. V. _Controversias e estudos historicos_, tom. II. Contém:
Historiadores portuguezas (1839-1840): Fernão Lopes, Gomes Eannes de
Azurara, Vasco Fernandes de Lucena, Ruy de Pina, Garcia de
Rezende--Cartas sobre a historia de Portugal (1842)--Resposta ás
censuras de Vilhena Saldanha (1846)--Da existencia do feudalismo em
Portugal (1875-1877)--Esclarecimentos: A. Sortes gothicas--B. Feudo.

Vol. VI. _Controversias e estudos historicos_, tom. IV. Contém: Uma
Villa-nova antiga--Cogitações soltas de um homem obscuro--Archeologia
portugueza: Viagem de cardeal Alexandrino; Aspecto de Lisboa; Viagem dos
cavalleiros Tron e Lippomani--Pouca luz em muitas trevas--Apontamentos
para a historia dos bens da corôa.



NOTAS


[1] Asseveram-nos que para este mester está servindo a cella chamada do
Condestavel, no convento do Carmo.--_Proh pudor_!

[2] Ácerca d'esta obra e do seu auctor consultem-se os curiosos artigos
de Innocencio da Silva, a paginas 401 e 407 do tomo VII do seu
_Diccionario bibliographico_. (_Os edit._)

[3] E era Ruy de Pina que alguem queria fosse auctoridade acima de toda
a excepção pelo que toca a D. João II!!!

[4] Ha uma edição anterior, de 1545; mas tão rara, que não foi conhecida
nem de Barbosa Machado nem de Ribeiro dos Santos. (_Os edit._)

[5] _Hist. Compostellana_, l. 1, c. 20, § 7.--Masdeu (_Hist. d'España_,
t. 13, p. 173 e segg. e t. 20, p. 5, e segg.) pretende que isto não seja
exacto; mas o defeito de Masdeu, aliás um dos melhores historiadores
d'Hespanha, é a parcialidade desmesurada pelas cousas do seu paiz.

[6] Veja-se na _Historia de Granada_ de Ebn Alkhathib, em Casiri, _Bibl.
Arabico-Hespanica_, t. 2, p. 252. O mesmo Casiri em diversas partes da
_Bibliotheca_ faz muitas vezes menção dos Egypcios (estes habitavam
Lisboa), dos Esclavonios, Syros, Persas, Nubienses ou negros, etc., e
segundo elle daqui proveio a denominação geral de Sarracenos
(_misturados_) que se deu aos arabes. Consulte-se tambem Conde, _Dom. de
los arabes_, c. 30, Paquis, _Histoire d'Espagne et de Port._, t. 1, l.
4, c. 1.

[7] Esta denominação (_Almostábara_, adscriptos) era generica entre os
arabes, para indicar todos os povos que tomavam o seu modo de viver,
lingua, etc., sujeitando-se-lhes, e não especial para os hespanhoes, que
tinham ficado debaixo do seu domínio. É por isso que nos parece pouco
conveniente. Os arabes denominavam-se a si proprios por
contraposição--_Arab-aláraba_, puros e genuinos.

[8] Abu-Baker, _Vestis Serica_, em Casiri, t. 2, p. 53.

[9] Pelo tractado entre Muza e Theodemiro (_Todmir ben Gobdos_,
Theodemiro filho dos Godos) feito depois da conquista no anno da Egira
94 (712-3) os arabes se obrigaram a respeitar a honra, a fazenda, e a
religião dos vencidos, pagando cada nobre um aureo e certas medidas de
generos, e cada peão metade disso. O tractado vem por extenso nas _Vidas
dos Hespanhoes illustres_ de Abmed-ben-Amira, e transcripto por Casiri,
t. 2, pag. 105. Que este tractado se cumpria á risca deduz-se das Actas
dos martyres Voto e Felix, na _España Sag._, t. 30, pag. 400 e segg.

Por uma resolução do governador Ambesah a contribuição dos christãos foi
fixada na decima dos rendimentos de cada um para os que para os que se
tinham sugeitado voluntariamente aos arabes, e no quinto para os
submettidos pela força. Veja-se Rodericus Tolet., _Hist._, _Arab._, c.
11, em Paquis, _Hist. d'Esp. et de Port._, l. 4, c. 3--e a isto parece
referir-se Isidoro Pacense (pag. 16 da edição de Sandoval) quando diz:
«Ambiza.... vectigalia christianis duplicata exagitans.»

[10] Parece-me que este facto, a que se não tem dado toda a attenção
devida, servirá para explicar a existencia das Behetrias, de que
fallarei n'outra parte.

[11] Liv. 3, tit. 1, lei 5.^a

[12] Vejam-se no _Ensayo_ de Martinez Marina sobre a legislação
d'Hespanha, no § 249 e seguintes, as provas indubitaveis d'isto.

[13] Se attendermos a uma passagem do _Chronicon Floriacense_, quando
falla do conde Raimundo, veremos o nenhum fundamento da explicação que
se pretende dar á exclusão do conde Tolosa das generosidades
extra-legaes de Affonso VI.--Tractando dos casamentos de Raimundo e de
Henrique, diz: «Quam (D. Urraca) in matrimonium dedit Raimundo comiti,
_qui comitatum trans Ararim tenebat_. Alteram filiam.... Ainrico uni
filiorum filii Ducis Roberti.» Eis, pois, Raimundo com o mesmo
impedimento para receber dote, que tinha o conde de Tolosa; visto que
Raimundo era já conde de Borgonha, _tendo o condado álem de Arar_
(Saône), o que se prova, não só do testemunho do Floriacense, mas dos
documentos e testemunhos irrefragaveis que colligiu Mondejar, _Orig. y
ascend. del princ. D. Ramon._ (Mss. na Biblioth. da Ajuda).

[14] A existência de D. Elvira e de D. Sancha prova-se da _Chronica de
Pelaio_, em Flores e Sandoval, e do documento de Sahagun citado pelo
ultimo (_Reyes de Castilla y Leon_ f. 124 v.), onde accrescenta achara
feita menção de D. Sancha em outras escripturas d'estes annos. Veja-se
tambem Mondejar, _Succession del-rey D. Alonso VI_ § 17.

[15] Veja-se Sota, _Princ. de Astu._ Appendice d'escript.--Colmenares,
_Hist. de Segov._ c. 14, § 10--Mondejar, _Success. d'Al. VI_ § 25.

[16] _Chron. Adefonsi Imper._ Praefatio, em Flores, _Esp. Sagr._ t.
21, p. 320.

[17] Flores, _Esp. Sagr._ t. 21, p. 307 e segg.

[18] Na fundação do mosteiro de Nájera e foros da povoação, do anno de
1052: «Igitur cum hujus rei voluntate, tam in aedificandae
ecclesiae constructione, quam _in dotis_ astipulari donatione....»--Na
doação de Jubera á igreja de S. André, feita no anno de 1057: «Haec
est carta _de dote_ quae dederunt vícinos de Jubera ad S.
Andreae.»--_Collecc. de Privileg. de la corona de Castilla_, t. 6, p.
58 e 61 (Madrid 1833).

[19] O auctor fixou, depois, a morte do Conde no anno 1114. V. a Nota
VII no fim do tomo I da _Historia de Portugal_. (Os edit.)

[20] Estas primeiras paginas foram, posteriormente, aproveitadas para
formar a Nota VI no fim do tomo citado. (Os edit.)

[21] Póde ver-se esta materia resumida e claramente tractada na Memoria
de S. Ex.^a o actual Patriacha Eleito, no t. 12, parte 2.^a das _Mem. da
Acad._

[22] «Os escriptores arabes costumam dar o nome d'_Algarb_, isto é
occidente, á Lusitania. É menos vulgar darem o mesmo nome á Africa ou
Mauritania, a que chamam _Almagreb_, para a distinguir d'aquella.»
Casiri, t. 2, pag. 143.

[23] _Historia Compostel_. l. 2, c. 53. Comparada esta passagem com os
chronicons _de Pelaio_, _Conimbricense_, e _Complutense_, que referem a
conquista de Coria, Lisboa, Cintra e Santarem por Affonso VI em 1093,
póde-se crer que as perdeu em todo ou em parte logo no anno seguinte.

[24] Havia então condes apenas titulares, que serviam junto ao Rei, e
condes que alcançavam este titulo por governarem districtos ou condados.
Consulte-se Masdeu, t. 13, pag. 37 e 38.

[25] J. P. Ribeiro, _Dissert. chronol. e crit._ t. 3.^a, p. I, pag. 33 e
34.

[26] De nenhum dos documentos, não suspeitos, colligidos por J. P.
Ribeiro (_Dissert. chr. e crit._ t. 3, p. 1, pag. 39 a 43) relativos ao
conde Henrique, e pertencentes a esta epocha, se póde concluir a sua
assistencia nas Hespanhas desde o anno de 1101 até os principios de
1106.

[27] Veja-se a nota a pag. 59.

[28] Este pacto secreto, pelo qual os dois condes repartiam entre si os
dominios d'Affonso VI, ficando Raimundo com o principal com mais
poderoso, póde vêr-se em J. P. Ribeiro, _Diss. chron._ t. 3, p. 1, pag.
45.

[29] _R. Compost._ l. 1, c. 46 e 47, in princip.

[30] Outros dizem que os nobres resolveram em côrtes este casamento.

[31] Sobre esta narração consulte-se o discurso de D. Urraca perante os
nobres da Galliza (_H. Compost._ l. 1, c. 64) em que se queixa d'el-rei
a haver coberto de injurias, murros, bofetadas, pontapés, etc.

[32] O illustre sabio a que já alludi diz (_Mem. da Acad._ t. 12, p. 2,
pag. 19) que n'esta occasião Henrique estava em Galliza, fundando-se no
capitulo 48, liv. 1.^o da _Hist. Compostel._ Eu entendo exactamente o
contrario, por me parecer que Flores leu mal _acersentes_ em vez
d'_accedentes_, á vista do que segue abaixo. Eis a passagem: «Undè
vehementi moerore affecti, Consulem Enricum, praefati pueri avunculum,
celeriter _acersentes_, quid ex hoc rei eventu acturi essent diligenti
cura consuluerunt: _cujus prudenti consilio fortiter excitatus Consul
Petrus_ quosdam ex illis, qui jusjurandum filio Comitis (Raimundo)
mentiebantur, juxta Castrum Soricis _in itinere_ cepit, et cum eis _in
Gallaeciam_ celeri cursu _regreditur_.» O que vai em italico mostra bem
que não foi o conde Henrique _chamado_ á Galliza, mas que _vieram_
fallar com elle a Portugal. E até pouco de crer é que, sendo os fidalgos
de Galliza quem pedia conselho, Henrique, muito mais poderoso que elles,
_fosse chamado_ a dar-lho em vez de o virem procurar para esse fim.
Todavia a questão é de bem pouco momento, e não tocaria n'ella, se me
não parecesse poder servir para emenda aquelle logar da, para os
primeiros tempos da monarchia tão importante, _Historia Compostellana_.

[33] Os _Annaes Complutenses_ á era 1149 dizem: «Rex Adefonsus
Aragonensis et comes Henricus occiderunt comitem Domno Gomez in campo de
Spina.» Os _Annaes Compostellanos_ fallam da morte do conde Gomez, mas
não dizem, como parece da-lo a entender J. P. Ribeiro (_Diss. chron._ t.
3, p. 1, pag. 57) e o Ex^{mo}. Sr. Patriarcha Eleito (_Mem. do conde D.
Henrique_), que fosse em campo de Spina ou que ahi estivesse o conde D.
Henrique; e talvez até alludam á morte de outro conde Gomez, porque as
suas palavras são unicamente: «Era 1149 occiderunt comitem Gometium.»

[34] V. a not. pag. 59.

[35] _Dissert. chronol. e crit._ t. 3. p. 1, pag. 33 a 58.

[36] Veja-se Guizot, _Civilisat. en France_, desde a lição 32.^a até a
40.^a, onde a historia do feudalismo é tractada com a profunduidade e
clareza com que nenhum outro escriptor a tractou ainda.

[37] Ribeiro, _Dissert. chron. e crit._ t. 3, p. 1, pag. 49 e 50.

[38] Liv. 1, c. 23.

[39] Hallam, _Europe in the Middle-age_, c. 2, p. 2--Ducange, verbis
_Baro_, _Vavassor_, _Castellanus_.

[40] «...totamque terram, quam obtines modo a me concessam, habeas tali
pacto, _ut sis inde meus homo, et de me eam habeas domino_.»

[41] Com effeito os documentos em que Ducange estriba a existencia do
_Feudum reddibile_, isto é, que o suzerano podia tirar quando lhe
aprazia, pertencem aos seculos XIII e XIV. Veja-se tambem Hallam, cap.
2, p. 1 _ad finem_.

[42] O prestamo, ou aprestamo (praestimonium) era a concessão vitalicia
do usofructo d'alguma propriedade. Vide Viterbo, _Elucid._ verbo
_Prestamo_, seu _Aprestamo_.

[43] _H. Compost._ l. 1, c. 81 e l. 2, c. 87.

[44] Estas bençãos eram grossas quantias de ouro e prata que se enviavam
a Roma, para a resolução dos negocios graves, e que se repartiam com
toda a lisura e honestidade entre o papa e os cardeaes.

[45] _Testamentum_ parece-me o nome mais generico n'aquelles tempos para
indicar a infinita variedade de propriedades que então havia.

[46] De mui pouco momento, na minha humilde opinião, é a questão da
legitimidade de Dona Thereza, por isso a deixo de parte. Para confessar,
todavia, a verdade inteira, eu não a creio legitima. O principal
argumento a favor d'esta legitimidade (talvez o unico) é que na bulla de
Gregorio VII de 1080, o casamento de Affonso VI com uma parenta de sua
anterior mulher é condemnado, e que por consequencia, tendo havido
casamento, o fructo d'elle foi legitimo. Mas o que eu duvido, e se dá
por provado, é que esta bulla dissesse respeito a Dona Ximena Nunez, e
não á rainha Dona Constança de Borgonha, que era prima segunda ou
terceira de Dona Ignez, primeira mulher de Affonso VI, e se achava já
casada com elle havia dois annos antes da data da bulla, e ainda depois
d'ella. O de que eu também duvido é que a bulla tivesse effeito, e o
casamento fosse com quem fosse se dissolvesse; porque Gorgorio VII se
aquietou (_Epistol._ l. 9, epist. 2) com a acceitação do rito romano na
Hespanha, com uma _benedictione_ avultada para a curia ou para elle, e
com uma boa abbadia para o cardeal legado em Hespanha.

[47] De proposito para não ser prolixo não ponderei a existencia do
infante D. Sancho, morto em Uclès em 1108, e que por isso vivia
forçosamente quando se exarou o celebre _Pacto_, e portanto o tornava
nullo se Affonso VI podesse fazer reconhecer o filho seu successor pelas
côrtes de Leão e Castella.

[48] Peleja Martinez Marina com o annotador de Mariana por este dizer
que a monarchia se tornara uma especie de morgado desde Ramiro 1.^o, e
pretende que ella foi electiva pelo menos até Affonso VII (Marina
_Ensayo_ §§ 66 e 67) e para isso apoia-e nas _formulas_ dos documentos e
nas _phrases_ dos historiadores. Parece-me que em similhante materia
este sabio cáe n'um erro commum a muitos outros--o dar ás expressões e
fórmulas da edade media o valor absoluto e rigorosamente definido que
ellas teem nos tempos modernos. É indubitavel que o direito da eleição
subsistia; mas é no substancial da successão que elle se revela? Não por
certo. É unicamente nas exterioridades.

[49] _Fuero Juzgo_, Exordio, lei 2.^a e 4.^a

[50] _Ensayo hist. crit._ § 71.

[51] _Partida_ 2, tit. 15, lei 5.^a

[52] Monge de Sillos, _Chron._ n.^o 103, em Marina § 88.

[53] Vide a nota [19].

[54] _Annal. Toled._ III, na _Esp. Sagr._ t. 23, p. 412.

[55] Roder. Tolet. _De Rebus Hisp._ l. 7, c. 5.

[56] Eu faria uma distincção na nomenclatura das duas especies de
monumentos, que nos restam da edade média: uma que é a dos chronologicos
dos factos capitaes; outra que é a dos que menos ou nada attentos ás
datas dão mais idéa da _côr local_ (perdoe-se-me a phrase que não sei
outra) da epocha, que da ordem dos successos. Chamaria aos da 1.^a
_Chronicons_, aos da 2.^a _Chronicas_. Aquelles são como o _Memorandum_
d'um povo barbaro: estas a expressão singela e poetica da sociedade na
infancia e juventude. O _Chronicon lusitano_ e o _conimbricense_ são um
typo do primeiro genero: as _Chronicas_ de Fernão Lopes são-no do
segundo. A distancia entre os dois generos é muito maior que a da
_chronica_ á _historia_.

[57] _Hist. crit. de España_, t. 20, pag. 1--146.

[58] É claro que se falla aqui da sujeição de _direito_ depois da morte
d'Affonso VI.--Antes d'isso é indubitavel que existia de _direito_ e de
_facto_. Depois d'ella tambem me parece incontestavel que de _facto_
começou a independencia, a qual se fixou completamente no reinado de D.
Affonso Henriques.

[59] _Mon. Lusit._ p. 3, liv. 8, c. 14.

[60] Carta de Bern. Toled., no l. 1, c. 99, da _Hist. Compostel._

[61] D. Theresa, avisando Gelmirez da intentada prisão, dizia-lhe por
seus mensageiros: «Caveat sibi Archiepiscopus... Quia intimi, qui hujus
consilio interfuerunt facinoris, ipsi mihi ejus enucleaverunt modum
captionis...» Note-se tambem que ahi se diz que por esta occasião
recuperou o arcebispo varias propriedades em Portugal, para a sé de
Sanctiago de que andavam alheadas, e poz n'ellas os seus mordomos ou
villicos. Se a guerra não terminasse por ajustes de paz, como seria isto
possivel?

[62] _Dixares d'études historiques_, § 12.

[63] Um dos characteres de Brandão como historiador é o que eu não sei
chamar senão instincto historico. No estado da sciencia no seu tempo, o
terminar o 1.^o periodo historico com Affonso III não tinha mais
fundamento racionavel, que o termina-lo em qualquer outro reinado;
todavia Brandão, que sem saber aproveitar muitas vezes a sua immensa
leitura de diplomas, estava, por assim dizer, involuntariamente
habituado á vida da edade-média portugueza, devia _sentir_ que essa vida
nacional mudava grandemente no reinado de D. Diniz. Porque, aliás,
consideraria a continuação do seu trabalho como uma nova obra? «O meu
gosto (diz elle no fim da 4.^a parte) fora sair á luz com a _obra
presente_ e ainda continuar _a que se segue_, etc.»

[64] _Canones paenitentiales_ juncto ao Ritual de S. Domingos de Silos
(1052), em Berganza, _Antig. de Hespanha_, t. 2, pag. 666.--Não traduzo
os relativos aos vicios contra a honestidade, porque não ha palavras
para exprimir com decencia as torpezas ou antes brutezas, a que ahi se
allude.

[65] _Hist. Compostel._, l. 1, cap. 114.

[66] _Hist. Compostel._, l. 1, c. 116.

[67] Ibid. c. 64.

[68] _Vita B. Geraldi Archiep. Brachar., auctore Bernardo ejus
discipulo_, em Baluzii _Miscell._, liv. 3, pag. 179.

[69] _Censu._--De passagem noto que nos escriptores e documentos
d'aquella edade esta palavra é frequentes vezes empregada na
significação de dinheiro, e não de direito senhorial, como alguns
intendem sempre.

[70] N'outra parte se verá qual era o cargo de _villico_.

[71] Quando se tractar das especies e condições das propriedades, se
intenderá melhor como D. Toda perdia a _dignidade da honra_, isto é, _as
propriedades honradas_.

[72] _Chron. Gothorum_, 1178, na _Mon. Lusit._, p. 3.^a fol. 273, v.

[73] Servos, colonos.

[74] Documentos dos fins do seculo XII em Ribeiro, _Dissert. chronol._,
t. 1, pag. 254.

[75] Documento de 1260, em Ribeiro, _Diss. chron._, t. 1, pag. 267.

[76] Foral de Bragança de 1187, na _Mem. das Confirmaç._--Docum. 37.

[77] De _Itinere Navali_..... 1189.... _Narratio_, nas _Mem. della Acad.
di Torino_, Serie 2, t. 2, pag. 177 e segg. (1840).

[78] Lei de D. Affonso II de 1211, no _Livro das Leis e Posturas antig._

[79] Quando digo isto, não me refiro a um volume publicado por Lavanha
em Roma em 1640, que é talvez a coisa mais parva que desde o tempo de
Guttemberg fez gemer as imprensas da Europa. Fallo do _Livro_ chamado
_do conde D. Pedro_, que anda manuscripto por essas bibliothecas de
Portugal, e cujo exemplar mais antigo e precioso é o que se acha juncto
ao _Cancioneiro do Collegio dos Nobres_. Assim elle estivera completo!

[80] Quem quizer ver resumido e claramente tractado o muito que se tem
escripto acerca da topographia da antiga Lusitania, consulte Cellario,
_Notit. Orb. antiqui_, t. 1, l. 2, c. 1, sect. 1., e Flores, _Hisp.
Sagr._, t. 1, p. 206 e seg.

[81] Liv. 2, c. 1.

[82] Liv. 3, c. 7.

[83] Veja-se o esclarecimento B, no fim do volume. (_Os edit._)

[84] Leç. 26.

[85] _Ensayo histor. crit._ (Madrid 1808) § 63.

[86] Ibid. e § 164.

[87] Schaefer, _Geschichte von Spanien_, IV Th. 2 B. k. 1.

[88] _Revue hist. de Droit franç. et étrang._, 8.^o ann. (1862)
Nov.-Dec.

[89] _Ensaio sobre a historia do governo e legislação de Portugal_, §
57, nota 2.

[90] Silva Ferrão, _Repertorio comm. sobre Foraes_, vol. 1, pag. 121, n.
1 e pag. 141, n. 1.

[91] _Elem. del Derecho civ. y penal_, 4.^a edic. t. 1, p. 52.

[92] _Los Codigos Españoles concordados y anotados_, t. 1, pag. 243 e
segg.

[93] _Refutucion del opúsculo «Fueros francos,»_ p. 30.

[94] _Entstehung und Geschichte des Westgothen-Rechts_, S. 338. A
passagem citada não diz precisamente isto: diz que o direito feudal
francez na _sua indole absoluta e violenta_ (schroffen und barschen
character) repugnava ás idéas juridicas peninsulares, o que é um pouco
differente. O livro a que Muñoz se refere, e que debaixo do apparato da
erudição alleman encerra mais de uma d'essas levezas e erros grosseiros,
que com tanta facilidade se attribuem em Allemanha á erudição de toda a
gente e em especial á franceza, merecia mais severo exame da erudição
hespanhola do que os _Fueros francos_. Foi um fortuna vir a Hespanha o
sr. Helfferich. Sem isso ficavamos ignorando a historia social da nossa
edade media.

[95] _Refutacion_, p. 31.

[96] Ibid. p. 61.

[97] _Ensayo_, liv. 2 c. 1.

[98] _Civilisat. en France_, leç. 32.

[99] _De la propriété des eaux courantes_, passim.

[100] O meu fallecido amigo, o illustre Cibrario, apesar de admittir o
anachronismo da divisão dos dominios, directo e útil, na épocha feudal,
equivoco vulgar entre os jurisconsultos, que alias não se estriba em
nenhum monumento coevo, reconhece comtudo que na constituição do feudo
se envolvia um titulo mais ou menos amplo de senhorio acompanhado de
jurisdicção e até de soberania. _Economia politica del medio evo_, vol.
2, p. 62 da 2.^a ediç.

[101] _Essais sur l'histoire de France_, V.^e Essai.

[102] Savigny, _Roem. Rechet_, II B. § 75--Laferrière, _Hist. du droit
franc._, liv. VI, ch. II, sect. 2.

[103] _Eaux courantes_, §§ 78, 79.

[104] _Esprit des lois_, liv. 30, 31.

[105] Savigny, _Roem. Recht_, III B., k 22 § 156.

[106] _Hist. du droit franc._, liv. v, ch. v, sect. 1.

[107] Sobre esta origem do systema beneficiario veja-se o excellente
livro de Mr. Serrigny: _Droit public et administratif romain_, liv. 1,
tit. v, ch. 6 e segg.

[108] Pretendendo, com bons fundamentos, mostrar que a transformação da
sociedade beneficiaria em sociedade feudal não foi um facto repentino,
isto é, uma revolução, e que o feudalismo devia brotar da concessão dos
beneficios, Guizot (_IV.^e Essai sur l'histoire de France_) sustenta que
na épocha beneficiaria os beneficios não só eram concedidos com as
diversas naturezas de vitalicios de temporarios, e de posse revogavel e
incerta, mas tambem o eram ás vezes com a natureza de hereditarios por
transmissão perpetua como os feudos. N'esta parte as provas que adduz é
que são demasiado debeis, ou antes nullas. Fôra necessario mostrar a
impossibilidade de se alienarem n'aquelle tempo bens de raiz por doações
gratuitas e incondicionaes, o que seria desmentido por grande numero de
documentos, ou pelo menos propôr exemplos de concessões perpetuas com as
obrigações ordinariamente impostas aos beneficios. A formula de
Marculfo, que cita em abono da sua opinião, nada contém que não possa
referir-se a doações perpetuas alheias ás concessões beneficiarias. A
lei de Chindaswintho (_Cod. wisig._, liv. V, tit. 2, l. 2), que
egualmente invoca, refere-se evidentemente a doações feitas pelo rei sem
o caracter de beneficio. A comparação d'esta lei com a immediata, que
suppõe a possibilidade de serem feitas a mulheres taes doações, destróe
o equivico de Guizot. O beneficio, que representava a retribuição de um
serviço publico, sobretudo militar, não podia sem absurdo ser concedido
a mulheres.

[109] Lehuérou (_Hist. des institutions merovingiennes et carloving._),
Guérard (_Prolégom. du Polyptique d'Irminon_), e Laferrière pensam que o
imposto directo romano (_capitatio_), conservado com o nome de _census_,
se fora obliterando ou se extinguira pela revolução que substituiu a
dynastia dos Carlovingios á dos Merovingios, e que se a capitação
reapparece no tempo de Carlos Magno, é como censo ou reddito particular,
e não como tributo geral. Mr. Serrigny (_Droit public et administratif
romain_, § 752) segue a mesma opinião, que aliás me parece
victoriosamente refutada por Mr. Clamageran (_Hist. de l'impôt_, l. 2,
ch. 2 § 2).

[110] Tomo I, pag, 159 a 183. (_Os edit._)

[111] Veja-se o esclarecimento A no fim do volume. (_Os edit._)

[112] Liv. II, tit. 1, l. 1, 9.

[113] O sr. Helfferich (_Entstehung_, S. 16) faz remontar o codice
toledano-gothico do _Liber Judicum_ aos fins _talvez_ do seculo VIII. O
benedictino Sarmiento, cuja competencia em paleographia hespanhola é
possivel que valesse a do moderno escriptor allemão, não lhe dá mais
antiguidade do que o X seculo. Veja-se o discurso preliminar de
Lardizabal á edição do _Forum Judicum_ p. XXXV. Pela circumstancia de
ser acompanhado de notas marginaes em arabe este codice, ainda não
devidamente estudado, é provavelmente de proveniencia mosarabe.

[114] Veja-se a Introducção de Lardizabal ao _Liber Judicum_. As
observações do sr. Helfferich a este respeito são attendiveis
(_Entstehung_, S. 19 u. f.).

[115] Ignoro se existe outra edição posterior. Os exemplares da de
Bluhme eram já raros ha vinte annos. Um que possuo obtive-o então de
Allemanha com difficuldade.

[116] O Sr. Helfferich (_Entstehung_, S. 14) não se faz cargo da opinião
de Pétigny, ou porque não a conhecia, ou porque, sendo de um escriptor
de aquem Rheno, não valia a pena de se mencionar. Para elle os
argumentos de Bluhme são a tal ponto convincentes que não ha mais que
desejar. Entretanto as objecções de um homem tão eminente como Gaupp, e
de mais a mais allemão, não mereciam egual silencio. Pela primeira razão
a favor da opinião de Bluhme exposta pelo sr. Helfferich concebe-se a
força das outras. Lardizabal rejeitou o testemunho de Lucas de Tuy, que
attribue a Reccaredo uma redacção resumida do codigo wisigothico, por
ser singular e posterior 600 anos á épocha de Reccaredo. O sr.
Helfferich quer mais cautela com isto. Na opinião d'elle, assim como
Lucas de Tuy copiou Sebastião de Salamanca sem o citar, _podia ter
tirado de outro chronista antigo_ a noticia sobre o codigo de Reccaredo.
Por esta hermeneutica não ha fabula que não possa ser historia. Mas o
sr. Helffericha esqueceu-se de que Sebastião de Salamanca no proemio do
seu chronicon queixava-se já de não existir um escriptor _antigo_ que
tivesse continuado a historia dos Godos depois da de S. Isidoro.
Effectivamente a chamada _Chronica avulsa_ do tempo de Egica é uma
simples lista de datas de reinados, e a _Historia de Wamba_, por S.
Julião, apenas a de um reinado, ou antes do acontecimento mais
importante desse reinado, e parece que o bispo de Salamanca a
considerava como obra de S. Isidoro. O Continuador do Biclarense e
Isidoro de Beja, escriptores mosarabes, eram comparativamente modernos,
e o auctor da _Chronica de Albaida_ foi contemporaneo do proprio
Salmanticense. Ainda assim, em nenhum d'estes monumentos se acha a menor
allusão ao supposto codigo de Reccaredo, bem como se não encontra nos
dous unicos chronistas coevos S. Isidoro e o Biclarense. Sabe-se hoje
quanto Lucas de Tuy era facil em ornar com factos de sua moderna lavra
as simples narrativas dos chronicons relativas a épochas anteriores.
Posta, porém, de parte a auctoridade do bispo de Tuy, nenhuma memoria
resta que nos permitta attribuir a Reccaredo a compilação de um codigo,
e até no proprio _Liber Judicum_ os vestigios da sua actividade
legislativa são raros. Finalmente, Lucas de Tuy fala-nos de um resumo, e
nem os fragmentos do palimpsesto, nem as _antiquae_ do Codigo têem o
caracter ou condições de resumo.

[117] As duas passagens, a primeira relativa a Eurico e a segunda a
Leovigildo, são as seguintes:--«Sub hoc rege (Eurico) Gothi legum
statuta in scriptis habere coeperunt. Nam antea tantum moribus et
consuetudine tenebantur.»--«In legibus, quoque, ea quae ab Eurico
inconditè constituta videbantur correxit (Leovigildus), plurimas leges
praetermissas adjiciens, plerasque superfluas auferens.»

[118] Fiscum primus iste locupletavit, primusque aerarium.... auxit.
Primusque etiam inter suos regali veste opertus in solio resedit.»
Isidor. Hispal., _De Regib. Gothor._, in Leovig.

[119] Lardizabal, Introducc., p. XII.

[120] _Cod. wisig._, liv. XII, tit. 2, l. 13.

[121] _Cod. wisig._, liv. II, tit. 1, l. 9.

[122] _Cod. wisig._, liv. VI, tit. 5, l. 11.

[123] _Cod. wisig._, liv. VI, tit. 5, l. 7. Esta lei, sem nota de auctor
na maior parte dos codices, tem na rubrica do legionense _antiqua_, mas
junto á sigla RCDS, que se pode ler Reccaredus ou Recesvindus, e que por
ventura é lapso do copista.

[124] Ibid., l. 12 ad fin.

[125] _Cod. wisig._, liv. III, tit. 2, l. 1.

[126] Meyer, _Instit. Judic._, t. 1. p. 35.

[127] No latim barbaro _Ordalia_ é evidente derivação de _Urtell_
(_Urtheil_ em allemão, julgamento). «Judicia quae Bajoarii _Urtella_
dicunt.» _Decret. Tassilon. Ducis_ (772) P. 2, art. 9.

[128] Liv. II, tit. 1, l. 32. Esta lei, que na rubrica não tem
designação de auctor, nem a de _antiqua_, constitue n'alguns codices e
na edição de Lindenbrog a lei 3 do tit. 1 do liv. VI. Parece-me ser este
o seu verdadeiro logar. Allude-se nella á lei anterior (_superiori legi
subjacebit_). Esta referencia é absurda no logar respectivo do livro II
e natural no do livro VI. Aqui a lei anterior é attribuida na maioria
dos codices a Chindaswintho. Em tal caso, a que se refere á prova
caldaria seria d'este principe ou de algum dos seus successores.

[129] Anonymim, _Vita Ludovici Pii_, apud Meyer, _Instit. judic._, t. 1,
p. 326, e em Laferrière, _Hist. du Droit_, t. 3, p. 299. Muito antes já
Cassiodoro (_Variarum_, 9, 14) attribuia ao rei Athalarico, dirigindo-se
a um conde godo, as seguintes palavras: «Vos _armis_ jura defendite:
romanos sinite _legum pace_ litigare» (Ibid.). A lei salica, bem como o
_Liber Judicum_, omitte essa usança, aliás mantida na maior parte dos
codigos barbaros. Mas Laferrière, contradizendo a affirmativa de Meyer,
de que o silencio da lei não prova a cessação do facto, confessa em
definitiva que o combate judicial estava posteriormente generalisado
entre os frankos. A lei salica não o prohibe; omitte-o como a lei
gothica. A impugnação de Laferrière parece-me apenas uma subtileza.

[130] D. Vaissette, _Hist. du Languedoc_, t. 2, p. 56.

[131] _Cod. wisig._, liv. III, tit. 1, l. 2--liv. II, tit. 1, l. 8, 9.

[132] Guizot, _Civilisat. en France_, leç. 10.

[133] _De l'origine et des différentes rédactions de la loi des
Bavarois_.

[134] _Recherches sur l'origine de la loi des Allemands_.

[135] Na lei 5, por exemplo, do tit. 2 do liv. X do _Cod. wisig._,
attribuida a Chindaswintho, mas que o codice legionense qualifica de
_antiqua_, a palavra _possessor_ exprime _proprietario_ sem distincção
de raça ou de condição social.

[136] Savigny, _Roem. Recht_, I B. §§ 88, 94, 103, 117 u. f., da 2.^a
edição.

[137] Analogas duvidas occorreram a Savigny a proposito da divisão das
terras entre os burgundios e os gallo-romanos (_Roem. Recht_, I B., §
88).--Pétigny (_Études sur les instit. méroving._, t. 3, p. 80 e
Clamageran _Hist. de l'impôt_, t. 1, p. 119) pretendem positivamente que
nas monarchias barbaras, em geral, fosse comparativamente limitado o
numero das grandes propriedades assim retalhadas. Da denominação de
_tertia_ dada á parte das propriedades divididas, que cabia ao romano,
não se segue necessariamente que todas fossem assim repartidas. Além
disso, de varias passagens de Cassiodoro, lembradas por Savigny (_Roem.
Recht_, I B. § 103), se vê que entre os ostrogodos se dava em geral ás
terras tributarias, isto é, dos romanos, o nome de _tertiae_, por serem
pagos os impostos directos, conforme o systema romano, em tres
prestações aos terços do anno, em janeiro, maio e setembro.

[138] _Cod. wisig._, liv. X, tit. 1, l. 8. Esta lei, cuja épocha se não
indica nos codices, tem apenas no legionense a indicação _nova lex_.
Pela sua connexão com a immediata, que o mesmo codice qualifica de
_antiqua_, e pelo assumpto, as palavras _nova lex_ parecem-me erro de
copista, e que devem substituir-se por _antiqua_.

[139] Guizot, _Civilis. en France_, leç. 8.^o





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