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Title: Os Primeiros Amores de Bocage - Comedia em Cinco Actos
Author: Leal, José da Silva Mendes, 1818-1886
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Os Primeiros Amores de Bocage - Comedia em Cinco Actos" ***


OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE

COMEDIA EM CINCO ACTOS

POR

JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL

(REPRESENTADA PELA PRIMEIRA VEZ NO THEATRO DE D. MARIA II EM 7 DE JUNHO
DE 1865)


LISBOA
TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
MDCCCLXV



INTRODUCÇÃO


Tentando traçar os primeiros lineamentos caracteristicos de um grande
poeta, esboço a que serve de moldura uma época ainda pouco estudada,
desejou ao mesmo tempo o auctor compendiar n'esta peça os tres
principaes generos de comedia--a comedia de enredo, a comedia de
caracteres, a comedia de costumes.

Dizendo-se que é uma comedia, bem se deprehende que não se coadunam com
as suas condições os lances violentos, que só pertencem ao drama.
Desejando-se que em tudo sahisse de feição portugueza, evidente se torna
que não podia entrar no seu quadro o expediente de inverosimeis
situações, que o theatro francez offerece com trivial abundancia.

Não é porém a comedia uma biographia. Não podia apparecer n'ella inteira
a vida do poeta, com todas as modificações que os annos successivamente
exercem nos espiritos. Por isso não tem por titulo _Bocage_, senão _Os
primeiros amores de Bocage_; como para dizer--a aurora d'esse homem--um
homem egualmente singular pela indole e pelo ingenho.

Aquelle homem, com effeito, encheu do seu nome o fim de um seculo e o
principio de outro. Era elle essencialmente o homem do futuro. A morbida
inquietação, progressivamente aggravada até ao desvario, vinha-lhe
naturalmente do estreito ambito de idéas em que o seu talento se
asphixiava!

Para bem o comprehender cumpre ler-lhe attentamente a anciosa poesia, e
logo depois fixar a meditação e os olhos nas paredes negras da
Inquisição, em seu tempo erguidas ainda, e ainda ameaçadoras!

Surgindo entre duas sociedades, uma que o instincto lhe adivinhava,
outra que em torno d'elle se alluia, foi a sua existencia um indeciso
protesto e uma turbida agonia. Os desvios dos annos ulteriores,
precipitando-o tão cedo na sepultura, fizeram-se o triste refugio de uma
actividade intellectual, convulsa de febre, comprimida de fóra, não bem
conscia de si. Os seus ultimos desregramentos apparecem-nos hoje como as
valvulas perigosas por onde se derramou, e brevemente se exhauriu, a
exhuberancia d'aquella alma

     «...--que sedenta em si não coube!»

A comedia, tomando o poeta nos primeiros annos e nas generosas paixões
da mocidade, mede-lhe a grandeza do vulto pela grandeza dos impulsos, dá
aos seus mesmos defeitos a explicação elevada e nobre que só se póde ter
por verdadeira em tão alto e claro espirito, mas deixa sempre entrever o
germe fatal das futuras aberrações.

Equivocar-se-ia de todo quem unicamente o quizesse ver segundo a
tradição que ficou do derradeiro periodo da sua vida, transmittindo-se
pela bocca dos que só então o conheceram e chegaram aos nossos dias. O
versista das trovas ao Chrispiniano, á Estanqueira do Loreto, e ao Antão
Broega, o vate plebeu dos sonetos ao Galina e aos novos árcades, não
exclue o admiravel poeta de _Leandro e Hero_, de _Areneu e Argira_, do
_Tritão_ e das Epistolas. A propria mobilidade do seu talento duplica,
multiplica as variantes d'um caracter, cujo principal distinctivo era a
excessiva impressionabilidade.

Na comedia, Bocage mostra-se pelas duas faces essenciaes. Está n'isso a
verdade: o contrario seria grave erro de observação. Ninguem se
apresenta nas salas como na rua. Quando não houvesse esta distincção
natural, que é de todos os tempos, bastaria o que a respeito d'elle
escreveu o viajante Beckford, (que o tratou no tempo em que frequentava
a casa dos Marialvas) para tornar evidente como o fogoso mancebo, apesar
das suas singularidades, não podia ter ao despontar da vida desaprendido
o que recebera da educação paterna, que recordava com desvanecimento da
origem como provam alguns dos seus versos.

Releu cuidadosamente o auctor os preciosos trabalhos dos srs. Castilhos,
Rebello da Silva, e Innocencio ácerca de Bocage; compulsou os documentos
respectivos ao poeta com tanta meudeza, que teve a fortuna de poder
rectificar a data da sua nomeação de guarda marinha para Goa, que não é
a de 1782 como se lê na biographia que precede a ultima edição, mas a de
31 de janeiro de 1786, como authenticamente se vê no proprio documento
official conservado nos archivos do ministerio da marinha; procurou
sobre tudo o segredo d'aquelle complexo caracter nos seis volumes que
encerram a collecção completa dos seus poemas, collecção inteirada pela
illustrada solicitude e zelo incansavel do nosso primeiro bibliographo,
o já citado sr. Innocencio.

A variada feição da indole e talento de Bocage, o seu advento, e os
lances principaes da sua vida, alli com effeito se retratam.

Aos 8 annos improvisava uma quadra, que não poderia ter chegado até nós
se não fosse logo repetida por apreciada, concluindo-se d'ahi que não
póde parecer prematura reputação a que elle goza já aos 19:

Fui ver a procissão a S. Francisco,
A quem o vulgo chama da cidade,
E supposto o apertão, foi raridade
Que indo eu em carne não viesse em cisco.

Logo no primeiro soneto da collecção exclama:

Incultas producções _da mocidade_
Exponho a vossos olhos, oh leitores;
Vede-as com magoa, vede-as com piedade,
Que ellas buscam piedade e não louvores;

Ponderae da Fortuna a variedade
Nos meus _suspiros, lagrimas e amores_;
Notae dos males seus a immensidade,
A curta duração dos seus favores;

E se entre _versos mil de sentimento_
Encontrardes alguns, _cuja apparencia
Indique festival contentamento_,

Crede, oh mortaes, que foram com violencia
Escriptos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependencia.

Ninguem dirá, em presença d'esta dolorosa confissão, que lhe eram
extranhos os grandes affectos e os grandes pezares expressos na mais
alta e culta lingua; ninguem poderá persistir em consideral-o
exclusivamente homem de botequins e oiteiros, incapaz de outras
aspirações e outras praticas; ninguem em summa presumirá conhecel-o
melhor do que elle a si se conhecia.

O soneto 99.^o do Livro I attesta como n'esse privilegiado ingenho se
revelou cedo a vocação, que cedo tambem o fez presado:

Das faixas infantis despido apenas
Sentia o sacro fogo arder na mente.

Se o testemunho d'elle não bastasse, removeria quaesquer duvidas o de
Philinto quando lhe escrevia:

Lendo os teus versos, numeroso Elmano,
E o não vulgar conceito, e a feliz phrase,
Disse entre mim: «Depõe, Philinto, a lyra
    Já velha, já cançada,
Que _este mancebo_ vem tomar-te os louros.»

Manifesto é pois que a fama não esperou muito para apregoar o nome de
Bocage, e apregoal-o por voz tão auctorisada como esta, a que o moço
poeta respondia n'um rapto de enthusiasmo em que se está revelando
quanto o lisongeava tal suffragio:

Fadou-me o gran Philinto, um vate, um nume!
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!

O retrato physico de Bocage acha-se, além de outro inferior, no soneto
22.^o do Livro IV:

Magro, de olhos azues, carão moreno,
Bem servido de pés, _meão_ na altura.

O nome que mais frequentemente apparece nas suas queixas amorosas,
indicando uma preoccupação e predilecção pouco vulgar em homem tão
variavel, e consequentemente certificando que fôra aquelle o seu mais
intenso affecto, é justamente o nome de Gertruria. Enlevos,
desconfiança, zelos, saudades, presagios, alternam-se em impetuosos
arrebatamentos e sentidos desaffogos nos sonetos 13.^o, 18.^o, 23.^o,
37.^o e 57.^o do Livro I, e Gertruria é o objecto d'estas persistentes
recordações. Os sonetos 17.^o e 20.^o provam que, indo em viagem, é
ainda esta a memoria que lhe enche o espirito. O soneto 58.^o é uma
despedida a Gertruria na occasião de partir para a India. O soneto 47.^o
chora a ausencia da patria e de Gertruria. Finalmente o 83.^o, com o
respectivo mote, é o que o Bocage da comedia no segundo acto improvisa
sem mudança de uma virgula, e serve nas mãos astutas do commendador, por
intermedio do officioso mestre Amancio, para dar no 3.^o acto motivo aos
temporarios arrufos entre a supposta afilhada de D. Filicia e o filho de
Manuel Simões.

Já portanto se vê que, só desconhecendo-se totalmente as obras do poeta,
se poderiam julgar destoantes do seu caracter estes amores, estes
versos, e a feição d'elles, pois que ahi se encontra, n'aquelle periodo
da sua vida, uma parte da sua propria individualidade com o que é mais
d'ella, ou antes no que é mais ella!

Seria facil multiplicar infinitamente as citações das poesias que
authenticam, digamos assim, o caracter e a expressão que lhe deu o
auctor. Para que? Seria um estudo demasiadamente longo e prolixo; seria
peior, seria pôr em duvida a licção e criterio dos leitores.

Poderia crer-se apenas um freguez do Izidro e do Nicola o poeta que ao
partir para Goa soltava esta enternecida e magnifica despedida?

Amigos, patria minha, e lar paterno
Penates a quem rendo um culto interno!
    Lacrimosos parentes
Qu'inda na ausencia me estareis presentes,
Adeus! Um vivo ardor de nome e fama
A nova região me atrae, me chama.

Não diz elle as suas arrojadas esperanças e secretas penas n'este
quarteto tão cheio?

Camões! grande Camões! quão similhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Egual sorte nos fez, perdido o Tejo,
Arrostar co'o sacrilego gigante!

Não deixa entrever, n'est'outro mavioso trecho, a par d'aquelles
grandiosos sonhos, a dôr mysteriosa que o impelle e o acompanha?

_Eu parto_; e vou teu nome repetindo
Por que dê desafogo á magoa dura;
Meus tristes ais, suspiros de amargura
_Áquem dos mares_ ficarás ouvindo!

De tudo isto se compõe o Bocage da comedia!

Em torno d'elle, concorrendo a uma acção fundada nos costumes do paiz e
da época, grupam-se os typos que mais visivelmente representam os
sentimentos e tendencias coevas. De um lado as antigas tradições,
_ainda_ na sua grave pureza. De outro lado a degeneração variada, _já_
mixturando os elementos d'onde surgirá a necessaria transformação. De um
lado o marquez de Marialva, D. Maria Joanna, Gonçalo Mendo; do outro D.
Felicia, o Commendador, o Morgado. Ao fundo a burguezia nascente, isto
é, Manuel Simões e seu filho,--o proprio Manuel Simões concebido e
desenhado por Garrett na _Sobrinha do Marquez_--quanto possivel guardado
e acatado como se guardam e acatam as tellas dos mestres--e só
passageiramente retocado com uma leve tintura de ambição, indispensavel
para indicar a progressão dos tempos, e os futuros destinos de tal
classe. Ao redor do todo, o povo em algumas physionomias rapidamente
esboçadas. Ao longe, como horisonte melancholico, uma idéa do são e
austero lar provinciano, com seus longes dos costumes patriarchaes e
fragueiros que lhe eram usual apanagio.

Eis aqui resumido todo o pensamento e toda a economia da composição, que
depois de experimentar a fortuna do palco, vae agora experimentar a
fortuna da imprensa--duas temerosas experiencias.

Expondo assim o conjuncto do designio, cujas multiplicadas difficuldades
calculou, não procura o auctor antecipar as desculpas, mas unicamente
assentar as responsabilidades.

Se logrou o seu proposito não o dirá elle; decidil-o-ha o publico!

O singular favor com que foi acolhido este ensaio n'um genero pouco
cultivado no nosso theatro, impõe ao auctor o gratissimo dever de
exprimir aqui (vedando-lhe o respeito outra menção) o seu profundo
reconhecimento para com o publico, indulgente e attento, que em todos os
seus tentames o tem acompanhado como um amigo fiel, ora animando-o com o
estimulo do applauso, ora advertindo-o com a benevolencia do conselho, e
que, de certo apreciando a obra mais pela intenção que pela valia,
recompensou os seus esforços por modo tal que lhe ficará indelevel
memoria.

Á imprensa agradece tambem a benignidade com que até aqui o tem honrado.

Á direcção do theatro normal testemunha quanto o penhorou a solicita
cooperação que n'ella encontrou.

Seja-lhe finalmente permittido certificar á graciosa actriz, que fez com
a estreia da peça o seu beneficio, a sua inteira satisfação pela maneira
verdadeiramente distincta com que interpretou o seu variado papel e lhe
venceu as numerosas difficuldades, sendo a maior ter ao lado uma artista
tão conscienciosa e completa como a sr.^a Delfina, que do esboço
senhorilmente comico de D. Felicia tirou uma das suas mais acabadas
creações.

Se a estas, pela primasia devida ao sexo, menciona o auctor em primeiro
logar, nem por isso esquece que deve egual agradecimento aos mais
actores, do primeiro até ao ultimo, tendo achado n'elles tamanho zelo,
que, mesmo graduando-os pela ordem dos meritos bem conhecidos, não
poderia especialisar um sem offender a boa vontade de todos.

A comedia _Os primeiros amores de Bocage_, se Deus der vida ao auctor,
será o introito de uma trilogia, que se destina a abranger o mais
notavel da vida do poeta, e dos curiosos periodos coetaneos da historia
patria, até aos ultimos momentos d'elle em dezembro de 1805.

Junho 12--1865.



ADVERTENCIA


Além dos córtes, effectuados antes da representação, que vão designados
com cômmas no impresso, a experiencia mostrou a necessidade de novas
reducções. Como estas reducções tiveram logar depois de completa já a
impressão dos respectivos actos, vão ellas aqui notadas para facilitar a
execução da peça em quaesquer theatros.



ACTO II


SCENA II

Desde as palavras «estava de pedra e cal que se tinha já livrado»
(exclusivè) até começar a phrase: «dizem que ha ahi uma tal senhora
morgada, etc.» supprime-se tudo.

E depois, egual suppressão desde as palavras: «se não póde chegar a um
rosicler de pedras» (exclusivè) até ao fim da scena.


SCENA IV

Suppressão desde as palavras: «elle só bastára para dar a immortalidade
ao nome portuguez» (exclusivè) até onde Bocage diz: «ouça-me tambem, sr.
Gonçalo Mendo».



ACTO III


SCENA X

Suppressão desde que o Commendador pergunta: «resolveu casar com sua
prima quanto antes?» (exclusivè) até prender onde o mesmo Commendador
diz: «chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa, etc.»

Á phrase de Gonçalo Mendo, na scena 2.^a do 5.^o acto: «disse-me que ia
a Setubal despedir-se _dos paes_», phrase que por facil inadvertencia
escapou na composição e revisão, cumpre substituir est'outra: «disse-me
que ia a Setubal despedir-se do pae.»

A mãe do poeta não existia já havia nove annos.



PERSONAGENS


O Marquez de Marialva, 72 annos      Sr. _Rosa_

Manuel Simões, mercador, 69 annos       Sr. _Theodorico_

Gonçalo Mendo de Sendim, da casa de Mendel, tenente de dragões de Campo
Maior, 33 annos       Sr. _Tasso_

Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage, cadete do regimento de Setubal,
19 annos      Sr. _Santos_

Bartholomeu Tojo, morgado da Gesteira, 44 annos      Sr. _Cezar_

Sebastião de Brito Louzellos, commendador de S. Marcos de Monsarás, 52
annos      Sr. _Izidoro_

Francisco Pedro Simões, filho do Manuel Simões, 26 annos      Sr.
_Coelho_

Um Transeunte      Sr. _Corrêa_

Zé da Moita, guarda de montado, 30 annos      Sr. _Pinto_

Luiz Manuel, escudeiro, 65 annos      Sr. _Moreira_

D. Maria Joanna Galvão Lobo, morgada de Valmoreno, Fresnos e
Carregueiros, 23 annos      Sr.^a _E. Adelaide_

D. Felicia Moutoso de Cerqueira, morgada da Torre da Palma, 48 annos
    Sr.^a _Delfina_

Maria Gertrudes, sua afilhada, 20 annos      Sr.^a _Marianna_

Tia Paschoa do Espirito Santo      Sr.^a _Maxima_

Tia Vigencia da Purificação      Sr.^a _C. Emilia_

Uma Palmilhadeira.      Sr.^a _Maria das Dores_

Compadre Theotonio Alves      Sr. _Marcolino_

Compadre Amancio Pires      Sr. _Sargedas_

1.^o}        { Sr. _Amaro_
2.^o} POETAS { Sr. _Polla_
3.^o}        { Sr. _Soller_

1.^o}          { Sr. _Vencancio_
    } MANCEBOS {
2.^o}          { Sr. _Christiano_

O alcaide do bairro do Rogio     Sr. _J. Antonio_

O tabelião

Um cavalheiro

O Almeirão }
           } Picadores
O Gaeta    }

Um cego, pregoeiro de impressos      Sr. _Farruja_

Um Volantim

Um penitente


Um escudeiro do Marquez.--O mouro do Marquez.--O escudeiro de D.
Felicia.--Povo.--Convidados.--Damas.--Ronda do Alcaide--Criados, etc.

1785 a 1786


O COMMENDADOR (_atrás de D. Maria Joanna, do mesmo modo_)

Bem... bem diz Xenophonte!... Nem eu sei o que diz! (_Deixa-se ir meio
desfallecido sobre outra cadeira á entrada da porta do F._)

(_Silencio geral. Cada um dos tres personagens procura resfolegar e
reanimar-se_.)


D. MARIA JOANNA (_como tornando a si_.) (_Para os dois_)

Que foi isto?... Como foi isto?...


MORGADO

Pois não sentiu?--Um tiro... tropel de cavallos...


D. MARIA JOANNA

E desappareceu tudo!... E deixaram-me só!... (_meio reprehensiva_) E o
primo a fugir!


MORGADO (_levantando-se_)

Fugir eu, minha prima!... (_Formalisado_.) Fugir!... Seria a primeira
vez.


D. MARIA JOANNA (_recobrando gradualmente o bom humor_)

Pois para a primeira não o fazia mal.


MORGADO

Avistei esta casaria... Corria para aqui... para me fazer forte... para
nos fazermos fortes!


D. MARIA JOANNA

Mas corria diante... E eu corri tambem... corri que nem eu sei... corri
devéras para o poder seguir... E até o commendador correu... Não correu,
commendador?


COMMENDADOR (_gravemente_)

Affirmam boas auctoridades que muitas vezes é prudencia o correr...
_Pedibus celer_, diz Virgilio com louvor.


D. MARIA JOANNA (_sorrindo_)

Já está mais em si, o commendador... Já não falla como toda a gente.


MORGADO (_com extrema volubilidade, que é o seu natural_)

Mas, prima, que havia de fazer um homem só, n'aquelle descampado, contra
tanta gente!... Agora que venham. Dez, doze, vinte que sejam...


D. MARIA JOANNA (_erguendo-se como escutando_)

Espere...


MORGADO (_assustado_)

Que é?


COMMENDADOR (_idem, levantando-se e approximando-se á D._)

Que é?


D. MARIA JOANNA (_Applicando o ouvido, aos dois que se lhe reunem em
grupo turbado_)

Não ouvem?


COMMENDADOR

Tropear de cavallos!...


MORGADO (_inquieto e interrogando as saidas com os olhos_)

Não ter aqui a minha espada!...


D. MARIA JOANNA (_com leve ironia_)

Perdeu-a?


MORGADO (_mais inquieto_)

Não sei como foi... (_dirigindo-se apressadamente a uma porta lateral_)
Vou procurar uma arma.


D. MARIA JOANNA (_com terror dirigindo-se a outra_)

Chame gente, primo.


COMMENDADOR (_que ficára escutando_)

Vem subindo alguem! (_encaminhando-se desorientado á outra_).

(_No momento em que os tres aterrados procuram debalde atinar com os
fechos das portas a que se dirigem, apparece ao F. Gonçalo Mendo_)


SCENA II


OS MESMOS _e_ GONÇALO MENDO


GONÇALO

Da parte d'el-rei... nem mais um passo.


COMMENDADOR (_apegando-se á umbreira_)

Ai!


MORGADO (_idem_)

Jesus!


D. MARIA JOANNA

Desmaiava... se tivesse onde.


GONÇALO

Ninguem tente fugir ou esconder-se. Da parte d'el-rei está preso tudo.


MORGADO (_esperançado, comsigo, e ainda voltado para a porta_)

Da parte d'el-rei!


D. MARIA JOANNA (_do mesmo modo_)

Havia de jurar que me não é desconhecida esta voz.


COMMENDADOR (_voltando dissimuladamente o rosto, e procurando
reconhecer_)

Da parte d'el-rei!... Então...


GONÇALO (_adiantando-se_)

Vamos... Toda a resistencia seria inutil...


D. MARIA JOANNA, MORGADO _e_ COMMENDADOR

(_voltando-se simultaneamente_)

O sr. Gonçalo Mendo!


GONÇALO (_attonito_)

Que é isto! (_affirmando-se e reconhecendo-os_) Na verdade não sei se
acredite... A sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... O sr. morgado da
Gésteira!... O sr. commendador Louzellos!... E eu que pensava colher um
bando de salteadores!... (_a D. Maria Joanna sorrindo_) Não são os
salteadores?


D. MARIA JOANNA (_recobrando a jovialidade_)

Somos os assaltados. Respondo-lhe por elles.--Agora diga-me antes de
tudo. Que aventura é esta? Como veiu aqui? Onde estamos? Diga. Foi
terrivel o susto, mas ainda é maior a curiosidade.


GONÇALO

Responderei logo; perguntarei primeiro. Estes senhores pódem auxiliar as
explicações, e eu completo o meu dever. Vinham de jornada e foram
atacados alli em baixo, na estrada, ao fundo do valle, entre a ribeira
d'Aviz e o azinhal grande?


COMMENDADOR (_no seu caracter habitual de prolixa gravidade_)

Fomos. Tinhamos jantado em Portalegre, onde mais nos detivemos do que
deviamos. E não foi por eu não repetir ao morgado, com a auctoridade de
Cicero: «nos negocios graves são perigosas as demoras.» Jornadas, em boa
razão, são graves negocios.


MORGADO (_no seu caracter de costumada loquacidade_)

A que proposito vinha o tal Cicero, ou o que é, quando eu tinha
conseguido pôr na meza á prima, em Portalegre... em Portalegre, como se
estivessemos na côrte!... tudo por diligencias minhas, tudo com receitas
minhas!... uma ôlha á castelhana, um prato de gallinhas de alfitete,
outro de coelho á Fernão de Sousa, outro de arteletes de vitella, outro
de coroa real de folhado francez, sem contar as miudezas... Em jornada
nem princezas teriam melhor, hade confessar, sr. Gonçalo Mendo... Não,
que se não fôra a minha consummada pratica n'estas coisas...


D. MARIA JOANNA

Estavamos ha uma hora em Monforte... e provavelmente não nos tinha
succedido o que nos succedeu.


MORGADO (_desconsolado_)

Ah! prima!


GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)

Não me queixarei eu do succedido. (_Aos homens_.) Vamos ao caso...


COMMENDADOR

Era já ao pôr do sol e estavamos quasi ao meio do azinhal, a sr.^a D.
Maria Joanna com a sua aia n'uma liteira, nós dois e dois criados, todos
a cavallo, um pouco atrás uma azemola com as bagagens mais leves, e um
moço de pé...


MORGADO

Bagagens leves!... Leves serão, mas preciosas!... Mil coisas
necessarias!... Uma bateria de cosinha de viagem como não ha outra ainda
em Lisboa... completa... completa... Fôrmas, facas, espatulas, agulhas,
passadores... Nem na uxaria de Salvaterra!... E tudo precaução minha
para commodidade da prima, tudo...


GONÇALO (_interrompendo_)

Vamos ao caso... vamos ao caso, commendador.


COMMENDADOR

A meio do azinhal, pouco mais ou menos, onde a estrada faz um cotovelo e
se aperta entre os montes, damos de rosto com uns poucos de homens
armados...


MORGADO

Poucos!... Quinze eram pelo menos... vinte talvez... vinte de certo, se
não eram mais...


GONÇALO (_atalhando impaciente_)

O numero pouco importa.


MORGADO (_protestando_)

Importa pouco! Para o valor o numero...


COMMENDADOR

O numero não é indifferente... Por não ser indiferente se distinguiu em
singular e plural... Basta ver o que a respeito do numero escreveu
Prisciano Cesariense... mas n'este caso...


D. MARIA JOANNA

N'este caso, continúo eu... ou não se acaba.--Parámos. O morgado e o
commendador vinham ainda um pouco distantes, penso. Os homens fazem
menção de nos cercar a liteira. A minha aia desmaia. Os liteireiros
fogem pelo azinhal, e creio que os criados tambem. Emfim achei-me não
sei como a pé na estrada. N'isto o commendador caiu...


COMMENDADOR

Dei de esporas para acudir, e tropeçou-me o cavallo...


D. MARIA JOANNA

Muito a tempo.


MORGADO (_que espreitava a occasião, apoderando-se da palavra_)

No meio d'estes apuros, conservo toda a presença d'espirito... deito á
carreira, faço parada firme, ponho pé em terra n'um relance, com todos
os preceitos... os tres tempos velozes em meio circulo seguido...
levanto o commendador que estava tolhido pela sella... não indago
mais... a pé mesmo levo da espada, e caio como um raio sobre a malta...
Ah! que se tenho tempo! Duas voltas, um cambiamento, treta sobre treta,
talho e revez, e ensinava-lhes o que é o morgado da Gésteira com a
espada na mão!... A prima veria... Por seu respeito!... Veria... Não
digo mais!


D. MARIA JOANNA

Veria... estou certa. Mas não vi. Foi pena. Apagou-se o raio antes de
fulminar!


GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)

Depois?


D. MARIA JOANNA

Depois... nem eu sei bem... ouviu-se um galope... um tiro, creio... O
morgado diz que foi um tiro...


MORGADO

Foi... Por signal, com o estrondo os nossos cavallos, que tinhamos
deixado soltos na estrada, fugiram á desfilada...


D. MARIA JOANNA

Dando exemplo aos cavalleiros. Fugiram os cavallos, fugiram os
salteadores... se eram salteadores... já tinha fugido o commendador,
fugiu o primo, e eu, que estava desatinada, confesso, vendo-o fugir...
segui-o. Debandada geral... Não se ria, sr. Gonçalo Mendo... Segui-o, é
verdade, a correr, a bom correr, eu mesma, por essas ladeiras acima, por
entre o matto... E tive folego!... Veja que forças dá o terror, e como
eguala as condições!... Por fim viemos dar todos aqui. Póde explicar-me
o enigma?


MORGADO

Tive a imprudencia de não trazer armas de fogo. Estava apeado, não
esperava dois ataques ao mesmo tempo... Mettido assim entre os
salteadores que nos esperavam, e o outro bando que atirou sobre nós...
Senti assobiar a bala aos ouvidos.


GONÇALO

Admira. Disparei para o ar.


MORGADO (_surpreso_)

Disparou!


D. MARIA JOANNA

Então o outro bando era o sr. Gonçalo Mendo!


GONÇALO

Eu mesmo. Voltava de Marvão, com duas ordenanças do meu regimento, em
direcção a Monforte. Ao descer a encosta avistei um ajuntamento na
estrada... Não podia distinguir bem, porque estava distante ainda, e já
começava a escurecer o valle com a sombra do arvoredo... Metti a galope,
e desconfiei que era ataque a passageiros. Disparei então uma das
pistolas para dar aviso de soccorro, e prevenir alguma ousadia maior.
Não esperava tão grande resultado. N'um instante desappareceu tudo...
menos a liteira e a sua aia, minha senhora!


D. MARIA JOANNA

Jesus! é verdade! A minha pobre Anna Maria! Que é feito d'ella?... Com o
sobresalto, com tudo isto, quasi me tinha já esquecido.


GONÇALO

Tornou a si... Acompanha-a um dos meus dragões... Vem ahi já. Nem pode
acreditar ainda, que esteja viva.


D. MARIA JOANNA

E os ladrões, os criados, os liteireiros...


GONÇALO

Dos ladrões, nem vestigios... Parece que se abriu a terra com elles...


MORGADO (_que escutava attentamente, comsigo_)

Ainda bem!


GONÇALO (_fitando-o_)

Como?


MORGADO

Nada, nada... Explica-se tudo perfeitamente. Ainda bem, dizia eu. Ainda
bem que se explica, está visto.


GONÇALO

Os liteireiros e os criados... deixei a outra ordenança incumbida de
procural-os, e esses de certo não hão de estar longe.


D. MARIA JOANNA

E como veio aqui ter, tanto a proposito?

(_Vae carregando a noite_)


GONÇALO

Porque vi que se acoitavam n'esta casaria alguns vultos... e por...
(_mais baixo_) por destino talvez!


D. MARIA JOANNA (_idem, motejando_)

Como ha dois annos?


GONÇALO (_gravemente e com ardor_)

Como sempre!


D. MARIA JOANNA (_afastando a conversação_)

Mas a final, onde estamos? Que havemos de fazer?


GONÇALO

Em primeiro logar... procurar luz. É noite quasi. Sr. Morgado da
Gésteira, a casa tem ares de habitada. Se quizesse...


MORGADO

Pois não. Eu chamo. (_Successivamente e a intervallos, ás portas da D._)
Olé! Oh!... ó de casa. Venha alguem? Está aqui o morgado da Gésteira!...
Está uma senhora!... Gente de bem, tudo!... (_Silencio absoluto_.) Nem
viv'alma!


GONÇALO

Estarão longe...


COMMENDADOR

É singular!


D. MARIA JOANNA (_inquieta_)

Será a propria guarida dos salteadores!


GONÇALO

Tem-se visto, mas não é provavel... Vamos, sr. morgado. Veja se acha uma
luz. Bem reconhece que não posso ir eu. Está aqui uma dama, e agora,
como militar, respondo pela sua segurança.


MORGADO (_irresoluto_)

Assim é, mas... (_sem se atrever a ir_) Commendador, mais vêem dois do
que um.


COMMENDADOR

«Não é a luz dos olhos a que mais vê», como diz...


GONÇALO (_instando_)

Então! Cada vez se faz mais escuro, e não sabemos onde estamos.


MORGADO (_resolvendo-se_)

Vamos, commendador, antes que seja noite de todo! Por aqui... (_indo á
E._) Uma varanda... (_indo á D._) d'este lado um corredor... Vamos a
ver.

(_Saem os dois pela 1.^a porta da D._)


SCENA III


GONÇALO, _e_ D. MARIA JOANNA

(_Longo silencio como se receiassem quebral-o_)


D. MARIA JOANNA

Sr. Gonçalo Mendo, é ainda submisso como d'antes jurava?


GONÇALO

Nunca faltei a nenhum juramento.


D. MARIA JOANNA

Tornamos a vêr-nos em circumstancias extraordinarias... n'um ermo a bem
dizer... entre sombras e mysterios... Não lhe permitto uma palavra de
galanteio ás escuras... Estão entre nós...


GONÇALO (_gravemente_)

Estão tres seculos de honra... está a espada de um soldado.--Faz-me a
injuria de suppôr necessario advertir-m'o?


D. MARIA JOANNA

Não. Desculpe. É ainda do sobresalto! Desculpe. Conversemos.--Estava bem
longe de me encontrar, não? E assim, e aqui muito menos?


GONÇALO

Só adivinhando. Suppunha-a ainda em Paris.


D. MARIA JOANNA

Volto de lá. Um mez de jornada, faça idéa! Se não posso aturar o mar!


GONÇALO

Um mez!... Entre o commendador e o morgado?


D. MARIA JOANNA

O commendador...


GONÇALO

Uma reminiscencia das academias do sr. D. João V... a quem Deus
perdôe...


D. MARIA JOANNA

Ao sr. D. João V?


GONÇALO

Não, minha senhora, ás academias.


D. MARIA JOANNA

O morgado...


GONÇALO

A casca dos antepassados... que não teve.


D. MARIA JOANNA

Já vejo que os conhece a fundo.


GONÇALO (_ponderando dolorosamente_)

Um mez em tal companhia!... A fadiga do caminho é nada ao pé d'isso.


D. MARIA JOANNA

Um mez com o commendador, que o meu contra-parente D. Vicente de Sousa
Coutinho incumbiu de acompanhar-me, attendendo á sua edade, e que
emprehendeu render-me á força de erudições... um dia com o morgado, que
encontrei em Porto de Espada, e que foi esperar-me á raia, não sei se
por sua conta, se por ordem de minha tia D. Felicia, a quem escrevi de
Paris.


GONÇALO

Ao menos foi só meio supplicio no mez!


D. MARIA JOANNA

Ai! o dia do morgado tem valido bem o mez do commendador. Imagine. È um
nunca acabar de proezas em cavallaria, em... esgrima, em altanaria, em
monteria e em... gastronomia, como se diz em França. Com o pretexto de
um parentesco... de que eu não tinha noticia... quer-me captivar pelas
artes como o commendador pela sciencia.


GONÇALO

Concluo d'ahi que tenho n'elles dois... dois... Como direi?...


D. MARIA JOANNA

Rivaes. Póde dizer. Não tem risco.


GONÇALO

Em summa, requestam-n'a ambos!


D. MARIA JOANNA

O commendador dês que partimos de Paris... O morgado dês que nos saiu ao
encontro na fronteira...


GONÇALO

Complicando o galanteio... ambulante.


D. MARIA JOANNA

Pelo contrario: simplificando-o. Distraem-se mutuamente, e deixam-me
respirar. Dois são menos perigosos que um.


GONÇALO

E tres?


D. MARIA JOANNA

Menos perigosos que dois. Já lhe esqueceu o promettido? (_Pausa_.) Ambos
pertendem a minha mão, é verdade... porque n'esta mão, com ser pequena,
cabe a herança de tres casas.


GONÇALO (_simplesmente_)

Não me lembrava!


O MORGADO (_fóra_)

Prima! Prima!


D. MARIA JOANNA

Ouve? Temos temporal de palavras.


SCENA IV


OS DITOS, MORGADO _e_ COMMENDADOR

(_Ambos com luzes--Clarea de novo a scena_)


MORGADO

Prima. Achámos luz.


GONÇALO

Não é difficil verifical-o.


MORGADO

E não só achámos luz, fizemos um grande descubrimento. (_Vão pôr as
luzes no bufete_.)


D. MARIA JOANNA

Não foi o novo mundo?


MORGADO

Não foi o novo mundo. Foi um mundo antigo... um canto d'elle... muito
seu conhecido... A prima mal se podia lembrar. Não o vê de pequenina...
E eu mesmo... Se não venho por aqui ha bons quinze annos!...


D. MARIA JOANNA

Vamos, acabe. Encontrou gente?


MORGADO

Gente! Ninguem. Um deserto.--Quer saber onde estamos?


D. MARIA JOANNA

Porque não começou por ahi? Não vê que estou morta de impaciencia?


MORGADO

Deus me livre de a molestar na minima coisa, prima. Quizera antes...
brigar commigo! Bem sabe que para lhe evitar um dissabor... uma sombra
d'elle, um... (_Gesto de impaciencia de D. Maria Joanna_.) Já vou,
prima. Lá vae.--Quer saber onde estamos? Estamos no paço da Torre da
Palma!


D. MARIA JOANNA

Em casa de minha tia D. Felicia?


MORGADO

No seu proprio solar. Não ignorava que era para estes sitios, mas deram
nova direcção á estrada, e lá em baixo não me occorreu... Depois, quando
entrámos, com o lusco-fusco...


D. MARIA JOANNA (_maliciosa_)

Com a perturbação...


MORGADO

Nem reparei sequer. Agora, entrando por ahi dentro, quiz-me parecer que
me não era estranho o corredor... tópo uma escada, e dá-me ares de
conhecida... desço, entro n'uma casa lageada, e cada vez se me afigura
mais familiar o piso... Procuro, acho vélas, accendo, ólho em redor...
Era a cosinha... foi um raio de luz...


GONÇALO (_sorrindo_)

Pudéra! Na cozinha!


MORGADO

Tantas vezes jantei n'esta casa!... Fui eu que dei as receitas de fartes
e de manjar real á Dorothéa!... Foi alli que ensinei o Fernandes velho a
fazer perdizes de gigote, quando vinha caçar com seu tio capitão mór...


D. MARIA JOANNA

Memoraveis recordações!... Admira como não reconheceu logo a casa.


MORGADO (_machinalmente_)

Com a perturbação... (_emendando-se_) com o escuro, quero dizer... E era
tão novo ainda n'aquelle tempo!--Não se lembra de seu tio João, de
Carregueiros? Parece-me estar vendo ainda o sr. capitão mór, João
Alvares Lobo, sempre sisudo, e sempre triste... triste como a noite!...
Tudo por quê? Por não deixar filho varão para herdeiro, (_a D. Maria
Joanna_) e por causa da paixão de sua tia D. Felicia pelos donaires...
Nunca se viram dois genios mais oppostos... Elle todo monteador e
fragueiro; ella toda côrte e mimos!... Teimava o capitão-mór em
eternizar, na Torre da Palma, os costumes do tempo em que era castello
fronteiro a casa. A sr.^a morgada D. Felicia não tinha senão um fito...
ser açafata no Paço.


D. MARIA JOANNA

E já é?


GONÇALO

Espera ainda ser. Ha treze annos que espera.


MORGADO

Na filha unica via o capitão-mór a continuação provavel da indole de sua
mulher, e a ruina dos proprios intentos.


D. MARIA JOANNA

Tenho idéa de ouvir dizer que por isso se apartaram.


MORGADO

Por isso, certamente. Foi ella viver na côrte como desejava. Elle
deixou-se ficar, não consentindo que sua tia levasse a filha...
provavelmente para a criar a seu modo... Ficou pois... Mas como
ficou!... Esta casa um ermo, elle uma sombra.--Levou-o mais cedo á
sepultura aquelle desgosto!


D. MARIA JOANNA

E a pequenina?


MORGADO

Tinha dezoito mezes apenas. Tratava d'ella aqui a Joaquina Simôa, filha
de um matteiro de Carregueiros, que havia dois annos casára com o Luiz
Manuel, o escudeiro da Torre da Palma... A creança morreu, e seu tio
pouco mais durou... Ha bons quinze annos isto... dezeseis talvez!


D. MARIA JOANNA

E dezesete porque não? Apezar de mais moço, meu pae havia casado muito
antes de meu tio João. Tinha eu os meus seis annos feitos por esse
tempo, e lembra-me bem de ouvir contar. Foi por morte do tio João e da
filha herdeira, que as casas de Fresnos e Carregueiros passaram para meu
pae, na qualidade de immediato successor. Não é isto?


MORGADO

É. Vivia ainda seu irmão Nuno Alvares, quando morreu o capitão-mór. Ao
menos acabou persuadido de que as terras dos seus iam a herdeiro varão,
como tanto desejava.


D. MARIA JOANNA

Deus tinha disposto d'outro modo. Meu irmão Nuno morreu ainda menino
tambem.--O morgado não é menos forte em genealogias... patrimoniaes...
do que em esgrima, e no resto.--Minha tia D. Felicia nunca mais voltou
aqui? Fui cedo para Lisboa, casei aos quinze annos, e parti logo com meu
marido para a embaixada de Vienna d'Austria, onde elle era secretario.
Desejo informações.


MORGADO

Sua prima? Não voltou. A côrte é o seu encanto, e esta casa só lhe
lembrava desgostos. Haverá dez annos mandou ir para a sua companhia a
pequena da Simôa, que é sua afilhada. Tem o mesmo nome que tinha a
filha, e nasceu pelo mesmo tempo... Recordações... saudades
provavelmente.


D. MARIA JOANNA

E a Joaquina Simôa? E o Luiz Manuel? Tenho ainda uns longes d'elles.


MORGADO

Ficaram por feitores da casa.


D. MARIA JOANNA

E não apparecem, essas reliquias de outro tempo?... Procure-m'as,
commendador... procure-as morgado... Ah!... (_como achando uma idéa_)
Estarão ellas encantadas? Querem vêr que estão!... Desencantem-m'as.


MORGADO

Se não mudaram os costumes, foram ao terço a Vayamonte, e não tardam.


D. MARIA JOANNA

Sabemos onde estamos, e estamos em morada da familia... Não é pouco, mas
não é tudo. Agora que fazemos? Monforte fica ainda longe?


GONÇALO

Meia legoa, o muito.


D. MARIA JOANNA

Não me fio n'estas meias legoas.--Visto que nos podemos julgar a
salvo... (_a Gonçalo_.) Podemos?


GONÇALO

Sempre o julguei.


D. MARIA JOANNA

Acho-me um pouco moída das carreiras que dei atraz do morgado; e não sei
se é do susto, se do ar, se da jornada, sinto uma fraqueza que... que
está solicitando com empenho a intervenção e o soccorro da famosa
ucharia... (_para o morgado_) Não seria occasião de experimentar alguma
das receitas?... Qualquer coisa.


MORGADO

Preveni tudo... Vem tudo nas bagagens, muito bem acondicionado...
Servir-lhe-hei duas ades estilladas, frias, que são um primor, e um
queijo de presunto, que verá... sem contar um prato de broas d'ovos que
tinha de reserva.


D. MARIA JOANNA

Ouviu já fallar no supplicio de Tantalo, morgado?


COMMENDADOR

Tantalo, rei da Lydia, filho de Jupiter e de Plotis.


MORGADO (_sériamente_)

Não conheço o sujeito, mas tratarei de fazer o seu conhecimento, se é
pessoa de bem.


D. MARIA JOANNA

Não é preciso.--Tantalo ardia em sede, e fugia-lhe a agua que via
proxima; devorava-o a fome, e retiravam-se d'elle os fructos que tinha á
vista... Assim estamos nós... Tão boas coisas nas bagagens, e as
bagagens por montes e valles!


GONÇALO (_que parecia escutar_)

Perdoe! (_Continua a applicar o ouvido_.)


D. MARIA JOANNA

Novidade?


GONÇALO (_saindo precipitadamente_)

Volto já.


SCENA V


OS DITOS _menos_ GONÇALO


D. MARIA JOANNA

Mais inquietações ainda!


COMMENDADOR (_turbado_)

Não agoiro nada bom... Ouço rumor se me não engano...


MORGADO

Não tem a gente um momento de socego. (_comsigo_) Dar-se-ha caso que
devéras... (_alto_) Isto está como nunca... Anda tudo minado de
malfeitores!


COMMENDADOR (_com o ouvido attento_)

Que ha rumor lá fóra, ha!


D. MARIA JOANNA

Assim é que me tranquillisam!


SCENA VI


OS DITOS _e_ GONÇALO


D. MARIA JOANNA (_assustada_)

Que foi?


GONÇALO

São as suas bagagens. Não é caso de consternar, creio.


D. MARIA JOANNA (_meio enleiada ainda_)

De certo não.


GONÇALO

Teve alguma coisa?


D. MARIA JOANNA

Não tive...--Tive... tive os terrores chronicos do morgado e do
commendador.


MORGADO (_protestando_)

Terrores! Cuidados pela prima.


D. MARIA JOANNA (_aos dois_)

Hão de acabar por me tornar convulsa.


GONÇALO

Chegou a sua aia, voltaram os liteireiros, e appareceu o criado do sr.
morgado. Não falta senão o do sr. commendador.


COMMENDADOR

Esse não me dá cuidado. É dos sitios.


GONÇALO

Tantalo tem férias?


D. MARIA JOANNA

Tem.--A minha Anna Maria?


GONÇALO

Entrou para os quartos inferiores.


D. MARIA JOANNA

Já agora aqui pernoitamos, commendador!


COMMENDADOR

É o mais prudente, se o sr. Gonçalo Mendo nos assegura...


GONÇALO

Basta que esteja em Monforte de madrugada. Eu e as minhas ordenanças
ficamos de guarda a esta casa.


D. MARIA JOANNA

O Luiz Manuel não póde tardar. Sempre ha de haver modo de não ficarmos
peior do que em Monforte.


MORGADO

Ha, pois não... Hade haver onde a prima se accommode como cumpre. Nós...


GONÇALO

Nós em qualquer parte e de qualquer maneira.


MORGADO

Como homens de guerra.


D. MARIA JOANNA

Que poeira trago... reparo agora!--Commendador... minha prima havia de
ter um quarto de toucar... Quer dizer à Anna Maria que suba e procure.


COMMENDADOR

Procurarei eu mesmo (_galanteando_). Pretende Tibullo...


D. MARIA JOANNA (_atalhando_)

Ai! o morgado que faz que não vae acudir ás ades... ás ades... Como é?


MORGADO

Estilladas, prima, estilladas... Vou. Já vou. Deus me livre de entregar
coisas d'estas a lacaios nem mochillas... Vou no mesmo instante.


COMMENDADOR (_indo para sair pela D., e mirando desconfiado Gonçalo
Mendo_)

Dar-se-ha caso que...--Póde lá ser...--Um soldado!


MORGADO (_idem, á porta do F_.)

Querem vêr que...--Ora... um filho segundo!


SCENA VII


D. MARIA JOANNA _e_ GONÇALO


D. MARIA JOANNA (_que tem ido sentar se na cadeira junto ao bufete,
acompanhada de Gonçalo, que fica de pé_)

Não está cançado, sr. Gonçalo Mendo?


GONÇALO

De quê?


D. MARIA JOANNA

Estou eu... creio que estou.


GONÇALO

Com um mez de jornadas!...


D. MARIA JOANNA

Não é das jornadas.


GONÇALO

Será dos companheiros?


D. MARIA JOANNA

Será.--Continuemos a conversar em quanto elles não veem, os
companheiros.


GONÇALO

A respeito de quê?


D. MARIA JOANNA

Do que lhe parecer.


GONÇALO

Sem restricção?


D. MARIA JOANNA (_indicando_)

Agora temos luzes.--Diga-me alguma coisa de Lisboa. Hade estar
informado.


GONÇALO

Sahi de lá ha quinze dias, e volto antes de oito. Vim á provincia em
commissão apenas. Estou ás ordens do conde de Aveiras.


D. MARIA JOANNA (_distrahidamente_)

Que se faz? que se diz?


GONÇALO (_encostando-se-lhe ao espaldar da cadeira_)

Hade-se dizer em breve que possue Lisboa a perola das formosas e
discretas... que já Paris admirava, e agora fica invejando.


D. MARIA JOANNA

Cumprimentos!


GONÇALO

Bem sei que a enfadam já por continuados.--Cumprimentos não, prophecias.


D. MARIA JOANNA

É moço para propheta... e ninguem o é na sua terra.


GONÇALO

O que se faz?... Deixe-me vêr... (_como recordando-se_) Não se faz nada.


D. MARIA JOANNA

Pois nada?


GONÇALO

O mesmo sempre.--A rainha, minha sr.^a, vae a Salvaterra, e sae ás suas
devoções. De tempos em tempos opera em Queluz. Fóra d'isso a nau de
viagem de anno a anno, e... e acabou-se. É assim depois que morreu o
marquez de Pombal. Ao principio ainda se entretinham em ter medo d'elle,
mesmo depois de desterrado. Agora até essa distracção falta.


D. MARIA JOANNA

Ai! sr. Gonçalo Mendo, desculpe. Está ali uma cadeira convidando-o... e
ahi um logar a esperal-o. (_Indica o lado opposto do bufete. Gonçalo vae
buscar a cadeira, e senta-se no ponto designado_.) Não lhe parece que
estaremos melhor?--São ainda moda os abadeçados?


GONÇALO

Uma vez por outra. Agora estão em voga as assembléas.--Como lhe hade
parecer tudo isto semsabor!


D. MARIA JOANNA (_sériamente_)

Engana-se. Sempre são ares nossos. Não sabe que me trazem saudades?


GONÇALO (_com intenção_)

De...?


D. MARIA JOANNA (_accentuando_)

Da patria.


GONÇALO

E sentimento digno de tal dama. Mas depois sempre se hade lembrar d'esse
Paris, que era já tão seu.


D. MARIA JOANNA

O Paris que viu ha dois annos vae de dia para dia degenerando... Os
requebros são curtidos em philosophia... as canções tem um sabor de
finanças... Que distracção para damas!...


GONÇALO

Amortalharam então a galanteria franceza com a Dubarry?


D. MARIA JOANNA

Que está dizendo! Seria leval-a de caixão á cova. A galanteria
sobrevive; mas agora tem por figurino a sensibilidade... e anda de braço
dado com uma coisa nova, que veiu ha pouco de Inglaterra, e que se
chama... (_recordando-se_) chama-se?... (_occorrendo-lhe_) philantropia.
Sabe o que é?


GONÇALO

Um nome que trescalla a grego. Hade sabel-o o commendador.--Acredita na
sensibilidade de figurino?


D MARIA JOANNA

Não; nem na philantropia de apparato.


GONÇALO

N'isso se occupam agora os francezes!... Substituiram isso aos
madrigaes?... Pois não ganharam na troca. Estou tentado a preferir-lhes
as nossas formalidades ronceiras... a nossa rustiquez e lhaneza... Por
fim de contas, são coisas de casa... e muito de bom tem algumas.


D. MARIA JOANNA

Prefiro-as eu. Por isso vim.


GONÇALO

E bem haja que veiu! (_admirando-a_) Vem, ainda mais formosa do que era
ha dois annos, quando fui levar officios de gabinete á embaixada de
Paris... Lembra-se?


D. MARIA JOANNA

Tinha-se levantado o cerco de Gibraltar!


GONÇALO

Só isso lhe lembra?... Vem prendada de todos os primores do espirito, de
todas as graças da beleza, e não consente...


D. MARIA JOANNA (_detendo-lhe a palavra com o gesto_)

Escute! Cuidei que era já o commendador... Quer ver se o commendador com
effeito achou o quarto?...


GONÇALO (_Ergue-se vivamente_. _Pausa_. _Contemplando-a_.)

É cruel! (_Nova pausa_. _Com visivel despeito_.) Vou procurar o
commendador. (_Encaminha-se á D._)


D. MARIA JOANNA (_levantando-se como por effeito de reflexão_)

Não. Espere. O commendador era capaz de pensar que não posso passar
cinco minutos sem a sua presença.


GONÇALO (_voltando esperançado_)

Dispensa-a então... por óra?


D. MARIA JOANNA

Por mais um instante. (_Vae sentar-se no canapé_.)


GONÇALO (_defronte, de costas para o bufete, fitando-a_)

Porque me obriga a dissimular commigo mesmo? Porque me força a estes
colloquios frivolos? É isto para nós? Não sabe que só a bocca lhe
responde, porque tenho a alma e o sentido n'outra coisa?


D. MARIA JOANNA (_depois de pausa_)

Tem razão. É-lhe absolutamente indispensavel fallar-me do que já me
disse ha dois annos em Paris? Pois fallemos... Fallemos.--Dei-lhe então
esperanças?


GONÇALO

Nenhumas, é verdade.


D. MARIA JOANNA

Dei-as a alguem?


GONÇALO

Rodeam-n'a as homenagens como a soberana... é agradavel. Sorri a
todos... mas fica a todos insensivel... tambem sei!


D. MARIA JOANNA

Insensivel!... Uma pedra, porque não?... Um gelo dos Alpes, vamos...
Diga, diga... Se não o diz, pensa-o.--Somos insensiveis para estes
senhores, nós outras, quando não nos declaramos humildemente rendidas
apenas se dignam dar-nos um signal de preferencia... Nascemos para seu
desenfado... «Sorri a todos»!... Vejam! Uma causa crime, completa só
n'esta phrase: «sorri a todos»! Olhem o attentado! Queriam que
chorassemos sempre? Queriam que _os_ chorassemos!... E quando
choramos... Nem eu digo!--Sentenciado a pena ultima, o nosso sorriso.
Sentenciado porquê?... Não sabem que nas mulheres o sorriso anda perto
das lagrimas!... Deixem-nos ao menos esse raio de luz entre chuveiros...
como o sol de inverno.


GONÇALO

Poderia responder-lhe que mais commodo do que ter amor é deixar-se
amar... Mas não digo... não me queixo... nada peço. Está na sua mão não
preferir ninguem?... Não o está impedir que lhe queiram... mesmo sem
esperança. Porque não serei eu d'esses?


D. MARIA JOANNA

O sr. Gonçalo Mendo!...--Sente-se ahi. Vamos, sente-se. Quero
confessal-o.


GONÇALO

E dá-me a penitencia antecipada!


D. MARIA JOANNA

Verei depois a que merece... segundo o arrependimento.


GONÇALO (_com esperança, fazendo menção de ajoelhar_)

As culpas dizem-se de joelhos.


D. MARIA JOANNA (_vivamente_)

Sente-se. Os culpados começam por obedecer. Isso. Vamos a saber:
(_solemnemente_) é verdade que por occasião da sua ida a Paris desafiou
em Versailles um capitão dos guardas francezes, e o deixou tres mezes de
cama com uma estocada?


GONÇALO

É verdade. Foi para lhe provar que as parisienses não eram as primeiras
entre todas as damas, como elle pertendia.


D. MARIA JOANNA

E porque não seriam?


GONÇALO

Tinha cá as minhas razões.


D. MARIA JOANNA

Boas razões haviam de ser. Como se estiveramos ainda no tempo dos
Magriços!


GONÇALO

Os Magriços em Portugal são de todos os tempos.


D. MARIA JOANNA

É verdade que o anno passado, quando se festejou o casamento do sr.
infante D. João com a sr.^a infanta D. Carlota, n'uma corrida de touros
no paço da Murteira, saiu ao terreiro de espada na mão, e a pé, sem mais
capa nem defesa, chamou a si o animal furioso, e matou-o de um golpe, só
para que elle não pozesse os pés n'um lenço, que da varanda havia caido
a uma dama?


GONÇALO

É verdade. A dama tinha sessenta annos.


D. MARIA JOANNA (_incredula e motejando_)

Sessenta annos!


GONÇALO

Mas chamava-se D. Mencia Jorge, e o lenço tinha bordado um _M_ e um
_J_... as suas iniciaes.


D. MARIA JOANNA (_lisonjeada_)

Ah! (_Pausa_.) Mais...


GONÇALO

Mais ainda? Devo agradecer a curiosidade, que se informou... ou a
informou... com tanta miudeza a meu respeito?


D. MARIA JOANNA

Deve responder.--É verdade que um dia, amotinando-se o regimento de
Meklemburgo... servia então lá... o tenente-coronel... um allemão,
creio... ficou só, ameaçado dos soldados enfurecidos? É verdade que
unicamente um alferes se atreveu a collocar-se ao lado do commandante,
com tal resolução e bizarria, que o exemplo envergonhou os sublevados, e
a firmeza do official salvou a vida ao tenente-coronel?


GONÇALO

É verdade. O alferes cumpriu o seu dever, nada mais.


D. MARIA JOANNA

Mas dizem que n'esse dever lhe serviram de estimulo os olhos azues da
irmã do tenente-coronel. Será assim?


GONÇALO

É. Foi. Ha quantos annos?


D. MARIA JOANNA

Eu sei!...


GONÇALO

Ha seis. (_a D Maria Joanna_.) Não a conhecia ainda.


D. MARIA JOANNA

Ahi está... «Não a conhecia ainda!» O estribilho costumado. É como
todos.


GONÇALO

Pouco mais ou menos. Se imagina uma especie differente... Sou um simples
mortal, confesso humildemente.


D. MARIA JOANNA

É... é todo verduras e temeridades... Por uns olhos affrontar um
regimento!... Por uma palavra provocar os melhores espadas de França!...
Por um lenço arriscar-se a ficar nas armas de uma fera!... Póde lá
dispôr da sua mão, um homem assim?... Para trazer sempre a mulher em
vesperas de viuvez!


GONÇALO (_encantado_)

Oh! se isso fosse uma esperança!


D. MARIA JOANNA

Deus me defenda.--Quando me começavam a florir os annos, casaram-me com
um homem... que já ia desfolhando os seus. Deixei patria e familia aos
dezoito. Achei-me viuva aos vinte. Acolhendo-me a casa de minha prima,
na nossa embaixada em Paris, senti sinceramente a falta do companheiro e
protector. Mas d'esta alliança... da primavera com o inverno... podem
ter-me ficado memorias que me façam desejar novo captiveiro?


GONÇALO

Não o captiveiro, mas a compensação.


D. MARIA JOANNA

Quem m'a assegura?


GONÇALO

Quem? A constancia.


D. MARIA JOANNA

Que diria a isso a allemã?


GONÇALO

Ama-se devéras uma só vez. Quer-me crer? Amo-a assim eu. Digo-lh'o
singelamente, chãmente, cá de dentro, á moda da minha provincia, como um
verdadeiro transmontano.... Deixe-me desabafar. Esta vez, e
acabou-se.--Não sei que pense, não sei se espere... Unicamente sei que
não posso deixar de...


D. MARIA JOANNA

Ia repetir.


GONÇALO

Tem razão. Para quê?


D. MARIA JOANNA

Interrompe a confissão?


GONÇALO

Visto que me não absolve... (_interrogando D. Maria com os olhos;
silencio d'esta_.) Vou ter com o commendador.


D. MARIA JOANNA (_que deitára os olhos para dentro debruçando-se no
canapè_)

Não é preciso; elle ahi vem.


SCENA VIII


OS DITOS _e o_ COMMENDADOR


D. MARIA JOANNA

Então achou?


COMMENDADOR

Está remediado. Não é um _boudoir_, como lá diziamos em França, mas póde
passar. Eu mesmo ajudei a pôr tudo em ordem.


D. MARIA JOANNA

O sr. Gonçalo Mendo permitte?


GONÇALO (_inclinando-se_)

Minha senhora!


D. MARIA JOANNA

Escuso dizer-lhe que ceia comnosco... Desculpa de certo o incommodo que
lhe tenho dado, e preciso agradecer-lhe a companhia que me tem feito.
(_ao commendador_) Ha luzes no corredor?


COMMENDADOR (_galanteando_)

Tudo prevenido, como quem sabe o que n'estes pontos convém. Marcial, que
tão bem conheceu os gyneceus de Roma, dá a respeito dos adornos
femininos informações preciosas.--Acompanho-a?


D. MARIA JOANNA (_relanceando os olhos a Gonçalo_)

Obrigada. (_ao commendador_) Quer ir ver se descarregaram as bagagens, e
mandar-me ao quarto as minhas malas?


GONÇALO (_vendo o commendador hesitar_)

Aproveito a occasião para fazer accommodar as ordenanças.

(_Gonçalo dirige-se ao fundo_. _D. Maria Joanna á D. O morgado apparece
á porta d'entrada do F._)


SCENA IX


OS DITOS _e o_ MORGADO


MORGADO (_ainda fóra da porta, mas á vista do espectador, como reparando
e fallando para dentro_)

Levantem o animal... Puxa-lhe a arreata, Jacintho... Tirem-lhe o resto
da carga... Fortes alarves!... (_Entra_.)


D. MARIA JOANNA (_que parou á porta da D_.)

Que mais temos, sr. morgado?


GONÇALO

Deixaram deitar-se a azemola... Um instante que eu falte!... Mas não tem
duvida já... Arrecadaram-se os comestiveis. (_voltando ao F. a
observar_) Lá está a mula a espojar-se... Levantem-n'a, levantem-n'a.


D. MARIA JOANNA

Commendador, as minhas malas! Acuda ás minhas malas! Cá as vou esperar,
e não tardo. (_Sae pela D._)


SCENA X


OS DITOS _menos_ D. MARIA JOANNA


COMMENDADOR (_ao morgado_)

Sr. morgado, as malas?


MORGADO (_a Gonçalo_)

Sr. tenente, as malas?


GONÇALO

Cada qual no seu officio! (_Sae_.)


SCENA XI


OS DITOS _menos_ GONÇALO


MORGADO

Então, commendador, as malas da prima. Eu não posso servir para tudo!


COMMENDADOR (_tomando o seu partido_)

Bem dizia Socrates, atheniense, «que a mulher é como o altar»: nunca
está bastante ornada (_para sahir_) E com razão a definia o famoso Julio
Cesar Scaligero, de Verona... (_Sae_.)


MORGADO (_seguindo-o_)

Muito melhor canta o nosso rifão «com a mulher e o dinheiro, não zombes
companheiro.»


SCENA XII


MORGADO _só_ (_voltando_)

Bem te percebo, meu feixe de maximas velhas e sentenças occas!... Bom
signal é que de mim te receies... Pressentes que te foge a presa... E
não ha 48 horas ainda!... O que fará d'aqui a dias... Pudéra! similhante
deposito de latins e de catarros, ao pé d'um homem da minha tempera,
moço ainda, bem posto, prendado e cavalleiro!... (_esfregando as mãos_)
Está certa, Bartholomeu Tojo, morgado da Gésteira... está caida. Pódes
ir encommendando sege á boleia... Sege de côrte e sege de campo!... A
fallar a verdade vem a tempo... era tempo. Iam-se já os últimos torrões!
(_esfregando as mãos_) O que é ter artes e astucias!...


SCENA XIII


MORGADO _e_ ZÉ DA MOITA


ZÉ (_deitando a cabeça pela porta da E. em voz baixa e cauteloso_)

Sr. morgado... Pschiu!... eh! sr. morgado!


MORGADO (_assustado_)

Que é? (_voltando-se e dando por elle_) Tu, homen! (_inquieto_) Que
queres?


Zé (_entrando_)

Está só?


MORGADO

Não vês? Vae-te, que póde vir gente. Como vieste aqui parar?


ZÉ

_Ê sê_ as trilhas de cór e salteado. Vinha em sua _précura_.


MORGADO

Porquê? Para quê?


ZÉ

Ê que lá a rapaziada está levada de quantos démos ha. O Manuel da
Brazia, o Domingos Picanço, o Chico d'Alter, o João Gallego, o Timotheo
d'Alcaraviça... aquillo é todos á uma.


MORGADO

Deixou-se apanhar algum?


ZÉ

_Q'al_! Bem alma tinham para isso os cavallarias, que não sabem caminho
nem _carrêra_. A gente _mettemo-nos_ pelo azinhal dentro... pés para que
te quero... Fossem lá pôr mais a vista em cima a nenhum. D'ali a um
credo estava tudo junto no barranco de baixo, ao fundo da Fonte da
Fornalha, ahi ao pé da azinhaga da herdade.


MORGADO (_inquieto_)

Pois sim, mas que me queres?


ZÉ

Como eu é que _les fallê_ por conta do sr. morgado...


MORGADO

Avia-te. Não te dei já o que ajustámos? Quantos eram?


ZÉ

Eram sete... commigo oito.


MORGADO

Dei-te uma moeda. Um cruzado novo para cada um, e dois para ti. O resto
para beberem.


ZÉ

Ai! senhor!... Se os ouvisse!


MORGADO

Não estão contentes?


ZÉ

Contentes! Ficaram derramados!... Andam na mente que os _enganê_... que
não era uma _brincadêra_, como o sr. morgado me disse... que foi uma
fidalga que nós fizemos cara de assaltar na estrada... que dá brado o
caso e que se mettem n'isso as justiças... que o sr. morgado o que
queria era fazer de pimpão sem perigo, á custa dos rapazes... que pódem
ficar agora todos mettidos em trabalhos... e que torna e que deixa...
Ih! Jesus!... um dia de juizo!


MORGADO

Por esta não esperava eu!


ZÉ

_P'ra_ mais ajuda, um dos criados foi-se direito a Vayamonte, e achou lá
o sr. juiz ouvidor com uma escolta do regimento de Setubal...
_Contou-le_ tudo pelos modos... e os rapazes dizem que o melhor é ir
pedir perdão, porque a final elles não teem culpa, e o sr. morgado ha-de
contar a verdade.


MORGADO (_atterrado_)

Pelo amor de Deus, homem. Vae ter com elles... Anda, depressa, vae.
(_comsigo_) Que não diria minha prima!... (_a Zé_) Para que haviam de
fazer tal? Ninguem os conheceu.


ZÉ

Pois sim! Não ha quem os accommode. Como _pesquê_ que os senhores tinham
_botado_ para aqui, lá _assoceguê_ a gente _dizendo-le_ que esperassem
todos um nada, que vinha fallar com o sr. morgado.


MORGADO

Mas se te veem aqui!...


ZÉ

Não tem _duveda_. _Ê_ conheço o feitor, e já fui guarda cá da casa. O
Timotheo d'Alcaraviça é que está mais perro. Tem lá a sua _aquella_ que
ninguem _le_ põe o pé adiante, (_elevando a voz_) e como o sr. morgado
quiz assim fazer pouco da rapaziada...


MORGADO (_afflicto_)

Mais baixo. Que precisão tens tu de gritar?


ZÉ

Bem _sê_ que não era a valer... Se fosse... ai... se fosse!... Mas um
_home_ é um _home_, e...


MORGADO (_inquieto_)

Está bom, está bom... Se lhes désse mais?...


ZÉ (_coçando a orelha_)

_Ê sê_!... tão bravos como estão!... Talvez se accommodassem pedindo
eu... talvez.--Mais quanto?


MORGADO (_com esforço_)

Uma peça.


ZÉ

Uma peça! Quanto faz uma peça?


MORGADO (_ponderando_)

Quinze cruzados novos menos oito tostões.


ZÉ

Quinze?... (_comsigo, contando pelos dedos_) menos... (_resolutamente_)
Tem-n'a ahi?...


MORGADO (_mostrando-lh'a_)

Aqui está.


ZÉ (_fazendo-lhe cara_)

Em oiro?


MORGADO

Se não tenho troco!


ZÉ

Tem a gente de ir trocal-a a Evora, que lá na villa, se nos vêem com
isto, são capazes de pegar logo a desconfiar...


MORGADO (_perdendo a cabeça_)

Então como ha de ser?


ZÉ (_tocando-lhe familiarmente com o cotovelo_)

Ó sr. morgado, a fidalga tem uns olhos!... Ella sempre vale as duas
loiras! (_elevando a voz_) Se vem a saber que foi tudo fingido...
hein?...


MORGADO

Cala-te! (_fitando-o_) Com que então... (_comsigo_.) A final o assaltado
sou eu. (_Alto_) Aqui tens duas peças. (_Dá-lhe as duas_.)


ZÉ (_respeitosamente_)

Não manda mais nada o sr. morgado?


MORGADO

A casa do feitor é para esse lado. Olha não te encontre.


ZÉ

É o mesmo. Não desconfia, já _le_ disse. Até mais ver! (_sae_)


MORGADO

Vae com Deus! (_depois de o vêr sair_) Os demonios te levem, tratante!


ZÉ (_tornando a deitar a cabeça_)

Chamou?


MORGADO (_impaciente_)

Vae com Deus! vae com Deus! (_Zé sae definitivamente_.)


SCENA XIV


MORGADO

Que tal é a lição! O susto que me pregaram os cavallarias... cuidar que
andava tudo por ahi cheio de salteadores deveras... e ainda mais
esta!... Calam-se, agora calam-se: é o seu interesse... O que o
desalmado quiz foi... E gabem-me a singeleza dos rusticos!... Tomára que
succedesse uma d'estas aos srs. poetas de Lisboa, que não fazem senão
deitar lôas á innocencia pastoril... Que remedio! O que lá vae lá vae...
E foram-se as peças!... E o que não rirão á minha custa, os malandrins,
quando as beberem!...--Por fim de contas vale a pena... Se vale... Vale
a pena de tudo...


SCENA XV


MORGADO, _e_ LUIZ MANUEL (_da E_)


MORGADO (_vendo-o_)

Outro!... (_reparando_) Um retrato do tempo d'el-rei D. Pedro!...
(_conhecendo-o_) Ai! o Luiz Manuel.


LUIZ MANUEL (_Trajo do tempo de D. João V, tristeza profunda, sisudez
inalteravel_.)

Bem vindo seja á casa da Torre da Palma, o sr. morgado da Gesteira. Que
estava aqui me disse um guarda do monte, que topei agora como nos
tornavamos do terço. Já não è isto o que era, porque a sr.^a morgada...
«gota a gota o mar se esgota», e quem em maio relva, fica sem pão nem
herva.» Mas... ella é senhora do que é seu!... E eu venho só a dizer a
Sua Mercê que, se bem «onde senhores empobrecem, criados padecem», tudo
o que ha na casa e na quintan está ás ordens do sr. morgado, e mais da
fidalga companhia que traz, a julgar pelo arruido que por ahi vae.


MORGADO

Boa companhia trago com efeito. Como no tempo do sr. capitão-mór!


LUIZ MANUEL

Como no tempo do sr. capitão-mór, que Deus haja!... Isso já lá vae, e
não volta... Não volta... Nem conhecia o sr. morgado, se me não
avisam... Que annos ha! E como assim nos enterramos n'este ermo!...
Tanto faz. Como o outro que diz: «ainda que nos não fallemos, bem nos
queremos.»--O sr. morgado precisa alguma coisa?


MORGADO

Já por ahi procurámos e dispozemos do que encontrámos... São ainda
necessarias roupas, talheres...


LUIZ MANUEL

Ha de apparecer tudo... Tudo?... tudo o que resta. Fizeram bem em se ir
logo servindo... Haviam de achar as chaves nas portas... Era o costume
antigo, bem sabe.


MORGADO

Achámos. Extranhei até... Estando aqui sós...


LUIZ MANUEL

Não tem perigo. Pouco ha já que fechar e arrecadar. Vasios quasi, os
taleigos que andavam de cogulo... a bem dizer no fundo, as arcas d'antes
a arrebentar de fartas. Não será como então, que melhor se podia dizer:
«em casa cheia depressa se faz a ceia.» Mas o que ha, o que houver... É
a vontade da sr.^a morgada... decerto ha de ser. Com ir ahi tudo por
agua baixo... que nem sei já se virei a cerrar os olhos n'esta casa onde
nasci... ella a final sempre é quem é... (_como para atravessar para a
D._) Vou dar ordem a... (_parando de repente e com tom consternado_.)
Queria, sr. morgado, mas não posso... Queria pôr a alma e a vida no que
me cumpre, já que a Torre da Palma está sem amos... Eu bem conheço que
«hospedes em casa dia santo é»... mas... mas... Estou velho, faltam-me
as forças! «Uma coisa se deseja e outra é bem que seja.»


MORGADO

Tem alguma coisa, Luiz Manuel?


LUIZ MANUEL

Eu não, sr. morgado. É a minha Simôa... Isto de viver assim vinte annos
juntos, deita raizes cá dentro!...


MORGADO

Pois... que lhe succedeu?


LUIZ MANUEL

Mal acabou o terço, a minha Simôa foi á sacristia buscar um papel, que
pelos modos tinha encommendado ao nosso padre cura do Vayamonte... Eu
estava á porta á espera... Mal vinha a sair, entra-me a tremer, a tremer
toda, a torcer-se como um vime, e a revirar os olhos, e a sumir-se-lhe a
falla, e sem se poder ter!... Aquillo não é senão olhado que lhe
deram!... Foi preciso trazel-a em braços, e lá ficou em baixo na cama...
(_lembrando-se de subito_) Ai! Jesus! esta cabeça como está com tanta
coisa de repente!... Então não me esquecia?... Quando o moço passou por
nós, e nos advertiu que estava cá o sr. morgado da Gesteira, tornou
assim mais a si a minha Simôa, e disse... (_como recordando_) Queira
Deus que me lembre... Foi isto: «É parente da sr.^a morgada... pede-lhe
que venha ver-me, pede-lhe Luiz... Tral-o hoje aqui a Providencia!» Foi
isto, foi!


MORGADO

E não m'o dizia? Vamos já. (_comsigo_) Porque será?


LUIZ MANUEL

Pois o sr. morgado quer?... Aquillo é tresvario do mal!


MORGADO

Sua mulher assim!... Vamos. (_comsigo_.) Para que será?


LUIZ MANUEL

Como o outro que diz: «o pequeno mal espanta, o grande amansa.» Deixei
gente com ella. A obrigação primeiro. E a obrigação era...


MORGADO

Dispenso-o eu d'ella... Vamos, vamos. Depois se tratará do mais.


LUIZ MANUEL

Agora é o sr. morgado quem manda. (_Sae_. _O morgado vae a seguil-o,
entra Gonçalo e Bocage_.)


GONÇALO (_da porta_)

Sr. morgado.


MORGADO (_saindo vivamente_)

Já volto. Volto já!


SCENA XVI


GONÇALO, _e_ BOGAGE


BOCAGE

Quem é?


GONÇALO

Uma singularidade, emparelhada com outra que hade ver logo.--Não o
esperava aqui, sr. Bocage. Vem mesmo por ordem do Ouvidor?


BOCAGE

Mesmo por ordem do Ouvidor. Faz trez semanas que me aquartelei em
Monforte, n'um destacamento do meu regimento. Esta manhã o sr. Juiz
Ouvidor de Villa Viçosa, que está em correição na villa, saiu a
Vayamonte, e trouxe comsigo uma escolta em que eu vim. Ha pouco chega lá
um homem todo esboforido... Um criado ouvi que era... D'ahi a um
instante o sr. Ouvidor manda-me chamar em pessoa, e envia-me com quatro
soldados aqui, para proteger não sei que fidalga que vem de jornada... O
encargo póde ser lisongeiro, mas confesso que o dava a todos os demonios
quando deitei por esses fraguedos abaixo. Agora, encontrando-o, meu
tenente, dou-me por pago de tudo... Informei-me, e disseram-me que se
tinham recolhido n'esta casa os viajantes. (_reparando_) Que casa santo
Deus!... Dá-me ares de ter escapado ao diluvio... Pois a mobilia!... Da
arca de Noé a trouxeram para aqui, certamente!... E aquelle canapé...
Que canapé!... Um canapé? Um monumento!...

«Quando a velha antiguidade
Dentro n'esta sala entrou,
Disse áquelle canapé:
Sua benção, meu avô!»


GONÇALO

Bravo, sr. Bocage. Não se lhe estanca a veia por estes desertos do
Alemtejo. O mesmo sempre!


BOCAGE

O mesmo diz? Estou a ponto de cair em melancolia... britanica. Mulher
que se alberga n'uma habitação d'estas é por força como ella. Uma mumia,
não? Uma curiosidade archeologica... uma contemporanea das pyramides...
Não me diga quantos annos tem.


GONÇALO

Vinte e tres annos, viuva, todos os dotes do espirito, todas as graças
da formosura, todos os primores de duas côrtes.


BOCAGE

Tudo isso! Aqui?... Aqui!...


GONÇALO

De passagem.


BOCAGE

Não diga mais, meu tenente. Quer-me fazer apaixonar, ou está já
apaixonado.


GONÇALO

Isso estão quantos a vêem.


BOCAGE

Severa ou jovial?


GONÇALO

Um porte que infunde respeito, uma afabilidade esmaltada de sorrisos.
Não ha temeridade que se lhe atreva, nem isenção que lhe resista.


BOCAGE

Esse enthusiasmo faz-me tremer! Uma perfeição!


GONÇALO

Um enigma.


BOCAGE

Enigma ou mulher, o mesmo é.


GONÇALO (_olhando para dentro_)

Eil-a!


BOCAGE

O enigma.


GONÇALO

A perfeição.


SCENA XVII


OS DITOS, D. MARIA JOANNA _e o_ COMMENDADOR


GONÇALO

Se dá licença, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão, apresento-lhe o sr.
Manuel Maria Barbosa de Bocage, cadete do regimento de Setubal, que lhe
traz recado do sr. Juiz Ouvidor de Villa Viçosa.


D. MARIA JOANNA

O sr. Juiz Ouvidor teve noticia de nós, e digna-se pensar em mim!


BOCAGE

Dever é de todo o homem proteger as damas. Mais ainda quando o homem é
magistrado. Mais ainda quando as damas são de tal qualidade.--Por sua
ordem e em seu nome venho. Infelizmente não chego a tempo de ser util.


D. MARIA JOANNA

Se não é já necessario auxilio, o sr. cadete vem sempre a tempo de
receber os meus agradecimentos, e os do sr. commendador de Monsarás...
(_Os homens inclinam-se, cumprimentando-se_) que me acompanha... para os
transmittir á estremada cortezia do sr. Juiz Ouvidor.--Está aqui ha
muito?


BOCAGE

Ha um instante. Os meus soldados esperam as ordens de v. s.^a


D. MARIA JOANNA

Soldados! Mais? Temos uma guarnição completa. Coitados! Mande-os
descançar.


BOCAGE

Estão já descançando.


D. MARIA JOANNA

N'esse caso, o sr. cadete demora-se tambem.


BOCAGE (_inclinando-se_)

Mandaram-me ficar ás ordens! (_baixo, a Gonçalo_.) Tinha rasão.
Gentilissima!


GONÇALO (_a Bocage, do mesmo modo_)

Inflammado já? (_alto_.) Apresentei-lhe o militar, permitta-me agora que
lhe apresente o poeta... O sr. Bocage é conhecido, e já apreciado, pelo
seu estro brilhante... um estro que se revelou desde a infancia... Nem
só em França se frequenta o Parnaso. Aqui tem um moço que nasceu poeta.


BOCAGE

Como outros nascem vesgos ou tartamudos.--Talvez seja assim, se a
amizade do sr. tenente o não cega, ou me não favorece... mas talvez
tambem a segunda apresentação prejudique a primeira.


D. MARIA JOANNA

Porque? As armas e as musas não são inimigas, que eu saiba.


COMMENDADOR

Horacio esteve na batalha de Philipes, o Suetonio foi escriptor e
guerreiro! Ainda que Pittaco, um dos sete sabios da Grecia, dizia «os
validos de Marte são a injustiça e a violencia» não deixou o grande
Plutarcho de escrever «que os Lacedemonios pintavam Pallas armada» posto
serem uma só Pallas e Minerva.


BOCAGE (_contemplando-o abysmado, a Gonçalo em voz baixa_)

Este quem é?


GONÇALO (_idem_)

A outra singularidade!


BOCAGE

Que pena ter estudado! Forte asno se perdeu ali!


D. MARIA JOANNA

«N'uma das mãos a pena, n'outra a espada,» diz, creio eu, o nosso
Camões, poeta e soldado tambem.


BOCAGE

Ahi está um _tambem_ capaz de inventar orgulho no mais modesto... se o
não tomasse á conta de exageração obsequiosa. (_a Gonçalo, baixo_)
Venus, disfarçada em viajante!


D. MARIA JOANNA

Exageração! Em que? Por ler vivido fóra da patria não lhe desaprendi a
lingua, nem lhe desestimo as glorias.


BOCAGE (_lisongeado_)

D'essas glorias não participo eu, como obscuro ainda.


GONÇALO

Não tanto, sr. Bocage!


D. MARIA JOANNA

_Ainda_? Não ha n'essa palavra a consciencia do que é? a confiança no
que será? As musas não deixam muito tempo sem gloria os seus
predilectos.


BOCAGE

Sabe se sou d'esses?


D. MARIA JOANNA

Adivinho-o. Deixa-me vaticinar-lh'o?


BOCAGE (_com enthusiasmo_)

Bastaria o vaticinio para inflammar o estro.


D. MARIA JOANNA

Deveria provar-me que tenho razão. Em França estima-se a poesia, e eu
venho sequiosa da nossa. Era dar-me as boas vindas.


GONÇALO

Ninguem melhor do que o sr. Bocage. É não só poeta, mas improvisador.


D. MARIA JOANNA

Como em Italia.


GONÇALO

Ainda ha pouco...


BOCAGE (_atalhando-o_)

Por quem é! (_a D. Maria Joanna_) Vem de França, v. s.^a?


D. MARIA JOANNA

De Paris.


BOCAGE

Francez era meu avô; com as musas francezas me creou minha mãe... Somos
quasi conhecidos.


D. MARIA JOANNA

Bocage!... Não me é novo o appellido. Não tem em França parentes?


BOCAGE

Tenho. Uma segunda tia materna... Bocage tambem por seu marido.


D. MARIA JOANNA

Já sei. A sr.^a D. Marianna, auctora do poema da _Columbiada_... coroada
ha annos em Ferney pelas proprias mãos de Voltaire... E queixa-se de lhe
faltar a gloria!


BOGAGE

Agora não me queixo. Ainda que não seja minha essa gloria, é meu o
proveito d'ella.


COMENDADOR (_que tem disfarçado alguns signaes d'impaciencia, murmurando
comsigo_)

Coroada por Voltaire!... Boa prenda hade ser!...


BOCAGE (_que não ouviu bem, mas que lhe notou o gesto, a Gonçalo_)

Antipathiso formalmente com a singularidade!


D. MARIA JOANNA

A poesia é hereditaria nos seus, já vejo.


GONÇALO

De ambos os lados. Seu pae o dr. José Luiz Soares de Barbosa adorna a
toga com a lyra, e é um dos discipulos mais estimados de Souto-Mayor.


BOCAGE (_sorrindo_)

É doença de familia, não o nego. Doença chronica, e por isso incuravel.


D. MARIA JOANNA

Em França diz-se: _noblesse oblige_. A poesia, que é nobreza tambem,
está a obrigal-o.


BOCAGE (_exaltando-se progressivamente_)

A poesia... A poesia é a lingua dos deuses, e a historia do mundo. É o
raio omnipotente de Jupiter, e o carro fulgurante de Apollo. N'ella, em
todos os tempos, teem cantado os homens as suas alegrias, teem chorado
as suas dores, teem perpetuado os seus feitos, teem immortalisado as
suas catastrophes. N'ella começou a balbuciar a humanidade; n'ella
fundou os monumentos que desafiam os seculos. A poesia é a expressão do
que ha mais intimo no coração e mais celestial no pensamento; é
magnificencia e harmonia; é arrebatamento e seducção; esplendor pela
fórma, delicia pelo som. É resumo de quantas artes levantam o homem ao
Olympo; sentimento para a alma, idéa para o espirito, imagem para os
olhos, musica para o ouvido, enlevo para todos os sentidos! Seria a
poesia a unica lingua digna de saudal-a, minha senhora, se a mais
completa poesia não fosse a propria formosura. (_recrescendo_) Deve ser
a poesia...


COMMENDADOR (_que durante esta falla passeou ao F. indo á janella_)

Não quer que lhe feche esta janella, sr.^a D. Maria Joanna? Estão frias
as noites, e o ar por aqui traspassa. Dos ares montesinhos, diz o
insigne Columella...


D. MARIA JOANNA (_atalhando-o impaciente e reprehensiva_)

Commendador!

(_O commendador approxima-se tirando a caixa de rapé_.)


BOCAGE (_reprimindo um gesto furioso e como continuando_)

Mas a poesia, como dama, tem os seus dias, tem os seus momentos, tem os
seus caprichos. É rainha, e não serva. Impéra, não obedece. Se vae
arremessada no vôo, se a fazem colher as azas e baixar á terra (_fitando
o commendador_)... para tropeçar na impudencia, ou no ridiculo... faz-se
allegoria, faz-se apologo; é epigramma, é satyra; fustiga, flagella,
punge, dilacera, fulmina... e segue, a sorrir desdenhosa, deixando
atascada no seu lodaçal immundo a sandice enfatuada e grosseira!...


COMMENDADOR (_sorrindo dubiamente e saboreando a pitada_)

Hypotypóse arrojada! Já Democrito, philosopho da Thracia, dizia... o que
quer que seja similhante... ao divino Hypocrates, natural da ilha de
Cós! (_Bocage vae para replicar arrebatado_. _Entra o morgado_.)


SCENA XVIII


OS DITOS _e o_ MORGADO


MORGADO (_com um papel na mão, que esconde apenas vê os que estão em
scena_)

Grande novidade, prima! Grande novidade!


GONÇALO (_que observou tudo_)

Diversão a tempo.


D. MARIA JOANNA (_ao morgado_)

Como as do costume?


MORGADO

A mulher do Luiz Manuel que está muito mal! Perdeu já a falla.


D. MARIA JOANNA

Tão mal a pobre Simôa!... Commendador, sr. Gonçalo Mendo, venham,
venham.


MORGADO

Póde ir logo, prima. A sua refeição hade estar prompta!


D. MARIA JOANNA

Quando me diz que temos ahi uma creatura em perigo! Enlouqueceu? (_aos
outros_) Vamos... (_como lembrando-se, e detendo-se_) Sr. cadete...
qualquer dos seus soldados póde ir buscar o cirurgião á villa.


GONÇALO

Que monte a cavallo um dos dragões: irá mais depressa.


D. MARIA JOANNA

Vamos, venham. (_Sae, e o commendador pela E._)


BOCAGE (_baixo, apressado e a Gonçalo_.)

Uma nympha! uma deusa! Estou doido por ella. Tem só um defeito...


GONÇALO (_indicando o commendador_)

A singularidade?


BOCAGE

A asnidade, digo eu. (_Sae pelo F._--_Gonçalo segue D. Maria Joanna_).


SCENA XIX


MORGADO _só, pouco depois o_ COMMENDADOR


MORGADO (_vendo-os sair, desconfiado_)

Um cadete agora! É o quartel general aqui... (_olhando em redor_)
Tardava-me já ver-me só... (_tirando o papel e examinando-o_)
Fechado!... sem direcção!... E com que ancia e mysterio a Simôa me
segredou... «isto á sr.^a morgada... sem falta!...» Que pena perder os
sentidos!... Que será? Pois que não tem direcção... (_lançando novamente
os olhos em redor_) facil é sabel-o. (_Abre, lê attentamente, e acaba
com um grito de admiração_) Oh!... (_passeiando e meditando_) Quem tal
havia de dizer? (_pára como resolvendo de repente_) Não ha que pensar...
Agora posso ir encommendando a sege... (_assoma á porta da E. o
commendador, sem que o morgado o presinta_) Com um segredo d'estes!...


COMMENDADOR

Que segredo, sr. morgado?


MORGADO (_sobresaltado, e guardando apressadamente o papel_)

Segredo!... (_serenando, ironicamente_) Um segredo meu, sr. commendador.


COMMENDADOR (_com o habitual sorriso entre fatuo e maligno_)

Segredos, só debaixo da terra... como faziam os romanos!

(_Cae o panno_)


FIM DO PRIMEIRO ACTO



ACTO II


Ao fundo a frente e esquina d'um quarteirão da rua Augusta, tomadas da
extremidade de uma travessa, cujos edificios estão ainda em obras.
Janellas praticaveis em dois andares. A entrada do predio pela
travessa.--Renques de marcos de pedra guarnecendo os passeios.--Toldo
cubrindo a rua.--As janellas, ornadas de armações de damasco, e
preparadas para illuminação. Cubertores de seda e colxas da India nos
parapeitos.--O chão areiado; espadanas e murta. Faltam ainda os
lampiões.

Fins da tarde. Pouca animação. Alguns transeuntes apenas.


SCENA I


BOCAGE (_á paizana, encostado á esquina da direita, com os olhos n'uma
das janellas da rua Augusta_.)--COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO
(_que veem de lados oppostos_.)

(_Durante esta scena e a seguinte,_ BOCAGE _dá algumas voltas,
apparecendo e desapparecendo, mas sempre tornando ao mesmo logar e á
mesma observação_.)


COMPADRE AMANCIO (_topando-se com o outro_)

Aonde vae com tanta pressa, compadre Theotonio!


COMPADRE THEOTONIO

Ao _presepio_ da Mouraria. Quero ver se apanho ainda o Manuel Gonçalves
da Ribeira das Naus.


COMPADRE AMANCIO

Trabalha hoje com os arames?


COMPADRE THEOTONIO

Entra no fim. Porquê? Não vou a tempo?


COMPADRE AMANCIO

Se vae! O Manuel Gonçalves tem sua graça... principalmente na scena do
diluvio, quando se queixa que perdeu o pente de derrubar.


COMPADRE THEOTONIO

Pois quando ardem as estopadas! As pulhas que elle deita aos
demonios!... Tem pilhas de graça!--Deixe-me ir que se faz tarde, e já
agora a de seis está destinada (_partindo_).


COMPADRE AMANCIO (_detendo-o_)

Que eu, cá para mim, como o Tortinho da Sé, apesar de velho, é que não
ha... Nem o Antonio Antunes, do Bairro-Alto. Saca as palavras assim com
um tremor do buxo, o maldito, que é a gente espojar-se!--Deus o leve,
compadre. Até á noite na loja.


COMPADRE THEOTONIO

Não fecha hoje?


COMPADRE AMANCIO

Lá mais tarde. É dia de muito freguez de fóra, não tem mãos a medir os
rapazes, e para alguma barba, assim mais tal, preciso servir eu. Bem
sabe a roda que tenho.--Chego alli abaixo á Arcada, a comprar os Autos
da Maria Parda para o serão das pequenas, e volto já.


COMPADRE THEOTONIO

Vá com Deus, compadre Amancio, e até logo. (_Separam-se e sahem,
compadre Theotonio para a E., compadre Amancio para a D._--_Entram logo
tia Paschoa, e tia Vicencia vindo juntas da E._)


SCENA II


TIA PASCHOA, TIA VIGENCIA _e_ BOCAGE


TIA VICENCIA

Ih! Jesus, Deus Menino! Ainda por aqui arrastadinha, tia Paschoa! O seu
homem ainda no Limoeiro! Quer creia, quer não, estava de pedra e cal que
se tinha ja livrado. Uma pessoa estabelecida! com loja aberta!...


TIA PASCHOA

E mestre d'officio!... Um mestre de torno, que ninguem lhe leva as
tampas!... É isto, que vê, tia Vicencia... Debaixo dos pés se levantam
os trabalhos... Que a culpa não é d'elle...


TIA VICENCIA

Isso sempre eu disse... Pobre homem!... Não fui logo lá quando sube,
porque da rua dos Remedios á Esperança sempre é um estirão. Aquillo com
a labotação do padejo, é vir uns dias por outros ao Terreiro, e não ha
tempo para mais.


TIA PASCHOA

Pois eu não sei!--Tudo intrigas do Alcaide!


TIA VICENCIA

Sim? Ora vejam! E então como foi?


TIA PASCHOA

O Alcaide tem uma sobrinha na rua do Lambaz... Sobrinha, vamos...
sobrinha ou o que quer que é, que se eu tivesse má lingua...


TIA VICENCIA

Sim, sim, não sabe a gente o que são sobrinhas d'essas!... Que mundo,
ai! que mundo, tia Paschoa!


TIA PASCHOA

Uma sobrinha toda peralta!... Sempre como em dia de cirio ou de
festa!... Quer na rua, quer em easa, capotilho de durante e bajú de
escumilha, um palmito mesmo!... Sobrinha, pois não!... Vá que fosse
sobrinha... Estava a ir-nos todos os dias à loja, que até já eu não
andava contente, Deus me perdôe... Tudo era encommendar continhas,
botõesinhos, coquilhos, cabos de chapeus... um nunca acabar. Mas coisa
de pagar, qual! Tanto encommendou, e tanto faltou, que o meu Francisco
por fim deixou de lhe fazer obra, e quiz obrigal-a a pagar por
justiça... Justiça, está bom!... Ella tinha o pae Alcaide... pae ou tio,
que eu sei lá o que lhe é... Foi-n'os a casa toda assanhada... palavra
puxa palavra... Emfim, deram-n'os uma força por injuria, e agora o
veràs... Eu bem dizia ao meu homem: «ó Francisco, deixa... deixa. Não
apertes com a moça.» «Agoa vertida nem toda é colhida.» Mas, nada.
Pensam que só elles teem juizo, estes senhores homens! Teimou, teimou, e
aqui está. Vae já para um mez que dura este fadario. Sempre com o
mantinho aos hombros!... E Deus sabe o que durará!... E tudo em casa a
derreter-se... Os meus cordões e arrecadas, foi tempo... Dois tóros de
buxo, que elle tinha comprado pelo S. Miguel... sem um nó, que eram
mesmo uma perfeição... e haviam de render bons vintens... já lá vão por
dez réis de nada... Até uma grosa de piões, que estavam para a Senhora
do Cabo... hade crer, tia Vicencia?... a quinze réis cada um, que a bem
dizer mais custou o ferrão!... E ainda se não fosse o mestre José
Gomes... Deus lh'o pague!... Sabe? O mestre José Gomes, cerieiro ás
Trinas, que é juiz do povo!... Se não fosse elle nem resquicios havia já
da loja. Agora venho eu do Terreirinho das Olarias, de casa do escrivão,
e vou para o Poço dos Negros, a ver se fallo ao sr. juiz do crime do
Mocambo.


TIA VICENCIA

Até hoje! Cuidei que andava a ver as ruas!


TIA PASCHOA

A ver as ruas, eu! Ai, santo Antonio e almas! Não faço senão correr de
Herodes para Pilatos... E é duas peças a um, quatro moedas a outro...
Que os leve a todos trezentos... Jesus, santo nome de Jesus! Nossa
Senhora do Livramento me perdôe, que nem eu sei o que ia a dizer...
Cruzes, inimigo!... Mas Paschoa do Espirito Santo não seja eu, se o
Alcaide, e a beberrona da tal sobrinha, m'o não pagam mais duro que
ossos... Pesquei hontem cá uma coisa... O que eu queria era fallar ao
sr. Juiz... Dizem que ha ahi uma tal sr.^a morgada, de lá de cima... uma
sr.^a D. Felicia, que dá assembléa todas as semanas, aonde vae o sr.
Juiz...


TIA VICENCIA

Sei eu quem é... Móra ás Portas da Cruz... É minha fregueza, e por
signal que me deve bons vintens. Vou lá muita vez.


TIA PASCHOA

Vae? Se me arranjasse modos de fallar á morgada, para ver se ella
pedia...


TIA VICENCIA

Isso é fácil. Mas quer que lhe diga?... Se deseja que o Juiz lhe dê
audiencia, e depressa, vá á Esteireira... aquella que representa no
Salitre... passe por casa da madama Charles, e leve-lhe uma peça de
esguião... se não póde chegar a um rosicler de pedras.


TIA PASCHOA

Ai! Senhor!... Coisas que custam os olhos da cara!...


TIA VICENCIA

Então é deitar o coração á larga... Deus ainda está onde estava, e atraz
do tempo, tempo vem. Eu cá nas minhas afflicções pego-me com a Senhora
da Purificação, rainha madrinha, que ainda me não faltou. Agora mesmo
lhe vou levar á Boa Hora uma quarta de cera, que comprei alli em cima no
Soccorro...


TIA PASCHOA (_dispondo-se a acompanhal-a_)

Vamos para a mesma banda.


TIA VICENCIA

Eu da Boa-Hora tenho de ir á botica das Portas de Santo Antão, que se
vende lá uma agoa...


TIA PASCHOA

Tambem tenho de tornar ao Terreirinho. Em quanto fica na egreja, chego
eu acima e volto por lá.--Teve novidade em casa?


TIA VICENCIA

Tive a minha _Guiteria_ com umas terçãs, que não havia tirar-lh'as do
corpo... Estava-me a enthisicar, a enthisicar todos os dias... na
espinha mesmo... Assim Deus purifique a minha alma, em como não foi se
não mal que lhe deu a Brites do Forno... Conhece?


TIA PASCHOA

Pois não conheço. Não fosse ella atravessada! O tição!... E então
porquê?


TIA VICENCIA

Contos largos. Vamos andando. (_Saindo juntas ao passo que entra da D.
um transeunte_.) E a respeito da sobrinha do Alcaide, não me disse...?


TIA PASCHOA

Paga-m'as todas, com certeza. O caso é fallar ao Juiz. Hontem ao
escurecer, tinham dado trindades no convento, vinha eu...
(_desapparecem_.)


SCENA III


BOCAGE, _e o_ TRANSEUNTE


TRANSEUNTE (_embuçado, observando, descendo a Bocage, que está de novo
parado á esquina, e batendo-lhe no hombro_)

Elmano, a lyra divina
Por que razão emmudece?


BOCAGE (_voltando attonito, mas acudindo logo_)

Porque mais cala no mundo
Quem mais o mundo conhece!


TRANSEUNTE

Que tens n'esse mundo achado
Que mais assombro te faça?


BOCAGE

Um poeta com ventura,
Um tratante com desgraça.

(_Entra da E. Gonçalo Mendo, de fumo no braço, e pára ao F.
observando_.)


TRANSEUNTE

Bem respondido, sr. Bocage.


BOCAGE

Bem perguntado, sr. Tolentino.

(_Nicolau Tolentino aperta-lhe a mão, e segue para a D. saindo_.)


SCENA IV


BOCAGE, GONÇALO MENDO


GONÇALO

Quizera que tivesse mais testemunhas o encontro e o improviso.


BOCAGE (_chegando-se_)

Para que?... Riam... mofavam. Dois poetas que se cumprimentam em verso!


GONÇALO

Effectivamente não são vulgares os cumprimentos entre poetas... e consta
que não é prodigo d'elles o sr. Bocage.


BOCAGE

Não sou, porque não me inclino senão ao merito verdadeiro e superior. A
este qualquer póde inclinar-se. Raramente nos encontramos; fallamo-n'os
ainda menos; mas admiro-o e respeito-o.


GONÇALO

Desejara tambem que lhe ouvissem essas palavras.


BOCAGE

Porquê?


GONÇALO

Porque sou seu amigo. Correm por ahi, de mão em mão, copias d'alguns
improvisos satyricos... seus decerto...--Deixa-me fallar-lhe com
franqueza?


BOCAGE

Tão custoso é o que me quer dizer!


GONÇALO

A verdade amarga.


BOCAGE

Trava menos na bocca da amizade, e eu creio na sua.


GONÇALO

Encontro-o em occasião grave para mim. Talvez d'ahi venham estes desejos
de o prevenir e aconselhar.


BOCAGE

Ainda agora reparo. De luto?


GONÇALO

Achei em Lisboa a noticia do fallecimento de meu irmão.


BOCAGE

Sinto!... (_apertando-lhe a mão_.) Sinto-o.--Cheguei tambem ha oito dias
do Alemtejo com licença. Não sabia ainda...


GONÇALO

Tornou-se-me obrigação a sisudeza.--Tem um grande talento, sr. Bocage;
não lhe faltam protecções... Empregando esse talento em proveito da
patria, será grande em pouco, e dar-lhe-ha grandeza. Se tão altos dotes
recebeu de Deus, foi para honra da sua terra. Dedicar-lh'os é dever;
esperdiçal-os é sacrilegio. O engenho, o saber, o estro são instrumentos
que valem segundo o uso que d'elles se faz. Não ha gloria maior quando
bem dirigidos; não ha mais pesada responsabilidade quando mal
aproveitados.


BOCAGE (_um pouco resentido_)

Porque me diz isso? Estou em crer que tenho aos pés um abysmo.


GONÇALO

E tem talvez. As suas frechas epigrammaticas promovem-lhe odios tenazes
e profundos. Quanto mais agudas forem, e mais acertarem no alvo, mais
inimigos lhe hão de suscitar. E os perigosos não são os que lhe
respondem como podem; são os que na perfidia dissimulam a vindicta; são
os que no sorriso affectado encobrem a vaidade ulcerada, e o rancor que
não perdôa.


BOCAGE

Quer então que desça a humilhar-me em dissimulação egual? Quer que abata
aos pés do vicio dourado, ou da ignorancia presumida, esses dons em que
me falla? Quer que envileça a lyra fazendo-a servir aos festins dos
poderosos, como accessorio apettitoso, ou como adorno comprado?


GONÇALO

Quem lhe diz tal! Supõe-me capaz de lhe aconselhar baixezas? Consagre a
lyra á patria, como os egregios poetas de todos os tempos, como Homero,
como Virgilio, como o Dante, como Camões... como o nosso grande
Camões... tão grande e tão nosso, que se tudo em Portugal acabasse, elle
só bastara para dar a immortalidade ao nome portuguez!... Faça-o que
pode. São largos trabalhos esses, são cruas batalhas tambem. No arduo
trilho achará egualmente diante de si o erro, o vicio, a vulgaridade, a
ignorancia!... mais ainda, a mediocridade!... peior ainda, a inveja!
Terá de cingir o corpo como os peregrinos, terá de affrontar o martyrio
como os apostolos. Não lhe faltarão obstaculos nem dissabores. Não lhe
faltarão perigos nem trabalhos. Não lhe faltará a luta, a luta acerba,
continua, ardente... Mas ao cabo está a gloria, a verdadeira gloria, a
gloria infallivel ainda que tardia.--Hade seduzil-o esta!


BOGAGE

E não será ainda servir a patria castigar os ridiculos? Não faltam ahi
tambem em compensação de qualquer desgosto, os applausos para impellir,
para embriagar, para exaltar, para inspirar a musa... E a minha musa...
que lhe hei de fazer, sr. tenente?... a minha musa é toda isenções e
aventuras. Não consente sujeição.


GONÇALO

Os ridiculos d'estes! os applausos d'aquelles! Que applausos e que
ridiculos? Não valerão tanto uns como outros? É para mais o seu engenho
do que para servir de desafogo a rivalidades pequenas. E diga-me: tem
certeza de ser sempre justo? Não o entristecem muitas vezes esses
ruidosos applausos em recintos frequentados de ociosos? Não vê que
muitos glorificam nos seus versos, menos a claridade que os illumina, do
que o raio que vae ferir um émulo, ou um superior? «[1]Não vê que
arrastando na ignominia os seus competidores, a si mesmo se apouca? Não
repara que d'esse modo só favorece os baixos instinctos dos detractores
sem alma?» É para isso a musa e a lyra? Applaudem-n'o! Applaudem. Mas
como? Mas porquê? Mas quem? Ólhe em torno de si e medite. Applaudem-n'o
enthusiasmos que depois o nauseam, applaudem-n'o paixões que depois o
envergonham. O epigramma cortante, a hypérbole sarcastica, a imagem
insultuosa, despertam na sua presença um delirio interessado, que lhe
deixa após o vacuo e o pejo. Compare esse applauso suspeito com outros
menos estrepitosos, mas selectos, que já lhe tem grangeado obras mais
altas e mais dignas. Recorde a satisfação que lhe fica na consciencia,
quando arremessa o vôo ás regiões luminosas onde fita os
astros!--Falla-lhe pela minha bocca a sympathia, e a experiencia. Somos
camaradas; sou seu amigo, repito-lhe... sou ainda mais amigo d'esta
terra, de que deve ser, de que póde ser ornamento e brazão... e que o
precisa, creia... que precisa de todos os grandes esforços para a
levantar da ameaçadora decadencia.--Está nas primeiras impressões e nos
primeiros annos. Tem aberta a carreira das armas. Com o seu nascimento,
com a sua capacidade, com a instrucção e o estudo... qualquer outra que
prefira se lhe póde abrir. É por isto, é para isto que o importuno...
Nicolau Tolentino é official de secretaria... Manuel de Figueiredo
tambem... Ahi em dois poetas!...


BOCAGE (_interrompendo arrebatado_)

Manuel de Figueiredo, poeta!... Um moralista seccante, que se julga
innovador por imitar de longe os antigos!... O Tolentino, sim... esse ha
de ficar para a posteridade!... (_Pausa, longa reflexão_. _Gonçalo
observa-o attentamente_. _Levanta depois o rosto e continúa com
progressiva exaltação_.) Ouça-me tambem, sr. Gonçalo Mendo. Verá que
avalio os seus affectuosos conselhos... E se alguma vez lhe disserem que
Bocage é uma indole pertinaz e intractavel, poderá affirmar como a
austeridade e a razão o acharam docil.--Oiça-me. Não é novo para mim o
que me diz...


GONÇALO

Ahi verá!


BOCAGE

Tem-m'o repetido a meudo a consciencia.

Oh! não mais que momentos inebria
O sordido clamor da turba sordida!...

Perdoe, involuntariamente se me formulou em, verso a idéa.


GONÇALO

Prodigiosa faculdade! E quer desbaratal-a?


BOCAGE (_proseguindo_)

Não pense que estimo a plebe das admirações... tanto como admiro as
magras rimas de ôccos versejadores!... No meio das mais estimulantes
palestras, quando é maior o alarido e a matinada, quando egualmente
espumam os copos e os labios, quando se condensa o vapor que tolda a
casa e o cérebro, quando os motejos se crusam como settas, e os
paradoxos refervem como vagas, que de vezes não fico eu mudo, absorto,
sem escutar, sem perceber, sem discernir o que tenho diante!... É que se
me desprende a alma para cima!... Tenho os olhos e o espirito nos
espaços radiantes, d'onde se encara o infinito e o futuro!... Ouço o
hymno triumphal na bocca dos povos reconhecidos!... Enfeixo nos braços
as palmas das nações!... Cinjo na fronte os louros perpetuos!... Vejo as
edades curvadas aos pés d'um monumento coroado de perennes
resplendores!... Esta e só esta é a gloria, digo... esta e só esta...
eterna primavera, eterna aurora... eterna recompensa!


GONÇALO (_enthusiasmado_)

E quem tal sabe conceber não ha de saber realisal-o!


BOCAGE (_tristemente, estendendo-lhe a mão_)

Dê-me que o mundo se povoe de juizos como o seu, de almas como a sua...
e será possivel, e será facil... Como elle é, não sei se algum dia terei
força para tanto... Por ora, não... Resgate a minha franqueza a minha
fragilidade... O menor abalo que d'esse extasi me atire á realidade, mal
acerto com a vista na nullidade soberba, na villeza prospera, na
abjecção remunerada, na astucia triumphante, na hypocrisia
omnipotente... n'esse ascoroso acervo das miserias humanas... todo se me
revolve o coração... e sae-me pela bocca em strophes irritadas, que a
amargura envenena, que a indignação inflamma! Quero, e não posso, conter
esta furia, represar esta onda, que se entumece, e trasborda com o
temporal de dentro!... Depois... Nenhuma fraqueza lhe dissimulo...
Depois, as palmas, os bravos, as acclamações, o frémito das turbas, que
pendem da minha voz e a minha voz avassalla, todo este rumor contagioso
e irresistivel... é novo excitante á febre, é maior alimento ao
incendio, que lavra, que lavra, que se desata em labaredas accumulando
as cinzas... que investe ao acaso... que devora quanto encontra... que
hade acabar por me devorar tambem!


GONÇALO

Veia exuberante! Seiva excessiva! Torrente impetuosa!--Os annos o
corrigirão.


BOCAGE

Não sei... Nasci assim. Acho-me assim ao entrar no mundo. Corrige-se
isto?


GONÇALO

Quando se não corrige, mata. E o sr. Bocage ha de viver.--Desculpe se o
turbei nas suas contemplações... Não pude resistir... posto saber o fito
d'ellas.


BOCAGE (_sorrindo_)

Das minhas contemplações de agora? Duvido (_passeiando com Gonçalo_).


GONÇALO

Quer que o vá perguntar ao honrado mercador Manuel Simões, que móra
n'aquelle primeiro andar, para onde entrou haverá uma hora, com a sua
interessante afilhada a sr.^a morgada D. Felicia? Bem se vê que está
todo no seu enlevo... Tem por mysterio o que se passa nas ruas!...
Presumo que não anda ahi por causa da morgada velha... (_Bocage
protesta_) Logo vi.--E a viuva, diga-me? Quando ha quinze dias nos
encontrámos na Torre da Palma parecia meio apaixonado.


BOCAGE

Apaixonado de todo.


GONÇALO

Que fez então a essa paixão subita?


BOCAGE (_gracejando_)

Foi como veio... subitamente. «Vê que não está na minha mão dissimular,
e aproveita-se.»


GONÇALO

«Se pensa...»


BOCAGE

«Não: desculpe.--Sei que não é curiosidade indiscreta. E a quem melhor
podia abrir o coração? Como hei de eu dizer-lh'o? A viuva é cheia de
attractivos... merece todas as adorações... (_malicioso_) Não é esta a
sua opinião, sr. tenente?»


GONÇALO

«Ainda que o seja? Pouco vem ao caso.»


BOCAGE

«Reservas commigo! Vamos, confidencia por confidencia. Confesse que não
deita luto pela morte da minha paixão da Torre da Palma.»


GONÇALO (_sériamente_)

«A sr.^a D. Maria Joanna Galvão nunca me deu direito para me offender de
qualquer preferencia sua.»


BOCAGE

«Podia não se offender, e custar-lhe. E não seria da minha parte loucura
constituir-me rival do unico amigo verdadeiro que ainda encontrei?...
(_Movimento de Gonçalo_.) Oh! não, não cuide que lhe quero forçar os
segredos... não pense que foi generosidade...» Já que me obriga,
digo-lhe tudo. Peço-lhe só que não seja severo. Ou venha dos annos ou do
temperamento, o amor em mim é egual á musa, compraz-se no improviso.
Rebenta em chammas, mas a chamma fulge e esvae-se como relampago...
Depois... outra fraqueza ainda... é tão superior ás damas que tenho
conhecido, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão!... tão superior pela graça
senhoril, pelo tracto do mundo e cultura do espirito!... (_Pausa_.)
Encontrei-a, logo que cheguei, n'uma assembléa, em casa de sua tia D.
Felicia onde me apresentaram... Ferviam os motes, e eu calado. Passei
quasi todo o tempo escutando-a e reflectindo.


GONÇALO

Foi um estudo então?


BOCAGE

Um exame de consciencia. Intimida aquella distincção, subjuga aquella
formosura, ordena respeitos aquella voz. Revoltou-se-me o coração contra
similhante imperio... Se abomino todo o captiveiro!... Estava alli
tambem, como esquecida, uma flor modesta, a afilhada da sr.^a D.
Felicia. Com ser mimosa sua, era visivel a inferioridade da condição.
Como, porquê, não sei... Para essa me voou a alma... Admira-se?.... Não
posso supportar a idéa da dependencia, nem sequer em amor. Á dama
opulenta e festejada que podia dar o pobre cadete, o poeta noviço? Ainda
que me correspondesse... esmola seria a sua mesma preferencia. Com a
donzella humilde succede o contrario... é ella a favorecida, e eu o
generoso.--Prefiro estes amores... não tolero outros!


GONÇALO (_olhando para a E._)

Tem muito empenho em se encontrar com o mercador?


BOCACE

Porquê?


GONÇALO

Porque se não tem, podemos ir aqui de roda dar uma volta até á esquina
da Inquisição, e tornar depois.


BOCAGE (_olhando tambem_)

É elle, e não sei quem mais. (_a Gonçalo_) Com todo o gosto...
(_indicando a janella_) Como vê, as minhas contemplações não eram bem
succedidas... não tinham ainda objecto.


GONÇALO (_andando_)

Logo terão. As estrellas levantam-se com a noite!


BOCAGE (_saindo com elle pela D., ao passo que entram da E. Manuel
Simões e Francisco_)

Invade tambem os dominios da poesia, o sr. tenente! (_Saem_.)


SCENA V


MANUEL SIMÕES _e_ FRANCISCO PEDRO SIMÕES


MANUEL SIMÕES

Que espantos que não vae agora fazer a sr.^a Monica!... Se nem me
lembrou dizer-lhe nada!...


FRANCISCO

E está boa a minha tia Monica?


MANUEL

Toda em cuidados pelo seu menino, pelo seu Francisquinho, que has de ser
sempre para ella o Francisquinho, como ha vinte e trez annos, quando o
Sebastião foi para a Bahia, e tu ficaste tanto monta no berço... As
raparigas e a caixeirada não te chamam já senão o sr. doutor... Ella...
sim!... Nem annos nem Coimbras lhe persuadem que o seu Benjamim está um
homem... (_revendo-se n'elle_) e d'aqui a pouco um sr. doutor devéras...
não é assim?


FRANCISCO

Este anno ainda, espero.


MANUEL

Mas vê lá, rapaz... Não te sirva de atrazo esta vinda a Lisboa! Jornadas
para cá, jornadas para lá... sempre é tempo perdido!...


FRANCISCO

Sendo por poucos dias...


MANUEL

Será. Pois que!... Não pensei n'isto quando te escrevi.--Recebeste a
minha carta a tempo? Recebeste, está visto. Pui-te esperar á estalagem,
por me parecer que não faltavas... mas como não respondeste...


FRANCISCO

Mandei logo buscar os machos, e puz-me a caminho. A resposta era
obedecer. Que novidade foi esta, pae?


MANUEL

Estava tremendo não chegasses... (_em voz baixa_) Vem esta noite cá teu
padrinho.


FRANCISCO

O sr. marquez!... a nossa casa!


MANUEL

Á nossa propria casa. Será o primeiro marquez que vem a casa de teu pae?


FRANCISCO

É verdade... o sr. marquez de Pombal era tambem padrinho de meu irmão, e
tenho-lhe ouvido que...


MANUEL

Que me visitava em pessoa, elle mesmo... (_olhando em redor_) o grande
marquez... E não foi só isso... De vez em quando mandava-me parar a sege
á porta da loja... (_esquecendo-se_) É que tambem não torna cá homem
como aquelle... (_caindo em si e olhando em volta_) que este não é
somenos, em certas coisas! Vem, vem hoje... Podia lá deixar de lhe ter
cá o afilhado! Vem hoje... hoje, em vespera de Corpo de Deus, faze idéa!
E toda a gente pelas janellas!... E o que se hade fallar no
arruamento!... E o que ahi não virá de encommendas!--Já mandei buscar
mais um caixeiro.


FRANCISCO

Que não seja como o Zé Braga ou o Zeferino... Lembram-me ainda.


MANUEL

O Zé Braga estabeleceu-se na terra... e vamos, tem queda para o
negocio... É nosso correspondente.


FRANCISCO

Ah!


MANUEL

O peralvilho do Zeferino... esse lá foi para esses Brazis... Não sae
d'alli coisa de geito, verão... Confundia-me sempre o lemiste com os
droguetes, e o panno jardo com as baetas!... Deu em fazer de faceira...
já de chapeu á Anastacia... sempre em touros e presepios... Só lhe
faltavam os polvilhos. Deixal-o. Cá me tenho remediado com outros dois
novos, e marçanos não faltam.--Ai! nós aqui a fallar, a fallar, e lá em
casa tudo cheio de gente!... A Monica estou que perde a cabeça!... Não
me lembrava com o gosto de te ver, e de te fazer beijar a mão ao sr.
marquez... que elle sempre hade puxar por ti!--Anda, rapaz, vamos...
vamos!... (_em acto de partir_.)


FRANCISCO

Tudo cheio de gente lá em casa! É novidade... E quem está? Não me hei de
apresentar n'este trajo de jornada, se são pessoas de respeito.


MANUEL (_voltando_)

Tens razão. Não vieras tu de Coimbra!... Com isto sempre me embalaram:
«ou armas ou letras.» Quem está?... Has-de ir mudar de fato primeiro,
has-de. Estão pessoas de consideração, e espero mais. Verás... Sujeitos
de peso e de porte, que me honram com a sua amizade... (_comsigo_) e
precisam do meu dinheiro... Pois n'um dia d'estes, e vindo cá teu
padrinho!... Está a sr.^a morgada D. Felicia, que essa é já conhecimento
velho... está...


FRANCISCO (_alvoroçado, vivamente_)

E a afilhada?


MANUEL

E a afilhada... bem sabes que nunca a larga... Está a afilhada, e vem
tambem uma sobrinha, que chegou de França ha dias!


FRANCISCO (_em acto de partir_)

E nós aqui a perdermos tempo.


MANUEL (_detendo-o_)

Espera, espera. Que fogo te deu mal te fallei na morgada! Dar-se-ha
caso... (_severo_.) Francisco?


FRANCISCO (_timidamente_)

Meu pae.


MANUEL

Esse alvoroço não é natural!


FRANCISCO (_como acima_)

Está fazendo falta de certo, pae.


MANUEL

Já vamos. (_Comsigo_.) A morgada não póde ser... a sobrinha não a viu
ainda... Querem ver... (_com inteireza_) Sr. Francisco Pedro, forma-se
este anno. D'aqui a tempos será juiz de fóra, desembargador, quem
sabe?... Conversei já a seu respeito com o meu amigo João Pires...
Conhece? O sr. João Pires, á Magdalena, que traz dois navios para a
India, e tem uma filha que não anda por assembléas, mas leva quarenta
mil cruzados de dote.--Quando pensar em casar, é a noiva que lhe convém.


FRANCISCO (_consternado_)

Oh! meu pae! Por quem é não disponha assim do meu coração!


MANUEL

Do seu coração! A que proposito vem o seu coração? Quer dizer que olhou
para a afilhada da sr.^a D. Felicia? Ignora que é filha d'uma criada?


FRANCISCO

Mas educada com tanta estimação! O amor não mede distancias.


MANUEL

Ensinaram-lhe isso em Coimbra?... Não o tirasse eu do balcão!...
Felizmente seu pae não dorme. Perca d'ahi o sentido. Já lhe disse o que
lhe convinha. Escusa de se cançar... não costumo repetir as coisas duas
vezes!


FRANCISCO

Não me permitte uma supplica ao menos?


MANUEL

Com tanto que seja breve.


FRANCISCO

Morro por ella... (_hesita_).


MANUEL

Se me não diz mais...


FRANCISCO

E dei-lhe palavra de casamento.


MANUEL

Deu-lhe palavra... (_furioso_) Porquê? Para quê?... Sem me consultar...
sem consultar seu pae!... sem saber se lhe fazia transtorno!... Viu-se
já!... (_fitando-o_) Estes rapazes!... (_mais brando_) Com que então
deste-lhe palavra? (_Gesto affirmativo de Francisco_.) Pois se lh'a
déste, cumpre-a.--Um Simões nunca faltou a ella!


FRANCISCO (_transportado_)

Consente!... Consente?... Como lhe hei de agradecer, meu pae!


MANUEL

Não é o que eu queria, e custa-me... Não te mandei a Coimbra para te
empregar na filha d'uma criada!... Mas na nossa casa a palavra é
escriptura. Pagamos á vista... sempre, e tudo: é o nosso brazão!


SCENA VI


OS DITOS _e o_ MORGADO


MORGADO

Ora até que o encontrei, sr. Manuel Simões. Procurei-o hontem, antes de
hontem, esta manhã...


MANUEL (_interrompendo-o seccamente_)

Sei, sei... Bem sei.


MORGADO

Se me désse licença logo...


MANUEL

Tenho gente em casa, tenho muita gente... Hade-me dar licença.--Vamos,
Francisco, vamos.


SCENA VII


MORGADO _pouco depois o_ COMMENDADOR


MORGADO (_desesperado e ameaçador_)

Se fôra da nobreza... e se não fôra a necessidade!...


COMMENDADOR (_que tem entrado_)

Que é isso, sr. Morgado? Quem o fez agastar?

(_Durante esta scena os creados acendem de dentro as illuminações das
janellas_.)


MORGADO

Quem hade ser? Esta gente de negocio que na verdade...


COMMENDADOR

Não tem uso do mundo, é sabido... cança-se de dar dinheiro, e nem sempre
se lembra das jerarchias!... Que quer? Na opinião de Cicero o dinheiro
faz todos eguaes... e lá resa o nosso rifão: «negro è o carvoeiro,
branco é o seu dinheiro!!»


MORGADO

Mas quem lhe diz...


COMMENDADOR

Que precisa de dinheiro? O sr. Morgado precisa sempre... Que o mercador
lh'o recusa? Encontro Manuel Simões, e acho-o enfadado. Não é preciso
ser astrologo para adivinhar. Excellentes astrologos são os olhos... que
sabem ver. Bem o disse o poeta Manilio, e melhor o explica Julio Firmico
Materno, contemporaneo de Constantino Magno, nos oito livros que
escreveu sobre o assumpto.


MORGADO (_meio aborrecido_)

Oito? Admiro-lhe a paxorra.--Mas, vamos, sr. Commendador... Estão já
accendendo as luminarias. D'aqui a pouco enche-se ahi tudo de
gente.--Que noticias?--Sabe que morreu Salvador Teixeira, o irmão mais
velho de Gonçalo Mendo? Ficou senhor da casa agora o tenente, e...


COMMENDADOR

E... receia o competidor.


MORGADO

Receial-o! Porquê? Em quê? Um homem como eu não teme nenhum rival...
Minha prima é senhora de gosto e de juizo... E em ultimo caso tenho modo
infallivel de supplantar o tenente... (_intencionalmente_) ou qualquer
outro.


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Infallivel!


MORGADO

Infallivel.


COMMENDADOR

Contra qualquer?


MORGADO

Contra qualquer.


COMMENDADOR

No dizer de Plinio poucas coisas se pódem julgar infalliveis.--Tem
estado com sua prima?


MORGADO

Todos os dias.--Ainda antes de hontem em casa da morgada da Torre da
Palma... ainda hontem a ver correr parelhas e alcanzias em Campolide.


COMMENDADOR

Então para que pergunta noticias?


MORGADO

Para saber o que se diz.--Posso contar com a sua amizade?


COMMENDADOR

Como eu com a sua.--Amizade de obras mais do que de palavras, como a
quer Tito Livio.


MORGADO

Tambem... commigo póde o commendador contar para a vida e para a morte.
O braço e a espada do morgado da Gesteira estão sempre ao seu dispor.


COMMENDADOR

Deseja saber o que ha?


MORGADO

Não se me dava... para afugentar de vez o primeiro que se atreva a
galantear abertamente minha prima.


COMMENDADOR (_malicioso_)

Terá que fazer.--Veja o que Propercio diz da sua Cynthia... Póde fazer
calar os requebros dos pintasilgos á aurora?


MORGADO

Pintasilgos, diz bem. Principalmente o cadetinho... o tal sr. poeta de
loas, ou das duzias... Ia-me saindo das medidas na casa da Torre da
Palma. Se não fosse a morte quasi repentina de Simôa!... Já o encontrei
por ahi e não o perco de vista. Não que minha prima possa olhar para
similhantes figuras...


COMMENDADOR

Eu sei, morgado. Elle é de boa gente, e as damas... Emfim a respeito
d'esse, descance... Traz o Sentido n'outra parte.


MORGADO (_avidamente_)

Em quem?


COMMENDADOR

Ainda não reparou?... Na afilhada de D. Felicia.


MORGADO (_desdenhoso_)

Ah!... (_como reflectindo_.) Mas o filho do mercador? É correspondido, e
está ahi.


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Era correspondido... Verá como os dois se arrufam, como o poeta fica e é
acceito, como... Isso corre por minha conta.


MORGADO

Por conta do commendador! (_desconfiado_.) E com que interesse?


COMMENDADOR

Interesse? Nenhum... Amizade... Desejo de lhe ser util... Não queria
afugentar os galanteadores de sua prima?... Para isso vale mais a
astucia do que a força, creia. O mestre das rhetoricas ensinava a
Herennio «que a verdadeira prudencia era a sagacidade,» e como diz
Cornelio Nepote, «mais poude a destreza de Themistocles do que as armas
da Grecia.»


MORGADO (_pensativo_)

Não é fóra de rasão... ainda que nada d'isso vale uma recarga a tempo
como a ensina o alferes Theotonio Rodrigues, ou uma flanconada como as
queria o grande Montenegro. (_mirando-o de revez_) Com que o poeta
desistiu já de minha prima?


COMMENDADOR (_sorrindo, e do mesmo modo_)

Respondo-lhe por elle.


MORGADO

O tenente, esse...


COMMENDADOR

Faz-se desistir.


MORGADO (_como acima_)

E depois?


COMMENDADOR

Depois... não ha rivaes que affrontem o sr. morgado. (_Cresce o numero
dos passeiantes_.--_Ruido dentro_.) Ahi vem já o rancho dos poetas.
Conhece-se pela algazarra.

(_Principiam a apparecer ás janellas algumas senhoras de gala, e
toucadas_.)


MORGADO (_olhando para as janellas_)

Já as _madamas_ começam tambem a apparecer.


COMMENDADOR

Vou n'um instante a casa do mercador para lhe fazer a vontade. Volto
logo.


MORGADO

Encontra lá minha prima.


COMMENDADOR

E não vem?


MORGADO (_despeitado_)

O sr. Manuel Simões não me fez a honra de me convidar.


COMMENDADOR

Que dissabor lhe ha de ser ter sua prima alli e ficar de fóra! Que quer?
Diogenes, de Synope, comparava as riquezas ás plantas... que nascem em
despenhadeiros! (_Sae tomando á esquina ao F._)

(_Entram logo Bocage, 1.^o e 2.^o poetas, companheiros, e Gonçalo Mendo,
da E._)


SCENA VIII


BOCAGE, GONÇALO MENDO, 1.^o _e_ 2.^o POETAS


GONÇALO (_a Bocage, despedindo-se e indicando as janellas de Manuel
Simões_)

Boa sorte e propicios amores!... Da inspiração não lhe fallo: nunca lhe
falta, e hoje menos lhe faltará.


BOCAGE (_meio desconfiado_)

Já não quiz entrar commigo um instante no Nicola, e agora deixa-me!


GONÇALO

É noite de festas, e está ainda mal fechada a sepultura de meu irmão!


BOCAGE (_caindo em si_)

Tem rasão.


MORGADO (_chegando-se_)

Sube o desgosto que teve, sr. tenente Gonçalo Mendo... Muitos
parabens... (_corrigindo-se_) dou-lhe os sentimentos, quero dizer... Seu
irmão, tambem era doente... Quantos annos tinha?... Boa casa!... É uma
boa casa, a casa de Mendél, dizem todos. E de mais a mais com os coutos
de Sandim!... Deixou uma grande casa!... O sr. Gonçalo Mendo
naturalmente larga a vida militar.--Com uma casa d'aquellas!


GONÇALO (_com inteireza_)

«Sr. morgado da Gesteira, a minha familia foi sempre uma familia de
soldados. Alli cumprir a lei e servir a patria não é especulação, é
preceito. Se meu irmão por fraco e enfermo não poude satisfazer a
obrigação, por elle a satisfazia eu. Hoje, que me falta, essa obrigação
fez-se duplicada: é a d'elle e a minha!»--Creio que o sr. Bartholmeu
Tojo não vê no vinculo senão a renda. A mim ensinaram-me de pequeno a só
considerar no patrimonio dos meus, como coisas superiores, o dever e o
nome!--Adeus sr. Bocage! (_Sae_.)


MORGADO

E então! Dês que está senhor da casa parece que traz el-rei na barriga!


BOCAGE (_fitando-o_)

Engana-se. Tem o coração no seu logar... e não succede o mesmo a todos.

(_Signaes de approvação nos circumstantes_.)


MORGADO (_ameaçador_)

Isso entende-se commigo?


BOCAGE (_com obsequioso sarcasmo_)

De nenhum modo: era suppor-lhe coração!

(_Riso nos circumstantes_.)


MORGADO (_com satisfação_)

Logo vi que se não podia entender commigo.

(_retira-se magestosamente, e sae pela E._)


SCENA IX

BOCAGE 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, 1.^o _e_ 2.^o MANCEBOS,
DAMAS, POVO

(_Vão-se povoando mais e mais as janellas; augmenta na rua a
concorrencia_.)


1.^o MANCEBO

Sr. Bocage, sr. Bocage!


BOCAGE (_ainda agastado da altercação com o morgado_)

Que é?


1.^o MANCEBO

Fez-me o favor de limar aquellas decimas, que lhe entreguei o outro dia?


BOCAGE

Pois não!


1.^o MANCEBO

Queria ver se as recitava esta noite... Tem-n'as ahi?


BOCAGE

O que?


1.^o MANCEBO

As minhas decimas.


BOCAGE

Como hei de ter, se nada sobrou d'ellas.


1.^o MANCEBO (_pasmado_)

Não sobrou nada?


BOCAGE

Absolutamente nada. Ficou-me tudo na lima!

(_Riso nos circumstantes; o 1.^o mancebo mette-se na turba corrido_.)


2.^o MANCEBO

Sr. Bocage, um obsequio?


BOCAGE

Que temos?


2.^o MANCEBO

Faz annos, depois d'amanhã, um tio que eu tenho...


BOCAGE

A novidade seria fazer annos um tio que não tivesse.


2.^o MANCEBO

Compuz dois sonetos...


BOCAGE

Dois d'uma assentada! Já vejo. Monta um Pegaso manhoso que lhe desandou
uma parelha de...


2.^o MANCEBO (_ingenuamente_)

Isso. Estão aqui os sonetos. Só lhe peço que me diga qual é o melhor...
para o offerecer ao tio...


BOCAGE

Ao sr. seu tio... que vocemecê tem.--Deixe ver. (_2.^o mancebo
entrega-lhe um papel de dois que tem na mão_.--_Bocage chega-se á luz
das luminarias, e lê attentamente_. _Em quanto lê, o 2.^o mancebo
responde aos poetas que parecem divertir-se com elle_. _Depois de ler,
restituindo-lhe o papel e em tom decidido_.) Leve-lhe o outro.


2.^o MANCEBO

O outro! Mas ainda não viu o outro.


BOCAGE

É o mesmo... leve.


2.^o MANCEBO

Porquê?


BOCAGE

Porque não póde ser peior do que esse.

(_Riso dos circiumstantes; o 2.^o mancebo sae tambem corrido_.)


SCENA X


BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, DAMAS, POVO


2.^o POETA

Está de veia hoje, o nosso cadete.


BOCAGE

Menos isso.--O cadete ficou onde ficou a farda. Aqui está só o poeta.


1.^o POETA (_ao 2.^o_)

Condemnado como reu de lesa Arcadia. O Bocage tem razão. Será cadete no
regimento; entre os pastores do Pindo é Elmano, o esperançoso Elmano,
como tu és Alcino, como eu sou Lereno. A propósito, falta-nos Albano.

(_Bocage parece cair em profunda meditação_.)


2.^o POETA

Foi jantar a casa d'algum fidalgo. É o seu costume. Mas vem de certo.
Disse-me que vinha.--Agora nego que fosse reu de lesa Arcadia tratando
Elmano pelo grau militar.


1.^o POETA

Como provas essa?


2.^o POETA

Muito facilmente. Qual é n'este caso o distinctivo do vale e do soldado?
Uma estrella. O mesmo em ambos. Cada qual tem a sua. Logo...
(_declamando_)

O Appollo, e o Marte que zellas,
Não se afastam grande espaço:
Tem um a estrella no braço,
Outro o braço nas estrellas!


1.^o POETA

Fóra o seiscentisto. Sempre te achei queda para os conceitos alambicados
e antitheses retorcidas! Essa vem na _Phenix renascida_, ou nos
_Desmaios de Maio_, aposto!--Bocage... (_reparando e tomando-lhe o
braço_.) Bocage!... Em que pensas?... Que fizeste á picante jovialidade
tão bem estreada, e que tanto promettia para esta noite?


BOCAGE (_como despertando_)

Que?... Eu?... (_comprehendendo_.) Ah!... Jovialidade lhe chamas? Não
era, não. Era raiva, era furia, era...


1.^o POETA

Contra uns pobres rapazes! Deixa versejar a vadiagem. Cançará depressa.
Não vale a indignação.


BOCAGE

Isso dizem todos, e d'isso sobra forças á mediocridade e a vilania, que
são gemeas. Uns pobres rapazes! Hoje nescias vaidades apenas... ámanhã
calumniadores invejosos!... Deixae-os medrar, deixae; e queixae-vos
depois dos damnos que vos fizerem! E ha peiores ainda... Peiores e mais
nocivos são os desalmados, que nem adivinham a alma, e d'esse aleijão
moral fazem a bitola de todos os caracteres!... Que me hão de apparecer
por toda a parte vilezas!... Não reparem, amigos... São restos da cólera
em que me deixou esse homem, que até na morte vê o interesse sem lhe ver
as lagrimas!... Quando estas ignominias me surgem diante, sou como
aquelle tyranno antigo, que desejava um só corpo á humanidade, para a
degollar d'um golpe!... Quizera tel-as tambem todas congregadas e
encorporadas debaixo da mão, para lhes arrancar a mascara hypocrita,
para as retalhar com o látego justiceiro, para apresental-as como são,
hediondas e infames, perante a sociedade que illudem ou
pervertem.--Desculpem a rajada. Vamos ao que importa. (_olhando para as
janellas do mercador, ainda desertas_) Ficamos aqui?


1.^o POETA

Alcino tem uma Anarda alli n'um segundo andar do quarteirão immediato, e
ella provavelmente traz-lhe mote preparado. Queres vir?


BOCAGE (_com os olhos nas janellas_)

Com tanto que voltemos depressa!


2.^o POETA

Percebo. Temos tambem por cá pastora! Uma Armia, uma Isbella, uma
Anfrisa?


BOCAGE

Melhor do que isso. Uma esperança!

(_Gritos, tumulto fóra á E._)


2.^o POETA

Ha novidade, ao que parece.

(_Grande tumulto á E. fóra_. _Gritos_: Aqui d'el-rei! Agarra! _O povo
afllue áquelle lado_.)


BOCAGE

É desordem?


1.^o POETA

O costumado.


VOZES (_no povo_)

Arreda! arreda!

(_Reflue tudo sobre a D._--_Bocage, á frente dos companheiros, impellido
pela turba, acha-se na extremidade D. quando entra, correndo d'este
lado, Alcaide, e a ronda de quadrilheiros e paisanos_.)


SCENA XI


ALCAIDE, BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, MORGADO (_que entra
esboforido da E._) DAMAS, POVO.


ALCAIDE (_topando Bocage, e pondo-lhe uma pistola aos peitos_)

Da parte da ronda--quem é? d'onde vem? para onde vae?


BOCACE (_serenamente_)

Sou o poeta Bocage,
Venho ha pouco do Nicola,
E vou para o outro mundo
Se me dispara a pistola!


POETAS _e_ COMPANHEIROS

Bravo! Bravo, Bocage!


ALCAIDE (_deixando-o_)

Ah! é o Bocage! Que foi então? Quem gritou?


MORGADO

Foi um chibante de cigarro que deu tres facadas n'um moço das
carvoarias, que ia cantando a _Fôfa_ alli para a banda da Bitesga!...
Ah! que se o apanho a geito!... (_esquiva-se para a D. logo que o
Alcaide interroga_.)


ALCAIDE

Quem fallou para ahi?... (_á ronda_) Depressa, anda... Venham as
lanternas, que nas travessas está escuro como breu. (_Os paisanos
adiantam-se com as lanternas, mostrando certa repugnancia_.) Mais
depressa... (_aos quadrilheiros_) Para a frente vocês. (_Estes obedecem
com promptidão, e passam velozmente para a E._--_O Alcaide continua para
este lado como fallando a um dos quadrilheiros que passou_.) Ó Gaiola,
bota cordão lá para diante... agarra tudo!... O sr. Corregedor do Crime
mora ahi para cima; elle que os joeire!... Vá, vá.

(_Os grupos abrem vivamente passagem ao Alcaide e aos mais da ronda, que
saem apressados pela E._)


SCENA XII


OS DITOS, _menos o_ ALCAIDE _e_ RONDA, _depois_ UM CEGO (_que vende
impressos_)

(_Apenas o Alcaide sae, ouve-se tambor e gaita de folles para a D._--_O
povo grupa-se para esse lado_.)


2.^o POETA

Cirio agora, querem vêr!


1.^o POETA (_observando_)

Não. São os foliões do Espirito Santo com a bandeira, e o ermitão da
Senhora do Monte com o Embrechado. Metteram-se para a outra travessa.


BOCAGE

Por isso estão todos nas janellas dos lados.


2.^o POETA

Com similhante inferneira, bem se ha de poetar agora.


O CEGO (_passando ao F. e apregoando em cantilena_)

Comprae, meninas comprae,
Por dez réis, ou meio tostão,
_O Testamento da Velha_
_Ind'antes da serração_;
Ou as obras afamadas,
Que ninguem comprou em vão,
Da Chrystaleira de Coimbra,
Coisa de satisfação.


BOCAGE (_rindo e como terminando a trova do cego_)

Temos rival pela prôa:
Vá, ao outro quarteirão


1.^o e 2.^o POETAS (_galhofeiros_)

Vá, vamos. (_Saem os tres_.)


SCENA XIII


O CEGO, _logo depois_ TIA VICENCIA. _e_ TIA PASCHOA, _logo depois_
COMPADRE THEOTONIO _e_ COMPADRE AMANCIO. (_Movimento_. _Homens
apregoando caramello_. _Pretas apregoando alcomonia, etc_.)


CEGO

Comprae, meninas, comprae,
Por dez réis ou meio tostão...

(_Perde-se-lhe a voz na distancia_.)


TIA VICENCIA

Bem lh'o cantava eu, tia Paschoa! Qual juiz, nem meio juiz! Não lhe poem
a vista em cima! A Esteireira é que é de desengano. Que eu não lhe digo
isto para me esquivar... Se quer que peça á morgada, appareça ámanhã...
ámanhã não, é dia de festa... appareça depois de ámanhã, e lá iremos...
Verá que me não diz que não...


TIA PASCHOA

Vou... Sempre vou... Se por ahi se arranja o negocio é uma boa dóse que
poupo, e para quero está já tão arrastado...


COMPADRE AMANCIO (_entre as dez e as onze, capote a um lado, entrando
com compadre Theotonio_)

Safa!... Cuidei que me filavam tambem!


TIA PASCHOA

Se não se fizer nada, então tomo o seu conselho, e vou á Esteireira...
Por fim de contas são conhecimentos que se tomam... Ah! meu rico Santo
Antonio! sou capaz de vender a camisa do corpo só para metter pelo chão
abaixo aquelles marotos que nos desgraçaram... (_Saem pela E.
conversando_.)


SCENA XIV


COMPADRE THEOTONIO, COMPADRE AMANCIO (_observando para a E._) _pouco
depois_ MORGADO _e_ COMMENDADOR. _Grupos rareados_.


COMPADRE THEOTONIO (_tambem com um grão na aza, mas dando-lhe para
taciturno, e preoccupado, e servindo-se com frequencia de um cheirador
de simonte_)

Prenderam o homem?


COMPADRE AMANCIO

A ronda vae apanhando a torto e a direito, mas o homem, sim! Metteu-se
para a rua das Hortas, salta n'um pulo a S. Roque, e de lá á Cotovia...
Depois... boas noites... (_puxando, endireitando o capote, e mirando-o_)
Por um triz se não vae d'esta feita, o meu cobre-miseria! E o seu não
ficou tambem pouco derreado, compadre Theotonio!


COMPADRE THEOTONIO

Leve a fortuna os apertões, compadre Amancio.


COMPADRE AMANCIO

Olhe se não vae na ronda o mestre Joaquim da Ferraria... (_olhando em
redor_) Está isto por aqui só ainda! (_Ouvem-se fóra á D. palmos e
applausos_.) Que é? (_Vae vêr_) Ah! são os poetas que andam pelo outro
quarteirão... Vamos até lá, compadre?... Quero dar o meu voto a respeito
do Bocage, que ainda não ouvi... Tem-me ido já umas poucas de vezes
barbear-se á loja, e dizem que na versaria põe tudo a uma banda!


COMPADRE THEOTONIO

Cá por mim... o José Daniel!


COMPADRE AMANCIO

Não digo que não, mas vista faz fé. Vem?

(_Entram da D. o morgado e o commendador_. _Formam dois grupos
distinctos_.)


COMMENDADOR

Onde ia tão assustado? Não me via?


MORGADO

Assustado eu!... Ia desesperado... O tal sr. cadete, o tal sr. poeta!...


COMMENDADOR

Disse-lhe alguma?


MORGADO

A tanto não se atrevia elle... Ainda agora o fiz eu tornar atraz... Os
modos... os modos é que me dão a perros... Tomára achar azo de lhe
pregar uma boa vaia, ahi diante de toda a gente.


COMMENDADOR

Havia de lhe doer... mas isso é antes desforra de mulher que de homem...
A verdadeira vingança quer-se mais segura. No conceito de Seneca toda a
soberba é injuria, e Plauto ensina como as injurias se pagam... (_Ficam
conversando_.)


COMPADRE AMANCIO (_do outro lado_)

Não se mexe d'ahi, compadre? Parece-me jarra! Largue o cheirador, que é
capaz de lhe subir o simonte ao miolo. Se não está para ouvir os poetas,
venha até ao Talaveiras, que tem uma pinga do velho...


COMPADRE THEOTONIO

Cá por mim, o Petinga.


COMPADRE AMANCIO

Não sae d'isto! Ó compadre Theotonio, você por mais que me digam já fez
hoje mais de uma estação!... (_Ouve-se campainha á E._) Será a
Misericordia? (_Indo verificar_) Ora o que ha de ser!


COMPADRE THEOTONIO

O que é?


COMPADRE AMANCIO

É o Bernardo atafoneiro, que vem ahi todo vestido de hollandilhas, com
bordão de gancho e lanterna pendurada, a pedir para o Senhor Jesus dos
Afflictos... Conheço-o pelo roliço. Aquillo faz dinheiro de tudo!
Rendem-lhe mais as penitencias que o officio, e ainda em cima aluga a
preta para andar a vender pelas ruas.

(_Atravessa ao F. o penitente, como está descripto tocando a espaços a
campainha; traz á cinta um mealheiro_. _Dão-lhe esmola_.)


COMPADRE THEOTONIO (_elevando a voz_)

Ora se ha um birbas assim!


COMPADRE ANASTACIO (_impondo-lhe silencio_)

Mais devagar, compadre, mais devagar, que o Bernardo é familiar do Santo
Oficio... como alguns fidalgos!


MORGADO (_do outro lado, ao commendador olhando para a janella dum 2.^o
andar_)

Lá está uma palmilhadeira do meu conhecimento, no 2.^o andar, mesmo por
cima da casa do mercador... (_depois de reflectir, como achando_) Ah!


COMMENDADOR (_ironico_)

Teve alguma lembrança feliz?


MORGADO

Tive. (_olhando para a D._) Cá vem o rancho outra vez! (_D. Felicia e D.
Maria Joanna apparecem a uma das janellas do 1.^o andar da esquina_.
_Maria Gertrudes a outra_. _Enchem-se as janellas_.--_Affluem
suecessivamente os grupos_.) Verá Verá que vergonhaça!... Digam que não
sei varar um gamo, nem pegar n'uma espada, nem determinar uma mesa, se o
poeta não fica hoje corrido!... (_Sae precipitadamente pela D. dobrando
a esquina_. _O commendador vê-o sair, encolhe os hombros
desdenhosamente, e mette-se por entre os grupos_. _Compadre Theotonio e
compadre Amancio giram na turba_. _Entra Bocage e os poetas_. _O grupo
d'estes fica sobresaindo_.)


SCENA XIV


BOCAGE, 1.^o _e_ 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, COMMENDADOR, COMPADRE
AMANCIO, COMPADRE THEOTONIO, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA
GERTRUDES, (_nas janellas_) DAMAS, POVO.--(_Grande animação_)


1.^o POETA

Oh! agora está já tudo pelas janellas. Vamos, quem rompe?


BOCAGE

Eu não... Logo.


2.^o POETA

Rompo eu. (_para as janellas_) Mote... Venha mote, minhas senhoras!

(_Grupam-se todos curiosamente para ouvir_.)


D. FELICIA

Essas peraltas de agora,
Eu não sei d'onde lhes vem.


2.^o POETA (_repetindo_)

Essas peraltas de agora...
Eu não sei d'onde lhes vem.

(_Fica por momentos pensativo_.)


BOCAGE (_ao 1.^o poeta_)

Foi a morgada que deu o mote?


1.^o POETA

Foi. (_ao 2.^o Poeta_.) Glosa-lh'o ao geito, se queres que te applauda,
a tartaruga!


2.^o POETA

Deixa. (_batendo as palmas_) Lá vae:

Cambrayas, sedas, matizes;
Vermelhas capas bem fartas
Forradas de pelles martas;
Bons vestidos de paizes;
Filós, rendas, pertiguizes;
Sécias tudo, e a toda a hora;
Sempre em visitas por fóra;
Conhecendo toda a gente:
Eis-aqui, succintamente,
«Essas peraltas de agora;»


1.^o POETA (_interrompendo_)

Bravo!


D. FELICIA (_applaudindo_)

Bravo! Bravo!


BOCAGE (_de parte ao 1.^o poeta_)

Não é glosa: é rol da roupa!


2.^o POETA (_continuando_)

No dia cinco e seis vezes
Correm, sem que isto as affronte,
Dos perfumes do _Le-Conte_
Ás lojas dos genovezes;
Não faltam nos entremezes;
De casa, nem um vintem;
Trazem fiado o que tem
E na roca não põem mão:
Ou é milagre, ou então
«Eu não sei d'onde lhes vem!»


D. FELICIA (_debruçando-se encantada e applaudindo_)

Bravo!... Lindo!... Bravissimo... Uma suspensão!... uma suspensão!

(_Alguns applausos nos quaes se distingue Mestre Amancio_.)


2.^o POETA (_a Bocage rindo_)

Que tal?


BOCAGE

Um trocadilho de Luiz de Gongora!


COMPADRE AMANCIO (_como consultando Compadre Theotonio_)

Então?


COMPADRE THEOTONIO (_cheirando_)

Percebeu, compadre?


COMPADRE AMANCIO

Isso é seca, homem! Se percebesse, porque havia de applaudir?


VOZES (_no povo, que, olhando á E., se afasta como para dar logar_)

Olha! Olha! É o volantim do nosso Marquez.


COMPADRE AMANCIO

O volantim do Marquez... De qual Marquez?... (_olhando_) Ai! é o do sr.
Marquez de Marialva! (_o volantim, passa, e dirige-se rapidamente á casa
da D., que dobra_.) Lá vae... Como elle vae!... (_a onda do povo
dirige-se para aquelle lado, como para observar_. _Compadre Amancio
precede-a_.) Aonde irá? (_Olhando para fora_. _Attonito_.) A casa do
mercador Manuel Simões!... Vae... Entrou... (_Voltando ao Compadre_.)
Compadre Theotonio, compadre. Grande novidade!... Querem ver que o
Marquez vem a casa do Manuel Simões!... (_observando_) Vem... Lá estão
já os caixeiros com as tochas á porta, e o patrão no patim!


COMPADRE THEOTONIO

Nós que temos com isso?


SCENA XV


OS DITOS _e_ MORGADO (_que se aproxima procurando o Commendador_)


2.^o POETA

É feliz este Manuel Simões! Compadre do Marquez de Marialva!... e já o
foi do outro... Por isso lhe chove a freguezia, que está podre de
rico... (_a Compadre Theotonio_.)


COMPADRE THEOTONIO (_a Compadre Amancio_)

O Marquez de Pombal é que era o nosso!


COMPADRE AMANCIO (_baixo e vivamente_)

Cale-se! Quer que nos mettam na inquisição?


1.^o POETA (_ao segundo_)

Não ha nada como negociar!


2.^o POETA

O mau da poesia é não se medir aos covados.


BOCAGE

Estás enganado. N'esse ponto a poesia é como as fazendas da loja.
Medidos se querem tambem os versos... e quem peior os mede mais lucro
tira.


COMPADRE AMANCIO

Ahi vem o sr. Marquez de Marialva... ahi vem... Traz comsigo o Almeirão
e o Gaeta. Olhe, compadre, o Gaeta, que em mettendo o rojão, deita
sempre abaixo o toiro!


COMPADRE THEOTONIO

Cá por mim... o Fava-Secca!


COMPADRE AMANCIO

Deixou a sege na travessa, para não atropellar ninguem... Elle sempre é
bom de lei!... Viva o nosso Marquez, que é pae do povo!

(_Entra o Marquez, 3.^o Poeta, o Gaeta, o Almeirão, sequito de picadores
e escudeiros_.)


VOZES

Viva!


SCENA XVI


OS DITOS, _o_ MARQUEZ, 3.^o POETA _e sequito_


MARQUEZ

Obrigado! Obrigado! (_a um dos picadores_) Toma cuidado, Gaeta. O teu
cardão tem um gavarro no pé esquerdo. Sente-se do casco ao bater na
calçada. Está em principio ainda, mas se lhe não acodes, vae-se-te o
animal, e é pena! (_aos poetas_) Então, tem-se poetado muito?...
(_Olhando para as senhoras, que lhe fazem mesura_.) Com taes musas,
muito e bem decerto (_a outro picador_). Almeirão, anda-me com tento no
tordilho. É um cavallo fino, mas tem pouca escola ainda. Tira pela mão,
e não ganhou união nos movimentos. Para praça não está capaz. (_olhando
de novo para as janellas_) Oh! lá vejo a Morgada da Torre da Palma, e
mais a sobrinha que veiu de França. (_Cumprimenta-as_. _Aos poetas_) É
formosa, e dizem que não menos discreta... (_a Bocage_) Oh!... Manuel
Maria... Está em Lisboa com licença, sabia já... D'esta vez ainda não
foi ver-me a Belem.


BOCAGE

V. Ex.^a estava em Salvaterra.


MARQUEZ

Cheguei esta tarde, é verdade. Quero-o lá um dia cedo... Aqui lhes trago
reforço. (_indicando o 3.^o poeta_) Foi esperar-me ao desembarque!


2.^o POETA

Tardava-nos o nosso pastor Albano!


MARQUEZ

Ahi está já o meu compadre Manuel Simões. Hãode me dar licença.--Manuel
Maria, espero ter o gosto de ouvil-o hoje. (_Sae com o sequito para o F.
acompanhado do grupo dos poetas_.--_As senhoras das janellas do mercador
desapparecem momentaneamente_.)


SCENA XVIII


OS DITOS _menos_ MARQUEZ _e sequito_


VOZES

Viva o nosso Marquez! Viva!


MORGADO (_de parte ao Commendador_)

Verá agora a camisa de onze varas em que eu metti o poeta!


COMMENDADOR

Quem! o sr. Morgado? Hade permittir que duvide.


MORGADO (_impondo-lhe silencio_)

Pschiu!--Verá!

(_O grupo dos poetas volta alvoroçado_.)


3.^o POETA (_para as janellas_)

Mote, minhas senhoras.--Venha mote!


A PALMILHADEIRA (_no 2.^o andar_)

Sr. Bocage, sr. Bocage!


BOCAGE (_levantando a cabeça_)

Quem me honra?


PALMILHADEIRA

«O meu amor foi para a India!»


1.^o POETA

India!--Mais parece peça que mote!


MORGADO (_ao Commendador esfregando as mãos_)

Olhe como ficou embuchado!


BOCAGE (_comsigo, surprehendendo-lhe o movimento_)

Já vejo d'onde vem a chufa. (_aos poetas_) Será peça, mas se é, tenho
pena de quem a quiz pregar. Seja quem for, é ainda mais asno que
tratante.


3.^o POETA

A rima é difficil.


BOCAGE (_desdenhosamente_)

Difficil! Com dois verbos que remedeiam.--Guindar, findar; guinde-a
finde-a. (_fitando o grupo do Morgado e do Commendador_) Nem sabem
inventar difficuldades! (_Dá-lhes as costas e passa adiante_.)


PALMILHADEIRA

Sr. Bocage: «O meu amor foi para a India.»


BOCAGE (_voltando a cabeça_)

Sim? Pois quando vier... dê-lhe muitas saudades. (_Segue_.)

(_Riso_. _Applauso_.)


COMMENDADOR (_ao Morgado_)

Não lhe dizia eu?

(_As senhoras voltam ás janellas do mercador_.)


3.^o POETA

Mote, minhas senhoras... Mote.


D. MARIA JOANNA

«Ás ondas se lançou Ero formosa!»

(_Bocage aproxima-se; o 3.^o poeta fica meditando momentos_.)


2.^o POETA

O mote é conceituoso.


BOCAGE

É. Dá um banho de mar á formosura!


3.^o POETA (_batendo as palmas_)

«Ás ondas se lançou Ero formosa!»

Cançada de esperar o terno amante,
Ero infeliz ao ceu se pranteava,
E como que o futuro adivinhava,
Aqui e alli corria delirante;

Da aurora em tanto a face radiante,
Nos mares pouco a pouco se espelhava,
E á frouxa luz ao longe se avistava
Sobre ellas um cadaver fluctuante:

A triste vacilava suspirando
Nos braços da incerteza suspeitosa,
Até que emfim se vae desenganando:

Então, desesperada e lacrimosa,
Do caro esposo os manes invocando.
«Ás ondas se lançou Ero formosa!»

(_Alguns applausos_.)


2.^o POETA

Bravo, Albano!... Descriptivo e sonoro!


1.^o POETA (_a Bocage_)

Correcto, não?


BOCAGE

Correcto, mas frio. Não admira. Uma paixão que vae por agua abaixo!


2.^o POETA

Mote. Venha mote.


MARIA GERTRUDES

«Os roubos que me fez a má ventura!»


BOCAGE (_vivamente aos poetas_)

Este para mim. (_repetindo immediatamente_)

«Os roubos que me fez a má ventura!»

Eu deliro, Gertruria, eu desespero
No inferno de incertezas e temores,
Eu da morte as angustias e os terrores
Por ti mil vezes sem morrer tolero!

Pelo céo, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em candidos amores:
Longe a riqueza, e os seus vãos favores,
Quero o teu coração, mais nada quero.


VOZES (_diversas_)

Bravo! Bravo!


BOCAGE (_continuando arrebatado_)

Ah! não sejas tambem qual é commigo
A cega divindade, a sorte dura,
A varia deusa, que me nega abrigo!

Tudo perdi; mas valha-me a ternura;
Amor me valha, e pague-me comtigo
«Os roubos que me fez a má ventura!»

(_Grande explosão de applausos_.)


2.^o E 3.^o POETAS

Bravo! bravo, Bocage.


1.^o POETA

Inimitavel!


3.^o POETA

Uma copia!


DIFFERENTES VOZES (_em torno de Bocage_)

Uma copia! uma copia.


COMMENDADOR (_junto a Compadre Amancio_)

Gertruria! Gertrudes!--Dava uma moeda de oiro só por uma copia d'este
soneto.


COMPADRE AMANCIO

Uma moeda!... É devéras?


COMMENDADOR

Devéras.


COMPADRE AMANCIO

Aonde lh'a heide levar? (_Commendador diz-lh'o ao ouvido_.--_Misturam-se
os grupos, continuando todos a felicitar Bocage_.)


MORGADO (_ao Commendador_)

Quer dar uma moeda de ouro por uma copia d'aquillo! Para quê?


COMMENDADOR

O sr. Morgado tem os seus segredos... Eu tenho os meus!


1.^o POETA (_a Bocage_)

Está aqui um amigo que nos convida a todos para o Izidro á meia noite.


BOCAGE (_rindo_)

Vem a proposito a ceia... para servir de jantar!

(_Ouvem-se á E. os clarins e tambores dos pretos, que logo se afastam_.)


VOZES

As charamellas! As charamellas!

(_Corre tudo á E._--_N'este movimento Bocage fica um pouco isolado_.
_Compadre Amancio aproveita a occasião e aproxima-se-lhe_.)


COMPADRE AMANCIO (_tomando-o de parte_)

Sr. Bocage!


BOCAGE (_satisfeito do triumpho_)

Tambem por cá, mestre?


COMPADRE AMANCIO

Venho aqui pedir-lhe um favor, que é quasi uma esmola... O sr. Bocage
bem me podia remediar a minha necessidade!


BOCAGE

Diga, mestre!


COMPADRE AMANCIO

Um ginja quer copia d'aquelles versos que recitou ainda agora, e dá por
ella uma moeda d'ouro... (_instando_) Podiamos repartir ao meio...


BOCAGE (_atalhando_)

Fique-se ahi, ou estraga o negocio.--Ámanhã lhe dou a copia... se me
lembrar ainda. E guarde para si o que lhe offereceram. O sr. mestre póde
vender barbas e sonetos, se quizer... (_Compadre Amancio desfaz-se em
agradecimentos_.) A lyra de Bocage ninguem a paga!

(_Repiques, foguetes ao longe_. _Afflue o povo_. _Está a festa no auge
da animação_.)


OS POETAS

Mote, mote... Minhas senhoras, venha mote!

(_Cae o panno_)


FIM DO SEGUNDO ACTO



ACTO III

*Em janeiro de 1786*


Sala em casa de Manuel Simões. Mobilia dos meiados do seculo
XVIII.--Porta ao _F._--Á _D._, no 1.^o plano, porta do escriptorio; no
2.^o plano, porta que leva ao interior da casa.--Á _E._ janellas de
sacada.


SCENA I


D. FELICIA, D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES

(_em trajo de passeio_)


D. FELICIA (_a D. Maria Joanna_)

Pois muito bem, sobrinha. Truxe já o meu escudeiro de
proposito.--Aproveito a occasião para ir á festa de S. Domingos. Préga
hoje o Padre Mestre fr. Joaquim do Rosario... Sabe? o Padre Mestre fr.
Joaquim, que vae ás nossas assembléas, e canta á viola franceza «_De
saudades morrerei_,» com tantos requebros, que é mesmo uma suspensão?


D. MARIA JOANNA

Sei. Póde ir descançada á sua festa.--Provavelmente preciso demorar-me
com o sr. Manuel Simões, visto que em resulado de conselho seu lhe
entreguei por uns mezes, como precisava, a administração da minha casa.


D. FELICIA

Não se arrependa. Honrado até alli. Depois que elle me administra... por
obsequio, já se vê... é outra coisa. A minha pena é não lhe ter pedido
ha mais tempo. Sermões não faltam, é verdade... o dinheiro espremido,
que nem que fosse d'elle... mas prompto sempre, e incapaz de arredar um
fio!


D. MARIA JOANNA

Acredito.--Tinha necessidade de descanço. Passei o verão no campo, e
nada examinei ainda... Parece-me que é tempo.--Já lhe mandou recado?


D. FELICIA

Está lá em baixo nos armazens. Não tarda.--E foi só por isso que
veiu?... Ai! sobrinha! não faz idéa que mal me sinto dos meus hystericos
vendo tratar com tanto afinco d'essas coisas uma pessoa da sua edade, e
no seu caso... com tantos vinculos... com...


D. MARIA JOANNA

Por isso mesmo!


D. FELICIA

Emfim, a sobrinha gosta de se entreter em negocios!... Cá por mim...
_abrenuntio_!... Negocios, deixo-os a quem toca. Não são para senhoras
da nossa jerarchia!... (_movimento de D. Maria Joanna_) Não digo nada,
não digo nada... A sobrinha é senhora das sua acções.--É uma conferencia
então? E hade ser longa!


D. MARIA JOANNA

Não se apresse, minha tia. Tem tempo para tudo, já vê.


D. FELICIA

Deixo-lhe a afilhada para a acompanhar. Venho logo buscal-a, e de
caminho darei tambem duas palavras ao sr. Manuel Simões.


D. MARIA JOANNA (_sorrindo-se e ameigando-a_)

E dizia que era inimiga de negocios!


D. FELICIA

Jesus! Deus me defenda!... Ai! eu, são duas palavras só. Até logo.
(_para sair, e voltando á afilhada_.) È verdade, Maria Gertrudes.
Trazes-me ahi a minha agua da Rainha d'Hungria?


MARIA GERTRUDES (_dando-lhe um pequeno frasco_)

Aqui está, madrinha!


D. FELICIA (_recebendo-o, cheirando-o, e depois arrecadando-o_)

Não posso andar sem isto... por causa dos hystericos... Até logo,
sobrinha.


SCENA II


D. MARIA JOANNA _e_ MARIA GERTRUDES


D. MARIA JOANNA (_voltando, e olhando meio impaciente para as portas da
D._)

Demora-se!... (_pausa_.) Está triste, Maria?


MARIA GERTRUDES

Eu, minha senhora! Triste! Porque?


D. MARIA JOANNA

Não tem razão, decerto. Minha tia não a póde trazer mais estimada, e
merece-lh'o.


MARIA GERTRUDES

A minha rica madrinha! Não sei como lhe hei de agradecer a creação que
me deu... e o muito que me quer!...


D. MARIA JOANNA

Querendo lhe tambem, como faz.--Vamos, d'ahi não procede o mal. Do que
de ordinario mais inquieta na sua edade menos ainda.--Se não me engano,
está em Lisboa um certo cadete... já poeta de fama... cada dia de maior
fama, que... É certo?


MARIA GERTRUDES (_atalhando, envergonhada_)

Oh! minha senhora!


D. MARIA JOANNA

Então que tem? Uma inclinação não está mal... Em se não faltando ao
recato!... E elle mostra-se respeitoso, que é sempre bom indicio...
Todos os casamentos por ahi principiam, e estou que não quer
professar.--Que lhe diz o coração?


MARIA GERTRUDES (_olhando receiosa em redor_)

Nunca fallei n'isto, nem a minha madrinha!


D. MARIA JOANNA

Pudéra! Fallo-lhe eu, porque tambem lhe sou afeiçoada. Provavelmente não
se entendia tão bem com minha tia.


MARIA GERTRUDES

O coração... Nem, eu sei.--O sr. Bocage diz-me coisas como ninguem...
(_inadvertidamente_) mas o outro...


D. MARIA JOANNA

Ah!... Ah! temos outro!...


MARIA GERTRUDES (_toda balbuciante_)

Eu disse outro? (_animando-se_.) Disse. Disse, porque é verdade...
(_acudindo_.) A culpa não é minha!


D. MARIA JOANNA

Está visto. Pois nós temos culpa nunca d'essas... complicações!--E o
outro?


MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_)

Foi um ingrato! Não posso, não devo mais lembrar-me d'elle...


D. MARIA JOANNA

Então d'ahi estamos desenganadas. Naturalmente fica preferido o poeta.


MARIA GERTRUDES (_hesitando_)

Ai! agora fica... (_mais decidida_.) Fica... mas...


D. MARIA JOANNA

Mas?... Suspeito d'esse _mas_.


MARIA GERTRUDES (_meio impaciente_)

Tomára quem me ensinasse como se conhece um amor verdadeiro. (_achando
uma idéa_.) Ah!... A sr.^a D. Maria Joanna hade saber... É viuva,
sabe... Diz-m'o?


D. MARIA JOANNA

Eu!... (_enleiada_.) Devia saber, devia... mas... (_comsigo_.) Aqui
estou eu tambem a cair nos _mas_...


MANUEL SIMÕES (_dentro_)

Ainda agora m'o dizem!


D. MARIA JOANNA (_comsigo_)

Vem muito a proposito o sr. Manuel Simões.


SCENA III


AS DITAS, MANUEL SIMÕES (_da porta, 2.^o plano, á D._)


MANUEL SIMÕES

Que vergonha!... que vergonha para esta casa!...


D. MARIA JOANNA

Que é isso, sr. Manuel Simões?


MANUEL SIMÕES

Fazerem esperar tanto tempo s. s.^a!... N'este instante me deram o
recado, aquelles brutos... Que hade dizer?... Hade dizer que nem sei
tratar com pessoas de condição, eu, Manuel Simões, que toda a minha
vida... com bem o digamos... fui favorecido da grandeza!... eu, um
compadre de dois marquezes!... (_corrigindo-se_) De dois... de um, que o
outro...


D. MARIA JOANNA

O outro já lá vae.--Não se afflija com isso. Esperei, mas não me
enfastiei. E bem era que esperasse, que o negocio é meu...


MANUEL SIMÕES

Negocios!--É verdade... a sr.^a morgada? Em seu nome me levaram o
recado.


D. MARIA JOANNA

Vim com ella. Foi á festa a S. Domingos. Volta logo.


MANUEL SIMÕES (_admirado_)

Negocios! V. S.^a! Commigo!


D. MARIA JOANNA

Pois não me tomou a administração?


MANUEL SIMÕES

Por pouco tempo, disse-lh'o logo... Estou já tão sobrecarregado!...
Depois, estas administrações... afastam-me do meu giro.


D. MARIA JOANNA

Justamente. Ahi verá se precisamos fallar. Para não o incommodar mais, e
tomar a direcção da casa, preciso examinar, preciso esclarecer-me... e
agora ninguem melhor do que o sr. Manuel Simões.


MANUEL SIMÕES (_attonito_)

Ah!


D. MARIA JOANNA

Admira-se?


MANUEL SIMÕES

Admiro, porque não é o costume. Admiro, mas approvo. Quando quererá sua
tia D. Felicia fazer o mesmo, ou pelo menos ouvir-me? Pois devia...
devia, que se continua como vae, não sei como hade ser... Por mais que
lhe peça, por mais que lhe diga, nada. Não quer saber senão de
dinheiro... Como se o dinheiro se cavasse!... Quando lhe fallo em
contas, dão-lhe os seus hystericos, e... acabou-se, não é possivel.--Os
papeis estão todos em ordem no meu escriptorio (_indica a porta
respectiva_). Não é casa costumada a donaires, mas se não a assusta...


D. MARIA JOANNA (_dirigindo-se á porta indicada_)

Pois a que vim eu?


MANUEL SIMÕES (_reparando em Maria Gertrudes e com certo affecto_)

Ai! a menina Maria Gertrudes! Já aqui lhe mando minha irmã Monica para
lhe fazer companhia.


MARIA GERTRUDES

Não é preciso... Vou eu mesmo procural-a, se me dá licença.


MANUEL SIMÕES (_como acima_)

Bem sabe que é de casa! (_encaminha-se ao escriptorio.--Como
lembrando-se de repente_) Oh!... (_Novamente ás senhoras_) Permittem?
(_indo á porta da D., 2.^o plano_) Levem lá para baixo essas peças de
saragoça, que hão de ir ámanhã para Abrantes... e arêjem-me as baetas,
não se esqueçam... (_voltando_) Isto, se eu não determinar tudo!...
(_inclinando-se e esperando á porta do escriptorio que D. Maria Joanna
passe_.--_Sae D. Maria Joanna e Manuel Simões_.)


SCENA IV


MARIA GERTRUDES, _pouco depois_ FRANCISCO


MARIA GERTRUDES

Hade ser grande a demora e a espera. (_indo á janella_) Não são como as
nossas estas ruas da baixa. É um borburinho de gente sempre! (_Chega-se
á janella_.--_Entra Francisco do F. Vê-a e não póde reprimir um
movimento de involuntario alvoroço_.)


FRANCISCO

Ah!


MARIA GERTRUDES (_voltando vivamente, vendo-o_)

Ah!


FRANCISCO (_constrangido_)

Desculpe... Não a esperava aqui... Já me retiro.


MARIA GERTRUDES (_do mesmo modo_)

Póde ter que fazer... Sou eu que vou procurar sua tia.

(_Dão alguns passos; elle dirigindo-se ao F.; ella passando á
D._--_Quando vão a affastar-se, param e voltam-se quasi
simultaneamente_.)


FRANCISCO (_com vivacidade_)

Chamou?


MARIA GERTRUDES (_de olhos no chão_)

Chamou?


FRANCISCO (_depois de pausa_)

Nada.


MARIA GERTRUDES (_idem_)

Nada.


FRANCISCO

Adeus, menina Gertrudes!


MARIA GERTRUDES

Adeus, sr. doutor.

(_A ponto de retirar-se, ella pela D., 2.^o plano, elle pelo F.,
Francisco torna atraz_)


FRANCISCO

Quer-me ouvir um instante?


MARIA GERTRUDES

O sr. doutor está em sua casa! (_de olhos baixos_.)


FRANCISCO (_picado_)

Ah! é só por isso? E porque me não chama Francisco como d'antes?


MARIA GERTRUDES

Um doutor, já formado!--E porque me trata por menina? Não era o seu
costume.


FRANCISCO

São preceitos do seu poeta?


MARIA GERTRUDES

Receia que o vão dizer á sua apaixonada?


FRANCISCO

Uma apaixonada, eu!


MARIA GERTRUDES (_com impeto_)

Hade negar que teve o outro dia uma briga por causa da Esteireira que
representa no Salitre?


FRANCISCO

Ia passando... É mulher... Insultavam-n'a... defendi-a.


MARIA GERTRUDES (_com ressentida ironia_)

Deu agora em defender todas as mulheres! até mulheres que representam no
theatro!... E o que ella lhe está obrigada... E o que falla no
senhor!... no sr. Doutor!... E o que...


FRANCISCO

Mas se lhe digo...


MARIA GERTRUDES (_atalhando_)

Não negue... sei tudo... Contou-me tudo a mulher de um torneiro, que tem
o marido na cadêa, e vae lá ás vezes ás Portas da Cruz, fallar á
madrinha para peditorios... (_elle quer atalhar; ella não o deixa_.)
Conhece tambem a tal creatura, a mulher do torneiro... ouviu-lh'o mesmo
da sua bocca... (_como acima_) Veja se é verdade, ou não!


FRANCISCO (_desesperado_)

Pois é verdade... será verdade... Porque não hei de estar apaixonado de
uma comica, se a menina não vê senão o seu novo arrojado.


MARIA GERTRUDES (_quasi chorando_)

Ólhe? Confessa!


FRANCISCO

Nem se atreve a dizer que não!


MARIA GERTRUDES

Depois do que me tinha promettido!


FRANCISCO

Depois do que me tinha protestado!--E eu que voltei ainda tão descançado
para Coimbra, depois d'aquella vespera do Corpo de Deus o anno
passado!... Estava entretido a responder a meu padrinho quando por alli
andavam os poetas a versar... Nem dei por cousa nenhuma... Parti logo no
dia seguinte de madrugada, e demorei-me depois até me doutorar... Andava
cego... Mas apenas cheguei ultimamente a Lisboa, tive logo quem me
abrisse os olhos.


MARIA GERTRUDES (_vivamente_)

Quem?


FRANCISCO

Quem? É verdade, já vê.--Quem? Uma pessoa de porte e de respeito... uma
pessoa que não mente!... (_mostrando um papel_) Lembra-se do soneto que
fez o Bocage ao mote que lhe deu n'essa noite? (_lendo_.)

«Eu deliro, Gertruria, eu desespero.»

Gertruria, Gertrudes! É evidente. (_lendo_)

«Pelo ceu, por teus olhos te assevero
Que ferve est'alma em candidos amores.»

Ferve-lhe a alma em amores... Escreve-se isto!... Querem-n'o mais claro?


MARIA GERTRUDES (_picada_)

Porque me não hade o sr. Bocage fazer versos, se o sr. Doutor tem a sua
apaixonada!


FRANCISCO

Outra vez a apaixonada! Sim? Não tem mais que me dizer? (_suffocado_)
Pois eu estava morto por encontral-a em liberdade, para lhe declarar...
que está tudo acabado...


MARIA GERTRUDES

Isso esperava eu!...


FRANCISCO (_continuando_)

E para lhe jurar, por alma de quem Deus tem, que haja o que houver...


MARIA GERTRUDES

Não jure, sr. Doutor, não se cance... Não é preciso... (_com dignidade_)
Sua tia está lá dentro, não? Sou pobre, sou humilde, mas não obrigo
ninguem. Faço-lhe a vontade. (_Sae_.)


SCENA V


FRANCISCO, _só_

Viu-se nunca uma coisa assim! Ainda em cima! É ella que me faz a
vontade!... (_passeiando agitado_.) Quem me havia de dizer?... Com
aquelles modos innocentes... Ah! mulheres, mulheres! O que são as
mulheres!... Que heide agora fazer? Queria-lhe mais que á vida, mas
humilhar-me, não... Embarco... é o verdadeiro... Embarco... vou para
longe. Tomára eu uma vida em que nem ouvisse fallar de mulheres... Meu
pae não consente de certo... Ah!... Meu padrinho... Vou hoje mesmo
fallar a meu padrinho para que me alcance...


SCENA VI


FRANCISCO _e_ MANUEL SIMÕES


MANUEL SIMÕES (_á porta do escriptorio_)

Falta a escriptura do arrendamento da Carvoíça. Tenho-a na carteira do
armazem... Trago-a já.


FRANCISCO (_correndo ao pae_)

Meu pae, quer-me ouvir.


MANUEL SIMÕES (_complacente_)

Ai! é o sr. doutor... Deixa-me que estou com pressa.


FRANCISCO

São duas palavras. Pensei melhor. Escusa de fallar á sr.^a D. Felicia...
Não caso já com a afilhada.


MANUEL SIMÕES (_indignado e attonito_)

Que é isto! Então assim se fazem e se desfazem essas coisas! «Dei-lhe
palavra!... Já não caso!...» Assim zomba de seu pae, sr. Francisco
Pedro!... Cuida que por ter o grau, já não sou quem sou?...
Desembargador do paço que fosses, não consentia que me faltasses ao
respeito... Já não casas!... Agora?... Depois de te formares, que era só
o que faltava!... Tinha que ver!... Costumei me a considerar a pequena
como filha!... E não sabes tambem que já dei uns longes á morgada?...
(_Entra o commendador_.) Queres que passe por um catavento n'aquella
casa, que por fim de contas é uma casa honrada!... Pensasses antes.--O
dito, dito: casas... Queiras ou não queiras, has de casar!


SCENA VII


OS DITOS _e o_ COMMENDADOR


COMMENDADOR (_intervindo a Manuel Simões_)

Faça a vontade a seu filho. (_a Francisco_) Descance que não casa.


MANUEL SIMÕES (_furioso_)

Quem diz que não casa?... (_vendo o commendador, e moderando-se_.) Ah! é
o sr. commendador... Se fosse outro!... Isto são coisas de familia... V.
s.^a não sabe...


COMMENDADOR

Sei... e hade chegar-se á razão.


MANUEL SIMÕES

Pois eu na minha casa, não posso...


COMMENDADOR (_tomando-o de parte_.--_Francisco affasta-se_)

O padre Ignacio deseja que se não faça este casamento.


MANUEL SIMÕES (_respeitosamente_)

O padre Ignacio!


COMMENDADOR

Bem sabe o que lhe deve, e o que deve aos padres da Companhia!... O
irmão Simões não quer desobedecer decerto... e fazia mal se
desobedecesse, que o nome acabou, mas o poder hoje revive!


MANUEL SIMÕES (_fitando-o aterrado_)

O sr. commendador tambem é?... (_o commendador faz-lhe signal de
silencio: a meia voz_.) Os padres sabem que nunca desobedeço... Mas que
interesse pódem ter...


COMMENDADOR

Não é preciso que o saiba.


MANUEL SIMÕES

E quem me assegura...


COMMENDADOR

Que o não engano? Veja este bilhete. (_dá-lh'o_.)


MANUEL SIMÕES (_lendo_)

«Faça quanto lhe disser o sr. commendador de Monsarás.--Padre Ignacio!»
(_resignado_.) Não casará.


COMMENDADOR

Agradeça a seu pae, que por minha intercessão lhe faz o gosto.


MANUEL SIMÕES (_comsigo_)

Com esta gente nem pae se póde ser!...


FRANCISCO (_humilde e tristemente_)

Meu pae...


MANUEL SIMÕES

Está bom, está bom... O sr. commendador deseja mais alguma coisa?


COMMENDADOR

Tenho ainda que lhe fallar a respeito do negocio de um amigo meu, que
hade aqui vir ter commigo.--Está occupado agora?


MANUEL SIMÕES

Estava ajustando umas contas, e confesso que muito desejo concluir.


COMMENDADOR

Conclua, conclua. Não tenho pressa, e o meu amigo ainda não chegou.
Esperarei, se m'o permitte.


MANUEL SIMÕES

Está em sua casa. Dando-me licença, vou acabar. (_comsigo_.) E o tempo
que já tenho perdido!... (_como occorrendo-lhe_.) Olha, Francisco... Vae
lá abaixo ao armazem... abre a carteira... aqui tens a chave...
(_dá-lha_) hasde achar ao canto da direita um masso pequeno, atado com
um nastro encarnado. Manda-m'o aqui ao escriptorio, e a chave tambem...
Pódem vir de roda para não incommodar o sr. commendador e o seu amigo,
se já tiver chegado. (_Francisco sae_. _Para o commendador_.) Aproveito
o obsequio, e abreviarei o que poder.


SCENA VIII


COMMENDADOR _só, pouco depois_ MORGADO


COMMENDADOR (_saboreando uma pitada_)

Bem diziam os escriptores da gentilidade: estavam fóra de si os deuses
quando inventaram o homem, e mal recobraram o tino desataram a rir pondo
os olhos na sua obra. Tudo n'elle é vão. _Vana mortalitas_, como lhe
chamava Plinio, o Historiador. Movem-se por um fio... (_sentando-se_)
Tudo está em saber-lho atar. (_Entra o morgado esboforido e derreado_.)
Chega a proposito, morgado... ia-me tardando... Que é isso?... Teve
alguma coisa?... Aposto que fez das suas... Não quer domar esse
genio!...


MORGADO (_lisongeàdo_)

Não posso. Muitas vezes quero ter mão em mim... mas qual... todo eu sou
fogo.


COMMENDADOR

Deixe, deixe. «Casarás, amansarás!»--Foi briga, pendencia, rixa,
desafio?... Pois nem pensando em sua prima, deixa descançar a espada!
Quer ser como Lucio Licinio Dentato, que oito vezes em repto singular
saiu vencedor á vista de dois exercitos?...


MORGADO (_mais lisongeado_)

Cada vez o vejo mais: o commendador é um amigo devéras... um amigo como
ha poucos...


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Ainda agora dá por isso!--Homem, é boa a fama de valente para captivar
as damas, mas nem tanto que assuste. Brigou?


MORGADO

Nada. (_com fatua arrogancia_.) Não acho já quem queira.


COMMENDADOR (_comsigo_)

_Miles gloriosus_!


MORGADO

Quê?


COMMENDADOR

Estou morto por saber o que teve... que o morgado não vinha no seu
natural.


MORGADO

Que havia de ser?--Esta manhã, para matar o tempo, fui até á feira das
cavalgaduras... alli pela banda do nascente do passeio... Bem sabe o meu
fraco. Estava na barraca dos juizes, segundo o costume... Tudo
entendedores de mão cheia... Não sei como se passou o tempo... o caso é
que deram dez horas... Era a hora a que tinhamos ajustado o nosso
encontro aqui... Despedi-me á pressa... instaram-me que ficasse... Se
elles não pódem passar sem mim! Foi preciso dizer-lhes que tinha que
fazer na baixa, e era tarde já... O Domingos Sanches... aquelle
polvorista rico... Decerto conhece... (_gesto negativo do commendador_.)
Ora, não conhece outra coisa!... O Domingos Sanches quiz por força que
viesse no seu lasão... um lasão melado... bonito animal... mas de maus
signaes... gazio dos olhos, e bebendo em branco... «Não és boa peça,
não,» disse eu logo commigo... «esperem que vão ver o que é o morgado da
Gesteira a cavallo!...» (_enthusiasmando-se_.) Estava tudo attento...
Monto... como eu costumo montar... O cavallo, apenas me sente, começa a
defender-se, e a negar-se... Eu aperto-lhe as esporas... Elle atira dois
saltos encabritados... Eu cozo-me com a sella... Elle furta-me o
corpo...


COMMENDADOR (_depois de breve pausa_)

E depois?


MORGADO

Depois... caí!


COMMENDADOR (_erguendo-se, sem poder suster o riso_)

Caiu?... Cuidei... Caiu!...


MORGADO (_mais enthusiasmado_)

Mas como eu cai!... com todos os preceitos... Ficou tudo pasmado!


COMMENDADOR

Creio, creio... E o cavallo?


MORGADO

Fugiu.--Para não perder tempo, vim ás carreiras... Ahi tem a razão da
demora.


COMMENDADOR

Bem empregada foi, visto que lhe proporcionou triumpho
similhante.--Tacito conta que Julio Cesar, o fundador do imperio, tambem
caiu d'um cavallo... Provavelmente caiu assim.


MORGADO

Favores, favores.--E a respeito do meu negocio? Fallou já a Manuel
Simões?


COMMENDADOR

A respeito do seu negocio ainda não. Está ajustando umas contas, não
tarda. E primeiro temos nós que fallar, porque emfim... (_Sussurro na
rua_.--_applicando o ouvido_.) Espere. Não ouve?


MORGADO

Oiço. Parecem gritos de agarra! (_Chegam ambos á janella do 2.^o plano,
e debruçam-se para ver_.)


SCENA IX


OS DITOS, MANUEL SIMÕES, _e_ D. MARIA JOANNA (_á porta do escriptorio_)


MANUEL SIMÕES

Enganou-se o Francisco. Não era aquelle o arrendamento... (_vae a
avançar, e detem-se vendo os dois_) Ai! que já me não lembrava.


D. MARIA JOANNA (_rapidamente_)

É o commendador Louzéllos, e o morgado da Gesteira?


MANUEL SIMÕES

São.


D. MARIA JOANNA

Quizera esquivar-me ás suas importunidades.


MANUEL SIMÕES

Não a viram. Póde esperar no escriptorio... O peior é que talvez tenha
de me demorar um pouco. São horas de enfardar as fazendas, e...


D. MARIA JOANNA

Vá, vá... Não tenho pressa. Espero.


MORGADO (_attento para fóra_)

Vê o que é?


COMMENDADOR

São os rapazes a correr... Ah! agora... É um cavallo solto... e é
lasão... Será o tal?


MORGADO (_affirmando-se_)

É, é!


MANUEL SIMÕES (_rapidamente a Maria Joanna_)

Se lhes não quer fallar...


D. MARIA JOANNA (_fechando a porta_)

Até logo. (_fecha vivamente a porta_.)


SCENA X


OS DITOS, _menos_ D. MARIA JOANNA


MORGADO

E como elle se leva! Não o apanham, não.--Já se não vê.


COMMENDADOR (_voltando tambem e rindo_)

Em vez de vir o Morgado atraz do cavallo, veiu o cavallo atraz do
Morgado. (_vendo Manuel Simões_) Ah! Sr. Manuel Simões! Acabou já as
suas contas?


MANUEL SIMÕES

Ainda não. São horas de carregar as fazendas que hão de embarcar ao meio
dia, e se eu não assisto... Não tendo v. s.^a coisa de maior urgencia...
Na minha vida não se póde perder um instante!...


COMMENDADOR

Já lhe disse que o não quero estorvar.--Sei o que é a lida de uma casa,
no ponto a que chegou a sua... (_intencionalmente_) Vamos, que lhe não
tem corrido mal... Passei ainda agora pela loja, e vi a azafama que por
lá ia... Uma fileira de carros á porta, e um deitar abaixo de fazendas
das prateleiras, que era um terramoto!


MANUEL SIMÕES (_cobrindo o rosto com as mãos_)

Um terramoto!... Jesus! Santo nome de Jesus, sr. Commendador! Pelo amor
de Deus, não diga essa palavra diante de mim! Já lá vão trinta annos, e
ainda me parece ver as torres da Sé a dançar!... E a minha casa!... E a
minha pobre mulher, a primeira, que alli ficou!... E toda essa ira de
Deus!... (_benzendo-se_) Em nome do Padre, do Filho, e do Espirito
Santo!... Todo eu me arripio ainda.


COMMENDADOR

Tem razão... não direi mais... Mas o que lá vae, lá vae! E dê graça a
Deus (_intencionalmente_) pelas boas protecções que tem tido!


MORGADO (_cumprimentando obsequiosamente_)

Sr. Manuel Simões!


MANUEL SIMÕES (_seccamente_)

Viva, sr. Morgado! (_ao Commendador_) É o amigo que esperava?


COMMENDADOR

Em pessoa.


MANUEL SIMÕES (_ao Commendador_)

D'aqui a meia hora, o mais, estou ás suas ordens.


COMMENDADOR

Não se apresse... Temos tempo.


SCENA X


MORGADO _e_ COMMENDADOR


MORGADO

Vê como elle me trata? Oh! que se não fosse...


COMMENDADOR

Quando estiver de posse da casa de Carregueiros, faça-lhe o mesmo.


MORGADO

Oh! isso!... E ha-de ser quanto antes. Estou resolvido a acabar de vez
com estas incertezas e duvidas de minha prima. Tenho o remedio na mão.


COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)

Tem?... (_indo examinar a porta do F. e a da D., 2.^o plano, e depois
voltando_.) Ninguem na casa de fóra, nem no corredor... Estamos sós e á
vontade... Podemos conversar um pedaço.--Com quê... resolveu casar com
sua prima quanto antes? Faz muito bem. Casar, e casar rico, era já
conselho de Plauto. _Nubere in divitias_!


MORGADO

Faço muito bem? É devéras a sua opinião, Commendador?


COMMENDADOR

Pois porque não há de ser?


MORGADO

Quer que lhe diga uma coisa?


COMMENDADOR

Diga.


MORGADO

Andei muito tempo desconfiado... Loucuras minhas, agora vejo!... Uma
pessoa prudente e de juizo, como o commendador?...


COMMENDADOR

Diga sempre. De que andou desconfiado?


MORGADO

Tinha-me querido parecer que se inclinava a galantear tambem minha
prima.


COMMENDADOR (_tranquillamente_)

Não se enganou.


MORGADO (_sobresaltado_)

Não me enganei?


COMMENDADOR

Socegue. Passou-me isso pela cabeça na jornada em que a acompanhei de
Paris... Mas reflecti depois.--Socegue. Já lá vae.--Escreveu-me um
antigo conhecimento de Santa Clara.


MORGADO (_malicioso_)

Ah! chegaram-lhe lembranças dos doces e da grade!


COMMENDADOR

Reflecti... dês que o encontrei.


MORGADO (_lisongeado_)

Dês que me encontrou?


COMMENDADOR

E principalmente quando o conheci a fundo. Cada vez tenho por mais
seguro que ninguem convem tanto a sua prima... nem a mim.


MORGADO (_admirado_)

Nem ao Commendador?


COMMENDADOR

Reflecti muito.--Sua prima está ainda no calor da mocidade, não lhe
ficaram as melhores impressões do primeiro matrimonio, e ha-de querer
indemnisar-se... O segundo marido leva grande responsabilidade e grandes
trabalhos!... Eu, o que preciso é descanço... Mesa substancial, o meu
copo do Porto velho, os meus livros... e uma boa sege á bolea. A doirada
mediania, de que falla Horacio Flacco, o Venusino.--N'isto assentei... e
veja como o tenho ajudado.


MORGADO (_convencido_)

Assim é, assim é. Realmente, não sei como lhe hei de pagar tantas
obrigações!


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Ah! isso não lhe dê cuidado.--O Bocage não o affronta já: está todo
captivo da afilhada de D. Felicia... E a afilhada de D. Felicia... não
lh'o prognostiquei?... deu já de mão ao filho do mercador. O tenente, de
um momento para o outro... D'esse depois se tratará, sendo preciso.--Bem
vê como lhe abro praça, e o deixo só em campo tornando-lhe facil a
victoria. (_vae sentar-se á E._)


MORGADO (_recuando com uma especie de terror_)

E tudo por amizade!


COMMENDADOR

A amizade é o meu fraco. Chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que
importa. (_O morgado senta-se-lhe ao pé_.) Manuel Simões não parece
muito disposto a dar-lhe ao cincoenta moedas de que me disse precisava
infallivelmente.


MORGADO

E preciso. Que faria eu diante de minha prima sem real?


COMMENDADOR (_preparando a caixa para tomar uma pitada_)

Mau era na verdade... Mas a Gésteira, que nunca chegou para muito, já
não dá para mais... As vinte moedas, qne lhe arranjei o anno passado,
foram-se n'um instante á banca, e ao loto de Génova... Manuel Simões
sabe tudo isto perfeitamente, vê-o afogado n'um diluvio de hypothecas, e
não é homem que deite o seu dinheiro pela janella fóra...
(_offerecendo-lhe a caixa_) Toma?


MORGADO (_erguendo-se consternado_)

Mas então como ha de ser? Se me mandou vir aqui só para me dizer
isso!...


COMMENDADOR

Hade ter as cincoenta moedas; abono-o eu.


MORGADO (_sentando se e abraçando-o_)

Isto é que é um amigo.


COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)

Que rendimento terá a sr.^a D. Maria Joanna? Já averiguou?... Hade ter
averiguado.


MORGADO

Só da casa de Val-Moreno, que recebeu pela mãe, anda por cinco mil
cruzados.


COMMENDADOR (_offerecendo-lhe tabaco_)

Serve-se? (_Morgado tira machinalmente uma pitada_.) É isso.--Quanto aos
vinculos de Fresnos e Carregueiros... que lhe tocaram por parte do pae,
e que o pae tinha herdado de seu irmão o Capitão-mór, marido de D.
Felicia, que morreu sem filhos... quanto aos vinculos de Fresnos e de
Carregueiros, deve andar cada um para mais ainda... principalmente o de
Carregueiros.


MORGADO

Não tem menos de quinze a dezeseis mil cruzados ao todo. Mas a que
proposito...


COMMENDADOR

Calculos necessarios. Vinte moedas em junho passado, cincoenta agora,
fazem setenta... que o morgado vem a dever-me.


MORGADO (_como protestando_)

Devo, devo... Heide dever, e heide pagar... juro-lhe. Juro por... pela
cruz da minha espada.


COMMENDADOR

Se podesse jurar por outra coisa!


MORGADO (_offendido_)

Duvída?


COMMENDADOR

Ha viver e morrer.--Homem, a commenda, bem sabe, apenas me chega para
viver com decencia... e parcimonia.--Suetonio, e outros auctores, louvam
a parcimonia como virtude; mas Terencio tem que a dureza da vida não é
para gente adiantada... e eu sou da opinião de Terencio!--O morgado não
ha-de querer que perca assim setenta moedas!


MORGADO (_desconfiado_)

Deseja alguma segurança?


COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)

Quasi nada. O morgado faz-me uma escriptura de divida de trinta mil
cruzados!... e sou eu que lhe hei-de pôr a data!


MORGADO (_erguendo-se de subito e exclamando furioso_)

Trinta mil cruzados! Dois annos de rendimento da casa de minha prima!...


COMMENDADOR (_tranquillamente_)

Não grite.--Ólhe se estivesse ahi alguem perto?


MORGADO (_contendo mais a indignação_)

Trinta mil cruzados para pagar setenta moedas!


COMMENDADOR

Quem lhe diz isso? Para deitar sege, e ter honradamente as commodidades
que me faltam.--Oiça, e entre na razão. Desistindo de aspirar á mão de
sua prima, renuncio áquella riqueza toda. Não tem valor isto? E faço
mais; trabalho para desafogal-o de rivaes perigosos... perigosos,
podemos dizel-o entre nós. Não merecerão estes serviços trinta mil
cruzados? Contou bem. São dois annos do rendimento de sua prima. Póde
pagar em quatro. Fica-lhe ainda metade. Veja quem lh'o fazia por
menos.--Não recuse, ou ponho-lhe quarenta por condição.


MORGADO

Por condição?


COMMENDADOR

Por condição. E hei-de obtel-a.--Ha condições de muitas especies. No
codigo de Justiniano, e nos cincoenta livros dos Pandectas, que lhe
servem de commentario...


MORIGADO (_atalhando-o desesperado_)

Quaes Pandectas nem qual Justiniano! Esse pinhal de auctores e de
latins, é um pinhal da Azambuja. (_passeiando agitado_) Trinta mil
cruzados!... Nada, não me deixo roubar... Tão tolo era eu que assinasse
similhante escriptura!... Poem-me condições!... a mim!... Sempre quero
vêr!...


COMMENDADOR (_cruzando a perna tranquillamente e tirando um papel do
bolso_)

Hade ver.


MORGADO

Poem-me condições!... E d'essas!... É muito caro o seu auxilio,
commendador. Dispenso-o. Tenho outro modo de convencer minha prima, mais
seguro e mais barato.


COMMENDADOR

Mais barato, duvido.


MORGADO

Verá.


COMMENDADOR

O seu famoso segredo?


MORGADO

Verá.


COMMENDADOR (_socegadamente_)

Pois então experimente. (_O morgado pára e fita-o_.) Vá dizer a sua
prima: «Prima, tenho aqui uma declaração, que me entregou nos ultimos
momentos a Simôa da Torre da Palma...» É provavel que a traga no
bolso... (_O morgado leva vivamente a mão ao bolso, como para verificar
se lá está o papel indicado_.) Traz, descance!...


MORGADO (_mais tranquillo_)

Conjecturas para pescar verdades... O ardil é velho.


COMMENDADOR

Quer saber o que diz a declaração? (_desdobra o papel que tem na mão_.
_Estão ambos attentissimos um para o outro_. _Descerra-se mansamente a
porta do escriptorio, e D. Maria Joanna apparece alli, a rapidos
intervallos, observando_.)


SCENA XII


OS DITOS _e_ D. MARIA JOANNA (_meia occulta_)


COMMENDADOR (_lendo_)

--«Por temor de Deus, e amor da verdade, eu Joaquina Simôa, familiar da
casa da Torre da Palma, tendo presentimento de que me chegará breve a
hora de dar contas, e não querendo condemnar a minha alma, declaro o
seguinte, que n'esta hora confirmo com juramento aos Santos Evangelhos,
em presença do reverendo padre cura de Vayamonte, e por sua exhortação e
conselho...» (_O morgado, primeiro attonito, depois aterrado, tem tirado
do bolso a outra declaração, como para comparar com o que ouve, e
parecendo duvidar ainda_.) É exactamente isto?


MORGADO

Ou o commendador tem parte com Satanaz... ou é verdade o que dizem!


COMMENDADOR (_negligentemente_)

Então que dizem?


MORGADO

Dizem que é um jesuita... dos que não trazem roupeta.


COMMENDADOR (_severamente_)

Sr. morgado, não repita levianamente as maledicencias do vulgo, que se
póde arrepender!--Quer verificar o resto da declaração? Conta n'ella a
Simôa:--como estando já separada do marido a morgada da Torre da Palma,
a filha della Simôa adoecéra;--como o capitão mór, em casa de quem a
mesma Simôa nascêra e se criára, a reduzira a prometter-lhe que, se a
creança morresse, lhe substituiria a filha d'elle e de D. Felicia, e
faria passar por morta a herdeira, tudo isto para que os bens de
Carregueiros passassem a varão;--como o escudeiro Luiz Manuel fôra
mandado administrar uma herdade da casa ao pé de Olivença, até á morte
do Capitão-mór, para que nem elle soubesse do segredo, de que a mulher
ficava unica depositaria;--finalmente como a Simôa, levada das
obrigações que devia á casa do Capitão-mór, tivera a fraqueza de ceder,
e criára como sua a filha de D. Felicia, até que esta a mandou buscar já
crescida cuidando ser a afilhada.--Está tudo claramente explicado, e
devidamente datado e assignado.


MORGADO (_subjugado_)

Essa declaração passou das mãos da Simôa ás minhas... nunca a mostrei...
nunca a larguei... Como é possível sem ser por artes sobrenaturaes...


COMMENDADOR

Tem innocencias!--Dei uma volta a Vayamonte. O cura é... É meu amigo.
Não me podia negar a minuta do papel que elle mesmo escrevêra.
(_sentando-se de novo_) Como iamos dizendo... O morgado vae a sua
prima... mostra-lhe esse documento, e diz-lhe: «a supposta afilhada de
sua tia D. Felicia é sua prima direita, e herdeira da casa de seu tio
Capitão-mór. Este papel e este segredo valem dois terços da sua riqueza.
É a unica prova. Se quizer que tal prova desappareça, case commigo. Nada
tenho de Adonis; sou um tanto nescio; fallador insoffrivel e farfante
rematado.» (_Movimento do morgado_) É tudo isto, é, morgado... e mais
alguma coisa. (_Como se proseguisse o discurso do morgado_.)
«Mas,--continuará,--rasgando este papel é como se lhe trouxesse em dote
os vinculos de Fresnos e de Carregueiros.» O argumento conclue. Entra na
ordem d'aquelles a que Cicero chamava: _argumento premente_. Ora como o
tenente Gonçalo Mendo não é ainda coisa certa, e como ninguem perde de
vontade dez mil cruzados de renda, sua prima fecha os olhos,
convence-se, e o morgado casa. Com isso conta, e faz bem em contar. Nada
mais solido, mais engenhoso e brilhante. Que pena, se apparecesse esta
minuta, e pela data se visse que o sr. morgado tem ha oito mezes em seu
poder a declaração, sem a entregar!... Era deitar tudo a
perder!--Verdade, verdade; não vale quarenta mil cruzados?


MORGADO

Quarenta agora!...Trinta!...Tinha dito trinta!...


COMMENDADOR (_abrindo a caixa_)

Tinha? Enganei-me. Quem se não engana? Lucio Floro, da nobre familia dos
Anneanos, conta que um engano decidiu uma batalha, e Seneca chama-lhe
_allucinatio_ para mostrar a perturbação mental que o determina
(_voltando-se mesmo sentado, inclinando-se sobre a esquerda, como para
evitar que a pitada que vae sorver lhe macule a tira_.) Foram quarenta,
nem menos um real... E se hesita...


MORGADO (_acudindo_)

Não hesito... Assigno-lhe a escriptura.


D. MARIA JOANNA (_que se adiantára sem que os dois, absorvidos na
conversação a presentissem, apresentando-se entre ambos com jovial
placidez_)

E eu sirvo de testemunha!


COMMENDADOR (_erguendo-se sobresaltado_)

A sr.^a D. Maria Joanna Galvão aqui!


D. MARIA JOANNA (_com o mesmo modo prazenteiro_)

Porquê? Não sou interessada?


MORGADO (_enleiado_)

A prima, naturalmente, não sabe ainda...


D. MARIA JOANNA (_atalhando como transfigurada, com grave altivez o
severa dignidade_)

Sei... Sei que o sr. morgado da Gésteira me entrega immediatamente esse
papel... e o sr. commendador esse tambem!


SCENA XIII


OS DITOS, BOCAGE _e_ GONÇALO MENDO, (_apparecendo ao F. e detendo-se a
observar_)


MORGADO

Ha de perdoar, prima. Este papel foi-me confiado.


D. MARIA JOANNA (_como acima_)

De que modo correspondeu á confiança?--Esse papel é o allivio d'uma
saudade, a consolação de uma familia, a restituição d'um patrimonio...
Esse papel é a consciencia e o dever. Tem direito de o conservar nas
suas mãos?


COMMENDADOR (_de parte ao morgado_)

Não ceda. Se fica ella com a prova, fica o morgado sem o casamento!


D. MARIA JOANNA (_sem os perder de vista_)

Sr. commendador, não se envileça mais... nem faça envilecer mais o sr.
morgado! A cegueira de um homem, que já não vive, privou sua propria
filha do nome e dos bens que lhe pertenciam... O temor da hora extrema
corrigiu essa injustiça... (_crescendo em indignação_) Sobre este erro,
que é para chorar, sobre este remorso, que devia ser sagrado, ajusta-se
um pacto infame... (_Movimento dos dois_.) Infame, repito!... Um
mercadeja a honra, outro a consciencia!... Um sacrifica a natureza,
outro o decóro!... Isso tudo que é senão valor para traficar, fazenda
para vender?... Que importa a filha desherdada? Que importa a mulher
offendida? A mulher ha-de calar-se e consentir. É o seu interesse...
Pensaram isso?... Pensaram, e nem lhes passou pelo rosto o pejo de o
pensarem! É o mal das indoles corrompidas não admittirem sequer a
existencia de corações sãos e inteiros, para quem a satisfação do dever
seja a primeira riqueza! Fizeram-me o ultrage de me julgar por si. Não o
podiam imaginar maior!--Sr. morgado, esse papel!... Sr. commendador,
esse papel!


MORGADO

Se outra pessoa que não fosse a prima se atrevesse a dizer-me
similhantes coisas!...

(_Bocage quer adiantar se; Gonçalo detem-n'o_.)


COMMENDADOR

Estes papeis pertencem-n'os!


D. MARIA JOANNA (_mais exaltada_)

É a minha tia que pertencem. Sou eu que lh'os quero entregar!... Sou eu
que devo entregar-lh'os!... Não me obriguem a...


GONÇALO (_adiantando-se e interpondo-se com respeitosa serenidade_)

Perdôe, sr.^a D. Maria Joanna Galvão... Uma senhora da sua qualidade não
póde entender-se com estes senhores.


BOCAGE (_com ironia mal dissimulada_)

Estes senhores vão pôr já nas suas mãos os papeis que lhes não
pertencem.


GONÇALO (_com terrivel frieza, crescendo contra o morgado, que recua na
sua presença_)

O sr. morgado não ha-de querer desattender sua prima!--O papel?


BOCAGE (_do mesmo modo ao commendador_)

O sr. commendador de certo não falta ao respeito a uma dama.--O papel?

(_O Morgado e o Commendador, tranzidos e suffocados, entregam os papeis
aos homens que teem diante_.)


GONÇALO (_entregando reverentemente o papel a D. Maria Joanna_)

Aqui está.


BOCAGE (_idem_)

Aqui está.


SCENA XIV


OS DITOS _e_ D. FELICIA, _entrando do F. pelo braço de_ MANUEL SIMÕES,
_que vem sem chapeu_


MANUEL SIMÕES

Isto é coisa que se creia! Obrigar-me a sair assim pela rua fóra, eu, um
compadre dos dois marquezes!


D. FELICIA

Queria que entrasse pelos armazens, ou désse o braço ao escudeiro? Viu-o
na loja... chamei-o para me acompanhar. Vinha com o meu hysterico, e já
não podia...


D. MARIA JOANNA (_correndo a ella e atirando-se-lhe ao pescoço_)

Minha tia! minha tia! Mal sabe...


D. FELICIA

Credo, sobrinha! Olhe que me desmancha o penteado. Isso são modos de uma
senhora?--A afilhada não está na sua companhia?


MANUEL SIMÕES

Está lá dentro com a mana Monica.


D. MARIA JOANNA (_alvoroçada_)

A sua... a minha... (_dando-lhe o braço do outro lado e levando-a
comsigo_.) Venha, venha, que a espera uma grande alegria.


D. FELICIA (_toda turbada_)

Que dia de juizo é este!--Não me largue o braço que não estou boa, sr.
Manuel Simões.

(_Saem pela porta do 2.^o plano da D._--_D. Maria Joanna puxando por D.
Felicia, D. Felicia puxando por Manuel Simões_.)


SCENA XV


BOCAGE, GONÇALO, COMMENDADOR _e_ MORGADO

(_Pausa em que os quatro se medem reciprocamente_.)


GONÇALO (_rindo, para Bocage_)

Conhece alguma coisa mais horrenda do que o sr. morgado quando se faz
amarello?


BOCAGE

Conheço: é o sr. commendador quando se faz verde.


MORGADO

Oh! que se eu me não contivesse... Mas contenho-me.


COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)

Motejos sempre, sr. Bocage! Plinio, o moço, celebra como coisa de muito
apreço a graça das palavras!


BOCAGE (_a Gonçalo_)

Está mais verde ainda... Foi a peçonha que se lhe derramou!


MORGADO

Oh! que se eu me não contivesse!...


GONÇALO

Já disse isso!


BOCAGE

Que lhe parece, sr. Gonçalo Mendo! Acabamos com esta raça damninha?
(_indo á janella_.) A altura é soffrivel. Dêmos um exemplo.--Deitemos
_isto_ á rua. (_indica os dois_.) Limpamos a cidade.

(_Morgado recua aterrado_.)


COMMENDADOR (_sorrindo mais_)

Tem graça o sr. Bocage, tem muita graça!


GONÇALO (_fitando o commendador_)

É a praga de todos os tempos!... Deixe... Espera-os a publica justiça,
que hade chegar... Em gente d'essa não põem mão homens de bem. As
viboras esmagam-se com o pé! (_Indicando-lhes a porta, com um gesto a
que os dois logo obedecem_.) Temos que fallar com o dono da casa!

(_Cae o pano_)


FIM DO TERCEIRO ACTO



ACTO IV


Em casa da morgada D. Felicia, ás Portas da Cruz.--Sala de visitas dando
para outra.--Ao F. a porta que abre sobre esta.--Á E. a porta da
ante-sala, fechada com reposteiro de pano azul, orlado de amarello, com
as armas da casa ao meio.--Á D. duas portas. Para o F., á E. da porta de
communicação com a outra sala, um bufete com tinteiro, etc.--_Trumeaux_,
cadeiras o canapés; a mobilia branca e dourada de meias canas.


SCENA I


(_Ao levantar do panno, um grupo de homens á porta do F. como vendo e
admirando o que se passa na outra sala.--Ouve-se n'esta uma rebeca
terminando o minuete da côrte.--Apenas acaba, muitas palmas em que toma
parte o grupo da porta. Logo depois entram os personagens da scena
seguinte, e a sala toma o aspecto de uma reunião ou assembléa do
tempo.--As damas vêem successivamente sentar-se na ordem adiante
designada.--Os homens ficam pela maior parte em pé diversamente
grupados_.)


SCENA II


D. FELICIA _pelo braço do_ COMMENDADOR; _successivamente_ D. MARIA
JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MORGADO, GONÇALO MENDO, DAMAS _e_
CAVALHEIROS CONVIDADOS


D. FELICIA (_para fóra_)

Não o faz melhor o proprio Dupré!... Admiravel!... Divino!... Uma
suspensão!... (_ao commendador_.) Ninguem dança o minuete da côrte como
o sr. Thomaz Xavier... Uma gravidade... um garbo!... Viu, aquelle
rasgado das cortezias?


COMMENDADOR

E a sr.^a D. Angelica?... Uma magestade... um donaire!


D. FELICIA.

É o par mais completo!... (_procurando com os olhos em redor_.)
Maria?... A minha filha?...


MARIA GERTRUDES

Estou aqui, minha mãe!


D. FELICIA (_sentando-se_)

Isso... Bem ao pé de mim, filha. (_ao commendador_) Não repare... Não me
canço de repetir este nome de filha... Tinha-o quasi desaprendido!...
Ainda o não creio... Ainda me parece tudo um sonho... Foi milagre, sr.
commendador, não foi?


COMMENDADOR

Com razão symbolisaram os doutos e discretos o maternal affecto na ave
chamada pelicano, figurando-a o dar-se a morte para dar vida aos filhos.
(_continúa como conversando_.)


GONÇALO (_dando o braço a D. Maria Joanna_)

Se sua tia soubesse com quem desafoga aquelles enlevos!


D. MARIA JOANNA

E para que o ha de saber? Mais lhe vale ignorar sempre similhantes
vilanias. (_sentando-se_.) Foi meu cumplice no cumprimento do dever.
Seja-o no segredo d'essas iniquidades.--É dever tambem.


GONÇALO

A que não me obrigará com a perspectiva de tal
cumplicidade?--Cumplice!... Mediu bem a palavra?


D. MARIA JOANNA (_graciosamente_)

Medi. (_continuam conversando_.)

(_Entra Francisco, como procurando alguem. Vê D. Maria Gertrudes, e vae
tristemente encostar-se ao trumeau fronteiro_.)


SCENA III


OS DITOS _e_ FRANCISCO


D. FELICIA (_beijando D. Maria_)

A minha filha!... Bem parecia que me adivinhava o coração!... (_vendo
Francisco_.) Sr. dr. Francisco Pedro, seu pae está na roda do
_isque_?... Estas modas novas de Inglaterra fazem os homens bem pouco
sociaveis!


FRANCISCO (_com melancolica resignação_)

Não, minha senhora... Não é homem de modas, meu pae.--Creio que o vi ao
pé do padre procurador de S. Vicente.


D. FELICIA

Ai! se elle se fica a ouvir as historias que o sr. D. frei Caetano conta
ás meninas, não sae de lá tão depressa... (_abanando-se_.) Porque não
nos tem apparecido, sr. morgado da Gesteira?

(_Acham-se todos dispostos como segue: D. Felicia n'um canapé á E.,
tendo ao lado D. Maria Gertrudes em cadeira.--N'outro canapé, defronte,
D. Maria Joanna, e Gonçalo Mendo proximo, em pé.--O Commendador, que
passou á extremidade D., sentado conversando com uma dama. Junto d'este
o morgado em pé.--Do mesmo lado, encostado ao trumeau, Francisco Pedro
extatico para D. Maria Gertrudes, que não ousa levantar os olhos para
elle_.)


MORGADO

Não tenho tido mãos a medir, sr.^a D. Felicia, não tenho tido mãos a
medir... Fui passar quatro dias ao pé da Arrabida... Não me deixava um
amigo, homem poderoso, que tenho para aquelles sitios... Tudo por causa
d'uma caçada de javardos... Sem mim não se podia fazer... Fui eu que
dispuz os emprazadores. Fui eu que dirigi os couteiros. Fui eu que fiz
chapear os cavallos por causa dos estrépes, e metter-lhes as çapatilhas
e peitoraes de matto como é indispensavel. Fui eu que determinei a
_calcada_... Finalmente, bateram-se duas moitas, e trouxemos nem menos
de seis rezes grandes, uma cerva, dois vareiros e trez javardos... Só eu
á minha parte, a tiro e á faca, matei sete.


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Trouxeram seis, e matou sete!


MORGADO

É verdade. Perdeu-se um bique enorme... Sumiu-se no brejo que não foi
possivel achal-o.


COMMENDADOR

Fez tudo o morgado. E os outros caçadores?


MORGADO (_ao commendador_)

Admiraram. (_a D. Felicia_) Antes de hontem passei a tarde n'uma
academia de espada... (_ao commendador_) em casa de mestre Estevão da
rua das Hortas... (_á companhia_) Ia lá um genovez de quem se diziam
maravilhas. E com effeito é homem desembaraçado na arte. Tirou a melhor
de quantos contenderam. Eu estava alli a vêr, e não queria assim sem
mais nem menos entrar em assalto com um estrangeiro, que não sabe a
gente quem é... Mas os amigos, que me tinham levado alli...
provavelmente já de proposito... começam a dizer-me: «Sr. morgado, isto
é uma vergonha para o reino!... Sr. morgado, só v. s.^a póde
desaffrontar a nação!... Sr. morgado, isto são pontos d'honra!...»
Atacaram-me pelo meu fraco... Não pude resistir... (_fazendo menção de
despir_) Largo o josésinho... pego na espada... colloco-me no recto...
Ao terceiro passe, o genovez tira-me de quarta a fundo... Paro de forte
contra forte!... Faço um prendimento rapido... Estava desarmado o homem!
(_Gonçalo sorri_.) Não é por me gabar: confessou elle mesmo que nunca
vira pulso tão rijo, nem uma agilidade assim!


GONÇALO (_com obsequiosidade ironica_)

Estava em boas mãos... a honra nacional!


MORGADO (_seccamente_)

Favores! (_continuando_.) Hontem fui a uma corrida de pombos a Carnide.
(_negligentemente_) Não enfiei senão cinco. Deram-me para correr um
cavallo quasi serril... E era á gineta, que se fosse á brida!... Hoje
estava convidado para jantar em casa d'um desembargador da Casa da
Supplicação, meu amigo de tu. Chegou-lhe um cosinheiro de França, que
faz na perfeição a sopa de natas e as tortas de espargos.--O meu amigo,
sabendo como sou entendedor, fazia empenho no meu voto.--É tambem tarde
de opera na Rua dos Condes. Representam uma coisa italiana que se
chama... que se chama...


COMMENDADOR

_Il Mercato di Malmantile_... Uma opera nova.


MORGADO

Creio que sim. A estas primeiras representações nunca falto.


D. FELICIA

E não foi? Um peralta de quarto voto, como o sr. morgado!


MORGADO

Não fui... só para não faltar aqui logo no principio, e vir aos pés da
sr.^a morgada!


D. FELICIA

Já vejo que me queixei sem razão. Uma pessoa como o sr. morgado nunca é
senhora de si. (_ao commendador_.) E que tal é a opera?


COMMENDADOR

Não são para mim similhantes futilidades. Em coisas de theatro só acho
sabor aos gregos e romanos.--Sabia o titulo da opera nova, porque o vi
na _Gazeta_ de terça feira. Aqui a trago eu. (_tira do bolso uma folha
impressa, em papel pardo, em quarto pequeno_.)


D. MARIA JOANNA

A opera nova?


COMMENDADOR

Não, minha senhora... a _Gazeta_. Já se sabe a razão por que o eleitor
de Saxonia toma parte tão activa na liga germanica. Eu prophetisei-o
sempre!


D. FELICIA

Não gosta do nosso theatro? Não tem razão. Queria que visse aquella peça
intitulada... _As lagrimas da bellesa são as armas que mais vencem_...
que se representou o anno passado no Bairro Alto... Faz chorar as
pedras... E já não é o que era, aquella casa. Viu, sobrinha?


D. MARIA JOANNA (_que conversava com Gonçalo_)

Não vi, minha tia.


D. FELICIA

Em França tambem ha theatros e peças bonitas? Se hade haver! Tem
gracioso em todas, como cá? E magicas?


D. MARIA JOANNA

Ha de tudo, e com abundancia.--Para mim nunca achei auctor que me
deleitasse como um chamado Molière. Não é dos modernos, nem está agora
em voga; mas escreveu comedias, que ainda não li outras de egual
verdade... duas sobre tudo... o _Tartufo_... Não conhece o _Tartufo_ sr.
commendador?


COMMENDADOR (_um pouco turbado_)

Não conheço senão os antigos... Terencio, Plauto, Aristóphanes...


D. MARIA JOANNA

Que pena! Pois é excellente comedia o _Tartufo_... E acho tambem um
sainete particular ao _Importuno_... O sr. morgado da Gesteira devia dar
uns annos de folga á monteria, ou á esgrima, ou á gastronomia, e
aprender o francez... só para ler o _Importuno_!... Estou que havia de
gostar.


(D. FELICIA _que a ouvia admirada_)

Vês, filha, que de coisas se sabem lá por fóra?


MORGADO (_a D. Maria Joanna_)

Os homens da minha condição não perdem o seu tempo com...


D. MARIA JOANNA (_atalhando ironicamente_)

Com um insignificante como Molière. Acho-lhe razão.


D. FELICIA

Em operas, vi eu já o que se póde ver. Quem assistiu em Queluz á opera
da Galathea!... Eram os annos do principe D. José, e estavam para se
ajustar as pazes com a Hespanha... Quem assistiu a uma coisa
d'aquellas...


D. MARIA JOANNA

Ah! esteve no theatro da côrte?


D. FELICIA (_hesitando um pouco_)

Estive... alguma coisa de longe... Não era onde devia estar... mas
estive... Alcancei entrada pelo sr. marquez de Marialva, que esse sabe
dar estimação a quem a merece... Estive... Por signal fui achar entre as
açafatas a mulher d'aquelle da alfandega... que se não sabe d'onde lhe
veiu o dom... Não tem senão um criado d'almofada... e quando lhe vão
visitas, chama pelo nome e sobrenome o criado de porta abaixo, que não
ha outro na casa, para figurar de escudeiro... Estava lá, estava alli,
ella, em quanto pessoas que sempre se trataram á lei da nobreza...
Açafata aquillo!... Não foi senão por empenho do Estacio, o bobo do
paço, algum dia que teve a fortuna de fazer rir Suas Magestades...
Aquillo açafata!... Ai!... Ai!... Maria, filha... a agua de Melissa...
depressa!...


D. MARIA JOANNA E D. MARIA GERTRUDES (_erguendo-se como para
socorrel-a_)

Tem alguma coisa?


D. FELICIA

Não é nada... o meu hysterico!...


D. MARIA JOANNA (_ameigando-a_)

Passou?... Passou... (_voltando a sentar-se_.) E a Galathea?


D. FELICIA

Isso sim!--A Galathéa, de Metastario, com musica do Antonio da Silva...
a orchestra dirigida pelo João Cordeiro... tudo professores da real
capella!... Pois os cantores!... Vindos de Italia de proposito... o
Romanini, o Violani... o Violani principalmente... Umas volatas... uns
gorgeios... uma... uma suspensão!... Não espero tornar a ouvir cantar
assim... E depois o baile d'Alberti!--E as pessoas reaes!... E toda
aquella côrte... Não se via senão sedas, veludos e oiro!... E que
tellas, que pinturas, que lustres!... Theatro aquelle! Opera aquillo!...
o mais...


SCENA IV


(_Entra um escudeiro velho e dirige-se respeitosamente a D. Felicia_.)


D. FELICIA

Que quer, João Rodrigues? (_a D. Maria Gertrudes_)--São já sete horas?


D. MARIA GERTRUDES (_distraida, e sem levantar os olhos_)

São.--Hão de ser.


D. FELICIA (_vivamente_)

Que tens?... Triste agora!


D. MARIA GERTRUDES (_constrangendo-se_)

Triste, eu?--Nunca estive tão alegre!...

(_O escudeiro diz algumas palavras em voz baixa a D. Felicia_.)


D. FELICIA (_ao escudeiro_)

Já sei, já sei. Ponha a banca e as urnas na outra sala. (_Levanta-se, e
todos_. _Aos circumstantes_.) São horas do nosso chá. (_indo a uma das
damas presentes_.) A menina Escolastica hade-nos cantar depois aquella
modinha brazileira com primeiras e segundas... tão linda, tão linda...
uma suspensão mesmo!... Aquella... Recorda-se?... (_achando_.) Ah! «_Os
Melindres da Sinhá_!» Canta, riquinha, sim?


D. MARIA JOANNA (_a Gonçalo_)

Se não estiver com a rouquidão do costume.


GONÇALO

Está decerto, em quanto não chegar o seu tudo.


D FELICIA (_a outra_)

A sr.^a D. Euphrasia das Neves faz a segunda e o sr. D. frei Caetano
acompanha-as ao cravo... (_a uma dama_.) Alli onde o vê, o meu cravo foi
o primeiro cravo de martellos que veiu a Lisboa... já depois da guerra
de 62, creio... Mandou-o vir Sua Alteza o sr. conde de Lippe, que era
grande tocador, e muito divertido, (_a Gonçalo Mendo_.) Lembra-se da
guerra de 62?...


GONÇALO

Uma guerra que não passou do principio?


D. FELICIA

Desculpe... Não póde lembrar-se... Tive um primo nos reaes
voluntarios... foi morrer á India. A proposito, o nosso cadete? O seu
amigo Bocage demora-se... Estou vendo que nos falta hoje!... Logo hoje
que não veiu outro, e estão cá tantas pessoas para o ouvir!...


GONÇALO

Não falta. (_em voz baixa_) Mas pelo amor de Deus, sr.^a morgada, não
lhe diga isso...


D. FELICIA

Isso o quê?


GONÇALO

Que lhe faz falta por não ter outro. É capaz de se declarar mudo... se
não fizer peior!


D. FELICIA

Sempre lhe digo que tem um tal genio, o cadetinho!


GONÇALO

Desculpe-o. Não é poeta como os outros.


D. FELICIA

Fazem-se sempre assim. Em ganhando fama!... (_como em confidencia ao
commendador, que veiu dar-lhe o braço_) É a novidade, que eu cá para mim
acho mais chiste ao padre Braz... e mesmo ao Caldas.


COMMENDADOR

Pois tem dúvida!--Chamarem áquillo poeta!...


D. FELICIA

Ai! nem tanto!... (_Saem_.)

(_Vão saindo todos_. _Fica em ultimo logar Gonçalo Mendo com D. Maria
Joanna pelo braço_.)


GONÇALO (_em quanto os outros saem_)

Que me diz ás nossas assembléas? Francamente, lembra-se com pena do seu
Paris?


D. MARIA JOANNA

Pensa que não há ridiculos tambem? Não tenho pena! Vaidades? Ólhe a
lucta de Marmontel e do abbade Arnaud por causa de Gluck e do Orlando.
Vicios? Ólhe o processo do cardeal de Rohan o anno passado, a prisão da
condessa de la Mothe, e as negras machinações de Cagliostro!... Se visse
o que de lá me escrevem!


GONÇALO

Devéras; não lhe dão saudades?


D. MARIA JOANNA (_gentilmente_)

Cada vez menos.


GONÇALO (_transportado_)

Oh!... Quando poderei eu ter esperanças?


D. MARIA JOANNA (_como acima_)

Não começou já?


SCENA V


OS DITOS, BOCAGE (_da E._)


GONÇALO (_vendo Bocage_)

Ah!... Ahi chega o nosso poeta. Permitte-me que lhe falle em quanto vão
ao seu chá? (_conduzindo-a á porta da outra sala_.)


D. MARIA JOANNA

Permitto que vá da minha parte agradecer-lhe.


SCENA VI


GONÇALO _e_ BOCAGE


BOCAGE

Pelo que vejo parece-me que lhe posso dar os parabens.--Pois dou, e de
todo o coração. É mais do que formosa a sr.^a D. Maria Joanna... é mais
do que discreta... é uma alma grande, d'essas que é fortuna encontrar.
Como ella se despojou facilmente e alegremente da maior parte dos bens,
que desde pequena tinha como seus!


GONÇALO

É o menos, isso. Era dever: bastava. Tem raras qualidades em tudo... por
isso a adorava já de longe...


BOCAGE

Ah! confessa?


GONÇALO

Posso confessal-o... agora.


BOCAGE

Porque a adora... de perto. Foram então a proposito os parabens!


GONÇALO

Os parabens, ainda não.


BOCAGE

Mas não podem tardar.


GONÇALO

Mais caso de parabens é o seu. A transformação da menina da casa
engrandece o objecto das suas predilecções. Em vez da humilde afilhada,
pobre e dependente, acha uma boa familia e uma rica herdeira!


BOCAGE (_despedidamente_)

Por causa d'isso estive para não vir!


GONÇALO

Porquê? Não lhe tem já amor? Bem me dizia então...


BOCAGE

Dizia mal... O que lhe dizia não se entendia com esta!... Não lhe tenho
já amor? Tenho. E bem devéras, e bem de dentro... De certo o primeiro da
minha vida... e... quem sabe?... talvez o ultimo! Mas o que provocou
este amor desappareceu. Foi-se o que lh'o fazia grato, o que m'o fazia
generoso. Foi-se-lhe com a condição, foi-se-lhe com a orphandade.


GONÇALO

Se tem esse modo de encarar as coisas...


BOCAGE

Poucos me hão-de entender. Poucos me entendem com effeito. Mas
entende-me o sr. Gonçalo Mendo... Sei já que entende.--Rica! Rica? E eu
que lhe levo em troca?... Dirão que lhe procuro a riqueza!... Dirão que
fiz do affecto um pretexto, do carinho um degrau, da paixão uma
usura!... «A poesia áquelle serviu», repetirá contente por ahi a turba
vilan dos malevolos e dos zoilos... Arrendou-a por contrato... poz a
lyra a juros... vende mais caro o coração que as obras.»--Dirão isto,
dirão... e Deus sabe o que mais... E o grande numero crê... e não poucos
applaudem...--Vender-me, eu!... Eu, Bocage!... Vender o coração! vender
a musa!... esta musa indomita e indomavel!... Oh! basta que o suspeitem!


GONÇALO (_calorosamente_)

Pois a taes considerações sacrifica a felicidade? Pois...


BOCAGE

A felicidade?... Seria... Aqui presinto que era... Mas o orgulho a
sublevar-se-me de continuo!--Resistiria a felicidade a similhante
procella?--Podia a donzellinha modesta ser a estrella pollar do poeta
sem graus nem haveres... Podia em quanto era o infortunio... Deixou de
ser a constellação melancholica das noites saudosas; fez-se o astro
d'oiro dos dias refulgentes!... Era... era a felicidade no amor casto,
no puro enlevo... Veiu a fatalidade, e levantou em seu logar o idolo das
multidões.--Esse não póde ser o idolo de Bocage!


GONÇALO

Tudo exagera... tudo leva ao extremo. É de condição distincta. Casando
com a herdeira, póde desafogadamente cultivar o talento, aproveitar o
estro, e servir a patria... O que recebe em fortuna, paga-o em gloria!


BOCAGE

Bocage casar! Casar eu!... Curvar o collo a esse jugo!... roxear os
pulsos com esses grilhões! Sujeitar-me a esse perenne captiveiro!...
Eu!... Que mal me conhece!--É pouco para mim o ar e o espaço... Toda a
idéa de sujeição me opprime como as grades de um carcere... Alexandre de
Macedonia, no auge do poder, visitou em Corintho o philosopho que da
miseria extrema fazia officio e gala.--«Pede sem receio. Que queres de
mim?» disse o grande conquistador.--«Que te affastes d'ahi, para me não
tirar o sol,» respondeu o festivo indigente. Tenho alguma coisa do
espirito d'esse philosopho... Acima de todas as venturas ponho uma... a
verdadeira, a maior, a superior, a unica... a minha independencia!


GONÇALO (_severamente_)

Que quer então fazer? Desvalida ou abastada, a menina da Torre da Palma
é uma flor de candura.--Quer-lhe inutilisar sem fito os breves annos
juvenis?... Quer-lhe immolar a mocidade?... A quê?... Ainda ha pouco
estava ahi um pobre moço, penando por ella que fazia dó... penando uma
paixão sincera e sem egoismo. Sabe quaes são os intentos d'esse mancebo?
Deixar o lar e a patria... só para não vêl-a indifferente!...


BOCAGE (_arrebatado_)

Quem é?


GONÇALO

Conhece-o já... É o filho de Manuel Simões, que se doutorou
ultimamente.--É um rapaz honrado... é rico tambem... e começa uma
carreira estimada. Podia fazel-a feliz... e fazia de certo. Com que
direito a priva se não póde compensal-a? Julgaria elle destino invejavel
o que o sr. Bocage reputa insupportavel prisão!


BOCAGE (_pensativo_)

E ella?


GONÇALO

Ella, a pobre innocente, sabe lá!--Diga-me, o que quer fazer?


BOCAGE (_pensativo_)

Não sei. (_reparando para dentro_) É o morgado da Gesteira, e o
commendador de Monsarás, que vejo na outra sala?


GONÇALO

São.


BOCAGE

Aqui? ambos!


GONÇALO

Ambos.--A sr.^a D. Maria Joanna deseja formalmente que se não falle do
que se passou com elles em casa do mercador. E tem rasão. Impõe-lhe este
dever a delicadeza. Não podemos publicar a parte vergonhosa, que tiveram
no caso, sem dar occasião a divulgarem elles a fraqueza do
capitão-mór.--Isso quer evitar a sr.^a D. Maria Joanna por attenção á
memoria de seu tio. Calando nós, calam-se forçosamente os dois. Que
estamos todos na resolução de nos calar, já o Commendador percebeu, e
d'ahi tiram ambos a audacia.--Comprehende agora o nobre silencio da
sr.^a D. Maria Joanna, e a presença do Commendador e do Morgado?


BOCAGE

Comprehendo o silencio: não comprehendo a impudencia. Esses homens não
teem sentimentos!


GONÇALO

Se tivessem sentimentos não faziam o que fazem. Eil-os ahi.


BOCAGE

Vamo-n'os então, nós. Custa-me a conter.


SCENA VII


OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO

(_Gonçalo e Bocage vão a sair_. _Os dois veem entrando_.
_Encontram-se_.)


COMMENDADOR (_indo prazenteiramente a Bocage, e offerecendo-lhe a mão_)

Oh! sr. Bocage! Como vae?


BOCAGE (_sem lhe dar a mão, passando_)

Vou para diante! (_Sae com Gonçalo para a outra sala_.)


SCENA VIII


COMMENDADOR _e o_ MORGADO


COMMENDADOR (_tirando a caixa e encolhendo os hombros_)

Mocidade imprudente!


MORGADO

Vê, commendador? Não temesse eu que fallassem, e saberiam...


COMMENDADOR

Não fallam. Se o podessem fazer, já o tinham feito.


MORGADO

O que lhe invejo é o socego.


COMMENDADOR

Claudiano diz: «O espirito do sabio é similhante ao cume do Olympo; fica
tão superior aos ventos e ás nuvens, que nunca as tempestades o
inquietam.»


MORGADO

Mas eu que não sou sabio... nem tenho pena... aqui estou agora...
(_olhando em redor_) Ninguem nos ouve... Aqui estou agora sem dinheiro,
sem casamento, e sem esperanças.


COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)

Sem esperanças!... Porquê?--Sua prima tem ainda a casa de Val-moreo.
Cinco mil cruzados de renda, creio que me disse... Não é o mesmo,
seguramente... um terço apenas do que era... mas nas suas circumstancias
actuaes... Pela minha parte sou justo. (_olhando em redor, em voz
baixa_) A escriptura de divida, não será já de trinta, será de dez mil
cruzados. Dispenso a sege.


MORGADO

Pois teima ainda! Não se desenganou com o desastre do outro dia?


COMMENDADOR

O outro dia... veja o que tirou das suas duvidas e espalhafatos!
Quintilliano tem por vergonha desesperar do possivel. Eu nunca me
desengano em quanto vejo remedio.


MORGADO

Remedio! Mas que remedio? Não vê como o tenente anda todo derretido para
minha prima? Não vê como ella o attende? E agora, de mais a mais, que
está senhor de uma boa casa.


COMMENDADOR

Extranho-o. Pois é possivel imaginar que póde alguem competir com o
Morgado?


MORGADO

Não digo isso...


COMMENDADOR

O tenente fica por minha conta. Tenho que lhe pagar uma divida... e ao
Bocage tambem. Nós sabemos esperar... e nada esquecemos. Não ha inimigo
peior do que o inimigo que espera e não se espera. _Inexpectatus
hostis_, lhe chama Ovidio, Sulmonense.--Sua prima está já casada,
porventura?


MORGADO

Mas aquelle ajuste que ella ouviu! a impressão que lhe ficou!


COMMENDADOR

Empregue tambem pela sua parte algum esforço. Não sejam tudo vozes
vãs.--Se estivesse no seu logar, d'isso mesmo faria um merecimento mais.
Attribua-me toda a culpa. Indigne-se bem contra mim: não tem duvida.
Diga-lhe que foi a desesperação, o amor, o desejo de alcançar a sua mão.
As damas raramente deixam de se convencer d'isso. Affirme-lhe que vive
no meio de um incendio... como a salamandra... Ainda que Gesnéro
assevera que a cinza de salamandra é remedio soberano, e d'ahi se deva
concluir que mal poderá viver no fogo o que se reduz a cinzas... Em fim
pinte-lhe ao vivo as chammas em que se abraza... (_enfastiado_) Isso é
com o Morgado, não é commigo.--Convem-lhe ou não lhe convem ainda o
casamento?


MORGADO

Se convem! O que eu não sei é como se ha de agora estorvar o tenente!


COMMENDADOR

Sei eu (_olhando para dentro_). Acabou o chá. Ahi vem todos outra vez.
(_Vae ao F. dar o braço a D. Felicia para a conduzir para o seu logar_)


SCENA IX


OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, BOCAGE,
GONÇALO, FRANCISCO _e_ CONVIDADOS


D. FELICIA

Que pena ter enrouquecido a menina Escholastica! Tambem, havia de ir
logo sentar-se ao pé do corredor... Não foi senão o ar da porta com o
calor do chá... (_á Dama_) Quer a sua pelicia, minha joia? (_gesto
negativo_) Tomára que ouvissem!... Canta as modinhas brazileiras como
ninguem... Tem uma graça n'aquelles tons menores!... É mesmo...


COMMENDADOR (_atalhando_)

Uma suspensão.--E é, na verdade, é.


GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)

Não lhe dizia eu? Faltou-lhe o seu _tudo_.


D. MARIA JOANNA

Faltando-lhe... tudo, como havia de ter voz!


GONÇALO

São os namorados mais extremosos! Ella, sangrou-se ha tempos. Elle, foi
logo procurar o cirurgião, e deu-lhe cinco moedas pela lanceta!


D. FELICIA

Felizmente veio o sr. Bocage. Não imagina como estamos impacientes por
ouvil-o. (_Sentam-se_. _Tomam todos os seus anteriores logares_.
_Unicamente D. Maria Gertrudes passa á E. de sua mãe_. _Bocage fica em
pé junto a D. Felicia na extremidade E. e o Commendador em pé ao lado do
Morgado, defronte_.) Aqui é melhor, não? O padre procurador não acaba
com as suas historias!...


BOCAGE

Pedi já desculpa, sr.^a morgada. Fui passar o dia ao Lumiar. Na volta
demorei-me mais do que desejava no Campo Pequeno. Ha toiros ámanhã.


GONÇALO

No Campo Pequeno? Tinham-me dado idéas. É cavalleiro o Manuel dos
Santos, não?


BOCAGE

É. E o Romão a pé.


MORGADO (_intromettendo-se_)

Tem disposições o Manuel dos Santos. Chama bem á estribeira; mas não tem
pulso para o rojão, e á espada é fraco. O Romão com as farpas não vae
mal. Se um dia me resolver...


BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_)

A sr.^a D. Maria Joanna vae?


D. MARIA JOANNA (_que estava entretida_)

Como, sr. Bocage? (_percebendo_) Não vou. Confesso que não é dos
divertimentos mais do meu gosto.


D. FELICIA

Ouvi que se não correm touros em França. Naturalmente hão de dizer mal
de nós por isso.


D. MARIA JOANNA

Nem todos. Ao conde de Saint-Germain, que os tinha visto em Hespanha no
tempo de Filippe V, ouvi eu que era apaixonadissimo.


BOCAGE

No tempo de Filippe V! Quantos annos tem hoje esse conde de
Saint-Germain, e quantos tinha quando esteve em Hespanha?


D. MARIA JOANNA

Esteve em Hespanha e percorreu o mundo. O conde de Saint-Germain é um
viajante como não ha outro. Beijou a mão a Francisco I na vespera da
batalha de Pavia; conheceu El-Rei D. Sebastião quando se preparava a
expedição d'Africa; e teve em Cuba amisade com Fernando Cortez antes de
este ir conquistar o Mexico.


BOCAGE (_rindo_)

Parece tão convencida! Ninguem dirá que está gracejando.


D. MARIA JOANNA

Mas não estou.


BOCAGE (_rindo_)

Ha então em França Mathusalens ainda? Julgava perdida a especie.


D. MARIA JOANNA

Um Mathusalem! Na apparencia não. Quem o vir dirá que tem a edade do sr.
Morgado, pouco mais ou menos... (_maliciosa_) antes para menos que para
mais.


MORGADO

E conheceu El-Rei D. Sebastião! Essa agora!...


D. MARIA JOANNA

Diz elle. Pergunte ao sr. Commendador, que o viu na embaixada, e lhe
fallou nas salas do meu contra-parente D. Vicente de Sousa. É verdade,
sr. Commendador?


COMMENDADOR

É verdade. E viu-o toda a gente em Paris. O conde affirma que possue o
elixir da immortalidade. Só assim.--O grande Raymundo Lullio refere...


BOCAGE (_cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna_)

E os parisienses acreditam isso?


D. MARIA JOANNA

Acreditam.


BOCAGE

Fallem-me então na credulidade portugueza.


D. MARIA JOANNA

Duvidaram ao principio. Agora vão-lh'o negar! O conde sabia os segredos
de todos... Não admira, tendo vivido e viajado tanto!... Está lá, ainda
creio... Se acaso se lembra de dar uma volta por Lisboa... Ha de ser
incommodo, um homem que está senhor dos segredos de toda a gente... Não
lhe parece, sr. Morgado?


MORGADO (_balbuciante_)

Por mim...


D. FELICIA

Coisas de estrangeiros! Eu, se tal visse, tinha o meu hysterico, por
força. Nome da Benta Hora! Credo!


BOCAGE

E eu quizera encontral-o, para satisfazer uma curiosidade. Desejava
perguntar-lhe... visto que tanto andou e tanto sabe... se alguma vez,
nas suas longas peregrinações, encontrou figurão mais sem pejo... do que
dois sujeitos do meu conhecimento.


COMMENDADOR (_baixo ao Morgado_)

Estão apostados a molestal-o. Não succumba.


MORGADO (_idem_)

Vae vêr. Deixe... Deixe que vae vêr.


D. FELICIA (_a Bocage_)

Queria encontral-o? Não diga isso.--N'estas conversas se vae o tempo, e
nada se faz.--Sr. Bocage... Um improviso dos seus... Quem dá mote?... Dê
mote, sobrinha!


MORGADO

Versos a motes quem quer faz... Não tenho eu querido, senão... Versos a
motes!... Sempre ouvi dizer que era o _A B C_... e está claro que é
(_sem achar saída_), porque os versos com os motes e os motes com os
versos... ou para fallar mais claro, os versos sem os motes e os motes
sem os versos...


COMMENDADOR (_sugerindo-lhe indirectamente a idéa_)

O mote com effeito é uma sentença, que serve de assumpto, e põe a
caminho o engenho. O principal está feito. O mais é ajustar palavras e
combinar as rimas. Com algum exercicio não é difficil!


BOCAGE (_medindo-os admirado e retraido_)

Ah!


COMMENDADOR (_continuando_)

Mote querem alguns que venha do latim _motus_, que significa movimento.
E bem se póde ter que assim é, porque do mote em verdade nasce o impulso
que faz mover o estro...


MORGADO (_atalhando_)

É o que eu queria dizer. O mote vem a ser tudo... Mais por aqui, mais
por alli, é tudo o mote.--O mote é o assumpto; não havendo mote não ha
assumpto; e ahi é que está! (_satisfeito de si e com extrema
volubilidade_) Fazer versos sem assumpto não é para qualquer: tem de se
tirar tudo da cabeça, assim de repente, do pé para a mão, sem mais nem
mais. Tambem não sei porque se ha de pedir mote. Quando uma pessoa monta
a cavallo não precisa de mote para fazer os piafés, e as curvetas, e as
balotadas, e as garupadas; nem tão pouco se dá mote quando qualquer
mette mão á espada, e entra a executar batiduras, ligamentos,
juntamentos, cambiamentos, tentamentos, e esquivamentos. Eis ahi. Isto é
que eu queria... Chegar um homem, não esperar por mais, nem esfregar a
testa, nem pôr os olhos em alvo, bater as palmas e logo alli, zás...
como quem deita um foguete de sete respostas!...


BOCAGE (_atalhando e batendo as palmas_)

Lá vae!


COMMENDADOR (_sorrindo_)

Sem assumpto?


BOCAGE

Está ahi defronte, o assumpto.

Famosa geração de falladores
Consta que foi, Morgado, a origem tua,
Que nem todos os cães, ladrando á lua,
Tiveram que fazer com teus maiores:

Um a lingua ensinou dos palradores;
Outro, o motu continuo achou na sua;
Outro, além de encovar toda uma rua,
Açaimou n'uma junta a cem doutores:

Teu avô, santanario venerando,
Soube mais orações que mil beatas,
Com reza impertinente os ceus zangando:

Teu pae foi um trovão de pataratas:
Teu tio, o bacharel, morreu fallando;
Tu, fallando sem tom, não morres--*matas*!


TODOS (_applaudindo_)

Bravo! bravo!


MORGADO (_engasgado de raiva_)

Sr. Bocage!... Sr. Bocage!...


BOCAGE (_fitando-o serenamente_)

Que é?...


COMMENDADOR (_com o seu sorriso, ao Morgado_)

Agasta-se? De quê? Não tem rasão... São facecias innocentes, e muito
graciosas na verdade!... (_Gonçalo passa disfarçadamente para o lado de
Bocage_) Mais picantes ainda as fez Juvenal!... Se fosse verdadeiramente
improviso, era deveras um primor... E não digo que não seja... Mas é
facil trazer estas coisas estudadas já... (_Bocage estremece de
indignação ante a contradictoria perfidia_.--_Gonçalo que lhe está ao pé
detem-o_.)


GONÇALO (_baixo_)

Querem fazel-o sair de si. Com algum fito é. Modere-se.


COMMENDADOR (_observando_)

Depois, os conceitos naturalmente andam preparados com antecedencia.


BOCAGE (_sem poder ter-se, batendo as palmas_)

Lá vae!--Sr. Commendador, permitta-me descrever-lhe um certo
individuo... do nosso conhecimento... á moda de Juvenal!

Do Sena, que foi ver por seu desdouro,
Um pedante voltou, de escassa fama,
Que os livros cata, os cartapacios ama,
E n'elles julga os annos um thesouro:

Traz laivos de francez, arranha o mouro,
Sabe que Deus em turco _Allah_ se chama,
Que no grego alphabeto o _G_ é _gamma_,
Que _taurus_ em latim quer dizer touro:

Tem de velhos canhenhos chocho extracto;
Abocanha talentos que não gosa;
Se rosna, prega unhadas como um gato:

Achareis na pintura rigorosa
Um fofo sabichão, posto em retrato,
Que é nada em verso, quasi nada é prosa!

(_Impressão de assombramento_. _Ninguem ousa applaudir_. _Segredam todos
mutuamente_.)


COMMENDADOR (_parecendo satisfeitissimo_)

Muito bem, muito bem, sr. Bocage. Esse sim. A isso é que se chama
responder _apposité_. (_O escudeiro, vem apressadamente a D. Felicia, e
falla-lhe em voz baixa_) Retrato lhe chama, não? Vê-se que é: ha de
mostrar-me o original. Mas cuidado, não o saiba elle!...


D. FELICIA (_ao escudeiro_)

Que me diz! (_erguendo-se alvoroçada_) Meus senhores, o sr. marquez de
Marialva está ahi. (_levantam-se todos_.)


SCENA IX


OS DITOS _e_ MANUEL SIMÕES


MANUEL SIMÕES (_alvoroçado_)

O meu compadre! Está ahi o meu compadre? (_a Francisco_.) Olha que é o
teu padrinho, Francisco.


D. FELICIA

Valha-me Deus! Sem estar nada prevenido... Mande abrir já o portão, João
Rodrigues. (_O escudeiro sae vivamente para a E._) Querem fazer-me o
favor de me acompanhar?...


MANUEL SIMÕES

Vamos esperal-o todos!


D. FELICIA

Vamos receber sua excellencia.

(_Saem todos_. _Fica só o morgado passeiando agitado, e o commendador
observando-o_.)


SCENA X


COMMENDADOR _e_ MORGADO


MORGADO (_depois de os ver sair_)

Ter a confiança de me tratar por tu!... D'esta vez faço uma fallada!...
Ambos... hão de ser ambos!... Fizeram bem em aproveitar a occasião de se
esgueirar.... Não podia já conter-me!... E agora...


COMMENDADOR (_tomando-lhe o braço_)

Deixe-se d'isso.


MORGADO (_forcejando para se desembaraçar, e mais agitado_)

Não me sustenha, commendador, não me sustenha!


COMMENDADOR (_largando-o_)

Aonde quer ir?


MORGADO

Aonde quero ir? Boa pergunta! Aonde quero ir!... (_forcejando como
antes_.) Não me sustenha... (_vendo que o não sustem, e hesitando_.)
Quê?... (_em grandes passos_.) Não me sustenha... Quero dizer,
sustenha-me, sustenha-me, senão vou fazer uma grande desgraça!...


COMMENDADOR

Accommode-se. Não ouviu quem vem ahi?


MORGADO (_estacando transido_.)

São elles?


COMMENDADOR

Não, homem. Não sabe que é o marquez?


MORGADO

Não são elles? (_recomeçando as bravatas_.) Podéra! Olhem se nos
apparecem agora! Olhe lá se voltam senão no meio de toda essa gente!...
Cobardes!


COMMENDADOR

Esteja quieto. Estamos aqui sós... e já nos conhecemos!


MORGADO

Então isto hade ficar assim?--Não é senão o tenente que mette a caminho
o Bocage para nos chasquear. Não o viu ha pouco ir ter com elle?--Isto
hade ficar assim!...


COMMENDADOR (_com o seu sorriso_)

Não lhe disse já que não... Andam a semear!... Deixe, que hão de
colher!... Ouve? O marquez subiu já. Vamos tambem. (_Dirigem-se á porta
da E._. _Entra o escudeiro, corre o reposteiro, e colloca-se á
humbreira_. _Os dois tomam tambem de uma e outra parte logar á
porta_.--_Entra o marquez, ao lado de D. Felicia, e seguido de toda a
companhia anterior_.)


SCENA XI


MARQUEZ, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MANUEL SIMÕES,
FRANCISCO, GONÇALO, BOCAGE, COMMENDADOR, MORGADO _e_ CONVIDADOS


MARQUEZ

Se soubesse que vinha incommodal-a, sr.^a morgada...


D. FELICIA

Incommodar-nos, v. ex.^a! Estava bem longe de esperar tamanha honra, e
por isso...


MARQUEZ

Cheguei ha pouco de Cintra, e achei em Belem uma carta de Martinho de
Mello, que me obrigou a vir logo aqui.--Passei por sua casa, Simões...
Disseram lá ao meu volantim, que tinha ido com seu filho de visita á
sr.^a morgada.--(_a D. Felicia_.) Vim assim mesmo, com as minhas
saragoças... Não esperava encontrar tão luzida companhia.--Como é caso
de pressa não queria perder a occasião.


MANUEL SIMÕES (_sem perceber_)

V. ex.^a dignou-se passar por minha casa... é negocio de pressa...


MARQUEZ

Um negocio com o meu afilhado... Onde está elle?


FRANCISCO (_apresentando-se respeitoso_)

Meu padrinho!


MARQUEZ (_em confidencia_)

Teu pae sempre o hade saber... e mais vale que seja agora, diante de
mim. (_alto_.) A nau de viagem sae para a semana. Já vês que se não póde
perder tempo.


MANUEL SIMÕES (_attonito_)

A nau de viagem... o Francisco!...


D. FELICIA.

O sr. marquez de pé! (_offerecendo-lhe o canapé_.) Sr. marquez...


MARQUEZ

Não me demoro... (_indicando a cadeira junto ao bufete_.) Prefiro
aquella cadeira. Está alli um tinteiro, e hade ser preciso... (_a
Francisco_.) Fui eu mesmo fallar a Martinho de Mello. Achei-o em boa
occasião. Serviu-me logo, sem objecções... que é raridade. Pediu-me só
que lhe mandasse o nome por escripto... Não sei como... as minhas
distracções do costume... passou-me de todo. Agora, á volta de Cintra,
recebo uma carta d'elle, e dentro o decreto já assignado, dizendo-me que
fôra expedido com o nome em branco para não causar atrazo, vista a
proximidade da partida... Venho remediar o esquecimento. (_Dirige-se á
cadeira indicada, e senta-se_. _Sentam-se as damas_.)


MANUEL SIMÕES

Mas, meu senhor... V. ex.^a foi fallar ao ministro da marinha? Por causa
de meu filho?... Traz-lhe um decreto!... Sou pae, sr. marquez... não se
hade estranhar... Um decreto de quê?


MARQUEZ

De guarda marinha para Gôa.


MANUEL SIMÕES (_atterrado_)

Guarda marinha!... Para Gôa!... quando eu pensava... quando esperava...
E pediu meu filho similhante coisa a v. ex.^a... pediu-lh'o sem me dizer
nada!


MARQUEZ

Ponderei-lhe isso mesmo... aconselhei-o... Deu-me razões que me
convenceram. Entendo que faz bem... As viagens são distracções
poderosas... são convenientes á mocidade... Voltará quando fôr tempo...
e espero que será breve... Se lhe não convier a vida do mar, dará
baixa... Agora é bem que vá.--Simões seu filho está formado, não se lhe
póde oppôr... Dê-lhe o seu consentimento. Peço-lhe que dê, e digo-lhe
que o deve dar... (_a Francisco_.) Aprompta-te quanto antes. Embarcas
para a semana.


D. MARIA GERTRUDES (_sem poder já, levando a mão ao coração_.)

Ai! Jesus!


D. FELICIA

Que tens... que tens, Maria?... (_vendo-a debulhada em lagrimas_.) Ai! a
minha filha... A agua de Melissa... a agua da Rainha d'Hungria!...
(_acodem todas as damas a soccorrel-a_.) Não repare v. ex.^a, sr.
marquez... é minha filha!


MARQUEZ (_erguendo-se_)

Sei... sei já... É coisa de cuidado?


D. MARIA JOANNA

Não é nada. Um pequeno espasmo. Passa já.


GONÇALO (_de parte a Bocage, indicando D. Maria Gertrudes_)

Vê?

(_Bocage contempla-a meditativo_.)


D. MARIA GERTRUDES (_com esforço_)

Não foi nada... Um affrontamento.


FELICIA

O melhor é recolheres-te ao teu quarto. Queres?


D. MARIA GERTRUDES (_vivamente_)

Não, não, minha mãe... Não é nada.

(_Retomam todos os seus logares_. _O marquez senta-se de novo_.)


MARQUEZ (_a Manuel Simões_)

Então, Manuel Simões, consente?


MANUEL SIMÕES

Que remedio... É desejo d'elle... e v. ex.^a approva.


MARQUEZ (_tirando o decreto, desdobrando-o sobre a meza, e tomando a
penna_.)

Vamos... é pôr o nome, e podemos dar os parabens ao novo guarda marinha.

(_Bocage passa lentamente por detraz de todos dirigindo-se ao bufete_.)


MANUEL SIMÕES (_tristemente, ao filho_)

Sempre cuidei que te acharia ao pé de mim... para me fechar os olhos.


FRANCISCO (_lançando-se-lhe commovido nos braços_)

Meu pae!


MARQUEZ (_acabando de ler o decreto_)

«Samora Correia, em 31 de janeiro de 1786. Com a rubrica de Sua
Magestade.»--Está em ordem. (_Sem levantar os olhos_.) O nome todo?


BOCAGE (_atraz do marquez_)

Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage!

(_Espanto nos circunstantes_.)


MARQUEZ (_erguendo attonito o rosto, e depondo a a penna_)

Quê?


BOCAGE (_mostrando Francisco nos braços do pae_)

Será elle que deva partir?


MARQUEZ

Mas sabe porque o meu afilhado quer embarcar?


BOCAGE

V. ex.^a deseja-o feliz?... Deseja... é o seu coração, e o seu costume.
Permitta-me que faça por um momento as suas vezes, e verá... (_indo ao
grupo do pae e do filho_.) Desculpe, sr. Manuel Simões. (_tomando
Francisco pela mão, em voz baixa_.) Não viu já que o ama? (_indo a D.
Maria Gertrudes, em voz baixa e rapida, indicando-lhe Francisco_.)
Quer-lhe como ninguem. (_alto a D. Felicia_.) Sr.^a morgada da Torre da
Palma, estou auctorisado a pedir a mão de sua filha para o sr. dr.
Francisco Pedro Simões. (_Attenção geral_.)


D. FELICIA (_assombrada_)

A mão de minha filha... Se não fosse o respeito do sr. marquez, tinha o
meu hystérico!... A mão de minha filha!... D'esse modo!... tão de
repente!... (_depois de breve pausa_) O sr. Manuel Simões é um homem
honrado; estimo-o; sou-lhe obrigada, não nego... mas... mas elle bem
sabe que a nossa jerarchia... (_O marquez ergue-se_. _Erguem-se todos_.)


MARQUEZ (_intervindo_)

Perdoe, sr.^a morgada... O meu afilhado segue uma profissão nobre...
Doutorou-se... poderá em breve alcançar algum despacho de Juiz de
fóra... Como seu padrinho tenho obrigação de lhe dar um presente de
noivado. (_baixo_) Fallei já á rainha, minha senhora, a respeito da
sr.^a D. Felicia.--O presente que destino ao meu afilhado é um alvará de
açafata para sua sogra.


D. FELICIA (_encantada_)

Ai! sr. marquez! Devéras? Filha, filha, a minha agua da rainha
d'Hungria!...


MANUEL SIMÕES (_baixo ao commendador em tom supplicante_)

Sr. commendador, posso dizer que sim ao casamento?


COMMENDADOR

Embarca o Bocage? (_Gesto affirmativo de Manuel Simões_) Póde.


MARQUEZ (_proseguindo a D. Felicia, mais baixo_)

Depois, Manuel Simões dá ao doutor quarenta mil cruzados. Excellente
occasião de restaurar a Torre da Palma, que o precisa. (_a Manuel
Simões_) Não dá quarenta mil cruzados a seu filho, Simões?


MANUEL SIMÕES (_no auge de alegria_)

Não, meu senhor. Dou sessenta.


MARQUEZ (_baixo a D. Felicia_)

Por causa de sua filha, queria o meu afilhado embarcar! (_indicando
Francisco e D. Maria Gertrudes_.) E veja... Terá coração para fazer dois
desgraçados? (_alto_.) A sr.^a morgada diz que sim.


FELICIA

Basta ser vontade do sr. marquez. (_comsigo_) Açafata do paço!


MARQUEZ (_que passou a Bocage, em jovial confidencia_)

Acertou, sr. Manuel Maria.


BOCAGE

Então ganhei o meu decreto.


MARQUEZ

Insiste?


BOCAGE

Espero só que v. ex.^a me faça a honra de escrever o meu nome.


MARQUEZ (_indo sentar-se ao bufete_)

Veja bem. Pensou?


BOCAGE

Pensei. Meu pae deixou-me a vocação livre. O mar é a minha vocação.
(_dolorosamente_) Se tivesse aqui um affecto, se podesse haver esperança
que me prendesse... Não tenho. Não ha. E é justo. (_com profunda
amargura_) Nós os poetas cantamos tanto o amor, que o amor todo nos vôa
no canto!


MORGADO (_baixo ao commendador_)

Que lhe parece? Vae para Goa..


COMMENDADOR

Em Goa temos gente tambem.


MORGADO

E se voltar?


COMMENDADOR

Está cá o Santo Officio.


MARQUEZ (_dispondo-se a escrever_)

Repita-me o nome por inteiro... Bem sabe a triste memoria que tenho...
Está a tempo ainda. Considere.


BOCAGE (_decidido_)

Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage. (_Marquez escreve lentamente_)
Meu avô, Gil de Bocage, foi coronel do mar. Herdei talvez a inclinação
com o sangue.


FRANCISCO (_indo a Bocage_)

Não o conhecia ainda... (_intencionalmente_) Ninguem agora o admira
mais.


GONÇALO (_apertando-lhe a mão_)

Regosije-se. Felicito-o. É uma nobre acção.


BOCAGE

Começo outra vida, rude vida de ancias e trabalhos, mas vida explendida
de alvoroços e promessas. (_inebriando-se das proprias palavras_) Oh!
quem me déra já nas solidões do oceano, entre os dois abysmos, para não
ver mais do que o eterno lampadario dos astros, para não ouvir mais do
que o magestoso hymno das vagas!... (_como vendo o que repete_) Ondeante
á pôpa a bandeira que recorda as margens distantes... a melancolia da
saudade!... Diante de mim os horisontes infinitos... a incerteza do
futuro!... Aos meus pés a voragem tumultuosa... a advertencia dos
desenganos!... E além... lá bem ao longe, a nossa India... a India que
démos de presente ao mundo!... o recesso dos mysterios... a terra dos
prodigios... crivada dos nossos padrões, povoada das nossas memorias,
cheia ainda do nosso passado, repetindo de todos os angulos a
maravilhosa historia que os povos decoraram em todas as linguas!... além
as grandes recordações dos grandes feitos... os grandes éccos dos
grandes nomes... as grandes imagens das grandes edades!... além emfim a
perenne e inflammada visão, que acima da escuridão dos tempos e do luto
das catastrophes, como um pharol no meio das trevas, ergue rutilante do
berço do sol a gloria da patria!


D. MARIA JOANNA (_fervorosamente_)

Tem a India inspirado os nossos grandes poetas! Começou já a inspiral-o!


MARQUEZ (_erguendo-se e dando-lhe o decreto_)

Aqui tem sr. guarda marinha. (_a D. Felicia_) Está tudo justo, não? As
escripturas do casamento assignam-se em Belem d'hoje a oito dias!


D. FELICIA

Pois v. ex.^a quer fazer tamanha fineza a minha filha!...


MANUEL SIMÕES (_promptamente_)

Que honra!... Que honra para o afilhado!...


MARQUEZ

Justo é que sejam testemunhas todos os que presenciaram este feliz
accordo. Ficam prevenidos. (_inclinando-se_) Terei occasião de dizer á
sr.^a D. Maria Joanna Galvão o muito que a estimo e respeito. (_D. Maria
Joanna faz mesura_.--_O marquez dirige-se á porta da E._--_Dispõem se
todos a seguil-o_.) Sr.^a morgada, dispenso etiquetas... não consinto...


D. FELICIA

Seria privar-nos da maior satisfação!


MARQUEZ (_a Bocage_)

Não nos falte, Manuel Maria. Quero vêl-o com o seu novo uniforme! (_Sae
com D. Felicia_.--_Acompanham-n'o todos_. _Ficam successivamente em
ultimo logar, Francisco que dá o braço a D. Maria Gertrudes, Gonçalo ao
lado de D. Maria Joanna, o commendador e o morgado da parte opposta,
Bocage_.)


SCENA XIII


OS DITOS, _menos_ MARQUEZ, D. FELICIA _e os_ CONVIDADOS


GONÇALO (_a D. Maria Joanna, indicando D. Maria Gertrudes_)

Não lhe diz nada a vista d'aquelle par?


D. MARIA JOANNA

Diz-me que preciso um protector... e que já o aceitei!


GONÇALO (_transportado_)

É definitivamente uma esperança?


D. MARIA JOANNA (_dando-lhe a mão_)

É mais... é uma certeza.

(_O morgado mostra ao commendador esta acção_.--_D. Maria Joanna
esquiva-se como envergonhada, e mette-se no sequito_.)


MORGADO (_consternado ao commendador_)

Viu?


COMMENDADOR (_saboreando a pitada_)

Vi... Não estão ainda casados.


GONÇALO (_que seguiu um instante D. Maria Joanna, volta a Bocage, e
mostra-lhe D. Maria Gertrudes e Francisco que de embevecidos se deixaram
ficar atraz de todos_.)

Repare... O amor e a mocidade, coroados pela ventura!... Alli tem o seu
melhor poema!


BOCAGE

Creio que sim... (_dolorosamente_) porque nenhum ainda me custou tanto!

(_Cae o panno_)


FIM DO QUARTO ACTO



ACTO V


*No palacio dos Marialvas, em Belem*

Sala forrada de damasco, severamente sumptuosa, abrindo sobre um
terrasso que dá para o Tejo. Em perspectiva os montes da
Outra-Banda.--Explendido dia de inverno. Amplas colguduras de seda.
Cadeiras de damasco egual ao do forro da casa. Altos contadores
marchetados, cobertos de preciosas curiosidades. Á _D._ a mesa preparada
para a assignatura das escripturas. Portas á _D._ e _E._


SCENA I


GONÇALO, (_esperando_) _o_ MARQUEZ, _um_ CAVALHEIRO, _um_ MOURO

(_O Cavalheiro, que mostra mais de trinta annos, entra da D., de botas e
esporas, seguido do Mouro_. _Este vestido a uso marroquino, botas
escarlates, zorame, etc_. _O mouro traz-lhe a vara de marmelleiro_. _Ao
mesmo tempo entra do F. o Marquez_. _O Mouro fica immovel onde está_. _O
Cavalheiro vae com profundo acatamento ao Marquez, ajoelha e beija-lhe a
mão_.)


MARQUEZ (_com magestosa simplicidade_)

Deus o abençoe, D. José! Já sei que o murzello começa a executar
soffrivelmente a lição dos quatro circulos para a esquerda... É preciso
trabalhal-o... É rijo dos rins, convem-lhe o trote avançado. Está ainda
desigual dos travadouros.--Póde recolher-se agora aos seus quartos,
filho... Hade precisar descanço... Oiça... recommende ao Mouro que vá
ver como atam o murzello... e se lhe estendem bem as coberturas.--Se
quizer escrever para Cintra a suas irmãs, e ao Marquez D. Diogo, tenha
tudo prompto. Ámanhã de madrugada partimos para Samora. Acompanha-n'os o
conde de Villa-Verde. (_O Cavalheiro sae_. _O Mouro segue-o_.)


SCENA II


O MARQUEZ, GONÇALO


MARQUEZ (_comsigo_)

Estes rapazes precisam dirigidos! (_vendo Gonçalo, que se conserva
respeitosamente de parte, e indo a elle_) Desculpe que o não via. Chegou
ha muito?


GONÇALO

Entrei ha pouco, sr. Marquez.


MARQUEZ

Tenho pena de o não ter apresentado a meu filho.


GONÇALO

Tive já a honra de fallar ao sr. D. José de Menezes! Encontrei-o varias
vezes no quartel de Lippe e na academia de Antonio Diniz.


MARQUEZ

Ah! conhecia-o?... Não lhe dá ares do Conde dos Arcos, que tão
desgraçadamente... (_suffoca-se, e desvia o rosto para limpar
escondidamente as lagrimas; pequena pausa; mais senhor de si_) É
tristeza que me não deixa, e é paixão que nunca me hade passar! Não
posso ver qualquer dos meus filhos que me não lembre aquella
fatalidade!... Ha quem murmure de me não ter deixado d'estes
exercicios... Não pensam que assim se fazem homens para as armas, e
soldados para a patria... Na minha casa os costumes transmittem-se
intactos como a honra. Deixal-os murmurar.


GONÇALO

Quem se atreveria a murmurar do venerando patriarcha dos Marialvas, tão
respeitado e tão querido na côrte e no povo!


MARQUEZ

Deixal-os. Não sei que façam mais do que nós; com as suas modas de
hoje!--Deixal-os, e deixemos tambem o que não vem para aqui.--O dia é de
alegrias, e creio que tem bom quinhão n'ellas. Cumprimentei já a sr.^a
D. Maria Joanna Galvão. Uma dama completa. Não podia escolher melhor...
nem ella tambem. Supponho não ser indiscreto.


GONÇALO

A sr.^a D. Maria Joanna já me permittiu confessar francamente o que era
ha muito a minha secreta esperança, o que hoje se me fez inapreciavel
realidade.


MARQUEZ

Estimo... estimo-o devéras.--Uma dama prendada, um valente soldado...
boas familias... elevados sentimentos... Vae tudo de accordo.--É assim
que se perpetuam as casas honradas... Hade, prevenir-me quando fôr o
casamento.--Não andará longe, não?--É festa de que tambem me não
dispenso. O regosijo dos velhos é casar os moços... (_com os olhos no
terrasso_) A sua familia nova já ahi anda... O meu afilhado, esse
madrugou, como é natural... Estão todos, creio... É cedo... ainda me não
deram parte de ter chegado o tabellião.--E o nosso poeta?... o nosso
novo guarda-marinha?... Vem de certo.


GONÇALO

Não o tenho visto. Disse-me que ia a Setubal despedir-se dos paes.


MARQUEZ

Voltou ha tres dias... D'onde procederia aquella resolução repentina!...


GONÇALO

Do mais generoso impulso!


MARQUEZ

Quiz-me parecer...--Que logo de cabeça! Vae em tudo aos extremos.--Ou
hade subir muito alto, ou fazer-se muito infeliz!


GONÇALO

O mesmo diz a sr.^a D. Maria Joanna.


MARQUEZ

É ella que o Hade saber avaliar!... Do espirito e do coração da sua...
da sua noiva... vamos, póde-se já dizer.


GONÇALO

Póde.


MARQUEZ

Do seu espirito e coração tinha ouvido muito Hontem porém fui ainda mais
informado. Esteve aqui o Juiz do Civel da Côrte, que se não cançou de me
gabar a nobreza e desinteresse que provou com a restituição dos vinculos
á prima. Ella mesma desfez todas as difficuldades... e com tal zelo, com
tal contentamento!... A proposito, deu-me tambem a entender coisas um
pouco desagradaveis a respeito do Morgado da Gésteira, e do Commendador
de Monsarás... Quasi que me arrependi de lhes ter aberto as minhas
portas... Sabe se com effeito...


GONÇALO (_constrangido, e volvendo os olhos com frequencia para o
terrasso_)

Que heide eu saber, sr. Marquez?


MARQUEZ (_reparando_)

Fiz a pergunta sem reflexão. Contaram-me tambem que se mostram seus
inimigos declarados... e os homens como o sr. Gonçalo Mendo nunca fallam
de um inimigo pelas costas... Essa mesma resposta confirma o que me
disseram... Que o Morgado, fraco inimigo póde ser... Mais de temer é o
Commendador... (_movimento de Gonçalo_) de acautelar, quero dizer... tem
relações que... (_notando como elle olha para o terrasso_) Não o
preoccupam agora os inimigos, vejo... e tem razão... (_sorrindo_) Hade
querer cumprimentar as senhoras. Na minha edade já se esquecem
facilmente essas impaciencias.


GONÇALO

Sr. Marquez!... Não pense v. ex.^a...


MARQUEZ (_festivamente_)

Não pensava, não pensava... Acompanho-o tambem.

(_Vae a sair; D. Maria Joanna vem a entrar, seguida do Morgado, que se
retira logo vendo o Marquez e Gonçalo_.)


SCENA III


OS DITOS, D. MARIA JOANNA


MARQUEZ (_inclinando-se affavelmente_)

Minha senhora! Não lhe queira mal pela demora. O culpado fui eu:
faltei-lhe a seu respeito. (_reparando para fóra_) É sua tia que está
alli?


D. MARIA JOANNA

É, sr. Marquez,--encantada do palacio, da vista, do dia, do Tejo... e
principalmente de v. ex.^a!...


MARQUEZ

E eu que tão mal lhe pago, que ainda quasi lhe não fiz as honras da
casa, nem lhe cumpri a palavra. (_Desapparece no terrasso_. _D. Maria
Joanna vae a seguil-o_. _Gonçalo detem-a_.)


SCENA IV


GONÇALO, D. MARIA JOANNA


GONÇALO

Esquivava-se ao Morgado, pareceu-me. Esse homem atreve-se ainda a
perseguil-a?


D. MARIA JOANNA

O Morgado?... O Morgado não póde perseguir ninguem! Cuido que tentava
não sei que justificação... Nem eu percebi... Andava passeiando no
terrasso. Ao passar, ouvi a sua voz aqui: entrei... para o não ouvir, a
elle.


GONÇALO (_contendo a colera_)

Tenho agora direitos sagrados. Se o Morgado ousou...


D. MARIA JOANNA

Ousou... evaporar-se apenas o viu. Ora, vamos... é homem que inquiete
alguem, o Morgado?... Começa a fazer de marido cioso?... Previno-o de
uma coisa... tenho horror aos ciosos! (_gracejando_) Se não póde
conter-se, estamos a tempo ainda!...


GONÇALO

Não me contive eu tres annos... padecendo a ausencia... sem uma palavra
de esperança ou de conforto... vendo-a repartir sem differença graças
que só para mim cubiçava, agrados pelos quaes dera a vida?


D. MARIA JOANNA

Não verão o avarento!... Ahi está o que estes senhores querem... e ahi
está porque eu fugia de prender-me!... Se não fazemos differença nos
agrados, um côro de suspiros, uma circular de queixumes... todos a mesma
coisa... Apenas temos a fraqueza de mostrar uma preferencia, o
favorecido converte-se em tyranno, e pede-nos conta... até dos sorrisos
passados.--Bem me dizia em Paris o cavalheiro de Florian... um moço de
gosto e saber.


GONÇALO

Que lhe dizia?


D. MARIA JOANNA

Que para uma dama era inestimavel presente de Deus a mocidade e a
independencia.


GONÇALO (_picado_)

Ah!... (_tristemente_) Repito-lhe então as suas mesmas
palavras:--estamos a tempo ainda!...


D. MARIA JOANNA

Eil-o ahi já todo serio e enfadado! Valha-me Deus!... não vê que estou
gracejando?--A independencia... a nossa independencia!... Muito é para
invejar, na verdade!... Parece á primeira vista que nos festejam e nos
adoram. Examinando bem... não ha mais duro captiveiro do que similhante
liberdade... Os galanteadores são sentinellas, os lisongeiros
espias.--Não foi tão vigiada a nympha da fabula. Ao menos os cem olhos
de Argos fecharam-se uma hora...


GONÇALO (_sorrindo_)

E não foi preciso mais!


D. MARIA JOANNA

Malicioso! (_em tom mais jovial_) Estes Argos interesseiros não os
fecham nem de dia nem de noite. Não sei como fazem, que se fortalecem da
vigilia, como os outros do repouso. Para qualquer lado que nos voltemos,
lá estão elles com os madrigaes assestados. Cada protesto de respeito é
uma atalaya dissimulada. Cada cumprimento é uma bayoneta posta ao peito
para nos tomar o passo... E que severa inquisição!... Se olhamos, é
leviandade; se rimos, inconstancia; se nos desviamos, desdem... se
baixamos os olhos, é disfarce; se choramos, é fingimento; se estamos
sisudas, é reserva... Até se nos encerramos, nos poem á porta a
suspeita!... As mesmas illusões de uns, se fazem nos outros furibundas
indignações. Suffoca-n'os um circulo insuperavel de cortezias
insidiosas, de reverencias desconfiadas, e de homenagens hostis...
(_seriamente_) e quando menos o pensamos, achamo-n'os envolvidas pela
astucia, pela cubiça, pela perfidia... não poucas vezes pela
calumnia!--Eis aqui a nossa independencia!... (_no tom anterior_) O
cavalheiro de Florian ainda não conhecia o mundo!


GONÇALO (_gracejando tambem_)

Dês de quando faz essa idéa da independencia feminina?


D. MARIA JOANNA (_gravemente_)

Dês que uma protecção opportuna me libertou d'esse ambito oppressivo...
cheio de laços e de perigos... e me fez respirar os ares limpos e sãos
de um nobre e generoso affecto!... (_com gentileza_) Não sei se
vacillava ainda... (_dando-lhe a mão com meiga dignidade_) Sei que
d'esse instante para diante não vacillei mais.


GONÇALO (_beijando-lhe a mão, e conservando-lh'a nas suas_)

Desculpa um momento de irreflexão?


D. MARIA JOANNA (_esquecendo a mão nas de Gonçalo_)

Ninguem é perfeito n'este mundo.


SCENA V


OS DITOS, _e_ BOCAGE _da D_.

(_Bocage entrando, vendo-os, e detendo-se_.)


D. MARIA JOANNA

Ah!... O sr. Bocage? (_retira vivamente a mão_.)


BOCAGE

O anão da casa encaminhou-me para aqui. Se sou importuno... (_como para
sair por onde entrou_.)


GONÇALO (_indo a Bocage e detendo-o_)

Era esperado, e desejado... venha. (_descendo com elle_) Ninguem
aceitaria com mais satisfação para confidente dos meus alvoroços.


D. MARIA JOANNA

Não é já o sr. Bocage da nossa intimidade? Não me esqueceu ainda!


BOCAGE (_com forçada jovialidade_)

Filho de Marte e de Venus pintaram o Amor. É indispensavel corrigir a
mythologia... O Amor, de menino fez-se homem; de azougado cordato; de
despido composto; de vendado attento... abjurou por fim a gentilidade, e
até de pagão se converteu a bom catholico... para santamente unir e
abençoar, como o pediam os seus merecimentos, um novo Marte e uma Venus
melhor!


GONÇALO (_fitando-o_)

Porque violenta o espirito?... Esse tom festivo tem o que quer que seja
de febril... não vem do coração.


BOCAGE (_naturalmente_)

Não vem, não; diz bem. No coração... tenho uma tristeza profunda... uma
dôr que eu desconhecia.


GONÇALO (_apertando-lhe a mão_)

Comprehendo. Sente agora o sacrificio!


BOCAGE

Não a merecia!... Deus não quiz!


D. MARIA JOANNA

Arrepende-se?


BOCAGE

Não, minha senhora, não me arrependo. Fiz o que devia fazer...


D. MARIA JOANNA

O que poucos saberiam fazer tão bem!


BOCAGE

Mas a impressão não se apaga assim!... (_a Gonçalo_) Confessei-lhe a
minha natural inconstancia... Conhecia mal esta grave e sincera
affeição, que podia emendar-me... que outro me tornaria talvez!... Que
lhe heide fazer? Bem certo é, que só se dá valor ao bem quando se
perde!...


D. MARIA JOANNA

Hade encontrar um coração que o aprecie... Com o seu merito!... A
felicidadade, que hoje cuida perdida, facil lhe será restaural-a.


BOCAGE

Duvido, minha senhora. Ama-se uma só vez assim... quando se ama. Está em
mim mesmo, está na minha indole, o germe do infortunio. Se o podia
atalhar alguma coisa, era isto... (_resignando-se_) Enfim não estava
para mim!... (_abatido_) A imprudencia foi prometter que viria aqui
hoje... Vinte vezes tive tentações de voltar para traz... Faltava-me o
animo!


GONÇALO

Isso não. Tempera-se a alma nos lances difficeis. E na vida que vae
seguir é preciso ter coração para tudo.


BOCAGE (_recobrando impetuosamente a resolução_)

É.--Isso pensei; por isso vim... e verá!--Era fraqueza: não lhe quiz
ceder. Seria encetar mal uma carreira, em que o sacrificio é condição de
todas as horas, em que o esforço é necessidade de todos os momentos!
N'estas procellas d'alma quero dispor-me para as tempestades temerosas
que resolvem os céos e os mares. O espirito sacudido de embates
angustiosos, que em si mesmo lutou e venceu, está preparado para se não
assombrar nem desmaiar, quando os horisontes se condensam... e os ventos
se desencadeiam... e os abysmos se rasgam... e a crista das vagas,
empinadas como serras, se cruza com a fita do raio, livido como
espectro... quando os silvos do vendaval na enxarcia parecem ais de
agonisante... quando, n'esse tumulto, n'esse horror, n'esse cahos, o
baixel que o valor sustenta, que a intelligencia dirige, que salva a
pericia, range até ás profundezas com o stertor do moribundo!...
Attrae-me, convida-me a perspectiva... E quasi me esqueço do mais... e
todo me ufano revendo-me n'este uniforme, que significa a honra o dever,
o patriotismo, a abnegação... contemplando aquelle glorioso estandarte,
que se já não varre as aguas como conquistador, se já não as senhoreia
como soberano, hade no mundo ser sempre venerado por acções egregias...
hade em Portugal ser sempre saudado de legitimas esperanças!


GONÇALO

Com esses sentimentos, sr. Bocage, não ha magoa que não se console...
não ha grandeza a que se não aspire!


BOCAGE

Os sentimentos... São, sim... estes são, estes devem ser.--(_comsigo_)
Mas o que faz d'elles muitas vezes o destino!


GONÇALO (_olhando para o terrasso_)

O marquez dirige-se para aqui, se não me engano.


D. MARIA JOANNA (_olhando_)

Veem todos.


BOCAGE (_idem_)

O commendador e o morgado são os primeiros! (_a Gonçalo_) Teem-me feito,
pagar bem caro o peccado das más companhias, estes heroes.


SCENA VI


OS DITOS, COMMENDADOR _e_ MORGADO


MORGADO (_ao commendador_)

O que eu vejo, commendador, é que está tudo perdido!


COMMENDADOR (_ao morgado_)

Socegue.--A tempo chega quem sabe dispôr as coisas. «Hoje por vós,
amanhã por nós.» Affirma Cicero que um dia basta para pôr termo aos
triumphos.


BOCAGE (_a Gonçalo_)

Aves de ruim agouro!


GONÇALO

Que hão de agourar-nos agora?


SCENA VII


OS DITOS, MARQUEZ, (_entrando sem dar attencção ao commendador e
morgado, que se inclinam_)--_Depois_ Um ESCUDEIRO, _de habito de
Christo_


MARQUEZ

Vão sendo horas. (_a D. Maria Joanna_) Manuel Simões não cabe em si de
contente, e sua tia anda nos ares. (_vendo o escudeiro_) Creio que
chegou o tabellião. (_O escudeiro dirige-se respeitosamente ao marquez,
e diz-lhe algumas palavras em voz baixa_.) Está ahi com effeito. (_ao
escudeiro_) Mande entrar, e mande pôr as cadeiras.


SCENA VIII


OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA GERTRUDES, FRANCISCO, MANUEL SIMÕES _e_
CONVIDADOS


D. FELICIA (_vendo Gonçalo, jovialmente_)

O sobrinho não tem pressa de cumprimentar a sua tia nova?... Não lhe
chega o tempo, já vejo... Era bem feito que me oppozesse agora!


GONÇALO

Para nos cobrir de tristeza!


D. FELICIA

Ai! não... não quero vêr ninguem triste... Sabe?... O sr. marquez!...
Oh! grande marquez!... O sr. marquez entregou-me já o alvará de
açafata.--Que dia!--que dia para a familia, sobrinha!... Estou curada
dos meus hystericos!


D. MARIA JOANNA

Parabens, minha tia!


MANUEL SIMÕES (_impaciente, ao marquez, mas sem nunca esquecer o usual
acatamento_)

O tabellião traz já as escripturas promptas, meu senhor.--É só assignar.


MARQUEZ

Ler e assignar.--Vejam como vem guapo o nosso guarda marinha!... (_a
Bocage_) Quando levanta ferro a nau?


BOCAGE

Amanhã, sr. marquez.


MARQUEZ (_aos circumstantes_)

E de uniforme grande, em honra do dia. Não lh'o agradece, Manuel Simões?


FRANCISCO

Sou eu... (_indicando D. Maria Gertrudes_) somos nós dois... que
principalmente lhe devemos agradecer. (_indo a Bocage_) Se os votos
d'uma gratidão profunda pódem ser-lhe aceitos... asseguro-lhe que não os
ha mais ardentes e sinceros.


D. MARIA GERTRUDES

Hão de acompanhal-o sempre as nossas orações!


BOCAGE (_commovido_)

As orações dos anjos são para os infelizes... (_com esforço_) e eu...
sou apenas um desterrado voluntario!


MANUEL SIMÕES

Ahi vem o tabellião.--(_comsigo_) Meu filho doutor!... minha sogra
açafata!... a minha nora morgada!... por compadre um marquez!--Está-me a
cair o habito de Christo!...


SCENA IX


OS DITOS, O ESCUDEIRO _precedendo_ O TABELLIÃO, _e seis ou oito criados_

(_O tabellião entra fazendo reverencia a todos, e inclina-se
profundamente diante do marquez; sob indicação do escudeiro toma o seu
logar á meza em pé, e desenrola as escripturas._--_Os criados chegam ao
marquez uma cadeira d'espaldas, e collocam em torno da meza mais algumas
cadeiras communs. O marquez e as damas sentam-se. O escudeiro fica á
frente dos criados, fazendo parede ao F._)


MARQUEZ (_sentado, ao tabellião_)

Póde começar a leitura. (_O tabellião dispõe-se a ler_.)


MANUEL SIMÕES

Ainda o não posso crêr!


GONÇALO (_por detraz da cadeira de D. Maria Joanna, que fica na
extremidade_)

Chegará tambem brevemente o nosso dia!


SCENA X


OS DITOS _e_ UM PAGEM

(_O pagem entra apressadamente com uma bandeja de prata, e em cima um
officio; dirige-se ao marquez, ao qual apresenta a bandeja com um joelho
em terra_.)


MARQUEZ (_vendo o pagem, ao tabellião_)

Queira esperar. (_recebendo o officio_) O que será? (_O pagem retira-se
para o lado_.) É para o sr. Gonçalo Mendo... traz o sello da secretaria
de estado... Provavelmente não o achou em casa o correio, e disseram-lhe
que estava aqui. (_O pagem vae receber o officio da mão do marquez,
leva-o a Gonçalo Mendo, e sae_.)


GONÇALO

Para mim... Da secretaria?--(_recebe o officio, abre, e lê, com visivel
gitacão_.)


COMMENDADOR (_de parte, ao morgado, tirando a caixa_)

Quer apostar que se não faz o casamento de sua prima!

(_O marquez observa-os_. _Bocage não tira os olhos d'elles_.)


MARQUEZ (_inquieto_)

Que é?


GONÇALO (_consternado_)

A nomeação de capitão de Sofála... e ordem terminante de partir na nau
de viagem, que sae amanhã!


D. MARIA JOANNA (_erguendo-se com um grito angustioso_)

Jesus! (_Soccorrem-n'a D. Felicia e D. Maria Gertrudes_.--_Erguem-se
todos, e affluem em roda de Gonçalo_. _Mostras de pezar na familia_. _O
morgado não póde conter o alvoroço_. _Bocage continúa a observar os
dois, refreado unicamente pelo respeito da casa_.)


MARQUEZ (_admirado_)

Tinha requerido?


GONÇALO

Eu, sr. marquez!--N'esta occasião!...


COMMENDADOR (_saboreando a pitada hypocritamente_)

Que transtorno!... No livro 5.^o da Eneida ha...


BOCAGE (_prorompendo_)

Sei eu... vejo eu d'onde vem o tiro...


GONÇALO (_dolorosamente_)

Acertaram-m'o no coração!... (_Breve pausa_.--_A Bocage, com animo
inteiro_) Somos companheiros de viagem.

(_D. Maria Joanna soluça, com o lenço nos olhos, nos braços de D.
Felicia, e sua prima_.)


BOCAGE (_impetuosamente_)

Não póde ser... não deve ser... O ministro foi enganado!


MANUEL SIMÕES (_insinuando_)

Uma palavra que o sr. marquez diga a Sua Magestade!...


MARQUEZ

Parto d'aqui a um instante para Samora. Vou fallar á rainha, minha
senhora. Ha tempo ainda.--Não embarca, sr. Gonçalo Mendo. (_ao
escudeiro_) Que apromptem o meu escaler. (_O escudeiro vae a sair, e
detem-se á voz de Gonçalo_.)


GONÇALO

Peço perdão, sr. marquez: embarco.--Sei o que v. ex.^a póde... mas sei
tambem o que devo.--(_grave e solemne_) Quando ultimamente fui tomar
posse do meu solar de Mendel, aonde não voltara dês que entrei no
collegio dos Nobres, a primeira coisa que me deu nos olhos, na sala de
respeito, foi a longa fileira dos retratos de meus avós... um morto na
defeza de Ceuta... outro espedaçado nos bastiões de Diu... outro
mal-ferido na batalha de Montes Claros!... Todos com o arnez no peito e
a espada no cinto... todos soldados desde Aljubarrota!... Parei a
contemplal-os na vasta quadra, triste e deserta, que novamente a morte
visitava.--Do alto das sombrias paredes pareciam dizer-me aquelles
vultos severos: «por servir a patria, e para servir a patria, nos foi
dado o patrimonio que te deixamos, com as obrigações do nosso nome, com
as tradicções do nosso sangue. De ferro eram os nossos corações, como
eram de ferro as nossas armaduras... nunca tremeram nos riscos mais
affrontosos... nunca vacillaram nos mais apertados transes!... Esta
immaculada austeridade nos fez estimados e honrados... Tal é o deposito
de virtudes hereditarias que te confiamos... Recebe-o para o transmittir
como o recebes.»--Isto julguei ouvir... isto se me gravou n'alma.--Podia
esquecel-o agora?


BOCAGE

Mas essa nomeação foi solicitada pela perfidia... essa ordem...


GONÇALO (_atalhando_)

É da patria. Não a examino; obedeço-lhe. Foi o que prometti quando jurei
bandeiras.--O primeiro predicado militar é a obediencia: o valor é
apenas o segundo. (_vehemente_) O soldado que se nega a obedecer é como
um desertor em dia de batalha,--atraiçôa egualmente o juramento! Ninguem
ousaria aconselhar-m'o... ninguem espera tal de mim! (_D. Maria Joanna
alça o rosto, e escuta-o attenta, enxugando os olhos_.)


BOCAGE

Não, o esquecimento do dever ninguem lh'o poderia aconselhar... Mas o
estado que vae tomar, mas a familia que lhe abre os braços, não lhe dita
deveres tambem?


GONÇALO

A patria é a familia das familias!--Se uma veneranda mãe chama por seus
filhos em nome da honra commum, qual póde recusar-se? com que pretexto
hade eximir-se?--Os affectos de familia! Quem é o desamparado que não
tem alguma familia? Se essa razão prevalece, ninguem servirá. Mais que
para qualquer, para nós, os que seguimos a profissão das armas, e a
patria mãe rigida e imperiosa, mas amada sobre tudo. Ainda mais sua do
que nossa é aquella honra que entregaram á nossa guarda. Que filho
consente que a honra de sua mãe possa entrar em duvida?--Sr. Bocage, o
pundonor do soldado não exige menos que a isenção do poeta. Um passo
para ficar... (_com os olhos no Commendador e Morgado_) e não faltará
quem diga que eu... eu, um militar, um portuguez, um neto de
veteranos!... recuei diante dos perigos do clima, ou da azagaya dos
cafres... A calumnia é a espada da hypocrisia... não tem outra. Haviam
de dizel-o. (_com resolução enthusiasta_) Não o dirão... Podem os meus
inimigos triumphar com o meu supplicio; não triumpharão com as minhas
fraquezas. Ninguem dirá nunca de Gonçalo Mendo, que o viu hesitar... nem
diante da catastrophe subita das mais justas esperanças!


BOCAGE (_desesperado_)

Não tenho palavras que o convençam? (_indicando-lhe D. Maria Joanna_)
Veja se resiste áquelle rosto, áquella dôr, ás supplicas alli
estampadas, á voz e ás lagrimas que mais do que eu o persuadirão.


D. MARIA JOANNA (_descendo, triste e gravemente_)

O que existe no mundo mais santo do que o amor puro de duas almas, que
uma da outra vivem, que uma para a outra só querem viver? Ha distancia
que lhes desate os laços? (_crescendo em vehemente sensibilidade_)
Haverá golpe que lhes corte os vinculos? Não lhes são communs as
alegrias? Não lhes são communs as penas? Não lhes é tudo commum? Póde
alguem separal-as em sentimentos, quando foi o sentimento que as uniu,
que das duas fez uma, quer para viver, quer para pensar, quer para
soffrer? (_Pausa_. _Com ponderativa energia_.) É a mulher de um soldado
a companheira de todos os seus perigos, de todos os seus trabalhos... e
de todos os seus deveres. A gloria d'elle é unico desvelo, unico fito,
unico enlevo d'ella. A obediencia, que é n'elle empenho, n'ella é
culto... Cumpre que seja em ambos a resolução egualmente heroica. Se não
póde acompanhal-o nos dias de batalha... póde esconder-lhe o pranto nos
dias de provação!... (_Pausa meditativa_. _Com subito e convulso
esforço_.) Vá, sr. Gonçalo Mendo... vá que eu espero-o!


GONÇALO

Não, sr.^a D. Maria Joanna. Admiro a nobreza do seu animo... para mais
sentir o que n'elle perco... mas o sacrificio da sua mocidade pesaria
eternamente sobre a minha consciencia.--Restituo-lhe a palavra que me
deu. É livre.


D. MARIA JOANNA (_solemne e decidida_)

Sr. Gonçalo Mendo, se na sua familia o juramento é timbre que a tudo
sobreleva, na minha casa dão-se juntamente o coração e a palavra, e a
palavra só deixa de obrigar quando o coração deixa de bater. Póde
julgar-se livre; eu não. Se tiveramos tempo de consagrar a nossa
alliança, podia negar-me o favor de acompanhal-o? Se estivessemos já
unidos á face do altar, teria acaso direito de dizer-me: «restituo-lhe a
palavra e a liberdade?» Considero-me ligada perante Deus: só Deus me
póde desligar. Ámanhã recolho-me ao convento de Santos. Unicamente a sua
mão me abrirá aquellas grades!


GONÇALO

Quem se não deixará vencer?--Á volta irei dedicar-lhe esta vida, que já
toda lhe pertence. Hade permittil-o Deus!


MARQUEZ (_intervindo_)

Fizeram todos o seu dever. Tenho tambem um para cumprir... (_para o
Commendador e Morgado_) Ás pessoas, que eu protejo, nem o proprio
Marquez de Pombal se atreveu nunca! (_fulminando-os de desdem_) Sr.
Morgado da Gésteira, precisa sair de Lisboa e tornar quanto antes para a
sua terra... (_O Morgado fica attonito_.--_Com intimativa_.)
Precisa.--Hade ter disposições que fazer. Não o quero demorar... (_O
Morgado percebe e encaminha-se todo encolhido e confuso á porta da D._)
Espere... o seu amigo Commendador deseja acompanhal-o.--Sr. Commendador,
é provavel que a Meza da Consciencia lhe queira tomar contas do modo por
que tem cumprido os encargos da sua commenda. (_O Commendador, que ao
principio ouvia altivo, resigna-se tambem o segue o Morgado_.)


SCENA ULTIMA


OS DITOS, _menos_ COMMENDADOR _e_ MORGADO


BOCAGE (_vendo-os sair_)

A vilania e a jactancia... a cobiça e a hypocrisia!... Ahi estão os
homens, ahi estão os vicios, que me ensopam a satyra em fel... que me
inflammam de raios a musa!... Bem o prevejo, bem o presinto...
Contribuirão elles para me abreviar a vida... pagar-lhes-hei eu com a
immortalidade do ridiculo!...


MARQUEZ

Guarde para mais a lyra, Manuel Maria. Não vê como os castiga o despreso
da gente de bem?--(_a Gonçalo_) Hade voltar... e hade voltar breve.


D. FELICIA (_consolada_)

Hade... hade... que m'o diz o coração!


MANUEL SIMÕES (_sempre impaciente_)

Ainda bem! (_ao Marquez insinuante e respeitoso_) Então agora... as
escripturas...


MARQUEZ

Podem ler-se e assignar-se.

(_O Tabellião torna a pegar nas escripturas_. _O Marquez, D. Felicia e
Manuel Simões voltam aos seus logares, mas sem se sentarem_.--_Francisco
e D. Maria Gertrudes estão á E.; Gonçalo e D. Maria Joanna á D.; Bocage
na extremidade da D._)


FRANCISCO (_a D. Maria Gertrudes_)

Finalmente... vou firmar a minha ventura!


GONÇALO (_a D. Maria Joanna_)

Ao menos... levo a esperança!


BOCAGE (_pensativo e com os olhos nos dois pares_)

E a mim... (_comsigo, dolorosamente, em quanto D. Maria Joanna que o
observa, se lhe aproxima com Gonçalo Mendo, cuja attenção chama pelo
gesto_) a mim... que me fica?


D. MARIA JOANNA

Fica-lhe... a posteridade!

(_cae o panno_)


FIM

       *       *       *       *       *

A propriedade d'esta peça no imperio do Brazil pertence a Francisco
Pereira da Cunha Novaes.

Rio de Janeiro, 1865.



*Notas:*

[1] Este periodo, e os seguintes, marcados com commas, supprimem-se na
representação para abreviar as respectivas scenas.





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