Home
  By Author [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Title [ A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  O  P  Q  R  S  T  U  V  W  X  Y  Z |  Other Symbols ]
  By Language
all Classics books content using ISYS

Download this book: [ ASCII | HTML | PDF ]

Look for this book on Amazon


We have new books nearly every day.
If you would like a news letter once a week or once a month
fill out this form and we will give you a summary of the books for that week or month by email.

Title: A Democracia - Estudo sobre o governo representativo
Author: Lima, Jaime de Magalhães, 1859-1936
Language: Portuguese
As this book started as an ASCII text book there are no pictures available.


*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A Democracia - Estudo sobre o governo representativo" ***


JAYME DE MAGALHÃES LIMA


A DEMOCRACIA

ESTUDO

SOBRE O GOVERNO REPRESENTATIVO



PORTO

TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA

Rua da Cancella Velha, 70

1888



A DEMOCRACIA



JAYME DE MAGALHÃES LIMA


A DEMOCRACIA

ESTUDO

SOBRE O GOVERNO REPRESENTATIVO



PORTO

TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA

Rua da Cancella Velha, 70

1888



Creio ser actualmente o momento mais opportuno para discutir o governo
democratico. Embora as questões economicas, vulgarmente denominadas
«questões sociaes», tenham presentemente a preeminencia politica, os
governos representativos apresentam uma tal desordem e corrupção que é
urgente saír d'um estado manifestamente perigoso, cujo ultimo termo é
difficil de prevêr.

A sciencia politica, se não nos dá um remedio seguro e prompto, auctorisa
pelo menos tentativas de melhoria com probabilidades de bom exito. D'este
numero é a representação por classes, para que lentamente se teem
encaminhado os governos representativos.

Os recentes desmandos do parlamento e o ultimo congresso agricola reforçam
esta opinião. Todos concordam em que o regimen parlamentar não póde viver
n'este fogo de guerrilhas, ao mesmo tempo que todos reconhecem que o
congresso agricola, embora chegasse a conclusões em grande parte
inacceitaveis, teve a vantagem de nos tornar bem patentes os soffrimentos e
aspirações da lavoura, significando simultaneamente que o paiz não se julga
representado no parlamento. Esta sobreposição de representantes leva-nos a
perguntar quaes são os representantes legitimos.

Em todo o caso, a situação é difficil e a discussão proveitosa. Por isso
ouso acreditar que não perderei o meu tempo colhendo em duas excellentes
publicações estrangeiras algumas ideias sobre a materia que, sob nova fórma
e coordenação e juntamente com observações proprias, hoje apresento ao
publico portuguez.

Não precisarei decerto encarecer a auctoridade de Sumner Maine, cujo livro
me serviu de texto principal. A perda recente do sabio investigador das
instituições primitivas, que o mundo scientifico unanimemente deplora, deu
logar a que se recordassem os seus serviços e a que mais uma vez se
reconhecesse que foi um dos homens que maior influencia tiveram no
pensamento contemporaneo.



A DEMOCRACIA[1]



I

O futuro da democracia


Quem ha cincoenta annos tivesse a coragem de publicar um livro como o de
Sumner Maine, seria julgado visionario ou apaixonado, que não via ou não
queria vêr os esplendores d'um regimen politico que promettia á humanidade
uma nova era toda radiante de riqueza, de paz e liberdade. Hoje não; o seu
eloquente libello é tido como um livro sincero, que encerra porventura
alguns erros entre punhados de verdades, mas que, não obstante, é credor da
mais larga e serena discussão.

Perderam-se illusões paradisiacas; e a politica, como a litteratura,
tornou-se realista, consciente das condições da vida real, limpa de
abstracções perigosas e das concepções _a priori_ que tão profundamente
revolveram as instituições e com tão hypotheticos beneficios.

Já nos é licito perguntar, sem incorrermos no perigo de sermos accusados de
inimigos da civilisação, se as actuaes fórmas de governo democratico estão
destinadas a durar e alargar-se indefinidamente.

Entretanto, a corrente democratica cresce continuamente, são poucos os que
duvidam e muitos ainda os que teem a democracia como um dogma contra o qual
de nada valem os factos. Para estes, os desastres dos governos democraticos
são qualquer coisa como as manifestações do atheismo que, para os crentes,
em nada prejudicam os attributos dos deuses.

Todavia este facto, esta crença nas virtudes absolutas mas indemonstradas
d'uma fórma de governo, não é garantia bastante dos progressos da
democracia. Em 1758, escrevia Lord Chesterfield que «todos os symptomas que
jámais tinha visto marcarem na historia a approximação de grandes
transformações ou revoluções, no seio d'um governo, existiam áquella hora e
progrediam diariamente em França.» Os historiadores nossos contemporaneos
pasmam de que «a côrte, a aristocracia e o clero não tivessem comprehendido
que em face da irreligião que cada dia estava mais em voga, a crença nos
privilegios de nascimento não podia manter-se por mais tempo. Deveriam vêr
a ameaça de perturbações imminentes na odienta inveja das differentes
classes. A miseria sordida dos camponezes deveria tel-os preparado a um
formidavel levantamento social. Poderiam ter observado as causas immediatas
d'uma revolução na desordem das finanças e na grosseira desigualdade dos
tributos.»

As previsões que seriam possiveis ou que se nos afiguram taes, não se
realisaram; e a revolução rebentou, apesar de ser lenta a accumulação dos
seus elementos. É que oito seculos de monarchia absoluta em que os seus
principios se foram radicando gradual e constantemente, tinham posto aos
olhos de naturaes e estranhos a fórma de governo como perpetua, e não se
percebia como um regimen que tinha feito a unidade e a grandeza da França
podesse algum dia ser destruido. Ainda em 1742, Hume attribuia a
prosperidade da nação francesa ao seu regimen politico e «via mais causas
de degeneração nos governos livres como a Inglaterra, do que na França, o
mais perfeito modelo da monarchia absoluta.»

Assim nós estamos hoje. A democracia victoriosa afigura-se-nos invencivel e
já não concebemos progresso fóra do seu imperio. Mas porque esta cega
confiança? Acaso não nos terá reservado o futuro um desengano semelhante ao
que soffreu a geração que assistiu á Revolução franceza? Não terão os
governos democraticos fermentos de dissolução sufficientes para nos fazerem
duvidar da sua estabilidade? Vejamos.

Mas antes, convém definir o sentido restricto, talvez excessivamente
restricto, que damos aqui á palavra _democracia_.


Maine entende por democracia unicamente uma fórma particular de governo. Ha
duas maneiras de conceber o governo d'uma sociedade, e d'ahi duas
differentes maneiras de apreciar as relações entre governantes e
governados: ou o governante é superior ao vassallo, é seu chefe, tutor e
guia e qualquer que sejam as suas faltas os governados devem-lhe todo o
respeito e em caso algum poderão retirar-lhe a sua auctoridade; ou os
governantes são simples agentes e mandatarios dos governados o n'este caso
a censura é um direito, a origem da auctoridade reside nos governados que a
dão ou a retiram como julgam mais util.


Exceptuando a Russia e a Turquia em que a primeira fórma de governo se
mantem ainda em toda a sua pureza, todos os paizes da Europa, embora
tenham adoptado fórmas mixtas, de transição, reconheceram a soberania
popular, isto é, fazem derivar a auctoridade da vontade dos governados. É
esta fórma de governo que Maine chama democracia; e esta mesma significação
lhe attribuirei n'este estudo para evitar uma confusão tão prejudicial como
seria a de me servir d'um termo com valor differente para cada um de nós.

D'onde nos veio esta fórma de governo? Será difficil dizel-o com rigor, a
meu vêr. A constituição ingleza, a fundação dos Estados-Unidos da America,
a Revolução franceza foram inquestionavelmente dos elementos que mais
concorreram para as transformações politicas em favor da democracia no
ultimo seculo, mas parecem-me insufficientes para darem explicação cabal de
tão largas revoluções. Seria preciso juntar-lhes as obras dos philosophos e
dos sabios que prepararam o espirito popular, e as condições em que o
progresso scientifico collocou a producção da riqueza; seria principalmente
preciso estudar as circumstancias historicas, que determinaram o
estabelecimento da democracia, circumstancias differentes para cada nação.

Passando da questão de origem á historia dos governos democraticos, vemos
que esta fórma de governo se tem mostrado até hoje d'uma grande
instabilidade; e assim como a sua diffusão rapida através de todos os
paizes da Europa nos leva a suppôr que deveriam existir causas de ordem
geral e communs a todos os paizes, assim tambem a instabilidade do novo
regimen em todas as nações que o adoptaram obriga-nos a suspeitar de que
certamente contraría qualquer tendencia ou elemento essencial das
sociedades modernas. É conhecida a historia da França que, em menos d'um
seculo, está na terceira republica e tem visto alternarem-se monarchias,
imperios e republicas com uma regularidade quasi periodica; a Hespanha,
«entre o primeiro estabelecimento popular em 1812 e a accessão do ultimo
rei, não teve menos de quarenta levantamentos militares de natureza grave,
á maior parte dos quaes se associou a plebe: e sabe-se geralmente o que
teem sido e são ainda as republicas da America. Só na Bolivia, de quatorze
presidentes da republica, treze, morreram assassinados ou no exilio. Se
exceptuarmos a Belgica, os Estados-Unidos e ainda a Italia, poderemos dizer
que por toda a parte os governos populares funccionam mal e não raro são
origem de perturbações sociaes quasi permanentes.

Podemos concluir da sua historia que a democracia não se nos apresenta como
tendo um largo futuro, e é mesmo a fórma de governo que se tem mostrado
mais fragil, mais facilmente sujeita a constantes mutações.

«É possivel encontrar as causas d'esta singular falta de equilibrio dos
tempos modernos? É, a meu vêr, em certo modo. É preciso notar que, desde o
começo do seculo presente, dois sentimentos nacionaes bem distinctos actuam
sobre a Europa occidental. Para lhes dar o nome que lhes dão os que os
detestam, um é o Imperialismo e o outro o Radicalismo.»

Todo o homem observador terá notado que em todas as nações modernas ha uma
larga aspiração de engrandecimento, de ordem e de independencia. Isto que
no individuo adquiriu tal desenvolvimento que chega a constituir um dos
generos mais vulgares de loucura, o delirio das grandezas, a sêde de
riqueza e poder, manifestam-se na sociedade com igual intensidade. E um
paiz para ser grande, para dar realisação a este sonho absorvente,
necessita um grande exercito, precisa «ter em armas uma quantidade de
homens quasi igual á totalidade dos varões na flôr da edade.» Ora o
Imperialismo e a democracia são irreconciliaveis; a condição por
excellencia do primeiro é a obediencia, e a base fundamental dos governos
populares é a liberdade de discussão e a faculdade de revolta. Sempre que
estas duas tendencias oppostas se manifestarem, a desordem será
irremediavel: a victoria porém raro deixará de pertencer ao Imperialismo,
porque o sentimento da paz e ordem é superior á liberdade, começará por
impor violentamente a obediencia e depois a acção educativa, o habito
torna-lhe a sociedade absolutamente docil.

A segunda das causas de perturbação enumeradas é o Radicalismo. «Não
poderia haver um «signal do tempo» mais formidavel e mais ameaçador, para o
governo popular, do que o nascimento de grupos irreconciliaveis na massa da
população.» Que estes grupos se formem sobre uma illusão ou sobre uma base
realmente justa, e com o ardor bellicoso e a fé indomavel que lhes dão o
aspecto e a rigidez inquebrantavel d'uma seita religiosa, a democracia terá
dentro de si um cancro incuravel. Porque, com a fraqueza d'acção inherente
aos governos populares e que lhes vem da fragmentação e contínua
substituição do poder, e por outro lado com o espirito de guerra
intransigente do Radicalismo, o perigo para a estabilidade da democracia
será tanto maior quanto mais fracos forem os meios de repressão. E aquella,
especie de Radicalismo que nos apparece com o nome de nihilismo, anarchismo
e semelhantes, até hoje, ainda não encontrou fórma de governo que a
satisfizesse; nem encontrará, por certo, pois que não tem outra aspiração
definida que não seja a desordem permanente. As democracias encontram
realmente n'estas fórmas do radicalismo um inimigo que as faz oscillar
constantemente entre a vida e a morte.

Entre os males constitucionaes dos governos democraticos e que os embaraçam
de alcançar o ideal que no dominio abstracto lhes parecia destinado, é a
pulverisação do poder politico.

Hobbes pensa que, quando um homem aspira a ser livre, o que realmente
deseja é uma parte do governo. É o que a democracia lhe concede; mas esta
parte no governo é effectiva? Ouçamos as palavras de James Stephen que
Maine transcreve: «O individuo que póde amontoar o maior numero de
fragmentos politicos n'um só monte governará o resto... Em certos momentos
um caracter energico, n'outros a astucia, n'outros a capacidade
administrativa, n'outros a eloquencia, n'outros a posse dos logares communs
e a facilidade de os aproveitar n'um fim pratico, permittem a um homem
trepar pelos hombros dos seus visinhos e dirigil-os n'este ou n'aquelle
sentido; mas em todo o caso os que estão na fileira seguem a direcção dos
chefes d'uma proveniencia ou da outra que tomam o commando da força
collectiva.»

A historia das eleições é conhecida. É sabido o que significa o alargamento
do suffragio como meio de alcançar uma justa distribuição do poder
politico. Ha uma verdadeira capitalisação politica como a capitalisação
economica; d'esta resulta o agiota, d'aquella o empresario politico, o
nosso influente. A nação mais democratica do mundo, ou pelo menos apontada
como tal, os Estados-Unidos, é o melhor exemplo da significação que tem o
direito de votar; alli, o voto é uma mercancia como o algodão ou os
cereaes, o poder é para quem mais souber capitalisar. Por isso não será
temeridade affirmar que o suffragio universal «torna-se na pratica a base
natural d'uma verdadeira tyrannia.» Infelizmente para nós, temos conhecido
de sobejo estas guerras do feudalismo politico e a era dos marquezados
eleitoraes parece estar muito longe do seu fim.

Supponhamos porém que este vicio é susceptivel de correcção, supponhamos
que o suffragio universal chega um dia a funccionar em perfeita liberdade.
A hypothese é irrealisavel porque a liberdade implica a concorrencia e,
dada esta, os ambiciosos e os partidos surgem immediatamente nas suas
diligencias de colheita. Mas, se fosse possivel que o suffragio popular
funccionasse em perfeita liberdade, não teriamos n'elle uma garantia de
progresso, porque é sabido quanto o espirito popular é, em regra, adverso
ás transformações que o progresso scientifico indica. Ha mesmo certa
opposição entre a democracia e a sciencia.

Ao mesmo tempo que a vida dos governos democraticos pela instabilidade e
desordem contínuas, nos faz duvidar do seu futuro e nos deixa sem esperança
de podermos alcançar por meio d'elles a ordem e segurança necessarias ao
progresso, por outro lado as lições da historia dão-nos exemplos d'uma
admiravel prosperidade sob regimens politicos bem diversos e até oppostos.
«A historia é fundiariamente aristocrata», diz Strauss. A mais larga
tentativa de regeneração nacional que ha dois seculos tem apparecido entre
nós, o largo plano do marquez de Pombal, se tivesse podido manter-se, com
certeza nos asseguraria um prospero futuro, mas sob uma fórma de governo
que se parecia bem pouco com a democracia. E, todavia, quasi não ha
portuguez intelligente e sincero que não lamente a sua queda.

«A democracia atheniense,--cujos dias foram tão curtos, e ao abrigo da qual
a arte, a sciencia e a philosophia lançaram uma vegetação tão
maravilhosa--não era senão uma aristocracia elevada sobre as ruinas d'uma
outra aristocracia muito mais restricta. Os esplendores que attraíam a
Athenas todo o genio original do mundo então civilisado alimentavam-se pela
imposição de impostos desapiedados sobre um milhar de cidades vassallas; e
os operarios habeis que, sob a direcção de Phidias, levantaram o Parthenon,
eram simples escravos.»

Os Estados-Unidos são dos raros exemplos em que a democracia e o progresso
vão associados. Em capitulo especial veremos o que é na realidade a
democracia na America.

Maine toca n'este ponto uma das questões mais graves das democracias--as
suas relações com a questão social. Crê que desde o momento em que as
classes laboriosas conquistem o poder hão-de pelos seus mandatarios
exercel-o em proveito d'aquellas mesmas classes. Suppoe que a democracia
pretenderá corrigir a injustiça e desigualdade que hoje se dá na
distribuição da riqueza, e d'esta tentativa poderia resultar a sua
aniquilação. Uma parte d'esta destroe-se constantemente pelo consumo e,
para que essa parte se reproduza, é necessario manter a energia dos mobis
da producção: ora estes baseiam-se principalmente na livre concorrencia.
Reconhece que «os mobis que, na hora presente, excitam a humanidade ao
trabalho e ao labor, para resuscitar a riqueza em quantidade sempre
crescente, são de natureza a arrastar infallivelmente a desigualdade na
propria distribuição d'essa riqueza.» Attribue a prosperidade dos
Estados-Unidos ao ardor da lucta pela vida sob um governo «em que todas as
restricções coercitivas se reduzem ao minimo.» A sua «benefica
prosperidade» baseia-se inteiramente na «santidade do contracto e na
estabilidade da propriedade privada: a primeira, instrumento, a segunda,
recompensa do successo na concorrencia universal.»

«Existem duas categorias de mobis, diz, e existem só duas, sob a influencia
das quaes até hoje se pôde produzir e reproduzir a enorme quantidade de
materiaes necessarios á subsistencia e ao conforto da humanidade.» «O
primeiro systema é o da livre concorrencia», o systema seguido na America
do Norte; o segundo «consiste em dar conta simplesmente da sua tarefa
ordinaria, tarefa fixada talvez por senhores equitativos e bons, mas
imposta aos recalcitrantes pela prisão ou pelo chicote.» Foi d'este ultimo
systema que brotou a maravilhosa prosperidade do Perú sob os Incas. E
termina: «Tanto quanto nol-o ensina a experiencia, somos forçados a
concluir que toda a sociedade deve adoptar um ou outro systema, sob pena de
caír da penuria na inanição.»

Examinemos as proposições principaes na sua these.

Em primeiro logar não se prova que a democracia tenha usado em seu proveito
do poder que conquistou. É verdade que o suffragio universal se tornou «a
base d'uma verdadeira tyrannia», segundo a expressão de Maine. Nos governos
democraticos tem-se formado verdadeiras oligarchias administrando os
negocios do Estado em seu proveito. Entre nós, nos ultimos cincoenta annos,
já tivemos dois exemplos de «tyrannias» d'esta especie, uma apoiando-se na
violencia o no favor real, a outra erigindo a corrupção em systema politico
e vivendo por este meio. Estas oligarchias governam em seu exclusivo
proveito; as crises sociaes e economicas que d'ordinario lhes succedem,
provam-n'o superabundantemente.

Mas, quando a democracia tiver conseguido governar realmente, como é de
esperar das reformas possiveis das instituições e dos costumes, é claro que
não poderá deixar de governar em seu beneficio. As leis que resultarão
d'esse novo estado, serão de natureza a modificar a livre concorrencia e
não afrouxarão por esse facto os mobis da producção da riqueza.

Entre uma concorrencia desenfreada e um regimen de escravidão existem
estados intermédios. Está seguro da posse das suas terras o proprietario
cujos bens podem ámanhã ser expropriados em beneficio publico?

Não é o imposto tambem uma parcella do seu trabalho? E, todavia, não
obstante as muitas restricções que já hoje soffre o direito de propriedade,
a lei ainda deixou estimulo bastante para a tornar appetecida. O systema da
livre concorrencia é que na verdade perturba o trabalho, excluindo a plebe
da apropriação dos fructos, mantendo-a invariavelmente na miseria. Maine
sustenta que ha apenas duas categorias de mobis sob a influencia dos quaes
é possivel a conservação e augmento da riqueza--a livre concorrencia e a
escravidão; mas de facto estes systemas são fundamentalmente iguaes. A
livre concorrencia creou o capitalismo que não differe essencialmente da
escravidão; é o que nos estão mostrando claramente as revoluções sociaes
contemporaneas.

É necessario manter a apropriação dos fructos, como recompensa do trabalho,
e por isso mesmo é necessario tambem estabelecer a concorrencia sob uma
base de justiça na distribuição. Seria para desesperar de todo o progresso
se a politica se mostrasse incapaz de resolver este problema.

O contracto deve ser «santo» sem duvida: mas a lei é que regula o
contracto. Reduzindo ao minimo a acção coercitiva da sociedade, elevaremos
ao maximo as probabilidades dos contractos immoraes e injustos.

Ora eu renunciaria de bom grado a toda a politica que não fosse dominada
por um ideal de justiça. Nem só de pão vive o homem, diz o Evangelho;
sacrificar tudo ao exclusivo desenvolvimento da riqueza é abdicar do que no
homem ha de mais digno. Por isso penso que, se porventura as instituições
que teem por fim normalisar a concorrencia conduzirem a um pequeno
afrouxamento da producção, nada teremos a lamentar.

Temos apontado alguns dos vicios e perigos da democracia. _Quid inde?_

Prosigamos a investigação dos seus elementos de fraqueza e procuraremos
depois as conclusões que d'ahi devemos tirar.



II

Natureza da democracia


N'este segundo ensaio, Sumner Maine volta a determinar a significação da
palavra «democracia». Andando ligadas a este termo ideias muito
differentes, é sempre indispensavel precisar a que em certo momento lhe
attribuimos. Por isso repetiremos que no presente estudo sobre o governo
popular «democracia» não significa «senão uma fórma especial de governo». É
o governo do Estado pela multidão, em opposição ao governo por um só ou por
um pequeno numero; é como o avesso da monarchia. Assim a democracia, como a
monarchia e todo outro governo «tem as mesmas funcções a cumprir, posto que
as cumpra por meio de orgãos differentes.»

O primeiro dever de todo o governo é «salvaguardar a existencia nacional.»
Manter a inviolabilidade e a integridade do territorio, e mantel-a sem
quebra do respeito e da auctoridade que constituem a grandeza moral d'um
povo, tal é o primeiro e imprenscindivel dever de todo o governo solido,
forte e digno. é uma verdade de primeira intuição que mal carece de ser
demonstrada; ninguem decerto louvará o regimen que conduzir á morte, ao
desapparecimento e á aniquilação do corpo cuja vida devia alimentar e
engrandecer.

«Se dos deveres externos d'uma nação passamos aos seus deveres domesticos,
vemos que o primeiro de todos é possuir um governo capaz de impôr o
respeito das leis civis e criminaes.» Essa mesma força destinada a defender
o corpo nacional dos ultrajes estranhos, só se tornará totalmente benefica
quando se applicar á manutenção da ordem dentro da mesma individualidade
politica. D'outra fórma a existencia nacional periga igualmente; que a
morte venha d'uma offensa externa ou da desordem e antagonismo dos
elementos constituintes internos, a decomposição é em ambos os casos
inevitavel. Ora a condição de toda a ordem é a obediencia á lei, e o
governo que deixar de a impôr firmemente, arriscando, a existencia nacional
pela permissão da desordem interna, terá faltado a um dos seus mais
imperiosos deveres.

Aquelles a cujos principios repugna a acção do Estado, apresentam-nos como
modelo e ideal a realisar certas communidades em que a obediencia á lei
reveste um tal caracter de espontaneidade que bem se poderia julgar inutil
a intervenção de qualquer auctoridade. Esquece-se a influencia educativa da
repressão, esquece-se que desde o momento em que faltasse o poder que os
creou, esses habitos lentamente iriam afrouxando e desapparecendo até que a
regressão á barbarie fosse completa. Se a obediencia se obtem sem esforço é
«unicamente porque, durante o decorrer de seculos sem numero, o Estado
soube, pelo cumprimento rigoroso dos seus deveres essenciaes, crear habitos
e inspirar sentimentos que lhe poupem a necessidade de recorrer aos
castigos legaes.»

Por vicios de organisação ou por natureza, os governos democraticos que
saíram da Revolução franceza teem vivido n'uma agitação social permanente,
muito ao contrario do que exigem os deveres fundamentaes d'um bom governo.
Devemos reconhecer a sua inferioridade n'este ponto, embora seja licito e
justo investigar as origens de fraqueza e procurar se porventura não haverá
meio de lhe dar remedio dentro do mesmo principio de governo.

Leva-se em conta das qualidades positivas da democracia, a sua actividade
reformadora nos costumes e nas leis, o que carece de ser confirmado pela
historia, se porventura não é radicalmente contrario ao que ella nos
ensina. «As grandes reformas legislativas tiveram por auctores monarchias
poderosas.» «Nós mesmos vivemos na poeira do Imperialismo romano; a parte
mais importante do direito moderno não é outra coisa senão uma formação
sedimentar depositada pelas reformas legaes dos romanos. Esta regra geral
continua a verificar-se em toda a extensão da historia ulterior. O unico
reformador radical do direito na Edade-Média foi Carlos Magno. Foi tambem o
imperio dos Bonaparte que deu curso á nova legislação franceza, a qual como
que inundou toda a superficie do mundo civilisado, porque os governos
immediatamente saídos da Revolução franceza apenas deixaram atraz de si
projectos de leis ou leis praticamente inapplicaveis em consequencia das
contradicções que encerravam.» A verdade é simplesmente que as fórmas de
governo que se apoiam sobre um principio unico são «eminentemente
destructivas». Revestem um caracter absoluto que não consente a existencia
de lei que não seja subordinada aos seus principios.

Que dizer do enthusiasmo pela democracia e dos hymnos d'uma comica
ingenuidade que a cada passo se ouvem em seu louvor? A admiração, quando
não seja guiada por uma sã razão, conduz necessariamente a este estado de
imbecilidade em que se apagou toda a luz do mais elementar raciocinio.
Todos os governos teem tido os seus fanaticos; seria despiedoso escarnecer
do que é condição das enfermidades permanentes da humanidade. Não
esqueçamos porém quanto é moderno este enthusiasmo pela democracia que não
partilharam aquelles mesmos que mais concorreram para o estabelecimento dos
governos populares. «Tocqueville considerava a democracia como inevitavel,
mas observava a sua approximação com desconfiança e receio.» Thiers
acceitou a republica sendo monarchico; acceitou-a e, o que é mais,
defendeu-a nas horas de maior perigo. «Grote fez o melhor que pôde para
explicar e dissipar a mediocre opinião que professavam, quanto á democracia
atheniense, os philosophos que enchiam as escólas d'Athenas; e entretanto é
um facto que os fundadores da philosophia politica, collocados em presença
da democracia, consideravam-na como uma fórma má de governo, posto que ella
estivesse então em todo o seu vigor juvenil.»

«Ha de resto um genero de lisonja que a democracia recebeu sempre e
continúa a receber em extrema abundancia: é a lisonja que dirigem ao rei.
Dêmos os que o temem ou desejam attraíl-o, ou que esperam exploral-o.» E
assim era de prevêr; transferida do rei para o povo a origem do poder,
curvam-se diante do novo idolo os que outr'ora se ajoelhavam nos degraus do
throno. _Parendo vinces._ Entre uma e outra situação não ha differença
fundamental; e, se algumas dissemelhanças existem, são ainda em beneficio
da monarchia. Um só homem, de intenções rectas e intelligencia lucida,
podia encontrar o seu caminho por entre os milhões de reptis que o
obscureciam, mas o povo com que cegueira não julga tanta vez!

É certo e indubitavel que as baixezas da côrte renasceram e medraram nas
democracias. Conhecer os sentimentos e paixões do povo, lisonjeal-os por
todos os modos, embora vão de encontro aos conselhos mais vulgares da razão
e da sciencia, abaixar-se até ao nivel dos mais baixos abdicando de toda a
franqueza e dignidade, tal é o triste calvario que toda a mediocridade tem
pisado para chegar ás regiões supremas do poder.

De resto, andaria bem irreflectidamente quem d'este enthusiasmo e d'esta
subserviencia aos caprichos populares concluisse alguma coisa sobre o
futuro da democracia. Enthusiasmo e lisonja são e serão sempre apanagio dos
governantes, em volta dos quaes, de mistura com a ingenuidade, zumbem as
ambições a que nenhum meio repugna. «O imperio romano, as tyrannias
italianas, a monarchia ingleza sob os Tudors, a realeza franceza com a sua
centralisação, o despotismo napoleonico, todos foram saudados por
acclamações, na maioria, d'uma franca sinceridade, ou porque a anarchia
acabava de ser açaimada, ou porque pequenas tyrannias locaes e domesticas
se viam forçadas a abdicar, ou porque uma energia nova ia infundir-se na
politica nacional.»

Jeremias Bentham «reclamava, para os governos dotados dos caracteres
essenciaes da democracia, o privilegio de escaparem melhor que os outros
governos ao que elle chamava influencias _sinistras_.» Estas influencias
são os motivos que levam a preferir o interesse d'uma classe ou d'um só
homem aos interesses da communidade. Entregue-se o poder á communidade
inteira e será exercido em proveito de todos.

Sumner Maine pretende que esta vantagem que se reclama para a democracia
pertence igualmente ás outras fórmas de governo. Apresenta em abono da sua
asserção factos historicos em que vemos os imperadores e reis cuidarem do
interesse do maior numero com a solicitude e intelligencia que até hoje não
attingiram os governos democraticos. Mas esse interesse não derivaria
exclusivamente d'um pensamento egoista? Não seria antes a necessidade de
procurar na plebe o apoio que as classes privilegiadas lhes recusavam?
Sendo assim, o desvelo facilmente se converteria em oppressão quando os
interesses dos governantes o exigissem. É d'este perigo que a democracia
deverá livrar-nos.

Maior peso me parece ter a segunda reflexão que Sumner Maine faz sobre o
raciocinio de Bentham. «O mundo compõe-se de vulgar», diz Machiavel; e por
isso a plebe desconhece os seus interesses. «Assim, a these fundamental de
Bentham volta-se contra elle. Pretende que se confiaes o poder ás mãos d'um
homem, servir-se-ha d'elle em seu proprio interesse. Applicai a regra á
totalidade d'uma communidade politica,--deverieis obter um systema perfeito
de governo. Mas se a ligardes a este facto notorio que as multidões são
demasiado ignorantes para entenderem o seu interesse, fornece o melhor dos
argumentos contra a democracia.»

D'um e d'outro lado ha uma grande somma de verdade. Não padece duvida que
as monarchias procurarão governar em seu proveito, já apoiando-se n'uma
classe, já associando-se á plebe; e é tambem inquestionavel que a
democracia ainda não logrou extirpar este vicio, substituindo apenas os
interesses dos aventureiros e das oligarchias capitalistas aos interesses
das monarchias e aristocracias d'outro tempo. O problema consiste, não em
rejeitar simplesmente a these de Bentham, fundamentalmente verdadeira, mas
sim em encontrar para as democracias uma maneira de funccionar adequada,
realisando praticamente a abolição das influencias sinistras.

«De todas as difficuldades que encontra uma democracia, a mais grave, a
mais constante, a mais fundamental, liga-se ás proprias entranhas da
natureza humana. A democracia não é senão uma fórma de governo, e em todo o
governo a acção do Estado é determinada pelo exercicio d'uma vontade. Mas
em que sentido póde a multidão querer?» Julga-se vulgarmente que o povo é
capaz de manifestar claramente a sua vontade sobre as questões que a
politica levanta e de facto assim acontece quando estas se apresentam com
simplicidade. Não é este porém o caso mais vulgar; as questões politicas
mais do que nenhumas outras são em extremo difficeis e complexas, e não só
não podemos esperar que a multidão comprehenda e veja o que muitas vezes
não vêem os melhores e mais experimentados espiritos, mas tambem seria
chimera esperar que em tal obscuridade se podesse chegar a um accordo de
opinião. Quando muito, o povo é capaz de adoptar a opinião d'um homem ou
d'um partido, mas seria erro suppôr que procedeu com madureza e reflexão;
ao contrario, os exemplos de todos os dias mostram-nos que a multidão segue
a opinião d'este ou d'aquelle pelo prestigio que o cerca ou por quaesquer
outros motivos estranhos ao seu ideal politico. O mal é tanto mais grave
quanto em nossos dias a democracia se tem mostrado excessivamente zelosa,
sujeitando á censura do povo os mais pequenos actos publicos e embaraçando
toda a administração. O que seria justo, se o governo do povo fosse
effectivo e se aquillo a que chamamos opinião publica fosse mais do que a
opinião «d'uma qualquer personalidade,--ou o chefe d'um grande partido,--ou
um pequeno influente local,--ou uma associação solidamente organisada,--ou
um jornal impessoal.»

Como meio de remediar a impossibilidade de confiar a administração do
Estado directamente á multidão, tem-se usado o governo «representativo».

Ficam remediados em parte os males acima expostos; reduzindo o corpo
eleitoral aos representantes da nação, com a reducção do numero crescem
proporcionalmente as probabilidades de alcançar um accordo de opinião e uma
decisão intelligente e justa. Comtudo, este systema que, em principio,
deixando uma grande liberdade aos representantes do paiz parecia realmente
dever prestar valioso auxilio aos governos democraticos, começa agora a
declinar em vista d'uma nova theoria que julga o representante sujeito a um
«mandato imperativo». Como poderá constituir-se a opinião d'uma camara em
que cada deputado representa a opinião d'um circulo? Onde acabam e onde
começam os poderes do mandato? Porventura o deputado não poderá afastar-se
da circular que de costume dirige aos eleitores em vesperas de eleição? Uma
tal maneira de conceber a representação nacional deve irremissivelmente
conduzir a uma perfeita esterilidade e á mais absoluta desordem. «A
obstrucção que os politicos experimentados deploram com tantas lamentações
e surprezas, não é outra coisa senão um symptoma da doença familiar aos
grandes corpos governativos. Provém do grande numero de deputados e da
diversidade de opiniões que luctam para abrir caminho.» O mal póde muito
bem converter-se no abandono ao poder executivo da maior parte da
auctoridade legislativa das camaras.

Pretende-se ainda corrigir a grande difficuldade dos governos democraticos
por meio do «plebiscito». N'este caso apresenta-se a todo o paiz as
questões sobre que é preciso conhecer a opinião do povo e todo o eleitor
não terá mais do que responder _sim_ ou _não_. Foi por este meio que um
despota militar obteve do povo francez uma resposta favoravel a tudo quanto
quiz para estabelecer o seu imperio.

Sob o titulo de _Referendum_ o plebiscito faz parte da constituição federal
da Suissa, e por muitas vezes o povo d'aquelle paiz tem exercido este
direito. Desde que um certo numero de cidadãos o pretende, uma lei
approvada pelo parlamento só entra em vigor depois de ter recebido a
sancção popular. Sem que se possa dizer que a experiencia deu maus
resultados, «em contrario do que se esperava e com o amargo desapontamento
dos auctores do _Referendum_, leis da mais alta importancia, redigidas
muitas vezes manifestamente com um fim de popularidade, soffreram o _veto_
do povo, depois de terem sido adoptadas pela legislatura.» Maine explica
este resultado pelo cansaço do eleitor que, depois da agitação e das luctas
que um facto d'esta ordem provoca, acaba por dar uma resposta negativa a
quanto lhe propõem.

Demais, as grandes reformas que principalmente a industria moderna tem
realisado seriam igualmente levadas a effeito se dependessem da approvação
popular? Seja-me permittido duvidar: as grandes reformas demandam
qualidades de intelligencia e caracter de que o povo carece. «O mundo
compõe-se de vulgar», na phrase tão verdadeira de Machiavel.

Entre as forças que a democracia tem chamado em seu auxilio como meio de
dar á sociedade politica a cohesão indispensavel para que a auctoridade
governativa se exerça energicamente, entre as forças cujo apoio tem
buscado, estão o espirito de partido e a corrupção.

«Entre as influencias capazes de arregimentar, como o demonstra a historia,
massas de cidadãos sob o jugo d'uma disciplina civil, o espirito de partido
e a corrupção são provavelmente tão velhos como a propria politica. O
grande historiador da Grecia descreveu-nos, em algumas das suas paginas
mais commoventes, a ferocidade selvagem das luctas de partido no seio dos
estados gregos; e nada se approxima, nos tempos modernos, da escala
grandiosa em que se praticava a corrupção, por occasião das eleições da
republica romana, não obstante todos os embaraços accumulados em contrario
por uma fórma antiga de escrutinio.»

O espirito de partido tem qualquer coisa de religioso e muito de militar; é
religioso pela repugnancia que anda ligada á abjuração d'uma primeira
confissão, é militar pela obediencia que impõe. Se alguma coisa prejudica
os seus beneficios, é simplesmente embaraçar por vezes a pratica da
justiça, da franqueza, da lealdade e de tantas outras virtudes que na vida
particular resumem o que ha de mais nobre no coração humano. Todavia, nos
governos democraticos é o seu principal apoio, o elemento politico de maior
energia que encerram, e seria deploravel que afrouxasse ou desapparecesse
emquanto as sociedades não encontrarem novas bases de cohesão.

A corrupção é o maior cancro dos governos populares; e, se não lhes é
peculiar, encontra n'elles um terreno tão adequado que tem sido levantada
ás honras de systema politico. De facto, assim acontece; os homens que na
sua vida particular foram d'uma inteira abnegação e desinteresse, na
politica mais do que uma vez recorreram á corrupção, convencidos de que
ella era o unico meio de crear um grupo politico unido e disciplinado, base
essencial a um governo estavel e fecundo. Erige-se a corrupção em systema
politico, na descrença de todo o sentimento nobre e de todo o mobil d'acção
que não seja um sordido e insaciavel egoismo. Tão baixo desceu o nivel
moral das sociedades contemporaneas!

Os Estados-Unidos da America são famosos pela sua corrupção: são a par da
Russia o paiz em que a corrupção é companheira inseparavel de toda a
funcção publica. Ha porém uma differença: é que na Russia, na opinião d'um
escriptor que a conhece muito bem, aquillo que nós chamamos corrupção,
reveste aos olhos dos naturaes o caracter d'um legitimo tributo,
auctorisado pela tradição oriental.

Na verdade, os Estados-Unidos, que tantas vezes os democratas nos apontam
para exemplo, teem o primeiro logar no rol da politica de corrupção. E a
França foi mais feliz com a sua republica? Os homens de estado que a
dirigem convenceram-se de que, como na America, na dissolução de todos os
vinculos sociaes só poderiam contar com o egoismo. «A corrupção publica
attinge alli proporções incriveis, com projectos de obras publicas
excessivas e extravagantes, n'uma das extremidades da escala, emquanto no
outro extremo se abre o trafico de votos nas associações eleitoraes, para
os innumeraveis pequenos logares que estão á disposição da administração
franceza, uma das mais centralisadas que se conhece.»

Sem pretender que a corrupção seja um mal exclusivo dos governos
democraticos, creio que todo o homem observador reconhecerá comigo que as
democracias assentes n'uma base individualista, activando a concorrencia e
dando entrada na vida publica aos mais pequenos, são um terreno
eminentemente favoravel a este desolador espectaculo de ambições e baixezas
que os tempos modernos nos dão incessantemente.

Resumindo: sem negar muitas das vantagens dos governos populares nem mesmo
contestar a legitimidade do principio em que se baseiam, a representação,
quiz simplesmente mostrar nas presentes considerações as graves
difficuldades do seu exercicio, até agora ainda não resolvidas de maneira a
assegurar a ordem na sociedade e uma administração intelligente e proba.



III

A edade do progresso


Nos governos populares, um dos erros maiores e mais fecundos em
consequencias desastrosas tem sido a confusão entre mudar e progredir. Os
paizes mais ou menos claramente governados pela democracia, nos ultimos
cincoenta annos, entraram n'este «periodo de legislação contínua» que
accumula reformas sobre reformas e, não contente de ter rompido
violentamente com o possado, á falta d'outro alimento devora hoje o que
hontem creou, n'uma fecundidade apparente, mas n'uma esterilidade real. Os
decretos e leis que os parlamentos da Europa votam cada anno constituiriam
só por si uma immensa bibliotheca; chegamos a uma febre legislativa tão
intensa que as camaras quasi não discutem orçamentos e contas, porque o
tempo mal chega para reformas; não ha partidos conservadores, não se cuida
em consolidar, corrigir e desenvolver; para deante, sempre para deante,
caminhar rapida e incessantemente é a aspiração commum e unica. Nos paizes
em que houve uma aristocracia poderosa, e mesmo em Portugal, não é raro
encontrar vastos palacios, traçados sobre largos planos, mas em grande
parte por concluir; o edificio que a democracia se propõe levantar é
magestoso, mas receio que, se não adoptar melhor systema de administração,
lhe aconteça como aos palacios fidalgos em que estavam lançados alicerces
para tudo, mas não havia parede concluida.

«Existe uma certa semelhança entre o periodo das reformas politicas no
seculo dezenove e o periodo da reforma religiosa no seculo dezeseis. Hoje,
como então, um pequeno grupo de chefes emprehendedores distingue-se da
multidão dos sectarios dóceis. Hoje, como então, encontra-se um certo
numero de beatos zelosos que desejam mais do que tudo o reino da verdade.
Ha alguns para quem o movimento que activam, não é senão um meio de se
subtraírem ao que é francamente mau; outros vêem alli o meio de saír d'uma
situação apenas supportavel para ganharem uma situação melhor; para um
pequeno numero é incontestavelmente a elevação a um estado ideal, que
concebem umas vezes como um estado natural, outras como uma especie de
millenio cheio de promessas. Mas atraz d'estes, hoje como outr'ora, vem a
multidão que se embriaga com o prazer de mudar por mudar.» Paixão egoista
ou paixão individualmente desinteressada, imitação inconsciente ou fraqueza
e cega sujeição aos instinctos populares, o prazer de mudar apoderou-se da
nossa época com uma força poderosa em constante actividade. Se esta força
se póde tornar effectiva, se a mudança é real e, n'este caso, se tem como
resultado a melhoria promettida, eis o que convém saber para avaliarmos a
sua influencia e beneficios.

A paixão de mudar é devida «a phenomenos universaes e permanentes da
natureza humana» ou deriva de «causas excepcionaes que affectam
momentaneamente a esphera da politica»? No primeiro caso será invencivel e
a sua acção constante, como a de todos os elementos naturaes; no segundo
caso será susceptivel de destruição e a sua acção transitoria e por vezes
ephemera. Ora, observando a historia dos costumes e instituições, e a vida
social dos differentes povos, somos levados a crer que «o estado normal ou
natural da humanidade não é o estado progressivo; é a estabilidade e não a
instabilidade. A immobilidade da sociedade é a regra, a sua mobilidade a
excepção.»

A todo o mundo musulmano repugna a mais pequena alteração dos seus costumes
e leis, e os negros da Africa detestam-n'a igualmente. A China ha muitos
seculos que attingiu uma completa immobilidade e, não obstante ter andado
tão intimamente envolvida com as raças de espirito e civilização
differente, conserva as suas tradições com uma fidelidade, maravilhosa em
taes circumstancias.

Se estes factos podem ser julgados como demonstração insufficiente, por se
referirem a raças que chegaram ao limite do desenvolvimento compativel com
a sua capacidade, voltemo-nos para a Europa e veremos que, á parte a
esphera mais propriamente chamada politica, as mudanças nunca são tão
radicaes e profundas como apparenta a febre legislativa. O inglez em
Portugal, o portuguez na India, na Africa ou no Brazil, todos os emigrados
revelam por todo o mundo a sua origem pela tenacidade com que conservam os
habitos do seu paiz. Ha individuos e raças com um extraordinario poder de
adaptação e que por momentos parecem invalidar a regra; mas não só os
habitos primitivos nunca se transformam completamente, mas apenas encontrem
condições apropriadas voltarão a manifestar-se energicamente. A faculdade
de adaptação a habitos differentes é, em regra, muito limitada
relativamente ao fundo permanente e indestructivel que caracterisa os
diversos ramos da especie humana.

Passando dos habitos ás maneiras, encontraremos fixidez semelhante. «Um
solecismo de maneiras ou de linguagem», «a irregularidade commettida no uso
d'um garfo», «a pronuncia viciosa d'uma vogal ou d'uma lettra aspirada» são
motivos de antipathia ou repulsão. «Conhecemos de fonte certa a existencia
d'este sentimento. Está longe de ser de apparição moderna; a sua origem é,
pelo contrario, muito antiga, provavelmente tão velha como a humanidade. As
distinções, de antiguidade incalculavel, entre uma raça e uma outra raça,
entre o grego e o barbaro, com toda a reciprocidade de antipathia que
arrastavam, parecem não ter tido, em principio, outro fundamento senão uma
certa repulsão occasionada por variantes de linguagem. Note-se que este
sentimento não se confina nas regiões ociosas, ou, se quizerem, superfinas
da sociedade. Penetra até á mais humilde esphera social em que o quadro das
maneiras, posto que differente, se impõe talvez com mais rigor.»

N'uma parte muito importante das sociedades europeias, nas mulheres, o
espirito conservador revela-se com inteira franqueza. O facto é digno de
notar-se e de valor, se considerarmos que até agora as mulheres se teem
conservado estranhas á politica, com excepção de certos individuos em que a
paixão politica se apresenta com um caracter morbido. Não se póde negar
que, não obstante os aphorismos em contrario, ninguem é mais constante do
que a mulher. No seu espirito, as regras de cortezia e de moral persistem
com singular tenacidade e a mais pequena infracção reveste aos seus olhos
um caracter bem mais grave do que aos olhos dos homens. Note-se como lhe
repugna abandonar os prejuizos aristocraticos e as distincções
convencionaes de classe. Aquillo mesmo a que chamamos _modas_, e que de
ordinario se julga d'uma instabilidade infinda, não varia afinal tão
radicalmente como se imagina ao simples aspecto d'uma renda posta á direita
ou á esquerda. As figurinhas de Tanagra teem no trajar semelhanças
frisantes com as mulheres do nosso tempo. O espirito conservador da mulher
é um facto incontestavel.

A prehistoria mostra-nos que as differenças entre o homem selvagem e o
homem civilisado são bem menos profundas do que nos fazia suppôr o atrazo
scientifico. Sem duvida, as differenças são grandes, mas a prehistoria pôz
a descoberto o fundo inalteravel da natureza humana, e as semelhanças e o
remanescente do estado selvagem surprehendem-nos pela sua largueza. «A
gente civilisada entrega-se com a maior diligencia a occupações, e
abandona-se com o maior prazer a distracções que seria incapaz de explicar
sob o ponto de vista racional, ou de conciliar com os preceitos da moral
corrente. Estas occupações e estas distracções são, em geral, communs ao
homem civilisado e ao selvagem.» Ambos combatem, caçam e dançam; ambos se
deixam seduzir pela rhetorica; e ambos finalmente permanecem, fetichistas,
um com seu amuleto, o outro com «as palavras, phrases, maximas, proposições
geraes cuja raiz se crava em theorias politicas tao completamente
esquecidas da maior parte da humanidade como se remontassem á mais
longinqua antiguidade.» Verdadeiro fetichismo, porque, quando buscamos as
causas d'este estado de espirito que no dominio da politica nos leva á
reforma legislativa continua, «parece não provir senão em pequenissima
parte de convicções intelligentes, e derivaria antes, e de largo modo, do
effeito que produzem ainda formulas e noções emprestadas a theorias
politicas completamente arruinadas.»

As doutrinas de Rousseau, dando á sociedade uma nova base, tinham como
consequencia uma organisação inteiramente nova; d'ahi a reforma radical da
legislação. O _Contracto social_ requeria a intervenção do povo a cada
instante, este despotismo do numero, tão fecundo em catastrophes; toda a
lei carece de ser _referendada_ pela multidão para que a soberania popular
se mantenha. Era assim que se devia chegar á sonhada liberdade e igualdade
absoluta. O tempo mostrou a inanidade de taes especulações, hoje
inteiramente caducas na mente dos publicistas, dos philosophos e de quantos
vêem a politica com olhos intelligentes, desvendados das perigosas
concepções _a priori_. Como acontece que theorias por completo refutadas
continuem ainda a alimentar a actividade legislativa, com um fim manifesto
de transferir para a multidão todos os poderes, banindo toda a influencia
corporativa e buscando uma igualdade que existe na lei mas que na realidade
é escravidão? A theoria morreu, mas ficaram as divindades que creou. As
theorias politicas «dão origem a uma quantidade de phrases e de ideias
associadas a essas phrases, cuja actividade e caracter aggressivo persistem
muito tempo depois da mutilação ou da morte da especulação-mãe.»
Encontramos aqui uma série de phrases sonoras, vazias de sentido, mas
conservando uma influencia que sobreviveu ás ideias; encontramos, n'uma
palavra, o fetichismo politico, a causa principal d'este legislar
ininterrompido e infindo.

Entre as causas secundarias do movimento reformador deveremos tambem
apontar a associação entre o progresso politico e o progresso scientifico e
o desenvolvimento industrial correlativo. Com os caminhos de ferro, a
machina de vapor e o telegrapho imagina-se que devem coexistir innovações
politicas parallelas. O que não é exacto: sem duvida, o progresso
industrial por muitos modos influe vantajosamente no desenvolvimento
intellectual e seria grave erro pretender contestal-o; mas, tendo a
politica e a sciencia campos d'acção distinctos e separados, posto que
dependentes em parte, segue-se que as transformações d'um lado não envolvem
necessariamente identicas transformações do outro lado, senão n'aquella
parte restricta e limitada em que as duas espheras se tocam. A sciencia
estabelece as relações do homem com a natureza, a politica as relações
sociaes entre os homens; e, por conseguinte, a sciencia poderá ser factor
politico, mas a politica não deverá em boa logica ser-lhe subordinada,
dadas as relações heterogeneas que respectivamente as constituem. Os factos
scientificos correntes estão a mostrar-nos a cada passo o perigo d'uma tal
associação. Se do desenvolvimento scientifico alguma coisa houvessemos de
trazer para a politica, seria tudo em prejuizo da democracia; pois não só a
sciencia nos indica que a fórma de governo natural é a escravidão, mas
temos visto quanto são ás vezes impopulares as reformas industriaes que
acarretam á humanidade larga somma de bem-estar.

Não confundamos: a politica não deve ser subordinada á sciencia, mas o
desenvolvimento scientifico póde em certos casos exigir transformações
politicas. Assim, presentemente, tendo crescido a riqueza e tendo a sua
producção ficado nas condições inteiramente novas que lhe estabeleceram as
applicações industriaes das modernas descobertas scientificas, é claro que,
variando os processos de producção, as instituições economicas terão de se
adaptar a este novo estado; mas vae longe d'aqui e de factos semelhantes a
estabelecer paridade e relação necessaria entre o progresso scientifico e
reforma legislativa.

Considerando o caracter estavel da humanidade em geral, e tendo em vista
que a presente actividade reformadora deriva de theorias politicas que a
razão e a experiencia mostraram completamente destituidas de verdade e não
susceptiveis de applicação, seremos levados a concluir que a democracia
erra tomando toda a mudança por um progresso, e, ao contrario, deveria
attender a que o progresso é lento e limitado. «Nem a experiencia nem o
senso commum nos permittem crêr que se possa votar infinitamente innovações
legislativas ao mesmo tempo prudentes e beneficas. Seria, pelo contrario,
mais sensato conjecturar que as reformas possiveis são em numero
estrictamente limitado. O calor possivel, diz-se, póde atigir 2000°
centigrados; o frio possivel póde descer a 300° abaixo de 0. Mas toda a
vida organica seria impossivel n'este mundo, se os acasos da circulação
athmospherica não mantivessem a temperatura entre um maximo de 120° e um
minimo de alguns graus abaixo de zero centigrado. Tanto quanto nos é dado
saber, as mudanças legislativas de que parece susceptivel a estructura da
sociedade humana poderiam conter-se n'um limite igualmente estreito. E,
porque certas reformas succederam no passado, não deveremos pretender que
todas as reformas succederão no futuro, do mesmo modo que não podemos
sustentar que o corpo humano póde supportar uma elevação indefinida de
temperatura, desde que póde supportar uma certa quantidade de calor.»

O radicalismo democratico, inspirando-se em simples presumpções, abandonou
a tradição, isto é, todo o thesouro accumulado por longos seculos de
experiencia politica. Restaural-a em grande parte é hoje uma necessidade; é
o que nos aconselha o exemplo dos paizes que, mais bem avisados, se
recusaram a destruir as suas constituições historicas e, sem preoccupações
philosophicas nem prejuizos de logica, se contentaram com transformal-as ao
passo e medida que as necessidades publicas o reclamavam.



IV

Os Estados-Unidos da America


Em quasi todas as profissões, o noviço precisa de padrinho, precisa do
apoio d'alguem, já admittido na classe, para lhe dar credito e abonar as
suas aptidões e qualidades; entregue ás proprias forças, corre grande risco
de ficar sempre n'uma posição inferior, a não ser que tenha uma capacidade
e talento excepcional. Na historia dos governos populares, os
Estados-Unidos da America foram e são no espirito dos republicanos a
garantia da estabilidade, ordem, riqueza, liberdade e segurança dos
governos democraticos. Vejamos pois rapidamente que estranha constituição é
a d'esse paiz, e até que ponto é justificado o desejo e a anciedade de a
transportar e aclimar na Europa.

É de facto maravilhosa a vitalidade d'aquella fórma de governo que pôde
atravessar incolume uma época em que as republicas mereceram tão pouco
credito. Emquanto a primeira republica franceza. lançando mão dos mais
tristes expedientes, não se embaraçando nem com o desterro nem a
guilhotina, cahiu em completo desprezo e teve por epilogo uma severa
tyrannia militar, os Estados-Unidos, na perplexidade e tumulto que deixam
uma guerra e emancipação recentes, prosperavam e acreditavam-se sob um
governo que, na opinião vulgar, era igual ao que na Europa se mostrava
absolutamente impotente. É que analysando a constituição federal a os
debates que precederam e seguiram o seu estabelecimento, vemos que a
republica na America é muito differente d'aquillo que geralmente se suppõe;
foi um governo traçado pelos velhos moldes da monarchia britannica e tão
rigorosamente conforme com esta quanto o permittiam as condições
particulares d'aquelle paiz. Os homens que o crearam, tinham sido educados
nas instituições inglezas e não tinham motivo algum para as menosprezar;
procuraram e alcançaram a independencia mas, satisfeito este primeiro
desejo, não conheceram outro modelo a seguir no seu regimen politico
interno senão aquelle que uma longa experiencia lhes tinha mostrado bom.
Naturalmente, não podia levantar-se a questão d'um rei hereditario n'um
paiz que acabava de se livrar do unico rei que tinha conhecido, e a eleição
do supremo magistrado da nação surgiu naturalmente como a unica solução nas
condições particulares d'aquelle momento. Semelhantemente ao que aconteceu
na França, que Thiers destinava á monarchia constitucional, mas a quem as
circumstancias mostraram que a republica era a melhor solução n'aquelle
momento. A 8 de junho de 1871 dizia á assembleia nacional que «toda a sua
vida tinha pousado no governo que o seu paiz podia desejar, e, se tivesse o
poder que mortal algum teve jámais, teria dado ao seu paiz o que, na medida
das suas forças, durante quarenta annos diligenciára assegurar-lhe sem
poder conseguil-o--a monarchia constitucional da Inglaterra»; e a 15 de
setembro de 1872 escrevia, depois d'uma viagem ao Havre, que «ficára
convencido de que só com a ideia da republica se podia agremiar a nação e
fazel-a um todo governavel.» «É em mim uma convicção sincera e
desinteressada, e as numerosas cartas que recebo, confirmam-me n'este
pensamento.»[2] Assim na America os fundadores da republica prefeririam a
monarchia, e mostravam-no bem, creando uma republica tão semelhante á
monarchia quanto n'aquelle caso o podia ser.

«É preciso ter sempre presente ao espirito que a edificação da constituição
americana differe absolutamente do processo para fundar uma constituição
nova, que podemos vêr applicado hoje na Europa continental, com intervallos
de poucos annos, e que se assemelha ainda menos á fundação d'uma republica
nova no sentido actual da palavra. Qualquer que seja a occasião que dê
nascimento a uma d'estas constituições europeias, as instituições novas são
sempre affeiçoadas a um espirito de amargo resentimento contra as antigas
que, no melhor caso, passam por uma dura prova. Mas os colonos da America,
recentemente libertos, estavam mais do que satisfeitos com a maioria das
suas instituições, que eram, em summa, as instituições das diversas
colonias a que pertenciam. E posto que tivessem supportado uma guerra feliz
para se libertarem do rei da Grã-Bretanha e do parlamento britannico, não
sentiam nenhuma antipathia especial contra os reis ou os parlamentos
propriamente ditos. Pretendiam sómente que o rei da Inglaterra e o
parlamento britannico tinham merecido, por causa de usurpação, a perda dos
direitos que poderiam ter, e que tinham soffrido justa punição sendo
desapossados d'esses direitos. Nascidos livres e inglezes, não deviam
provavelmente ser inclinados a negar o valor dos parlamentos; e, quanto aos
proprios reis, é provavel que a maior parte, dos _insurgentes_ tivessem
partilhado algum tempo, por sua conta, a opinião juvenil de Alexandre
Hamilton que, negando o direito da supremacia parlamentar sobre as colonias
britannicas, salvo nos limites em que estas o reconheciam, sustentava que
«o principio connexivo, o principio penetrante», necessario para ligar um
certo numero de communidades individuaes sob um só chefe, não podia
encontrar-se senão sob a pessoa e prerogativa d'um rei...» E porque a
America não tinha esse rei, teve de recorrer á eleição. Mas vae longe
d'aqui ao estabelecimento d'uma republica tal qual modernamente se entende,
isto é, baseada n'uma larga extensão do suffragio intervindo nos negocios
publicos a cada instante. Passando os olhos pelas principaes instituições
da constituição americana--presidencia da republica, supremo tribunal,
senado, camara dos representantes--veremos quanto os Estados-Unidos estão
distantes da moderna concepção da republica e se approximam das
instituições da monarchia ingleza de ha um seculo.

É manifesta a semelhança entre o presidente dos Estados-Unidos e o rei da
Grã-Bretanha. Ao presidente compete todo o poder executivo; é commandante
em chefe do exercito e da marinha; e com o conselho e consentimento do
senado conclue tratados, nomeia os embaixadores, os ministros, os juizes e
os demais titulares das funcções superiores. Possue um direito de veto
limitado e a faculdade de convocar o congresso, quando não houver sido
determinada uma época especial para a sua reunião. A semelhança entre o
presidente e o rei é tão estreita que este era um dos argumentos dos
adversarios da constituição. Hamilton respondia-lhes que não havia a
escolher senão entre um presidente e um conselho executivo, mas, n'este
ultimo caso, receava que o espirito de opposição e de partido paralysasse
toda a acção executiva d'uma corporação d'esta ordem: e insistia nas
differenças--a duração temporaria das funcções presidenciaes, a
participação do senado nos seus poderes e o veto limitado. Comtudo a origem
é manifesta e não póde haver duvida de que, ao determinar as funcções do
presidente da republica americana, o legislador tinha diante dos olhos a
constituição da Grã-Bretanha. A semelhança é tão grande que no plano
original, posto que a eleição fosse de quatro em quatro annos, o presidente
era indefinidamente reelegivel e só muito posteriormente foi estabelecido o
periodo maximo de oito annos.

«Se Hamilton tivesse vivido cem annos mais tarde, a sua comparação do
presidente com o rei seria apoiada sobre traços inteiramente differentes.
Deveria confessar que dos dois o funccionario republicano era bem mais
poderoso. Teria de notar que o veto real contra a legislação, veto que, em
1789, não se julgava ainda inteiramente perdido, tinha depois desapparecido
para sempre. Teria a observar que os poderes partilhados entre o presidente
e o senado eram absolutamente retirados ao rei; que o rei não podia mais
declarar a guerra nem concluir tratados; que não podia nomear embaixador
nem juiz; que não podia mesmo escolher o seu primeiro ministro. Não poderia
praticar nenhum acto executivo. Todos os seus poderes passaram no que
Bagehot chama um _comité_ do parlamento. Mas, ha um seculo, a unica
differença real e essencial entre as funcções do rei e do presidente era
que esta ultima não tinha caracter hereditario.»

O supremo tribunal é uma das instituições mais importantes dos
Estados-Unidos e, embora derivada da experiencia e da philosophia europeia,
póde dizer-se americana porque foi a America quem primeiro lhe deu plena
realisação. A constituição, tendo limitado distinctamente os poderes das
auctoridades legislativa e executiva, para o caso em que esses poderes
fossem transgredidos por um estado ou pela federação, incumbiu a annullação
d'esses actos ao supremo tribunal ou aos tribunaes que em certo momento
fossem instituidos pelo congresso. Esta prerogativa, porém, só poderá
exercer-se em casos determinados, isto é, quando haja litigio definido
entre individuos, estados particulares ou a união.

«O successo d'esta experiencia cega-nos sobre a sua novidade. Não lhe
encontramos precedente exacto nem na historia do mundo antigo nem na do
mundo moderno. Os fabricantes de constituições prevêem d'ordinario a
violação das clausulas constitucionaes; mas, em geral, não tinham procurado
o remedio exclusivo senão no direito criminal, procedendo contra os
culpados, e não no direito civil. E nos governos populares, o temor e os
zelos de toda a auctoridade que não fosse directamente delegada pelo povo é
causa de que a solução da difficuldade tenha sido muitas vezes abandonada
ao acaso ou á arbitragem das armas.»

Note-se todavia que esta instituição, que praticamente se mostrou
maravilhosa, não é tão original como á primeira vista se poderia julgar. É
facil descobrir as suas origens na Europa, Em primeiro logar, parece fóra
de duvida que os principaes auctores da constituição federal eram muito
lidos nas doutrinas de Montesquieu e ouviram em grande parte os seus
conselhos; ora é Montesquieu que nos affirma ser necessaria uma separação
essencial entre os poderes legislativo, executivo e judicial, distincção
que hoje é moeda corrente em politica por tal modo que nos é difficil
acreditar «que a differença de natureza entre os poderes legislativo e
executivo fosse ignorada até ao seculo quatorze.» Depois, esta mesma
confusão entre os differentes poderes do estado tinha dado logar em
Inglaterra a longos e frequentes debates sobre questões de direito
constitucional, e era de prevêr que os americanos, com a sagacidade e
lucidez que empenharam na fundação da sua lei organica, não deixassem de
tentar remedio ao que na Europa era a esse tempo um mal reconhecido.
N'estes dois factos poderemos encontrar as origens europeias das
prerogativas do supremo tribunal em questões de direito constitucional.

O congresso compõe-se do senado e da camara dos representantes. E. Freeman
vê n'este facto uma das provas mais cabaes da proxima filiação da
constituição federal nas instituições inglezas. Concebe-se que n'um paiz
novo e sem tradições independentes se tivesse estabelecido uma, tres ou
quatro camaras, mas a escolha de duas demonstra que os legisladores tinham
em vista os modelos britannicos.

O senado americano compõe-se de dois senadores por cada estado, eleitos por
seis annos pelas legislaturas locaes. É presentemente um dos corpos
politicos mais poderosos do mundo. A camara dos representantes a quem
juntamente com o senado pertence o poder legislativo, é composta de membros
eleitos todos os dois annos; os eleitores são, em cada estado, os que
tiverem «as qualidades requeridas dos eleitores encarregados de nomear o
ramo mais numeroso da legislatura do estado.» A camara dos representantes é
um corpo mais exclusivamente legislativo do que o senado; emquanto este tem
o direito de se oppôr ao presidente, cujos actos em muitos casos precisam
do seu consentimento, a camara dos representantes, com quanto tenha o
direito de vigiar os actos do poder executivo, possue-o em condições que
devem surprehender os parlamentos do nosso continente, habituados a
intervir a cada instante no que é da attribuição exclusiva do poder
executivo. Eis summariamente o caminho que no parlamento federal segue a
interpellação d'um ministro, como vulgarmente lhe chamamos: A camara está
dividida em muitas commissões, abrangendo todos os ramos do governo.
«Primeiro, quando se deseja informações do secretario d'estado ou de
qualquer outro ministro, é preciso obter o assentimento da camara. Uma vez
por semana, e n'esse dia sómente, «as questões a dirigir aos chefes dos
departamentos executivos devem fazer parte da ordem do dia para serem
enviadas ás commissoes especiaes; e as sobreditas questões devem ser
objecto d'um relatorio á camara na semana immediata.» Ás vezes, se me não
engano, o ministro vem á commissão; mas, se o preferir, póde limitar-se a
responder á decisão da camara por uma communicação em fórma dirigida ao
_Speaker_. Este processo cuidadosamente calculado corresponde ao nosso uso
mal definido, e tão pouco regular, de apresentar as questões e obter a sua
resposta em plena camara.»

As propostas de lei teem um processo semelhante. Como os ministros não teem
assento na camara, as propostas hão de provir necessariamente d'um membro
do parlamento. Uma vez apresentadas serão invariavelmente submettidas á
respectiva commissão, d'onde podem voltar á camara convenientemente
relatadas, sendo porém raro o numero d'aquellas a que isto acontece.
Systema prudente, que tem por consequencia dar ás relações do poder
executivo e legislativo um caracter inteiramente differente do que tem nas
democracias da Europa.

Não sei por que estranha perversão politica, entre nós substituiram-se
mutuamente os poderes legislativo e executivo. A iniciativa das leis parte
dos governos; e das camaras cae permanentemente uma chuva cerrada de
interpellações, pedindo contas de tudo, por tudo, d'aquelles actos para que
a reserva é uma condição de successo. Qual o resultado? O poder legislativo
não legisla, mas intervem e embaraça a cada passo a acção do governo,
nomeia e demitte os ministros, que d'ordinario teem a sua sorte ligada ás
propostas de lei que apresentam. D'aqui resulta uma completa inversão de
funcções e a desordem, anarchia e fraqueza consequentes. Nada d'isto
acontece nos Estados-Unidos, onde, estando os poderes precisamente
limitados, o governo nada tem que vêr com as deliberações da camara dos
representantes e a approvação ou rejeição d'uma proposta de lei não
embaraça a sua marcha.

Se ao que temos apontado sobre o caracter e a organisação dos differentes
poderes accrescentarmos que a constituição federal difficulta toda a
reforma da lei organica da nação, teremos uma ideia approximada da fórma e
dos elementos do governo politico que durante um seculo permittiram a
ininterrompida prosperidade dos Estados-Unidos; constituição tão
convenientemente adaptada ás circumstancias locaes, e porventura ás
necessidades essenciaes e permanentes de todo o governo, que presentemente
nada nos indica a sua proxima abolição ou reforma.

O art. 5.º da constituição diz: «O congresso, todas as vezes que os dois
terços das duas camaras o julgarem necessario, poderá propôr reformas
n'esta constituição; ou, mediante o pedido das legislaturas dos dois terços
dos estados particulares, reunirá uma convenção encarregada de propôr as
reformas que, n'um e n'outro caso, só validamente farão parte d'esta
constituição, sob todos os pontos de vista e para todas as necessidades
possiveis, se foram ratificadas pelas legislaturas dos tres quartos dos
diversos estados, ou por convenções especiaes nos tres quartos de entre
elles, segundo um ou outro modo de ratificação houver sido proposto pelo
congresso.» Tal é a disposição pela qual a constituição federal procurou
dar estabilidade ás suas instituições e precavêr-se contra as reformas
impensadas e prematuras. O futuro justificou a esperança dos fundadores; as
reformas teem sido raras e na maioria de pouca importancia. De 1804 a 1865
não houve mesmo reforma alguma.

Recapitulando: A constituição dos Estados-Unidos teve a sua origem nas
constituições europeias e particularmente nas instituições britannicas.
«Mas a constituição britannica que lhe serviu de modelo foi a que existia
entre 1760 e 1787. As modificações introduzidas foram aquellas, e essas
sómente, que suggeriam as novas condições de existencia das colonias
americanas, de futuro independentes. As circumstancias excluiam um rei
hereditario, e virtualmente excluiam, além d'isso, uma nobreza
hereditaria.» O successo innegavel da constituição dos Estados-Unidos é
devido em grande parte á intelligencia e sagacidade com que os legisladores
souberam aproveitar as instituições inglezas e toda a experiencia que
encerram, ao mesmo tempo que repudiavam e sanavam quanto era incompativel
com as circumstancias d'aquelle povo. O traço final e caracteristico que
nos apresenta este breve exame da republica americana, é o d'uma democracia
em que a ordem conseguiu estabelecer-se pela força, auctoridade e estricta
limitação e independencia de todos os poderes do estado.



V

Conclusões[3]


Antes de passarmos ás conclusões que devemos tirar dos erros e causas de
fraqueza dos governos populares, precedentemente apontados, não será ocioso
recordar uma das mais deploraveis consequencias da sua instabilidade sobre
que Prins insiste com extrema verdade e clareza.

Á inversão das attribuições do poder legislativo e executivo temos a juntar
o apparecimento d'um quarto poder do estado, monopolisando funcções d'uma
importancia capital na vida dos povos. «Ao lado dos tres
poderes--legislativo, executivo e judiciario, equilibrando-se, segundo a
theoria de Montesquieu, existe d'ora ávante um quarto poder, o
administrativo.»

«Á medida que se estreita o campo de actividade dos corpos representativos,
alarga-se o das repartições dos corpos administrativos. Á medida que a
auctoridade se enfraquece nas mãos dos ministros e dos deputados, o obscuro
e irresponsavel empregado das repartições ministeriaes sente crescer o seu
poder.

O snr. Humbolt que, n'um paiz de poder forte, estudava de perto a
burocracia, chamava-lhe um «vampiro devorador», e Bagehot diz com razão que
«o mais triste fetiche que podemos adorar é um empregado subalterno.»

Sob o reino da democracia, e até sob a inspecção do suffragio universal,
este fetiche levantou-se.

A verdadeira direcção do paiz encontra-se nas repartições dos ministerios.
A vitalidade, abandonando os orgãos essenciaes, reflue para os orgãos
accessorios, e a persistencia, a firmeza, a decisão que faltam á sociedade,
ás assembleias e aos governos, refugiam-se na administração.»

É o que na verdade estamos a vêr, d'alto a baixo, das repartições centraes
até á mais pequena junta de parochia. O director geral d'um ministerio é o
ministro effectivo, como o secretario da camara municipal é quem realmente
administra os bens do municipio. Tão intima, tão profunda é a necessidade
de persistencia que a sociedade, para manter-se, descobre este meio de
remediar a instabilidade que provém das eleições continuadas!

E por isso não poderemos dizer que a influencia administrativa é nas
circumstancias actuaes das democracias absolutamente illegitima, porque «no
meio das tendencias politicas que variam, dos ministerios e das maiorias
que se succedem, o modesto empregado que permanece, representa, n'este
cahos perpetuo, a tradição, a experiencia e a estabilidade.» E como estas
virtudes são condições essenciais de vida politica, os seus depositarios
terão a importancia social correspondente á utilidade das suas funcções.

Passando finalmente a procurar se dentro do principio fundamental dos
governos populares não haverá meio de fundar um governo forte, duradouro e
moral, lembrarei pela ultima vez que temos discutido aqui a
democracia--fórma especial de governo--e não essa outra democracia que
significa a tendencia a um determinado estado social.

A democracia, sociedade livre baseada no reconhecimento da igualdade de
todos os cidadãos, é realmente inevitavel e o ponto capital da evolução e
do progresso politico. Só pretenderá negal-o quem desconhecer as mais
elementares lições da Historia. Através de todos os estados sociaes que a
raça aryana tem atravessado, encontramos sempre a Igualdade como norma e
fim das transformações sociaes. A escravidão, a servidão e o salariado são
differentes degraus por que vamos subindo á altura desejada. O
individualismo, embora tenha errado o seu alvo, creando uma escravidão de
nova especie, tinha comtudo entre as suas aspirações a esperança do
nivelamento das condições sociaes por meio da livre concorrencia. O meio
mostrou-se praticamente impotente e, como tal, foi abandonado; mas o fim
permanece o mesmo.

Semelhantemente, a democracia--governo da multidão em opposição ao governo
d'alguns ou d'um só--era um meio de alcançar a igualdade politica que a
experiencia tem mostrado insufficiente ou incapaz. Não que o seu principio
fundamental possa ser facilmente invalidado ou substituido. Agora que, póde
dizer-se, os povos do continente europeu alcançaram a maioridade e o
progresso economico aniquilou em grande parte as necessidades e instinctos
guerreiros, não descobrimos outra origem legitima do poder que não seja a
vontade dos governados; mas na maneira de constituir por esta fórma um
governo efficaz reside o principal problema da democracia.

Não padece duvida que as fórmas até agora encontradas não satisfazem. É o
que acabamos de vêr nas observações de Sumner Maine, posto que seja
necessario descontar-lhes os defeitos inevitaveis de toda a fórma de
governo. Seria injusto julgar apanagio das democracias o que é commum a
todo o governo politico. Assim, tivemos occasião de vêr que o espirito de
adulação e de lisonja que tem erguido aos primeiros cargos do estado homens
que nem pelo caracter nem pela intelligencia deveriam jámais passar das
mais infimas condições, ou o encontremos na côrte ou nos _meetings_, é
sempre a mesma ambição isenta de escrupulos, rojando-se aos pés d'um deus
omnipotente.

A democracia, vimos, tem dois inimigos que até hoje não lhe permittiram
estabelecer-se solidamente--o Imperialismo e o Radicalismo. Ora é
exactamente a natureza e caracter dos vencedores dos governos populares que
nos esclarecem sobre as faltas d'estes. As democracias teem morrido ás mãos
do imperialismo, porque não teem sabido dar-nos a ordem, segurança e
grandeza que esta fórma de governo representa: e teem morrido tambem ás
mãos do radicalismo, ou porque igualmente não souberam estabelecer a ordem
e n'este caso o radicalismo é apenas symptoma de anarchia; ou porque, por
um vicio de funccionamento, permittiram a formação de oligarchias
capitalistas e identicas, e n'este caso o radicalismo é a consequencia d'um
justo sentimento de justiça, a equidade na distribuição da riqueza. É
necessario pois que a democracia se inspire nestas duas necessidades para
que possa resistir á ruina que, na experiencia de quasi um seculo, tem
seguido tão de perto o estabelecimento dos governos populares.

Os meios que a razão e a historia nos indicam para chegar a este fim não
differem essencialmente dos que nos aconselhavam os philosophos que tiveram
tão grande parte nas revoluções contemporaneas. Demonstrada a
impossibilidade do exercicio directo da soberania popular, a representação
por meio de delegados surge naturalmente como o unico meio de governo
democratico. Não ha, não póde haver outro, emquanto se não transferir a
origem do governo.

Vimos porém que a representação não evitou as «influencias sinistras» de
que falla Bentham; pelo contrario, no regimen representativo, essas
influencias mudaram de classe mas resurgiram com a força que talvez nunca
tivessem tido sob o antigo regimen. E não só resurgiram mas
multiplicaram-se; veja-se de quantas especies parasitas estão eivadas as
democracias, desde os deputados directores de grandes companhias até aos
empresarios politicos da aldeia. Parece pois que a questão capital é, pela
segunda vez, livrar a politica das «influencias sinistras», isto é, tornar
legitima a representação nacional, de fórma que ao interesse das
oligarchias se substitua o interesse da collectividade.

Para isso qual deverá ser a base da representação? O suffragio universal
está julgado. Sendo impossivel constituir o quer que seja de homogeneo com
elementos heterogeneos, todo o interesse social desapparece, e fica livre o
campo á formação das tyrannias que a corrupção mantém. Isto é hoje um facto
repetido centenas de vezes; já não são simples presumpções.

«Na sua obra célebre sobre as origens do governo representativo na Europa,
Guizot adopta, como base do systema, a Razão.[4] Ha, segundo elle, na
sociedade uma somma de ideias justas, de sabedoria, de intelligencia. Estes
elementos estão dispersos; é preciso saber colhel-os, concentral-os,
constituil-os em governo e assentar a auctoridade sobre a capacidade.»

Mas por onde aferir a capacidade? Quaes as provas necessarias para admittir
o cidadão a intervir directamente nos negocios publicos? Sobre que
basearemos a presumpção de que votará reflectida, livre e
conscienciosamente? O censo? A instrucção?

A propriedade suppõe capacidade administrativa e independencia desde que
attinja certas proporções; mas para muitos, para o maior numero talvez, «o
censo é simplesmente uma presumpção de fortuna, não tendo coisa alguma de
commum com as aptidões politicas e consagrando arbitrariamente o privilegio
d'uma oligarchia de ricos com exclusão do resto da nação.»

A instrucção fornece uma prova de capacidade talvez mais fallivel ainda do
que o censo. Por maiores que sejam as provas de intelligencia não podem
garantir-nos a capacidade politica. «Um sabio de primeira ordem póde ser um
mau eleitor, um operario póde tornar-se um excellente eleitor. Tudo depende
de saber a que se applica o seu voto e em que condições o vae dar.»

Não havendo meio de reconhecer a capacidade, torna-se pois necessario
adoptar uma outra base de representação. E não póde ser senão a que a razão
e a historia nos aconselham--o interesse social.

Para o podermos acceitar como fundamento da representação, carecemos
primeiro de distinguir entre duas noções absolutamente differentes e tão
frequentes vezes confundidas--a eleição e a representação.

Para nós, e em geral para todos os que acceitaram o systema representativo,
«a eleição e a representação são noções identicas, confundimol-as
intencionalmente; não concebemos mesmo uma sem a outra, e não admittimos
que um cidadão possa representar outros cidadãos se não é eleito por elles.

Em theoria, estas duas noções da representação e da eleição são todavia
absolutamente distinctas; podemos, com a eleição directa, ter mandatarios
que em nada representam a opinião de todos os votantes. Podemos, com a
representação das collectividades de interesses, obter um corpo
representativo fiel e sincero, posto que poucos eleitores tenham tido parte
no voto.

O mandatario eleito pelos seus concidadãos por maioria de votos, sobre uma
questão de principio; não representa nem a minoria, nem todas as _nuances_
da maioria; nada garante que elle comprehendeu ou não atraiçoará a vontade
dos seus eleitores. O delegado d'um grupo, ou seja eleito ou deva o seu
mandato á antiguidade, á sorte, á sua funcção, á capacidade, á situação
preponderante, etc., tem não só as convicções mas os interesses do seu
grupo, e não deixa de estar d'accordo com os seus mandantes senão
traíndo-se a si proprio.»

O fundamento racional da representação das collectividades de interesses,
em vez da representação do numero, é esta coincidencia dos interesses
individuaes dos representantes com os interesses da collectividade, O bem
publico é uma abstracção que, com excepção d'um numero muito restricto de
pensadores, não tem realidade, nem valor objectivo; debalde o invocaremos
para sollicitar uma politica intelligente e justa. Mas appellemos para o
interesse, fundamos n'um só o interesse do individuo e da collectividade, e
os conselhos do egoismo não permittirão que os representantes se afastem do
bom caminho.

Depois, ainda no campo racional, que significa o voto individual? Como sêr
politico, é porventura o individuo alguma coisa independente das relações
sociaes? Para que a representação seja legitima e verdadeira é preciso
representar essas relações e não um numero composto de unidades que só por
si não teem existencia social.

Se do campo racional passamos ao terreno historico, procurando as origens
do systema representativo vemos que em principio não fôra outra coisa senão
a representação das corporações e demais collectividades; e só por
corrupção e em grande parte por effeito do liberalismo individualista, caíu
na desordem presente, saída muito logicamente da dissolução de todos os
vinculos sociaes.

Para que possa dar-se a representação das collectividades de interesses, é
necessario pois reatar os laços dissolvidos, é necessario organisar de novo
e sob as novas bases que as condições actuaes da industria exigem, os
agrupamentos que os erros politicos destruiram em vez de transformar.

Tivemos occasião de vêr quanto o homem é radicalmente conservador. Os
homens que implantaram na Europa as instituições liberaes, desconheceram
esta verdade, e por isso a sua obra tem sido até agora sempre pouco solida,
por vezes ephemera; abandonaram a tradição, que o mesmo é que abandonar
toda a experiencia politica de largos seculos, para se guiarem por
presumpções assentes na abstracção incerta e vaga. Ora as relações sociaes
não mudam nem progridem tão rapida e largamente que as instituições que
durante tanto tempo se mostraram beneficas tenham hoje perdido todo o seu
valor; as necessidades sociaes são hoje o que eram d'antes, com as
modificações, talvez bem menos profundas do que se imagina, que o
desenvolvimento scientifico impoz á producção da riqueza. Urge portanto
restaurar a tradição, na medida em que convém ás necessidades sociaes
permanentes.

Assim, procurando uma base legitima para a representação, novamente fomos
encontrar a questão politica dependente da questão social, como ha pouco
investigando as causas de instabilidade da democracia, encontravamos o
radicalismo, um dos seus mais terriveis inimigos. Na verdade, todos os
grandes problemas politicos da actualidade teem a sua raiz nas questões
sociaes.

A representação só será legitima quando representar as forças sociaes; mas
para isso é indispensavel que essas forças se organisem e se agremiem, e
entrem n'um funccionamento normal, em vez do tumulto, desordem e
consequente instabilidade de governo em que actualmente se apresentam.

E então a democracia será um governo estavel? Não. Terá vencido um dos seus
mais terriveis inimigos, essa especie de radicalismo que julgo uma
aspiração justa. Já não haverá plebes desvairadas, mendigando d'um dictador
um pedaço de pão, porque a protecção, a caridade, a dependencia social
estarão organisadas devidamente. Mas resta ainda o imperialismo, ameaçando
derrubar todo o governo fraco, incapaz de manter a ordem e a grandeza
nacional.

Quem nos diz que os novos parlamentos não serão a imagem dos actuaes? Quem
nos afiança que a ambição, a inveja, a facilidade de chegar aos primeiros
cargos do estado não terão só por si força sufficiente para manterem
manietado o poder executivo, como estamos vendo todos os dias nos
deploraveis espectaculos que nos dão os parlamentos da Europa? A
legitimidade da representação corrigiria em grande parte os males do
parlamentarismo, mas é de crêr que deixasse ainda margem bastante para esse
obstruccionismo tão prejudicial a toda a acção governativa.

D'esta vez, iremos procurar o remedio a uma democracia, e á mais famosa, á
que mais vezes é apontada como garantia da solidez dos governos
populares--os Estados-Unidos. É a republica americana que nos diz, e um
seculo de politica liberal confirma-o plenamente, que para manter a ordem é
preciso que o poder executivo execute, que o poder legislativo legisle, que
o poder judicial julgue. O contrario, a inversão e intervenção mutua
d'estes tres poderes, é o enfraquecimento reciproco, d'onde resulta
invariavelmente a anarchia na sociedade.

Quando por estes meios a democracia se tiver tornado senhora dos seus dois
mais terriveis adversarios, será então um governo estavel, duradouro e
benefico.

    [1] _Essais sur le gouvernement populaire_ par Sir Henri Sumner Maine,
    tr. f. Paris; E. Thorin, 1887.

    [2] Jules Simon. _Thiers, Guizot, Rémusat_, pag. 87 e 93.

    [3] Adolphe Prins. _La Démocratie et le Regime parlamentaire_, 2^éme
    édition, Bruxelles, 1887.

    [4] Guizot. _Histoire des origines du gouvernement representatif en
    Europe_, vol. I, pag. 73; vol. II, pag. 110.



INDICE


        Introducção                                           V

    I. *O futuro da democracia*                              9

        O passado e o presente                                9

        Significação do movimento democratico                10

        A democracia--fórma de governo                       12

        Origem das democracias                               12

        A sua historia                                       13

        Causas da sua instabilidade                          14

        O imperialismo                                       14

        O radicalismo                                        15

        A pulverisação do poder e as eleições                16

        A democracia e a historia                            17

        O governo popular e a questão social                 18

        A livre concorrencia e a riqueza                     19

    II. *Natureza da democracia*                             23

        Os deveres do governo e a democracia                 23

        A actividade reformadora                             25

        O enthusiasmo pela democracia                        26

        A lisonja                                            27

        As influencias sinistras                             28

        Como se manifesta a vontade popular                  30

        A representação                                      31

        O plebiscito                                         32

        Espirito de partido e corrupção                      33

    III. *A edade do progresso*                               37

        Legislação contínua e paixão de mudar                37

        O estado normal é a estabilidade                     39

        Progresso politico e progresso scientifico           44

        Conclusão                                            45

        O valor da tradição                                  46

    IV. *Os Estados-Unidos da America*                       47

        Circumstancias em que foi creada esta republica      48

        A presidencia                                        51

        O supremo tribunal                                   52

        O congresso                                          54

        Difficuldade de reformas constitucionaes             57

        Resumo e conclusão                                   58

    V. *Conclusões*                                         59

        O poder administrativo                               59

        Os remedios                                          63

        A representação                                      64

        Eleição e representação                              66

        Representação de classes                             67

        Separação de poderes                                 69



Do mesmo auctor:

Estudos sobre a litteratura contemporanea..... 1 vol.

O Snr. Oliveira Martins e o seu projecto de lei sobre o fomento
rural........ Folh.


Em preparação:

As leis da agricultura.

Da educação.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "A Democracia - Estudo sobre o governo representativo" ***

Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.



Home