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Title: Cidades e Paisagens Author: Lima, Jaime de Magalhães, 1859-1936 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Cidades e Paisagens" *** JAYME DE MAGALHÃES LIMA CIDADES E PAIZAGENS _PORTO_ TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA Cancella Velha, 70 1880 CIDADES E PAIZAGENS JAYME DE MAGALHÃES LIMA CIDADES E PAIZAGENS _PORTO_ TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA Cancella Velha, 70 1880 _A MEU PAE_ _Sebastião de Carvalho Lima_ _Creio ter chegado a um periodo da vida em que a formação mental do individuo estaciona, tendo-se completado nos limites da sua capacidade. O pensamento trabalha talvez com maior actividade e n'um campo d'acção mais vasto do que no passado; mas a fórma e força dos seus orgãos já não progridem nem crescem nem diminuem nem mudam, mantêm-se. É porventura a época de estudo mais fecundo, não é decerto a de maiores prazeres; pois as emoções intensas do crescimento consciente de vigor foram substituidas pela repetição serena e methodica de esforços e resultados semelhantes._ _Breve ou longo, luminoso ou obscuro, tal qual foi com todos os seus tedios e todas as suas alegrias, percorri esse caminho apoiado na generosa amizade de meu pae. Por isso lhe dedico estas cartas, primicias de uma nova idade devidas á gratidão._ Jayme de Magalhães Lima. _ADVERTENCIA_ _Para repouso do espirito e procurando uma representação exacta de coisas que conhecia só pela leitura e me interessavam, fiz no outono passado uma rapida viagem pelo norte da Europa e da Africa. Nos breves momentos de descanso do meu jornadear impaciente dei conta do que ia vendo e pensando nas cartas que ora enfeixo n'este livro._ _Accusam-me os amigos e criticos intelligentes de ter sido abstruso, poupando-me a descripções e á narração dos factos e só cuidando de apontar as impressões de natureza moral que ficavam no meu espirito. A accusação é procedente, reconheço-o; mas não tentarei corrigir-me pelo respeito que devo á sinceridade._ _Estas cartas são reflexões sobre um limitadissimo numero de factos porque na verdade o meu espirito é d'este molde; prende-se meramente ao que se lhe afigura saliente e caracteristico, e despreza e esquece tudo o mais. Se é boa, se é má, não sei dizel-o; sei apenas que é esta a sua fórma._ _Não desprezo o trabalho descriptivo, incomparavel delicia quando é bem feito, unica base dos conhecimentos geraes; mas, além de requerer aptidões litterarias especiaes que não tenho, demanda ao mesmo tempo dotes d'um outro genero de que igualmente careço. A descripção, associada á narrativa e ao dialogo, póde bem aventurar-se no romance sem outro qualquer auxilio: a descripção simples, por mais brilhante que seja, é um anachronismo enfadonho se lhe falta a interpretação do lapis e do carvão que elucida, completa, abrevia e deleita, dando rapidamente uma impressão extensa._ _Depois, ha muitos modos de viajar. Ha em primeiro logar o estudo--o conhecimento interno e externo dos povos nas suas instituições e nas suas paizagens, na sua vida moral e na sua vida economica, nas suas qualidades physiologicas e nas suas aptidões artisticas, no seu modo de ser intimo e nas suas relações com o mundo externo. Esses estudos carecem de longo tempo e saber paciente e a descripção é um dos seus elementos; estão feitos para quasi todo o mundo tantas vezes e tão bem que seria vaidade pueril tentar acrescentar-lhes o que quer que fosse._ _Um segundo modo é a viagem por curiosidade--vêr muita coisa e coisas differentes das que habitualmente vemos. É o regalo das sensibilidades cansadas ou demasiado cubiçosas e um genero de «sport» hoje muito em voga; o seu valor educativo, porém, é mediocre pela multiplicidade das impressões e falta de connexão entre si._ _Entre estes dois modos parece-me haver um terceiro, munido de estudos prévios para dispensar observação demorada e curioso só quanto baste para a elucidação do estudo. Procura a representação directa d'aquillo que já conhece, vendo em movimento os corpos vivos cuja anatomia e physiologia estudou primeiro; vai envolver-se na corrente das cidades para sentir o calor e o palpitar do seu sangue e uma vez alcançada esta impressão abandona-as como um parasita irrequieto._ _Isto pelo que diz respeito ao modo de apreciar as viagens. Pelo que se refere propriamente ás minhas impressões nada quero acrescentar e muito pouco tenho que esclarecer._ _O que escrevi de Berlim fará crêr que não senti lá outra coisa senão um militarismo brutal absolutamente antipathico ao meu espirito, quando é verdade que ao seu lado vi com intima admiração a força moral d'um regimen de ferro em que tudo é pautado pela lei severa e obedecida. Não sei que haja paiz que possua mais profundamente o fetichismo do dever. Um acto pratica-se porque é obrigação pratical-o e no cumprimento das obrigações não ha hesitar--tal é o primeiro e mais assombroso resultado educativo que a severidade allemã alcançou para aquelle povo._ _Nem mesmo direi antipathico o caracter do actual imperador da Allemanha, apesar do seu muito contestavel amor filial e d'uma paixão militar que não deve ficar longe da loucura. Aspirar a constituir uma patria e uma nação «allemãs» é talvez uma especie de egoismo mas largo e generoso; póde ser abominavel mas não perde por isso a admiração devida a todas as coisas grandes. E este é, a meu vêr, o caso do imperador da Allemanha._ _Igualmente receio ter ficado obscura a minha discussão com o conde Tolstoï._ _D'accordo quanto á medida do progresso, conformes ambos em que devemos aferil-o pelo alargamento e mais profunda penetração da fraternidade ou do amor nas relações sociaes, differiamos no modo pratico da sua realisação. Tolstoï conclue pelo nihilismo, pela abolição da propriedade, do estado, de todos os vinculos e de todas as dependencias, entregando os homens sómente á sua lei divina ou moral; pede uma dissolução onde eu pediria uma organisação, uma ordem, d'onde derivam a familia, a communa, a propriedade, o estado, uma subordinação. Historica e scientificamente está demonstrado, que, abolidos esses laços, a sociedade cae na anarchia, na guerra, na livre soberania da lucta pela vida, negação da fraternidade._ _E não se diga que esta maneira de vêr contradiz a igualdade, tendencia evolutiva das sociedades aryanas, historicamente demonstrada. A igualdade entre os homens, que o christianismo e a philosophia reconhecem, traduz-se nas instituições politicas n'uma accessibilidade de estado e de classe e não na abolição de todos os estados sociaes e das classes, orgãos da humanidade. D'esses orgãos deriva a sua fórma e é esta que nos cumpre aperfeiçoar sem a destruirmos._ _De resto, quanto ao modo de viver de Tolstoï, só repetirei que me merece a mais illimitada admiração. Comprehende-se e admira-se o homem entregue sem reservas a uma paixão sublime, despindo-se heroicamente de todo o «snobism» com que a fraqueza de todos nós condescende e curvando-se sobre o arado; absorvido n'esse mysterio insondavel e fascinante da terra, aureolado da maior de todas as bençãos divinas--a humildade._ _Sobre os demais pontos das minhas cartas creio não haver obscuridade que mereça ser apontada._ CIDADES E PAIZAGENS _Salamanca, 1 de Setembro._ Novamente em terras estranhas, com as velhas malas tisnadas ao sol de mil combates, isto é, cobertas dos rotulos dos caminhos de ferro e dos hoteis, que lhes abrem no coiro espesso grandes chagas multicôres; com essas fieis companheiras que por mim pisaram todo o calvario dos omnibus e dos wagons e soffreram ás mãos brutaes dos moços de gare, encontro velhas idéas, velhos programmas de viagem. Não mudei: a bagagem é ainda a mesma, exterior e interiormente. A boa ordem e o methodo exigem um programma, exigem que antecipadamente determinemos um fim e um systema. D'outra forma, a viagem não passa de uma dissipação, de elegancia ou de vaidade, um regabofe, grandes empresas, grandes aventuras, para escancarar de pasmo a boca dos papalvos. _Abrenuntio!_ Tenho lido e creio que o inglez e o russo viajam de maneira absolutamente diversa; o inglez vendo tudo, seguindo linha a linha o seu _guia_, minuciosa e escrupulosamente, e o russo passeando livremente, sem guia e sem tutela, correndo cidades e campos, envolvendo n'uma especie particular de indifferença museus e bibliothecas, cathedraes e universidades, monumentos e palacios, toda essa interminavel corda com que é costume enforcar a bolsa e a paciencia do viajante. Emquanto o inglez procura factos e impressões desconnexos, mas em grande numero, o russo procuraria poucas ideas geraes; um attenderia ao numero e á quantidade, outro á grandeza e á qualidade. Não sei até que ponto será exacta a distincção como attributo caracteristico de raça; é certo porém que em geral a podemos considerar verdadeira. A não ser que viajemos com um fim especial, o estudo de uma cultura, de uma arte, de um novo processo industrial, ou qualquer outro, ha apenas dois systemas de viajar, extremos de um dos quaes todo o caso particular sempre se aproxima: ou procuramos a abundancia e a riqueza de impressões ou um limitado numero de aspectos e idéas geraes, pondo de parte os factos inuteis á sua constituição. Sobre o valor intellectual dos dois systemas não me parece poder levantar-se duvida; ha toda a distancia que vai da simples curiosidade ao pensamento. Um estampa, grava e guarda, no seu estado primitivo, as percepções recebidas; o outro funde, relaciona, e tira um novo producto unico residuo duradouro e util. Ora, devo advertir aos que tiveram a paciencia de me acompanhar até aqui que desde longos annos me inscrevi na segunda das categorias que esbocei e não abjurei nem espero abjurar a primeira confissão. Temperamentos! Já vê, pois, o leitor o que póde esperar d'estas breves palestras, escriptas de relogio em punho e sob a respeitavel auctoridade dos horarios do caminho de ferro; nem poderei despertar-lhe transportes de enthusiasmo, em segunda mão, pelos quadros e monumentos notaveis, nem lhe contarei quantos viajantes me acompanhavam, nem como vestiam e dormiam, nem mesmo poderei dizer-lhe, e isso com verdadeira magua, se, realmente, n'esta parte da Europa que vou percorrer, é lei universal de todas as hospedarias deixar á noite os sapatos á porta do quarto de dormir e encontral-os de manhã bem lustrosos de graxa. Nada d'isto terei tempo de dizer-lhe; apenas alguns factos e idéas muito geraes. Já temos quanto baste de declarações prévias para que possamos entender-nos; passemos pois á viagem. Do Porto a Salamanca o caminho é bem conhecido. Atravessando o Minho, nas proximidades de Penafiel, póde observar-se o aspecto bem differente do Minho suburbano e littoral, como a Maia e Rio Tinto, e o Minho interior, aproximando-se das montanhas. N'este, a vegetação nos valles é mais abundante e viçosa, talvez resultado do maior abrigo; os montes circumvisinhos são mais elevados e muito despidos, differentemente do que acontece no littoral onde as eminencias são bem povoadas de pinhal que desce até á margem dos campos. A casa caiada e branca, construida de argamassa e coberta de telha, deu logar á cabana de pedra solta e de colmo, defumada e baixa. São de uma grande belleza as pequenas aldeias do interior do Minho; sombrias pela luz frouxa, pelo verde carregado da vegetação, pela côr terrea dos montes escassamente povoados de urze, e pelo colmo e o granito das habitações; mas ha no quadro uma grande harmonia de tons, deliciosas linhas pittorescas, e, na falta de arte, uma grande expressão, a que resulta da completa communhão do homem e da terra. A aldeia e o homem são pouco, quasi nada, a confundirem-se com os milharaes e com os pampanos. Do Minho passamos á margem do Douro e ás suas encostas devastadas pela phylloxera. A meu vêr, a paizagem carece de belleza; a natureza menos consistente dos terrenos schistosos produz a molleza de contornos; e a cultura, fazendo dos montes escadarias, destruiu toda a harmonia natural e substituiu a paizagem, não por outra paizagem mas por cachos d'uvas em prateleiras. Alem d'isto, os valles são demasiado estreitos e falta por isso a distancia necessaria para vêr bem as montanhas. São de uso e de bom gosto as lamentações sobre a sorte infeliz do Douro; e, de facto, os olhos menos penetrantes vêem alli a miseria e a destruição de uma opulenta riqueza que, nos seus melhores tempos, deu ao lavrador uma vida sumptuosa. Mas está o Douro perdido para sempre? E as florestas, e a acclimatação de plantas novas e de novos animaes? Assim como a giesta cresce por aquelles montes, não haverá plantas exoticas de maior utilidade que supportem igualmente os rigores d'aquella região? Não têm os lavradores um vasto campo a explorar na criação dos pequenos animaes como as aves e os coelhos? Não seria possivel fazer grandes reservas das aguas que no inverno correm em torrentes pelas montanhas? Se me não illudo, os grandes males da regeneração agricola do Douro não vem da sua natureza physica de que com arte necessariamente poderiamos tirar proveito; o grande embaraço é a falta de instrução e de capitaes. Para restituir á cultura as suas terras agrestes e hoje em completo abandono, é necessario que o lavrador saiba e possa; e, dado que viesse a saber em pouco tempo, quantos mil contos de reis não custaria a empresa? Subindo sempre, entramos em Hespanha, e pouco depois, vinhas e olivaes e amendoeiras, tudo nos desapparece para nos internarmos em plena região montanhosa. Nenhuma cultura, mas a paizagem é granitica, cheia de grandeza, os contornos nitidos e arrojados. Seguem-se planaltos arenosos, cultivados na maior parte; rarissimas videiras, os cereaes dominam e, parece, formam o tronco, a parte essencial da lavoura, como, de resto, succede nas grandes elevações do nosso clima. As aldeias não são frequentes, mas os campos murados e extremamente subdivididos. Sobreveio a noite. Pelos campos do Tormes, imagino que a paizagem não muda até Salamanca, pois o que vim encontrar aqui é em tudo semelhante ao que deixei, com a simples differença de que as hortas abundam, consequencia manifesta das proximidades de um mercado urbano. Resta-me fallar de Salamanca, falta-me o tempo. De Paris conversaremos. * * * * * _Paris, 5 de Setembro._ Salamanca é uma cidade antiga. As cidades antigas são como as grandes obras classicas que ora se encontram empoeiradas e amarellecidas na edição original, em que o texto e a fórma conservam a harmonia e a exactidão primitivas, ora se encontram nas edições modernas, annotadas, corrigidas, sob uma nova fórma material, corrompidas e alteradas o mais das vezes até se tornarem uma obra nova. São raras as velhas edições authenticas, e mais raras ainda essas outras especies de livros escriptos em pedra a que se chama cidades; porque, n'estas, as alterações são constantes, dia a dia, lentas e immediatamente imperceptiveis. Quando assim não é, a cidade morreu. Salamanca, sem ter morrido, estacionou. É como estes velhos enrugados, magros, tomando com exactidão rigorosa as suas refeições, o seu jornal e o seu passeio, agasalhados n'um casaco que nenhuma tesoura hoje sabe talhar, o pescoço envolvido em gravatas cuja vastidão nos assombra: vivem ainda e são todavia um documento do passado. Entre elles e as cidades ha uma differença apenas: as cidades podem rejuvenescer, os homens nunca. As bilhas da agua d'uma fórma tradicional, archaica; o trajar dos homens do campo, de calção e polaina de coiro, jaqueta e larga faixa, o collete curto com duas ordens de grandes botões de prata, a camisa sem collar, apertada com um só botão de filigrana, o peito todo de rendas; os palacios d'outro tempo, com janellas de todo o genero, largos portaes em arco e as mais bellas ferragens, agora tão infelizmente substituidas por informes pastas de ferro fundido; tudo nos transporta aos seculos passados e faz de Salamanca uma cidade interessante pelo valor instructivo, agradavel pelo desconhecido da impressão e finalmente bella por uma certa harmonia de quadro antigo que a vida moderna não logrou apagar. Não quero especialisar. Era preciso ser artista e historiador e eu não passo de simples lavrador, viajando intellectual e materialmente com a mesquinha bagagem de estudante. Duas observações apenas sobre a cathedral que, dizem os _guias_, é obra maravilhosa de gothico moderno. Confesso que não me arrebatou. Os rosarios de bispos e santos ornando as arcadas, estes paineis de reis magos com sandalias bordadas, elephantes e camêlos, anjos e oliveiras, christos e judeus, tudo acamado em muitas folhas de plantas desconhecidas, a Paixão e a Palestina inteiras e completas na fachada d'uma cathedral, são d'uma belleza que os meus olhos não percebem, por demasiado complicada, talvez. Quer-me parecer que a harmonia na obra d'arte se estende ás relações da substancia e da fórma e que os bordados, que convém ao linho e á sêda, são absolutamente deslocados na pedra. Poderão valer de muito como testemunho de perfeição e habilidade do artifice, mas da sua belleza desconfio. Uma ultima observação, antes de deixar Salamanca. Aqui, como em toda a Hespanha, abundam as côres vivas no trajar; e os escriptores tem por norma basear n'este facto os instinctos artisticos do povo, comparando-o com o norte sombrio e melancolico. Não será antes uma prova de barbarie? Não demonstra uma inferioridade de sensibilidade physica e tendencia a só perceber as côres que ferem a vista com maior intensidade? Junte-se a isto um excessivo cuidado no penteado das mulheres, tendo sempre em vista que a ethnographia mostra que a necessidade do adorno precedeu a necessidade do agasalho, e teremos sobre que reflectir. Sobre que reflectir, note-se; ponho uma interrogação, não faço uma affirmação categorica. Os primeiros campos que vi depois de Salamanca foram os de Miranda do Ebro; campos de calcareo, poeirentos, com uma vegetação frouxa, aldeias raras, distantes, escalavradas, denunciando uma vida estacionaria, a provincia bem sarjada de estradas e de ribeiros, ladeados de grandes choupos. Amiudam-se as aldeias, o campo e a habitação tem certo aspecto de cultura, de ordem, de riqueza, de bem-estar, e entramos em Vitoria, uma cidade já muito á moderna, com boas ruas, casas altas e bem alumiadas, relvas, jardins, arvores e verdura em torno. Alteram-se os dois quadros anteriores durante algum tempo, passa-se uma série de tunneis. Estamos nos Pyrenéos. Os Pyrenéos! A Suissa sem neve e sem grandeza, a vida abundante, tranquilla, cerrada como aquelles horisontes! Os casaes dispersos, uma grande paz, a aldeia não é precisa, vive-se só, os campos em volta da cabana, e em baixo, no curral, o ubere farto, generoso e inesgotavel das vaccas pacientes com grandes manchas brancas; ao lado o pomar, a macieira doirada de pômos, em baixo o campo de milho, senhor feudal d'aquelles campos, latejando de opulencia e de vigor, pelas encostas os prados, e lá até ao cimo da montanha a floresta espessa e baixa. A imagem da vida modesta, estreita, serena, sem miseria e sem paixões. Depois, até ao cerrar da noite, os pinhaes sem fim da região bordalenga e vamos acordar em Paris, Roma de uma nova Igreja a que preside um papa--a Devassidão. * * * * * _Berlim, 5 de Setembro._ Dizem os economistas que a cidade substituiu a feira; ao mercado periodico e transitorio succedeu o mercado permanente. Se ha capital europeia que justifique este modo de vêr é por certo Paris. Nenhuma tem mais accentuado caracter de mercado, com barracas de todo o genero:--de espectaculos, de alimentos, de vestuario, de prostituição e de politica. Porque--por exagerada que pareça a expressão, é todavia verdadeira--a politica nos governos democraticos e representativos é um mercado, a sua lei a concorrencia; todos são livres, todos são iguaes, e para entrar, para vencer, para lançar mão do poder tudo é licito e bom, a honestidade, o civismo e a intelligencia, e a lisonja, a intriga, a corrupção e a sem-vergonha. Triumphos ephemeros! Apenas alguem trepou ao ultimo degrau tem atraz de si um exercito, uma multidão, acotovelando-se, rasgando-se, batendo-se furiosamente, e o vencedor de hoje vai rolar amanhã na poeira ignorada e infecunda dos vencidos. O governo politico da França contribuiu manifestamente para dar a Paris o seu caracter actual. Dois elementos principaes formam uma cidade: o elemento governativo, o funccionario, o militar e a côrte, e o elemento mercantil, o commercio e a industria. Theatros, museus, bibliothecas, palacios, escólas, jardins, passeios e grandes ruas são a consequencia natural da existencia d'aquelles dois elementos; ou representam satisfações de prazer para uma população ociosa, ou são condições de trabalho e instrumentos de estudo para a população laboriosa: e, em qualquer caso, a sua vastidão e grandeza derivam da necessaria proporção que existe entre a intensidade da vida social d'um povo e os seus orgãos. Acontece, porém, que nos governos monarchicos, mais ou menos absolutos, ao lado do elemento mercantil, cuja norma é a concorrencia e o lucro, está um outro, igualmente poderoso e influente, que tem por norma a ordem, a sujeição e a obediencia e sempre uma apparencia séria e grave, embora muitas vezes occulte sentimentos e caracteres intimos que o não são; e este ultimo elemento, temperando o que o primeiro tem de excessivamente grosseiro e palrador, dava á cidade uns traços ligeiramente sombrios que, sem a tornarem triste, corrigiam o que porventura houvesse de demasiado estrepitoso e garrido. Ora a França, com a dissolução do segundo imperio, escreveu por toda a parte Liberdade, Igualdade, Fraternidade, varreu os ultimos restos de dependencia hierarchica, nivelou todas as profissões, o sabio, o politico e o mercador; e as instituições sociaes e politicas, juntando-se ao caracter inquieto e vivo d'aquelle povo, abriram de par em par as portas de uma grande feira franca--Paris. Desde a madrugada até alta noite, compra-se e vende-se. Ao romper da manhã, os pesados _percherons_ arrastam ao mercado toda a riqueza que os campos enviam; depois, vem o politico em busca do poder, comprando por todo o preço o voto popular, lisonjeando-lhe no parlamento e na imprensa os caprichos e instinctos, cedendo sem pudor á traficancia e á corrupção; depois, vem o sportman e o titular, os cavallos e os vestidos caros, as carruagens, as rendas e os brilhantes, vem o livro escandaloso e o livro desvairado, vem a feira das vaidades, como lhe chamaria o romancista inglez; depois, os mercados do amor, a miseria que ri, a miseria embriagada da propria miseria; e sempre o marulhar d'esta onda constantemente inquieta que geme e apregôa, ameaça e implora. Á concorrencia desenfreada não ha superioridade de especie alguma que resista; os mais bellos caracteres de raça, a lucidez, a alegria, os instinctos artisticos, a elegancia, a percepção viva e prompta da fórma e da côr, aniquilam-se, pervertem-se. Vencer é o fim ultimo e unico, e para lá chegar, a primeira coisa a pôr de parte é a qualidade fundamental de todo o espirito são,--a sinceridade. Importa pouco ao estadista o seu proprio pensamento sobre as coisas politicas, não precisa tel-o, nem muitas vezes o tem; o essencial é saber o que pensam aquelles por cujos hombros tem de trepar. Importa pouco ao artista e ao homem de letras ouvir a sua consciencia sobre o que ella lhe diz da belleza na obra d'arte; o essencial é saber o que pasma e arrebata aquelles que hão de pagar-lhe em incenso e ouro. A vida consome-se febril e ardentemente, quasi heroicamente, n'um esforço ingente--chamar gente á sua barraca. Se houvesse de consultar os meus sentimentos sobre a vida de Paris cobriria estas folhas de lamentos; mas o critico escuta as vozes estranhas sem dar ouvidos á sua voz intima, observa, descreve e classifica os phenomenos e as ligações das coisas, esquecendo as suas aspirações e desejos. Se porém me é permittida uma pequena desobediencia a lei, confessarei quanto me repugna esta inanidade de vida moral, e o desprendimento da natureza e de todas as forças intimas e divinas que regem o homem e o mundo. Paris afigura-se-me uma fornalha de gelo, rubra como a chamma e fria como a neve; consome e não dá calor, como se um dia no pólo todas as neves se incendiassem n'uma labareda ingente e em torno um frio agudo a prostrar na morte a humanidade. Sempre a tyrannia do horario dos caminhos de ferro! Tinha ainda duas palavras a dizer de Paris, de Berlim, e da viagem até aqui, mas só em Moscow poderei fazel-o. Já me resignei a nunca trazer estas notas em dia. * * * * * _Moscow, 13 de Setembro._ Ao vêr os arredores de Paris, coalhados de jardins e de pequeninas casas tratadas com esmero, dir-se-hia que aquella gente conserva sempre vivo um grande amor pelo silencio e pela paz da natureza. Do pequeno burguez ao grande banqueiro, todos ambicionam a arvore e a flôr, ou sejam em dois palmos de terra, comprados a peso de ouro, ou seja em vastos parques, traçados com arte e sabedoria; e ao domingo, o operario, o caixeiro, a legião innumera dos humildes vai a Saint Cloud, a Saint Germain, a Enghien, ou a qualquer outro arrabalde, onde tenha um retalho de relva e um farrapo de sombra para deitar-se um momento. São porém levados pelo amor da terra? Não são. Todas as grandes cidades têm ao lado estes ninhos de verdura onde nas horas de ocio se acoita a população extenuada e anemica; são uma necessidade hygienica, dependencias obrigadas, como os theatros, os museus e as escólas. Mas o que ahi se procura não é a satisfação d'um sentimento ha muito perdido no tumulto das ruas e na anciedade de enriquecer e gozar; procura-se saude, recuperar forças, um tonico, um alimento substancial, especie de ferro e de extracto de carne. Transportam-se para o campo os habitos da cidade, não se vai para o campo a fugir da cidade; e na arvore mysteriosa e sagrada não se adora um deus que o cerebro exangue já não percebe nem sente, vê-se uma pomada, um balsamo que dá frescura e vigor á pelle, abrazada por um ar empestado e por uma actividade excessiva. A cidade é uma fornalha, o campo um hospital. Duas coisas admiro todavia n'uma cidade como Paris--a organisação e a intensidade do movimento, e o poder instructivo. Ha qualquer coisa de assombroso n'este rio immenso em que simultaneamente se agitam e movem tantissimas correntes sem se aniquilarem; toda a grandeza da antiguidade é mesquinhez ao seu lado. De longe em longe, um desastre, uma pequenina mola que se partiu, um abalo ligeiro, quasi imperceptivel. Que foi? Um incendio, um naufragio, uma guerra, quinhentas, mil ou trezentas mil pessoas que desappareceram. Um movimento de espanto: a grande corrente não pára, segue no seu leito tenebroso e revolto, e nas nevoas espessas da sua vastidão sumiu-se ephemera a hecatombe que por longos annos faria estremecer de horror a velha Roma. A vida patriarchal e simples póde gerar todos os sentimentos bons e abrir ao espirito horisontes sufficientemente largos para lhe despertar o desinteresse de descobrir a ordem e as leis das coisas; mas, por isso mesmo que é simples, equilibrada e serena, nunca poderá suggerir-lhe noções dos typos excentricos. Para attingir estes pontos extremos é necessario levar o espirito a um estado de vibração nervosa que não é outra coisa senão a loucura em differentes graus; e os casos d'essa ordem, esporadicos nas civilisações passadas, são frequentes e quasi normaes na vida febril contemporanea. É n'este sentido que reputo muito alto o valor instructivo das cidades, que nos vicios, na miseria e nas paixões mostram uma complexidade e largueza da alma humana que em outras condições se não vêem, por isso que não existem. Por este lado, a cidade moderna tornou-se um estudo essencial ao philosopho, ao poeta e a todos os que por qualquer motivo tem de lidar com os phenomenos psychologicos; as obras d'aquelles que porventura carecerem d'este elemento serão necessariamente incompletas e imperfeitas. De Paris fui a Berlim. Parti á noite, amanheceu-me nas proximidades de Liège e logo alli encontrei duas coisas que não temos e que deveriamos ter,--a lavoura feita por cavallos,--n'uma terra polvilhada de branco. Nem lavramos com cavallos, nem usamos esses pós brancos que são adubos mineraes. A utilidade d'estes não padece duvida e, se os applicamos em tão limitada escala, não é por que geralmente se ponha em duvida o seu proveito; mas as condições legaes e economicas do fabrico acarretam falsificações e preços que fazem recuar o nosso lavrador, e com razão. Que o estado dê garantias de genuinidade e estabeleça um regimen que abaixe os preços até os tornar accessiveis á nossa lavoura, e tenho por seguro que os adubos mineraes terão entre nós tão larga e proveitosa applicação como nos paizes estrangeiros. Fora d'essas condições é inutil prégar melhoramentos agricolas; a lavoura, mesmo sem contabilidade, arruina ou enriquece e, sendo uma industria e não um capricho, só no ultimo caso poderá viver. Sobre o segundo ponto, a introducção do cavallo como principal motor agricola, divergem os lavradores, e são-lhe contrarios na sua grande maioria, exceptuando o Alemtejo, em que o clima obriga ao serviço por muares. Todo o norte porém classificará de utopia o meu pensamento. Porque? Nenhuma razão economica bem fundamentada se allega; o unico motivo é de natureza historica, a tradição e o habito. Reconheço-lhe a grandeza, sei o que vale como factor da educação do operario: póde muito em todo o mundo, vale muitissimo n'uma terra em que a educação agricola é exclusivamente caseira. Mas se a aptidão e os conhecimentos do operario nos incitam a proseguir na rotina, a concorrencia impõe-nos tentativas de reforma. Todos os paizes estrangeiros praticamente adoptaram esta fórma de divisão de trabalho agricola, o gado cavallar como motor, o gado vaccum para a carne e para o leite. É um caso de divisão de trabalho e nada mais; essencial, a meu vêr, porque para supportarmos a concorrencia e voltarmos aos tempos aureos da exportação de gado, é manifestamente necessaria a melhoria das raças; e uma das suas condições é um bom regimen hygienico de que faz parte a singularidade do destino do animal. Trabalho, engorda e leite serão sempre mediocres emquanto forem individualmente simultaneos. O terreno accidentado d'esta região de Liège, os prados nas encostas, as mattas nas elevações e a estreiteza dos valles recordam-me o que vi nos Pyrenéos; todavia é grande a differença. É possivel que o não seja physicamente, quanto á natureza da terra e do clima, mas faltam lá os symptomas de riqueza que existem aqui--cultura esmerada, pujança de vegetação nos prados, abundancia de gados, frequencia e boa construcção dos casaes, e finalmente jardins, _villas_ e pequenos palacios de gente rica. Pouco e pouco vai decahindo de intensidade a paizagem agricola, perdendo ao mesmo tempo em belleza; atravessam-se regiões sem caracter em que a granja aceiada e o campo verdejante ladeiam a cabana na terra descuidada e inculta; só adiante, internando-nos na Allemanha, encontramos um novo typo. Estamos perto do Hanover, se me não illudo; o campo é vasto, ligeiramente ondulado, quasi plano, mediocre, sem fartura nem esterilidade; as casas de lavoura espaçosas e sombrias com os seus altos telhados de ardosia destacando frouxamente no céo nublado; com os prados alterna a floresta de lamigueiro escura, fechada, a folhagem tingida de negro, os ramos erectos. A vastidão, sem luz, sem brilho, pesada, asphyxiante! Preoccupação scientifica ou evidencia de relações, prendemos o caracter d'este povo ao aspecto da sua terra. Resta saber se ha sabedoria capaz de fazer partilha entre a natureza e a historia. Sempre attento ás coisas agricolas, para que me levam velhos e enraizados affectos, ao vêr como aqui se alternam o prado e o arvoredo, lembrei-me do mediocre resultado que temos tirado das poucas tentativas de creação de prados e do nosso despovoamento florestal. Ha entre a floresta e o prado uma relação intima e manifesta; e não será talvez ousadia affirmar que este ultimo só poderá viver inteiramente são sob o bafejo da arvore, tépido e humido. As condições climatericas favoraveis aos pastos só poderão alcançar-se pelo repovoamento florestal, principalmente nas regiões do interior, ao abrigo das brisas e orvalhos maritimos. Foi em caminho de Berlim que tive o prazer de me encontrar com o snr. George Saunders correspondente do _Morning Post_ n'aquella cidade e um dos principaes collaboradores da _Pall Mall Gazette_. É um rapaz muito intelligente, instruido, possuindo em alto grau (creio ser o seu caracter intellectual dominante) esse espirito de critica serena e desapaixonada, que chamarei sympathico, e que faz vêr os homens e as coisas na sua verdadeira luz. As observações sobre Berlim e a Allemanha, que tão generosamente me communicou, pareceram-me singularmente justas e, por isso que d'ellas colhi proveito, manda a probidade e a gratidão que faça menção d'este nome. * * * * * _Moscow, 14 de Setembro._*/ Em Paris deixamos uma feira; todas as cidades mais ou menos o são, porque isso é da sua essencia, dentro de termos entre os quaes oscillam. O ponto da escala em que se encontram determina o seu caracter. Ora, suppondo que esses termos ultimos são o estado-maior da politica e a feira, quem vier de Paris a Berlim cahiu de um no outro extremo. Á vozeria da rua, á confusão dos pregões e ao labutar dos mercadores succede o aprumo dos continuos e um caminhar pausado e surdo sobre tapetes, cortado de breves notas estridentes, ao sacudir das esporas. Berlim é a antecamara d'um imperador; muita farda e um grande silencio, sempre armada e sempre calada, perpetuamente preoccupada da força e da auctoridade. Sobre a cidade pesa um braço de ferro, a multidão abdicou nas mãos de uma vontade; só ella a move. A graça e a elegancia, a vivacidade e o riso foram banidos; o povo vai taciturno e lento. Ás vezes pára, observa, contempla; luziu-lhe no coração um momento de aurora e sorriu. Olhava o retrato do imperador diante de tres crianças, seus filhos, em continencia militar; e tirou uma vibração de jubilo, ingenuo, intimo, d'onde nós tirariamos uma gargalhada a tombar o maior dos cesares. O seu primeiro museu é o de artilheria; levam-se alli as crianças, collegios inteiros, a vêr os canhões francezes rasgados como um farrapo pela metralha do Krupp. Um criado de hospedaria que diante da qualquer se curva até ao chão, perante um capitão ou um coronel dobra-se attonito, fulminado. A piedade e a doçura, revelada no affecto da mulher, para que? A mulher é um animal, a sua lei a escravidão. Se não fosse... poderia supprimir-se, não representa nada. A Allemanha, que Berlim nos mostra, afigura-se-me um elephante, a intelligencia e a força em um corpo informe. Toda a sua alma crystallisou n'esta aspiração--ser forte, invencivel. Conta-se que Cellini, para fundir não sei qual das suas estatuas, lançára no fogo toda a baixella; a Allemanha de hoje fundiu n'um só sentimento todas as joias do coração do seu povo. Adora o exercito e o imperador, a expressão concreta da sua alma, entregou-se-lhes manietada e n'uma obediencia absoluta. Conseguiu ser forte. As doutrinas dos philosophos de mãos dadas com o genio militar alcançaram emfim dar-lhe uma rara força politica. Póde viver-se assim? É esta a ultima palavra da civilisação ou simplesmente uma gloria ephemera, sahida da coincidencia das aptidões d'um povo com as necessidades do momento historico? A revolução franceza, iniciando-nos no conhecimento dos direitos individuaes, simultaneamente deu aos estados constituições que conduzem á fraqueza e impotencia politicas; a Allemanha mostrou-nos novas vias conduzindo ao pólo opposto. Assim como só nós pudemos vêr os povos educados nas instituições derivadas da revolução, só os nossos filhos poderão saber o que é um paiz educado na admiração da força. Todas as prophecias serão prematuras, embora vagamente presintamos que a civilisação é mais alguma coisa do que a força. Dizia-me o snr. Saunders, fallando de musica, que as pequenas côrtes dos ducados e monarchias allemães eram favoraveis ás letras e ás artes. Alargando o seu pensamento direi tambem que a Allemanha actual, com todo o seu saber e profundeza, sahiu d'essas côrtes minusculas; os que vierem depois de nós saberão o que deu a Allemanha imperial. E visto que o leitor já deve estar habituado a vêr as minhas sympathias de permeio com a exposição dos factos, impenitente, recahindo na velha falta, acrescentarei que a Allemanha, que vi em Berlim, produziu inesperada antipathia no meu espirito, educado n'outras idéas, n'outros costumes sobretudo. Dizem-me que Berlim não é a Allemanha e que n'esse vasto imperio encontrarei costumes e idéas absolutamente oppostos; se assim não fôr garanto aos allemães a antipathia dos povos peninsulares. Não existiriam talvez na Europa caracteres mais accentuadamente antagonicos. * * * * * _S. Petersburgo, 18 de Setembro._ Em caminho de Berlim para Varsovia, a alfandega russa, com uma severidade desusada, obriga-me a parar seis horas em Alexandrowo. A visita das bagagens é minuciosa, os passaportes são apresentados e registados; o comboio vinha com atrazo, partiu quando muito bem quiz, e os viajantes que não tinham ainda as suas coisas em ordem alli ficaram até novo comboio. Eram quarenta ou cincoenta, pelo menos; e este facto, que em qualquer parte da Europa levantaria uma tremenda algazarra, não provocou um protesto. Aqui comecei a vêr a paciencia e a indifferença russas. Para mim não foi desagradavel, antes me deu prazer, pois tive occasião de passear nos campos d'essa desventurada Polonia, que desde as margens do Vistula vinha observando. São grandes lavouras arenosas e planas, n'esta época cobertas de beterrabas e de pastos, cortadas de mattas de pinheiro de Riga, terrenos baixos, soltos como as dunas. A gente do campo anda geralmente descalça, e os cavallos desferrados, o que o commum dos viajantes attribue á miseria, mas que a meu vêr provém unicamente da natureza da terra; tal qual acontece no littoral norte do nosso paiz. Repete-se ahi o mesmo facto, sem que por isso as povoações sejam mais ou menos ricas do que as do interior com habitos differentes. Uma arvore dá caracter a esta paizagem, o salgueiro, que com invariavel insistencia circumda os casaes cobertos de colmo, soltos e isolados, com largos intervallos, pelo meio das terras. N'estas planicies em que não se avista uma montanha, sem uma unica nódoa intensa e viva na verdura desmaiada a prender-se ao céo nublado, o salgueiro, sem destruir a harmonia, dá á paizagem o brilho que comporta com a sua folhagem alva, replandecente e leve como a nuvem. A paizagem do occidente é tecida de ouro candente; esta é de prata polida e fria. Ao contrario do salgueiro, o pinhal, máte, sem brilho algum, assemelha-se na côr ás estatuas de bronze expostas ao tempo, o que reunido á brevidade das folhas e dos ramos, nivelando a superficie, o torna absolutamente differente do nosso pinhal, carregado na côr e cavado de manchas largas e profundas; resultado da ramagem longa e distante. Um é unido e plano, um lago coberto de cinza, o outro ondeado como as encostas do Vesuvio, feitas da tortura gigante da sua lava. Já acclimado n'uma inteira passividade e resignação, segui de Alexandrowo a Varsovia com todos os atrazos e delongas proprios dos caminhos de ferro russos. Era um domingo e cêrca da meia noite quando cheguei. Por isso não pasmei do extraordinario movimento das ruas, julgando que seria o terminar de um dia de festa e de repouso. Mas logo mudei de pensar na manhã seguinte: o que eu vira, era habitual e ordinario. Que contraste com a enfadonha e sombria Berlim! Mulheres bonitas, elegantes, trajando bem, animadas, vivas, um fuzilar de carruagens em correrias doidas, e as ruas atulhadas de gente, fallando, gesticulando, movendo-se emfim;--tem tudo isto Varsovia. E tem ainda mais: desordem, immundicie, igrejas a cada passo com grande abundancia de devotos, ajoelhados á porta ou benzendo-se na passagem. A um carro coberto de lama atrella-se um cavallo estropiado, com uns arreios inqualificaveis, mas onde falta coiro e graxa sobejam adornos e ferragens; e por aqui imagino o resto, imagino o que vai por casa d'estas mulheres que na rua vejo tão airosas. Para nós, do sul da Europa, a vida intima das cidades como Varsovia ou Napoles, comprehende-se immediatamente. São os instinctos artisticos, o amor do luxo, das festas e da elegancia, alliados á desordem e á devassidão dos povos excessivamente nervosos; são a ociosidade e a imprevidencia revelados na devoção que entrega ás mãos de Deus o que não sabe conquistar pelo seu esforço. Folia emquanto ha dinheiro e saude, e valha-nos Deus, Nosso Senhor nos acuda para os tempos de miseria... Vivem n'um sensualismo irreprimido, no desgoverno de todos os impulsos e de todos os instinctos; o luxo para elles não é, como por vezes succede na Inglaterra, o florir proporcionado de uma planta que tem no sólo boas e solidas raizes e nos ramos uma seiva abundante; não é a coroação da riqueza, é uma flôr precoce n'uma planta exhausta, consumindo todo o alimento e todo o vigor que devia nutrir o tronco, os ramos e a folhagem. Essas plantas florescem e como ellas morrem tambem as sociedades que não souberam equilibrar a distribuição da sua seiva. Grande lição a da Polonia para quem souber e quizer aproveital-a! * * * * * _A bordo do Finland, 19 de Setembro._ O vapor vai sereno e o tempo calmo; aproveitemos este serão passado sobre o Baltico e conversemos. Deixando Varsovia, em poucas horas temos a paizagem do norte da Russia, que durante longas horas e longos dias nos ha de acompanhar com uma inquebrantavel monotonia. O que particularmente a distingue é a frequencia do vidoeiro, absorvendo e dominando completamente as restantes arvores, o abeto, a tilia, o carvalho, o pinheiro e outras poucas especies que apparecem raras e por isso não têm valor apreciavel. A ramagem pendente e o desbotado das folhas do vidoeiro, ao mesmo tempo que dão á floresta um aspecto compacto, roubam-lhe toda a rutilancia das ramagens horisontaes e os angulos e nitidez de linhas proprios das arvores resistentes e firmes como o carvalho, por exemplo. A floresta é ligada e unida, as curvas suaves, nem sombras profundas nem resplendor; entre o claro e escuro, como entre os differentes tons, as transições são imperceptiveis. Disse que a paizagem da Russia se distinguia pela predominancia do vidoeiro e não disse talvez a inteira verdade. Superior e porventura influindo muito intimamente na feição esthetica do arvoredo, está a configuração do terreno, um immenso Alemtejo, em planicies infindas, que assim se podem chamar umas depressões tão pequenas que não prejudicam a linha do horisonte. Sobre essa vastidão assentam aldeias, agglomerações de casebres baixos e abafados, construidos de madeira e cobertos de colmo, sem divisões interiores; em cada um ha, em regra, um pequeno ponto branco, a chaminé do forno sobre que no inverno dorme toda a familia. Ao lado, n'um pequeno pateo, intransitavel de esterco e de lama, estão as córtes dos gados, não mais vastas do que a habitação do dono. Tambem ás vezes falta o forno e então o lavrador e os gados vivem promiscuamente sob o mesmo tecto. Mas, sob esta apparencia miseravel, existe frequentes vezes o aceio e a ordem e não raro tambem a abundancia. As necessidades são poucas, toda a industria é caseira; se o anno foi abundante de trigo e de batatas, com isso e com o leite das vaccas tem a familia boa escudela. Todo o paiz é assim até Moscow; aldeias, mattas e lavouras em terras sempre ouduladas mas quasi planas. Posso até dizer que em toda a região da Russia que atravessei não conheci outra paizagem. Por taes caminhos chegei a Moscow, cidade tão gabada, sobre que o oriente tem dispendido tanto ouro como o occidente rhetorica enthusiastica. Olhei-a de longe com ancidade, passeei-a, subi ao monte a que Napoleão subiu para a vêr antes de a conquistar, mirei-a muito emfim. Pois de quanto por lá pensei e observei conclui que para nós, latinos, enamorados da harmonia, da simplicidade, da proporção e da graça, não tem belleza. Interessa e enthusiasma pelas evocações historicas que d'ella brotam aos cardumes e prende pela estranheza e pelo pittoresco d'um mundo novo; mas que seja um prazer esthetico o que ella nós dá, desconfio. É uma cidade sem plano, sem principio nem fim, sem um centro de convergencia, caprichosa e emmaranhada, como a imaginação oriental. Chamo a tudo aquillo byzantino, n'este sentido, que, á força de distinguir, confunde e enreda a mais não poder resolver. Cada rua deseatranha-se em mil bêcos e ruas tão grandes ou maiores que a via-mãe; de cada florão de architectura rebentam novos florões que se emendam, sobrepõem, sobem, descem, voltam ao ponto de partida para recomeçarem a mesma teia; taes quaes as discussões da nossa camara dos deputados. São as imaginações insaciaveis de subtilezas no pensamento, nas artes e em tudo, porque o espirito humano é um para cada povo e para cada época; são a negação da lucidez e da precisão. Com esta concepção da fórma esthetica coincide o brilho anteposto á côr. Indifferente ás delicadezas de colorido, o moscovita adora o ouro e as pedrarias: o bronze, a prata e o aço são pouco, é preciso doural-os. As igrejas estão recamadas de ouro, nos bazares abundam os bronzes trabalhados no paiz, mas sempre dourados; o thesouro do palacio imperial não terá maravilhas de Cellini, mas tem ouro e pedras preciosas que bastam a adornar todas as côrtes da Europa. Pelos atalhos d'essa montanha de riquezas anda uma população mesclada, cossacos e chinezes, circassianos e finios; porque Moscow, uma terra de commercio, um bazar, um genuino e simples mercado, tem de notavel sobre os seus congeneres do occidente e do centro da Europa, ser intercontinental e trazer ás suas barracas uma população que dos mais remotos cantos da Europa vai quasi a tocar na America. Quasi, agora; quem sabe se um dia a tocará de facto, e que medonha convulsão reserva ao mundo esse combate. Dizem ter mil e seiscentas igrejas, e creio ter devoção para edificar outras tantas. Não ha casa sem uma imagem do Christo; nem os restaurantes com frequencia muito suspeita lhe escapam. As offrendas não têm numero, tudo se faz por milagre. Direi todavia que esta é a maior força d'aquelle povo. Entre Paris, o epicurismo, Berlim, a força, e Moscow, a religião, eu preferirei a ultima, porque n'este reconhecimento de uma vontade superior, de quem tudo dimana e provém, está o germen e o fundamento da paciencia, da resignação e da obediencia, forças invenciveis que os factos externos deixam intactas e não quebram. É difficil dizer onde termina a fraqueza e onde começa a doçura e a piedade, que dimanam d'essa essencia, mas é certo que a maior de todas as forças é a força de soffrer. Não ha obstaculo mortal para a actividade de quem a possuir, e por isso o russo, apathico, soffredor, todo confiado á vontade de Deus, tem sobre todos nós, racionalistas do occidente, a maior das vantagens. * * * * * _Stockholmo, 22 de Setembro._ Vindo á Russia, não pude roubar-me o prazer de visitar o conde Tolstoï, o famoso romancista que hoje todo o mundo conhece. Como tantos outros estrangeiros, dirigi-me pois á cidade de Tula e d'ahi a Yasuya Polyand, propriedade e habitação de Tolstoï. Em torno d'este nome fez-se uma verdadeira lenda que representa o conde como um louco, fazendo sapatos e lavrando as terras. E na verdade tem não sei que de singular e de poetico a sua vida. Um dia, um conde d'esse dourado imperio dos czars vestiu-se de _moujik_, e mais do que simplesmente, pobremente, foi esconder-se na sua aldeia e começou a ceifar o trigo, semear o grão e construir a cabana. Tinha tudo o que a vaidade ambiciona, uma fortuna immensa, um nome illustre, uma mulher formosa e, sob traços grosseiros, uma rudeza viril alliada ao encanto d'um olhar limpido em que brilhava a doçura que lhe vinha da alma. Sobre tantos dons da natureza e da fortuna tinha ainda um prodigioso talento de artista. Nada lhe faltava para conquistar a lisonja e a veneração do seu tempo, e esse homem, que podia ter uma côrte de admiradores e thuriferarios, tudo deixou pelo trabalho da terra e pela companhia do aldeão, que ha pouco ainda era seu escravo. O mundo viu com espanto tamanha abnegação, sorriu e, sem ousar dizel-o, chamou-lhe loucura. Não o é; mas uma tal energia em conformar o sentimento e a acção surprehende n'uma época em que a simplicidade, a modestia, a religião e o christianismo, são essencias preciosas para uso verbal e devaneios litterarios apenas. E todavia o proceder de Tolstoï está ainda muito longe do ascetismo de outras eras em que princezas e fidalgos abandonaram familia, os palacios e o luxo, trocaram todos os prazeres, os prazeres santos e os prazeres impuros, pelo extasi divino e pela solidão do claustro. Vejamos brevemente que idéas e sentimentos levaram o conde ao novo claustro em que se encerrou. Dizia-me: Não conheço nações, ha homens apenas; e a sua lei divina e christã é a fraternidade. Por ahi devemos regular as nossas acções e aferir o seu valor. Respondi-lhe que não me parecia que o espirito nacional fosse incompativel com a fraternidade. Tomemos um exemplo, a protecção industrial aduaneira, uma consequencia do nacionalismo. Destroe a fraternidade? Não; pelo contrario, realisa praticamente uma equitativa distribuição de riqueza entre os differentes povos e, se não, lembremo-nos dos effeitos da liberdade commercial que seria manifestamente a miseria para uns e a opulencia para outros. Concedendo que dos motivos concorrentes na actividade humana, os motivos de ordem moral devem governar os da ordem natural ou physica, temos que a fraternidade, o amor, ou como melhor deva dizer-se, carecem de dar aos ultimos a satisfação devida para completa realisação dos primeiros. E assim é necessario que para os povos haja nações, como para cada familia uma casa. Erro! replíca Tolstoï. Para lançar uma pedra sobre determinado ponto carecemos de apontar mais longe, e assim tambem, para vivermos segundo o christianismo, precisamos não contar com os motivos de ordem natural. Elles se manifestarão espontaneamente; pensar n'elles é mal empregar a razão que deve guardar-se para as coisas superiores. Singular raciocinio, direi eu, que não quer contar com um elemento cuja existencia reconhece! Por este caminho vamos ao nihilismo, e Tolstoï era perfeitamente logico quando acrescentava: Para que servem os governos? Se ámanhã Moscow e Petersburgo desabassem, que importava a esta aldeia? Seria inteira e completamente o que hoje é. E contava-me, como esclarecimento e demonstração, que da Russia emigram familias inteiras, e na simples carroça que leva todos os seus bens vão muito longe, á Siberia e quasi á China, fazer as colheitas. Com o producto d'esse trabalho levantam a casa, estabelecem uma lavoura n'esses desertos incultos e são felizes até que o governo os descobre para lhes pedir impostos e os filhos para o exercito. Nova illusão, a meu vêr. Para que esta especie de nihilismo seja possivel são precisas duas condições, terra em extensão superior ao pedido e a simplicidade de costumes do _moujik_. Desde o momento em que a terra necessite partilha, ahi temos inevitavelmente um principio de governo; e desde que a vida se complique, igualmente apparece a necessidade de uma actividade collectiva, uma força que mantenha a ordem, e preste os serviços communs. Ora pelo que respeita á terra todos sabemos se ella abunda, e pelo que respeita á simplicidade de vida a historia e a observação dos instinctos naturaes são sufficientemente claros. O desenvolvimento e complexidade da civilisação demonstram historicamente uma tendencia irreprimivel e, se esta prova não existisse, bastava attender aos appetites e desejos dos mais simples, para descobrirmos um inicio de evolução para a complexidade. Na choupana do _moujik_ vamos encontrar um mealheiro e estampas coloridas a adornarem as paredes; entre essa choupana e a galeria de quadros do capitalista a relação é manifesta, uma contém o germen da outra. De fórma que essa simplicidade, individualmente possivel, é collectivamente impossivel. O que não importa a negação de uma vida mais simples do que a actual, como fim ultimo da civilisação; o balanço dos prazeres e penas da plena expansão natural, combinado com os sentimentos piedosos e aspirações christãs, conduzem a uma reducção reflectida das nossas necessidades, mas entre esta e o estado primitivo ha uma enorme differença que devemos vêr e pesar; e, sendo a simplicidade consciente um producto superior da civilisação, seria erro esperal-a do vulgo que para a attingir carece de ser educado. D'este ultimo facto a necessidade de governo e instituições educativas, que não serão portanto um mal e uma desobediencia á doutrina christã, mas sim a condição da sua realisação pratica. Como é de uso n'esta especie de palestra viemos de parte a parte a um interrogatorio sobre o estado social de Portugal e da Russia. Repeti o que disse na minha ultima carta, que a religião me parecia a maior força do moscovita. É e não é religioso, respondeu-me o conde. Entre Gogol e Beliensky levantou-se um dia essa questão e estou em dizer que ambos tinham razão. Se julga pelo numero das igrejas e pela sua concorrencia, dir-lhe-hei que o russo não é religioso; isso é um habito, como o alcool ou o chá, sem maior significação psychologica. Mas acontece que, differentemente do que succedeu com a Igreja romana, traduzimos o evangelho ha novecentos annos e as suas maximas divulgaram-se no povo em que ainda agora actuam energicamente. Por este lado a Russia é um paiz religioso. Se me é dado acrescentar alguma coisa, direi que o é ainda por outro lado, o fundo fatalista, Deus, Acaso, Providencia, negação da previdencia e reconhecimento de uma vontade superior incognoscivel. O proprio conde Tolstoï representa esta feição. Mostra-a nas suas obras e conversando commigo sobre as fórmas futuras da propriedade, disse singelamente:--Quem póde prever o que acontecerá d'aqui a vinte annos? Ao vêr o enthusiasmo com que Tolstoï me mostrava a aldeia e as habitações do _moujik_, ouvindo fallar dos campos e das seáras, fazendo a apologia ardente do trabalho braçal como tonico indispensavel para o corpo e para o espirito, comparando os actos e as palavras, pareceu-me que os grandes sentimentos que determinaram o seu modo de viver tão anormal, foram o amor da terra e a humildade christã. Conhecendo profundamente toda a sociedade e a alma humana, só ahi encontrou paz e satisfação á sua consciencia, e por isso envergou o habito e professou n'essa nova religião. Quizera reproduzir todo o longo discurso de Tolstoï, mas a memoria nunca me ajuda e muito menos n'este momento, em que a successão e diversidade de materias a contrariam. Ficou-me porém esta impressão--que o pensamento vôa mais alto em duas horas de palestra com um homem de genio do que em dois annos de meditação solitaria. * * * * * _Copenhague, 26 de Setembro._ Deixamos em Moscow uma cidade, producto espontaneo, e portanto caracteristico, do genio d'um povo em cujo sangue se amalgamam differentes raças, e em S. Petersburgo vamos encontrar a capital d'um grande imperio consciente da sua grandeza; a primeira é uma construcção historica, a segunda a revelação do pensamento e dos sonhos d'um imperador. A igreja da Assumpção, no Kremlim, na sua pequenez, com a profusão dos seus adornos e do seu ouro, é gigante como documento da concepção artistica do moscovita; Santo Isac, de Petersburgo, com os seus monolithos de vinte metros de altura, singela, sobria e grande, foi traçada por um francez e, se demonstra alguma coisa, é a victoria da architectura greco-romana em todo o mundo civilisado. Aquella infinita variedade de fórmas e de linhas em que se fundiam ou baralhavam a China, a Persia, o Oriente e a Italia, perdeu-se nas margens do Neva, entregues á imitação do occidente; e emquanto Moscow parece ter sahido da terra como o desenvolvimento natural e facil dos germens que continha, S. Petersburgo mostra uma vontade, um esforço de adaptação a habitos, costumes e fórmas estranhas, reflectidamente julgados melhores. É uma cidade afrancezada, como de resto o são todas as cidades modernas. Ha muito passou ao dominio da banalidade extasiar-se a gente perante a vastidão de Petersburgo; mas essa vastidão é unica no mundo, e por isso não importa repetir o facto, porque vêl-a será sempre uma impressão surprehendente. Entre o Neva abundante e profundo a espraiar-se n'um amor barbaro, insaciavel de terra, ao fundo d'essas planicies infindas povoadas de florestas e aldeias, para encerrar a corôa que liga as neves do Himalaya ás neves do Baltico era necessaria uma cidade, cuja vastidão eclipsasse todas as capitaes do mundo. Ruas, igrejas, palacios, pontes e caes, tudo é d'uma largueza unica. Todavia, através d'essa grandeza, que é porventura espontanea, e através da imitação do occidente, que é manifestamente pensada e deliberada, transparece certo sabor do torrão, qualquer coisa de barbaro. Muitas vezes o pensei ao atravessar a perspectiva Nevsky. No _isvochik_ ligeiro e rapido, o cavallo ligado por uma especie de bridão (_pavotkin_) ao arco (_duga_) que liga os varaes, o cocheiro envolvido n'um amplo _caftan_, curvado para a frente, braços abertos, cada uma das guias em sua mão, vai levado como o vento ao trote solto dos seus formosissimos animaes, A rua é um hippodromo de barbaros, no trenó o quadro será completo; a carruagem não é ainda uma commodidade, é um meio de andar rapidamente. N'essa vastidão da Russia é preciso voar para não morrer antes de chegar ao ponto de destino. De repente, no breve espaço de uma noite, que contraste! Para atravessar o Baltico vim embarcar em Helsingfords, capital da Finlandia; do ruido e da vastidão cahi na estreiteza e no silencio. Ou seja porque não chegou até aqui o sangue oriental ou sómente porque as condições da terra e do clima são outras, o finio é absolutamente differente do moscovita e mais se aproxima dos seus irmãos do outro lado do mar do que d'aquelles a que está sujeito. É possivel qne a constituição e quasi independencia da Finlandia proviesse simultaneamente de circumstancias historicas e do reconhecimento de insuperaveis difficuldades na russificação d'este reino. Descendo o golfo, viemos a Abo, ainda na Finlandia, e d'ahi a Stockolmo. Com excepção de poucas horas, navegamos sempre por meio de ilhas de uma deliciosa belleza. Bem povoadas de abetos e vidoeiros, não muito elevadas mas com as inclinações abruptas, que só a firmeza das rochas graniticas permitte, aqui e além cabanas de pescadores, raros animaes na pastagem, e sempre um mar tranquillo em volta, essas bahias e ilhas têm uma paizagem rica de sensações e aspectos. Além, na planicie, o vidoeiro absorvia os abetos, aqui na collina e na montanha separaram-se, e cada um apparece com as suas fórmas. São paizagens d'um genero que geralmente se aprecia e, a meu vêr, por esta razão são as que encerram maior riqueza. Emquanto a planicie nos dá a maxima repetição na minima e constante variedade, uma successão de manchas repetindo-se innumeras vezes mas variando constantemente na successão (como demonstração offerecerei o effeito das pinturas japonezas em sêda), na montanha temos toda a belleza linear possivel na paizagem, resultante da nitidez de traços com que se desenha no espaço e do isolamento que no arvoredo provém da disposição. Belleza a que o mar e os lagos dão maior relevo ainda, porque introduzindo novos tons e novas côres ao mesmo tempo destacam, emmolduram, dão luz. É o que n'essas ilhas acontece. Não lhes chamarei marinhas, porque o mar aqui é accidental ou pelos menos não tem maior valor do que os outros elementos constituintes. Esse nome reservo eu aos quadros que nos mostram o mar em toda a sua immensidade, tendo para mim que o prazer que em nós despertam provém não tanto da côr ou da fórma, que é nulla, como de uma sensação de grandeza de espaço e intensidade de luz. E se me perguntam porque razão sobre esse espaço põe tamanha belleza uma nuvem, uma vela, um ponto negro que seja, responderei que é um effeito de contraste para dar relevo ao elemento capital. Na escóla hollandeza encontraremos maravilhosos quadros n'este genero: grandes barcos no primeiro plano, uma torre ou um mastro no extremo horisonte, o mar, o céo e nada mais; e os olhos naturalmente fixam-se no espaço que medeia entre o primeiro plano e o horisonte contemplando a sua vastidão, cheia de luz. A riqueza da paizagem nas ilhas e costas da Finlandia e da Suecia não póde porém comparar-se com a riqueza das paizagens similares do occidente; a vegetação é comparativamente pobre de vigor e de variedade, e a luz é frouxa. Ás horas do poente, em vão procurei a onda trespassada de esmeralda das minhas praias; apenas um collar de perolas desbotadas sobre o dorso negro da vaga. * * * * * _Paris, 29 de Setembro._ «Com o seu sólo e o seu clima, a Scandinavia não póde ter senão uma vegetação pobre e uniforme.» Nos breves dias que passei em Stockolmo muitas vezes me lembraram estas palavras do meu _Boedeker_; pois não é só a vegetação mas toda a vida da Scandinavia que deriva das condições do seu sólo e do seu clima. Nem conheço paiz em que a natureza physica tenha mais clara influencia na determinação do caracter do povo. _Epiphania_ não é a creação da phantasia de um poeta. O «sangue côr de rosa», a «cinza que lhe inunda os hombros» quando pelos seus cabellos passa uma briza, os olhos «puros de sombra e de desejos» que «nunca sorriram e nunca choraram», esse typo de candidez impassivel coube em sorte a Scandinavia; todos os seus povos tiveram quinhão no thesouro, embora a partilha fosse individualmente desigual como é regra em taes casos. E só uma terra pobre e um clima frio podiam dar-lh'o; um sangue mais rubro e uma circulação mais activa prejudical-o-hiam inteiramente. D'ahi vem todas as suas qualidades moraes, a doçura, a serenidade, o bom-senso, que constituem o caracter scandinavo e são a base da felicidade d'aquelles povos. A debilidade physica parou n'um justo equilibrio da actividade sem descer tão baixo que chegasse á inacção e ao idiotismo; são felizes porque são fracos. Transportem-no a um clima ardente, dêem-lhe uma alimentação abundante e toda a excitação do calor e da luz, e o homem apparecerá apaixonado, cruel e febril. A vida será torrencial, sempre em correntes espumosas, edificando e destruindo, revolvendo e cavando a terra e a alma até ás suas mais intimas profundezas, heroica na natureza e no homem. Essas torrentes nunca passaram nos valles estreitos e frios da Scandinavia. Os olhos flammejantes de um gaiato de Napoles e a meiguice timida de uma criança de Stockolmo dizem-nos tudo o que as duas almas encerram. A fraqueza conduz á serenidade e á doçura; a reacção do individuo contra os accidentes da vida social e physica é proporcional á sua sensibilidade e á sua actividade. Por isso o scandinavo não se revolta contra os homens e contra as coisas, difficilmente vulneravel, entre a indifferença e o perdão. Os seus sentimentos são os que se conformam com este temperamento que lhe vem da terra, são a familia, a paz domestica, a fidelidade, tudo o que não exija um grande esforço e dê o prazer que cabe na medida e esphera da sua capacidade; um prazer superior ou heterogeneo seria indifferente, porque não poderia ser percebido. Passemos pelos museus: o parisiense pára diante dos quadros que lhe recordam a vida sensual; o prusso extasia-se perante os campos de batalha coalhados de trophéos e de cadaveres; o russo prefere os grandes dramas intimos, a dôr da viuvez ou o olhar allucinado do remorso; o scandinavo contenta-se com menos, o desembarcar do pescado n'um recanto da praia, a sopa fumegante sobre a mesa e a familia em torno. Abençoada fraqueza! Limitando a vida damos-lhe a maior garantia de felicidade. A maior? Não, a unica. Sem esses limites a inquietação é inevitavel, os tormentos são tão grandes como as aspirações. Este mesmo clima que produziu um typo de actividade physica e psychologica de intensidade mediocre, mas por isso mesmo regular e equilibrada, porque não tendo oppressões congestivas não tem igualmente as depressões consequentes, esse mesmo clima concorre para manter intactos os costumes nacionaes, actuando constantemente sobre a sua base, o caracter do povo. Concorre apenas; pois n'este ponto a causa determinante principal póde com bons motivos encontrar-se na situação geographica--quasi uma ilha, nos confins da Europa, desligada do continente pelo mar e pelo gelo, e durante longos mezes de inverno inteiramente isolada. O povo é pacifico e moderadamente trabalhador; nem guerras nem expansão commercial que alterem o sangue primitivo pelo contacto ou liga de outro sangue. E assim o typo nacional, filho do clima e auxiliado pelo isolamento, conserva-se puro. Pureza relativa, já se vê; as mesmas causas geraes que crearam o cosmopolitismo, tendendo a fundir n'um só os caracteres e costumes dos differentes povos, essas mesmas causas actuam alli, contrariadas todavia por forças indestructiveis, d'onde vem a fixidez quasi unanimemente reconhecida pelos viajantes. Na Hespanha temos um caso que esclarece e completa o da Scandinavia: alli os costumes nacionaes apparecem como simples reminiscencias do passado que a civilisação ainda não logrou destruir, mas sem caracter algum de fixidez, condemnados a completa extincção. As guerras interiores, a pobreza e a difficuldade de communicações prolongaram modos e fórmas de vida, que de futuro irão provavelmente refundir-se nos cadinhos communs a todo o mundo. Do que fica dito facilmente se deprehende a feição de Stockolmo, uma cidade burgueza, pacifica, aceiada, em ordem, sem grandes palacios nem grandes ruas, parcamente animada de commercio e de prazeres. Já assim não é Copenhague, em que parei no regresso a Paris. Differe o povo e differe a cidade. Perdeu-se a delicadeza de traços e pureza de linhas que tinhamos frequentemente nas raparigas da Suecia, a dinamarqueza é mais corpulenta e grosseira, mais flamenga. Talvez ainda consequencias da natureza do sólo, pois descendo a Suecia, amiudam-se as planicies que na Dinamarca se aproximam e assemelham ás da Allemanha, e além tinhamos um terreno accidentado e granitico, proprio a crear o musculo enxuto produzido pelo esforço de uma imperceptivel mas constante gymnastica. A cidade participa principalmente do aspecto commercial maritimo, ao contrario de Stockolmo que, sendo na realidade porto de mar, parece ainda um mercado interno. Só as cidades maritimas podem dar-nos a impressão n'um grande movimento commercial, porque só ahi se produz a accumulação indispensavel a esse fim; só ahi se encontram as massas fabulosas que, distribuidas pelos mercados interiores, perderam esse effeito pelo facto de dispersão. Por este lado, as cidades do interior, por grandes que sejam, são sempre inferiores ás cidades maritimas. O movimento de povo nas ruas de uma cidade de prazer como Paris ou de uma grande secretaria de estado como Berlim, é mesquinho ao lado das montanhas de mercadorias que fluctuam nas cidades de Inglaterra, por exemplo. Umas movem-se como formigas, as outras como rhinocerontes; á superficie do mar vem de espaço a espaço um monstro e encostando-se á terra, começa a vomitar riquezas com uma prodigalidade que entontece de pasmo e esmaga de abundancia. Exceptúo Moscow, cidade do interior com o movimento das cidades maritimas; e, se as minhas viagens fossem mais longe, era possivel que tivesse de exceptuar todos os grandes mercados da Asia. A raridade e a distancia poderão produzir accumulações semelhantes ás que resultam do abastecimento de densos e frequentes povoados. Copenhague estabelece uma transição para o grande bulicio do occidente, mas a posição insular e as affinidades de raça deixam transparentes grandes laivos de parentesco com a Scandinavia e a Flandres. Direi mesmo que, emquanto por lá andei, lembrei-me mais frequentemente de Amsterdam do que de Stockolmo. * * * * * _Marselha, 2 de Outubro._ Fui descansar a Paris das longas jornadas da Russia. Poucas coisas me interessam mais n'uma cidade do que percorrer os mercados de toda a especie, vêr o que se produz e o que se consome; e o interesse ordinario aggravava-se agora com a circumstancia de vêr Paris immediatamente a impressões diversas das que trazia da minha terra. Involuntariamente referia o que observava ao que tinha deixado na Suecia e na Dinamarca principalmente e, em quanto respeita a artes industriaes, essa comparação era desvantajosa para a França. Não tanto como na Allemanha, que em mau gosto na materia leva a palma a todos os paizes do mundo, as lojas de Paris, entre productos da mais fina e pura belleza, encerram, em grande quantidade, o que a imaginação póde crear de mais absurdo e incoherente. Combinam-se e ligam-se as fórmas mais oppostas, juntam-se as côres mais desharmonicas; casa-se a simplicidade grega com os monstros japonezes e sobre os tapetes e porcelanas dansam desconchavadamente todas as côres. Nenhuma sabe do seu par. Já assim não acontece com as rendas e porcelanas da Suecia e da Dinamarca, que me encantaram e surprehenderam (na minha ignorancia desconhecia o que, parece, é sabido de todo o mundo e até famoso). Combinações de duas ou tres côres, desenhos simples, nada variados, repetindo-se com frequencia, e de tão parcos elementos, esses paizes souberam tirar effeitos que a industria franceza não conseguiu gastando e torturando a imaginação. É bem simples a razão, a meu vêr. Quiz o acaso que em Stockolmo parasse no deposito da mais afamada das suas fabricas de porcelana e faianças, justamente no momento em que me dirigia ao museu nacional; e pude vêr quanto os productos modernos differiam pouco dos modelos historicos. Muito de proposito aponto a ordem da observação para que não se julgue que no meu juizo houve preoccupações de tradicionalista. Não houve realmente; foi a evidencia de facto que me levou a crêr que, inspirando-se na tradição, a industria encontrára alli o mais seguro guia de belleza e bom-gosto. Não direi exactamente o mesmo do que vi em Copenhague. Ahi, embora as rendas e bordados se não afastem tambem de modelos que têm seculos de existencia, a pintura em louça tomou para base a cópia do natural. E inutil será acrescentar que, explorando esta via, não chegou a resultados menos brilhantes do que os seus visinhos seguindo na tradição. A nenhum d'estes tutores se quer sujeitar a moderna industria franceza, e, emancipada, entrega-se á phantasia excitada pela concorrencia que lhe pede novidade, invenção. É talvez uma maneira de traduzir o espirito de liberdade n'este terreno, mas a extrema liberdade aqui como em tudo não foi mais feliz do que a obediencia sensata e justa, consciente e reflectida. E, se não, vejam-se os productos preciosos que, em França mesmo, nos apresentam as industrias que se não afastaram da tradição, o ferro forjado, por exemplo. É mais uma resurreição dos antigos modelos do que uma industria nova; pois não sei que se possa inventar coisa alguma de mais bello, e estou certo de que os estrangeiros que vierem a Paris hão de dar-me razão. Venho a concluir que das tres fontes de inspiração apontadas, a natureza vegetal, a tradição e a phantasia, só as duas primeiras nos levam por caminho seguro. A natureza vegetal não tem desharmonias; filhas do mesmo solo e do mesmo clima, creadas com o mesmo alimento, a mesma humidade e a mesma luz, as plantas têm a harmonia necessaria de productos dos mesmos factores. É isto que nos faz dizer bellas as flôres mais exoticas e extravagantes. Demais o homem recebe a educação natural d'esses mesmos elementos e goza com o que é lhes conforme, soffre com o que os contraría. A tradição, perpetuando fórmas e combinações, demonstra _ipso facto_ a sua concordancia com a maneira intima de sentir de uma raça. D'outra fórma, desappareceriam como desapparece tudo o que é contrario ao seu caracter permanente, ainda que por qualquer motivo tivessem tido uma existencia mais ou menos duradoura. Mas a novidade e a phantasia são perigosas, pois diz-nos a razão e a historia que o poder creador não é infinito, encerrado como está entre os limites objectivos, a constancia dos materiaes, e os limites subjectivos, a capacidade e a fórma de sentir de cada raça. As artes exoticas, que são um dos muitos elementos que a sciencia e as descobertas modernas deram á phantasia, despertarão sempre curiosidade intellectual como revelações de civilisações estranhas, mas, passado este primeiro deslumbramento, não entrarão nos museus, deixando no adorno domestico só o que se conforma com as nossas concepções estheticas? * * * * * _Oran, 6 de Outubro._ Despedi-me de Paris com saudades, digo-o com franqueza, por muito incoherentes que pareçam estas sympathias com o que disse nas minhas cartas anteriores; saudades aggravadas pela tristeza da cidade no dia da partida, um domingo, quasi tão despovoado e silencioso como em Londres. Todo o mundo emigra e vai dispersar-se pelos arrabaldes. É ainda um pequenino facto a notar a differença do domingo entre Paris e Stockolmo. Alli o domingo, na cidade, é animado, os passeios, os museus e os espectaculos apinhados de povo; a vida dos dias de trabalho não é tão absolutamente extenuante como em Paris e por isso não appareceu ainda a necessidade de tão pleno repouso; nos prazeres e no trabalho mantem-se a sabedoria da modestia, que nem carece de se esfalfar na conquista de riquezas, nem demanda requintes de gozo. E, como nas aldeias, o domingo é para a palestra e para vêr os amigos, que na verdade o corpo não se sente fatigado, só o espirito necessita de alimento e expansão. Não continuemos n'este thema; já muito tenho dito do que em Paris me magôa. É tempo de dar razão das minhas saudades. Disse que Paris carecia de vida moral, nem outra coisa podia succeder a uma terra que, entre muitas outras causas d'esse estado, tem uma alluvião de estrangeiros em busca de prazeres, incessantemente renovada. Mas, se o homem não vive só de pão, não vive tambem só do coração e do amor divino; tem aspirações complexas e irreductiveis, e embora em sua consciencia reconheça certa ordem dominante, nem ignora a existencia das outras tendencias concorrentes nem, quando é sincero, nega o prazer de as sentir satisfeitas. Vem isto a dizer que, independentemente da vida intima social ha uma outra vida social mais larga e menos profunda, que é uma necessidade e um prazer, e em que a sympathia rege o que na primeira é regulado pela amizade, e a urbanidade substitue a dedicação paciente. Ora a este genero de vida, cuja actividade sentimos todos os dias e, póde dizer-se, todas as horas, a este genero de vida Paris deu todo o encanto real e attingivel, com as suas formulas de polidez e com uma comprehensão instinctiva das pequeninas coisas que podem ferir ou magoar. Muito francez--diz-se como significando falta de sinceridade, e é possivel que um longo habito tornasse inconscientes actos e palavras que d'outro modo teriam valor moral; mas é incontestavel que embora essas formulas, esse modo de ser externo, não tenham valor moral positivo, não deixam por isso de ter reduzido ao minimo os espinhos e asperezas da convivencia; podem não ser virtude nem peccado, mas são em todo o caso uma arte com todos os prazeres de tal natureza. E, quando alguem os sente, abandona-os com a mesma tristeza com que os bons bebedores abandonam os bons vinhedos, onde por baixo preço sorvem com delicia todos os dias o precioso perfume a que mais querem. Emquanto assim pensava, aproximavam-se as bocas do Rhodano, cuja paizagem me deixou indifferente. Os campos são largos, vastos, e por vezes viçosos e ferteis, e ao longe descobrem-se as ultimas ramificações dos Alpes, mas os montes estão excessivamente distantes para que possam entrar como valor importante, e a planicie, muito cultivada, tem uma variedade de vegetação e regularidade de plantações que destroe toda a harmonia natural. A paizagem carece pois de movimento. Parecerá absurda esta expressão--movimento da paizagem--mas, observando e reflectindo, veremos que a repetição de uma mesma curva acompanhada da repetição simultanea dos mesmos tons de colorido e dos mesmos reflexos dá na realidade a impressão de uma determinada ondulação, um mesmo movimento, como acontece nas montanhas ou planicies povoadas de uma só especie vegetal, ou, pelo menos, de uma só especie dominante. Ora este effeito perde-se nas terras em que a cultura obriga á variedade. Voltando ao Rhodano--não quero dizer que não tenha quadros encantadores, para o que lhe basta a abundancia de luz. São todavia limitados e sem relação entre si; são para a grande paizagem o mesmo que os innumeros quadros da vida domestica são para a grande pintura historica que condensa a epopêa d'um povo, lançando n'uma tela estreita seculos de vida. Caminhemos. Adiante encontramos Marselha, e á paizagem vem juntar-se a cidade para nos lembrar a distancia a que estamos de Paris e um pouco tambem para nos avivar as saudades. Marselha é um prenuncio da Hespanha: reappareceu o penteado tão cuidado que não tornára a vêr desde Salamanca, os cabellos pretos e a desenvoltura. Esta gente é irrequieta, o que é uma coisa bem differente da vivacidade franceza. A vivacidade, para mim, é constituida por gestos e movimentos da physionomia, breves em intensidade e duração mas repetidos e revelando uma actividade de espirito simultanea e semelhante; a desenvoltura é prodiga de movimentos que nada dizem das suas relações psychologicas. A vivacidade, quando ri, scintilla de sympathia; a desenvoltura, rindo, é egoista se não encerra um sarcasmo. Os francezes são mais vivos, a gente de Marselha mais desenvolta, como os hespanhoes. Estamos á beira-mar; mais vinte e quatro horas e bateremos ás portas do mundo arabe. Pela manhã trovejou, e das bandas de Africa sopra um vento asphyxiante e morno. A um canto do vapor uma criança ao collo repete com o olhar fixo de mysterioso scismar que as crianças têm ás vezes: Pa... pá, pa... pá... Ao lado, uma mulher nova e galante conversa com o capitão, brandamente, n'um tom meigo de saudade. --Vamos, disse elle. --_Bon voyage._ --_Au revoir._ E abraçaram-se, silenciosos, mudos, sem uma lagrima. Ella seguiu pelo caes, voltou-se e olhou quando o vapor partia e perdeu-se no borborinho da rua, caminhando ao lado do filho, lenta, tranquillamente, o coração envolto na dôr, na esperança a na virtude. Vi ainda uns vagalhões titanicos e cambaleando deixei-me rolar como um fardo no canto de um divan. Na ancia e na fraqueza semi-febril obscurecem-se os limites do sonho e do pensamento consciente. Via o enterro d'um amigo; um enterro civil. A porta desconjuntada e carunchosa d'um quintalejo, n'um sitio ermo, veio uma carroça empoeirada de cal, puxada por um macho escuro, somnolento, orelha derrubada, uns arreios sujos, de pregos amarellos, resequidos e gretados do sol. O caixão appareceu sobre a carroça, não sei como, e sobre elle, o carroceiro, um soldado francez, de largas calças vermelhas e jaqueta azul, sentou-se, perna bamboleante, costas para o macho. Fallou-lhe e partiu. Ao lado da carroça pendia uma lanterna; no limiar da porta ficára uma mulher da Beira, morena, espadaúda e baixa, o cabello empastado na testa e as mãos cruzadas debaixo do avental. --Não quer a lanterna accesa, tio Manoel? --Não é preciso, a noite está clara. E n'aquelle silencio sentiu-se só o estremecer da carroça sacudida no macadam da estrada á beira d'um juncal, caminho do cemiterio. --_Monsieur, nous sommes à Alger_, disse alguem perto de mim. Levantei-me e subi. Na noite escura, mais escuro ainda um grande panno negro, uma montanha semeada de luzes; e em baixo sob um rosario de bicos de gaz, pernas e faces negras e nuas entre gorros vermelhos e farrapos brancos enxovalhados--foi o meu despertar no mundo arabe. Um sonho mau entre um quadro de amor domestico e um quadro de miseria--são todas as minhas impressões d'esse Mediterraneo azul, limpido, sereno, dissolução filtrada de anilina que em tempos que já la vão faria a delicia dos janotas e a fortuna das engommadeiras de Lisboa, vendido a retalho. * * * * * _Granada, 9 de Outubro._ Argel, vista de noite, nas sombras da luz escassa, dá-nos a impressão de uma grande miseria; mas, vindo a manhã, no movimento das ruas e dos mercados, essa miseria conver-te-se n'uma grande mascarada para os olhos surprehendidos do viajante europeu, pouco habituado ao contacto das civilisações mescladas e exoticas. Rimos d'essa confusão de arabes, de turcos, de francezes e marroquinos e rimos ainda mais do albornoz e do turbante; associados ao chapéo de sol e ás botas de elastico, vivendo em santa paz na mesma pessoa. Ao lado da franceza toda encalmada, de manga curta e collo descoberto, vêm as mulheres da terra, embiocadas em leves roupas brancas que a imaginação do nosso povo escolheria para trajo das almas do outro mundo; entre os mercadores de blusa azul, de pé, lestos em attender o freguez, como os vemos pelas nossas praças, está o arabe, sentado, de pernas cruzadas, indifferente e moroso, com um lento pestanejar de ruminante. Rimos emquanto o pensamento não nos inicia em caminho differente; porque logo, reflectindo, entre o grotesco e o comico de associações disparates descobrimos o orgulho do vencedor, dominando imperioso e inflexivel, e, em baixo, a seus pés, a babugem de uma onda outr'ora forte e temerosa, agora fraca e quasi extincta, agitando-se semi-morta nas prisões de ferro em que a Europa a lançou. N'uma cidade, como Argel, em que passeiam hombro a hombro vencedor e vencido, a derrota é patente todo o dia como na hora do combate. Quando a Allemanha venceu a França, cada um recolheu ás suas terras e ahi recobrou altivez; mas Argel vencida foi tambem conquistada e o povo arrasta as algemas de uma escravidão mais ou menos real e mais ou menos consciente. Por aquellas ruas anda uma população que se agita e move, livre, risonha, altiva, calcando uma terra que lhe pertence, e rasteja tambem um denso rebanho que o pastor conduz, mas a que não falla senão para ordenar. N'uma hospedaria, um criado europeu manda vir o _arabe_ para acarretar as bagagens com a mesma entonação com que mandaria vir um jumento. Respondem-me que essa gente vive livre e feliz, sómente sob as leis e regulamentos que foi necessario dar-lhes. Nem tanto mereciam. Não derramarei lagrimas sob a sua sorte nem mesmo direi que seja má a sua condição material e que tivessem merecimentos para melhor. Apenas aponto um facto; é que no momento actual Argel nos da o espectaculo altamente interessante e instructivo do aviltamento moral de uma raça conquistada em frente dos seus senhores. Uma outra coisa nos offerece Argel, não menos interessante. É um bairro arabe, quasi uma cidade, que o camartello europeu ainda não alcançou e em que os costumes, a gente, e as habitações indigenas são ainda de grande pureza. Nada direi d'essas viellas ingremes em que as casas quasi se tocam de um ao outro lado, especie de fortalezas com uma pequenina porta e raras frestas nos muros. Tudo está minuciosamente descripto em muitos livros e, de resto, esses recintos são vedados aos simples viajantes. Deixaram-me uma pequena impressão--pequenez e frescura. Tudo me pareceu acanhado e pequenino, fresco e humido como os logares profundos onde o sol não penetra. O arabe vem descendo até aos bairros europeus, e ahi abundam as lojas e officinas. Bordam, tecem, costuram, têm as suas cozinhas e cafés e tudo aquillo se assemelha tanto á nossa regularidade que naturalmente perguntamos como tende a aniquilar-se uma raça que chegou a organisar o trabalho, a arte, a familia, a religião, a politica, que creou uma civilisação, uma ordem social, funccionando e correspondendo na sua organisação á capacidade ethnica. Parece que um povo que chegou a este estado não deveria ser tão facilmente destruido e dominado dentro do seu proprio _habitat_. Não soube defender-se--é a resposta que mais immediatamente encontramos no nosso espirito; se tivessem inventado os canhões de Krupp talvez os seus destinos fossem outros. E vamos a dar razão á Allemanha: Pois a primeira necessidade de um povo não é ser forte? Virtude, grandeza d'alma, um ideal, para que? Se não tem musculos sãos, armados d'aço e lançando fogo, esse povo será devorado pelos lobos sempre á espreita das ovelhas. Mas lançados n'esta ordem de cogitações encontramos a Allemanha receiosa e timida diante do cossaco esfarrapado que vi nos acampamentos da Polonia. Já não vale a força; tudo ameaça dissolver-se n'essa infinita vastidão em que já um dia se perderam setecentos mil homens. «Vive em paz com a Russia», recommendára, diz-se, o velho Guilherme moribundo a Frederico, seu filho; no seu espirito fluctuava já o desanimo com que Napoleão voltou de Moscow ás margens do Niemen e antecipadamente se entregava a essa amizade obrigada. E o espirito perde-se buscando em vão uma base de força duradoura, eterna, indestructivel! Não pensará assim o arabe, que tudo aceita sem espanto, como derivado da ordem logica e natural das coisas, se é que podemos aventurar-nos a penetrar tão intimamente no espirito de uma raça estranha. Duvido. Muitas vezes na Argelia, pensando no arabe mysterioso, surgiu no meu espirito esta duvida. Podemos comprehender inteiramente a psychologia de uma raça estranha? Modos de vêr e de sentir differentes devem conduzir a differentes ordens de pensamento e, embora vejamos as suas conclusões externas e praticas, no modo de funccionar intimo poderá existir qualquer coisa mysteriosa que nos escapa. Comprehendemos claramente a psychologia da criança; não ha entre ella e nós senão graus de desenvolvimento e de actividade sendo iguaes a tendencia evolutiva e o modo de funccionar, tendencia e modos que devem variar de raça para raça. É verdade que o nosso espirito não concebe duas logicas, mas fóra d'esse estreito terreno commum que margem não fica para variantes incomprehensiveis? Pasmamos muitas vezes da logica excentrica de certos espiritos, da maneira por que n'elles se prendem e ligam as idéas, e este facto, combinado com uma reconhecida differença de base physica, não basta para nos levar a qualquer conclusão mas deixa no espirito certa desconfiança quanto a affirmações positivas sobre a psychologia das differentes raças. Talvez que sobre o espirito arabe o juizo mais acertado seja o de uma senhora americana muito instruida com quem conversei largamente sobre essa gente. «Só gostava de saber o que elles pensam...»--«Creio que pensam muito pouco», respondeu-me. É possivel que n'estas palavras se resuma toda a sua psychologia. Um clima ardente congestiona e opprime, como o frio entorpece; em qualquer caso ha uma paralysação de vida. A indifferença arabe não seria como a do russo uma conclusão final do cogitar sobre a inanidade de todas as previsões, seria uma abdicação por indolencia, seria a aceitação das coisas sobre o que o pensamento se nega a reflectir. Mata e morre friamente, n'um torpor de somnolencia invencivel. Sabe lavrar e conduzir os rebanhos na pastagem, caminha arrastadamente, e apto para o trabalho lento; não sabe cavar, repugna-lhe o trabalho activo e diligente. Este mesmo clima que produziu uma raça avassallada pelo ardor do sol, movendo-se sob impulsos mysteriosos, creou a paizagem que deslumbra e cega os olhos do artista europeu educados na luz coada pelas nevoas do norte. Deu á sensualidade tudo o que ella podia exigir de mais intenso e vivo; e por isso se comprehende que a paizagem da Argelia tenha na pintura um culto reservado e distincto. Para a poder sentir é necessario ter olhos insaciavelmente cubiçosos e nem todos attingem tamanho vigor de Sensualidade visual. Para os que ficam áquem, esses prazeres perdem-se despercebidos, quando não repugnam, ferindo e maguando. Uma luz abundantissima n'uma atmosphera sêcca; e todas as impressões virão aos nossos olhos nitidas, precisas, distinctas, vibrando rijamente, soltas e desvendadas da humidade attenuante que modera, corrige e confunde, mostrando-nos toda a natureza através d'uma atmosphera transparente sim, mas uniformemente colorida. A atmosphera tem portanto côr? Pela primeira vez surgiu no meu espirito este pensamento quando em Copenhague encontrei na exposição pinturas japonezas em sêda, esboços grosseiros de paizagens sobre um fundo sem nuvens, unicolor. E todavia transmittiam-me a impressão de uma paizagem por muito que me repugnasse crêr na realidade do céo e do ar amarello ou verde. Parece que da terra e do céo, de todos os reflexos fundidos resulta um prisma distincto para cada paizagem, através do qual a vemos e conhecemos. Talvez resultado d'este scismar, uma noite, em Argel,--ainda outro sonho!--vi essa terra como as ruinas do Coliseu de Roma. Era uma enorme bacia formada de montanhas escalvadas, de uma argilla vermelha que descia em degraus até ao fundo e sobre a terra, immoveis, equidistantes, os albornós brancos dos arabes; um espaço vermelho e cavado, maculado de pontos brancos. Assim toda a paizagem da Argelia estaria envolvida n'essa atmosphera vermelha. Não contradiz este sonho o que acima disse relativamente á intensidade de impressão resultante da seccura atmospherica. Uma coisa é o colorido ligeiro que provém da fusão dos reflexos ambientes, outra a decomposição da paizagem através da nevoa mais ou menos densa; essa attenua e confunde profundamente, a outra dá apenas um ligeiro colorido sem prejudicar a predominancia das impressões primitivas; uma sente-se principalmente nos espaços vazios, a outra actua com igual força sobre toda a natureza terrestre. A paizagem da Argelia, pois, com a sua atmosphera propria, como as demais paizagens, e a sensualidade requintada da riqueza e intensidade de impressões visuaes que resultam da seccura do ar associada á abundancia de luz. Explica-se d'esta fórma como nos quadros dos pintores que têm estudado essas regiões apparecem com tão grande frequencia as montanhas, as ruinas e o mar; são aquelles elementos em que este caracter de nitidez, de transparencia e de variedade consequente apparece mais distinctamente. Para nós, porém, a paizagem da Argelia não tem o valor que lhe dá a gente do norte. Estes crepusculos em braza que se prolongam n'um esmorecer lento, a luz que á tarde doura o arvoredo, como com tanta saudade a vi nas mattas de pinheiros de Alepo, em Orleansville, nada d'isso é novo para nós com quem a natureza foi tão prodiga. * * * * * _Sevilha, 13 de Outubro._ Duas coisas bem differentes temos que vêr no sul da Hespanha, os monumentos arabes e a Andaluzia, os vestigios d'uma raça e d'uma civilisação extinctas n'esta parte do mundo e os povos e a civilisação agora existentes na mesma região. Ambas igualmente interessantes; a primeira porque encerra documentos de primeira ordem no seu genero, e a segunda pela importancia de todo o elemento activo contemporaneo. Nem a Alhambra nem a mesquita de Cordova nem o alcaçar de Sevilha destruiram a impressão que a Argelia me tinha deixado da arte arabe; antes confirmaram o que ahi tinha pensado e que em certo modo se relaciona com o que em Moscow julguei de todo o Oriente. Aqui tambem como alli, encontrei uma concepção esthetica que não é da nossa raça e não se conforma com o nosso modo de sentir. N'este ponto as duas impressões são identicas. Differem porém: emquanto no moscovita domina a imaginação insaciavel, um enredar infindo, parecendo que o seu pensamento não consegue definir-se em certa ordem de linhas geraes, o arabe alcançou esse ultimo estado, definiu o seu conceito em fórmas precisas e determinadas. Depois de termos visitado os monumentos arabes, por longo tempo nos ficam diante dos olhos certas proporções e direi mesmo certos angulos, embora tenha a certeza de que os seus angulos variam de grandeza em numero infinito. Ha manifestamente uma tendencia, um movimento n'uma direcção fixa. D'esse conceito, d'essa visão ultima e final, producto de series de impressões successivas, resultam para mim duas idéas--a ausencia de grandeza e a preferencia do adorno sobre a estructura. Sobre esta creio não haver duvida. _Dentelle_--foi a palavra que mais vezes ouvi do guarda da Alhambra que me acompanhava; rendas são na verdade todos esses minusculos trabalhos em gesso de que os seus muros estão cobertos. Para lhes dar todo o relevo estenderam-se sobre o ouro e as côres mais vivas, um azul intenso e um vermelho rutilante, e não se pouparam as perspectivas que os projectassem sobre a grandeza do espaço e da luz; e, depois de os ter despendido com uma prodigalidade infatigavel, cobriram-se os intervallos que restavam com azulejos e couros de Cordova, rendas ainda, posto que d'outra materia. Não se levantaram palacios, atapetaram-se alcovas de sultana. É de crer que me neguem a falta de grandeza nos monumentos arabes, adduzindo como primeira prova de contestação a mesquita de Cordova. Ao que responderei que é d'esse mesmo documento que pretendo tirar a melhor prova do meu pensamento. Quando lá entrei, lembrou-me um pomar de macieiras frondosas e bem alinhadas, d'esses que os brazileiros da minha terra têm alli pela Villa da Feira. Li depois que Theophilo Gautier a comparára a uma floresta, mas as florestas bracejam á vontade, erguem-se ao sol e desconhecem a linha recta, errando gigantes por onde a luz e a terra mysteriosamente as conduzem. Transcrevo as proporções d'esse edificio e o leitor dirá se n'ellas cabe grandeza. Supprimamos a capella-mór e vejamos só as proporções da mesquita no seu estado primitivo. Um quadrilatero, cento e sessenta e sete metros de comprimento, cento e dezenove de largura, dez d'altura; dezenove naves n'uma direcção e trinta e seis na outra, arcos mouriscos assentes em columnas de cerca de tres metros. É facil de imaginar o aspecto de tanta galeria tão baixa, tão estreita e tão longa. A isto chamou-se grandeza, sendo aliás a sua negação. A grandeza está nas proporções d'um só conceito, e o arabe, não podendo alcançal-a, vingou-se na extensão, repetindo n'um vasto campo o mesmo conceito. Incapacidade de espirito ou consequencia de um mau ponto de partida? Foi o espirito arabe que carecia de grandeza ou a grandeza era incompativel com a fórma d'arco que adoptára e que mais amava? E questão que por certo os homens do officio terão resolvido ha muito, e elles saberão dizer-nos se com o arco arabe poderemos ir muito longe; para os meus olhos desprevenidos e ignorantissimos aquelle arco parece concluir sempre o edificio, tornando impossivel uma sobreposição equilibrada apparentemente, já se vê, porque quanto á realidade não ha duvida. Perdôem-me os expertos se n'isto vai grande barbaridade, mas em tempos de suffragio universal é permittido ouvir-se a voz do vulgo. De resto, questão incidente; prosigamos. Ausencia de grandeza e abuso do adorno não são qualidades de gente guerreira, e por isso comprehendo Carlos V mandando arrasar parte da Alhambra e construindo no seu logar um palacio da mais bella renascença; foi ingenuamente o homem da sua raça. Quem dos jardins do Generalife vir os telhados da Alhambra, baixos como cabanas ao lado do palacio sumptuoso e altivo, comprehenderá porque razão _isto_ venceu _aquillo_. Estão alli duas architecturas e duas almas. Lamentamos e com razão que se houvessem destruido tão boas fontes de saber. Penetrar o espirito alheio, abranger na extensão do nosso pensamento a vida de toda a terra e de todo o universo, se possivel, é para nós um tão grande prazer como a contemplação de quanto nos deleita a vista: e n'este sentido são justas as lamentações de todo o monumento perdido. Mas não é menos justa a sympathia pela expansão forte, viril e inconsciente dos instinctos de uma raça, ainda não pervertida pela largueza intellectual que conduz ao scepticismo, pondo o _cant_ no logar da admiração sincera: e então os actos barbaros como o de Carlos V têm seus laivos de grandeza. E todavia quem falla d'esta fórma da arte arabe ainda hontem poderia ser surprehendido em flagrante delicto de admiração diante da entrada de um casino de Sevilha. Que singeleza! Um vestibulo rectangular, ladrilhado de marmore, as paredes com uma cercadura de um metro de azulejo e depois gobelinos até ao tecto de madeira, apainelado; ao centro tres arcos sobre quatro columnas de marmore branco dando entrada para o pateo, quadrado, com uma ornamentação semelhante á do vestibulo. Não ha n'isto grandes reminiscencias dos mouros? Ha, decerto; toda a differença consiste não em desconhecermos a belleza da sua arte mas em a tornarmos como subordinada a uma concepção mais alta. De fim ultimo e principal, os seus mais bellos elementos transformam-se ás nossas mãos em accidente e complemento. É tempo de passarmos á formosa Andaluzia, formosa nas suas mulheres, no pittoresco dos costumes, retardatarios da desnacionalisação, porque a formosura dos seus campos soffre grandes reservas. Pelos montes e outeiros predominam os olivaes, e a palmeira (_chamærops humilis_), as agaves, o esparto, a giesta, e as lavouras de trigo preenchem os intervallos; as terras baixas são mimosas, onde têm agua, mas com esta indecifravel confusão de plantas dos terrenos bem cultivados, perdem toda a fôrça e caracter como paizagem. Para esta ficam só as terras altas e que pouco dizem porque as oliveiras estão muito distantes entre si e as outras plantas muito dispersas para darem qualquer fórma ou colorido definido. Ainda assim, onde o olival é basto accentua-se certo caracter de calor e suavidade; a folha da oliveira, leve de colorido e pouco brilhante, semelhando cobre velho oxydado, desenrola sobre a terra um tapete que se sente profundo e leve, sem a dureza polida e fria das vastas superficies luzentes. Caracter que as restantes plantas partilham: o brilho é proprio das plantas viçosas e aqui não as ha, têm falta d'agua. A propria palmeira é bem differente d'aquillo que parece nos nossos jardins, mais coriacea, não se expande nesse viço que é uma phase brilhante de estiolamento. E todavia não faltará quem se extasie diante do Guadalquivir e do Genil em que se reflecte a alvura da Serra Nevada. Se me não illudo, é o caso tão frequente da confuzão do bem-estar physico com a belleza da paizagem. Para os que vêm dos montes abrazados, o valle humido e tepido dá uma sensação balsamica que nos induz a chamar bello a quanto nos rodeia. Esta sensação associada á cubiça de riquezas, foi talvez uma das grandes forças da conquista arabe; por aquellas veigas sorria um prazer que para lá do mar era bem raro e o mouro vinha buscal-o, impetuoso, como uma onda negra espumando sangue. N'estes climas tão ricos, a vegetação vai desde o trigo até á vinha, a oliveira, a laranjeira e a tamara; nos poucos metros d'um jardim percorrem-se quasi completamente as zonas de todo o mundo. D'aqui a belleza da gente, creada na abundancia, com os frios moderados que avigoram, sem a molleza lymphatica dos calores excessivos. O clima tudo lhes deu: uma alimentação variada, abundante e sã, e as alternativas e graduações de temperatura convenientes para dar ao corpo plena expansão de vigor. Vigor indomavel, latejante e transparente: a belleza das raparigas do norte palpita apenas; na andaluza, os olhos e os cabellos negros, a pelle mimosa e branca, têm relampagos de sensualidade. Mas a mocidade é breve, segue-se uma vida mais sedentaria, e quando na casa a mesa é farta e a doença e o trabalho não castigam, um corpo tão são tem comsigo um inimigo invencivel da belleza--a obesidade. É ahi que vai naufragar o melhor da formosura da Andaluzia; nas ruas, nos passeios e nos caminhos de ferro encontra-se esta phylloxera em todos os estados, desde a mulher de trinta annos de uma redondeza acabada, até á sexagenaria informe. Mudou a physionomia mas o caracter é sempre o mesmo, é em toda a idade a desenvoltura de que já em Marselha tivemos prenuncios. Dar exercicio aos musculos, palrando com grandes gestos, saracoteando-se e cantando, constitue a primeira necessidade d'esta gente. É sabido como os hespanhoes adoram a rua e os cafés. Pois não é porque bebam muito; o que precisam é fallar e agitar-se, ruido e movimento. A mesma musica tem este caracter de agilidade; as depressões alternadas de andamento rapido e lento são manifestas como na musica italiana a predilecção pela cadencia prolongada. Parece que só a Allemanha tirou da musica a expressão d'uma paixão intima e moral; os outros povos contentam-se em reduzil-a á simples traducção do seu modo de ser sensual. Para que tudo esteja d'harmonia--e esta harmonia é para mim o mais bello da Andaluzia--a habitação é tambem o que melhor se podia conformar com o clima. O pateo, com a fonte de marmore ao centro, rodeado por uma galeria em arcos ou sobre columnas é quasi geral nas casas da Andaluzia; adornado com plantas dá um canto de frescura para passar no verão as horas de calma, ao mesmo tempo que é um elemento de belleza. Não foi a Andaluzia que o inventou, é romano ou arabe, é talvez de todos os povos. Adoptal-o, porém, foi o grande impulso de bom-senso. Porque não fizemos o mesmo em Lisboa, preferindo a imitação parisiense, tão pouco justificada? Porque não teremos o pateo alumiado, fresco e aceiado em logar da escada sombria, abafada e negra? Porque não fizemos uma avenida ladeada de casas peninsulares em logar d'um _boulevard_? Descuidadamente, fui a fallar das coisas de casa. Pois não voltarei atraz. Recolho ao ninho, que já não é sem saudade. Ao abeirar-me d'essa natureza que encerra o vidoeiro e a palmeira, com tanto amor bafejada da fertilidade e belleza, ao contacto d'essa alma tão nobre que na corrupção e na miseria tem ainda scintillações de heroismo, esmorece a sympathia pela gente que deixei para além dos Pyrenéos e dos Alpes. A sua alegria é um sorriso frouxo na sombra tremula e fria do vidoeiro e do abeto, e a alegria da minha terra vai desde a alvorada de primavera rutilante e fresca até á gargalhada estridente e pagã, entre o perfume do louro e o vigor do pampano. A sua melancolia é o brando palpitar d'um crepusculo de outono, e a melancolia da minha terra é ardente e ampla, um clamor de bronze vibrado nas labaredas do estio. Bem vindo seja pois esse ninho tecido de miserias e de grandeza! INDICE Pag. Dedicatoria V Advertencia VII Modos de viajar 2 O Minho 4 O Douro 6 Entrada em Hespanha 7 Salamanca 9 Miranda do Ebro 12 Os Pyrenéos 13 Paris 14 Liège 23 Lavoura por cavallos 24 Campos de Liège 25 O Hanover 26 Prados e florestas 27 O snr. G. Saunders 28 Berlim 29 De Berlim a Varsovia; a alfandega russa 33 A paisagem da Polonia 34 Varsovia 36 A paizagem do norte da Russia 38 A aldeia da Russia 39 Moscow 40 Visita a Tolstoï 44 S. Petersburgo 53 A Finlandia 55 A paizagem 56 A Scandinavia 59 Copenhague 64 A industria moderna 67 O domingo em Paris 72 Seducções de Paris 73 Paizagem do Rhodano 75 Marselha 76 Caminho d'Argel 77 Argel 80 Paizagens 87 Os monumentos arabes 91 A Andaluzia 97 DO MESMO AUCTOR: _Estudos sobre litteratura contemporanea_ 1 vol. _O Snr. Oliveira Martins e o seu projecto de lei sobre o fomento rural_ Folh. _A arte d'estudar_ (versão do inglez) 1 vol. _A Democracia_ Folh. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Cidades e Paisagens" *** Copyright 2023 LibraryBlog. 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