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Title: Surpreza - Entre-acto original Author: Mascarenhas, Miguel J. T. Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Surpreza - Entre-acto original" *** of public domain material from Google Book Search) SURPREZA SURPREZA ENTRE-ACTO ORIGINAL DE MIGUEL J. T. MASCARENHAS PORTO Typographia Lusitana 84--Rua das Flores--84 1873. PERSONAGENS _Laura_, costureira. _Alfredo_, tenente. _João_, camarada d'Alfredo. _Arthur_, menino de 9 annos, irmão de Laura. _Ill.^mo e Ex.^mo Gaspar Lobo de Sousa Machado e Couros._ Meu bom amigo: duas horas,--rigorosamente duas horas--uma que furtei a um auto de «pinhora», e outra a um «dito» de «embargo» quando «escrivão» na Beira, deram em «conclusão» o «Entre-acto» que de lá te offertei. Disse-te que fôra applaudido, e não menti: applausos serranos em theatrinho aldeão. Porque foi que me lembrei de «ajuntar» o teu nome ao meu thesouro litterario da serra?... De certo presentimento de que tu havias de ser, como effectivamente succedeu, um dos mais poderosos auxiliares para finalisar o meu desterro. É esta a primeira occasião que tenho de publicar o escripto que te dediquei, e não a perco: vai «appenso» do meu unico livro, e provo-te, d'este modo, a existencia em mim de um sentimento, mixto de orgulho e gratidão, que tu sabes comprehender e desculpar. Porto, 15 de Setembro de 1873. teu dedicado e obrigadissimo amigo, Miguel J. T. Mascarenhas. SURPREZA * * * * * ENTRE-ACTO Uma saleta pobre, com um fogareiro de barro, mesa e ferro de engommar, um cesto de costura que deve conter uma caixinha, etc. SCENA I LAURA E ARTHUR (_Laura, canta e engomma, e Arthur trata do fogão_) Laura (cantando): Ai! mundo!! mundo!... como és tyranno! És deshumano p'ra mulher cahida... Ai! misera orphã sem um tecto amigo, Sem um abrigo que te dê guarida!... Morrêr tão nova?!... acho cêdo ainda... Mulher, e linda... que horror! perdida!... Quando a purêsa no gosar fenece... Ai! desfalece todo o amor á vida!... (_Vendo que Arthur desmancha qualquer coisa no fogão_): Es um desastrado, Arthur; pois já tens idade para algum juiso... Estás a fazer onze annos... (_Vae compor o fogão, e Arthur espreitar á porta_). Arthur (voltando, com receio e meiguice): Desculpa, Laurinha, minha querida irmã, desculpa, que me pareceu ouvir a voz do snr. tenente, e tu bem sabes quanto eu gósto d'elle... Laura (enleiada): A voz do snr. Alfredo!... Ainda não são as horas do costume... (_dirige-se á mesa, em quanto Arthur faz qualquer traquinice pela casa, e fica um pouco pensativa_): Arthur tem razão... A pobre criança parece que adivinha os favores que devemos ao snr. tenente... se não fôra aquella boa alma, teriamos, eu e meu irmão, succumbido... (_trabalhando, e fallando, etc._) Não sei bem, se é só gratidão o que eu sinto... Os poucos dias que deixo de vêl-o, é como se me faltasse o ar que respiro!... se _Elle_ é tão bom, tão caritativo!... E nunca lhe ouvi uma palavra atrevida, nunca lhe vi um gesto menos respeitôso!... Elle... que podia abusar... que... (_pousando o ferro_): Meu Deus! E se elle fosse meu pae?!... Quem sabe?... Achei-me tão nova desamparada no mundo, e com este meu irmãosinho nos braços... Arthur (vindo ao pé da irmã): Ó Laura, tu que estás ahi a resmungar?... Não estejas triste, não?... Se estás assim por minha causa, eu prometto de nunca mais fazer tolices... Deixas-me tu ir para a porta da rua esperar o snr. tenente, deixas?... Laura (ameigando-o): Pois vae, vae, mas não te ajuntes com os garotos, ouviste? Arthur (indo aos saltos): Não junto... só hei de vêr como elles jogam o peão... SCENA II LAURA (só) Laura (largando de engommar, e pegando na costura): Muito penosa é a vida dos que vivem só para o trabalho... E o lucro que as mulheres tiram d'elle, não chega para matar a fome... se não fôra o meu protector pagar-me a renda da casa, ter-me-ia outra vez reduzido á penuria extrema, e... matava-me, para fugir á deshonra... (_pausa_) Horrorisa-me a idéa da vida que passam essas infelizes mal encaminhadas... O mundo não vê na mulher pobre mais do que um estimulo para os seus brutaes appetites!... Nova, como ainda sou, já por minha desgraça conheci isto; mas a Providencia, pela mão do sr. tenente, salvou-me do suicidio... SCENA III ARTHUR E LAURA Arthur (entrando a correr): Ó Laura, deram-me esta carta para te entregar... (_dá a carta, e volta para a porta da rua_). SCENA IV LAURA (só) Laura É d'_Elle_!... Estará doente, meu Deus!... (_abre a carta, e lê_): «Menina Laura.--É hoje mais um dos poucos dias em que me vejo obrigado a faltar-lhe com a minha visita á hora do costume... Peço-lhe que não lance esta falta na conta de esquecimento, por que a tenho sempre presente no pensamento e no coração. Até mais logo. Seu muito amigo, Alfredo.» (_Declamando_): Felizmente, é só algum estorvo da vida militar, e ainda hoje terei o prazer de vêl-o. (_Deixa a carta no cesto da costura_). SCENA V LAURA E JOÃO João (trazendo, n'um taboleiro, alguma roupa branca): (_Fallando de fóra_): Dá licença, menina? Laura Alguma obra, talvez... Entre, quem é? João (entrando): Ora, guarde Deus aqui tudo, e vivam os homens de guerra, e as meninas engommadeiras... (_reparando em Laura_): Palavra de honra, que a menina merece ainda bem a _continencia_... (_mudança de tom_): Desculpe-me estes geitos de _tarimba_, e estas graçolas já improprias dos meus annos, menina, que não ha mal nenhum n'isto. Cá o velho 38, ha muito que esqueceu as graças do matrimonio... (_com tristeza_): Ha bastantes annos, que perdi a minha boa Antonia, Deus lhe falle n'alma, e um filho, ou dous, quê... (_pausa: resignando-se_): Deixêmos tristezas, que não pagam dividas, e vamos ao que serve... Olhe, menina, trago-lhe aqui estas camisas para engommar. O meu tenente tinha por engommadeira uma pobre velhinha, que mais lhe estragava do que engommava as camisas, mas que elle ainda assim conservava, por que é o melhor dos tenentes... Vae, se não quando, a velha adoece, e eu vou hoje procurar uma camisa engommada para dar ao meu tenente, e... vistel-a?... nem eu!... Indaguei onde haveria uma engommadeira boa, e disseram-me que perguntasse pela menina Laura, n'esta rua. Chego á porta d'esta casa, vejo uns rapasitos a jogar o peão... Laura (interrompendo-o): Disseram-lhe que era aqui, e entrou... Pois, sr., eu farei por substituir a velhinha o melhor que possa. João _Faça alto!_... Substituir a velha, é que não, por que tinha de ir lá para casa, e apesar do tenente ser... o melhor dos tenentes, é ainda novo, e... _o lume ao pé da estopa_... Laura (interrompendo-o): Quem, como eu, foi em criança abandonada com um irmãosinho pequeno nos debeis braços, e soube até hoje sustentar-se virtuosa, preferindo perder a vida a perder a honra, parece que não poderia têr grande receio do seu tenente... João Então, _guarda dentro_... Já aqui não está quem fallou... Visto que a menina é assim _arisca_, muda o caso de figura... Ora, diga-me: poderei saber a sua historia?... Eu sou curioso como um soldado vadio em dia de _pré_; e como deixei tudo arrumado em casa, e o tenente está para o quartel, posso, sem receio, demorar-me. Laura (offerecendo cadeira ao soldado): A minha historia, conta-se em poucas palavras: teria completado dez annos de idade, quando morreu minha santa mãe. A infeliz, chorava todos os dias a ausencia de meu pae, que, dizia ella, fôra com o general conde das Antas para a expedição de Hespanha... João (interrompendo-a, visivelmente alterado): Para a expedição de Hespanha, diz a menina?!... Laura Sim, senhor. O que tem isso de extraordinario?... João (forcejando por tranquilisar-se): Diz bem... o que tem isso de extraordinario?... É que... Queira continuar, menina, queira continuar... Laura A falta de recursos em que viviamos, fez com que a minha pobre mãe morrêsse quasi á mingoa de pão e de tratamento... (_movimento em João, etc._) Eu, mal podia então avaliar a desgraça que vinha sobre mim... Quando vi minha mãe morta, chorei muito, gritei, clamei por soccorro e, como ninguem acudisse, sahi de casa com meu irmão ao collo, continuando a gritar pelas ruas, até que uma caridósa mulher me recolheu no seu pobre albergue... SCENA VI OS MESMOS, E ARTHUR Arthur (correndo): (_Traz pendente do pescoço de modo visivel uma medalha de cobre_).--Ó Laura, perguntaram-me por ti lá em baixo. Eu estava a vêr jogar o peão... (_reparando no soldado_): Ah! cá está o senhor que perguntou por ti... João (_Repara na medalha, levanta-se repentinamente, examina-a etc._) Esta medalha!!... Laura É uma reliquia, que minha santa mãe dizia ter vindo de Roma, e que lançou ao pescoço de meu irmão, pouco antes de morrer... João (excitadissimo): Menina!... por alma de sua mãe lhe peço, que me diga se conserva alguma carta que seu pae escrevêsse!... Laura Conservo. Tenho-a aqui no meu cesto de costura, n'esta caixinha, para nunca me separar d'ella... Olhe, aqui a tem. João (_Desdobra a carta todo trémulo, etc, e diz como em delirio_): Antonia!... Cá está... é a mesma... foi escripta em cima de um tambor antes de entrar em fôgo... E _Ella_ cá a morrer de fome!... e meus filhos!... (_grito dolorôso_): Ah!... (_cae sem sentidos na cadeira_). Laura (correndo a elle): Que é isto, meu Deus!... Elle morre!... Se viésse o sr. tenente... (_afflicta_): Nunca fui a sua casa, mas vou agora... Não posso estar aqui só com este homem assim... (_entra nos bastidores, e sae de capote: Arthur segue-a sempre_): Ainda sem sentidos!... (_apanha a carta do pae, que este deve ter deixado cahir, e guarda-a_): Vamos, Arthur, vamos depressa... (_sahem_). SCENA VII JOÃO (só) João (_Como accordando, etc._) Que sonho tão mau!... Só tive um igual quando fui mortalmente ferido, para salvar a vida ao meu tenente... Mas onde estou eu?!... Ah!... sim, estou em casa da engommadeira, que se chama Laura, que era tambem o nome de minha filha... E a historia d'estas crianças?!... E a carta?!... (_Procura a carta, e pega na que é do tenente_): Eil-a aqui!... Não é, pois, sonho, meu Deos?!... É certo que tenho dous filhos?!... Laura, minha querida filha!... (_pausa_): Sahiu... foi, talvez, chamar algum medico... É preciso tranquillisar-me, para o receber como um homem que é soldado... Estas fraquezas excessivas, não ficam bem a um militar, praticadas diante de um estranho... Vou lêr a carta que escrevi á minha pobre Antonia, quando pensava que ainda a abraçaria muitas vezes... (_abre a carta, principia a lêr, e fica como fulminado_): «Menina Laura!!...» Que é isto?!!... Estarei eu louco?!!... (_acaba de lêr para elle: gargalhada terrivel_): Ah!... ah!... ah!... ah... Então, não queria eu achar uma filha virtuósa, depois de dôze annos de desamparo?!... Impossivel!... (_pausa_): Em vez da ventura domestica para o resto dos meus dias, deparo com a deshonra ao cabo de trinta annos de serviço!... Bravo militar!... enche-te de orgulho com as tuas feridas!... a paga d'ellas, foi deixarem-te morrêr a mulher á fome!... e a condecoração, é a deshonra da filha!!... (_mudança de tom_): Mas ha aqui um seductor, que ha de pagar com a vida a minha vergonha... Eu o juro, á face de Deus!... Occulto n'aquelle quarto, poderei surprehendêl-os, e vingar-me... Depois... um tiro na cabeça, e era uma vez o 38!... (_entra precipitadamente no quarto_). SCENA VIII LAURA E ARTHUR Laura Não tive coragem de ir a casa do snr. tenente: encontrei uma conhecida, por quem lhe mandei recado... (_reparando_): Mas onde está o meu doente?!... SCENA IX OS MESMOS, E ALFREDO Alfredo (amavel): Mais depressa ninguem obedesse ás ordens da sua dama... (_aperta a mão a Laura_): Como está o meu anjo de resignação, a linda escravasinha do trabalho?... (_Logo que o tenente entra, Arthur fica polando de contente, pega-lhe na mão que elle tem livre, etc. Alfredo chega uma cadeira a Laura, e assenta-se tambem ao seu lado, collocando Arthur sobre os joelhos, que fica constantemente mechendo ora nas dragonas, ora nas mãos e no bigode do official_). Laura (_Pega na costura mas não trabalha_): Estou muito triste, snr. tenente... Ia para casa de v. s.^a participar-lhe que um pobre velho, camarada de um senhor official, adoecêra n'esta casa, vindo trazer-me umas camisas para engommar. Deixei-o aqui parecendo morto, e, já no caminho, encontrei a pessoa por quem lhe mandei pedir que viesse, e voltei a casa com muito cuidado no infeliz camarada. Chego, pouco antes de v. s.^a, e não encontro o homem!... Alfredo Não se espante a Laurasinha com o acontecimento, que é o mais natural possivel. O homem tem fibras de soldado velho: accordou, viu-se bom, e só, e foi tratar da sua vida, ou da vida do official de quem é camarada... Deixêmos essas tristezas, que já passaram, e diga-me a minha querida protegida se ha por aqui abundancia de trabalho, e o dinheiro preciso para as suas pequeninas necessidades... Laura Não me falta cousa alguma, graças á sua valedôra protecção, sr. tenente... Arthur (_Pondo a mão na cara do official_): Deixe fallar minha irmã, sr. tenente, que não diz a verdade... (_com ingenuidade infantil_): Ha tres dias, que só comêmos caldinho... Laura Que estás tu a dizer, meu traquinas?... Alfredo Fizeste bem em fallar, Arthur... A innocencia não sabe _guardar as conveniencias_... Então, a má da sr.^a Laura, esqueceu-se de mim, não é verdade?!... Laura (enleiada): Eu... não queria ser mais pesada, a quem já devo tanto... Alfredo (pondo o pequeno no chão): Vae, Arthur, vae para a porta da rua, para os teus encantos, que eu preciso de ralhar muito a tua irmã, e não quero que tu oiças... (_reparando nas luvas, que o pequeno lhe sujou_): E já que me pozeste as luvas n'este bonito estado, pega n'ellas, e faze dous saquinhos, anda... (_Arthur dá um beijo no tenente, recebe outro, e sahe muito contente._) SCENA X ALFREDO E LAURA Alfredo Vou fallar-lhe muito seriamente, menina Laura... Quando eu, haverá nove annos, a encontrei casualmente n'um miseravel sotão quasi asfixiada, querendo tambem matar o pequenino Arthur, seu irmão,--fiz o que faria todo o homem, que ainda não tivesse a alma completamente estragada pelas convenções do mundo tôrpe. Ouvi a sua singela e muito infeliz historia, admirei a austéra virtude da sua boa indole, e protegi-a. Desde então até hoje, se a minha assiduidade junto da menina póde ser mal vista pelos perversos, é certo que as nossas consciencias estão tranquillas. Sua mãe, Laura, não teria mais cuidado pela conservação da sua virtude do que este... _devasso_ militar, como talvez o mundo me chame... Podia dar-lhe todo o necessario, tiral-a ao trabalho pesado que exerce, cercal-a até de algum luxo; mas preferi velar apenas por que não entrasse em sua casa a miseria, deixando-lhe toda a gloria da sua honra pelo trabalho... Comprehenda-me bem, Laura. Um homem que assim procede, póde ter alguma coisa occulta no coração, mas de certo não merece o seu despreso... Fallo assim, para concluir por lhe dizer, que soffri muito ha pouco, que estou soffrendo ainda por ouvir da bocca de um innocente, que a menina occulta de mim as suas precisões, provando por tal fórma, que não confia no homem que ha nove annos a estima como um verdadeiro irmão!... Laura (_Muito terna, beijando-lhe a mão_): Não é isso, sr. Alfredo... Perdoe-me, se entendo mal, mas eu queria ser-lhe pesada o menos possivel... Pareceu-me comprehendêl-o... Devo-lhe, alem de tudo, o saber lêr nos livros que me dá, livros de certo escolhidos, por que só n'elles tenho aprendido rasgos de virtude e de heroismo... Não acredite que em mim exista um sentimento mau a seu respeito... seria crueldade imaginal-o sequer... Eu, não tenho no mundo outra affeição... É a v. s.^a que pertence toda a minha alma... Alfredo (interrompendo-a): Pela gratidão... Bem sei que a menina é um compendio de virtudes não vulgares. Laura (muito enleiada): Não é só a gratidão... Deixe-me dizer-lhe, o que ha muito mora no meu peito... v. s.^a é para mim mais que um irmão... já me lembrei se seria meu pae... É ainda novo, mas era possivel... Sei que o amo muito... creia-me... Se me faltasse, morria... (_com força_); Oh... juro-lhe que morria!... Alfredo (contentamento suffocado): Obrigado, Laura! Sabe lá o bem que me fez com o que acaba de confessar-me?! Tambem eu estou orfão de parentes e mais orfão ainda de crenças n'essa pervertida sociedade onde as minhas dragonas me dão entrada... Sonhei muitas vezes com a felicidade ao seu lado, Laura, mas temia de encontral-a suspeitósa das minhas intenções... Obrigado por me abrir o céu com as suas palavras... Attenda bem ao que lhe digo: estou a tocar nos quarenta annos. Esta idade, não deixa nutrir illusoes, mas ainda póde conservar bem vivo o coração... o meu--juro-lh'o sob palavra de cavalheiro--tem o mesmo calor dos vinte annos... Não posso, nem sei dizer-lhe mais... Peço-lhe pela memoria de sua mãe, que me diga com toda a força da sua convicção se não repugna á sua mocidade a juncção com a minha quasi velhice... Laura (abraçando-o): Repugnar-me, Alfredo?!!... (_como que admirada da sua audacia, retirando os braços vagarosamente, etc._); Perdão, sr. tenente... O meu contentamento deu-me audacia, que ha uma hora julgaria loucura... Alfredo (beijando-a na testa): O amor nunca é audaz, minha querida Laura, é um sentimento nobilissimo, que faz desapparecer todas as distancias... (_jubilôso_): Seremos felizes, muito felizes!... Havemos de causar inveja aos mais felizes da terra!... Hei de... SCENA XI OS MESMOS, E JOÃO João (terrivel de raiva concentrada): Casar á franceza... não é verdade, meu tenente?!... (_os dous separam-se, e João occupa o centro da scena, etc._): Alfredo O meu camarada!... Laura O homem doente!... João (sempre ironico e terrivel): O seu camarada, sim, meu tenente... aquelle soldado raso que aproveitou algumas cutiladas, para o salvar de uma infallivel morte... Era o dever do inferior... Agora, ao superior, cumpre-lhe pagar com a deshonra... Alfredo (rispido): Endoideceste, homem?!... Laura Que direitos são os seus, para estar com esses modos em minha casa?!... João Em sua casa, menina?... Por que não diz antes _em nossa casa_?... Era mais verdadeira, não occultando a _parte_ do sr. tenente... Alfredo (com imperio): Nem mais uma palavra, soldado!... Vá immediatamente para casa, e lá ajustaremos contas... João (cada vez mais furiôso): Hei de ir para casa, meu tenente... para uma casa que se fez logo que eu nasci, e que tem uns oito palmos de comprido... mas antes de me levarem para lá, quero contar-lhe em poucas palavras toda a minha vida... Fui casado á face da egreja, meu tenente... Minha mulher morreu de fome, em quanto eu batalhava pela liberdade da Peninsula... Ficaram-me dous filhos, que julguei mortos... não morrêram, por desgraça minha... Esta mulher, que hade partilhar, se nâo partilhou já, da infamia dos seus amores... é minha filha!... (_Laura, toda trémula, etc. prostra-se de joelhos_): Agora, sr. tenente, (_no auge da colera_): vou com estas mãos arrancar uma vida, que já conservei á custa da minha!... (_Faz acção de arremetter contra o tenente e Laura arrasta-se de joelhos para os pés do pae, que não faz caso d'ella. Alfredo, toma repentinamente attitude militar, e brada em voz de commando_): Alfredo Perfilado, 38!... Perfilado!... (_Lucta de gestos de João, entre a raiva e o dever militar, vencendo este por fim, e perfilando-se. Isto deve demorar-se, até o Arthur dizer o--áparte--da scena seguinte. Logo que João se perfila, toca a orchestra em surdina até ao fim_) SCENA XII OS MESMOS, E ARTHUR Arthur (_Entra, correndo, pelo fundo, e, vendo a irmã de joelhos e a chorar, toma o outro lado da scena, ajoelha tambem, pega na reliquia que traz ao pescoço, beija-a, e diz á parte_): Diz minha irmã, que a nossa mãe a ensinou a beijar esta reliquia quando tivesse afflicçòes... e como ella chora é por que soffre... (_conserva-se de joelhos observando a scena_). Alfredo (muito grave): O soldado que levanta a mão contra o seu superior, é fuzilado... Salvou-me uma vez a vida, devo salvar hoje a sua... Vou alcançar-lhe baixa com data de hontem (_Pausa_). Pergunte na minha ausencia a sua filha, o que eu tenho sido para ella... (_a Laura, que ajuda a levantar-se_): Senhora Laura... perdoe-me este acontecimento de que fui causa involuntaria... e adeus!... (_Laura affoga-se em soluços, e Alfredo, tendo dado alguns passos ao fundo, fica olhando para ella indeciso_). Arthur (_Levanta-se, corre ao tenente, pega-lhe na mão, e chama-o á scena_): Então o meu amiguinho vê minha irmã a chorar, e quer deixal-a?!... Alfredo (beijando o pequeno): Menina Laura... Peça a seu pae que a deixe casar com o tenente Alfredo... João (_Tem sempre estado perfilado, e move-se repentinamente_): Pois isso é sério, meu tenente?!... Alfredo Já me viu faltar a um juramento, João? João (rapido): Nunca! Alfredo (solemne): Juro-lhe pela cruz da minha espada, que dentro em oito dias hei de ser seu genro _á face da egreja_. João (_Louco de contentamento, abraçando o tenente pelos joelhos, etc._): Isto é que se chama uma _surpreza_, que póde fazer morrer de alegria!... (_Indo buscar Laura_): Anda, minha querida filha, amor do meu coração, retrato vivo de tua santa mãe, anda abraçar o teu anjo, o nosso anjo salvador!... (_Os tres formam grupo, etc._): Arthur (_Salta a uma cadeira, colloca-se entre os hombros do pae e os do tenente, e diz para a irmã_): Ó Laura, qual d'estes senhores é o nosso pae?... João (_Apertando-o contra o peito e beijando-o_): Somos ambos, meu filho, e tudo aqui respira alegria e felicidade!... Arthur Pois beijem todos esta reliquia, que foi a que fez o milagre... (_Sorriem-se todos, beijam a medalha, e affagam o pequeno. Rompe a orchestra._) CAHE O PANNO. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Surpreza - Entre-acto original" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.