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Title: A Paranoia
Author: Matos, Júlio de, 1857-1923
Language: Portuguese
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available by the Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica) at
http://gallica.bnf.fr



A PARANOIA

Julio de Mattos

ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS

  _...Ci iroviamo proprio faccia a faccia col nudo
  querito della pura pazzia._

EUGENIO TANZI

Lisboa
Livraria Editora
Tavares Cardoso & Irmão
5, Largo de Camões, 6

1898



A MEMORIA AMIGA DO PROFESSOR SOUSA MARTINS



PREFACIO


Ao passo que na sua maioria as doenças hoje estudadas pelos alienistas
pertencem no fundo á pathologia interna, e só pelo predominio, mais
apparente ás vezes do que real, dos seus symptomas psychicos se
apropriaram a designação de _mentaes_, os delirios systematisados,
esses, pela ausencia de caracteristicas lesões, pela falta de privativas
causas determinantes e pela carencia de symptomas funccionaes
objectivamente apreciaveis, constituem a verdadeira loucura, a psychose
por excellencia, n'uma palavra, o proprio e irreductivel dominio da
psychiatria.

Isto é dizer que a observação clinica não póde, ella só, determinar a
génese d'estes delirios, pois que o confronto dos dados psychicos com os
somaticos e etiologicos é, no caso sujeito, impraticavel.

Foi, todavia, pelo exclusivo exame do hypocondriaco, do perseguido, do
ambicioso, que os alienistas buscaram até ha pouco surprehender a
pathogenia dos delirios essenciaes. D'aqui o natural insuccesso dos seus
trabalhos, melhor do que nunca evidenciado nos ultimos debates das
sociedades psychiatricas de Paris e de Berlim, em que se não fez, por
confissão dos proprios oradores, mais do que obscurecer e confundir o
problema posto.

Por outro caminho,--introduzindo no controvertido thema a criterio da
evolução, seguiram, felizmente, na Italia contemporanea eminentes
pshychiatras.

Inquiridos clinicamente os delirios essenciaes nos seus symptomas e na
sua marcha, uma coisa resta ainda fazer para os interpretar: o estudo do
delirante, considerado, não em si mesmo, como individuo, ou nos seus
ascendentes immediatos, como membro de uma certa familia, mas
anthropologicamente na sua vasta ancestralidade, como representante de
uma especie em plena evolução.

Na sua marcha normal não segue o Espirito ao acaso, mas
_progressivamente_ por linhas de ideação desde muito entrevistas, senão
inteiramente definidas; quem nos affirma que na sua marcha anormal elle
não segue _regressivamente_ pelas mesmas prefixas e inflexiveis linhas
ideativas?

Se a dissolução da memoria se apagam primeiro os factos recentes e só
depois os remotos, primeiro os nomes e só por ultimo os adjectivos e os
verbos; se na dissociação da motricidade se perdem em primeiro logar os
actos conscientes e só por fim os habituaes e instinctivos; se na
desaggregação affectiva são os primeiros a fazer naufragio os
sentimentos altruistas e só em derradeiro logar se extinguem os
egoistas, é possivel e provavel mesmo que na esphera propriamente
conceptiva a marcha pathologica se realise, ao menos em certos casos,
n'um sentido tambem regressivo. Ora, segundo a escóla italiana, isto se
dá, com effeito, nos delirios systematisados essenciaes, manifestação.



PRIMEIRA PARTE

Historia dos delirios systematisados



I--PHASE INICIAL

De Areteu a Esquirol--Confusão dos delirios systematisados com a
melancolia--A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e
expansiva.


Se conheceram os delirios systematisados, não deixaram d'isso documento
os escriptores que precederam a nossa era. É sómente a datar do primeiro
seculo, em Areteu e Celio Aureliano, que encontramos incontestaveis e
inequivocas referencias aos perseguidos.

Occupando-se dos melancolicos, escrevia, com effeito, o primeiro d'estes
medicos: «Muitos receiam que lhes propinem venenos; os seus sentidos
adquirem um redobramento de finura e de penetração que os torna
suspeitosos e de uma habilidade extrema em verem por toda a parte
disposições hostis»[1]. Pelo seu lado, Celio Aureliano, fallando dos
mesmos doentes, affirmava que muitos «experimentam uma desconfiança
continua, um permanente receio de imaginarias armadilhas»[2].

  [1] Areteu,_De Melancholia_, apud Trelat, _Recherches historiques sur la
  folie,_ pag. 10

  [2] Vid. Trelat, _Obr. cit._, pag. 38.

A confusão que n'estas passagens se nota entre perseguidos e
melancolicos, subsistirá, como veremos, até muito perto de nós e merece
explicar-se desde já.

Definindo a melancolia «animi angor in una cogitatione defixus», Areteu
caracterisava esta doença por duas ordens diversas de factos a que dava
igual valor: de um lado, o phenomeno emotivo, consistindo n'um estado de
angustia _animi angor_, do outro, o facto intellectual de uma concepção,
delirante absorvendo e fixando o espirito (_in una cogitatione
defixus_). Pouco a pouco, porém, a consideração de um delirio limitado
foi, talvez por mais apparente, predominando sobre a de um estado mental
depressivo na caracterisação da melancolia, como se vê nos auctores que
succederam a Areteu. Procurando, com effeito, differenciar a melancolia
da mania, elles não o faziam pondo em contraste os estados emotivos que
acompanham estas vesanias, mas proclamando que na primeira o delirio é
limitado, unico e absorvente, ao passo que na segunda elle é multiplo,
geral e dispersivo.

Repetindo-se atravez dos tempos, esta doutrina que faz prevalecer o
elemento intellectual sobre o emotivo, conquista de tal modo as opiniões
que no seculo XVII melancolia e delirio parcial tornam-se termos
equivalentes. Assim Sennert a definia: «Uma concentração da alma sobre a
mesma idéa ou um delirio que se exerce sobre um pensamento, falso quasi
exclusivo».[1]

  [1] Vid. Morel,_Traité des maladies mentales_, pag. 54.

Nenhuma idéa de emoção depressiva e dolorosa se encontra n'esta e
analogas definições, em que, pelo contrario, a unidade do delirio figura
como elemento exclusivo. O _angor animi_ de Areteu desapparecera,
restando apenas da antiga definição o conceito de um espirito absorvido
_in una cogitatione_. Logicamente, pois, incluiram os medicos do seculo
XVII o delirio de grandezas no quadro clinico da melancolia. Sob o seu
ponto de vista, com effeito, tanto valem os perseguidos como os
megalomanos, porque uns e outros são, no dizer de Sennert, doentes «cuja
razão se acha pouco alterada ou apenas alterada em relação a um
objecto», isto é, por definição, melancolicos. Entre estes collocava o
auctor que acabamos de citar, um doente julgando-se monarcha do Universo
e cuja razão, _só parcialmente lesada_, lhe permittia «dissertar
perfeitamente sobre as mais graves questões». Plater, ao lado dos
melancolicos sitiophobos «receiando envenenamentos e accusando de
hostilidade e perfidia os seus mais intimos amigos», collocava doentes
«possuidos das idéas de opulencia e de realeza».

A unidade do delirio e não a natureza d'elle ou das emoções que o
acompanham, constituia no seculo XVII, como se vê, a caracteristica dos
estados melancolicos. De resto, Sennert explicitamente affirmava que «na
melancolia o delirio é muitas vezes alegre».

Os medicos do seculo XVIII acceitaram unanimemente a doutrina que no
quadro clinico da melancolia fazia entrar a titulo de variedades os
delirios de perseguições e de grandezas. Para Sauvages, por exemplo, o
delirio exclusivo caracterisava a melancolia; mais explicito, Lorry
descreveu como fórma d'esta vesania «um delirio parcial exaltado com
paixão excitante».

A primeira metade do nosso seculo não trouxe modificação sensivel a
estas idéas. Rusch descrevia em 1812 duas variedades melancolicas, uma
triste, _tristimania_, outra alegre, _aménomania_. Pinel admittia
igualmente duas fórmas de melancolia: uma depressiva e outra ambiciosa,
caracterisadas por um delirio parcial. «Nada mais inexplicavel, diz
elle, e, todavia, nada mais verificado que a existencia de duas fórmas
oppostas da melancolia. É algumas vezes uma explosão de orgulho e a
idéa chimerica de possuir immensas riquezas e um poder sem limites,
outras vezes o abatimento mais pusilanime, uma consternação profunda e
mesmo o desespero»[1].

  [1] Pinel, _Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale_, pag.
  165.

Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo, as
idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de
_monomania_ o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou
especies: uma, depressiva, a _lypemania_, outra, expansiva, a _monomania
propriamente dita_. A _lypemania_, que não é senão a _tristimania_ de
Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende entre
outras variedades o delirio de perseguições, ainda então innominado; _a
monomania propriamente dita_, que equivale á _aménomania_ de Rusch e á
melancolia de fórma expansiva de Pinel, é por elle definida «um delirio
parcial ou monomania alegre», e comprehende os delirios de grandezas,
não só o idiopatico, mas, como se vê nos casos que aponta, o
symptomatico da paralysia geral, ao tempo ainda não descripta.

Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol
transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que
lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o
extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás
psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente
perigosa.

No seu _Tratado das Doenças Mentaes_ affirma Esquirol que o termo
_monomania_ adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario
da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é
confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com
significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes,
ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e
de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o
mesmo que a melancolia dos antigos--uma affecção parcial do
entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a palavra
_monomania_ foi insensivelmente generalisada pelo proprio Esquirol no
sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de qualquer faculdade:
ao lado de uma _monomania intellectual_, tem logar uma _monomania
affectiva_ e uma _monomania impulsiva_. Delirios systematisados, emoções
procedentes de idéas obsediantes, impulsos cegos e irresistiveis, tudo
entra no quadro da monomania--o mais amplo, diz Esquirol, de toda a
classificação.

De sorte que, se os antigos, desviando a palavra _melancolia_ do
significado que Areteu lhe dera, chamaram a um só grupo delirios do
caracter diverso e lançaram assim na sciencia uma grande confusão,
Esquirol não fez senão augmental-a pela creação das monomanias.

Como quer que seja, o immenso e, por innumeros titulos, justificado
prestigio d'este observador fez correr a palavra e a doutrina. Sem
duvida, objecções foram bem cedo erguidas contra ambas por Falret,
Delasiauve e outros, que negaram a existencia de delirios circumscriptos
a uma só idéa, affirmados na palavra, ou pozeram em relevo a
solidariedade das funcções mentaes, contradictada pela doutrina. «Todas
as faculdades, escrevia Falret em 1819, participam em maior ou menor
grau das desordens intellectuaes; de resto, sempre que uma idéa falsa
invade a intelligencia, o seu poder contagioso exerce-se sobre as
outras, de sorte que sob um delirio preponderante véem-se estabelecer
delirios secundarios e derivados que não tardam a invadir todo o
intendimento»[1]. Pelo seu lado, Delasiauve escrevia em 1829: «Póde
acaso limitar-se o circulo d'acção em que uma idéa dominante deve
exercer ou realmente exerce a sua influencia?» E mais tarde ainda: «O
delirio dos monomanos não é nunca tão circumscripto como se pretendeu; a
verdadeira monomania é rarissima!»[2] Todavia, a criticas d'esta ordem
redarguiam Esquirol e os seus discipulos que nem a palavra _monomania_
significava unidade de delirio, nem a doutrina necessariamente implicava
que a lesão de uma faculdade não podesse fazer-se sentir sobre as
outras; para elles, a monomania designava uma lesão parcial e
preponderante, mas não unica e independente, das faculdades.

  [1] Falret, _Des maladies mentales_

  [2] Delasiauve, _Les Pseudomonomanies_

«Tem-se negado, escrevia Esquirol, a existencia dos monomaniacos,
dizendo-se que os alienados não deliram nunca sobre um só objecto, mas
que sempre n'elles há perturbações da sensibilidade e da vontade. Mas,
se assim não fosse, os monomaniacos não seriam loucos.»[1] Pelo seu
lado, Marcé escrevia: «Nunca os que crêem na existencia das monomanias
pensaram em negar a solidariedade das faculdades intellectuaes no
monomaniaco. Reconhecendo que o delirio é raras vezes limitado a um só
ponto, crêem, no emtanto, dever conservar as monomanias a titulo de
grupo distincto.»[2]

  [1] Esquirol,_Des maladies mentales,_ tom. II, pag. 4.

  [2] Marcé, _Traité pratique des maladies mentales,_pag. 351.

Voltemos, porém, ao nosso restricto assumpto.

A _monomania intellectual_ de Esquirol, caracterisada por um delirio
limitado de natureza alegre ou triste, não é senão a _melancolia_ dos
antigos medicos. Para aquelle, como para estes, era a extensão dos
conceitos falsos o criterio para classificar as loucuras em que ha
compromisso da intelligencia: de um lado, a mania, manifestando-se por
um delirio geral e dispersivo, do outro, a monomania, symptomatisada por
um delirio parcial e fixo.

Se a estas duas especies accrescentarmos a _idiotia_ e a _demencia,_
entrevistas por Pinel, mas só definidas por Esquirol, a _estupidez_
descripta por Georget, e a _paralysia geral,_ estudada por Calmeil,
encontramo-nos em face da classificação das psychoses que até ao meiado
do nosso seculo a França inteira adoptou. Ora, dentro d'esta
classificação, não teem logar distincto e proprio, como se vê, os
delirios systematisados: o de perseguições é descripto como uma
variedade lypemaniaca, e o de grandezas é confundido com as
manifestações symptomaticas de outras doenças mentaes.



II--PHASE ANALYTICA

De Lasègue a J Falret e de Griesinger a Snell e Sander--O delirio de
perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit
secundaria; a Verrücktheit originaria--Começo de interpretação
pathogenica.


Foi Lasègue em 1852 quem primeiro destacou do cahos da melancolia o
delirio de perseguições para eleval-o á dignidade de «especie
pathologica entre as alienações mentaes».

No seu memoravel trabalho sobre este assumpto, o eminente alienista
começa por notar que as idéas de perseguição apparecem como episodio
symptomatico e a titulo de phenomeno incidente no _alcoolismo_, nas
_loucuras provocadas por certas substancias narcoticas_ e em muitos
_delirios parciaes_; na doença, porém, que elle descreve pela primeira
vez essas idéas não são um syndroma fortuito, mas um facto constante e
essencial, um phenomeno preponderante e fixo. A nova psychose tem, de
resto, como titulos á autonomia nosographica, symptomas especiaes e uma
evolução caracteristica.

Estudando a marcha do delirio de perseguições, Lasègue reconhece-lhe
dois periodos: um, _de incubação,_ consistindo n'um mal-estar indefinido
e vago, mas absorvente e inquietante, em que o doente se suspeita
victima de hostilidades cuja origem não sabe ainda determinar; outro,
_de estado_, em que o delirio definitivamente se installa e systematisa.
Ao principio o doente não exprime a idéa de uma perseguição senão com
uma _certa reserva_, hesitantemente, tentando ainda provar a si mesmo
que ella é _absurda_; mais tarde, porém, a duvida esbate-se e o systema
delirante apparece definitivamente formado. A duração do primeiro
d'estes periodos é essencialmente variavel: tão rapida em alguns doentes
_que a custo se lhe surprehende o primeiro grau_, prolonga-se e
arrasta-se em outros, que só _muito gradualmente_ e por uma _progressão
bem sensivel_ e bem apreciavel attingem a construcção do seu romance
delirante.

Do mal-estar caracteristico do primeiro periodo diz Lasègue que elle _se
não parece em nada com a inquietação ainda a mais viva do homem normal_;
é indefinivel, accrescenta, como _os symptomas que annunciam e fazem
presentir a invasão das doenças graves_. O periodo de estado, esse, é
como a _floração_ da psychose: o _romance systematico_ desenvolve-se
pelo reconhecimento dos perseguidores--a policia, o jesuitismo, os
magnetisadores, a maçonaria, os physicos, etc.

Passando ao estudo dos symptomas, Lasègue põe em relevo o papel que
desempenham na doença as falsas sensações auditivas. «O orgão do
ouvido, escreve o eminente professor, fornece as primeiras sensações
sobre que se exerce a intelligencia pervertida. O doente ouve retalhos
de conversas que interpreta e se applica; os mesmos ruidos que
naturalmente se produzem,--a passagem de um trem, os passos de uma
pessoa que sobe ou desce uma escada, uma porta que se abre ou fecha, são
objecto dos seus commentarios».[1] Fallando, em seguida, das
allucinações auditivas, declara-as _as unicas compativeis com o delirio
de perseguições;_ e accrescenta: «Basta que um doente accuse visões para
que eu não hesite em affirmar que elle pertence a outra cathegoria de
delirantes»[2]. Na mesma ordem de idéas escreve ainda: «Qualquer que
seja a epocha em que ellas se declarem, as allucinações pertencem sempre
ao quadro das auditivas; não é demais a minha insistencia sobre este
caracter, que considero pathognomonico»[3]. Todavia as allucinações do
ouvido, tão importantes e de tão vasto papel, não são para Lasègue um
phenomeno constante na psychose que descreve: «A allucinação do ouvido,
diz elle, não é nem a consequencia obrigada, nem o antecedente
necessario do delirio de perseguições»[4]. Os perseguidos podem, segundo
elle, não experimentar nunca allucinações; limitando-se a _fundar
inducções delirantes sobre sensações anditivas reaes_, alguns ha que
percorrem _todos os periodos da doença_.

  [1] Lasègue, _Le délire des persécutions_ in _Ètudes médicales_, tom.
  1., pag. 554.

  [2] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 555.

  [3] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 555.

  [4] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 555.

Lasègue não refere allucinações além das auditivas: «As outras sensações
de que os perseguidos se queixam, diz elle, reduzem-se a impressões
nervosas»[3]. De resto, estas mesmas impressões devem antes lançar-se á
conta do hysterismo que á do delirio de perseguições: «As mulheres, diz
elle, offerecem os exemplos mais frequentes--sopros internos, subitos
calores, entorpecimentos, dores atrozes e passageiras e os outros
accidentes tão moveis da hysteria»[4].

  [3] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 556.

  [4] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 557.

Como a symptomatologia e a marcha da doença, a pathogenia d'ella mereceu
tambem as attenções de Lasègue. Segundo elle, o delirio procederia
sempre da necessidade que o alienado sente de explicar as sensações
anormaes do periodo inicial, e resultaria, portanto, de uma consciente
elaboração logica. «A crença n'uma perseguição, diz elle, não é senão
secundaria; provoca-a a necessidade de dar uma explicação a impressões
morbidas provavelmente communs a todos os doentes e que todos referem á
mesma causa»[1]. Por um raciocinio, pois, passaria o perseguido do vago
mal-estar do periodo prodromico ao delirio systematisado e quasi
invariavel que caracterisa a doença em plena floração. O facto inicial
seria um phenomeno confuso da sensibilidade, uma perturbação emotiva, o
phenomeno intellectual, o delirio, seria ulterior e nascido do primeiro.
«É, diz Lasègue, depois de um certo tempo de preoccupação e de
resistencia que o alienado procura remontar á causa dos seus
soffrimentos, e passa assim do primeiro ao segundo periodo. A transição
faz-se então por este invariavel raciocinio: os males que soffro são
extraordinarios; tenho experimentado bem mais duros golpes, mas
concebia-os, descobria-lhes mais ou menos o motivo; agora encontro-me em
condições extranhas que não dependem nem da minha saude, nem da minha
posição, nem do meio em que vivo: é preciso que alguma coisa de
exterior, de independente de mim intervenha; ora eu soffro e sou
desgraçado: só inimigos podem ter interesse em me magoar; devo, pois,
crêr que intenções hostis são a causa das impressões que
experimento»[2].

  [1] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 552.

  [2] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 552.

Decorrido o periodo prodromico e attingida a systematisação delirante,
a doença deixaria, segundo Lasègue, de acompanhar-se de _grandes
perturbações de sentimentos_. Ha perseguidos que, _mudando
constantemente de casa, fatigando incessantemente magistrados e
auctoridades com interminaveis queixas, conservam_, todavia, _uma certa
egualdade de humor_ «Nunca vi nenhum, diz o auctor, cahir em melancolia
continua, reagir por odios violentos ou meditar vinganças»[3].

  [3] Lasègue, _Loc. cit._, pag. 551.

Occupando-se da etiologia, Lasègue nota que o maximo de frequencia do
delirio de perseguições se realisa entre os 35 e os 50 annos e que esta
psychose ataca de preferencia as mulheres: segundo a sua estatistica,
25% das alienadas, comprehendidas as idiotas e imbecis, seriam
perseguidas. As causas proximas seriam, em regra, _de uma completa
insignificancia:_ uma insomnia, uma phrase inoffensiva, uma refeição de
sabôr desagradavel, etc. Emfim, estudando o delirio em relação ao
caracter anterior do doente, Lasègue nota que «os espiritos mais timidos
não são os mais predispostos»; no delirio de perseguições vê o eminente
clinico, não o exaggero de uma prévia tendencia natural, mas um
_elemento pathologico novo introduzido no organismo moral e sem
equivalente no estado de saude._

Procurando apenas «estabelecer um typo clinico e determinar os
caracteres que devem entrar na sua definição», o notavel alienista
declara abster-se de estudar «a marcha decrescente da doença e as suas
indicações therapeuticas».

Tal é nos seus traços capitaes e na sua mesma essencia a extraordinaria
memoria de Lasègue.

Sem nada accrescentar a este quadro clinico, Morel fez, todavia, desde
1853 umas importantes observações sobre a historia dos perseguidos,
affirmando que muitos d'elles principiam por ser hypocondriacos e acabam
por delirar n'um sentido ambicioso.

Exposta pela primeira vez d'uma maneira dogmatica e n'um certo grau de
generalidade nos seus _Estudos Clinicos,_ a observação de Morel tinha,
contudo, precedentes na sciencia. Pinel, com effeito, illustrando o que
elle chamava a transição da _melancolia depressiva_ á _melancolia
ambiciosa_, expozera em 1809 alguns casos de doentes que, tendo-se
julgado por mais ou menos tempo victimas de hostilidades e de manejos
criminosos, acabaram por crêr-se grandes personagens; pelo seu lado,
Esquirol notára tambem desde 1838 que da hypocondria póde passar-se á
_lypemania_ e d'esta á _monomania da vaidade_, apresentando como
exemplos alguns interessantes vesanicos primeiro hypocondriacos, depois
perseguidos e por ultimo ambiciosos. Entre os casos de Pinel ha o de um
alienado que durante oito annos delirou como perseguido, crendo-se em
constante imminencia de morte por envenenamento, não ingerindo senão
alimentos que furtava na cosinha do asylo, e que acabou por crêr-se
igual ao Creador e soberano do mundo; entre as observações de Esquirol
figura a de um doente que, excessivamente inquieto sobre o seu estado de
saude durante mais de dois annos, entra em seguida no caminho das
perseguições, imaginando-se objecto de tentativas de envenenamento por
parte da familia, e termina, decorrido um anno, por crêr-se filho de
Luiz XVI. Mas, por valiosas e instructivas que sejam em si mesmas, estas
observações não desempenham nos livros de Pinel e de Esquirol mais que
um papel episodico e sem alcance. Morel foi indiscutivelmente o primeiro
a vêr n'uma tal successão de delirios, não apenas um curioso accidente,
mas uma verdadeira lei de evolução vesanica, segundo a qual a passagem
regular da hypocondria ao delirio de perseguições e d'este ao delirio
ambicioso seria um facto constante nos alienados hereditarios. D'aqui a
affirmar a existencia de uma psychose degenerativa de que os delirios
hypocondriaco, persecutorio e ambicioso, succedendo-se, não
constituiriam senão _étapes_ ou phases evolutivas, vae uma pequena
distancia que Morel percorreu, como veremos, desde a publicação dos
_Estudos Clinicos_ em 1853 até á do _Tratado das Doenças Mentaes_ em
1860.

Outros auctores franceses, entre os quaes Renaudin, Broc e Dagonet,
notaram a successão de delirios diversos, nomeadamente de perseguições e
de grandezas, n'um mesmo alienado; todavia, por desconhecimento ou
incomprehensão do alcance dos trabalhos de Morel, nenhum d'elles se
preoccupou com a interpretação do phenomeno. Só em 1869 Foville,
retomando a questão na sua excellente memoria sobre a _Loucura com
predominio ao delirio de grandezas_, procurou interpretar, sobretudo, a
passagem--tão frequentemente observada agora que a attenção dos clinicos
incidia sobre ella--do delirio de perseguições ao de grandezas.

Marcando na historia dos delirios systematisados um periodo importante,
o trabalho de Foville merece deter-nos um momento.

Depois de ter mostrado que o delirio de grandezas póde apparecer a
titulo episodico na maioria das doenças mentaes e com mais ou menos
relevo constituir um syndroma de algum dos seus periodos evolutivos,
Foville estabelece que elle se torna preponderante e reveste
inconfundiveis caracteres semeioticos em dois casos: na loucura parcial
e na demencia paralytica. Pondo de parte, por alheio ao nosso estudo,
este ultimo caso, vejamos o que Foville pensava do primeiro.

A loucura parcial, que importa não confundir com a monomania de
Esquirol, representaria, segundo Foville, as alienações caracterisadas
pelo conjuncto d'estes caracteres: presença de um delirio systematisado,
ausencia de um estado habitual depressivo ou expansivo, existencia de
perturbações sensoriaes, e chronicidade.

O delirio de perseguições descripto por Lasègue é um dos representantes
d'este grupo; um outro seria, segundo Foville, a _megalomania_, que elle
define como um delirio de grandezas logicamente coordenado,
associando-se a allucinações chronicas e, no seu periodo de estado, a
idéas de perseguição.

Em rigor, nem o termo é novo, porque antes o tinham empregado, entre
outros, Broc e Dogonet, nem a definição da doença absolutamente
original, porque desde Esquirol se havia reconhecido a existencia de um
delirio ambicioso idiopatico. O que de original e novo existe no
trabalho de Foville é a maneira de estudar a génese do delirio de
grandezas e as relações d'elle com a doença de Lasègue.

Segundo Foville, na loucura parcial, de que são escólas o delirio de
perseguições e a megalomania, toda a symptomatologia essencial se reduz
a concepções delirantes e erros sensoriaes, podendo estas duas ordens de
factos manter entre si relações diversas, que importa muito considerar
para a comprehensão da pathogenia. Ou as concepções delirantes se
apresentam primeiro, apparecendo as illusões e allucinações como um
facto secundario da doença, ou, pelo contrario, a esphera sensorial é
primitivamente affectada e só depois irrompem as concepções chimericas.

Ora, segundo Foville, não é de modo nenhum indifferente para a natureza
mesma da doença que a successão das duas ordens de symptomas se realise
n'um sentido ou n'outro, porque o allucinado-delirante é, em regra, um
perseguido que póde tornar-se megalomano, ao passo que o
delirante-allucinado é mais vezes um megalomano que póde vir a ter idéas
de perseguição. A razão d'isto, no dizer de Foville, vem de que na
loucura parcial as allucinações primitivas são, como estabelecera
Lasègue, preponderantemente, senão exclusivamente as do ouvido, de um
caracter, em regra, penoso ao principio e de molde, portanto, a gerarem
um delirio depressivo. Ora, sendo a hypothese do allucinado-delirante
mais frequente que a do delirante-allucinado, é tambem mais vulgar o
perseguido-megalomano que o megalomano-perseguido.

Posto isto, que serve para mostrar que não é meramente accidental a
passagem de um delirio a outro, Foville, estreitando mais o assumpto,
deriva á explicação do modo intimo por que ella se realisa.

A transição (mais frequente, como foi dito) do delirio de perseguição ao
de grandezas opera-se, ao vêr de Foville, por um processo logico.
«Depois, diz elle, de terem por mais ou menos tempo attribuido as
proprias allucinações a inimigos desconhecidos, contentando-se com
explical-as por uma palavra mais ou menos obscura e mysteriosa, certos
lypemaniacos allucinados dizem a si mesmos: Factos d'esta ordem não
podem passar-se, no estado social em que vivemos, sem a intervenção de
pessoas influentes e altamente collocadas; essas só, portanto, são as
instigadoras dos nossos tormentos. Outros, ao contrario, reconhecendo
que não succumbem nunca de um modo completo aos perigos de que se sentem
cercados; suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os
protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao
conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes
personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos
individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e
principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delirio
melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importancia
preponderante. Mas as coisas podem ir mais longe ainda. Impressionados
pela desproporção entre a sua posição burgueza e o poder de que devem
dispôr os seus inimigos para os attingirem, a despeito de tudo; entre o
apagado papel que desempenham no mundo e os moveis imperiosos que podem
explicar o encarniçamento com que são perseguidos, alguns d'estes
doentes acabam por a si proprios perguntarem se realmente são tão pouco
importantes como parecem. Uma nova perspectiva se abre diante do seu
atormentado espirito: não é já a dos outros, mas a propria personalidade
que aos seus olhos se transforma. Para que os persigam d'este modo,
dizem elles, é preciso que um alto interesse se dê, e isso só se
comprehende porque elles façam sombra a gente rica e poderosa, porque
tenham, elles proprios, direito a uma fortuna e a uma posição de que
fraudulentamente os despojaram, porque pertençam a uma classe elevada de
que foram afastados por circumstancias mais ou menos mysteriosas, porque
não sejam seus verdadeiros paes os que como taes consideram, porque
pertençam, emfim, a uma alta estirpe, as mais das vezes real»[1].

  [1] Foville, _La folie avec prédominence du délire des grandeurs_, pag.
  345.

E accrescenta: «Estas idéas terão, sobretudo, tendencia a produzir-se
nos casos em que, já antes de doente, o individuo teve de soffrer no seu
orgulho ou nos seus interesses pelo facto da irregularidade ou do
mysterio do proprio nascimento. Assim, temos notado que esta fé n'uma
origem illustre, que esta crença n'uma imaginaria fortuna é
relativamente frequente nos _filhos naturaes_ que véem a cahir na
loucura. São elles principalmente os preparados para ás idéas de
perseguição juntarem um novo romance em que dominam as concepções de
grandeza, as substituições ao nascer, as confusões de pessoas»[1].

  [1] Foville, _Loc. cit._, pag. 346.

Como se vê, Foville não faz senão seguir a orientação psychologica de
Lasègue, que explicava pela intervenção de um raciocinio a passagem, no
delirio de perseguições, do periodo prodromico ao de estado. Um processo
logico, essencialmente deductivo e syllogistico preside tambem, segundo
Foville, á génese das idéas ambiciosas que derivam de um delirio
persecutorio.

Mas não é este, reconhece-o Foville, o unico modo por que o delirio de
grandezas póde produzir-se; algumas vezes succede que as concepções
ambiciosas se installam primitivamente, dando-se então o caso de
surgirem depois idéas de perseguição, por _uma sorte de propagação
regressiva que, ao fim de um certo tempo, acaba por nivelar as
situações._ Qual é agora o mecanismo de transição? «É difficil, escreve
Foville, crêr-se um doente na posse de direitos á fortuna e ao mando,
figurar-se descendente de uma familia illustre, e não se sentir vexado
pela modestia da posição que occupa ou pela exiguidade dos recursos de
que dispõe. N'isto vê elle um signal de injustiça, que attribue á acção
de inimigos poderosos; crê-se, pois, victima de manobras hostis e
fabrica assim um systematico delirio de perseguições, secundario agora e
consequencia das idéas de grandezas»[1].

  [1] Foville, _Loc. cit._, pag. 347.

É ainda, como se vê, um processo logico o destinado; segundo Foville, a
explicar a passagem do delirio ambicioso ao de perseguições; toda a
vesania parcial, portanto, qualquer que tenha sido o seu ponto de
partida e qualquer que haja de ser o seu termo, se desenrola sob a
dependencia do raciocinio e dentro da esphera consciente da ideação.

Os casos em que o delirio de grandezas succede immediatamente a
allucinações de caracter agradavel e lisongeiro, são extremamente raros;
a interpretação dos erros sensoriaes, isto é, um processo consciente e
reflectido, é ainda d'esta vez origem da doença.

Referindo-se á doutrina de Morel, Foville declara não a acceitar, porque
o delirio hypocondriaco, ponto de partida necessario, segundo aquelle
auctor, dos delirios de perseguições e de grandezas, só excepcionalmente
o encontrou.

De quanto vem de ser exposto a conclusão a tirar é esta:

Existe um delirio systematisado de grandezas que, no seu periodo de
estado, se combina sempre com idéas de perseguição, que é
invariavelmente acompanhado de allucinações auditivas e que tanto póde
originar-se, por via deductiva, de um preexistente delirio
persecutorio, como nascer _d'emblèe_. Não sendo um episodio morbido, nem
mesmo a phase evolutiva de uma vesania anterior, porque póde ser e é
muitas vezes primitivo, esse delirio constitue uma doença com foros de
autonomia e direitos a uma designação privativa: a _megalomania_.

Tal é, em resumo, a memoria de Foville na parte consagrada ao delirio
parcial de grandezas.

Depois dos importantes trabalhos de Lasègue e Foville, a psychiatria
franceza não nos offerece, dentro d'este periodo de analyse, estudo que
tenha feito progredir pela interferencia de pontos de vista novos o
conhecimento dos delirios systematisados. O livro publicado por Legrand
du Saulle, sob o titulo de _Delirio de perseguições_, em 1871, valioso,
certamente, pela copia de observações e pelos detalhes de analyse
clinica, nada tem, no fundo, de original, embora tentem proclamar o
contrario estas ambiciosas palavras do prefacio: «A despeito da sua
extrema frequencia e dos seus tão claros caracteres distinctivos, o
delirio de perseguições achou-se confundido com a melancolia de Pinel,
com a lypemania de Esquirol, com a monomania depressiva de Baillarger; é
ahi que eu vou buscal-o para o estudar nas suas diferentes phases, para
o constituir _de toutes pièces_ e fazer d'elle uma _especie_ á
parte»[1]. Dezenove annos antes fizera Lasègue, como vimos, o que n'esta
passagem se annuncia. O trabalho de Legrand du Saulle, excepção feita
dos capitulos consagrados ao tratamento, á medicina legal e ao contagio
do delirio, que nada teem que vêr com a constituição scientifica da
doença, não é senão um desenvolvimento da memoria de Lasègue, cuja ordem
de exposição adopta e cujas expressões mesmo não raro se apropria.

  [1] Legrand du Saulle, _Le Délire des persécutions,_ pag. 11.

Como Lasègue, Legrand du Saulle descreveu dois periodos no delirio de
perseguições: um, de começo, exteriorisado por uma _inquietação
indefinivel e de nenhum modo comparavel á do homem normal que tem um
grande interesse compromettido;_ outro, de estado, caracterisado pela
definitiva systematisação das idéas delirantes formando um _romance_
invariavel para cada doente.

Como Lasègue, Legrand du Saulle caracterisa a inquietação do primeiro
periodo comparando-a á _cephalalgia_ e ao _arrepio_ que são muitas vezes
os precursores de graves doenças communs, mas que em si mesmos nada teem
de preciso.

Como Lasègue, Legrand du Saulle explica a transição do primeiro ao
segundo periodo por um acto de reflexão do perseguido, por um verdadeiro
raciocinio. «O doente, escreve Legrand du Saulle, diz a si proprio e aos
outros que não são naturaes as inquietações e angustias que experimenta,
que lhes não encontra causa no meio em que vive, no estado da propria
saude, no da propria fortuna. No seu passado experimento grandes
infortunios, mas sabia o motivo d'elles e não eram os mesmos os seus
soffrimentos, não tinham o caracter vago e indefinido dos actuaes. Este
mal-estar tão grande, estas impressões tão penosas e tão injustificadas
devem ter uma causa secreta. E é assim que o doente se sente
naturalmente levado a pensar que inimigos occultos, interessados em
perdel-o, se reunem e procuram fazel-o soffrer»[1].

  [1] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 17.

Como Lasègue, Legrand du Saulle dá na symptomatologia da doença um logar
preponderante ás allucinações auditivas, precedidas frequentemente de
illusões do mesmo sentido. «O doente, escreve o auctor, começa por dar
uma falsa significação aos ruidos reaes que escuta: uma porta que se
abre, pessoas que fallam na rua, uma palavra pronunciada ao pé d'elle,
os passos de alguem, tudo é materia do delirio. As verdadeiras
allucinações só começam, em geral, mais tarde e n'uma epocha
variavel»[2].

  [2] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 43.

Como Lasègue, Legrand du Saulle admitte um periodo de declinação na
doença, que, sendo, em regra, incuravel, póde terminar pela cura n'uma
quinta parte dos casos. Na etiologia, Legrand du Saulle constata, como
Lasègue, que a doença é mais frequente nas mulheres e se realisa
preferentemente na epocha por excellencia das grandes luctas da vida.
Algumas considerações que faz sobre a _hereditariedade_, o _onanismo_ e
as _perseguições infantis_ são de um caracter vago. Como se vê, em tudo
quanto póde servir para caracterisar como _especie_ o delirio de
perseguições--na symptomatologia, na marcha, na etiologia, Legrand du
Saulle não faz senão seguir a memoria de Lasègue.

Vamos vêr que n'um ponto de maxima importancia, não tratado pelo
eminente professor da faculdade de Paris no seu trabalho de 1852,
Legrand du Saulle acompanha a memoria de Foville. Refiro-me á passagem
do delirio de perseguições ao de grandezas, explicada, como vimos, por
Legrand du Saulle acceita esta mesma pathogenia. «Depois, diz elle, de
ter soffrido tantas hostilidades da parte de implacaveis inimigos,
depois de ter sido victima de tantas intervenções devidas á magia ou ao
electro-magnetismo, o perseguido recolhe-se por vezes e pensa: Como
podem em pleno seculo XIX produzir-se factos d'esta natureza? É preciso
admittir no fundo de tudo isto uma energica vontade superior, a de um
alto personagem, a de um principe ou, talvez, de um rei! Deve ter sido
necessaria, com effeito, para explicar o meu caso uma auctoridade
verdadeira, que só póde existir nas mãos de millionarios, de ministros e
de imperadores: quem ordenou tudo é, pois, um grande senhor ou um
notavel personagem. Um outro perseguido pensará: Armam-me redes, mas eu
evito-as; expõem-me a coalisões formidaveis, mas eu saio-me bem d'ellas;
attentam contra a minha vida, mas eu resisto; alguem, pois, de um alto
poder vela por mim e me protege; esse alguem é o chefe do estado. Eis, a
partir d'aqui, toda uma ordem nova de idéas imprimindo uma outra
direcção ás concepções delirantes e ás allucinações. O perseguido não
cessa desde então de fallar em ministros, em familias reinantes, na
côrte pontifical, desconhecendo o caracter real das pesssoas que o
cercam e affirmando que Napoleão lhe envia mensagens, que Trochu o
chamou, que Thiers vae recebel-o, que tal ou tal princesa vem visital-o.
N'uma palavra, encontramo-nos em presença de idéas de grandeza
pathologicamente juxtapostas, porque as perseguições não cessaram, os
inimigos existem ainda»[1].

  [1] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 84.

«Acabamos de constatar, continua Legrand du Saulle, erros grosseiros
sobre a personalidade dos outros; pois vamos vêr que uma nova
transformação se opera agora e que erros mais grosseiros ainda vão
dar-se d'esta vez sobre a personalidade de perseguido. Sigamos um pouco
o raciocinio do doente: As operações dos meus inimigos, pensa elle, são
tão desleaes como persistentes e perigosas; os meus inimigos são
infatigaveis e poderosos; mas que interesse podem elles ter em me
mortificarem d'este modo, a mim, homem ignorado, obscuro ou collocado
n'uma situação modesta? O contraste entre os perseguidores e a victima é
dos mais notaveis. Quem sou eu com effeito? Talvez um ser menos apagado
do que se pensa, mais importante do que se imagina, mais temivel do que
se suppõe. E nem póde deixar de ser assim. Enchem-me de humilhações
odiosas, dirigem contra mim os mais tenebrosos attentados; ha, pois, um
interesse em fazel-o. Esse interesse parte de millionarios, duques,
principes ou imperadores, e é, portanto, dos mais consideraveis. Mas
então faço eu sombra a alguem e esse alguem roubou-me necessariamente o
meu nome, o meu titulo, a minha fortuna, o meu logar social, a minha
corôa. Eu não sou, portanto, o homem humilde sob cuja mascara vivi até
hoje: fui mysteriosamente posto de lado, iniquamente esbulhado; o nome
de que uso não é o meu, os que teem feito de meus paes não são da minha
familia; eu sou o neto de Luiz XVI ou o filho de Napoleão, sou o duque
de Orleans ou chamo-me D. Carlos»[2].

  [2] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 85.

Para não deixar de seguir passo a passo Foville, que, como vimos, notara
a relativa frequencia do delirio ambicioso nos perseguidos _filhos
naturaes_, Legrand du Saulle accrescenta: «Se o perseguido não tem um
acto de nascimento regular, se alguma vez soffreu pelo facto de uma
situação indecisa, de uma paternidade não confessada ou de uma educação
mysteriosa, se o seu orgulho foi torturado ou lesada a sua fortuna, com
que perniciosos elementos não crescerá o seu delirio, com que
apparencias de verosimilhanças não fallará elle a todos da sua
imaginaria fortuna, do seu nascimento illustre?!»[1]

  [1] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 86.

Como Foville e Morel, Legrand du Saulle refere casos em que no delirio
de perseguições se observam concepções hypocondriacas; estas, porém,
como as de grandeza, não constituem para elle uma phase evolutiva, mas
apenas um _acompanhamento_ ou _complicação_ da doença de Lasègue.

Uma parte nova e valiosa do trabalho de Legrand du Saulle é a que se
refere ao diagnostico differencial entre o delirio de perseguições
idiopathico e o que, como syndroma, apparece na demencia senil, na
paralysia geral, no alcoolismo subagudo e nas intoxicações pelo chumbo e
pelo sulfureto de carbone.

Não terminaremos esta rapida analyse do livro de Legrand du Saulle sem
notar que elle soube pôr em relevo dois factos interessantes,
ulteriormente notados por quantos se teem occupado d'este assumpto: a
existencia em muitos perseguidos de allucinações auditivas bilateraes de
caracter differente--vozes benevolas d'um lado, vozes hostis do outro, e
a tendencia d'estes doentes á formação de _neologismos_ e de um
incomprehensivel vocabulario privativo de cada um.

       *       *       *       *       *

Até aqui os trabalhos francezes. Vejamos agora, retrocedendo um pouco na
ordem dos tempos, de que maneira os psychiatras allemães comprehenderam
os delirios systematisados.

Foi Griesinger o primeiro entre elles a occupar-se d'este assumpto no
seu _Tratado de Doenças Mentaes_ cuja apparição remonta a 1845, mas que
só vinte annos depois veio a ser conhecido em França pela traducção
Doumic. N'esse livro, por muitos titulos notavel, descreve o eminente
professor de Zurich, sob a denominação de _Verrücktheit_, os delirios
parciaes que alguns annos mais tarde Lasègue e Foville haviam de elevar,
dando-lhes nomes privativos, á cathegoria de especies em nosographia
mental. Se bem que abreviada e n'um ou outro ponto confusa, a descripção
de Griesinger abrange todos os pontos essenciaes da symptomatologia dos
perseguidos e megalomanos, como facilmente se ajuizará pelas
transcripções que seguem.

Referindo se ás concepções que são o nucleo mesmo do delirio e o seu
mais apparente symptoma, Griesinger escreve: «São umas vezes idéas
activas, exaltadas, maniacas; o doente occupa uma posição elevadissima e
tem um grande poder: é Deus, as tres pessoas da Santissima Trindade,
reformador do Estado, rei, um grande sabio, um propheta, um enviado de
Deus ou descobriu o movimento perpetuo, é o dominador de toda a natureza
e conhece os elementos de todas as coisas, etc. Outras vezes são idéas
passivas: os doentes crêem-se lesados, dominados, submettidos ao poder
d'outrem; julgam-se perseguidos, victimas de tramas hostis; mysteriosos
inimigos atormentam-nos pela electricidade, os maçonicos fazem lhes mal,
são possessos do diabo, estão condemnados a supplicios eternos, e
roubados nos seus bens mais caros, etc.»[1]

  [1] Griesinger, _Traité des maladies mentales,_ trad. franceza, pag.
386.

Occupando-se dos erros psycho-sensoriaes, escreve: «As illusões e
allucinações em nenhuma outra fórma de loucura são tão frequentes como
na _Verrücktheit;_ em grande numero de casos são ellas principalmente
que alimentam e entreteem o delirio. Muitas vezes os doentes conversam
com as vozes que escutam, ou discutem com ellas, entregando-se então a
accessos de colera»[1]

  [1] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388.

Sobre o caracter absorvente d'estes delirios e sobre as transformações
de personalidade, diz Griesinger; «Involuntariamente o alienado refere
tudo ao seu delirio, e é d'este ponto de vista que julga todas as
coisas ... As concepções falsas relativas ao proprio Eu chegam a attingir
um elevadissimo grau, a partir do qual o doente não considera as coisas
do mundo externo senão de um modo inteiramente pervertido ... Alguns
d'estes doentes parecem crêr que a sua verdadeira personalidade anterior
deixou de existir»[2]

  [2] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 387.

Sobre a necessidade do _neologismo_ nos delirios systematisados de uma
longa duração, escreve o eminente alienista: «Por vezes a linguagem
ordinaria não basta ao doente para exprimir o proprio pensamento, pelo
que construe, ao menos para traduzir as suas concepções delirantes, um
vocabulario especial, que elle crê ser a linguagem primitiva, a
linguagem dos ceus»[3]. Ainda a proposito da exteriorisação do delirio,
Griesinger nota que «por vezes o doente occulta cuidadosamente o seu
systema geral de absurdos»[4].

  [3] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388.

  [4] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388.

Sobre o estado affectivo d'estes delirantes exprime-se assim o professor
allemão: «Nunca estes doentes tomam parte, como outr'ora, nas coisas do
mundo externo, ou são capazes de amar e odiar como antes; podem
morrer-lhes os paes e os amigos, póde ser-lhes subtrahido o que mais
estimavam, póde o mais terrivel acontecimento incidir-lhes sobre a
familia sem que elles sintam mais que uma ligeira emoção, se alguma
sentem. Um só ponto ha em que podem ser ainda emocionados, que póde
abalar-lhes promptamente os sentimentos e provocar uma forte reacção da
vontade: procurem-se combater pelo raciocinio as suas idéas fixas e logo
elles se irritarão e entrarão em colera; acariciem-se, pelo contrario,
as suas concepções e elles mostrar-se-hão contentes»[1].

  [1] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388.

Crêmos que as citações precedentes bastam para demonstrar que Griesinger
conheceu intimamente os perseguidos e ambiciosos. A descripção que
d'elles faz, como quadro symptomatico _d'après nature_, é nas suas
linhas capitaes e até em alguns detalhes a mesma que alguns annos mais
tarde haviam de exhibir-nos os alienistas francezes que, não conhecendo
os trabalhos do professor allemão, tinham, comtudo, diante de si
analogos modelos.

Mas se a descripção symptomatica é a mesma, a _interpretação
nosographica e pathogenica_ é profundamente diversa, porque, ao passo
que os francezes consideraram sempre os delirios parciaes como fórmas
primarias da loucura, Griesinger julga-os, como vamos vêr, fórmas
secundarias ou estados procedentes da mania e da melancolia.

O que é, com effeito, a _Verrücktheit_ do psychiatra allemão? «Sob este
nome, diz elle, designamos os estados secundarios de loucura, nos quaes,
embora tenha diminuido consideravelmente ou mesmo desapparecido por
completo a situação afectiva que caracterizava a fórma mental no seu
começo, o doente não cura, e em que a alienação consiste n'um pequeno
numero de concepções delirantes fixas que elle acaricia de um modo
particular e constantemente repete»[2]. E accrescenta: «A _Verrücktheit_
é _sempre_, pois, uma doença _secundaria_, consecutiva á melancolia ou á
mania»[3]. _Residuos de estados de exaltação ou depressão,_ diz ainda em
outro logar, constituem a _Verrücktheit_ que, por isso mesmo, elle
colloca no grupo dos _estados de enfraquecimento psychico_, ao lado da
demencia.

  [2] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 382.

  [3] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 382.

Na direcção de Griesinger e pelo caminho que elle abriu seguiram longo
tempo os alienistas allemães. «O delirio parcial, escrevia Albers em
sobretudo uma fórma de terminação da loucura com excitação ou depressão
geraes; quando se encontra esta fórma, uma das duas existiu
anteriormente e acabou por _uma cura incompleta_»[1]. Fallando da
metamorphose do Eu que acompanha os delirios systematisados n'uma phase
de adiantada chronicidade, Spielmann escrevia no mesmo anno «que ella
suppõe a existencia anterior da melancolia ou da mania, sem uma das
quaes não póde _nunca_ produzir-se»[2]. Em 1859 Neuman considerava a
_Verrücktheit_ «uma cura com perda de substancia da intelligencia», isto
é, uma cura incompleta da mania ou da melancolia, um estado secundario
ou consecutivo, acompanhado de uma decadencia das faculdades.

  [1] Albers, _Memoranda der Psychiatrie_.

  [2] Spielmann, _Diagnostik der Geisteskrankheiten_.

Crêmos inutil proseguir em citações. As precedentes bastam a dar-nos uma
clara idéa da doutrina pathogenica dos delirios, systematisados segundo
a psychiatria allemã d'esta epocha. Suspensas na sua evolução para a
demencia, a mania e a melancolia atardar-se-hiam nas fórmas expansivas
ou depressivas da _Verrücktheit,_ delirio de grandezas ou delirio de
perseguições.

Em contraste, porém, com estas idéas, que durante vinte annos dominaram
absolutamente a psychiatria allemã, descreveu Snell em 1865, baseando-se
em dez casos de observação pessoal, uma nova fórma de loucura
essencialmente caracterisada pela apparição primitiva de estados
allucinatorios e conceitos delirantes de contheudo mixto, expansivo e
depressivo.

Esta fórma, que Snell denomina _monomania_ ou _Wahnsinn_, é inteiramente
distincta da mania e da melancolia. N'ella podem as idéas de perseguição
e de grandeza ser contemporaneas ou successivas; quando as ideias
ambiciosas succedem ás de perseguição realisa-se uma metamorphose da
personalidade vesanica. A evolução d'esta fórma é essencialmente
chronica e o seu prognostico infausto. A adopção do termo francez
_monomania_ parece indicar a parcialidade do delirio que, segundo Snell,
não conduz nunca á demencia, como a do termo allemão (derivado de
_Vahn_: delirio, e _Sinn_: sentidos) põe em relevo a importancia das
allucinações.

Acceitando este modo de vêr, Griesinger penitenceia-se em 1867 da
excessiva e precipitada generalisação das suas idéas pathogenicas e
acaba por admittir, ao lado da _Secundäre Verrücktheit,_ uma _Primäre
Verrücktheit_, analoga ao _Wahnsinn_ de Snell. Na lição de abertura do
seu curso n'esse anno exprimia-se assim o grande chefe da psychiatria
allemã: «Áctualmente não considero já como fórmas secundarias as
alterações peculiares, muito chronicas e mixtas do delirio persecutorio
e ambicioso; ao contrario, convenci-me da origem _protogenica_ d'estes
estados que denomino _Primäre Verrücktheit»._

Perfilhando as idéas de Griesinger sobre a _Primäre Verrücktheit,_
descreveu Sander em 1868, baseado em quatro casos clinicos, uma
variedade congenita d'esta fórma sob a designação de _Originäre
Verrücktheit_. Os delirantes perseguidos ou ambiciosos d'este sub-grupo
são desde a infancia taciturnos, mysantropos, romanticos, excessivamente
phantasistas, faltos de energia, onanistas, n'uma palavra,
originariamente enfermos. É na puberdade que os delirios, de longa data
preparados, fazem explosão. Sander nota as tendencias remittentes da
_Originäre Verrücktheit_ e observa que a demencia está muito longe de
ser um dos seus modos de terminação.

Como se vê, a primitividade ou protogénese dos delirios systematisados,
admittida desde todo o principio pelos alienistas francezes, é agora
acceite pela psychiatria allemã, cujo dogmatismo desde 1845 a 1865
mandava admittir _quand méme_ uma preexistente psychose maniaca ou
melancolica em todos os delirios de perseguição e de grandeza.

Não morreu, como veremos ainda, a _Secundäre Verrücktheit,_ a despeito
de Koch e de Pelman que lhe negaram a existencia; mas a sua esphera
clinica foi estreitecendo á medida que alargava a da _Primäre
Verrücktheit_.

       *       *       *       *       *

Voltemos aos trabalhos francezes.

Tendo tido a felicidade de sobreviver trinta e um annos á publicação da
sua memoria sobre o delirio de perseguições, Lasègue foi conduzido pela
ulterior observação clinica dos factos a modificar uma das affirmações
que n'esse trabalho fizera. Assim, tendo escripto em 1852 que os
perseguidos supportam resignadamente todos os seus martyrios--a ponto,
dizia então, de não ter visto um só reagir por um acto de vingança,
Lasègue constatou mais tarde a existencia de muitos que se apresentam
armados para a lucta, represaliando energicamente, como Sandon, como
Verger, como Teulot, as suppostas perseguições. Perito em mais de uma
ruidosa questão medico-legal determinada pelas violencias d'esta ordem
de doentes, o eminente professor foi ainda, elle proprio, victima das
aggressões brutaes de um d'elles, que o appellidava _chefe dos
alienistas alienisantes_. Modificando as suas primitivas idéas, o
celebre psychiatra achou que o delirio de perseguições comporta duas
variedades, correspondendo aos modos de reacção dos doentes: uma
_passiva_, a mais commum, representada pelos perseguidos que apenas se
defendem, fugindo ao convivio, mudando de logares, tomando nomes
suppostos, cosinhando os proprios alimentos, queixando-se ás
auctoridades, barricando-se dentro dos seus aposentos, suicidando-se
mesmo; outra _activa_, representada pelos que acceitam a lucta e
respondem ao mal com o mal, calumniando, ferindo, matando até. Aos
doentes d'esta ultima cathegoria deu Lasègue o nome, depois consagrado,
de perseguidos-perseguidores, consignando que a explicação do seu modo
especial de reagir deve ser pedida, não a condições privativas do
delirio, mas ao caracter moral preexistente á vesania.

Pondo no estudo da variedade _activa_ do delirio de perseguições o mesmo
espirito de analyse que desenvolvera na creação da fórma _passiva_ ou
commum, Lasègue fez a proposito as seguintes indicações de uma justeza
clinica indiscutivel: que os perseguidos-perseguidores chegam á
personificação do seu delirio em virtude de circumstancias accidentaes
ou de factos sem importancia, mas exactos, que determinaram a sua
antipathia por um dado individuo; que taes circumstancias ou factos
reaes não são, em geral, recentes, mas antigos e evocados pela memoria,
incessantemente occupada na revivescencia do passado; emfim, que os
doentes, uma vez achado o seu perseguidor, não o esquecem mais, não o
abandonam, nem o substituem, quando mesmo factos ulteriores e de maior
valia justifiquem sentimentos de odio e de vingança contra outros
individuos. Na escolha do perseguidor evidenceiam os perseguidos activos
a mesma critica futil que os passivos demonstram na determinação dos
factos que apontam como provas de perseguição: uma pedra achada á porta,
um lençol esquecido na varanda de um visinho, a tosse de um sujeito que
passa. De resto, Lasègue observou que, excepção feita do modo de reacção
delirante, perseguidos activos e passivos se comportam identicamente,
offerecendo o mesmo quadro de symptomas e a mesma evolução pathogenica.

Creando a variedade _activa_ do delirio de perseguições, o notavel
professor melhorou, pois, completando-a, a sua primitiva descripção
clinica d'esta psychose, sem, todavia, a alterar na essencia; de facto,
a unidade da doença persistiu, não tendo alcance nosologico, mas apenas
medico-legal, o reconhecimento das duas variedades.

Ulteriores trabalhos, porém, vieram quebrar, dentro da propria França,
essa unidade do delirio de perseguições.

Notou, com effeito, J. Falret em 1878 que ha entre os perseguidos
activos ou perseguidos-perseguidores duas cathegorias de doentes que
profundamente divergem; symptomas, evolução, etiologia--tudo n'elles é
differente. Uns, em verdade (e são esses os que Lasègue notou), apenas
no modo de reacção delirante se separam do typo classico dos perseguidos
passivos, sendo-lhes em tudo o mais similhantes: nos symptomas, porque,
como estes, offerecem idéas systematicas de perseguição alimentadas por
erros sensoriaes constantes, sobretudo por allucinações auditivas; na
marcha, porque, como os perseguidos communs, podem soffrer a alteração
de personalidade caracterisada clinicamente pela passagem do delirio de
perseguições, ao de grandezas; na etiologia, emfim, porque teem uma
historia ancestral e pregressa identica á dos perseguidos vulgares. Com
razão, portanto, fez Lasègue d'estes perseguidos activos os
representantes apenas de uma variedade clinica do delirio de
perseguições. Outros, porém, não offerecem do quadro d'esta psychose
senão as idéas systematisadas de perseguição, divergindo em tudo o mais:
na symptomatologia, porque as suas concepções morbidas não se apoiam em
erros sensoriaes; na marcha, porque nunca o seu delirio se transforma,
n'um sentido ambicioso; na etiologia, emfim, porque a sua historia
ancestral e anamnestica não é a dos outros perseguir, dos, activos ou
passivos, mas a dos degenerados hereditarios.

A doença de Lasègue não comporta esta cathegoria de
perseguidos-perseguidores; forçoso é, pois, no dizer de Falret,
acceital-os como representantes de uma outra _especie_ nosographica.

Pottier desenvolve no seu _Estudo sobre os alienados perseguidores_ as
idéas do eminente clinico de Salpêtrière, seu mestre, insistindo no
diagnostico differencial entre estes vesanicos e os outros perseguidos.
A proposito da etiologia escreve: «Estes doentes, em vez de apresentarem
desde a juventude um caracter desconfiado ou de passarem pela phase de
hypocondria que muitas vezes precede o delirio de perseguições
ordinario, teem quasi sempre manifestado na infancia, na adolescencia ou
na idade adulta alguns dos symptomas physicos e moraes attribuidos hoje
aos alienados hereditarios: alterações de caracter, desigual
desenvolvimento das funcções intellectuaes, faculdades eminentes ao lado
de enormes lacunas, accidentes nervosos ou perturbações mentaes
passageiras, na puberdade, existencia movimentada, irregular, vagabunda,
perversões genitaes e outras. O passado d'estes doentes é, n'uma
palavra, não o dos perseguidos classicos, mas o dos alienados
hereditarios»[1].

  [1] Pottier, _Ètude sur les aliénés persécuteurs_, pag. 3

A proposito da ausencia de allucinações n'estes doentes, diz Pottier:
«Imaginou-se que as allucinações auditivas, escapando a uma observação
superficial, seriam encontradas n'estes doentes por um exame
escrupuloso. Não é assim, porém. Nós crêmos, ao contrario, que, na
direcção actual das idéas, se teem admittido allucinações não
demonstradas ou se teem tomado como allucinações simples phenomenos de
interpretação delirante, illusões ou mesmo impressões procedentes do
mundo exterior e realmente percebidas pelos doentes, cuja acuidade
sensorial se encontra muitas vezes exaggerada»[2].

  [2] Pottier, _Obr. cit._, pag. 38.

Sobre a evolução do delirio n'estes doentes, diz ainda Pottier: «Ha
periodos de remissão prolongada e de intensa exacerbação, mas nenhuma
evolução progressiva ... Estes alienados são, em regra, muito orgulhosos,
mas não chegam, como os outros perseguidos, á megalomania, ao delirio de
grandezas, emfim, a uma verdadeira transformação da personalidade»[1].

  [1] Pottier, _Obr. cit._, pag. 39.

A estas notas differenciaes junta Pottier uma outra: a existencia, nos
doentes de que nos occupamos, de accidentes cerebraes, congestivos ou
convulsivos, produzindo-se a largos intervallos. «Observem-se
attentamente, diz, o auctor, estes doentes durante o curso da sua vida,
estudem-se as observações já publicadas, e chegar-se-ha a verificar que,
nos perseguidores lucidos, accidentes cerebracs graves se dão de tempos
a tempos e que, as mais das vezes, elles morrem cerebralmente, quer por
um ataque, quer por influencia de lesões consecutivas»[2].

  [2] Pottier, _Obr. cit._, pag. 41.

Ainda no capitulo do diagnostico, o mais completo do trabalho que vimos
citando, observa Pottier a extrema facilidade com que os perseguidores
conseguem fazer perfilhar as suas idéas por um grande numero de pessoas,
chegando mesmo a interessar em sua defeza a propria imprensa. A
explicação d'este _contagio delirante_ procede sobretudo, segundo
Pottier, da convergencia d'estes dois factos: de um lado, a
intelligencia de ordinario muito viva d'estes doentes e a sua incansavel
actividade; de outro lado, o colorido verosimil do seu delirio, que não
é em si mesmo absurdo, que se não apoia em estados allucinatorios, mas
que tem por base factos reaes, embora morbidamente interpretados, e
circumstancias possiveis, cuja veracidade não é facil contestar ou mesmo
pôr em duvida.

Os _litigantes_ ou _processomanos_ constituem a mais importante
cathegori d'estes doentes; uma outra é formada pelos _perseguidores
hypocondriacos_ que, attribuindo os seus imaginarios males ao tratamento
seguido, hostilisam o medico assistente.

As idéas de J. Falret fizeram carreira em França, onde os
perseguidos-perseguidores são geralmente considerados como exemplares de
loucura lucida _(folie raisonnante)_, sub-grupo das degenerescencias
psychicas hereditarias. Nas suas _Lições clinicas sobre as doenças
mentaes_, Magnan presta um largo apoio á doutrina de Falret, fazendo
apenas reservas sobre dois pontos: as allucinações, que elle admitte a
titulo de excepção, e os accidentes cerebraes, que julga, em face da sua
experiencia pessoal, muito menos frequentes do que se tem pensado.

De passagem faremos notar que na Allemanha o _delirio processivo_ tem
soffrido as mesmas vicissitudes theoricas que experimentou em França o
delirio dos perseguidos-perseguidores. Ao passo que a maioria dos
auctores, á maneira de Lasègue, consideram aquelle delirio uma simples
variedade da _Verrücktheit_, descrevendo-o, como faz Krafft-Ebing, ao
lado do delirio de perseguições, outros, como Arndt, Kraepelin e Schüle,
fazem d'elle um sub-grupo da _loucura moral._



III--PHASE SYNTHETICA

De Morel a Magnan; de Westphal a Cramer; de Buccola a Tanzi e Riva--A
loucura hypocondriaca; o delirio chronico; a loucura parcial; a
Verrücktheit aguda e chronica; a Paranoia; a delusional
insanity--Determinação pathogenica.


Vimos precedentemente que Morel, quando ainda a psychiatria franceza se
esforçava por elevar á cathegoria de fórmas nosographicas autonomas os
delirios de perseguições e de grandezas, esboçara a doutrina segundo a
qual taes delirios não seriam senão manifestações de uma doença ou, mais
precisamente, transformações progressivas da loucura hypocondriaca.

Da idéa inicial de um compromisso da saude, caracteristica da
hypocondria, passaria o doente, generalisando, á idéa de um compromisso
da vida, da honra, dos interesses intellectuaes e moraes, caracteristica
do delirio de perseguições. Este seria uma simples manifestação da
hypocondria anomala ou, como elle proprio escreve, sublinhando, _uma
hipocondria de uma natureza mais intellectual_. Em 1860 exprimia-se
assim no seu _Tratado_ o illustre psychiatra: «Fallando da hysteria,
disse eu que esta nevrose póde percorrer as suas phases mais
extraordinarias sem que a alteração das faculdades intellectuaes e
afectivas se torne uma consequencia forçada. A hysteria larvada, se
assim posso exprimir-me, offerece perigos muito maiores para o livre
exercicio das faculdades, como provei com numerosos exemplos. A mesma
reflexão póde applicar-se á hypocondria. Para d'isto nos convencermos,
basta examinar até que ponto o temperamento dos individuos com delirio
predominante de perseguições está sob a influencia d'este estado
nevropathico»[1]. E mais adiante: «Quando elles (os hypocondriacos)
chegam á supposição de que os seus alimentos teem venenos ou, pelo
menos, substancias que lhes produzem as sensações de que se queixam;
quando elles se imaginam expostos aos maleficios do que chamam potencias
occultas, como a electricidade e o magnetismo, e pensam que a propria
policia procura perdel-os, podemos estar certos de que vão entrar _na
phase d'este delirio especial_ que a designação de _delirio de
perseguições_ melhor do que todas exprime»[2].

  [1] Morel, _Traité des maladies mentales_, pag. 706.

  [2] Morel, _Obr. cit._, pag. 707.

Quanto ao _delirio ambicioso_ elle seria, segundo Morel, uma terminação
frequente do delirio de perseguições. Fallando dos megalomanos,
escrevia: «E quando mesmo os doentes chegaram a este estado de
contentamento e de vaidosa satisfação que é proprio das idéas
systematicas de grandeza, elles não lograram collocar-se de um modo fixo
e irremediavel sobre o pedestal da sua loucura senão com a condição de
passarem por todas as peripecias do delirio de perseguições, e de terem,
as mais das vezes, experimentado todos os soffrimentos dos
hypocondriacos»[3].

  [3] Morel, _Obr. cit._, pag. 716.

Para explicar a passagem do delirio de perseguições ao de grandezas,
Morel não invocava, á maneira de Foville, o _raciocinio_ e a _logica,_
mas a _physiologia morbida:_ era, com effeito, ao echo psychico de uma
alteração no funccionalismo visceral dos hypocondriacos que elle ia
procurar a chave d'este phenomeno _tão frequente quanto assombroso para
os homens alheios á medicina e desconhecedores das leis dos organismos
doentes._

Esta doutrina, integrando os delirios de perseguições e de grandezas na
hypocondria, representava uma tentativa de synthese clinica,
naturalmente destinada a não encontrar seguidores entre os
contemporaneos de Morel, porque o tempo era de analyse, e a tendencia
geral a da multiplicação das fórmas nosographicas. O estudo minucioso
dos symptomas absorvia as attenções, relegando a um plano subalterno o
das causas e da evolução das doenças. Embora combatidas quasi desde a
sua introducção na sciencia, as _monomanias_ de Esquirol triumphavam
ainda então: o delirio de perseguições era uma monomania, o delirio de
grandezas, outra. O _Tratado_ de Marcé, o mais cotado dos livros
classicos da psychiatria franceza, consagrava esta doutrina em 1862; e a
memoria de Foville, que atraz citámos, tem a data de 1869, como tem a de
1871 a monographia de Legrand du Saulle, de que tambem démos idéa no
capitulo anterior.

Isto é dizer que não foi comprehendida a maneira de vêr de Morel sobre
os delirios systematisados, como o não foram outros pontos de vista
d'este homem de genio, que Morselli justamente denomina o _Darwin da
psychiatria_. Fallava para o futuro o auctor das _Degenerescencias
Humanas_, cuja alta originalidade rompe na historia da medicina mental
franceza o parallelismo entre a ordem chronologica e a ordem logica das
idéas.

É só em 1883, mais de vinte annos depois de publicado o _Tratado_ de
Morel, que as idéas d'este psychiatra a proposito dos delirios
systematisados são retornadas e postas em relevo n'um trabalho de
Gérente.

Escripto sob a evidente inspiração de Magnan, esse trabalho destina-se a
provar com o apoio dos factos, que não existe _um_ delirio
hypocondriaco, _um_ delirio de perseguições e _um_ delirio de grandezas,
mas uma vesania, o _Delirio Chronico,_ de que aquelles não são senão
phases evolutivas. «Vamos, diz o auctor, estudar clinicamente todos os
delirios da vesania; seguiremos n'uma observação attenta a génese e a
evolução d'estes delirios; e, por conclusão d'este trabalho, esperamos
que em vez d'essas _monomanias_, tão artificiaes e tão confusas, de
certos auctores, appareça claramente, emfim, _uma só e mesma especie
morbida_ que chamaremos o _Delirio Chronico_»[1].

  [1] Gérente, _Le délire chronique_, pag. 10.

O que é, verdadeiramente, este _Delirio Chronico_? Segundo Gérente, uma
doença que, germinando sempre n'um terreno hypocondriaco, se denuncía
nos seus casos typicos e eschematicos pela successão regular de tres
periodos: um de concentração dolorosa do espirito; um de expansão; e um
mixto ou de transição entre os dois. Se a doença se prolonga
sufficientemente, a demencia é o seu termo natural.

O terreno hypocondriaco em que, segundo Gérente, o _Delirio Chronico_
mergulha as suas raizes para constituir-se e crescer, é caracterisado
essencialmente por uma impressionabilidade anormal, de origem quasi
sempre hereditaria, por uma perversão dolorosa da sensibilidade mental,
n'uma palavra, por uma _hyperalgesia psychica_; uma autoobservação
permanente, uma sorte de habitual _ruminação_ interior de estados
physicos ou de estados moraes define a mentalidade prediposta, da qual,
sob a mais ligeira causa determinante, ha de surgir a vesania. É, pois,
um hypocondriaco o candidato ao _Delirio Chronico_; mas não é um
alienado, emquanto sobre si mesmo poder exercer uma acção de _contrôle_.
Sel-o-ha no dia em que esse exercicio se torne impossivel, no dia em que
a preoccupação dos seus estados physicos e moraes venha a ser absorvente
e o desligue das relações normaes com a sociedade. A hypocondria simples
torna-se então loucura hypocondriaca. E é d'ela que vae sahir o periodo
inicial ou depressivo do _Delirio Chronico_.

Este periodo é caracterisado por uma concentração dolorosa do Eu, de que
procedem idéas delirantes de natureza depressiva e de um contheudo que
varía com a intelligencia, a educação e o meio do doente. As falsas
concepções hypocondriacas subsistem ainda; mas, ao lado d'ellas, outras
germinam: a crença n'uma hostilidade dos homens (delirio de
perseguições) ou de maleficos poderes sobrenaturaes (demonomania).
Perturbações da sensibilidade geral e especial, sobretudo allucinações
auditivas, dominam esta phase do _Delirio Chronico_, de uma duração que
póde ser muito longa.

Mas, pouco a pouco, a dôr moral esbate-se; e na personalidade vesanica,
enfraquecida pelo delirio depressivo, uma sorte de reacção se dá em
sentido contrario. Então, no espirito enfermo, trabalhado por infinitas
angustias, uma pouca de felicidade rompe, como n'um ceu enevoado uma
restea de sol: entre as idéas depressivas surgem idéas de grandeza,
ainda vagas, mas a que o futuro reserva uma preponderancia definitiva.
Esta confusão de elementos apparentemente contradictorios, de idéas e
sentimentos depressivos com estados expansivos, caracterisa o segundo
periodo, chamado, por isso, mixto ou de transição.

Como a dôr moral e as idéas depressivas definem o primeiro periodo, a
plena beatitude de espirito e as idéas ambiciosas definem o terceiro.
Lentamente, as emoções e as concepções expansivas do periodo mixto vão
tomando crescente logar no espirito vesanico á custa de uma reducção na
intensidade e numero das emoções e idéas depressivas, que acabam por
desapparecer. Então, um delirio de grandezas de colorido mystico ou
humano, versando sobre a graça, sobre dotes pessoaes, sobre riquezas,
sobre posição social, se estabelece definitivamente, caracterisando na
sua exclusividade o terceiro periodo do _Delirio Chronico_.

Esta lenta evolução da vesania--tão lenta que póde cobrir dezenas de
annos, não se faz sem que a mentalidade soffra nas suas forças vivas e
productoras. E assim, o seu termo natural é a demencia, quer simples e
apathica, se o delirio cessou absolutamente, quer agitada, se restam
perturbações da sensibilidade e falsas concepções desconnexas e
dissociadas.

Tal é, summariamente, a marcha typica do _Delirio Chronico,_ segundo
Gérente,

Nem sempre, porém, faz observar o auctor, as coisas se passam d'este
modo regular e eschematico; não raro apparecem casos em que a evolução
descripta não tem logar: póde, por exemplo, o periodo depressivo,
representado por um delirio de perseguições, extender-se por toda a vida
do doente que não chega a fazer um delirio de grandezas, caracteristico
do terceiro periodo; póde do periodo mixto passar um outro doente á
demencia, sem que o periodo expansivo se tenha realisado em toda a sua
pureza; póde acontecer que a doença suspenda a sua evolução n'um delirio
hypocondriaco inicial, que se perpetua, systematisando-se e
estereotypando-se; emfim, póde mesmo dar-se uma regressão, voltando o
doente do delirio ambicioso ao de perseguições. Como todas as doenças,
comporta o _Delirio Chronico_ anomalias evolutivas, que compete á
clinica registrar; esses casos, porém, não invalidam o _typo_ descripto
sobre exemplares completos.

Como se vê, n'esta synthese clinica retoma Gérente as idéas fundamentaes
de Morel sobre os delirios systematisados, reduzindo-os a expressões
symptomaticas e momentos evolutivos de uma vesania caracterisada pela
successão de duas phases apparentemente oppostas: uma, inicial,
angustiosa e depressiva; outra, final, expansiva e de beatitude, Toda a
differença, entre os dois psychiatras, está em que Morel chamava
_Loucura hypocondriaca_ ao que Gérente denomina _Delirio Chronico_,

Vejamos agora a pathogenia da doença, tal como a comprehende este
psychiatra.

De um lado, importa considerar o fundamento hereditario, commum a todas
as psychoses funccionaes: «Não é vesanico, diz elle, quem quer: é
precisa uma longa incubação; são precisas, pelo menos, duas gerações que
preparem o terreno»[1]. Não, é claro, duas gerações de delirantes
chronicos, mas de nevro e psychopatas. «São umas vezes, explica,
nevroses, outras vezes intoxicações chronicas, outras ainda anomalias da
intelligencia, do sentimento ou da vontade a que se não prestaria,
talvez, attenção, mas que nem por isso deixaram de imprimir o seu cunho
sobre o individuo e os seus descendentes»[2]. A tara hereditaria cria a
predisposição; para determinar a doença qualquer abalo moral é bastante.

  [1] Gérente,_Obr. cit._, pag. 8.

  [2] Gérente,_Obr. cit._, pag. 9.

Mas, por outro lado, importa em relação ao _Delirio Chronico_ attender á
natureza especial do terreno predisposto. O que atraz dissemos,
dispensa-nos de insistir sobre este ponto: é sabido que para Gérente,
como para Morel, essa feição peculiar consiste na hypocondria.

Emfim, conhecidas as causas e o terreno morbido, importa conhecer a
_lesão,_ no sentido psychologico do termo.

Ora, segundo Gérente, nenhuma duvida póde existir a este proposito. «É
sempre, diz elle, uma alteração do senso emotivo, é a alteração do
sentimento, agora penosa, logo expansiva, que imprime tal ou tal
direcção ás perturbações da sensibilidade e ás idéas delirantes; esta
alteração é, pois, a _lesão essencial e caracteristica ao delirio
chronico_»[3].

  [3] Gérente,_Obr. cit._, pag. 24.

Cremos ter dado uma idéa sufficiente da doutrina exposta por Gérente.
Uma psychose, de origem hereditaria, de evolução de ordinario regular e
tendo por lesão primitiva uma perturbação do sentimento, integraria como
syndromas os delirios systematisados, hypocondriaco, de perseguições e
ambicioso, descriptos na antiga psychiatria como doenças autonomas, sob
a designação de monomanias; _Delirio Chronico_ é o nome d'essa psychose.

Dissemos que Gérente se inspirou nas idéas de Magnan; e talvez
podessemos mesmo affirmar que aquelle não fez senão expôr no seu
trabalho, que é uma these de doutoramento, os pontos de vista do mestre.
De facto, não só a designação de _Delirio Chronico_ tomada por Gérente
para titulo do seu livro, foi creada por Magnan, que a vulgarisara nas
suas lições oraes, mas foram colhidas no serviço e sob a direcção
d'este, no asylo de Sant'Anna, as observações clinicas da these.
Entretanto, nos debates que em 1887 se abriram sobre o assumpto na
Sociedade Medico-Psychologica de Paris, Magnan apparece-nos, como mais
tarde nas suas _Lições Clinicas_, publicadas em 1893, expondo uma
doutrina do _Delirio Chronico_ notavelmente diversa da proclamada por
Gérente. Admittiremos que o insigne clinico de Sant'Anna concedesse ao
seu discipulo uma absoluta liberdade de opinião? É isso possivel; mas
não é provavel que Gérente abusasse de tal liberdade até ao ponto de
cobrir com a designação consagrada pelo mestre uma doutrina propria e em
mais de um ponto contraria á d'este. O que nos parece mais acceitavel é
que o conceito de _Delirio Chronico_ tenha soffrido no espirito de
Magnan uma evolução durante o periodo que vem da these de Gérente á
discussão da Sociedade Medico-Psychologica.

Como quer que seja, as duas doutrinas, a de 1883 e a de 1887, differem
muito. É o que vamos vêr.

Ao passo que Gérente, como foi dito, fazia derivar o _Delirio Chronico_
de uma predisposição quasi sempre hereditaria e preparada atravez de
gerações, Magnan affirma que um tal facto é excepcional e que, de
ordinario, a psychose affecta individuos isentos de qualquer tara
nervosa e absolutamente correctos no ponto de vista mental. «O _Delirio
Chronico_, diz Magnan, fere em geral na idade adulta individuos sãos de
espirito, não tendo até então apresentado perturbação alguma
intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este importante ponto,
porque tal particularidade basta para separar immediatamente os
delirantes chronicos dos degenerados hereditarios que offerecem desde a
infancia perturbações que os fazem reconhecer»[1].

  [1] Magnan, _Leçons cliniques sur les maladies mentales_, pag. 236.

Ao passo que Gérente, seguindo a tradição de Morel, admittiu como
constante uma phase inicial hypocondriaca na constituição do _Delirio
Chronico_, Magnan não a acceita senão a titulo excepcional. «Para Morel,
escreve o medico de Sant'Anna, é preciso que elles (os perseguidos que
se tornam ambiciosos) tenham sido hypocondriacos primeiro; ora, sendo a
hypocondria, como se sabe, as mais das vezes uma manifestação
dos hereditarios degenerados, não parece provavel que o
_hypocondriaco-perseguido-ambicioso_ possa apresentar caracteres
bastante fixos para entrar no quadro do _Delirio Chronico_»[2].

  [2] Magnan, _Obr. cit._, pag 221.

Emfim, emquanto Gérente concedia irregularidades de marcha ao _Delirio
Chronico_, admittindo a existencia de casos frustres em que a evolução
se suspendia ou mesmo por algum tempo retrogradava, Magnan exclue do
_Delirio Chronico_ todos os casos d'esta natureza. Depois, com effeito,
de ter admittido na evolução do _Delirio Chronico_ quatro periodos
nitidamente desenhados--o _de incubação_, o _de perseguições_, o
_ambicioso_ e o _demente_, Magnan escreve: «Estes periodos succedem-se
irrevogavelmente da mesma maneira, de sorte que podemos sem receio pôr
fóra do _Delirio Chronico_ todo o doente que _d'emblèe_ se torna
perseguido ou ambicioso, ou que, primeiro ambicioso, se torna depois
perseguido»[3].

  [3] Magnan, _Obr. cit._, pag 237.

São estes tres os pontos em que as syntheses clinicas do _Delirio
Chronico_, a de 1883 e a actual, differem. Quanto ao nome, julgou
Magnan, depois dos reparos de alguns criticos, dever amplial-o para o
tornar mais explicativo: _Delirio Chronico de evolução systematica_ é a
designação adoptada por este psychiatra nas suas _Lições Clinicas_.

Naturalmente occorre perguntar para que nova cathegoria são relegados os
casos, tão numerosos, de delirios systematisados de evolução irregular
que Gérente considerava como exemplares frustres de _Delirio Chronico_ e
que Magnan resolutamente aparta do quadro clinico d'esta psychose. A
resposta vae o leitor encontral-a no resumo que em seguida fazemos dos
debates a que deu logar na Sociedade Medico-Psychologica de Paris a
doutrina do _Delirio Chronico_.

Digamol-o desde já: vigorosamente sustentada por Garnier e Briand, a
synthese clinica de Magnan foi tambem rudemente combatida.

Ninguem contestou a existencia de alienados que, primeiro inquietos,
suspeitosos, interpretando illusoriamente e n'um sentido pejorativo
todos os actos e palavras d'outrem (_periodo de incubação_), se tornam
depois allucinados, sobretudo do ouvido, e se lançam n'um delirio
systematisado de hostilidades (_periodo de perseguições_), fabricam mais
tarde ainda idéas de grandeza (_periodo ambicioso_), e, por fim, cahem
n'um estado de enfraquecimento cerebral em que as concepções falsas se
esbatem e dissociam (_periodo de demencia_). Ninguem contestou,
repetimos, a existencia d'estes casos; contestou-se, porém, desde todo o
principio, que elles fossem _regra_. A fatalidade do terceiro periodo do
_Delirio Chronico_ foi, por exemplo, negada. Assim, J. Falret sustentou
que _o delirio de grandezas só n'um terço dos casos succede ao delirio
de perseguições_. Facilmente se comprehende o alcance d'esta affirmação
que varios alienistas--Christian entre outros--apoiaram: ao passo que
para Magnan o delirio ambicioso é um periodo inevitavel do _Delirio
Chronico_, para Falret elle não constitue senão um episodio fallivel da
evolução vesanica, um delirio que apenas accidentalmente vem
juxta-por-se ao de perseguições. Se todo o alienado que entrou, não
_d'emblèe_, mas após uma phase mais ou menos longa de incubação, no
delirio de perseguições, houvesse fatalmente de tornar-se ambicioso,
Magnan teria, talvez, razão, affirmando a existencia de uma _Psychose_
na qual o delirio de grandezas representaria, segundo a sua phrase, um
papel evolutivamente similhante ao da _suppuração n'nuna erupção
variolica;_ mas se, como pretende Falret, esse alienado póde
perpetuar-se no delirio de perseguições sem jámais esboçar uma idéa
ambiciosa, tal _Psychose_ não existe: a synthese clinica legitima não é
o _Delirio Chronico de evolução systematica,_ mas o _Delirio de
Perseguições,_ que póde ou não, _sem mudar de natureza_, complicar-se de
um delirio ambicioso. Baseada em factos e apoiada na auctoridade de
alienistas illustres, a objecção de Falret parece decisiva contra a
doutrina actualmente professada por Magnan.

Notemos de passagem que o argumento de Falret não attingiria a doutrina
de Gérente, segundo a qual o _Delirio Chronico,_ á maneira d'outras
doenças, comportaria casos de evolução irregular, anomala, entre os
quaes estariam esses a que se reporta o sabio medico da Salpêtrière.

J. Falret contestou ainda a Magnan que a demencia constitua o termo
irrevogavel de uma vesania que passou pelas phases dos delirios de
perseguições e de grandezas: muitos perseguidos e ambiciosos ha, segundo
elle, que, ao fim de trinta, de quarenta e mais annos de delirio, morrem
sem ter attingido a demencia. É mister dizer-se, para avaliar este
argumento, que Magnan não toma a palavra _demencia_ no restricto sentido
de abolição das faculdades, mas na accepção mais larga de
enfraquecimento e falta de iniciativa mental. Desde que o delirio se
_estereotypa_ (o que é de regra na phase ambiciosa e muitas vezes se dá
mesmo na phase persecutoria da vesania), o enfraquecimento cerebral é
já, segundo Magnan, um facto, que a diuturnidade da doença não faz senão
aggravar; chamar-lhe, pois, _demencia_, quando elle attinge um grau em
que os conceitos delirantes, desde ha muito invariaveis, se dissociam,
não deverá parecer senão legitimo. Em todo o caso, é n'este sentido que
o medico de Sant'Anna toma a _demencia_ quando faz d'ella a phase
terminal da sua Psychose.

Manifestando uma grande incomprehensão das idéas do medico de Sant'Anna,
alguns membros da Sociedade tentaram atacar a doutrina do _Delirio
Chronico_, affirmando que muitos vesanicos são ambiciosos antes de serem
perseguidos; que outros surgem com um delirio de perseguições sem terem
passado por uma phase de incubação; que alguns, emfim, só
intermittentememe deliram n'um sentido persecutorio ou ambicioso. Todos
estes casos são conhecidos e de observação diaria; mas, desde que Magnan
os colloca, pela irregularidade mesma da sua marcha, fóra do quadro do
_Delirio Chronico_, é evidentemente absurdo invocal-os contra a
legitimidade d'esta psychose.

Para Magnan, ao lado do _Delirio Chronico de evolução systematica_, ha
os delirios que elle chama _polymorphos_ ou _d'emblèe_. E as distincções
entre aquelle e estes são, segundo o eminente alienista, tão profundas
quanto possivel, porque derivam da marcha, da etiologia e do
prognostico. Ao passo que o _Delirio Chronico_ se caracterisa
evolutivamente pela successão regular e irrevogavel de certos periodos,
sendo o primeiro de incubação, os delirios polymorphos teem uma evolução
irregular, imprevista, e rompem subitamente, sem preparação. Emquanto,
sob o ponto de vista da etiologia, o _Delirio Chronico_ prescinde para
constituir-se de uma pesada tara ancestral, podendo installar-se em
individuos psychicamente correctos, os delirios polymorphos são
eminentemente hereditarios e só podem realisar-se em degenerados, quer
dizer em individuos tendo antes offerecido signaes de um desequilibrio
mental. Emfim, emquanto o _Delirio_, _Chronico_, na sua qualidade de
psychose progressiva e cyclica, é absolutamente incuravel, os delirios
polymorphos, de marcha remittente ou intermittente, curam muitas vezes.

É evidente, em face d'esta doutrina, exposta sem reticencias no seio da
Sociedade Medico-Psychologica de Paris, que os casos, invocados por
Dagonet e outros, de doentes que entram em delirio de grandezas para
ulteriormente se tornarem perseguidos, de doentes que abruptamente, de
um dia para o outro, apparecem allucinados do ouvido e se crêem victimas
de injustificadas hostilidades, de doentes que após semanas de um
delirio qualquer ambicioso ou de perseguições, surgem curados para
recidivarem mais tarde, ou cahem rapidamente em demencia,--é evidente,
diziamos que esses casos nada provam, em si mesmos, contra a existencia
do _Delirio Chronico_, por isso que, segundo Magnan, elles pertencem a
uma cathegoria diversa e não são senão episodios mais ou menos longos e
interessantes da vida dos degenerados hereditarios.

A doutrina do medico de Sant'Anna não póde ser combatida senão pela
demonstração de que as differenciações por elle feitas entre os
delirantes chronicos e os delirantes degenerados, são infundadas. Mas
como, sob o ponto de vista da marcha, a differenciação é, _ao menos
n'um certo numero de casos_, indiscutivelmente exacta; como por consenso
de todos os alienistas e por testemunho irrecusavel da experiencia, ao
lado de doentes que incubam um delirio de perseguições e d'este passam
para o ambicioso, cahindo por fim n'um estado de fraqueza mental
(_Delirio Chronico_ de Magnan), ha doentes que fazem bruscos,
irregulares e mais ou menos ephemeros delirios multiplos, de que por
vezes curam, embora para recidivarem mais tarde (_delirios
degenerativos_ de Magnan), o ataque á synthese clinica do medico de
Sant'Anna só póde ser feito de um ponto de vista mais alto,
demonstrando-se que as duas ordens de delirios, a despeito das suas
_allure_ diversas, procedem de uma causa commum e assentam sobre um
mesmo fundo.

Séglas viu isto--e só elle parece tel-o visto--quando na Sociedade
Medico-Psychologica affirmou que alguns delirantes chronicos de Magnan
apresentam os estygmas physicos e mentaes dos degenerados hereditarios.

Demonstrar esta proposição seria evidentemente destruir á doutrina de
Magnan o seu mais solido fundamento: o etiologico. Se os degenerados
hereditarios podem delirar tanto de um modo remittente e anomalo como de
um modo regular e progressivo, caminhando tanto para a cura como para a
demencia, toda a differença entre o _Delirio Chronico_ e os _delirios
polymorphos_ se reduz a accidentes de marcha e a possiveis variações de
prognose, o que não é bastante para estabelecer _especies_ morbidas
distinctas.

Nos longos debates da Sociedade Medico-Psychologica sobre os delirios
systematisados, tomaram parte os mais eminentes psychiatras francezes;
cremos, porém, que só Falret e Séglas produziram contra a legitimidade
clinica do _Delirio Chronico_ argumentos de valor.

Mas não insistiremos sobre elles; por agora fazemos apenas historia.

Para completarmos o que na psychiatria franceza tem direito a menção
especial em materia de delirios systematisados, resta-nos expôr a
maneira de vêr de Régis.

Retomando uma doutrina exposta por Baillarger em 1853, o auctor do
_Manual pratico de Medicina Mental_ sustenta que uma natural distincção
existe entre as _loucuras generalisadas_ e a _Loucura parcial_: ao passo
que as primeiras se caracterisam pela presença constante e essencial de
um elemento affectivo, _excitação_ na mania e _depressão_ na melancolia,
a segunda manifesta-se por simples perturbações intellectuaes e moraes
sem participação, a não ser accidental e episodica, da emotividade. A
excitação e a depressão, affirma Régis, são tanto a fundamental
caracteristica das loucuras generalisadas que muitas vezes só ellas
existem n'estas doenças: tal é o caso das manias e melancolias sem
delirio, nas quaes, como se sabe, ha exaltação ou diminuição do _tonus
emotivo_, sem compromisso grave da intelligencia e do senso moral. O
contrario d'isto se dá na _Loucura parcial_: um delirio mais ou menos
extenso caracterisa n'este caso a alienação, que só por momentos póde
acompanhar-se de crises ephemeras de excitação ou depressão, analogas ás
dos espiritos normaes em conflicto com causas externas. A mania e a
melancolia, accrescenta Régis, sendo muitas vezes idiopathicas, são, não
raro, meros symptomas d'outras doenças mentaes, como a hysteria, a
epilepsia, a demencia paralytica; ao contrario, a _Loucura parcial_ é
sempre idiopathica, essencial.

Ora, é n'esta _verdadeira loucura_ que os delirios systematisados se
integram, segundo Régis, a titulo de manifestações e de estadios
evolutivos.

No seu curso regular e typico, a _Loucura parcial_ offereceria tres
periodos: um, de _analyse subjectiva_, caracterisado pelo _delirio
hypocondriaco_; outro de _interpretação_, revellado pelo _delirio de
perseguições_ ou pelo _delirio mystico_, segundo o doente attribue a
pessoas ou a divindades os seus males; um terceiro, emfim, de
_transformação pessoal_, exteriorisado pelo _delirio ambicioso_. As
allucinações, sobretudo auditivas, são o symptoma dominante da _Loucura
parcial_.

Quanto á etiologia, sustenta Régis que a doença é constitucional, faz
parte do individuo e surge n'um dado momento sob a influencia de
quaesquer circumstancias; isto é dizer que _Loucura parcial_ é
eminentemente hereditaria. Segundo este auctor, «ella attinge de
preferencia os individuos sombrios, desconfiados, com tendencias á
mysantropia e ao orgulho»[1]

  [1] E. Régis, _Manuel pratique de médecine mentale_, 2º ed., pag. 228.

Como se vê, a _Loucura parcial_ de Régis mantem relações profundas de
similhança com a _Loucura Hypocondriaca_ de Morel e o _Delirio Chronico_
de Gérente. Um mesmo pensamento etiologico-evolutivo preside ás tres
syntheses clinicas.

       *       *       *       *       *

Expostos os trabalhos francezes sobre os delirios systematisados na sua
phase de synthese clinica e de interpretação pathogenica, vejamos,
retrocedendo na ordem dos tempos, o que se passou na Allemanha desde
que, com Snell, Griesinger e Sander, a psychiatria d'este paiz assentou
na existencia de delirios _primitivos_ de perseguições e de grandezas.

Antes, porém, seja-nos licito dar uma explicação sobre a marcha a
seguir.

Delimitar um assumpto é a primeira das condições a preencher para
tratal-o scientificamente; a segunda, é possuir uma nomenclatura
definida e precisa. Ora, não satisfazendo a uma só d'estas duas
condições os trabalhos allemães sobre os delirios systematisados, a
impressão que recebe quem d'elles procura tomar conhecimento, é, sem
exaggero, a de ter penetrado n'um labyrintho. Não o dizemos nós: por
esta ou analogas expressões disseram-no em 1887 Séglas e recentemente
Kéraval, os alienistas francezes que com maior auctoridade se occuparam
do assumpto; disse-o tambem, mais insuspeitamente, Pelman ao formular ha
vinte annos esta queixa: «Acabaremos por nem mesmo entre nós,
psychiatras, nos entendermos»; repetirara-n'o, emfim, em 1894 quasi
todos os alienistas allemães que tomaram parte na discussão aberta sobre
a Paranoia na Sociedade Psychiatrica de Berlim.

De facto, a extensão do assumpto varia de auctor para auctor; restricta
para uns que, como Krafft-Ebing, lhe estabelecem os mesmos limites que
os alienistas francezes, ella é tão vasta para outros, para Cramer, por
exemplo, que parece estar contida lá dentro a psychiatria inteira. Por
outro lado ainda, a nomenclatura é vaga e é confusa: vaga, pela
multiplicidade de termos com que um dado auctor exprime um mesmo facto;
confusa, pela variedade de significações de cada termo para cada auctor.
_Wahnsinn, Verrücktheit_ e _Paranoia_ são as palavras com que na
litteratura allemã apparecem designados os delirios systematicos
descriptos pelos franceses; estes termos, porém, ora figuram como
synonimos, ora como vocabulos de significados distinctos, succedendo
ainda que o ultimo é pelo mesmo auctor tomado umas vezes n'um sentido
restricto, outras vezes n'um sentido geral, infinitamente mais amplo.

N'estas deploraveis condições de maxima obscuridade, fazer n'uma ordem
rigorosamente chronologica e sob a respectiva terminologia a exposição
das doutrinas allemãs ácerca dos delirios systematisados, seria,
evidentemente, deixar o leitor em conflicto com obstaculos e
difficuldades que indeclinavelmente nos cumpre remover-lhe. E eis
porque, abandonando este invio caminho, procuraremos, antes de fazer
historia, fixar os limites do assumpto e o valor dos termos.

A expressão _delirio systematisado_, empregada por opposição á de
_delirio dissociado_ ou _incoherente,_ significa apenas que certas idéas
morbidas habitualmente adherem e se conjugam em grupos associativos;
assim comprehendida, esta expressão não allude, nem mesmo remotamente,
quer á _origem_ d'essas idéas, quer á _natureza_ e _grau_ da affinidade
que as liga, quer, emfim, á sua _evolução_. N'este sentido, tão
systematisados são os delirios protogenicos como aquelles que succedem a
estados affectivos, tanto os que constituem doenças como os que apenas
representam syndromas, tanto aquelles em que as associações morbidas são
activas e fortes como aquelles em que ellas são examines, passivas e
frouxas, tanto os que marcham para a extincção pela demencia como
aquelles que se perpetuam, tanto os continuos como os que procedem por
accessos.

N'este sentido geral ha, pois, delirios systematisados _primitivos_ e
_secundarios_, _idiopaticos_ e _symptomaticos_, _continuos_ e
_intermittentes, agudos_ e _chronicos_. E assim, a não ser nos casos
extremos de mania, de demencia, de confusão mental e de idiotia, todos
os delirios serão mais ou menos systematisados, até os que se geram na
imbecilidade, até os que, uma ou outra vez, se desenvolvem nos periodos
iniciaes da paralysia geral, o que não fará espanto, se nos lembrarmos
de que a systematisação associativa é o fundamento mesmo de toda a
actividade mental. _Verrücktheit_ é o termo empregado pela maioria dos
auctores allemães para, exprimirem este sentido geral dos delirios
systematisados; e se estes, como é de regra, se associam a illusões e
allucinações, o termo _Wahnsinn_ é synonimamente empregado, se bem que
com menor frequencia.

Mas ao lado d'este sentido geral e vago, ha um outro limitado e
restricto,--precisamente o que nas paginas precedentes vimos
implicitamente adoptado pelos psychtatras francezes. Este novo sentido
exclue os delirios _secundarios,_ os _symptomaticos_ e os _agudos_ para
comprehender apenas os _primitivos_, os _idiopaticos_ e os _chronicos_.
Na accepção restricta do termo, só são systematisados os delirios que
não teem uma base affectiva em estados expansivos ou depressivos (mania
ou melancolia), e que na sua evolução progressiva ou remittente, mas
sempre continua e chronica, não offerecem tendencias para a demencia.
Tal o delirio de perseguições, typo-Lasègue; tal o delirio ambicioso,
typo-Foville; tal o delirio dos perseguidos-perseguidores, typo-Falret.

Este sentido restricto parece ser tambem o proprio, se attendermos
a que o termo _systema_, pedido á technologia das sciencias
physico-mathematicas, implica a idéa de uma força _activa_ e
_persistente_ de attracção ou de affinidade (_systemas planetarios,
systemas de crystalisação_); por analogia, na esphera psychologica o
_systema delirante_ deveria resultar de uma força _viva_ e _permanente_
de associação das idéas, tal como se dá sómente nos delirios primitivos,
idiopaticos e chronicos,--delirios movimentados, activos, tenazes.
_Paranoia_ é o termo com que de preferencia exprimem os auctores
allemães contemporaneos este sentido restricto dos delirios
systematisados, quer isolados, quer succedendo-se, quer coexistindo no
mesmo doente; e assim corresponde inteiramente á _loucura systematizada_
dos francezes, na qual estão comprehendidas as syntheses de Morel, de
Gérente e de Régis.

Entretanto, mesmo os auctores para quem o termo _Paranoia_ tem esta
accepção restricta e determinada, o desviam d'ella não raras vezes (o
que é uma causa de confusão) para tomal-o no sentido geral e como
synonimo de _Verrücktheit_ ou _Wahnsinn_; é o que faz, por exemplo,
Krafft-Ebing que, não admittindo na sua theoria da Paranoia (_psychose
degenerativa_) senão a fórma primaria, idiopatica e chronica, não duvida
empregar as expressões de _Paranoia epileptica_, de _paranoia
masturbatoria_ (_delirios syntptomaticos_), como não deixa de occupar-se
em detalhe de uma _Paranoia Secundaria (estado terminal das
psychoneuroses_). Note-se, porém,--e isto fará cessar toda a
confusão--que o termo Paranoia, quando empregado n'um sentido geral
pelos auctores a que me refiro, vem sempre seguido de um adjectivo que o
determina; quando tomado no seu sentido restricto, ou vem só ou, quando
muito, acompanhado de um termo que faz allusão a accidentes evolutivos
de chronicidade ou ao contheudo das idéas delirantes, como nas
expressões _Paranoia originaria, Paranoia adquirida_, ou ainda _Paranoia
persecutoria, Paranoia ambiciosa_. No primeiro caso, sendo a _Paranoia_
uma _Verrücktheit_, um _Wahnsinn_, um delirio systematisado, importa
determinar-lhe a _especie_; no segundo, sendo uma _Primäre
Verrücktheit_, um _Cronicher Wahnsinn_, um delirio systematisado
primitivo e chronico, a sua especie está definida, o seu logar marcado
na classificação, importando apenas, quando importe, designar-lhe a
_variedade_.

Posto isto, diremos que é sobre a _Paranoia_ como synthese clinica e
doutrina equivalente em extensão á _loucura systematisada_ dos francezes
que primeiro vae recahir a nossa attenção. Claro está que este modo de
limitar o assumpto e de fixar-lhe a terminologia, de modo nenhum nos
inhibe de dar na historia das doutrinas um logar áquellas em que o
assumpto se toma n'uma extensão maior; esse logar, porém, deve ser o
ultimo, não só porque assim o exige a clareza da exposição, mas porque
só depois de passados em revista os delirios systematisados primitivos e
chronicos, ácerca dos quaes ha na Allemanha uma doutrina mais ou menos
definida, poderemos com vantagem occupar-nos dos secundarios e agudos,
cuja controvertida existencia é um thema de infinitas e obscuras
divagações.

Quanto á terminologia por nós adoptada n'esta exposição, diremos que,
podendo empregar indifferentemente as palavras Paranoia, Primäre
chroniche Verrücktheit ou Chronicher Wahnsinn, faremos uso exclusivo da
primeira, não só por um motivo de simplicidade, senão pelas razões que
os italianos invocam para dar-lhe tambem preferencia: a sua origem
grega, que a assemelha aos outros nomes da psychiatria; a sua
expansibilidade internacional, que lhe vem d'essa mesma procedencia;
emfim, a facilidade com que d'ella se fazem necessarias palavras
derivadas, adjectivos e adverbios.

Depois dos trabalhos de Snell[1], de Griesinger[2] e de Sander[3], a
doutrina da Paranoia foi retomada em 1878 por Westphal[4], que a
desenvolveu e aprofundou.

  [1] _Über Monomanie_, 1863.

  [2] _Arch. f. Psych._, 1867.

  [3] _Über eine specielle Form der primäre Verrücktheit_, 1868-69.

  [4] _Zeitschr. f. Psych._, 1878.

Como os seus antecessores, elle insistiu na origem protogenica da
Paranoia: a perturbação ideativa é o facto inicial, independente de
estados affectivos preexistentes; os sentimentos depressivos ou
expansivos que no curso d'esta psychose se observam, não são senão
secundarios e determinados pelo contheudo das idéas hypocondriacas, de
perseguição ou de grandezas. Ainda como os seus predecessores, Westphal
insistiu na falta de tendencias da Paranoia para a demencia; a
debilidade mental que por vezes se nota nos paranoicos, é prévia e não
consecutiva, e não póde, por isso, servir para caracterisar a psychose,
mas o terreno em que ella germina. Reconhecendo a frequencia das
allucinações na Paranoia, Westphal notou, todavia, que ellas podem
algumas vezes faltar; para elle a caracteristica fundamental da Paranoia
reside na perturbação ideativa, na anomalia conceptual que, por si só e
independentemente dos erros sensoriaes, gera as idéas delirantes
destinadas a dominarem de um modo completo e absoluto o Eu vesanico. As
idéas de perseguição e de grandeza podem, segundo Westphal, succeder,
como notara Morel, á hypocondria, mas podem tambem nascer e organisar-se
_d'emblèe_. De resto, segundo Westphal, o desvio paranoico está no modo
de formar as idéas, não de as associar, o que explica a persistencia do
raciocinio e a coherencia entre os actos e os pensamentos do doente.

Alargando a area extensiva da Paranoia, Westphal integrou no quadro
clinico d'esta psychose as _obsessões_, que, não offerecendo a marcha e
evolução das idéas delirantes dos paranoicos, teem, comtudo, como ellas,
uma origem primitiva e espontanea; d'aqui a creação de uma variedade,
_Paranoia abortiva_ ou rudimentar ou frustre, para designar a loucura
obsessiva ou das idéas fixas.

Até aqui, como se vê, a doutrina de Westphal não differe essencialmente
das estudadas syntheses clinicas dos psychiatras francezes. Todavia na
sua classificação da Paranoia produziu o eminente professor de Vienna
uma idéa que o separa dos seus predecessores francezes e allemães: de
facto, ao lado da fórma _hypocondriaca_, já conhecida desde Morel, da
fórma _originaria_ ou congenita, descripta antes por Sander, e da fórma
_chronica_, de marcha progressiva ou remittente, em que _d'emblèe_ se
produzem idéas de perseguição e de grandeza, admittiu Westphal uma
fórmia _aguda_, caracterisada pela subita eclosão de allucinações
principalmente auditivas e muitas vezes aterradoras, acompanhando-se de
idéas de perseguição e levando o doente ora á incoherencia e confusão
mental (_Verwirrtheit_) com impulsões, ora ao stupor, á prostração e aos
estados catatonicos de Kahlbaum.

A creação d'esta fórma _aguda_, que está fóra dos limites por nós
traçados ha pouco á Paranoia, foi o ponto de partida, entre os allemães,
das mais numerosas e mais graves dissidencias doutrinarias sobre este
capitulo da psychiatria. Comquanto não tenhamos de occupar-nos agora
d'este ponto, entendemos dever fazer-lhe desde já uma referencia, não só
para não deixarmos incompleta a exposição das idéas de Westphal, mas
para marcarmos a origem historica de uma corrente de idéas que teremos
de estudar e precisar mais tarde.

Notaremos, por fim, que Westphal só á fórma _originaria_ reconhece um
fundo degenerativo.

Fritsch[1] em 1878 insistiu nas relações entre as idéas delirantes e os
estados affectivos, comparando o que se passa na Paranoia com o que tem
logar na mania e na melancolia.

  [1] _Psychiatr. Centralblatt_, 1878.

Ao passo que n'estas psychoses o delirio surge secundariamente, e as
idéas falsas podem, com Griesinger, considerar-se _tentativas de
interpretação_ das emoções iniciaes depressivas ou expansivas, na
Paranoia, ao inverso, as idéas delirantes são primitivas e os estados
emocionaes secundarios,--meras reacções do sentimento sob o contheudo
das idéas. Adiante voltaremos a citar este auctor, que não acceita a
fórma _aguda_ da Paranoia.

Em 1879, Schaefer[1] continuou as idéas de Westphal, pondo, comtudo,
n'um relevo maior o papel das allucinações e illusões.

  [1] _Alig. Zeitschr. f. Psych._, 1879.

Se a Paranoia essencialmente consiste no facto de que as idéas
delirantes são acceites pelo doente como realidades e n'este sentido
constituem o alimento habitual e ordinario de toda a sua actividade
psychica, não deve esquecer-se que os erros sensoriaes, mais frequentes
n'esta psychose do que em todas as outras, activam o delirio, dão-lhe
uma base, um ponto de apoio constante, e pela sua diuturnidade criam
para o doente um mundo phantastico, falseam-lhe o juizo e acabam por
n'elle abolir o _senso critico_.

Digamos de passagem que Schaefer acceita todas as fórmas da Paranoia
descriptas por Westphal, incluindo a _aguda_, que teria por ponto de
partida as allucinações.

No mesmo anno, Merklin[2] descreveu pela primeira vez o delirio
processivo (_Quaerulantenwahnn_) como variedade ou sub-grupo da
Paranoia, encontrando-se assim no terreno da theoria com Lasègue, para
quem, como foi dito, o delirio dos perseguidores seria uma variedade
(_fórma activa_) do delirio de perseguições.

  [2] _Studien über primäre Verrücktheit_, 1879.

No seu _Tratado_, cuja primeira edição remonta a 1879, fez Krafft-Ebing
da Paranoia um estudo completo, de uma rara e attrahente lucidez.
Paranoia e loucura systematisada são termos e noções equivalentes;
assim, separando-se de Westphal, regeita a fórma aguda da Paranoia e
desintegra d'esta psychose a loucura obsessiva, no que procede á maneira
dos auctores francezes. Mas o ponto original da sua doutrina está em dar
á Paranoia um logar entre as degenerescencias psychicas. Duas ordens de
considerações conduzem Krafft-Ebing a este modo de vêr; a génese e a
evolução da doença, por um lado, os antecedentes psychopaticos dos
doentes, por outro. Nem o modo de apparição, nem a marcha permittem
considerar a Paranoia uma doença accidental, como o são as
psychonevroses; pelo contrario, tudo a inculca uma psychose
constitucional, uma doença de um cerebro tocado quer pela
hereditariedade, quer por graves affecções capazes de irreparavelmente o
enfraquecerem. De facto, sem obnubilação de consciencia, sem alteração
fundamental de affectos, no goso habitual de um humor nem deprimido, nem
exaltado, e a despeito da integridade das fórmas do raciocinio, o
paranoico vê o mundo erradamente e é incapaz de corrigir quer as suas
idéas, quer as suas falsas percepções. As idéas delirantes, não
procedendo do exterior, nem resultando de emoções preexistentes pelo
mecanismo psychologico da reflexão, vêem do inconsciente e impõem-se ao
paranoico, do mesmo modo que se lhe impõem os erros sensoriaes: um
excesso de subjectivismo e uma radical ausencia de senso critico, são,
pois, as caracteristicas fundamentaes da Paranoia, cuja evolução, sem
tendencias para a demencia ou para a cura, é essencialmente chronica. De
resto, a banalidade das causas determinantes (que muitas vezes não são
senão as phases physiologicas da vida: a puberdade, a menopause, etc.)
implica uma forte predisposição congenita ou adquirida. Por outro lado,
a historia de todos os paranoicos (e não só, como pretendia Westphal, a
dos originarios de Sander) é a dos desequilibrados, dos candidatos á
loucura, dos degenerados, n'uma palavra; de sorte que a doença
representa apenas o exaggero ou _hyperthrophia_ de um caracter
preexistente, não podendo entre ella e o estado normal traçar-se, como
nas psychonevroses, uma nitida linha divisoria.

Krafft-Ebing classificou a Paranoia pelo contheudo das idéas delirantes,
descrevendo uma fórma _persecutoria_ com o seu sub-grupo _processivo_, e
uma fórma _ambiciosa_ com as suas variedades _religiosa_ e _erotica_; e
notou o sabio professor de Graz que estas fórmas podem observar-se
isoladas e podem ora coexistir, ora succeder-se no mesmo doente. Na
descripção da Paranoia persecutoria insistiu na passagem gradual e
progressiva das idéas hypocondriacas ás de perseguição e d'estas ás de
grandeza. Segundo a pratica do grande alienista, esta ultima evolução
dar-se-hia n'um terço dos casos da doença. É de notar que Krafft-Ebing,
ao inverso da maioria dos auctores francezes, não concedeu ao raciocinio
o minimo papel na transformação pessoal, que se realisa pela passagem do
delirio de perseguições ao de grandezas; o inconsciente domina, segundo
o eminente professor, toda a evolução da doença.

Póde seguramente affirmar-se que, com Krafft-Ebing, a doutrina da
Paranoia, tomada como equivalente de loucura systematisada, recebeu na
Allemanha os seus derradeiros desenvolvimentos. De facto, n'esta ordem
de idéas, os psychiatras allemães que lhe succedem, nada accrescentam a
esta construcção synthetica, ao mesmo tempo simples, elegante e
profunda.

Ulteriormente veremos que logar assignala o eminente professor aos casos
que Westphal, Schaefer e outros incluiam na fórma aguda da Paranoia.

Em 1880, Scholz[1] insistiu lucidamente nas idéas de Krafft-Ebing sobre
o papel do inconsciente na génese dos delirios paranoicos. Os factos
morbidos obedecem, no fundo, ás leis reguladoras dos factos normaes;
ora, no estado physiologico, é da esphera inconsciente que procedem os
factos psychicos destinados a tornarem-se conscientes; nos delirios
primitivos é tambem d'essa esphera que naturalmente emergem as idéas e
conceitos falsos. As idéas delirantes, como as idéas justas, não são,
definitivamente, senão resultados finaes, complexos e conscientes de
actividades elementares e inconscientes do cerebro; toda a differença
está em que nas idéas delirantes a actividade molecular das cellulas
corticaes se encontra pervertida. D'aqui resulta que, a não existirem,
como não existem na Paranoia, modificações anatomicas profundas, os
processos logicos do pensamento podem subsistir, e o doente não fará
senão raciocinar _justo_ sobre premissas _falsas_; a apparente lucidez
dos paranoicos não é senão isto. Mas não são susceptiveis d'esta
explicação os casos em que o delirio tem por base as allucinações e
illusões; o inconsciente não representa aqui um papel. Para dar conta
d'estes casos, é necessario admittir no cerebro um estado de
enfraquecimento, que o predispõe á falsa interpretação das percepções ou
das excitações sensoriaes; n'esta ordem de idéas, Scholz dá aos delirios
de base allucinatoria um caracter eminentemente asthenico, notando que
elles se desenvolvem frequentes vezes na convalescença das doenças
febris.

  [1] _Über primäre Verrücktheit_, 1880.

Em 1882, Jung[1] reeditou as idéas de Westphal e de Fritsch sobre a
diversidade genetica dos delirios na Paranoia e nas psychoses depressiva
ou expansiva. Notando a frequencia crescente da Paranoia, Jung attribuiu
o facto á extensão que todos os dias toma a degenerescencia physica e
mental da nossa especie. Isto denuncía um accordo entre este auctor e
Krafft-Ebing sobre a pathogenia intima da doença.

  [1] _Zeitsch. f. Psych_, 1882.

Kraepelin[1] em 1883, retomando no seu _Compendio de Psychiatria_ as
idéas de Krafft-Ebing sobre a Paranoia, definiu-a «uma profunda e
duradoura transformação do Eu, essencialmente evidenciada por uma
anomala comprehensão e elaboração das impressões internas e externas».
Sem obnubilação da consciencia e sem vivas emoções que lhe perturbem o
curso dos processos intellectuaes, o paranoico acceita as idéas
delirantes, que se lhe impõem e que elle é incapaz de corrigir; esta
_invalidade psyquica_--umas vezes congenita, adquirida outras--é, pois,
a base e o terreno de evolução da Paranoia, que, porisso mesmo, não
representa um mero accidente na vida de um homem são, mas uma doença
_constituicional_, atacando nos seus mesmos fundamentos a personalidade
psychica. Todas as relações do Eu com o exterior se encontram
radicalmente pervertidas no paranoico; e isto não tanto pela
interferencia das allucinações, que são apenas symptomas, como pela
caracteristica tendencia do doente á _comprehensão egocentrica do
mundo_. E não só as relações do Eu com o meio ambiente, mas as que elle
mantem com o corpo, se encontram alteradas. Pelo que, ás fórmas
_persecutoria_ e _ambiciosa_ de Krafft-Ebing, Kraepelin accrescenta,
descrevendo-a minuciosamente, a fórma _hypocondriaca_,

  [1] _Comp. der Psych._, 1883

Devemos notar que Kraepelin separa da Paranoia o _delirio processivo_,
que considera uma fórma de _loucura moral_. Baseia-se para essa
separação em dois factos: de um lado, a ausencia de allucinações nos
alienados litigantes; do outro, a radical incapacidade destes enfermos
para se elevarem á noção de direito, como facto objectivo, o que
denuncía uma suspensão de desenvolvimento psychico nos dominios ethicos,
tal como se dá nos criminosos.

Em 1883, Tuczek[2], fazendo o estudo da hypocondria, apeia-a do pedestal
de fórma nosographica e considera-a um syndroma, ora da melancolia, ora
da Paranoia, ora loucura obsessiva. A presença ou ausencia habitual de
uma depressão primitiva indicará se a hypocondria symptomatisa um estado
melancolico ou representa, pelo contrario, simples e primitivo desvio
ideogenico. Este modo de vêr projecta uma luz intensa no assumpto,
fazendo ás idéas hypocondriacas na Paranoia a parte que de todos os
tempos vinha sendo feita ás idéas de perseguição e de grandeza, que não
são, aliás, privativas da loucura systematisada. Um delirio de
perseguições póde episodicamente symptomatisar um accesso de melancolia
ou secundariamente estabelecer-se após elle, como um delirio de
grandezas póde ser a expressão de um accesso maniaco; mas, ao lado
d'estes delirios, ha uma Paranoia persecutoria e uma Paranoia ambiciosa.
O que distingue estes casos é a lesão primitiva: da sensibilidade nos
primeiros, da ideação nos segundos, com o delirio hypocondriaco, ora
expressão de uma hyperesthesia dolorosa, essencial e primitiva, ora
manifestação de um desvio ideogenico permittindo ao vesanico a habitual
serenidade e igualdade de humor que caracterisa o paranoico. N'este
ultimo caso a hypocondria, como justamente observara Kraepelin, não
seria senão uma perturbação das relações do Eu com o corpo ou com as
impressões internas, analoga á perturbação das relações d'elle com o
mundo externo ou com as impressões sensoriaes. E assim se comprehende
como, ao lado das fórmas _persecutoria_ e _ambiciosa_, deva dar-se no
quadro da Paranoia um logar á fórma _hypocondriaca_, a despeito de uma
errada tradicção que espirito faz surgir como inseparaveis as idéas de
hypocondria e de melancolia.

  [2] _Alig. Zeitschr. f. Psych._, 1883

Meynert expôz, em 1890, nas suas _Lições Clinicas_ uma interessante
doutrina da Paranoia, diversa das perfilhadas pelos seus predecessores
allemães. Para o sabio professor de Vienna esta psychose não
representaria um especial desvio ideogenico de um cerebro invalido, mas
a perturbação de um cerebro normal sob a influencia de impulsos morbidos
que, como nos maniacos e melancolicos, dirigem as idéas. «Os affectos
originarios, escreve, são os de defeza e de conquista. Os primeiros
estão em relação com o sentimento de uma influencia externa; os segundos
com o sentimento de uma força que actua sobre o exterior. São processos
physiologicos ou, antes, indispensaveis funcções biologicas do
organismo. Um ser animal incapaz de experimentar affectos conducentes a
movimentos de defeza, apossar-se-hia da natureza para as suas
necessidades, mas succumbiria sem resistencia ás nocivas acções d'essa
mesma natureza; um ser sem movimentos de conquista, como resultados de
affectos relativos, poderia subtrahir-se aos males da natureza, mas, por
defeito de apropriação, morreria á falta de satisfação das proprias
necessidades. Na illimitação das idéas de defeza da creança inexperiente
e timida encontra-se esboçado physiologicamente o delirio de
perseguições, como o de grandezas se encontra na mesma creança, quando
tenta soprar á lua para apagal-a como se fôra uma vela. O delirio de
perseguição inclue em si a angustia; na Paranoia, como na mania e na
melancolia, isto póde representar uma relação restabelecida entre este
sentimento e as circumstancias exteriores. Do sentimento de angustia
conclue-se para a perseguição. Eu vou, porém, mais longe: o que
immediatamente se associa ao sentimento de angustia, é o perigo. Perigo,
antes de tudo, de uma doença illusoria, na hypocondria simples; perigos,
nas idéas de violencia, em connexão com a chamada angustia
neurasthenica; perigos, nas coisas da natureza morta--infecções,
venenos; perigos, creados por nós proprios, como quando receiamos, por
impulso d'outrem, cahir de uma altura. Este é o delirio de perigo. O
delirio de perseguição refere-se, porém, a uma influencia procedente
d'outrem, sendo certo que na Paranoia a angustia causada pelos homens
excede a que determinam as coisas. O sentimento de defeza é n'este caso
_anthropomorphisado_: como as suas aggressões procedem de um impulso
humano, as que o doente receia, teem para elle analoga origem nos
sentimentos dos homens, na vontade d'elles. Este modo de pensar não é
especial de um estado de doença; o delirio que se lhe refere é popular,
diffuso, quanto póde sel-o, por exemplo, a crença na religião natural.
Todos os phenomenos favoraveis ou perniciosos, o ceu, o sol, as nuvens,
o oceano, o fogo são assim comprehendidos n'um termo de analogia; e,
como o homem explica as suas aggressões ou conquistas sobre o natureza
como resultados de disposições que o estimulam, pensa elle que tambem as
vantajosas ou maleficas influencias naturaes procedem de affectos de
seres mais perfeitos. Com razão disse um dos mais profundos pensadores
da época da encyclopedia que o _homem creou os deuses à sua imagem_»[1].

  [1] Meynert, _Lezioni cliniche di Psychiatria_, trad. it., pag. 128.

Como do sentimento de defeza fez surgir o delirio de perseguição,
Meynert faz derivar o delirio de grandezas do sentimento de conquista; e
como as duas ordens de sentimentos physiologicos, longe de se
hostilisarem, coexistem no mesmo individuo e mais ou menos se implicam
n'um fim geral de conservação, as duas ordens de delirios, persecutorio
e ambicioso, se agregam e formam corpo no mesmo doente.

D'onde vem ao paranoico o exaggero d'esses fundamentaes sentimentos de
defeza e de conquista? Meynert não hesita em responder que elle procede
de uma sorte da hypertrophia do sentimento pessoal, determinada por
_sensações hypocondriacas_ ou _estimulos subcorticaes bulbares_. O
doente sentiria mais fortemente o seu Eu; e esta emoção intensa,
associando-se a todas as percepções, crearia um estado particular de
consciencia no qual tudo seria interpretado egocentricamente. Uma
_hyperesthesia psychica_ seria, pois, para Meynert, como vimos que o era
para Gérente, o fundamento da Paranoia.

Ao contrario de Krafft-Ebing, Meynert não liga uma grande importancia á
hereditariedade como causa da Paranoia; e junto d'elle a noção
psychiatrica da degenerescencia não tem senão um frio e reservado
acolhimento. Para Meynert a etiologia não fornece, nem fornecerá nunca a
base de uma classificação natural das psychoses; essa base tem de ser
procurada na anatomia pathologica, na lesão do cerebro. Na Paranoia essa
lesão seria um processo atrophico do manto cerebral.

O conceito da degenerescencia psychica não encontra em Mendel[1] melhor
acolhimento do que em Meynert. Occupando-se em 1883 da Paranoia, n'um
extenso trabalho a que teremos de alludir ainda, Mendel apenas concedeu
fóros de degenerativa á fórma originaria de Sander.

  [1] _Die Paranoia_, 1883.

Pelo seu lado, Schüle[2], em 1886, só considerou francamente
degenerativas as fórmas _originaria_ e _processiva_, por elle descriptas
no seu _Tratado Clinico_ dentro do grupo das psychoses hereditarias,
entre a loucura obsessiva e a loucura moral.

  [2] _Klinische Psychiatrie_, 1886.

Mendel, distinguindo a obsessão da idéa delirante, separa da Paranoia a
fórma _abortiva_ de Westphal. Ao contrario, Salgo[3] vê na loucura
obsessiva uma fórma frustre ou incompleta da Paranoia, porque para elle
a obsessão e a idéa paranoica teem a mesma génese: uma e outra surgem
primitiva e espontaneamente n'um cerebro fraco. Para este auctor, com
effeito, a _debilidade de espirito_, no sentido do que outros chamam
_invalidade psychica_ e _ausencia de senso critico_, representa na
Paranoia um papel fundamental. Poderiamos inscrever, ao lado dos nomes
até aqui citados, os de Koch, Arndt, Weiss, Pelman, Samt, outros ainda,
tão vasta é na Allemanha a bibliographia do assumpto que nos occupa; não
accrescentariamos, porém, com isso o quadro doutrinario da Paranoia como
conceito equivalente ao de Loucura Systematisada dos auctores francezes.
Passemos, pois, á exposição dos trabalhos em que um tal conceito se
altera pela integração de uma fórma _aguda_, sem precedentes quer em
França, quer na Allemanha, antes de 1878.

  [3] _Compend. der Psychiatrie_, 1887.

Foi Westphal, como dissemos, quem primeiro admittiu a existencia de uma
variedade da Paranoia procedendo de estados allucinatorios primitivos e
apresentando na sua marcha ora a confusão mental da mania, ora a
depressão stuporosa da melancolia. Tal era a Paranoia aguda do professor
de Vienna, desde logo perfilhada por Schaefer e tambem desde logo
rudemente combatida por Fritsch e outros.

Sem extemporaneos intuitos de critica, mas n'um unico fim de ordenar
idéas, accentuemos, antes de tudo, as differenças que separam as fórmas
aguda e chronica da Paranoia.

Segundo as doutrinas recebidas de Snell, de Griesinger, de Sander, do
proprio Westphal, dois factos caracterisam principalmente a fórma
chronica: de um lado, a primitividade das idéas delirantes, que ao
espirito se impõem á maneira de obsessões; do outro, a integridade da
associação logica dos pensamentos, explicando a resistencia dos doentes
á demencia.

Na fórma aguda, o contrario teria logar: as allucinações seriam o facto
primordial, e a associação das idéas achar-se-hia fundamentalmente
compromettida quer por um exaggero até á fuga, quer por um affrouxamento
até á suspensão. Na fórma chronica, as allucinações, constituindo um
symptoma secundario e mesmo fallivel, são tributarias das idéas
delirantes a cujo contheudo se subordinam (depressivas e hostis no
delirio persecutorio, expansivas e benevolas no ambicioso); na fórma
aguda, pelo contrario, sendo um facto primitivo e essencial, as
allucinações teriam sob a sua dependencia os conceitos delirantes (de
perseguição sob vozes hostis, de grandeza sob audições lisongeiras).
Quanto á associação das idéas, não ha na fórma chronica mais do que um
desvio inicial de orientação, sem compromisso da consciencia e sem perda
de lucidez; pelo contrario, na fórma aguda a precipitação das idéas
poderia levar o doente á incoherencia e á dissociação da mania, como o
affrouxamento do seu curso o poderia conduzir á fixidez melancolica ou
mesmo, sob a acção inhibitoria de allucinações terrorisantes, a estados
de catatonia. Estas differenças de marcha implicam naturalmente a de
prognostico: a fórma chronica não cura e não conduz por si mesma á
demencia; pelo contrario, a fórma aguda terminaria umas vezes pela cura,
outras pela abolição das faculdades.

Assim, tanto a subordinação dos symptomas como a terminação separam as
duas fórmas. O que as une então? O contheudo das idéas delirantes, que
são sempre, n'uma e n'outra, reductiveis ás tres conhecidas cathegorias:
hyponcondriacas, persecutorias e ambiciosas, sobretudo ás duas ultimas.

É este, com effeito, para todos os que admittem uma Paranoia aguda, o
traço clinico de ligação entre esta fórma e a outra. Que exista uma
perturbação de consciencia ou até mesmo uma inconsciencia mais ou menos
duradoura; que o delirio se acompanhe de allucinações em massa de todos
os sentidos; que haja manifesta incoherencia, pouco importa, desde que,
como diz Mendel, se possam reconhecer os dois typos de ideação:
persecutorio e ambicioso. Muitas vezes, como o mesmo Mendel o confessa,
o diagnostico differencial entre a Paranoia aguda e a mania com
predominio de allucinações seria difficil de estabelecer. D'esta sorte,
no quadro da Paranoia entram não só os delirios systematisados, mas até
os dissociados e incoherentes, uma vez que as idéas de perseguição ou de
grandeza n'elles predominem ou mesmo _tendam_ a predominar, como alguns
escrevem.

É necessario, entretanto, reconhecer que Schüle, achando, talvez,
demasiadamente frouxo, como unico laço de união entre fórmas por muitos
symptomas diversas e até antinomicas, o contheudo das idéas delirantes,
tenta a approximação das duas Paranoias sobre um terreno de evolução,
notando que dos casos agudos aos chronicos e d'estes áquelles a
transição se póde fazer sem violencia, antes insensivelmente. Depois,
com effeito, de ter accentuado (como acabamos de fazel-o) todos os
symptomas que separam as fórmas chronica e aguda, Schüle escreve: «Estas
differenças, porém, caracterisam apenas os casos extremos do delirio
systematisado chronico e agudo; ha casos intermedios em que
manifestamente se revella o parentesco d'estas duas fórmas. De modo que
o importante grupo da fórma aguda não é senão a repetição da fórma
chronica: é um delirio de perseguição, uma interpretação delirante com
erros sensoriaes e raciocinio falso que abre a scena, sendo ainda
possiveis ao principio as percepções exactas. Ao mesmo tempo que a
consciencia se torna mais obscura, produz-se um delirio expansivo de
fórma mystica ou erotica; o Eu conserva-se, sem poder distinguir as
percepções exactas das allucinações que se unem e entre si se prendem
systematicamente. Este estado representa o delirio systematisado agudo
por excellencia. Por vezes este aspecto clinico mantem-se, mas póde
tambem mudar, como acontece nos casos de affeções agudas e febris: as
allucinações tornam-se predominantes, variaveis, e trata-se então de um
d'esses casos extremos de que fallamos. Por outro lado, a fórma chronica
apresenta muitas vezes exacerbações que não são, pela fórma e pelo
fundo, senão o delirio systematisado com allucinações; o começo,
sobretudo, da doença offerece este aspecto. O delirio systematisado
agudo, quando não cura, torna-se uma fórma chronica com allucinações e
systematisação parcial. Todas estas transições demonstram que as
differenças notadas não são essenciaes e que estas fórmas, apesar de
variadas, são visinhas»[1].

  [1] Schüle, _Traité clinique des maladies mentales_, trad. fr., pag.
122.

A citação que acabamos de fazer, synthetisando as idéas de quantos
acceitam hoje na Allemanha a Paranoia aguda, dispensa-nos de toda uma
erudita, mas inutil _étalage_ de nomes proprios; por ella se fica
sabendo o que pensam do parentesco das duas fórmas os que, desde
Westphal, as admittem ambas. Entretanto, não será ocioso fixar idéas
sobre este ponto por uma nova e caracteristica citação de Schüle: «Uma
analyse minuciosa, escreve este psychiatra, revella differenças entre
todos os casos que entram n'este grupo tão consideravel de psychoses,
direi mesmo, d'este grupo que é de todos o maior. Assim, devem
distinguir-se casos intermediarios n'este vastissimo grupo dos delirios
systematisados. Os casos chronicos approximam-se tanto, no ponto de
vista dos symptomas, do delirio systematisado dos degenerados, de que
muitas vezes offerecem a physionomia clinica, quanto os casos agudos se
approximam das psychonevroses (melancolia e certas fórmas de stupor com
allucinações). Estas relações devem ser cuidadosamente notadas. Assim,
distingue-se, em regra, nitidamente o delirio systematisado agudo, da
melancolia, pela mediocre importancia da perturbação primitiva do humor,
que é n'esta, pelo contrario, um elemento psychico duravel, que produz e
domina toda a doença; entretanto, o delirio systematisado agudo contém
tambem um grupo demonomaniaco, o qual não só apresenta um sentimento
depressivo intenso (panophobia), mas succede a um estado de verdadeira
depressão, de caracteristica diminuição do sentimento da personalidade,
de illusões e de allucinações de caracter triste. O mesmo acontece com o
stupor. Em regra, o stupor typico (_atonito_) póde nitidamente
distinguir-se do delirio systematisado agudo, que não apresenta as
caracteristicas ausencia de percepção e falta absoluta de vontade; mas o
stupor com allucinações (_pseudo-stupor_) está evidentemente ligado á
variedade do delirio systematisado agudo em que a intelligencia
obscurecida tem phases passageiras de semi-lucidez. Poderiamos chamar a
este estado a fórma estupida do delirio systematisado agudo tanto como o
stupor com allucinações; a génese e a marcha da doença permittiriam uma
e outra coisa. Assim, póde definir-se e conceber-se todo este grupo do
delirio systematisado agudo como sendo, em summa, a repetição de certas
psychonevroses melancolicas, maniacas e estupidas em que a consciencia
se acharia _completamente perturbada pelo delirio_ (estado do
sonho)»[1].

  [1] Schüle, _Obr. cit._, pag. 123.

Estas palavras de Schüle, pondo em relevo a immensuravel extensão da
Paranoia no conceito de alguns psychiatras allemães, permittem-nos
interpretar expressões, aliás frequentes, que parecem meros jogos de
termos, que um accidente de composição typographica juntou: tal, por
exemplo, a da _Paranoia dissociativa_, de Ziehen. Só quem tiver em
vista que a fórma aguda integra situações mentaes que vão desde a
obnubilação até á fuga das idéas, desde a somniação até á catatonia,
póde comprehender que um termo creado para exprimir a idéa de
_systematisação_ se adjective por uma palavra synonima de
_incoherencia_.

Como já dissemos, a idéa de uma Paranoia aguda, primeiro enunciada por
Westphal e logo acceite por um grande numero de alienistas allemães, foi
vivamente combatida desde todo o principio por muitos outros. Defensores
e adversarios d'essa idéa constituem hoje duas escólas nitidamente
separadas, como temos tentado mostrar nas paginas precedentes. O nosso
estudo d'este assumpto seria, comtudo, incompleto, se não dissessemos de
que maneira os adversarios da Paranoia aguda interpretam os casos
clinicos expostos como pertencendo a esta fórma. Que pathogenia teem e
que logar occupam na classificação das psychoses, uma vez eliminada a
Paranoia aguda, os delirios, tão numerosos, em que idéas de perseguição
e de grandeza surgem sem systematisação completa, sem coherencia até,
acompanhadas de vivos estados allucinatorios, seguindo uma evolução
irregular e marchando tantas vezes para a cura?

A resposta a esta questão, já formulada, talvez, no espirito do leitor,
vae permittir-nos completar a differenciação das duas escólas, pondo em
mais alto relevo o caracteristico espirito das doutrinas de cada uma.

Dizer que esses delirios persecutorio e ambicioso de marcha aguda estão
fóra da Paranoia, porque são diversos d'ella pelo começo, pela
terminação, pela hierarchia mesmo dos symptomas, não basta, porque
precisamente se discute se a Paranoia deve ter a limitada extensão que
uma tal doutrina lhe assignala ou, pelo contrario, alargar-se para
abranger novos grupos de factos clinicos. Schüle, Mendel e Cramer (para
não citarmos senão os principaes e mais modernos defensores da Paranoia
aguda), acceitando como perfeitamente distinctos e até apparentemente
contrarios os casos _extremos_ das duas fórmas, sustentam, comtudo, que
a fusão d'ellas se estabelece pelo exame dos casos _de transição_, em
que os motivos differenciaes se esbatem.

Ora, sabendo-se que em sciencias naturaes, desde que n'ellas penetrou o
criterio evolutivo, deixaram de existir grupos definitivos e fechados,
importa considerar este argumento. E é por isso que não podemos
prescindir de saber como interpretam os pretendidos casos de Paranoia
aguda aquelles que apenas admittem uma Paranoia chronica.

Fritsch, um dos primeiros a combater a noção da Paranoia aguda, designou
esses casos sob o nome _Verwirrtheit_ ou confusão mental, fazendo-os
depender de uma fraqueza irritavel ou esgotamento nervoso dos
hemispherios cerebraes, que póde observar-se como syndroma ou como
complicação da maior parte das psychoses e, portanto, da Paranoia.
Decerto, a _Verwirrtheit_ offerece, como a Paranoia, idéas delirantes e
allucinações; estes symptomas communs, porém, não são da natureza,
segundo Fritsch, a permittir a confusão entre uma _doença_, de marcha
gradual, em que se dá uma transformação da personalidade, e um simples
_estado_ transitorio, um mero _syndroma_ de innumeras psychoses
funccionaes e organicas.

Pelo seu lado, Krafft-Ebing, que á Paranoia dá um logar entre as
degenerescencias psychicas ou psychoses constitucionaes, relega os
pretendidos casos de Paranoia aguda para o delirio sensorial,
_Hallucinatorischer Wahnsinn_, que elle colloca entre as psychonevroses
ou psychoses accidentaes, ao lado da mania e da melancolia.

Como Fritsch, Krafft-Ebing faz esses casos tributarios de uma asthenia
cerebral. De facto, segundo elle, o _Hallucinatorischer Wahnsinn_
reconhece por causas as doenças febris, infecciosas, neurasthenisantes;
a sua caracteristica é um enfraquecimento cerebral _d'emblèe_, ou
passageiro e curavel ou rapidamente demencial, impedindo todo o trabalho
de systematisação delirante. A passagem do _Hallucinatorischer Wahnsinn_
á Paranoia é, pois, impossivel.

Para Kraepelin os pretendidos casos de Paranoia aguda entrariam quer na
_Hallucinatorische Verwirrtheit_, quer no _Hallucinatorischer Wahnsinn_.
A primeira d'estas psychoses é uma confusão mental devida a um
esgotamento agudo do cerebro; a segunda é um delirio pouco coherente, da
marcha rapida e terminação favoravel, em que as allucinações representam
o principal papel, subordinando a si o estado emotivo e as idéas falsas.
A distincção entre estas duas doenças não parece muito nitida; como quer
que seja, ambas se distinguem profundamente, segundo Kraepelin, da
Paranoia, que consiste n'uma lenta e intima transformação da
personalidade, sem obnubilação da consciencia e sem perturbações
fundamentaes do humor.

Mayser[1] considera os mesmos casos de Paranoia aguda como exemplares de
_Delirio asthenico_, analogos aos produzidos pelas intoxicações
medicamentosas ou outras; a obnubilação da consciencia e a confusão
mental, devidas a um esgotamento do cerebro, seriam as caracteristicas
d'este delirio.

  [1] _Zur sogennanter hallucinatorischer Wahnsinn_.

Meynert[2] pertence ao numero dos que contestam a existencia de uma
Paranoia aguda. Os casos expostos como taes, são por elle estudados sob
o nome da _Amencia_, especie de confusão mental, ora idiopathica, ora
symptomatica, tributaria de uma fraqueza irritavel, de um exhaurimento
do cerebro e podendo manifestar-se tanto por symptomas de stupor, como
por excitação acompanhada de vivos e multiplos estados allucinatorios. O
predominio de phenomenos neurasthenicos sobre os irritativos explicaria
os casos que difficilmente se distinguem da melancolia, como,
inversamente, o predominio de phenomenos irritativos sobre os
depressivos explicaria os casos que a custo se distinguem dos delirios
maniacos, agudos e sobreagudos.

  [2] _Obr. cit._, pag. 27 e seg.

As causas da _Amencia_ seriam todos os accidentes capazes de produzir
mais ou menos rapidamente o esgotamento cerebral: choques moraes
intensos n'um individuo debilitado, onanismo abusivo, doenças febris,
puerperio, intoxicações, traumatismos, molestias infecciosas, outros
ainda. A hereditariedade não exerceria senão um papel subalterno. A
marcha da _Amencia_ seria sempre aguda e a terminação far-se-hia pela
morte, pela demencia ou pela cura ao fim de um tempo variavel entre
algumas semanas e alguns mezes. As recidivas seriam para receiar. De
resto, a Amencia póde complicar grande numero de psychoses, não sendo
raro que surja como um episodio na marcha da Paranoia. Meynert insiste,
porém, sobre o diagnostico differencial entre a Amencia e a Paranoia
que, mesmo coincidindo temporariamente, conservam a sua physionomia
propria. Da Amencia não póde passar-se a outra psychose que não seja à
demencia, termo natural das psychopatias que não curam.

Tal é, pela voz dos seus mais illustres representantes, a theoria que
rejeita a existencia de uma Paranoia aguda. Esta designação
representaria um mal-intendido, pois que os casos clinicos por ella
cobertos não seriam senão expressões de uma asthenia cerebral, quer
idiopatica e primitiva, quer symptomatica e secundaria, profundamente
diversa, não só pelos _symptomas_ e pela _marcha_, mas ainda pelas
_causas_, da Paranoia. Que essa, asthenia com todo o seu cortejo de
phenomenos ora stuporosos, ora maniacos, venha intercalar-se na marcha
da Paranoia em algum dos periodos d'esta, é incontestavel; que devamos
confundir as duas entidades morbidas é, porém, insustentavel, porque,
desde os symptomas até ás causas, desde a marcha até á terminação, tudo
se conspira para as separar.

Os casos de delirio agudo em que retalhos de conceitos persecutorios e
ambiciosos apparecem de mistura com erros sensoriaes, não seriam, pois,
exemplares da Paranoia; seriam casos de _Verwirrtheit_, de
_Hallucinatorischer Wahnsinn_, de _Hallucinatorische Verwirrtheit_, de
_Amencia_, n'uma palavra, de _confusão mental_ asthenica. E a mistura
possivel dos symptomas agudos d'essa confusão com os symptomas chronicos
da Paranoia, não significam, como pretende Schüle, a passagem ou
_transição_ entre duas fórmas de uma mesma doença, mas a _coexistencia_
de duas psychoses distinctas n'um unico doente.

Duas palavras ainda sobre a Paranoia secundaria antes de fecharmos a
historia dos trabalhos germanicos.

Vimos quanto esta noção dominante nos inicios da psychiatria allemã, foi
perdendo terreno á medida que se elevava a de Paranoia primitiva. O nome
não chegou nunca a desapparecer, graças á tradição; mas o conceito de
Paranoia secundaria foi posto em contraste como o de Paranoia primitiva.
Esta seria uma doença; aquella, um _estado terminal_, apenas, da
melancolia ou da mania, uma _étape_ d'estas psychoses na sua marcha para
a extincção definitiva. Tal em Krafft-Ebing, por exemplo, nos apparece a
Paranoia secundaria: um prefacio da demencia vesanica, uma situação
mental pouco definida e transitoria, correspondendo ao que os
psychiatras francezes denominaram em todos os tempos a _demencia
incompleta_.

E assim devia ser. Entre o formidavel processo da Paranoia primitiva,
tão movimentado, tão independente, tão cheio de cambiantes evolutivas, e
o estado predemencial, tão pallido que os seus symptomas não são já
senão residuos de psychoses moribundas--pedras de um edificio em ruinas,
taboas de um navio em naufragio--nenhuma approximação pathogenica ou
nosologica era, com effeito, possivel.

Mas comprehende o leitor que esta situação tenha variado a partir do
momento em que o conceito da Paranoia primitiva foi remanuseado e os
seus severos moldes partidos pelos iconoclastas, introductores da fórma
aguda. Desde que não repugna admittir que da confusão mental se passe á
Paranoia, menos repugnará crêr que a ella se trasite da mania e da
melancolia. E, de facto, os auctores que admittem a fórma aguda da
Paranoia, acceitam igualmente a secundaria.

       *       *       *       *       *

Datam apenas de 1882 os trabalhos da psychiatria italiana sobre os
delirios systematisados; são elles, porém, de um tão grande valor
intrinseco e de uma tão alta originalidade, algumas vezes, que o seu
logar na historia contemporanea está definitivamente marcado.

A primeira memoria a citar sobre o assumpto é a de Buccola: _Sui delirii
sistematisati_. Não tanto pela novidade das proprias idéas como pela
clareza com que expõe e commenta as doutrinas germanicas, ainda então
quasi desconhecidas fóra do paiz originario, é notavel este trabalho do
mallogrado escriptor italiano.

Na debatida questão da génese do delirio, Buccola hesita em affirmar com
Krafft-Ebing a constante prioridade das idéas sobre as allucinações, do
desvio conceptual sobre os erros sensoriaes. «A génese do delirio,
escreve, não é em todos os casos nitidamente delimitada e não sabemos
definitivamente se as allucinações precedem ou succedem sempre o
desenvolvimento das idéas delirantes e se estes devem considerar-se
tentativas de interpretação ou antes, á maneira de Samt, productos da
vida psychica inconsciente»[1]. Quanto ao especial terreno sobre que
assentam os delirios systematisados, é Buccola decisivo, affirmando com
Weiss que elles traduzem uma invalidade mental; e este modo de vêr,
apoia-o Buccola sobre o criterio etiologico, vista a preponderancia da
hereditariedade na loucura systematisada, e ainda no prognostico, porque
a doença é, maioria dos casos, estereotypada e insusceptivel de cura,
comquanto capaz de remissões.

  [1] Buccola, _Sui delirii sistematisati_, in _Rivista di Freniatria_,
vol. VII.

O estudo de Buccola, que fizera na Allemanha o seu noviciado
psychiatrico, foi para a sciencia italiana, adormecida sobre os
conceitos francezes, a denuncía de um mundo novo a explorar. E desde
logo, com effeito, um fecundo movimento de inquerito aos delirios
systematisados surgiu e se affirmou por estudos de uma profundidade e
originalidade imprevistas.

Pondo de parte todos os trabalhos (e são numerosos) que se limitam, como
o de Buccola, a expôr ou a commentar as idéas germanicas, faltaremos
sómente dos que, pela novidade dos seus pontos de vista, implicam
modificações evolutivas no conceito da Paranoia. N'esta ordem de idéas
são a mencionar, sobretudo, as memorias de Tanzi e Riva e de Tonnini.

O trabalho dos dois primeiros escriptores é dos mais importantes e, como
vae vêr-se, dos mais originaes.

Para estes auctores Paranoia e delirio systematisado são conceitos
diferentes, noções que importa não confundir: o delirio systematisado é
um syndroma clinico, um _grupo symptomatico_ apenas, ao passo que a
Paranoia representa uma _constituição morbida_, que o atavismo explica.
Exteriorisando-se as mais das vezes por um delirio systematisado, a
Paranoia póde, todavia, existir sem elle; d'aqui a variedade que os
auctores denominam _Paranoia indifferente_, isto é, desacompanhada de
delirio.

O que é então a Paranoia, segundo Tanzi e Riva? De dois modos a definem
e fazem comprehender estes auctores: descriptivamente, pela menção dos
seus symptomas, da sua etiologia e da sua marcha; pathogenicamente, pelo
exame das suas origens.

Descriptivamente definida, a Paranoia é para Tanzi e Riva «uma psychose
funccional de fundo degenerativo, caracterisada por um particular desvio
das mais elementares operações intellectuaes, não implicando nem uma
gravissima decadencia nem uma desordem geral; que se acompanha quasi
sempre de allucinações e idéas delirantes permanentes mais ou menos
coordenadas em systema, mas independentes de qualquer causa occasional
constatavel ou de qualquer condição morbida emotiva; que tem uma
evolução nem sempre uniforme ou continua, mas essencialmente chronica; e
que, em geral, não tende por si mesma para a demencia»[1].

  [1] Tanzi e Riva, _La Paranoia,_ in _Rivista di Freniatria_, vol. x,
  pag. 293.

A analyse d'esta definição, que a pathogenia tem de completar, permitte
reconhecer, antes de tudo, a posição dos auctores em face das diversas
doutrinas allemãs. Declarando a Paranoia uma psychose _degenerativa_, de
marcha essencialmente _chronica e sem precedentes de emotividade
morbida_, Tanzi e Riva excluem resolutamente do quadro da doença os
delirios systematisados _secundarios_, que succedem á mania e á
melancolia, e bem assim os _agudos_, admittidos pela escóla de Westphal.
Constatando, além disso, a ausencia, na génese da psychose, quer de
causas occasionaes apreciaveis, quer de perturbações morbidas de
sentimento, os auctores affirmam a origem _inconsciente_ do desvio
intellectual, que não póde tomar-se, porque é primitivo, á conta de
interpretação de estados emotivos. Emfim, declarando que a Paranoia não
implica uma desordem geral, mas ideativa, não tendendo por si mesmo para
a demencia, Tanzi e Riva accentuam que ella consiste n'uma
_degenerescencia intellectual_.

Como se vê, é ao lado de Krafft-Ebing e em opposição a Schüle e a Mendel
que os escriptores italianos se collocam. Mas no que elles se desviam de
todos os psychiatras, assim franceses como allemães, é na affirmação da
não essencialidade das idéas systematisadas na Paranoia; esta é a parte
original e absolutamente imprevista da definição. Contrariamente ás
idéas recebidas, o desvio ideativo que caracterisa a Paranoia não é
sempre, segundo Tanzi e Riva, embora o seja na maioria dos casos, um
delirio systematisado. É uma coisa diversa, em que pensaram Lombroso,
creando a designação de _mattoide_, Maudsley, fallando de um
_temperamento vesanico_, Moreau, traçando a zona indisdincta das
_fronteiras da loucura_. O que é, pois? Um excesso de subjectivismo
alterando fundamentalmente as relações do individuo com o mundo
exterior, comprehendido o social, e tomando, n'este assumpto,
radicalmente impossivel toda a justeza da critica. Lucido bastante para
interpretar as coisas e os homens nas suas relações objectivas, o
paranoico, uma vez em jogo a sua personalidade, vê tudo erradamente,
como por interposta lente deformante. O Eu, medida de todas as coisas, é
no paranoico um instrumento infiel e falso, porque vicia aquellas que o
interessam, as que com elle directamente se relacionam; a
_egocentricidade_ é, pois, o essencial _desvio_ e o incorrigivel _erro_
do Eu paranoico. Accentuando-se de ordinario n'um delirio systematisado
persecutorio, ambicioso ou erotico, elle póde ficar áquem, no dominio
das idéas falsas, mas não absurdas, chimericas, mas não ainda
inverosimeis ou repugnantes; d'aqui a Paranoia indifferente, que os
auctores illustram de uma maneira magistral.

D'onde procede esse desvio que nenhuma causa occasional explica? Se
pensarmos que a evolução intellectual da humanidade se faz no sentido de
um subjectivismo decrescente, isto é, de uma subordinação cada vez maior
do Eu ao mundo exterior, de que somos apenas uma parcella, o excesso de
subjectivismo apparecer-nos-ha como um retrocesso, uma regressão, e o
paranoico, portanto, como um documento de atavismo.

Tal é, na sua essencia, a doutrina de Tanzi e Riva a que cremos dever
applicar a designação de _anthropologica_, porisso que, segundo ella, o
paranoico é muito menos um _doente_, no sentido commum d'este termo, do
que a revivescencia intellectual de velhos typos ancestraes da especie.


«Não é em si mesma, escrevem Tanzi e Riva, mas em relação ao tempo em
que se produz, que uma idéa póde considerar-se morbida; a pathologia do
conceito delirante reside sobretudo no _anachronismo_» [1]. E, de facto,
idéas e opiniões que hoje são delirantes, foram modos de vêr correntes
em épocas mais ou menos afastadas. Mas não se conclua d'aqui que é
paranoico todo o homem que n'um dado assumpto pensa como o fizeram
remotos antepassados.

  [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, pag. 305.

Que um negro, uma creança ou um inculto camponez tenham do Universo uma
grosseira concepção anthropomorphica, nada mais natural; que a tenha,
porém, um branco de maior idade e scientificamente educado, eis o que
denuncía um desvio paranoico da ideação. Que um rude marinheiro
analphabeto responsabilise o seu santo de um naufragio ou lhe agradeça
com offerendas uma viagem feliz, não é caso para espanto; que faça o
mesmo um almirante, eis o que revellaria uma ideação paranoica. As
raças, as idades e as classes (que são raças sociaes) teem cada uma a
sua psychologia; e é dentro d'ella e pelos principios d'ella que os
conceitos teem de ser afferidos. Um homem tendo as crenças dos da sua
raça, do seu paiz, da sua idade, da sua classe e do seu nivel cultural,
não é um paranoico, por falsas que essas crenças sejam; para que possa
fallar-se da Paranoia é preciso que uma _regressão_ ideativa se realise.

Na parte critica do nosso trabalho insistiremos sobre este e outros
pontos. Por agora resta-nos sómente resumir a documentação do atavismo
paranoico, tal como a apresentam os dois illustres psychiatras.

Tanzi e Riva fazem notar em primeira linha a crença profunda e
inabalavel dos paranoicos nas suas concepções delirantes, mau grado
todos os raciocinios que as demonstram falsas, mau grado a evidencia
dos factos, que as contradicta, e a realidade das coisas, que as choca;
essa crença, inaccessivel a argumentos, superior a controversias,
resistente ás suggestões do mundo objectivo, é verdadeiramente uma
_fé_--tão integral e tão pura como a das velhas almas religiosas em face
dos dogmas e das doutrinas revelladas. De uma intensidade inversamente
proporcional ao seu fundamento logico, a fé paranoica não encontra hoje
equivalente a não ser nos povos barbaros ou nos simples de espirito.

Um novo documento da natureza degenerativa e atavica da Paranoia
encontra-se no proprio contheudo do delirio, sobretudo nas idéas de
perseguição, que representam uma phase de _lucta_ incompativel com os
tempos actuaes e apenas possivel e necessaria em épocas anteriores á
constituição do direito e ao reconhecimento das garantias individuaes.

Como importante caracter degenerativo e prova de que o paranoico
representa um producto inferior, referem os auctores o conjuncto de
anomalias _psycho-sexuaes_ que só nos imbecis se encontram com a mesma
frequencia e fórma. Indo do onanismo ao _horror feminae_ por innumeras
cambiantes, essas anomalias, se não produzem o effeito da impotencia
material, tornam o paranoico inadequado ao amor e ao matrimonio. «A
extracção forçada de esperma por machinas electricas, a copula
imaginaria com pessoas reaes, os mysticos commercios carnaes com entes
nebulosos e imaginarios representam outros tantos aspectos, escrevem os
auctores, das condições de inferioridade sob o ponto de vista da
existencia da especie, em que se despenha o paranoico muitas mais vezes
do que qualquer outro alienado»[1].

  [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, pag. 307.

Emfim, ha na symptomatologia da Paranoia um grupo particular de factos
de procedencia atavica evidente: taes são os que se designam pelas
expressões syntheticas de _symbolismo_ e _allegorismo_. «Os complicados
arabescos, as figuras allegoricas, os gestos e altitudes cabalisticas,
as interpretações phantasticas de factos naturaes, os jogos de palavras,
os neologismos, e o _argot_ individual que na Paranoia pullulam, dão ao
delirio uma côr tão viva e tão grotesca, dizem os escriptores italianos,
que o fazem reviver nas mais remotas phases da evolução historica da
cultura. Lembram a escripta cuneifórme e hyerogliphica exprimindo
material e figuradamente os conceitos abstractos, a conservação dos
amuletos symbolisando as almas dos santos, a vivificação dos phenomenos
naturaes, as evocações d'alemtumulo, os themas da alchimia medieval e da
magia arabe, as cerimonias hyeraticas de velhos tempos, importadas do
mysticismo oriental. Cada uma d'estas duas séries de factos,
encontrando-se, de um lado, nos paranoicos, do outro, nos povos
primitivos, exprime uma condição psychica commum»[1].

  [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, pag. 307.

Tem a data de 1884 o trabalho eminentemente original que acabamos de
resumir.

A idéa de uma constituição paranoica, essencialmente degenerativa,
recebe n'elle a consagração pathogenica. A Verrücktheit de Krafft-Ebing
e da sua escóla é ainda um delirio systematisado, cuja primitividade,
estabelecida pela clinica, não encontra uma clara interpretação; a
Paranoia de Tanzi e Riva é pura e simplesmente uma degenerescencia
intellectual, que a doutrina da evolução permitte comprehender. A
Verrücktheit era com os allemães um conceito _medico_; a Paranoia, que
d'elle deriva por natural desdobramento historico, tornou-se com os
italianos, uma doutrina _anthropologica_.

Mas não se esgotou com a memoria de Tanzi e Riva, a cujas idéas, seja
dito de passagem, deram a sua adhesão Amadei, Tamburini, Morselli e
outros, a fecundidade original da psychiatria italiana n'estes dominios.
Tres annos depois, em 1887, surge o estudo de Tonnini sobre a _Paranoia
secundaria_--um velho thema visto a uma nova luz. De facto, não é a
primitiva concepção de Griesinger que Tonnini reedita: a Paranoia
secundaria do auctor italiano não é Secundäre Verrücktheit do allemão,
uma psychonevrose prefaciando uma demencia, um delirio systematisado
feito dos residuos ideativos da mania e da melancolia; é antes uma fórma
hybrida, participando ao mesmo tempo dos caracteres da psychonevrose e
da degenerescencia.

Demos, porém, a palavra ao escriptor italiano: «A Paranoia secundaria
diz elle, é uma psychopatia que se affirna por delirio e caracter
paranoico mais ou menos accentuados sobre um fundo de debilidade mental
invasora, como terminação de uma psychonevrose que, desarranjando o
equilibrio de um cerebro já de si invalido, reforça processo
degenerativo, abreviando-lhe a evolução e concentrando n'um mesmo
individuo os caracteres de um série pathologica»[1].

  [1] Tonnini, _La Paranoia Secundaria_ in _Rivista di Freniatria_, vol.
  XIII, pag. 61.

Como d'esta definição se vê, a Paranoia secundaria implica uma inicial
degenerescencia, uma invalidade mental primitiva, que a psychonevrose;
mania ou melancolia, não faz senão aggravar e tornar manifestas. Sem a
intervenção accidental da psychonevrose, a degenerescencia, menos
avançada que na Paranoia primaria, não se accentuaria n'um delirio
systematisado; dado, porém, o abalo maniaco ou melancolico, pronuncia-se
o estado degenerativo por um complexo symptomatico especial em que ha
concepções delirantes e tendencias para a demencia.

«Estabelecido, diz Tonnini, que uma psychonevrose por recessivas
evoluções morbidas produz a degenerescencia (Paranoia primaria) n'um ou
mais individuos da especie, póde admittir-se que a Paranoia secundaria
representa n'um só individuo o que faz a psychonevrose na especie. A
Paranoia secundaria seria o resultado tardio (Paranoia tardia) de uma
disposição precedente, apressado por uma doença mental qualquer, as mais
das vezes de base affectiva. Segundo este conceito, a Paranoia
secundaria não seria, como se pretende, uma psychonevrose que,
caminhando para a demencia, deixa observar systematisadas as idéas
falsas da mania ou da melancolia cessantes; ao contrario, a Paranoia
secundaria offereceria um terreno degenerativo, naturalmente ligeiro em
si mesmo, não chegado ainda ao de dar por maturidade propria o producto
da Paranoia genuina; sobre este terreno, em si mesmo degenerado, a
apparição de uma psychonevrose traria um profundo desequilibrio a um
espirito já invalido, occasionando a manifestação de um processo com
apparencias degenerativas, que por si só talvez se não accentuasse.
Aconteceria, n'uma palavra, como nas fórmas de Paranoia illustradas por
Leidesdorf, que se originam em graves doenças da infancia, em
traumatismos, etc., e nas quaes, todavia, é necessario admittir uma
predisposição, porque, na grande maioria dos casos, nem os traumatismos,
nem as doenças infantis ou outras determinam ulteriormente a apparição
da Paranoia. Por maioria de razão, uma doença mental como a mania ou a
melancolia poderá determinar o apparecimento de uma doença affim,
baixando os poderes de critica, introduzindo o elemento allucinatorio e
guiando á demencia, que terá sempre o caracter paranoico. O exhaurimento
cerebral psychonevrotico (demencia) n'um terreno mais ou menos
degenerado produz o fructo hybrido da Paranoia secundaria, que não é a
verdadeira demencia, mas tem alguma coisa da demencia e da Paranoia»[1].

  [1] Tonnini, _Loc. cit._, pag. 60.

Tal é a doutrina da Paranoia secundaria, segundo Tonnini,--profundamente
diversa, repetimol-o, da theorisação de Griesinger.

Vejamos agora como o alienista italiano documenta a sua tão original
concepção.

Fazendo da Paranoia secundaria uma fórma hybrida, Tonnini procura
demonstrar que ella não é uma psychonevrose genuina e que não é tambem
uma degenerescencia pura e simples, mas participa dos caracteres de uma
e de outra.

Que não é uma psychonevrose genuina, demonstram-no segundo o escriptor
italiano, tres ordens de razões: a primeira, não faltar nunca ao delirio
o ar extranho da Paranoia e os neologismos, que são seus habituaes
companheiros; a segunda, ser ás vezes o delirio muito menos a
continuação do que se gerou durante a mania ou a melancolia precedentes,
do que um delirio novo procedente de disposições paranoicas, como se vê
n'um caso, que o auctor publica, de delirio exaltado succedendo á
melancolia; terceira, emfim, a impossibilidade muhas vezes constatada de
fazer-se um diagnostico differencial entre a Paranoia secundaria e a
Paranoia primaria, a não ser pela consulta dos anamnesticos.

Que a Paranoia secundaria não é uma degenerescencia pura e simples,
resulta das seguintes considerações: a primeira é a presença do elemento
affectivo, de expansão ou depressão, que falta na Paranoia primaria,
evidentemente degenerativa; a segunda é a marcha e terminação, que são
diversas das observadas na Paranoia primaria; a terceira, emfim,
refere-se á hereditariedade que é sempre menos pesada na Paranoia
secundaria que na primaria.

 conclusão geral do trabalho de Tonnini é esta: «Não sendo uma
psychonevrose genuina, nem uma pura degenerescencia, a Paranoia
secundaria compendia e resume n'um mesmo individuo os elementos d'estes
dois processos, Constitue um traço de união entre elles e demonstra que
os estados morbidos, como todos os factos naturaes, se não sujeitam a
uma rígida classificação, mas teem entre si relações variaveis, que
podem verificar-se associadas n'um mesmo typo pathologico»[1].

  [1] Tonnini, _Loc. cit._, pag. 67.

       *       *       *       *       *

Poderiamos, sem grave inconveniente, suspender n'este ponto a parte
historica do nosso estudo, por isso que só a França, a Allemanha e a
Italia teem no assumpto que nos occupa litteraturas psychiatricas
originaes; completal-a-hemos, todavia, por uma ligeira noticia dos
trabalhos inglezes, norte-americanos e russos.

A psychiatria ingleza, orientada n'um sentido eminentemente analytico e,
sobretudo, caracterisada pela investigação minuciosa dos symptomas e das
causas, tem-se conservado quasi sempre alheia aos problemas de
pathogenia que tão apaixonadamente sollicitam os paizes continentaes.

A noção de _monomania_, com a significação que lhe davam Esquirol e os
seus discipulos, foi propagada na Inglaterra por Prichard, que a definia
nos seguintes termos: «A monomania ou loucura parcial é caracterisada
por uma illusão particular ou erronea convicção do intendimento,
determinando uma aberração do juizo; o monomaniaco é incapaz de pensar
correctamente sobre objectos relacionados com a sua illusão especial,
embora sobre outros assumptos não manifeste apreciaveis desordens do
espirito»[1].

  [1] Prichard, _Treatise on Insanity_, 1833.

Mercê dos escriptos classicos de Hack Tuke e Bucknill, o termo
_monomania_, começou em 1858 a ser substituido pela expressão
_delusional insanity_, hoje correntemente empregada para indicar os
delirios systematisados. Mas a designação nova não implica uma
pathogenia definida, porque o termo _delusion_ significa apenas
_concepção falsa_ ou _idéa delirante_, sem referencia a origem. Segundo
Tuke e Bucknill, a _delusional insanity_ poderia ser secundaria, como
algum tempo pretendeu Griesinger. É o que manifestamente exprimem estas
palavras: «A concepção falsa (_delusion_) é muitas vezes o ultimo
symptoma na morbida successão dos phenomenos mentaes; ella póde ser, com
effeito, o reflexo de uma emoção, e, embora estrictamente signifique
desordem intellectual, póde ser o resultado e o mero symptoma de uma
desordem de sentimentos. Na verdade, a loucura affectiva (_emocional
insanity_) não raro termina por uma perturbação conceptual (_delusional
disorder_)»[1]. Explanando esta passagem, que tem a data de 1879, os
auctores apresentam como exemplos de _delusional insanity_ casos que
poderiam entrar no grupo germanico da Paranoia secundaria.

  [1] H. Tuke and Bucknill, _A Manual of Psychological medicine_, 4.º ed.,
  pag. 204.

Sob o ponto de vista pathogenico, Maudsley conservou-se fiel á tradicção
dos seus predecessores inglezes, como o demonstram estas palavras da
_Pathologia do Espirito_: «Comquanto a monomania intellectual succeda
muitas vezes á mania aguda, nem sempre isto acontece; por vezes este
desarranjo do espirito desenvolve-se primitivamente e de um modo
progressivo, como exaggero de um defeito fundamental do caracter»[2].

  [2] Maudsley, _Pathologie de l'Ésprit_, trad. fr., pag. 441 (1883).

O que em Maudsley se encontra de verdadeiramente notavel com relação ao
assumpto que aqui versamos, é a descripção que elle faz, sob o nome de
_nevrose vesanica_, da Paranoia sem delirio de Tanzi e Riva. Os
portadores d'esta nevrose ou _temperamento louco_, de origem sempre
hereditaria, são seres _originaes_ e _excentricos_, de um grande
_egoismo_, de uma excessiva _vaidade_, seres _desequilibrados_, que,
não delirando, constituem, todavia, alguma coisa de extranho no meio
social a que se não subordinam, antes constantemente chocam.

Em Clouston, cujas interessantes _Lições_ remontam a 1883 e tiveram nova
edição em 1887, a _delusional insanity_ apparece como synonimo de
_monomania_ ou _monopsychose_. Buscando as origens da doença, Clouston
encontra-lhe quatro: a predisposição individual, a mania aguda, as
intoxicações e traumatismos, e, por ultimo, as sensações falsas. Como se
vê, a _delusional insanity_ é tanto um delirio systematisado primitivo
como secundario, tanto essencial, como apenas symptomatico.

O que em Clouston merece attenção é a sua maneira de definir a
_delusion_ ou conceito delirante á maneira dos italianos, isto é,
fazendo intervir o criterio evolutivo. «A educação, a idade, a classe e
mesmo a raça, até um certo ponto, determinam se uma crença errada é ou
não um conceito delirante»[1]. Assim, a noção morbida, a idéa
pathologicamente falsa (_insane delusion_) deve definir-se «uma crença
n'aquillo que seria inacreditavel para gente da mesma classe, educação e
raça da pessoa que a expressa»[2].

  [1] Clouston, _Clinical lectures on mental diseases_, 2º ed., pag. 243.

  [2] Clouston, _Obr. cit._, pag. 244.

Na America do Norte, Spitzka[3], servindo-se do termo _monomania_, expõe
em 1883 a doutrina da Paranoia, tal como a comprehendem alguns
alienistas allemães, assignalando-lhe uma origem primitiva e fazendo-a
assentar sobre um fundo de fraqueza mental. Na classificação dos
delirios, que divide em expansivos e depressivos, reconhece as
variedades descriptas por Krafft-Ebing, excepto a processo-maniaca.

  [3] Spitzka, _A Manual of Insanity_, 1883.

No mesmo anno, Hammond[4] occupa-se dos delirios systematisados, sem,
todavia, se pronunciar sobre a sua pathogenia.

  [4] Hammond, _A Treatise on Insanity_, 1883.

Não conhecemos, senão por ligeiras noticias de Tanzi e de Séglas, a
litteratura russa da Paranoia. A julgar por essas noticias, não é ella
nem mais abundante, nem mais original que a ingleza e a norte-americana.

Parece que os mais importantes trabalhos são os de Rosenbach, em 1884, e
de Greidenberg, em 1885.

O primeiro d'estes auctores sustenta, como a maioria dos allemães, a
génese expontanea dos delirios paranoicos, que teem por base a
debilidade mental. As illusões e allucinações seriam secundarias e não
primitivas na evolução d'estes delirios. As idéas de grandeza não
derivariam, por um processo logico, das idéas de perseguição, mas seriam
contemporaneas destas; de resto, o exaggero da personalidade, que as
idéas ambiciosas põem em relevo, está já indicado nas idéas de
perseguição.

O segundo dos auctores citados reconhece uma Paranoia allucinatoria
aguda, em que distingue duas variedades: uma hereditaria, e outra
adquirida, asthenica. Esta seria a mais frequente, e terminar-se-hia
quer pela cura, quer pela demencia, quer por um certo grau de
enfraquecimento cerebral.



SEGUNDA PARTE


EXAME CRITICO DO CONCEITO DE PARANOIA

METHODO A SEGUIR

Dados resultantes do estudo historico dos delirios systematisados--Exame
critico dos conceitos clinicos de Delirio Chronico e de Verrücktheit
aguda e secundaria--Determinação final do conceito anthropologico de
Paranoia.


Todo o extenso caminho ascensional até agora andado nos apparece, da
altura attingida, como uma linha de ideação que, partindo do exame dos
delirios systematisados, se dirige para o conhecimento da constituição
intellectual dos delirantes.

Nas phases iniciaes da sciencia e quando ainda um exclusivo criterio
symptomatico a orienta, é cada delirio uma doença--que se chama
melancolia, monomania intellectual, lypemania, delirio de perseguições
ou megalomania, segundo as modalidades clinicas de _fixidez_, de
_extensão_, de _contheudo_ ou de _marcha_ das idéas delirantes. Mais
tarde, a preponderancia do criterio etiologico, imposto á psychiatria
pelo genio incomparavel de Morel, modifica e alarga a visão do assumpto,
fazendo pensar no terreno especial de que as concepções falsas emergem;
não ha então tantas doenças distinctas quantos os delirios, mas, formada
pela convergencia da noção symptomatica de delirio e do conceito causal
de predisposição, uma só doença de variaveis aspectos clinicos,
successivamente denominada loucura hypocondriaca, delirio chronico,
loucura parcial, delusional insanity e Verrücktheit. Emfim, a tentativa
de explicar pela doutrina geral da evolução psychica a natureza da
predisposição delirante origina o conceito de Paranoia como expressão de
um desvio regressivo, de uma constituição atavica da intelligencia.

Analyse, synthese e interpretação pathogenica--taes foram, pois, na
marcha historica do assumpto que nos occupa, as _étapes_ seguidas pelo
espirito scientifico.

Mas esta linha evolutiva, que abstractamente nos apparece rectilinea,
foi na realidade irregular e ondulante. Conhecidos, á maneira de dois
pontos, o primeiro e o ultimo termo das séries de doutrinas, traçamos
entre elles a mais curta distancia, como se a filiação das idéas se
houvesse dado n'um mesmo cerebro; na verdade, porém, as theorias
nasceram, como vimos, em litteraturas diversas, independentes por vezes
e accusando cada qual o genio particular e as tendencias especiaes da
respectiva nacionalidade. Assim, por exemplo, quando ainda o pratico
espirito francez se occupava em fazer pelas pennas de Lasègue e de
Foville a minuciosa descripção clinica dos delirios systematisados de
perseguição e de grandezas, já o cerebro allemão, que os tinha
entrevisto, prematuramente lhes assignalava pela voz de Griesinger urna
hypothetica pathogenia. Por outro lado, dentro do mesmo pais, potentes
organisações intellectuaes quebraram por bruscos saltos de genio o
parallelismo entre as evoluções logica e chronologica das idéas,
misturando assim n'um dado momento, como vimos succeder em França com
Morel, o espirito de analyse e a tendencia synthetisadora. Emfim, o
inevitavel desejo de explicar, coevo da humanidade, indisciplinada e
temerariamente semeou de fragmentarias notas pathogenicas o proprio
periodo analytico do nosso thema, como se viu em Lasègue e em Foville,
tentando filiar n'uma autoobservação consciente as idéas delirantes.

É, pois, por um artificio do espirito que figuramos como perfeitamente
definidas e succedendo-se rectilineamente as phases evolutivas da
questão que nos occupa. Mas esse mesmo artificio, aliás necessario e
legitimo, está indicando que a historia, não sendo aqui, como as
sciencias exactas, uma simples exposição chronologica dos erros e
illusões que precedem a conquista definitiva da verdade, mas uma
complicada e suggestiva revista de opiniões, carece de ser completada
pela critica. Já no que apenas parece uma núa e secca exhibição de
doutrinas, o espirito critico intervem, procurando no labyrintho de
contradictorias affirmações a filiação das idéas; é preciso, comtudo,
que elle se affirme ainda mais larga e mais activamente, julgando as
theorias e os pontos de vista individuaes ou de escóla em face dos
factos clinicos e dos principios de psychologia normal e pathologica.

Eis o que explica a necessidade d'esta segunda parte do nosso trabalho.

Acceitando nos seus traços fundamentaes a doutrina anthropologica da
Paranoia--inevitavel corollario da theoria geral da evolução
psychica--tentaremos demonstrar, aqui, que ella explica todos os factos
e synthetisa todas as verdades incompletas das doutrinas que a
precederam; n'este sentido reforçaremos e ampliaremos com novos dados e
novos pontos de vista a argumentação dos psychiatras italianos.

Antes, porém, uma tarefa se nos impõe: a de examinar as questões do
Delirio Chronico e das variedades aguda e secundaria da Verrücktheit,
sobre as quaes são ainda hoje em França e na Allemanha tão vivos e
accesos os debates como antes dos trabalhos italianos que, uma vez
comprehendidos, deveriam tel-os, a meu vêr, definitivamente encerrado.



I--O DELIRIO CHRONICO

A etiologia; a marcha; o prognostico--Confronto com os delirios
polymorphos--A passagem do periodo persecutorio ao ambicioso não e
vulgar; a passagem á demencia é excepcional--O delirante chronico é um
degenerado; importante observação pessoal--A prognose dos delirios
polymorphos é muitas vezes a do Delirio Chronico--Dois conceitos de
Delirio Chronico no espirito de Magnan; génese do segundo.


O delirio chronico de evolução systematica, tal como nas paginas,
anteriores o descrevemos, não é no espirito de Magnan uma formula
eschematica ou uma abstracta construcção destinada a fazer comprehender
um certo grupo de factos, mas uma doutrina concreta que a observação não
faria senão confirmar.

Recordemos que duas circumstancias--uma d'ordem etiologica, outra de
natureza symptomatico-evolutiva, caracterisam a psychose: a primeira
consiste em que ella ataca na idade média da vida individuos até então
perfeitamente normaes, embora predispostos; a segunda, era que ella
segue na sua marcha quatro periodos distinctos, succedendo-se n'uma
ordem invariavel--o de incubação, o de perseguições, o megalomano e o
demencial.

Pelo que respeita á primeira d'estas caracteristicas, diz Magnan: «O
delirio chronico fere em geral na idade adulta individuos sãos de
espirito, não tendo até então apresentado nenhuma perturbação
intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este facto que tem sua
importancia, por isso que por esta particularidade os delirantes
chronicos se separam immediatamente dos hereditarios degenerados, que
desde a infancia apresentam perturbações que os fazem reconhecer»[1]. Em
relação á marcha dos symptomas não é menos explicito o medico de
Sant'Anna: «Estes periodos (incubação, delirio de perseguições,
megalomania e demencia) succedem-se, diz elle, irrevogavelmente do mesmo
modo, de sorte que póde excluir-se do delirio chronico todo o doente que
_d'emblèe_ se torna perseguido ou megalomano, ou que, primeiro
ambicioso, vem a ser depois perseguido»[2].

  [1] Magnan, _Obr. cit._, pag. 236.

  [2] Magnan, _Obr. cit._, pag. 237.

Os delirios systematisados que pela etiologia ou pela marcha se desviam
dos severos moldes traçados, ou são meros symptomas de uma affecção
mental definida ou, se essenciaes, traduzem e denunciam a
degenerescencia psychica, merecendo n'este ultimo caso os nomes de
_polymorphos_ ou _multiplos_, em attenção ao seu contheudo, de _delirios
d'emblèe_, em vista da sua brusca apparição, ou ainda de _delirios
degenerativos_, olhando á etiologia. Derivada d'estas, mas de uma alta
importancia pratica, existe ainda, segundo Magnan, uma nova
caracteristica differencial entre os delirios polymorphos e o Delirio
Chronico: emquanto este é absolutamente incuravel, comportariam
aquelles, na maioria dos casos, um prognostico discretamente favoravel,
pois que, expressões de um desequilibrio mental, podem desapparecer,
embora possam tambem recidivar.

Estamos, como se vê, em face de uma doutrina clara, precisa, de
contornos bem definidos e de uma estructura mathematicamente regular.
Isto nos facilita a critica.

É indiscutivel a existencia de doentes que, durante algum tempo
inquietos, preoccupados e irritaveis, cahem a seguir no delirio de
perseguições, de que passam, decorridos annos, para o de grandezas,
acabando pela demencia. Até ao segundo d'estes quatro periodos da
evolução morbida, não differem taes doentes dos perseguidos de Lasègue e
de J. Falret, que tambem passam, antes de constituido e systematisado o
delirio, por uma phase preparatoria de concentração e de inquietude
mental; o que os separa d'estes é a ulterior passagem ao delirio
ambicioso, já observada por Foville, e, por fim, á demencia. Ora, se
esta passagem é, como pretende Magnan, fatal e necessaria, só o Delirio
Chronico é nosographicamente legitimo: se, ao contrario, ella é fortuita
e precaria, a legitimidade nosographica pertence ao Delirio de
perseguições.

O que diz a observação clinica? Vamos vêr que o seu depoimento está
longe de ser favoravel a Magnan.

Pelo que respeita á passagem do delirio de perseguições ao de grandezas,
affirmou J. Falret que ella não só hão é constante, mas está longe de
ser vulgar, pois apenas se realisa n'um terço dos casos; pelo seu lado,
Krafft-Ebing assegura tambem que uma tal transição se observa sómente
n'um terço dos casos de Verrücktheit, isto é, do conjuncto dos delirios
systematisados de evolução chronica; e Christian pretende mesmo que
nunca attingem a megalomania os perseguidos cujo delirio se alimenta
exclusivamente de perturbações da sensibilidade genital. A longa
experiencia d'estes alienistas garante a realidade das suas affirmações;
de resto, são conhecidos em todos os velhos manicomios alguns casos de
delirio de perseguição durando vinte, trinta e mais annos e terminando
pela morte do doente, sem que em tão largo periodo tenham surgido idéas
ambiciosas.

Mas, se nos perseguidos a passagem ao delirio de grandezas está longe de
ser constante, nos perseguidos-megalomanos a queda na demencia é um
facto excepcional. Feriu, com effeito, em todos os tempos a attenção dos
alienistas francezes a extrema resistencia dos delirantes systematicos á
dissolução mental que é o termo vulgar das outras vesanias; e os
observadores allemães e italianos consideram mesmo tão caracteristico
este facto do não abaixamento de nivel intellectual na Verrücktheit e na
Paranoia que, como vimos, o fazem intervir na propria definição da
psychose. Por nossa parte, alguns casos conhecemos de paranoicos,
perseguidos e perseguidos-megalomanos, tendo mais de vinte annos de
delirio e mais de cincoenta de idade, em que nenhuma decadencia mental
se observa. Um d'esses casos é um official reformado do exercito que
conhecemos em delirio ha, pelo menos, vinte e dois annos, e que ha
quatorze se encontra no manicomio do Conde de Ferreira; são tão
inexcediveis as subtilezas da sua dialectica quanto cheias de finura e
de ironia as suas criticas sobre os acontecimentos politicos, que elle
segue e interpreta sob um criterio de perseguido-ambicioso. Muitos annos
de delirio systematisado são impotentes, no dizer de grande numero de
observadores, para provocar a demencia; e, se esta excepcionalmente
apparece, é antes aos progressos da idade ou a uma psychonevrose
intercorrente que deve attribuir-se.

Resumindo: não é fatal, nem mesmo vulgar a passagem ao delirio ambicioso
nos perseguidos que, aliás, incubaram o seu delirio; é excepcional a
terminação pela demencia, quer dos perseguidos, quer dos megalomanos,
quer, emfim, dos systematisados que passaram n'uma longa evolução
vesanica pelas successivas phases persecutoria e ambiciosa.

O perseguido-megalomano-demente é, pois, menos commum que o perseguido,
tal como vem sendo descripto desde Lasègue e J. Falret; pelo que, fazer
do Delirio Chronico um typo destinado a conter o Delirio de perseguição,
seria inverter abusivamente as noções recebidas em nosologia, tornando
_especie_ o que é apenas _variedade_.

Examinada a questão do lado da marcha dos symptomas, encaremol-a do
ponto de vista da etiologia.

Como foi dito, o delirante chronico não é, no dizer de Magnan, um
degenerado: póde ser um predisposto, mas não é um candidato á loucura;
póde ter antecedentes hereditarios, pois que a hereditariedade radia
sobre todas as doenças mentaes, mas não apresenta até á invasão do
delirio o desequilibrio caracteristico dos degenerados. O delirio
d'estes é sempre polymorpho, _d'emblèe_, frouxamente systematisado, não
tendo a longa duração do delirio chronico, nem o seu córte regular em
periodos de irrevogavel successão.

Esta maneira de vêr, em radical opposição com as affirmações dos
psychiatras allemães e italianos sobre a Verrücktheit e a Paranoia (em
que o delirio chronico de Magnan, como todos os delirios systematisados,
se acha contido) merece ser examinada.

É evidente que uma critica profunda d'este novo aspecto da questão só
póde fazer-se discutindo a noção da degenerescencia, que não é identica
para todos os psychiatras, que não tem o mesmo alcance em todos os
livros e que representa para o medico de Sant'Anna um grupo de factos
muito diverso do que representa para Krafft-Ebing ou para Tanzi e Riva,
por exemplo. Ulteriormente examinaremos este assumpto. Notemos, porém,
desde já que J. Séglas combateu vivamente, em nome da observação
clinica, a etiologia de Magnan, referindo casos de Delirio Chronico em
doentes portadores de estygmas physicos da degenerescencia; que Legrain,
discipulo de Magnan, admitte a possibilidade da evolução caracteristica
do delirio chronico nos degenerados hereditarios; que Respaut, outro
discipulo de Magnan, descreve um caso de delirio chronico n'um
epileptico impulsivo; que Dericq considera aptos a realisarem o delirio
chronico os proprios fracos de espirito (_degenerados inferiores_, na
technologia da escóla de Sant'Anna); emfim, que Marandon de Montyel,
acceitando a doutrina de Magnan emquanto á evolução do Delirio Chronico,
se afasta resolutamente do mestre emquanto á etiologia, affirmando que
grande numero de delirantes chronicos se fazem notar desde a infancia ou
desde a juventude por anomalias de caracter, que Magnan reputa indicios
seguros da degenerescencia e que não desdizem da pesada herança que
muitas vezes incide sobre estes doentes.

Por nossa parte, cremos dever apontar um caso clinico de observação
pessoal que póde juntar-se aos de Séglas.

Trata-se de um antigo empregado commercial, celibatario, tendo
actualmente 45 annos de idade, e a quem já em outra publicação nos
referimos. O periodo de incubação delirante, a que accidentalmeme
assistimos, mercê das relações que então mantinhamos com um irmão,
remonta a 1878; no anno immediato o delirio de perseguições achava-se
installado, fazendo-se acompanhar de allucinações auditivas e provocando
da parte do doente reacções violentas: chamavam-lhe, na rua e nos cafés,
_pederasta, onanista, devasso_, ao que elle respondia aggredindo os
suppostos insultadores. Refugiando-se successivamente em casas de
amigos, em pequenos hoteis e em hospitaes particulares, o doente veiu,
por fim, a dar entrada no manicomio do Conde de Ferreira, em abril de
1883, apresentando então, de mistura com o delirio de perseguições,
idéas ambiciosas que apenas exhibia em cartas e só um anno depois
começou a exteriorisar oralmente: tinha descoberto um novo systema do
mundo, pretendia reformar toda a sciencia astronomica e todo o systema
social; as perseguições soffridas e a sequestração, _o mais infame de
todos os crimes até hoje praticados_, vinham-lhe do Papa, que assim
defendia os dogmas christãos, e do Rei, que defendia a ordem social
existente. Lentamente, as idéas ambiciosas foram dominando o delirio de
perseguições, que hoje se alimenta exclusivamente no prolongamento da
sequestração; livre, este doente seria o typo perfeito do megalomano.

Eis aqui um caso a que nada parece faltar do que Magnan exige para o
diagnostico do Delirio Chronico: iniciada aos 30 annos n'um individuo
apparentemente são, que era um bom guarda-livros, que sustentava a mãe,
que mantinha regulares relações sociaes, que se governava
financeiramente bem, a psychose atravessou, na successão assignalada por
Magnan, os periodos de incubação, de perseguições e de megalomania, sem
a presença episodica de idéas hypocondriacas, eroticas ou outras que
podessem fazer pensar n'um delirio polymorpho. Pois bem; este doente é
um degenerado incontestavel, ainda para os que acceitam a mais estreita
noção da degenerescencia. A hereditariedade é n'elle convergente e das
mais pesadas: o _pae_, prematuramente morto, foi um louco moral; a
_mãe_, de uma fealdade pathologica, morreu em estado de demencia senil
aos 70 annos; um _tio materno_ é disforme; um outro _tio_ materno, mal
dotado de sentimentos de probidade, passa por ter feito uma fallencia
fraudulenta; um _irmão_, prematuramente morto de tuberculose, foi um
louco moral, dipsomano, bulimico e de uma vaidade exaggerada; emfim, uma
_irmã_, louca moral e impulsiva, prostituiu-se. Na historia pregressa do
nosso doente figura uma febre typhoide grave na puberdade.
Apparentemente ponderado, elle foi sempre, no dizer dos seus intimos, de
uma susceptibilidade excessiva, de um grande orgulho; entregava-se a
leituras para que não tinha preparação e evitava o commercio das
mulheres. Como estygmas physicos, apresenta o nosso doente _hypospadias_
e uma notavel _asymetria facial_.

Este caso, que em nossa propria experiencia é o mais nitido, senão é
mesmo o unico de um delirio paranoico offerecendo a evolução precisa e
irrevogavel da entidade de Magnan, longe de confirmar as idéas d'este
psychiatra em materia de pathogenia, infirma-as eloquentemente.

Encaremos agora a duração e prognose comparadas do Delirio Chronico e
dos delirios polymorphos.

Como foi dito, na doutrina de Magnan a demencia faz parte do Delirio
Chronico a titulo de phase terminal da sua evolução; é dizer que a
psychose se installa definitivamente e o seu prognostico é sempre
infausto. Ao contrario, os delirios polymorphos teriam por habituaes
sahidas a _cura_ e, menos vezes, a _demencia precoce_, seriam de uma
duração limitada e comportariam, portanto, um prognostico discretamente
benigno. Será isto absolutamente exacto? Responde negativamente a
clinica. De facto, se muitas vezes se obtem a cura dos delirios
multiformes e se, algumas outras, uma demencia vem precocemente fechar a
sua evolução, não é menos verdade que ha, ao lado dos que assim
terminam, um formidavel numero de casos de uma duração perpetua,
tendendo, se tendem, para a demencia tão lentamente como o Delirio
Chronico. Os proprios discipulos de Magnan o reconhecem; e Legrain não
hesita em descrever delirios polymorphos ou degenerativos _de marcha
essencialmente chronica_. É, de resto, o que a experiencia nos ensina:
ou se fixem n'um pequeno numero de idéas ou percorram toda a gamma dos
conceitos morbidos, ha degenerados que deliram perpetuamente. Como
distinguil-os prognosticamente dos delirantes chronicos? O invariavel e
tranquillisador _ça guérira_ de Magnan e dos seus discipulos em face dos
delirios _d'emblèe_, reserva-nos por vezes decepções crueis; muitos
casos conheço, por minha parte, em que _ça n'a jámais guéri_. De resto,
as pretendidas curas dos delirios systematisados não são, as mais das
vezes, senão apparentes, quer porque o doente esconde as suas concepções
para obter a liberdade, o que não é excessivamente raro nos manicomios,
quer porque, desapparecendo realmente as idéas morbidas, subsiste a
disposição a creal-as de novo, isto é, subsiste a mentalidade
paranoica--a verdadeira doença, no fundo.

Que Magnan tenha podido descriminar nos delirios systematisados
evoluções diversas e justificativas de sub-grupos clinicos do que em
França se chama a Loucura Parcial e na Allemanha a Verrücktheit, é
perfeitamente incontestavel; que elle tenha proseguido com rara
sagacidade analytica estudos anteriores sobre a successão dos delirios
n'um mesmo alienado, é tambem indiscutivel; mas que o Delirio Chronico,
tal como nos ultimos annos o descreve, seja uma especie morbida e um
grupo nosologico bastantemente differenciado--pela evolução, pela
pathogenia e pelo prognostico--dos delirios systematicos dos
degenerados, eis o que não póde acceitar-se.

Fechariamos aqui a nossa analyse da pretendida psychose de Magnan, se
não crêssemos dever insistir n'um ponto, só ao de leve tocado na parte
historica d'esta monographia: que anteriormente á concepção actual do
Delirio Chronico existiu no espirito de Magnan uma outra, a exposta por
Gérente, mais conforme com a realidade clinica e mais proxima da
Verrücktheit de Krafft-Ebing.

É certo que, quando na Sociedade Medico-Psychologica Séglas punha em
evidencia as contradições entre as duas doutrinas, citando trabalhos dos
discipulos de Magnan, este se defendeu declinando a responsabilidade de
taes trabalhos e cathegoricamente affirmando que aos respectivos
auctores concedera sempre a mais inteira independencia. Ora, sem de modo
algum pretendermos que o medico de Sant'Anna imponha os proprios pontos
de vista aos seus discipulos, é licito acreditar que estes os acceitam
e propagam nos seus escriptos. Não é só Gérente que n'uma these de 1883,
escripta no serviço da admissão e feita de casos clinicos ahi colhidos,
expõe, sob a designação de _Delirio Chronico_, uma doutrina que em
pontos capitaes se oppõe á que Magnan apresentou em 1887 á Sociedade
Medico-Psychologica e reeditou em 1893 no seu livro de _Lições
Clinicas_. N'um trabalho publicado em 1884, Boucher procede como
Gérente, chamando aos delirantes chronicos _predispostos mal
equilibrados_, declarando que _toda a etiologia do Delirio Chronico
reside na hereditariedade_, e constatando n'um caso de Delirio Chronico,
diagnosticado pelo proprio mestre, anomalias de caracter degenerativo na
evolução da infancia; e, n'um artigo publicado já em 1889, o meu collega
Magalhães Lemos, que aliás viveu perto de dois annos na intimidade
scientifica de Magnan, descreve como exemplar clinico _frustre_ de
Delirio Chronico um caso que se iniciou por idéas ambiciosas de colorido
erotico. E nenhum dos escriptores que acabamos de citar se declara em
opposição com o mestre, antes crê cada um interpretal-o; nem descobrindo
signaes de degenerescencia nos portadores do Delirio Chronico, nem
achando possivel a inversão evolutiva das phases habituaes d'esta
psychose, pensa qualquer d'elles afastar-se da mais pura orthodoxia
d'escóla. Tendo seguido o ensino de Sant'Anna e conhecendo as idéas de
Magnan, Bajenoff escrevia tambem em 1885 que o Delirio Chronico é o
equivalente da Verrücktheit e da Paranoia.

A inevitavel conclusão a tirar d'estes factos é que realmente no
espirito de Magnan o conceito de Delirio Chronico se modificou a ponto
de apparecer-nos duplo á distancia de alguns annos. Infelizmente, o
actual não vale o antigo.

Mas, porque passou Magnan da larga concepção de 1883 para a de hoje, tão
estreita, tão geometrica e tão rígida que os factos se lhe não
acommodam? Tornando a degenerescencia como synonimo de desequilibrio, o
medico de Sant'Anna estabeleceu como dogma fundamental que o degenerado
só póde delirar de um modo conforme a esse desequilibrio: o seu delirio
tem de ser, quanto á génese, improvisado; quanto á marcha, irregular e
descontinuo, ora remittente, ora intermittente; quanto ao contheudo,
caleidoscopico e multiforme; quanto á duração, ephemero ou pelo menos
curto, porque a mesma persistencia seria um equilibrio; emfim, quanto á
associação das idéas, de uma frouxa systematisação, porque esta, quando
completa, representa uma demorada concentração d'espirito, incompativel
com a ideação salturaria do degenerado. Pertencem, pois, á
degenerescencia os delirios _d'emblèe_, os _polymorphos_, os _agudos_ e
_sub-agudos_ e, por fim, os que não revellam senão uma _fraca tendencia
á systematisação_. Os não-degenerados só podem delirar de um modo
diametralmente opposto: o seu delirio tem de ser preparado, incubado; de
marchar por _étapes_ de irrevogavel successão; de durar a vida do
doente; de circumscrever-se a um numero limitado de idéas; de ser,
emfim, contínuo e francamente systematisado. O _Delirio Chronico_ é a
antithese completa e integral do delirio dos degenerados e só n'estas
condições póde subsistir em face da doutrina; o conceito de 1883
dissociou-se, pois, não em vista dos factos, mas da theoria, passando o
que n'elle havia de eschematico a beneficio do _Delirio Chronico_
actual, e os casos _frustres,_--a grande, a formidavel massa dos casos
clinicos, ao lote dos delirios dos degenerados.

Mas, por outro lado, não sendo o desequilibrio mental senão a
consequencia de uma grave tara ancestral ou, como diz Magnan, de uma
_impregnação hereditaria_, o _Delirio Chronico_ só deve realisar-se em
individuos normaes e válidos para que, ainda no ponto de vista da
etiologia, elle realise o typo contrario ao dos delirios degenerativos.
«Delirio chronico e degenerescencia, diz Magnan, oppõem-se totalmente».

Tal é, a meu vêr, a génese da actual noção de _Delirio Chronico_.
Tentando impôr-se em nome dos factos, como inducção clinica, ella
procede realmente, por via deductiva, de uma doutrina presupposta da
degenerescencia, que está longe, como adiante veremos, de poder
acceitar-se sem restricções.



II--A VERRÜCKTHEIT AGUDA

Dois grupos de psychoses sob a mesma designação: a confusão mental e os
delirios polymorphos--A Verrücktheit e os delirios incoherentes; critica
das opiniões de Schüle--A Verrücktheit e os delirios systematisados de
marcha aguda; critica das opiniões de Krafft-Ebing--Observação
pessoal--Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.


Duas ordens de factos, a meu vêr inteiramente distinctos, se encontram
englobados na Verrücktheit aguda: de um lado, delirios systematisados
que sómente pela rapidez da sua marcha, pela curabilidade e, ás vezes,
pelo excessivo predominio de allucinações differem da Verrücktheit
chronica; do outro, delirios incoordenados, asystematicos e
eminentemente sensoriaes que, no dizer mesmo de Mendel, de Schüle e de
Cramer, não se descriminam bem, quer da mania, quer da melancolia
estuporosa. É isto o que resulta da leitura attenta dos auctores que
defendem a Verrücktheit aguda.

Os primeiros d'estes delirios, não implicando nem uma obnubilação da
consciencia, nem permanentes estados emocionaes de expansão ou
depressão, separam-se nitidamente das psychonevroses; e, se bem que o
predominio do elemento sensorial lhes imprime um caracter caleidoscopico
e uma evolução irregular, é certo que elles manteem sempre aquella
activa coordenação logica das idéas que constitue o _systema delirante_.
Os segundos, pelo contrario, implicando a perda de lucidez e
acompanhando-se de alterações affectivas, impõem-se pela anormal
associação das idéas, que ora se precipitam e dissociam, como na mania,
ora convergem na determinação de estados catatonicos, segundo a
imprevista direcção das allucinações, sempre renovadas.

Confundir estas duas cathegorias de delirios, sob pretexto de que é
identico o seu contheudo e de que em ambas se realisa uma intervenção
preponderante do elemento allucinatorio, é, ao que penso, cahir n'um
erro grosseiro, porque os invocados elementos de analogia são
infinitamente menos valiosos que os caracteres differenciaes. A
identidade das idéas morbidas não é razão para que confundamos, por
exemplo, os delirios de perseguição da melancolia e da Paranoia ou os
delirios ambiciosos da paralysia geral e da mania; tambem o predominio
de allucinações, ainda quando identicas, como as zoopsicas, não é razão
para que não distingamos, por exemplo, os delirios alcoolico e
hysterico. As idéas delirantes e as allucinações da Verrücktheit são as
de todas as psychoses; fazer, pois, d'esses elementos um criterio
diagnostico e nosographico seria regressar ao cahos de que a pathologia
mental só conseguiu sahir por successivos esforços de analyse. Não são
os symptomas, mas as suas origens pathogenicas, a sua coordenação e a
sua marcha que no actual momento orientam a diagnose psychiatrica.

Assim, o rigor scientifico exige que estudemos em separado os dois
grupos de delirios, que alguns auctores allemães reunem sob a designação
de Verrücktheit aguda.

Comecemos pelos delirios systematicos.

A psychiatria allemã, creando os termos de Verrücktheit e Wahnsinn para
designar os delirios, teve sempre em vista accentuar differenças entre
os que se impõem pela coordenação dos conceitos morbidos e os que se
denunciam por um grau maior ou menor de incoherencia. Decerto, mudou cem
vezes o valor d'estes termos, que teem uma historia tão complicada e tão
longa como a da propria sciencia mental; decerto, a Verrücktheit d'hoje
não é o delirio estereotypado dos cerebros enfraquecidos, descripto por
Griesinger, como o Wahnsinn não é o delirio exaltado e optimista de que
o mesmo auctor traçou um quadro clinico inteiramente analogo ao da
monomania intellectual de Esquirol;--mas sempre, desde Griesinger até
Westphal, os dois termos conservaram, através de todas as vicissitudes,
um vestigio inapagavel dos primitivos significados. A confusão
principiou sómente quando o professor de Vienna, creando a variedade
aguda da Verrücktheit, integrou no quadro d'esta psychose delirios
systematicos e até dissociados em que as allucinações desempenham um
papel dominante. Será licito manter uma tal confusão?

Já na parte historica d'este _Ensaio_ expozemos em detalhe não só os
argumentos com que os adversarios de Westphal rejeitam da Verrücktheit o
hallucinatorischer Wahnsinn, mas os motivos por que fazem d'este um
grupo das psychonevroses. Não reeditaremos essa vigorosa critica;
examinaremos, porém, os argumentos com que Schüle pretende justificar a
opinião contraria.

Não contesta este eminente psychiatra que entre os casos typicos ou,
para me servir da sua propria linguagem, entre os casos extremos da
Verrücktheit e do Wahnsinn existam realmente as profundas notas
differenciaes apontadas por Fritsch e Krafft-Ebing, entre outros;
sustenta, porém, que ha casos de transição em que ellas se esbatem,
ficando então a descoberto a fundamental identidade dos dois processos.

A confissão, por parte de Schüle, de que são justas as differenciações
notadas pelos adversarios da escóla de Vienna entre a Verrücktheit e o
Wahnsinn que n'ella se pretende incorporar a titulo de variedade aguda,
é um facto importante e que deve registar-se, porque essas
differenciações referem-se, como vimos, à coordenação dos symptomas, à
etiologia, à marcha, à pathogenia, n'uma palavra, a quanto serve para
definir uma entidade nosologica. A coordenação symptomatica, porque,
enquanto na Verrücktheit as idéas delirantes formam systema e as
allucinações occupam um logar secundario ou até nullo, no Wahnsinn o
delirio é incoherente e os erros sensoriaes teem o primeiro plano; á
etiologia, porque, emquanto a Verrücktheit se installa sem causa
exterior apparente, o Wahnsinn reconhece como determinantes todas as
causas capazes de provocarem uma asthenia profunda dos centros nervosos;
á marcha, porque, tendo a Verrücktheit uma evolução essencialmente
chronica, o Wahnsinn termina agudamente pela cura, pela demencia ou pela
morte; á pathogenia, porque, emquanto a Verrücktheit se interpreta como
um processo constitucional ou degenerativo, o Wahnsinn é uma doença
accidental ou psychonevrotica. A estes multiplos elementos differenciaes
outros se juntam ainda: ao passo que na Verrücktheit as allucinações,
predominantemente auditivas, são determinadas pelo curso do delirio,
dependendo o erethismo sensorial da absorvente fixidez das idéas, que
provocam a apparição das imagens, no Wahnsinn succede que é o
automatismo dos centros sensoriaes que determina as idéas delirantes,
por esse facto variaveis, movediças, dissociadas; tambem, ao passo que
na Verrücktheit o elemento affectivo não só é secundario, mas tende a
apagar-se com os progressos mesmos da doença, no Wahnsinn, embora
igualmente secundario pela génese, pois é determinado pelo contheudo das
idéas, esse elemento representa um papel importante, mercê das vivas
allucinações emergentes de todos os sentidos.

Para diminuir o valor d'este quadro de differenciações nosologicas, ao
mesmo tempo numerosas e profundas, argumenta o medico de Bade affirmando
não só que na chronica evolução da Verrücktheit se observam phases
agudas de Wahnsinn, mas que d'este se póde passar áquella, o que, a seu
vêr, demonstra a identidade nosologica dos dois processos morbidos.

Examinemos o valor d'estes argumentos.

Quanto ao primeiro, sem de modo algum contestarmos a realidade clinica
dos factos invocados por Schüle, pois mais de uma vez temos observado
episodicos delirios asystematicos no curso da Paranoia, seja-nos
permittido notar, na excellente companhia de Krafft-Ebing, de Fritsch,
de Kraepelin e de Meynert, que esses factos comportam uma interpretação
muito diversa da que lhes dá o celebre medico de Bade.

Qualquer que seja a physionomia que apresentem, depressiva, expansiva ou
mixta, esses delirios asystematicos podem conceber-se como não fazendo
parte integrante da evolução da Verrücktheit, mas coexistindo com ella a
titulo de complicações ou de intercorrencias psychonevroticas, tendo uma
etiologia e uma marcha autonomas. Porque não? «Nenhuma razão há, dizem
Tanzi e Riva, para crêr que o cerebro de um paranoico possa oppôr ás
causas das doenças intercorrentes uma immunidade de que muitas vezes o
individuo normal é incapaz, antes tudo conspira para nos fazer admittir
que elle apresenta a essas causas uma resistencia menor»[1]. Assim
pensamos tambem, recordando os casos de observação pessoal.

  [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, vol. XII, pag. 417.

Um d'estes, notavel entre todos, é o de um paranoico-originario, que já
aos 17 annos se cria victima de tentativas de envenenamento e em quem
sempre uma exaggerada autophilia se notou. Mas, nem as idéas de
perseguição, nem a hyperbolica opinião dos seus meritos lhe embargaram o
passo no curso de direito, que concluiu. Ridiculo e profundamente
desequilibrado, de grande memoria e de pequena reflexão, desconfiado,
phantasista e discursador, foi fazendo o seu caminho até delegado de
procurador regio na India Portuguesa. Ahi, excessos de toda a ordem,
juntos a uma febre biliosa, aggravaram-lhe o mal; regressando, muito
fraco, á metropole, systematisava o seu delirio até ao ponto de viver só
e de passar habitualmente a ovos e a agua, que elle proprio ia colher de
noite ás fontes. Um dia, tendo chamado a casa um operario para lhe
encadernar uns livros, foi por este traiçoeiramente aggredido, recebendo
na cabeça um extenso e profundo traumatismo. A partir d'esse dia,
allucinações auditivas, que até então parecia não terem existido,
irromperam com extranha violencia; ao mesmo tempo apossou-se do doente
um sentimento intenso de terror e de anciedade que o levou, poucos dias
depois do traumatismo, a projectar-se de uma janella abaixo, fazendo uma
luxação. Simultaneamente, illusões visuaes, confusão constante de
pessoas, rejeição de alimentos e absoluta insomnia. Trazido ao hospital,
persistiu algum tempo n'esta situação; rapidamente, porém, idéas de
grandeza, se juntaram. O encadernador, tentando matal-o, foi apenas um
instrumento de quem, por inveja do seu alto genio incomparavel, buscava
desfazer-se d'elle. Tornou-se aggressivo então, fabricando uma nova
religião, crendo-se superior a Christo, e começou a manifestar idéas
eroticas e allucunações visuaes: masturbava-se, dizia obscenidades,
proclamava as excellencias da pederastia, dos amores lesbicos, e via
mulheres núas em attitudes lascivas. Mas, subitamente, derivou a idéas
hypocondriacas e d'estas a um delirio de humildade, rojando-se no chão,
beijando os pés dos companheiros, chorando, pedindo perdão a todos,
rejeitando os alimentos n'um intuito de penitencia. Pouco a pouco
resvallou no mutismo, a physionomia tornou-se-lhe parada, inexpressiva,
contrahiu habitos immundos, apresentou, n'uma palavra, o quadro da
demencia com accentuada desnutrição. Por mezes persistiu n'este estado,
indifferente a sollicitações naturaes, deitado sobre bancos ou no chão
da enfermaria, movendo-se como um automato, não respondendo a ninguem.
Julguei-o então perdido e cheguei a consignar com segurança esta
impressão clinica. Mas um dia, abruptamente, o doente dirige-se a mim,
cumprimenta-me polidamente e diz-me que se sente, emfim, restabelecido,
que deseja sahir, que quer escrever uma carta a um irmão para que venha
buscado. Do pseudo-demente nada restava; a datar d'esse dia ficou o
primitivo delirante, o perseguido-ambicioso quasi sem allucinações, que
podia viver fóra do hospital e que eu, com effeito, deixei sahir algum
tempo depois. Isto passou-se em 1884; de então até hoje fez o doente
duas novas entradas no hospital, reproduzindo quasi sem variantes o
quadro que vimos de esboçar. Conta-me um irmão que o aggravamento da
doença se manifesta sempre por uma subita explosão de allucinações,
succedendo a excessos venereos e alcoolicos.

Como interpretar este caso? É evidente que os defensores da Verrücktheit
aguda veriam n'elle um excellente exemplar d'esta fórma clinica; os que
a combatem, porém, pensariam no hallucinatorischer Wahnsinn de
Krafft-Ebing, na Amencia de Meynert, na Verwirrtheit de Fritsch, no
Asteniche Delirium de Mayser, na confusão mental, emfim.

Os primeiros invocariam, com Werner, o caracter egocentrico das
concepções delirantes do nosso paranoico; os segundos poriam em
evidencia o contraste entre um delirio de humildade e os delirios de
perseguições e de grandezas, notariam a phase de estupidez ou demencia
aguda que não pertence ao quadro da Verrücktheit, fariam valer o estado
de anciedade, salientariam o phenomeno somatico da desnutrição,
appellariam, emfim, para a etiologia asthenica do caso.

Ora, emquanto no quadro clinico descripto tudo se reduz a uma acuidade
maior dos delirios persecutorio e ambicioso, que a insistencia das
allucinações explica de sobra, não seria difficil acceitar o diagnostico
de Verrücktheit, pois que nem a systematisação dos conceitos se perdeu,
nem o seu caracter egocentrico e autophilico deixou de fazer-se notar; e
a mesma anciedade poderia acceitar-se como secundario symptoma de
reacção em face dos erros sensoriaes.

Mas é já muito difficil explicar n'esta ordem de idéas a phase de
espirito que conduz o nosso doente a rojar-se no chão, a abater-se
diante dos companheiros, a recusar os alimentos para se penitenciar e a
pedir perdão de imaginarias culpas. Por outro lado, pensando na
etiologia d'este caso, em que concorrem formidaveis elementos de
esgotamento e de asthenia, é mais facil explicar por ella do que pela
acuidade do delirio a demencia funccional que por mezes observei.
Segundo a minha pratica pessoal, o onanismo abusivo seria frequentemente
o responsavel de subitas invasões allucinatorias, acompanhadas de
reacções emotivas de uma viva feição depressiva e anciosa em paranoicos
averiguados. Assim, na interpretação do caso que citei, como de todos os
de igual physionomia, julgo mais consentaneo com os dados da sciencia
invocar uma complicação psychonevrotica (seja qual fôr o nome preferido
para exprimil-a) do que alargar o quadro da Verrücktheit pela creação de
uma obscura variedade aguda.

Entretanto, comprehende-se que esta questão seja de certo modo
secundaria para nós que, como Tanzi e Riva, dissociamos os conceitos de
Paranoia e de Verrücktheit, vendo n'esta apenas uma habitual, mas não
necessaria expressão symptomatica d'aquella.

Que os delirios do paranoico sejam agudos ou chronicos; que se
acompanhem ou não de allucinações; que conservem sempre ou percam por
algum tempo a sua costumada systematisação--eis o que nos não preoccupa
excessivamente, por isso que concebemos a Paranoia como uma constituição
mental anterior a todos os delirios, sobrevivendo-lhes e podendo até
existir independente d'elles.

É tempo, porém, de examinarmos o segundo dos argumentos de Schüle em
defeza da Verrücktheit aguda.

Notando, como Westphal, que ha casos em que de um hallucinatorischer
Wahnsinn se passa immediatamente e sem descontinuidade a um delirio
systematisado, conclue o insigne psychiatra que a Verrücktheit offerece
algumas vezes uma phase inicial aguda.

Contesta Krafft-Ebing, como vimos em outro logar, os casos invocados por
Schüle, proclamando que a transição do hallucinatorischer Wahnsinn á
verdadeira Verrücktheit jámais se realisa. Por nossa parte nunca a
observamos tambem; mas de modo nenhum nos sentimos dispostos, por isso
só, a contestal-a. Em materia de facto, póde uma unica observação
positiva ter mais alta significação que toda uma longa experiencia
negativa; e é certo que não só muitos dos modernos alienistas affirmam
ter observado casos analogos aos de Schüle, mas já em Delasiauve
encontramos a affirmação clara de que a _confusão mental_ offerece na
sua symptomatologia idéas morbidas que podem tornar-se o nucleo de um
verdadeiro _delirio parcial_.

Mas se nos não repugna acceitar a realidade dos casos em que Schüle
baseia o controvertido thema da Verrücktheit aguda, cremos que elles
podem interpretar-se de um outro modo. Porque não admittir, por exemplo,
na comprehensão d'esses casos que os delirios asystematico sensorial e
systematisado se succedem como factos morbidos distinctos, tendo cada
qual uma etiologia privativa e uma evolução especial--nascendo o
primeiro de causas asthenisantes e o segundo da maturidade degenerativa,
marchando o primeiro para a extincção, e o segundo para a chronicidade?
No cerebro eminentemente vulneravel do paranoico as causas depressivas e
esgotantes provocariam a apparição de um confuso delirio sensorial, como
outras determinariam a mania ou a melancolia; sómente, a psychonevrose,
abalando esse cerebro maximamente predisposto, em vez de liquidar pela
cura, apressaria a maturidade paranoica, isto é, o momento psychologico
da eclosão de um delirio systematisado.

Mas, ainda uma vez: desde que Paranoia e Verrücktheit não são conceitos
equivalentes, a admissão de uma variedade aguda da segunda de modo
nenhum infirma a manifesta chronicidade da primeira.

Posto isto, consideremos o grupo dos delirios que, embora tendo uma
evolução por vezes muito rapida, apparecendo sem preparação,
acompanhando-se de multiplas allucinações e terminando pela cura,
manteem constantemente um apreciavel grau de activa systematisação.

Pertencem estes delirios ao quadro da Verrücktheit? Parece-nos que a
resposta affirmativa se impõe. Com effeito, se a sua marcha contrasta
frisantemente com a dos casos em que as concepções morbidas se
perpetuam, cobrindo dezenas de annos, é certo que lhes não falta um
unico dos caracteres essenciaes da Verrücktheit: nem a egocentricidade
das idéas delirantes, hypocondriacas, eroticas, persecutorias ou
ambiciosas, nem a coordenação d'ellas em systema, nem o predominio das
allucinações auditivas, nem a origem essencialmente hereditaria. É,
pois, a estes delirios, conhecidos em França pelos nomes de
_polymorphos_ ou _d'emblèe_ que exclusivamente conviria, a meu vêr, a
designação de Verrücktheit aguda.

Os que, como Krafft-Ebing, não admittem esta fórma, são constrangidos,
todavia, a fallar na rara _curabilidade_ da Verrücktheit e na sua marcha
por vezes subaguda, o que, no fundo, é conceder aquillo que
ostensivamente se nega. Reconhecer a legitimidade clinica da
Verrücktheit aguda, no sentido em que acabamos de a definir, parece-nos,
portanto, inevitavel.

Por nossa parte hesitamos tanto menos em fazel-o quanto é certo que na
Verrücktheit vemos apenas uma possivel manifestação da Paranoia.

Quando entre os delirios systematisados (Verrücktheit) e a constituição
mental (Paranoia), que elles revellam nos dominios intellectuaes, se
estabelece uma perfeita equivalencia, o reconhecimento de uma variedade
aguda e curavel dos primeiros implica uma perigosa negação da doutrina
que faz da segunda uma doença de evolução essencialmente chronica e
incuravel, uma degenerescencia, em summa. Mas, precisamente se
encarregam os factos de pôr em relevo o lado fraco d'esta doutrina e a
exactidão da que sustentamos com Tanzi e Riva. Os delirios
systematisados podem revestir a fórma aguda e curar; o que é chronico,
porém, e não cura jámais é a anomala organisação psychica de que elles
não fazem senão traduzir a maxima intensidade ideativa. Póde ser aguda e
curar a Verrücktheit; o que é chronico e não cura é a Paranoia.



III--A VERRÜCKTHEIT SECUNDARIA

Os delirios systematisados que succedem ás psychonevroses; sua
interpretação pathogenica--A opinião de Tonnini; modificação
introduzida--Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.


A extensão com que na parte historica d'este _Ensaio_ tratamos o velho
thema da Verrücktheit secundaria, tão caro aos allemães, permitte-nos
agora limitar muito as considerações de ordem critica a fazer sobre
elle.

Disse alguem que, a partir dos trabalhos de Sander e Snell, a pergunta:
_Existirá uma Verrücktheit primaria?_ começou a ser substituida por esta
outra: _Existirá uma Verrücktheit secundaria?_ E nós vimos, com effeito,
que a extensão d'esta diminuiu sempre na medida em que augmentava a
d'aquella. Entendamo-nos, porém: se os delirios systematisados que
succedem á mania e á melancolia de longa duração, não merecem realmente
um logar no quadro clinico da Verrücktheit, que é uma doença
constitucional, mas no grupo das psychonevroses, de que são apenas
estados terminaes prefaciando a loucura e revellando já, pela sua mesma
inactiva e apagada coordenação, um enfraquecimento cerebral, é
indiscutivel que a observação clinica nos permitte uma ou outra vez
surprehender delirios persecutorios e ambiciosos vivamente
systematisados, activos e tenazes, succedendo, todavia, a psychoses de
manifestações maniacas, melancolicas e até mesmo apparentemente
demenciaes. Raros, estes ultimos delirios systematisados não o são
tanto, comtudo, que os não tenham observado psychiatras de todos os
paizes. Como interpretal-os? Onde achar-lhes logar dentro das modernas
classificações?

A resposta parece-nos poder derivar-se da doutrina formulada por
Tonnini: Estes delirios são paranoicos; e a psychonevrose que os
precedeu, impotente em si mesma para os crear, provocou-os todavia,
estimulando a peculiar actividade ideativa de um cerebro degenerescente.
É possivel que, a não se realisar a incidencia perturbadora do elemento
emocional implicado na psychonevrose, esse cerebro tivesse feito a sua
evolução sem manifestações delirantes, comquanto houvessem de
caracterisal-o sempre um exaggerado subjectivismo e uma apreciavel
egocentricidade. Vulneravel, porém, elle não póde resistir ás causas que
nos espiritos sãos determinam as psychoses; uma d'estas installou-se,
portanto. O que deverá succeder a partir d'esse momento? Naturalmente,
alguma coisa diversa do que costuma passar-se nos cerebros normaes: em
vez de marchar para a cura ou para a demencia franca, a psychonevrose
apressará aquella _maturidade degenerativa_ de que fallam Tanzi e Riva
e que tem por expressão intellectual um delirio systematisado. Já em
manifesto desequilibrio e já cançado pela passagem tormentosa da
psychonevrose, o cerebro não poderá dar a este delirio secundario a
forte seiva de que se alimentam os primitivos; entretanto, dar-lhe-ha
ainda a força psychica precisa a uma evolução que póde ser longa e de
certo modo movimentada. É n'este especial sentido que, a meu vêr, a
Verrücktheit secundaria deve ser admittida.

Note-se, porém, que dizemos Verrücktheit e não Paranoia, no que
divergimos de Tonnini. E esta divergencia não é só de fórma, mas de
fundo, não apenas de nomenclatura, mas até certo ponto de interpretação.
Com effeito, se bem comprehendemos todo o pensamento do escriptor
italiano, a psychonevrose sommar-se-hia com uma simples predisposição
vesanica para determinar a Paranoia, que os delirios systematisados
secundarios symptomatisam; ao contrario, eu penso que a Paranoia
preexiste á psychonevrose, embora tendo uma fórma mitigada e revestindo
até ao advento d'esta uma feição mal definida, um verdadeiro typo
indifferente. A psychonevrose que, na interpretação de Tonnini,
contribuiria essencialmente para a constituição da Paranoia, não faz, a
meu vêr, mais do que accentual-a, provocando a Verrücktheit, isto é,
imprimindo-lhe um definido typo delirante. Todas as degenerescencias
teem graus intensivos ou de gravidade: na ordem das paranoicas a mais
grave seria a que mais rapidamente chega á maturidade, a mais precoce, a
que desde a puberdade se revella por delirios systematisados, isto é,
pela _Verrücktheit originaria_; a menos grave seria a que só attinge a
maturidade por virtude de um abalo emocional, a mais tardia, a que se
manifesta pela _Verrücktheit secundaria_. Mas em qualquer dos dois
casos, como cm todos, a anomala constituição cerebral que na essencia
caracterisa a Paranoia, é congenita. E eis porque eu não hesito em
acceitar uma _Verrücktheit secundaria_, como não hesitei em admittir uma
_Verrücktheit aguda_, comquanto sustente a _primitividade_ e a
_chronicidade_ essenciaes da Paranoia.



IV--O RACIOCINIO E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erros doutrinarios de Lasègue e Foville sobre a interpretação
pathogenica dos delirios systematisados; como se perpetuaram na
psychiatria franceza--A autoobservação e o raciocinio não representam um
papel na génese dos delirios paranoicos--Depoimento dos factos--A
primitividade dos delirios paranoicos, sua origem ideativa.


Entre os erros concebidos a proposito da origem, sempre anciosamente
procurada, dos delirios de perseguições e de grandezas, um ha que,
embora contradictado pela experiencia, se divulgou, sobretudo em França,
com manifesto prejuizo de uma sã pathogenia: refiro-me ao que faz
intervir na génese d'estes delirios a autoobservação e o raciocinio do
doente. Lasègue, affirmando que o perseguido, normal até ao momento da
invasão da doença, annunciada por um vago, mas profundo mal-estar, se
perscruta, se dobra sobre si mesmo, e acaba, não sem hesitações, por
encontrar na hostilidade dos homens a interpretação dos seus
soffrimentos, foi o creador d'esse erro funesto, que Foville generalisou
mais tarde, fazendo proceder a megalomania da necessidade que o
perseguido sente de explicar-se os motivos das acintosas miserias
soffridas.

Repetida como uma sorte de _cliché_ por successivas gerações de
alienistas franceses, esta gratuita vista do espirito, que só Morel
repudiou, insinua-se ainda nos livros contemporaneos; e assim é que,
embora sem um só caso em apoio, Magnan, á maneira de Foville, enumera o
_raciocinio_ entre os fundamentos possiveis da transição, no Delirio
Chronico, da phase persecutoria á phase ambiciosa.

Comecemos por examinar esta singular pathogenia em relação ao delirio de
perseguições a que primeiro se applicou.

Segundo ella, o perseguido, como um homem são, abruptamente assediado de
obscuras emoções dolorosas, buscaria comprehendel-as, determinar-lhes as
causas, fazendo conjecturas e construindo hypotheses, entre as quaes
está a que, por successivas e mais ou menos demoradas exclusões, elle
acceita como a melhor e mais explicativa: a de uma perseguição.

A apparente nitidez d'esta pathogenia seduziu os espiritos; e, comtudo,
ella é radicalmente falsa.

Em primeiro logar, a observação clinica protesta contra, a normalidade
do perseguido anteriormente á invasão do delirio, proclamando-o não só
um predisposto, as mais das vezes hereditario, mas um verdadeiro
candidato á loucura,

Antes de imaginar o seu Delirio Chronico anti-degenerativo,
releve-se-me a expressão, Magnan reclamava para os delirantes
systematisados uma ancestralidade vesanica de duas gerações, pelo menos;
e esta idéa, já antes emittida por Morel, é a que sempre dominou as
psychiatrias allemã e italiana, accordes em acceitar como
hereditariamente invalido o cerebro paranoico. Por outro lado, jámais se
estudou de perto a vida predelirante de um perseguido sem que n'ella se
encontrassem seguras manifestações de exaggerado subjectivismo, de
autophilia, de egocentricidade, tornando difficil, melindroso e ás vezes
chocante o commercio social d'este paranoico. E, como se tudo isto não
fosse bastante para condemnar a ingenua supposição da normalidade de um
espirito, que ámanhã fabricará, sem causas determinantes, um absurdo e
tenacissimo delirio, surge não raro no perseguido a estygmatisação
physica da degenerescencia.

Em segundo logar, é absolutamente inexacto que o inicial symptoma da
doença seja no perseguido, como a theoria inculca, um phenomeno obscuro
de ordem sensivel, uma vaga e confusa emoção de que se encontre
excluido, como nos prodromos de outras affecções, um elemento ideativo.
A experiencia diz precisamente o contrario.

Quando o perseguido começa, no periodo chamado de incubação do delirio,
a isolar-se da familia e dos amigos, a evitar o convivio, a alterar os
seus habitos de existencia, a irritar-se, se o censuram ou simplesmente
o interrogam, fal-o já por desconfiança do meio, que reputa hostil. É
certo que, a titulo de vaga, mas persistente emoção egocentrica, essa
desconfiança, mitigada e ainda compativel com a vida social, o
caracterisou sempre; agora, porém, ella tornou-se definido _sentimento_
pela clara apparição no espirito de uma _idéa_ de hostilidade e de
perigo. A inquirição perscrutadora do doente a tudo quanto o cerca, a
procura minuciosa e subtil de provas palpaveis e evidentes da
mal-querença dos outros, a eclosão, emfim, das illusões sensoriaes,
tudo prova, irrecusavelmente, que a morbida sensibilidade do perseguido
se exerce sob o dominio de um pensamento definido, de uma _idéa_ que a
orienta, que lhe imprime uma direcção, que a conduz. A illusão auditiva,
phenomeno prodromico dos mais precoces e do qual a allucinação ha de
surgir, suppõe já um erethismo sensorial a que preside, consciente e
nitida, embora ainda susceptivel de ulteriores desdobramentos, a _idéa_
de uma hostilidade exterior. E é mesmo, é justamente porque essa
idéa está presente no espirito e se lhe impõe que o perseguido
paralogisticamente exhibe, como provas de uma mal-querença,
interpretações aggressivas das palavras mais indifferentes, dos sons
mais insignificativos, dos gestos e dos successos mais incaracteristicos;
cahindo sinceramente n'uma petição de principio, o perseguido prova que
no seu cerebro existe uma idéa que o tyrannisa, que o empolga, e que,
tornada um centro de associações psychicas, lhe vicia o raciocinio.
Que essa idéa, como todas, proceda de preexistentes emoções, eis o que
não contestamos, porque tudo na ordem do pensamento directa ou
indirectamente reponta do humus da sensibilidade; mas só depois que
ella espontaneamente appareceu na consciencia é que o delirio se
iniciou. Não é, pois, emotiva, mas ideativa a origem directa e
immediata d'este.

O que-se passa na melancolia esclarece, pelo contraste, a situação
paranoica. Ali, com effeito, o phenomeno inicial é d'ordem emotiva, pois
que se reduz a uma depressão consciente, que estados de cenesthesia
morbida provocam: a tonalidade psychica baixa, o doente sente-se diverso
do que fóra, a dôr moral invade-o, e é ao fim d'algum tempo d'esta
situação anormal que o delirio surge, quer como tentativa de
interpretação do novo modo de ser, quer como adequada expressão ideativa
de um sentimento geral de impotencia. As idéas de crime, de peccado, de
doença incuravel, de miseria, de incapacidade, de possessão, n'uma
palavra, todas as idéas que formam o contheudo do delirio melancolico,
são ulteriores á depressão dolorosa, que é o facto morbido primitivo.
Essas idéas não procedem do inconsciente, não irrompem de obscuras
emoções por ignorados e mysteriosos processos, mas succedem a um
consciente sentimento de dôr, que tem as suas raizes em phenomenos
somaticos apreciaveis. O melancolico sente-se mudado, o que é exacto, e
torna-se porisso autoobservador, primeiro, e delirante depois; o
perseguido, esse, sente mudado em relação a si o mundo exterior, o que é
falso, o que presuppõe uma ideação anormal e, portanto, um começo de
delirio, que a observação objectiva apenas ajudará a systematisar.
Emquanto o melancolico, abatido e humilhado por um sentimento real de
dôr, que é a expressão consciente de perturbações cenesthesicas, se
concentra e se interroga, fazendo um delirio _secundario_, o perseguido,
egocentrico e autophilico, partindo de uma idéa chimerica de
hostilidade, abre os sentidos e observa o mundo externo, delirando
_primitivamente_.

A autoobservação e o raciocinio na génese do delirio de perseguições não
passam de miragens do espirito. No perseguido a attenção é dirigida em
sentido objectivo; e o raciocinio, longe de intervir na formação do
delirio, é por elle radicalmente falseado sempre que se trata das
relações entre o mundo exterior e o Eu. A verdade clinica é, pois,
precisamente o contrario do que affirma a doutrina de Lasègue; a verdade
é que o delirio surge á sua hora, como o fructo amadurece e o grão
germina: espontaneamente, fatalmente.

Vejamos agora o que se dá com o delirio ambicioso que succede ao de
perseguições.

Haverá n'este caso, como pretendia Foville e como á saciedade se tem
repetido, uma transformação consciente e raciocinada?

O que acabamos de dizer sobre a direcção exclusivamente objectiva da
attenção do perseguido, faz desde já suppôr o contrario. A attitude
reflexiva, que seria necessaria para indagar as causas de uma
hostilidade do meio, não está nos habitos do perseguido; por outro lado
ainda, não é de modo nenhum natural que se procurem as origens de um
facto acreditado, como os dogmas, com a inabalavel fé, que dispensa
interpretações e as rejeita mesmo.

Mas as provas directas da falsidade clinica da doutrina de Foville
abundam. Assim, a observação permitte affirmar que não só o perseguido
nunca formúla a pergunta: _Porque me perseguem?_ mas que, interrogado
n'este sentido, invariavelmente responde: _Não sei_. O absurdo de uma
perseguição sem causas, de uma hostilidade immotivada não choca esta
ordem de doentes; e é debalde que se tenta dirigir-lhes a attenção para
o exame de um assumpto que parece não os interessar. Absorvidos pelas
allucinações ou empenhados em conjurar os effeitos de uma aggressão
implacavel, os perseguidos não sentem a necessidade de inquirir as
razões d'ella; e todo o insistente convite n'este sentido serve apenas
para os impacientar, quando os não leva a entrevêr no solicito
observador um cumplice de imaginarios inimigos.

Mas ha mais. Se o delirio ambicioso podesse installar-se a titulo de
explicação de precedentes perseguições, nada seria mais facil do que
provocal-o: bastaria suggerir ao perseguido os themas habituaes da
megalomania, deixando-lhe a escolha. Por outros termos: se o raciocinio
bastasse, como candidamente pretendia Foville, a operar a transformação
de uma personalidade,--para fazer-se de um perseguido um megalomano
seria necessario apenas dizer-lhe precocemente o que, segundo o auctor
francez, elle se dirá um dia, isto é, que, não podendo haver
perseguições sem causa, o encarniçamento dos seus inimigos deve
naturalmente explicar-se quer pela inveja dos altos meritos pessoaes do
doente, quer pelo interesse de supprimir um individuo destinado, como
elle o é, talvez, a reinar, a dirigir um partido, a instituir uma
religião, a reformar uma sociedade, a mudar a face de uma sciencia. Ora,
a verdade é que suggestões d'esta ordem não só não abalam os perseguidos
que, aliás, se tornarão mais tarde megalomanos, mas determinam n'elles
ora uma franca hilaridade, ora indignados protestos. Repeti muitas
vezes, no começo da minha carreira, experiencias d'esta natureza,
conseguindo apenas provocar dos doentes contestações como estas: que não
estão doidos para desconhecerem a sua situação; que não admittem
zombarias; que as historias phantasticas são boas para entreter creanças
e idiotas; que não é digno escarnecer de quem soffre.

É, pois, radicalmente falso e absolutamente contrario aos dados da
observação que o delirio de grandezas appareça como tentativa feita para
explicar perseguições soffridas. A idéa ambiciosa, como a de
hostilidade, surge no espirito de um modo espontaneo e inconsciente; do
delirio de grandezas póde, pois, repetir-se o que foi dito do delirio de
perseguições: que elle irrompe á sua hora, como o fructo amadurece e o
grão germina.

É só depois de installado por um processo a que são extranhos o
raciocinio e a vontade, que o delirio de grandezas servirá para explicar
o de perseguições, como este, por sua vez, servira ao doente para
interpretar os factos da sua vida anterior. É só a partir do momento em
que se crê excepcionalmente grande pelo genio, pelo nascimento ou pela
fortuna que o paranoico principia a explicar-se as miserias supportadas.

Note-se, porém, este facto curioso e imprevisto em face da theoria que
criticamos: o delirio de grandezas, dando um solido ponto de apoio ás
idéas de perseguição, que esclarece e interpreta,--bem longe de as
radicar, tornando-as definitivamente preponderantes no espirito do
paranoico, tende, pelo contrario, a diminuil-as e a subalternisal-as em
proveito proprio.

Tal é o irrecusavel depoimento da clinica, absolutamente incompativel,
como se vê, com a theoria que faz dos delirios paranoicos resultados de
um esforço da intelligencia para comprehender e interpretar vagos e
obscuros estados emotivos. Se essa theoria prevalecesse, a autonomia
nosographica do delirio systematisado de perseguições seria inteiramente
chimerica; e todo o esforço de Lasègue para o destacar da melancolia
delirante resultaria inane, pois que a pathogenia, a despeito de todas
as possiveis differenciações symptomaticas, identificaria
definitivamente as duas doenças.

Tendo de voltar ainda a este assumpto, procuraremos então interpretar as
hesitações dos perseguidos e megalomanos na exhibição dos respectivos
delirios.

Por mal comprehendido, esse facto contribuiu não pouco para acreditar a
phantastica doutrina da génese consciente e reflexiva dos delirios
systematisados. A hesitação, parecendo implicar a duvida, iria bem com a
opinião que faz d'esses delirios _conjecturas_ de um Eu que se observa,
_hypotheses_ de um espirito que se perscruta, buscando dar-se conta de
accidentaes perturbações emotivas.

Veremos opportunamente que a interpretação do facto é muito outra; que
essas hesitações não são senão o resultado da lucta que se exerce entre
idéas nascidas do inconsciente e o systema de conceitos formados pela
educação e até um certo tempo impostos pelo meio social.

De modo analogo explicaremos o facto, erroneamente interpretado pelos
psychiatras francezes, da inquietação dos perseguidos no periodo inicial
da doença.



V--AS ALLUCINAÇÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erro de Foville sobre as relações dos delirios systematisados com as
allucinações; como se perpetuou na psychiatria franceza--Uma antiga idéa
de Magnan, exposta por Legrain, sobre este assumpto; falsidade d'essa
idéa--Primitividade da concepção sobre a allucinação nos delirios
paranoicos--Uma rectificação de Magnan.


Dada a extrema frequencia dos erros sensoriaes, sobretudo das
allucinações auditivas, na loucura systematisada, tem-se perguntado se
as perturbações da sensibilidade especial precedem as idéas delirantes,
servindo-lhes de base e fornecendo-lhes o contheudo, ou se, pelo
contrario, apenas lhes succedem como uma sorte de confirmação.

Lasègue, sustentando que as allucinações auditivas, unicas, segundo
elle, compativeis com o delirio de perseguições, não são nem o
antecedente necessario, nem o consequente inevitavel d'esta vesania,
estabeleceu claramente a independencia essencial dos erros conceptuaes e
perceptivos na mais commum das fórmas delirantes da Paranoia.

Retomando, porém, annos depois a questão, Foville admittiu para ella
duas ordens de soluções, desigualmente frequentes: uma, relativamente
rara, em que o delirio é primitivo e as allucinações secundarias; outra,
muito commum e, no delirio de perseguições, constante, em que a relação
inversa se realisa.

«O delirio, dizia elle, póde ou principiar _d'emblèe_ pelos conceitos ou
affectar primeiro as sensações e extender-se depois ás idéas de um modo
secundario»[1]. E, analysando cada um d'estes casos, commentava: «N'este
ultimo (primitividade das allucinações) as funcções puramente
intellectuaes não são, desde o começo, intrinsecamente lesadas, antes
continuam a executar-se segundo a logica. Como faz notar Delasiauve, a
faculdade syllogistica persiste intacta: emquanto se exerce sobre dados
exactos, o producto das suas operações é normal e sensato; quando, pelo
contrario, se exerce sobre dados falsos, isto é, sobre sensações
imaginarias ou mal interpretadas, sobre allucinações e illusões, o
producto encontra-se forçosamente em contradicção com a realidade. O
delirio das sensações tem por effeito engendrar o delirio dos conceitos,
sem que a intelligencia seja em si mesmo lesada e sem que ella deixe de
funccionar sãmente, quando não é induzida em erro. Tal é um dos modos de
producção e, não hesitamos em crêl-o, o _mais vulgarmente observado_ da
loucura parcial ... Mas esta ordem na successão dos phenomenos morbidos,
embora a _mais frequente_, não é constante. Acontece tambem _algumas
vezes_ gue a perturbação começa por concepções erroneas, que succedem a
uma idéa fixa na ausencia de qualquer allucinação. N'este caso ainda,
faz-se ordinariamente uma propagação analoga á que indicamos ha pouco,
mas em sentido inverso. Ao fim de certo tempo, as concepções delirantes
transformam-se em sensações falsas, o delirio extende-se ás percepções;
o doente torna-se allucinado, porque era já delirante, em vez de
tornar-se, como ha pouco, delirante, porque era allucinado»[2].

  [1] Foville, _Obr. cit._, pag. 341.

  [2] Foville, _Obr. cit._, pag. 341.

Ora, ao passo que o megalomano-perseguido seria as mais das vezes,
segundo Foville, um delirante-allucinado, o perseguido-megalomano, pelo
contrario, seria sempre um allucinado-delirante.

Por muito singular que se nos affigure, este modo de vêr de Foville
sobre a primitividade das allucinações na Paranoia persecutoria teve um
exito só comparavel ao da sua theoria das origens reflexivas e
raciocinadas do delirio ambicioso. Repetido em milhares de tiragens
pelos alienistas francezes, este novo _cliché_ pathogenico perpetuou-se
como o primeiro. Magnan, por exemplo, acceitava-o ainda em 1886 e
dava-lhe curso nos trabalhos dos seus discipulos. Como Foville, o medico
de Sant'Anna admittia que nos delirios systematisados a allucinação póde
tanto ser um symptoma derivado da persistencia de conceitos falsos, como
um phenomeno primitivo sobre que assenta e de que procede a ideação
pathologica. O primeiro d'estes casos dar-se-hia nos _delirios
d'emblèe_; o segundo no _Delirio Chronico_. Os degenerados, unicos
capazes de fabricarem um delirio sem preparação, e de serem, portanto,
megalomanos-perseguidos, entrariam no grupo dos delirantes-allucinados;
os normaes, unicos a quem se consigna o Delirio Chronico e, portanto,
perseguidos-megalomanos, seriam allucinados-delirantes.

Eis como, interpretando o pensamento do mestre sobre as relações da
allucinação com as idéas morbidas nos _delirios d'emblèe_ e no _Delirio
Chronico_, se exprimia Legrain: «O mecanismo segundo o qual se produzem
as allucinações, varia nos dois casos. No Delirio Chronico ellas são
essencialmente primitivas; todo o delirio é construido sobre ellas, e se
ellas não existissem, o delirio, que lhes é consecutivo, não existiria.
Nos degenerados delirantes, quando existem, as allucinações formam-se de
um outro modo. São symptomas contingentes da doença, não a sua base
immutavel, pois que numerosos delirios degenerativos evolucionam sem
allucinações. Quando estas complicam a scena morbida, é o proprio
delirio que as _provoca_, as mais das vezes, em virtude do seguinte
mecanismo: Todos os centros cerebraes se encontram em estado completo de
erethismo; o cerebro anterior elabora as idéas delirantes e evoca as
imagens nos centros posteriores; as imagens assim evocadas véem
representar-se nos centros anteriores com uma vivacidade tal que são
interpretadas como outras tantas realidades. Assim, a allucinação
encontra a sua causa directa n'uma série de idéas delirantes que a fazem
nascer, e produz-se como um verdadeiro reflexo. O caminho centripeto
parte dos centros anteriores, em que é elaborada a idéa delirante, ganha
as regiões posteriores do cortex, em que a imagem é evocada, depois
volta aos centros anteriores, trazendo a imagem, que vem misturar-se ao
delirio e se impõe como realidade ... Muito outra é a allucinação no
Delirio Chronico: nasce primitivamente, _sur place_, nas regiões
posteriores do cortex, sem ser provocada. Uma lesão local, lentamente
progressiva, a produz; ella é a expressão funccional de uma lesão
anatomica. Partindo d'esse ponto, ganha as regiões anteriores, que
surprehende realmente. O cerebro anterior, em plena posse do seu
equilibrio, da sua ponderação, interpreta-a como um facto real e deduz
d'ella conclusões logicas, que são as primeiras idéas delirantes. Vê-se
então evolucionar um delirio absolutamente sistematisado, lançando uma
perturbação na intelligencia intacta e ponderada, que reage com todas as
suas energias. No degenerado, a adhesão no delirio é plena e inteira
desde o começo; no delirante chronico ella não é senão lenta e
progressiva, fazendo-se a systematisação pouco a pouco, mercê de
persistentes allucinações»[1].

  [1] Legrain, _Du délire chez les dégénérés_, pag. 141.

Se n'esta passagem de Legrain substituirmos as expressões de _cerebro
anterior_ e _posterior_ pelas suas equivalentes antigas de
_intelligencia_ e _sensibilidade especial_, reapparece-nos a citação
precedente de Foville. Uma velha doutrina, pois, resurge sob roupagens
novas.

Será necessario affirmar n'esta altura do nosso trabalho que a
primitividade das allucinações nos delirios paranoicos é ainda uma
ficção, que o exame despreoccupado dos factos annulla e apaga?

É incontestavel que, encarando de um modo geral as relações possiveis
dos erros sensoriaes com os conceitos morbidos, são legitimos e a cada
passo se realisam os casos enumerados por Foville: se ha delirios que
provocam as allucinações, outros ha, que, ao contrario, as teem por base
e ponto de partida. Isto é de tal modo reconhecido que os ultimos
d'estes delirios teem na psychiatria contemporanea o nome consagrado de
_allucinatorios_ ou _sensoriaes_ (Wahnsinn), que allude a um fundamento
perceptivo, como os primeiros teem o de _systematisados_ (Verrücktheit),
que inculca uma coordenação ideativa. Sómente, a experiencia clinica
ensina que os deliros sensoriaes ou são absolutamente dissociados e
dispersivos ou apenas attingem uma frouxa coordenação, ao passo que os
delirios francamente systematisados podem, como o persecutorio na sua
variedade litigante, evolucionar sem a intervenção de estados
allucinatorios.

De resto, o depoimento da clinica não seria difficil de prevêr.
Allucinações nascidas _sur place_, sem uma idéa que as provoque e lhes
forneça o contheudo, só podem ser, como aliás nota Legrain, autonomicos
effeitos de um erethismo dos centros sensoriaes, anatomica ou
funccionalmente compromettidos; mas, sendo assim, ou o cerebro anterior
as corrige e nenhum delirio é então possivel, ou, perdido o _contrôle_
normal, elle as acceita e delira, não n'um sentido determinado, mas em
tantas direcções differentes quantas as allucinações, cujo contheudo
nenhuma razão ha para não suppôr variavel e proteiforme como nos
delirios sensoriaes das anemias, das febres, das intoxicações e das
nevroses. Sem a direcção superior de um conceito ou, para fallarmos a
linguagem de Magnan e Legrain, sem a intervenção provocadora do cerebro
anterior, os centros sensoriaes, autonomisados e procedendo por conta
propria e exclusiva, exportam, como nos sonhos, para as regiões
superiores do cortex, os mais caleidoscopicos elementos de ideação; se,
com materiaes d'esta natureza, um delirio tem de formar-se, elle não
poderá ser senão, como o _hallucinatorischer Wahnsinn_ de Krafft-Ebing,
alguma coisa de tormentoso e incoherente.

Assim, nem _à posteriori_, isto é, tomando para base a clinica, nem _à
priori_, isto é, partindo da doutrina da percepção, é licito acceitar a
primitividade das allucinações nos deirios systematisados.

Discutamos, entretanto, no terreno especial da Paranoia persecutoria a
affirmação de Foville, retomada pela escóla de Sant'Anna.

Fallar, como Legrain, de uma lesão anatomica dos centros sensoriaes no
delirio de perseguições, é, evidentemente, fazer um abuso de linguagem,
pois que jámais uma autopsia denunciou em paranoicos qualquer coisa de
parecido com um desarranjo palpavel e visivel d'essas limitadas regiões
do cortex. Perturbações d'ordem dynamica, alterações funccionaes,
desequilibrios de movimento cellular, eis quanto o estado actual da
physiologia permitte admittir. N'este sentido, o termo de _erethismo_,
empregado por Legrain, parece-nos feliz. Mas provocado por que causa,
esse erethismo?

Não o diz o escriptor citado, e é lamentavel.

Excluidas, naturalmente, as intoxicações e as asthenias cerebraes, que
são as causas mais frequentes de estados allucinatorios, não vejo que
nos fiquem para explicar a sobreexcitação funccional dos centros
sensoriaes senão as idéas, delirantes; postas estas de parte, nada
resta, a invocar na interpretação do phenomeno,--tão importante, aliás, e
tão essencial, no dizer da escóla franceza, que n'elle repousa a doença
inteira.

Passemos, porém, ao de leve, sobre esta deficiencia de analyse e
admittamos por um instante que uma causa, ainda não definida, vem
provocar e determinar nos centros corticaes da sensibilidade especial um
erethismo de que o cerebro anterior não partilha. O que nos diz a
theoria da percepção que deveria succeder n'esta hypothese?
Surprehendidas pelas extranhas sensações exportadas d'esses centros
hyperfunccionantes, as regiões superiores da intelligencia entrariam com
ellas em conflicto; e o resultado d'este, dada a integridade e
normalidade d'essas regiões, a que incumbe a funcção suprema do
_contrôle_ psychico, seria, indiscutivelmente, a correcção, a
rectificação definitiva dos erros sensoriaes. É isto, como se sabe, o
que acontece nos casos de illusões e allucinações em espiritos normaes.
Fallar da integridade de uma razão, que constroe um delirio sobre
percepções falsas, é um perfeito não-senso; admittir a normalidade de
uma região de _contrôle_, que centros subordinados perturbam e vencem, é
cahir n'uma grosseira contradicção. Por si sós, dil-o a experiencia
clinica e ensina-o a theoria da percepção, os erros sensoriaes não
falseiam os juizos, porque, para corrigir as illusões e allucinações,
dispõe o cerebro de recursos, que vão desde a elementar contraprova da
acção de um sentido pela dos outros até ao testemunho alheio e ao
confronto dos dados perceptivos com o preexistente systema de conceitos
e sentimentos, que é o fundo mesmo da personalidade sã.

Se os erros sensoriaes não são corrigidos, mas acceites e elaborados
como realidades objectivas, é que uma d'estas duas hypotheses se dá: ou
o allucinado não empregou os recursos de rectificação e _contrôle_ da
percepção exterior, porque, delirante já, viu nas allucinações uma
confirmação dos seus conceitos; ou os empregou sem exito, porque o
insistente depoimento dos centros sensoriaes em erethismo, acabou por
vencer os argumentos da razão.

Qual d'estas duas hypotheses se realisa no delirio de perseguições?
Segundo o antigo ensino da escóla de Sant'Anna, de que Legrain é um
interprete eminente, a primeira teria logar nos perseguidos _d'emblèe_,
que são degenerados, e a segunda nos delirantes chronicos, que são
normaes até á invasão da doença.

É inutil repetir que não acceitamos esta distincção, e que a primeira
das hypotheses formuladas é para nós a que tem logar em todos os casos
não só de delerio de perseguições, mas dos outros delirios
systematisados.

Analysemos, comtudo, as affirmações de Legrain em relação ao Delirio
Chronico.

Estabelecendo com Magnan (como o fizera Lasègue para o perseguido) que o
delirante chronico é um ser normal até á invasão da doença, Legrain
compraz-se em vêr na incubação d'esta uma lucta da razão com os morbidos
elementos invasores. Ao passo que o degenerado supportaria, por assim
dizer, o seu delirio,--espontanea manifestação de um desequilibrio
preexistente, o normal _fabrical-o-hia_ lentamente, hesitantemente e
raciocinando sempre. É a velha doutrina. Mas como de um raciocinio só
podem surgir conclusões falsas quando as premissas o são tambem,
Legrain, á maneira de Delasiauve e de Foville, faz das illusões e
allucinações, nascidas _sur place_ nos centros sensoriaes, o elemento
morbido aggressivo e a premissa erronea de que o cerebro anterior
deduzirá, emfim, o delirio.

Acabamos de vêr, e toda a insistencia n'este ponto seria impertinente,
que a incapacidade de corrigir percepções erradas implica deficiencia de
senso critico e, portanto, insanidade mental, anormalidade psychica. Nem
mesmo admittindo com Legrain que o cerebro reage contra a allucinação
invasora com todas as suas energias, poderia evitar-se a conclusão, pois
que a derrota denuncía a fraqueza e inferioridade d'essas energias.

Mas será verdade, ao menos, que o perseguido reaja contra as illusões e
allucinações incessantemente originadas nos centros sensoriaes
sobreexcitados? De modo nenhum. Bem ao contrario do que Legrain
pretende, as illusões e allucinações são para os perseguidos, como para
todos os paranoicos, pontos de apoio e não de partida do delirio,
confirmações e não elementos formativos d'elle, eccos dos erros
conceptuaes e não o seu fundamento, n'uma palavra, precarios symptomas
derivados e não phenomenos essenciaes e primitivos.

A demonstração d'esta verdade clinica não será difficil, nem longa.

Uma só passagem de Magnan a fará. Fallando do que se passa no chamado
periodo de incubação do delirio persecutorio, escreve n'um dos seus
ultimos trabalhos o eminente observador: «Os doentes experimentam um
mal-estar, um descontentamento que não sabem explicar-se; tornam-se
apprehensivos, inquietos, _desconfiados, crendo notar certas mudanças_
na maneira de ser da familia e mesmo dos extranhos. Dormem mal, teem
menos appetite, menos aptidão para o trabalho e para os negocios. N'esta
época poderiam ser tomados por hypocondriacos. Pouco a pouco
_parece-lhes que os observam_, que _os olham de travez_, que os
_desprezam_; duvidam, hesitam, permanecem fluctuantes entre idéas
variadas, acceites primeiro, repudiadas em seguida, admittidas pouco a
pouco e dando logar, emfim, a interpretações delirantes ... O doente
persiste assim perturbado, inquieto, por vezes excitado, todo entregue
ás _concepções penosas que principiam a assaltal-o_ e _indifferente a
tudo o que não parece prender-se com o seu delirio_. Os grandes
acontecimentos não o commovem, as perturbações politicas deixam-no
indifferente, as perdas de dinheiro e as luctas de familia não o
emocionam. Pelo contrario, factos insignificantes, mas que se relacionam
com as suas preoccupações penosas, que as justificam, adquirem uma
importancia extrema e provocam-lhe a colera. Se uma pessoa se esquece de
o saudar, vê n'isto uma injuria voluntaria; se alguem tosse ou escarra
ao pé d'elle, se diante d'elle uma janella ou uma porta se abrem, se-uma
cadeira se desloca, reconhece outros tantos testemunhos de despreso. As
provas de benevolencia e de afeição tornam-se zombarias, e o proprio
silencio é uma offensa. O vago apaga-se pouco a pouco; á hesitação
succede a certeza, e, fortificadas por todas estas provas, as suas
convicções tornam-se inabalaveis. N'estas condições, o doente, sempre em
guarda, espia, escuta, surprehende n'uma conversação uma phrase que se
attribue--eis a interpretação delirante; ou se crê aggravado por uma
palavra insignificante, mas cujo som apresenta alguma analogia com uma
injuria grosseira e que elle confunde com esta--eis a illusão. Depois, a
_idéa constante de uma perseguição_, a tensão incessante da
intelligencia acabam por _despertar o signal representativo da idéa_, a
imagem tonal; n'uma palavra, a allucinação auditiva produz-se»[1].

  [1] Magnan, _Obr. cit._, pag. 237.

Não é possivel estabelecer de um modo mais preciso e mais eloquente a
primitividade do delirio e a secundariedade da allucinação. Todo o
commentario seria pallido, todo o retoque prejudicial a este quadro
_d'après nature_.

A questão de saber corno Magnan exprime em 1893 uma opinião
diametralmente opposta á de Legrain, que em 1886 se dava como interprete
da escóla de Sant'Anna, é secundaria para nós e sem interesse para a
sciencia.

Cremos que n'este caso, como no de Gérente, Magnan se contradicta a si
proprio, fazendo do seu Delirio Chronico edições successivas e todas
differentes.

Felizmente, e é isto o que nos importa notar, a correcção introduzida
ultimamente no capitulo das relações entre os erros perceptivos e
conceptuaes, é conforme á verdade clinica.



VI--AS OBSESSÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS.

A inquietação dos perseguidos e as hesitações de certos paranoicos na
exhibição do delirio; como se explicam estes factos--A doutrina classica
das obsessões; sua inexactidão--Idéas do auctor; inesperada confirmação
d'ellas por J. Séglas--A obsessão é um delirio systematico abortado;
este é uma obsessão progressiva--Demonstração; analyse dos factos--Como
se fórma o Eu; estratificações systematisadas--A personalidade e as
subpersonalidades; o atavismo.


Se as idéas que formam o contheudo dos delirios paranoicos, não traduzem
um esforço de reflexão exercendo-se sobre estados emotivos, nem
reconhecem por causa os erros sensoriaes, como cremos ter provado, a
conclusão se impõe de que ellas surgem na consciencia á maneira de
obsessões.

Comquanto sustentada por uma parte dos psychiatras allemães e italianos,
esta affirmação está de tal modo em desaccordo com as radicadas
tradicções da escóla franceza que não será sem vantagem discutil-a.
Antes, porém, seja-me licito notar que, acceite a origem obsessiva dos
delirios systematisados, dois factos, que os alienistas francezes não
lograram explicar senão phantasiosamente e em contradicção com os dados
mais positivos da observação clinica, recebem uma interpretação
simplicissima: refiro-me á inquietação dos perseguidos quando o seu
delirio aponta, e ás hesitações de grande numero de paranoicos na
exhibição dos seus conceitos falsos.

O primeiro d'estes factos, abusivamente comparado pelos psychiatras
francezes ao vago mal-estar precursor das doenças graves, não é, em
realidade, mais do que a natural reacção emotiva do Eu, subitamente
empolgado por uma idéa penosa, que irrompe do inconsciente; longe de
constituir, como a anciedade melancolica, uma situação primitiva de que
surgirão os erros conceptuaes, é um estado secundario, um effeito mesmo
da presença inesperada de uma idéa depressiva no campo da consciencia.

Em que consiste, de facto, essa inquietação? Definitivamente e no
fundo--em sentimentos e actos defensivos; ora, a organisação de uma
defeza suppõe a idéa de um ataque, de uma hostilidade, de um perigo. Sem
duvida, essa idéa só se terá transformado n'um conceito e recebido a sua
inteira systematisação, quando se houver feito o reconhecimento do
inimigo e das causas da aggressão; a partir, porém, do momento em que
obsessivamente ella irrompe e se impõe ao espirito, a inquietação
apparece como o grito de alarme da esphera emotiva do perseguido.

Quanto ás hesitações, tantas vezes observadas, do paranoico na
exteriorisação do seu delirio, qualquer que elle seja, nada mais facil
que interpretal-as. Trata-se ainda, n'este caso, de um phenomeno
secundario, inseparavel do primeiro. Surprehendendo a consciencia pelo
contraste que faz com o systema de conceitos positivos recebidos da
educação, a idéa delirante é para o Eu alguma coisa de extranho e de
interposto que, tendo-lhe provocado uma forte reacção emotiva, irá ainda
remodelar toda a sua precedente orientação pensante, não sem
difficuldades e combates; a hesitação em affirmar o delirio é, pois, o
resultado da novidade e extranhesa das idéas que o formam. Longe de ser,
como se pretendeu, a duvida de um espirito que elabora conjecturas e
procura cotejal-as com os actos, essa hesitação traduz o esforço penoso
e vacillante de adaptação do Eu a uma nova ordem de idéas, que elle vê
surgir e cuja origem desconhece. O paranoico não duvida, porque não
critica. Como a victima de uma suggestão hypnotica activa não procura
evitar o acto ordenado e imposto, ainda quando elle choca, ás suas
habituaes inclinações, mas busca dar-lhe apparencias de espontaneo e
querido, o paranoico, longe de tentar a correcção da sua idéa falsa,
cuida em reforçal-a pela interpretação delirante dos factos.

Mas ás vezes succede tambem que já o delirio se encontra systematisado e
ainda o paranoico o occulta ou apenas o confia do papel, n'uma sorte de
soliloquio. A razão d'este facto está em que o doente, reconhecendo,
pelo que, em si proprio se passou no periodo presystematico, a
extranheza do seu delirio e a formidavel antithese que elle faz com as
idéas correntes, procura evitar as inuteis e irritantes discussões que
provocaria, exhibindo-o. É o conhecido caso de alguns crentes que, em
vez de propagarem a sua fé, penosamente conquistada em repetidas luctas
interiores, se recolhem n'ella, evitando a controversia, sentindo uma
sorte de pudor em desdobrar diante de profanos irreverentes o inabalavel
systema das suas convicções religiosas.

Mas eu prevejo uma objecção a esta doutrina. Como acceitar, dir-se-ha, a
origem obsessiva dos delirios systematisados, se um dos caracteres das
obsessões é justamente o de não serem integradas na consciencia, de
subsistirem no Eu em lucta aberta com as disposições preexistentes,
n'uma palavra, de não formarem systema?

A resposta implica um exame de doutrinas a que vamos proceder.

Westphal, definindo a obsessão _uma idéa que, sem precedencia de um
estado emotivo ou passional, se impõe á consciencia do doente contra a
sua vontade, impedindo o jogo normal do pensamento, em que se insinua, e
sendo sempre reconhecida como anomala e extranha ao Eu_, foi um dos
primeiros a proclamar a irreductivel systematisação da idéa obsessiva.

Pelo seu lado, os auctores, que ulteriormente mais se occuparam das
obsessões, insistiram sempre no facto de que ellas constituem na
economia psychica uma sorte de _corpo extranho_, releve-se-me a
expressão, para eliminar o qual, inutil, mas consciente e penosamente se
esforça o Eu. Assim, Magnan, definindo a obsessão pathologica _um modo
de actividade cerebral em que uma palavra, uma idéa, uma imagem se
impõem ao espirito sem intervenção da vontade e com uma angustia
dolorosa que a torna irresistivel_, conta, como Westphal, entre os
caracteres pathognominicos d phenomeno (que para elle é sempre um
syndroma da degenerescenda psychica), a _consciencia completa_ de um
estado morbido. E.J. Falret, interpretando no Congresso Psychiatrico
Internacional de 1892 as mesmas idéas, affirmou não só que as obsessões
são _conscientes_ e _anciosas_, mas que se _não acompanham de
allucinações_ e se _não transformam nunca em outras doenças mentaes_,
embora algumas vezes e n'uma adiantada phase de evolução se possam
_complicar_ de um delirio melancolico ou persecutorio. O assentimento do
Congresso as conclusões do Relatorio de Falret foi como a consagração
official da doutrina que faz da idéa obsessiva um facto insusceptivel da
assimilação, um producto que o Eu considera sempre extranho, que a
consciencia jámais incorpora, que a vontade combate e contra o qual a
emotividade perpetuamente lança o seu grito de alarme.

Será, porém, rigorosamente assim?

Reconhecendo que a nossa experiencia é curta e a nossa auctoridade
nulla, atrevemo-nos, comtudo, desde 1892; tendo por base uma solida
convicção, a discutir alguns dos pontos essenciaes da doutrina classica.

Assim, em conferencias publicas d'esse anno, a proposito de um caso
medico-legal de impulsividade criminosa, sustentamos que a idéa
obsessiva não póde ser, nem é na vida mental um elemento inerte, e que a
sua actividade, como a de todo o phenomeno psychico, se mede pelo maior
ou menor numero de factos da mesma ordem que ella evoca na consciencia,
o que equivale a dizer--pelas mais ou menos extensas _systematisações_
que provoca. Como cada atomo de um aggregado material, diziamos então,
entra n'elle com uma certa affinidade, cada phenomeno psychico figura no
Eu com uma dóse propria de força systematisante. E a idéa obsessiva,
extranha á consciencia pelas suas origens confusas, não é essencialmente
diversa dos outros factos psychicos, nascidos tambem em grande parte da
cerebração inconsciente; surgindo, ella evoca, pois, pela sua mesma
affinidade com esses factos, pela sua mesma força systematisante (de que
as leis de associação não fazem senão constatar a existencia e denunciar
parcialmente as orientações), idéas, emoções, desejos, impulsos, novas
imagens mentaes, em summa.

Longe de acompanhar-se, diziamos, de uma perfeita e _completa
consciencia,_ a obsessão, representando um começo de _dissociação
pessoal_, uma scisão do Eu por dois grupos antinomicos de
systematisações psychicas, a normal e a obsessiva, implica uma
_obnubilação da consciencia_ individual, pois que esta não póde
comprehender-se senão como synthese de estados psychicos harmonicos e
expressão da unidade do Eu.

Este modo de vêr, seja dito de passagem, encontramol-o sustentado com
profusão de argumentos psychologicos e clinicos nas excellentes _Lições
sobre as doenças mentaes e nervosas_ de Séglas, publicadas em 1896. Este
imprevisto encontro do nosso espirito com o do eminente psychiatra, sob
ser-nos lisongeiro, depõe grandemente em favor da justeza das idéas que
defendemos.

A _angustia_ que acompanha os estados psychicos, diziamos nas mesmas
conferencias, traduzindo a extranheza da consciencia em face da idéa
imposta, está longe de ser um thenomeno invariavel, pois que, no fundo,
elle depende da extensão maior ou menor que tomam as systematisações
pathologicas em face das normaes. Ha estados em que toda a reacção
emotiva se limita a uma passageira e leve inquietação de espirito;
outros, em que surgem phenomenos criticos de anciedade, pronunciados,
duradouros e graves. Procurando interpretar estes factos, Westphal
collocou-os principalmente sob a dependencia do contheudo das obsessões,
affirmando que, em igualdade de circumstancias, a idéa fixa de matar
repugnará muito mais que a de pronunciar uma palavra inconveniente.
Talvez seja assim; mas essa _igualdade de circumstancias_, reduzindo-se,
no fundo, a uma identidade absoluta de disposições affectivas e moraes,
não póde nunca affirmar-se com segurança em dois individuos ou n'um só
em periodos diversos. Dizer que uma idéa obsessiva repugna, pelo seu
contheudo, mais ou menos que uma outra, é dizer que as systematisações
provocadas por cada uma valem diferentemente para o Eu. Mas porque? Em
ultima analyse, porque as systematisações normaes com que ellas entram
em conflicto na consciencia são diversas ou desigualmente organisadas. Á
medida que a idéa obsessiva, quer por força propria, quer por frouxidão
das suas antagonistas, alarga a esphera da sua systematisação, a
dissociação do Eu progride, a extranheza da consciencia diminue e a
_angustia_ reduz-se proporcionalmente. E o limite d'esta reducção, que
theoricamente é zero, terá sido attingido, quando no campo da
consciencia não existam systematisações que directa ou indirectamente
não sejam provocadas pela idéa obsessiva.

Mas, n'esta hypothese dois casos podem dar-se: ou as systematisações
normaes readquirem, decorrido um certo tempo, a sua supremacia, ou, mais
fracas, ellas se deixam vencer definitivamente pelas systematisações
pathologicas. No primeiro caso, a consciencia individual restabelece-se,
e da phase de derrota fica apenas a memoria confusa de uma sorte de
estado secundario e de sonho,--o que tem permittido comparar as
obsessões impulsivas a crises de epilepsia psychica; no segundo, um novo
Eu se fórma, tendo por substracto associações pathologicas, isto é, um
delirio systematisado.

Tal foi, nos seus contornos, a doutrina que esboçamos em 1892 e
exposemos ainda em conferencias sobre a Paranoia no começo de 96,
contradictando os que pretendem achar contrastes irreductiveis entre
obsessão e delirio. Insubsistentes no terreno da psychologia abstracta,
esses contrastes não o são menos no campo da clinica, onde Tamburini,
Stephani, Séglas, Catzras e outros demonstraram, contrariamente á
cathegorica affirmação de J. Palret, que existem allucinações sensoriaes
e psychomotoras exclusivamente determinadas pela persistencia de idéas
obsessivas. Longe de serem antinomicos, a obsessão e o delirio
approximam-se pela communidade de origem: a obsessão seria, na ordem de
idéas que sustentamos, um começo de delirio systematisado, como este
seria uma obsessão progressiva, desenvolvendo-se á custa de successivas
associações. N'este sentido se interpreta sem esforço a expressão de
_paranoia rudimentar_ por que Arnadt, Morselli e outros designam a
obsessão.

Mas, porque reputamos fundamentaes estas idéas, procuraremos dar-lhes
aqui todo o desenvolvimento que ellas comportam.

O phenomeno pathologico da obsessão tem, como nota Dallemagne, um
representante physiologico no facto banal de uma idéa indifferente que,
sem sabermos como, nos surge na consciencia, interrompendo
disparatadamente o curso das nossas preoccupações e desapparecendo um
instante depois. Não ha aqui, em verdade, nem angustia, nem
irresistibilidade; ha, porém, o phenomeno da emergencia inexplicavel e
extranha de uma imagem, que o jogo consciente das idéas não provocou. A
systematisação não existe tambem: um momento presente na consciencia, a
idéa desappareceu sem deixar n'ella um vestigio. Imaginemos, porém, que
a idéa extranha pertence á cathegoria das impulsivas, e concedamos que o
acto n'ella representado seja de natureza cruel: atirar, por exemplo, á
linha férrea um companheiro de viagem. É evidente que o novo caso
differe muito do anterior. Em primeiro logar, a idéa tem desde logo um
começo de systematisação, por isso que mentalmente nos representamos uma
scena complicada e os seus possiveis effeitos: imagens motoras, imagens
sensoriaes, sentimentos, emoções, idéas de leis e principios moraes,
idéas de sanção penal, tudo entra em jogo, tudo se grupa, em torno da
idéa primitiva. A vontade lucta, como geralmente se diz, ou, como melhor
deveria dizer-se, as systematisações normaes, mais ou menos organisadas
e resistentes, repellem a systematisação anomala e intrusa. Esta,
todavia, não desapparece sem vestigios; impossibilitada de tomar as
reclamadas vias motoras externas, gastou-se na esphera emotiva,
dando-nos um instante de inquietação, um sobresalto, um começo de
angustia, traduzida, talvez, physicamente n'um subito pallor de face,
n'uma agitação momentanea do pulso. Mas figuremos que a idéa se reproduz
ainda, uma vez, duas, muitas vezes. A systematisação, que ella provocou
no inicial momento, repete-se, avigora-se, organisa-se; a lucta das
systematisações normaes antagonistas renova-se, e d'essa renovação
deriva o prolongar-se na consciencia a presença de uma systematisação
anomala, cada vez mais nitida e mais forte. As imagens motoras farão
nascer o impulso; e este, se as systematisações normaes o não conseguem
desviar n'um sentido diverso (a convulsão, o espasmo, o toque d'uma
campainha de alarme, o grito de aviso) acabará por ser satisfeito,
provocando uma _détente_, um allivio.

Os caracteres da obsessão pathologica--origem invluntaria, angustia,
irrisistibilidade, satisfação consecutiva, estão realisados, O que
provocou a apparição d'estes caracteres? Em primeiro logar, as
systematisações determinadas pela idéa obsessiva, em segundo, a lucta
d'ellas com as systematisações normaes. Se a idéa obsessiva fosse
incapaz de provocar systematisações, se fosse indifferente, ter-se-hia
dissipado sem vestigios conscientes, como no caso que primeiro
figuramos; se, por outro lado, uma forte lucta se não tivesse realisado
entre antinomicos grupos ou systemas de factos psychicos, não existiria
angustia concomitante, nem satisfação consecutiva. A obsessão deu-se,
pois, á custa, de uma dissociação parcial e transitoria do Eu. Alarmada
e impotente, a consciencia assistiu ao desdobramento de um acto reflexo;
clara ao principio, ella obscureceu-se um instante--aquelle precisamente
em que todo o vasto e harmonico systema de idéas, de affectos e
impulsos, que constituem o Eu, se deixou vencer pelo systema antagonista
creado pela idéa imposta.

Que esta seja impulsiva, emotiva ou meramente abstracta, pouco importa,
de resto; o quadro dos symptomas da obsessão é em todos os casos o
mesmo, desde que se estabelece lucta entre systematisações pathologicas
e normaes. É n'esta lucta que reside o caracter essencial da obsessão;
tudo o mais é secundario e derivado.

Imaginemos, por exemplo, que a idéa de matar surge no espirito de um
criminoso-nato. Não encontrando em face d'ella, a offerecer-lhe
resistencia, a longa série de systematisações que se comprehendem na
designação synthetica de _senso moral_, essa-idéa exteriorisar-se-ha de
um modo puramente reflexo e automatico; fallaremos, então, de impulso
morbido, mas não será licito pronunciar o nome de obsessão.

Figuremos ainda que uma idéa, embora não derivada do jogo normal e
logico do pensamento, é de natureza a lisongear os nossos gostos, as
nossas aspirações, os nossos desejos. Insubsistentes e chimericas, as
systematisações, ás vezes complicadas e extensas, que ella gera ao
irromper no nosso espirito, não provocam, todavia, uma lucta, é o estado
de espirito assim creado não póde chamar-se obsessão. Tal é o caso da
_réverie_, dos castellos no ar, de toda essa phantasiosa ideação em que,
a despeito do testemunho contradictorio da realidade, nos deixamos
apanhar involuntariamente. Quem, apenas remediado ou pobre, se não
sentiu uma vez tomado, sem saber como ou porque, da idéa de opulencia, e
não partiu d'ahi para o sonho dos palacios, das equipagens, da arte, da
phylantropia? Comquanto anomalo e inutil, este estado de espirito não é
obsessivo, porque não provoca urna _lucta_ de systematisações.

Esta é, pois, repetimol-o, o signal, o seguro indicador da
obsessão:--aquillo em que ella essencialmente consiste. Mas não poderá
essa lucta, que de ordinario se renova, dando ás obsessões um caracter
_intermittente_, cessar pela victoria definitiva das systematisações
pathologicas, o que equivale a dizer--pela constituição de um delirio?
Cremos que sim; e para comprehendel-o basta admittir que a idéa
obsessiva é, na esphera inconsciente de que procede, um forte centro de
systematisações organisadas, capazes não só de vencerem a resistencia
das systematisações normaes, mas de as desviarem em proveito proprio.

Já a victoria intermittente da obsessão sobre as systematisações
normaes denuncía a existencia de ignoradas estratificações psychicas,
tão extensas e importantes, comtudo, que podem por força propria ou por
fraqueza das suas antagonistas, provocar uma dissociação do Eu e n'um
dado instante occupar todo o campo da consciencia. Que se supponha maior
a sua força e menor ao mesmo tempo a das systematisações normaes
inhibitorias, e o triumpho será definitivo, porque toda a esphera
consciente não conterá mais do que associações pathologicas. Teremos o
delirio systematisado; e então, bem evidentemente, a dissociação do Eu,
que na obsessão é passageira, tornar-se-ha definitiva, substituindo-se á
personalidade normal vencida uma outra vencedora.

Mas d'onde vem esta e como se formou? Eis o que a doutrina da evolução
permitte explicar. Na sua lenta e progressiva constituição, a
personalidade humana encontra-se successivamente representada por
systematisações psychicas de uma complexidade crescente, isto é, por
associações e inhibições cada vez mais extensas, traduzindo a acção do
mundo sobre o Eu e a reacção d'este sobre o mundo. Cada nova
systematisação formada, integrando elementos psychicos, é uma satisfação
dada ás naturaes affinidades d'estes; cada nova inhibição realisada,
dissociando elementos psychicos, provoca a formação de outras
systematisações em que ellas vão achar novamente logar e novamente
satisfazer uma affinidade propria. Assim se formam lentamente, mercê da
hereditariedade, que capitalisa as conquistas do espirito, successivas
estratificações systematicas de idéas, de emoções, de impulsos, n'uma
palavra, successivas _tendencias_, que representam em momentos dados um
espirito, um Eu, uma personalidade, emfim.

As estratificações mais recentes são tambem as menos organisadas e as
mais instaveis; os systemas de que ellas se compõem, contrariando em
grande parte antigas e habituaes affinidades dos elementos psychicos,
subsistem n'um equilibrio que só o tempo tornará estavel. Mas o tempo,
quando se trata de evolução, não é a vida de um individuo, é a de
gerações seguidas; é, pois, necessario para que a estabilidade psychica
de uma personalidade se realise que a herança se faça sempre n'um mesmo
sentido, que a orientação ou finalidade do espirito não seja perturbada.
Se este facto se não dá, a estratificação mais antiga sobreleva a mais
recente e atravez d'ella rompe total ou parcialmente. Cada personalidade
é, pois, n'um dado momento a juxtaposição de subpersonalidades relegadas
para o inconsciente, mas tenazes, persistentes, susceptiveis de uma
integral ou parcial revivescencia. Por traz do _individuo_, que
representa as ultimas acquisições de uma civilisação, está a _especie_,
que representa todas as systematisações procedentes da acção lenta do
meio, capitalisada pela herança.

N'esta ordem de idéas, as obsessões e os delirios systematisados
apparecem-nos _como resurreições parciaes e mais ou menos extensas de um
Eu ancestral_. É da lucta que se estabelece entre este e o Eu de
recente formação que derivam, de um lado, a _angustia_ que acompanha as
obsessões e o allivio que lhes succede quando a _détente_ se realisa, do
outro, a _inquietação_ dolorosa que faz cortejo aos delirios
systematisados na sua phase inicial e a tranquillidade relativa que
depois surge quando o paranoico definitivamente adquire uma convicção,
uma crença, quando, na phrase justa dos alienistas francezes, elle sabe,
emfim, _à quoi s'en tenir_.

Mas como, repetimol-o, a lucta é tanto menos intensa quanto mais forte é
o Eu ancestral e mais instavel o de recente formação, a _angustia
obsessiva_ e a _inquietação paranoica_ podem reduzir-se a
insignificantes proporções: tal é o caso dos impulsos nos criminosos
habituaes e dos delirios _d'emblèe_ nos paranoicos originarios.



VII--A PARANOIA E A DEGENERESCENCIA

Extensão do conceito de degenerescencia; desaccordo dos auctores--Causas
de degenerescencia; opiniões diversas--A degenerescencia e a observação
clinica; modo de vêr de Magnan; opinião de Krafft-Ebing--Necessidade de
um ponto de vista geral; seu caracter anthropologico--A definição de
Morel; o seu defeito essencial--A noção do atavismo em psychiatria; as
idéas de Magnan e a sua falta de fundamento--Ponto de vista de Tanzi e
Riva; documentos justificativos--A Paranoia é uma degenerescencia.


Tem ainda hoje nos livros da especialidade um caracter eminentemente
obscuro e vago a noção da _degenerescencia_. Nada o prova melhor que o
conjuncto de contradictorias opiniões sobre a sua mesma extensão e sobre
as suas origens.

Que psychopatas abrange a degenerescencia?

Emquanto certos auctores, á maneira de Mendel, só consideram degenerados
aquelles que, pela presença de estygmas physicos de uma extrema
decadencia, profundamente se afastam do typo humano commum, outros ha
que seguindo a tradição de Morel, descobrem a degenerescencia onde quer
que surjam indicios de uma constitucional desharmonia de funcções
psychicas, de um originario desequilibrio mental, ainda quando
inteiramente compativel com a vida collectiva e mesmo com parciaes
superioridades de intendimento.

O terreno que pizam os primeiros tem tanto de seguro e incontroverso
quanto de infecundo: reduzida a cobrir, o grupo dos idiotas, alguns
loucos moraes, physicamente disformes, e um ou outro delirante precoce,
somaticamente estygmatisado, a degenerescencia é um conceito inerte, sem
valor em clinica e sem applicações em nosologia psychiatrica.
Suggestivo, o ponto de vista dos segundos é, todavia, impreciso, como o
revella a comparação dos auctores, pois que, os mesmos loucos são,
segundo uns e deixam de ser, segundo outros, comprehendidos no grupo dos
degenerados. Assim, emquanto para Magnan não são degenerados uns certos
paranoicos, os delirantes chronicos, para Krafft-Ebing são-no todos,
como vimos; assim, os intermittentes, que a grande maioria dos auctores
allemães e italianos consideram como exemplares degenerativos, formam
para Magnan um grupo de transição entre os degenerados e os
psychonevroticos; assim, ainda, os obsessivos, que para o psychiatra
francez são sempre degenerados, não passam aigumas vezes para Morselli
de neurasthenicos vulgares.

Este grave desaccordo sobre a extensão do conceito, repete-se desde que a
questão etiologica se aborda.

Que origens reconhece a degenerescencia?

Ao passo que uns, como J. Falret, exclusivamente incriminam a
hereditariedade na producção dos degenerados, outros responsabilisam,
como Cotard, as doenças infantis, como Boucherau, as doenças do feto, ou
ainda, como Christian, o estado mental dos paes no acto da procreação.
Pelo seu lado, Magnan reconhece todas estas causas, considerando,
todavia, preponderante e typica a hereditariedade,

Ora, para se poder fallar da hereditariedade, como agente de psychoses
degenerativas, quando se sabe que ella é a causa por excellencia de
todas as doenças mentaes, seria necessario possuir-se um meio de
determinar _à priori_ o momento em que ella deixa de ser uma simples
_predisposição_ generica para tornar-se um factor especial de anomalias
psychicas; por outros termos, seria necessario precisar onde começa o
que Magnan denomina a _impregnação hereditaria_.

Se isto fosse possivel, teriamos na etiologia um excellente criterio
para separar as loucuras degenerativas das que o não são: todas as
fórmas nosologicas exhibidas por loucos impregnados de herança
pertenceriam ao primeiro grupo, como pertenceriam ao segundo as
exteriorisadas por simples predispostos. A analyse clinica,
denunciando-nos depois a symptomatologia e a marcha das psychoses dos
dois grupos, dar-nos-hia meios de reconhecer as equivalencias
hereditarias, se ellas existem, como pretendem Boucherau, Cotard e
Christian. Nada mais simples: dado que uma psychose offerecesse os
caracteres peculiares das hereditarias, seria um degenerado o seu
portador; e, quando a herança morbida não podesse ser incriminada,
outras causas teriam de invocar-se de _igual valor pathogenico_.

Mas, precisamente succede que ninguem ainda determinou, nem _à priori_
parece determinavel a tara hereditaria em que a _predisposição_ acaba e
a _impregnação_ começa.

Nem o _numero_ de psychoses ancestraes, nem a sua _convergencia_ nas
duas linhas de progenitores constituem motivo sufficiente para affirmar
a impregnação hereditaria e a degenerescencia de um louco, pois que a
pratica nos depara ás vezes alienados que, tendo, aliás, uma pesada
herança psychopatica n'uma das linhas directas ou mesmo uma herança
convergente, exhibem fórmas nosologicas insusceptiveis de se
distinguirem,--quer pelos symptomas, quer pela marcha, quer, emfim, pela
terminação, das psychonevroses puras, isto é, das loucuras accidentaes,
das loucuras dos simples predispostos.

Em contraste com estes casos, outros apparecem de um caracter
univocamente admittido como degenerativo, em que, todavia, a analyse
clinica, até onde ella póde ser feita, não surprehende mais do que uma
psychose em qualquer das linhas directas ou collateraes; isto succede,
não raro, nos debeis e imbecis, procedentes de pae ou mãe alcoolicos.

Dir-se-ha, talvez, que n'estas considerações abusivamente restringimos o
papel e alcance da hereditariedade, fallando apenas de psychoses
ancestraes, quando deveriamos com os auctores contemporaneos fallar
tambem, pelo menos, das nevropatias.

Mas quem não vê que n'este novo terreno o problema se complica sem se
resolver? Que para a tara hereditaria de um louco contribuam sómente as
psychoses ancestraes ou tambem as nevropatias, ou ainda, generalisando,
as diatheses, é seguro que jámais se determinará _á priori_, onde a
_predisposição_ termina e a _impregnação_ principia.

Tacita ou explicitamente é isto reconhecido pelos proprios auctores que,
á maneira de Magnan e de Krafft-Ebing, assignalam á degenerescencia uma
pluralidade de causas. Buscando na observação clinica dos symptomas e na
marcha das affecções mentaes os indicios da degenerescencia, é evidente
que elles abandonam o exclusivo criterio etiologico.

Mas se, d'este modo, uma fonte de divergencias cessa, outra, como vamos
vêr, immediatamente surge.

Que anomalias symptomaticas e evolutivas da mentalidade psychiatrica
deverão ser consideradas como indicios ou estygmas de degenerescencia?

A este proposito um evidente desaccordo recomeça. Não sendo as doenças
mentaes em si mesmas senão anomalias do espirito, o problema posto é o
de procurar a anormalidade no anormal. Com que criterio?

Magnan não hesita em adoptar _o estado mental_ do louco antes da invasão
da psychose. Ouçamos as suas proprias palavras: «O grande grupo dos
predispostos simples, faz-se notar por um caracter essencial,
invariavel, pathognomonico: até ao dia em que cahem na loucura, os
doentes que o formam são julgados _normaes_; comparados aos individuos
que nunca se tornam alienados, nenhuma differença apparente revellam. É
que n'elles a predisposição não adquiriu ainda um grau sufficiente para
se traduzir em caracteres especificos. Esta predisposição é latente e
não produziu senão um resultado: fazer do cerebro um logar de menor
resistencia e um terreno favoravel, crear uma situação em virtude da
qual as causas de desorganisação do equilibrio intellectual terão uma
influencia mais marcada do que em outros e uma acção mais duradoura e
mais energica. O factor _predisposição_ é evidentemente muito variavel
como importancia; o seu valor não póde apreciar-se, á falta de criterio
proprio, a não ser entre dois casos extremos. Como quer que seja, a
resistencia cerebral dos predispostos deve variar em razão inversa da
importancia do factor _predisposição_ ... N'uma outra grande divisão dos
predispostos, collocamos os doentes cuja personalidade intellectual e
moral é completamente transformada desde a base desde o nascimento pelo
facto da aggravação progressiva do factor _predisposição_. Este grupo
comprehende os predispostos com _degenerescencia_»[1].

  [1] Magnan et Legrain, _Les dégénérés_, pag. 58.

Nada, como se vê, apparentemente mais claro: emquanto o simples
predisposto é um ser _normal_ até á invasão da doença psychica, o
degenerado é _ab ovo_ um ser anormal. Resta sómente determinar em que
essa anormalidade consiste. Eis como Magnan se explica a este proposito:
«Nos degenerados, a predisposição, qualquer que seja a sua natureza
(hereditaria ou adquirida), produziu uma perturbação profunda das
funcções psychicas. Desde a origem, desde o nascimento, fazem-se elles
notar por anomalias quer do sentimento quer da intelligencia, dos
instinctos e das inclinações, quer de todas estas espheras ao mesmo
tempo. Adquiriram estygmas que os fazem reconhecer immediatamente e
agrupar á parte. Além d'isso a tara degenerativa, de que são portadores,
traduz-se muitas vezes por anomalias physicas, cuja significação vem
junctar-se á das anomalias psychicas concomitantes. Todos estes estygmas
são permanentes, nascem com o individuo e só com elle se extinguem. Em
caso algum, estes doentes pensam, sentem ou actuam como os individuos de
cerebro normal ou como os predispostos simples. Degenerados por
accumulação de taras hereditarias, na quasi totalidade dos casos, podem
sel-o, comtudo, algumas vezes pela intervenção de momentos etiologicos
potentes, cuja acção desorganisadora se exerce sobretudo nas épocas da
evolução cerebral, isto é, na primeira infancia: doenças agudas graves,
taes como a variola, a escarlatina e a febre typhoide, acompanham-se de
lesões cerebraes irreparaveis. Póde-se admittir ainda a acção
degenerativa das doenças fetaes, dos traumatismos, n'uma palavra, de
todas as causas sufficientemente fortes para lesar materialmente os
centros nervosos ou para impedir o seu desenvolvimento. Mas, qualquer
que seja a causa degenerativa, hereditaria ou adquirida, os productos
são identicos, e entre si comparaveis; são portadores de caracteres
clinicos proprios a fazel-os reconhecer em todos os casos, e
significativos da tara hereditaria. Comparados aos seus ascendentes
directos, differem d'elles totalmente no ponto de vista das aptidões
cerebraes: encontram-se visivelmente n'uma situação mental inferior; são
seres novos, anormaes, de mecanismo cerebral falseado. A sua situação
mental define-se n'uma palavra: o equilibrio entre todas as funcções
cerebraes acha-se destruido e não póde recuperar-se. Fóra mesmo dos
casos de verdadeira alienação, esta falta de equilibrio é flagrante.
Quando deliram, as suas concepções revestem caracteres pathognomonicos:
surgem ás menores causas occasionaes, indicio de extrema instabilidade
do equilibrio mental. Fóra das causas moraes, cuja influencia é aqui
preponderante em razão da extrema emotividade particular d'estes
individuos, os proprios momentos physiologicos--a puberdade, a
menopause, os menstruos, a prenhez, são causas de perturbação cerebral.
N'elles, as doenças geraes acompanham-se frequentemente de delirio; o
cerebro tornou-se o _locus minimae resistentiae_. Os accessos delirantes
não teem uma evolução propria: affectam todas as fórmas possiveis e
substituem-se com a maior facilidade. A systematisação e a cohesão das
concepções delirantes é muito fraca. Não existe nenhuma tendencia á
systematisação progressiva. Emfim, os degenerados de maior tara são
candidatos a uma demencia precoce, quer primitiva, quer
post-delirante»[1].

  [1] Magnan et Legrain, _Obr. cit._, pag. 60 a 62.

Como se infere d'estas passagens, que citamos _in extenso_, porque
resumem toda a doutrina da Escóla de Sant'Anna sobre o assumpto, não ha
verdadeiramente, como poderia parecer, um só criterio, _à posteriori_, o
estado mental predelirante, para determinar a presença da
degenerescencia, mas muitos. Ao lado, com effeito, de uma estygmatisação
psychica, essencialmente consistindo n'um original e irreparavel
desequilibrio de funcções cerebraes, apparece-nos a estygmatisação
somatica, a feição polymorpha e a marcha irregular do delirio, e, ainda,
a desproporção entre a causa occasional, que incide sobre o prediposto,
e o effeito que ella produz.

Ora, não é inteiramente facil conjugar entre si todos estes criterios.

Se o degenerado é, como Magnan proclama, um _predisposto maximo_, e se o
grau de predisposição é inversamente proporcional ao das causas
occasionaes, porque não é degenerado o delirante chronico, no qual uma
vesania irreparavel e perpetua surge as mais das vezes sem causa?
Responderá Magnan que o delirante chronico é normal até á invasão da
vesania. Mas quem não vê que, se o eminente alienista se não engana,
affirmando tal, os seus dois criterios brigam? Por outro lado, como já
vimos tambem, a estygmatisação physica apparece algumas vezes nos
delirantes chronicos. Como conciliar, n'estes casos, o criterio das
anomalias somaticas, indicando degenerescencia, com o da systematisação
progressiva do delirio, que a exclue?

Por outro lado, ainda, se o desequilibrio psychico é a principal
caracteristica das degenerescencias, porque não considerar degenerados
os hystericos e os epilepticos, tão profundamente desharmonicos sempre
não manifestações da vida cerebral?

O criterio clinico de Krafft-Ebing é mais extenso que o de Magnan. A
presença de um estado de desequilibrio mental antes da invasão da
doença, sendo para o psychiatra allemão de uma altissima importancia,
não constitue; comtudo, como para o francez, um caracter essencial e
imprescindivel do diagnostico da degenerescencia. Fazendo, com enfeito,
a distincção entre os predispostos simples e os degenerados,
Krafft-Ebing escreve: «Póde ser objecto de discussão saber se um
individuo normal até ao apparecimento da psychose, mas procedente de
geração psychopatica, deve collocar-se n'um ou n'outro grupo»[1]. O
valor maior ou menor da causa occasional póde servir para dissipar as
duvidas a este proposito, pois que um dos caracteres distinctivos das
psychoses dos degenerados reside precisamente no facto da sua eclosão
espontanea ou sob a influencia de minimos agentes provocadores. Este
criterio, sobrelevando, na doutrina de Krafft-Ebing, o da presença de um
desequilibrio mental anterior á psychose, alarga o ambito da
degenerescencia, introduzindo ahi doenças, que Magnan excluiria sob
pretexto da normalidade do individuo até á invasão d'ellas. Estão n'este
caso, por exemplo, alguns delirios systematisados post-menopausicos.

  [1] Krafft-Ebing, _Trattato clinico pratico delle malattie mentali_,
  trad. It., vol. II, pag. 3.

Krafft-Ebing separa-se ainda de Magnan, fazendo da periodicidade um dos
signaes das psychoses degenerativas, no que é seguido por consideravel
numero de psychiatras.

Os confrontos e citações feitos bastam para mostrar como são numerosas
as dissidencias dos auctores sobre a constituição nosologica do grupo
dos degenerados.

Concluiremos com Pierret que a _degenerescencia não é uma doutrina
medica_ e que _deve reputar-se um crime ensinal-a?_. A nosso vêr, tem
tanto de radical e temeraria, como de estreita, uma similhante opinião;
proclamal-a, equivale a desconhecer que a maior parte dos progressos
theoricos da psychiatria se devem precisamente á introducção d'esse
conceito, que, ainda vago e controvertido, póde, comtudo, precisar-se.
Porque, devemos notal-o, se as divergencias á hora actual são muitas,
não são poucos, nem de insignificante valor no terreno da nosologia, os
pontos sobre que se estabeleceu um definitivo accordo. O que a nós se
nos affigura é que todas as difficuldades e todos os debates n'este
assumpto procedem exclusivamente da falta de um ponto de vista geral e
superior.

Quer considerem a degenerescencia nas suas causas, quer nas suas
manifestações clinicas, teem os alienistas contemporaneos tratado esta
noção como se ella houvesse nascido no terreno da psychiatria e d'elle
fosse tributaria, quando a verdade é que, referivel a todos os seres
vivos, ella pertence á biologia, onde tem um significado que não é
licito esquecer, e que, nos seus traços essenciaes, deverá subsistir,
quaesquer que sejam as suas applicações.

Isto viu lucidamente Morel, quando, ao trazer para a pathologia mental
essa noção, subordinou o seu sentido psychiatrico ao anthropologico, e
este ao da biologia. Infelizmente, o preconceito religioso não permittiu
a este homem de genio fazer de um modo correcto essa subordinação, em si
mesma necessaria e eminentemente philosophica.

O que é, na sua inicial accepção biologica, a degenerescencia? O desvio
pejorativo de um typo natural, a perda, no individuo, das qualidades
caracteristicas da especie. Anthropologicamente considerada, a
degenerescencia não póde, pois, significar senão a inferioridade do
individuo em relação ao typo natural humano. Mas qual é esse typo? Foi a
este proposito que na doutrina de Morel se insinuou o prejuizo
theologico: esse typo, conservado nas tradições sagradas, teria sido o
homem primitivo, paradisiaco depositario de todas as perfeições
especificas, mas condemnado, _pelo grande facto da queda original_, a
condições degradantes de lucta com a natureza.

A conclusão a tirar d'este modo de vêr, seria que todos os homens são
degenerados; e se, com gravissima offensa da logica, Morel a evitou, não
foi senão introduzindo abusivamente a noção de _doença_ no conceito de
degenerescencia, que define como _desvio morbido de um typo primitivo_.
A que vem aqui o extranho qualificativo? Se existiu um typo humano
especificamente perfeito, que as condições, para elle novas, de
conflicto com o mundo começaram a degradar, é evidente que essas
condições, pezando sobre os seus descendentes e imprimindo-lhes
caracteres, que a hereditariedade transmitte, são causas para todos
elles de mais ou menos extensos desvios. E estes, ou são sempre morbidos
ou não o são nunca.

Para escapar a esta conclusão, distinguiu Morel entre si essas causas
degradativas, affirmando que umas se limitam a provocar variedades ou
_raças_, emquanto outras conduzem a verdadeiras _monstruosidades_, de
existencia felizmente limitada por uma maravilhosa e providencial
esterilidade. D'estas duas ordens de desvios, só os ultimos
constituiriam degenerescencias, segundo Morel.

Faz dó vêr um homem de genio a debater-se contra phantasmas; e mais
entristece reconhecer que os seus erros se transmittiram até nós,
reapparecendo em trabalhos contemporaneos, como os de Magnan.

Quem não vê que os iniciaes desvios de typo normal, qualquer que elle
seja, podem, por condições imprevistas de cruzamento, progredir ou
attenuar-se? E, sendo assim, quem não vê tambem que uma anomalia de
ordem psychica ou moral póde tanto desvanecer-se nos descendentes como
transmittir-se e accentuar-se até á monstruosidade? O proprio Morel,
reconhecendo a tendencia da natureza á reconstituição do typo especifico
normal, admittiu a _regeneração_ ao lado da _degenerescencia_. A
monstruosidade não é, pois, a degenerescencia mesma, mas o seu termo, o
seu limite, aquillo para que no processo degradativo se caminha, dadas
infelizes condições geradoras.

Mas, se o criterio de Morel foi falseado pela intervenção de um extranho
elemento religioso, é certo que a sua maneira de atacar o problema é a
unica legitima.

É, com effeito, como um desvio do typo humano que a degenerescencia tem
de ser definida em anthropologia. Sómente, esse typo tem de ser
procurado, não nos dominios da tradição e para traz de nós, mas no
terreno da previsão scientifica e para diante. Não sendo o homem
primitivo da lenda, que a anthropologia reduziu ás humildes proporções
de um animal apenas differenciado dos mamiferos superiores, esse typo é
um ideal para que podemos suppôr que a humanidade caminha e de que, na
sua evolução, procura incessantemente approximar-se.

Mas como determinar-lhe os attributos sem cair nas incertezas da
phantasia? Surprehendendo as linhas de evolução physica e psychica da
nossa especie a partir d'esse remoto representante selvagem até hoje.
Assim, para só fallarmos da evolução psychica, nota-se que,
intellectualmente, o homem partiu da ideação theologica para attingir a
scientifica, que, nos dominios do sentimento, derivou de um egoismo
feroz para chegar a affectos altruistas, emfim, que, no campo da acção,
procedeu de um automatismo impulsivo para conquistar a vontade.
Conhecida esta orientação, está achado o meio de approximadamente
constituir o typo, cujos regressivos desvios, sejam quaes forem as
causas que os provoquem, constituem degenerescencias no sentido
anthropologico do termo.

Este sentido, porém, não é precisamente o da psychiatria.

Anthropologicameme considerada, a loucura é sempre uma degenerescencia,
porque em todas as suas multiplas fórmas implica um desvio regressivo,
total ou parcial, extenso ou limitado, provisorio ou definitivo do typo
que definimos.

Psychiatricamente, porém, não é assim. Se o desvio é reparavel dentro da
vida individual, se elle constitue um accidente ephemero, dependendo
muito menos de uma falta inicial e congenita de resistencia do que da
gravidade e continuidade das causas productoras, a loucura não se
considera degenerativa; é-o, pelo contrario, se constitue um estado
irreparavel, subsistente, espontaneo ou derivado de insignificantes
causas e accusando, portanto, uma inferioridade constitucional.

Mas já nas loucuras não degenerativas, nas psychonevroses, o germe da
degenerescencia existe; cruzamentos infelizes o desenvolverão na
descendencia, mercê da hereditariedade; e eis porque, podendo ter as
mais variadas causas, as loucuras degenerativas teem sido chamadas
_hereditarias_. Por outro lado, nas fórmas degenerativas menos graves, a
regeneração é ainda possivel, mercê de cruzamentos felizes, pois que a
hereditariedade tanto capitalisa as boas como as mas tendencias. Isto é
dizer que a distincção psychiatrica das psychonevroses e das
degenerescencias não tem nada de absoluta, desde que, em vez de
considerarmos os casos extremos das duas escalas, fixamos os mais
proximos.

Dizer com Magnan que o _atavismo_ não implica degenerescencia, porque um
typo regressivo seria _normal_, emquanto que um degenerado é um
_doente_, que o primeiro, entregue a si, caminharia para diante, como
fizeram os o contemporaneos da época por elle representada, ao passo que
o segundo marcharia para a extincção pela infecundidade, é commetter um
duplo erro: não comprehender que o atavismo humano é sempre parcial e
incompleto, consistindo na revivescencia _d'algumas_ qualidades
ancestraes, e não reconhecer que a regeneração aos degenerados
superiores se torna, em certas condições, possivel. Pois é acaso fatal
que a descendencia de um phobico ou de um impulsivo, que são para Magnan
incontestaveis degenerados, venha a liquidar pela idiotia esteril?

E esse phobico e esse impulsivo não são, pelo facto mesmo do seu
_terror_ e do seu _automatismo_ indisciplinado, exemplares de atavismo
parcial?

Comprehende-se que, a não fazermos um livro do que deve ser apenas um
final capitulo d'este _Ensaio_, nos cumpre suspender considerações, que
o assumpto comporta, mas que se não prendem immediatamente com o nosso
thema. O que acabamos de dizer sobre as degenerescencia em geral,
conjugando-se com o que foi dito sobre o atavismo intellectual dos
delirantes systematisados, justifica largamente a conclusão de que a
Paranoia é uma degenerescencia.



BIBLIOGRAPHIA


TRABALHOS FRANCEZES:


FOVILLE--_La folie avec prédominence du délire des grandeurs_;

GARNIER--_Des idées de grandeur dans le délire de persécutions_;

GÉRENTE--_Du délire chronique_;

KÉRAVAL--_Des délires plus on moins coherents designés sons le nom de
Paranoia_ (Archives de Neurologie, vol. XXIX);

LEGRAIN--_Du délire chez les dégénérés_;

LASÈGUE--_Le délire de persécutions_;

MAGNAN--_Le délire chronique à evolution systematique_;

MAGNAN--_Leçons cliniques sur les maladies mentales_;

MAGNAN ET LEGRAIN--_Les dégénérés_;

RÉGIS--_Manuel pratique de médecine mentale_;

SÉGLAS--_La Paranoia_ (Archives de Neurologie, vol. XIII).



TRABALHOS ALLEMÃES:


CRAMER--_Abgrenzung und Differencial Diagnose der Paranoia_ (Allg.
Zeitschr. f. Psychiatrie, vol. II);

FRITSCH--_Die Verwirrtheit_ (Jahbücher f. Psych., vol. II);

KRAFFT-EBING--_Lehrbuch der Psychiatrie_;

KRAEPELIN--_Compendium der Psychiatrie_;

MEYNERT--_Klinische Vorlesüngen über die Psychiatrie_;

MENDEL--_Paranoia_ (Real Encyclopedie);

MERKLIN--_Studien über die primäre Verrücktheit_;

SCHÜLE--_Klinische Psychiatrie_;

SALGO--_Compendium der Psychiatrie_

WERNER--_Die Paranoia_.



TRABALHOS ITALIANOS:



AMADEI E TONNINI--_La Paranoia e la sue forme_ (Archivio italiano per le
malattie nervose, 83-84);

BUCCOLA--_Sui delirii sistematisati_ (Rivista di Freniatria, vol. VIII);

TANZI--_La Paranoia_ (Rivista di Freniatria, vol. x);

TANZI E RIVA--_La Paranoia_ (Rivista di Freniatria, vol. X, XI e XII);

TONNINI--_La Paranoia secundaria_ (Rivista di Freniatria, vol. XIII).



TRABALHOS INGLEZES E NORTE-AMERICANOS:


CLOUSTON--_Clinical lectures on mental diseases_;

HAMMOND--_A Treatise on insanity_;

HAC TUKE AND BUCKNILL--_A Manual of Psychological medicine_;

MAUDSLEY--_Pathlogy of Mind_;

SPITZKA--_A Manual of Insanity_.



INDICE

PREFACIO



PRIMEIRA PARTE

HISTORIA DOS DELIRIOS SYSTEMATISADOS


I--PHASE INICIAL

De Areteo a Esquirol--Confusão dos delirios systematisados com a
melancolia--A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e
expansiva.


II--PHASE ANALYTICA

De Lasègue a J. Falret e de Griesinger a Snell e Sander--O delirio de
perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit
secundaria; a Verrücktheit originaria--Começo de interpretação
pathogenica.


III--PHASE SYNTHETICA

De Morel a Magnan; de Westphal a Cramer; de Buccola a Tanzi e Riva--A
loucura hypocondriaca; o delirio chronico; a loucura parcial; a
Verrücktheit aguda e chronica; a Paranoia; a delusional
insanity--Determinação pathogenica.



SEGUNDA PARTE

EXAME CRITICO DO CONCEITO DE PARANOIA


I--O DELIRIO CHRONICO

A etiologia; a marcha; o prognostico--Confronto com os delirios
polymorphos--A passagem do periodo persecutorio ao ambicioso não é
vulgar; a passagem á demencia é excepcional--O delirante chronico é um
degenerado; importante observação pessoal--A prognose dos delirios
polymorphos é muitas vezes a do Delirio Chronico--Dois conceitos de
Delirio Chronico no espirito de Magnan; génese do segundo.


II--A VERRÜCKTHEIT AGUDA

Dois grupos de psychoses sob a mesma designação; a confusão mental e os
delirios polymorphos--A Verrücktheit e os delirios incoherentes, critica
das opiniões de Schüle--A Verrücktheit e os delirios systematisados de
marcha aguda; a critica das opiniões de Krafft-Ebing--Observação
pessoal--Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.


III--A VERRÜCKTHEIT SECUNDARIA

Os delirios systematisados que succedem ás psychonevroses; sua
interpretação pathogenica--A opinião de Tonnini; modificação introduzida
--Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.


IV--O RACIOCINIO E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erros doutrinarios de Lasègue e Foville sobre a interpretação
pathogenica dos delirios systematisados; como se perpetuaram na
psychiatria francesa--A autoobservação e o raciocinio não representam um
papel na génese dos delirios paranoicos--Depoimento dos factos--A
primitividade dos delirios paranoicos; sua origem ideativa.


V--AS ALLUCINAÇÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS

VI--AS OBSESSÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS.

VII--A PARANOIA E A DEGENERESCENCIA

Extensão do conceito de degenerescencia; desaccordo dos auctores--Causas
de degenerescencia; opiniões diversas--A degenerescencia e a observação
clinica; modo de vêr de Magnan; opinião de Krafft-Ebing--Necessidade de
um ponto de vista geral; seu caracter anthropologico--A definição de
Morel; o seu defeito essencial--A noção do atavismo em psychiatria; as
idéas de Magnan e a sua falta de fundamento--Ponto de vista de Tanzi e
Riva; documentos justificativos--A Paranoia é uma degenerescencia.


BIBLIOGRAPHIA





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