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Title: A Engomadeira - Novela Vulgar Lisboeta Author: Negreiros, José Sobral de Almada, 1893-1970 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A Engomadeira - Novela Vulgar Lisboeta" *** José de ALMADA-NEGREIROS +a ENGOMADEIRA+ NOVELA VULGAR LISBOETA +ENGOMADEIRA+ +De José de ALMADA-NEGREIROS, Pintor:+ +THEATRO+: _+O MOINHO+_, ao pintor Eduardo Afonso Viana. Tragedia em 1 ato. _+23, 2.^o ANDAR+_, ao snr. Gualdino Gomes. 3 atos, Drama. _+PENSÃO DE FAMILIA+_, a João do Amaral. 2 actos, grand-guignol. _+LENDA D'IGNEZ, a linda que não soube que foi rainha+_, a M.^elle M. G. C. M. (S. T.). Prologo e 3 atos, Bailado. _+BAILADO DA FEIRA+_, a Alexandre Rey Colaço. Prologo e 3 atos, Bailado. _+LE SECRET DES POUPÉES+_, (original francez)--1 ato, Bailado. NOTA: Nos Bailados, as partituras, liberetos, décors, costumes etc., são criações de RUY COELHO, JOSÉ PACHEKO e José de ALMADA-NEGREIROS. _+A CIVILISADA+_, a Amelia Rey Colaço. 4 atos, Drama. +LITTERATURA+: _+O MENDES+_, a Christiano Cruz. Novella. _+A ENGOMADEIRA+_, a José Pacheko. Novella-vulgar lisboeta. _+A SCENA DO ODIO+_, por José de ALMADA-NEGREIROS poeta sensacionista e Narciso do Egypto. a Alvaro de Campos. (ORPHEU 3) _+SALTIMBANCOS+_, a Santa Rita Pintor, Contrastes simultaneos. (PORTUGAL FUTURISTA 1) _+MIMA FATAXA, SYMPHONIA COSMOPOLITA E APOLOGIA DO TRIANGULO FEMENINO+_, a ti pra que não julgues que a dedico a outra. (PORTUGAL FUTURISTA 1) NOTA: O PORTUGAL FUTURISTA N.^o 1 foi aprehendido pela policia apesar de respeitadas todas as formalidades legais. _+10 Poemas Portuguezes+_, por M.^me Sonia Delaunay-Terk e José de ALMADA-NEGREIROS. _+K4 O QUADRADO AZUL+_, ao pintor Amadeo de Souza-Cardoso. _+JOSE+_, a meu pae. Romance. +ORIGINAES FRANCEZES+: _+BALLET VERONÈSE ET BLEU+_, à M.^me Sonia Delaunay-Terk, Suite-Style des métal-couleurs. +LA FEMME ELECTRIQUE+: Superlatif d'elle ELLE ELLE. 3 poses--Divulgation Luxe Extra-Luxe. Invention Europe 1917. Made in Europe. ALMADA, inventeur futuriste de l'ARTIFITIAL CO, LTD. Catalogue confidentiel 1917 net. Ce catalogue annule les précédents. 30 planches. _Meu caro José Pacheko Ahi vae a minha Engomadeira. Terminei-a em 7 de janeiro de mil novecentos e quinze e desde esta data foi agora a primeira vez que a reli. Reconheço que este meu trabalho que eu muito estimo já não representa hoje em dia a avaliação do meu esforço, porêm usa muito da minha intuição por isso que a tutélo. Reli-a, e se bem que a acceleração das imagens seja por vezes atropelada, isto é, mais expontaneamente impressionista do que premeditadamente, não desvia contudo, a minha intensão de expressão metal-synthetica Engomadeira, em todos os seus 12 capitulos onde interseccionei evidentes aspectos da desorganização e descaracter lisboetas. V. sabe bem quanto eu contradigo a minha obra anterior, mas tambem sabe que se a contradigo não a renego nunca. Na Engomadeira não tenho a notar mais que a minha insuficiencia litteraria até 7 de Janeiro de 1915, pois que, quanto á desorganização e descaracter lisboetas ainda não tenho as garantias suficientes para desmentido oficioso. Mas... em todo o meu trabalho ha um facto importante que eu quero sublinhar--é a dedicatoria a José Pachêko. É que muito pouca gente sabe, como eu, bem avaliar aquelles que são uma selecção dos bons aspectos de Paris. Emfim, escuso de repetir-me n'este assumpto que o nosso Mario de Sá-Carneiro sabia tão justamente classificar: --Nós trez sômos de Paris! E sômos. Temos esta elegancia, esta devoção, este farol da Fé. Lisboa 16 de Novembro 1917._ +Em todos os meus trabalhos eu guardo esta pagina para dizer o orgulho de ter como Mestre M.^me Sonia Delaunay-Terk.+ +I+ Um dia a mãe comprou chapeu pra ir em pessôa pedir à dôna da engommadoria que não deixásse a filha passar a ferro as ceroulas dos homens porque parecia mal a uma menina decente. D'aqui a chacota endiabrada das outras que a não deixavam e até lhe chamavam o Quêlhas. E eram empuxões e risotas e pisadellas a fingir sem querer e um dia até lhe descoseram a saia. E tambem não suportavam que os que espreitavam na rua olhassem mais pra ela quando já estava resolvido entre todas as engomadeiras que ela era a mais feia. E a parva parece que não via nada, que estava a dormir! Era o parvo do Mendes, era o estupido do Alves e até o senhor Anastacio! eram todos, e ela... nada! Então ela não foi dizer à senhora que o patrão lhe tinha oferecido uma carta?! que parva!... Aquillo só co'o ferro por aquelles olhos! Ná! não podia continuar assim! Nem ela nem as mais (e por causa d'ella!) já passa da medida! Mata-se a idiota! Ela ouvia, ouvia tudo naquelle esforço de não querer ouvi-las, ás malcriadas. Ainda desconfiáram d'algum amante que a sustentasse, algum palerma que lhe désse as coisas... mas no dia em que descalças a espreitaram da escada troçaram d'ela e do gato a brincarem juntos em cima da cama. Concordaram: não póde ter amante--ainda tem o fato do anno passado e as botas, as botas fôram do pae com certeza. E o lunch é sempre a mesma laranja com um pedaço de queijo metido num pão tão reles que nem podia chamar-se sanduwish... portanto, a parva já não dava. A bêsta! A bêsta sim, a bêsta é que era! E todos os dias eram queixas e mais queixas por causa da lama d'aquellas chancas, por causa das cascas da laranja e porque soprou o ferro pra cima das calças da hespanhola e porque deu pronta uma camisa do senhor doutor que era uma indecencia de engelhada e até porque cheirava mal, sempre não, mas de vez em quando. No dia da revolução fôram dizer a um marujo que ela era thalassa, que até usava bentinhos e Senhoras da Conceição e ela, coitada, teve que pedir de joelhos. Verdadeiramente ela sentia uma sympathia muito grande pela causa monarchica desde que um dia as outras todas se confessaram democraticas ao policia de serviço quando lá foi pedir um copo d'agua do contador. Mas agora, não! Agora não tinha politica; tinha era mêdo de morrer. Um serão tinha guardado o lunch prá noite, foi abri-lo era um rato pôdre e as outras dançaram um vira expontaneo. Comprehende-se: a senhora tinha ido ao cinematografo co'o patrão. Quando voltaram extranharam aquelle silencio e a luz do gaz muito sumida co'o abat-jour todo prá esquerda. --Foi ela! gritaram todas de braços estendidos na mesma direcção, e um gallo que tinha na testa tambem tinha sido ela mas de proposito. Ela não disse nada, levantou a saia tirou do bôlso da saia de baixo um rato pôdre muito bem embrulhado e pegando-lhe p'lo rabo até muito perto da luz gritou indignada co'aquela evidencia prá senhora é pró patrão: era o meu lunch! e voltando-se para elas atirou-o violentamente à cara d'uma, que todas eram a mesma, e rematou vingativamente... agora é que fui eu! E se não fôsse o patrão não tinha sido apenas aquella mancheia de cabellos... era mas era a cabeça toda, minha... e foi uma enfiada de nômes baixos, que nem se dizem a uma mulher das mais ordinarias. E pra que ela visse bem que não era pra brincadeiras fez um pequeno silencio e disse, mas muito a serio: sua thalassa! --E com muita honra! e fez-lhe frente. As outras deram uma gargalhada descommunal e a que riu mais observou: E 'inda o confessa! Ah! Ah! Ah!... mas ela vingou-se em chamar-lhes republicanas. Entretanto a senhora tinha já endireitado o abat-jour emquanto o patrão fazia de fronteira entre as inimigas, mas isto é que de maneira nenhuma podia ficar assim! Acabou de arranjar as ultimas calças da hespanhola pra concluir o seu serão, pediu ao patrão pra fazer contas com ela, pôz a mantilha despreocupadamente e quando já estava pronta e na rua virou-se pra dentro e acompanhou de um gesto indisciplinado um sincerissimo viva à Monarchia! +II+ Ir ao barbeiro é um dever tão penoso como assistir aos Sinos de Corneville representado pelos velhinhos do Asylo de Mendicidade. Apesar disto o senhor Barbosa pedia a barba bem escanhoada porque depois do jantar ia ao Asylo de Mendicidade ouvir os velhinhos cantar os Sinos de Corneville e que o Presidente da Republica tambem ia. E depois de ter esboçado ao barbeiro o argumento da peça disse-lhe que gostava imenso da musica mas pó d'arroz na cara, não!... que não era d'esses! --Bem me queria parecer, disse com grande contentamento um velhote com oculos de aros de tartaruga, depois de ter consultado por muito um envelope todo escrevinhado, e chegando-se perto do senhor Barbosa com uma palmadinha no hombro: tambem temos os Sinos de Corneville e mandou o oficial dar à manivela do gramofone que ele é que lá sabia d'esses engenhos. Quando o disco se gastou o senhor Barbosa disse com um A! ao oficial que Wagner foi um grande musico mas que ele tinha-o escanhoado pouco por debaixo do queixo. N'esta altura a porta entreabriu-se e uma cabeça de senhora de chapeu pedia licença, se podia entrar. É porque estava muito farta de andar a pé, os electricos não andavam, e porque gostava muito dos Sinos de Corneville e que até daria qualquer gratificação mas propunha como condição que deixassem entrar tambem a filha que estava lá fóra, coitadinha. Foram todos lá fóra buscar a filha. O senhor Barbosa é que foi dar á manivela depois de a ter visto e não se poude conter sem accender um charuto com cinta d'oiro que queria guardar prá saída do espectaculo. Só quando estava quasi a acabar de o fumar é que se lembrou de preguntar se as incommodava o fumo. Que não, mas visto isso era altura de preguntar à filha se tambem gostava dos Sinos de Corneville porém ela ficou toda encarnada, abaixou os olhos e a cabeça e começou a contar segundos com o pé direito. A mãe é que disse que ela tambem gostava e que tambem estava cançada por causa dos electricos não andarem. E como nem a mãe nem a filha tivessem assim grandes desejos de conversar o senhor Barbosa já se estava arrependendo de ter accendido o charuto. --Ai que lindo, filha! disse a mãe quando acabou o disco. O senhor Barbosa voltou-se e aconselhou-a, então pra que não perdêsse a soirée no Asylo de Mendicidade, porque merece a pena e não é assim uma coisa que se possa ver todos os dias... só de quando em quando. A ultima vez, dizia o senhôr Barbosa, que tinha sido ha mais de um anno e por acaso no mesmo Asylo de Mendicidade, e continuava crescente: --É onde se vê a educação de uma pessôa é na musica. Eu adoro a musica! É por excellencía a arte sublime! Mas espera... eu conheço esta cara não sei d'onde?! e ficou-se a fitar a filha franzidamente... Não ha duvida! Não me engano. A rapariguita ergueu os olhos pra elle e outra vez muito ruborizada fez com cabeça que sim. Bem lhe queria parecer ao senhor Barbosa que não lhe era extranha aquella cara. Era justamente ahi, na engomadoria. --Mas não é porque ela precise, dizia a mãe com um felizmente, é pra se aperfeiçoar na arte a que ela se dedica. --A que arte se dedica sua filha, minha senhora? --Arte de engomadeira. --Ah! sim, fez o senhor Barbosa e poz-se a meditar a complexidade de passar a ferro. Comtudo a mãe fez-lhe ver que a grande vocação d'ella era a musica, que aquillo era só ir ao theatro e cantar tudo, tudo, no dia seguinte desde manhã até à noite. Visto isto o senhor Barbosa não poderia permitir que ela esmurecêsse da sua grande vocação e como o primo d'êle era ministro do fomento e tinha muitas relações no meio theatral podiam, contar com o primo que era o coração mais bem feito de todo o mundo. Portanto que apparecessem lá no escritorio a qualquer hora e quando quizessem porque lhe davam imenso prazer mas que não fôssem lá de quínta-feira que vem até á outra quinta-feira seguinte porque se esperavam barulhos para esses dias. +III+ Dos domingos não gostava--sentia uma coisa que era amarello pra dentro e pra fóra que era sujo. E as portas das Egrejas fechadas depois do meio dia tinham a tristeza do que já não ha mais. Reparava que esta coisa das mercearias abertas com gente lá dentro a aviar-se, e creadas de pantufas d'ourêlo co'a garrafa do petroleo e um senhor de côco que comprou phosphoros de cêra, tudo lhe era preciso na alma e não sabia porquê mas sentia-o. E hoje, se não fôsse a estreia das botas de cano alto, teria ficado na cama com certeza. A Avenida já tinha immensa gente, d'esta que só se vê na Avenida. E ella sentada na primeira fila de cadeiras a desenfiar um a um os pinhões descascados da mulher do capilé pôz-se a rir pra si de si propria por ter pensado que a musica talvez fôsse mais bonita se os musicos da guarda republicana não tivessem o chapeu na cabeça. Dois rapazes bem vestidos pararam defronte d'ella voltados pró corêto e um d'elles enthusiasmado esticou um dêdo e o braço em direcção á musica: Ouviste a tal nota que eu te dizia?... Não achas bestial de boa? e como o outro tivesse dito _effectivamente_ fazendo co'a cabeça muitas vezes que sim, ella ficou muito espantada a destrinçar aquella celebridade musical apesar dos tacões comidos; e quando elles já iam mais abaixo poz-se a procurar na musica uma outra nota que ella tambem achasse que fôsse bestial de boa. N'esta altura uma mão foi buscar a mão d'ella que estava em cima d'um joelho e voltando-se p'rá direita ouviu a musica acabar nos olhos contentes do senhor Barbosa que estava admirado de a vêr por alli. Ella ficou um nada compromettida com a impressão de que estava a ouvir os _Sinos de Corneville_ tocados por um barbeiro cuja flauta fôsse a navalha de barba e o senhor Barbosa julgando-a ruborizada por causa dos pinhões que ficaram na mão d'elle depois de a cumprimentar sorriu-se e metteu-os á uma na bôcca o que queria dizer mais alguma coisa. --A sua mamã? Ella ia pra responder mas felizmente...: Quantos logares deseja V. Ex.^a? o senhor Barbosa disse um, mas voltou-se para ella e como já tivesse, disse outra vez um e que guardasse o resto para elle. Pouco depois levantaram-se e desceram juntos a Avenida e foi então que o velhinho dos bilhetes começou a comprehender a marósca da gorgêta. Quanto mais desciam a Avenida mais ella se ia sentindo mal com aquella mão impertinente do senhor Barbosa a apertar-lhe o braço e a fallar-lhe tão convictamente do tal primo ministro do fomento que se via perfeitamente que era historia. Era porque tinha tido muito que fazer por causa da declaração de guerra não era por se ter esquecido com certeza, que elle era muito attencioso coitado! --A sua mamã? perguntou de novo o senhor Barbosa. Ella ia pra responder quando se ouviram immensos vivas mêsmo alli d'aquelle lado. Escutaram, só se ouviam vivas; os morras eram impares. Escutaram melhor e então todos queriam que a França vivêsse e atiravam os bonets ao ar. Outros davam cambalhotas e quando passavam ao pé dos policias faziam achata o béque! Depois houve um viva á guerra e toda a gente deu palmas, de cima das arvores, empoleirados nos electricos, nos apertões e calçados e descalços e policias e mulheres. O senhor Barbosa subiu acima de um banco ao lado dos canteiros e gritou com o côco a cair: Viva a Gállia! e a multidão assim lisongeiada ergueu em triumpho aos hombros o senhor Barbosa, que ia pedindo encarecidamente pra que lhe apanhassem o côco. Por fim n'aquella falta de luz, ella apenas viu distante d'ella um policia que tinha um côco na mão. Contente por a multidão lhe ter roubado o senhor Barbosa ia rindo pra si num entrecortado de arrôtos de pinhões da mulher do capilé. Mas depois veiu-lhe a tristeza, aquelle aborrecimento que não se explica que só se sente, que dá vontade de ir dormir pra casa e ficar sempre, sempre a dormir e nunca mais fallar a ninguem. Meditava no mau passo que a mãe dera co'o grumête do _S. Raphael_ e recordava os tempos impossiveis da engommadoria. E sentia-se uma eleita na infelicidade, n'esta coisa de não querer viver e ter mêdo de se matar e ainda por cima o rapaz que a enganou tinha embarcado pra Lourenço Marques e tinha mandado dinheiro a uma d'essas pra se lhe ir juntar a elle. Não que ella sentisse saudades d'elle ou de qualquer outro porque ella sabia muito bem que nascêra assim sem poder gostar de ninguem; pra ella tudo era o que não lhe importava. Admirava-se até de se ter deixado levar por aquelle maldito caixeiro que nem sequer tinha bigode. Mas tambem, pensava, se não fôsse elle seria outro e elle foi exactamente um qualquer. Não ha theoria mais comoda do que o fatalismo, porèm, ella usava-o não por comodidade mas por temperamento indiferente. As trovoadas se eram de dia achava ella que deveria ser á noite por causa dos relampagos mas se eram de noite achava estupidez tanto barulho com tanta vontade de dormir. Pra ella não havia differenças de especie alguma--nunca quiz mais aos garôtos por andarem descalços nem lhe invejavam as que tinham automovel. Mesmo esta coisa de almoçar e jantar era só se tivesse fóme, de resto dormir é que era bom. A vida não lhe era muito difficil nem tão pouco muito facil era justamente aquillo--como um carro do Dafundo que vem á Rotunda e volta depois pró Dafundo. E diga-se de passagem o caixeiro tinha-lhe feito um grande favor. E como era assim uma meúda que entra facilmente no gôsto de toda a gente e só lá de vez em quando é que precisava de umas _brise-brise_ mais modernas ou umas fitas de setim pra enfeites de camisas não teria que se esfalfar muito e bem pelo contrario era rara a noite em que não rezava sósinha o seu Padre-Nosso no quarto independente com porta pra escada. +IV+ Eu tinha-a encontrado quando passava e tinha-lhe dito boas-tardes porque me pareceu que ella precisava de que alguem que ella não conhecêsse lhe desse as boas-tardes. E assim foi. Ella teve um sorriso que eu não gostei mas que era precisamente o que ella devia ter depois de eu lhe dar as boas-tardes. Nada me encantava n'ella, nem aquelle arremêdo da moda tão ingenuo e inconsciente que lembrava os quartos andares na Estephania ou os proprios figurinos desenhados que veem de Paris, nem o seu quê de jovem que brilhava na saliva por entre os dentes, nem mesmo o seu incognito que não iria álem de um par de meias de sêda estreiadas a semana passada. Tudo n'ella tinha um limite de grande saldo ou de abatimentmos por motivo d'obras. A não ser os olhos que tinham uma sentillação meridional de beiramar com dramas de marujos d'aqui a alguns annos, a sua bocca e o seu nariz e toda a sua proporção tinham uma bitola resumida que nem dá direito a reforma. E d'ahi, poderia ser! mas nem foi a curiosidade que me deteve foi aquillo de eu lhe dar as boas-tardes e seguir. Mais adeante tive vontade de voltar atraz, mas nem me lembrava d'ella, e voltei. Foi ella quem me deu as boas-tardes e com um sorriso que lhe mudára completamente toda a figura. Chegou-se perto e disse que me conhecia da Figueira da Foz e se eu ainda namorava aquella menina que era tão loira e tão galante. N'aquelle momento eu tive a impressão de que a Figueira era o unico sitio do mundo inteiro onde eu nunca tinha estado mas quando ella me perguntou pelo Marquez o senhor meu papá não tive outro remedio senão dizer-lhe que estava muito bem e que se recommendava. Disse-me com as mãos nas ancas que não desfazendo achava o Marquez senhor meu papá um personagem illustre e tirou as mãos das ancas. O que era pênna era elle ser tão jogador mas tambem isso não era o que lhe iria fazer moça nas rendas. Perguntou-me se elle ainda usava monóculo e quiz certificar-se se era no esquerdo se no direito que elle costumava usar e apesar de eu lhe ter dito resolutamente que isso era conforme o seu estado de espirito ella disse que pois a ella lhe queria parecer que era no esquerdo. Quando depois de varios _qui-proquós_ de comedias em tres actos eu lhe respondi sobre as grandes fortunas e várias do Marquez senhor meu papá ella metteu pelintramente o pedido de trinta réis pró electrico. Devia ter sido um bello ponto final mas os taes trinta réis não eram pró electrico d'ella eram pró electrico onde eu fôsse com ella porque só tinha trinta réis. --Então vamos já! A meio do Alecrim apeiamo-nos. Ella mexeu em chaves que riram uma satisfação que era d'ella; por emquanto eu era apenas o filho do Marquez senhor meu papá. No segundo andar era uma cancella, depois uma porta, outra porta e ainda a porta do quarto d'ella. Havia chaves pra tudo e a mezinha de cabeceira tinha seis gavêtas com chaves differentes. Depois uma senhora com avental de dona de casa vem trazer um grande molho de chaves pequenas e que muito obrigado, mas que nenhuma serviu, que eram todas pequenas. A minha primeira impressão é que era um quarto de cama vulgar excepto um retrato de senhor e careca com uma dedicatoria a tinta rôxa e assignada--Amigo e Senhor Barbosa. Em cada um dos quatro cantos do retrato estava um prego e em cada prego uma chave com fitas de sêda co'as côres nacionaes. Ella veiu fechar a janella e a senhora com avental de dona de casa voltou com outro molho de chaves ainda mais pequenas e que tambem agradecia e que tambem não serviram e que tambem paciencia. Sentei-me cautelosamente n'uma _chaise-longue_ mas ella veiu a correr e pedindo-me desculpa levantou a capa da _chaise-longue_ e metteu pra dentro de uma gavêta onde havia mais molhos de chaves de todos os tamanhos todos os molhos de chaves e chaves soltas que estavam espalhadas p'la _chaise-longue_. Sentei-me n'uma poltrona ao lado mas fiquei fortemente magoado nas costas e nos quadris; ella veiu a correr pediu-me mais desculpas e levantando a capa da poltrona tirou varios molhos de chaves de differentes feitios, mais ou menos ferrugentas, mais ou menos polidas. Em cima da meza de pé de gallo havia uma carta registada de Lourenço Marques e plo pedaço do enveloppe que estava rasgado li quasi sem querer por este paquete só te poderei mandar setecentas e trinta e oito chaves... De repente ouvi rumôr debaixo da cama e ella disse com um tocão no sobrado: "saia d'ahi, Romeu!" e logo saiu um gato côr de chave com um molho de chaves á guisa de colleira. Depois deu-me a curiosidade pra lhe ir espreitar as _toilletes_ no guardavestidos mas o guarda-vestidos era uma série de prateleiras com chaves numeradas e já devidamente classificadas e postas cardinalmente plas alturas desde a minha chave do estojo da rabecca até ás chaves de São Pedro. A certa altura ella tinha saido do quarto, dei co'os olhos n'uma caixa de lata relativamente pequena e relativamente pintada de verde-escuro com lettras brancas escrevendo chaves. Abri a caixa e qual é o meu espanto quando a vejo a ella, sentada lá dentro a gritar envergonhada pra que eu lhe fechasse a porta! Bom, fechei. Chego-me junto da cama levanto as roupas e záz, uma chave da altura de um mancebo apurado pra cavallaria. A propria cama se a gente reparasse bem era um pedaço de uma chave de que eu tambem fazia parte. Cançado já d'este ambiente e até com medo de tudo isto fui abrir de novo a caixa de lata pra lhe pedir que se aviasse mas, longe do que eu queria, começaram a transbordar chaves e mais chaves d'esta vez todas eguaes. E já estava o oleado todo coberto de chaves e ia crescendo o monte cada vez mais e até já nem podia mexer-me com chaves até ao pescoço quando ella entrou e tão serenamente por cima de todas aquellas chaves como se não fosse nada com ella até que lhe perguntei quasi louco a razão de tantas chaves. Afinal era para brincar aos soldadinhos, mas disse-me muito apoquentada que não lhe fizesse mais perguntas porque ultimamente andava muito desgostosa da sua vida. +V+ Ella accordou com a passagem do primeiro electrico. Foi ao espêlho esfregar os olhos e abri-los muito. Arranjou um carrapito desmanchado e descerrou as janellas co'os operarios da obra defronte ao sol. A outra banda tinha um aspecto saudavel de outra coisa qualquer onde se póde estar e foi beber um góle de cognac na mezinha de cabeceira toda semeada de pontas de cigarros. Havia n'ella uns remorsos distingidos de não ter sido elegante e tinha uma quebradella plos joelhos que lhe fazia apetecer outro góle de cognac pra fortalecer. Começou de pôr carmins nos labios exageradamente e depois ouvindo a voz da peixeira que era a d'ella veiu debruçar-se no parapeito a gritar pra baixo a como era a sardinha. Como estava toda núa puxou um lençol da cama embrulhou-se descuidadamente e foi ella propria abrir-lhe a porta e que entrasse que não estava mais ninguem. Que até podia vir pró quarto d'ella e que talvez fosse melhor. A principio achou muito caro a sete vintens a duzia e como reparasse no retrata do senhor Barbosa caréca e com tinta rôxa despregou-o dos pregos e deitou-o pra debaixo do sofá. Continuou a achar muito caro a sete vintens a duzia e olhando fixamente os olhos da varina deixou cair o lençol que até parecia sem querer e offereceu-lhe a dois tostões a duzia com a condição de comprar o peixe todo e ainda a de almoçar com ella. A varina mexeu as ancas n'uma arrelia de que já não era a primeira vez que lhe succedia aquella chatice mas ella correu prá varina e beijou-a na bôcca que até lh'a deixou magoada. N'um ápice correu a fechar a porta á chave por dentro e a cerrar de nôvo as janellas sobre as obras ao sol. Quando o sol d'ahi a pouco bateu do lado de cá e entrou plo quarto até á cama já se não sabia bem qual das duas era a varina--eram só pernas núas e seios a reluzir na saliva. Só se ouviam gemidos de cançadas até que o gato entrou fortemente convulsionado nas agonias de uma indigestão de sardinha. Quando o senhor Barbosa metteu a chave á porta e achou o silencio abafado d'aquelle quarto meio-illuminado teve a impressão que ella tinha posto um espêlho muito grande ao comprido sobre a cama e que depois se tinha deitado toda núa com o ventre pra baixo. Achou estroinice mas não quiz bulir o silencio; sentou-se junto da porta a observar. Esteve assim perto de meia-hora a gosar aquelle _Paris-salon_ mas não se poude conter e foi pé-ante-pé e de chapeu na cabeça depositar-lhe um beijo mesmo no meio da espinha vertebral. Depois o senhor Barbosa teve um estremeção que sentiu em todo o envolucro do coração como se fosse um murro atirado de dentro pra fóra; começou a chorar visivelmente e tirando o chapeu sahiu violentamente desgostoso tendo tropeçado na canastra vasia. Como já fossem duas horas da tarde e álem d'isso houvesse já muita gente no Rocio pra uma imponente manifestação ás nações alliadas, não quiz perder o _rendez-vous_ quotidiano e decidi-me a ir ter com ella. A porta estava encostada e estava escuro lá dentro. Olhei. Tive a impressão que ella tinha posto um espêlho grande ao comprido sobre a cama e que depois se tinha deitado toda núa com o ventre pra baixo. Achei estroinice mas não quiz bulir o silencio; sentei-me junto da porta a observar. Havia assim disperso pela meia-luz como que um cheiro a porto de mar e que fazia frio no peito lá em cima no tombadilho; desci de novo os olhos sobre a cama e senti-me melhor confortado na cabine mas tive um sobresalto como se eu me tivesse enganado e tivesse entrado na cabine da sueca que eu namorava. Foi um escandalo a bordo e o proprio marido da sueca chegou a partir o cachimbo no hombro do commandante. Depois nunca mais vieram jantar com a sinêta, era sempre antes ou depois. Um dia o sueco estava mesmo á borda a vêr os golfinhos a saltarem dentro do binoculo veiu a mulher d'elle e deu-lhe um empurrãosinho que foi logo uma tragedia por afogamento. Passados tempos voltou o senhor Barbosa de chapeu na mão, e os seus olhos tristes tambem tinham o chapeu na mão. Havia n'elle uma tragedia submarina que dava a perceber alli qualquer empurrãosinho fatal. Havia mesmo até um descorajamento que poderia (quem sabe) ter analogias com o incendio do Deposito de fardamentos. Advinhava-se-lhe na gravata negra e despreoccupada uma indifferença pla gloria de vir a fallar nas camaras, um despeito p'la sorte de ser presidente da Propaganda de Portugal e socio das commissões de vigilancia. A Patria mesmo, n'este instante, era lhe desinteresse quaternario. Quanto mais se vive mais se aprende, pensava, e tambem pensava que felizmente estava armado porque sentia a _browning_ no bolso de traz entre a hombreira da porta e a nadega direita. Só tinha penna de deixar o seu logar de alferes miliciano talvez a algum incompetente. Sentia que afinal a sua vida tinha ficado caréca ao mesmo tempo que elle-proprio mas morreria com o orgulho de ter sido um dos maiores apologistas dos _Sinos de Corneville_. Na cama houve um minusculo movimento e ella disse pra mim e prá varina n'um contamento de sorte-grande: Ainda bem que o estupido do Barbosa não se lembrou de vir. Depois uma senhora de avental de dona de casa veiu trazer um molho de chaves e que muito obrigada mas que tambem não serviram. Immediatamente se ouviu um berreiro na escada que dizia que dois ainda se admittia, agora, tres que era demais. E a senhora de avental de dona de casa fechou a porta. +VI+ Estar em Sintra é agradavel não pelo facto de se estar em Sintra mas pelo facto de se poder dizer que se está em Sintra. E tambem porque é um incidente tão provisorio como a propria vida; o definitivo é que desconsola ainda que é surprehendente saber-se que o definitivismo absoluto não existe ou que é dispensavel como o artigo de fundo do jornal que se compra porque se não lêem os jornaes ha muito tempo. E verdade tinha Santo Agostinho em affirmar que tudo se paga n'este mundo--um jornal de vintem tem p'lo menos uma torre de marfim e os de dez réis depois da quarta pagina ainda teem mais duas de annuncios. --O senhor tem bilhête? volteime e percebi uma figura de fato escuro que por um signal que trazia perto do bigode era com certeza o revisor; e eu que já ia nas ultimas linhas das ultimas noticias com canhoneio em Verdun, desloquei-me de repente pra muito mais perto de mim--na unica linha pra Sintra com uma folha solta de diccionario onde o revisor queria dizer individuo que revê os bilhetes dos comboios e que usa fumos no bonet de pala e um signal de cabêllos no queixo. Ao lado fallavam inglez-sem-mestre e eu pra escutar melhor fingia lêr a "chronica do bem" quando de repente li no jornal não sei onde o meu nome inteiro justamente quando o comboio parava na Amadora. Outra vez o meu nome mas d'esta vez era uma senhora chic e loira que ia deante de mim e que lia em voz alta o nome de uma cautella de prego que tinha encontrado no chão. --Perdão, minha senhora! fiz eu com certos acanhamentos de sangue frio propositado, esse nome é de meu irmão; e foi elle quem pagou os extraordinarios juros d'aquelle emprestimo. Desde então a senhora chic e loira começou de olhar pra mim como eu queria que ella me olhasse antes de me ter notado a cautella de prego e deixou cair o lenço e a malinha, e o leque e a sombrinha, e não deixou cair mais nada porque em Bellas apeou-se o magote do inglez-sem-mestre. Infelizmente d'ahi a Sintra foi um instante e nem houve tempo pra vêr a paysagem bonita ao pé do Cacem; apenas posso garantir que quasi me chegaram as lagrimas á raiva por o tunel do Rocio illuminado e grande não ser no tunel de Sintra pequeno mas ás escuras Que em Sintra não lhe fallasse porque era casada na Estephania todos os verões com um titular de dinheiro mas que fôsse plos Pisões todas as noites ou aos Seteaes se fossem de luar. Quando cheguei á villa tive a triste noticia de que tinham assassinado o barbeiro por questões de altas finanças do estado em que elle como revolucionario civil estava envolvido com destaque; porém, a noticia não foi tão desoladôra que eu não soubesse quasi immediatamente e sem perguntar nada a ninguem que o infeliz barbeiro era nem mais nem menos que o titular de dinheiro casado na Estephania com uma senhora chic e loira. Até adeantei os meus pezames ao jantar e fui pessoalmente garanti-los á desolada viuva que andava p'las diagonaes da sala de visitas a fazer figas e a dar vivas á republica com lagrimas e sapateados de irremediavel. A minha presença deu-lhe duas coisas bem nitidas e proporcionaes n'estas occasiões afflictas--alento e alarido. E avançando pra mim toda erguida prá frente co'os braços rigidos no ar veiu repousar a cabeça sobre o meu peito que até me desbotou a gravata azul pró collête branco. Todos os seus solavancos de desesperada iam desfallecendo lentamente n'uma alegria intima que data de antes de Affonso Henriques: rei morto, rei posto. Se fôssemos tão independentes como o nosso estomago não teria eu tido a necessidade de me despedir com tanto apetite de me vêr livre d'aquelle sentimentalismo (áliás tão humano) pra ir jantar sósinho á meza extrangeira do Laurence's Hotel; mas a verdade é que quanto mais não fôsse isto já era uma razão de ter vindo pra Sintra. O creado disse-me o _menu_ com muita pena do barbeiro e que considerava o assassinato um vandalismo mas que se eu não quizesse _potage à la valencienne_ tambem tinha _puré de legumes à la mexicaine_. Pobre barbeiro! E eu já tinha remorsos de que talvez o tivessem assassinado no momento preciso em que ella lia o meu nome na cautella de prego que me caira do bolso. Mas fôsse pelo que fôsse a sôpa vinha a escaldar e não se sabia ainda quem foram os assassinos e agora vá se lá saber... E verdade é que seria tão difficil dar com o paradeiro dos malfeitores que a elle já se lhe affigurava um facies tão criminoso como o do revisor da linha de Sintra de quem eu seria testemunha da sua innocencia tão evidente como os fumos no bonet de pala ou o signal de cabêllos no queixo. E até ao arroz tive tempo de meditar na fallibilidade da justiça atravez dos tempos até ao assassinato do barbeiro em Sintra no Castello dos Mouros cá em baixo ao lado da cisterna. A prova que tudo tem razão de ser n'este mundo é que eu já estava observando que effectivamente o Castello dos Mouros este verão tinha a barba por fazer. Depois veiu galantine de perdiz e um enveloppe fechado na outra mão e era pra mim. Era a senhora chic e loira que me mandava dizer que n'aquelle lance fatal tinha mêdo de ficar sosinha de noite na cama e portanto que me demorasse a jantar que ella viria ainda prós dôces. Estas coisas pra uma sensibilidade como a minha que só sabe resolver as coisas depois de resolvidas fizeram-me pensar profundamente emquanto pasmava os olhos n'uma reproducção lythographica do Imperador da Allemanha tão embaraçado como eu n'este assumpto diplomatico. Immediatamente tive uma boa ideia que nunca mais me lembrou por ter entornado sobre a toalha branca meia garrafa de vinho verde que ficou a alastrar-se como o azar a denunciar-me de estar pensando em dormir com uma viuva sem saber se sim ou se não. Ainda não eram os dôces e ella entrou com a salada. Trajava rigorosamente de luto mas o apetite do seu sorriso e o cinzento das olheiras pintadas trajavam rigorosamente de adultera. Não quiz café--o seu estado de espirito apoquentado e triste preferia uma garrafa de champagne. Começou a declarar-se-me absolutamente desilludida sobre a morte do marido e de tal maneira que as lagrimas rebentaram-lhe espontaneamente por eu ainda não ter acabado de jantar. Contou por alto a historia do seu infeliz marido que era estabelecido com loja de barbeiro na Praça da Alegria, loja muito conhecida e estimada de todos por servir de sala de espera quando os electricos não andavam e que ainda por cima tocava no gramophone os _Sinos de Corneville_ e de graça. Disse-me tambem uma historia de uma filha que tinha em Lisboa e que um malandrão qualquer tinha tirado da engommadoria onde trabalhava pra viver á custa d'ella e ainda por cima obriga-la a fazer indecencias com as mulheres do peixe. E demais, seguia, tendo tido um bom conselheiro como era um sujeito careca que eu havia de conhecer de vista com toda a certeza e por signal até se chamava senhor Barbosa e ainda por cima era primo do primo d'ella que era ministro do fomento do Terreiro do Paço. O creado fez estalar a rôlha do champagne n'um arrepio meu que parecia o ultimo suspiro do barbeiro ou o estalo da corda partida do gramophone dos _Sinos de Corneville_. A historia era muito triste e ainda mais extensa que a garrafa de champagne mas emquanto o creado me aconselhava o puding de cosinha que estava delicioso, que até tinha sido feito pelo Augusto, ella prometteu beber outra garrafa de champagne não só para acompanhar com o puding como para esquecer aquella infelicidade que lhe cortava o coração ás tiras de salame com uma navalha de barba com trinta annos de serviço. Depois do café fômos distrahir prá kermesse. A mim a kermesse pareceu-me uma kermesse e a ella pareceu-lhe um pião. Confessou-me que aquella boneca de vestidinho azul tinha um ar muito engraçado; um ar que era muito peculiar ao marido todos os sabbados á meia-noite quando fechava mais tarde. Depois affastámo-nos da kermesse, sem dar por isso e ella ia-se-me confessando sugestionada pela ideia da morte; que sempre tivera uma enorme sympathia pela obra do Dumas pae e a do filho e perguntou-me se o Dumas gravador era da mesma familia. Gabriel Dannunzio não conhecia mas havia outro poeta que a fazia chorar e por quem daria a propria honestidade de viuva desolada talvez condemnada a ter que procurar outro barbeiro mas que não tivesse politica partidaria. Esse outro poeta, dizia ella n'uma contorsão de tragica cinematographica ao mesmo tempo que me pisava um callo, era eu, era eu e mais ninguem. Só eu--o preferido das viuvas dos barbeiros! O poeta maior que os Dumas todos, mesmo superior ao Dantas e ao Noivado do Sepulcro. Mas por fim estreitando-me n'um abraço declarou que realmente o que ella estava era bebeda e sem mais nada começou a correr pela escuridão e pum... um tiro! Fui vêr. A tresloucada creatura n'uma dôr cruciante e fatal tinha acertado no umbigo, n'um instante de revolta, uma bala que a puzera repentinamente horizontal com a cabeça sobre uma bosta de boi. +VII+ Ultimamente inquietava-me por vêr que o porteiro fazia má cara quando sahiam da quarto d'ella magótes de varinas que vinham afogueadas. Apoquentei-me mais quando uma tarde em que eu entrava no quarto d'ella esbarrei com um anão sebento que ia a sahir. De feito, ella já nem se queria levantar da cama--gostava de almoçar, jantar e fazer tudo alli sem ter que se vestir. As contas da pharmacia só tinham ampôlas de morphina. Um dia o senhorio mandou-me chamar e tendo-me dito que tinha immensa consideração por mim estava, porém, absolutamente disposto a não consentir n'aquella indecencia de varinas e senhoras casadas e meninas de labios pintados é até pra cumulo ás vezes casais de garôtos de pés descalços. Effectivamente ella transformara em absoluto o quarto independente com porta prá escada: Bons tapêtes de côres escuras, lampadas electricas de todas as côres, gravuras de nymphas perseguidas por faunos, apologias da inversão a côres e em todas as posições, e as gavêtas da _toilette_ em vez de vestidos e roupas só tinham batons de _maquillage_ e frascos de todos os tamanhos com apparencias de mais de cinco mil réis. Uma vez riu-se muito e como grande novidade levantou a camisa e mostrou-me no ventre um contorno de sexo masculino que ella, propria tinha desenhado a encarnado e enchido de verde esmeralda. Quando eu voltei de Sintra a senhora de avental de dona de casa veiu contar-me que isso tinha sido um grande desgosto para ella que nem sequer nunca mais recebera varinas nem mesmo até o guarda-portão. E dizia-me que ella, coitada, via-se bem que era minha amiga porque era vêr que apenas eu chegasse era certo ella receber outra vez as varinas, os pinocas e a filha da senhora Baroneza. Um dia fiz-lhe vêr que ella já estava na cama havia perto de anno e meio e que portanto tomasse cautella. Ella foi até á janella e logo a primeira impressão foi de que o Alecrim que d'antes subia prá quelle lado agora era ao contrario subia pró outro lado. E depois n'uma festa gentil pediu-me encarecidamente pra eu lhe ir arranjar aquella pretinha das cautellas que tinha mulêtas, e foi de tal maneira gentil o seu pedido que eu não tive outro remedio que o de ir ajudar a pretinha a subir a escada pra descançar um pouco no quarto independente com porta prá escada. +VIII+ Cada vez creio mais que a vida obedece a um principio quadrado que se resolve dentro d'esse proprio quadrado e fóra d'elle em xadrez. Por isto que o quadrado é sempre o mesmo e inconstante de posição as transparencias lucidam-se em diagonaes galgando. Theoricamente é irrealizavel de planos que apenas praticamente existem moveis na phantasia. O quê d'isto é a incomprehensão em todos. Eu quero explicar: Todos os sentimentos são conscientes e inconscientes e simultaneamente! Assim, eu posso ter immediatamente a consciencia de um sentimento que accordou na minha inconsciencia e logo essa consciencia póde vir a definir-se tão nitidamente que se resolva em absoluta inconsciencia. Nada, absolutamente nada, em todos os tempos é commum ainda que se restringa a uma unica sociedade e definida. Esta coisa de haver uma lei que tenha a vaidade de se impôr a todos é tão irritantemente estupida como a de haver uma só medida pra todos os chapeus. Tudo o que eu estou dizendo é de tal maneira a expressão da verdade que o proprio leitor ha-de ter certamente reparado que não percebe nada do que eu venho expondo. Pois foi hontem mesmo que o senhor Barbosa me deu a honra de me apresentar sua Ex.^ma esposa. E de tal maneira eu não quiz crêr que foi esta a primeira vez que tive consideração p'lo meu amigo senhor Barbosa. Começámos p'la rebellião da Irlanda depois derrotámos os turcos da Asia-Menor mas quanto aos destinos das nossas baterias Canet, a Ex.^ma esposa do meu amigo apenas sabia que o sol de Lisbôa fazia-lhe apetecer um duche de sorvêtes. Entretanto como a conversa do senhor Barbosa não tivesse geitos de recuar em Verdun coube-me a sorte de convidar sua Ex.^ma esposa pró que quizesse tomar cá mais perto de nós, no "Martinho". A gréve dos carroceiros era pró senhor Barbosa tão infame como a violação da Belgica e sempre que por azar havia de fechar um periodo dava um viva á França sem pestanejar. A Hespanha tambem se tinha portado mal, não sei como, com o meu amigo senhor Barbosa e, em verdade, já era com uma certa razão que apetecia outra salsa com syphão á sua Ex.^ma esposa. E talvez porque em Hespanha haja muitos germanophilos (a maioria!), coube-me ainda á minha pessôa o convite prá segunda salsa. --E depois, dizia-me o senhor Barbosa, não sei se sabe que os allemães não são nada decentes. Ora esta phrase que a principio me pareceu descabida tinha afinal razão de sêr porque sua Ex.^ma esposa retirou suavemente o pé de cima da minha bota. Como exemplo de mulheres honestas apontava co'os braços erguidos o meu amigo as russas, as de Vizeu e as alliadas.--Estas, sim, fanatizava-se o meu amigo, estas sabem sêr mães quando mandam os filhos prás fronteiras pra defender a Patria! e dizia esta ultima palavra com um A tão sonoro que pareceu-me terem os carroceiros grévistas apedrejado as vitrines do café. Os allemães, segundo o senhor Barbosa, tinham de fugir ás mães pra irem pra debaixo das patas do Kaiser, e entornou meia salsa com syphão co'uma palmada bem aberta sobre o marmore cheio de cinza. --Veja o meu amigo as francezas que mesmo quando são _cócóttes_ sabem de cór a Marselheza! O senhor Barbosa fallava tão gesticuladamente que um senhor da Baixa que tem tabacaria e chapeu de palha e uma apparencia melhor que elle-proprio chegou-se á meza e disse baixinho ao ouvido do meu amigo: --O gajo é germanophilo? Então o senhor Barbosa entezou-se n'um d'estes nãos que querem dizer--'tás doido! e eu juro que nunca mais esquecerei este meu amigo que me salvou da morte. Entretanto sua Ex.^ma esposa retirava p'la segunda vez e mais suavemente ainda o seu pé pequenino de cima da minha bota. Depois houve um silencio extactico co'o creado a perguntar se o tinham chamado e o meu amigo senhor Barbosa virando-se repentinamente prá porta chamou muito alto: ó Marcos! e preveniu como quem não quer ter remorsos e com o braço o mais alto que podia: não penses n'isto, hein!? Era a minha innocencia. Ainda houve um segundo silencio extactico, sem o creado a perguntar se o tinham chamado, mas não contente o meu amigo foi a correr e ainda agarrou á esquina do Rugeroni o tal senhor da Baixa que tem tabacaria e chapeu de palha e uma apparencia melhor que elle-proprio. Eu queria seguir todos os seus gestos pra perceber d'ali de dentro do café aquella segunda confissão do meu dedicado amigo senhor Barbosa mas sua Ex.^ma esposa começou a observar mexendo o meu relogio de pulseira e sem olhar pra mim disse que eu tinha uns olhos muito bonitos. Ainda julguei que fôsse outra salsa que ella quizesse mas não, d'esta vez era café com leite. Perguntou quem me tinha dado aquella pulseira tão gentil e quando eu lhe disse que foi uma allemã ella escondeu um lacinho preto, amarello e vermelho que tinha pregado no lado direito com uma andorinha azul de esmalte. --Então o senhor é germanophilo? --Tambem tenho um pijama de sêda que me deu uma senhora franceza. De repente o senhor Barbosa entrava no café e sua Ex.^ma esposa virando-se pra mim disse-me apressadamente como se fôsse o final de uma conversa que tivesse forçosamente de ser acabada: Então appareça hoje á meia noite em ponto que o Barbosa está nas commissões de vigilancia. E o senhor Barbosa com ares de ter tido uma lucta movimentada mais do que permittia a força humana sentou-se limpando o suor da testa n'um allivio: Felizmente está tudo resolvido! e voltando-se pra mim declarou-me que á meia-noite ia jurar a um sitio secreto que eu não era germanophilo. As avenidas alli n'aquelles sitios mal iliuminados faziam-me, não sei porquê, lembrar dos apaches de Paris. As linhas dos electricos brilhavam vasias e o guarda-nocturno co'as mãos nas costas, pensando talvez no almoço de depois de amanhã, fitava vagamente o zimborio mais perto da praça de touros que lhe parecia uma cabaça de dois litros e meio de tinto. Eu só tinha frio na cara onde acabava o côco e começava a gola levantada do casaco e pensando se por acaso teria as meias rôtas, cada esquina que eu dobrava me parecia que eu ía do escuro pra um quarto illuminado onde estivesse uma mulher em camisa a pôr o despertador prás horas em que acabassem os serões das commissões de vigilancia. Como sentisse mais frio em cheio nas faces lembrei-me com mais frio ainda que aquelle muro cinzento com as ameias quadradas já tinha sido jardim zoologico com leões que comem carne sem ser cosida. Afinal nem era da Nordisk, era da Cines aquella fita da domadora que era assassinada plo proprio marido dentro da jaula dos tigres. Do lado das tabernas veiu uma brisa sumida e morna de fadinho de melênas com questões revolucionarias; o proprio ramo de loureiro pregado na porta tinha um movimento indeciso de se querer raspar. Mais adeante é que eram as lettras F. G. H. tão enigmaticas como mane, tessel e fare... tão atarracadas e luzidias como o meu amigo e careca senhor Barbosa. Um patamar, dois degraus, mais outros dois degraus, tres lanços pra traz e pra deante sempre a subir, a porta da rua encostada... um candieiro de petroleo em cima de um môxo de cosinha lá onde acabava a passadeira verde do corredor e muitos cheiros a pó de arroz, á esquerda, depois de uma canelada n'um caixote lacrado com Vizeu em cima e cautela em baixo. Depois muita luz, muitos biombos, muitos retratos a carvão assignados Fonseca, muitos espêlhos, muitos lacinhos frisados e ella na cama quadrada a fingir que dormitava n'uma gracinha travêssa de camisa curta pelas vrilhas e peugas de rapaz muito justas no côr de rosa duro. Antes de chegar á cama havia um papel no meio do chão e escripto a lapis--era a conta da engommadeira... sete collarinhos 37, dois 39 e um 40, marca Wagner. No fim da conta em ar confidencial dizia sublinhado: conta particular de madame Barbosa. Apaguei de repente a luz e comecei a atirar pró lado o casaco, o collarinho, a camisa e talvez porque tivesse atirado um pouco mais alto as calças tive o desprazer de ouvir um acorde de piano em dó maior e fuga do gato assustado. Accordei com um tiro dentro do quarto. O senhor Barbosa tendo aberto a janella dava tiros á queima roupa no bello ar da manhã emquanto gritava para a cama os maiores insultos premeditadamente hostis. Emfim, nem tive tempo de me vestir descançadamente nem sequer de fazer a _toillette_ e até perdi um maço por encetar de "La Deliciosa" com uma caixa de phosphoros de cêra de luxo com senha e tudo. Quando cheguei á rua tinham comparecido alli um sem numero de revolucionarios civis que em nome da lei me intimavam a entregar-me á prisão por ter incorrido no crime de ser germanophilo na pessôa de um funccionario do Estado e casado. +IX+ N'esse dia de Agosto com toda a gente nas praias, Lisboa tinha o aspecto nú e vasio de um ascensor parado que já não funcciona. E eu que sentia isto do agosto de Lisboa, refrescava-me do calor e do tedio que ascendia por mim acima até á nitidez de ser a expressão exacta de estar desempregado de mim proprio. E concordava que isto de se existir pra provar que o tedio existe em Portugal, todos os mezes e todos os dias, continuava a ser tedio porque já estava provado desde a fundação da monarchia luzitana. E quantas vezes sem se saber porquê a gente pensa na batalha de Alcacer-Kibir quando estamos á espera da resposta e do gallego! E tambem, como quasi sempre succede, chega sempre primeiro que o gallego um amigo que esteve na escola comnosco e apesar disto nunca esteve na escola comnosco. E pergunta-nos como estamos quando nós apenas nos lembramos de termos tido bexigas brancas com calções e perna á vela. Todavia se erguemos os olhos pra elle reconhecemos n'aquella cara estupidamente alemtejana o primeiro classificado nas mathematicas do nosso curso. Justamente como o meu amigo Cunha que janta fóra por pandega, este antigo condiscipulo era a manifesta metamorphose d'aquella imbecilidade. O que é um facto é que se eu não tivesse resolvido graphicamente esta ligação não teria tambem explicado o ter pensado ha pouco na funesta batalha de Alcacer-Kibir. E de tal maneira eu cria n'esta transmissão de pensamento que fôsse pelo que fôsse o gallego não se poderia chamar senão Sebastião. Elle, o condiscipulo, ainda estava deante de mim com todas as suas reminiscencias da escola tão alemtejanas como elle até que abriu muito os olhos n'uma falta de lembrança que era minha: --Não te lembras do Sebastião? --Qual? o gallego? --Não! --Ah! sim... o outro. O outro era elle com uma imbecillidade trigueira que teve o maximo na classificassão das mathematicas do meu curso e ainda que o gallego já podesse deixar de ser Sebastião, este Sebastião era gallego com certeza. --Então o que fazes agora? --Sou engenheiro. E esta _blague_ deu-me logo as vantagens de poder ter sido educado na Allemanha ainda que estava já resolvido a não dar gorgêta ao Sebastião pla demora tão demasiada que me parecia já um condiscipulo que eu não via desde a escola essa carta que eu esperava impertinente. --Pois eu estou no Algarve... (tinha-me enganado, era o Algarve)... nas herdades de meu pae proximo de Olhão. --A senhora manda dizer que o não póde attender porque chegou um primo d'ella do Algarve, que veiu de Olhão, disse o gallego n'um segredo que mettia x. em todas as palavras. --Bom, quanto é? que não podia ser menos de dois tostões e se não fôsse o condiscipulo podia ter a certeza que ninguem lhe pagava o dobro do que pedia n'um gesto tão millionario. --Então adeus! Vaes pra cima?... tenho pêna, eu vou pra baixo. Adeus. +X+ Talvez que o leitor não saiba mas eu tambem sou conhecido como caricaturista. Outros dizem que eu tenho maus costumes, mas isso é para me arreliar, Ora tendo-se dado o caso extraordinario de no dia 7 de Abril de 1800 e tantos ter havido uma trovoada sobre o paquête e o commandante logo essa manhã ter mais um passageiro a bordo quando todos eram unanimes que tinha caído uma faisca na sala de jantar, o resto da viagem fez-se em sobresalto continuo. Todas as noites os phenómenos phosphoricos se intensificavam perturbantemente apesar do dr. allemão ter revelado a existencia de animalculos onde predominava essencialmente o iodo. Os companheiros de viagem conheciam-me lá entre elles por o recem-nascido. Depois d'esta a maior trovoada a que eu assisti foi em Campolide quando estava fechado á chave de castigo na retrete dos professores. Eu era tido como elemento indisciplinavel e perturbador até ao dia em que um frasco de tinta verde se entornou por cima do livro de missa quando eu estava a copiar um Christo gravado que eu achava muito bonito. N'esse mesmo dia fui expulso por causa d'um amigo meu que foi esconder as bolas de bilhar que ainda se não tinham estreiado dentro das bolas de bilhar que já estavam muito velhas. P'la noite, infelizmente, amnistiaram-me. Recentemente, tendo-me encontrado em Barcelona com o doutor allemão que tinha umas barbas encaracoladas em iodo cortámos as relações por causa de uma acirrada discussão sobre Niewtch apesar de elle ter ficado encantado co'o meu bello jôgo de combinação no desafio de "foot-ball" contra o Racing de Madrid. Hoje, porém, tive uma alegria que eu não tinha desde a ultima trovoada--a engommadeira, que se tem ido civilisando pouco a pouco com o estar comigo, ao almoço veiu lindamente arranjada e beijei-lhe a bocca deante dos outros hospedes só por ella ter trazido os labios pintados de verde esmeralda! Que bello! Achei-lhe mesmo um ar casto de Samaritana que apertou bem a cinta sobre o ventre--Ah! e que lindos são os limos do poço de Jerusalem! A velhota que era dona da pensão veiu dizer-me com o chocolate esta manhã que estava cá um hospede que era muito meu amigo e que tambem lhe tinha dito que eu era o poeta de mais valor que andava por ahi. Jantámos juntos e entre coisas que recordámos foi um passeio que demos ao sitio do Calvario n'uma tarde de verão justamente á hora do raio-verde. Elle tambem se lembrava de umas tourinhas que houve nas eiras dos Serrões e que até o Virgilio quando ia a marrar no Cunha tinha ido, coitado, contra a trincheira e tinha escangalhado a cara toda que nem se lhe viam olhos, nem bocca, nem nariz, nem nada... um horror! Fazia soffrer. Preguntou se eu ainda tinha boa voz e se não tinha penna d'aquellas serenatas ao luar p'lo rio todos muito apertados com as primas da Eira de Pedra no bóte do tio d'elle. Elle achava que se calhar eu já tinha esquecido todos aquelles fadinhos tão catitas e ficou com um O maiusculo na cara toda quando eu lhe disse que já não namorava a Alice. Tambem queria saber o que eu tinha feito do cavallo que era tão airoso que um domingo até deixára de ouvir missa por ter ficado a vêr-me a dar gallopes no adro e a saltar uma oliveira que tinham tirado por causa da barraca da "kermesse". A proposito perguntou-me se eu tambem não achava que a Alice se parecia immenso com a minha amante e ai que os olhos então eram tal e qual. Pra elle era um exercicio que elle tinha que fazer pra ámanhã de manhã o eu ter deixado a Alice e com tanta cortiça! Teve immensa curiosidade em saber se eu ainda era muito distincto em mathematica mas além d'isso todos nós os tres achámos boa ideia irmos tomar o café fóra, á Brazileira. Pouco depois ouvimos grosso tiroteio no Largo do Directorio e elle nem sequer ainda tinha deitado assucar na chavena e já estavamos outra vez na pensão com apparencias pallidas de cardiacos com uma escada bestial até a um quarto andar. Eram umas duas horas da madrugada ainda elle estava a dizer que eu, quando foi a festa da Senhora da Saudade, talvez que eu me não lembrasse mas elle ainda estava a vêr uma Nossa Senhora que eu tinha pintado com anilina em dois metros de patente e que tinha ficado mais bonita que uma estampa e que até o prior me tinha feito um elogio rasgado no sermão da Paixão dizendo que era uma pena se eu não continuasse os estudos; mas o que elle achava mais extraordinario é que tendo sido expulso de Campolide a unica medalha que eu tivesse ganha fôsse justamente de catecismo. A dizer a verdade eu já tinha saudades de ter sido caricaturista mas como ella se tivesse ido deitar porque já não podia mais com somno elle disse-me que ainda bem porque trazia uma carta da Alice que era pra mim com a condição de eu dar resposta. A carta em questão affirmava sem preambulos que quando chegasse até elle já a tua Alice nem comia, nem bebia, nem via, nem cheirava, o que queria dizer que estava morta. Comtudo a resposta era pra ella porque em _post-scriptum_ affiançava que estava disposta a esquecer aquella infame caricatura que eu tinha dito que era o retrato d'ella pra reatarmos outra vez aquella paixão intensa com passeios aos pinheiros e merendas no bosque e pescas ao candeio e, emfim, aquella pouca vergonha toda que é inevitavel p'las ferias com a barraca dos banhos mesmo ao lado da d'ella. No mesmo _post-scriptum_ pedia-me o obsequio de lhe ir comprar um chapeu da moda que não fôsse além de dois mil réis que era pra estreiar na feira por causa das Delgados que faziam troça d'ella por eu a ter deixado e que quando eu fôsse pra lá em Agosto que iria pedir ao tio Pedro dois mil réis emprestados. O mesmo _post-scriptum_ ainda dizia e com c cedilhado que não pensasse mais n'ella caso eu não lhe quizesse responder; porém, incitava-me á indisciplina com mais passeios aos pinheiros e merendas no bosque e pescas ao candeio, emfim aquella pouca vergonha toda que tinha custado um tiro de arma caçadeira no ouvido do primo d'ella que recitava monólogos de João de Deus e glosava todos os pensamentos com a condição do faroleiro o acompanhar á guitarra. No fim do _post-scriptum_ dizia-me que não tivesse duvidas absolutamente nenhumas que ella ainda era a mesma Alice que eu tinha deixado no club sem par pra dançar e que tambem não tinha duvidas absolutamente nenhumas que o tio Pedro lhe emprestaria p'la certa os dois mil réis. Cá no canto do papel dizia muito baixinho em hypothenusa de triangulo rectangulo--volte. Eu voltei e ella perguntou-me lá em cima do outro lado se eu achava que ella devia tomar as pilulas pink ou comprar um vigesimo da loteria do Natal com esse dinheiro e que gostava da minha opinião. Depois contava laconicamente uma excursão que um tio d'ella tinha feito á Torre do Pombal que tem vinte e cinco metros a pino e que, coitado, caira e logo por infelicidade quebrara uma perna que tinha ficado ao contrario. Pedia tambem desculpa de me não escrever em papel de luto mas que por desgraça das desgraças o pae d'ella tinha desapparecido quando n'um passeio p'la estrada vinha a correr pra cá uma manada de bois bravos. Emfim, a infelicidade era tanta, tanta que a propria mãe até já tinha abandonado a sua carreira de prostituta em Beja e até já lhe propuzera pra se amancebar com um senhor Barbosa que era de Lisboa e que me conhecia muito bem e que já não tinha muito cabello. Comtudo tinha preferido montar uma engommadoria com o dinheiro que um grumête do "S. Raphael" que era o unico amante que felizmente a mãe d'ella tinha agora e podia ir pagando aos poucochinhos. Mas não! preferia continuar aquella vida com elle. Aquella vida séria que não se póde voltar atraz, é ir... é não lhe dizer nada e deixar. E o relogio deu horas que eu contei mas não eram quatro nem cinco era um algarismo que eu nunca vi escripto e que só agora é que eu reparei que existe realmente entre o quatro e o cinco. Mais ninguem tinha ouvido senão eu. Felizmente que o relogio era de repetição e eu pedi a attenção de todos e estavam todos attentos e só eu é que ouvi. De repente partiu-se a fita e lá adeante começaram a dar pateada. Depois comecei a sentir muito frio só no hombro direito, tinham-se esquecido de fechar a janella. Vinha muita gente a fugir p'lo Chiado a baixo e o Chiado parecia n'aquella noite sem arcos voltaicos uma ponte levadiça sobre uma barbacã descommunal. Do outro lado a Alice tinha chegado tarde. O _post-scriptum_ tinha na ultima pagina escripto em lettra romana 33. Depois ia a andar, a andar pela margem fóra e começou a vêr uma bola muita sumida que ía crescendo, crescendo em tamanho mas que ficava sempre sumida; tornava a começar cá debaixo e já não crescia, subia toda deitada prá esquerda a diminuir a velocidade, a diminuir pra azul, pra azul até começar a ser devagarinho um boneco mal desenhado a dançar uma imitação do fantoche. Depois a cabeça do fantoche começou a inchar mollemente sem firmeza nenhuma e quando já era um balão muito grande que vinha cair ao pé de mim tocou n'um bico de alfinete que estava no tecto e entornou-se um balde de sangue que nunca acabava de se entornar mesmo no meio das merendas no bosque. De repente os andaimes começaram a desabar sobre mim. Os garôtos apregoavam nas ruas _A Capital_... muito longe, sem chão, alargava-se apressadamente uma cova de luz com as arvores nas nuvens de pernas pró ar, e a cova furou tudo pró lado de lá e ía-se abrindo mais depressa, muito mais depressa do que eu lhe fugia. D'esta vez bati mesmo com a cabeça na esquina da meza e o meu amigo deante de mim dizia-me que eu devia por todas as razões fazer as pazes com a Alice. Eu é que já não podia mais; pedi-lhe immensas desculpas mas que estava era com um d'estes somnos de subir a escada ás escuras com o sol a nascer nos mercados. Quando cheguei ao quarto estavam todas as lampadas accesas e a engommadeira dormia a respirações baloiçadas tendo aberto entre os dedos na gravura do Christo um livro de missa todo ensopado em tinta verde e que era a unica recordação que eu trouxera de Campolide. Os labios d'ella estavam fortemente pintados de vêrdeesmeralda! +XI+ Era muito pra lá do cemiterio mesmo na volta das furnas. Os carros da estrada quando passavam por ali iam mais depressa e de noite não passavam. De noite a volta das furnas ficava sósinha. Um dia appareceu uma cruz negra muito mal-feita e ainda ha muita gente no logar que diz que viu com os proprios olhos a cruz negra do moinho velho toda accesa de noite. Uma noite foi tão grande o clarão que até houve sinos a rebate julgando ser fogo. D'outras vezes é tão grande a gritaria que vem de lá do moinho que as mulheres, coitadas, pôem-se a chorar baixinho com medo de fazer barulho. Até o senhor prior que não acreditava foi lá sósinho pra desencantar o bruxedo com agua-benta porque as mulheres gritavam pra não deixar ir os maridos... e fizeram bem porque o senhor prior, não se sabe d'elle! Uma velhinha que voltou tarde da feira e não se lembrou e passou por lá prendeu-se-lhe uma rã nas voltas das saias e appareceu morta na estrada só sobre um pé. Depois é que nasceu o castanheiro que lá está no sitio. A gritaria que vem de lá do moinho é como o coaxar das rãs com o regato a correr filtrado. E cabra que paste por alli só dá peçônha. Um dia uma escola de repetição quiz-se fazer teza e os canhões foram fumados pelo commandante que se tinha esquecido de comprar charutos. Quando rompeu a manhã os batalhões já eram rãs que se tinham calado. Por isto mesmo, e é bastante, já não ha aldeia nenhuma n'este sitio de que estou fallando. Apenas existe um poço de cimento armado com balde e agua salôbra onde eu e a minha desditosa amante iamos gastar as tardes longe da cidade consoante a recommendação do meu medico que por deferencia que nunca esquecerei foi n'este caso o medico d'ella. Não sei positivamente a razão d'aquella mudança tão repentina no espirito irrequieto da minha amante que quasi já nem sabia fallar e quando fallava era pra me pedir amendoas sentadas ou prá levar a pessear onde caem os balões. A saude physica antes de a perder, pelo contrario, desenvolvera-se-lhe extraordinariamente sem uma constipação apesar de preferir andar por toda a parte sempre núa. Uma manhã quando accordei no chalet que eu alugara sósinho n'aquelle monte longe de toda a gente reparei que ella não estava na minha cama! A prêta, a cosinheira, tambem não sabia nada. De todas as janellas que eu espreitasse ella só poderia estar das que eu não espreitasse. Se descia ao rez-do-chão ouvia passos no outro andar mas se estivesse no outro andar ouvia passos no rez-do-chão. Tambem, se por acaso, eu dava uma volta pela quinta prá procurar quando voltasse era certo que ella ainda não tinha accordado. Ás vezes a luz tambem faltava de repente com o frio de uma janella que se abria mas quando a luz voltava as portas de dentro das janellas tambem estavam fechadas. Uma noite eu estava a escrever um conto realista e o aparo da canêta era uma vêspa. Pensei toda a noite na vêspa e na manhã seguinte o meu conto realista estava acabado com lettra da minha amante que, mais extraordinario é, nunca aprendeu a lêr. A cosinheira prêta chegou-se um dia junto de mim a chorar como doze cosinheiras prêtas e disse-me que tinha medo de dormir no sotão porque as têlhas de noite punham-se todas em braza e que depois quando se derretiam cahiam em picadellas de alfinetes. Tambem contou que uma madrugada tendo-se sentido mal que se tinha ido vêr ao espêlho e que vira com os dois olhos da cara a agua do contador a cahir pra cima. No dia seguinte o carteiro trouxe uma carta registada que quando eu a abri foi logo um estôjo de barba com sabonete e tudo, e quando eu fui pra mostrar este presente á minha amante encontrei-a sentada sobre uma vela accesa a cortar reflexos com uma thesoura das unhas que já faltava no meu estojo da barba quando eu o abri. Quando a vela ardeu toda começaram a apparecer pelas parede ás escuras immensos t t que vinham uns depois dos outros e cortados por estrellas cadentes que eram uma nota de musica quando acabavam. Immediatamente entrou a cosinheira e vinha com um castiçal de cobre acceso mas trazia a cabeça ás avessas; vinha preguntar-me se eu sabia, por acaso, onde é que eu tinha lido aquella frase que ella já se não lembrava se era i ou de chumbo. Mas peor do que nunca, foi quando n'aquella manhã de Maio eu accordei no meio de um sônho em que vira a minha amante como sendo cosinheira preta da cintura pra cima e sendo apenas a minha amante da cintura pra baixo. Quiz certificar-me. Sentei-me na cama e tive um grande prazer em verificar que tinha sido apenas um sonho aquelle horror. Porém, quando ella se ergueu era effectivamente, ainda que ao contrario do meu sonho, a minha amante da cintura pra cima e a cosinheira preta da cintura pra baixo. Desci preoccupado as escadas, tive a noção exacta da profundidade até onde estavam pregados os pregos dos degraus; comprehendi como um degrau póde ser um mundo se nós quizermos e é um mundo real mesmo que nós o não queiramos. Achei mesmo dois mundos differentes dentro de um mesmo prego--um era a cabeça do prego, o resto era o outro. O que me interessou mais foi justamente o que era apenas a cabeça do prego. E logo havia outro mundo n'outra cabeça de prego... e outro n'uma cabeça de prego maior... e outro n'outra cabeça de prego ainda maior, e outro n'uma cabeça de prego da altura da Torre Eiffel e um prego cuja cabeça fôsse a Terra e apesar d'isso ainda houvesse outros pregos muitissimo maiores. Tive mesmo dentro do meu cerebro as dimensões de um prego em que a Terra fôsse o atomo minimo do ferro que pezasse em toneladas a capacidade do mundo astral com todas as suas distancias. E mais ainda: eu sentia que cada póro do meu corpo, cada molécula isolada, era uma série de mundos diferentes onde cada mundo mesmo os das ultimas subdivisões tivessem um mappa e leis e onde cada sêr fôsse tão complicado como o homem e mais ainda do que o homem, como eu. Não era sómente este segrêdo que já fazia parte da minha riqueza, havia outro. Era eu ter conduzido a minha sensibilidade (educada exclusivamente pelos que me educaram na psicologia humana) pelos timbres dos metaes... Ah! os mundos interessantissimos que são aos milhares nos timbres dos metaes, e nas côres dos metaes e na ferrugem e na duracidade e em todas as partes do corpo mineral e em todas as sensações da alma mineral muito mais independente que a psycologia humana pela unica razão de aquella ser independente. E que exercitos tão mais gloriosos e que Alexandres e Napoleões bem mais deuses desfilam n'esta historia immensa, muito mais antiga que a nossa, e com historiadores que sendo poetas vivem n'um mundo inteiramente mais perfeito, apesar de existirem talvez apenas no bico do alfinete que o senhor Barbosa traz espetado na gravata encarnada e verde. Isto vem a proposito do senhor Barbosa ter communicado n'um bilhete postal á minha amante que ia escrever um livro sobre... sobre quê!? O senhor Barbosa que por ser senhor Barbosa é toda a gente, quer seja senhor Barbosa na Arte, quer o seja na Politica ou na Individualidade ou em tudo é n'este mundo o mesmo que um remedio que nunca haverá de livrar as pessoas da morte. Digo nunca haverá porque não creio em absoluto na intelligencia humana por isto que o homem só vive exclusivamente a vida nitidamente animal ou a mysteriosamente espiritual porque nem esta mesmo na sua metaphysica soube definir quanto mais a vida mineral, a vegetal, a fluida, a do orvalho, a da phosphorescencia, todas as infinitas vidas synthetisadas na côr verde e em todas as outras côres e em todos os tons provaveis e impossiveis de todas essas côres e de todos os seus contrastes simultaneos... etc., etc. Ora como quer o senhor Barbosa escrever um livro se nem mesmo como transeunte o senhor Barbosa é completo ou competente. Ou como póde o Papa ser infallivel em materia de Deus se o meu Deus é differente do d'elle e do de todos os seus catholicos e até differente do Deus de todos os atheus. Deus ha tantos quantos os instantes de todas as vidas de todos os mundos e esse ninguem póde adora-lo porque o não póde conceber. Só esse proprio Deus é que o póde conceber, e mesmo Este não admitte a sua propria concepção porque se a Terra por destino tiver fim os outros mundos subsistem e se o fim fôr uma logica das determinantes d'aqui a um milhão de annos os mundos serão todos outros com as metamorphoses de outros mundos ainda. Mas nem é preciso ir tão longe, vamos á vida, restrinjamo-nos. Eu se dou a minha opinião republicana a um republicano acha elle que sou talassa. Se é um monarchico que me ouve as theorias conservadoras desliga-se de mim por causa de eu ser revolucionario. Se é um artista que discute apressa-se em dizer-me que a arte d'elle é differente da minha como se houvesse duas artes, como se Deus fôsse dois como as approximações da loteria. O que esse artista não sabe é que essa tal arte d'elle é tão pouca coisa como o mercurio fechado dentro de um thermometro centigrado e que só póde subir até cem assim como se cem fôsse o limite do vacuo e onde começa justamente uma formação de mundos onde a atmosphera é rigida com relação á nossa impenetrabilidade. Ora o senhor Barbosa vae escrever um livro sobre quê?! O senhor Barbosa aprendeu no catecismo ou na educação civica que o homem tem cinco sentidos e foi no bote como qualquer ministro quer seja de Deus ou da Republica. Ora foi justamente o senhor Barbosa um dos primeiros que me veiu dar os parabens por causa de um Christo por mim publicado n'uma revista de rapazes a _Ideia Nacional_ cuja unica particularidade para os outros foi ser verde e não ter cabeça. Justamente como se eu tivesse tido a ideia de fazer uma cabeça de Christo e não um Christo inteiro. Não me dirá o senhbr Barbosa o que terá percebido do meu Christo? Julgou que fôsse partida aos catholicos? Julgou que era a minha adhesão á Republica? Julgarão tambem os catholicos que me merece alguma consideração essa sua archaica restricção religiosa? Julgarão acaso os catholicos que eu pretendi cantar-lhes a devoção? Julgarão os monarchicos tambem alguma coisa em seu favor? Christo, cuja unica nodoa consiste em andar recentemente a dar extensão a appelidos de pessôas que não são muito extensas, tem outras grandezas das quaes não são os catholicos nem os christãos que partilham d'ellas, A Lenda de Christo é a unica profecia exacta de toda a Historia Universal. É simultaneamente a historia da Humanidade desde o primeiro homem até ao ultimo de todos os homens e a vida interior, consciente e inconsciente, de cada um dos homens separadamente. A Lenda de Christo edificada talvez sobre a vida de um homem cujo descriptivo symbolisava essa propria Lenda, canta a Personalidade, as luctas pela victoria da Intelligencia, os sacrificios pelo Bem dos outros admittindo entre estes todos os que a esthetica comparou. Teria mesmo muito mais que dizer a este respeito mas como a minha amante, coitada, já se está a affligir demais, porque embirra immenso que esteja a discutir politica, eu paro hoje por aqui porque além d'isso ainda tenciono ir ao _Chiado Terrasse_ com ella, coitadita! +XII+ O anão já não era o mesmo--morrera o bôbo das tabernas, o poeta mendigo da Torre. Pobre anão corcunda dobrando as pernas curtas cançadas de um ventre enorme. Os largos pés sem abrigos calejavam as sollas a arrastarem-se em desiquilibrios que até pareciam de proposito. Os braços inteiros fingiam metades e ajudavam-lhe os passos a dar-a-dar. Os dedos curtos e cabelludos em cima não eram os dedos das mãos eram os dedos dos pulsos. A cabeça tinha a expressão de não estar bem cheia, mal-ageitada sobre os hombros subidos a susterem-lhe as faces inchadas com uma barba rala de ferrugem de prego torto no meio da estrada depois da chuva. O nariz soprado mettia mais pra dentro uns olhos escondidos como toupeiras nos buracos á espera da noite. O rithmo do deslocamento total era o maximo de intensidade theatral n'um drama socialista e o casaco negro, verde de velho, vestia-o todo e ainda se espojava por detraz d'elle n'um movimento de andar menos depressa e não ter rodas. Ás vezes com o sol em chapa chegava a ter a imponencia do manto arrogante de um rei. E o povo todo ao vêl-o esgueirar-se timido plas vielas já não ria os gestos cortados do bôbo das tabernas, todos recordavam as graças mortas do outro anão do mesmo casaco comprido. Dantes pedia esmola ou vendia cautelas, ou estropiava n'um fandango de ir cahir, as coplas mais indecentes das revistas; agora fugia dos outros e não mendigava, tinha mesmo um orgulho de saber uma coisa que os outros não sabiam. Ás vezes quando encontrava os mendigos punha-se a chorar e convidava-os pra ir prás terras e dava-lhes uma moeda de prata. Porém, continuava a morar n'aquella torre já quasi sem base e no ultimo quarto mais perto de onde cahia a chuva, uma cela immunda sem postigos onde o sol de medo e de nojo nunca fôra. E todas as noites, todas ia subindo de gatas a contar com o ventre a chocalhar os degraus comidos que o cançavam até ao ultimo quarto da torre. Então gemia a cancella na monotonia do grito do seu viver corcunda e tombava-se sempre vestido nas palhas apodrecidas sentindo-se rei no halito fedorento da enxovia que arruinava as pedras interiores n'um halito viscoso de urina de sapos. Passa da meia-noite. A torre em cuidados tinha-se sentado embrulhada no chaile á espera do seu anão á porta da propria torre. Quasi manhã viu-o a torre nos fins do caminho a cambalear. Cantava indecencias aos _zig-zags_ de dissonantes no luar cançado da manhã. Com chapeladas e gargalhadas saudava com exageros desconjuntados as arvores medrosas que guardam os caminhos. Por vezes julgava-se elegante e andava dois passos sem _zig-zags_ e se esbarrasse em alguma arvore comentava logo sem premeditação: Croia! Ás vezes abraçava-se a um tronco pra precisar um pensamento obscêno e demorava-se n'aquella sua opinião de osgas em que todas as mulheres eram uma só e descalça e desgrenhada cujo sexo fôsse uma sangue-suga côr de rosa. Depois seguiu com os olhos uma setta da côr da estrada e que seguia p'la estrada fóra e que depois chegava a uma torre e que subia até lá cima e acabava em palhas ás escuras. Trazia tambem saudades da Torre. E como sempre lá ia subindo a contar com o ventre a chocalhar os degraus cançados da escada magra e cega sentina dos gatos vadios. Na cancella mais anã do que elle alliviou-lhe as trancas em fatigantes demoras e aprumou-se dono e rei ao ouvir tlintar os ferros nas lagens humidas. Contente ia rindo aquella felicidade de ter encontrado o seu solar de sombra. Sentiu um peso no bolso do casaco que ficou preso n'um prego espetado ao contrario, e com um vomito de champagne tirou do bolso um frasco elegante de Chevalier d'Orsay. Esbofeteou-lhe o gargalo e teve um gesto de o atirar plas escadas abaixo. A torre, porém, vomitou na rua um anão corcunda emmaranhado nas vestes e que foi parar defronte n'um marco geodesico sobre o precipicio. No peito cavádo e nú sujo de cabellos negros a branquear repousava obscêno o verde esmeralda postiço dos labios de uma mulher. Lisbôa, 7 de Janeiro de 1915. +FIM+ +Preço $25+ EDITOR: O AUTOR 1917 TIPOGRAFIA MONTEIRO & CARDOSO *** End of this LibraryBlog Digital Book "A Engomadeira - Novela Vulgar Lisboeta" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.