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Title: Verdades amargas - estudo politico dedicado às classes que pensam, que possuem - e que trabalham Author: Nunes, Cláudio José Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Verdades amargas - estudo politico dedicado às classes que pensam, que possuem - e que trabalham" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal)) VERDADES AMARGAS ESTUDO POLITICO DEDICADO ÁS CLASSES QUE PENSAM, QUE POSSUEM E QUE TRABALHAM POR CLAUDIO JOSÉ NUNES LISBOA TYPOGRAPHIA DE FRANCISCO XAVIER DE SOUSA & FILHO 26, Rua do Ferregial de Baixo, 26 *1870* AO LEITOR O auctor d'estas linhas não pretende endireitar com ellas o mundo, nem dar conselhos a quem lh'os não pede. Como pertence, porém, a essa tribu de sonhadores que tem a simplicidade de gastar alguns minutos no estudo das cousas da patria, e tantas vezes te ouve ponderar--a ti mesmo, que tens agora este folheto nas mãos--o que adiante acharás, julgou dever condensar em letra redonda a expressão de teus patrioticos reparos. Ignora elle, comtudo, se o pudor convencional te fará agora tapar os olhos em publico na presença da verdade nua, que tão frequentemente despes nas côrtes e na imprensa, na sala e na rua. É natural que não. Mas se esse facto se der; se a tua hypocrisia tomar geitos de castidade, repara que, ferindo o auctor, cravarás o ferro em tua propria lingua. Ha só uma differença. Tens dito mil vezes que o paiz está podre. Aqui diz-se unicamente que o paiz apodrece. Pódes, pois, á vontade hervar a setta da critica. Outubro de 1870. VERDADES AMARGAS Ha na vida dos povos alguns momentos em que é honra e proveito o trabalharem todos os cidadãos na redempção da patria commum. O nosso paiz atravessa uma hora difficil. De norte a sul, em todos os recantos d'este velho torrão portuguez, o edificio social escaliça e range, como se houvesse caído sobre elle uma d'essas biblicas maldições que imprimiam o cunho de uma irremissivel fatalidade. As forças vivas do paiz vão esmorecendo n'um deploravel abatimento. Definha o commercio; retrae-se a industria; a agricultura vê seccar os peitos uberrimos. Sobre os factores da riqueza nacional anda uma athmosphera suffocadora. A intelligencia annuvia-se; o capital adormece; o trabalho espreguiça-se. O melhor e maior de todos elles, a confiança publica, declina rapidamente para um funestissimo occaso. Porque? Porque um povo não vive só do que palpa e do que vê. Transpõe-se o rio; corta-se o monte; povoa-se o estalleiro; fertilisa-se o solo; mas se todo o progresso material fôr automaticamente produzido, sem que o illumine uma faisca d'esse espirito publico, que constitue a alma das grandes nações, tarde ou cedo a ephemera florescencia murchará de encontro ao mais ligeiro attricto. E assim é. Quiz Portugal acompanhar a Europa no caminho da civilisação. Poz a estrada aonde era o barranco e o caminho de ferro aonde era a estrada. Estimulou a producção pelo consummo e o consummo pela producção. Fez do credito a alavanca de multiplicadas emprezas. Viveu em vinte annos o que não vivêra n'um seculo. Mas como, no meio d'esse tumultuar de interesses, não quiz ter olhos e coração para o culto das cousas do espirito, vê-se hoje a braços com uma crise angustiosa, nascida em grande parte da relaxação moral em que labora o paiz, debaixo do ponto de vista politico e social. * * * * * Diga-se a verdade, custe o que custar. Não é com o silencio que se dá rebate a um povo em perigo. Ponha-se o cauterio na ferida, embora as carnes estremeçam com a dor. O verdadeiro patriotismo não cala nem dissimula; descobre e repara. E o remedio urge. Um veneno subtil, mescla atroz de apathia, de relaxação e de egoismo, vai-se lentamente infiltrando por quasi todas as camadas da sociedade portugueza e acabará por matal-a, se contra elle não reagir a poderosa triaga de moralisadora e energica acção. Sem criterio moral não terá o paiz o sentimento de seus direitos e de sua responsabilidade. Se lhe faltar esse duplo sentimento, faltar-lhe-ha a vontade propria. Sem vontade propria não ha elementos de boa politica. Sem boa politica não ha governos estaveis. Sem estabilidade nos governos não ha confiança publica. Sem confiança publica não ha grangeio de riquezas. Sem augmento de riquezas não se avoluma facilmente a receita do estado. Sem equilibrio no orçamento vai-se direito á ruina. Ruina que não provém, pois, unicamente de razões physicas occasionaes, mas que tem raiz e tronco na condição moral em que vivemos. Ruina que póde levar-nos ao suicidio na bancarota ou na Iberia. Incuta-se, pois, no paiz um novo alento e o que hoje é beira de abysmo, na phrase tradicional da imprensa, talvez não passe amanhã de ponto confuso na topographía politica de um povo regenerado. I Haverá criterio moral no paiz, em tão larga escala e com tal cunho, que dê physionomia á vida publica portugueza? Infelizmente, não. É certo que não escaceia nas transacções da vida particular essa honestidade, que á força de ser obrigação, não passa de banal virtude. Toda a terra em que ella chegasse a constituir excepção cedo se converteria n'uma charneca de salteadores, aonde o mais robusto e o mais audaz tomaria a realeza do roubo e do assassinato. Não falta igualmente quem modele o seu procedimento, no tracto commum, pelas normas de escrupulosa delicadeza, não consentindo que a sombra sequer de uma duvida lhe embacie a transparencia do nome. Mas não se trata aqui de individuos; aprecia-se a collectividade. Não se allude a homens; falla-se do paiz. Do paiz que elege. Do paiz que legisla. Do paiz que governa. Do paiz politico, n'uma palavra. N'este, força é confessal-o, as excepções invadem a regra geral. As convicções andam alli geralmente á mercê dos ventos do ceu. Um enxame de incredulos, que borboleteiam de despeito em despeito ou de interesse em interesse, pousando hoje aqui e além ámanhã, suga o mel do partido em que eventualmente pousou, flor tanto mais procurada quanto mais se espaneja ao sol do poder. Os proprios programmas partidarios batem repetidas terçãs. Ardem na febre ou gelam no frio, segundo são difficuldades de governo ou facilidades de opposição. No meio d'esta balburdia quasi toda a gente é correligionaria de quasi toda a gente. Parece que o pobre do orçamento é floresta aonde se caça a furão e a rede, a tiro e a pau. Não ha mezes defezos, nem habilitação policial. Entra quem póde. Fere, mata e apanha quem teve melhor olho ou mais vigoroso lebreu. Gasta-se metade do anno a demolir os adversarios e a outra metade a forjar com elles alguma salvadora fusão. E como n'esta abençoada terra não se discutem principios mas homens, o imbecil, o devasso, o infame da vespera será no dia seguinte honrado collega. A abnegação democratica é apregoada de boca em boca mas, para honra e gloria d'ella, um chuveiro de titulos e condecorações alaga por vezes em ridiculo a prosapia do agraciado e a referenda do bemfeitor. Mais ainda. Tropeça um conde na plebe, levanta-se logo marquez. Se vem a republica, é certo o ducado. A lei anda em interinidade. Reformas de reformas reformam o que foi reformado. Quem se descuidar um mez de estar em dia com a legislação arrisca-se a dar comsigo n'algum labyrintho de referencias ou n'algum fojo de multas. Leis não faltam. Verdade é que, em compensação, ficam muitas em letra morta. O respeito ao principio de auctoridade, sem o qual nem a propria liberdade florece e fructifica, vai-se pouco a pouco obliterando no espirito das massas. Só em tempo de eleições e a tres metros da urna é que, por uma fatal inversão, a indisciplinada turbulencia do campanario se dobra aos conselhos de quem alli representa aquelle desprezado principio. Fóra d'essa quadra excepcional, queimam-se cartorios publicos; espancam-se empregados; negam-se esclarecimentos e toca-se a rebate contra os agentes da lei. A intriga e a calumnia são moeda corrente. Emquanto a mentiras já não incommodam quem as ouve e as diz. O caso é que se minta a proposito e bem. Questão de habilidade. As varias fórmas da utilidade invadem todos os corpos e todas as almas. Subir e medrar, gozar e vencer são os pontos cardeaes do mappa das crenças. Quem negará que o escandalo seja uma excellente recommendação? Exemplifique-se: Anda por ventura a attenção popular em curioso convivio com os mestres da escripta; com a musa da forte e sã litteratura; com Garrett, Herculano, Castilho, Rebello e Mendes Leal? Passa a vista pelos trabalhos serios da imprensa? Occupa-se, porventura, em ler as discussões parlamentares? Não, não. No seu paladar pervertido sómente causa o estimulo da curiosidade algum pamphleto immundo, em que se insulte a decencia; se morda na lingua; se cuspa nas instituições e se esbofeteie a verdade. E quanto mais é cobarde a insinuação; quanto é mais vil a denuncia; quanto mais salgada é a infamia da phrase, tanto mais as saboreia a avidez popular e se deleita com ellas o commum dos leitores. * * * * * Mas basta de generalidades e venha um facto concreto. Triumpha uma sedição militar. Nos salões, outr'ora desertos, do conspirador, acotovella-se, horas depois, a turba cerrada dos cortezãos da victoria. Não admira. Ha musica no côro e bodo no pateo. Rebenta um partido do cofre das graças. Formigam as adhesões. Enxameam os enthusiastas. Não chegam os clarins para os arautos da gloria. Á excepção da parcialidade vencida, todas as outras se derretem em negaças ao heroe do momento. De todos os cantos estalla um catharro provocador. E um sargento de caçadores fechára as portas do parlamento! Vem uma e diz: «Sou a Regeneração. Já não me conhece, marechal? As amizades antigas nunca se perdem. Se não tenho o fogo da mocidade, tenho a madureza de espirito, qualidade digna de ser apreciada por quem já não tem pulmões para folegos profundos. Em vez de cirios e cavalgatas, passaremos os serões a grudar as folhas da Carta, violentamente rasgada n'um minuto de pressa, e, grudar por grudar, grudemol-as nós. Esqueçam-se quinze annos de amuo nas aras de um prudente consorcio.» Mas uma voz grita do lado: «Arreda-te, bruxa maldita. Aqui estou eu, que sou a Reforma. Sou joven e bella, airosa e poupada. Uma choça e teu coração, meu guapo marechal! Ahi fiaremos uma existencia de rolas e pediremos á egreja que abençõe este feliz matrimonio.» Clamam de baixo: «E eu sou a Revolta! Nos meus braços robustos tens um throno de affectos. Só eu sou a forte; só eu sou a bella. Despreza a velhice prudente e a infancia dengosa. Rodopiarei comtigo n'uma orgia perpetua. Ora soltarei os cabellos aos ventos da demagogia, ora polvilharei de ouro as tranças luzentes Desde a lama até ás estrellas será estreito o espaço para as nossas folias.» E assim foi. E haverá criterio moral n'um paiz aonde se corteja o poder com tão notavel impudor? E depois? Depois veio a queda. Um golpe de estado desfez o que fizera o motim. Cura perigosa de uma perigosa doença. O paiz não achára em si força sufficiente para debellal-a e entregou á corôa a manipulação do remedio. Triste confissão de impotencia! Triste symptoma constitucional! Caiu o marechal. Era execrada a dictadura. Moveu-se-lhe guerra em nome da nossa autonomia. Contra os actos d'ella subiram as queixas dos partidos até aos degráos do throno, que as ouviu e attendeu. Pois bem. Despediu-se o artista mas guardou-se a obra. As leis da dictadura são leis do paiz. Os auctores e collaboradores d'essa gloriosa empreza, acabam em santa paz a digestão do festim, e um _muito a meu contento_ que seria a condemnação do proprio decreto em que foi lavrado, se não fôra uma ficção constitucional, passa um golpe de esponja sobre a logica de uma situação! Assim era necessario para que quem morrera ministro resuscitasse embaixador; isto é, n'um cargo de absoluta confiança politica ao serviço de uma das parcialidades que maior guerra lhe movêra! Um recebe e parte. Outro não parte e recebe. O paiz olha e paga. Á vista de um episodio d'estes haverá criterio moral no paiz? II Se é verdade, o que fica exposto, não deve causar estranheza que o paiz não tenha claras noções de seus direitos e de sua responsabilidade; direitos pelos quaes deve responder não perante a maioria mas perante a universalidade dos cidadãos portuguezes; responsabilidade que lhe compete diante da prosperidade publica, da lei e da historia. O codigo de nossos direitos é a Carta constitucional da monarchia. Em quanto existir será o vehiculo legal de toda a actividade politica. Mas quaes são, de entre alguns milhões de portuguezes, os que tem conhecimento directo d'esse pequeno volume, que nos custou rios de sangue e montanhas de ouro? O povo, opprimido ainda pela tradição secular da ignorancia que lhe era imposta pelo interesse de uma politica de confessionario e de côrte, nos tempos do direito divino, sae ainda hoje, lentamente e como que a custo, de uma existencia passiva e expressamente concentrada nas cousas do mundo physico, para as regiões moraes aonde brilha a idéa democratica da sociedade moderna. Conhece, portanto, a constituição só pela pratica, e como a pratica não tem geralmente sido a fiel interpretação da theoria original, não admira que o grosso do paiz ao cabo de trinta e tres annos de exercicio constitucional, ainda não comprehenda bem até onde chega o alcance das armas que lhe poz nas mãos o systema representativo. As fontes do exemplo, seu guia, espelho e mestre, não lhe tem, de certo, vertido os mais puros licores. * * * * * Na cupula do edificio está o poder moderador na pessoa do chefe do estado. É certo que ás espheras serenas, aonde paira, não devem chegar as lufadas das paixões partidarias nem os pratos da balança em que se peza a sorte arbitraria dos ministerios. É certo que o rei é irresponsavel. Mas tambem não é menos exacto que essa irresponsabilidade não é congenita ao exercicio da corôa, porém nasce unicamente de um artigo da Carta. Suspensa, pois, de facto a constituição pela dictadura, a irresponsabilidade real caduca desde logo. Morta a causa, desapparece o effeito. Póde-se, pois, alludir, sem quebra de lei, a um acto importante de responsabilidade pessoal, que teve logar no mez de maio do corrente anno. Quatrocentos soldados invadem o paço da Ajuda. Falla a polvora e caem as victimas. O duque de Saldanha intima a demissão do ministerio, ao qual dera a sua palavra de honra de que nunca se revoltaria. Cede o rei e concede a dictadura. A bondade natural de seu coração recua diante da possibilidade de um conflicto que levasse os salpicos do sangue até ás ruas da capital. Em seu animo, inclinado á paz, bate de chofre, paralysando-o, a responsabilidade eventual de uma guerra civil. Não se discuta o acto; pergunte-se unicamente: Em que ficou o direito que assiste á corôa de escolher livremente seus conselheiros responsaveis? Em que lhe ficou o direito de addiar ou dissolver a camara dos deputados, quando um piquete de tropa de linha dissolveu de facto os eleitos do povo? Em que lhe ficou o direito de perdoar, quando, seguramente contra a vontade do soberano, o general vencedor castigou o crime de obediencia ao juramento prestado? Tres direitos offendidos. Tres perniciosos exemplos. * * * * * O principal direito do poder legislativo é o de fazer leis que subam depois á sancção real. Direito que se exercita tanto sobre propostas do governo como sobre as que dimanam da iniciativa individual dos membros do parlamento. Mas quem ignora que esta ultima hypothese se evapora, quasi sempre, n'uma illusoria garantia e que falta habitualmente ás camaras a energia para zelarem, como deviam, os direitos de cada um dos que a ellas pertencem, discutindo e apreciando os trabalhos de iniciativa particular, mórmente quando recaem sobre assumptos de interesse geral? Exceptuem-se algumas ninharias locaes e alguns negocios sobre os quaes não tenha convindo aos governos o comprometterem-se a favor de uma opinião definida, e contem-se os projectos importantes que, saídos da carteira do deputado ou do par do reino, tenham chegado á meza do conselho de estado. O direito de interpellação é uma das mais preciosas faculdades do parlamento. É a fiscalisação constante, a sentinella permanente do cumprimento da lei; a recompensa de bons serviços e o freio de iniquidades. E que acontece frequentemente? Vem um deputado e interpella o ministro. O caso é difficil. A defeza hade custar, se não fôr impossivel. Muito bem; não se responde. O queixoso renova tres, quatro, cinco vezes a embaraçosa pergunta, e a maioria condescendente renova outras tantas um adiamento que é sempre a negação de um direito. * * * * * Não lucta o poder executivo com menores contrariedades no exercicio de suas legitimas funcções, nem menos vezes abdica de algumas d'estas com prejuizo publico. Transfere ou demitte o governo um funccionario, que está dentro das attribuições do poder executivo demittir ou mudar. Rompe a celeuma. Era o acto talvez conveniente e moral. Embora. Redemoinham em torno do carrasco os parentes da victima, até grau desconhecido no codigo civil, e o anjo da amnistia apaga com as pontas das azas a assignatura que legalisara a fatal, mas honesta sentença. Quer o governo prover um logar, ou resiste ao pedido de qualquer demissão, sollicitada por terceiro? Sobre o uso de seu direito accumula-se tal pressão, que o ministro dobra-se ou quebra, quebrando com elle o direito e a moralidade. Tumultua a ignorancia, explorada pela politica, armando a insurreição contra o dominio da lei. Responde o governo á força com a força, no uso de incontestavel direito, depois de esgotados os outros recursos? Nem sempre. Titubeando entre o dever e a responsabilidade; não achando por ventura na consciencia a base do necessario rigor, vacilla, estremece, informa-se e contemporisa, sendo talvez necessario ir depois mais longe do que podera, se um energico e opportuno exercicio de seu direito constitucional tivesse atacado na origem o transtorno da ordem publica. D'esta unanime indifferença pelos direitos de governos e camaras nasce um tristissimo resultado. O governo, olhando só para os outros e não olhando para si, julga poder assumir diante do parlamento uma quasi attitude de superioridade; o parlamento, vendo no governo a maleabilidade de que já por vezes tirou beneficio, acostuma-se a acreditar que os ministros devem ser chancella de empenhos ou boceta de recommendações. Tem o paiz o direito.... Adiante. Quem falla n'isso? * * * * * O peor é que, por uma logica inexoravel, aonde falta a noção do direito, anda igualmente em falta o sentimento da responsabilidade. Serio e bem serio deve elle ser, quando seriamente comprehendido. Mas a verdade é que de responsabilidades ninguem cura, porque a ninguem se tornam effectivas. Cada um faz, geralmente, o que quer. O ponto está em que haja audacia para fazel-o e algum vestigio de força para o sustentar. Por exemplo: Manda um ministro pagar sete annos de ordenados a quem não serviu, por ter sido desligado da competente repartição. Já foi reparada essa extorsão ao thesouro do estado? Já se pediu a responsabilidade d'esse inaudito successo? A Bruxellas! A Bruxellas! E o passado, passado! E quando se despreza assim a responsabilidade legal, a que assenta em cousas tangiveis, o que succederá com essa outra que vive nas regiões do mundo moral? Que não entra nos codigos, porque não sae das consciencias? Que não sae das consciencias, porque nem tudo arromba o metal e a pedra? Que sentimento de responsabilidade acompanha o agitador, que a troco de alguns reaes, submerge na desordem a vida laboriosa de seus concidadãos? Que sentimento de responsabilidade influe nas phalanges cerradas de eleitores, que envernizam com um diploma alguma carunchosa podridão? Que sentimento de responsabilidade onera os que despedaçam os idolos da vespera, para alimento do fogo em que arde o incenso aos triumphadores da ultima hora? Que sentimento de responsabilidade impera no indifferente, que entre dois bocejos, lança a vista, apathica e distraida, para o veio de agua que leva á costa o desarvorado baixel da causa publica? Que sentimento de responsabilidade aconselha o voto do deputado que limpa com a dignidade os pés dos eleitores, ou que traz no diploma o vinco das libras? Que sentimento de responsabilidade opprime o funccionario publico nas mãos de quem os negocios ficam sempre em processos pendentes? Que sentimento de responsabilidade experimenta o militar que semeia a indisciplina nas tarimbas dos quarteis? E que sentimento de responsabilidade tem uma nação que, no seu desapego profundo ao que de perto lhe deve tocar, se contenta com o sorrir á carencia de todas estas responsabilidades? Essa carencia não fórma ainda o typo completo da nossa sociedade, mas alastra-se tanto sobre a politica e sobre a administração, que a existencia da nodoa será problematica sómente para quem escuta e não ouve; para quem olha e não vê. III Do que dito fica deriva esta natural consequencia: O paiz não tem vontade propria. A recordação do que se acaba de passar, no curto espaço de sete mezes, dará inequivoca prova d'esta deploravel proposição. Corria o mez de março de 1870. Governava o partido historico. Houve eleição geral. D'ella saiu tão numerosa maioria, que apenas dez ou doze candidaturas de opposição declarada conseguiram cantar victoria no dia da lucta. Caiu o ministerio progressista e veio o senhor duque de Saldanha, que, mais feliz do que Diogenes, conseguiu ao cabo de alguns dias achar o seu homem. Foi ministro do reino o sr. José Dias Ferreira e dissolvida a camara dos deputados. No fim de poucas semanas as urnas inchavam com tal hydropisia ministerial, que a opposição luctava apenas n'um terço dos circulos. Passou d'esta para melhor vida a pasta do sr. José Dias. Entrou o sr. bispo de Vizeu. Pois dezoito dias bastaram para que a maioria, que andava na forja, tão luzida e primorosa, se convertesse em refugo diante do baculo episcopal. Terá, portanto, vontade propria o paiz? Responda o que fica narrado. É fóra de duvida que ainda ha muito cidadão honesto e intelligente, que tem a consciencia do acto que pratica, quando lança um voto na urna. Suppôr o contrario seria injusto e pouco verdadeiro. Quem escreve estas linhas sabe, por experiencia propria, até aonde póde alcançar o desinteresse e subir a dedicação reflectida de centenares de eleitores. Desgraçadamente a regra é outra. O corpo eleitoral tem por nome Legião, e ahi, aonde se conta por dezenas de milhares, nem sempre a espontaneidade e o raciocinio constituem a mais pronunciada feição d'essa cohorte numerosissima. O que o paiz quer sabemos nós todos. Quer boa administração; quer paz; quer ordem publica; quer finanças prosperas, independencia e moralidade. O que o paiz não sabe querer é servir-se dos meios legaes para a obtenção do que deseja. E, comtudo, a formula de eterno conselho:--«Ajuda-te que Deos te ajudará»--leva mais de cincoenta seculos de existencia nos ouvidos da humanidade! Ora como o paiz não sabe querer, corre tudo geralmente fóra de seu influxo directo. As eleições, a primeira funcção constitucional; a melhor Egeria da corôa; a pedra de toque da popularidade; a expressão da mais augusta soberania, a soberania popular, não dependem, em sua maioria, do sentimento politico, na boa e lata accepção da palavra: systema, idéas, principios, mas de uma evolução artificial dentro de tres detestaveis corporações que as falsificam com uma influencia impura ou deleteria: O grupo dos indifferentes; O rebanho dos timoratos; A guerrilha dos corruptos. Para os da testa do rol todos os candidatos são de igual estatura. Uma razoira, implacavel por descuidosa, confunde n'uma superficie commum o talento e a estupidez; o saber e a ignorancia; a aptidão e a inutilidade; a boa fé e a especulação; a honradez e a improbidade. Dão ao favor, á cortezia, á amizade e ao empenho, o que deveriam conceder ao interesse publico e á reflexão. Para elles tanto vale que entre nas côrtes um homem d'estado, como que alli tome assento alguma creatura que do velhissimo Adão só tenha herdado o barro quebradiço, ermo de qualquer fagulha de espirito. Quanto mais de ao pé da porta os salteia a petição; quanto mais palpam no candidato alguma costella de parentesco; quanto mais de cima lhes baixa o memorial, tanto mais batem as redeas ao Pegaso do elogio, que vôa de aldeia em aldeia, levando no dorso a musa da recommendação. Sorrirá o leitor das ampoulas da phrase. Não tem razão. Chama-se a isto côr local, ou cousa que a valha. A lista é para elles uma carta que não necessita de ser aberta. O papel, a estampilha, a marca e o portador, bastam para satisfazer-lhes a curiosidade. Porém se os indifferentes são muitos, os timoratos ainda são mais. Está n'elles a materia prima das maiorias parlamentares. São o _paiz_ de varios governos. São a _opinião publica_ de algumas situações. Á frente d'elles caminha a auctoridade, que se já respigou na primeira corporação, ceifa aqui, a fouce plena, por entre braçados de votos, mil affagos do eleito ou de quem o mandou nomear. Tudo varía. Ha revoluções no ceu e revoluções na terra. Giram os astros na immensidade e succedem-se no mundo as estações. Tudo varía. Só o rebanho dos que votam com quem está de cima estende o lombo á thesoura eleitoral com imperturbavel constancia, submissamente pastoreado por esses vigarios do Poder na terra, que se chamam administradores de concelho, regedores de parochia, escrivães, cabos de policia, vereadores e malsins. Suspende-se o catalogo para não enfadar quem lêr, e lá se foram os ministros d'estado e os governadores civis! E não se diga que nem todos os ministros; nem todos os governadores civis; nem todos os administradores de concelho; nem todos os regedores de parochia; nem todos os escrivães; nem todos os cabos de policia; nem todos os vereadores e nem todos os malsins, trabalham n'essa tosquia. Tosquia a especie. Dos individuos não se trata aqui e é possivel que até não sejam raros os que o não fazem, ou que, á menor repugnancia da ovelha, a deixam sair intacta e livre das mãos do tonsurador. Outros são de peor genio. Travam de pés e mãos a paciente; tomam-lhe o pescoço entre os joelhos e, sem que o velo não caia ao fio do instrumento, não a deixam saltar do redil para o campo. E quantas vezes leva na pelle as costuras! O que mais custa a confessar é que anda tão atrazada a educação politica do paiz, que, se a auctoridade não collabora um pouco na formação das maiorias, apparecem camaras anarchicas, aonde os chefes são tantos como os soldados, e os partidos, por um sentimento de pudor constitucional, se dão a si mesmos o nome de _grupos_. Cumpre que isto não seja assim. É da maior urgencia que a auctoridade administre e não eleja. Se, á primeira vista, a intervenção d'ella, mais ou menos directa, pode, em dadas circumstancias, aparentar uma sombra de proveito em favor de uma necessidade parlamentar e constitucional, qual a da existencia de uma maioria solidamente organisada, essa apparencia desapparece ao mais ligeiro exame. Primeiramente, não ha maioria solida quando, em vez da ligação de principios, tem só para unil-a a identidade de uma origem viciosa, que lhe rouba as condições de prestigio, sem que não pode desassombradamente funccionar. Em segundo logar, ha menor perigo na eleição de uma camara, que pela sua turbulencia sirva de escarmento e lição ao povo, do que em habituar este a uma subserviencia; que apague n'elle o sentimento de seus direitos e de sua responsabilidade, e, portanto, qualquer impulso de vontade propria. * * * * * Se a verdade da representação soffre com a intervenção da auctoridade nas eleições, não padece com ella menos a regularidade da administração. Que força moral pode conservar sobre os seus administrados o funccionario que, no espaço de alguns mezes, de algumas semanas, de alguns dias até, como succedeu ultimamente, apoia o mesmo nome que pouco tempo antes guerreara, ou guerreia aquelle que dias antes defendera? Voltando, ás vezes, dias depois a combater o que combatera e a recommendar o que recommendara? Que prestigio lhe assiste quando se vê forçado, por interesses eleitoraes, a lançar mão da escoria de sua localidade, pelo unico motivo de que entre ella pode recrutar algumas dezenas de votos? Que auctoridade lhe dá o comprometter em vão a sua palavra com promessas que não possa cumprir, ou o abater a dignidade de seu cargo tornando-se o homem ligio de qualquer suzerania de campanario? Para se salvar das consequencias do primeiro erro ou do primeiro delicto, terá de requintar cada vez mais a violencia ou a sujeição, e, ainda mesmo que a consciencia de seu dever ou de sua dignidade lhe não tenha consentido que se exceda ou se avilte, a mescla de politica e de administração redundará sempre em prejuizo do serviço e em descredito das instituições. * * * * * Mas os corruptos? Aonde ficam os corruptos? Bom seria não polluir a penna com esta hedionda palavra, mas a cousa existe e o seu nome é este; e, como se está seguindo um filão de verdades, força é que se atravesse esse immundo deposito de abjecções, pois de tudo ha na mina,--ora tapetada de esplendidos crystaes, ora vertendo lamas infectas infectas--a que vulgarmente se chama eleição. E mina é, ou parece, para quem faz commercio de votos; commercio que, devendo ter tido por berço provavelmente um armario sem pão, vai hoje tambem querendo matar a fome de vaidades ou de interesses, nos salões da abastança. Não é o peor corrupto quem se vende por alguns reaes. É-o muitas vezes quem compra. Porque, salvas honrosas excepções, a diploma comprado deve corresponder deputado vendido. Ora a corrupção eleitoral cresce de anno para anno. O sublime do genero é comprar a fazenda com a algibeira do vendedor! O que parecia molestia esporadica vai-se transformando em epidemia. É corrupto: Da penuria---o que se vende a dinheiro; Da estulticia---o que se vende a promessas; Da vaidade--o que se vende a fitas; Do odio--o que se vende a vinganças; Da pieguice--o que se vende a mesuras; Do interesse baixo e sordido--o que se vende, remediado de bens de fortuna, a qualquer favor que lhe poupe, ou faça ganhar alguns reaes, ou o dispense de alguns ligeiros incommodos. Ainda ha outra especie de corrupção, não tão cynica, porém mais perigosa: A corrupção collectiva em nome da utilidade publica. São corruptos, por exemplo: O districto que se vende a estradas; O concelho que se vende a arames; A freguezia que se vende a reparos; A localidade que se vende a concertos; Tudo com _et coetera_ na clave. Todos os votos, emfim, que se hypothecam ao lucro. Trabalhe o deputado por satisfazer as necessidades do circulo. É dever; mas não se reduza o beneficio a contracto. Isso rebaixa. Demais, se o contracto é decente e justo, torne-se extensivo a todas as povoações do reino e diga-se depois o que serão os orçamentos das camaras municipaes, dos districtos e do estado, e que imposto chegará para satisfazel-os. Não se torne extensivo a todas, e pagará a independencia uma parte do preço da compra, que terá de sair do cofre commum. Paga a honestidade o que lucra a mercancia. Indifferença, subserviencia, corrupção! E por ellas e com ellas se atraiçoam os amigos; se quebra a fé jurada; se falsificam os escrutinios; se deshonra o mais sagrado de todos os direitos! Uma observação: Quanto ganhou n'este commercio o operario ou o jornaleiro que vendeu o voto por algumas peças de prata? Concorreu para a feitura de um mau deputado. Maus deputados dão más camaras. Más camaras dão maus governos. Maus governos dão más finanças. Más finanças assustam os capitaes. O susto dos capitaes faz esmorecer o trabalho. Sem trabalho não ha pão, e o jornaleiro e o operario perderão mais n'essas _grèves_ forçadas, de semanas e mezes, do que lucraram n'esse dia de ignobil veniaga. Nem ao menos a compensação do proveito! Estenda-se o argumento a todas as outras fórmas de corrupção e achar-se-ha sempre o mesmo fatal resultado. * * * * * Vontade propria no paiz! São dez horas da manhã do dia 19 de maio de 1870. Está Lisboa em socego profundo. Nem a mais ligeira alteração na apparencia da nobre cidade! A loja não se abre a meia porta; patenteia-se de par em par ao freguez que a procura, como a procurara na vespera, pacifico e talvez risonho. O negociante trabalha no escriptorio. O operario moureja na officina. O vendedor ambulante apregoa na rua. Socego profundo! Uma tal ou qual reacção que houve, sómente semanas depois começou a traduzir-se em factos. E, comtudo, o paiz desandara em dez horas o que lhe levara dez annos a andar! A ordem e a liberdade, o rei e a lei, estavam á mercê da espada! Francamente; haverá no paiz vontade propria? IV Sem vontade propria; sem que se pense, se compare e se escolha; sem iniciativa de dentro e sensibilidade por fóra, não póde haver elementos de boa politica n'uma nação que se rege pelo systema representativo. Porque não ha boa politica sem bons partidos, e não ha partidos regulares sem espirito publico no povo. Quando falta o espirito publico não ha partidos; ha _parcialidades_ e _grupos_. A raiz etymologica é a mesma, mas a accepção philosophica cava um abysmo entre estas palavras. As ultimas são o troco, em cobre azebrado, de uma peça de ouro formosa e luzente. Valor convencional em frente de valor intrinseco. Partido regular é o que tem logica nas idéas; constancia na defensão d'ellas; unidade e disciplina. Quantos conta Portugal n'estas circumstancias? A logica: Estão seis homens em conversa politica. Andam ha dois ou tres annos (dois ou tres seculos!) em camaradagem seguida. Frequentam as mesmas reuniões e tem por guia identico chefe. Muito bem. Trata-se de uma escaramuça de bando? Unanimidade completa? Discute-se um interesse de grupo? Completa unanimidade. Mas appareça uma questão economica ou social: a liberdade de commercio; a descentralisação administrativa; qualquer outra que deva ser crença de escola, e a concordia desapparece, sendo talvez necessario que uma parte dos correligionarios busque reforço na sala visinha, aonde um conventiculo de adversarios se dilacera tambem, á mesma hora, ácerca do mesmissimo ponto. Grita-se, discute-se, invectiva-se. O amigo é inimigo. O inimigo, defensor ardente. Confundem-se os campos e só algum incidente que traga a terreiro uma questão grave, uma questão pessoal, por exemplo, terá o condão de restituir cada um aos amigos com quem batalhara. A constancia: Combate a opposição em pró de uma doutrina. Nos seus jornaes, nos seus comicios, na tribuna e no livro bate em brecha com a propaganda escripta ou fallada os erros de seus contrarios. Um golpe de fortuna; a fraqueza do ministerio; certa manobra parlamentar, deposita-lhe as pastas nas mãos. Pois desde esse momento caduca o enthusiasmo pela reforma pedida e os erros tomam taes laivos de inoffensivas bagatellas, que talvez possam passar, em momentos criticos, por necessidades a que não se póde fugir. A unidade: As fusões; As colligações; As conciliações. A disciplina: O despeito; A inveja; A sizania. Um homem que falla e se move faz mais ruido do que cem, mudos e quedos. As individualidades inquietas e ambiciosas das parcialidades politicas, dão-lhes muitas vezes a feição com que a condescendencia dos companheiros as deixa mascarar, e que, por ser a mais visivel, se torna a mais caracterisada. * * * * * Da falta de partidos logicamente organisados e fortemente constituidos, não em vista de uma necessidade de momento ou de um ponto especial de administração, mas de um systema fixo, tem nascido as approximações, esboçadas ou realisadas nos ultimos tempos. A maior ou menor fraqueza dos grupos tem promovido esses actos, que andam em moda permanente de ha cinco annos para cá, mas que deviam ser anormaes n'um paiz, que soubesse comprehender bem as instituições que nos regem: Fusões, em que cada um dos fusionados conta pelos dedos quantos governos civis ou quantas candidaturas lhe couberam em partilha, e que fundem tão bem, que cada um se separa dos outros no momento opportuno, sem que as forças da cohesão ponham estorvo a esse trabalho; Conciliações que nada podem conciliar e que desmoralisam todos e tudo. Necessita a nação de todos os esforços de seus filhos para arrostar com immensas difficuldades? Haja patriotismo e saiba-se usar d'elle. Auxilie-se o poder constituido n'essa immensa tarefa. Diz-se popular o governo? Carregue com as consequencias d'essa popularidade. Tome a responsabilidade da iniciativa nas medidas de salvação publica. Pedem as circumstancias que as opposições ensarilhem as armas? Faça-se isso lealmente, mas não se confundam nos bancos ministeriaes, inutilisando-se mutuamente para os effeitos da rotação no poder, os que fóra d'elles podem dar ao paiz melhor documento de sua isenção partidaria. Conciliação sincera e permanente de todos seria a extincção completa dos partidos, proposição que antes de ser uma quimera seria um absurdo constitucional. Conciliação, apenas de alguns e temporaria, não seria conciliação; seria unicamente um novo elemento de confusão no que anda já tão confundido. Que temos nós visto e com que resultado? Maiorias de colligação em frente sempre de opposições colligadas. Colligações que só tem uma certa desculpa na tenuidade das linhas divisorias que separam, por emquanto, uns dos outros os partidos de maior valor no paiz. Como não ha systemas completos de governo, falla este em ordem publica e respeito á constituição; aquelle em fomento; esse outro em economias. Todos, na organisação das finanças. Mas desde quando a ordem publica, o respeito á constituição, o fomento, a economia e a organisação das finanças, pontos que devem ser communs a todos os partidos serios, podem constituir o programma especial de cada um d'elles? Não prova que anda ausente o dogma, ou que é de fé para todos, quando se falla só nas exterioridades do culto? Que ha em alguns d'aquelles rotulos mais artificio do que verdade? Que são maiores, de grupo para grupo, as incompatibilidades de pessoas que de cousas? * * * * * Em Portugal a organisação de um _partido_ é a cousa mais facil do mundo. Ha tres, cinco, dez homens (não urge que sejam mais) que, desejosos de terem uma influencia que não podem alcançar, por andarem confundidos com outros que os affogam no numero, buscam o modo de adquirir essa importancia que lhes anda roubada, quer pela ingratidão da patria, quer pela sombra dos proprios amigos. Problema posto, problema resolvido. Inspira-se um jornal. Inventa-se um nome. Chrisma-se um chefe. Falla-se no paiz, e, depois de estar prompto o scenario, põe-se o titulo á comedia, cujos auctores se esfalfam em dar ao publico, por belleza excelsa e privativa d'elles, o que nunca devera passar de logar commum n'este ramo de litteratura dramatica. Outros nem se cansam com estas poeiras. Mettem no laminador o simples nome de um homem; estendem-no até que chegue á desinencia adoptada pelo uso, e está feito o partido! O partido! Pobre vocabulo, que já tens sido a estrella polar de intelligencias em busca da perfeição social, quem te diria que viria tempo em que por ahi te reduzissem a alampada de viella obscura, ardendo de dia e de noite, e mais de noite do que de dia, diante de algum santo, advogado contra as cambras em quem deseja trepar ás alturas do poder! Como se póde chamar partido a qualquer associação de homens, que não ache até dentro de si quem possa tomar o peso ás pastas n'um momento de crise? Como se póde dar esse nome a qualquer confraria, que em tempo de procissão não possa com o andor, ou dê com a imagem em terra logo á beira do altar? Como merece tal importancia o grupo que não se atreva a galgar sem dianteiras a mais leve encosta da governação publica? E em taes casos a fraqueza é má conselheira. Para que augmente o numero dos adeptos não se olha a condições. Todas as vadiagens; todas as deserções; todas as insignificancias; todas as immoralidades; todas as traições; todos os cynismos; todos os despropositos são bem vindos, quando encarnados em quem dê mais um elogio na imprensa ou mais um voto nas côrtes. Ha eleições. Combate-se com decencia, honra e lealdade, contra alguns especuladores que farejam donde correm os ventos. Succube-se. No dia seguinte, com a estatistica na mão, cortejam os socios da vespera a existencia do facto brutal, e os adversarios, aínda que vencessem pelo suborno e pela infamia, recebem um sorriso amavel, prologo e provocação de allianças, ao passo que um gesto desdenhoso acolhe os amigos que perpetraram o crime de não querer triumphar por identicos meios. Ó moralidade! Para obviar á fraqueza, recorre-se ainda á forte alimentação das secretarias de estado. Atulham-se as pastas de recommendações. Cada dignitario da ordem tem mesa posta na cella. O thesouro é copa e cosinha. O despacho é mesa e talher. Por fraqueza propria se larga o poder e por fraqueza dos outros se torna a alcançar, para depois o tornar a perder. Á fraqueza dos partidos; á falta de escólas politicas definidas, logicas e racionaes; á carencia de esta móla indispensavel ao jogo regular das instituições representativas, deve esta nação um originalissimo espectaculo. O sr. marquez de Avila e de Bolama, que diz que não tem partido, foi ultimamente ministro em 1865, 1868 e 1870. Que o fosse por ser, como é, zeloso e honrado administrador, não poderia causar isso estranheza; mas tel-o sido, n'um paiz constitucional, talvez especialmente pela condição de não ser no governo a representação ministerial de um partido qualquer, é porventura a maior singularidade do liberalismo contemporaneo. Contae isto ao mais obscuro membro do parlamento inglez, e podeis estar certos de que o vosso interlocutor se encurvará, dos pés até á cabeça, na mais espantada interrogação que jámais tenha desaprumado a proverbial rigidez britannica. D'esse paradoxo tem resultado que as camaras eleitas sob a immediata influencia d'esse distincto homem de estado não lhe tenham produzido maiorias que o habilitem a governar, ficando depois sujeitas a deserções vergonhosas ou a uma dissolução infallivel. Não se contraría impunemente a indole do systema representativo. V Haja partidos sinceros e fortes, e haverá estabilidade nos governos, condição em que não vivem as situações que se vão succedendo com pasmosa rapidez. Um ministerio entre nós é geralmente um castello de cartas. Toma a criança um baralho. Dobra, ampara, ajusta e compõe. Começa a desenvolver-se o vistoso edificio. Crescem os estrados; sobem as galerias. O que, ha um instante, cabia no bolso, ameaça dar comsigo no tecto. Mas venha um grão de arêa; uma carta mal disposta; um movimento de impaciencia, ou mesmo um gesto de alegria trema no braço do joven architecto, e o que era Alhambra rendada se converterá logo em naipes dispersos no chão. Outro tanto acontece com a politica da nossa terra. Organisa-se um ministerio com todas as apparencias de força e de vida. Parece que o leva ao poder uma onda de popularidade. Em torno ha só ruinas. Tem maioria nas camaras e goza da confiança da corôa. Espera-se que dure o tempo necessario para, ao menos, transpôr o mar de calmarias que se chama--o estudo--e que é preliminar quasi obrigado n'estas viagens, ainda mesmo para os pilotos mais experimentados e que uma pratica de annos e annos devia já ter desviado de similhantes derrotas. Mas de repente, sem que até muitas vezes se saiba como e porque, desmaia o commandante, esmorece a tripulação, e pede-se ao cabo do rebocador a salvação, que não se poude encontrar na paciencia perdida e na energia esgotada. Outras vezes, já voga o navio. De repente, tambem, cavam-se as ondas, sem que um minuto antes sopre a menor brisa, e a marinhagem boqui-aberta vê que o baixel aprôa ao recife, que, n'um relampago, o descose e afunda. E como póde haver manobra a tempo, se uma parte da tripulação descora diante do perigo; outra, por bisonha, cambaleia de enjoada; esta, não conhece da faina, e aquella, indifferente ou turbulenta, não quer ou não sabe submetter-se a trabalho proveitoso, sendo poucos os marinheiros que restam para que o barco possa resistir á tormenta? * * * * * As razões determinantes da instabilidade dos ministerios são de natureza objectiva ou subjectiva, mas subordinadas sempre á falta de partidos e a todas as consequencias que d'ella derivam. São de natureza objectiva: As vacillações do poder moderador diante de tumultos preparados adrede na rua, e as quaes, embora nascidas de melindres de obtemperação ao que se lhe figurou opinião publica, e embora ligadas na origem a um receio de guerra civil ou de derramamento de sangue, tem comtudo influido desfavoravelmente desde 1868 na marcha politica do paiz, deixando quebrar maiorias que iam, ao lado dos governos, gerindo com alguma regularidade os negócios do estado e occorrendo ás mais urgentes necessidades financeiras, por meio de augmento nas receitas publicas; vacillações que deixam pairar sempre uma tal ou qual incerteza sobre o desenlace de qualquer conflicto que de novo se forje, e cerceiam a força moral dos governos; O estado geral do paiz, profundamente anarchisado pelos conselhos da especulação, que o tem levado a pedir melhoramentos sobre melhoramentos, incutindo-lhe ao mesmo tempo a falsa idéa de que os não deve pagar, quando a especulação vê que os adversarios serão os que tem de cobrar o augmento de receita, depois de legalmente votado; A descrença que lavra com referencia aos homens que se succedem nos bancos ministeriaes, descrença devida em grande parte ao trabalho constante da imprensa em demolir reputações dentro de uma terra tão pequena como a nossa, aonde o pessoal de gente habilitada para voltar, ou subir, aos conselhos da corôa está em harmonia com a exiguidade de população e territorio. Ao cabo de tres mezes de ministerio, ou de simples desejo, ás vezes, de ser ministro, é raro o homem que já não ande escalavrado no conceito popular e apontado como indigno de tão nobres destinos, acabando a nação por acreditar, á força de lh'o repetirem uns contra os outros, que Portugal anda entregue a quem o leva á perdição com perfeito conhecimento de causa e por erro expresso de vontade; A vadiagem politica dos que percebendo que o governo estaciona na carreira ascendente, e que não ha perigo de dissolução ou de qualquer outro acto que os contrarie, começam a virar o thuribulo para os lados do oriente; ou dos que trazendo já satisfeito qualquer empenho de costa arriba, ou perdido a esperança de alcançar o que lhes anda pendente do favor ministerial, se deitam a morder a mão que se abriu antes de tempo, ou que não quer abrir-se em cornucopia de graças; A ambição invejosa dos acolitos, que principiam a duvidar de que o governo seja o melhor dos governos possiveis, desde que alguns d'elles se acham preteridos para o posto de ministro de estado, quando já contam dez ou vinte semanas de praça assente nas côrtes, e já pensaram n'um discurso, que ainda não poderam pronunciar, por um conjuncto de infelicidades inauditas, mas que de certo salvaria a patria se o tivesse já humedecido o copo de agua da tribuna parlamentar; a ambição invejosa dos especialistas... de todas as pastas. São de natureza subjectiva: A falta de firmeza para se resistir, em todas as estações do processo politico, á pressão externa que difficulta os movimentos do ministerio, que, como parte que é de um poder independente, segundo a carta, deve ter plena liberdade de acção e de conselho dentro da esphera legal de suas attribuições; O pequeno valor da media politica ou pessoal dos conselheiros responsaveis da corôa, entre os quaes por vezes uma minoria de individualidades importantes é absorvida, aos olhos do paiz, na obscuridade relativa de seus companheiros, que talvez escolhidos por interesses de _coterie_, prejudicam, no sentir popular, quem tinha melhores direitos a sentar-se nas cadeiras ministeriaes; A falta de prestigio que resulta de se reunirem no governo individuos que dias antes se olhavam de revez, e que (sem que o paiz tivesse conhecimento da purificação anterior e reciproca dos delictos de que mutuamente se accusavam, e em que talvez o povo não acreditava, mas em que deviam acreditar elles, uma vez que os expunham) apparecem de chofre tão intimamente ligados, que se diria que nunca a sombra de uma nuvem passara entre esses obreiros da ultima hora; A constituição de ministerios sem que os membros d'elles tenham formalmente combinado entre si a maneira de resolver os mais urgentes negocios, deixando para conversas, em conselho de ministros, o que devera ter sido conversado antes de subirem os decretos de nomeação á assignatura do chefe do estado--«Entremos e depois conversaremos»--é a formula invertida da mais elementar noção de politica constitucional, em que a responsabilidade solidaria dos governos exige um perfeito accordo entre os membros do ministerio. É a remora na quilha. O travão na roda. A impotencia ou a discordia; A gravitação em torno de cada ministro de um grupo especial de satellites, que, segundo é mais ou menos numeroso, lhe dá voz preponderante no conselho, ou lhe amesquinha a importancia entre os seus proprios collegas; A falta de cumprimento de promessas feitas na opposição, e as opiniões imprudentemente sustentadas n'esse campo para grangeio de popularidade, mas que se convertem depois em armas de guerra ao serviço dos mesmos contra quem foram dirigidas quando o poder estava longe do braço e o odio perto do coração; A versatilidade de temperamentos que ora se desencadeiam em paroxismos de ardor para sustentar a posição adquirida, ora se espreguiçam em bocejos de tedio, não acertando em achar entre o aborrecimento e a teima o meio termo de prudencia corajosa e placida. Accrescente-se a tudo o nosso estado financeiro e facilmente se comprehenderá que ande o paiz mal com todos os governos, e que andem todos os governos mal com o paiz; isto é: que a instabilidade seja a feição mais caracteristica dos gabinetes, por se reflectir n'elles a perturbação moral que agita a sociedade em que vivem. * * * * * E não se queixe dos governos o paiz. Seria o mesmo que o original a queixar-se da photographia, apezar de a luz lhe ter sido exactissimo pintor. Quereis que o edificio não grete, quando a base em que assenta não tenha a firmeza indispensavel? Quereis que a planta vos dê flores e fructos, se as raizes não acharem alimento no solo? Quereis effeitos sem causas? Quereis que as causas não produzam seus necessarios effeitos? Effeitos em virtude dos quaes é raro que um governo viva entre nós menos da propria força do que na debilidade alheia. Continuae, portanto, a desprezar o desenvolvimento das forças moraes do paiz e deplorae depois que o governo seja ámanhã uma simples questão de densidade relativa, em virtude da qual as camadas mais leves do talento ou da aptidão, da honestidade ou do patriotismo, subam á superfície da governação do estado, alagando em mil desgraças o paiz, que terá de soffrer as consequencias do facto, sem se poder até queixar d'ellas com razão, porque as deverá á sua propria imprevidencia, senão á sua propria cumplicidade! O que é finalmente impossível é que o governo em Portugal ande arrendado a trimestres, e que se resolvam as crises por conferencias que nada resolvem, e as conferencias por crises que ainda resolvem menos. Circulo vicioso em que se pode gastar a vida a percorrer centenas de leguas sem que se pize mais do que um palmo de chão! VI É ponto axiomatico que da instabilidade das situações resulta naturalmente a falta de confiança publica. Quando se não sabe qual será o dia de ámanhã, o sentimento da duvida, assaltando os espiritos, suspende n'elles esse _quid_ mysterioso, em que se fundam os actos do raciocinio e da vontade. O raciocinio obscurece-se á falta de bases solidas; a vontade contrae-se no receio. Sem confiança publica não funcciona regularmente, portanto, o systema representativo, que é o governo do livre arbitrio, aconselhado pela intelligencia, dentro das orbitas legaes do direito e da acção. Comprehende-se, pois, que o governo absoluto possa, até certo ponto, existir sem esse poderoso auxiliar, porque centralisando em si a origem da lei e sendo o juiz unico da utilidade, em nome do interesse social, produz pela força e pelo segredo o que no governo da opinião deve nascer da liberdade. Perante as instituições que nos regem o caso é outro. Sem confiança publica, saída das entranhas do paiz, adoece tudo e morre no seio de uma geral estagnação. E a confiança publica não se intima com programmas de ministerios nem com discursos de parlamentos. Positivista como o apostolo, quer ver para acreditar. O facto para ella é o melhor argumento. Serve-lhe mais uma realidade do que mil intenções. Quer, pois, factos, e factos estaveis. Quer realidades, mas realidades serias. Necessita de saber com o que póde contar. Sendo isto verdade, como é, que confiança publica póde haver n'uma nação aonde as situações politicas andam como as luas, ora em minguante, ora em crescente, mas em prazos tão curtos e tão irregulares, que não ha sciencia astronomica que se atreva a calcular as intermittencias das phases? E que fazem os governos para diminuir as consequencias de essa instabilidade, que está sendo a vida normal de todos elles? Ligam n'uma tradição corrente algum systema certo de administração? Deixam os negocios mais urgentes sem solução de continuidade? Atam logicamente o que é ao que foi, preparando facil soldadura ao que ha-de ser ámanhã? Nem sempre. O mais commum é: Que se anarchise a tradição envolvendo-a em reformas mais de nomes do que de idéas; Que se abra mão do que é urgente em beneficio do apparatoso; Que se semeie de difficuldades a resolução futura do que não se soube realisar. * * * * * E que fazem os partidos? Apertam as filas em presença do ataque? Obrigam a governar depressa e bem? Sujeitam-se lealmente ás consequências de uma batalha perdida? Poucas vezes. Não faltam exemplos de que: Aos primeiros tiros debandem as tropas; As maiorias não se considerem responsaveis pela frouxidão ou pela incapacidade dos governos que apoiam; A embuscada traiçoeira substitua o combate a peito descoberto. E os governos a mudar, e a confiança publica a desapparecer! Circumstancia deploravel que envolve n'um descredito commum o fructo amargo da sedição, e a flôr esperançosa de algum ministerio que por ventura teria de resolver-se em pomos sazonados, se lhe dessem ar e luz, espaço e tempo, solo e nutrição! Atmosphera suffocadora em que respira, desde o primeiro momento, tanto o que nasce da violencia ou da intriga, como o que deve a existencia á indicação constitucional! * * * * * Incerto do presente e, ainda mais, do futuro, como quereis que o paiz progrida desafogado; se uma perpetua interrogação é a formula de nossa politica, para além da qual ninguem sabe se ha fojo ou caminho? A experiencia é a grande mestra da vida, e como o instincto não é talvez mais do que a experiencia dos individuos, crystalisada nos attributos da raça, o instincto popular, auxiliando a razão, gera a desconfiança publica, quando vê que de mudanças repetidas não tem saido mais do que augmento de incompatibilidades, antigas nos homens, e de confusão, preexistente nas cousas. * * * * * As dissoluções succedem-se em vertiginoso tropel. Andam as urnas em serviço consecutivo, e, quanto mais esfalfadas, menos força tem para suster na fuga a confiança publica, que se assusta com estes appellos repetidos, symptomas de grave molestia nas funcções constitucionaes do paiz e a mais desgraçada escola de devassidão para a massa dos eleitores. Nove dissoluções da camara dos deputados em treze annos! E para que? Para que o fabrico de diplomas tenha entrado na industria politica, como officio de applicação permanente, e a confiança publica olhe cada vez mais de soslaio para esse laboratorio de popularidades a tanto por voto. A confiança vive de paz e de ordem. Ora as dissoluções repetidas são a revolução dentro das instituições, quando as não aconselha uma impreterivel necessidade. Compromettem a paz sem salvar o poder. Condemnar a revolução, a verdadeira revolução, a que batalha fóra da lei mas em nome de um grande principio, seria condemnar o advento da liberdade em todos os paizes aonde ella resplandece. Entre nós, por exemplo, 1820 e 1833 são datas de gloriosa recordação. Mas os motins de ambição em torno das pastas; os tumultos de capricho em volta das urnas, tanto mais perigosos quanto mais engendrados á sombra da lei, só podem ter comparação em alguma d'essas revoluções em que se grita por amor ao ruido e se destroe por affecto á variedade. A paz compromette-se. Não essa paz material que alguns soldados podem facilmente fazer respeitar; mas a paz entre os visinhos da aldeia; a que não póde resistir a estas amiudadas provações, e que, á falta de tempo que apague, entre eleição e eleição, a lembrança dos conflictos que sempre as acompanham, cede o campo á guerra de personalidades hostis para todas as transacções da vida publica e particular. Os espiritos incommodados pelos incidentes de tantas brigas, fazem com que o povo maldiga esse fermento de discordia que por vezes o entalla entre influencias poderosas, e d'este mal-estar local, multiplicado pela freguezia, pelo concelho e pelo districto, sae uma das maiores verbas para a somma geral da desconfiança em que vive a nação. E não costumam as dissoluções salvar o poder. Pelo abuso d'ellas, o brio partidario anda tão esmorecido que é frequente o ver-se que certas candidaturas, ministeriaes na vespera da eleição, se transformam em deputados eleitos de opposição, quando no dia seguinte o especulador, que só adorava no governo o influxo da auctoridade, começa a buscar em novas regiões a continuação do mesmo favor. E o governo recua de espantado diante d'estas deserções sem se lembrar de que entre o partido e a turba collecticia; entre a convicção e o lucro; entre a coherencia e a vagabundagem, existe a mesma distancia que entre elle e um verdadeiro ministerio, segundo o espirito do systema representativo, leal e puramente executado! * * * * * Como póde haver confiança publica n'uma terra que vê com frequencia os governos estudarem quasi exclusivamente na legislação dos outros paizes as reformas a que devem proceder, sem que lhes occupe a menor attenção a indole e o estudo do povo portuguez, e darem á theoria pura, senão impura ás vezes, o que devia tambem ser dado, em parte pelo menos, á pratica do solo em que é deitada a semente? Imprudencia em virtude da qual muitas reformas ficam em meio, por não haver sequer pessoal idoneo que lhes dê conveniente execução. Como inspirar confiança a um paiz em que a questão fazendaria anda e desanda quasi sempre dentro da esphera mesquinha de uma questão de parcialidades, ora votando-se, ora negando-se o lançamento de impostos, segundo se priva ou não com a politica ministerial? Como, se a instabilidade nas pessoas e nas leis, nos factos e nas opiniões, faz com que a duvida coaja pelo susto a liberdade do paiz em suas expansões de actividade material, matando até n'elle, por constante e profunda, o sentimento bemfazejo da esperança! VII Quando não ha confiança publica, soffre com isso o desenvolvimento da riqueza nacional. A falta de confiança fazendo irremissivelmente baixar o preço dos titulos de divida consolidada, a cargo do thesouro, deprecia, _ipso facto_, todos os valores do paiz, á excepção da moeda, que então mais vale porque mais com ella se compra. Depreciação que não póde deixar de ter logar n'uma terra como a nossa, em que o papel do estado é a primeira base das grandes operações de credito e em que o estado é o maior concorrente ao emprego dos capitaes disponiveis. Do facto economico da depreciação dos valores nacionaes, pela baixa dos fundos, resulta logicamente uma diminuição na riqueza capitalisada e a necessidade, portanto, de reconstruir pela accumulação da renda o capital diminuido pela depreciação dos valores. A circulação, pois, esmorece, collaborando tambem para este resultado ora o susto que se apodera dos capitaes em especie, ora a esperança para elles de mais rendoso emprego quanto mais, na continuação da crise, fôr subindo o valor da moeda metallica. Dois sentimentos, que partindo de polos oppostos, se encontram todavia no terreno da retracção, da qual não saem geralmente senão para augmentarem a verba da divida fluctuante do estado, o qual por meio de um juro alto, pago á custa da nação, affronta assim com uma concorrencia desleal o commercio e a industria do paiz. * * * * * Aceito o facto da retracção dos capitaes e da capitalisação de uma parte da renda, em vista de uma prudente reserva, a industria começa desde logo a padecer com a existencia d'elle. O credito, por uma inevitavel consequencia, restringe o campo de suas especulações, operando mais sobre a representação de valores já creados do que na creação de novos valores, dependentes quasi sempre de maior ou menor risco, que a desconfiança exagera. Depois, o consummo do paiz, influenciado pelo estado geral, limita os seus pedidos, e essa limitação não estimulando a offerta por meio de aquelle poderoso agente economico, repercute-se logo em abatimento na producção, principalmente na fabril, que só cria valores em vista da permutação, e que tem no paiz o seu quasi exclusivo mercado. A agricultura, a nossa grande industria, estaciona tambem no grangeio de novas riquezas; não desbrava, arroteia, melhora e compõe, à falta de capitaes que a auxiliem no fomento da terra, ou de preço remunerador para os artigos de sua producção, alcançada á força de pesados sacrificios, em tempos de desconfiança geral. E, comtudo, no desenvolvimento de nossa industria agricola está de certo um dos maiores elementos da prosperidade do paiz. Cada hectare de charneca brava, que a roçadoura entrega á enxada e á charrua, é mais um degrau subido no caminho da civilisação; mais um passo na estrada da riqueza e da moralidade. Menos uma enxerga de hospital. Menos um registro de cadêa. Menos um farrapo de nudez. Menos um grito de fome. Mais trabalho e menos miseria. Mais um augmento de receita para o thesouro; menos uma amortisação de valor productivo. * * * * * Não é menor o prejuizo que soffre o commercio com a desconfiança publica. Basta a consideração de que, baixando o consummo e a producção, devem descer as operações da troca, para que se torne bem manifesta essa verdade. Não se desenvolve a indole empreendedora do commercio quando o credito encolhe as expansões de seu efficaz auxilio, negando-se a descontar-lhe as probabilidades de ganhos futuros. D'esta frouxidão de mercados, acompanhada pelo retraímento do credito, nasce uma situação difficil em que só á força de paliativos perigosos se honram os compromissos tomados. O proprio commercio de importação, o que serve necessidades especiaes, que não dependem da producção nacional, ou para as quaes não chega a industria do paiz, anda sujeito em ponto sensivel ás consequencias d'esse estado de cousas. Emquanto ao commercio de exportação, quando o capital desconfiado se recusa a fecundar o solo, principal fonte de aquella manifestação de riqueza, e o credito lucta com o medo, os algarismos de suas transacções não soffrem comparação com as sommas que a producção, favorecida por outras circumstancias mais fecundadoras, póde levantar do mercado estrangeiro. Em 1851 teve logar o movimento a que se deu o nome de Regeneração. Não é logar aqui para se avaliarem as consequencias d'esse facto, que parecendo ter sido então de grande valor politico, talvez lançasse á terra bastantes sementes de desorganisação partidaria, que hoje frondejam em cyprestes de luto. O que é, porém, inegavel é que a confiança com que a opinião publica recebeu essa situação, activando por todos os modos a vida do paiz, produziu os seguintes resultados, esplendidos debaixo do ponto de vista dos interesses materiaes e devido, mais do que tudo, a cinco annos de paz e de estabilidade no governo, á sombra de um partido numeroso, embora artificial: COMMERCIO DE PORTUGAL +------------------------------------------------+ | ANNOS | IMPORTAÇÃO | EXPORTAÇÃO | |----------+------------------+------------------| | 1851 | 13,749:000$000 | 8,228:000$000 | | 1856 | 20,452:000$000 | 16,299:000$000 | |----------+------------------+------------------| | Augmento | 6,703:000$000 | 8,071:000$000 | +------------------------------------------------+ Em cinco annos duplicou a exportação! Augmento sem precedente na historia moderna do paiz. Verdade é que a reforma das pautas deve ter influido até certo ponto nos algarismos citados, especialmente no que respeita ao commercio de importação, assim como a maior facilidade de vias de communicação no resultado geral; mas é indiscutivel que a confiança publica tenha poderosamente contribuido para o augmento descripto, espalhando por todo o paiz com mão larga o capital e o credito. De 1861 a 1865 geriu um governo historico os negocios do estado. Essa situação, apoiada por um partido intimamente convencido de que trabalhava no bem do paiz, teve a estabilidade necessaria para que a confiança publica não desertasse da vida economica da nação. +------------------------------------------------+ | ANNOS | IMPORTAÇÃO | EXPORTAÇÃO | |----------+------------------+------------------| | 1851 | 26,634:000$000 | 14,383:000$000 | | 1865 | 24,822:000$000 | 20,108:000$000 | |----------+------------------+------------------| | Augmento | | 5,725:000$00 | +------------------------------------------------+ Isto é: um augmento de 40 por cento no commercio de exportação n'um periodo de quatro annos, resultado tão lisongeiro que pouco o affecta a diminuição experimentada no commercio de importação, na somma de 1.812:000$000 réis. Attenda-se igualmente a que as inscripções de 3 por cento ficaram a perto de 50 por cento quando o ministerio historico deixou o poder, no fim de quatro annos de exercicio. * * * * * O desenvolvimento da riqueza nacional necessita de braços. Ora quando a confiança no futuro do paiz baixa no animo do povo, pronuncia-se cada vez mais a tendencia para buscar em outras regiões o bem-estar que a patria não parece prometter. Ou se emigra ou se deseja emigrar. E o primeiro caso não é talvez o peor para o paiz. Mau é que quando a população não superabunda (pois o dobro d'ella caberia facilmente desde o Minho até ao Algarve se o paiz produzisse o que é susceptivel de produzir) os nossos irmãos vão levar a terras estranhas a actividade que poderiam empregar dentro da patria. Compensam, porém, em parte, este mal os capitaes que a emigração tem lançado no paiz, depois de os adquirir no labor de muitos annos longe da patria. O que não tem compensação é essa vaga anciedade de espirito que se traduz em ociosidade perigosa, quando o homem, profundamente convencido de que o seu trabalho no paiz nunca o poderá enriquecer, oscilla por longo tempo entre a esperança no El-Dorado e os vinculos que o prendem á terra em que nasceu, não pedindo ao braço mais do que o estrictamente necessario para, em duas ou tres horas de trabalho por dia, ganhar com que satisfazer as mais urgentes necessidades. Ainda que a idéa da emigração o não visite, esta expressão:--para que me hei-de cançar?--é tão frequente formula de desconsolo, que ha-de forçosamente influir na somma geral da producção. Poder-se-ha tambem negar que a falta de confiança influa na população do paiz, obstando á creação de novas familias pelo receio de que desgraças futuras cerceiem os haveres de casal? * * * * * Que grangeio de riquezas póde haver quando, pelo desapparecimento successivo de leis de impostos, tão sensatas quanto o permittiam as urgencias do thesouro, se não sabe sobre que expressão de riqueza cairá algum tributo vexatorio ou ruinoso? Quando a confiança publica duvida da boa applicação dos dinheiros publicos, mudando-lhes um governo de poucas horas o emprego que lhes destinara outro governo de poucos dias? Quando não adquire a certeza de que a um ministerio, que vive em perpetuos balanços, lhe chegue o tempo para cuidar na independencia das quinas de Portugal? Quando o motim da rua influe na duração dos ministerios, ou n'elle influe a pressa das opposições ajudada pela insignificancia dos governos, e a confiança publica recua espantada diante d'estas mutações de scena? Quando a devassidão politica segreda ao ouvido do pobre que a riqueza é um crime e o trabalho uma escravidão? Logo que estas circumstancias se dêem é impossivel que a riqueza se desenvolva. Trata-se mais de defender do que de augmentar; de conservar do que de produzir. Um fatal estacionamento trava a roda da prosperidade publica. A fabrica, o navio, o campo, a loja, o escriptorio e a officina moderam a actividade. E o medo, quebrando todas as energias, reina despoticamente sobre um povo de assustados. Mau rei e mau povo. VIII Nem no que fica escripto, nem no que adiante segue, existe a estulta pretenção de tratar a questão do imposto, tão melindrosa e complicada, ou de resolver o problema financeiro, tão complicado e melindroso. Trabalho é esse para mais rijos pulsos. O que unicamente aqui se quer é reforçar com alguns argumentos, e poucos algarismos, a demonstração de uma these politica, cuja resolução deve ter immediata influencia sobre esses dois momentosos assumptos. * * * * * É fóra de duvida para quem não se deixa voluntariamente enganar, ou é traiçoeiramente enganado, que as forças do paiz ainda podem com mais alguns sacrificios tributarios, sem que a vida economica d'elle seja atacada nas fontes em que bebe a existencia. Mau serviço faz ao povo quem, desattendendo o estado da fazenda publica e em nome de interesses de bando, lhe incute no espirito a negação d'essa verdade, pois que essa negação, contribuindo para augmentar cada vez mais o _deficit_, redunda em prejuizo não só do thesouro, como dos proprios contribuintes, que tem de ser opprimidos com mais violentos encargos, á medida que se fôr demorando a applicação do remedio, sem o qual se parará fatalmente na morte. A ultima contribuição predial lançada foi a seguinte: No continente: Contingente { ordinario 1.649:211$000 principal { extraordinario 329:842$200 Contingente de predios novamente inscriptos 36:000$000 Viação 659:684$400 Falhas 46:177$900 ------------- 2.720:915$500 Nas ilhas adjacentes: Contingente { ordinario 178:903$970 principal { extraordinario 17:890$397 Contingente de predios novamente inscriptos 3:850$000 Viação 71:561$588 Falhas 5:009$319 ------------- 277:215$274 Somma total 2.998:130$774 que recae sobre um rendimento collectavel, em verbas redondas, de: No continente 22.300:000$000 Nas ilhas 2.750:000$000 Ora este rendimento collectavel de 25.050:000$000 réis representa aproximadamente 50.000:000$000 réis de producto bruto da propriedade, o qual deve subir visivelmente a mais elevada quantia se se calcular: 1.^o Que os dizimos, no tempo da velha monarchia, em 1812, por exemplo, deviam ter produzido a somma de 5.400:000$000 réis, porque o rendimento da contribuição extraordinaria de defeza, n'esse anno, a qual era de um terço dos dizimos, produziu a verba de 1.800:000$000 réis; d'onde resulta que já n'essa epoca o producto bruto dos fructos da terra devia chegar a mais de 50.000:000$000 réis. 2.^o Que a producção da terra tem augmentado, porque, além de occorrer, em grande parte, a um accrescimo de população a qual era, em 1811, de 2.877:071 almas, e em 1863 de 4.341:319, tem influido no commercio de exportação (para o qual a industria fabril entra apenas por uma quinta parte) e influido de modo que esse ramo de commercio subiu de 5.581:000$OOO réis, em 1842, a 20.108:000$000 réis, em 1864, sendo de 18.041:000$000 réis em 1868. 3.^o Que, subindo o rendimento colletavel da propriedade urbana a 3.542:000$000 réis, representa o producto bruto do solo uma quantia que deve rastejar 46.000:000$000 réis, a qual dividida por 4.341:519 habitantes, dá uma verba media annual de pouco mais de 10$000 réis para alimentação, em generos, de cada um d'elles, o que é absurdo. Verdade é que o paiz importa generos alimenticios cujo valor deve accrescer ao dos algarismos citados, mas tambem é exacto que a verba de 46.000:000$000 réis é, por outro lado, desfalcada pela exportação de milhares de contos de réis em objectos de alimentação; pelas reservas para sementeiras, e pela inserção, em varias matrizes, de mattos, pastagens, florestas e outros artigos que não collaboram directamente na alimentação do povo. O que não é possível é que cada cidadão portuguez consumma alimentação no valor medio diario de menos de trinta réis, o que seria expressão de miseria tal, que o paiz teria acabado á falta de gente. Identicas observações se poderiam fazer com relação a muitos outros rendimentos do estado, se nos traços rapidissimos do presente escripto, podesse caber uma analyse miuda do que fornece cada um d'elles ao thesouro publico. Note-se unicamente de passagem que a verba da contribuição industrial leva quasi á conclusão de que o paiz anda descalço e nu; de que não dorme debaixo de telhas nem conhece o _conforto_ moderno, que augmenta cada vez mais o numero de certas superfluidades dando-lhes a natureza de necessidades verdadeiras. * * * * * É pois fóra de duvida que os rendimentos publicos podem ser augmentados por meio do imposto. O que é absurdo e vexatorio é que novos addiccionaes venham constantemente aggravar as desigualdades já existentes, ao ponto de tornal-as intoleraveis pela comparação. Pague-se, mas paguem todos e proporcionalmente. Mas se aquella proposição é verdadeira com referencia á massa geral das transacções materiaes do paiz, será possivel que o augmento de tributo, só por si, chegue para dar prompto allivio á crise em que labora a fazenda nacional? Seria loucura o pensal-o. O _deficit_ do anno economico que teve fim em 30 de junho do corrente anno sobe talvez de facto a perto de 8.000:000$000 réis! Vê-se, pois, que pedir o saldo do orçamento ao imposto, seria augmentar este de fórma que o tornaria impossivel debaixo do ponto de vista da ordem publica, e, ainda mais, sob o aspecto economico. Seria atacar a producção na origem; arruinar o paiz. Para se alcançar um augmento effectivo de cobrança no valor de 8.000:000$000 réis, quanto seria necessario lançar, attendendo á quebra que soffreria o movimento economico do paiz em todas as suas manifestações e á repercussão d'essa quebra na cobrança do imposto? Nem pensar n'isso é bom. * * * * * Bastará o auxilio das economias--isto é: de reducção nas despezas--dado à prudente elevação do imposto, para pôr a nado a encalhada e fendida nau de nossa fazenda? Ainda assim, não. Quanto mais vindo as economias desacompanhadas de tal soccorro! As economias são uma boa e excellente cousa, como funcçao ordinaria de governação publica e elemento de confiança nos destinos do paiz. Para salvação não bastam. Tem-se abusado d'essa palavra sonora, martellando com ella o espirito popular, para favorecer intuitos de mando e combater com ella o augmento de contribuição. Poupam-se alguns contos de réis por um lado, quando se poupam. Esbanja-se, pelo outro, o capital do bom juizo publico, dilapidando-o, com falsas idéas. A differença é contra o paiz. Quem não deseja que se economise até ao ultimo real na administração do estado, sizando com mão avarenta todos os gastos que não forem indispensaveis á gerencia da nação? Ninguem. Quem não pensa que a economia deva ser permanente empenho de todos os homens publicos? Ninguem. Quem não vê na reducção das despezas um dos melhores meios para alliviar as finanças das difficuldades que as peiam? Ninguem. Mas quem faz das economias bandeira exclusiva de parcialidade? Quem lhes attribue o condão de fazer brotar o dinheiro em jorros taes, que matem a sede de meios em que ardem os cofres do paiz? A especulação. Economise-se, que economisar é proveito e dever. Mas o _deficit_ é talvez de 8.000:000$000 réis! Com que economias o quereis attenuar em ponto sensivel? Ha muito a cortar no matagal do orçamento? De accordo. Corte-se; e corto-se desapiedadamente. Mas quanto? A resposta mata a parte politica da questão. O lemma esfarrapa a bandeira. Por isso até hoje a economia tem sido mais uma formula geral de programma de grupo, do que a applicação immediata de um principio santo. Mas a idéa é tão boa em si, que, apezar de se terem empregado bem as diligencias para a desacreditar, alguns resultados vai produzindo. * * * * * Ora se o imposto e a economia não são sufficientes hoje para avolumarem facilmente as nossas receitas até ás ultimas visinhanças de nossas necessidades, o que pode, senão o desenvolvimento da riqueza publica, estendendo a base da materia tributavel, arredar dos horizontes do futuro a cerração em que andam vendados? Desenvolvimento de riqueza pela confiança, e de confiança pela extincção da detestavel politica em que se tem vivido nos ultimos annos, e que, de envolta com a moralidade, vai fazendo declinar os interesses materiaes do paiz. Nos ultimos tres annos a contribuição de registro e o rendimento das alfandegas tem baixado por fórma sensivel, pois tendo sido creados desde 1867 novos impostos, ou augmentados os então existentes, na importancia de 1.816:000$000 réis, sómente tem a receita publica crescido em cerca de 1.200:000$000 réis. A desconfiança a cercear as forças reaes do paiz! Promova-se, pois, o desenvolvimento da riqueza nacional. A base antes da cupula. Promova-se, não por meio de um fomento _à outrance_, que onere a divida publica com juros superiores ás vantagens que se pódem auferir d'elle, mas por via de uma prudente applicação d'esse agente poderoso, resoluto e valentemente auxiliado pelas forças moraes que o possam tornar permanentemente productivo e proficuamente fecundante. É inegavel que o paiz deve grandes serviços ás administrações que tem curado de o dotar com os melhoramentos de que precisava. Mas talvez seja opportuno continuar a suster um pouco tão violenta carreira, a fim de que o thesouro não rebente no meio do caminho. Tem-se gasto desde novembro de 1852 até 30 de abril de 1869 em obras publicas: No continente: Estradas ordinarias 15.836:803$683 Caminhos de ferro 19.668:664$181 Obras publicas diversas, incluindo o atterro, canos de Lisboa, Lazareto, etc 4.539:186$710 Barras, portos e rios 2.002:857$174 Telegraphos 1.589:078$003 Caminho de ferro no pinhal de Leiria 317:763$289 -------------- 43.954:353$040 Nas ilhas: Ponta Delgada 364:023$450 Angra 281:994$184 Horta 329:367$853 Funchal 478:997$399 Docka de S. Miguel 1.170:119$505 -------------- 2.624:502$391 -------------- Somma total 46.578:855$431 O que já não dá ao paiz a nota de refractario á civilisação... e ao _deficit_. * * * * * Mais uma vez, porque é bom que isto se repita: no desenvolvimento da riqueza nacional está a salvação do paiz. Só assim pode crescer o imposto em proporções alentadas, sem sobresalto, sem violencia, sem transtorno da economia publica, e sufficientes para nos livrarem de uma ruina, que sem tal esconjuro virá bater-nos á porta, mais cedo ou mais tarde. IX Bater-nos-ha á porta a ruina? Bate de certo. De anno para anno o _deficit_ toma tal corpulencia que ameaça esmagar o paiz debaixo do pezo d'essa mole tremenda. DEFICIT ORÇAMENTO DO ESTADO CONTAS DO THESOURO ---------------------------------------------------------- 1864-1865 2.718:953$347 | 3.709:441$590 1865-1866 3.666:517$110 | 5.813:548$730 1866-1867 5.028:674$579 | 7.870:531$454 1867-1868 6.478:862$856 | 6.773:524$044 1868-1869 6.133:631$721 | 4.764:847$779 Esta ultima verba accrescentada com a de réis 2.830:041$297, que ficou em divida á Junta do Credito Publico no dia 30 de junho de 1869, sobe á importancia do 7.594:889$076 réis! _Deficit_ igual a quasi 50 por cento da receita realisada n'esse anno economico, a qual foi de réis 16.513:420$330! _Deficit_ que em 1869-1870 deve ter subido talvez a 8.000:000$000 réis, ao passo que a receita é possivel que tenha baixado por motivo dos acontecimentos politicos de maio do corrente anno! A nossa despeza nos ultimos cinco annos tem sido a seguinte: CONTAS DO THESOURO ---------------------------------------------------- 1864-1865 21.475:719$247 1865-1866 21.284:218$335 1866-1867 22.836:957$724 1867-1868 23.317:163$231 1868-1869 (com a divida á Junta) 24.108:309$406 Devendo-se accrescentar ao anno de 1867-1868 mais a despeza em inscripções para amortisação de varios emprestimos com juro e amortisação, inclusive o saldo do emprestimo dos 4.000:000$000 réis. O seguinte mappa mostrará a progressão das despezas publicas nos annos economicos de 1864-1865, comparadas com as do quinquennio anterior, de 1868-1869: *Despeza do Thesouro*--em contos de réis--*fundos saídos para pagamento de despezas* A B C D E F G H I J L --------------------------------------------------------------------------- L1 2.967 1.205 435 2.894 1.218 179 3.099 4.099 052 16.148 -- L2 3.083 1.280 478 3.046 1.223 169 2.788 4.031 002 16.100 -- L3 3.817 1.335 472 2.903 1.115 276 6.715 4.305 002 20.940 -- L4 3.264 1.411 501 3.029 1.472 214 7.145 5.292 001 22.329 -- L5 3.899 1.438 531 3.132 1.781 224 5.015 5.733 001 21.754 -- L6 3.880 1.508 569 3.237 2.109 212 4.037 5.924 -- 21.476 -- L7 4.249 1.593 595 3.378 1.902 227 3.485 5.855 001 21.285 -- L8 4.926 1.634 612 4.315 1.902 241 3.001 6.205 001 22.837 -- L9 4.548 1.804 637 3.997 1.866 266 3.272 6.927 -- 23.317 6.263 L10 3.925 1.709 590 3.616 1.809 215 2.640 6.774 -- 21.278 -- --------------------------------------------------------------------------- 38.558 14.917 5.420 33.547 16.397 2.223 41.197 55.145 060 207.464 =========================================================================== L11 17.030 6.669 2.417 15.004 6.809 1.062 24.762 23.460 058 97.271 L12 21.528 8.248 3.003 18.543 9.588 1.161 16.435 31.685 002 110.193 6.263 --------------------------------------------------------------------------- L13 4.498 1.579 586 3.539 2.779 99 8.225 21.305 6.263 L14 8.327 056 8.383 ------------- L15 12.922 6.263 -----------------------------------------------------------================ L16 899 316 117 708 556 19 1.645 4.260 1.252 L17 1.665 011 1.676 ------------- L18 2.584 1.252 =========================================================================== *Legenda:* MINISTERIOS: Fazenda coluna [A] Reino coluna [B] Justiça coluna [C] Guerra coluna [D] Marinha coluna [E] Estrangeiros coluna [F] Obras Publicas coluna [G] Junta do Credito Publico coluna [H] Amortisação de Notas coluna [I] Somma coluna [J] Amortisação en Inscripç. coluna [L] Total 1859-1860 linha [L1] 16.148 1860-1861 linha [L2] 16.100 1861-1862 linha [L3] 20.940 1862-1863 linha [L4] 22.329 1863-1864 linha [L5] 21.754 1864-1865 linha [L6] 21.476 1865-1866 linha [L7] 21.285 1866-1867 linha [L8] 22.837 1867-1868 linha [L9] 29.580 1868-1869 linha [L10] 21.278 ---------- 213.727 1.^o Quinquennio linha [L11] 97.271 2.^o Quinquennio linha [L12] 116.456 Augmento no 2.^o linha [L13] 27.568 Diminuição no 2.^o linha [L14] 8.383 Augmento liquido linha [L15] 19.185 Media por anno: do augmento linha [L16] 5.512 da diminuição linha [L17] 1.676 Augmento medio linha [L18] 3.836 Vê-se, d'este mappa, que as despezas publicas subiram em 3.836:000$000 réis de média annual, em cada um dos annos economicos que vão do 1.^o de julho de 1864 a 30 de junho de 1869, comparadas com a média dos que alcançam do 1.^o de julho de 1859 a 30 de junho de 1864! Os juros da divida consolidada são: Da divida interna 5.569:227$218 Da divida externa 4.768:318$629 -------------- Somma total 10.337:545$847 Mas, segundo o orçamento apresentado pelo sr. Anselmo Braamcamp, deviam existir, em 31 de março de 1870, titulos para serem cancellados, representando encargos: Da divida interna 1.176:109$000 Da divida externa 76:734$000 -------------- 1.252:843$000 Mais: Na posse da fazenda 615:880$500 -------------- 1.868:723$500 que descontados dos 10.337:545$847 réis reduzem esta verba a 8.468:832$347 réis. O que resta saber, porém, é se ainda estão disponiveis os titulos que o sr. Braamcamp cancellava na importancia nominal de 41.760:000$000 réis aproximadamente e que representavam os encargos, acima indicados, de 1.252:843$000 réis. Ora é isto exactamente o que se não póde verificar, por falta de documentos officiaes que elucidem a questão. O que se póde asseverar é que ainda até hoje não se cancellou titulo algum d'esses, aliás teria constado isso dos termos mensaes das amortisações feitas pela Junta do Credito Publico, amortisações que ultimamente tem consistido, segundo parece, em queimar papeis velhos, que são trocados por novos. Na presença d'este quadro póde, ou não, a ruina chegar, e depressa? * * * * * Póde, e é lastima que tal aconteça. O paiz tem elementos em si para arredar essa temerosa eventualidade. Uma simples observação: Um povo que tem, amortisados no fundo de suas gavetas, em inscripções, fundos estrangeiros; acções de bancos e companhias, etc., valores superiores talvez a 350.000:000$000 réis, nominaes, não está tão pobre que deva perder a esperança de se salvar da crise que o ameaça. Bastaria pôr em circulação productiva uma parte d'esta riqueza; bastaria, talvez, que os capitaes absorvidos na divida fluctuante, na importancia effectiva de 8.529:693$499 réis, quizessem fecundar a terra, o commercio e a fabrica, para que o desenvolvimento da actividade nacional começasse a fazer raiar alguma aurora de redempção. Mas o facto é que, como se disse algumas paginas atraz, o commercio definha; a industria retrae-se; a agricultura vê seccar os peitos uberrimos. E o paiz tem um solo fertilissimo e colonias extensas! Tem territorio no continente para 10:000.000 de almas e lava-se nas aguas de tres oceanos! * * * * * Do equilibrio possivel do orçamento depende, pois, a sorte da nação portugueza. Mais seis, oito, quatro annos de funesta accumulação de enormes saldos negativos, e o paiz verá abrir-se diante d'elle uma valla que não poderá transpôr, e na qual ha-de cair. Abysmo que chama com dois braços: a bancarota e a Iberia. A propriedade territorial será então quasi a unica que se poderá suster á borda. O _deficit_ duplicou em quatro annos. Como poderá o paiz, se durar essa infernal progressão, resistir, de hoje a outros quatro, a 15.000:000$090 réis de desquilibrio orçamental? E ainda ha quem pergunte anciosamente: «O que ha de novo?» com relação unicamente á saída ou á entrada, no ministerio, d'esta ou d'aquella individualidade? Questão de pessoas em frente da questão do paiz! Vale a pena. Mas quem é o verdadeiro culpado? Diga-o a si próprio o paiz. X Em vista do que fica apontado em rapido esboço, não será chegado o tempo de se buscar remedio para o mal que invade o paiz, e de cuja propagação talvez seja elle o primeiro culpado? Quando uma nação quer, e quer deveras, póde achar na vontade energica thesouros de força e de valentia. Se a fé transporta montanhas, a vontade transpõe-as. A primeira, a grande reforma a fazer, não está tanto nos que governam como nos que são governados. Comecem por moralisar o povo os que andam perto d'elle, porque é de baixo que se dá principio a qualquer trabalho de construcção solida e racional. Os governos retratam sempre mais ou menos fielmente o estado das sociedades que administram. Podem seguramente ter contribuido para o estado geral do paiz, mas é fóra de duvida que o paiz tem exagerado voluntariamente em si as consequencias dos erros commettidos, em vez de collaborar na emenda com resolução e fervor. Facto singular! Acredita o paiz em tudo e de tudo descrê. Tem assomos de colera e espasmos de fraqueza. Censura nos ministerios o que todos os dias faz em miniatura. É critico sem obras; sacerdote sem culto; inquisidor sem fé. Devem os nossos governos ter sobre a consciencia o peso de grandes culpas. Quem o nega? Mas em que os ajuda o paiz, quando nasce de qualquer d'elles alguma iniciativa util ou necessaria? Dando ouvidos á intriga; acolhendo a diffamação; desdobrando-se até ao infinito em individualidades que tratam de si, em vez de se condensar cada vez mais n'uma collectividade que visite patrioticamente os interesses de todos. Pedem, geralmente, os eleitores contas aos deputados pelos votos que deram na decisão dos negocios importantes? Longe de tal. Contam os memoriaes despachados e os que profundaram no lymbo, e, se o thesouro ficou, á propria custa do povo, mais onerado com alguma verba desnecessaria, não ha louros que cheguem para a reeleição triumphante do grande homem de estado. Quereis que de agua estagnada saiam aromas e saude? Por mais que n'ella se espelhe o sol, esse calor, que é para a immensidade da natureza fonte de vida e de esplendor, será, luzindo sobre o pantano, apenas origem certa de fetidos venenos. Pois entre tantos homens, que se tem succedido no poder, não terá havido alguns que olhem com seriedade para as cousas do paiz? Não terão subido aos conselhos da corôa a probidade, a illustração, a prudencia e o patriotismo? Tem, com certeza. Verdade é que tambem alli tem chegado quem possa gerar no espirito publico largas hesitações. Mas o que infelizmente o paiz tem feito é confundir todos os homens perante uma repugnancia tal que faz persuadir, até certo ponto, que já não é contra ministros que se pronuncía a cada passo, mas contra o principio de auctoridade, sem o qual as sociedades não podem existir. Estas reacções constantes dos erros dos governos sobre o paiz e dos erros do paiz sobre os governos tem produzido um estado de cousas intoleravel e perigoso. Pois o que é o estar a administração superior continuamente influenciada pela desorganisação moral do paiz, e o paiz sempre debaixo da desorganisação politica em que vivem, quando vivem, os governos? Em que param as necessidades urgentes quando o paiz se recusa a trabalhar seriamente na satisfação d'ellas, sujeitando-se aos sacrificios indispensaveis, e os governos consomem o tempo na tarefa, quasi unica, de assegurarem a existencia, sempre ameaçada pela sua propria fraqueza? Que paiz é este em que qualquer ambição audaciosa pode lembrar-se, com visos de probabilidade, de obter o que sonha, se não lhe faltar a audacia ao serviço da intriga? E no meio de tudo chovem as calamidades. A cheia cresce. Agora invade um principio; alaga logo um direito. Escava aqui uma garantia, submerge além uma conveniencia. E ao fundo, lá ao fundo, mas aonde a vista alcança já, ameaça levar comsigo a fortuna e quem sabe se o nome d'esta nação! * * * * * Tentem os que pensam, os que possuem e os que trabalham; todos os que são as forças vivas do paiz, pôr dique á devastadora torrente, intervindo franca, directa e proveitosamente, no governo do estado. São elles os verdadeiros responsaveis pelo que vae succedendo. São a intelligencia, o capital e o trabalho. São mais ainda: O Numero. E o numero no systema representativo é a realeza de facto. A responsabilidade é d'elle. É responsavel cada cidadão para com todos; são responsaveis todos para com cada um d'elles. Ainda mais: é responsável cada cidadão para comsigo mesmo. Solidariedade absoluta. Esta responsabilidade, que é immensa, impõe deveres a que se não deve faltar, porque são protectores de interesses que se não pódem preterir. Para que serve ao paiz a intelligencia, se o primeiro dever d'ella não fôr o de empregar todos os recursos no estudo e na remoção dos males que o affligem, e de que serve a quem a tem, se não achar ambiente em que a desenvolva e aproveite? Não diminue a massa do capital nacional, quando a falta de credito, proveniente de uma errada politica, cerceia todos os valores representativos em face da desconfiança publica, e até reduz os valores reaes, o da propriedade territorial, por exemplo, augmentando exageradamente o preço da moeda metallica? Não soffre o trabalho com a má gerencia dos negocios publicos, a qual ao cabo de periodo mais ou menos longo, influe inevitavelmente no consumo geral, e, pela diminuição do consumo, em todos os coefficientes da producção? Quem poderá ter, pois, maior interesse do que o trabalho, o capital e a intelligencia, em que o paiz seja regularmente administrado? E, comtudo, julga-se acertado e prudente o pensar que a politica deve ser apenas obra de alguns especialistas, arvorados por auctoridade propria em directores, thesoureiros e guarda-livros, d'esta immensa sociedade! Se até ha quem pense que a politica é emprego de ociosos! * * * * * É obrigação de todos o trabalharem na tarefa commum. É urgente, portanto, que se acabe um grande partido: o partido dos abstencionistas. Partido do desanimo, do egoismo e do orgulho. Partido negativo para o bem; positivo para o mal, que deixa fazer. Força perdida aonde não sobejam as forças. E occorrencia notavel! São os que mais se abstem os que mais lagrimas vertem sobre a sorte da patria, e os que fustigam com mais desapiedada censura os erros, a que não tentam offerecer o minimo estorvo! Pois que? Achaes-vos melindrados nos vossos principios de moralidade; affectados no vosso patriotismo; offendidos nos vossos interesses, e só tendes fel na palavra em vez de energia na acção? Que dirieis vós do soldado, que, vendo em perigo a bandeira de seu regimento, cruzasse os braços commodamente sobre o cano da espingarda, crivando de longe com doestos os que se batessem em volta do estandarte nacional, e que, ainda que por ventura o não fizessem por uma causa irreprehensivel, sabiam pelo menos luctar e morrer? Que direito tendes de vos queixar, quando nem sequer vos merece um minuto de attenção a causa remota da queixa? O _perinde ac cadaver_ do jesuita, se era um aniquilamento diante da vontade, era uma actividade ao serviço da ordem. Os vossos estatutos ainda rezam de menos. Transformam-vos n'uma abdicação ao serviço de uma inutilidade. Sois um partido que habilita qualquer obscuro cidadão a dirigir-se ao mais illustre de vossos adeptos, e dizer-lhe: «Sois um grande escriptor. Por vós o nome litterario d'este canto de terra anda conhecido entre os sabios da Europa. Erguestes um monumento á patria. Sois uma gloria nacional. Mas attendei: desde que vos fizestes o apostolo da descrença; o oraculo do desanimo; o censor infecundo e irresponsavel das miserias alheias; desde que rebaixastes ao nivel de vosso desprezo o paiz em que nascestes, e que prejudicaes com o vosso exemplo, tanto mais deploravel quanto que parte de um homem como vós, eu, humilde entre os humildes, curvando-me respeitoso diante de vossa grandeza, tenho o direito, com a mão sobre a consciencia, de vos dizer estas simples palavras:--sois um mau cidadão! Desappareça, pois, de Portugal essa perniciosissima seita. Use cada um não só de seu voto mas de sua legitima influencia em pró da communidade. _Res, non verba_. Dado este passo importante; alcançada esta grande victoria, organisae, vós os que pensaes, que possuis e que trabalhaes, a grande cruzada em favor da moralisação do paiz. Prégae-a com a voz, com a penna e, sobretudo, com o exemplo, o melhor argumento para ensinar e convencer. O criterio moral do paiz, desenvolvido e purificado, auxiliará a formação de partidos fortes, que serão garantia de governos productivos e regeneração da politica nacional. Estão diante de vós tres estradas distinctas: O absolutismo, a monarchia constitucional, a republica. O passado, o presente, o futuro. A saudade, a prudencia, a theoria. Nos extremos: a tradição e o mysterio. No centro: o facto. Tratae do facto, que é agora o mais urgente. Facto que representa oito seculos de independencia e alguns annos de liberdade. * * * * * A nossa terra é pequena para que n'ella possam caber á larga todos os grupos actuaes. Ha: Historicos; Regeneradores; Reformistas; Amigos do sr. A; Amigos do sr. B; Amigos do sr. C; E assim por diante até á extincção do alphabeto! Todos progressistas! Todos repellindo com azedume a qualificação de conservadores! E comtudo esta divisão é o facto universal, quando a politica de partido não degenera em politica de bando. Reconstrui a primeira pela aniquilação da segunda. Concentrae-vos em dois grandes exercitos, chamando a vós os vossos correligionarios que andam dispersos por todos os grupos, e obrigando o partido, que julgardes dever escolher, a formular um programma, que seja corpo de doutrinas, logico e perfeito. Sêde progressistas ou conservadores; mas sêde alguma cousa, e sêde-o deveras, em nome de systemas completos e harmonicos. Dêem logar os nomes ás realidades. Ahi tendes o livre cambio, a descentralisação, a reforma parlamentar, o regimen colonial, mil outras questões de que podeis fazer bandeira de escola. Formae partidos fortes, que possam dar governos uteis. Sois progressistas? Intervinde, e depressa. Aproveitando os quadros do velho partido historico, reforçae-o com as massas de vossos tropas frescas; redigi um programma de pontos concretos, em harmonia com as idéas que adoptaes, e abri as vossas fileiras para receber n'ellas, por meio de uma verdadeira incorporação, de entre reformistas e regeneradores, os que já são hoje talvez mais vossos verdadeiros camaradas em opiniões do que alguns dos que militam ás ordens de vossos chefes. Sois conservadores? Segui, o mesmo processo e com igual energia. Agrupae-vos. Formulae o vosso credo. Nomeae os vossos chefes. Dizei o que sois, que nada tem de deshonroso, e o que quereis, que pode ser necessario em dados momentos. Se dentro da lei e da liberdade obrigardes as parcialidades existentes a condensarem-se em dois partidos bem distinctos, que ponham fim a colligações de interesses e de homens, como as que por ahi tem desmoralisado e vão desmoralisando o paiz, tereis feito o mais relevante serviço e salvado a nação de crises estereis e de grandes calamidades. Feito isso, acabaria a vadiagem politica, essa praga que nos arruina. A decencia queimaria na testa; com o ferro em braza do desprezo publico, o especulador que mudasse todas as semanas de partido, ao sabor de suas conveniencias. Teria fim a politica pessoal, peste que nos roe as entranhas e corrompe tudo o que toca. Intervinde, intervinde, vós que pensaes, que possuis e que trabalhaes. Pesae na politica com a vossa collaboração. Influi nos negocios do paiz, que são os vossos, e não os deixeis correr á revelia, entregues a governos ephemeros e a corretores de eleições. Tem ainda o paiz grandes recursos. Tudo está em saber aproveital-os. Aproveitem-n'os boas administrações, nascidas á luz da moralidade, e levadas á pia baptismal nos braços de partidos robustos. Só assim se póde viver. O contrario será a morte na Iberia ou na banca-rota. Senão em ambas. XI Capitalistas e proprietarios; industriaes e commerciantes; vós, que sois geralmente os mais teimosos abstencionistas, ponde os olhos e a intelligencia na contemplação do que foi o imperio francez. Ainda não ha muito que alli a prosperidade material parecia sobranceira a todos os riscos. Uma activa circulação de valores levava a saude e a vida a todo esse corpo que moia de inveja os mais poderosos visinhos. O commercio duplicava em dez annos as transacções. A industria punha a resgate o mundo inteiro, prezo nos laços de mil frivolidades. O capital, decuplicado pelo credito, corria em abundantissimos veios, fertilisando por todos os modos a actividade febril da arrogante nação. A aguia napoleonica voava de Sebastopol ao Mexico, estendendo a sombra das azas desde as vertentes dos Alpes até ás planuras do mais remoto oriente. Nas fragatas e nos batalhões do imperio parecia ter-se incarnado o genio da Força. Uma opposição, minoria de minoria, aturdida e estonteada com os votos de maio, luctava sem esperança contra uma dynastia que centralisava sete milhões de suffragios. Estatua de ouro, tendo por dupla base um governo de ferro e um exercito de bronze! Mas de todo esse metal andava ausente um grande espirito. O homem, que firmara o throno no perjurio, abatera o nivel moral do paiz até ás ultimas consequencias de um governo de familia e de facção. A França entregou-se ao culto exclusivo da materia. Deixou roubar, ou vendeu, a representação parlamentar. Deliu em gozos physicos a antiga virilidade. Abdicou no chefe do estado o sceptro da opinião. Passou ao lado da moralidade encolhendo os hombros n'um gesto de enorme fastio. Ganhar depressa e gozar rindo foram os dois limites de seu stadio social. Na politica, Morny. Na arte, Offenbach. Dois fructos de bastardia. Dois typos da época. Rebentou a guerra. A França tinha o pão, mas faltava-lhe o circo. A victoria, essa ex-divindade, que trocou o Olympo pela alcova, vendeu-se a quem lhe lançou no colo mais bayonetas e mais canhões. Os soldados do rei Guilherme pisaram as terras e os brios da França, e ella, a dissoluta, atrophiada por vinte annos de materialismo e de corrupção, consentiu que as tropas do mystico e illuminado representante do absolutismo da espada chegassem aos muros de Paris, sem que os filhos dos heroes de cem batalhas, de um só jacto e com um só pensamento, se erguessem todos para deter o passo ao exercito allemão! Memorando e triste exemplo do que póde a ausencia das forças moraes! Contam-se por centenas de milhares, por milhões talvez, os que recuando perante a invasão não pensaram que o nome da patria merecia o sacrificio de menos alguns annos de vida, ou de menos alguns francos de renda. A resistencia, que devia ser obra de todos, tem sido apenas tarefa de alguns. Quatro lanceiros tomam Nancy, e o espião francez, realisando o ideal da infamia, vende a thalers a vida de seus proprios irmãos! E a Prussia caminha, caminha sempre, elaborando nas almas de seus seiscentos mil soldados um vago sentimento de hegemonia teutonica, entrevista desde longos annos nas brumas dos tempos, á luz de uma predestinação divina que lhe põe nas mãos a tutéla do mundo. E que lucrou o capitalista, o proprietario, o industrial, o commerciante em se ter abstido de uma intervenção directa e moralisadora na politica da França? Os valores em ruina; os campos talados; as fabricas em cinza e os armazens desertos e fechados dão triste, mas sufficiente resposta. Se o povo francez não tivesse reduzido a religião politica a um ritual dissolvente; se não se tivesse engolfado na subserviencia ao poder, deixando-o corromper ou esmagar as consciencias; se, por inevitavel reacção, não tivesse dado ouvidos ás theorias subversivas dos exploradores de popularidade; se tivesse obstado a que uma profunda devassidão lhe envenenasse as fontes da vida; se tivesse avocado a si, por meio de bons e leaes representantes, a gerencia dos negocios publicos, provavel seria que a guerra não tivesse rebentado para servir a ambição de uma dynastia periclitante e satisfazer os instinctos depravados das multidões, que, só á força de estimulos, sentiam ainda pulsar no peito o velho coração, em que tantas vezes tem batido a sorte da humanidade e a emancipação liberal de metade da Europa. O olho do paiz, limpo de fumaradas de polvora e de orgulho, veria melhor e mais fundo. Repousaria com mais jubilo nos conselhos da prudencia e nas abundancias da paz do que nos lances da sorte e nas inclemencias da guerra. Se esta, porém, fosse inevitavel; se tivesse de resolver-se pelo fogo e pelo ferro uma questão de equilibrio ou de preponderancia entre as duas nações rivaes, embora o exercito francez eventualmente succumbisse debaixo do peso dos batalhões prussianos, ter-se-hia poupado ao mundo o afflictivo espectaculo de ver-se uma grande nação fugir a custo de um somno profundo, para dar de rosto desde logo n'uma profunda anarchia. É possivel que a França tivesse baqueado, mas cortejar-lhe-hia a queda o respeito universal, factor immenso nas contas futuras da paz. A pressão moral de sympathias, que não proviessem unicamente de uma utilidade politica friamente calculada, teria de pesar no animo do vencedor, levada até alli não só pelo concerto das chancellarias, como tambem pelo impulso unanime de todos os povos cultos. Mas a gangrena moral tombou no pó o chefe da vaca latina. Como que receiosa do contagio, a Europa tem assistido impassivel a essa dolorosa agonia, que oxalá possa terminar em brilhante resurreição á voz do patriotismo e da liberdade, reagindo contra a podridão do imperio. E se isto acontece com a França, com o gigante que, baqueando moribundo, póde esmagar ainda com o peso do corpo o imprudente que lhe esteja ao alcance da queda, o que seria com um paiz como o nosso, nesga de terra perdida n'um canto da peninsula? Transportae o exemplo a Portugal. Imaginae um conflicto que tenha de resolver-se ámanhã pelas armas. Sonhae que um exercito hespanhol nos arromba a fronteira e que uma frota couraçada mette a prôa ás aguas do Tejo. Não urje que a hypothese seja provavel; basta que seja possivel. E depois? Não levanteis a tempo as forças moraes do paiz; não lhe insuffleis nos pulmões o ar puro e vivificador dos grandes e generosos sentimentos; não o moraliseis com o exemplo e o conselho; não lhe ensineis que, acima do que se toca, existe o que se sente, e admirae-vos depois de que não haja quem possa suster a bandeira da patria, ou vencer na defensão de vossa liberdade e de vossas fortunas, que seriam o primeiro pasto do dente de guerra. Mas (hypothese absurda, por impossivel) não ha resistencia. Um passeio militar conduz o inimigo ao coração do paiz. Os quatro uhlanos de Nancy resuscitam entre Elvas e Lisboa. E julgaes, vós capitalistas, vós proprietarios, vós industriaes, vós commerciantes, que os vossos fundos, os vossos campos, as vossas fabricas e os vossos armazens ficariam livres de mil deploraveis contingencias? Enganaes-vos. Para começar, pagarieis as despezas da invasão. Depois, a fibra popular, passado o primeiro estonteamento, reagiria contra o hespanhol, que se póde ser excellente para amigo e quasi irmão, deve ser detestavel para amo e senhor. Não se desfaz n'um dia o que fizeram oito seculos de odios e luctas. Uma Polonia portugueza morderia sempre o flanco de uma Russia castelhana. E que farieis vós então, apertados entre o interesse e o patriotismo? Collaborarieis na empreza da restauração, trabalho tanto mais difficil quanto mais o invasor se houvesse internado no reino, e a reacção tivesse de tomar corpo na presença de quem andasse já na posse militar do paiz? Mas então o vosso dinheiro continuaria a custear as despezas da guerra; o vosso trabalho pertenceria á communidade em perigo, e de vossos predios, bombardeados e destruidos, se faria o parapeito do reducto inimigo ou o baluarte dos defensores da nação. Mas (nova e absurdissima hypothese) aguilhoados pelo instincto da conservação, e pisando as tradicções da nacionalidade portugueza, acceitaveis o facto consummado e formaveis ao lado do invasor hespanhol. _Quid inde_? Trocarieis então uma guerra politica por uma guerra social; guerra de pobres contra ricos; guerra das massas contra as classes favorecidas; guerra do proletariado patriota contra a burguezia satisfeita; guerra do passado e do futuro contra o presente; guerra que semearia odios eternos entre os que recalcitrassem e os que consentissem; entre os portuguezes por fé e os ibericos por transacção. E ai d'estes, se um inesperado successo, dos que por ahi desconcertam as mais bem combinadas presumpções, viesse no espaço de um sol a outro sol restituir a Portugal a roubada independencia. Quem os salvaria então do furor das turbas amotinadas? Quem lhes poria as propriedades ao abrigo do archote? Quem lhes daria a mão no sorvedouro que se lhes abriria debaixo dos pés? Então, ninguem. Antes, o paiz. Mas um paiz que torne absolutamente impossiveis as hypotheses que ahi ficam phantasiadas, e que as torne impossiveis pela convergencia de todas as vontades, pelo emprego honesto e patriotico de todas as forças no grangeio intelligente e honrado do patrimonio commum. É difficil hoje que quatro milhões de homens possam resistir a quatorze d'essas unidades. Restabeleça-se o equilibrio, ganhando-se em ordem; em boa e liberal politica; em sabia e recta administração do paiz pelo paiz; em respeito de estranhos e nacionaes o que a natureza nos faz perder em extensão e em numero. Portugal bem administrado póde arcar peito a peito com a Hespanha diluida em vinte parcialidades e estrebuxando nas convulsões de uma desorganisação, que ainda não disse a ultima palavra. Porém se a esse estado responder-mos com um estado igual, a questão do peso physico obedecerá ás leis da materia. Quaes ellas são, todos o sabem. XII Capitalistas e proprietarios, industriaes e commerciantes, ponde a intelligencia, já que felizmente ainda lhe não podeis pôr os olhos, no que seria a bancarota. Se hoje vos queixaes de que os vossos fundos, os vossos predios, as vossas fabricas, os vossos armazens padecem com o estado do paiz, o que seria se desabasse tudo n'uma ruina geral? E geral teria ella de ser. Fallido o thesouro, é natural que essa fallencia arrastasse a grandes difficuldades a maioria dos estabelecimentos de credito. Dado isto, a ramificação do desastre chegaria á mais solitaria cabana e ao mais obscuro balcão. Tanto no espelho dourado dos salões da opulencia, como no barro vidrado da baixella do pobre, se reflectiria algum gesto de tristeza ou de angustia. O luxo retirar-se-hia diante da parcimonia. A parcimonia diante do constrangimento. O constrangimento diante da fome. Porque, não vos illudaes, o paiz vive em grande parte á sombra do estado. Morto este pela fome, a fome de uma parte do paiz sairia directamente d'essa ligação apertadissima. De que vive geralmente o funccionario publico, quer elle se chame empregado, professor ou militar? De que vivem os portadores de milhares e milhares de contos de réis em titulos de divida fundada espalhados no paiz? A repercussão d'essa desgraça chegaria immediatamente a todos, porque é em grande parte o estado quem vos paga o juro de vossos capitaes, a renda de vossos predios, os artefactos de vossas officinas e os artigos de vosso commercio. A incidencia da bancarota, o mais pesado de todos os impostos, porque arruina o capital, procurar-vos-hia em todas as transacções da vida social, percorrendo por vias mysteriosas todas as representações do trabalho e da riqueza. * * * * * Qual seria a depreciação de todos os valores actuaes pela raridade, e, portanto, pela carestia da moeda cunhada? Que somma de moeda chegaria para as necessidades da circulação e da producção, se o credito a não a auxiliasse com a sua poderosa camaradagem? Que soccorro vos daria o credito em frente d'esse cataclysmo, elle, a melindrosissima entre as mais melindrosas das molas sociaes, e que o mais ligeiro abalo contrae, como a folha da sensitiva se fecha ao contacto de um só dedo que a toque? E comprehendeis vós sem o credito as sociedades modernas, em que uma actividade devoradora, que é muitas vezes uma ficção, necessita de outras ficções para mover os cem braços com que se agita o mundo contemporaneo? * * * * * Tendes-vos lembrado de quaes seriam as consequencias politicas da bancarota? Os vinculos sociaes e politicos, infelizmente já de si tão frouxos, desatar-se-hiam n'uma dissolução completa. As paixões ruins, explorando a miseria publica, recrutariam n'ella perigosos batalhões. A especulação tomaria a soldo a revolta. E não tumultuariam unicamente na praça publica os pretorianos do motim; os que, sem o estimulo de uma idéa, passeiam nas ruas apenas a ambição de quem os paga, formulada em gritos indifferentes aos que recebem o estipendio, e que ámanhã gritarão com identico enthusiasmo a favor de quem na vespera cubriram de vituperios. Tumultuaria tambem na rua a fome dos verdadeiros necessitados; dos que iriam esquecer na sedição as lagrimas da familia, ou que, movidos por um vislumbre de esperança, pediriam a uma transformação radical a cura de suas desgraças. Não seria então um partido sério o que tomaria as redeas do poder. A logica das cousas, a mais inexoravel de todas, pol-as-hia nas mãos dos mais audaciosos, nos momentos em que a audacia é tudo, e arredaria para o lado os pacificos e illustrados cultivadores da idéa apparentamente victoriosa, mas que seria na realidade envilecida e conspurcada pela cooperação material de homens para quem servisse só de mentirosa bandeira. E imagine-se o que seria se, livre das piozes de qualquer superioridade, que o contivesse, o açor podesse pairar á solta com a omnipotencia de sua vontade em toda a extensão do facto e da lei! * * * * * A moral soffreria igualmente graves affrontas. Não é quando falta o pão que mais se escutam os conselhos d'ella. A probidade recuaria diante da astucia e da violencia. A reserva, abandonando a prudencia, rebentaria em explosões de colera, que mais activariam as chammas do incendio. Aonde houvera a espontaneidade ficaria a coacção. Ao pudor da familia segredaria o demonio do ouro suas infernaes tentações. O proprio archanjo da caridade tentaria debalde chegar-se ás camas dos enfermos nas misericordias e hospitaes, porque só alli acharia leitos nus, aonde, á força de miseria nas arcas vazias, não haveria misearias que proteger e consolar. * * * * * A bancarota! Já encarastes bem essa atroz eventualidade? Não é a venda da herança por um prato de lentilhas; é a venda do patrimonio por um espectaculo de horrores. A bancarota é o prejuizo material multiplicado pelo sobresalto do espirito; operação que, em virtude d'um phenonemo inevitavel, produz sempre um resultado superior á intervenção dos dois factores que n'ella collaboraram. A bancarota ainda é mais do que tudo isso. Mais do que a pobreza; mais do que o perigo; mais do que o descredito; mais do que a barbaridade; mais do que a sedição. É a deshonra do nome da patria! E querereis, vós os que pensaes, que possuis e trabalhaes; vós todos os que andaes na vanguarda do movimento nacional, que o nome do vosso paiz fique deshonrado na historia do seculo? Não é possivel. E não basta que a bancarota não seja um facto inevitavel; é necessario que o não pareça. Porque em pontos tão delicados parecer é quasi ser. Intervinde, intervinde, pois, que ainda é tempo. Salvae o paiz pelo paiz. Saccudi o habitual torpor e trabalhae desde já n'esta empreza tão util para vós, como gloriosa para o nome portuguez. Não se vos dá um grito de terror no meio da batalha. É uma voz de--sentido! XIII Resumindo: Fuja o paiz da ruina equilibrando, quanto possivel, o orçamento do estado. Equilibre o orçamento augmentando as receitas. Augmente as receitas desenvolvendo a riqueza. Desenvolva a riqueza promovendo a confiança. Promova a confiança tendo governos estaveis. Tenha governos estaveis inaugurando boa politica. Inaugure boa politica criando vontade propria. Crie vontade propria adquirindo noções de seus direitos e de suas responsabilidades. Adquira essas noções por meio do desenvolvimento do criterio moral, que anda tão descurado e empobrecido, devendo ser o motor de qualquer sociedade que não queira finar-se na impotencia, na ruina ou na desordem. * * * * * Assim como a egreja nega o chão bento ao corpo dos suicidas, a posteridade atira para a valla commum da historia os nomes dos povos que morrem ás suas proprias mãos. Haja fé na salvação do paiz e o paiz salvar-se-ha. Porém se Portugal, no correr dos annos, tiver algum dia de baixar á cova, que possa ao menos uma cruz negra dizer ás gerações futuras, no cemiterio das nações: _Aqui jaz um povo que viveu como honesto e morreu como bravo_. FIM POST-SCRIPTUM Depois de estar na imprensa este pequeno trabalho deram-se dois factos importantes: a rendição de Metz aos Prussianos e uma crise ministerial no governo do nosso paiz. N'esta approximação não vae a menor sombra de epigramma. É uma questão de datas. Nada mais e nada menos. Á puridade se affirma que não se quer estabelecer relação alguma entre Moltke, ou Bismark, com os homens d'estado que estão gerindo os negocios de Portugal. * * * * * Caiu Metz. A toupeira napoleonica parece ter minado o baluarte aonde cento e cincoenta mil soldados albergavam a honra militar, que, violentamente affrontada em Sedan, fôra depositar nas mãos de Bazaine as tradições gloriosas do exercito francez. Pobre França! Se assim foi, não bastava que vinte annos de compressão e de immoralidade te houvessem debilitado o braço e o coração; faltava-te ainda que um marechal do imperio te arrancasse parte da armadura, a fim de que a lança inimiga te chegue melhor ao corpo nu, quando um clarão de patriotismo começava a tingir em côr de sangue as barricadas heroicas de Saint-Quintin e Chateaudun! Pobre mãe abandonada! Não era pouco que os teus proprios filhos para ahi te deixassem rasgar o seio ás mãos da soldadesca de alem-Rheno; faltava-te ainda que um d'elles, arrancando a corôa virginal da cidade impolluta, te ferisse com ella no rosto, quando lhe sorrias de esperança, por entre as lagrimas de teu penoso martyrio! Na presença das traições de que é victima a França, não cabe o coração no peito de quem tem alma para sentir, e uma parte d'elle vôa a consubstanciar-se no do povo cuja tunica parece estar sendo jogada por Napoleão sobre um tambor prussiano. Para quem está escrevendo as presentes linhas, a causa da França, em guerra com a Prussia, foi sempre a do interesse liberal e portuguez. Bonaparte era um accidente que o furacão podia varrer. O rei Guilherme é um systema, que terá sempre por objectivo a cruz da espada no calvario da liberdade politica. Hoje, porém, collabora o sentimento com a razão. Se o prisioneiro de Wilhelmshohe viesse a Paris sobre um canhão de Krupp, antes Rochefort na presidencia do que Bonaparte no throno. Antes o incendio do que a podridão. Antes o sangue do que o lodo. A desordem pode passar. A deshonra fica. Se a restauração consolidasse um precedente de tal ordem, a moralidade espavorida teria de arrancar o vôo do occidente da Europa, levando comsigo nas azas os ultimos lampejos da decencia e as ultimas vibrações do patriotismo. Praza a Deos que a França possa guardar esse resto, sem subverter os alicerces da sociedade, no desculpavel delirio de uma nação que vê a morte de perto. * * * * * Em Portugal correm as cousas menos tragicamente. Organisou-se uma administração debaixo da presidencia do sr. marquez d'Avila e de Bolama, o mais attendido conselheiro da finada dictadura, e sob a immediata inspiração do sr. bispo de Vizeu, um dos mais intrataveis adversarios da situação creada pelo sr. duque de Saldanha. Esta incompatibilidade, que já dera anteriormente em resultado a saída do sr. marquez d'Avila e de Bolama do gabinete presidido pelo sr. marquez de Sá da Bandeira, produziu novamente... a juncção d'esse cavalheiro e do sr. bispo nos bancos do poder. Ha, pois, _governo_, mas segundo o verdadeiro espirito do systema representativo não ha _ministerio_, porque os actuaes conselheiros da corôa, pessoas individualmente dignas de todo o respeito pelos seus dotes de coração e de intelligencia, não representam mais do que uma colligação de homens, sem corpo de doutrinas que os possam graduar em representação de _partido_. Que não ha um verdadeiro partido atraz do governo, prova-o tambem exuberantemente a necessidade, em que se julgaram ver os organisadores da situação, de irem buscar alguns ministros fóra do parlamento, o que constitue uma violação flagrante das praticas constitucionaes e seria um erro indisculpavel se houvesse um partido ministerial, forte e preponderante, que tivesse dentro de si os elementos para a gerencia de todas as pastas. Este raciocinio deve forçosamente ser exacto porque é impossivel que os deputados verdadeiramente ministeriaes, se os houvesse, se deixassem preterir em publico, como pessoas, por outros cavalheiros de opiniões pouco definidas, e que não haviam recebido o sacramento da confirmação na urna popular. Viverá, portanto, o novo governo o tempo que vivem as rosas; ou durará o que as rosas não duram, se lh'o consentirem as opposições que lhe estão defronte e que farão bom serviço ao paiz não precipitando nova crise, que teria de resolver-se por alguma nova colligação. Impotencia diante de perplexidade. Governo sem força na presença de opposição sem norte certo. E ainda não será chegada a opportunidade de regularisar a politica do paiz? O que obsta a que se comecem a agrupar desde já os elementos progressistas que andam dispersos por historicos, regeneradores e reformistas, e reconstruam um verdadeiro partido, adoptando um programma, não de sonoras banalidades mas de pontos determinados, indicando desde logo a maneira pela qual os resolveriam no dia em que fossem poder? O que impede que façam outro tanto os elementos conservadores, espalhados igualmente por historicos, regeneradores e reformistas, e que podem até achar dentro do governo actual um chefe, que trocaria assim uma posição falsissima por outra mais digna de um homem d'estado? Resolvida esta natural e indispensavel delimitação, porque não auxiliariam ambos os partidos o gabinete, não a resolver a questão de fazenda, porque essa não se resolve só com impostos e córtes na despeza, mas a votar, desde já, os tributos e as economias que são urgentissimos para desaffogar o thesouro das necessidades mais ameaçadoras? Feito este grande serviço; organisados os partidos durante as treguas, porque não se feriria depois uma grande batalha parlamentar entre progressistas e conservadores, indo o governo a quem saisse victorioso da lucta? É possivel que reagissem contra estas indicações salvadoras os estados maiores de algumas das actuaes parcialidades, os quaes talvez desejem que subsistam as divisões existentes, para terem maior importancia dentro de seus pequeninos exercitos. Se isto é verdade, prepare-se então o paiz, e com tempo, a fim de que, chegado o momento opportuno, possa dar a lei a quem se mostrar rebelde aos conselhos do interesse publico. Se proceder com energia e concerto, poderá impor aos seus representantes condições de boa politica e ter governos estaveis, obviando igualmente a que dissoluções repetidas corrompam cada vez mais os costumes da nação. Porém se continuar a permittir a anarchia politica em que está vivendo a responsabilidade será sua. As consequencias d'ella já se estão sentido. Até aonde chegará a debilidade do paiz? Para o fundo, até á perda de nossa fortuna? Para atraz, até á perda de nossa existencia? Oxalá que elle tome o caminho dos astros, até á riqueza e á independencia, á ordem e á liberdade! 2 de novembro de 1870. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Verdades amargas - estudo politico dedicado às classes que pensam, que possuem - e que trabalham" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.