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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-05/06)
Author: Ortigão, José Duarte Ramalho, 1836-1915 [Editor], Queirós, José Maria Eça de, 1845-1900 [Editor]
Language: Portuguese
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Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed


[Illustration: EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO--AS FARPAS]

RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ

AS FARPAS

CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

NOVA SERIE TOMO IX

Maio a Junho 1877



Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON



SUMMARIO

A burra do Estado. Porque motivo o ministerio Fontes se deitou abaixo
d'essa burra, e do mais que então passou. A queda do dente. Elogio do
dente pelo sr. Assumpção. O dente embrulhado n'um papel. O dente aos pés
do throno. O dente demittido. Pede-se um dente novo.--O drama _Leonor de
Bragança_ e a caixa do Poder Moderador. Parallelo da peça do sr. Luiz de
Campos e da do sr. Alfredo Ansúr. Os caracteres em cada uma das duas
peças, a lingoagem, o stylo, a cortezania, a intenção moral. Conclusões
do referido estudo: requisita-se para o sr. Ansúr a commenda do lagarto
ou metade da caixa conferida pelo Poder ao sr. Campos.--As corridas de
cavallos--O premio do Jockey-Club e o premio da Academia--O progresso em
Lisboa durante o ultimo semestre. A sociedade affirma o seu movimento
ascendente na civilisação por meio de dois novos estancos e de uma
ourivesaria. Philosophia de uma vitrine de joias--A peregrinação a Roma.
Os preparativos. A partida. A prescripção da _toilette_. A chegada a
Lourdes. Aspecto pittoresco e elegante do milagre: o _restaurant_, o
trem de Paris, as _parties fines_ sobre a relva, o Champagne e as
bilhinhas da agoa. Em Roma. As offerendas. O dinheiro de S. Pedro. A
applicação d'esta receita. O album dos peregrinos e o que n'elle se
contém. A nossa allocução. O primeiro e o ultimo jubileu. Pio IX e
Bonifacio VIII. A antiga fé. Os peregrinos em 1300. A fé actual e os
peregrinos d'hoje. O conflicto da sciencia e da fé. O Deus de Darwin. Os
novos poderes espirituaes. De como ninguem quer o ceu do Padre
Marnoco--A primeira communhão de sua alteza o principe--A civilisação
africana e as conferencias academicas. Uma conferencia que se não faz:
_Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores_.

       *       *       *       *       *

Era em uma bella manhã do mez de março. A primavera, essa filha do amor
e da brisa--como diria o sr. Antonio de Serpa se as conveniencias
partidarias lhe permittissem ainda dedilhar a theorba sob o lyrico
balcão de D. Mafalda--tinha estendido sobre as campinas o seu manto de
esmeraldas. Nas estradas que convergem a Lisboa um alegre raio de luz
animava a circulação da vida suburbana. Havia um novo tom festivo no
chocalhar das recuas dos almocreves, no rodar das pesadas carroças da
hortaliça de que se exhalam emanações appetitosas de cuentro e de
pimpinella, no tic-tic do passo miudo e zeloso dos jumentos saloios
ajoujados de bilhas de leite e de seirões de roupa lavada. A agua das
regas rumorejava suavemente por baixo da macia verdura aveludada dos
favaes. As cotovias cantavam na espessura das hortas. Pelos portões das
quintas, de pateo ajardinado, sahia em calidas baforadas o perfume dos
limoeiros. Por cima dos muros pintados de amarelo bracejavam sobre os
caminhos as hastes dos pecegueiros em flôr. Uma aragem tepida e
balsamica cahia do ceu azul e envolvia n'um doce torpor voluptuoso e
suave os nervos dos lisboetas que madrugavam voltando de Cintra ou
desembarcando na gare de Santa Apolonia.

       *       *       *       *       *

Foi dominado por essas influencias do clima, da paizagem, dos aspectos da
natureza, que o sr. Fontes Pereira de Mello deliberou deitar-se abaixo
do governo, retirando-se ao diletantismo particular e abandonando aos
que iam pela via a burrinha pacata e fiel do poder, que elle cavalgara
em cinco annos de choito glorioso atravez das _diversas provincias da
publica administração_.

Somos informados de que s. ex.ª, reunindo os seus collegas do ministerio
e os seus mais intimos amigos politicos, lhes fallara d'esta arte:

Senhores! Achando-me esta manhã á janella do meu quarto, fazendo algumas
considerações philosophicas e a barba, deliberei apear-me por algum
tempo da azemola do poder.

_Vozes de amigos intimos desapontados_.--Oh! oh! Não o cremos!... Não o
podemos crer!... É um gracejo, um puro gracejo de s. ex.ª! Que a burra
do poder venha á presença de s. ex.ª para que s. ex.ª a cavalgue! S.
ex.ª não pode assim descer da burra! Seria altamente impolitico
deixar-nos n'este momento com a burra devoluta nos braços! deixar-nos,
para assim dizer, com a burra atravessada na garganta! Haja ao menos um
pretexto, haja uma razão!

_O sr. presidente proseguindo_: Quereis uma razão? Eu vol-a dou. Acho-me
impossibilitado de proseguir provincias da publica administração além. Á
força de meditar nos altos negocios do estado acaba de me cahir um
dente...

_Vozes_--Dê o dente para ordem do dia!

_O sr. presidente (tirando o dente da algibeira e collocando-o na
discussão)_--Ahi tendes o dente. Abri sobre elle os mais largos e
rasgados debates, e julgae-o como vos approuver. É um queixal. Nada mais
acrescento. Sobre este ponto considerações de melindre pessoal me
inhibem de continuar. Farei apenas sentir aos meus amigos politicos e
aos meus collegas do gabinete que nem a camara nem o paiz nem a corôa
poderão, segundo penso, exigir da minha fidelidade partidaria que eu
sacrifique á investigação dos negocios os dentes que o meu ardente
patriotismo me impõe a obrigação de reservar para os inimigos da patria.
Tenho dito.

(_Vozes:_--Muito bem! Muito bem!)

       *       *       *       *       *

O sr. Manuel da Assumpção, havida então venia para fallar, consta que
estendera a dextra sobre o dente, e proferira com ardor e enthusiasmo as
seguintes palavras:

«Meus senhores! Este dente é a pagina mais gloriosa da nossa historia. É
effectivamente um queixal, como s. ex.ª muito bem disse na sua phrase
tersa, de uma energia e de uma concisão dignas de Tacito. Ha oito dias
que os jornaes que nos guerreiam lançaram este dente na tela da
discussão, procurando fazer acreditar ao paiz e ás nações extrangeiras,
por meio de insinuações malevolas, que elle é canino. Mandando o dente
para a meza o sr. presidente acaba de confundir de uma vez para sempre
os seus adversarios. Queixal! Longa foi a tua carreira gloriosa.
Enraizado no queixo de s. ex.ª atravessaste com elle as mais duras
provações de uma carreira brilhante. Roeste o pão negro do ostrocismo.
Atolaste-te na lampreia d'ovos das doces illusões. Mascaste a cabedella
dos terriveis desenganos. Depois de cada um d'esses estadios na senda
dos progressos materiaes e moraes, s. ex.ª, com mão decisiva,
palitava-te. Um dia porém, á meza do orçamento, no grande banquete da
civilisação, n'esse campo de batalha onde se travam os combates
incruentes do progresso e onde o talher de s. ex.ª por muitas vezes
fulgurou desembainhado ao sol das victorias, tu, depois de uma violenta
refrega, com umas amendoas torradas de exercicios lindos, com uns
biscoutos de gerencias anteriores, e com algumas outras verdades duras
de tragar, appareceste furado. No dia seguinte s. ex.ª chamava ás armas
a reserva e um dentista, e tu, ó dente, recebias como os bravos o
baptismo do chumbo. A bala inimiga....

_O sr. Presidente_--Tomo a liberdade de interromper o illustre deputado
e meu nobre amigo para lhe fazer notar que o dente não recebeu o
baptismo do chumbo sob a forma de bala, mas simplesmente sob a forma de
pingo.

_O orador_--Do mesmo modo então que um fundo de chaleira?

_O sr. Presidente_--Precisamente do mesmo modo.

_O orador_--Agradeço infinitamente a s. ex.ª a informação que acaba da
prestar-me, e, se s. ex.ª m'o permitte prosigo, pondo de pane a piada
relativa á bala do inimigo...

Dente! cahiste alfim. A tua queda tem o caracter de um triumpho, pois
não cahiste arrancado por uma opposição accintosa e malevola; cahiste
porque tinhas os teus dias cheios e um pouco tambem porque estavas
podre.

Que mais queres, ó dente? que mais desejas? que mais ambicionas?...

_O sr. Presidente_--Peço perdão para ainda uma vez interromper o
illustre deputado, rogando-lhe que não tome por incivil o silencio do
dente ás suas interrogações. O dente é hoje a primeira vez que apparece
em publico separado dos seus companheiros, e deve-se ter em conta o
justo acanhamento que a sua nova situação lhe infunde. Eu acho-me porém
habilitado para satisfazer a curiosidade do illustre deputado em quanto
ás ambições do dente logo que s. ex.ª o exija.

_O orador_--Como deputado da maioria tenho a declarar ao sr. presidente
que nunca dirijo ao governo, nem no seu conjuncto nem separadamente a
nenhum dos seus queixaes pergunta alguma para que deseje resposta. As
minhas interrogações são puramente rhetoricas. O silencio com que fui
escutado pelo dente não sómente me não escandalisa mas antes pelo
contrario me penhora como um testemunho de benevolencia a que não
ousava aspirar.

Concluindo, tenho a honra de propor que, depois de embrulhado
respeitosamente em um papel, o dente seja levado ás plantas do poder
moderador, para que sua magestade haja por bem resolver como lhe
approuver esta passageira crise. Faço votos por que o sr. Presidente do
conselho se apresse em pôr ao serviço da nação um novo dente.»

       *       *       *       *       *

Approvada unanimemente a eloquente proposta do sr. Assumpção, o sr.
Presidente do conselho recolheu-se a sua casa a tomar bochechos
emolientes emquanto o resto do ministerio partia para o Paço a levar ao
soberano o dente resignatario.

Constou pelos jornaes quo apenas recebera o dente sua magestade se
dirigira a casa do sr. presidente do conselho, com o qual teve uma
entrevista de duas horas. Estas duas horas foram empregadas pela corôa
em procurar reintegrar, pelas suas proprias mãos, o dente caído na
maxilla do illustre estadista.

Diz-se que a corôa, suando em bica, esgotára, para consolidar o dente
caído no seu logar primitivo, todos os meios compativeis com as
disposições do codigo fundamental da monarchia. Sua magestade tentára
fixar o dente ao chefe do gabinete com obreias, com adhesivo, com lacre,
com pez, com gomma arabica, com barbante, com alfinetes e com pregos.

O dente reagiu a todas as reaes instancias: o excelso politico, em cujo
queixo inferior elle se firmára durante cinco annos de gerencia
governativa não queria mais a confiança da corôa, queria unicamente
cosimento de malvas.

O monarcha lavrou então o decreto mandando o seu antigo ministerio
bochechar, e encarregou o sr. marquez de Avila e Bolama de reunir com os
seus amigos o numero de dentes necessarios para formar uma gerencia
duradoura e firme.

D'este encargo se desempenhou o sr. marquez com o zelo que o
caracterisa, e o actual ministerio nasceu.

       *       *       *       *       *

Um dos nossos mais distinctos amadores, o sr. Luiz de Campos, acaba de
dotar o theatro de D. Maria com um drama, cujo exito constitue o maior
triumpho modernamente alcançado pelas letras portuguezas.

Não só os jornaes todos consagraram a esta obra louvores emittidos com
uma energia desusada, mas até a alta sociedade, de ordinario tão
parcimoniosa de curiosidade dispendida com a arte, patrocinou com
especial favor esta peça. O auctor teve a gloria de ver os seus finaes
d'acto applaudidos do fundo dos primeiros camarotes pelas mãos mais
aristocraticas. Nas situações patheticas do seu assumpto lagrimas
illustres sulcaram o pó d'arroz com que se perfumam os brazões das mais
nobres e distinctas familias. Finalmente no fim do espectaculo o Poder
Moderador, que assistira á representação em companhia da sua familia,
expediu um dos seus camareiros, o qual foi ao palco cumprimentar o
laureado dramaturgo, pedir-lhe desculpa de lhe não pingar do alto do
throno sobre o peito da casaca a commenda de S. Thiago, e entregar-lhe
em vez das insignias d'essa ordem excelsa e em nome do referido Poder um
cofre com uma pedra preciosa, que os jornaes do outro dia pela manhã
almotaçaram em 1:500$000 réis.

       *       *       *       *       *

O drama do sr. Luiz de Campos intitula-se _Leonar de Bragança_ e encerra
a historia d'aquella desditosa, cuja mocidade e belleza feneceram de
subito, surprehendidas no ventre por trez facadas com que a brindou seu
esposo, o mui nobre e poderoso duque de Bragança, um dos antepassados do
Poder que hoje nos rege, e ao qual, bem como á sua familia, acima
tivemos a honra de reportar-nos submissa e respeitosamente.

O pretexto sob o qual D. Jayme damnificou com instrumento perfurante o
abdomen de sua mulher foram os amores d'esta com o pagem Antonio
Alcoforado.

Existiram effectivamente esses amores? Era a duqueza realmente culpada
de uma fraqueza anormal pelos pagens? Era Alcoforado um honesto e leal
servidor do principe D. Theodosio, ou era uma ratoeira vil de duquezas
incautas?

       *       *       *       *       *

Ha duas opiniões ácerca do modo de considerar no theatro a natureza
d'este facto.

Na sua _Leonor de Bragança_, escripta em prosa, o sr. Luiz de Campos
entende que a duqueza é innocente. Na sua _Leonor de Bragança_, escripta
em verso, o sr. Alfredo Ansúr julga a duqueza culpada.

Os fados, que tão propicios foram á obra do festejado sr. Campos,
trataram adversamente a obra não menos estimavel do malogrado sr. Ansúr.
Julgamos do nosso dever protestar contra esta dura injustiça pondo em
cotejo as duas composições a que deu origem a tragica aventura de
Leonor.

       *       *       *       *       *

No drama do sr. Luiz de Campos a culpa toda do nojoso sarrabulho
perpetrado por D. Jayme está unicamente, segundo diz o sr. Campos, em
_haver o pagem um coração_. O sr. Luiz de Campos emprega constantemente
_haver_ em logar de _ter_, não só nos casos em que esse verbo é usado
como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de possuir. Acatamos
discretamente as rasões de pundonor e de dignidade que possam ter levado
este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes com o verbo _ter_. O
simples depoimento do verbo _haver_, conjugado com tanta lealdade,
cravado no discurso com tanta firmeza como aquella que se admira em
todas as locubrações litterarias d'este auctor, basta para nos convencer
da innocencia de Leonor.

Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça são de
um caracter fortuito absolutamente illibado.

A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo
bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no
momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo bastidor
á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos meditando
no verbo _haver_, e descarregam um sobre o outro o objecto das suas
cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos:

_Duqueza_--Houveste alfim volvido?

_Pagem_--Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me?

_Duqueza_--Nada hei.

_Pagem_--Hão, quiçá, offendido-vos outra vez?

_Duqueza_--Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D.
Theodosio.

_Pagem_--Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se cumprir
vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a... Manhã, ao toque de
prima, serei partido. De nada mais heis mister?

_Duqueza_--De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de
haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha.

_Pagem_--Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou.

_(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)_

A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado com a
duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça, finalmente, a
duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples ôlho, tem para
Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se presinta de leve que
seja a exhalação da perfidia.

       *       *       *       *       *

O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como vamos ver.

BEATRIZ ANNES

_Grande mal, grande mal, senhor Fernão!_

FERNÃO RODRIGUES

_Que mal?_

BEATRIZ ANNES

_Homem em casa._

FERNÃO RODRIGUES

_Com a aia?_

BEATRIZ ANNES

_Não._

FERNÃO RODRIGUES

_Com quem pois?_

BEATRIZ ANNES

_Com nossa ama._

O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem
aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras:

PAGEM

  _Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio
  Em vertigem de amor! Sinto a poesia
  Na mente distillar grata ambrosia.
  Ó senhora duqueza! Minha vida!
  Como vos amo!_

LEONOR

  _Antonio! alma querida..._

PAGEM

  _Longe de vós a vida é-me desterro...
  Perdoar-me-heis do coração este erro?_

LEONOR

  _Sim._

PAGEM

  _Sem vos escutar e sem vos ver
  Não podia, senhora, mais viver!
  Meu peito abrasa._

LEONOR

  _Doce pensamento,
  Longe de ti é egual o meu tormento._

E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica perfeitamente
calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o Alcoforado:

  _Calae-vos por piedade! Tende imperio
  Sobre a imaginação._

Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem, á
hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de um
sentido decisivo:

  _Como evitar que o duque venha, e veja
  Aqui tua presença que me peja?_

PAGEM

  _Meu Deus!_

LEONOR

  _Jesus! esconde-te!_

Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos
persuadem, replica energicamente:

  _Fujamos!_

LEONOR

  _Por onde oh! ceus?_

PAGEM

  _Por esta porta._

LEONOR

  _Vamos._

Sendo tanto a _Leonor de Bragança_ do sr. Luiz de Campos como a _Leonor
de Bragança_ do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos seus auctores
a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas devem ser
consideradas pela critica não como livres producções litterarias mas
como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança. Ora sob este ponto
de vista--não hesitamos em dizel-o--a obra do sr. Ansúr parece-nos muito
mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de Campos.

Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente
aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com o
testemunho dos documentos que manuseou: _A historia genealogica, As
Decadas_ de Couto e de Barros, a _Chronica de D. Manuel_ por Damião de
Goes e o _Auto de inquirição e devassa_ existente na Torre do Tombo. O
sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos documentos por
elle compulsados.

Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a
duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois
uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e
fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada.

Segundo o sr. Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro infeliz
em familia, ao qual succede--como muito bem diz Menelau na Bella
Helena--uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da
duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade offendida
e ao abrigo das leis do reino.

Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque não
passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de familia e
a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço de sangue
innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o pagem Alcoforado,
com o mesmo facalhão com que se picam os bifes, é um facto indecente
que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos, estabelece um precedente
que pode levar os servidores da casa de Bragança a não distinguirem
inteiramente a differença que ha em ir para o paço e em ir para a
salgadeira.

Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar sem
nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura da
peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar D.
Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de Africa.
Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe que faz
das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica pelas
necessidades ordinarias da vida exterior.

       *       *       *       *       *

Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o
publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica
cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a
condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de
apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua.

Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a
offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime por
uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em casa. Com
a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza e de
concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um immenso
clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino destinado
á perfuração das damas.

Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal
desengano:

  _Horror! Infamia! Anathema! Vergonha!
  .......................................
  Rompe-se-me do ser toda a harmonia,
  Passa-se-me na mente extranha orgia!
  Estalam-me no corpo algumas fibras!
  Meu pobre espirito, que assim te libras
  Do desespero na mortal esphera,
  Não te consumas tanto! Acalma! Espera!
  .........................................
  Mofina dor me roe, me despedaça!
  Emquanto descuidoso andara á caça,
  Tu deliravas... tu... oh! que villeza!_

E depois dirigindo-se ao pagem:

  _Arrepende-te dos teus peccados
  Que os fios da tua vida estão contados!_

PAGEM

  _Perdão! piedade!_

DUQUE

  _Soffre com valor
  Que mais soffreu par nós o Redemptor!
  .....................................
  .........................Alfim
  Com o manchil Domingos cortará
  A cabeça do pagem. Morrerá._

A duqueza intervem com esta conceituosa
mas intempestiva maxima:

  _Jamais decepes com manchil odioso
  A cabeça de um justo. É horroroso!_

O duque não precisa que lhe ensinem a resposta...

  _Sabe mostrar do Barbadão de Veiros
  O descendente, como pune o ultraje,
  Que lhe fizeste, Leonor! Apage._

Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á
clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de
Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e em
noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso que,
presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma commoção
profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da mãe de D.
Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio solio?

  _Omnipotente Deus! quiz o destino
  Dar existencia ao throno manuelino!
  Quem predissera tal, filho cadete,
  Quando surgiste á luz em Alcochete?!_

Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço da
casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o sr.
Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta
familia:

  _A não ser o real, não ha poder,
  Que possa hoje nos reinos exceder
  O de nosso senhor! Póde D. Jayme
  (Ó fóros brigantinos inspirae-me)
  Nas salas dos seus paços ter doceis
  E sitiaes nas egrejas dos fieis.
  Forrada com arminhos, rica, larga
  Vestir opa vermelha aberta á ilharga;
  Ante si leva estoque, segundo acho,
  Com o extremo voltado para baixo,
  Distinctivo dos reis, que é para cima._

Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em
cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de
levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar
estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos
acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e para baixo!

A unica coisa que se nos offerece reprehender na peça do sr. Ansúr, por
innumeros titulos superior á do sr. Luiz de Campos, é que o auctor a não
tivesse accrescentado com mais um acto, no qual, para completa
rehabilitação da casa de Bragança, o duque D. Jayme nos apparecesse
resgatando-se aos olhos do Omnipotente por meio das penitencias em que
consumiu até o ultimo dia da sua taciturna viuvez. Nos paços de Villa
Viçosa ainda hoje se mostra aos viajantes uma tina cavada no chão, a que
se desce por quatro degraus, na qual é tradição geralmente crida que o
nobre duque se mettia em agua, durante uma hora por dia, para desaggravo
e remissão de suas culpas. O illustre heroe tão devéras se arrependeu
que chegou a mortificar-se d'esta maneira insolita e sem
precedentes--tomando banho!

Seria um bello melhoramento na obra do sr. Ansúr que s. ex.ª a
completasse com um breve epilogo, em que D. Jayme fosse visto amarrado
pelo grilhão da penitencia a uma bacia, e ciliciado no vivo das suas
carnes ultrajadas e viuvas pelo contacto expurgante de um sabão.

       *       *       *       *       *

Postas estas considerações, não podemos deixar de perguntar: Porque
motivo não caiu do alto da regia munificencia sobre o peito inspirado do
sr. Ansúr o pingo da nobre ordem do lagarto, do merito artistico e
litterario, pingo suspenso da real goteira sobre as boças poeticas do
sr. Luiz de Campos? Não fez o sr. Ansúr um drama de assumpto brigantino
como o do seu collega? Não tem o sr. Ansúr a precedencia n'esta creação
litteraria? Não é a sua obra dedicada egualmente a el-rei? Não é ella
escripta em bellas parelhas de versos de dez syllabas, em vez de o ser
em prosa villôa como a do seu competidor?

O sr. Luiz de Campos, não podendo pela sua qualidade de deputado receber
mercês honorificas, teve de el-rei o presente de um cofre no valor acima
referido de 1:500$000 réis.

Não so dando com o sr. Ansúr a incompatibilidade annexa ao mandato
popular, porque não se lhe confere a commenda da nobre ordem ou, quando
menos, a sua equivalencia em cofre com pedra preciosa no valor de réis
1:500$000?

Grave e inexplicavel injustiça! Se a nossa debil voz póde chegar até ás
orelhas da corôa, nós diremos ao augusto soberano:

Senhor! A vossa protecção ás letras patrias não se tem até hoje
desmarcado de uma reserva tão discreta como constitucional. Os
dramaturgos que precederam Luiz de Campos e Alfredo Ansúr apenas teem
colhido da regia liberalidade a graça de haverem possuido collocado em
uma _avant-scène_, durante uma ou duas representações das suas peças, o
vosso real perfil, que outros não possuem senão collocado nas moedas de
5$000 réis, coisa miseravel e vil. Acabado o espectaculo vós enfiaes o
vosso paletot, accendeis o vosso charuto, retomaes o vosso sceptro no
bengaleiro, e ides para casa recolher as commoções da noite sob o
agasalho da vossa corôa de dormir, de algodão branco com uma borla na
ponta. O genio nacional não pôde ainda até hoje obter da vossa
munificencia manifestações mais expressivas. Uma vez, porém, que
deliberastes inaugurar a éra do galardão litterario, dae a Alfredo
Ansúr a commenda que Luiz de Campos não pôde acceitar. Dae-lh'a quanto
antes. Não espereis que á cabeceira do vosso leito se erga o espectro do
remorso, e que, sob a figura do poeta menosprezado, elle vos brade nos
silencios da noite:

«Descendente de Barbadão! solta-me o lagarto! Larga o lagarto,
Barbadão!»

Se o throno for surdo ás nossas vozes, cairemos sobre o sr. Luiz de
Campos, e com o manchil da justiça distribuitiva em punho
cortar-lhe-hemos a dadiva regia ao meio!

Que o sr. Ansúr nos diga para onde quer que se lhe mande a metade do
brinde que lhe lhe compete.

       *       *       *       *       *

Hoje, 7 de maio, corridas de cavallos no hippodromo de Belem.

Um premio foi disputado por quatro cavallos, um foi disputado por tres,
outro por dois, e o ultimo finalmente por um cavallo só. Este cavallo
partiu correndo vertiginosamente atraz de si mesmo, e desenvolveu tal
ardôr e tal velocidade que chegou á meta, no meio das ovações e dos
applausos geraes, passando adiante de si proprio!

Nota-se esta curiosa influencia do premio do governo, do premio de
el-rei, e do premio do Club, sobre o desenvolvimento da raça
cavallar:--quanto mais premios se distribuem menos cavallos ha.

Se a instituição se mantem por dois ou tres annos mais, é-nos licito
acariciar a esperança de que terminaremos por não haver cavallo nenhum,
e teremos ainda o gosto de ver o primeiro dos _sportmen_ que figuram no
programma da presente corrida, o ex.'mo sr. Galileo, acabar por
percorrer a pista montado no seu telescopio.

       *       *       *       *       *

E no entanto o campo das corridas é o mais bello sitio dos contornos de
Lisboa, o mais aprazivel ponto de passeio de carruagem, a cavallo ou a
pé nas tardes de verão, e é susceptivel de ser explorado pelo
Jockey-Club com sufficiente lucro da associação e com grande vantagem do
publico. Bastaria para utilisar e aformosear o campo circumdal-o por
fora da pista com uma rua de arvores intermeadas de bancos de jardim;
estabelecer no centro do hippodromo um jogo do _Cricket_ para os membros
de um _Cricket-Club_ addido ao _Jockey-Club_; organisar um tiro ao alvo,
um _Croquet_ para as senhoras, alguns jogos gymnasticos para o povo e
para as creanças; promover nos domingos da primavera e de verão no
recinto do campo pequenos certames agricolas e industriaes, concursos de
vaccas, de carneiros, de gallinhas, de porcos gordos, exposições de
flores, de fructas, de legumes, de queijos, de instrumentos de
agricultura e de jardinagem, etc.

Lisboa carece vergonhosamente de uma instituição d'este genero que reuna
com as condições de recreio os desenvolvimentos de actividade e de
educação. Visto que nem o governo nem a municipalidade se occupam d'essa
questão, o _Jockey-Club_ prestaria um serviço relevante procurando
resolvel-a.

       *       *       *       *       *

Mas de modo algum pretendemos forçar o _Jockey-Club_ a acceitar esse
encargo. O _Jockey-Club_ fará o que entender, e nós acharemos sempre que
entendeu bem; a unica coisa que lhe rogamos é que reflicta no futuro que
o espera continuando na senda assustadora em que principia a resvalar. O
club achou ainda um meio de resolver o problema do concurso diante da
simples unidade: queremos saber o que fará quando vier a apparecer a
fracção, e a quem se dará o premio de el-rei, quando para o anno
concorrer unicamente a disputal-o--um selim!


       *       *       *       *       *


Ao mesmo passo que o _Jockey-Club_, sob a protecção de suas magestades o
sr. D. Luiz e o sr. D. Fernando confere premios no valor de tres contos
de réis annuaes ás bestas velozes, a Academia Real das Sciencias, sob a
presidencia e sob a protecção dos mesmos augustos principes, confere
apenas 50$000 réis de premio aos sabios extenuados.

Um cavallo que percorre a galope uma distancia de mil e quinhentos
metros ganha réis 1:500$000. Os sabios do paiz inteiro ganharão 50$000
réis satisfazendo entre varios outros os seguintes pontos do programma
da Academia para o anno de 1877:

Em mechanica: Apresentar um trabalho sobre o movimento dos fluidos;
achar o melhor systema de obras a eslabelecer nas margens do Tejo a fim
de satisfazer simultaneamente as condições de salubridade, irrigação e
segurança das propriedades adjacentes. Em physica: estudar a capacidade
calorifica dos atomos nos corpos simples; indicar a construcção da pilha
de effeito mais constante e mais propria para ser applicada á
telegraphia; apresentar a synthese dos alcaloides organicos; estudar a
composição chimica das principaes aguas sulfureas e alcalinas de
Portugal. Nas sciencias historico-naturaes: Fazer a descripção
ampelographica das principaes castas de uvas portuguezas e determinar o
melhor processo para o fabrico dos vinhos genuinos; fazer um ensaio
monographico da fauna portugueza. Nas sciencias medicas: Determinar as
alterações da saude e as doenças devidas ás principaes industrias do
paiz e indicar os meios efficazes de as prevenir; fazer um estudo
critico do systema de esgoto e saneamento da capital, que satisfaça a
todas as condições prescriptas pela hygiene, apresentando o modo da sua
realisação; estudar a mortalidade de Lisboa, suas causas e meios de as
attenuar. Em litteratura: Fazer um romance historico, fazer um poema,
fazer um glossario das palavras e locuções hoje obsoletas ou antiquadas
que se leem nos antigos cancioneiros portuguezes acompanhando esse
vocabulario de observações linguisticas e philologicas. Nas sciencias
economicas e administrativas: Memorias ácerca da descentralisação em
Portugal e do melhor systema de circulação fiduciaria. Em historia e
archeologia: Estudo ácerca do estado da sociedade portugueza ao tempo da
morte de D. João V; determinar e caracterisar as relações artisticas de
Portugal nos seculos XV e XVI no tocante á architectura, esculptura,
pintura, musica e artes industriaes, indicando os meios officiaes e
extra-officiaes que facilitaram essas relações pondo os resultados em
parallelo com a historia da arte em geral, etc., etc., etc.

       *       *       *       *       *

Se nós fossemos sabios preferiamos ao trabalho de responder a qualquer
dos alludidos quesitos pela somma de 50$000 réis, o trabalho de
percorrer á desfilada a pista do hipodromo de Belem--de graça.


       *       *       *       *       *


Durante o semestre que finda este mez Lisboa não produziu nem um só
livro util, nem uma só notavel obra d'arte na pintura, na musica, na
poesia.

Não se fez nem uma prelecção nem uma conferencia litteraria ou
scientifica. A estação toda passou-se como a estação anterior, como as
estações precedentes, sem que esta sociedade em marasmo désse um unico
signal de vida intelligente.

Lisboa é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não
queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S.
Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda.
Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus institutos
particulares, o _Atheneu_, sociedade da natureza do _Gremio Litterario_
em Lisboa. No _Atheneu_ os cursos publicos, livres, gratuitos,
abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura
prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se
ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia
social no ponto de vista de espiritos altamente cultos.

Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação
manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no
Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta de
objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os nossos
ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver dispersar-se no
ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias comprehenderam que este
estado geral dos espiritos deveria começar a fatigar os habitantes de
Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintarão
ainda as condições de commodidade e havemos de ver os estanqueiros
sairem ao encontro dos desejos do publico com colchões. Chegaremos á
Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos
os nossos _carvajales_ deitados em camas, á porta.

       *       *       *       *       *

A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma
instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro,
tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os
Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita em
Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou
do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano sobre um
parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de
ceu coberto de creme.

Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como
n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de
cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em
exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas
como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o
roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os
breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete
monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital.

Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos
preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos
em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa
nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom profundo, que não
é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas côr de
rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas
feitas de substancias extraidas de uma cristalisação mimosa de beijos
ternos e de perfumes castos.

No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches
tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis
chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de
saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em
camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da
esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das
malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições como
pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas
as scintillações do prisma.

Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns
são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos
como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias,
revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro
roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça de cobra esmagada por
um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma côr
limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha
trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados,
superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras,
soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico.

Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa
representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em
pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas,
entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças de
filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, côr
de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos _repoussés_; os
jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como
vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos,
nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas
obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem
até as nucas.

       *       *       *       *       *

Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos
de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se
mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados,
costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando não
ha serão.

Candieiros de gaz com fortes reflectores não só alumiam intensamente os
objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem pedaços de
espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio.

As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da
transpiração do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados,
cheios de exhalações mornas de roupa suja. Na mão esquerda o dedo que
aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada,
produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha
curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se
com velhas flores em terceira mão, desbotadas e tristes; e das cuias,
caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida
dos vestidos, sae um cheiro acido de cabellos humidos e embrulhados, em
fermentação.

Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé,
embrulhada em fina renda branca, debruça-se no mostrador e aproxima da
mão do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha
carnuda, sensual, de comilona feliz.

Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem
infinitamente para todas as direcções essa cabeça bonita envolta em
renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de
perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da mão que enfia o brinco.

As macilentas Margaridas de olhos pisados vão ver em cada noite esse
espectaculo de tentação, em quanto na esquina fronteira, na Casa
Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos
diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra
impudentemente as linguinhas de chamma e coçando os seus piqueninos
chavelhos com freneticas contracções aduncas, como quem se sente
inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade.

       *       *       *       *       *

A peregrinação a Roma foi promovida pelos chefes do partido clerical com
um zelo fervoroso, que acabamos de ver coroado com o mais prospero
exito.

Suas excellencias annunciáram com a devida antecedencia a celebração do
jubileu pontificio; facilitaram a romagem com esclarecimentos que fariam
a gloria do _Guide Joanne_; conseguiram o estabelecimento de comboyos de
recreio, ida e volta, preços reduzidos, de Lisboa a Roma, com escala por
Nossa Senhora de Lourdes; deram os preços dos hoteis e dos restaurantes
romanos, a regimen de peixe ou de carne, para as grandes bolsas, para as
bolsas medias e para as pequenas bolsas; fixaram finalmente a
_toilette_, explicando que as senhoras deveriam apresentar-se com
vestidos de seda preta e véos de renda, e os homens de uniforme ou de
casaca preta e gravata branca.

Porque--suas excellencias o explicáram--o santissimo padre não recebe
senão senhoras de rendas e homens de casaca. Os peregrinos vestidos de
sacco e burel, as peregrinas cingidas pela estamenha e pela corda de
esparto, não sobem a escada do Vaticano. Os pés privilegiados para
pisarem os tapetes do Vigario de Christo na terra são os pés mimosos e
aristocraticos, calçados em escarpins de setim ou de polimento. Os
sapatos ferrados dos caminheiros plebeus, as sandalias espalmadas das
peccadoras que não vem de passeiar em _victoria_ ou em caleche á
Daumont, de volta do Corso ou do Pincio, mas que chegam das escabrosas
veredas da miseria; as alpagartas dos penitentes que vieram trilhando
abrolhos sangrentos no aclive da via dolorosa, são generos de calçado
expulsos pelos enxota-cães, e expulsos com os respectivos pés, porque
tambem se não entra descalço no Vaticano como se entra no templo em
Jerusalem, ou na mesquita de Santa Sophia em Constantinopla.

Facultados tão interessantes esclarecimentos muitas pessoas partiram a
receber as bençãos paternaes offerecidas pelo pontifice ás rendas e ás
casacas pretas do orbe christão.

       *       *       *       *       *

Alguns episodios d'essa piedosa viagem são já do dominio da imprensa. Da
estação do caminho de ferro de Braga sairam os romeiros entre
acclamações sympathicas e vivas enthusiasticos á santa religião e ao
summo pontifice Pio IX. Em compensação na gare do Porto foram os mesmos
romeiros acolhidos aos gritos não menos enthusiasticos de «Fóra os
hypocritas! fóra os patifes!» Por este ultimo successo damos a suas
excellencias os nossos cordeaes parabens, porque suppomos que elles
viajam com um fim de humildade e mortificação, e que lhes serão
agradaveis todas as manifestações publicas tendentes a exacerbar-lhes o
pungimento expurgante das duras penitencias.

Em Lourdes, refere o telegramma de um sacerdote ao jornal _A Nação_, que
á vista da gruta toda a romagem rompera em pranto e se prostrára em
joelhos. Devemos crêr que esta prostração fosse passageira, não só
porque um telegramma subsequente nos annuncia a chegada dos peregrinos á
cidade eterna, mas ainda porque em Lourdes a belleza da paisagem, a
exuberancia da vegetação, o rumor das aguas, as perspectivas sombrias e
flexuosas da floresta, a clara alegria do restaurante, de gelosias
abertas, de _stores_ desdobrados ao sol, com a sua grande taboleta _Á
Notre Dame de Lourdes_, e os seus subtitulos em caracteres appetitosos
_Diners à la carte et déjeuners à la fourchette,--gras et maigre_, tudo
convida os espiritos ascetas a uma conciliação amavel com a carnalidade
mundana.

Além do aspecto das coisas, as exterioridades das pessoas contribuem
tambem poderosamente para arrancar os adventicios ás attitudes
prostradas e contemplativas.

Os comboyos de Paris chegam e partem cheios de alegres _touristes_ de um
e outro sexo.

São graciosas peccadoras com adoraveis _toilettes_ de viagem; chapeus de
grossa palha de fôrma aguda e aba estreita derrubada sobre os olhos,
descobrindo a nuca, em que se enrolam as tranças loiras, e a nascença do
cabello junto do pescoço, com os seus flocosinhos de pennugem crespa e
doirada penetrada de luz; os vestidos decotados no collo em linhas
quadradas como os colletes dos devotos bretões; as saias curtas deixando
ver as meias de seda listradas de azul, e os sapatos de pelle de gamo
atacados com correntes de aço, que telintam ao andar. Estas gentis
romeiras abordoam-se a cajados rusticos comprados no _boulevard_ dos
Italianos, trazem ao tiracollo os grandes rosarios de contas de madeira,
grossas como bugalhos, terminando em uma cruz egualmente de madeira que
chega á barra do vestido,--ornato local de um pittoresco picante.

São os homens de nickerbockar de flanella alvadia e capacetes de sabugo
envoltos em véos turcos, com uma flor de madresilva na _boutonière_,
fazendo gelar o champagne e preparando debaixo das arvores os seus
jantares em _partie fine_, emquanto padres solicitos vendem a agua
milagrosa, ou aos copos á bica da gruta, ou em bilhinhas de lata
devidamente lacradas e selladas authenticamente, facultando na igreja
recantos reservados e escusos para as applicações em banhos parciaes, ou
em compressas, a orgãos enfermos que as devotas desejem submeter á cura
nos proprios logares benzidos e sagrados.

       *       *       *       *       *

Em cem contos é calculada a somma dos donativos em dinheiro levada
pelos peregrinos portuguezes ao Santo Padre.

É valiosa na occasião presente essa contribuição, porque a historia do
dinheiro de S. Pedro teve sob a gerencia do cardeal Antonelli episodios
devastadores. Procurando ha annos o governo de Victor Manuel realisar
uma operação bancaria destinada a equilibrar as finanças da Italia, o
cardeal Antonelli, como fino rabula e zeloso ultramontano, concebeu o
plano de um _coup de bourse_ destinado a combater as intenções do
governo italiano provocando uma descida que impossibilitasse a emissão
de novos fundos. Para este fim o astuto financeiro vendeu em massa, pela
baixa, os titulos da divida italiana que a Santa Sé possuia e que
representavam o dinheiro de S. Pedro. É porém perigoso, mesmo para um
italiano, jogar as peras com outro italiano. Na Italia todo o homem
habil deve estar preparado para encontrar um mais habil que o logre. Foi
o que succedeu a Antonelli. O seu plano foi estrategicamente
contraminado pelo governo de Victor Manuel, organisando-se um syndicado
de banqueiros que despedaçou a armadilha do illustre cardeal.

O dinheiro de S. Pedro convertido outra vez em metal pela operação
malograda nos seus effeitos, foi então convertido em fundos turcos,
operação arrojada mas tão lucrativa que promettia duplicar, em poucos
annos, o capital empregado, a não ser que um caso, então imprevisto,
prejudicasse o exito da transacção fazendo estalar no Oriente uma guerra
inesperada.

Foi, como se sabe, o que veiu a succeder desgraçadamente para os bens do
Papa. De sorte que o dinheiro de S. Pedro, piedosamente accumulado pelos
catholicos para o esplendor da Igreja, achou-se, pela mais estranha das
coincidencias, consumido em polvora por uma potencia chamada ao fogo
como perseguidora dos christãos!

       *       *       *       *       *

Além dos donativos em dinheiro e dos presentes em objectos preciosos, os
peregrinos levaram, para offerecer a Sua Santidade, um grande album, em
que vae inserida uma declaração de principios assignada por todos os
romeiros. Os jornaes que nos transmittem essa noticia não nos dão o
texto do documento precioso. Não temos, portanto, a ventura de saber o
que suas excellencias dizem. O que deveriam dizer era o seguinte:

       *       *       *       *       *

Santissimo Padre

Ha hoje quinhentos e setenta e sete annos que o primeira jubileu da
Igreja Catholica Apostolica Romana foi celebrado por um dos
predecessores de Vossa Santidade, o papa Bonifacio VIII.

Esta solemnidade não tinha por fim, como o anno jubilario do Mosaismo,
dar a liberdade aos escravos, fazer reverter os bens territoriaes aos
seus primitivos possuidores, tornar o homem insoluvel de cincoenta em
cincoenta annos, e ao cabo de cada um d'esses prazos reconstituir a
familia nos seus primitivos direitos, operando periodicamente aquillo
que hoje chamariamos a _liquidação social_, e a que o _Pentateuco_
chamava simplesmente a--_santificação do quinquagesimo anno_.

O papa Bonifacio, antigo rabula, (_quia primo advocatus_),
preoccupava-se pouco com as interpretações do direito; promettendo a
remissão dos peccados a todos os que viessem a Roma visitar, durante
trinta dias, as igrejas dos apostolos, o seu fim unico era realisar um
dos seus sonhos de decrepito allucinado: inaugarar o seculo XIV com uma
solemnidade unica na historia--a reunião em Roma do genero humano
prostrado aos seus pés, como perante o Deus vingador no dia do juizo
final, no valle de Josaphat.

N'esse tempo, Santissimo Padre, ainda no mundo existia a fé. O numero
dos peregrinos que vieram a Roma foi tão grande, que chegaram a contar
cem mil. Por fim não poderam ser arrolados. Cresciam monstruosamente
como esses formigueiros da America do Sul que n'um mez minam os
alicerces de um predio e aluem uma torre. Eram insufficientes para
albergal-os as casas dos moradores, os hospicios, as ermidas, as
igrejas. Acampavam nas ruas e nos campos suburbanos. A escassez dos
alimentos e a _malaria_ produziam uma infinidade de doenças. Houve uma
fome e quasi uma peste. A mortalidade era enorme. Uns não regressavam
mais. Outros não conseguiam chegar ao termo da romagem, e extenuados de
fadiga e de fraqueza, com os pés em sangue, morriam saudando de longe a
sagrada collina.

Com quanto o poder papal entrasse já então na phase de declinação que
até os nossos dias devia progressivamente arrastal-o ao occaso,
Bonifacio suppunha-se ainda o senhor e o arbitro do mundo. Por occasião
da morte de Alberto d'Austria, tendo-se feito acclamar imperador Adolpho
de Nassau, o papa Bonifacio tinha posto a corôa na cabeça, tinha
brandido uma espada, e do alto do monte Aventino havia bradado: «Eu é
que sou o Cesar! eu é que sou o imperador!»

Era elle ainda que na bula _ausculta filii_ tinha escripto estas
palavras supremas: «Deus collocou-nos, apezar de indigno, acima dos reis
e acima dos reinos, impondo-nos o jugo da servidão apostolica _para
arrancar, destruir, dispersar, dissipar, e para edificar e plantar em
seu nome e segundo a sua doutrina_.»

No dia do jubileu, para celebrar a ceremonia de bater com o malhete de
prata e de desmoronar o muro com que se veda para esse fim uma das
portas de S. Pedro, o Papa appareceu á multidão prostrada e atravessou
pelo meio d'ella, vestindo as insignias imperiaes, levando adiante de si
a espada e o sceptro sobre o globo do mundo, symbolo da monarquia
universal, enquanto um arauto proclamava: «Aqui vão duas espadas.
Pedro, eis o teu successor. Christo, eis o teu vigario.»

Os peregrinos que haviam conseguido visitar os tumulos dos apostolos,
cujas columnas são feitas com o bronze subtraído da abobada do Pantheon,
os que haviam chegado a receber com a benção apostolica a absolvição das
suas culpas, regressavam á familia encanecidos, alquebrados, assombrados
para o resto dos seus dias, como os tocados de raio, pelos aspectos
collossaes da tragica Roma, pela historia do seu passado, semi-vivo
ainda nos monumentos destroncados da edade republicana e da edade
imperial, pelas visões portentosas de um mundo extincto que lhes haviam
apparecido como tremendos phantasmas, na arcaria dos aqueductos truncada
a espaços como os elos partidos de um enorme grilhão estendido na vasta
campina; nos banhos de Caracala; nas dispersas columnas corinthias; nos
obeliscos egypcios; no Capitolio convertido em _Colina das cabras_; no
_Forum_ transformado em _Campo das vaccas_; no Coliseu, finalmente, com
as suas tres ordens de columnas doricas, jonicas e corinthias, monumento
collossal, em que trabalharam doze mil captivos, em que cabiam cem mil
espectadores e em que não há uma pedra que não corresponda a uma golfada
de sangue de um gladiador ou de um martyr.

Os peregrinos regressados n'um vago estado de somnambulismo, como
aluados, haviam porém levado do jubileu uma consoladora lição: haviam
desaprendido de viver, mas tinham-lhes ensinado a morrer tranquillos na
esperança doce e firme da bemaventurança promettida. O que era porém o
mundo, Santissimo Padre, n'esses tempos remotos e sombrios em que os
homens eram isto?

Em Paris e em Londres as casas eram feitas de madeira ou de lama
endurecida, com tectos de canas. As ruas eram montões de immundicia em
fermentação miasmatica. O uso de banhos tinha desapparecido. A amante de
Petrarca tinha uma unica camisa. O poderoso arcebispo de Cantorbery e
outros altos ecclesiasticos tinham piolhos. Os burguezes vestiam-se de
couros mal curtidos, de um cheiro infecto. Os pobres cobriam-se de
palha. Em muitos pontos das Ilhas Britanicas conta um papa do nome
augusto de Vossa Santidade, Pio II, que não se conhecia a existencia do
pão. Os trabalhadores dos campos comiam herva e cascas de arvores. E era
já o seculo XV! No seculo XI, por occasião de uma fome, vendeu-se e
comeu-se cosida carne humana. A medicina tinha passado de moda,
desprestigiada pelos padres. Tinham-a substituido as penitencias, as
promessas aos santos e as viagens ás ermidas. As reliquias faziam as
vezes de pharmacias. As pestes afugentavam-se não com medidas
sanitarias, mas com preces. Para curar os males da humanidade, conta
Draper que varias abbadias possuiam a corôa de espinhos do Salvador;
onze igrejas conservavam a lança que trespassou o sacratissimo lado; nas
guerras santas os Templarios vendiam como panacéa universal garrafinhas
de leite da Virgem Maria; em um mosteiro de Jerusalem guardava-se n'um
relicario um dedo--do Espirito Santo. A chuva e o bom tempo
determinavam-se com orações. Era egualmente com orações que se combatiam
os eclypses e as trovoadas. O cometa de Halley foi exorcismado e
enxotado do céo pelo papa Calixto III, que o amaldiçoou em nome de Deus.

N'esse estado das coisas e n'esse estado dos espiritos um serviço
enorme foi inconscientemente prestado pelo papado á civilisação e á
humanidade. Das peregrinações á Roma pontificia sairam as duas maiores
revoluções do mundo moral: do jubileu do principio do seculo XIV saiu
Dante com a _Divina Comedia_ e a reconstituição do direito pelo
sentimento: do jubileu do seculo XVI saiu Luthero com a _Reforma_ e com
a liberdade do pensamento humano. _Alea jacta erat!_

Desde então até hoje, Santissimo Padre, que serie enorme de revoluções
successivas e incruentas, determinadas pelo livre espirito do homem,
cortando lentamente a corrente tenebrosa das perseguições, boiando
sempre progressiva e sempre victoriosa sobre o occeano de sangue e de
puz com que a superstição ecclesiastica e o auctoritarismo monarchico
procuram debalde afogar o advento da nova era! Os reis oppõem os seus
exercitos; a igreja oppõe as suas excommunhões; o seu inferno, em que ha
o ranger dos dentes por todos os seculos dos seculos sem fim; os seus
carceres em que a lepra corroe até á medula os ossos dos condemnados; os
seus tormentos, em que ha o fogo lento, a grelha, o forno rubro, o
borzeguim que se descalça levando comsigo, palpitantes, todos os
musculos e todos os nervos das pernas, a pua que fura as unhas e o torno
que esmaga os ossos do craneo e faz rebentar o cerebro como um abcesso
espremido.

E tudo é em vão! A sciencia intemerata prosegue, inerme e candida, sem
haver feito uma unica victima, sem uma só gota de sangue derramado, sem
uma só lagrima vertida! E deante da branca visão benigna que se
aproxima, o dogma espavorido recúa mais profundamente fulminado por um
simples raciocinio humano de que nunca o foi a mais fraca das almas
deante da colera implacavel e infinita dos deuses immortaes.

Tudo quanto atravez de toda a historia moderna a auctoridade tem
procurado conservar pela força se tem fatalmente destruido pelo tempo. O
que a auctoridade e a força têem conseguido é unicamente atrazar o
movimento intellectual, determinando os longos periodos estacionarios da
humanidade. Pelo contrario tudo quanto a sciencia iniciou se transmittiu
de idade em idade, se desenvolveu, se relacionou, se perpetuou. Nem uma
unica semente lançada á terra pelo trabalho e pelo estudo deixou ainda
de vingar e de frutificar em resultados decisivos de tolerancia, de
paz, de liberdade e de justiça.

Na astronomia, na physica e na chimica, na geologia, na meteorologia, na
zoologia, na medecina, na philologia quantos descobrimentos novos! E
cada novo descobrimento é uma conquista nos dominios da Igreja, dominios
que ella successivamente cede na mesma proporção em que a sciencia
caminha.

É um novo diluvio aquelle de que a historia do pensamento humano nos
offerece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto
campo da theologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as ultimas
superstições, medonhas como os grandes monstros pre-historicos que vão
ser tragados pela vaga.

Cançada de combater a theologia finalmente rende-se. Tendo perseguido
Galileu, Giordano Bruno, Savanarola, Averroes, Luthero, tendo combatido
todos os iniciadores de um novo systema do universo ou de uma nova
comprehensão dos destinos do homem, a Igreja vê apparecer Darwin, e nem
se quer tenta lutar!

O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia
Franceza sob a auctoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e
promulgado, e todo o immenso edificio theologico da creação do mundo e
do homem cae aluido pela lei da adaptação e da seleção natural na luta
pela existencia.

Ás grandes revoluções nas sciencias physicas e naturaes succederam-se
modificações equivalentes nas theorias e nas praxes da vida social, na
economia, na administração, na politica, no sentimento, na critica, na
poesia, na arte, na moral e na propria religião.

Da philosophia zoologica de Darwin sae um Deus como religião alguma
tinha até hoje tido o poder de concebel-o, o unico Deus compativel com a
noção da sabedoria infinita. Segundo os systemas da creação anteriores
ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o auctor de um
universo que elle successivamente revia e emendava, depois de cada um
dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma
esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a theoria darwiniana,
experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sabios
analysadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus
não se aperfeiçôa sendo assim perfectivel e portanto imperfeito, como
fatalmente deveriamos admittir que o era acceitando a doutrina do
Genesis e a critica paleontologica de Cuvier e de todos os adversarios
de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel.

As especies extinctas não foram cortadas pelo Creador no livro da terra
como por meio de um signal posto á margem na prova de uma segunda
edição.

Os orgãos rudimentares dos animaes, os orgãos que não têem funcção,
deixaram de ser excrecencias de stylo inadvertidas pelo auctor ou
empregadas por elle com um intuito de ornato rhetorico. Se o homem, por
exemplo, tem em estado rudimentar e na atrophia de uma inercia de
milhares de seculos, uma cauda indicada pelas suas vertebras falsas, se
tem mamillas sem amamentar, se tem utero sem conceber, se tem um segundo
estomago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um
descuido indolente ou por uma emphase premeditada na confecção do nosso
organismo. A evolução genealogica de todos os seres e a sua procedencia
de um tronco ancestral commum, descoberta e provada pela lei de Darwin,
basta para nos explicar cabalmente todas as apparentes anomalias da
creação sem quebra da infalibilidade suprema.

Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos philosophos theistas é o
unico Deus omnipotentemente sabio, o unico Deus verdadeiramente divino,
porque não procede na obra da creação por emendas, revisões successivas,
reedições augmentadas e correctas, como o Deus theologico: Elle cria a
vida no atomo primitivo vogando na immensidade, deixa cair a cellula
primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que
se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não
descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera,
porque infinito Elle mesmo, e prehenchendo o infinito no espaço e o
infinito no tempo, possue em si proprio, completa, a infinita evolução.

Surge finalmente invencivel na sociedade contemporanea um novo poder
temporal, o poder da industria, e um novo poder espiritual--o poder da
consciencia na comprehensão da solidariedade humana.

Vae pois longe, dercorrida ha muitos annos a idade ingenua em que o
genero humano acreditava na virtude das peregrinações aos santos
logares!

Compare Vossa Santidade a primeira e a segunda cruzada com esta que nós
outros, portadores do album em que escrevemos estas linhas, acabamos de
emprehender e de levar a cabo em comboyo de recreio de ida e volta, a
preços reduzidos, guiados pelo padre Conceição Vieira, um sacrista, e
pelo Pedro de Alcantara, um grotesco! E estes dois sujeitos são quanto
pudemos obter como successores de Pedro Eremita e de Godofredo de
Bulhões.

Somos noventa e nove, de um paiz de quatro milhões de habitantes, o
menos instruido de todo o orbe christão, aquelle em que por mais tempo
vigorou, com detrimento do nosso senso commum e um pouco tambem da nossa
pelle o despotismo da inquisição e do direito divino. Isto ainda assim
não obsta porém a que deixassemos na patria tres milhões novecentos mil
novecentos e um individuos que não quizeram vir, perdendo assim a
indulgencia plenaria e deixando de resgatar as suas almas das penas
eternas a troco da modica quantia de dezeseis libras, ida e volta, em
segunda classe!

Porque elles entendem--principalmente depois que o fogo do Santo
Officio deixou de afervoral-os--que não é facil despir os peccados como
se despe um collete de flanela, descalçar a culpa como se descalçam as
chinellas de trazer no quarto, e pendurar a responsabilidade como se
pendura a _robe de chambre_ para envergar a _toilette_ redemptora de uma
viagem a Roma.

Parece-lhes que o Diabo não é tão tolo como alguem o presume, e que, se
elle tiver, por exemplo, a idéa de filar o padre Conceição Vieira ou o
padre Marnoco para os referver no caldeirão destinado á classe
ecclesiastica apanhada em peccado, não será porque os mesmos Conceição e
Marnoco lhe digam que estão afivelando a chapeleira para ir buscar as
indulgencias a Roma, que o Diabo crusará os braços e deixará escapar-lhe
sob essa evasiva, aliás engenhosa, uma tão interessante presa.

Estão profundamente convencidos--os herejes!--de que, acima da
auctoridade dos pontifices, que teem o poder de resgatar as culpas e de
franquear a entrada no reino dos céos, está um outro poder mais alto--o
poder da incorruptivel consciencia, segundo o qual não é pelas romagens
divertidas nem pelas orações authomaticas, nem pelas estereis
penitencias, mas sim pela simples pratica do dever, austero e
inilludivel, que cada um se affirma como verdadeiro justo.

Acham ridiculo um céo em que tenha de sentar-se, glorioso e triumphal, á
mão direita do Deus da Justiça, um padre Marnoco--simplesmente porque
obteve as indulgencias no jubileu pontificio, em quanto á mão esquerda
fique ardendo nos tormentos eternos um Lincoln, que pacificou a America,
que deu a paz a tres milhões de negros e que, depois de uma vida toda
consagrada á justiça e á abnegação, entrou finalmente na eternidade pela
porta do martyrio, coberto com a benção da humanidade e com a benção da
historia, mas sem a benção dos papas.

Santissimo Padre! estas convicções profundas d'aquelles que não vieram a
este jubileu, não podemos deixar de vos dizer n'este album,--como
seríamos forçados a dizer-vol-o, se estivessemos aos vossos pés n'uma
confissão geral, humildes e contrictos, batendo nos peitos,--estas
convicções dos que não vieram são tambem no intimo das nossas almas as
convicções de todos os que nos achamos aqui, quer chegados das
occidentaes praias lusitanas, quer procedentes de qualquer outra região
do globo.

E a evidente prova de que a nossa fé está irremissivelmente apagada e
precisa de se reconstituir em novas bases, é que, no tempo em que o papa
era o imperador e o Cesar, no tempo em que elle brandia uma espada de
justiça e de guerra, meio milhão de homens rojados aos seus pés estariam
prontos a recomeçar as guerras santas ao seu minimo aceno.

Hoje vós proclamaes que sois captivo, que sois ultrajado, espoliado,
perseguido, e entre todos os que vos trazem offertas não ha um só que
seja capaz de derramar o seu sangue para vos restituir a liberdade que
dizeis perdida e o poder que dizeis violado! Beijamos devotamente o
vosso pé sacrosanto; depois do quê, em vez de enristarmos uma lança,
vimos para a rua com as mãos nos bolsos e um charuto nos beiços ver
desfilar em pelotões marciaes os esveltos _bersaglieri_ da Italia
unificada.

Debalde nos dizeis que «os pedreiros livres atacam a religião e chamam
os catholicos a combater.» Os pedreiros livres são bem lastimaveis se
não teem mais nada que fazer do que chamar-nos ao combate! A verdade não
se alimenta com sangue, alimenta-se com principios, e não necessita de
victimas, necessita unicamente de razões: é precisamente n'isso que ella
se distingue do erro e da mentira.

Se os pedreiros livres querem por força combater, a resposta mais
sensata ao seu convite aos catholicos é mandar-lhes um medico que os
sangre e lhes prescreva os debilitantes. Que os senhores pedreiros
tenham a bondade, antes de nos reptar ao combate, de experimentar a
dieta!

Emquanto á guerra, não! Oh! não! Esse é um privilegio dos reis. Hoje só
os reis, e algum tanto tambem os diplomatas, é que fazem as guerras. Por
uma razão muito simples: é que só elles as pódem fazer por um modo
exclusivamente verbal,--mandando partir os seus exercitos.

Quando os exercitos se lembrarem de mandar partir adeante os reis e os
diplomaticos, teremos então firmada para todo sempre a paz geral.

Concluindo pois, Santissirno Padre, dignae-vos de lançar-nos a vossa
benção e de nos permittir que a transmittamos a todos os nossos
concidadãos, que saberão devidamente presal-a sendo enviada por quem é,
como vós, um ancião veneravel, cuja longa vida é para todos os que
trabalham e para todos os que soffrem um nobre exemplo de constancia nos
principios, de firmeza na luta e de resignação na derrota.


       *       *       *       *       *


Sua alteza o principe real, herdeiro presumptivo da corôa, acaba de
tomar a primeira communhão.

Comparecendo pela primeira vez no tribunal da graça aprendeu sua alteza
a theoria do resgate da culpa pela penitencia.

A familia real e a côrte reuniram-se solemnemente no templo para verem
ensinar a esse menino por que methodo facil os reis podem deixar na
terra o oprobrio e enfiarem no entanto para o ceu o mais candido vôo,
alados pelos anjos que, ao som da musica da real capella e ao signal da
benção lançada pelo sacerdote, baixam aos reaes paços a pegarem ao collo
nas almas dos principes devidamente desobrigados.

Dizem todos os jornaes que foi extremamente edificante e commovente
esse augusto espectaculo.

       *       *       *       *       *

Para ministrar ao principe a sagrada eucharistia foi chamado
expressamente do Porto o sr. bispo D. Americo.

Parece-nos--comquanto não ouzemos dizel-o sem uma reserva profundamente
timida--que sendo a communhão um acto puramente religioso, seria talvez
mais consentaneo com a humildade christã que o sr. bispo D. Americo não
fosse chamado, que se não fizesse da pratica de um sacramento uma
distincção aristocratica, e que sua alteza commungasse simplesmente como
os demais christãos na igreja da sua freguezia e pelas mãos do seu
parocho.

Poderão objectar-nos que, não comprehendendo as abluções do rito senão
as pontas dos dedos no sacrificio da missa e sendo as _douches_
applicadas unicamente aos sacerdotes pelo bico de um galheta, ha
parochos que, por não ultrapassarem as prescripções liturgicas teem nas
suas lobas tantas nodoas como botões, e não sómente cheiram
penetranremente ao fumo do incenso e ao murrão dos cirios, mas cheiram
tambem algum tanto a saes ammoniacaes e a uréa, d'onde poderia resultar
que no banquete eucharistico a qualidade da baixella desgostasse o
principe da pureza mystica do manjar.

A essa objecção respondemos que seria mais economico e talvez mesmo mais
efficaz para remedio do baixo clero que, em vez de só mandar vir o sr.
D. Americo, deslocando-o dispendiosamente da sua diocese com os seus
famulos e a sua mitra, se mandasse chamar simplesmente o sr. Cambournac.

Porque--acreditem-o--não é com a presença do illustre e correcto bispo
portuense, nitidamente barbeado, perfumado pelo uso de bons comesticos,
com bellas meias de seda escrupulosamente esticadas por um destro _valet
de chambre_, com fina roupa branca e lustrosas unhas esmeradamente
limadas e polidas, não é com exemplos que deslumbram que se ha de obstar
á decadencia das nossas batinas. Ellas em Portugal não querem por
emquanto exemplos. O que ellas querem é directamente benzina.

       *       *       *       *       *

Se, porém, se entende definitivamente que á mesa da communhão devamos
nós os catholicos aproximar-nos por cathegorias e por classes, como á
mesa dos paquetes, então pedímos uma tarifa para regularisação do
serviço ecclesiastico. Que a Igreja nos diga definidamente quem são os
passageiros da terceira classe que commungam na tolda com a marinhagem e
quaes os escolhidos com direito a receberem a communhão á mesa do
commandante!

       *       *       *       *       *

Depois da ceremonia religiosa, accrescentam os jornaes, que fora servido
no paço um opiparo almoço aos dignatarios da côrte e ao alto clero.
Esperamos que o sr. patriarcha fazendo aos poderes temporaes o duro
sacrificio de não cumprir o preceito jejuando, pozesse ao menos a
condição de que a sua costelleta fosse de bacalhhau!


       *       *       *       *       *


A narração feita pelo capitão Cameron da sua viagem no continente
africano veio levantar em Portugal, entre alguns incidentes, a seguinte
questão:

O que devemos fazer para manter por meio de medidas civilisadoras o
dominio das nossas colonias?

Para isto ha uma unica resposta: Para dominar o que se deve fazer é
crear faculdades dominantes.

Quem tem força para dirigir manda; quem a não tem serve.

A escola dos grandes exploradores e dos colonisadores é a escola da
força nos individuos. Quando Stanley deu pela primeira vez conta em uma
conferencia em Londres, da viagem que fizera em procura de Levingstone o
argumento que mais convenceu o publico de que o conferente não era um
simples phantasista foi a expressão energica da sua figura agigantada, a
sua saude de Hercules e os fortes pulsos com que na gesticulação elle
parecia estar outra vez abatendo e supplantando de novo aos olhos do
auditorio os obstaculos com que dizia ter luctado.

Deante de um retrato do capitão Cameron sentimos a mesma impressão, que
explica o successo de uma empreza difficil e perigosa pela decisão e
pela firmeza do que a emprehende. A physionomia um pouco espessa e dura
de Cameron, o seu grosso pescoço solidamente plantado entre uns hombros
athleticos são para a consideração de todos os inglezes os mais bellos
attributos de raça, o mais apreciavel caracteristico de uma distincção
privilegiada. Porque na educação ingleza a saude, o vigor muscular, a
força physica são o objecto de um culto.

Nos collegios Eton, Rugby, Harrow, os jogos athleticos, a pella, o
exercicio do remo, a carreira, o _foot ball_, o _cricket_ occupam todos
os dias algumas horas de applicação. Duas vezes por semana, quando
menos, as aulas terminam ao meio dia para darem tempo aos exercicios
physicos. As contendas entre os alumnos decidem-se ao pugilato, deante
de testemunhas, com padrinhos que estabelecem as condições do combate,
que amparam o vencido, que lhe refrescam com agua as contusões, porque
estes encontros não terminam sem um ou outro ou ambos os contendores
ficarem com um olho pisado, um dedo partido, ou um beiço esmurrado por
um dos socos do adversario. Toda a creança que se exhime a liquidar n'um
combate leal as suas pendencias de honra é despresada pelos seus
camaradas e considerada como incapaz de vir a ser jámais um verdadeiro
_gentleman_.

Do collegio passam os alumnos creados n'este regimen durante a
adolescencia para as universidades, onde a mocidade se desenvolve sob um
regimen egual: conhecem-se as celebres regatas no Tamisa entre as
equipagens das duas universidades de Oxford e de Cambridge. Os
estudantes ricos exercitam-se e fortificam-se ainda montando a cavallo,
caçando a raposa, governando a quatro. Para se tornarem vigorosos e
dextros, creanças, moços, adultos, homens de quarenta e cincoenta annos,
outros muito mais velhos, como por exemplo lord Palmerston, cumprem as
mais severas prescripções hygienicas, submettem-se a uma alimentação
especial, absteem-se de todo o excesso que prejudique o desenvolvimento
systematico da musculatura. Os principaes divertimentos nacionaes são os
exercicios de agilidade e de força. Ha _crickters_ que teem ido jogar
partidas solemnes de Londres á Australia.

Em Lisboa vivem dois inglezes que vão frequentemente a Cintra a pé,
levam as suas espingardas, passam o dia a caçar nos Capuchos e
regressam á noite sempre a pé. Tripulam uma pequena embarcação com a
qual teem batido em muitas apostas todos os catraeiros do Caes do Sodré.
Ha poucos dias foram ao Porto expressamente para regatar com o club
d'aquella cidade. Foram vencidos pelos do Porto. Depois da regata havia
uma partida de _cricket_. Um dos inglezes a que nos referimos
sustentou-se no campo cinco horas consecutivas sem nunca sair do jogo.
Dois officiaes a bordo de um dos navios da ultima esquadra que esteve no
Tejo partem a pé de Lisboa, pela manhã, vão a Mafra, passeiam na mata,
percorrem todo o enorme edificio do convento, almoçam um bife e voltam a
pé a Lisboa, chegando a tempo de estarem em um jantar de convite, á hora
fixada, lavados, perfumados, frescos, com os seus uniformes de _soirée_
e uma rosa de Mafra na casa da farda.

D'estes factos e de muitos outros equivalentes, que seria prolixo
enumerar, deduz-se que o assumpto de uma conferencia, que não vemos por
emquanto citada entre as que nos annuncia a Academia ácerca da
civilisação africana, poderia intitular-se: _Da influencia do «sport» no
caracter dos povos exploradores_.

       *       *       *       *       *

A Academia póde muito bem civilisar a Africa pelo modo mais
superiormente sabio na rua do Arco a Jesus, mas não seria talvez
inteiramente ocioso o perguntar quem é que ha de ir levar aos interiores
inhospitos da Africa as bases elementares d'essa civilisação. Não ha
duvida que é possivel mas não é completamente inaccessivel a algumas
objecções a hypothese de que os negros se queiram desde já civilisar a
si mesmos e venham expressamente para esse fim á Academia escutar. Ao
passo que, por outro lado, as prelecções dos illustres academicos não se
distinguem das conferencias feitas em Paris e em Londres pelos viajantes
extrangeiros unicamente no facto de encararem os assumptos por um ponto
de vista contrario, distinguem-se ainda pela particularidade de que os
srs. Cameron e Young fizeram as suas exposições depois de chegarem, e os
srs. academicos, com excepção do sr. José Horta, fazem as suas um
poucochinho antes de partirem. Isto em nada prejudica o valor real da
doutrina academica, que de modo algum menospresamos. O que pretendemos
simplesmente notificar é que talvez não seja facil encontrar-se de
pronto quem vá traduzir em bunda ao gentio de Africa a prosa eloquente
e vernacula dos civilisadores inamoviveis da metropole. Não é facil
encontrar esses homens, porque a raça dos nossos antigos expedicionarios
abastardou-se e extinguiu-se na molleza dissoluta dos costumes modernos.

Folheem-se os velhos chronistas, examinem-se os retratos dos homens dos
nossos descobrimentes e das nossas conquistas:

Affonso de Albuquerque, aos sessenta e tres annos de idade, cercado dos
desgostos mais profundos, arrosta durante cinco mezes com os estragos
devastadores da terrivel dysenteria asiatica, porque--diz João de
Barros--_como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa só se lançava
em cama, quando mais não podia_. Albuquerque que em saude reunia á força
physica a grande força moral da alegria--_era homem de muitas graças e
motes, e em algumas melancolias leves, no tempo de mandar, soltava
muitas, que davam prazer a quem estava de fóra,_--assim tocado de morte
por uma enfermidade que não perdôa nunca, reune conselho de capitães,
nomeia o seu successor põe bôa ordem em todos os negocios da
administração da India, escreve a el-rei a famosa carta, modelo de
hombridade e de independencia, cujo autographo se conserva na Torre do
Tombo, despede-se do rei de Ormuz, e faz-se ao mar em um dos seus
navios, onde expira, tendo fulminado a incompatibilidade das monarchias
com o direito por via da conhecida phrase: _mal com o rei por amor dos
homens, mal com os homens por amor do rei_.

O infante D. Henrique--segundo o mesmo João de Barros--_tinha largos e
fortes membros acompanhados de carne: a côr da qual era branca e corada,
em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabellos
algum tanto alevantados, e o acatamento_ (_por a gravidade de sua
pessoa_) _um pouco temeroso a quem d'elle não tinha conhecimento._

Do conde Duarte de Menezes, a quem D. Affonso V deu a capitania de
Alacer-Ceguer, e que foi um dos heroes da Africa, diz Gomes Eanes de
Azurara: «Foi este conde de baixa estatura de corpo, enformado em
carnes, e de cabellos corredios, e graciosa presença, embargado na
falla, e homem de grande e bom entendimento, pouco risonho nem
festejador, tal que quasi do berço começou de ter auctoridade e
representação de senhorio. Foi muito amador de verdade e de justiça,
_mui temperado em comer, e beber, e dormir, e soffredor de grandes
trabalhos, tanto que parecia que elle mesmo se deleitava em os haver,
porque quando lhos a necessidade nom apresentava elle por si mesmo os
buscava_. E segundo entender dos homens nem se desenfadava tanto em
outra cousa, como nos feitos da cavallaria, como aquelle que quasi do
berço usara o officio das armas.»

Diriamos estar vendo colorida no stylo das nossas velhas chronicas a
photographia moderna de um _sportman_ da Grã-Bretanha.

Do mesmo Duarte de Menezes diz Schoeffer: «O poder que tinha sobre si
mesmo, a sua gravidade natural, que raras vezes interrompia por um
sorriso, e sobretudo o seu juizo são e a sua alta intelligencia
tornavam-o _proprio para o commando_.»

O infante D. Pedro, o que, segundo o proloquio popular, _viajou as sete
partidas do mundo_, era alto e magro; diz Schoeffer que a suavidade do
seu olhar abrandava a impressão de receio produzida pela sua estatura e
pelo seu rosto fortemente carregado; «irado tinha um aspecto que
infundia terror».

Os corações eram de uma tempera inquebrantavel, hostil á
sentimentalidade e á ternura. Em um combate no assedio de Alcacer,
Martim de Tavora arranca do poder dos moiros a golpes de espada o seu
fidagal inimigo Gonçalo Vaz Coutinho, verte para o conseguir o seu
proprio sangue, arrisca eminentemente a sua vida, e quando Gonçalo Vaz
lhe pergunta como viverão d'ahi em diante, Tavora responde-lhe
duramente: «Como dantes.» E a inimisade dos dois continuou inabalavel.

Os que eram dados ao galanteio das damas commoviam-as mais pela asperesa
varonil do aspecto do que pela suavidade effeminada das formas.

Na lenda dos doze que foram bater-se na corte de Londres pelas damas do
Palacio, o Magriço diz á loura _miss_ que depois do combate ia
deitar-lhe agua ás mãos: «Sabei, senhora, que as minhas mãos, segundo as
tenho assim tão grosseiras e cabelludas, poderão ser-vos molestas e temo
que vos causem desgosto.» Ao que a mimosa ingleza replica fazendo sentir
ao calejado e cabelludo cavalleiro que a bella mão de um homem é a que
denota pelo seu aspecto não dedicar-se ás caricias molles, mas sim aos
fortes trabalhos que teem como fim a honra e como premio o amor.

O Vasco da Gama era de um porte tão exforçado e valoroso, que o rei D.
Manuel, hesitante na escolha do homem a quem devia entregar o commando
da expedição projectada, vendo-o atravessar por acaso na sala em que ia
sentar-se á mesa para jantar, determina que seja aquelle o que vá
descobrir-lhe a India.

O modo como o Gama esmaga a seu bordo a conspiração dos pilotos basta
para provar que D. Manuel tinha o olho prescrutante que adivinha os
homens pela cara. Sacudido pela tempestade temerosa no meio de empresa
de tanto risco e de tamanha aventura, quando a guarnição desalentada e
espavorida pede em todos os navios da frota que se arribe, que se
regresse á patria, o Gama prende a um por um todos os pilotos cabeças do
motim, carrega-os de ferros, encarcera-os no porão, intima-os a que lhe
entreguem «quantas cousas tinham da arte de navegar» sob pena de os
enforcar a todos, e havendo na mão as cartas que os deviam orientar na
volta, lança tudo ao mar, exclamando: «Olhae que não tendes mais mestres
nem pilotos nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante. A Deus vos
encommendae e pedi misericordia, e a mim de hoje ávante ninguem me diga
que arribe; porque de mim sabei certo que, se não achar recado do que
venho buscar, não voltarei nunca mais.»

Ao que a guarnição se submetteu com a docilidade de quem não tinha senão
dois caminhos que escolher n'aquella viagem:--o da India ou o da morte.

O proprio Camões, o immortalisador das façanhas d'essa velha raça, era
elle mesmo um forte, um destemido, um lord Byron da Renascença. Os seus
costumes de audaz espadachim e de famigerado tranca-ruas crearam-lhe na
India conflictos arriscados, de cujas ameaças elle sorria dizendo: que
só era vulneravel pelas solas dos pés e que estas ninguem lh'as vira nem
havia de ver.

Em todas as altas figuras do nosso grande seculo se patenteia o typo
expressivamente caracteristico de uma forte raça privilegiada, hoje
extincta.

A Europa sahia apenas do regimen feudal. Conservavam-se vivas no coração
de todos os fidalgos as tradições da cavallaria. Os besteiros de conto
eram apenas uma debil tentativa do que deviam vir a ser mais tarde os
nossos exercitos permanentes.

Os grandes vassalos defendiam os seus foros com numerosas lanças, e nos
prasos em que não serviam o rei e a patria batendo-se com inimigos
extrangeiros, adestravam a mão em sortidas e escaramuças intestinas.
Quando não combatiam monteavam.

Tinham a educação da guerra, a experiencia das aventuras arrojadas e das
duras privações.

Os divertimentos publicos eram ainda os jogos guerreiros: o _tavlado_,
um exercicio de força, e as _canas_, um exercicio de destreza.

       *       *       *       *       *

A moderna educação portugueza esterilisou a sociedade para o fim de
gerar homens proprios para as lutas do trabalho nas regiões inclementes
em que é preciso arrostar com a fadiga, com o sol tropical, com as
febres dos rios podres.

Os cidadãos que em Portugal recebem alguma cultura de espirito
sacrificam-lhe de tal modo o seu desenvolvimento physico que não só não
podem levar a sua influencia e a sua dominação intellectual ao interior
da Africa, mas nem sequer a levam de Lisboa a Cascaes se lhes suprimirem
as facilidades do rebocador ou do carrão.

Sabemos que ha excepções, mas essas constituem uma vantagem pessoal de
poucos individuos, e não uma feição do paiz.

Na Inglaterra pelo contrario o _sport_ está na mesma alma da nação,
completa o caracter do paiz.

O principe de Galles readquiriu depois da sua ultima viagem a
popularidade que antes d'ella tendia a fugir-lhe. O simples facto de ter
penetrado na India e de ter caçado as feras a tiro com risco de vida é
um dos seus mais poderosos titulos á estima publica. O _sport_ é na
Inglaterra uma especie de religião. O inglez bem educado atravessa a
Africa por fanatismo. Simplesmente para a ter atravessado, e para ter a
gloria incomparavel de o poder referir ás sociedades sabias de
geographia, de zoologia, de botanica, de meteorologia, de anthropologia,
aos differentes clubs dos caminheiros da Inglaterra, da França e da
Suissa, deixando a enorme distancia atraz de si os seus compatriotas de
curto folego que apenas subiram ao Monte Branco ou percorreram a pé os
Pyreneus.

Ora sem esse fanatismo e sem esse enorme ecco na opinião e na
popularidade não ha paiz que se possa medir com a empresa enorme de
explorar e de civilisar as regiões salvagens. São insufficientes para
esse fim todos os esforços do governo, das sociedades geographicas, das
academias e de todas as agregações artificiaes de alguns individuos; é
preciso que o grande impulso parta do genio collectivo do povo.

       *       *       *       *       *

O povo pertuguez não está creado para esses movimentos energicos. Era
uma raça audaz, enthusiasta e forte. Preverteram-a com duzentos annos de
uma educação dogmatica e de uma disciplina fradesca.

Estamos como o filho de um homem que herda um estaleiro em que o pae
fazia navios e em que elle para sustentar a fabrica tem de brandir um
machado e de talhar madeira durante dez horas por dia. Ora esse filho é
um anemico, que não pode com a sua _badine_. O que ha de fazer?
Restaurar a sua constituição ou vender o machado e ir tossir para o
Martinho.

       *       *       *       *       *

Contra os agentes da dissolução em que cahimos uma ou duas vozes em todo
o paiz protestam--o que até o dia de hoje 15 de junho, ás 11 horas e
meia da noite, tem sido completamente inutil. Deitam-se abaixo
livrarias, enegrecem-se com prosa official resmas de papel da Abelheira,
abrem-se conferencias publicas, organisam-se expedições,--tudo para dar
a entender ao mundo que somos um povo forte. E no entanto o povo
continua nas condições de abatimento em que estava, as quaes não podem
tornal-o proprio para o dominio, mas sim para a servidão.

Vimos já, ligeiramente esboçado, o quadro da educação inglesa. Vejamos o
espectaculo correspondente na nossa organisação social.

Olhem ao domingo e á quinta feira para um dos nossos collegios de
educação em passeio na baixa. Uma fieira de pequenos macilentos e
enfesados, encarreirados a dois de fundo, vestidos de preto ou com
falsos uniformes de guarda-marinhas, vigiados por dois padres. Que
differença dos collegiaes inglezes, com os seus chapeus de palha, a
blusa de flanella, o calção curto, a meia de lã, correndo livremente nos
campos, com os grossos sapatos cheios de lama, em plena liberdade,
entregues a si mesmos, responsaveis pelos seus actos, conscientes do seu
direito e do seu dever como pequenos republicos!

Em Portugal um cão fraldiqueiro pode andar sem perigo pelas ruas,
sabe-se governar, sabe-se dirigir, sabe morder, sabe voltar para casa;
um joven racional de dez ou doze annos, dos quaes cinco de escola sob a
pressão dos compendios do sr. João Felix, não aprendeu nada d'isso, e
precisa de um padre ou d'um aguadeiro que o leve pela mão para
atravessar a rua!

Essa miseravel creatura tem uma mãe que o não deixa saltar para que não
quebre as pernas, que o não deixa trepar para que não quebre a cabeça,
que o não deixa metter-se na agua fria para que não se constipe. Era
melhor que elle tivesse quebrado uma perna uma vez, que tivesse rachado
a cabeça quatro, e que se tivesse constipado dezeseis, e houvesse
aprendido assim a ser um principio d'homem, do que não ter passado por
nenhum d'esses desares e ser unicamente um lamentavel boneco, medroso e
covarde, que um gaiato, creado na lama da rua e tendo metade da edade
que elle tem, pode impunemente encher de bofetadas nas duas faces e
estofar de ponta-pés em todo o resto do corpo, servindo-se para isso dos
membros que não quebrou, nem a trepar, nem a correr, nem a deitar-se de
mergulho ao ribeiro, apezar dos perigos previstos pela mãe do molestado.

O primeiro acto da vida civil d'esse sujeitinho consiste em metter
empenhos para ser approvado em instrucção primaria.

A primeira gloria da sua existencia consiste em se considerar tão
importante personagem que sahiu approvado com dez valores, apezar de ter
passado a metter os dedos pelo nariz e a explorar exclusivamente esse
orgão todo o tempo destinado a aprofundar concomitantemente as doutrinas
do sr. Felix.

No anno seguinte começa a estudar as linguas e a fumar cigarros ás
escondidas.

Penetra finalmente na rhetorica e na leitura dos romances, em que passam
visões de mulheres que o tornam cada vez mais amarelo.

Chega da côr de uma cidra ao fim do curso dos lyceus, tendo, além de
todos os preparatorios, mau halito, as pernas cambadas, a espinha
torcida, algum tedio da vida e muita caspa.

Matricula-se então na faculdade de direito na universidade de Coimbra e
o primeiro effeito dos estudos superiores sobre a sua cabeça é
augmentar-lhe a caspa.

Depois a vida academica absorve-o e elle percorre toda a escala das
nobres loucuras de uma mocidade espirituosa e vivaz: empenha as piugas,
toca o fado, dá canelões nos caloiros, espanca os burguezes, faz algumas
canções «grivoises», entorna o môlho das ceias pelo peito da batina, e
regressa a Lisboa bacharel formado.

Tem vinte annos e fez vinte exames. Para cada exame pediu protecção a
tres individuos;--pediu protecção e pediu feriados; pediu humildemente,
inclinado, arrastando a capa, retirando-se ás arrecúas como uma pêga
assustada, sorrindo com um agrado pusilanime:--Sr. doutor, imploro
submissamente a valiosa protecção de v. ex.ª!... Sr. doutor, criado de
v. ex.ª!... Criado de v. ex.ª! ex.'mo sr. doutor...

O espinhaço do bacharel traz feita de Coimbra a curva servil do
pretendente do Terreiro do Paço.

O que na universidade pedia, em Lisboa requer. É apenas a mudança de
nome: «--Sr. ministro, imploro submissamente a protecção de v. ex.ª...
Criado de v. ex.ª, sr. ministro... Ex.mo sr. ministro, humilde servo de
v. ex.ª...» E sae ás arrecúas dos gabinetes dos ministros como saía dos
gabinetes dos lentes, dando-se o ar lastimoso de um cão pelludo ao
emergir da agua, com o seu velho sorriso deploravel, anediando a copa do
chapéo com o canhão da sobrecasaca.

Depois de ter cambado os tacões de cinco ou seis pares de botas nos
passeios por baixo da arcada das secretarias, o bacharel alcança o que
deseja. Um ministro despacha-o--para se ver livre d'elle. Consegue ser
empregado publico ou candidato governamental por um circulo do
continente ou do ultramar.

Desde então as engrenagens do machinismo official apoderam-se d'elle
para nunca mais o largarem. É um escravo. Perdeu a personalidade.
Pertence á grande legião. Vae para onde ella for, diz o que ella disser,
pensa o que ella pensar, dentro de limites intransitaveis, na distancia
prefixa do cepo a que o amarraram.

É assim que uma quantidade iunumeravel de individuos que formam a
classe dirigente vivem d'este cuidado unico: O cuidado de se não
comprometterem. Nunca mais dizem o que sentem. Nas suas idéas, nas suas
opiniões, na sua linguagem, tudo é riscado pela pauta official. Se
alguma vez do fundo do nojo que suscita esta dyspepsia moral lhes vem á
bocca uma verdade, engolem-a para baixo como o caroço de uma fruta
prohibida.

Como pelo desdem do trabalho vivem n'uma estreiteza pecuniaria visinha
da miseria, muitos se lançam á caça do casamento rico, e, vexando-se de
ser tecelões ou ferreiros, não se vexam de casar por interesse, e
acceitam para toda a vida a intimidade indissoluvel de uma mulher feia,
estupida, malcreada, sem espirito de ordem, sem methodo, sem a dignidade
do conforto e do aceio domestico,--a viva negação de todas as condições
que tornam a casa feliz e a familia amavel.

É d'esses consorcios sem idealidade e sem amor, contraidos fóra da mutua
dedicação que completa o homem pelo seu par e cria o verdadeiro
individuo social duplicadamente corajoso, digno e forte, que saem os
filhos dissolutos, os jovens cynicos, desdenhosos das affeições
honestas, hostis a todos os sentimentos de familia, cujos nobres
encantos nunca aprenderam a conhecer e a estimar.

D'esses consorcios procedem tambem as meninas futeis e pretenciosas,
frageis entes inuteis, a que falta a condição essencial da nobreza e da
dignidade da mulher--a comprehensão do _ménage_, o culto do santuario
domestico. Ellas refugiam-se da convivencia antipathica da sua familia,
constituida sem bases organicas, na religião, ou, para que o digamos no
termo mais preciso, na _igrejice_, e na leitura dos romances
sentimentaes. A _igrejice_ e o romance são os dois pólos da sua vida
moral.

Como qualquer d'essas meninas desconhece completamente a arte de
cultivar e desenvolver os seus encantos de espirito e de caracter, um
instincto de aperfeiçoamento, desencaminhado pela educação, leva-a ao
cultivo do trapo como um fim de superioridade, e arroja-a no lastimavel
fetichismo dissipador da moda.

Ignora completamente todas as artes que constituem os elementos da
felicidade conjugal e que só por uma grande pratica e por uma longa
tradição se aprendem: a arte de se fazer bella pelo simples modo de atar
uma fita, de pôr em si uma flor, pela maneira de coser, de caminhar, de
se sentar n'um _fauteuil_, de pegar no talher, de estar á mesa; a arte
de dirigir a cozinha, de organisar a alimentação, de extrair da sua
chimica a alegria e a saude dos seus commensaes; a arte de arranjar a
casa, de lhe dar physionomia, de a obrigar a mostrar talento, a exprimir
idéas, a ter quasi conversação, fazendo respirar como coisas vivas nos
armarios as pilhas perfumadas da roupa branca, sorrir nas prateleiras da
casa de jantar o esmalte das loiças e o estanho reluzente das tampas das
canecas, estenderem-nos os braços as cadeiras do salão, e
solicitarem-nos a permanecer a côr dos cortinados, o tom dos estofos, o
assumpto dos quadros, a collocação dos moveis, a graduação da luz, a
frescura do ar, a nitidez geral do aceio e a sabia disposição dos livros
e dos jornaes sobre o panno da mesa.

A menina em similhantes condições de inutilidade raramente se casa, ou
se desquita do marido se algum dia o vem a ter. As suas inclinações
romanescas e doentias chamam-a para beata. De resto é essa talvez a sua
melhor maneira de ter um fim, porque, emquanto a ser mãe, prohibe-lh'o
physica e moralmente a accumulada estreiteza do coração e dos ossos.


Taes são, no caracter dos individuos de um e outro sexo, os frutos da
educação portugueza na classe mais preponderante da sociedade, aquella
que fórma a opinião e determina as tendencias do espirito publico. Com
similhante estado é irreconciliavel o genio explorador, a tendencia para
as viagens entre póvos barbaros e finalmente o poder de dirigir e de
dominar.

       *       *       *       *       *

Como colonisadores temos apenas uma vantagem sobre os outros póvos
europeus: a sobriedade, que permitte aos nossos operarios alimentarem-se
com a simplicidade d'esses chins cuja concorrencia, pelo simples facto
d'elles se satisfazerem não comendo senão arroz e não tendo outra
baixella senão dois paus, faz tremer todos os trabalhadores do mundo.

Mas esta grande virtude de raças inferiores, caracteristica
principalmente dos nossos operarios do Minho e de Traz-os-Montes, é
insufficiente para nos conservar o dominio de extensos territorios, que
se não arroteiam para a civilisação senão pelo esforço combinado de
altas faculdades administrativas que não temos, de uma grande robustez
physica que tambem não temos, e de um enthusiasmo impulsivo e
desinteressado, tirado de uma grande corrente nacional das mesmas idéas
e das mesmas convicções, o qual egualmente nos falta.

       *       *       *       *       *

Nenhum phenomeno mais expressivo da nossa anarchia administrativa e da
nossa abdicação governamental do que o estado da nossa marinha.

Em todo o paiz colonial e maritimo a industria da pesca é a escola em
que se iniciam os marinheiros. A pesca é a infancia da marinha. A
Hollanda comprehendeu admiravelmente essa verdade, e a industria
piscatoria é desde muitos annos objecto dos cuidados e das attenções
mais desveladas por parte do governo hollandez, cuja marinha é hoje
florentissima. Essa marinha constituiu-a a Hollanda attraindo, com
grande augmento de salarios, os pescadores biscaynhos que iam á pesca da
baleia ao cabo de Finisterra.

As pescarias no mar largo, como a da baleia e principalmente a do
bacalhau, são particularmente favorecidas por todas as nações maritimas
com grandes premios conferidos pelo estado. É na classe numerossima dos
tripulantes de milhares de navios empregados nas chamadas _grandes
pescas_ que se recrutam os marinheiros das armadas europêas.

O governo francez protege, com grandes subsidios na armação dos navios e
com avultados premios sobre o pescado importado, as suas pescas do
bacalhau, cujo producto augmenta extraordinariamente os recursos
alimenticios do paiz, elevando-se o seu valor em dinheiro á somma de 17
milhões por anno. A pesca do bacalhau emprega em França 400 navios e 12
mil marinheiros.

Um facto bem notavel e digno de ser ponderado pelos legisladores
portuguezes é que a prosperidade e o progresso da França teem sido
marcado, como a temperatura em um termometro, pelo desenvolvimento ou
pela estagnação das suas grandes pescas! No tempo da emancipação
communal a pesca do bacalhau desenvolve-se enormemente; cae com a
corrupção monarchica do regimen despotico; revive deante das medidas
legisladas pela Revolução.

Talvez o governo ignore as condições em que actualmente se tributa o sal
que os pescadores francezes nos compram com destino ao seu bacalhau. Os
navios francezes que veem ao nosso porto fornecer-se d'esse genero fazem
fiscalisar o seu carregamento pelo respectivo consulado; o consul
francez remette ao seu governo a nota dos moios de sal carregados em
Lisboa e cujos direitos de importação em França são pagos no porto
d'onde o navio partiu pelo proprietario responsavel por este imposto.
D'este modo evita-se todo o contrabando na importação do sal: os
direitos estão pagos na razão de 50 centimos por cem kilogrammas. Quando
porém o navio que carregou em Lisboa volta a França com o sal empregado
nos bacalhaus que pescou, o governo restitue-lhe os direitos
anteriormente percebidos, não já na razão de 50 centimos por cada cem
kilogrammas de sal, mas sim na de 13 francos por cada cem kil. de
bacalhau. É assim que na questão de um simples imposto se revela o plano
de um paiz para o qual a administração tem um fim de progresso.

Portugal possue no mar dos Açores, segundo a asseveração de varios
navegantes, um banco de bacalhau que muitos julgam superior ao da Terra
Nova, o qual se diz descoberto por um portuguez Gaspar Côrte Real. E
deixa morrer ao desamparo essa grande industria riquissima, a pesca de
um peixe precioso em que tudo se transforma em riqueza: as linguas
constituem um artigo especial presadissimo dos _gourmets_; dos
intestinos faz-se o melhor adubo da terra; do figado extrae-se o oleo
importantissimo para a industria e para a medicina; os ovos empregam-se
com grande vantagem na pesca da sardinha.

Apezar de Portugal ser um paiz privilegiado para a pesca do bacalhau,
pelo valor e pela pericia dos seus pescadores, pela posse do melhor sal
que se conhece para salgar o peixe e do melhor sol que ha para o secar,
o nosso governo despresa este importantissimo ramo da actividade
commercial, perdendo por esse mesmo facto a melhor escola pratica dos
nossos marinheiros e dos nossos navegantes. A grande pesca tambem é para
nós um symptoma da vitalidade nacional. Quando eramos fortes mandavamos
cincoenta ou sessenta navios de pesca para a Terra Nova. Hoje pescamos
na costa o carapau para o gato, servindo-nos de redes que deveriam ser
prohibidas, despovoando as aguas de pequenos peixes insignificantes, que
pelo contrario pesariam dois kilos e seriam um importante artigo
alimenticio, se tivessemos estudado os nossos apparelhos de pesca e
soubessemos legislar sobre a dimensão permittida ás malhas das redes. O
governo portuguez nunca deu a este assumpto, base de toda a exploração
colonial, um só instante de attenção.

O parlamento nomeia em cada anno uma commissão de pescas, que ainda não
serviu para mais nada se não para tributar o pescador. As especies de
peixes que frequentam as nossas costas estão por estudar. A piscicultura
não tem sido objecto de maiores disvellos que a ictyologia: nem uma só
medida tomada pelo Estado para repovoar as aguas das nossas costas e dos
nossos rios principaes; nenhum estudo feito sobre os botes e sobre os
apparelhos empregados na pesca. Assim o pescador considera o Estado, que
elle nunca viu representado senão pelo fisco, como um puro explorador.

Na Povoa de Varzim ha um antigo quebra-mar destinado a formar um porto
de abrigo, que nunca se concluiu. Todas as reclamações, todas as
instancias feitas para este fim teem sido inuteis.

Ha cerca de seis annos el-rei em pessoa visitou a Povoa acompanhado por
um dos seus ministros, o sr. Avelino, o qual em nome do soberano
prometteu aos pescadores que ia ser concluido o paredão. Até hoje ainda
se não accrescentou uma pedra áquelle monumento unico do desleixo
nacional!

E todavia o espirito aventuroso dos nossos antigos navegantes, que o sr.
marquez de Sousa Holstein acaba de procurar resuscitar com a sua
eloquente e erudita conferencia ácerca da escola de Sagres, está ali
vivo ao pé d'esse paredão em ruinas. Ha ahi tres mil homens que em cada
dia jogam as suas vidas com a mesma coragem com que nós aqui em Lisboa
jogamos as cartas. Os poveiros são os homens mais alentados e mais
robustos que tem Portugal. É raro o que se enterra no cemiterio da
freguezia. Morrem no mar, sob um céo de chumbo, estrangulados pela
inclemencia das vagas, á vista da terra, ao alcance das vozes das suas
mulheres e dos seus filhos, por lhes faltar o abrigo a que se destina o
quebra-mar de conclusão em projecto! Não ha um que saiba ler. Habitam em
terra um bairro infecto e miseravel. Os cações escalados, destinados á
alimentação no inverno, secam pregados ás portas interiores das casas.
Cheios de _vermine_, homens, mulheres e creanças, dormem no mesmo
quarto, n'uma promiscuidade horrorosa. A terra da patria dá-lhes apenas
um farol, que elles illuminam á sua custa, e um barco de salva-vidas,
que elles mesmos tripulam. E é para isso que elles, desgraçados, quasi
mendigos, pedindo esmola em bandos durante o inverno, pagam um imposto
annual de cerca de seis contos de réis, integralmente devorados pelo
fisco.

Imagine-se como elles lhe hão de querer e como a hão de amar, á querida
terra da patria!

A unica vingança que esses generosos lobos do mar tiram do Estado, que
tão vilmente os explora e os rouba, consiste em não darem nem um só
homem para o recrutamento maritimo. Não ha meio algum de os obrigar a
fornecer um recruta á armada. Preferem morrer mil vezes a servir taes
amos.

E eis ahi está o ultimo capitulo na provincia do Minho da historia,
feita pelo sr. marquez de Sousa, da escola dos navegadores portuguezes
fundada em Sagres pelo infante D. Henrique!

Como a administração das nossas colonias depende directamente da
organisação da nossa marinha, como a importancia da nossa marinha
depende da organisação das nossas pescas, a Academia prestou á
civilisação da Africa um serviço verdadeiro, não organisando
conferencias, mas tomando uma deliberação mais obscura e todavia mil
vezes mais importante: a de nomear o sr. Brito Capello, naturalista
adjunto do museu zoologico, para ir estudar ao longo do nosso littoral a
industria da pesca e de expôr os meios de a reorganisar.

Comtudo a opinião, que tem de julgar os factos, tão esclarecida é, que
applaudiu como um notavel beneficio patriotico a iniciativa das
conferencias--um espectaculo de erudição, e não teve uma palavra de
applauso para a missão do sr. Capello--o primeiro passo para atacar o
mal na sua verdadeira origem!

       *       *       *       *       *

Do estado verdadeiramente deploravel em que se acha a nossa força
maritima póde-se ter uma idéa pela recente medida tomada pelo governo de
convidar a servir na armada, mediante uma gratificação apregoada na
folha official todas as praças de infanteria ou de caçadores que para
esse fim se apresentem! O governo tem de um marinheiro esta
comprehensão:--que elle se fabrica por meio do abono de quatrocentos
réis por dia dados a um soldado de caçadores!

Mas, a não ser que o façam ao acaso ou que se determinem por uma
escolha baseada na côr dos olhos ou na fórma do nariz, que razões podiam
ter levado o governo a alistar na arma de caçadores um dos seus
recrutas? Suppomos que estas razões devem ser tiradas das condições em
que foi educado o recruta; que o fizeram caçador porque habitava as
montanhas, porque era um caminheiro, porque tinha a agilidade que dá a
luta com os terrenos escabrosos nas visinhanças das serras. Ora, sendo
assim, como querem sujeitar á vida sedentaria do mar e á familiaridade
das ondas esse montanhez, que nunca pegou n'um remo, que chegou das
Alturas de Barroso, do Marão ou da Serra da Estrella e que sente as
pernas enferrujadas e o pulmão opprimido desde que não anda mais de uma
legua por dia trepando saudosamente ás colinas que cercam o logar do seu
quartel?

Outro facto não menos expressivo é o que ha pouco tempo se deu com
alguns guarda-marinhas do nosso conhecimento em estação em Loanda.

Sabe-se que não ha plantas dos nossos portos da Africa, cuja navegação
se faz por meio de cartas inglezas.

Os jovens marinheiros a que nos referimos, impellidos por esta vergonha
da nossa marinha, quizeram levantar a planta do porto de Loanda.
Empregaram todos os esforços para obter os necessarios instrumentos, não
puderam conseguir senão unicamente a offerta de um bote, unico elemento
de trabalho que o governador se achava habilitado a pôr á disposição
d'esses extravagantes. Elles comprehenderam então que não tinham senão
uma coisa que consagrar aos destinos da patria; não era o talento, não
era a dedicação, não era o trabalho; era unicamente a saude. E foram
immolar o figado á administração nacional para bordo do seu navio, como
patos de engorda pregados pelos pés á respectiva capoeira.

Quando os nossos officiaes teem conseguido arruinar completamente as
suas visceras na inanição official das nossas estações de Africa, voltam
doentes á metropole e concluem a missão civilisadora que o paiz lhes
incumbiu tomando as aguas alcalinas de Vidago.

As aguas de Vidago são o fim supremo do seu destino militar.

       *       *       *       *       *

Emquanto estas coisas se passam os inglezes, com um poder creador que
faz muitas vezes o elogio das suas faculdades inventivas, acham em cada
dia pretextos novos para intervirem com o _seu protectorado
humanitario_ nos negocios do interior africano, e dilatam a pouco e
pouco a sua occupação e o seu dominio manso sobre o nosso territorio.

       *       *       *       *       *

Um dos incidentes que acompanham a questão suscitada pela viagem do
capitão Cameron é a revelação feita por este viajante de que as
auctoridades portuguezas no interior da Africa não obstam ao trafico dos
escravos, que ainda ali vigora.

Como é que nós respondemos á denuncia d'este facto? Respondemos negando
a asseveração do sr. Cameron e fazendo protestos.

Para decidirmos se um tal modo de retorquir nos podia ser ou não
permittido, vejamos quem é o homem que nos acusa.

Cameron é o segundo europeu depois de Levingstone que modernamente
atravessou a Africa desde a costa oriental até a costa occidental,
levado por um intuito exclusivamente scientifico. D'esta viagem, que
durou quatro annos, trouxe o sr. Cameron o projecto de ligar a costa do
oriente com a do occidente por meio da navegação fluvial, aproveitando
as relações hydrographicas do rio Congo e do Zambese, o primeiro dos
quaes desemboca de um lado no Zaire e o outro do lado opposto, ao sul de
Moçambique.

Durante esses quatro annos passados entre selvagens, o capitão Cameron
parte de Bogamoyo em frente de Zanzibar, passa em Rehenneko, atravessa o
paiz de Ounyanyembe, o paiz de Ugara, o Ujiji, o lago Tanganyika, o
mercado de Nyaugwe, o estado de Urua, a Ponta do Lenho, desce as margens
do Congo, toca em Benguela, chega finalmente a Loanda. Os companheiros
de viagem que haviam saido de Inglaterra para o acompanharem--o doutor
Dillon, Moffat sobrinho de Levingstone, o artilheiro Murphy, não podem
seguil-o a mais do começo d'essa longa e perigosa expedição. Adoecem
successivamente todos. Moffat morre em Bogamoyo. Em Ounyanyembe
apparecem-lhe os homens de Levingstone trazendo o cadaver do explorador
que o precedera. Então Murphy e Dillon, ambos gravemente enfermos,
desistem de continuar essa immensa viagem e regressam com o corpo de
Levingstone para Zanzibar. Dillon morre no caminho.

Cameron, só, sem nenhum outro companheiro europeu, armado de uma
clavina, seguido por uma escolta de negros, prosegue, caminhando
atravez de regiões inexploradas e desconhecidas, sob um clima mortifero,
deixando atraz de si, marcado com a morte dos seus camaradas e cada um
dos primeiros estadios da sua portentosa peregrinação.

Não sabemos quem era Cameron ao partir. Admittimos que saisse da
Inglaterra com a educação commum de um simples tenente da armada
britanica. Mas dizemos que uma viagem como a que elle fez, e nas
condições em que a fez, basta para retemperar uma alma e para formar um
caracter. Um tal homem não mente. N'elle a mentira seria a refutação de
todos os principios do nosso aperfeiçoamento, seria a violação de todas
as leis da natureza humana.

Nada mais lastimosamente ridiculo do que a indignação patriotica de
qualquer dos nossos politicos, chupando auctoritariamente um cigarro no
Gremio ou á porta da Casa Havaneza, bombardeando a atmosphera com balas
de fumo, e desmentindo o homem mais competente que hoje existe no mundo
para nos informar do que se passa em Africa!

O que Cameron disse ácerca da escravatura africana na conferencia feita
em Londres foi o seguinte:

«Cerca da linha de separação das bacias do Zambese e do Congo fomos
retardados no primeiro acampamento por causa da caça aos escravos
fugidos. Quando pela manhã me preparava para partir, chega um mensageiro
dizendo-nos: _Não partaes; Kouaroumba vae chegar com os seus escravos_.
Depois do meio dia chegou effectivamente Kouaroumba com uma fila de
cincoenta ou sessenta infelizes mulheres, carregadas com a presa,
trazendo algumas os seus filhos nos braços. Estas mulheres representavam
pelo menos a ruina e a destruição de quarenta ou cincoenta aldeias e a
matança d'aquelles dos seus habitantes masculinos que não conseguiram
refugiar-se nos juncaes para ali viverem como podessem ou morrerem de
fome. É para mim fóra de duvida que estas cincoenta ou sessenta escravas
representam mais de 500 individuos mortos na defeza do seu lar ou
acabando mais tarde de inanição. As mulheres a que me refiro vinham
presas umas ás outras pela cinta por meio de cordas cuidadosamente
atadas. Quando ellas affrouxavam na marcha, batiam-lhes
desapiedadamente. Os traficantes portuguezes, negros ou mestiços são
muito brutaes; os arabes pelo contrario tratam geralmente bem os
escravos. Os negros caçados como estas mulheres no interior da Africa
não são em geral levados para a costa. Vão para Sakaleton, onde por
varios motivos a população é rara e são mui procurados os escravos. São
vendidos por marfim, que os traficantes trazem para a costa.»

Estas palavras são perfeitamente explicitas e terminantes.

Persiste com todos os seus horrores no interior das nossas possessões da
Africa o trafico dos escravos. Emquanto se não provar manifestamente o
contrario esta é que é a verdade, verdade referida pelo sr. Cameron, já
anteriormente ennunciada pelo viajante francez o sr. Jocolliot,
confirmada pelo sr. Young, explorador inglez, e ultimamente, mesmo em
Lisboa em uma carta publicada no _Progresso_ pelo sr. Pinheiro Bayão,
que esteve por algum tempo em Africa empregado do Estado.

Para factos d'esta ordem os protestos de toda a imprensa[1] e de todo o
parlamento, por mais unanimes que elles sejam, não teem a natureza de
uma refutação nem o caracter de uma resposta, são uma pura evasiva
compacta.

[Nota 1: Um unico periodico, de que tenhamos noticia, o _Seculo_, de
Coimbra, tomou a defeza do capitão Cameron em um artigo poderosamente
escripto pelo sr. Correia Barata.]

A primeira noticia dada em Portugal da viagem de Cameron foi objecto de
uma sabia exposição feita á primeira classe da Academia das Sciencias
pelo fallecido naturalista o dr. Bernardino Antonio Gomes. O resultado
d'essa exposição dos serviços prestados pelo viajante inglez á
civilisação universal foi dirigir-se a Academia ao ainda então tenente
Cameron, agradecendo-lhe em nome da sciencia e em nome de Portugal a
contribuição valiosissima com que elle tinha cooperado para o progresso
da sociedade humana.

O governo, deliberando tomar officialmente conhecimento dos factos
referidos pelo capitão Cameron, não tinha senão uma resposta que
dar-lhe:--nomear uma commissão de inquerito que syndicasse
rigorosamente da cumplicidade dos funccionarios portuguezes no
menosprezo ou na contravenção das leis que aboliram a servidão.

Em quanto á camara dos srs. deputados, parece-nos que ella teria
procedido, pelo lado scientifico com mais logica, e pelo lado patriotico
com mais tacto, se em vez das protestações que iniciou houvesse seguido
o exemplo que lhe fôra dado pela Academia e agradecesse simplesmente ao
sr. Cameron as informações que este lhe prestára.

D'esse modo teria a camara dos sr. deputados evitado receber do _Times_
a mais dura e humilhante lição que por via da penna de um jornalista se
pode inflingir a uma sociedade.

O preconceito do patriotismo é o mais funesto de todos os preconceitos
sociaes sempre que elle nos leva a trahir a verdade. Manter na opinião
publica a mentira é violar o progresso da humanidade pelo modo mais
sacrilego e mais nefando. A decomposição em que se acha a governação e a
politica em Portugal deve-se principalmente á fraqueza dissolvente dos
caracteres publicos em testemunhar a verdade. Todo aquelle que por meio
da sua palavra ou por meio da sua penna não tem o preciso valor para
ennunciar a sua inteira opinião é um traidor da civilisação e um
perigoso inimigo do genero humano. Não queremos para a nossa
consciencia de escriptor o remorso d'essa voluntaria culpa, e é por isso
que dizemos aos srs. deputados:

A verdade, meus senhores, é o que vos disse o _Times_. «A questão, como
diz o referido periodico, não é se Portugal prestou serviços á causa do
progresso africano, nem se os estadistas foram estudiosamente polidos na
sua linguagem tratando com uma nação alliada e amiga; a questão é se os
factos são ou não são como recentes viajantes affirmaram que eram. Que o
commercio da escravatura na Africa central seja feito mui largamente por
negociantes portuguezes e sob a protecção da bandeira portugueza é
accusação que pode ser refutada, não pela linguagem de uma indignação
ficticia ou real, não por patrioticas reminiscencias, nem por uma
referencia a cumprimentos diplomaticos, mas sim deixando-se de permittir
que haja materia para que a accusação continue. Sabemos quanto Portugal
tem feito no papel para acabar a escravatura, e conhecemos tambem o
pouco effeito que as suas energicas declarações produziram.»

Os quatro milhões de vozes de que o paiz inteiro pode dispor, a
protestarem todas perante o universo, não poderão convencer um só homem
de que a verdade seja differente do que é. A declamação n'este ponto é
completamente inutil com outro qualquer fim que não seja um puro
exercicio de eloquencia nacional.

Por tal modo, meus senhores, não julgueis contribuir para a civilisação.
Vós contribuis apenas para o _Peculio de Oradores_, do sr. João Felix.





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