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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07)
Author: Ortigão, José Duarte Ramalho, 1836-1915 [Editor], Queirós, José Maria Eça de, 1845-1900 [Editor]
Language: Portuguese
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Nacional de Lisboa.



[Illustration: EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO--AS FARPAS]

EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO

AS FARPAS

_Chronica Mensal_

DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

QUARTA SERIE N.º 1

JUNHO A JULHO 1882



Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição de poder,
da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das
grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos
reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de
mim mesmo.

P.J. PROUDHON



SUMMARIO

A patria portuguesa e os quatro milhões d'egoismos de que ella
consta--Presente estado das ideias--A religião--A politica--A moral--A
arte--Sentido historico do centenario de Camões, sua influencia e seus
resultados--Dois annos depois--A celebração do centenario do Marquez de
Pombal considerada como symptoma psychologico--Do estadista em geral e
do Marquez em particular--Addusem-se razões e testemunhos insuspeitos
para o fim de provar que o estadista é um agente secundario entre os
acceleradores do progresso, e que o Marquez de Pombal é um individuo
secundario na classe dos estadistas--Buckle, Guizot, Bastiat, Begehot,
Herbert Spencer, Wechniakoff, Auguste Comte, Michel Chevalier, e
outros--Demonstra-se que o Marquez de Pombal exprime a negação de tudo
aquillo que a liberdade affirma e que a democracia proclama--Coerção da
agricultura, coerção da industria, coerção do commercio, coerção dos
direitos civis, coerção do pensamento--Arruamento geral de todas as
actividades nacionais pelo systema quadrangular da reedificação da
Baixa.--Secularisação do jesuitismo na pessôa do mesmo Marquez--A
estatua de Sebastião e o monumento do Terreiro do Paço--Parallelo do
cavallo e do cavalleiro--Pede-se o esquecimento para um e uma charrua
para o outro.

       *       *       *       *       *

Asociedade portugueza n'este derradeiro quarteirão do seculo pode em
rigor definir-se do seguinte modo:--Ajuntamento fortuito de quatro
milhões d'egoismos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em commum.

Chamar patria á porção de territorio em que uma tal aggregação se
encontra seria abusar reprehensivelmente do direito que cada um tem de
ser metaphorico. O espaço circumscripto pelo cordão aduaneiro, dentro do
qual sujeitos acompanhados das suas chapelleiras e dos seus embrulhos ou
tomaram já assento ou furam aos cotovelões uns pelo meio dos outros para
arranjar logar nas bancadas, pode-se chamar um _omnibus_--e é
exactamente o que é--mas não se pode chamar uma patria. A patria não é o
sitio em que nos colloca o acaso do nascimento, á mão direita ou á mão
esquerda de um guarda da alfandega, mas sim o conjunto humano a que nos
liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino commum.

Já um sabio o disse: _Ubi veritas ibi patria._ A patria não é o solo, é
a ideia.

       *       *       *       *       *

Para que haja uma patria portugueza é preciso que exista uma ideia
portugueza, vinculo da cohesão intellectual e da cohesão moral que
constitue a nacionalidade de um povo.

Sabem dizer-nos se viram para ahi esta ideia?...

Nós temol-a procurado de aventura em aventura, de jornada em jornada,
n'uma peregrinação de vinte annos atravez d'esta sociedade, como
Ulysses, vagabundo atravez da Odyssea, em busca, do fumosinho tenue e
amigo que adeje no horisonte por cima da primeira cabana d'Ithaca.

As manifestações culminantes da mentalidade collectiva de um povo são: a
Religião, a Politica, a Moral, a Arte. Vejamos rapidamente se em alguma
d'estas espheras da nossa elaboração mental se revela a unidade de
pensamento por meio da qual se affirma a existencia de uma nação.

       *       *       *       *       *

Em religião os cidadãos portuguezes dividem-se, em uma infinidade de
categorias diversas.

Temos em primeiro logar os livres pensadores, que nunca pensaram, coisa
alguma sobre este ponto, apesar da liberdade com que se dotaram para
esse fim.

Temos depois os indifferentes, que se subdividem pelos diversos graus de
medo que têem ao Incognoscivel sempre que ha epidemias ou tremores de
terra.

Seguem-se os deistas, que acceitam Deus como entidade abstracta pela
qual se explica a ordem do cosmos, no qual Deus figura como maquinista,
e egualmente se explicam as justiças da historia, nas quaes o mesmo Deus
se manifesta sob a forma de dedo,--o bem conbecido _dedo de Deus_.

Veem depois os christãos, e por ultimo os catholicos. Estes separam-se
uns dos outros por tantas diferenças de opiniões quantos são os
individuos agremiados na Igreja. Ha os que crêem na infalibidade do papa
e os que não crêem em tal infalibilidade; os que vão á missa e os que
não vão á missa; os que se confessam de tudo, os que se não confessam
senão de certas coisas, e os que de todo em todo se não confessam.

Uns encabeçam a divindade no Senhor dos Passos da Graça e, com as suas
opas roxas e suas cabelleiras anediadas pela bandolina do culto no
bairro oriental, olham com despeito para os devotos afrancesados de
Nossa Senhora de La Salette, divindade de chic suspeito ás devoções da
Baixa.

Os escolhidos do alto clero, que se gargarejam em suas tribulações com
agua de Nossa Senhora de Lourdes, garantida verdardeiro João Maria
Farina, da Gruta, sorriem de desdem pelos que ainda cuidam expurgar-se
do peccado e clarificar-se para a protecção divina com a velha agua
benta de mendigo de porta de Igreja, preparação de Santo Ignacio, hoje
desprestigiada e choca.

Aquelles proprios que são por um mesmo e unico santo lêem entre si
dissidencias acrimoniosas de detalhe.

Nós mesmos vimos ha trez annos, na volta da romagem de Nossa Senhora do
Cabo, dois cirios, que vinham já de muito longe a rosnar,
engalfinharem-se a final um no outro ao chegar a Cacilhas. Foi uma coisa
feroz. Os clerigos cessaram interinamente de tomar pitadas para se
desancarem uns aos outros com as tochas e com os cabos das lanternas,
desalmadamente. A Senhora, do alto do seu andor pousado no chão, as mãos
crusadas no seio, assistia ao debate com uma neutralidade fervorosa e
commovedora. As sobrepellizes e as capas d'asperges, que regressavam do
arraial enodoadas de vinho, de chapadas de melão e de areia vermelha,
desfiavam-se pela fricção das bordoadas; nas cabeças quebradas atavam-se
á pressa lenços eclesiasticos; e no theatro d'esta devoção ficou
bastante sangue e muito rapé derramado pelos sacerdotes.

Devemos mencionar ainda os philosophos espiritualistas, que em religião
cultivam a _duvida_ com o mesmo ardôr de vesania com que alguns
hollandezes maniacos cultivaram em tempo a tulipa.

A duvida d'estes philosophos versa sobre os diferentes feitios que pode
tomar pelo infinito fora a coisa a que elles, á força de não saberem o
que seja, deram o nome de _eterna essência._

Enquanto a gente vae em cada manhã tratar da sua vida, esses individuos
vão duvidar na solidão, ou seja nas trevas de um quarto escuro em seus
domicilios, ou seja á beira do oceano, chupados e amarellos como cidras,
com os olhos esbugalhados para a banda do Bugio. É até onde a ociosidade
pode levar meia duzia de vadios sem mais que faser! Tivessem elles em
que cuidar e não haveria perigo que a _eterna essência,_ o _increado_, o
_absoluto_ e todas as mais queixas de cabeça que os affligem
continuassem a remoel-os. Officio para as costas, uma enxó e um formão
para as mãos, com a obrigação de ganhar oito tostões por dia para
sustentar mulher e filhos, e verão os philosophos como a cruel duvida se
lhes desencasqueta que é um gosto, e lhes sae pela cabeça fora para a
roupa suja com a primeira camisa que suarem a puxar pelo corpo para
ganhar a vida, assim como até aqui teem puxado peio juizo para dar cabo
d'ella.

Em conclusão: ou seja como ponto de controversia, como motivo de briga
ou como assumpto de teima, a religião em Portugal é um elemento de
desunião, que não só perturba as relações sociaes mas destroe tambem
muitas vezes a alliança da familia.

       *       *       *       *       *

Passemos á politica.

N'este campo não ha, ideia propriamente nacional,--é evidente.

Perdendo a pouco e pouco a consciencia da sua tradição historica,
Portugal, politicamente, não tem hoje papel na civilisação. Está
desempregado. Figura no congresso das nações europeias como um paiz sem
modo de vida. Perante o progresso não tem profissão. A missão que elle
desempenhou na Renascença pela obra magnifica dos seus sabios, dos seus
navegadores, dos seus commerciantes e dos seus artistas, as excellenles
condições da sua situação geographica e a paz interior de que tem gosado
emquanto a Hispanha se dilacera a si mesma nas eternas lutas
intermitentes de desaggregação e de unificação das suas provincias,
davam a Portugal o direito e o dever de assumir n'este seculo a
preponderancia hegemonica dos estados peninsulares, a direcção
espiritual da civilisação iberica. Em vez d'isso Portugal descansa
desde o seculo XVI sobre os monumentos immortaes da sua passada energia
e acha-se no movimento moderno da raça latina como uma nacionalidade com
licença illimitada para tomar ares. Os seus filhos mais intelligenles e
mais fortes, uns perseguidos, outros despresados, abandonaram-o aos
reis, aos estadistas, aos padres, aos persevejos, ás moscas, e foram uns
para os Paizes Baixos fundar e enriquecer a Hollanda e botar á luz
Spinosa; outros foram para a America Austral fundar, agricultar e
enriquecer o Brazil. O resto é o que ahi está ha dusentos annos sentado
ao sol n'uma ponta de banco do mappa-mundi, a cabecear, a coçar os
joelhos e a ouvir ranger o calabre á nora da coisa publica, puxada pelo
governo, velho boi, d'olhos tapados, afeito ao cerco peguinhado do poço
sem bica, tornando a deitar para baixo a agua que traz para cima, e não
sabendo o proprio governo, nem sabendo ninguem por que ninguem se
importa com isso, se é já o pau da nora que empurra de traz o animal ou
se é ainda o animal que tira para deante o pau da nora.

Os differentes partidos que ha muitos annos se succedcm no exercicio do
poder teem por chefes dois ou tres individuos, cujas personalidades,
absolutamente destituidas de ideias correlativas ou concomitantes,
representam as duas ou trez phases por que successivamente vae passando
e repassando em circulo sobre o mesmo carreiro a rotação governativa.

Os personagens alludidos teem as intenções mais puras e mais honestas
d'este mundo. Ter outras, deshonestas e impuras, dar-lhes-hia massada, e
para ahi é que elles não vão.

Diz-se tambem que são todos mais ou menos fortes n'essa arte, velha e
atrasada, que se chama a eloquencia e que tem por objecto desfaser pela
exageração artificial das palavras a justa proporção das coisas.

São ainda--affirma-se geralmente--habeis parlamentares, o que quer dizer
que possuem o talento de dominar as assembleias por meio de
transigencias reciprocas e de concessões mutuas, rasoirando os
parlamentos pelo nivel de uma mediocridade discreta, tão ôcca como
estéril.

Por baixo d'essas virtudes, que reconhecemos e veneramos, os homens que
ha vinte annos se revezam no governo carecem das ideias geraes de que
procede na sciencia o ponto de vista governativo. As assembleias das
duas camaras, revezando-se ora para a direita ora para a esquerda, dão
ou retiram a maioria dos votos a cada um d'aquelles senhores,
consagrando-se exclusivamente a defendel-os ou a impugnal-os, sem
portanto sahirem nunca da orbita dos principios que elles representam,
principios a que não correspondem systemas diversos c que se distinguem
apenas uns dos outros pelos signaes physionomicos dos estadistas que os
teem no ventre, podendo-se dividir assim: principios governativos
calvos, principios governativos d'olhos tortos e principios governativos
de cabellos tingidos.

Nestes esforços successivos das grandes massas intelligentes da nação
vemos dessorarem-se gerações e gerações consecutivas de deputados,
fortes temperamentos alguns, solidos provincianos de boa fé, que de trez
em trez annos o parlamento recebe vivos e honrados do interior das
provincias para trez annos depois lh'os devolver aniquilados para toda a
especie d'iniciativa, corrompidos pelo habito de serem mandados,
castrados na dignidade pela disciplina imposta pelos seus chefes, podres
no caracter pela fermentação da intriga, indelevelmente marcados para
toda a vida, pelo ferrete official, com uma pelintrice austera e
miseravel, na figura, com uma côdea veneranda de solemnidade
prudhommesca, estupida e impenetravel, no cerebro.

É pela mais justa e pela mais completa comprehensão do seu destino
social que tanto os individuos como os povos se disciplinam, se
fortalecem e se aperfeiçoam. Em Portugal a incapacidade governativa
produsiu, primeiro que tudo, este resultado funesto: fez perder ao paiz
a noção historica do seu destino, cortou o fio da tradição nacional,
lançando o espirito publico n'uma existencia d'accaso como a das tribus
bohemias. Depois o predominio da incompetencia scientifica na direcção
dos negocios dissolveu a pouco e pouco a liga que deveria estreitar a
convergencia de todas as actividades para um fim commum, e pela
separação dos interesses operou a separação das energias.

É assim que em pleno seculo XIX, quando está exhuberantemente
demonstrado que todos os factos do universo, assim na ordem physica como
na ordem social, se encadeiam uns nos outros por leis imprescriptiveis
de contiguidade e de correlação, nós vemos em Portugal exercer-se a
acção do poder no estudo dos phenomenos tratando-os isoladamente, n'um
ponto de vista fetichista, de preto botocudo, como se cada um d'esses
phenomenos, regido por uma lei especial e divina, fosse a causa e o
effeito de si proprio.

Com mil exemplos se podia comprovar a affirmação que fazemos. Mas
basta-nos um qualquer, tirado ao accaso do monte, para pôr essa
affirmação em evidencia de facto.

Veja-se como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas
questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos á coisa
a que, no calão official em que tem degenerado a lingua patria, se
chama--_a questão da fazenda_.

Reunidas as camaras e aberto perante ellas o orçamento do Estado,
começa-se invariavelmente por constatar, n'um tremolo elegiaco de
symphonia funebre, que continua a existir o deficit. Cada um dos tres
governos a quem a corôa alternadamente adjudica a mamadeira do systema
encarrega-se de explicar aos tachigraphos essa occorrencia--aliás
desagradavel, cumpre dizel-o--mas de que elle, governo em exercicio, não
tem a culpa. A responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido
pelos seus esbanjamentos e pela sua incuria.

Para cada um d'esses tres governos sucessivamente encarregados de
trazerem o deficit ao regaço da representação nacional, o governo que
immediatamente o precedeu n'esse mesmo encargo é o ultimo dos imbecis.

Tal é o conceito formidavel em que cada um dos referidos tres governos
tem os outros dois!

A corôa pela sua parte--e é este o mais augusto do todos os seus
privilegios--é successivamente da opinião de todos os tres ministerios;
e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos
imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a corôa torna a restituir a
citada confiança, com uma effusão de jubilo tão sincero como o nojo
anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas collocados
chronologicamente em sentido inverso d'aquelle em que estavam, ou sejam,
por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.

Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda,
decide-se que é indispensavel, _ainda mais uma vez_, recorrer ao
credito, e faz-se um novo emprestimo. No anno seguinte averigua-se por
calculos cheios de engenho arithmetico que para pagar os encargos do
emprestimo do anno anterior não ha outro remedio senão recorrer _ainda
mais uma vez_ ao paiz, e cria-se um novo imposto.

Fazem-se emprestimos para supprir o imposto, criam-se impostos para
pagar os juros dos emprestimos, tornam-se a fazer emprestimos para
atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e n'este
interessante circulo vicioso, mas ingenuo, o deficit--por uma extranha
birra, admissivel n'um ser teimoso, mas inexplicavel n'um mero saldo
negativo, em uma não existencia,--augmenta sempre atravez das
contribuições intermittentes com que se destinam a extinguil-o já o
emprestimo contrahido, já o imposto cobrado.

Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extinctas
ordens mendicantes, o deficit tem dois sacos, um para deante outro para
traz, ambos destinados a receber o vacuo. N'um dos sacos mette-se a
divida fluctuante, no outro mette-se a divida consolidada. De quando em
quando ha um relampago de jubilo, porque parece por um momento que o
alforge do deficit está vasio, isto é, que está sem vacuo dentro: é a
divida, que se achava em estado de fluctuação no saco da frente, que
passou no estado de consolidação para o saco de traz.

A alegria fugaz mas intensa que provem da illusão d'esta gigajoga vale o
dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de todas as
vezes que elles mexem na divida, seja para o que fôr, mesmo para a mudar
de saco, ella cresce.

Pela parte que lhe respeita o paiz espera. O quê? O momento em que pela
boa razão de não haver mais coisa que se collecte, porque estará,
collectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem
pague.

No emtanto o problema de augmentar a riqueza--unico meio de prover aos
encargos--é considerado como absolutamente extranho á _questão da
fazenda_. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não augmenta
senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha
ligado aos progressos da industria.

Ora emquanto á industria ... Mas este novo ponto pode ficar para outra
vez. O feliz encyclopedismo das inaptidões do estado proporciona-nos a
facilidade de poder comprovar a sua incapacidade com um só facto
qualquer, demonstrando que no paiz coliocado sob o patrocinio de um tal
governo, não pode dar-se senão uma especie de cohesão politica:--a liga
dos governados para o despreso convicto dos que governam.

       *       *       *       *       *

Na moral estamos como na religião. Cada um tem a sua, feita á fórma do
seu pé como as botas por medida, com a concavidade de uma cupola moldada
á protuberancia de cada calo.

Ha em primeiro logar as duas grandes circumscripçõcs--da moral publica e
da moral privada, inteiramente diversas uma da outra. D'ahi a distincção
casuistica entre a honestidade politica e a honestidade pessoal. Em
virtude d'essa distincção o mesmo individuo pode, ser cumulativamente o
mais honrado dos cavalheiros e o mais abalisado dos velhacos. Na
politica ha carta branca para tudo: para mentir, para intrigar, para
caluniar, para trahir, para furtar. No terreno politico o sujeito pode
ser refalsado, impostor, venal, infiel, servil, covarde. Todos os
vicios e todas as abjecções se acobertam com esta virtude absolutamente
latitudinaria--a _fidelidade ao partido_. Está assentado e decidido para
todos os effeitos que as nodoas da vida publica não distingem sobre o
caracter pessoal. O cavalheiro que pela manhã leu nos jornaes, ou ouviu
nas camaras, sem as combater e sem as refutar, as ultimas injurias que
podem ferir o homem no que elle deve ter de mais caro no seu caracter ou
no seu coração, na sua familia, na sua honra, na sua probidade, no seu
pudor, no seu brio, vae á noite jantar regosijado e tranquillo na mais
santa paz da consciencia no aconchego immaculado da familia, na estima
inalteravel da amisade; e com a gravidade austera, convicta e bondosa,
de um patriarcha, estende a mão suja das suspeitas mais torpes aos seus
amigos, que lh'a apertam, e dá a beijar á sua filha, risonho e calmo, a
face esbofeteada pelas accusações mais vergonhosas.

Um dos principaes caracteriscos da integridade moral de uma pessoa está
no accordo das ideias com as palavras e das palavras com as obras. Na
intriga constitucional cujo vicio congenito é a pusilanimidade e a
hypocrisia, esse accordo é uma chimera. No parlamento portuguez ninguem
diz inteiramente, o que pensa, qualquer que seja a questão de que se
trate. Os negocios om discussão são debatidos por dois aspectos
radicalmente diversos, na sala e nos corredores da camara. Cá fóra
diz-se a verdade. Lá dentro faz-se o discurso, o que é uma coisa
inteiramente differente e ás vezes opposta. A eloquencia parlamentar é a
instituição official da ficção sob a fórma litteraria de nenia, de
cantata, de sermão, de estopada ou de descompostura.

A influencia do regimen politico sobre a moralisação geral dos
caracteres é profunda e fatal. A escola evolucionista tem demonstrado
por meio de razões experimentaes que a faculdade a que geralmente se dá
o nome de _consciencia_ se fórma pelo desenvolvimento de duas tendencias
combinadas posto que apparentemente oppostas: a tendencia egoista e a
tendencia sympathica. Depois da applicação da fecunda theoria biologica
de Darwin ao estudo e á renovação das sciencias sociaes ficou
perfeitamente estabelecido que a moral, cujo objecto é o equilibrio
entre o instincto pessoal da conservação e o instincto social da
sympathia, tem por base, mais ou menos remota, mais ou menos disfarçada,
o interesse.

Nota Spencer que aquelles que sempre tiveram saude são pouco
compadecidos com as doenças dos outros. A piedade é a lembrança ou a
imagem antecipada de um soffrimento, imagem que, produzida em nós pelo
aspecto d'um soffrimento alheio, nos causa uma dôr analoga.

O interesse assim definido é effectivamente a base de todas as moraes. A
propria moral do Evangelho o que é senão a mais lucrativa das
transacções entre o homem e o infinito?

Em uma sociedade constituida as tendencias sympathicas estão portanto
naturalmente em proporção e em harmonia com as tendencias egoistas
determinadas pela constituição do meio.

Um governo ignorante, vivendo na trapaça, no favoritismo eleitoral, no
compadrio, nas dependencias aviltantes do dinheiro, fazendo carreira aos
mediocres humilhados, empecendo o exito no mundo official ás
inflexibilidades energicas e fecundas, dissolve a moral publica porque,
corrompendo os interesses legitimos da communidade, abastarda
correlativamente as sympathias dos individuos.

Um momento depois, como os trez pedagogos comparecessem á real presença,
enrolados á pressa nas togas do professorado, de barretes de dormir, com
as competentes pennas de pato aparadas da vespera e mettidas atraz das
orelhas, o rei disse-lhes:

--Esse jumento que ahi está, (e estendendo o seu dedo magnimo, com um
largo gesto antigo indicava o principe, vestido de general, de esporas e
chapeu armado, que bocejava encostado ao sabre de seus antepassados)
esse real jumento ignora completamente os deveres mais rudimentares de
um principe para com a sua princesa. E é para isto que eu tenho tido
aqui á engorda durante quinze annos tres burros de tres mestres!... Ora
muito bem: vou deixar-vos a sós por espaço de cinco minutos com tão
repulsivo idiota. Se ao cabo de cinco minutos, contados pelo relogio,
elle não estiver ao facto d'aquillo que todo o homem de barbas na cara
deve saber para não vir para aqui a estas horas _nanar_ n'uma cadeira,
decapito-vos a todos trez esta noite como cação appropriada para
fecundar os germens originaes da nossa inspiração artistica, trabalho de
que apenas se encontram vestigios na obra de Garrett.

Depois do terramoto, que subverteu muitos monumentos d'arte preciosos
para a educação esthetica do povo, a dictadura grosseiramente utilitaria
do marquez de Pombal, primeiramente, e o burguezismo liró do regimen
constitucional, depois, deram á producção artistica da moderna epoca
liberal o caracter pelintra, ao mesmo tempo pretencioso e chato, de
padre catita, de jesuita amanuensado, de sargento victorioso, caracter
que distingue a arte portugueza de 1830 para cá, e que deu o stylo de
banbolina de paninho, de balaustre azul e branco, de festão de murta e
d'areia encarnada, a que podemos chamar na historia da decoração--o
_stylo furriel dos batalhões da carta_.

Onde está ahi o artista em cuja obra se ache reflectida a influencia do
antigo genio portuguez? Onde está o escriptor que se possa considerar o
interprete legitimo do gosto, das ideias, das convicções dos sentimentos
do publico?

Os escriptores contemporaneos podem-se dividir em quatro grupos. O
grupo academico official, o grupo dos convulsionarios, o grupo dos
insubmissos e o grupo dos domesticados.

Os escriptores do primeiro grupo são os velhos caturras coroados pelo
laurel das commissões retribuidas, semsaborões emeritos acommodados pelo
governo em confortaveis cadeiras de caixa, destinadas a receber para o
Estado os fluxos da litteratura classica. Nunca ninguem no vasto publico
pôde jamais apreciar a obra d'esses sabios, porque tudo quanto elles
desassimilam em fórma de prosa passa em padiolas, circumdadas de
respeito, dos prelos das typographias para o gorgulho dos archivos e só
depois de se ter gorgulho compenetrado por espaço de muitos annos do
teor d'essas producções é que ellas chegam ás casas particulares sob a
fórma de involucro de generos alimenticios, como as salchichas, ou de
simples aromas culinarios, como o cravo da India e o colorau picante.

Os convulsionarios, que são os mais numerosos, denominam-se
republicanos, e julgam-se auctorisados, sob esse estandarte de revolta,
para se collocarem em berrata furibunda e em dessidencia enthusiasmada
com tudo: com a monarchia, com a religião, com a grammatica, com os
mesarios da freguezia das Chagas, com os verbos, com as hostias, com as
luvas, com os breviarios, com a syntaxe, com o imposto, com o Senhor dos
Passos, com o diccionario, com o codigo e com o senso commum. Nada
escapa á dissencia fundamental d'estes escriptores terriveis. Estão em
combate acerrimo com tudo. E com o resto estão em contradicção. São o
_cliché_ negativo do mesmo estado mental de que o governo é a estampa
vista em sentido inverso. São o estado posto de cabeça para baixo a
andar nas mãos em vez de andar nos pés. São o conselheiro Arrobas virado
pelo avesso, e invertido, com uma concavidade concernente a cada bossa,
e com uma protuberancia relativa a cada buraco da sua natureza.

Os insubmissos, desagremiados da massa, são dez ou doze solitarios
apenas, que reagem ás correntes do movimento geral por meio d'algumas
razões experimentaes postas em verso ou em prosa, e reduzidas a algumas
paginas de poema, de romance ou d'historia.

A honesta sinceridade d'estes escriptores, geralmente confundida com um
cynismo de _pose_, com um charlatanismo de originalidade, é antipathica
ao publico, que todavia os lê com uma certa avidez, impellido pela
curiosidade que atrae a multidão gulosa do anormal para os livros
d'elles, assim como para as barracas de feira em que se mostram vitellas
com duas cabeças, das quaes uma de papelão; e meninas gordas com seis
barrigas, todas postiças.

Os domesticados representam o elemento inoffensivo e ameno das lettras a
que chamaremos simplesmente _burguezas_ para as distinguirmos por uma
_nuance_ das lettras consagradas, a que chamamos já _officiaes_.

Os escriptores d'esta classe acceitam docilmente tudo quanto se acha em
vigor no regimen vigente para não terem o incommodo de inventar nem o
desgosto de se comprometterem com as familias particulares ou com os
poderes publicos por meio de novas exhibições, aliás inuteis para a
marcha regular do intellecto lusitano atravez dos meandros macadamisados
da Baixa.

Elles vão para as glorias da posteridade, assim como os gatos para as
aventuras de telhado,--pelo cheiro uns dos outros. Quando lhes não
fareja outro que tivesse passado primeiro, hesitam em sua marcha,
tremem-lhes as pernas, e acocoram.

Teem convicções profundas ácerca de tudo aquillo de que estavam
profundamente convencidos os seus maiores, e a sua vocação, irresistivel
e indomavel, é para fazer tudo o que já está feito.

Em religião são catholicos apostolicos romanos; em politica são
monarchicos liberaes; em philosophia são ecleticos da escola do grande
Cousin; em litteratura são pelos modelos classicos modificados pelo
estro dos grandes mestres pacatos da geração moderna, Mendes Leal,
Thomaz Ribeiro, Possydonio da Silva e Brito Aranha; em _toilette_ são
pelo afamado Keil; em theatro pela grande Emilia das Neves; e em
culinaria pela lampreia d'ovos de fio com cidrão.

Teem ás vezes graça, mas sempre fina, de luva branca, propria de
cavalheiro culto, com uso de sala, dentro do campo da civilidade e nos
limites da carta. Ha no vocabulario innumeras palavras, aliás
perfeitamente boas e honradas, que elles morreriam mil vezes antes que
ousassem escrevel-as. Por exemplo: Com relação ao logar em que a
hypocrisia costuma receber os pontapés que o bom senso lhe applica,
nenhum d'esses escriptores domesticados diria com simplicidade
casta--_o trazeiro_. Porquê? Porque, pela muita pratica de salão que
elles teem, sabem perfeitamente que as «madamas», ao ouvirem um tal
vocabulo, immediatamente se retiram fugazes das assembleias tirando por
conclusão do emprego d'esse substantivo masculino que o cavalheiro é
cynico.

Em compensação ha outros termos--os termos proprios de sociedade, que
elles nunca empregam sem os ampliarem por meio de adminiculos
decorativos. Quando escrevem _natal_, acrescentam sempre--_do
Redemptor_, e para _cabeças_ dizem as _louras cabeças_, sempre que ellas
sejam de creança; sendo de vitella, ainda que egualmente louras,
retiram-lhes o adjectivo para o não sevandijarem com os contactos
incivis do gado vacum.

O publico derrete de justo enthusiasmo por estes escriptores mansos,
que, á similhança dos elephantes ensinados, estendem a tromba para o
regaço das familias, em procura do biscoito caseiro com que a gratidão
humana folga sempre de remunerar os carinhos dos pachidermes doceis.

Os nomes d'elles nunca se imprimem senão enrabichados a um epitheto
obsequioso: o _sympathico_, o _festejado_, o _modesto_, o _cordato_, o
_bom_. Apesar do quê, pouca gente os lê, por que esses bons rapazes de
profissão, modestos por modo de vida, para o fim de evitarem o conflicto
de opiniões contrarias, embiocam-se frequentemente de mais n'um genero
de litteratura abstracta ou de litteratura retrospectiva, que é a mais
anodina, a mais sôrna, a mais bestificante coisa por meio da qual um
escriptor pode actuar sobre o somno dos seus contemporaneos.

Se são profundas e insanaveis as nossas dissidencias religiosas, e as
nossas dissidencias politicas, são ainda mais insanaveis e mais
profundas as nossas dissidencias estheticas.

Estamos tão separados uns dos outros pelas nossas convicções e pelas
nossas crenças como estamos separados pelos nossos gostos. Os mesmos
artistas, os nossos poetas, os nossos musicos, os nossos pintores
detestam-se reciprocamente por odios figadaes, de folhetim e de escola.
Estes odios, mal reprimidos nas conveniencias mutuas da camaradagem,
rebentam de momento a momento, periodicamente, em brigas renhedissimas,
que são um dos mais decisivos symptomas da decadencia e da dissolução do
meio intellectual. Temos d'anno em anno como outras tantas vegetações
do charco a _questão dos poetas_, a _questão aos jornalistas_, a
_questão dos pintores_, a _questão dos musicos._

Quando alguma d'essas questões se faz esperar no tempo dado á sua
periodicidade, o burguez em espectativa exclama;--A canalha d'esta vez
ainda se não pegou; é que está mais cara a vinhaça!

       *       *       *       *       *

De cima abaixo, como vêem,--na religião, na politica, na moral, na
arte--esphacelamento geral. For qualquer lado que se lhe pegue, a
sociedade portugueza deixa um pedaço na mão que lhe loca. Tudo se
desgruda, tudo se esbandalha no aggregado portuguez a que falta a
cohesão da ideia portugueza.

N'esta superfície sociai, inconsistente, mole, despolida, em que nem um
só traço nitido adhere, só as nodoas se embebem, alastram e aprofundam
como gotas d'oleo n'um papel passento.

No espirito publico, inerte e extagnado como agua apodrecida no fundo de
um poço, cada immoralidade que cae dentro abre circulos concentricos de
vibrações mephiticas que se alargam do ponto ferido até á circumferencía
do repositório.

De cada vez que o Terreiro do Paço annuncia que toma de aluguel mais uma
consciencia, o paiz todo, até á raia, põe escriptos.

       *       *       *       *       *

Foi em face da situação cujas linhas mais proeminentes acabamos de
esboçar que alguns homens de extranha boa fé se lembraram de promover ha
dois annos a celebração nacional do centenario de Luiz de Camões.--_E'a
prova do espelho posto á bocca do moribundo para o fim de vereficar se
elle ainda respira ou não_--disseram então esses homens ingenuos. E, sem
receio do terrivel sentido ironico que se poderia ligar ás suas palavras
antigas, elles tomaram arrojadamente esta divisa:--_Vereis amor da
patria não movido de premio vil_.

Para se julgar imparcialmente da acção das _Farpas_ nos suceessos que
narramos, é conveniente recordar uma pequena particularidade: O
individuo que propoz, redigiu, explicou e defendeu perante a assembleia
dos escriptores de Lisboa o programma do cortejo civico do jubileu
camoneano, tal como elle se realisou depois de officialmente amputado,
no dia 10 de junho de 1880, foi precisamente o mesmo bohemio que escreve
eslas linhas.

Este simples detalhe absolutamente insignificante e inutil á historia do
centenario, é importante para a historia das _Farpas_. Por isso ellas,
ainda que immodestamente, o registam.

Foi essa a primeira vez--será provavelmente a ultima--que a redacção
d'estes pequenos livros exorbitou da esphera especulativa da critica
para a esphera da acção, levando directamente á rua uma ideia.

Se algum dia a moralidade das _Farpas_ houver de ser julgada na opinião,
este facto será fundamental no processo, por que é pelo accordo ou pelo
desaccordo entre as ideias litterarias e os actos publicos de um
escriptor que este deve ser definido para a absolvição ou para o
desprezo dos seus similhantes.

As _Farpas_ produziam gracejos periodicos desde o mez de maio de 1871.
Nove annos de ironia persistente prostram de tristeza o temperamento
mais solido. Rir de tudo ou de quasi tudo aquillo que todos os outros
respeitam e veneram é fazer da alegria um exilio e da gargalhada um
carcere.

Não ser de nenhuma seita e de nenhum partido, de nenhum club, de nenhum
gremio, de nenhum botequim e de nenhum estanco, não ter escola, nem
irmandade, nem roda, nem correligionarios, nem companheiros, nem
mestres, nem discipulos, nem adherentes, nem sequazes, nem amigos, é
possuir a liberdade, é ter por amante a rude musa _aux fortes mamelles
et aux durs appas_, cujo beijo clandestino e ardente põe no coração a
marca dos fortes mas requeima nos beiços o riso dos engraçados.

Alem da grande e amada tristeza, que já S. Paulo lastimava,--a tristeza
de ser só,--na alma das _Farpas_ havia ainda, a melancolia da descrença
sobre a efficacia dos seus meios artisticos, empregados para pôr
verdades em evidencia.

Onde ha uma corporação que se intitula _União e capricho_, onde ha outra
que se chama a _Incrivel Almadense_, onde ha _Os prussianos do Seixal_ e
a _A'vante incrivel canecense_, onde existe a _Academia dos Fenians_ e a
sociedade de soccorros denominada _Parturiente funebre familiar_, onde
um collegio de educação põe na taboleta _Novo methodo intuitivo_, onde
um jornal de noticias toma o titulo de _Santo Antonio de Lisboa_, onde
uma camara municipal propõe a substituição do nome de _Aldeia Galega_
pelo de _Linda Aurora do Tejo_, onde uma loja de bebidas, alliando á
beberoca barata o mais illustre nome da poesia contemporanea, se
intitula _A Casa Garrett_, onde todas estas coisas se dão, assim como se
dá a um homem o titulo de _Visconde do Marmeleiro,_ sem espanto, sem
estranhesa, sem sobresalto, o povo perdeu a noção do ridiculo, e não ha
já ironia que lhe faça mossa. As agudezas da arte não o penetram. É
preciso uma broca.

As _Farpas_ necessitavam de descançar movendo-se, vindo á praça publica,
indagando se havia para ellas um logar entre a multidão, mostrando-se
uma vez participantes no movimento do seu tempo.

Quando a commissão dos escriptores reunida para celebrar o centenario,
publicou o programma que nos encarregou de fazer, a cidade inteira riu
durante trez dias com trez noites.

--É a cerração da velha ou é o enterro do bacalhau?--perguntava-se aos
chás de familia, nas casas particulares, nos botequins, nos paços dos
nossos reis e nas estalagens.

A nação inteira, congrassada no preito de uma ideia commum, representada
n'uma enorme procissão civica, com os andores dos santos substituidos
pelos symbolos e pelos tropheus do trabalho e da intelligencia do homem;
reunidas pelo abraço da solidariedade patriotica todas as classes
sociaes, que nunca até esse dia se haviam encontrado juntas em torno do
mesmo interesse commum e da mesma sympathia reciproca; os estandartes de
todas as profissões e os pendões de todos os partidos, os mais
radicalmente oppostos e adversos, baixando-se juntos pelo mesmo impulso
perante a honra e a gloria da patria; o rei á frente entre os
socialistas mais intransigentes e entre os republicanos mais vermelhos,
os cortezões e os officiaes d'officio, os sabios e os cavadores
d'enchada, os juizes com as suas becas, os generaes com os seus
uniformes, os doutores com os seus capellos, os campinos com os seus
cavallos á redea, os pescadores, de pernas nuas e pés descalsos com uma
vela em triumpho, os pastores, de tamancos com calções de pelle de
cabra, abordoados aos cajados, os soldados com as bandeiras e as
espingardas coroadas d'oliveira, os cidadãos, todos emfim, fraternisando
n'um sentimento e n'uma ideia, era effectivamente o espectaculo mais
proprio para fazer cocegas debaixo dos braças á nação e para desengonsar
pela gargalhada as mandibulas do publico.

Apesar d'isso porem o programma, depois de devidamente modificado pelo
governo, como o pedia o decoro da corôa e a dignidade do exercito,
cumpriu-se, e a procissão civica não foi inteiramente o _enterro do
bacalhau_, como se predizia: foi apenas o _enterro da monarchia_.

Nenhum outro facto a não ser a apotheose de Luiz de Camões, seria
possivel invocar como tregoa das divergencias que nos desunem, para
cohesão social do espirito portuguez.

Em nenhuma outra, litteratura existe um poeta cuja personalidade se ache
como a de Camões tão profundamente e tão indissoluvelmente ligada ao
genio, á historia e ao destino do seu paiz. Os Luziadas são a patria
portugueza affirmada na forma indestructivel e sagrada da arte, são a
nacionalidade de um povo manifesta e comprovada por todos os seus
direitos á vida historica, direitos immortalisados pela uncção de uma
poesia eterna.

A celebração solemne do centenario de um tal artista podia ser para a
sociedade portugueza o que a leitura dos Luziadas foi para os grandes
cidadãos nas crises de decadencia nacional,--um estimulo supremo de
energia e de revivescencia patriotica.

Repellindo com uma bossalidade grosseira, por meio de uma estupidez
verdadeiramente cornea, esta occasião unica de revincular a tradição
historica da alliança do rei com o povo, o governo monarchico lavrou o
documento mais formal da sua incompetencia organica para continuar a
dirigir os destinos do paiz. Este simples facto demonstra do modo mais
evidente que as fontes do systema representativo que presentemente nos
rege estão profundamente viciadas e insanavelmente corrompidas.

Um ministerio que procede de tal forma, em opposição radical com o
espirito da nação, e que depois disso continua a manter-se no poder com
o beneplacito da camara, constitue a prova irrefutavel de que a
soberania nacional é uma pura farça dentro de tal regimen, que a
delegação dos poderes é uma mentira e que o chamado governo
constitucional é uma fraude torpe, uma desfarçada usurpação hypocrita e
cobarde.

Ha poucos dias ainda um deputado proferiu em pleno parlamento a seguinte
pbrase:

_A camara aguarda as determinações do governo_. Este eloquente e
arrojado tribuno do povo fallou bem. _Multa in paucis_. Toda a
philosophia da representação nacional portugueza no presente momento
historico se encerra n'essa synthese sublime e immorredoura:--«A camara
aguarda as determinações do governo.»

A subserviencia do soberano ao dominio de espiritos tão garantidamente
nulos e tão perfeitamente chatos como os que o aconselharam no
centenario de Camões prova-nos que o cerebro da dynastia se acha tocado
pelas fatalidades atavicas inherentes a um organismo em torno de cuja
massa encephalica gira sangue do snr D. João VI.

       *       *       *       *       *

Das manifestações publicas a que deu origem o centenario de Camões
parecia poder-se deduzir:

_Primeiro_--Que o systema monarchico representativo vigente, corrompido
pela viciação do suffragio, deixando de representar a soberania da
nação, perdera por esse facto a rasão de ser,--o que de resto elle
proprio mostrava comprehender, principiando a brilhar pela ausência além
do muito que já brilhava pela inanidade.

_Segundo_--Que o espirito do publico em Portugal estava adeante das
instituições e que tinha portanto de as substituir ou de as despresar.

_Terceiro_--Que o principio de associação, pelo desenvolvimento enorme
que attingira no decurso dos ultimos annos, teria de ser tomado por base
de toda a reforma por que houvesse de passar no paiz a ordem politica
assim como a ordem social e a ordem economica.

       *       *       *       *       *

Admittidas essas hypotheses, o progresso consistiria:

_Primeiro_--Em minar systematicamente as instituições, approximando
d'ellas subtilmente todos os reagentes que pudessem contribuir para as
dissolver mais depressa: ideias, argumentos, logica, sabão e verdade.

_Segundo_---Em educar o espirito publico por meio de bons livros e de
bons jornaes, systematisando as ideias, coordenando as aspirações,
elevando o gosto, e transformando assim a pouco e pouco a concorrencia
de actividades desunidas em convergencia de forças combinadas.

_Terceiro_--Em confederar as corporações de todos os trabalhadores
associados---duzentos mil homens, mandando em cada anno os seus
deputados a um congresso livre em que se defendessem os deveres das
classes trabalhadoras, os seus direitos, os seus interesses, a sua
situação perante a continuidade historica e perante a solidariedade
social, o estado das suas relações economicas e moraes com a politica
interior e com a politica exterior do paiz, fundamentando assim os
alicerces de um novo regimen de liberdade efficiente, contraposto ao
velho regimen de auctoridade inutil,--especie de iniciação pacifica e
fecunda para o advento de uma verdadeira democracia, para um systema de
_self-governement_ ou de federalismo economico á Proudhon.

       *       *       *       *       *

Que é que se tem feito no espaço de dois annos decorridos desde o
centenario até hoje para o fim de encaminhar as ideias no sentido
d'essas soluções?

       *       *       *       *       *

Fundou-se a associação dos escriptores com trezentos e cincoenta
associados, dos quaes trezentos e quarenta, pelo menos, não são
escriptores, porque se não póde com precisão technica dar esse nome aos
individuos que por meio das letras não cultivam uma sciencia, uma
philosophia ou uma arte. As letras só de per si são puramente um meio.
Todo o pretendido escriptor que não tem dentro um sabio, um philosopho
ou um artista, não é bem um escriptor, é um escrevente, e isto ainda na
hypothese de que tenha orthographia e boa lettra. Faltando-lhe esses
dois predicados nem escrevente é, é um esvasiador de tinteiros em prelos
e de prelos em papel de impressão, o que verdadeiramente se deve chamar
um _troca-tintas,_ apenas.

N'esta associação dos escriptores começou um socio, professor de
instrucção primaria, por annunciar um _curso de leitura para
analphabetos._ Como epigramma a si mesmos devemos confessar que é este o
mais espirituoso que os litteratos reunidos teem botado aos quatro
ventos do seculo.

Os snrs Consiglieri Pedroso, Adolpho Coelho e Joaquim de Vasconcellos
teem feito na sociedade dos escriptores prelecções importantes sobre
historia universal, sobre linguistica e sobre critica d'arte. Cremos
porém que estes bellos e desinteressados serviços á sciencia tanto
poderiam ser prestados por aquelles cavalheiros na sala da associção dos
escriptores como na sociedade _Luz e Caridade_ ou na de _Maria Pia,
Protectora dos Portuguezes,_--nova coisa que os do Porto abriram agora á
gargalhada do mundo e á necessidade que os protegidos sentiam n'aquella
cidade de jogar a bisca juntos sob a egide d'uma mesma princeza.

Como corpo collectivo a associação dos escriptores tem evitado toda a
especie de contacto com o movimento social ou com os interesses
intellectuaes da classe por meio de um melindre de sensitiva e de uma
pudicicia de vestal velha.

Na qualidade de corporação registrada no governo civil e com estatutos
approvados pelo governo, os escriptores teem apenas produzido
luminarias, dois jantares, um passeio fluvial e algumas assembleias
geraes.

Em vista de tal esterilidade, os dramaturgos, bem avisados, separaram-se
ultimamente da corporação e fizeram panella á parte.

Estreitados por este novo vinculo e aguilhoados em suas imaginações pela
paixão ardente das artes scenicas, os escriptores dramaticos não
principiaram ainda a primeira peça feita em collaboração ou
separadamente, mas vão já no quarto ou quinto jantar mensal comido de
sucia. Bom appetite para o resto de carreira tão briosamente encetada é
o que do fundo d'alma desejamos a estes espirituosos filhos de
Melpomone.

       *       *       *       *       *

Emquanto a livros destinados a lançar alguma luz sobre o atoleiro tem
havido pouco tempo para os fazer. O snr Antonio de Serpa foi o que
projectou mais clarão. Este notavel estadista fez o favor de nos revelar
na sua ultima obra que um ministro em Portugal não tem tempo para tratar
das questões. Todo o dia de um ministro é pequeno para parlamentar e
para ouvir requerentes. Ainda bem que por este lado ao menos está o
negocio liquidado. O livro do snr Antonio de Serpa, que foi ministro por
muitos annos não deixa o menor vislumbre de incerteza sobre esse ponto.

Ahi temos o portico da publica governação com os seus ministros
dentro.--Truz truz truz!

--Quem é?

--Está em casa o governo?

--Que lhe hade querer? Se é peditorio, pode entrar; se traz broblema, s.
ex.ª sahiu n'este mesmissimo instante para palacio.

Ficamos sabendo, em summa, e de uma bôa vez para sempre, que o governo
se não ocupa das questões. E' inutil suggerir-lh'as, propôr-lh'as,
explicar-lh'as, amenisar-lh'as, desfarçar-lh'as, impôr-lh'as,
estender-lh'as na ponta de um cajado, ou mandar-lh'as a casa n'uma
travessa com ramos de salsa á roda e com limão em cima. O governo o que
não tem é tempo. Bem! não se lhe falla mais n'isso. O tudo é haver quem
explique as coisas!

Varios jornaes com tendencias mais ou menos revolucionarias appareceram,
desappareceram ou permaneceram depois que o centenario de Camões se
celebrou, mas em todos esses periodicos tem feito reconhecida falta
alguem que serenamente nos dê dos phenomenos do tempo presente
explicações tão cabaes como aquellas em que timbra o snr Antonio de
Serpa.

       *       *       *       *       *

Resta-nos do movimento emmergente da celebração do jubileu camoneano o
congresso das associações confederadas.

Para julgarmos do estado das ideias que vão ser debatidas n'esse
parlamento, cuja realisação cumpre confessar que se deve principalmente
á iniciativa e á tenacidade de um unico homem, o snr Theophilo Braga,
para apreciarmos d'antemão a orientação mental e a systematisação de
principios que as diferentes classes sociaes terão de revelar na
reunião da dieta cooperativa a que nos referimos, a festa do centenario
do marquez de Pombal, ultimamente celebrada, figura-se-nos ser um
symptoma culminante e preciossimo.

Antes porem de examinarmos como foi comprehendida pelo publico a
importancia historica do marquez de Pombal sobre a civilisação
portugueza, temos de indicar a traços largos a physionomia do heroe
canonisado pelo enthusiasmo popular.

       *       *       *       *       *

O marquez de Pombal é um estadista, um governante,--o que quer dizer--a
mais pequena das coisas que um homem grande pode ser.

Buckle...--pois que é bom citar auctordades extranbas sempre
que se deseja adduzir opiniões desinteressadas e argumentos
insuspeitos--Buckle, um dos primeiros escriptores modernos que fundou em
bases positivas as leis da civilisação e do progresso, affirma, perante
os factos evidentes superiores a toda a controversia, que todos os
interesses da sociedade foram sempre na Inglaterra gravemente
compromettidos por todas as tentativas que os legisladores fizeram para
os auxiliar. Nenhuma grande reforma, quer legislativa quer executiva,
foi jamais em paiz algum a obra d'aquelles que governam. Os governos
constituidos não podem fazer em bem do progresso senão uma coisa:
dar-lhe possibilidade. Os unicos serviços que um governo pode prestar á
civilisação reduzem-se a manter a ordem, a impedir os fortes de opprimir
os fracos e a tomar algumas precauções para o fim de assegurar a saude
geral. Todo o governo que traspõe estes limites ultrapassa o mandato e é
criminoso perante a historia.--Não somos nós que o dizemos é Bukle na
sua _Introducção á historia da civilisaçâo em Inglaterra_.

Guizot, apesar de todo o seu doutrinarismo, confessa que é
effectivamente um erro grosseiro o acreditar no poder soberano da
maquina politica.

Bastiat diz: O Estado não é mais que uma grande ficção atravez da qual
toda a gente se exforça por viver á custa de toda a gente.

Bagehot, o illustre critico que mais exactamente soube adaptar as leis
scientificas da evolução biologica aos estudos sociaes, pensa que a
liberdade «é o poder que fortifica e desenvolve, é a luz e o calor do
mundo politico. Se algum cesarismo conseguiu jamais patentear alguma
originalidade de espirito, proveio isso de que soube appropriar-se dos
resultados obtidos pela liberdade ou em tempos passados ou em paizes
visinhos. Mas ainda em taes casos essa originalidade é frágil e pouco
duradoura, e desaparece sempre dentro de um breve espaço de tempo,
depois de experimentada por uma ou duas gerações, exactamente no momento
em que principiaria a ser necessaria.»

Herbert Spencer explica pela acção physica das martelladas sobre a bossa
de uma chapa de ferro os effeitos produzidos sobre o complexo aggregado
social por essa força accidental que se chama o governo. Para achatar a
empola na chapa de ferro o empyrismo bate-lhe em cima com um martello: o
resultado correspondente a este esforço é que a bolha recalcada para
baixo cada vez incha mais para cima, e a lamina não somente se torna
mais barriguda do que estava no ponto defeituoso mas contrae ainda
defeitos novos e imprevistos começando a arrebitar pelas extremidades.
E' como a d'este martello a acção dos governos sobre a reformação das
sociedades.

Referindo-se á inutilidade dos homens que governam com relação aos
destinos dos que são governados, o mesmo Herbert Spencer escreve:

«Adão Smith ao canto do seu fogão impoz ao mundo muito mais
consideraveis mudanças do que qualquer primeiro ministro. Um general
Thompson, que forja as armas necessarias para a guerra contra a lei dos
cereaes, um Cobden e um Bright, que as aperfeiçoam e que se servem
d'ellas, contribuem mais para a civilisaçãn do que qualquer
porta-sceptro. O facto pode desagradar aos estadistas, mas é
indiscutivel. Calculem-se todos os resultados adquiridos já pelo livre
cambio, juntem-se-lhes os resultados muito maiores ainda que elle nos
promette, não somente a nos, mas a todas as nações que adoptarem o nosso
principio, e ver-se-ha que a revolução emprehendida por esses homens
excede em grandeza tudo o que jamais fez um potentado. O snr Carlyle
sabe-o bem: aquelles que preparam verdades novas e que as ensinam aos
seus similhantes são em nossos dias os verdadeiros poderes, os
_legisladores não reconhecidos_, os unicos reis. Os que se sentam nos
thronos e os que compõem os gabinetes--toda a gente o sabe--são
simplesmente os servos d'aquelles homens.»

Muitos outros exemplos se poderiam acrescentar aos que são referidos por
Spencer.

Os mais complicados problemas sociaes, como o do augmento da riqueza, e
o do augmento dos braços, são resolvidos no fundo de uma officina por
simples trabalhadores.

O metallurgista Bessemer por meio da fabricação do aço dota as nações
civilisadas com uma economia de dinheiro que o _Scientific American_
calcula sobre bases precisas, somente com relação á producção do aço
bruto, na quantia de noventa mil contos por anno. Tomando em conta o
excesso de duração, adquirido nos artefactos pela substituição do ferro
pelo aço, e devido á invenção de Bessemer, a economia realisada pela Grã
Bretanha unicamente, na duração dos rails dos caminhos de ferro,
eleva-se a um rendimento de quinhentos e sessenta e cinco mil contos.
Qual é a medida governativa que jamais produziu um tal resultado?

Em 1781, no mesmo anno em que o marquez de Pombal exclamava: _Agora é
que Portugal vae á vela_, Watt descobria a applicação do vapor. Decorreu
apenas um seculo depois da invenção do vapor applicado ao movimento de
uma arvore de rotação, e as ultimas estatiscas do snr Bresca mostramnos
que, somente em França, a força productiva inventada por Watt se acha
representada por um milhão e cem mil cavallos de vapor. Calculada em
doze homens e meio a paridade de força de cada cavallo de vapor, temos
quatorze milhões d'homens correspondentes ao milhão e cem mil cavallos.
Esses vintes e oito milhões de braços d'aço, trabalhando mais do que
outros tantos milhões de braços humanos, auguentam a força muscular da
França, pela dadiva de um simples e modesto operario, em quantidade
muito maior do que a força destruida nas guerras pelo imperador
Napoleão.

O problema scientifico, n'este momento em resolução, da transmissão da
força pelos conductos pneumaticos e pelos fios electricos; põe a
catarata do Niagara ao serviço do trabalho universal, e segundo uma
memoria do snr Siemens apresentada recentemente ao _Iron and Steele
Institute_, só a força do Niagara é superior á de todo o carvão que hoje
se queima no globo, se todo elle fosse exclusivamente empregado em
produzir trabalho.

Os homens que mais reconhecida e decisiva influencia teem tido nas
reformas economicas e sociaes do nosso tempo não são nunca os homens
d'estado, mas sim os homens d'estudo, simples jornalistas como João
Baptista Say e Carlos Dunoyer, um obscuro cirurgião como Quesnay, um
modesto professor como Adão Smith.

Aquillo que se chama propriamente um _governante_ não é mais que o resto
anachronico de uma velha liturgia hoje extincta. O vulto grosseiro
d'esse dictador que se chamou Sebastião José de Carvalho, levantado em
triumpho como um symbolo de progresso e de liberdade, com a sua
cabelleira de rabicho, com os seus autos do Tribunal da Inconfidencia e
os seus cadernos da Intendencia da Policia debaixo dos braços, faz-nos o
effeito de um velho monstro paleontologico, desenterrado das florestas
carboniferas e reposto, com palha dentro, no meio do espanto da flora e
da fauna do mundo moderno.

Que significa uma similhante festa dos filhos da liberdade ao
representante do despotismo? Que sentido absurdo se pode ligar no fim do
seculo XIX a esta nova e inesperada _Declaração dos direitos do
governo_, depois que a Revolução Franceza nos fez presente a todos nós
da _Declaração dos direitos do homem_?

Desde 1789 até hoje todos os esforços dos povos cultos teem tendido
precisamente a enterrar o principio que nós resuscitamos com a apotheose
solemne de um estadista. Todo o immenso trabalho da reconstituição
social durante este seculo tem consistido para todos os homens livres em
negar aquillo que a memoria do marquez de Pombal affirma, em eliminar a
acção do estado sobre os actos dos individuos, reivindicando sobre os
restos das velhas tyrannias auctoritarias todas as liberdades
proclamadas pela Revolução, a liberdade de imprensa, a liberdade de
cultos, a liberdade de ensino, a liberdade de associação, a liberdade de
reunião, a liberdade de commercio, a liberdade de industria, a liberdade
de trabalho.

A personalidade de um estadista da escola do marquez de Pombal
representa a negação expressa de todas essas liberdades, representa a
revivescencia do antigo despotismo monarchico, a coerção do homem sobre
o homem, quando o que todos nós pedimos desde Danton para cá, em nome da
dignidade da especie, rehabilitada pela sciencia na posse de si mesma, é
o livre exercicio da acção do homem sobre a natureza.

Os unicos povos do globo que ainda hoje acceitam, não diremos com os
regosijos de um triumpho, mas simplesmente sem discussão, sem protesto
ou sem revolta, o principio da auctoridade representada pelo arbitrio de
um individuo, são os selvagens; são os aschantis, cujo rei, herdeiro
unico e forçado de todos os seus subditos, tem 3:333 mulheres e um
numero proporcionado de filhos, com o direito de saque sobre toda a
communidade; são os kafungas do Valle do Niger, onde ninguem se
approxima do soberano senão com as mãos no chão e a cabeça arrastada na
lama; são os abyssinios, que nascem todos escravos do rei seu dono: são
os malanesios, cujo chefe tem o tratamento de _Deus_; são finalmente os
cafres, os botocudos, os topinambas, os patangonios e os esquimaus.

Na Europa já não ha d'isso.

Com a emancipação intelectual dos governados acabou o prestigio dos
governantes.

A Hispanha, a Italia, a França, a Inglaterra, a Allemanha celebram com
religiosa piedade filial os centenarios dos seus poetas, dos seus
artistas, dos seus philosophos, dos seus paes espirituaes, dos seus
bemfeitores. Em região nenhuma do mundo arroteada pela civilisação se
celebra o culto do estadista, agente ephemero de estados sociaes
transitorios, especie sempre brutal se triumpha das resistencias, sempre
impura se se concilia com ellas, engenho destinado a condensar poder e a
segregar leis, tão passageiras como o apparelho de que procedem, e todas
más sempre que não teem por objecto a revogação d'outras que as
precederam.

A sciencia anthropologica confirma inteiramente o instincto popular no
seu desdem pelas faculdades dos chamados homens d'estado. O snr
Wechniakoff, emprehendendo recentemente n'uma obra de anthropologia
psychologica a historia natural dos _grandes homens_, divide estes em
tres grupos: os monotypicos, os polytipicos e os philosophos. No
primeiro grupo entram as altas intelligencias monocordes como as dos
poetas, dos pintores, dos musicos, dos engenheiros, dos astronomos, etc.
O segundo grupo compõe-se dos espiritos de natureza multipla cuja
actividade se exerce nos trabalhos mais variados, cujos resultados elles
são todavia impotentes para coordenar em conjuncto. Pertencem a esta
familia Haller, poeta, naturalista, physiologista, auctor de 576 obras e
de 12:000 artigos bibliographicos; Humboldt, que aprendeu philologia
aos setenta annos e publicou a ultima parte do _Cosmos_ dos oitenta e um
aos oitenta e oito annos de idade; Bernardo Palissy, Plater, Alberti. O
terceiro grupo, subdividido em grupo philosophico permanente e grupo
philosophico transitorio, consta na primeira parte de individuos como
Auguste Comte, Leibnitz, Lagrange, e na segunda de Newton, Grove, Daniel
Bernouilli, etc.

Em nenhuma d'essas categorias se comprehendem os estadistas, porque a
anthropologia psychologica não acceita como grandes homens senão os
creadôres da arte, da sciencia ou da philosophia.

       *       *       *       *       *

Determinada a especie, passemos agora a examinar o individuo.

Durante o seculo XVIII--diz Michel Chevalier--vemos successivamente
passar na direcção dos negocios na maior parte dos Estados, ou seja como
rei ou como primeiro ministro, um reformador applicado a destruir a
supremacia da nobresa e do clero, com o fundamento de que a nobresa
tendia a attribuir-se uma parte das prerogativas do governo em
detrimento da realesa e por vantagem propria, emquanto o clero aspirava
a dirigir a sociedade ficando elle, unicamente sujeito a um soberano
extrangeiro que com uma triplice corôa na cabeça se considerava o rei
dos reis. N'este presupposto era como senha dada e geralmente obedecida
suscitar por meios mais ou menos artificiaes, á falta d'outros mais
convenientemente entendidos e mais efficazes, o desenvolvimento da
agricultura, do commercio e das manufacturas, afim de augmentar a
riqueza dos povos e os recursos do Estado, de que o principe dispunha
arbitrariamente. Parecia util espalhar a instrucção, porque ella
contribue para formar uma opinião publica que pode contrabalançar a
auctoridade do clero sobre os espiritos. Quanto ao mechanismo do governo
punha-se completamente de parte a liberdade. A divisa era: O estado é o
principe. Todos o pensavam com quanto o não proclamassem como Luiz XIV.
Esta feição geral encontra-se em graus diversos, sob formas differentes
e com accessorios appropriados aos logares e ás circumstancias em varios
estados durante uma ou outra parte do seculo XVIII. No norte essa
expressão é brilhante na côrte do grande Frederico e da grande
Catharina; no centro da Europa na côrte de José II. No sul apparece em
Pombal, e, em grau menor, nos dois hispanhoes rivaes um do outro
Campomanes e Florida Blanca.

D'esta exposição tão clara do systema geral de reformas governativas na
Europa durante a primeira metade do seculo passado, exposição devida a
uma auctoridade tão insuspeita como a do economista Michel Chevelier,
deduz-se immediatamente que o talento politico do marquez de Pombal
carece de originalidade.

Esta circunstancia destroe em grande parte o intuito patriotico que
geralmente se lhe alttribue de pretender, n'um ponto de vista nacional,
reformar e reconstituir a sociedade portugueza dissolvida por duzentos
annos de despotismo monarchico e catholico. O arrojado ministro do rei
D. José era apenas um reformador de segunda mão. Como revolucionario a
sua carreira é de pé posto no circulo feito em torno das realezas
estremecidas por todos os dictadores que se haviam seguido a Richelieu
no governo das monarchias modernas.

As reformas de Pombal não são o producto puro de um talento pessoal mas
sim os ultimos effeitos de uma corrente contagiosa de ideias, ao tempo
d'elle quasi todas já envelhecidas e refutadas.

O que elle representa na civilisação não é a personificação de um genio
mas sim o advento de um novo poder, que o enfraquecimento das raças
reinantes tornava necessario, que então apparecia pela primeira vez e
que Auguste Comte denominou o _poder ministerial._

Este facto exprime um consideravel progresso politico, de que Pombal é a
funcção. O estabelecimento do poder ministerial é a reversão, ao valor,
da auctoridade até ahi adstricta ao nascimento.

Antes de assumir a dictadura em que o investiu o rei D. José, Pombal
viajara, residira como embaixador na Inglaterra e na Austria, convivera
com homens de espirito iniciados nas ideias da philosophia franceza, mas
nem da revolução intellectual da França nem da revolução economica da
Inglaterra elle comprehendeu o mechanismo. Unicamente os processos da
politica austriaca, de uma meticulosidade italiana e de um rigor allemão
o penetraram inteiramente.

A imperatriz Maria Thereza, que envolvida nos mais altos negocios da
politica internacional europeia funda _commissões de_ _castidade_ para
salvaguardar as esposas das infidelidades maritaes, sem que todavia isso
a empeça de escrever epistolas ternas a Madame de Pompadour, amante de
Luiz XV, dá bem o modelo da politica pombalina, policiando tudo no reino
desde os primeiros segredos da diplomacia até aos ultimos mysterios das
alcovas.

Na côrte de Vienna encontrou o marquez de Pombal, em elaboração, as
ideias que pouco depois deviam constituir o programma politico do
imperador José II, cuja impetuosidade de caracter Maria Thereza
procurara conter em quanto viva e cujos projectos de reforma eram tão
similhantes áquelles que o marquez realisou em parte como primeiro
ministro na côrte de Lisboa.

Abolição da escravidão, do direito de primogenitura, dos dizimos, da
caça privilegiada; reconhecimento dos judeus e dos protestantes como
cidadãos; todo o cidadão considerado capaz de alcançar qualquer emprego;
suppressão dos conventos inuteis transformados em hospitaes e em
estabelecimentos de instrucção; desenvolvimento das universidades e das
academias; protecção das pautas á industria nacional: tal é a parte do
programma de José II que o ministro portuguez procurou pôr em execução
no seu paiz.

Mas José II ia um pouco mais longe, e a declaração completa da sua
politica ao subir ao throno, pouco mais ou menos pelo mesmo tempo em que
Pombal cahia, mostra-nos que este não aprendera inteiramente a lição que
as suas convivencias e os suas ligações austriacas lhe haviam
ministrado.

O imperador José II declarou que _reinar sobre homens livres era a sua
unica paixão como rei_. Pombal, preoccupara-se pouco, com a liberdade
conferida aos cidadãos que governara. Esta differença fundamental entre
o reformador austriaco e o reformador portuguez reflecte-se na obra de
cada um por meio dos effeitos mais expressivos.

Assim, emquanto o marqucz de Pombal confere o tratamento de magestade ao
_tribunal da Inquisição_ e funda o famoso e terrivel _tribunal da
Inconfidencia_, José II substitue a todas as jurisdições, ecclesiasticas
e feudaes, tribunaes civis de varias instancias emmergentes d'um unico
tribunal supremo. Emquanto Pombal funda a Real Mesa Censoria, José II
transfere para os membros das academias e das universidades a censura
até então exercida pelo clero. Emquanto Pombal reserva para a corôa o
direito de nomear e de demitir sem mais fórma de processo todos os
funccionarios da nação, José II funda a lei dos concursos. Emquanto,
finalmente, Pombal manda suppliciar n'um aulo de fé, com cincoenta e
tres condemnados, o pobre cretino Malagrida na idade de setenta e tres
annos, José II estabelece o principio da tolerancia, conferindo a toda a
aggregação religiosa de tres mil almas, de qualquer seita que sejam, o
direito de edificar um templo e de subsidiar um pastor.

Nas praticas administrativas Pombal é da escola de Colbert, refutada em
Inglaterra desde o meiado do seculo. O systema protector pombalino e o
systema colbertista, de que elle é copia, dão em Portugal e em França
resultados similhanies. Pombal que recebera da administração de D. João
V um cofre em que nem havia com que pagar o enterro do rei, entrega a D.
Maria I o erario com uns poucos de milhões, um exercito numeroso e uma
boa esquadra. Colbert escrevia ao soberano em 1662: «Os rendimentos
estavam redusidos a 21 milhões e ainda esses comidos por dois annos;
hoje estão em 50 milhões. Então o rei pagava 20 milhões de juros; hoje
não paga um _sou_.

Então o rei, dependente dos financeiros, não podia fazer despesa alguma
extraordinaria; hoje, depois da compra de Dunkerque, a Europa vê-o
bastante rico para comprar o que quizer. Então não havia marinha; hoje
vinte e quatro naus acabam de ser construidas, etc.»

A prosperidade de um povo não póde porém ser aquilatada pelo dinheiro
que o principe possue no erario á sua disposição, nem pelo numero das
baionetas dos soldados ou das boccas de fogo dos navios que elle tenha á
mão para fazer guerras. O Estado é um apparelho, não é uma
individualidade. O Estado tem funcções e não tem mais coisa nenhuma, nem
bens, nem crenças, nem opiniões.

O Estado tem obrigação restricta de ser pobre, exactamente como tem
obrigação de ser atheu. Onde o Estado enriquece, a communidadc está
roubada, porque se lhe extorquiu mais em imposto do que se lhe deu em
serviços, e as relações dos individuos com o Estado, tendo por base a
troca, não podem ter por fim o lucro do mesmo Estado, representado pelo
principe, pela côrte, pela nobreza ou por qualquer outra classe
privilegiada.

Quando o Estado se constitue protector torna-se objecto de uma
superstição grosseira e perigosa. A fé posta na protecção do governo é
uma derivação da fé no milagre. Essa fé dissolve todas as aptidões,
todas as iniciativas, todas as forças de uma sociedade. Os que acreditam
na acção providencial dos estadistas sobre os desenvolvimentos da
riqueza, e da prosperidade dos povos perturbam tudo pela confusão dos
poderes de que abdicam, delegando-os no governo. Os proletarios pedem a
abolição dos direitos de importação dos cereaes e dos tecidos para terem
o pão e o vestido mais barato; os cultivadores e os industriaes requerem
direitos prohibitivos de concorrencia para venderem mais caro os
productos da terra e os das fabricas; os operarios requerem augmento de
salario; os patrões solicitam augmento de trabalho; e todo o accordo,
desde que o Estado intervem, se torna impossivel entre aquelles que
produzem e aquelles que consommem.

Nenhuma das industrias que o marquez de Pombal fundou pela protecção lhe
pôde sobreviver na liberdade. Todas as grandes companhias de industria
ou de commercio fundadas por elle desappareceram sem o menor vestigio na
prosperidade ou na riqueza, publica,--a companhia do Maranhão, a de
Pernambuco, a dos Vinhos do Douro, a da pesca da baleia, a da pesca do
atum. Todas as fabricas que elle montou cahiram successivamente umas
depois das outras. A razão é que a industria não é um artigo de
importação mas sim um ramo da sciencia applicada. O unico meio de
suscitar industrias e de crear commercio é introduzir sciencia e dar
liberdade.

O vasto plano do marquez de Pombal tendente a uma completa e total
reconstrucção social é, pela sua mesma natureza absoluta, a negação do
seu talento politico. Tendo por fim condensar os esforços da progressão
social, toda a politica efficaz tem necessariamente de ser tão lenta
como essa progressão. O snr Oliveira Martins chama ao governo do marquez
de Pombal um terramoto. Effectivamente o enorme conjuncto d'essas
disposições legislativas e policiaes destinadas a refazer de um jacto
uma civilisação, representam uma força tão poderosa e ao mesmo tempo tão
irracional como o abalo de terra que em alguns minutos destroe uma
cidade.

O snr Dubost, apreciando na _Revue de Philosophie Positive_ as altas
qualidades de Danton como homem de estado, diz que o caracter principal
da sua politica consiste na necessidade que elle comprehendeu de
renunciar deliberadamente a intentar a reconstrucção total da sociedade
franceza, mantendo-sc energicamente em uma obra relativa, que deve
consistir em permittir a elaboração dos elementos que por si mesmos hão
de gradualmente produzir a reconstituição. Pombal desconhecia
completamente essas leis fundamentaes da politica, que subordinam as
funcções governativas á independencia do meio social, não permittindo
medida alguma que a opinião não solicite, que a vontade publica não
reclame.

Condorcet na sua biographia de Turgot, de quem elle foi o amigo e o
collaborador, diz: «Deve-se evitar na reforma das leis: 1.º tudo quanto
possa perturbar a tranquillidade publica; 2.º tudo quanto produza
grandes abalos no estado de um grande numero de cidadãos; 3.º tudo
quanto encontre de frente preconceitos ou usos geralmente recebidos.
Algumas vezes succede que uma lei não pode produzir todo o bem que
promette ou não se pode pôr em execução porque a opinião lhe é adversa;
n'esses casos _cumpre começar por mudar a opinião_.»

Para o ministro do rei D. José não havia senão uma opinião--a d'lle, e o
publico não era mais que uma grande massa passiva e bruta, que elle se
julgava destinado a modelar sob vários aspectos mettendo-a em formas,
como se faz aos pudins.

Derivando todas as liberdades da pessoa do rei, elle recalcou sempre
pelo terror todas as revindicações de independencia collectiva ou
pessoal. Nunca nos estados modernos da Europa o despotismo assumia um
caracter mais cruel, mais sanguinario mais implacavel que o do regimen
pombalino em Portugal. Proudhon diz que a tyrania está sempre na rasão
directa da grandeza da massa dominada. A administração do reinado de D.
José é uma excepção a esta regra. Em tão pequena familia tão grande
oppressão como aquella de que a sociedade portugueza deu o espectaculo
durante o ultimo quarteirão do seculo XVIII foi o espanto e o horror do
mundo civilisado.

A tremenda catastrophe do terramoto lançara o panico, o horror, a
confusão, o desequilibrio em todos os espiritos, em todas as relações
sociaes, em todos os interesses economicos. A catastrophe nacional
derivada d'essa revolução geologica prepara o advento da dominação
pombalina, assim como o terror na revolução franceza prepara o advento
da dominação napoleonica. Em França como em Portugal a sociedade havia
perdido sob o golpe de uma desgraça esmagadora a faculdade de resistir.
No meio do desfallecimento geral que por algum tempo se succedeu á
violencia da crise, Pombal pretendeu reconstruir a sociedade perturbada
exactamente pelo mesmo processo por que reconstruiu a cidade em ruinas:
ao esquadro e á regua, como um pedreiro cabeçudo e valente, tomando a
symetria pela ordem; sem respeito algum pela dignidade das ideias e dos
sentimentos; sem a menor noção da elevação e da belleza moral; sem arte,
sem graça, sem elegancia, sem gosto; n'uma feroz teimosia de omnipotente
sapador, alinhando, razoirando, espalmando, achatando, estupidificando
tudo. São os brutaes arruamentos quadrangulares da Baixa prolongados a
toda a área da ordem social.

De cima a baixo, de norte a sul, de este a oeste, tudo arruado! Para ali
os algibebes, para ali os professores, os bacalhoeiros, os poetas e os
capellistas; para acolá os retrozeiros, os latoeiros, os artistas e os
philosophos. Para os sapateiros aqui estão as formas; para os
philosophos aqui estão as ideias, para os retrozeiros aqui estão as
linhas; para os artistas aqui está a natureza, a sensibilidade, o
temperamento e a paixão.

Elle só gisa, mede, talha, corta, almotaça, esposteja, aquartilha,
taberneia, baldroca, amesinha e a apilula tudo,--o arroz, o vinho, a
manteiga, o bacalhau, o briche, o oleo de ricino, o ensino publico e
particular, as missas, a poesia, a architectura, a musica, a esculptura,
a philosophia, a historia, a moral e a canella.

A cada um o seu regulamento e o seu arruamento, com quatro forcas e com
duas mas, direitas, parallelas rectilineas, vindo todas dar á grande
praça central com a besta de bronze ao meio, sustentando em cima,
vestido á romana com um sceptro na mão, um pulha inepto, de bronze para
pensar, de cebo para resistir.

Nos patibulos, que servem de signos geodesicos á triangulação do
systema, nunca durante dez annos deixou de pernear alguem para recreio
do principe e escarmento dos subditos.

Toda a reclamação, ainda a mais moderada, contra medida promulgada pelo
omnipotente ministro era considerada crime de lesa-magestade e d'alta
traição.

O supplicio dos Tavoras e do duque de Aveiro e o auto de fé do padre
Malagrida são monstruosos de mais para que façamos d'elles argumentos de
historia. A ferocidade levada a um tal requinte deixa de pertencer á
critica; está fora da historia assim como está fora da humanidade: é uma
reversão ao canibalismo, cujo estudo compete á psychologica pathologica.

Explica-se geralmente pela necessidade politica de abater e de humilhar
a nobreza esse processo caviloso e infame, em que o ministro de D. José
é ao mesmo tempo juiz e parte, e em que os réus são julgados sem defeza
e sem exame de provas sob a accusação de uma tentativa de regicidio, em
que hoje se sabe achar-se completamente innocente a familia Tavora;
assim como estava innocente o marquez de Gouveia, exhautorado do seu
titulo, officialmente infamado e encarcerado nos carceres sem ar e sem
luz do forte da Junqueira desde os dezoito annos de idade até os trinta
e sete; assim como estavam innocentes o marquez d'Alorna, encarcerado
no mesmo forte: a marqueza d'Alorna e as suas duas filhas, presas no
convento de Chellas; D. Manoel de Sousa Calhariz, avô do duque de
Palmella, encarcerado na Torre do Bugio, onde morreu; e a infeliz
duqueza d'Aveiro, a qual, depois de sequestrados todos os seus bens,
perseguida até o seu ulliino suspiro pelo ódio do marquez de Pombal,
morreu no convento do Rato, servindo a cosinha das freiras como creada
de pé descalço.

Singular modo de aviltar uma classe, sagrando-a assim pelo martyrio!

Decorreram mais de cem annos sobre a carnificina canibalesca de 13 de
janeiro de 1757. Povoam ainda as nossas imaginações e vivem eternamente
immortalisadas pelas nossas lagrimas as doces e legendarias figuras
d'esses fidalgos: a marqueza de Tavora, de uma physionomia tão elevada e
tão elegiaca, alta, magra, severa, envolta na sua longa capa alvadia,
assistindo no patibulo á descripção do suplicio por que vae passar a sua
familia, comprimindo no silencio da dignidade toda a explosão da dôr e
dobrando, sem um grito, sobre o cepo, a cabeça coroada de cabellos
brancos que o carrasco fere de um golpe de machado pela nuca, fazendo-a
pender por um instante segura ao busto pela pelle da garganta. O altivo
e marcial marquez de Tavora, macerado e encanecido, contemplando os
cadaveres da sua mulher degolada, do seu filho com os ossos esmigalhados
pelo masso de ferro que um momento depois lhe ha de bater no peito, em
que elle crusa os braços, deixando rolar nas faces duas grossas lagrimas
mudas e tragicas, unico protesto contra o holocausto necessario para
desatranvacar dos empeços de familia o caminho que conduz á alcôca da
amante do seu rei. O joven José Maria de Tavora, finalmente, com vinte e
um annos de idade, bello, gentil e amado, vestido de veludo preto e
meias de seda côr de perola, os cabellos annellados e louros presos por
um laço de fita.

E na saudade dolorosa que nos desperta esse quadro do pretendido
aviltamento da aristocracia portugueza ninguem comprehende os tres
plebeus creados do duque d'Aveiro, egualmente suppliciados por terem
acompanhado seu amo na emboscada da Ajuda sem todavia haverem
participado na aggressão ao principe.

Esses tres innocentes, João Miguel, Braz José Romeiro e Manoel Alvares
Ferreira, comparecem no patibulo por ordem do juiz supremo Sebastião
José de Carvalho, em camisa e calções, de pernas nuas e pés descalsos,
despresiveis e grotescos, despoetisados para a legenda sentimental da
morte pelo julgador egualmente plebeu que, para se extrahir d'esta
miséria truanesca da simples canalha, se condecora a si mesmo com o
direito de morrer com meias de seda, encorporando-se alguns dias depois
com o titulo de conde d'Oeiras na mesma nobreza que pretendia aviltar e
destruir.

É a isto que os apologistas de Sebastião chamam o nobre intuito
democratico de elevar a plebe e de constituir a burguezia.

Mais expressivo e mais concludente que este extranho methodo de
egualisar as condições sociaes, é na historia da administração pombalina
o systema geral de perseguição sanguinaria a toda a manifestação de
liberdade affirmada, de castigo tremendo a toda a transgressão da lei
escripta. Chega a não ser preciso desobedecer, basta não gostar
completamente do regimen em vigor para ser immediatamente punido por
isso. Em 1756 o marquez de Pombal decreta uma gratificação de 400 mil
cruzados a todo o delator d'aquelles que disserem mal do seu governo.
No mesmo anno como lhe desagrade não se sabe porque, o seu collega no
ministerio Diogo de Mendonça Corte Real, manda-o sahir de Lisboa dentro
de tres horas e prende-o na praça de Masagão até que, cedida essa praça
aos marroquinos, é transportado para as Berlengas, onde morreu esquecido
e abandonado. Similhante sorte teve o successor de Diogo de Mendonça,
Thomé Joaquim da Costa, que o marquez enfastiado mandou, sem culpa
formada como o outro, para o castello de Leiria, onde morreu. Em 1753,
como a Mesa do Bem Commum representasse humildemente em nome dos
commerciantes de Lisboa contra o privilegio exclusivo do commercio do
Maranhão e do Grão Pará conferido a uma companhia, encarcera no
Limoeiro, sem outra forma de processo, todos os commerciantes
peticionarios e o advogado João Thomaz de Negreiro, redactor da petição.
Este foi degradado por oito annos para Masagão. Todos os negociantes
foram deportados por mais ou menos annos. Em 1757, em consequencia da
assuada popular a que deram motivo os monstruosos vexames da Companhia
dos Vinhos do Alto Douro, manda ao Porto a famosa alçada que enforca
vinte e um homens e cinco mulheres e condemna a degredo, a confiscação e
a multa 211 pessoas de ambos os sexos. Em 1776, para o fim de castigar
alguns refractarios ao serviço militar refugiados na Trafaria, manda
incendiar de noite as cabanas d'essa pobre aldeia de pescadores e espera
n'um cinto de bayonetas caladas os desgraçados que fogem ás chammas
espavoridos e cegos.

Ninguém podia contar com a vida, nenhuma cabeça se considerava segura
nos respectivos hombros. As cartas eram abertas e lidas n'uma repartição
especial montada para esse fim. O tribunal da Inconfidencia e a
Intendencia Geral da Policia devassavam todos os segredos. Era-se
perseguido, preso, condemnado rapidamente, summariamente, sem appellação
nem aggravo, por uma carta a um parente, por alguns versos, por uma
palavra, por um sorriso, por uma simples suspeita. As prisões estavam
cheias. No forte da Junqueira, a que verdadeiramente se pode chamar a
Bastilha portugueza, morre o conde d'Obidos e o conde da Ribeira. O
coronel Thomaz Luiz, accusado de haver recebido em sua casa, na
provincia de Minas Geraes no Brazil, um jesuita secularisado, morre na
força em Lisboa, provando-se mais tarde que nem o supposto crime de que
o accusavam era verdadeiro. O diplomata Antonio Freire d'Andrade
Encerrabodes, accusado de haver escripto em uma carta particular a um
amigo uma phrase desagradavel para o marquez, é desterrado para a Costa
d'Africa. O conde de S. Lourenço e o visconde de Villa Nova da Cerveira,
unicamente por terem sido os familiares do Santo Officio encarregados
por esse regio tribunal, reconhecido e auctorisado, de prenderem o
intendente da policia, são sepultados o primeiro no forte da Junqueira,
o segundo no castello de S. João da Foz, onde morreu. Na Junqueira
estiveram ainda os tres filhos do conde d'Alvor, o letrado Francisco
Xavier, mais tarde degredado para Angola; o desembargador Antonio da
Costa Freire, que morreu no forte; e muitos outros.

A disciplina militar do conde de Lippe lembra as arias do general Boum,
em que a cada phrase corresponde um tiro. Os famosos artigos de guerra,
em que os fusilamentos apparecem com tanta frequencia, como as virgulas,
seriam dignos da musica de Offenbach, se não tivessem sido na realidade
um opprobrio da dignidade humana. Pelas culpas mais leves o soldado era
mettido ao tornilho, carregado d'armas, amarrado nu a uma espingarda e
zurzído ás varadas ou moido ás pranchadas d'espadão.

Na vida civil o mando fazia lei indiscutivel e absoluta, como na vida
militar. Por occasião das famosas festas da inauguração da estatua
equestre _ordenou-se_ aos ourives e aos particulares que cedessem as
suas alfaias para servir á ceia dada á custa do povo pelo senado de
Lisboa, cujos amigos comeram tresentas arrobas de doce em tres dias.

Da historia geral das reformas emprehendidas pelo marquez de Pombal
cumpre separar dois factos culminantes de especial importancia no
progresso: a expulsão dos jesuitas e a reforma da instrucção publica.

A extincção da Companhia de Jesus foi no marquez de Pombal, assim como
nos demais reformadores regalistas da sua escola e do seu tempo, o
resultado de um equivoco.

Toda a gente sabe que a obediencia absoluta e cega é o fundamento da
ordem instituida por Santo Ignacio de Loyola, assim como é o fundamento
de todo o despotismo monarchico. O fim da Companhia de Jesus foi sempre
desde a sua fundação até hoje oppôr ás ideias de livre exame, de
discussão e de governo livre, a monarchia absoluta e o direito divino. O
immenso e insubstituivel poder espiritual sobre o qual se fundamentava
principalmente o poder temporal dos reis era o poder dos jesuitas. Sem
elles as monarchias absolutas careciam de base no espirito c na
consciencia dos povos. O marquez de Pombal tendo por unico intuito
politico fortalecer e affirmar indestructivelmente e para todo o sempre
o dominio absoluto do despotismo monarchico, errou portanto do modo mais
pueril, como todos os estadistas monarchicos seus contemporaneos,
minando por meio da perseguição aos jesuitas os alicerces da sua propria
fundação. Nunca um espirito verdadeiramente superior e penetrante, como
por exemplo o do snr de Bismarck, cahiria n'um tal desacerto.

Imaginem, um architecto que depois de haver construido um palacio de
marmore sobre estacas de madeira cravadas no fundo do oceano, rematasse
a sua obra serrando as pilastras que a sustinham. Foi precisamente o que
fez Pombal, construindo o mais solido regimen despotico sobre os
principios da obediencia e do direito divino, e tirando-lhe em seguida
debaixo o jesuita, que era o sustentaculo intellectual e moral d'esses
mesmos principios.

Auguste Comte, cujo alto e poderoso genio philosophico lança sempre uma
tão intensa e viva luz sobre todos os problemas historicos em que põe a
mão, escreve sobre a queda da Companhia de Jesus, facto que elle
considera como o primeiro dos tres grandes agentes que dirigiram a crise
revolucionaria do fim do seculo XVIII, as seguintes palavras: _A
abolição da Ordem dos Jesuitas mostrou a decrepitude de um systema
destruindo pelas suas proprias mãos o unico poder susceptivel de lhe
retardar a queda_.

A extincção da Companhia de Jesus é certamente um dos mais fundamentaes
progressos adquiridos para a liberdade e para a civilisação moderna.
Attribuir porem e agradecer essa acquisição liberal ao espirito do
retrogrado e ferrenho ministro do snr D. José I é cahir n'um contrasenso
tão absurdo como seria agradecer a destruição de uma machina infernal ao
artifice que a construia e em cujas mãos ella rebentou por um erro de
fabrico.

A perfeição no modo consciente e raciocinado de eliminar do progresso a
influencia jesuitica consistiria em destruir o jesuitismo mantendo pela
tolerancia a independencia do jesuita. A prova manifesta de que o
marquez de Pombal não tinha consciencia alguma do serviço que contra sua
vontade prestou á liberdade está no facto evidente de que, em vez de
atacar os principios da instituição que condemnava, ele não fez mais do
que perseguir os homens que o serviam, expulsando-os do reino e
sequestrando-lhes os bens, punindo-os e espoliando-os.

Os jesuitas foram-se, mas o jesuitismo ficou. Ficou encarnado e vigente
na pessoa do propio marquez de Pombal, o qual deante da liberdade não é
mais do que um Loyola leigo, um Santo Ignacio de casaca de seda e
espadim, um pouco mais limpo talvez, mas incomparavelmente menos grande
do que o antigo, com menos piolhos mas com muito mais teias de aranha na
cabeça.

Expulsor dos Jesuitas, o marquez de Pombal fez do jesuitismo
secularisado todo o seu programma de poder.

Santo Ignacio tinha dito: «Se me parecer que o meu superior me prescreve
ordens em opposição com a minha consciencia, acreditarei n'elle e não
acreditarei em mim.» Na Constituição da ordem diz-se: «Pareceu-nos em
Deus nosso Senhor que nenhuma disposição pode induzir obrigação de
peccado mortal ou venial, a menos que o superior em nome de Jesus
Christo ou em virtude de obediencia o não ordene.» Na _Medulla
theologiae moralis_ o padre Busenhaum prescreve no tomo 4, capitulo V:
_Quum finis est licitus, etiam media sunt licita_.

Todo o systema governativo de Pombal assenta na pratica d'esses
principios definidos pela companhia. Para elle todo o meio é licito
quando lhe parece licito o fim, e, substituindo a invocação eclesiastica
de _Nosso Senhor Jezus Christo_ pela formula civil de _El-Rey meu amo_,
elle arvora a obediencia cega, irraciocinada, absolutamente bruta, em
lei fundamental da nação, assim como era lei fundamental da ordem.

A tão decantada reforma da instrucção publica não é mais de que uma das
formas de jesuitismo applicado ao ensino.

A instrucção primaria, cultivada sobre a cartilha de Padre Mestre
Ignacio, continuou como estava subordinada á Igreja. Os mestres eram
obrigados ao receber os ordenados no fim de cada mez a exhibir certidão
do parocho attestando que o professor tinha ido á missa com todos os
seus alumnos nos domingos e festas de guarda.

Na instrucção superior a sciencia é escrupulosamente decilitrada pelo
legislador a copinho por copinho como a geropiga do saber abodegada no
casco por conta do lavrador. Nem o alumno póde beber nem o mestre póde
propinar senão precisamente a doze e a qualidade de licor prescriptas no
regulamento d'este monopolio. Os Estatutos da Universidade, são uma
especie d'Estatutos da Companhia dos Vinhos do Alto Douro adstricta á
cepa torta da intelligencia.

Qual era o vicio capital do ensino jesuitico? Era a subordinação do
phenomeno ao dogma, era a sujeição da observação, do exame, da
experiencia e do raciocinio ao arbitrio da auctoridade imposta.

O vicio organico da instrucção pombalina é precisamente o mesmo. Em toda
essa legislação do ensino publico, o professor é seguido passo a passo
atravez de todas as disciplinas que tem de leccionar. Elle não póde
communicar uma só noção que previamente lhe não houvesse sido suggerida
pelo legislador. O mestre, segundo Pombal, é uma pura machina de moer
artigos de programmas com corda dada pelo Estado para o exercicio de
cada anno lectivo.

Que importa, para os resultados finaes de um tal modo de instruir, o
maior ou menor numero de faculdades incluidas nas academias, o maior ou
menor numero de disciplinas introduzidas nos programmas? Onde faltam os
livres methodos experimentaes falta toda a especie de ordem positiva na
coordenação das ideias, e diz o snr Herbert Spencer que quando não ha
ordem na instrucção de um homem, quanto mais coisas elle souber tanto
maior será a confusão do seu cerebro.

A instrucção de um povo não pode nunca ser aquilatada pelo numero dos
bachareis formados que as ordens religiosas ou os institutos officiaes
derramam em cada anno sobre a massa da população, para o fim de a
explorarem pela chicana juridica ou de a embalarem pelo palavrão
dogmatico ou metaphysico.

A verdadeira instrucção nacional tem por base a vulgarisação geral das
ideias transmittidas pela maxima liberdade do pensamento, e tem por fim
o emprego das faculdades intellectuaes de todos os cidadãos no exercicio
dos seus direitos politicos e dos seus direitos civis.

Quando a instrucção publica assenta pelo contrario em um campo de
doutrina arbitraria imposta por um legislador em nome de um regimen
politico, de uma escola philosophica ou de uma seita religiosa, ha uma
coisa muito mais util do que ministrar essa instrucção, e é não
ministrar instrucção nenhuma. A falsa instrucção é um veneno inoculado
no homem. A simples ignorancia, pela sua parte, é uma das grandes forças
do espirito. Se não fosse a santa ignorancia, pura e convicta, que
resistiu pelo bom senso ás differentes epidemias eruditas de cada
seculo, a escolastica e a metaphysica teriam dado cabo da humanidade.

Concluindo pois, repetimos que o marquez de Pombal, expulsando os
jesuitas e reformando os estudos, não extiguiu o jesuitismo,
secularisou-o apenas, deslocando-o da ordem religiosa para a ordem
civil, arrebatando-o aos padres para o encabeçar nos agiotas, nos
desembargadores, nos generaes e nos doutores de capello.

O jesuita é perfeitamente odioso e repulsivo pela acção sinistra que
durante tresentos annos tem exercido sobre a immobilisação da
intelligencia, sobre a depressão da dignidade do homem; mas o jesuita é
pelo menos coherente e logico comsigo mesmo; sabe nitidamente o que
quer, tem perfeitamente correlacionados os seus meios com os seus fins e
vae ao seu destino preconcebido com uma exactidão geometrica, com uma
firmeza implacavel; sem uma unica tergirversão de linha, sem um unico
erro de calculo. O jesuita cae dentro dos seus proprios principios como
na antiga tactica militar os generaes vencidos cahiam dentro do
quadrado,--com todas, as baionetas voltadas para o inimigo.

N'esta maneira de acabar ha um ar de grandeza que nos obriga a nós
outros, revolucionarios vencedores n'este momento historico, a tirar o
chapeu e a saudar a coherencia dos vencidos.

Os estadistas da monarchia absoluta, com as suas leis, os seus exercitos
e os seus principes, morrem feridos pelas suas proprias armas, morrem
pela discordancia entre os fins propostos e os meios empregados, morrem
por haverem abraçado, em vez da taboa de salvação em que fluctuariam, o
trambolho de chumbo que os afunde.

As catastrophes assim determinadas pela insufficiencia intellectual
n'uma classe dirigente, tornam a derrota comica e a ruina grotesca.

O historiador snr Henri Marlin pergunta:

«O que é que faltou á companhia de Jesus para que ella conseguisse
realisar os seus planos dictados pelo genio?» E o mesmo historiador
responde: «Faltou-lhe a rectidão, faltou-lhe a franqueza, faltou-lhe o
espirito verdadeiramente religioso, o qual unicamente podia restituir á
natureza os seus direitos sem attentar contra as leis eternas do bem e
da verdade.»

O marquez de Pombal, expulsor dos jesuitas e successor d'elles, cahiu
por modo mais ridiculo mas por eguaes causas. O que faltou no plano
pombalino, concebido, como temos obrigação de o acreditar, no intuito do
accelerar o progresso e a prosperidade da patria, foi a _rectidão,_ foi
a _franqueza_, foi esse espirito de abnegação e de magnanimidade que na
egreja se chama _religião_ e que na sociedade se chama a _justiça_.

A sociedade portugueza refeita á bordoada pelo despotismo pombalino
offerece o aspecto servil e vergonhoso de um Paraguay burguez,
incondicionalmente aforado a uma burocracia tarimbeira governada por um
dos mais antipathicos mandões que ainda viu o mundo.

Solida natureza mesquinha mas atarracada, reforçada pelos quatro couros
sobrepostos do merceeiro, do esbirro e do cabo d'esquadra, Sebastião de
Carvalho--feliz nome onomatopico de que parece rever uma rigidez de
cacete e uma espessura de baluarte--fez de Portugal á força de leis e de
sentenças d'açoite, de sequestro, de prisão, de degredo e de morte, um
paiz de seminaristas e de recrutas, subserviente, medroso, imbecil.

Viu-se o que essa sociedade miseravel tinha dentro logo que por morte do
dictador ella se julgou desafrontada e começou a desabotoar-se ao sol.

O reinado de D. Maria I é todo a influencia pombalina virada com o
dentro para fora e mostrando o miolo de que o reinado anterior fora a
casca.

Nunca a moral, a arte, o gosto, os caracteres, os costumes attingiram um
mais sordido rebaixamento. Levantaram-se as calumnias mais torpes contra
o ministro demittido e desgraçado, e uma alluvião de escriptos em prosa
e em verso, da mais chilra insipidez, inundou as salas da aristocracia e
da burguesia aristocratisada, onde as senhoras merendavam e resavam a
novena aninhadas no chão, esconjurando o ante-christo desterrado em
Pombal, entre as graçolas dos padres e dos bobos, n'uma athmosphera
toireira e beata, cheirando a insenso, a estrume de cavallo, a ureia de
batina e a ovos molles.

O marquez não deixara um só homem de pulso, um unico amigo fiel e
generoso que o deffendesse na adversidade. A monarchia a que elle
submettera tudo, tornando-a absoluta, discricionaria e omnipotente,
escorraçava-o e perseguia-o,--que é sempre assim que os reis pagam aos
plebeus cuja força os assombra embora os mantenha e os sirva. O marquez
de Pombal acabou como Colbert, o qual ao annunciarem-lhe, já moribundo,
a visita de um enviado de Luiz XIV, recusou recebel-o exclamando: «Não
me deixará esse homem acabar de morrer em paz? Se eu tivesse feito por
Deus metade do que fiz por elle, estaria certo n'esta hora da salvação
da minha alma, e assim não sei o que será de mim.»

O governo pombalino, pelo terror que conseguiu inspirar e por meio do
qual dobrou ao arbitrio do seu programma todas as energias nacionaes,
produsiu em ultimo resultado esta catastropbe enorme--a obediencia
geral.

Toda a obediencia é uma diminuição de valor e de dignidade. Onde a
liberdade existe não ha nunca obediencia, ha apenas accordo. A
obediencia é dos fructos do despotismo o mais venenoso. O homem que
obedece avilta-se; o povo que obedece deprava-se e dissolve-se.

Os individuos que por occasião do centenario do marquez de Pombal se
encarregaram de encarecer os louvores d'este estadista, não cessaram um
momento de nos explicar que os actos d'elle se não podem julgar com
justiça pelas nossas ideias d'hoje, mas pelas ideias do seu tempo; e
insistem n'isso de um modo proprio para fazer recear que, á força de
procurarmos ideias antigas, tenhamos talvez, para ser justos, de julgar
este personagem sem ideias nenhumas.

Se quizerem fazer o favor de nos conceder que Turgot foi um
contemporaneo do marquez de Pombal--o que aliás a chronologia parece
demonstrar com uma imparcialidade indiscutivel--nós permittir-nos-hemos
contrapor algumas ideias do ministro de Luiz XVI ás do ministro de D.
José, e o leitor julgará d'essa breve approximação de factos se o
estado geral das ideias no fim do seculo XVIII é sufficiente para
explicar o atraso das doutrinas economicas e dos principios moraes com
que nos governou o marquez de Pombal.

Turgot não crê na acção das monarchias absolutas sobre a felicidade dos
povos, e ao mesmo tempo em que Pombal eternisa pelo bronze da estatua
equestre o despotismo de D. José, o ministro francez diz a Luiz XVI: _La
cause du mal, sire, vient de ce que votre nation n'a pas de
constítution._ Na mesma epoca em que o ministro de D. José mandava
anullar por apocrypho o livro de Velasco de Gouveia, no qual se
ennunciava o principio da soberania nacional, e exautorava o presidente
do Desembargo do Paço, Ignacio Alvares da Silva, por que elle exposera a
doutrina de que a lei civil em materias de casamento só podia ser
alterada pelas côrtes da nação, Turgot instiga o herdeiro de Luiz o
Grande, o Rei Sol, a reconhecer os direitos do povo firmando com elle o
pacto constitucional.

Turgot punha acima da subserviencia dos thronos e da superstição dos
altares a confiança no genio bemfazejo do homem. Foi n'essa convicção
que elle escreveu sob um retrato de Franklin a epigraphe famosa, que
sob o regimen pombalino o teria feito condemnar pelo Santo Officio ou
pela Mesa Sensoria: _Eripiut coelo flumen sceptrumque tyrannis._

A prosperidade nacional que Pombal procurou fundar no monopolio, na
coerção e na tyrannia, procurou Turgot estabelecel-a na liberdade,
_creando as municipalidades, separando a egreja do estado,_ decretando a
_liberdade da terra_, (1773), a _liberdade, da industria e do
commercio(1776)_, a _liberdade da razão_ (1777).

Emquanto Pombal intentava cegamente firmar a monarchia absoluta nos
excessos de rigor que deviam contribuir para a aniquilar mais depressa,
Turgot previa pela tolerancia tudo quanto podia tornar progressiva a
acção da realeza, poupando á humanidade os rios de sangue que ella havia
de ter que derramar para chegar ao progresso apesar dos obstaculos que
governos como o de Pombal lhe opposeram.

Condorcet, que já citamos, diz na sua biographia de Turgot; «As leis que
prepararam as mudanças necessarias podem ser differentes para os
differentes povos, porque são feitas contra abusos e contra abusões que
não teem nem a mesma origem nem os mesmos effeitos; mas as leis que, em
seguida a essas, estabelecem a ordem mais util á sociedade devem ser as
mesmas, pois que devem ser fundadas sobre a natureza do homem.»

A differença capital entre o ministro de Luiz XVI e o de D. José é essa:
que a politica d'um, fundando-se _no poder absoluto dos reis_, atrasava
para muito tempo a liberdade do povo; a outra, fundando-se na _natureza
do homem_, auxilia, quanto o póde auxilar um estadista, o progresso
moral da humanidade.

Voltaire, aos oitenta annos de idade, no momento em que Paris o
acclamava e o cobria de corôas no meio do maior triumpho de que ainda
foi objecto um homem d'espirito, apeou-se em publico da sua carruagem
forrada de setim asul e cravejada de estrellas d'ouro, e dirigindo-se a
Turgot perdido na multidão, cahiu de joelhos banhado em lagrimas aos pés
d'elle, e disse-lhe: _Deixe-me ter a gloria de beijar a mão que assignou
a salvação do povo_.

A mão do marquez de Pombal, cheirando a sangue como a de Lady Mackbet,
envenenaria os beiços que lhe tocassem. Por isso elle triumphante não
teve nunca, como Turgot vencido pela intriga de Maria Antoinette, a
consagração augusta do livre espirito da humanidade representado por
Voltaire. Teve apenas as honras de um centenario contradictorio
celebrado em nome da liberdade pelos representantes de todos aquelles
que elle opprimiu em nome do despotismo: pela industria que paralysou
deslocando-a da tradição historica e baseando-a em elementos exoticos e
postiços; pelo commercio que entravou por meio dos monopolios; pela arte
que abastardou tyrannisando-a pelo mais chato mau gosto; pela democracia
que esmagou sob condemnações d'açoite, de carce, de deportação, de
degredo e de morte; pela mocidade emfim, de cujas altas e
desinteressadas aspirações elle foi a negação accintosa e brutal, porque
o seu espirito d'odio, de cavilação e de mentira, era um espirito
organicamente velho, mareado de nascença pelo vicio da senilidade
ingenita.

       *       *       *       *       *

Estamos cançados de ouvir dizer de todos os lados, por todos os oradores
e por todos os articulistas da festa pombalina, que é absolutamente
preciso, para nos pormos á altura de admirar com o devido respeito o
vulto do marquez de Pombal, collocarmo-nos no _devido ponto de vista_.
Em desconto dos erros que tenhamos commettido, cumpre-nos declarar,
terminando, que ignoramos completamente qual é o tal ponto de vista em
que é necessario que a gente se colloque.

Para escrever estas linhas nós collocamo-nos simplesmente n'uma cadeira,
em frente do vulto e de um caderno de papel. Visto n'essa situação
tranquilla, a olho desarmado e sereno, o unico effeito que nos fez o
vulto, apparamentado com o seu calção e meia, a sua grande casaca de
seda, as suas fivelas, a sua luneta e o seu rabicho, foi o de se parecer
com o dos chéchés. E é o que francamente te communicamos, na honrada
sinceridade de bom homem para bom homem, ó leitor amigo.

Emquanto á estatua do reformador, em que se falla como complemento do
centenario a cuja celebração acabamos de assistir, ella seria, se a
fizessem, o monumento funebre elevado á morte da democracia ou á do
senso commum na sociedade portugueza. Mas não a farão nunca. E' já de
mais a do Terreiro do Paço para consignar a estima d'este povo pelo
charlatanismo dos seus tyrannos.

O rei D. José é absolutamente indigno de estar posto por meio de uma
peanha não só acima do nivel mas á simples altura de qualquer cidadão
honrado. Mero heroe das alcovas dos outros, esse principe rufião está
abaixo do proprio Luiz XV, de apodrecida memoria. Luiz XV teve um
merecimento pelo menos no seu reinado, teve por amante a encantadora
amiga de Diderot, Madame de Pompadour, a cuja ligação o rei de França
deveu a honra de poder cear algumas vezes em _petit comité_ com alguns
dos homens de espirito que escreveram a _Encyclopedia._ D. José nunca
exerceu o seu donjuanismo senão entre beatas insipidas, mais pobres
ainda de talento que de pudor.

Quando chegar a hora da justiça não é a estatua do marquez de Pombal que
se ha de erigir, é a de D. José que se ha de apear. No monumento do
Terreiro do Paço o unico que merece continuar a contemplar Cacilhas é o
cavallo. Cumpre rehabilitar, na estima que se lhe deve, o nobre e util
animal, desaffrontando-o do cavalleiro, que nunca prestou para nada
n'este mundo, e honrando-o em nome do trabalho honesto com o appenso de
uma charrua.

Lisboa 10 de junho de 1882.





*** End of this LibraryBlog Digital Book "As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07)" ***

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