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Title: Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I)
Author: Pina, Rui de, 1440-1521
Language: Portuguese
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Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)



BIBLIOTHECA

DE

CLASSICOS PORTUGUEZES

PROPRIETARIO E FUNDADOR

_MELLO D'AZEVEDO_



Bibliotheca de Classicos Portuguezes

Proprietario e fundador--Mello d'Azevedo


CHRONICA

DE

EL-REI D. AFFONSO V

POR

_Ruy de Pina_

VOL. I


_ESCRIPTORIO_

147--Rua dos Retrozeiros--147

LISBOA

1901



Duas palavras de introducção


El-rei D. Manuel _encomendou com grande efficacia_ a Ruy de Pina a
chronica de D. Affonso V. E elle escreveu baseado em informações e nos
documentos que poude alcançar, com uma sinceridade notavel em chronista
de palacio occupando cargos de confiança regia.

Parcial todavia, pouco inclinado a cousas de Hespanha e da nobreza,
conta-nos a historia d'esse periodo de fórma que parece preparar o
espirito do leitor para as grandes luctas do reinado seguinte.

A historia da épocha de D. Affonso V importa ao estudo da nacionalidade
portugueza em qualquer ponto de vista. Affirma-se a auctoridade real,
apezar das prodigalidades do rei, a independencia da nação em combates
rijos, a expansão ultramarina define-se com o arrojo dos navegantes e
dos homens de guerra, a cultura dos espiritos sóbe, os costumes
policiam-se, attende-se a melhoramentos materiaes nas povoações.

A propria figura do rei desperta vivamente a attenção; os seus primeiros
annos passaram num meio agitado, difficil, triste talvez, pelas luctas
palacianas, mas util para a formação de espirito culto pela frequencia,
provavel, de homens superiores como os infantes D. Pedro e D. Henrique.
Pelo que nos conta Ruy de Pina foi lastima que Affonso V fosse rei,
porque era bom de mais, com sua parte de phantasia mansa.

Era um sereno, de _piadosa condição_, _familiar_, grande amador de
musica e de livros, e tambem de emprezas arriscadas.

Quando a Excellente Senhora professou, grassava em algumas cidades do
paiz o contagio com grande intensidade, elle desconsolado quiz deixar a
governança, queria ser leigo no seu mosteiro do Varatojo.

Como era generoso e pouco calculista, sem sentir, pouco a pouco, foi
accumulando de mercês certos fidalgos insaciaveis, o que originou depois
a grande lucta dos primeiros annos de João II.

N'esses quadros agitados destacam-se figuras principaes como o infante
D. Pedro, o das sete partidas, e D. Henrique o navegador, sempre com a
sua idéa fixa de descobrir terras, os condes de Viana, e de Avranches,
grandes senhores, e aquelle singular bispo D. Garcia de Menezes tão
brilhante orador e guerreiro que tristemente encerrou a sua vida.

Outros vultos de raro perfil movimentam ainda a épocha, D. Pedro o rei
intruso de Aragão, filho do infante D. Pedro, erudito, collecionador de
livros e medalhas, o duque de Borgonha, a Excellente Senhora. No meio
das luctas e intrigas estrondea o casamento de D. Leonor. Depois das
gloriosas jornadas de Alcacer, Tanger, Anafé e Arzilla, a ida para
França.

O chronista não esquece os movimentos populares, as luctas na cidade de
Lisboa, as uniões e alvoroços; nem a lucta contra o Turco que em 1480
quasi se assenhoreou do Mediterraneo.

Hoje conhecemos outros documentos, os antecedentes da Alfarrobeira estão
mais esclarecidos, papeis de aleivosia como o testemunho do escudeiro
João Rodrigues correm impressos.

Ha documentos tambem para o modo de viver da épocha que em geral não
mereceram attenção aos chronistas, os que dizem respeito a costumes, a
questões economicas, ao direito. A publicação das Ordenações, começadas
em tempo de João I.^o é facto capital. Em chronicas francezas
encontram-se noticias de valor, ainda não approveitadas. Finalmente será
preciso estudar noutra parte, e hoje ha muitos elementos publicados, o
admiravel esforço do infante de Sagres, e da sua gente, n'este periodo,
nos gloriosos descobrimentos dos novos caminhos maritimos, dos
archipelagos do Atlantico revelados successivamente,

                                                        G. Pereira.



PROLOGO

DA

Chronica do Mui Alto e Mui Poderoso Principe

EL-REI D. AFFONSO

D'ESTE NOME O QUINTO


_E dos Reis de Portugal o duodecimo, dirigido ao muito alto e muito
excellente Principe, El-Rei D. Manuel, seu sobrinho, nosso Senhor, por
cujo mandado Ruy de Pina, Cavalleiro de sua casa e seu Chronista Mór e
Guarda Mór da Torre do Tombo, nova e primeiramente a compoz_


O mais singular e mais proveitoso conselho, Serenissimo Rei, que
Demetrio Phalereo, philosofo mui sabedor, deu ao grande Tholomeu, Rei do
Egypto, para sobre todolos Reis de seu tempo poder ser mais excellente,
foi que procurasse de vêr, e ter por mui familiares os livros,
principalmente aquelles, em que os virtuosos costumes e claros feitos
dos illustres Reis e Principes passados fossem verdadeiramente
escriptos: amoestando-o que com vivo cuidado os lesse e ouvisse: nem era
sem causa; porque, como mui prudente, sabia que os livros, posto que
sejam conselheiros mortos, sempre porém ensinam e dão verdadeiros e sãos
conselhos, mui livres e isentos das paixões dos conselheiros vivos, dos
quaes muitas vezes por não saberem, e outras por não quererem, e muitas
mais por não ousarem, se nega e esconde a clara verdade, que a seus
maiores e Senhores pospõem ás proprias inclinações e paixões d'affeição,
odio, lisonjaria, interesse ou temor, que são causa da mais certa queda,
e principal destruição de reinos e senhorios. E por tanto, muito
poderoso senhor, no conhecimento dos bons exemplos e das cousas
passadas, de que a Historia é um vivo espelho, e os livros são fieis
thesoureiros, se recebe, para não errar, conselho sem paixão, e doutrina
sem receio, de que á Humanidade e ao Estado Real principalmente se segue
um mui seguro proveito, e por isso a Deus grande e mui assignado
serviço.

E posto que das Chronicas e lembranças escriptas das perfeitas bondades
e memorandas façanhas dos claros barões não naturaes e estrangeiros,
quando as lemos e ouvimos, logo nos movem para aborrecer os vicios, e
com uma virtuosa inveja de seus gloriosos exemplos, nos espertam e guiam
para o caminho de suas louvadas virtudes e fama; porém, outra differença
de vergonha, outra viveza de gloria, outro acendimento d'esforço
sentimos logo em nossos corações, quando lendo topamos, e com tento
esguardamos nas excellentes virtudes e prosperas empresas de nossos
proprios naturaes, e maiormente d'aquelles de que descendemos; porque
tanto mais nos acendem e obrigam para os semelharmos e seguirmos, quanto
a certa verdade de suas virtuosas obras e grandes feitos é de maior
contententamento e mais chegada a nosso fresco conhecimento, com que a
não duvidamos.

E por esta tão urgente causa e bem tão universal, e principalmente por
honra e gloria de vossos reinos de Portugal, Vossa Mui Real Senhoria,
como virtuoso Rei mui piedoso e verdadeiro successor d'elles que é,
sabendo que a memoria das reaes virtudes e feitos imperiaes do mui
glorioso Rei D. Affonso o quinto, vosso tio e predecessor, cujo irmão
legitimo era o mui illustre Infante D. Fernando vosso padre, por
negligencia sua ou mingoa d'escriptores não eram já do escuro
esquecimento menos gastadas, que sua carne e seu corpo que a terra
comia: por mais illustrardes vossa legitima descendencia, e vossa corôa
real não ficar sem uma guarnição de pedraria tão preciosa, como é sua
clara e louvada memoria: e assi por Vossa Alteza mostrar um santo ensino
e maravilhoso exemplo de Rei, encommendou com grande efficacia a mim Ruy
de Pina, Cavaleiro de vossa casa, Chronista Mór de vossos reinos e
Guarda Mór da Torre do Tombo d'elles, que, quanto á minha deligencia e
entendimento fosse possivel, trabalhasse de haver as cousas notaveis de
seu tempo, e para sua Chronica mais necessarias, e a compozesse. E como
quer, muito poderoso Rei, que a carrega e peso d'esta Obra, por ser tão
digna e tão necessaria, e com desejo e cuidado tão virtuoso, como é este
vosso, já foi outras vezes posta e encommendada sobre os hombros e
forças d'outros chronistas d'estes reinos, que ante mim foram pessoas de
singular doutrina e mui sufficientes: e por suas grandes e desesperadas
difficuldades e peso incomportavel, elles nem sómente a moveram; porém
eu que para vencer e passar com ella caminhos já tão cerrados e de tanta
aspereza e escuridão, convertidas já em uma manifesta impossibilidade,
por vir ao fim de vosso desejo e esperança, tomei por guia e salvo
conduto de tantos temores vosso mandado e o vivo desejo que sobre todos
em mim sinto de sempre bem e lealmente servir Vossa Real Senhoria, e
inteiramente lhe obedecer: confiando que ao menos, pelo merecimento de
minha obediencia, algum tanto serei relevado do erro da ignorancia e
temeraria ousadia com que emprendi e acabei esta real e mui verdadeira
chronica, cuja sequencia é n'esta maneira.



CHRONICA

DO

SENHOR REI D. AFFONSO V



CAPITULO I

_Narração_


O muito alto e muito excellente Rei D. Duarte, d'este nome o primeiro, e
onzeno dos Reis de Portugal, acabou sua desejada e necessaria vida com
claros signaes de grande contrição, e com certo testemunho de salvação
de sua alma, em a Villa de Thomar, quinta feira IX dias de Setembro,
anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e quatrocentos e
XXXVIII: no qual dia por espaço de duas horas o sol em grande cantidade
foi cris, assi como tambem o foi na hora do fallecimento d'El-Rei D.
João seu padre, e da Rainha D. Filippa sua madre. E as cousas que de sua
antecipada morte se conjeituram, e aos autos de prantos e tristezas que
se n'ella não podiam escusar, e como foi levado ao mosteiro da Batalha,
onde jaz sepultado, em sua Chronica, onde propriamente pertence, com
maior declaração estão apontadas.

E por seu fallecimento ficaram legitimos dois filhos e quatro filhas: I
o Principe D. Affonso filho seu maior, primogenito herdeiro, que logo
foi alevantado por Rei, que de sua edade havia seis annos e entrava em
sete: e o Infante D. Fernando, padre d'El-Rei D. Manuel nosso Senhor: e
a Infante D. Filippa, que no anno que o dito Rei falleceu se finou em
Lisboa de onze annos: e a Infante D. Lyanor, que foi imperatriz
d'Allemanha: e a Infante D. Catherina que sem casar falleceu e jaz em
Santo Eloy de Lisboa: e a Infante D. Joanna, de que a Rainha D. Lyanor
ficou prenhe, e foi Rainha de Castella, casada com El-Rei D. Anrique, o
quarto d'este nome.

E ficaram outrosi vivos estes irmãos d'El-Rei D. Duarte, filhos d'El Rei
D. João I; o Infante D. Pedro, que era duque de Coimbra: e o Infante D.
Anrique, que era duque de Vizeu e tinha o Mestrado de Christus: e o
Infante D. João, que era Condestabre do Reino e tinha o Mestrado de
Santiago: e o Infante D. Fernando, que então era captivo em Fez e tinha
o Mestrado d'Aviz: e a Infante D. Izabel, legitima duqueza de Borgonha,
casada com o duque Filippe: e D. Affonso conde de Barcelos, que depois
foi duque de Bragança, que era filho natural d'El-Rei D. João.

Ao tempo que o dito Rei falleceu não eram em Thomar outras pessoas
principaes, depois do Principe D. Affonso e seu irmão, salvo a Rainha D.
Lyanor sua mulher, filha d'El-Rei D. Fernando d'Aragão, e o Infante D.
Pedro, irmão primeiro legitimo d'El-Rei: o qual, por dar ordem ao
alevantamento d'El-Rei D. Affonso seu sobrinho, e ás outras cousas que
pertenciam para bem do reino, ficou na dita villa e não foi com o corpo
de seu irmão, a que não falleceu outra muita e honrada companhia.



CAPITULO II

_Alevantamento d'El-Rei_


Era quinta feira logo seguinte, dez dias do dito mez: o Infante D.
Pedro, como Principe a que das cerimonias reaes e das outras cousas em
que cabia descrição e virtude nada s'escondeu, fez fazer antre o
convento e os paços do castello da dita villa um assentamento assi real
e ricamente guarnecido, como para o auto cumpria. E á bespora do dito
dia, o Infante com todolos fidalgos e nobre gente da côrte foram aos
paços d'El-Rei, que eram dentro no convento, vestidos por então os
corpos dos panos mais ricos, mas as almas e caras de clara tristeza, que
em todos não era fingida, mas verdadeira e justa, assi pela privação
d'El-Rei, que era muito virtuoso e para todos de grande humanidade e boa
condição, como por lhes os corações revelarem as grandes divisões e
muitos trabalhos, em que pela soccessão de tão novo Rei se haviam de
vêr, como viram.

O Principe D. Affonso posto em vestiduras reaes, e bem acompanhado de
todos, sahiu fóra ao assentamento, onde pelo Infante D. Pedro com grande
reverença, e muito acatamento foi posto na cadeira real. E emquanto um
Mestre Guedelha, singular fysico e astrologo, por mandado do Infante
regulava, segundo as influencias e cursos dos planetas, a melhor hora e
ponto em que se poderia dar aquella obediencia: o Infante volveu a
contenença ao povo, e com grão segurança e palavras mansas disse:

«Como quer que, o dia d'hoje com muitos dos que virão, teriamos justa
causa dar lugar a nossos olhos, que com muitas lagrimas testemunhassem a
dôr e perda que recebemos na morte de um Principe tão catholico e tão
virtuoso, e tão necessario a nós todos como foi El-Rei meu Senhor e
irmão, cuja alma Deus haja: devemos, porém, consirar como catholicos e
de razão, que, pois em escusar sua morte não ha remedio, que duas cousas
sómente nos ficam, para que a Deus e ao mundo certefiquemos o amor e boa
vontade que lhe tinhamos. A primeira, em nossas orações, jejuns e obras
meritorias havermos sua alma em memoria para a encommendarmos a Deus. A
segunda, este ramo em todolos signaes de virtudes tão florecido, que de
seu real Tronco naceo, que é o mui excellente Princepe D. Affonso seu
filho nosso Senhor, que temos presente, havermo-lo de reconhecer, servir
e amar por nosso só natural e verdadeiro Rei e Senhor, como o requere
nossa mui antiga e costumada lealdade, e o Direito nos obriga. E, porém,
vo-lo apresento aqui para o assi em todo o reconhecerdes, e vos
encommendo da sua parte, que para o assi fazerdes não hajaes respeito á
sua nova idade, mas ás velhas obrigações em que para isso lhe soes e sua
Real Senhoria nos dá já uma mui certa esperança d'acharmos n'elle honra,
mercê, favor e justiça, como cada um o merecer e lh'o requerer.»

E em dizendo Mestre Guedelha, que era boa hora para fazer sua
obediencia, o Infante com os giolhos em terra tomou as mãos ao Principe,
e em lh'as beijando disse:

«Muito alto e muito excellente Senhor, assi como vos eu hoje ponho
n'esta seda, em que vós por graça de Deus legitimente recebeis o real
Septro e senhorio d'estes vossos reinos, assi espero com sua ajuda e
minha grande lealdade de vo-los ajudar a manter e deffender com todas as
minhas forças e poder, e saber, quando me vossa Mercê mandar, ou eu
sentir que cumpre a vosso estado e serviço.»

E com estas palavras acabando se alevantou.

E logo D. Duarte de Meneses, alferes mór, filho do conde D. Pedro de
Meneses, primeiro capitão de Ceuta, com a bandeira real levantada, e os
reis d'armas e arautos com elle começaram alli sua grita, e depois com
ella foram pela villa, repetindo-a tres vezes, segundo custume, com toda
aquella cerimonia e solemnidade que a tal auto real pertencia; porque o
Infante D. Pedro, por cuja ordenança e mandado se fazia, era Principe
n'aquellas cousas mui ensinado, e quiz n'aquelle auto que não ficasse
cousa dina por fazer: assi porque assi o requeria sua grande bondade e a
muita lealdade em que nascêra: como por mostrar a muitos de damnadas
maginações, e á Rainha D. Lyanor principalmente, que aquella fôra
sempre, e era sua leal e verdadeira tenção d'obedecer, e não a outra
falsa de querer por força reinar, como lhe faziam crêr que elle
desejava. Porque a Rainha, como quer que sempre foi muito honesta,
virtuosa, prudente, devota e muito amiga da vida e honra d'El-Rei seu
marido: porém sempre em sua vida mostrou ao Infante D. Pedro que não lhe
tinha boa vontade: e as causas porque assim fosse eram occultas para
culpar o Infante, salvo se procedessem de induzimentos alheios, que em
sua feminil fraqueza de ligeiro fariam impressão, ou por ventura
procederia das imisades que foram entre El-Rei D. Fernando d'Aragão, pae
da rainha, e o conde d'Urgel, pae da Infante D. Izabel, mulher do dito
Infante D. Pedro, que pertendeu por direito na successão d'Aragão, e foi
d'El-Rei n'ella vencido.



CAPITULO III

_De como começaram de entender nas cousas do reino, e se viu o
testamento d'El-Rei_


Tanto que a Rainha viu seu filho alevantado por Rei, logo fez chamar á
sua casa o Infante D. Pedro, e o Arcebispo de Lisboa, D. Pedro de
Noronha, primo com irmão de seu pae d'ella, e as outras principaes
pessoas que hi eram. Perante as quaes, em presença de notairos publicos,
fez abrir e lêr o testamento d'El-Rei seu marido, em que foi achado
ella, sem ajuda d'outra pessoa, ficar in solido testamenteira de sua
alma, e titor e curador de seus filhos, e regedor do reino, e herdeira
de todo o movel. E encommendou n'elle muito que, por dinheiro, ou
captivos, ou por outra qualquer maneira tirassem de poder dos mouros o
Infante D. Fernando seu irmão; e quando por semelhantes meios não fosse
possivel, que então Ceuta sem escusa se desse por elle; da qual
publicação a Rainha por sua guarda mandou tomar estromentos, e começou
logo a usar do regimento inteiramente sem alguma publica contradicção:
como quer que alguns seus servidores avisados e virtuosos, e que de
verdade amavam sua vida, honra e descanso, logo sã e secretamente lhe
disseram em conselho n'esta maneira:


_Conselho que se deu á Rainha_

«Senhora, o peso d'este cargo de reger, que assi soltamente tomaes, é
mui grande e tal, que muitos barões abastados de fortaleza de coração e
de prudencia o receáram. E por serdes mulher e ainda estrangeira, como
quer que para isso haja em vós sã consciencia e conhecidas virtudes com
mui santo desejo, em caso que não houvesseis n'elle alguma contradicção,
certo duvidamos que o possaes soffrer; porque Vossa Senhoria ha-de
consirar que são n'este reino tres Infantes, grandes Principes, e de
muita autoridade, e naturaes da terra, que hão d'estimar por quebra e
abatimento de seus estados serem regidos por mulher, especialmente não
natural nem herdeira, como vós sois, e que o por suas bondades e
assessego de todos quizessem consentir, não falleceriam outros amigos de
novidades, que lh'o fariam sentir e obrar por outra maneira: de que se
não podem escusar odios, escandalos e outros muitos males, em especial
claros impedimentos para vós, nem elles estes reinos poderdes reger,
como a serviço de Deus e d'El-Rei, e bem d'elles cumpre: de que vos
muito deve pesar. E não vos fieis nos offerecimentos e muita parte que
vos muitos de si agora prometem, para crerdes que o esforço d'estes
enfraquentára o dos outros; porque em fim todos, ou a mór parte hão de
seguir a vontade dos Infantes, qualquer que fôr, quanto mais que já
agora pelas praças se solta, que El-Rei nosso Senhor, vosso marido, que
santa gloria haja, vos não podia leixar este cargo de reger: cá este
poder demleger regedor do reino era sómente ao reino e aos tres estados
d'elle reservado; e d'onde isto agora sae de presumir é que mais jaz.
Pelo qual nosso conselho seria, que agora com prazer e assessego vosso,
e do reino, consirados todos estes inconvenientes, leixasseis assi de
vossa vontade este regimento, antes que depois o leixardes forçada, ou
impedida de vossa natural fraqueza, ou de outras forças maiores: o que
deve ser com pouca honra e contentamento vosso. E a vós, Senhora, bem
abastara terdes cuidado da criação de vossos filhos, e do descargo
d'alma d'El-Rei vosso marido, que são cousas assás grandes, honradas e
honestas.»

A Rainha, como era senhora de bom entender e de tenção sã, e conforme em
todo ao serviço de Deus, pareceu-lhe bem este conselho, e quizera-o
seguir; mas não falleceram logo outros, que com outras razões córadas ao
revés d'estas, a mudaram d'este proposito, e fizeram tomar determinação
de todavia reger só: dando-lhe estes, por principal causa, a segurança
da vida e estado de seus filhos, que em poder do Infante D. Pedro lhe
faziam crêr que não seriam muito seguros, por ser principe poderoso,
amado do povo, e tinha filhos, e podia n'elle entrar o desejo de reinar,
que vence todolos outros; e assi venceria n'elle a divida lealdade para
o executar.



CAPITULO IV

_Da vinda do Infante D. Anrique à côrte, e das cousas que se logo
acordaram_


O Infante D. Anrique, depois da vinda do cerco de Tangere, que veiu
fallar a El-Rei seu irmão a Portel, como anojado do captiveiro do
Infante D. Fernando, seu irmão: e por o feito se não seguir, como
desejava, se tornou logo ao reino do Algarve, sem mais tornar a este; e
como lá foi avisado da doença d'El-Rei, pelo grande amor e muita
lealdade que lhe tinha, partiu logo: e assi trigou suas jornadas, que em
mui poucos dias chegou a Thomar, onde já achou El-Rei fallecido. Mas a
Rainha, e o Infante D. Pedro, e toda a côrte, vendo-o com sua triste
livré, renovaram com sua vista outros prantos maiores, nem era sem
razão; porque n'elle pareciam signaes de tanta tristeza, e dizia
palavras de tanto sentimento, que aos dormentes na dôr espertava para
chorar, e ser tristes.

A Rainha depois d'esto enviou chamar o Infante D. Pedro, e lhe disse:

«Senhor Irmão, porque sinto que é necessario dar-se ordem e remedio ás
cousas do reino, que estão ora suspensas, eu vos rogo muito que tomeis
cuidado de ter em vossa casa conselho: e Vós, e o Infante vosso irmão,
com os principaes que aqui são, apontae o que em taes tempos e casos
convem que se faça: e trazei-m'o para o vêr, e me acordar comvosco e se
fazer o que fôr serviço de Deus, e d'El-Rei meu filho, Senhor, e bem de
seus reinos».

A qual cousa se poz logo em execução, e se teve conselho, em que foi
acordado que aos embaixadores de Castella, que hi eram por despachar,
fosse por então respondido, que esperassem a vinda dos grandes do reino,
com que El-Rei ordenava de fazer côrtes e ter conselho: e que logo
haveriam resposta.

E estes embaixadores vinham a El-Rei D. Duarte, e chegaram ao tempo de
seu fallecimento; e as pessoas que eram, e o que requeriam, e com que
fundamento, ao diante se dirá.

Acordaram outrosi, por quanto em Castella começava d'haver movimentos,
que pareciam principios de guerra, que os alcaides das fortalezas dos
estremos fossem avisados sobre bôa guarda e defensão d'ellas: e assi que
se fizesse o geral acostumado chamamento, para o saimento que se havia
de fazer na Batalha, e côrtes em Torres Novas. E as cartas, que sobre
isto haviam de ir, acordou o Infante D. Anrique com os do conselho, que
fossem assignadas pelo Infante D. Pedro; mas elle com mostrança de muita
honestidade se escusou: e a Rainha assignou aquellas, e todalas outras
até ás côrtes; porque n'ellas se acordou outra ordem de Regimento, como
se dirá.

E assi tomou cuidado a Rainha de cumprir aquellas cousas do testamento
d'El-Rei, que logo cumpriam de se acabar. E de todo o movel que lhe foi
leixado tomou para si a capella e reposte, e repartiu as cousas de
guarda-roupa e estrebaria por essas pessoas a que lhe parecia razão, e a
que mais afeiçoada era: não se esquecendo prover com vestimentas, das
roupas e pannos de seda que ficáram, a algumas egrejas e mosteiros, em
que sentiu que podia d'isso haver necessidade.



CAPITULO V

_Como o Infante D. Fernando foi jurado por Princepe, se El-Rei não
houvesse filho legitimo_


Estando assi estes Senhores em Thomar, esperando o tempo do saimento e
côrtes, foram alli juntas quasi todolas pessoas principaes do reino, com
esperança e certidão de futuras mudanças, salvo o Infante D. João, que
era doente em Alcacere do Sal, a que por grande resguardo da Infante sua
mulher, a morte d'El Rei seu irmão não foi descoberta se não depois que
foi retornado em sua saude, a que não fossem contrairas novas para elle
tão tristes. E sendo presentes em conselho os Infantes e o conde de
Barcellos seu irmão, e o Infante D. Pedro propoz logo primeiro dizendo:

«Senhor irmão, e honrados senhores fidalgos que aqui estaes, bem vêdes
que a nova idade d'El Rei nosso Senhor assi n'elle, como nos outros
meninos, é sojeita a muitos casos e desastres, de que Deus nosso Senhor
o guarde e defenda. E porque d'aqui até que sua Mercê tenha idade e
desposição para casar e haver filhos, se passará bom espaço de tempo:
meu voto é, por sermos fóra d'algumas duvidas que por sua morte em tal
tempo podiam sobrevir, que o Senhor Infante D. Fernando seu irmão, seja
logo aqui intitulado e jurado por Principe e seu herdeiro, até que a
Deus praza de dar a El-Rei nosso Senhor filho que de tal nome se possa
intitular, e o sobceda: e n'isto não sómente faremos o que é necessario,
mas ainda pagaremos o que devemos a nossa lealdade, e ao grande amor que
tinhamos a El-Rei meu Senhor e irmão, e ao que somos certos que nos elle
tinha. E este tempo é tal, em que estas obrigações se devem a seus
filhos pagar, em todo o que redunda em suas honras, estado e serviço».

Acabou o Infante sua proposição, em que não foram necessarias mais
razões para suas sinas, para se louvar, e haver por justa e bôa sua
tenção. Pelo qual os Infantes e o Conde de Barcellos, e os outros
senhores que eram presentes, por si e por todolos do reino logo fizeram
d'isto um auto solemnisado por juramento, perante notairos publicos, em
cumprimento do qual o Infante D. Fernando se chamou e intitulou por
Princepe, até que El-Rei houve filho.



CAPITULO VI

_Primeiro consentimento da Rainha para El-Rei seu filho casar com a
filha do Infante D. Pedro_


A Rainha por este accordo e determinação de que foi certificada, recebeu
em sua tristeza muita consolação, e em seus cuidados descanço, e em seus
receios grande segurança: especialmente por ser d'ella inventor e
principal movedor o Infante D. Pedro, em quem, pelas causas que já
toquei, lhe faziam sem causa ter suspeitas, a seus filhos perigosas, e a
ella desleaes; como quer que por elle nunca foram cuidadas, nem por
alguma obra, nem congeitura fossem sentidas. Pelo qual, como Senhora
virtuosa e agardecida a boa vontade e obras que o Infante D. Pedro
começára de mostrar, mandou logo a elle o doutor Ruy Fernandes com esta
mesagem:

«Senhor, diz a Rainha nossa Senhora, que por saber bem o grande amor que
vos El-Rei seu Senhor tinha, e o desejo que sempre teve para vossa honra
e acrecentamento: e como, em cumprimento de sua tenção leixou dito a
Frei Gil de Tavulla, seu confessor, que sua derradeira vontade era, que
o Principe seu filho casasse com D. Isabel vossa filha; que assi por
cumprir principalmente a vontade d'El-Rei seu Senhor, como por vos
mostrar com obras de vossa honra e contentamento, o contrairo do que por
ventura vos fazem d'ella crêr: e des-hi, porque vê que é este um dos
melhores casamentos do mundo que a El-Rei seu filho, Senhor, agora
melhor pode vir, lhe apraz que este casamento logo entre ambos se faça;
e que para isso vos envia por mim seu consentimento, que por ventura
atégora haverieis por duvidoso, e não tão certo.»



CAPITULO VII

_Resposta do Infante D. Pedro á Rainha_


O Infante, como ouviu este recado, em que viu o cabo de sua
bemaventurança, com o coração cheio de alegria, e os olhos por isso não
vasios de lagrimas, disse:

«Doutor amigo, dizei á Rainha, minha Senhora, que lhe beijo as mãos por
tamanhas duas mercès, como em sua embaixada me mandou offerecer: cá uma,
de sua Senhoria haver por bem que este casamento se faça, é a maior que
para mim pode ser. E a outra não na estimo em menos; pois se lembrou de
m'a fazer sem meu requerimento. E que álem da paga principal que n'isso
recebe de suas muitas virtudes, prazerá a Deus que eu a servirei por
maneira que se não arrependa d'este seu proposito: mas que por agora me
não parece tempo conveniente para isso, assi por a pouca idade d'El-Rei
meu Senhor, em que se não perde tempo, como pela tristeza geral, em que
com tanta razão todos seus vassallos estamos; e que sua Senhoria haja
por bem que isto se alargue mais alguns dias, nos quaes se procurará a
dispensação que se requer, e o povo perderá parte d'este sentimento, e
se poderá fazer então melhor e com mais honestidade, e com aquellas
cerimonias e festas que se a taes pessoas deve.»



CAPITULO VIII

_Contradicção que houve em algumas pessoas no consentimento do casamento
d'El-Rei com a filha do Infante D. Pedro_


O consentimento e prazer da Rainha ácerca d'este casamento, não foi
egualmente recebido nos corações de todos os que alli eram: cá uns o
aprovavam com prazer e sem paixão, e outros com tristeza, odio, inveja e
cobiça, o não podiam padecer. E entre alguns d'estes que hi havia, o
principal, diziam, que era o conde de Barcellos, a quem parecia que da
conclusão e outorga d'este casamento pesava muito. E, como quer que em
publico o não contradissesse, procurava porém secretamente, por meio do
Arcebispo D. Pedro, de Lisboa, a quem a Rainha dava muita fé, e não
tinha boa vontade ao Infante D. Pedro, como do que ácerca d'este
casamento lhe tinha prometido, ella se desdissesse, com fundamento de
trabalhar com toda sua possibillidade que El-Rei casasse com sua neta,
D. Isabel, filha maior do Infante D. João; porque o conde de Barcellos,
como já disse, foi filho natural d'El-Rei D. João, e teve tres filhos
legitimos da filha do Condestabre D. Nuno Alvares Pereira, com quem
primeiro casou: saber D. Affonso, conde d'Ourem; e D. Fernando, conde
d'Arrayolos: e a Infante D. Isabel, mulher do Infante D. João; e por
falecimento da filha do Condestabre casou com D. Costança de Noronha,
filha do conde de Gyam e irmã d'este Arcebispo, que elle com razão amava
muito; porque n'ella havia assaz de virtudes e fremosura e outras
bondades, porque o bem merecia: e d'ella não houve filho nem filha, e
por seu respeito o conde de Barcelos amava muito todas suas cousas
d'ella, e em especial seus irmãos, entre os quaes o principal era o
Arcebispo, asi por sua idade maior, como por sua denidade; e por isso o
conde fiava d'elle, e lhe encarregava a estorva d'este casamento d'El
Rei com a filha do Infante D. Pedro: e não falleciam outros que o n'isso
assaz ajudavam. Da qual cousa o Infante por seus meios foi logo avisado:
e como era prudente e discreto, não lhe esqueceu o que geralmente se crê
e afirma da inconstancia e pouca firmeza que muitas mulheres por sua
natural condição tem, quão ligeiramente se movem. Pelo qual, por segurar
o passado, foi logo fallar á rainha, pedindo-lhe com palavras em que
havia muita razão e honestidade, que da mercê e consentimento que lhe
tinha prometido ácerca do casamento d'El-Rei com sua filha, lhe desse
uma certidão e segurança assignada por ella; do que a Rainha muito
aprouve, e encommendou ao Infante que a fizesse, como fez, em um Alvará,
na fórma que cumpria: e Ella o assignou e lh'o deu, que o tivesse.



CAPITULO IX

_De como se fez o saimento d'El-Rei no mosteiro da Batalha_


El-Rei e o Principe seu irmão, e a Rainha e Infantes, e outros muitos
prelados e condes, e senhores do reino, partiram de Thomar para o
mosteiro da Batalha no fim do mez d'Outubro, que era o termo, a que as
gentes, para o saimento d'El-Rei, se haviam n'elle de ajuntar, e des-hi
para as côrtes em Torres Novas, e por estas ceremonias de saimentos, que
aos Reis e Princepes, depois de suas mortes, em suas reaes sepulturas se
fazem, serem tão geraes e tão costumadas em Espanha e assim n'estes
reinos de Portugal, que pela mór parte todos hão d'ellas noticias e
informação: por fugir o vicio e avorrecimento da proloxidade, a mim
pareceu escusado descreve-lo aqui particularmente, e sómente abaste
brevemente saber que na pompa e cerimonias de suas exequias se guardou e
cumpriu todo o que ao estado de um tão alto Principe em tal auto
cumpria; e nos bureis e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas geraes
de todolos olhos, e na commum tristeza de todolos rostos, em todo o
reino claramente parecia quanto em sua vida era de todos amado, e a
grande perda e desamparo que, por sua morte e pelo perder, todos
recebiam.



CAPITULO X

_Como ante de se fazerem as primeiras côrtes em Torres Novas, se fez uma
conjuração contra o Infante D. Pedro_


Acabado o saimento, assi como alli eram juntos, assim se foram todos a
Torres Novas, onde por dar logar que alguns alcaides e outras pessoas
acabassem de vir, para fazer as menagens e dar a obediencia a El-Rei,
sem se começarem as côrtes se passaram alguns poucos dias: nos quaes por
meio principalmente de Vasco Fernandes Coutinho, marechal, que depois
foi primeiro conde de Marialva, foram liados por juramento contra o
Infante D. Pedro casi todolos fidalgos do reino, em que entravam, por
mais principaes, o Arcebispo D. Pedro, e D. Sancho seu irmão, e o priol
do Crato D. Frei Nuno de Goes; os quaes juntos secretamente em uma
egreja, o marechal, como quer que outros hi estivessem de mór valor e
auctoridade, elle para os mais commover a seu proposito, porque tinha
para isso audacia, lhe fez uma falla com largas razões, cuja sustancia
foi:

«Que o regimento do reino e criação d'El-Rei e seus irmãos por
disposição do testamento d'El-Rei ficára, como sabiam, que não saisse do
poder da Rainha; o que elles deviam requerer e procurar que se
cumprisse; assi por ser razão, como por a Rainha ser mulher estrangeira,
da qual por se mostrarem em favor de seu serviço e tenção sempre
receberiam honra, favor, mercê e acrecentamento; e por isso deviam
trabalhar que não viesse em maneira alguma ao Infante D. Pedro, de cujos
rigores e mostranças suas falsas, que fazia ao povo, de justo e sã
conciencia, não podiam receber se não o contrairo; e que isto lhes seria
facil de fazer; porque por parte do Infante D. Pedro, quando muito
podesse ser, seria povo e gente meuda, que sem cabeceiras não teriam
forças nem dariam ajuda, e que por a sua d'elles eram os que estavam
presentes com outros muitos que logo seriam com elles; e mais cria do
Infante D. Anrique, e sabia do conde de Barcellos, que seriam em sua
ajuda, pedindo-lhe em conclusão, que o houvessem todos assi por bem, e o
affirmassem, e segurassem com juramento.»

Do que a todos aprouve, e o poseram em escripto, que logo juraram.

Mas, como quer que n'isto entrassem grandes homens, e de muita
auctoridade, porém seus signaes e juramentos tiveram d'hi a pouco pouca
firmeza; todos os mais se desdisseram e acostaram á banda do Infante D.
Pedro e dos outros Infantes que foram com elle; porque n'aquelle tempo
todo o reino finalmente estava á vontade e disposição dos filhos e netos
d'El Rei D. João.

E d'este ajuntamento assi jurado, que á rainha logo foi notificado,
porque confiou n'elle muito mais do que devera, se lhe seguiu todo seu
damno, perda, desassocego, e emfim a morte, não como a seu estado
cumpria; porque crendo, que n'estes para seus feitos haveria a firmeza
que juraram e lhe prometteram, não se contentou no principio d'estes
movimentos d'alguns meios bons e honestos, que lhe foram apontados; do
que a ella pelos não acceitar se seguiu muito mal, e ao reino, e a
muitos d'elles pouco bem, como se dirá.



CAPITULO XI

_Como se deu a obediencia e fizeram as menagens a El-Rei e se praticou
sobre quem regeria_


Assignado o dia da proposição das côrtes, El-Rei teve seu estrado e Real
Estado em uma pequena praça, que se faz ante a egreja de Santiago
d'aquella villa, onde todolos senhores e officiaes e procuradores dos
povos postos em sua costumada e antiga ordenança, começou e fez arenga,
que para tal auto se requere e costuma, o doutor Vasco Fernandes de
Lucena, mui elegante e cheia de mui dôces palavras e graves sentenças
para aquelle caso da obediencia; e com necessarias e vivas razões
exortou todolos que eram presentes para a fazerem; como a arenga foi
acabada os Infantes primeiro, e des-hi os condes e os outros senhores
deram logo suas menagens e obediencias a El-Rei, segundo sua boa e
devida lealdade; e começaram logo de mover sobre quem teria o regimento
do reino, que das côrtes era o ponto mais sustancial, no que houve entre
todos grandes desvairos; porque os mais se mostravam segundo opinião das
parcialidades que tinham, justificando cada uns suas tenções, e aos
menos, que haviam respeito ao bem commum e assessego do reino, não eram
recebidos nem ouvidos seus meios.



CAPITULO XII

_Concordia feita entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do
regimento_


E porque a competencia e deferença do regimento não era principalmente
salvo entre a Rainha e o Infante D. Pedro, a Rainha, como senhora, que
de sua virtuosa condição desejava todo o bem e assessego, sentindo os
malles e damnos que d'estas diversões se podiam seguir, pelos atalhar
com alguma justa concordia, enviou rogar ao Infante D. Pedro por meio do
Infante D. Anrique, que lhe fosse falar: do que o Infante foi muito
alegre; e, escolhendo para isso tempo conveniente, satisfez logo a seu
requerimento: e, sendo ambos sós apartados, a Rainha lhe disse muitas
rasões sobre o desvairo do regimento, em que bem pareceu que havia
n'ella muita virtude, sã conciencia e grande discrição e justo juizo,
concluindo que lhe rogava que ambos sem outro meio se quizessem sobre
isso concordar.

O Infante D. Pedro, como era Principe justo, bom, e temente a Deus, foi
de suas palavras assaz contente; e com outras de grande reverencia e
acatamento lh'as teve muito em mercê; e depois d'alguns meios, sobre que
entre si debateram, finalmente foram acordados d'esto:

«Que com a Rainha ficasse o cargo da criação de seus filhos, e com a
governança e ministração de toda a fazenda; e ao Infante ficasse o
regimento da justiça e o titulo de defensor dos reinos por El-Rei.»

O qual meio, por muitas rasões, que entre si praticaram, houveram por
justo e razoado; e mostraram ambos ser d'elle muito contentes.



CAPITULO XIII

_Da contradição e mudança que houve n'este acordo_


Fez-se este acordo entre estes senhores pela manhã, no qual dia os que
eram ajuramentados, em especial o Arcebispo de Lisboa, por meio de seus
meios, que dentro trazia, souberam logo da falla que a Rainha e o
Infante houveram; e, como ficaram ambos d'acordo, do que lhes muito
pesou, e em especial se disse, que desprouvera muito ao conde de
Barcellos, que desejava e procurava entre elles haver desacordo, por se
não aceitar o casamento de El-Rei com a filha do Infante, esperando com
a vinda do Infante D. João á côrte, que El-Rei casasse com sua filha,
como atraz se tocou.

E ao outro dia, sendo ante a Rainha juntos alguns d'estes Principaes
seus servidores, lhe perguntáram em que maneira se concordára com o
Infante. E a rainha lhes disse que era bem concordada; e que por assi
ser dava graças a Deus, dizendo-lhe logo a concordia em que ficaram, e
as causas e razões porque ella devia ser, e era d'isso contente. A qual
cousa lhe logo todos desdisseram; e que fôra n'isso muito enganada, e
seu estado muito abatido; e que ainda errára fazer nada em cousa
semelhante sem primeiro lh'o fazer saber, ao menos para a aconselharem,
afeando tal concerto com razões e inconvenientes assi córados, e tão
aparentes, que a Rainha, vencida d'elles, creu que em fazer tal acordo
não podera fazer cousa em todo mais errada. Pelo qual logo alli lhe
fizeram tomar outra determinação contraira á em que ficára com o
Infante; e que todavia se afirmasse ella só reger sem outra ajuda; e,
quando não podesse com alguma parte do regimento, que de sua mão a désse
e encarregasse a quem sentisse que havia de servir e fazer sua vontade.
O que não ficou logo por saber ao Infante D. Pedro.



CAPITULO XIV

_Apontamentos que publicamente se fizeram contra o testamento d'El-Rei
para a Rainha não dever reger_


Com esta volta que a Rainha fez do proposito e acordo em que ficára com
o Infante, começaram outra vez as differenças e debates entre os grandes
e povo sobre o regimento.

A Rainha com os de sua parte requeriam para ella toda a governança em
solido, assi como no testamento d'El-Rei ficára determinado: os povos
geralmente com outros da parte do Infante D. Pedro requeriam o regimento
para elle só sem outra ajuda nem companhia, allegando que a Rainha por
muitas razões não devia reger; e d'este voto foram Pedro de Serpa, e
Vicente Egas, cidadãos e procuradores de Lisboa, homens honrados, bem
entendidos, e de grande autoridade. Os quaes altercando sobre estes
debates perante El Rei, como quer que era menino, quando um e quando o
outro lhe disseram:

«Muito alto e poderoso Principe, Rei nosso Senhor, porque nos parece que
acerca de se regerem estes reinos por vós, sois requerido que cumprindo
o testamento d'El-Rei vosso padre, que Deus haja, deis inteiramente o
regimento á Rainha nossa Senhora vossa madre, nós, como procuradores da
vossa cidade de Lisboa, e assi em nome dos outros procuradores que aqui
são, nossos irmãos, dizemos que sob reverencia de vossa real pessoa,
El-Rei vosso padre não podia fazer tal testamento; nem em tal caso
leixar Regedor do reino á sua disposição; porque a nós vosso povo
pertence por direito enleger quem por defeito de vossa madura edade nos
haja por Vós de defender com as armas e reger por leis com justiça.

E isto não aggrava vossa legitima sobcessão; nem mingúa em vossas
lealdades; cá por serdes seu filho maior legitimo, e barão, nós
alegremente vos reconhecemos e recebemos por nosso verdadeiro Rei e
Senhor; e com ajuda de Deus vos guardaremos aquella lealdade, fé, e
amor, que bons, leaes vassalos devem a Senhor; mas quanto a enleger
Regedor, até que Vós sejaes em edade para nos por vós regerdes, nós
buscaremos e enlegeremos quem em vosso nome nos haja de reger e
governar; porque asi como a nós sómente pertence enleger Rei, se a real
e legitima sobcessão dos Reis d'estes reinos por algum caso, o que Deus
não queira, se destinguisse, e se não guardaria em tal caso o
testamento, nem disposição do Rei postumeiro; assi pertence a nós
enleger agora Regedor por Vós; e para serdes servido abasta que nós o
enlejamos tal, que seja natural, e do vosso real sangue, e não
estrangeiro, e em que haja virtudes, saber, e conciencia, e sobre tudo
lealdade, a que se não deva poer suspeita. E vossa mui Real Senhoria,
guarde-nos nossa justiça e liberdade, como esperamos, no que recebereis
muito serviço: e nós vossos vassalos com vossos reinos receberemos
mercê, proveito e assessego, que deveis desejar: e assi o pedimos a vós,
mui illustres Infantes e magnificos condes; e requeremos a vós, honrados
senhores, e leal povo de Portugal, que aqui sois juntos para celebrar
estas reaes côrtes, que assi juntamente o peçaes e requeraes que se
faça.

No cabo d'esta falla, assi como os corações dos que a ouviram eram
desvairados, assi não houve rostos nem consentimentos eguaes; e por isso
não cessáram os primeiros debates do Regimento, os quaes, como sómente
eram entre a Rainha e o Infante, como disse, alguns por assessego
apontavam que ambos fossem exclusos de reger, e enlegessem outros;
outros diziam, mas que ambos regessem juntamente n'aquella parte que a
cada um bem coubesse; outros tinham que a Rainha sómente tivesse o
Regimento; e outros o davam inteiramente ao Infante: e a esta parte se
inclinavam mais os povos; e a cada uns para execução de seus votos não
falleciam autorizadas razões.



CAPITULO XV

_Do meio que o Infante D. Anrique tomou entre a Rainha e o Infante D.
Pedro ácerca do Regimento_


O Infante D. Anrique era a estas differenças presente, e como virtuoso
meio trabalhou de as poer em alguma temperança: e posto que alguns
tiveram que elle fôra sempre mais inclinado á parte da Rainha que á do
Infante; porém, passados quinze dias d'apontamentos e conselhos, foi
feita por acordo do Infante D. Anrique, e dos outros do conselho e
procuradores do povo uma determinação por maneira de Regimento, que se
denunciou em publico ajuntamento por Nuno Martins da Silveira, escrivão
da puridade, cuja sustancia foi:

«Que a Rainha ficasse por tetor e curador d'El-Rei seu filho com a
ministração das rendas e officios; e o Infante D. Pedro tivesse cargo da
defensão do reino com titulo de defensor, e o conde d'Arrayollos, filho
do conde de Barcellos tivesse cargo da justiça; e que na côrte, onde
El-Rei estivesse, andassem sempre seis do conselho repartidos a tempos,
e mais um prelado e um fidalgo, e um cidadão; e na côrte outros alguns
sem especial necessidade não podessem andar: e que com estes seis do
conselho e tres dos estados se determinassem todas as cousas que
sobreviessem com autoridade da Rainha e acordo do Infante D. Pedro,
estando sempre pelas mais vozes. E sendo caso que seus votos fossem em
desvairo por egual, que o notificassem então aos Infantes e condes; e
que segundo as mais vozes fosse o negocio da duvida determinado».

E as repartições d'estas cousas, em que estes senhores haviam de ter
cargo, eram assi limitadas, que muito poucas, e de pequena sustancia
podia cada um em seu cargo, por só determinar.

Foi mais ordenado «que em cada um anno se fizessem côrtes, ás quaes não
viessem mais que dois prelados e cinco fidalgos, e oito cidadãos, e
n'ellas se determinassem as duvidas que os do conselho por si não
podessem concludir, ou algumas outras em sustancia assi especiaes, que
para aquelle tempo devessem ou podessem ser reservadas, assi como mortes
de grandes homens e privação d'officios grandes, e perdimentos de
terras, e corregimento ou fazimento de leis e ordenações; e que nas
côrtes vindoiras sempre se podesse correger e emmendar qualquer defeito
ou erro que houvesse nas passadas.» Com outras particularidades, cuja
mais expressão não é necessaria.

E n'este accordo cuidou o Infante D. Anrique que, se o Infante D. Pedro
o assignasse e consentisse, que levemente acabaria com a Rainha que
tambem assi o fizesse; mas ella, a que o dito acordo foi primeiro
mostrado, por induzimentos de não verdadeiros e sãos conselheiros o
denegou fazer, querendo que o Regimento lhe fosse dado inteiramente, e
que ella de sua mão daria d'elle a parte que quizesse a quem lhe bem
parecesse.

E o Infante D. Pedro, como quer que mostrasse do dito acordo sentimento,
por lhe ser n'elle mui limitada e adelgaçada a parte do reino que havia
de reger, porém por assessego disse: «que faria o que o Infante seu
irmão quizesse».

Mas o Infante D. Anrique, vendo tão forte o proposito da Rainha, houve o
feito por descordado de todo. De que o povo foi logo sabedor, e posto em
grande alvoroço contra a tenção da Rainha, e de seguirem a do Infante D.
Pedro, qualquer que fosse. Ao qual os povos por Lopo Antonio, que depois
foi escrivão da puridade, fizeram saber «que estavam para seguir o que
elle ordenasse, affirmando que elle só sem outrem havia de reger.»

A Rainha por os de sua parcialidade, que d'este alvoroço foram logo
sabedores, foi conselhada que para o atalhar, como cumpria a seu serviço
e honra, e bem do reino, convinha que logo assignasse o accordo, e não
parecesse que por sua parte ficava; á Rainha prouve fazel-o, e mandou
logo chamar o Infante D. Anrique, em cujo poder era o Regimento, e o
assignou, e ordenou que os Infantes e os outros prelados e condes, e
procuradores, o assignassem e jurassem juntamente, o que todos fizeram
em um altar, perante notairos publicos, salvo o arcebispo D. Pedro, que
não quiz por não ficar o Regimento _in solido_ á Rainha. Mas cada um que
assignou e jurou, fez assi seu juramento, e só escreveu seu signal com
taes cautellas e palavras, que bem parecia querer leixar a sua
disposição fazer sempre depois o que quizesse, sem parecer que o
quebrantava.



CAPITULO XVI

_Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou pedir ao Infante D.
Pedro o alvará que lhe tinha dado sobre o casamento d'El-Rei_


O conde de Barcellos, como quer que assignou este Regimento, não foi
porém d'elle satisfeito, por lhe não ficar n'elle alguma parte; e como
homem que para acrecentar por qualquer maneira seu nome e proveito, teve
sempre grande cuidado, desejando que todavia o casamento d'El-Rei com
sua neta se fizesse, vendo que o alvará que a Rainha tinha dado ao
Infante D. Pedro lhe era para isso grande embargo, ordenou por si e por
outros de sua tenção que a Rainha com razões obrigatorias com que a
moveram, mandasse pedir o alvará ao Infante D. Pedro. A qual como quer
que, como virtuosa o refusasse, por não quebrar sua verdade, e mais a
determinação d'El Rei D. Duarte seu marido; porém como importunada e
induzida lh'o fizeram consentir.

E, porque algum dos outros que eram n'este acordo, não ousou de ir em
nome da Rainha ao Infante pedir-lhe o alvará, o conde de Barcellos
acceitou o cargo, e foi ao Infante, e lhe disse:

«Senhor, a Senhora Rainha vos manda dizer que sabeis, que vos tem dado
um alvará sobre o casamento d'El-Rei nosso Senhor, seu filho com vossa
filha; e por quanto este caso é de tamanho peso e importancia, que o não
devera passar sem accordo e conselho dos principaes do reino, a que
tambem toca; e agora por estes movimentos não é, nem póde n'isso
entender, vos roga que lhe mandeis o alvará, e que sobre isso terá a
maneira que vir que cumpre, fallando primeiro com nós outros, de quem
sabeis que não ha de sahir, salvo cousa que seja vossa honra e
acrecentamento.»

O Infante lastimado da embaixada e avisado de sua destruição, d'onde
nacia, a que fim vinha, disse:

«O alvará que dizeis, é em meu poder; e eu, se quizesse, justa e
honestamente podia denegar á Senhora Rainha a entrega d'elle; porque não
sei como o que por El-Rei meu Senhor e irmão me foi outorgado, e por
ella depois a mim lembrado, requerido e outorgado, se me póde revogar
sem causa; bem creio que em suas virtudes haveria firmeza de cumprir o
que promette, e mais em cousa tão justa e tão honesta, se a não movessem
d'ella conselheiros pouco fieis, no que lhe fazem pouco serviço; porém,
porque não pareça que eu por força quero, nem tomo, o que com razão me
devia ser requerido e dado, dae a sua Senhoria seu alvará, e irá roto, e
não são a seu poder, em testemunho da quebra de sua verdade, que me
quebrou.»

E logo o tirou de um cofre, e o rompeu, e roto o entregou ao conde.



CAPITULO XVII

_Como El-Rei se foi a Lisboa, onde o Infante D. João veiu a primeira
vez_


Um mez e alguns dias mais duraram as côrtes em Torres Novas, em fim das
quaes, por ser o anno de mantimentos mui esteril, e aquella comarca mui
cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem, como foram, com El-Rei
para Lisboa, onde, por via do mar com industria e aviamento de bons
regedores, se buscou razoado provimento, que deu causa serem hi os
mantimentos em menos careza, que em alguma outra parte do reino.

O Infante D. João, depois de convalescido da doença de que já se disse,
soube do fallecimento d'El-Rei seu irmão, de que sobre todos seus irmãos
mostrou ser mais anojado e não era sem razão; porque por fallecimento da
Rainha D. Filippa, sua madre, o Infante D. João e Infante D. Fernando
ficaram pequenos; e El-Rei D. João recolheu para si o Infante D.
Fernando, que era mais moço; e deu o Infante D. João a El-Rei Duarte que
o criou e amou sempre, como proprio filho: e por esta criação, que com
elle teve, álem da geral e natural divida d'El-Rei e irmão lhe devia o
Infante D. João, sentiu sobre todos sua morte; porque vindo ante a
presença d'El-Rei e da Rainha, depois da obediencia e reverença devida,
suas continuas lagrimas e dorosas palavras davam claro testemunho do
sentimento de seu coração pela morte d'El-Rei. E ali em publico fez logo
uma falla á Rainha de grandes offerecimentos, de a servir e amar mais
que nunca, com palavras de muita discrição e amor, e acatamento, em que
tambem com razões evidentes lhe tocou, que lhe parecia que se não devia
antremeter no regimento do reino; e que assi como esta havia de ser sua
tenção, assi seria tambem que em todo o mais sua honra, estado,
acatamento e serviço se guardasse por todos o mais inteiramente, do que
se nunca guardára a outra Rainha; do que ella não foi contente, e muito
menos os da sua tenção, que eram presentes: e porque isto foi dito de
praça, logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com que os povos e a gente
d'ella principalmente começaram de se alvoroçar e praticar entre si
secretamente, como tirariam o Regimento á Rainha.



CAPITULO XVIII

_Do despacho que se deu aos embaixadores de Castella_


Os embaixadores de Castella, que eram na côrte, como se atrás disse,
pelos desvairos que sobre o Regimento houve em Torres Novas não foram
ouvidos, nem despachados até Lisboa, onde juntos á Rainha e Infantes com
os deputados do conselho deram sua embaixada, a qual, por ser desgosto
d'este reino, se crê que tardou tanto em se ouvir; porque já a sustancia
d'ella seria revelada.

Requereram em nome d'El-Rei D. João o segundo, que então reinava em
Castella, que as egrejas que pela Cisma então foram tiradas aos bispados
de Tuy e Badalhouce, e eram regidas por administradores, se tornassem a
seus proprios prelados. Outrosi que os mestrados d'Aviz, e Santiago
d'estes reinos tornassem um á Ordem e obediencia de Calatrava, e o outro
á de Santiago de Castella, cujos membros foram, e que os titulos
ficassem, como eram, e as enlições se fizessem cá; mas as confirmações
d'elles se houvessem pelos superiores de Castella. Requereram outrosi
que alguns bispados d'estes reinos reconhecessem superioridade ao
arcebispo de Sevilha, como Metropolitana sua, que sempre fôra. E assim
apontaram sobre tomadias de navios, que se fizeram, requerendo
restituição, apontando e allegando sobre cada uma d'estas cousas muitas
razões e fundamentos de direito: porque entre elles era um grande doutor
de direitos.

Ouvida esta embaixada, em que tambem os embaixadores tocaram aggravos de
sua tardança, houve sobre o despacho d'elles grandes divisões, segundo
os votos de cada um; porque a uns parecia bem responder-lhe manso,
poendo a defesa d'esto em razões de direito; e a outros parecia que no
esforço e confiança d'armas e valentes corações; e finalmente foi havido
então por melhor acordo envia-los, como enviaram, sem alguma certa
resposta, escurando-se com os movimentos, torvações e pouco assessego
que pela morte d'El-Rei ainda no reino havia; e que El-Rei, depois
d'haver em todo seu conselho, enviaria logo a El-Rei de Castella a
resposta com sua embaixada.

E o que d'estes requerimentos se pôde logo saber, foi que não nasceram
da propria vontade d'El-Rei, em cujo nome vinham; mas dos Infantes
d'Aragão, seus cunhados, que então picavam com elle, e governavam o
reino, com fundamento de meter este reino em necessidade, e elles por
seus meios e com sua privança o remedearem, e esperando que por isso
carregariam maior obrigação a El-Rei de Portugal e a seus reinos e
vassalos, para as necessidades suas, em que esperavam de se vêr, como
viram: por quanto fizeram então lançar fóra d'El-Rei de Castella e de
sua côrte o condestabre D. Alvaro de Luna, grande poderoso, e muito seu
imigo.



CAPITULO XIX

_Como a Rainha começou de reger e ser em seu regimento prasmada_


A Rainha regia o reino, e tinha El-Rei em seu poder, e por seu aio Nuno
Martins da Silveira: e como ella era de boa e virtuosa tenção tomava o
encarrego do Regimento com mais trabalho e continuação do que tivera em
costume, nem requeria sua fraca desposição; e des-hi os requerimentos
assi pela boa ordem que se logo deu ao ouvir d'elles, como por haver já
dias que se não despachavam, cresciam cada vez mais; o que cada dia,
além de ser prenhe, lhe causava dôres e enfermidades, que contrariavam
seu bom e verdadeiro proposito; e, sendo com razão aconselhada que
temperasse seu grande trabalho, e entrepozesse nos negocios alguns dias
para seu repouso e descanso, ella constrangida já de suas proprias
necessidades o começou de fazer, não sem reprensões do povo, com que
indevidamente logo começaram a acusar sua innocente fraqueza, e queriam
asolver seus muitos e desordenados requerimentos, e incomportaveis
importunações. Pelo qual alguns se atreviam já havendo por serviço de
Deus e d'El-Rei e bem do reino de cometer ao Infante secretamente que
tomasse o Regimento de todo; mas elle, ou por sua dissimulação, ou por
ser assi sua vontade, a todos tirava de tal esperança; antes em taes
cousas assi se fazerem, posto que melhor se podessem e devessem fazer,
sempre escusava as fraquezas e innocencia da Rainha com quanto podia.



CAPITULO XX

_Fallecimento da Infante D. Filippa_


N'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, no mez de Março,
porque começaram de morrer em Lisboa, e se finou de pestenença a Infante
D. Filippa, de onze annos, filha d'El-Rei D. Duarte e da Rainha sua
mulher, El-Rei e o Principe se foram a Almada; e a Rainha se foi a uma
quinta junto com Santo Antão, que se chama Monte Olivete.



CAPITULO XXI

_Nascimento da Infante D. Joana_


E alli pariu a Infante D. Joana, que depois foi Rainha de Castela, e lhe
vieram novas como o Infante D. Pedro, seu irmão mais moço, fôra morto em
Italia de uma bombardada, estando com El-Rei D. Affonso seu irmão, em
cerco sobre a cidade de Napoles. E assi veiu á Rainha n'este anno uma
carta consolatoria do Papa Eugenio, confortando-a sobre a morte d'El-Rei
seu marido, e amoestando-a que por alguma maneira se não desse a cidade
de Ceuta por a soltura do Infante D. Fernando, allegando-lhe para tudo
razões santas e catholicas quanto a Deus, e de muita honra e louvor para
este reino.



CAPITULO XXI

_Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre descontentamentos que tinha
da Rainha ácerca do Regimento_


No mez d'Agosto d'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, a
Rainha se foi da quinta de Santo Antão para Sacavem: e o Infante D.
Pedro ficou com El-Rei em Lisboa, onde fallando com D. Alvaro Vaz
d'Almada, capitão mór do mar, e com outros de que se fiava, disse:

«Que por quanto n'esta parte do Regimento que aceitára, segundo era
pequena, e a Rainha se havia soltamente em todo, e defamava a elle e
todas suas cousas, elle recebia grande abatimento: sua vontade era, por
muitas razões que apontou, leixar aquelle pequeno cargo que lhe fôra
dado, e ir-se para suas terras: e que porém queria saber que lhes
parecia».

No que por seus conselheiros houve votos desvairados, cá uns tinham que
emprendesse e tomasse o Regimento de todo: e outros que se contentasse
com a parte que tinha, e se são fosse: outros que leixasse tudo e se
fosse: e a cada um não falleciam razões assaz aparentes para justificar
seu parecer. E finalmente foi acordado que d'estas seguisse a parte que
ao Infante D. João melhor parecesse; porque era de crêr que á sua seria
o Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e assi seus filhos os
condes d'Ourem e d'Arrayollos.



CAPITULO XXII

_Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João ambos se viram e fallaram
sobre o Regimento_


Pelo qual o Infante D. Pedro enviou pedir ao Infante D. João, que era em
Alcohete, que se vissem, como viram logo ambos, no Oratorio de Santa
Maria do Paraiso, em que se depois fundou e mudou o mosteiro de Santos
da Ordem de Santiago.

E porém ante da ida do Infante D. João, elle primeiro foi avisado do
capitão Alvaro Vaz, como de si mesmo, da tenção porque o Infante D.
Pedro se queria com elle vêr.

Alli os Infantes se apartáram sós, onde o Infante D. Pedro com largo
recontamento propoz a tenção em que era de leixar a parte do Regimento
que tinha: como era aconselhado pelo contrairo, apontando as causas e
razões em que uns e outros se fundavam: e que porém lhe pedia que n'isso
o aconselhasse; por que na confiança que tinha de seu saber e certidão
de amor, que entre elles havia, sua vontade era seguir o que a elle
melhor parecesse.

O Infante D. João lhe respondeu:

«Senhor irmão, ante d'isto eu tinha já n'este caso assás consirado; e,
porque mui em breve vos responda, sabei que se chamais erro acceitardes
o Regimento, como sois aconselhado, não sei cousa que possaes acertar,
cá se vós nascereis primeiro e vos não fizera Deus tão bom e tão
prudente como soes, e assi ao Infante D. Anrique nosso irmão, crêde que
eu requerêra o Regimento para mim; e se m'o não quìzerem dar, eu o
tomára ou morrêra sobre isso; porque com quanto a Rainha é mui virtuosa
e mui discreta e amiga de Deus, nunca vi mór vergonha e abatimento
nosso, que sermos regidos por ella; pois é mulher, e mais estrangeira».

O Infante D. Pedro lhe respondeu:

«Senhor irmão, bem vejo o que dizeis ter fundamento de muita razão, se
por todos se quizesse assi consirar com juizos livres de paixão; mas
como n'este caso haja propositos e tenções desvairadas, tenho receio
nascer d'ellas alguma divisão, que a qualquer reino grande faria perder,
quanto mais a este de Portugal tão pequeno, que sem sua destruição não
padece algum desacordo; e por elle ser a herdade em que nascemos e que
nos criou, e porque nosso padre tanto sangue espargeu, e tanto trabalhou
pela conservar e manter, eu sentiria em egual de morte para mim ser eu
causa de sua perdição: verdade é que, se com prazer de todos e sem
alguma divisão se podesse fazer, logo por serviço de Deus e d'El-Rei meu
Senhor, e bem de seus reinos e minha honra, folgaria aceitar este
cargo.»

O Infante D. João lhe disse:

«A divisão e desacordo do reino que temeis, não querendo vós usar do
Regimento, não se escusa se a Rainha com estes que agora esforçam sua
tenção o reger; porque elles n'esta contrariedade que seguem não hão
respeito a algum amor que tenham á Rainha, nem menos ao reino em que
vivem, mas sómente por segurarem e escaparem os castigos de seus erros
passados, e d'outros, se os fizerem; e para com achaque de necessidades
fingidas tomarem causas de pedirem e encurtarem o patrimonio real e
acrecentarem o seu; e por esta conta, que é verdadeira, a justiça e a
fazenda do reino, em que consiste toda sua sustancia, cairiam com elle
de necessidade na perdição que temeis: e além de o cuidado e trabalho de
reger ser incomportavel ás forças da Rainha, hei ainda mais por
principal inconveniente o Regimento d'este reino ficar só á sua
disposição esta vinda dos Infantes de Aragão, seus irmãos, a Castella;
porque, como são homens amigos de novidades, e tem no mesmo reino
grandes competencias, certo é que se hão de favorecer com este, e poer
muitas vezes as gentes d'elle em perigo; e as rendas em despesa por sua
ajuda e favor: assi que por estas razões e inconvenientes, que em vós
regendo todos cessam, meu conselho é que vós todavia rejaes: e quando o
vós não quizerdes ou não poderdes fazer, que o faça o Infante D. Anrique
nosso irmão; e des-hi eu, se o caso a isso chegar, e da divisão que
tocaes, não tenhaes receio; porque o Infante D. Anrique e o conde de
Barcellos, e seus filhos, os condes d'Ourem e d'Arrayllos, que são as
pessoas principaes do reino, seguiriam em tudo nossa tenção, quanto mais
esta, em que ha tanta necessidade, justiça e honestidade: e se d'alguma
parte devem de esperar honra e interesse, em vós a terão mais certa: e
por tanto eu me affirmo que todavia deveis reger; e que logo o
declareis; e nas côrtes que se ora hão de fazer ácerca d'isso, eu darei
e susterei a voz por vós: e não sinto alguem tão ousado, que m'a ouse
contrariar.»

O Infante D. Pedro finalmente disse:

«Que seu parecer era, que por então não devia ácerca d'isto fazer
altercação nem mudança alguma; porquanto até ás côrtes havia ainda bom
espaço de tempo, no qual poderia ser que a Rainha mesma cansaria n'este
cargo, e não se sentiria desposta para elle, e seria contente d'algum
tal meio, porque cessassem odios e escandalos entre elles, e o reino
seria regido em outro bom assessego, como desejava.»

E n'este acordo ficaram; e o Infante D. João se tornou a Alcochete; e o
Infante D. Pedro se foi a Camarate, junto com Sacavem.



CAPITULO XXIII

_Como a Rainha lançou fóra de sua casa certas donzellas, por suspeitas a
ella, e affeiçoadas ao Infante D. Pedro_


A Rainha estava em Sacavem com El-Rei e seus filhos, onde seu coração
não tinha repouso com novas de mudanças e alvoroços, que se em Lisboa
cada dia moviam, de que logo era avisada por pessoas que por isso
esperavam haver com ella mais graça, e pelas cousas que lhe faziam crêr,
ella começou d'haver e declarar por suspeitas e contrairas a si mesma
todas cousas do Infante D. Pedro; pelo qual com palavras irosas, e que
não cabiam em sua prudencia, mansidão e virtudes, lançou fóra de sua
casa duas donzellas, filhas de Izabel Gomes da Silva, mulher de Pero
Gonçalves, vedor da fazenda, e filha de João Gomes da Silva, e irmã
d'Aires Gomes da Silva; e assi não consentiu em sua casa outra donzella,
filha de João Vaz d'Almada, sobrinha do capitão, por serem pessoas do
Infante D. Pedro: o que a Rainha fez por induzimentos alheios sem
aquelle resguardo e bom conselho, que a seu estado e serviço cumpria;
porque o lançar d'estas donzellas fez contra ella grande escandalo na
cidade de Lisboa, por serem dos naturaes e principaes d'ella, e assi por
se declarar imiga do Infante D. Pedro, que do povo era mui amado; porque
até li sua desavença d'ambos podia jazer em suas vontades; mas sua
rotura não se dizia nem mostrava tão depressa como se por isto mostrou.



CAPITULO XXIV

_Do alvoroço que se seguiu contra a Rainha pela execução dos varejos de
Lisboa_


Acrecentou mais este escandalo contra a Rainha, e para a maior parte do
povo soltamente contrariar seu Regimento, passar uma carta em nome
d'El-Rei, porque fazia mercê a Nuno Martins da Silveira, seu aio, dos
varejos a que os mercadores de Lisboa eram obrígados de sete annos, cuja
publicação e esperança de execução aos ditos mercadores causou tanta
tristeza e sentimento, que certificados de suas perdições, se se
executassem, se soccorreram á camara da cidade, e com palavras em que
moviam todos a piedade para si mesmos, e com muitas razões que pareciam
de serviço d'El-Rei e bem do reino, lhe pediram que com a Rainha e com o
conselho, ou por outra qualquer maneira a tal mercê impedissem.

A cidade fez sobre isso seu ajuntamento, em que por força entraram mais
dos ordenados; e a elle vieram um Bertolameu Gomes, contador, e outro
Alvaro Affonso, escrivão da sisa dos pannos, criado de Nuno Martins, em
cujo poder era a carta, por serem os solicitadores d'ella; e, sendo lida
em publico, foi tanta a defensão e alvoroço em todo o povo, por ser
passada por só auctoridade da Rainha sem accordo do Infante D. Pedro,
que Alvaro Affonso, com fundamento de lhe fazerem padecer morte mais
crua, o fizeram saltar por uma janella, mas, por cair primeiro em um
telhado, não morreu; e a Bertolameu Gomes alguns cidadãos seus amigos
com grande difficuldade defenderam a vida: cá n'estes, por serem mui
ensinados no que pertencia ás rendas d'El-Rei, havia suspeita, que deram
azo e conselho, como esta mercê se pedisse.

Os que fizeram este insulto e alvoroço em desacatamento da Rainha, eram
quasi todolos do povo com alguns principaes da cidade, e com temor que
tinham de a Rainha com rigor de justiça os mandar castigar como
porventura mereciam, procuravam e ordenavam assi em secreto, como já em
publico, que o Regimento lhe fosse de todo tirado, sobre o qual tinham
suas praticas, que enviavam logo ao Infante D. Pedro, dando-lhe muitas
razões e esforço para só tomar o carrego de reger. O qual, como quer que
até li sempre mostrasse estranhar com palavras de honestidade aos que
lhe em tal caso fallavam, porém a este tempo por ter sabido e visto como
a Rainha se declarava ter-lhe desamor e má vontade, d'hi em diante, aos
que n'isso o comettiam, já recebia e ouvia mais com rostro de lhe
agradecer que o fizessem para vir a effeito, que de lhe pesar.

E porque na cidade havia n'este caso propositos e vontades contrairas,
assi naciam d'ellas bandos e rumores que mostravam signaes de
rompimentos perigosos, aos quaes nem por provimentos e penas dos
officiaes de justiça, nem por pregações que se de industria de bons
religiosos para ello fizeram, nunca se pôde atalhar, antes crecia cada
vez mais.



CAPITULO XXV

_Ida do conde d'Arrayollos a Lisboa sobre assessego d'ella, e como não
aproveitou_


Era a este tempo na cidade Pedro Anes Lobato, homem de grande
auctoridade e bom cavalleiro, ao qual, como quer que de grande condição
de sangue não fosse, El-Rei D. João por conhecer d'elle ser bom e
discreto, e em armas homem esforçado, deu a governança da justiça da
casa do civel, e a tinha; e por vêr a união e desacordo na cidade
tamanho, a que com sua vara e forças não podia resistir, avisou de todo
a Rainha, e por muitas causas lhe enviou pedir trigoso remedio. A qual
com esses que com ella eram presentes, teve sobr'isso conselho, onde foi
acordado que o conde d'Arrayollos, que estava em uma quinta junto com
Loures, por ter cargo da justiça do reino e ser pessoa de valor e
autoridade, fosse poer assessego nas cousas da cidade, para o qual foi
logo chamado, e fallou com a Rainha o que n'aquelle caso cumpria: e
d'ella por ser de boa tenção e sã conciencia, e tambem de si mesmo por
ser virtuoso e justo, foi avisado segundo o feito estava, de o tratar e
assessegar mui mansa e temperadamente.

Partiu-se logo o conde para Lisboa com a trigança que se requeria, onde
chegou á tarde, e para haver melhor informação das cousas, e ter
conselho sobre o remedio d'ellas, quizera repousar algum pequeno espaço
de tempo sem n'ellas intender; mas ao outro dia por sua ida foi tanto o
alvoroço e desacordo na cidade, e com tanta soltura de palavras
deshonestas e mostranças de desobediencia, que o conde não sabia que
caminho de remedio tomasse; porque os da parte da Rainha favoreceram-se
com sua ida, affirmando em seu favor que era para fazer justiça dos
alevantadores da união sobre o caso dos varejos, e que contrariavam o
Regimento da rainha: e os da parte do Infante D. Pedro e Infante D. João
com muitos da cidade, que eram d'outro acordo, tomaram receio de ser por
ventura verdade; especialmente porque um Luiz Gonçalves, official na
relação, criado de Pedro Anes Lobato, e que ás cousas da Rainha havia
grande affeição, affirmou de praça que por a ida do conde á cidade cedo
veriam por justiça as gigas da ribeira cheias de pés e mãos de muitos,
como de pescado, o que logo se soltou publicamente: e por ser homem
d'algum credito e ter officio na casa da justiça, fizeram para isso suas
palavras alguma impressão e crença; e pareceu que as não diria sem ter
alguma cousa d'isso sentido. Pelo qual alguns principaes cidadãos com
verdadeiro temor e occupações fingidas de proverem suas fazendas, se
ausentaram da cidade, temendo que em tanto alvoroço não houvesse justo
juizo, e que por ventura poderiam receber pena sem culpa.

Mas os do povo posposto todo o medo assi continuavam, e acrecentavam a
cada vez mais sua união, e com tanto rumor d'algum fim perigoso, que o
conde desesperado de com suas forças, nem da justiça poder assessegar o
feito como desejava, havido primeiro sobre isso conselho, tentou de o
remedear com prégações, palavras brandas, e de conciencia, que por algum
bom e entendido religioso em ajuntamentos publicos se dissessem.

E havido este por melhor e derradeiro remedio, o conde fez chamar um
Frei Vasco da Allagoa, da Ordem de S. Domingos, ao qual por ser padre
d'auctoridade e de letras, e ter boa audacia para dizer, encommendou que
sobre o caso das uniões e desaccordos da cidade, o domingo seguinte
prégasse no seu mosteiro, avisando-o primeiro que todo seu fundamento
fosse commover o povo a paz e assessego.

E sendo n'aquelle dia por aviamento e rogo do conde juntos no mosteiro
quasi todolos da cidade, Frei Vasco começou seu sermão, e por ser
servidor da Rainha e ás cousas de seu serviço mais inclinado, esquecido
do aviso que lhe fôra dado d'amansar o povo com esperança de bem, tocou
o caso e revoltas da cidade com tanta reprensão dos cidadãos e povo
d'ella, que com altas exclamações os chamava ingratos e desleaes,
trazendo-lhes ás memorias entre outros exemplos, a pena que os cidadãos
de Bruges mereceram e houveram pela desobediencia e traição que
cometteram contra o duque Filippe.

E estando já todo o povo mui descontente e escandalisado das palavras de
Frei Vasco, um barbeiro em meia voz, e com rostro iroso disse contra os
que junto com elle estavam:

«E como egual é o nosso caso dos framengos, que quizeram matar seu
principe e Senhor?--Nós não somos tredores mas mui leaes, e não havemos
de matar nosso Rei e Senhor; mas porque o amamos havemos todos de morrer
por elle, quando lhe cumprir: mas certo este frade alguma cousa tem
sentida: porque nos põe esta raiva.»

E estas palavras com algum rumor começaram ir de puridade em puridade
pelas orelhas de muitos do povo, os quaes assi como as ouviam assi
volviam logo os olhos de sanha contra o frade, e com mostranças de tanta
indinação, que elle sentindo seu alvoroço, por se não vêr em perigo,
desamparou sem conclusão o pulpito, e se acolheu ao mosteiro.

O conde d'Arrayollos foi mui descontente do prégador, por errar em todo
a sustancia de seu proposito, e do que era para o tempo necessario. E
vendo que para amansar o povo já lhe não ficava remedio para o fazer, e
que sua estada d'hi em deante lhe faria abatimento, se partiu da cidade,
e foi á Rainha dar-lhe de tudo conta.

E o povo depois de comer não esquecido do escandalo do sermão foram ao
mosteiro e disseram ao priol que logo lançasse Frei Vasco fóra d'elle,
se não que o derribariam e queimariam. E o priol aconselhado da
necessidade do tempo assi o fez; e o prégador se salvou secretamente.



CAPITULO XXVI

_Como o Infante D. Pedro foi a Lisboa reprender e assessegar as uniões
da cidade_


O Infante D. Pedro estava em Camarate como já disse, e sabendo que a ida
do conde seu sobrinho á cidade nas revoltas d'ella não aproveitara,
desejando poelas em assessego se foi lá; e no mosteiro do Carmo onde
pousou fez logo ajuntar os principaes da cidade com os officiaes da
Camara, e com a cara grave e palavras de grande autoridade
sustancialmente os reprendeu de suas uniões e alevantamentos, com que
faziam doésta á Rainha e a elle e a todolos que tinham cargo de reger
por El-Rei o reino; e que por isso tinham merecido aspero castigo, e o
mereciam maior se o não atalhassem; e que, se sobre aggravos que
tivessem recebidos queriam requerer suas liberdades e direito, que o
fizessem por outra maneira como subditos, e que seriam bem ouvidos; e
não com presumpção de superiores, de poer e despoer Regedor á sua
vontade, como diziam, tocando-lhe sobr'isto muitas e notaveis razões
conformes a este proposito, as quaes alguns tomaram que não sahiram
verdadeiramente de sua vontade; porque tinham concebido que lhe não
pesava de semelhantes movimentos por serem contra o Regimento da Rainha
e com fundamento de elle o ter; mas a determinação d'este juizo fique
sómente a Deus que o soube.

Os cidadãos, depois de ouvido o Infante, lhe responderam mui mansamente,
tendo-lhe em mercê aconselha-los bem; e d'es-hi asolvendo-se como melhor
podéram dos alevantamentos passados, especialmente no caso dos varejos,
em que houveram respeito a não serem os mercadores da cidade pela
execução d'elles destruidos, e assi em quererem áquelle escrivão, que
persumiram ser inventor, dar tal castigo, que outros por seu exemplo
semelhantes cousas não inventassem, pedindo ao Infante que em seus
trabalhos e aggravos os quizesse ajudar e favorecer, obrigando-o para
isso com razões assaz honestas e boas. Onde logo por um dos procuradores
dos mestres foi apontado que as divisões e escandalos não nasciam no
reino, salvo por o Regimento d'elle ser repartido por muitos, e que para
bem ser, ou havia de ficar sómente á Rainha ou a elle, allegando do
contrairo muitos inconvenientes não sem fundamentos de razão, como cousa
em que já muitas vezes tinham praticado.

E o Infante depois de sobretudo haver largas repricas e praticas, lhe
encommendou muito o assessego da cidade, e que para as côrtes que se
chegavam, podiam livremente requerer e apontar o que lhes bem parecesse,
e que elle no que fosse direito e justiça os ajudaria: e com isto se
despediu d'elles, e se tornou a Camarate.



CAPITULO XXVII

_Como a Rainha mandou secretamente preceber os de sua valia que viessem
ás côrtes armados_


A Rainha sendo d'estas cousas informada, sentindo que os alvoroços da
cidade não cessavam, antes creciam com fundamento de o Regimento lhe ser
tirado, o notificou logo pelo reino a todolos fidalgos, e pessoas
d'estima, que entendeu serem por ella, encommendando-lhes que para as
côrtes logo vindoiras viessem d'armas e gentes assi percebidos, que com
sua segurança podessem resistir a qualquer contrariedade que os povos em
seu dessserviço quizessem ordenar e fazer: e para ser mais em segredo,
não o escreveu a todos particularmente, mas ordenou regimentos para cada
comarca, e escudeiros de que fiava; e com suas cartas de crença os
andassem secretamente mostrando áquellas pessoas que ella queria.

A qual cousa com quanto pareceu ser incoberta, foi logo ao Infante D.
Pedro revelada, e ainda mostrado por mór certeza um dos proprios
regimentos: e maravilhado d'isso o descobriu e mostrou logo ao conde
d'Arrayollos, que com grande trigança veiu sobr'isso fallar á Rainha,
espantando-se muito de tal movimento, e reprendendo quem lh'o
conselhára, pedindo-lhe afincadamente com respeitos de serviço de Deus e
d'El-Rei, e d'ella, e bem do reino, que o atalhasse, e escrevesse
áquelles que cessassem do que lhes tinha escripto.

E como quer que ella por sua virtuoza tenção lhe pareceu assi bem e
prometesse ao conde de o assi fazer, não se achou porém quem depois o
fizesse; antes se soube que logo veiu a ella Pedro Annes Lobato
certificar-lhe que os percebimentos e alvoroços d'alguns creciam cada
vez mais por seu respeito, e que a fama era que ella os ordenava assi
para morte d'alguns principaes por sua vingança, o que como quer que
elle sabia o contrairo e o desdissesse, que o não criam como suspeito a
suas cousas; e assi tambem lhe pediu que com assessego o remedeasse.

E a Rainha crendo que aproveitaria sua desculpa, escreveu logo sobre
aquelle caso mui graciosamente á cidade, certificando-lhe o contrairo do
que tinham concebido; e encommendando-lhes sua paz e assessego com
grande instancia, e com sua crença a Pedro Annes, o qual com quanto em
camara dissesse além da carta da Rainha muitas razões e causas para
desfazerem suas maginações e cessarem de seus alevantamentos, não
aproveitou nada: e com tudo responderam á Rainha «que a causa dos
receios e alvoroços que tinham, os seus principalmente os faziam,
affirmando e divulgando cousas para assi ser; que os mandasse castigar,
e tudo cessaria».

E como quer que a Rainha para satisfação d'elles mandasse sobr'isso
fazer exame e deligencias para ser asperamente punido quem taes
movimentos fizesse: finalmente não se achou certo autor, nem cousa a que
em especial fosse razão dar-se fé nem autoridade, e com tudo a furia do
povo não amansava.



CAPITULO XXVIII

_Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João sobre estas cousas se
tornáram a vêr, e o que acordáram_


O Infante D. João a este tempo era doente em Alcochete; e enviou ao
Infante D. Pedro que fosse, como foi, ve-lo, e sendo ambos juntos, o
Infante D. João lhe disse:

«Senhor irmão, por não estar em disposição de poder ir onde estaveis,
vos enviei pedir que chegasseis aqui; assi porque folgo muito de vos
vêr, como principalmente por saber parte de vós, e de vossos feitos com
a Senhora Rainha, os quaes não devem estar bem nem como á vossa honra
cumpre, segundo a soltura e atrevimento que todolos fidalgos tem de
fallar contra vós, tirando os de minha casa, e para se isto remedear
convem que façaes o que não fizestes, que é nomearde-vos logo por
Regedor do reino in solido. E para sosterdes vossa empresa tendes em
vossa ajuda mui certos a mim e ao conde d'Ourem que aqui está comigo; e
assi a cidade de Lisboa que vo-lo requere; e comvosco serão outros
muitos que nos ajudarão n'esta contenda; e então venham os do juramento
armados contra vós; e os Infantes d'Aragão entrem a favorecer o partido
de sua irmã».

O Infante D. Pedro lhe disse:

«Leixando o mais que me dizeis, a esta derradeira condição por mais
sustancial vos responderei primeiro; e digo que já vos disse outras
vezes, quão pouco contente sou da Rainha e de seus máos conselheiros, e
da dureza de sua condição, com que nunca quiz perder esta seita contra
mim; e Deus sabe que cá lhe não fui nunca nem sou em culpa para assi
ser; antes lhe tive sempre merecimento, por desejar de a servir como era
razão: e o galardão que d'ella houve foi sempre odio e má vontade para
mim e minhas cousas; e mais agora, onde na esperança de suas honras e
mercês já os fidalgos como dizeis me não olham senão por desprezo,
crendo que o que mais fizer contra mim maior parte haverá d'ellas. E por
isto e principalmente por minha segurança, certo prazer-me-ha muito ter
corregimento; mas porque a esta sazão e tempo, segundo as divisões
estão, eu o não poderia fazer sem esperança de muito damno e grande
perda d'este reino, o que eu não queria, a mim parece como vos já disse,
leixarmos vir o tempo das côrtes; e se n'ellas se acordar que tenha o
Regimento, então serei contente de o tomar; e d'outra maneira não».

O Infante D. João disse:

«Certo bem me parece vossa conclusão; mas tenho receio a estes de Lisboa
com esta vossa dilação perderem por ventura este fervor que tem para
vossa ajuda, e serem depois máos de tomar a nosso preposito».

«Não cureis (respondeu o Infante D. Pedro) cá se Deus vir que é seu
serviço, Elle por sua bondade ordenará como se faça; e por isso sede
certo, que por nenhuma cousa não emprenderei encargo que seja sem
côrtes; mas que sei que a Rainha escreve aos fidalgos que são de sua
parte, que venham a ellas poderosos, eu como defensor o quero fazer
saber ás cidades e villas do reino; e que sejam prestes para qualquer
movimento e novidade que se seguir.»

E com esta tenção que seu irmão aprovou, se despediu d'elle.



CAPITULO XXIX

_Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino sobre os alvoroços
que se ordenavam_


E Tanto que o Infante D. Pedro foi em Camarate, que era no começo de
Setembro do anno de mil e quatrocentos e XXXIX, logo escreveu a todolos
logares do reino notificando-lhe os movimentos que se esperavam, de que
era certificado, e as causas de quem procediam, encommendando-lhe que
logo se fizessem e estivessem prestes para quando vissem seu recado; por
quanto de semelhantes uniões não se podia seguir, salvo desserviço de
Deus e d'El-Rei e grande mal e damno de seus reinos e naturaes, e assi
foram avisados do Infante os messageiros que levaram as cartas, que
todas em todo o reino a um dia certo e logo assignado por elle, fossem
dadas. E tanto que assi escreveu, se partiu para Coimbra e suas terras.

A carta para Lisboa foi dada na Camara da Feitura a XV dias, sendo já o
Infante partido, e depois de vista foi posta nas portas principaes da
Sé, onde esteve alguns dias sem haver logar de se poder acabar de lêr, e
de noite com candeias a vinham trelladar; e sobre as cousas d'ella as
praticas e alvoroços eram tamanhos, que em publico e em secreto não se
fallava em outra cousa.

Os da cidade depois de haverem seu conselho acordaram responder ao
Infante, em que remercearam sua notificação, e se offereceram para
todalas cousas que fossem de sua honra e serviço, e elle dispozesse e
mandasse. As outras cidades e villas do reino responderam todas conforme
a isto em sustancia; sómente a cidade do Porto emadeo mais, que queria
que o Infante D. Pedro só, sem outra ajuda nem companhia fosse Regedor:
e com estas cartas houve no reino grande alvoroço, com alguma indinação
contra a Rainha, por n'ellas se tocar entrada de gentes extrangeiras
n'este reino em seu favor e ajuda.

Mas se o Infante isto escreveu por ter d'isso a esse tempo alguma
certidão, ou o fez de industria por alvoroçar as gentes contra a Rainha
e contra os que seguiam sua tenção, isto fique a Deus e em sua
conciencia, sómente é de crêr que o Infante o não faria sem causa;
especialmente porque a esse tempo os Infantes d'Aragão irmãos das
Rainhas de Portugal e de Castela prosperavam n'aquelle reino; e era de
presumir que nos aggravos de que se ella queixava, se socorreria a
elles, que a deviam e podiam bem ajudar, e elles lh'o não denegariam por
seu sangue e grandeza.



CAPITULO XXX

_Como se o Infante D. Pedro despediu da Rainha, e da falla que como
descontente lhe fez_


Ante que o Infante D. Pedro partisse de Camarate para suas terras, foi a
Sacavem fallar a El-Rei; e depois de se despedir d'elle e lhe beijar a
mão entrou onde a Rainha estava, e com a presença carregada lhe disse em
pé e de praça algumas palavras, cuja sustancia foi recontar-lhe serviços
que lhe tinha feitos com desejo de fazer outros maiores, de que
finalmente até então não houvera d'ella outro galardão, salvo odio e má
vontade com que sempre procurára em todo sua deshonra e abatimento; e
assi lhe tocou nas differenças em que andavam, e nos percebimentos que
mandára fazer, e em outras cousas d'esta calidade, com razões assaz
graves e honestas, e em fim declarou «que até li a Rainha o tivera como
ella queria, e que d'hi em deante o tomaria como o achasse». E n'esta
conclusão que pareceu de rompimento, se despediu d'ella sem lhe beijar a
mão, nem cometer de o fazer. O que a Rainha ouviu com grande segurança e
assessego, e não lhe respondeu cousa alguma; porque o Infante com sua
trigosa partida não deu a isso lugar, e porém sentiu muito partir-se
assi d'ella o Infante com mostrança de tamanho desacatamento; o que por
assi passar de praça foi logo divulgado, que a uma parte e a outra
acrecentou mais materia d'alvoroços e uniões.



CAPITULO XXXI

_Como a Rainha com El-Rei e seus filhos se foi a Alanquer, e do que se
seguiu em Lisboa_


A Rainha se partiu com El-Rei e seus filhos e sua casa para Alanquer,
muito revosa dos movimentos e alvoroços de Lisboa, e pouco segura em
Sacavem onde estava, por ser aldêa fraca e tão perto da cidade, como
quer que d'alguns seus fosse aconselhada que o não fizesse, antes que se
fosse dentro á cidade; porque era de crêr que sua presença daria ao povo
menos ousadia para contra ella seguirem e acabarem o que tinham
começado; e que sua ausencia com mostrança de temor causaria o
contrairo.

Os officiaes de Lisboa vendo esta mudança da Rainha fizeram logo seu
ajuntamento, onde Vicente Egas, homem cidadão velho, entendido e de
grave representação fez uma falla com largo recontamento, cuja sustancia
foi avisar a cidade dos males e perigos que por as mudanças presentes se
lhe aparelhavam; e como para terem por cabeça alguma pessoa que por ella
os resistisse, lhe era necessario enlegerem e tomarem alferes, apontando
logo o capitão Alvaro Vaz d'Almada, que da cidade fôra o derradeiro
alferes, como por outros muitos e mui dinos merecimentos e louvores que
d'elle com verdade recontou; no que todos consentiram, e por dois
cidadãos o enviaram logo chamar,por quanto era fóra da cidade; e em
chegando á ribeira, sendo já sabido a determinação sobre que vinha, se
ajuntou com elle a mór parte da cidade, e assi acompanhado com grande
honra foi levado á Camara, onde por os vereadores com certas cerimonias
e largas palavras de grande seu louvor e muita confiança, lhe foi
entregue a bandeira da cidade com suas condições; e elle a recebeu com
palavras cortezes e discretas, e de grande esforço; porque era
cavalleiro que n'este reino e fóra d'elle por esperiencias mostrou que
isto e muito mais de louvar havia n'elle, cá em França por sua ardideza
e bondades foi feito conde d'Abranxes, e em Inglaterra por sua valentia
foi recebido por companheiro da Ordem da Garrotea, de que principes
christãos e pessoas de grande merecimento são confrades; e em Portugal
por todas estas, e mais por sua linguagem e fidalguia mereceu ser como
foi capitão mór do mar.



CAPITULO XXXII

_Accordo que o povo de Lisboa fez ácerca do Regimento_


Estando o Regimento do reino n'este balanço, mais com mostranças de
guerra que de paz, e com signaes mais de perigo que de segurança, os
officiaes macanicos de Lisboa com outra gente popular se ajuntaram em S.
Domingos da Cidade, onde fizeram escrever e assignaram um acordo, em que
por algumas razões que apontaram, e em especial por o perigo e não bom
Regimento do reino, declaravam e se affirmavam, «que o Infante D. Pedro
fosse seu Regedor e defensor sómente; e que assi promettiam de o
requerer nas côrtes; e que o contrairo não consentiriam ou morreriam
sobr'isso, se o caso assi requeresse.»

A qual cousa sendo logo sabida, como quer que a alguns parecesse
determinação de pouco peso e auctoridade, o contrairo pareceu a Pedro
Annes Lobato, que por ser muito servidor da Rainha, se foi logo a
Alanquer onde estava, e lhe notificou com tristeza aquelle acordo,
havendo-o por principio mui contrairo a seu serviço, affirmando que não
podia ser sem favor e consentimento dos principaes, e com aquelle
acatamento que devia a reprendeu muito da segurança que n'estes feitos
sempre tivera, e o pouco cuidado de os remediar nos começos ante
d'alguma execução, especialmente estando tão ácerca e tão avisada cada
dia dos movimentos que se faziam.

E perguntado pela Rainha e pelos do conselho que hi eram, que se faria
ou que remedio se daria para o povo cessar de seu alvoroço, Pedro Annes
respondeu «que já não sabia, salvo pedi-lo a Deus.»

E finalmente depois de sobre isso praticarem, acordaram que a Rainha
escrevesse, como logo escreveu á cidade, e além das razões santas e
virtuosas na sua carta logo declaradas, por que deveram ser bem seguros
dos receios com que se alteravam, Pedro Annes que era o messegeiro, lhes
disse outras muitas mais, a ellas conformes, em que não fallecia siso e
prudencia; mas d'isto em fim se fez pouca estima, e responderam a tudo
como já endurecidos em sua maginação e porfia.



CAPITULO XXXIII

_Como a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo D. Pedro pelos
cubelos da alcaçova que tomou_


Não é de duvidar que a Rainha para toda paz, bem, e assessego do reino
tivesse sempre mui virtuoso desejo; mas muitas vezes por ventura, por
estar assi determinado na providencia divina, os seus sem vontade d'ella
damnavam e faziam duvidoso seu proposito; porque estando a cidade de
Lisboa em alguma consiração de repouso por o que a Rainha lhe tinha
escripto e enviado dizer, o Arcebispo D. Pedro seu primo, que em todo
seguiu sua tenção, pousava nos seus paços d'Alcaçova pegados com Sancta
Cruz, e porque entre elles e o castello vae um lanço de muro em que está
a porta, que se chama de Martim Moniz com alguns cubellos altos, mandou
cobrir e abrir para elles uma porta porque se corriam por cima do muro,
ficando a porta da cidade que sahia para fóra sujeita a sua disposição,
e da outra parte dos paços contra o bairro dos escolares, tinha dias
havia feita uma torre mui alta, forte e fremosa em que se acolhia; e
sendo as cousas da Rainha havidas na opinião do povo por tão suspeitas,
o Arcebispo além da obra e refazimento que nos cubellos mandara fazer,
dizia soltamente palavras ques pareciam ameaças com esforço alheio. E
deu aos seus armas além das custumadas, e dizia-lhes de praça taes
razões, que os mettia em alvoroço; e elles fallando ousadamente pela
cidade, mettiam a outros muitos em outro maior: e com isto não apagavam,
mas acendiam mais a suspeita e receios que o povo tinha: a qual cousa
sentida pelos officiaes, fizeram sobre isso vereação e acordo; e por
dois deputados para isso mandaram requerer em sustancia ao Arcebispo que
logo despachasse e leixasse o muro e cubellos, que eram proprios da
cidade, de que a tinha forçada. O qual anojando-se de tal recado, como
era de aspera condição, e não muito sobjecto a deliberado conselho,
respondeu aos messegeiros de maneira que foram d'elle mui descontentes;
sobre o qual se tornaram outra vez a juntar em camara, e se alguns com
difficuldade o não temperaram, o primeiro acordo era de mór rigor e
damno; mas em fim acordaram que os cubellos fossem logo despachados, e
fechada a porta que o Arcebispo mandára abrir; do que elle mui anojado,
sendo constrangido para o cumprir, se sahiu logo da cidade, e depois
para Castella, como ao diante se dirá.



CAPITULO XXXIV

_Vinda do Infante D. João á cidade_


A cidade de Lisboa, pela confusão e receios em que estava, acordou de
enviar o capitão Alvaro Vaz ao Infante D. João, notificar-lhe os feitos
como estavam e pedir-lhe por mercê, que para ser sua cabeceira quizesse
estar na cidade, porque sua presença lhes era mui necessaria, até que
nos feitos se tomasse alguma boa conclusão.

Ao Infante prouve muito de o fazer; e se veiu logo a ella e pousou nas
casas da Moeda, onde entendida a sustancia do caso, conhecendo que a
maior parte da inclinação e vontade do povo e cidadãos, era o Infante D.
Pedro reger, louvou muito seu proposito, e os esforçou n'elle.



CAPITULO XXXV

_Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino sobre o assessego
d'elle_


A Rainha como foi em Alanquer, logo escreveu a Lisboa, e alli geralmente
a todas as cidades, villas e povos do reino, notificando-lhe alguns
beneficios e boas obras que já lhes procurara para os obrigar; e assim
as causas dos aggravos e sem razões que ácerca do Regimento recebia,
para os mover a piedade, descarregando-os com razõas boas, honestas e de
razão, dos temores que d'ella tinham ácerca do meter das gentes
estrangeiras n'estes reinos, e segurando-os da vingança que lhes faziam
crêr que ella d'alguns cruamenta queria tomar; encommendando-lhes e
requerendo finalmente, que para as côrtes que se chegavam, cessassem de
requerer novidades acerca do Regimento, e quizessem approvar o que
El-Rei D. Duarte seu marido leixara, ou ao menos o que nas côrtes de
Torres Novas fôra acordado, com alguns protestos fundados em sua boa e
virtuosa tenção, mandando que por seu descargo se d'ello se seguissem
alguns males e inconvenientes, que suas cartas se registassem nos livros
das camaras, e puzessem nos cartorios das religiões: o que se não fez
assim; porque na maior parte do reino era o alvoroço tamanho contra a
Rainha, que álem de não quererem vêr suas cartas, ainda tratavam os
messegeiros d'ellas asperamente, e não como deviam. E porque Gomes
Borges que era escrivão da chancelaria d'El-Rei, poz nas portas da Sé a
carta que a Rainha enviou a Lisboa, foram os povos sobre elle, e tão
indinados, que com difficuldade escapou da morte.



CAPITULO XXXVI

_Declaração que Lisboa fez de o Infante D. Pedro só reger o Reino_


Estando assi as cousas n'esta confusão, o doutor Diogo Affonso Mangancha
em que havia letras e ardideza com pouco repouso, e um Lopo Fernandes,
tanoeiro de Lisboa, homem velho afazendado, e de que o povo fazia grande
cabeceira, estes ou por serem afeiçoados á parte do Infante D. Pedro, ou
por lhes parecer razão elle só reger e não a Rainha, ordenaram e
praticaram entre si que o doutor fizesse na camara uma publica falla
sobre isso, affirmando que todavia era bom, antes das côrtes se fosse
possivel, assi se declarar e requerer; e que ao menos no cabo da falla
conheceriam nos rostos dos mais suas vontades para seu aviso: e era
opinião que d'esto não desprazia ao Infante D. João, pelo favor que dava
e gasalhado que fazia a este tanoeiro.

E junta a mór parte da cidade na camara, sem geralmente se saber a que
fim, o doutor Diogo Affonso propoz sua falla, em que logo com muitas e
vivas rasões tocou os erros que havia em o Regimento do reino ser
repartido, como fôra em Torres Novas; e assi com determinações do
Direito Canonico e Civil, e com auctoridades do Testamento Novo e Velho,
e com exemplos d'historias antigas reprovou Regimento publico ser dado a
mulher, porque excludio a Rainha; e com outras de não menos rasão e
auctoridade provou que devia ser dado a homem barão, em que houvesse as
virtudes e calidades que todas achou com verdade no Infante D. Pedro,
para o qual concludio que devia ser requerido e forçado para isso,
quando por sua vontade o não quizesse acceitar.

Acabando o doutor sua falla, foi-lhe por um vereador dadas graças por
ella em nome de todos, os quaes encommendaram logo ao capitão que desse
sobre o caso sua voz, que a deu com cautellas e fundamentos de homem
prudente e mui avisado, em que concludiu mais além, que era grande
perigo e aleijão, El-Rei ser mais criado em poder de mulheres; e não
menos erro reger a Rainha, não sem muitos merecimentos e grandes
louvores d'ella, que tambem apontou para ser sempre servida e acatada; e
que o Infante D. Pedro devia reger.

Era alli Martim Alho, cidadão honrado, e por ser muito servidor da
Rainha quizera dilatar esta conclusão para outro ajuntamento e mais
pessoas, parecendo-lhe que se apertava muito em seu d'esserviço; mas Ruy
Gomes da Grã, outro si cidadão, e de boa e antiga linhagem, que era
presente, com palavras de grande auctoridade e rasão contradisse muito a
dilação n'este caso, e louvou a breve conclusão; e depois de muitas
praticas e largos apontamentos, elle com os mais approvaram e pozeram em
escripto este accordo que se segue.



CAPITULO XXXVII

_Fórma do acordo sobre o Regimento_


Em nome de Deus nosso Remidor e Salvador Jesus Christo, e de sua
Santissima Madre a Virgem Maria nossa Senhora. Acordâmos em uma voz e
acordo, todolos fidalgos, cidadãos, e homens bons da cidade de Lisboa,
consirando o trabalho e grande destruição que em todo o reino ha por
causa de ter diversos Regedores, entre os quaes sempre era divisão, em
grande damno e perda de todo o reino, querendo a cidade remediar a
serviço de Deus e d'El-Rei nosso Senhor, como aquella que sobre todas as
cousas d'este mundo mui leal e verdadeiramente o ama, todos em uma voz
acordamos, e determinamos que n'estas côrtes que ora prazendo a Deus
serão feitas, conhecendo nós a grande lealdade e muita prudencia do
muito alto e muito excellente Principe e Senhor o Infante D. Pedro, e
como é filho legitimo do muito poderoso e virtuoso Rei D. João nosso
Senhor, cuja alma Deus haja, e o mais ancião sangue chegado á mui alta e
real corôa do muito excellente e poderoso Principe El-Rei D. Affonso
nosso Senhor, que elle dito Senhor Infante D. Pedro seja Regedor
livremente e in solido n'estes reinos, e até que prazendo a Deus, El-Rei
nosso Senhor, que sobre todos mais lealmente amamos, seja em edade para
os por si poder reger e deffensar, ao qual tempo o dito Senhor Infante
D. Pedro seu leal sangue e vassalo leixará livremente a possessão de
seus reinos e senhorio; e lhe entregará a ministração e Regimento
d'elles pacificamente, para El-Rei nosso Senhor os governar e reger,
como fizeram os mui virtuosos Reis d'onde elle descende; e vindo tal
caso, que o Senhor Infante D. Pedro não possa ter o Regimento e
governança dos ditos reinos, que por esta fórma e maneira seja dada e a
haja o mui leal Principe e Senhor Infante D. Anrique seu irmão; e
fallecendo elle, seja por o semelhante dada ao Senhor Infante D. João; e
por esta guisa ao Senhor Infante D. Fernando, que Deus de terras de
mouros traga com bem e liberdade a estes reinos; e fallecendo todos ante
que El-Rei D. Affonso nosso Senhor seja em edade para reger, que então
por esta fórma venha o dito Regimento ao conde de Barcellos, e aos
condes d'Ourem e d'Arrayollos seus filhos, com todas as clausulas e
condições suso escriptas.

E assi acordamos e determinamos que a muito alta e muito excellente e
muito prezada a Rainha D. Lianor nossa Senhora seja sempre em sua vida
honrada e manteuda, acatada e servida em seu alto e real estado; e por
esta mui nobre e leal cidade de Lisboa e povo d'ella lhe seja sempre
feito tanto serviço, prazer, e mandado, assi como somos teudos e
obrigados por bons e leaes vassallos, e por ser madre d'El-Rei nosso
Senhor, assi e pela guisa que lh'o sempre fizemos em vida d'El-Rei D.
Duarte, seu marido nosso Senhor, cuja alma Deus haja; e muito mais
podendo-se fazer.

Alguns houve alli e poucos, a que d'este acordo não prouve; em especial
a Martim Alho, que sobre algumas palavras que acerca d'esso disse, não
lhe conveiu mais esperar; e se foi com sua vida e honra, a que o rumor
do povo começava já de ser contrairo.



CAPITULO XXXVIII

_Notificação d'este accordo ao Infante D. João, que o approvou_


Feito e assignado este accordo, enviaram logo chamar Vasco Gil,
confessor do Infante D. João, ao qual deram o accordo e lhe
encommendaram que o mostrasse ao Infante, a cuja prudencia, correição e
prazer o sometiam.

E mui em breve tornou Vasco Gil com a resposta em que o Infante
approvava e louvava seu accordo, não como cousa feita por homens, mas
como inspirada n'elles por Deus. E que porém ao outro dia quinta feira
fossem ouvir missa com elle a Sancto Spiritu, e que alli lhes
responderia.

Ao qual dia juntos todos e ouvida a missa, que se disse muito solemne
com seus capellães e cantores, o Infante apartou os da cidade sómente e
alli resumiu o accordo que fizeram e lhe enviaram mostrar. Onde com
palavras de grande equidade lhes aguardeceu a notificação d'elle. E com
razões de muita auctoridade o approvou, offerecendo-se a elles.

E pois aquella era a verdade, que pospostos os espantos, ameaças e
receios que se logo apontaram, promettia de lh'a ajudar a manter e
cumprir: pelo qual a cidade assi favorecida em seu proposito fez no
outro dia ajuntar no refeitorio de S. Domingos todo o povo, aquelle que
pôde caber, onde em pulpito Pedro Anes Sarrabodes notificou em alta voz
o accordo passado e a maneira que se n'isso tivera, requerendo a todos
que dissessem o que d'elle lhes parecia. Onde logo sem bem se acabar a
pregunta um Diogo Pirez, alfayate, bradando respondeu: «que accordo nem
parecer ha de ser o nosso, salvo assignarmos todos esse, e fazermos logo
vir o Infante D. Pedro, e comece de reger!»

Com aquella voz seguiram tantas vozes, que alguma se não ouvia; e com os
assignados dos que tinham assignado foram logo outros tantos postos, que
não cabiam em um grande quaderno; porque assi trabalhava cada macanico
official de poer alli seu nome como se na postura d'elle acrecentasse
sua honra e fazenda, e remedeasse de todo a necessidade do reino.



CAPITULO XXXIX

_Notificação do dito accordo á Rainha, que o contrariou, e assi aos
Infantes e ao reino_


Concordado e assignado este accordo, a cidade o notificou logo á Rainha
com fundamentos e causas justas e honestas, e com palavras do mór
acatamento seu, que no caso cabiam. A qual lhes respondeu com uma
notavel justificação, desfazendo e anichilando particularmente todalas
cousas do acordo, denegando-lhe em todo a auctoridade para tal poderem
fazer, sem ajuntamento e concordia dos tres Estados do Reino,
encomendando-lhes a revogação do accordo com algumas protestações e
cautellas dos damnos, se sobr'isso viessem.

Não sómente a cidade de Lisboa notificou este accordo á Rainha, mas logo
aos Infantes D. Pedro e D. Anrique, e condes; e assi ás cidades e villas
do reino. E o Infante D. Pedro lhes respondeu agardecendo-lhes com
palavras mui graciosas seu proposito, e offerecendo-se com outras de
muito peso e discrição, aceitar o Regimento e seguir jurar e manter as
condições do acordo. No qual isso mesmo as cidades e villas do reino
sustancialmente consentiram. E principalmente a cidade do Porto por ter
aquello mesmo dias havia determinado.

Mas o Infante D. Anrique na resposta que sobr'isso enviou, não mostrou
ser do accordo contente, não por erro da sustancia d'elle, mas no modo
que tiveram, por tomarem em tal caso a autoridade e poder que aos tres
Estados do Reino em côrtes era sómente reservado, conforme ao que a
Rainha apontára, concludindo em remeter seu acordo e tenção para as
côrtes que se logo esperavam, onde tudo bem visto e consirado se faria o
que fosse mais serviço de Deus e d'El-Rei, e bem de seus reinos,
amoestando-os finalmente para paz e assessego, poendo-lhes os
inconvenientes da divisão. E mais de si mesmo justificando tudo com
palavras e razões de tanta autoridade, que bem pareciam dinas de tal
Principe. E que sobretudo iria a Coimbra fallar ao Infante D. Pedro, e
ao conde de Barcellos seus irmãos, e a conclusão que tomassem lhes faria
logo saber.

D'esta resposta do Infante D. Anrique não foram os da cidade contentes;
e muito menos o Infante D. João que n'ella era presente, o qual tomou
cargo de responder, como respondeu por ella a seu irmão, em que lhe
afirmou o acordo se fazer e divulgar com sua autoridade, justificando
com vivas razões todolos passos d'elle, tocando mui verdadeiramente para
assi ser as necessidades em que o reino estava e danos que recebia por a
multidão e divisão dos Regedores; e quanto um era mais necessario e
proveitoso, o qual não podia nem devia ser, salvo o Infante D. Pedro seu
irmão, por as calidades que n'elle para isso havia, que logo apontou
dinas d'outro Regimento maior. Pedindo emfim, que com elle quizesse
dizer:--_Confirmat hoc Deus, quod operatus est in nobis._--

D'este acordo de Lisboa pesou muito ao conde de Barcellos; e comquanto
era assaz discreto e avisado, em recebendo a acta da cidade, não pôde
dessimullar o desprazer e sentimento que por isso recebia. E não era por
singular affeição que tivesse á Rainha, nem por sentir que em ser o
Infante D. Pedro Regedor era perda ou damno do reino; mas sómente
segundo juizo commum e especiaes, que se depois seguiram, era com
respeitos de seu interesse particular; de que porventura lhe dava mais
esperança a brandura da Rainha governando, que o rigor e justiça do
Infante regendo.



CAPITULO XL

_Partida do Arcebispo D. Pedro fóra do reino_


D. Pedro, Arcebispo de Lisboa, era na Alhandra anojado pela privação dos
cubellos da cidade, como já disse; onde fallando com um Affonso Martins,
ourives, que da cidade sobre cousas de suas rendas fôra com elle
negociar, tocou os accordos e movimentos da cidade com palavras de
doesto dos cidadãos e povos d'ella; ameaçando-os com cerco poderoso de
gentes estrangeiras, e com outros muitos males e deshonras, de que os em
pessoa d'aquello logo certificava, e que não tardariam muito,
congeiturando de sua confiança e favorecendo sua ameaça em alguns do
reino e em outros muitos de fóra d'elle, que eram os infantes d'Aragão e
sua valía. A qual cousa o ourives respondeu bem e avisadamente,
esforçando se em lhe não parecer direito de sua verdadeira vontade;
porque d'elle não era de crêr cousa que tanto contrariava a seu sangue e
habito, e na bemfeitoria e mercê que d'El-Rei D. João e de seus reinos
tinha recebido.

Com o sentimento e juizo que o ourives tomou da tenção do Arcebispo, se
tornou á cidade, onde o logo fez saber na camara d'ella. E por isso, e
por se provar em uma inquirição que se contra o Arcebispo tirou, que
brasfemara do Senhor que o fizera, a cidade com sua cleresia appellaram
d'elle e o suspenderam de suas rendas e dinidade; e se enviaram queixar
d'elle á Sé Apostolica por um João Lourenço Farinha, cidadão e pessoa de
saber e auctoridade, com supplicatorias em nome d'El-Rei e dos Infantes.
Pelo qual o Arcebispo se quizera colher a Obidos, e os da villa com sua
suspeita o não quizeram n'ella receber.

E elle vendo que os feitos se inclinavam já contrairos de seu proposito
e desejo, se partiu para Castella, d'onde depois foi retornado como se
dirá.

A Rainha sendo já certificada da determinação em que o povo estava de
lhe tirar o Regimento e da-lo ao Infante, sendo assi aconselhada por
aquelles que a serviam, escreveu aos fidalgos que sostinham sua parte
que não viessem ás côrtes, e se escusassem como melhor vissem; e
enviassem a ella procurações abastantes com suas protestações de não
outorgarem nem obedecerem em cousa que se n'ellas accordasse. E elles
assi o fizeram, os quaes eram o Arcebispo de Braga, o Priol do Crato, o
marechal D. Duarte, senhor de Bragança, D. Duarte de Menezes, Fernão
Coutinho, Gonçallo Pereira de Riba-Vizella, Alvaro Pirez de Tavora,
Diogo Soarez d'Albergaria, Fernão Soarez, Ruy Vaz Pereira, Luiz Alvares
de Sousa, Pero Gomes d'Abreu, Lyonel de Lima, Gomes Freire, Lopo Vaz de
Castel-Branco, Martim Affonso de Mello, Diogo Lopes Lobo, Fernão de Sá,
João de Gouvêa, D. Sancho de Noronha, e alguns filhos d'estes, e outras
algumas pessoas d'outra condição.

Mas como quer que estes não viessem ás côrtes, posto que fossem tão
grandes pessoas, ellas não se leixaram de fazer, nem elles recusaram
obedecer inteiramente ás determinações d'ellas. Que por aquelle tempo,
ainda que os fidalgos muito valessem, não era seu valor para contrariar
a vontade dos filhos e netos d'El-Rei D. João, com que o reino e todalas
cousas d'elle, por amor e razão logo pendiam.



CAPITULO XLI

_Como o castello de Lisboa foi pela cidade tomado e dado ao Infante D.
João, e o que se n'isso seguiu_


D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando seu filho sostinham a parte
da Rainha; e porque D. Affonso era alcaide mór de Lisboa, tanto que
sentiram as voltas da cidade contrairas a sua tenção se meteram no
castello, e com elles alguns fidalgos seus amigos e outra gente de sua
criação: e começaram logo de poer n'elle grandes avisos de guardas de
dia, e vellas e roldas publicas de noite. E os da cidade vendo tal
novidade, e sendo certificados de muitas ameaças e palavras deshonestas
que as vellas contra elles diziam, como sentidos d'isso acordaram de ir
combater o castello. Mas o Infante D. João por evitar escandalos e
damnos que se podiam d'isso seguir, por então os impediu; e tomou o
cargo de assessegar se podesse esta alteração, por meio de D. Maria de
Vasconcellos, mulher de D. Affonso, a qual por consentimento, e com
seguridade do povo lhe veiu fallar ás casas da Moeda. Onde o Infante com
palavras mui honestas e virtuosas lhe apontou, que por assessego de
tantos alvoroços e uniões, quantos na cidade via contra seu marido e
filho, fizesse com elles que lhe entregassem o castello, ou consentissem
por sua segurança, que o Infante pousasse dentro, e elles tivessem suas
forças e menagem.

D. Maria com este recado se veiu ao castello, e depois de sobre tudo
haverem suas praticas e conselhos, ella tornou ao Infante com resposta e
determinação de seu regimento. A qual brevemente foi elles não
entregarem o castello, nem receberem outrem n'elle, nem se sahirem
d'elle.

Verdade é que o pae logo consentira em alguns dos meios apontados; mas o
filho por ser mancebo, em que o sangue e pontos de honra ferviam, o
houve por abatimento e o estorvou, especialmente porque havia o partido
da Rainha que seguiam, por mais esforçado que o do Infante D. Pedro que
contrariavam; e juntamente com isto D. Maria disse ao Infante D. João:

«Senhor, se vossa mercê tanto desejo tem d'haver este castello, não sei
porque o não tem d'haver tambem quantos outros ha no reino; pois está em
vossa mão, e o podeis fazer, e para certidão d'isto a Rainha minha
Senhora vos envia por mim dizer, que ella é tão magoada das sem razões
que o Infante D. Pedro contra ella tem feitas, e cada dia ordena, que
antes se despoeria a todolos trabalhos e perigos do mundo, que consentir
ser elle Regedor d'estes reinos. E que para verdes que o não faz por
ella desejar para si o regimento, é mui contente que o hajaes vós. E
para isso renunciará o direito que n'elle tem; pois sabeis que é todo o
que de razão e justiça se requere. E mais lhe praz que El-Rei nosso
Senhor seu filho case com D. Isabel vossa filha: e que d'aqui em diante
vos terá em lugar de padre, para por este respeito e assi por ser já
mulher d'El-Rei vosso irmão, que vos tanto amou, olhardes por ella e por
suas cousas».

O Infante sorrindo-se das derradeiras palavras de D. Maria lhe disse:

«D. Maria, porque vos responda segundo logo começastes, a mim pesa de
vosso marido e filho não consentirem em alguma das cousas que lhe por
vós enviei apontar; Deus sabe que eu o fazia por seu bem; se lhes d'isso
sobrevier algum mal pesar-me-ha; mas eu sem cargo. E quanto das outras
cousas que da parte da Senhora Rainha me dissestes, dizei a sua Senhoria
que nunca Deus queira nem quererá que entre os filhos d'El-Rei D. João,
que nas mocidades em tanto amor e concordia se criaram, seja agora
semeada tal cizania, porque se desamem e desconcertem; eu haveria temor
de Deus e vergonha do mundo, não digo acceitar, mas sómente lembrar-me
d'acceitar o Regimento do reino, em que tivesse dois irmãos mais velhos,
e taes para isso, como são o Infante D. Pedro, e o Infante D. Anrique. E
quanto ao casamento d'El-Rei meu Senhor com minha filha não sendo o caso
como é, certo seria a maior honra e o mór acrecentamento que eu poderia
desejar. De uma cousa sede bem certa, que com melhor vontade e menos
sentimento meu soffreria ve-la no mundo em uma publica dissolução, que
Deus não queira, que casa-la por tal maneira, contra a honra e vontade
do Infante meu irmão, que me tem e eu lhe tenho mui verdadeiro amor. Cá
não sómente erraria a elle, por ter já n'isso entendido e ser cousa mui
razoada, mas ainda desobedeceria á alma e mandado d'El-Rei meu Senhor e
irmão que Deus haja. Cuja vontade, assi na vida como na morte, sabeis
que foi este casamento d'El-Rei nosso Senhor seu filho, com a filha do
Infante meu irmão se fazer em toda maneira. E por isso esta é a razão
que se faça, e não se deve contrariar. Mas vós dizei á Senhora Rainha,
que sem isto que me por vós manda cometer, me tem sua mercê por fiel e
certo seu servidor, e lhe peço por mercê que queira viver como é razão,
e não curar de cousas que a ella nem ao reino não cumprem. E vós por seu
bem e assessego, e com vossa discrição assi lh'o deveis d'aconselhar».

E com isto a despediu.

Os da cidade vendo a contumacia e ousadia de D. Affonso, receosos de
poder ser com algum fundamento que a elles podesse ao diante trazer
damno e perigo, por accordo geral que sobr'isso houveram, foram cercar o
castello e o vallaram d'arredor, e lhe pozeram estancias e guardas para
que de noite nem de dia não entrasse nem sahisse d'elle alguma pessoa,
nem os de dentro podessem receber soccorro, aviso, nem mantimentos.

E porque D. Affonso e seu filho com sua gente entráram no castello de
subito, sem percebimento de mantimentos, vendo se apertados da
necessidade e perigo, e frouxos de esperança de remedio, leixou o
castello ao Infante D. João com algumas seguranças que requereu, e se
foi para a Rainha.



CAPITULO XLII

_Mandou a Rainha velar e afortalezar Alanquer, onde tinha El-Rei_


A Rainha estava em Alanquer, onde tinha El-Rei e seus filhos, como já
disse. E por lhe ser dito que depois do accordo de Lisboa, o Infante D.
Pedro se percebia em Coimbra de gentes e armas, e que a fama e rumor
era, ainda que falso fosse, para a vir cercar e a levar d'alli e El-Rei
ás côrtes de Lisboa; tendo sobr'isso conselho, e não tomando o que mais
devia, mandou velar, afortalezar e repairar a villa de muros, gentes,
armas e mantimentos, e se poz em som de defeza, se tal caso sobreviesse.
Com que ácerca do povo não aproveitou, mas damnou muito suas cousas;
porque acrecentou e confirmou a muitos a suspeita que se d'ella havia,
em esperar para seu socorro e ajuda gentes de fóra do reino.



CAPITULO XLIII

_Dissensão que a Rainha procurou d'haver entre o Infante D. Pedro e o
Infante D. Anrique_


Sentindo a Rainha que o Infante D. Anrique, com quanto se mostrára
sempre a seu serviço, seguia acerca do Regimento a parte do Infante D.
Pedro. Por causar entre elles suspeita e differença em sua conformidade.
Ou por ventura e mais certo, por lh'o fazerem assi crêr. Escreveu
secretamente de sua mão ao Infante D. Anrique que se não fiasse do
Infante D. Pedro. Porque elle para haver com menos impedimento o
Regimento que procurava, e mais soltamente usar d'elle, como era sua
vontade, sabendo que não havia no reino de quem esperasse contradição,
salvo d'elle, soubesse certo que o queria prender, de que sua vida não
estaria muito segura. E ante que a carta d'este aviso fosse dada ao
Infante D. Anrique, que estava em Soure, o Infante D. Pedro, que era em
Montemór-o-Velho, por meios secretos que trazia, foi d'ella primeiro
sabedor. E para preservar a vontade do irmão, que com tamanha falsidade
contra elle em alguma maneira se não damnasse, partiu a gram pressa e
mui aforrado, e lhe foi fallar, não lhe revelando cousa alguma da carta
que lhe havia de vir; mas acceitando geralmente seu coração, com a
firmeza de seu amor e amizade, para os movimentos e desaccordos que se
lhe aparelhavam. Pedindo-lhe, que se contra elle viessem a suas orelhas
algumas cousas, que a isto contrariassem, que as não recebesse em seu
juizo, e d'elle cresse que o amava como a si mesmo.

O Infante D. Anrique não se saltou muito com aquella vinda; porque lhe
parecia que os tempos e as mudanças d'elles o causavam e requeriam. E
porém com palavras que em siso e prudencia, e confiança não desacordaram
das do Infante seu irmão, lhe respondeu e o despediu.

A dois dias que o Infante D. Pedro se partiu, chegou Martim de Tavora ao
Infante D. Anrique com a carta da Rainha que disse. E como a viu,
maravilhado da sustancia d'ella, se foi logo a Coimbra só, onde já era o
Infante D. Pedro. Ao qual mostrando-lhe a carta disse:

«Vêde senhor irmão o que me escreve a Rainha; mas porque vejaes bem o
temor que tenho de vós, venho assi percebido e seguro a vossa casa.»

E o Infante D. Pedro rindo-se, e com mostrança de grande amor, o abraçou
e lhe disse:

«Senhor irmão, não me espanto taes tempos e taes vontades criarem fruita
tão nova. E porque sabia já que vos haviam de convidar com ella, sem
vo-lo dizer vos fui falar. Cá não eram a outro fim as cautellas da
segurança que vos de mim fui dar; porque ainda que sobre tanta razão e
firmeza pareciam então escusadas. Sabei que o receio d'este damnamento
as não escusou. E porém a prisão que vós aqui recebereis será a honra e
amor que de mi sempre recebestes, e me vós mui bem mereceis.



CAPITULO XLIV

_Embaixada dos Infantes á Rainha_


Alli estiveram os Infantes alguns dias, e com elles o conde de Barcellos
seu irmão. E para com mais repouso e menos torvação proverem as cousas
do reino, se foram ao logar da Pereira, onde accordaram que o conde de
Barcellos fosse á Rainha requerer-lhe com razões assás justas e
necessarias, que fosse ás côrtes de Lisboa que haviam de ser o
derradeiro dia de Novembro. E que se para sua ida e dos seus quizesse
alguma segurança, ainda que não fosse necessaria, lh'a dariam na fórma
que apontasse.

Partiu o conde de Barcellos para Alanquer, e por seu aviso, no dia que
chegou foi ahi com elle seu filho o conde d'Arrayollos, que estando
comendo se ajuntaram em sua casa por modo de visitação as pessoas
principaes que hi eram. O conde lhes estranhou logo com palavras
honestas e razões mui efficazes, os alvoroços que na villa faziam de
vellas e roldas, e tomamento d'armas aos vassallos, que pareciam começos
de guerra, e como cousa feita por errado conselho a fez amansar, e
tornar todo a estado pacifico. Foi logo o conde fallar á Rainha, e lhe
disse:

«Senhora, os Senhores Infantes meus irmãos e eu, acordamos de eu vir a
vós para sustancialmente saberdes que para concordia e bom assento dos
grandes movimentos e negocios, que ora são n'estes reinos, assi do
Regimento d'elles, como da cisma dos Papas e livramento do Infante D.
Fernando, é mui necessario fazer-se côrtes geraes ante do saimento, ás
quaes é bem que El-Rei nosso Senhor e vós vades. E elles e eu assi vo-lo
pedimos que o queiraes fazer.

«A mim prazera, respondeu a Rainha ir ás côrtes como requereis, se ante
d'ellas as cidades e villas do reino revogarem a enleição do Regimento
que tem feita ao Infante D. Pedro, e elle a renunciar. E mais por quanto
alguns fidalgos e outras pessoas por juramento são obrigados, assi a mim
como a elle, de sosterem a parte que seguirmos, é bem que tudo isto se
revogue, para uns e outros poderem livremente dizer e conselhar o que
lhes parecer serviço de Deus e d'El-Eei meu filho Senhor, e bem de seus
reinos. E se isto primeiro assi se não faz, eu por alguma maneira não
irei ás côrtes.»

Com esta resposta assignada pela Rainha se partiu o conde para Coimbra,
onde achou sómente o Infante D. Pedro. O qual depois de a vêr, disse:

«A inclinação que os povos sem mim e meu requerimento acordaram, elles
pois tem o poder se o assi houverem por bem a revoguem. E para isso é
mais razão e mór necessidade que a Rainha vá ás côrtes, onde por ella e
por aquelles que seguem sua vontade se poderá acerca d'isso requerer o
que lhes parecer direito e justiça, e eu o não contradirei. Cá em caso
que quizesse, hi haverá taes pessoas para sostimento de tamanha justiça
e honestidade, que minha resistencia aproveitaria pouco. E quanto ao
juramento de que aponta que releve os que seguem minha parte, seja certa
que com verdade nunca se achará um só, que para tal obrigação me seja
obrigado, e se alguns o são, não é por semelhante força, nem contra suas
vontades, mas sómente por criação ou bemfeitoria que de mim tem
recebido.»

O conde de Barcellos se foi logo a Guimarães, onde fez ajuntar D.
Sancho, e o Arcebispo de Braga, e Vasco Fernandes, e Martim Vaz da
Cunha, e Pero Gomez d'Abreu, e Lionel de Lima, e Alvaro Pirez de Tavora,
e Luiz Alvarez de Souza, que segundo geral opinião seguiam todos a parte
da Rainha, e com elles concertou que escusassem sua ida ás côrtes, posto
que elle fosse, e que em qualquer forma que a qualquer parte ficasse o
Regimento, sempre seria com segurança de suas honras, e esperança de
mais seu acrecentamento.



CAPITULO XLV

_Recado da Rainha ao Infante D. Pedro quando de Coimbra vinha para
Lisboa ás côrtes_


O Infante D. Pedro partiu de Coimbra para Lisboa, e com elle álem dos de
sua casa, João Gomez da Silva, e D. Fernando de Menezes, e Alvaro
Gonçalves de Tayde, e D. Fadrique de Castro, e Fernão Coutinho, irmão do
marechal, e Gonçalo Vaz Coutinho, meirinho mór, e Pero de Lemos, e João
de Tayde, senhor de Pena Cova, e a gente do Bispo de Coimbra, que faziam
numero de mil e oitocentos homens de cavallo, e dois mil e seiscentos de
pé, da qual cousa a Rainha foi avisada, e sendo certificada que o
Infante havia de Torres Vedras ir a Alanquer para comsigo segundo diziam
levar logo El-Rei ás côrtes, e receosa de assi ser, pelo desviar de tal
proposito enviou a elle Anrique Pereira, que o topou em Alfazeirão,
pedindo-lhe «que na maneira em que ia escusasse sua ida onde El-Rei e
ella e seus filhos estavam, assi porque pareceria desacatamento, estando
elles tão sós, como por a villa não ser capaz de seu aposentamento, e
menos bastante para os manter. E que se sua ida assi era necessaria, que
se não podia escusar, que quizesse ir muito aforrado.»

Como o Infante isto ouviu disse:

«Anrique Pereira, vossa vinda sobre tal caso fôra bem escusada, e
verdadeiramente assi me salteam estes accidentes, que não sei que vos
responda, sómente dizei á Senhora Rainha, que me doem muito estas
sospeitas, e porém saiba que dos que se mais mostram a seu serviço, se
deve mais guardar, pois tão erradamente a aconselham, e mais contra mim
que desejo mais de a servir que a nojar. E que não fallo no que cumpre
ao estado e serviço d'El-Rei meu Senhor; porque em desejar de o
lealmente servir e amar, não darei avantagem a nenhum do mundo.

E com este recado se tornou Anrique Pereira á Rainha.

Seguiu o Infante sua viagem até o Lumiar, onde a petitorio dos da cidade
de Lisboa, que ante de sua entrada quizeram fallar primeiro com elle,
sobre-esteve alguns dias. Aos quaes com palavras de grande
aguardecimento e mercês, tendo respondido, despediu a gente que com elle
viera, leixando sómente os seus continos e alguns que para as côrtes
vinham ordenados.

Lisboa porque seus accordos eram mui difficeis, e para os particulares
não havia perfeita auctoridade, deputou doze cidadãos, a que por
consentimento de todos o conselho e deliberação de todalas cousas de
peso, que então occorriam foi comettido. Os quaes juntos sustancialmente
accordaram que o Infante fosse logo declarado por Regedor in solido, sem
outra ajuda nem companhia, até El-Rei ser em idade de per si o poder
reger. E este accordo foi publicado a todo o povo no refeitorio de S.
Domingos, onde logo com vozes e signaes de todos foi sem contradição
approvado e consentido.

E os cidadãos enviaram logo ao Infante Pero de Serpa, e Martim Çapata, e
Ruy Gomez da Grã, e João Carreiro a notificar-lhe o accordo passado, e
pedir-lhe que ao outro dia quizesse entrar e ser seu hospede, com
fundamento, que primeiro havia de prometter e jurar que logo só sem
outra companhia nem ajuda começasse uzar do Regimento inteiramente. O
Infante depois de lhes aguardecer sua ida e tenção, lhes disse:

«Amigos, sabei que n'este caso acordastes mais o que quizestes, que o
que devieis; porque eu n'elle para o que a mim cumpre tambem não posso
fazer se não o que devo, que é d'este cargo não me antremeter assi
absolutamente, sem meus irmãos e sobrinhos, e sem os procuradores dos
tres Estados que para isso são chamados. Porque do contrairo, a uns será
desacatamento, e a outros causaria escandalo. Pelo qual me parece que a
trigança para isso não é agora necessaria; mas que deveis sobre-ser até
as côrtes que serão logo. E o que n'ellas se accordar e determinar, isso
será o que se então deve fazer e cumprir».

«Senhor, disseram elles, essas justificações de que vossa honestidade se
acautella, bem era que cessem assi; mas ellas para este caso já são
feitas; porque das cidades e villas, que n'elle hão de dar voz, aqui
temos por suas cartas seus consentimentos. E para o cumprimento de
vossos irmãos, aqui tendes vosso irmão o Infante D. João que o requere
assi e ha por bem. E com os outros já fallastes, que o não contradizem.
E por tanto Senhor, vos pedimos que não alongueis o que vos tão justa e
devidamente offerecemos. Nem deis causa que de vossa escusa se sigam
alvoroços e desconcertos de povo, que serão depois impossiveis, ou mui
trabalhosos de concertar.»



CAPITULO XLVI

_Entrada do Infante D. Pedro em Lisboa, e como ante as côrtes acceitou o
Regimento_


E como quer que da vontade do Infante fosse todavia leixar tudo para
determinação das côrtes. Porém vendo-se constrangido dos cidadãos, teve
conselho com esses principaes que trazia, dos quaes todos foi
aconselhado, que ao outro dia entrasse na cidade e fizesse o que ella
lhes requeria, pois o contrairo pelas cousas que eram já n'isso
passadas, não contradizia a honestidade nem razão. Pelo qual o Infante
consentiu no entrar ao outro dia. E defendeu a solemne procissão e
outros grandes estrondos e cerimonias com que ordenavam de o receber.
Mas que seu recebimento fosse sómente ao costumado que lhe sohiam fazer
sem outra ennovação.

Ao outro dia entrou o Infante, sendo no caminho recebido do Infante D.
João e de todolos fidalgos e pessoas de conta da cidade com gram prazer
e alegria. E assi foi levado ás casas do Mestre d'Aviz, que estão junto
com a Sé, onde pousou.

E ao outro dia, dia de Todolos Santos, foi ouvir missa á Sé, onde lhe
foi requerido que o juramento que a cidade tinha acordado, elle o
fizesse, como logo fez, nas mãos de D. Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora,
onde publicamente jurou e prometeu com as mãos postas sobre os
Evangelhos e Cruz, de bem e lealmente reger e defender estes reinos em
nome d'El-Rei D. Affonso seu Senhor, até ser em disposição de os per si
poder reger e defender, e que então lh'os entregaria livremente e sem
contradição nem cautella, e o serviria sempre com amor e lealdade, como
bom e leal vassallo.

Tardou o ajuntamento das côrtes até os dez dias de Dezembro, onde os
Infantes com todolos procuradores sendo juntos nos Paços d'Alcaçova, o
Infante D. João se levantou em pé e disse que algumas cousas que a todos
ali queria propoer por serviço de Deus e d'El-Rei, e bem do reino, por
não estar por então em disposição de per si as poder dizer, encomendou
ao doutor Diogo Affonso Mangancha que por elle as dissesse, pedindo-lhes
que logo o ouvissem.

O doutor que era presente, cessando todo o rumor, propoz uma arenga
grande e bem dita, cuja sustancia foi aprovar em nome do Infante D.
João, que fôra bem feito enleger o Infante D. Pedro por só Regedor,
contradizendo o accordo e determinação das côrtes de Torres Novas, em
que o Infante não fôra, e de si mostrou com claras razões, aprovadas por
Direito Divino e Humano, e autorizadas por claros exemplos, que mulher
não devia ter Regimento. Nem que dois em companhia não deviam reger; mas
um só, e para ser um só devia ser o Infante D. Pedro, e que a Rainha
servissem e acatassem todos como era razão e o requeria ser mulher e
madre de taes dois reis, sangue e virtudes que tinha.

Foi por todos geralmente consentido na proposição do doutor, e aprovaram
sem contradição o Infante D. Pedro haver só de reger, de que se fez um
accordo que testemunharam quatro notairos que a todo eram presentes,
Lopo Affonso e Ruy Galvão, e Martim Gil, e Gonçallo Botelho, officiaes
da camara e fazenda de El-Rei. O qual accordo foi logo por todos alli
assignado, salvo pelo conde d'Arrayollos, que se escusou de o assignar,
nem chamou depois ao Infante Regente, mas seu nome; como quer que
obedecesse a seus mandados inteiramente, e melhor que alguns que o
enlegeram e assignaram.

Foi isso mesmo acordado que o Infante fizesse como fez, juramento na
fórma do passado, de reger bem o reino e o entregar livremente a El-Rei,
como fosse em edade e disposição de o por si reger e deffender. E certo
o Infante D. Pedro o fez assi sempre bem, e como devia, que para ser
louvado sobre todolos Principes de seu tempo, não lhe falleceu se não
ser Rei; porque em Regedor não dava assi as cousas á inteira execução
que se requeria. E tudo por temperança e assessego do reino, e por
evitar escandalos, odios, invejas a que não pôde fugir, cá em fim o
encalçaram com a morte, e com quebra de seu estado, como adiante se
dirá.



CAPITULO XLVII

_Notificação do acordo passado á Rainha, que o não consentiu_


O Infante D. Pedro por si só, e des-hi os outros infantes, condes e
fidalgos e procuradores das cidades e villas que foram presentes, por
suas cartas notificaram logo á Rainha que estava em Alanquer, todo o
passado, com razões e fundamentos de serviço de Deus e d'El-Rei, e
grande descanço d'ella. Pedindo-lhe todos com muito acatamento que o
houvesse assi por bem e quizesse trazer El-Rei á cidade para lhe ser
feita a reverença que lhe todos deviam e desejavam fazer. E para em sua
presença se tratarem algumas cousas, que a seu estado e serviço, e bem
de seus reinos convinham.

Com este recado o Infante enviou á Rainha Alvaro Gonçalvez de Tayde,
governador de sua casa, homem prudente e bem razoado, e de que muito
fiava.

A Rainha recebeu a messagem com signaes de grande tristeza, e por
conselho dos que com ella eram, sustancialmente respondeu _que se os
Senhores Infantes, condes e povo, revogassem a enleição do Regimento,
que era feito ao Infante, e o dessem a ella como eram obrigados, seria
contente levar El-Rei á cidade. E d'outra maneira que o não faria_. E ao
dar da resposta tomou d'isto estromentos por seu resguardo.

Tornou-se Alvaro Gonçalez aos Infantes com esta resposta, e vendo-a
contraira a sua determinação, acordaram de enviar a ella com a mesma
sustancia Affonso Nogueira, que depois foi Arcebispo de Lisboa, e o
ministro de S. Francisco, confessor d'El-Rei, como pessoas esprituaes, e
de boas conciencias, os quaes como quer que para a commoverem a
consentir no passado lhe dissessem causas e razões para Deus e para o
mundo assaz evidentes, ella forçada por ventura de sua fraca humanidade,
ou dos errados conselheiros, que em contrairo tinha ouvido, acusou com
palavras mui honestas a si mesma, e a dureza de sua conciencia por o não
poder fazer. E em fim nem consentiu em o Regimento lhe ser tirado, nem
de levar El-Rei, nem dar lugar que fosse por outrem levado a Lisboa, com
quanto lhe fossem feitas grandes seguranças de logo El-Rei lhe ser
tornado, como na cidade estivesse alguns dias.



CAPITULO XLVIII

_Ida do Infante D. Anrique á Rainha para leixar vir El-Rei ás côrtes, e
lh'o tornarem_


Com este recado foram os Infantes mui descontentes, e o povo mui
alvoraçado, e leixadas muitas praticas e tenções que se moveram,
finalmente foi acordado que o Infante D. Anrique por derradeiro e
principal cumprimento fosse sobre o mesmo caso a ella, como foi.

E apartados ambos, o Infante lhe fez uma falla, em que obrou tanto sua
virtuosa tenção e bom proposito com que ia, que demoveu a Rainha ao que
desejava. D'onde foi de crêr, segundo era virtuosa e amiga de Deus, que
se conselheiros apassionados a não torvaram, ella e sua vida e estado
conseguiram outro fim de mais sua honra e descanso.

Ao outro dia partiu d'Alanquer o Infante D. Anrique com El-Rei e com a
Rainha e Principe, para Santo Antonio, camara do Arcebispado de Lisboa,
e o Infante D. Pedro, sabendo que a Rainha não resistiria ao Infante D.
Anrique, e viria ao que elle quizesse e levava ordenado lhe requerer, se
foi de Lisboa a Alverca, d'onde sahiu ao caminho, e com grande
acatamento beijou as mãos a El-Rei e á Rainha, como quer que ella se
quizera d'isso muito escusar, e assi chegáram a Santo Antonio bespora de
Natal, onde foi acordado que El-Rei e a Rainha tivessem a festa. A qual
passada, os Infantes todos tres foram por El-Rei e por o Principe seu
irmão. Dando primeiro á Rainha segurança por seus assignados, de logo
lhe tornarem El-Rei a seu poder, criação e governaça.



CAPITULO XLIX

_Entrada d'El-Rei em Lisboa para as côrtes_


Veiu El-Rei por agua até Lisboa e foi recebido á Porta d'Oura, e d'alli
levado á Sé e aos Paços d'Alcaçova. Indo El-Rei e seu irmão e os
Infantes sómente a cavallo, e os condes e outros senhores foram todos
ante elles, e esse recebimento foi com tantas cerimonias d'acatamento,
obediencia e alegrias assi celebrado, que em qualquer parte do mundo
onde mui altamente recebimentos se costumassem fazer, este fôra mui
muito louvado, e o Infante D. Pedro foi só o que poz El-Rei a cavallo e
o deceu. O que não sómente fez aquelle dia, com assignado acatamento e
leal obediencia e grande reverencia, mas sempre depois o continuou e
acrecentou, em dez annos que por elle regeu seus Reinos. Cá por si o
serviu e fez aos outros servir com tamanho cumprimento de seu estado e
serviço que se não póde dizer que outro algum Principe fosse melhor
criado no mundo, nem ensinado.

Mandou logo o Infante D. Pedro a Ruy Gonçalves de Castel-Branco, védor
que fôra d'El-Rei D. Duarte, que fizesse nos paços correger em grande
perfeição a salla em que El-Rei havia d'estar nas côrtes. E concordado o
dia, que foi aos dez dias de Dezembro de quatro centos e XXXIX, e
assentado El-Rei em sua cadeira, e acompanhado de senhores e officiaes,
como para auto tão real convinha e se acostumava, o doutor Diogo Affonso
Mangancha propoz a arenga em nome d'El-Rei ao povo, cuja principal
sustancia foi: «aprovar e confirmar a enleição por elles feita de o
Infante D. Pedro para por elle reger, e agardecer-lhes e prometer-lhes
mercês, honras e liberdades pela assi fazerem, e assi encommendar ao
Infante que o fizesse assi bem e direitamente, como d'elle confiava, e
mandar a todos que lh'obedecessem, como á sua propria pessôa».

E em acabando o doutor, o Infante D. Pedro com os giolhos em terra
beijou a mão a El-Rei, e sua Senhoria lhe entregou logo um páo em que
estava atado o sello secreto, em signal e nome de poderio. E como se deu
fim a estas cousas, foi logo El-Rei tornado á Rainha sua madre, segando
pelos Infantes lhe fôra prometido.

O Infante D. Pedro na casa das côrtes fez logo ajuntar os do povo e
alguns do conselho, e sendo entre elles em pé, lhes disse com muita
gravidade:--«que pelo grande cargo do Regimento que lhe fôra
encommendado, era necessario elle fazer de si outro homem».--Pelo qual
lhe fez alguns avisados amoestamentos, em signal de sua grande bondade e
muita prudencia, para os que bem e direitamente vivessem esperassem
d'elle em nome d'El-Rei seu Senhor, bem e mercê, e assi pena e castigo
aos que o contrairo fizessem, encommendando-lhes outrosi que o amassem e
lhe obedecessem, e quizessem ajuda-lo e deffende-lo com seus corpos e
fazendas, assi como elle faria a elles mesmos quando lhes cumprisse. E
principalmente que confiassem d'elle que todo o que fizesse seria afim
de bem e justiça, em caso que lhes parecesse o contrairo. Ás quaes
cousas lhe foi por um deputado respondido, conforme a sua tenção e
petitorio, e o Infante descobrindo sua cabeça lh'o agardeceu.

O conde de Barcellos mostrava d'este feito não ser contente, e desejoso
de haver para si alguma parte do Regimento, e por enfraquecer ao Infante
seu poder fez e ordenou certos capitulos em fórma de Regimento, que o
Infante havia de ter em sua governança. Pelos quaes todolos feitos
principaes tirava de seu juizo e os remetia ás côrtes, que cada anno
apontava que se fizessem. O qual Regimento mostrado aos procuradores dos
povos, houveram por escusado ennovar-se mais do que tinham acordado, e
El-Rei aprovado. De que o conde mostrou ser assáz descontente, e começou
logo de requerer a restituição da posse do Arcebispado ao Arcebispo D.
Pedro seu cunhado; e porque não podia ser sem prazer e consentimento dos
cidadãos, que d'elle tinham apellado para Roma, o Infante D. Pedro por
contentar e assessegar vontades contrairas, e tirar inconvenientes e
torvaçõas a seu regimento, e assi tambem o Infante D. João, entenderam e
trabalharam n'isto muito com diligencias, que pareciam verdadeiras e não
fingidas. E em fim a cidade por Pero de Serpa seu cidadão, se escusou de
o consentir com muitas razões, em que pareceu que não fallecia serviço
de Deus, honestidade e muita justiça. Afirmando, que todavia haviam de
seguir sua appellação, durando a qual seria o Arcebispo suspenso, e
trabalhariam porque fosse privado, e por esta dureza que os infantes
acharam nos cidadãos, pela mais não agravar, houveram por bem leixar por
então este requerimento, esperando que depois se faria melhor, como fez.
De que o conde de Barcellos não sómente contra os cidadãos, mas contra o
Infante principalmente, mostrou grande sentimento, parecendo-lhe que por
sua conjuntura e prazer a cidade tinha aquelle esforço de resistir.

A estas côrtes entre as outras graças e liberdades que o Infante D.
Pedro em nome d'El Rei outorgou ao povo, foi que não houvesse
aposentadoria em Lisboa, fazendo estados e casas, em que se El-Rei e sua
côrte podessem alojar; e depois se deu assi a Evora e Santarem.



CAPITULO L

_De como se apontou e aprovou não ser bem El-Rei se criar em poder da
Rainha_


Estando já as côrtes e despachos d'ellas em conclusão para os
procuradores se poderem ir, um João Gonçalvez, procurador da cidade do
Porto, com outro seu parceiro se foram á camara de Lisboa, sendo os
officiaes d'ella em vereação. E cuidando os da cidade que iam
despedir-se d'elles, como era de cortesia e custume, João Gonçalves
disse:

«Senhores, a mim e a meu parceiro parece, que vós e todolos outros
nossos irmãos e parceiros, que em nome do reino a estas cortes viemos,
as daes já por acabadas. E certo muitas cousas, mercês a Deus, se
concludiram n'ellas; porque El-Rei nosso Senhor é mui servido, e nós
contentes. Porém a principal ficou por requerer e fazer. Sem a qual,
todo o que se fez a nosso parecer é nada ou aproveita muito pouco».

Os cidadãos enleados de sua proposição, sabendo que era homem
d'autoridade, cessaram de suas praticas em que estavam, e seguraram os
rostos e as vontades para o ouvir. O qual proseguindo disse:

«Porque concludindo brevemente meu proposito, digo-vos que por se
escusarem muitos danos e grandes inconvenientes que se não escusam,
El-Rei não deve ficar em poder da Rainha como está, e alguns apontarei e
os outros mais vós por vossa discrição e saber os entendei.
Primeiramente a criação d'El-Rei por ser em poder de mulher, é a elle
mui danosa, e sempre por isso ficará fraco e feminado. Que para qualquer
homem privado é aleijão sobre todos, quanto mais para Rei. E se as
comparações não fossem odiosas, e isto não fosse tão claro, por exemplos
bem vo-lo poderia provar. Outrosi de sua creação, por tal maneira está
mui evidente o perigo do Infante D. Pedro Regente, e tambem nosso;
porque segundo a Senhora Rainha, isto que acordamos sente por sua
deshonra e grande quebra de seu estado, como em suas cartas e
protestações parece claro, não é duvidar que criaria El-Rei em odio
contra o Regente e contra nós, de que ao diante poderia por isso
commeter uma grande crueldade, em que não haveria remedio. Porque como
naturalmente aquellas cousas que os moços recebem na tenra edade se lhe
emprantam no coração e em sua memoria para sempre, esta principalmente
se lhe emprantaria muito mais, por lhe ser dita tão a meude, e com
tantas lagrimas. Outro dano é a que se deve atalhar o crecimento de
despezas desordenadas, a que as rendas do reino não bastáram. Cá umas
são necessarias ao Regente para manter seu estado e do reino, e outras
cumprem de necessidade a El-Rei e a seu irmão, e outras á Rainha e suas
filhas. Com outros inconvenientes que agora são escusados apontarem-se».

Aos cidadãos pareceu bem o motivo de João Gonçalves, e fizeram logo
avisar os outros procuradores, que logo á tarde foram hi juntos, onde
depois de havidas algumas praticas e altercações sobre o caso,
accordaram que El-Rei e seu irmão deviam todavia ficar em poder do
Infante D. Pedro. Ao qual d'este accordo logo avisaram, pedindo-lhe que
o quizesse assi consultar com os Infantes seus irmãos, com os quaes
ordenasse que se cumprisse.

O Regente depois de ouvir dois cidadãos que a elle sobr'isso foram, lhes
respondeu:

«Dizei aos cidadãos e procuradores, que lhes rogo muito que cessem
d'este movimento, e não me daria persumir-se que eu n'elle cabia por
principal, se fôsse devido e necessario; mas eu o digo assi, porque na
verdade ei por muito melhor ficar El-Rei meu Senhor e seu irmão em poder
de sua madre, que no meu. Assi por satisfazer a sua consolação e
contentamento como é razão e está concordado, como tambem por mais minha
segurança e descargo, e sua Senhoria moço é, e sujeito como todos a
enfermidades e casos mortaes, de que fallecendo, o que nosso Senhor não
queira e o defenda, é certo que seria com grande minha tristeza e muita
pena, e a mim poderiam dar a culpa de sua morte, e d'hi ávante eu com
este cargo tenho tantas cousas em que entender, que a essa não poderia
satisfazer como a ella requere e é razão; e que podesse, sabei que
queria fugir aos odios dos aios, que eu com tal cargo não posso escusar,
especialmente refreando El-Rei e seu irmão em cousas a que sua mocidade
os inclinará, em que por ventura mereceram mais emmenda e reprensão que
louvor.»

Os cidadãos lhe replicaram:

«Senhor, quem vos bem conhece e vosso justo juizo e grande saber, sem
errar vos póde dizer que d'outra maneira o entendeis, do que o fallaes.
E por tanto isto que vos propozemos é assi em nós todos tão determinado
para se cumprir, como o mais que fizemos. Cá se o passado foi
proveitoso, n'isto ha proveito e necessidade; porque não é razão, nem
queira Deus que um tão alto Principe como é El-Rei nosso Senhor, e que
em tão pequenos dias nos dá de si tantas esperanças de bem entendido e
virtuoso, seja assi creado em tanto aleijão, como é a criação em poder
de mulheres. Antes pois em vós para isso ha tantas razões, é razão que o
crieis e façaes ensinar em letras e reaes costumes, e o leveis ao monte
e á caça, e lhe mostreis por vós o exercicio das armas, e por exemplos e
doutrina, e merecimentos da cavallaria. E assi as outras cerimonias,
manhas, e cousas que ao estado de um tal Principe convém, assi para os
tempos publicos, como secretos, e com isto elle é de tão são e perfeito
entender, que conhecerá que o servis bem e lealmente. E por isso vos
amará e fará aquelle acrecentamento e mercê, que lhe prazendo a Deus
merecereis.»

O Regente acalçado n'este caso da necessidade e razão de que se não
sabia escusar, disse: «que se fallasse aos Infantes seus irmãos, e o que
elles accordassem por melhor, elle o seguiria.» Aos quaes por os
procuradores foi logo fallado, e assi aos condes e ás outras pessoas
d'estima que eram na côrte. E por todos finalmente foi accordado: «que
pospostas todalas cousas e assento passado, El-Rei ficasse em poder do
Regente». O que em pessoa lhe foi logo assi notificado. O qual disse:

«Certo não por resistir a vosso conselho e determinação, a que folgarei
sempre de obedecer. Mas a mim parece que n'este caso o melhor será que a
Senhora Rainha e eu andemos pelo reino juntamente, de que se seguirá que
sua Senhoria criará El-Rei meu Senhor seu filho, e eu vê-lo-hei e
servirei nas cousas que apontaes, quando fôr necessario. E prazendo a
Deus, eu o farei por maneira, e com tanto prazer e contentamento d'ella,
que sua Senhoria terá razão de conhecer de mim a verdade de que sempre
duvidou, e perderá com isso alguns queixumes e escandalos que sem causa
lhe fizeram ter contra mim.»

E louvando todos aquelle parecer, se foram com elle á Rainha, que ainda
era em Santo Antonio, á qual pelo Infante D. Pedro e por os outros
Infantes foram mui verdadeiramente ditas todalas cousas e razões que no
caso havia para o haver de seguir. Mas ella finalmente não quiz, salvo
que lhe ficasse a governança da fazenda juntamente com a criação de seus
filhos, referindo-se ao accordo das primeiras côrtes. E que se das
rendas para serviço d'El-Rei se houvesse alguma cousa despender, que
fosse por sua autoridade e mandado. E como quer que pelos Infantes lhe
fossem apontados muitos pejos e inconvenientes para assi não poder ser,
e lhe pedissem que quizesse haver por bem o que accordáram, a ella não
prouve. E os Infantes vendo sua determinação, se despediram d'ella para
ainda consultarem se se acharia algum bom meio com que ella ficasse
contente.



CAPITULO LI

_Como a Rainha teve pratica com os seus principaes sobre a ida dos
Infantes a ella e como se foi a Cintra e leixou El-Rei e seu irmão_


Partidos os Infantes, a Rainha a esses principaes que com ella eram
notificou logo os apontamentos de sua vinda. E assi a conclusão com que
ficara, e quiz d'elles saber o que lhes parecia, dizendo:

«Não pode ser mór angustia da que meu coração tem n'este caso. Cá de uma
parte o sentimento e nojo que tenho do Infante D. Pedro me faz desejar
não haver cousa no mundo para o poder vêr, e d'outra segundo o que
sinto, isto é já quasi privarem-me de meus filhos. Cuja natural piedade
e grande amor que lhes tenho, me constrange não os leixar. Especialmente
me obriga muito parecer-me que segurarei com a graça de Deus suas
pessoas, de que teria mór esperança, e com menos receios, que de andarem
sem mim em poder do Infante D. Pedro. O qual segundo já descobre sua
grande cubica para reinar, quem duvidaria que para o fazer mais
livremente, não lhes encurtara mais cedo as vidas. E n'elle ha muitas
dessimulações e hipocresias com que tudo saberá mui bem encobrir. Assi
que n'estes dois tamanhos extremos não sei qual meio tome, ou ter meus
filhos e andar com elles por sua segurança, e ir com o Infante á melhor
parte sem outro encarrego, ou leixa-los de todo á disposição de Deus que
os guarde, e da fortuna boa ou má que lhes pode vir. O primeiro d'estes
bem sinto que é um bom desejo da alma, a que por ventura consirando tudo
sem paixão eu devia ser mais conforme. O segundo é apetito do corpo e da
honra, em que sinto tamanhas forças, que me inclinam a elle de todo, e
n'esta tamanha diferença e torvação a que meu juizo não abasta, quero
saber de vós o que vos parece.».

Os quaes responderam, dizendo:

«Senhora, esta derradeira é a melhor determinação que podeis ter, e o
vosso coração para quão real é, não deve soffrer andar sobjeita em poder
de um homem vosso imigo, e que segundo o desamor que vos tem, vos fará
cada dia mil nojos e abatimentos, e a nós outros que vos servimos, como
desesperados d'elle em todo bem e mercê, será razão que nós vamos ás
judarias ou fóra do reino, pois havemos ser d'elle pior tratados que
judeus. O que não deveis haver por pequena dôr e vituperio vosso, e com
isto bem sabeis que ha n'elle praticas e cautellas, para com todo
mostrar ao povo que o faz muito pelo contrairo; porque elle não ha mais
mester que favor de villãos que o tem por idolo. Pelo qual nosso
conselho é, o com que despedistes os Infantes, não aceitardes a criação
de vossos filhos sem governardes toda a fazenda, e que pois haveis de
ser agravada, que o sejaes de todo, principalmente pois sabeis que a
emmenda d'isto se apressa, e não pode já tardar muito. E pelo que ora
vossos irmãos vos escrevem de Castella, e assi de Portugal o Priol do
Crato e o Marechal, e os outros fidalgos que defendem vossa querella, o
podeis mais claramente vêr e afirmar, e para segurança de vossos filhos,
sob reverença de vosso juizo, é muito pelo contrairo. Cá para o Infante
D. Pedro cumprir seu máo proposito, se o tem de acabar vossos filhos,
sabei que vossa presença é mais azo, e a melhor encuberta que para isso
pode ter. E por ventura o fará mais levemente, e com menos temor em
vosso poder que no seu. E nas enculcas e espias que já agora traz
comvosco, de que sabe aqui não sómente o que fallaes, mas o que cuidaes,
podereis conjecturar se para tal caso achará ministros. Assi que
leixai-lhe todo o Regimento, e os filhos juntamente até que Deus
queira».

N'este conselho contrariou com razões mui vivas Pero Lourenço d'Almeida,
Almotacé Mór do reino, que era presente, desfazendo á Rainha e aos
outros conselheiros com fundamentos mui claros as esperanças que tinham
de seus irmãos em Castella, e assim dos fidalgos de Portugal.
Pedindo-lhe que quizesse acceitar o meio que os Infantes lhe tinham
apontado, que segundo a disposição do tempo houve por bom. Mas como a
vontade da Rainha, e assi a dos outros estavam para o contrairo
determinadas, não aprovaram o conselho de Pero Lourenço, reputando-lhe
não a siso mas a fraqueza por se não sahir de sua casa e boa fazenda que
tinha em Lisboa. Pelo qual a Rainha determinou partir-se e leixar seus
filhos, e levar sómente as filhas comsigo.

Isto se passou em Santo Antonio a um sabbado, e logo ao domingo a Rainha
mandou chamar secretamente alguns seus de Lisboa, que vieram hi dormir.
E passada a meia noite ouviu missa, e fez alevantar os filhos da cama, e
tomou El-Rei nos braços, e com muitas lagrimas lhe disse:

«Filho e Senhor, praza a Deus por sua piedade que vos guarde e vos dê
vida, e a mim não leixe viva e desamparada de vós, como o sou d'El-Rei
meu Senhor vosso padre.»

E com isto se despediu com tamanho pranto seu e de todos, como se os
leixaram soterrados para os nunca mais vêr.

El-Rei salteou-se com tamanha novidade, e posto que para isso não teve
edade de que se esperasse tamanho accordo, não lhe falleceu natural
prudencia e discrição com que n'aquella hora, com grande repouso e
segurança, e por palavras doces e avisadas, soube confortar a Rainha sua
madre, que se partiu para Cintra, de que o aviso foi logo a Lisboa, e o
Infante D. Anrique como o soube se partiu a gram pressa pela alcançar no
caminho, e já não pôde senão no logar d'onde a não pôde mover de seu
proposito, e o Infante D. Pedro e o Infante D. João foram logo a Santo
Antonio e trouxeram El-Rei e o Principe seu irmão a Lisboa, onde a cada
um deram casa com seus officiaes apartados, porque até alli se serviam
ambos juntamente, e n'estes movimentos foi tanta a prudencia e resguardo
d'El-Rei, que sendo de tão pequena edade, e tendo tanto amor e affeição
á Rainha sua madre, como era razão, nunca por se vêr d'ella apartado foi
ninguem que n'elle contra o Infante podesse conhecer algum signal de má
vontade. Nem que reprendesse ou louvasse os feitos de um nem do outro,
nem com seu escandalo.



CAPITULO LII

_Como Lisboa commetteu de querer fazer uma estatua ao Infante D. Pedro
pelo beneficio do relevamento das aposentadorias, e do que lhe
respondeu_


Os procuradores do reino com isto acabado se foram, e os cidadãos de
Lisboa por memoria da mercê e liberdade que lhes o Infante em nome
d'El-Rei fizera, quando lhes tirou as aposentadorias, como já disse, lhe
quizeram com seu consentimento ordenar uma estatua de pedra sobre a
porta dos Estáos, que o Infante novamente mandou fazer, e
perguntando-lhe em que fórma a haveria por melhor que estivesse, o
Infante com o rostro carregado de tristeza e pensamento, o desviou e
defendeu, dizendo-lhes, como por verdadeira prophecia de sua fim:

«Se a minha imagem alli estivesse esculpida, ainda virão dias que em
galardão d'essa mercê que vos fiz e d'outras muitas que com a graça de
Deus espero de vos fazer, vossos filhos a derribariam, e com as pedras
lhe quebrariam os olhos. E por tanto Deus por isso me dê bom galardão,
cá de vós em fim não espero outro se não este que digo, e por ventura
outro pior.»

Das quaes palavras foram então os cidadãos tão maravilhados, como foram
depois certificados que dizia verdade, quando assi o viram cumprir. E
seguiu-se mais depois, para se presumir que o Infante alguma revelação
tinha de sua morte, que em Coimbra indo elle quando regia, e o Infante
D. Anrique para a porta de S. Bento, que sae á ponte onde estão as armas
da cidade, que são uma mulher posta sobre um calez, com uma corôa na
cabeça, e a uma teta um leão, e a outra uma serpe, o Infante D. Anrique
olhando-as, disse pelo contentar:

«Bem se póde Senhor Irmão comparar a vós esta figura, pois tambem de uma
parte daes mantimento ao leão, que é Castella, e da outra a Portugal,
que é a serpe do nosso timbre.»

«Verdade é, disse o Infante D. Pedro; mas vêde-a melhor, e consirae que
está sobre calez, que significa sangue, em que mais claro parece, que de
meus trabalhos, serviços e beneficios, esse ha de ser meu galardão.»

E certo, com quanto este Principe era mui catholico, devoto e justo, e
em que havia muitas outras virtudes, assi se seguiu como ao diante se
dirá.



CAPITULO LIII

_Como a Rainha sobre suas cousas se querellou aos Infantes d'Aragão seus
irmãos, e da embaixada que enviaram_


A Rainha como dos effeitos da esperança que tinha, e lhe davam para
reger, começou de se vêr no reino enganada, dobrou-se n'ella o desejo de
seu proposito. E por um modo já de victoria e vingança, assi no reino
como fóra d'elle, para cobrar o Regimento dobrou suas forças e
deligencias, para o qual enviou notificar e se queixar aos Infantes
d'Aragão e á Rainha de Castella seus irmãos, como por força lhe tiravam
o Regimento, e a titoria de seus filhos. E assi o aggravo e abatimento
que n'isso recebia, fazendo-os participantes na injuria do caso pelos
mais obrigar e acender para o que desejava, crendo ella que por serem já
retornados em Castella, logo teriam o poder onde tivessem a vontade, e
que com seu receio em Portugal se não faria a cousa em que elles
recebessem descontentamento.

Mas os Infantes seus irmãos sabendo a pouca firmeza e segurança que
tinham em Castella, e que lhe não cumpria fazer por então novas
alterações contra si, tomaram a parte mais branda, e enviaram aos
Infantes d'estes reinos com sua embaixada um D. Affonso Anrique, bisneto
d'El-Rei D. Anrique, que da sua parte com palavras honestas lhes rogou
em sustancia «que sobre a determinação das primeiras côrtes não fizessem
com a Rainha sua irmã alguma outra enovação.» Ao qual os Infantes
responderam «que á Rainha não era feita injuria nem desserviço, nem lhe
tiravam senão cuidados e trabalhos, a que suas forças por ser mulher não
abastavam, e cargos de conciencia, o que ella devia querer; porque o
Regimento do reino a ella de razão e direito não pertencia. E a quem
direitamente convinha e o saberia e poderia fazer o tinham dado.»

Com esta resposta se houve D. Affonso por despachado, e se foi a Cintra
por vêr a Rainha. E posto que fosse homem de grande linhagem, não havia
porém n'elle aquelle tento, discrição e prudencia, que a pessoa de tal
cargo pertencia. Porque em lugar de poer a vontade da Rainha em bom
assessego e temperar suas paixões, acendeu-lh'as muito mais com
esperanças vãs, que lhe deu de ser por força, e com ajuda de seus irmãos
restetuida e vingada. Offerecendo-se para o caso com gentes de cavallo e
de pé, como principal capitão do reino, e para logo a vir servir não
tomou largo prazo. E com estes enganos em que a Rainha levava gloria,
tirou d'ella prata dinheiro, e tornou-se para Castella onde deu resposta
aos Infantes. Os quaes, porque suas cousas não estavam em desejada
segurança para fazer movimentos, ao menos por não parecer que
desamparavam de todo os feitos da Rainha sua irmã, tornaram a enviar ao
Infante D. Pedro e aos Infantes seus irmãos um Daião de Segovia,
pedindo-lhe com palavras mansas e honestas que guardasem á Rainha o
acatamento e reverencia que ella merecia, e lhe tivessem aquelle amor
que deviam. De que os Infantes foram mui contentes depois em todo ao
cumprir, para o qual encommendaram ao Daião que fosse fallar com ella
para que quizesse repousar a vontade, e não dar causa a boliços, de que
tanto mal se podia seguir; porque com isso ella seria servida e acatada,
como se El-Rei seu marido fosse vivo.

O Daião lhe foi fallar e a aconselhou, dizendo-lhe «que por quanto os
feitos de seus irmãos não estavam em Castella n'aquelle assessego que
convinha para n'elles de certo remedio ter firme esperança, que em tanto
temperasse e dessimulasse cá a seus negocios o melhor que podesse;
porque concertados os dos Infantes em Castella, em Portugal se faria dos
seus o que ella desejava.»



CAPITULO LIV

_De como se entendeu na redempção do Infante D. Fernando, e do que se
seguiu_


E porque não pareça que a redempção e soltura do Infante D. Fernando,
depois da morte d'El-Rei seu irmão se esqueceu, é de saber, que com
todalas mudanças e divisões passadas entre a Rainha e o Infante D.
Pedro, sempre d'elles foi muito lembrada e negociada, cuja deliberação
foi muitas vezes aos mouros cometida por grande somma de dinheiro ou de
captivos, e por outras maneiras. Nas quaes elles não quizeram nunca
entender, e se mostravam que entendiam, logo se mudavam em outras
sentenças, afirmando-se finalmente que lhes dessem Ceuta segundo fórma
do contrato que o Infante D. Anrique e os outros capitães do palanque de
Tangere com elles fizeram. Pelo qual a Rainha e o Infante D. Pedro ante
de seus desvairos, por se satisfazer ao Infante D. Fernando e cumprir a
vontade d'ElRei D. Duarte, que em seu testamento o leixara muito
encommendado, determinaram com os do conselho, e houveram por bem, que
pospostas amoestações do Papa e conselhos de muitos Principes christãos
que o contrariavam, que Ceuta todavia se desse por elle, e sobre isso
passaram em nome d'El-Rei as cartas e procurações necessarias,
assignadas por ambos, com as quaes foram por embaixadores Martim de
Tavora, reposteiro mór d'El-Rei, e o licenceado Gomes Eanes,
desembargador na casa do civel.

E em chegando a Arzilla acertou-se que morreu Çalabençala, que fôra
senhor de Ceuta ao tempo que se tomou, e a este tempo era alcaide de
Tangere e Arzilla, com o qual os ditos embaixadores haviam de tratar.
Depois de sua morte ficou seu irmão Muley Buquer portector do filho
maior do dito Çalabençala, o qual seu filho tambem por dependencia do
mesmo caso do cerco de Tangere era captivo, e fôra dado por arrefens em
Portugal.

E querendo os embaixadores entender com elle no negocio, certificando-o
da abastança do poder d'El-Rei que para o caso levavam, elle se escusou
dizendo:

«Christãos, sabei que Ceuta é tamanha cousa, que em quanto D. Fernando
conde de Villa Real, capitão d'ella fôr terceiro para a entregar, nunca
crerei que vós trazeis desejo d'alguma certo conclusão, cá por elle não
perder tal senhorio com tanta honra como agora em Ceuta tem, bem sei que
mostrando que não desobedece a vosso Rei e seus governadores, sempre
buscará corados achaques e cautellas para a nunca entregar».

E depois de os embaixadores lhe desfazerem com razões sua opinião e
haverem entre si sobre o caso muitas altercações, finalmente se
concordaram «que Muley Buquer notificasse a vinda dos embaixadores a
Muley Buzaceri, Rei de Fez, em cujo poder o Infante estava, e que se
n'este feito desejava boa conclusão, que tornasse o Infante a Arzilla, e
como alli fosse, se o conde D. Fernando logo por elle não entregasse
Ceuta como era concordado, que então se teriam outros meios com que sem
escusa se fizesse». D'esta conclusão foi o mouro contente; sómente disse
«que emquanto elle n'isto entendia, elles se viessem a este reino e com
El-Rei procurassem que da sua tornada em Africa viesse logo com elles
outra pessoa, e com taes provisões a que Ceuta logo se entregasse e
tirasse do poder o conde».

Com este apontamento se tornaram os embaixadores, e por acharem a Rainha
e o Infante D. Pedro no meio dos móres desvairos sobre o Regimento,
sobre-esteve o negocio até sem contenda se dar inteiramente ao Infante
como já disse, o qual ouviu logo os ditos embaixadores em conselho, onde
foi determinado por algumas causas em que se fundaram, mais de piedade
do dito Infante que de honra do reino, que Ceuta sem mais debate se
desse por elle.

E por quanto a duvida de Muley Buquer, quando lhe pareceu que o conde D.
Fernando, por não perder tal governança retardaria a entrega de Ceuta se
houve por razoada, acordaram que a D. Fernando de Castro, Governador da
casa do Infante D. Anrique, e a D. Alvaro seu filho, a ambos e a cada um
fosse entregue a cidade, e n'ella estivessem para a darem, e receberem
por ella o dito Infante, e que a este reino se viesse o conde D.
Fernando, a quem se daria por a capitania e governança d'ella sua dina
satisfação, e que Martim de Tavora e o licenceado estivessem por
negoceadores em Arzilla.

D. Fernando de Castro era homem de nobre sangue, prudente, e de grande
conselho, e tinha boa fazenda; e porque houve este encargo por de muita
honra para si e sua linhagem, ordenou sua ida para o mar e para a terra,
o mais perfeita e honradamente que pôde. Especialmente o moveu a isso
com maior cuidado e diligencia levar esperança que o Infante D. Fernando
havia de casar com uma de suas filhas, de que estando em Fez lhe enviara
sua certidão, consirando que seu conselho e auctoridade lhe podia por
isso em sua deliberação muito aproveitar, e D. Fernando para o mais
obrigar havendo sua soltura por certa, lhe levava feitos á sua custa
todolos corregimentos que para a pessôa, cama e mesa de um tal Princepe
eram pertencentes. E assi levava navios sobresalentes para o Infante e o
conde, e os moradores de Ceuta n'elles se virem, além d'outros em que
para sua segurança levava mil e duzentos homens, entre os quaes iam
muitos fidalgos e gentis homens da casa d'El-Rei e dos Infantes, e com
tudo prestes, partiu D. Fernando de Lisboa no mez d'Abril de mil e
quatrocentos e quarenta e um, com vento de boa viagem. E indo os navios
de sua companhia espalhados pelo mar: além do Cabo de São Vicente,
acertou-se que uma carraca de Genoa, que andava d'armada, veiu demandar
e afferrar o navio em que o dito D. Fernando ia, o qual como quer que
logo por razões d'amizade e depois com armas e grande esforço quanto foi
possivel se defendesse, finalmente o navio com a mais força da carraca
foi entrado e roubado, e D. Fernando acabou n'elle sua vida de uma
bombarda, e os genoeses achando-se com tal rica presa, receiosos da
emmenda, porque a outra frota já vinha sobr'elles, meteram suas vellas e
tomaram o mar por sua salvação. E quando os outros navios da conserva
acudiram sobre o navio do capitão e o acharam morto, vendo que a
vingança de sua morte já não estava em seu poder, tornaram-se a Tavila,
onde em São Francisco enterraram seu corpo, com assaz honra e lagrimas.

D. Alvaro seu filho a que a capitania e negocio do Infante ficava
encommendada, sem alguma mais detença se foi d'hi a Ceuta, d'onde
escreveu ao Regente o triste caso passado, pedindo-lhe ordenança e
provisão para o futuro. E posto que então fosse mancebo, por haver
n'elle muita discrição, foi-lhe respondido com abastante commissão para
o acabar como D. Fernando seu pae: mas Lazaraque-Martin governador
d'El-Rei de Fez, não sómente não deu logar que o Infante fosse tirado de
Fez para Arzilla, ou para algum outro poder, como por Muley Buquer lhe
fôra já requerido, mas ainda quando depois soube que a vontade d'El-Rei
e do Regente era que todavia Ceuta se desse, e que o conde D. Fernando
se fosse, para que D. Alvaro de Castro com poderes abastantes era vindo,
disse «que era contente se lh'a entregassem primeiro, e que para
segurança dos christãos, elle por Mafamede e por sua Lei faria
juramento, em que como d'ella fosse apoderado, logo entregaria o Infante
D. Fernando, e que esta era segurança assi abastante e segura para os
christãos, que com ella não deviam ter d'elle receio nem sospeita
alguma»!

Mas porque sua fiança por suas maldades, pouca verdade e tirania, se
houve por duvidosa, não foi razão acceitar-se seu meio. E como quer que
outros muitos seguros meios e mui razoados lhe fossem apontados, nunca
em algum d'elles quiz condescender. E o que de sua contrariedade e
contumacia se pôde n'este caso verdadeiramente entender, foi que
claramente lhe pesava entregar-se Ceuta aos mouros, e nos modos que
sempre teve para se não acabar pareceu mui claro que a causa d'isto era,
porque com a necessidade da guerra de Ceuta ocupava assi os sentidos do
povo infiel, que lhe não dava lugar acabarem de poder entender e
remediar os grandes males de sua tirania. Da qual cousa sendo o Regente
certificado, havendo a negociação por escusada, mandou a D. Alvaro e aos
embaixadores que se viessem ao reino, como vieram, com fundamento de se
consultar algum outro remedio para a deliberação do Infante. A qual como
quer que o Infante D. Pedro, segundo suas mostranças e continuas
diligencias, pareceu que sobre todalas cousas desejava, nunca porém
sobre ella se apontou e requereu meio por evidente que fosse, que
podesse vir a effeito.



CAPITULO LV

_Como a Rainha D. Lianor se partiu de Cintra para Almeirim contra
vontade d'El-Rei e dos Infantes, e como se El-Rei foi a Santarem, e do
que se seguiu_


A Rainha D. Lianor era em Cintra, e por lhe parecer que o Infante D.
Pedro tinha alli taes guardas e avisos em sua casa, que para seus
negocios era quasi privada de sua liberdade, sendo para isto induzida
dos que seguiam sua vontade, e principalmente do Priol do Crato D. Frei
Nuno de Goes; determinou para com mais licença e mór segurança enviar e
receber recados, assi de Portugal como de Castella, de se ir como foi
para Almeirim, junto com Santarem. Do que aos Infantes muito desaprouve;
porque sentiam que taes mudanças não eram por serviço d'El-Rei nem bem e
assessego do reino, e para haver alguma mais causa e razão de as
temperar, accordaram que El-Rei se fosse como foi logo a Santarem;
porque estando tão acerca da côrte haveria menos disposição e mais
receio de tratarem com ella e a moverem a mais alvoroços.

E d'alli enviou logo o Infante D. Pedro á Rainha o doutor Vasco
Fernandes, pedindo-lhe por mercê que assessegasse o corpo e o coração no
reino, em que seria servida e acatada como era razão, e não ouvisse máos
conselheiros que a moviam para cousas que eram muito dano de sua alma, e
grande quebra de seu estado, e assi o Infante em nome d'El-Rei mandou
publicamente deffender a alguns fidalgos e outras pessoas que se logo
juntaram com a Rainha, que sob graves penas a não conselhassem nem
induzissem para o contrairo do que cumpria ao bem, paz e assessego de
seus reinos, de que os mais por serem confiados em suas esperanças vãs,
faziam pouca estima.

O Infante D. Pedro com quanto sabia que no reino havia pessoas
principaes a elle contrairas, e que sostinham e favoreciam a parte da
Rainha; porém todo seu receio causavam os Infantes irmãos da Rainha, que
a este tempo eram retornados em Castella, e a governavam juntamente com
a pessoa d'El-Rei, especialmente porque depois de a Rainha ser em
Almeirim, foram suas cartas tomadas em Punhete e trazidas ao Infante, em
que pareceu que apertava muito com seus irmãos que fizessem a estes
reinos mostrança de guerra, e não geralmente a todos; mas sómente ao
Infante, e a aquelles que contradiziam seu Regimento; porque com o temor
d'isso, o povo por ventura revogaria o Regimento ao Infante, e o dariam
a ella; mas o Infante crendo que assi fosse, e para lhes em alguma
maneira melhor resistir e impedir seu poder, trabalhou de se liar com o
Condestabre D. Alvaro de Luna, e com o Mestre d'Alcantara D. Goterre,
que eram ambos liados contrairos aos Infantes, e tinham o favor d'El-Rei
e muito poder em Castella.



CAPITULO LVI

_Liança do Infante D. Pedro com o Condestabre e Mestre d'Alcantara de
Castella, contra os Infantes d'Aragão, e das ajudas que lhe deu_


E para melhor entendimento d'este passo é de saber, que no tempo que
El-Rei D. João o segundo reinava em Castella, era Condestabre este D.
Alvaro de Luna, homem abastado de saber e malicia, com pouco temor de
Deus. O qual se soube assi haver, que em todalas cousas ora redundassem
em seu acrecentamento, ora em destruição e dano d'outros, El-Rei
satisfazia sempre a sua vontade. E porque os Infantes filhos d'El-Rei D.
Fernando d'Aragão, que então prosperavam em Castella por sua autoridade
e valor, contrariavam as execuções de seu desordenado e máo desejo, por
elle ter mais soltura para obrar o que queria, assi trabalhou com El-Rei
que os desamou grandemente e lançou fóra do reino. E porque o
Condestabre depois fez fazer individamente algumas cruezas e desterros
contra muitos grandes do reino, e parecia que El-Rei vivia em sua
sobjeição, era de todos mui desamado, pelo qual alguns grandes ordenaram
e trataram que os Infantes retornassem outra vez como tornaram em
Castella, e que o estado e pessoa d'El-Rei se governasse por elles, e o
Condestabre fosse como foi fóra da côrte. Outrosi porque o Mestre
d'Alcantara D. Goterre por engano tomara a villa d'Alcantara, e por
força o Mestrado a D. João Souto Maior seu tio, que era Mestre e feitura
dos Infantes, e prendeu n'ella o Infante D. Pedro, irmão dos Infantes.
Era pôr isto em grande odio a elles, que com suas forças procuravam em
todo sua destruição, os quaes Condestabre e Mestre d'Alcantara, por
ambos serem tocados de uma necessidade e temor, ambos entre si e suas
terras e gentes tomaram uma liança e remedio para o resistir como o
fazíam, e sentindo assi isto o Infante D. Pedro, por enfraquentar o
poder dos Infantes, enviou por seus messegeiros secretos offerecer
contra elles o favor e ajudas d'estes reinos ao Condestabre e Mestre. O
que elles mui alegremente receberam; porque conheceram que o Infante não
tanto por aproveitar a elles, como por a mesma sua necessidade se movia
a isso. Pelo qual muitas vezes lhe requereram depois ajudas e soccorros
contra os Infantes, e elle por accordo e conselho dos principaes d'estes
reinos lh'o deu algumas vezes assaz poderosamente, havendo primeiro
consentimento e autoridade d'El-Rei de Castella, para sem quebrantamento
das pazes que tinham o poder direitamente fazer. Porque com quanto
El-Rei era em poder e governança dos Infantes d'Aragão, o Condestabre
por suas astucias e maneiras, sempre trazia em sua côrte e camara taes
pessoas, que secretamente requeriam a El-Rei todo o que compria por seu
favor e amparo. Ao que El-Rei pela grande affeição que lhe tinha,
folgava muito de satisfazer, e enviou para isso ao Infante D. Pedro mui
autenticas aquellas provisões que sentiu ser necessarias, por cuja
virtude o Infante em favor do Mestre d'Alcantara, e contra a tenção do
Infante D. Anrique Mestre de Santiago, enviou a Castella por vezes e
tempos, muita gente abastecer Magazella e Bemquerença, fortalezas do
Mestrado d'Alcantara, e assi tomar a villa de Salanqua, que estava pelo
Infante D. Anrique, e por outra vez enviou outrosi muita gente d'estes
reinos a Andaluzia, em ajuda e soccorro do Condestabre, e em desfavor e
dano do mesmo Infante D. Anrique, e lhe tomaram Carmona com seu grande
destroço.

E outra vez a requerimento d'El-Rei D. João, quando cercou os Infantes
em Olmedo, lhe enviou o Infante D. Pedro em sua ajuda muita e mui nobre
gente d'estes reinos, e por capitão principal seu filho primogenito o
Senhor D. Pedro, que depois foi e morreu intitulado Rei d'Aragão.

E segundo a universal opinião dos que n'este caso sãmente entenderam, se
creu que segundo os Infantes eram amados em Castella, se não tomaram
assi claramente o Infante D. Pedro por contrairo, e não se pozeram em
mostranças de o guerrear e destruir, como mostraram, e o Infante não
impedira seu poder, que seu valor e prosperidade d'elles não descahira
em Castella como descahiu, nem a Rainha D. Lianor sua irmã, enganada de
suas promessas e esperanças impossiveis, não acabara sua vida em
desterro com tanta necessidade e tristeza, e tão individa a suas
bondades e estado, como ao diante se dirá.



CAPITULO LVII

_Conselhos que o Infante D. Pedro teve sobre o assessego e segurança
d'esta cousas, e como a Rainha fingidamente se concordou com elle_


Mas o Infante D. Pedro sentindo com estas mudanças o reino diviso, teve
sobr'isso conselho, no qual se accordou para atalhar ás praticas que a
Rainha e os outros fidalgos poderiam ter com o conde de Barcellos, que
da divisão era cabeça principal, e para qualquer outra segurança, que o
Infante D. Anrique se fosse, como foi á cidade de Vizeu; porque com seu
receio os recados não passassem, e que para o dano que a estes reinos
poderia vir de Castella por meio dos Infantes, enviassem como enviaram
uma pessoa secreta a El-Rei, que o não consentisse, o que muito
aproveitou.

E o cargo da guarda e assessego da Rainha ficou ao Infante D. Pedro, que
pelas estreitezas que n'isso poz, os que eram com ella em Almeirim, que
com novo alvoroço a vieram servir, se acharam para suas honras e
fazendas de todo atalhados, e mui enganados nas esperanças de supetos
acrecentamentos, que cada um logo para si maginava. Pelo qual com
necessidade e razões assaz evidentes pediam á Rainha que emquanto as
cousas não se despunham como para seu recurso cumpria, tratasse com o
Infante D. Pedro alguma amizade e fosse fingida, com que em tanto ella e
elles se remedeassem e provessem a suas vidas e fazendas, e a podessem
melhor ao diante servir.

A Rainha aprovou este conselho, e para o cumprir mandou por o ministro
da Ordem de S. Francisco, e por Ruy Galvão, secretario, tratar amizade
com o Infante, mostrando fingidamente que seu desejo era já poer em
assessego sua alma, e esquecer-se de todo o passado.

O Infante d'este recado crendo ser verdadeiro, foi mui alegre, e o
acceitou com palavras de grande cortesia e contentamento, e deu por isso
muitas graças a Deus. E da concordia que entre si por então tomaram
passáram seus assignados, que o Infante logo mandou divulgar pelo reino,
que pelo haverem por bem e geral assessego, faziam por isso geralmente a
Deus muitos signaes de devoção, e ao mundo de grande alegria, e assi o
notificou a Castella. E confiando n'esta concordia, que havia por certa
e não fingida, mandou tirar as guardas dos portos para que livremente
podessem á Rainha ir e vir messegeiros e servidores d'onde quizessem sem
pena nem receio.



CAPITULO LVIII

_Como o conde de Barcellos desdisse muito á Rainha esta concordia com o
Infante, em caso que não fosse verdadeira_


Foi o conde de Barcellos d'esta concordia por via geral certificado, mas
não se alvoroçou nada; porque da secreta dessimulação com que se fizera,
foi logo pela Rainha avisado: porém elle temendo-se da prudencia e saber
do Infante D. Pedro, e não segurando n'isso da constancia da Rainha,
accordou com os fidalgos da sua parte de lhe notificarem o erro e
desfavor que para seus feitos em tal concordia fizera, em caso que fosse
fingida, de que se seguira os que desejavam seu serviço, vendo-a em
poder do Regente, não ousarem de a servir, e que para isso, porque mais
em breve se executasse o que desejava, ella mui secretamente se devia
vir ao Crato, onde tinha mui certo o Priol com suas fortalezas a seu
serviço. E que d'alli poderia seguramente passar o Tejo e entrar na
Beira, onde o Marechal por ser comarcão, com outros fidalgos e gentes se
iriam para ella, e que o conde com todolos outros fidalgos outrosi lhe
acudiriam e a recolheriam em suas terras, que logo começaria de reger, e
que da execução e obra d'esta empresa os Infantes seus irmãos, e assi
todolos outros seus servidores tomariam mais esforço e desejo de a
proseguir.

Este recado foi assi secretamente trazido á Rainha, que o Regente não
houve d'elle algum sentimento, e ella com os de seu conselho a quem o
mostrou e louvou, e houve por bom, o fez logo saber ao Priol do Crato. O
qual como era homem de muitos dias e grande experiencia e siso, houve o
feito por sem fundamento e muito duvidoso. E assi lhe respondeu em
muitas e boas palavras, e em fim que se de todo em todo sua vontade
quizesse forçar as armadas de tão vivas razões, como lhe mandou para o
ella não cometer, que elle estava prestes de a receber onde ella
quizesse, e para isso lhe offerecia a perdição de sua vida, honra, e
fazenda, que elle não podia escusar.



CAPITULO LIX

_Como o Priol do Crato consentiu em receber a Rainha em suas fortalezas_


Esta resposta do Priol a que a Rainha com razão dava grande credito,
suspendeu e amansou muito seu alvoroço; e porém de todo avisou logo ao
conde de Barcellos, o qual por meio d'Aires Gonçalves seu secretario,
acabou com o Priol que pospostos seus pejos todavia recebesse a Rainha.
Desfazendo-lhe os inconvenientes que apontara, com promessas e
esperanças, e seguranças falsas com que lhe cegaram o verdadeiro juizo,
para o que ajudaram muito dois filhos do Priol, homens mancebos, que
sostinham a parte e tenção do conde, que lhes mostrava abrirem-se
caminhos de suas honras, e grandes acrecentamentos. O Priol do Crato
assi como determinou de receber a Rainha em suas terras, assi ordenou
logo d'abastecer, o mais encobertamente que pôde suas fortalezas, e a
Rainha mandou a todoslos seus, e assi a outros d'El-Rei em que tinha
confiança, que se percebessem de cavallos e d'outras cousas necessarias
para caminho, e a verdade d'este fundamento era para esta sua partida;
como quer que ella fingidamente dava a entender que os percebia para a
acompanharem até o mosteiro da Batalha, onde queria fazer o saimento a
El-Rei seu marido, para que dessimuladamente mandou lá fazer algum
percebimento.

D'estas mudanças foi o Regente algum tanto sabedor; mas confiando na
concordia que entre elles era feita, e por não mostrar que com achaques
a rompia, não quiz sobre uma cousa nem outra fazer novas alterações; e
porém elle não era em certo sabedor que a Rainha se queria partir para o
Crato.



CAPITULO LX

_Como o conde de Barcellos fez liança com os Infantes d'Aragão, e como
foi por isso muito prasmado_


E o conde de Barcellos sentindo como as cousas se chegavam a rompimento,
sendo duvidoso da fim que haveria, acordou de se liar como liou com
El-Rei de Navarra e Infante D. Anrique, irmãos da Rainha, concordando
entre si suas capitulações de serem amigos d'amigos, e imigos de imigos,
e com ajuda certa de gentes d'armas, que cada uns dariam aos outros,
quando a suas necessidades e afrontas cumprisse.

D'estas lianças foi logo o reino todo sabedor e mui espantado,
especialmente mostraram d'isso grande sentimento o Infante D. João seu
genro, e o Infante D. Anrique ambos seus irmãos. E o Infante D. João
lh'o enviou muito estranhar por Vasco Gil seu confessor, que depois foi
Bispo d'Evora, e o Infante D. Anrique por Fernão Lopez d'Azevedo,
Commendador Mór de Christo. Aos quaes o conde respondeu, que não
desistiria do que tinha feito, e que sabia bem o que lhe cumpria. E assi
o disse ao conde d'Arrayollos seu filho, que a elle sobr'isso foi em
pessoa. Mas o conde d'Ourem tambem seu filho, que a este tempo era mui á
banda do Infante D. Pedro, não quiz n'este caso entender, não leixando
de o haver por feio, e mostrando que se os feitos viessem a rompimento,
que elle seria por serviço do Regente contra seu padre; mas o que das
maneiras d'ambos, pae e filho poderam os prudentes conjeiturar e
entender, sempre pareceu que no começo dos movimentos, entre elles se
concordara o pae ficar á parte da Rainha, e o filho á do Infante D.
Pedro; porque a qualquer d'estas parcealidades a que a fortuna boa se
inclinasse, cada um ter n'ella um principal que remedeasse o outro, e
que em tanto cada um tirasse da banda que servisse todo o que para sua
honra e proveito podesse; porque em fim, toda havia de ficar em uma só
herança. Nem se creu que o conde de Barcellos inventara estas lianças e
pendores, salvo por meter o reino em necessidade de sua pessoa e casa, e
lh'a haverem de compoer com villas e terras como fizeram; porque da
Rainha não havia tão urgentes razões que o a isso obrigassem, e dos
Infantes d'Aragão muito menos. A Rainha ante que de sua pessoa fizesse
alguma mudança, mandou a Castella secretamente, por Mossem Gabriel de
Lourenço, seu capellão mór, todalas joias d'ouro, prata e pedraria que
tinha, que eram assaz muitas e boas; porque álem das que trouxe
d'Aragão, houve com o movel d'El-Rei seu marido todas as que ficaram por
seu fallecimento, e foram postas no Castello d'Albuquerque, que era
Villa do Infante D. Anrique de Castella. D'onde lhe vieram muitas a
Almeirim, que ella secretamente mandou pedir para sua partida.



CAPITULO LXI

_Como o Infante D. Anrique se viu com o conde de Barcellos seu irmão
para o concordar com o Infante D. Pedro_


O Infante D. Anrique de Portugal para atalhar os azos de mais
desaccordos e uniões, se foi a Vizeu como disse; e porque sentiu que no
assessego do conde de Barcellos, segurava o assessego do reino e da
Rainha, viu-se com elle e com os de sua valia no mosteiro de S. João de
Tarouca, junto com Lamego, onde sobre muitas praticas e altercações que
todos entre si houveram, nunca o Infante pôde acabar que o conde se
decesse de sua opinião, nem pôde nunca por elle saber algum evidente
fundamento d'agravo, ou contentamento descuberto que para isso tivesse;
porque todalas que dava eram razões tão fracas, que por si mesmas se
desfaziam, e em fim o Infante se despediu d'elle com algum
temporizamento, até se vêr com os Infantes seus irmãos. Mas por mais
enfraquentar seu partido, tirou logo de sua liança o marechal, e Martin
Vaz da Cunha, e João de Gouvêa, que eram fidalgos da Beira, e os levou
comsigo.



CAPITULO LXII

_De como veiu a El-Rei embaixada de Castella, e como foi recebida_


Ao mez d'Outubro d'este anno de mil e quatro centos e quarenta, estando
ainda El-Rei em Santarem e a Rainha em Almeirim, lhe veiu d'El-Rei de
Castella uma grande embaixada, em que vieram por pessoas principaes D.
Affonso, filho bastardo d'El-Rei de Navarra, que depois morreu duque de
Villa Formosa, e um Bispo de Coria, pessoa de muita autoridade, e outros
letrados, e por esta embaixada ser a primeira que veiu a El-Rei, foi da
côrte muito bem recebida, e d'El-Rei e dos Infantes com muitas grandezas
cerimoniada, e a sustancia do que a El-Rei e ao Regente, e assi aos
Infantes e conselho propozeram, se fundou em duas cousas. Uma em se
queixarem de danos e tomadias que os portuguezes fizeram por mar e por
terra aos naturaes de Castella, e a outra mais principal acerca das
cousas da Rainha e restituição do Regimento em que sobre todo mais
insistiram, e tambem pediam a El-Rei em nome da Rainha D. Lianor, com
que já tinha fallado, que a leixasse ir para Castella, mostrando que não
queria estar no reino para que tantos males se aparelhavam; porque ao
tempo que esta embaixada sahiu da côrte de Castella, os Infantes
d'Aragão ainda regiam e governavam a pessoa d'El-Rei; e por isso se fez
lá, e propoz cá com as gravezas, protestações e cautellas, que elles em
nome d'El-Rei ordenaram. Affigurando que por ventura o povo de Portugal,
com receio de futuras guerras que elles tocavam, desistiria da parte do
Infante ácêrca do Regimento, e seguiria a da Rainha.

E para os embaixadores fazerem mais geral esta impressão, pediram ao
Regente logar e licença para esta mesma embaixada irem dar pelas cidades
e villas, e assi aos principaes do reino; mas o Regente por ser cousa
nova e então desacostumada o não outorgou nem consentiu, e se escusou
com a semrazão d'elles, e com outras razões assaz justas e honestas; e
emfim o Regente para lhe responder, tomou alguns dias d'espaço, dentro
dos quaes a todalas pessoas principaes do reino que não eram presentes,
enviou pedir conselho por escripto, com o trellado da embaixada. E esta
ordenança guardou sempre o Infante emquanto regeu, de nunca em cousas
sustanciaes tomar conclusão sem conselho escripto dos presentes e
ausentes, e depois que houve a resposta de todos, e se conformou com o
que melhor pareceu, respondeu aos embaixadores:

«Quanto ás tomadias, que para justificação d'ellas se pozessem juizes de
uma parte e da outra nos estremos danificados. E quanto ás cousas que
tocavam á Rainha, que El-Rei enviaria seus embaixadores a El-Rei de
Castella com tal resposta com que devesse ser satisfeito.»

E sobr'isso foi enviado Lopo Affonso Secretario, com fundamento de
dilatar e temporisar o negocio; porque o Regente soube secretamente por
o Bispo de Coria, embaixador, que esta embaixada em que elle vinha era
de cumprimento para a Rainha e para os Infantes d'Aragão, mas não da
vontade d'El-Rei de Castella, a quem parecia bem a maneira que no
Regimento do reino se tivera, e assi não leixarem á disposição da Rainha
a criação d'El-Rei, pois era mulher; porque elle mesmo Rei sentia em si
quanto mal recebera por em semelhante caso ser criado em poder da Rainha
D. Caterina sua madre, e que o contrairo não se esperava de taes
Principes como eram os filhos d'El-Rei D. João.

E á Rainha enviou o Regente em nome d'El-Rei pedir com palavras de muito
acatamento, e com razões que faziam assaz por sua honra, honestidade e
proveito, que houvesse por bem não consentir que de seus reinos se fosse
para os estranhos. Mas isto não lhe assessegou a vontade que tinha para
se ir; porque assi pela determinação passada da partida, como pelo novo
alvoroço que d'alguns dos embaixadores para isso recebeu, determinou
muito mais em si de o fazer.

Os embaixadores não se houveram d'esta resposta do Regente por
satisfeitos nem despedidos, antes disseram que traziam em mandado de seu
Rei que sem determinada resposta de todalas cousas, sem outro seu
especial mandado não se partissem, e a carta em que isto se continha
d'hi a dois dias a mandaram mostrar ao Regente, o qual como prudente
consirou que taes cartas e instrucções, tão sem razão e vindas tão
brevemente se compilavam em Almeirim, cá poderiam trazer de Castella
signaes d'El-Rei em branco e sêllos de fóra, sobre que poeriam o que
quizessem, como fizeram. E para d'isto ser certificado, avisou d'isso a
gram pressa o Condestabre D. Alvaro de Luna, o qual era fóra da côrte; e
porém por seus meios secretos, que com El-Rei trazia, soube logo d'elle
que nunca tal mandára, de que logo certificou o Regente por carta da
propria mão d'El-Rei: pelo qual o Regente n'esta confiança determinou
com alguma mais graveza despedir como despediu os embaixadores, e lhes
mandou «que pois eram respondidos, que se fossem embora dos reinos e
côrte d'El-Rei seu Senhor.» Mas elles não se despacharam assi
brevemente, que ainda não estivessem em Santarem, ao tempo que a Rainha
se partiu para o Crato, como ao diante se dirá.



CAPITULO LXIII

_Como o Infante D. Anrique procurou de trazer o Priol do Crato a serviço
e prazer do Infante D. Pedro, e do que n'isso passou_


O Infante D. Anrique de Portugal, sentindo que um dos principaes
esforços que a Rainha tomava para seu movimento, era o Priol do Crato,
por atalhar a isso virtuosamente como em todo era seu costume, por seu
messegeiro o enviou muito reprender d'isso, e da opinião que tomara
contra o Infante D. Pedro, e lhe mandou que logo em pessoa se viesse
desculpar ao Regente, e d'hi em diante o servisse lealmente como a elle
mesmo.

O Priol foi d'este recado mui triste por duas causas a elle mui
contrairas, uma por viver com o Infante D. Anrique, a quem havia por
grande caso e perigo não obedecer inteiramente. E a outra fallecer á
Rainha e ao conde de Barcellos, a quem se offerecera já com suas
fortalezas; e finalmente deliberou de não ir ao Infante D. Pedro por si,
escusando-se por velhice e doença, e de se mandar desculpar fingidamente
por seu filho Fernão de Goes, e todavia de cumprir com a Rainha o que
lhe tinha promettido.

Veiu Fernão de Goes a Santarem, e offereceu a embaixada falsa de seu pae
por sua crença ao Regente, mostrando quere-lo desculpar do passado,
offerecendo-se em todo o que estava por vir ao que elle mandasse, e
pediu logo ao Regente licença para ir fallar á Rainha; porque lhe queria
dizer o em que ficava com elle, e assi lhe pedir que d'hi em diante nas
cousas que fossem contra vontade e serviço do Infante, ella não se
quizesse servir do Priol seu pae, nem d'elles seus filhos, salvo nas
cousas em que os Infantes a servissem. Mas isto em seu coração e
proposito era muito em contrairo; porque como foi ante a Rainha,
concertou com ella sem differença o dia e hora de sua partida, que havia
de ser logo em bespora de todolos Santos á noite. E que elle e seu irmão
Pedro de Goes viriam por ella, com maior resguardo e com a mais gente
que podessem.

E com isto se partiu, e o notificou ao Priol, que com muita diligencia e
maior dissimulação fez logo prestes a mais gente que pôde. Dando
publicamente a entender por não fazer na terra suspeita nem alvoroço,
que já eram concertados com o Regente, e que para o mais obrigarem o
queriam ir honradamente servir, de que toda a terra mostrou ser mui
alegre.



CAPITULO LXIV

_De como se a Rainha aconselhou sobre a ida para o Crato, e como emfim
posposto o conselho se partiu_


E com quanto a Rainha no cuidado d'estes cuidados temporaes, tinha para
este mundo assás que entender; porém porque era Senhora muito devota e
de mui religiosa vida, não se partiam de sua alma para o outro outros
espirituaes, que a fizeram mandar ao mosteiro de Bemfica da Ordem de S.
Domingos, por um Frei João de Moura, seu confessor, padre de grandes
dias e doutrina, e assi de mui santa vida, para com elle em confissão
consultar esta secreta mudança. E depois d'ella lhe dizer com largas
palavras sua determinação, elle lh'a contrariou com outras mais de tanta
verdade e prudencia, que pareceu dizer-lh'as como por espirito divino.

E certo assi foi, porque ella em seu desterro, desamparo e desaventuras,
que pelo não crêr depois padeceu, sentiu bem que o padre a aconselhava
mais que homem, e como de mandado de Deus, e d'isso ella ao diante se
acusava muitas vezes.

E como quer que Frei João não pôde em sua presença afrouxar a tenção da
Rainha, porém porque ella era de bom siso e mui são proposito, fizeram
depois suas palavras no coração d'ella tamanha casa, que assentava já em
sua vontade não se partir, pesando-lhe muito da palavra que dera aos
filhos do Priol. Os quaes a noite de bespora de todolos Santos que
tinham posto, foram com suas gentes acerca de Almeirim, e por não serem
sentidos leixaram toda a gente ao Paul da Atella, e elles ambos, cada um
com seu escudeiro e seu page, chegaram aos paços já de noite, com cuja
chegada e vista a Rainha recebeu muita e descuberta tristeza, e lh'a
confessou logo. Do que elles ficaram mui torvados, porque a conheceram
já mudada de todo, e sobre isso houveram entre si muitos debates, em que
a Rainha finalmente foi dos agravos d'elles vencida, e quiz contra sua
vontade satisfazer ao que tinha prometido.

E d'este segredo era em sua casa sómente sabedor Diogo Gonçalves Lobo,
seu vedor, que com muita trigança deu aviamento a todo o que cumpria
para sua partida.

A Rainha depois de concertar com elles o feito como seria, ás nove horas
da noite se tornou com grande assessego e dessimulação a seu estrado, e
hi deu boas noites sem algum alvoroço, e ás dez horas se sahiu por uma
porta secreta contra a coutada, e com ella a Infante D. Joanna, de mama,
e sua ama que a criava, e Diogo Gonçalves, e João Vaz Marreca, seu
escrivão da puridade, e Maria Dias sua covilheira, e Briatyz Corelho,
donzela Aragoesa. E estas pessoas a acompanharam até o Paul, onde ficara
a gente, com que logo seguiram seu caminho, e não muito depressa por
lhes não aturarem as bestas em que iam, e ao outro dia ás dez horas
chegaram sem decer á Ponte do Sor. E hi comeram e repousaram um pouco. E
em anoitecendo foram no Crato, onde o Priol já a estava esperando, e a
recebeu com grande alegria, dando-lhe as chaves de todas as fortalezas,
com razões de grande humildade e muita obediencia. E ella o agasalhou
com palavras e mostranças de grande aguardecimento, e bem conformes a
sua necessidade.



CAPITULO LXV

_Do que fizeram os da Rainha, depois que souberam de sua partida_


A gente da Rainha que ficou em Almeirim, como passou meia noite sentiram
grande rumor pelo lugar, e ainda com claras vozes dobradas sem certo
autor, que diziam.

«Fugir, fugir do Infante D. Pedro, que vos vem prender».

De que cada um não guardando a certa ordem em suas vestiduras, com
grande pressa se soccorriam á Rainha como a casa da vida. E como o
pranto de suas criadas e creados lhes davam certidão de sua partida e
ausencia, assi cada um desamparado de siso e d'accordo, se iam chorando
e mal dizendo a suas vidas por essas charnecas.

E como foi de dia, os que foram certos do caminho que a Rainha levava e
poderam, a seguiram. E entre os mais principaes foram D. Affonso, senhor
de Cascaes, já velho, e sua mulher D. Maria de Vasconcellos, e D.
Fernando seu filho. Como quer que D. Affonso forçado da mulher e do
filho se partiu; porque abraçando-se com a terra, e com muitas lagrimas
dizia:

«Leixai-me comer a esta terra que me criou, e a que não fui nem sou
tredor. Não me desterreis este corpo sem culpa, nem lhe deis sepultura
em terras alheias».

Mas em fim o levaram.



CAPITULO LXVI

_De como o Regente foi avisado da secreta partida da Rainha, e do que
logo sobr'isso se fez_


E o Regente pouco mais de meia noite foi avisado da partida da Rainha
sumariamente, por Gil Pirez de Resende, contador de Santarem, sem lhe
saber dizer o caminho que fizera, nem se levara consigo as Infantes, e a
poucas horas tornou o Infante a ser certificado do caminho da Rainha, e
como levava consigo a Infante D. Joana, e leixava doente a Infante D.
Lianor, que depois foi Imperatriz, e d'esta mudança mostrou o Regente
grande tristeza e sentimento, ainda que alguns diziam que era fingida; e
porém mandou logo a Martim Affonso de Miranda com notairos, a escrever e
segurar todo o que se achasse em Almeirim. E o que se conhecesse por da
Rainha, que era já sómente roupa de camas e pannos, mandou entregar aos
officiaes d'El-Rei, e as outras cousas dos seus se entregaram por
recadação a um Martim d'Almeida, cavalleiro de Santarem. E foi logo a
Almeirim pela Infante D. Lianor, que entregou a D. Guiomar de Castro,
que foi sua aia até o tempo que d'estes reinos partiu para Allemanha.

E assi mandou logo o Regente em nome d'El-Rei caminho do Crato Diogo
Fernandes d'Almeida, que era védor da fazenda, pedindo á Rainha, sua
madre com mui brandas razões e mui fortes seguranças que se tornasse, e
que elle e os Infantes iriam por ella, e se o não quizesse fazer que ao
menos entregasse a Infante D. Joana. E que se isto tudo denegasse, que
presentes notairos que consigo levava lhe fizesse em nome d'El-Rei
protestações a não ser obrigado elle, nem o reino dar-lhe dote nem
arras, nem outra cousa alguma.

Diogo Fernandes aceitou a embaixada; mas segundo o que d'elle se
suspeitou, elle a não cumpriu como devera; porque chegou sómente a Alter
do Chão, uma légua do Crato, e d'alli se tornou para Santarem, sem obrar
nada do que lhe mandáram; dando por razão que alli fôra por maneira
informado da tenção da Rainha para não fazer nada do que lhe ia
requerer, que houvera por escusado ir mais adiante; mas a geral opinião
foi que por ser casado com uma filha do Priol do Crato, elle era sabedor
de todolos movimento passados, e que folgou de não fazer por si cousa em
que a Rainha recebesse nojo nem desserviço contra seu sogro.

O Regente avisou logo d'este caso os Infantes seus irmãos, e assi os
grandes, e cidades e villas principaes do reino, requerendo-os e
percebendo-os com seus corpos e armas, para serviço d'El-Rei e defensão
do reino, crendo que a Rainha não faria de si tal movimento sem muito
esforço e atrevimento de Portugal e de Castella.

E no provimento d'estas cartas e avisos, poz o Regente tanta diligencia,
que em dia de todolos Santos ante das missas foram todas feitas e
enviadas, e assi uma sua e de sua mão á Rainha, que não aproveitou, em
que lhe pediu muito por mercê que se tornasse, prometendo-lhe que com
sua tornada elle faria quanto ella mandasse.

Os embaixadores de Castella eram ainda a este tempo em Santarem como
disse; de que o Regente por seu descargo e limpeza houve prazer; porque
sabia que a elles era mui claro quanto elle procurava por seu assessego
d'ella, e os mandou logo chamar, e em saindo para a missa lhes fez com
muita autoridade uma falla de sua desculpa acerca da partida da Rainha,
rogando-lhes que pois se fôra tão sem conselho e tanto contra o que
cumpria a seu estado, e sem licença d'El-Rei seu filho, fizessem com
ella que ante de sair do reino se tornasse á côrte, com grandes
prometimentos de elle em seus feitos fazer tudo o em que ella recebesse
contentamento, prazer e serviço: e d'isto para seu resguardo pediu
estromentos.

N'este dia e nos outros logo seguintes, trouxeram ao Regente presos
muitos dos que d'Almeirim se iam para a Rainha, e os que achava serem
seus moradores, logo os mandava todos soltar com liberdade e licença
segura de a irem servir se quizessem, salvo um João Paez Cantor, e Diogo
de Pedrosa, que eram casados com criadas da Rainha, aos quaes por haver
n'elles alguma sospeita, que estando o Regente nos paços de Santarem
tratavam de o matarem á bésta, foi dado tormento d'açoutes nos pés, e
por não confessarem culpa que os obrigasse a outra maior pena, os mandou
soltar.

O Regente por segurar as comarcas do reino em que tinha alguma suspeita,
encomendou a da Beira ao Infante D. Anrique, e a d'entre Tejo e Odiana
ao Infante D. João. E mandou á cidade do Porto Ayres Gomez da Silva,
para com a cidade fazer defensa e resistencia a quaesquer rebates que
n'aquella comarca sobreviessem. E assim mandou que aos do Crato não
fosse em todo o reino dado mantimento, mais do que cumprisse á Rainha, e
a vinte pessoas que a servissem, de que se ella muito aggravou.



CAPITULO LXVII

_Do que a Rainha fez depois de ser no Crato_


A Rainha como foi no Crato, logo d'hi enviou por todo o reino cartas,
que já d'Almeirim levava feitas, em que sustancialmente se escusava de
sua mudança, e acusava por ella o Regente e suas asperezas, encomendando
e requerendo a todos com sombras d'ameaças de guerras e males do reino,
que lhe tornassem o Regimento e o tirassem ao Infante, contra quem
apontava cousas em que parecia não reger como devia. E porque o reino
todo, especialmente o povo, eram inclinados á parte do Infante, foram os
que receberam suas cartas tão indinados contra a Rainha, e tratavam tão
mal os primeiros messegeiros d'ellas, que os segundos temendo taes
escarmentos, haviam por melhor escondel-as e não apresental-as.

E o Infante D. Pedro d'estas cartas da Rainha que viu, houve muito nojo,
e mostrou grande sentimento; porque infamavam em alguns passos sua
conciencia e autoridade, e por modo de desculpa e limpeza sua, escreveu
a Lisboa como a cabeça do reino, as forças de suas culpas que se n'ellas
continham. Escusando-se de cada uma particularmente, com a verdade de
sua innocencia.



CAPITULO LXVIII

_Como falleciam os mantimentos á Rainha e ao Priol do Crato_


E o Priol do Crato não se proveu de tantos mantimentos como lhe eram
para tal caso necessarios, enganado nas esperanças do conde de
Barcellos, e dos outros fidalgos da Beira, que prometeram tanto que a
Rainha fosse em suas terras, que elles em pessoa com gentes e
provimentos em abastança, seriam logo com ella, ao que nenhum d'elles
quiz nem pôde satisfazer, como quer que para isso fossem da Rainha e do
Priol mui afincadamente requeridos, e por este caso os mantimentos
recolhidos lhes começaram de fallecer, especialmente carnes e pescados,
e para os haver, pela estreita guarda e defesa que para isso havia não
tinha já esperança nem remedio. Pelo qual conveiu á Rainha com palavras
assaz piedozas pedir ao Infante D. João, que estava em Extremoz, que
alevantasse a defesa e lhe leixasse ir mantimentos dos logares de redor.
Mas o Infante escusando-se de o fazer lhe respondeu acusando com muita
graveza e temperança seu movimento. Em especial de poer sua honra, seu
estado, e sua honestidade em poder do Priol e de seus filhos, que não
tinham no reino fama de muito honestos, pedindo-lhe em fim que para
escusar semelhantes necessidades e outras maiores, se quizesse tornar,
do que ella não curou.



CAPITULO LXIX

_De uma embaixada d'El-Rei d'Aragão e de Napoles que veiu ao Infante D.
Pedro sobre os feitos da Rainha_


Estando a Rainha no Crato, chegou a Santarem ao Infante D. Pedro com
embaixada d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Aragão e de Napoles, sobre cousas
da Rainha sua irmã, um Bispo de Segorve, pessoa em que havia muita
doutrina e grande auctoridade. E apontou alguns meios de concordia entre
ambos, o que o Regente por conselho que sobre isso teve, respondeu:

«Que para se tomar n'elles conclusão boa e honesta, como esperava em
Deus que tomaria, era necessario a Rainha ser presente, ou ao menos em
algum logar de suas terras, com tal repouso e assessego que não
parecesse fugida. E para isso que elle antes de tudo se fosse á Rainha,
e como com ella em cada uma d'estas maneiras acabasse sua tornada, se
tornasse a elle. E que sobre isso se ajuntariam com elle os Infantes
seus irmãos, e os do conselho d'El-Rei nosso Senhor. E praticariam
ácêrca dos meios apontados, e se concordariam por seu meio no que mais
honesto e de razão parecesse. E que se a Rainha não quizesse tornar, que
elle d'hi seguisse embora sua viagem e escusasse sua vinda mais a elle.»

Ao Bispo pareceu bem o motivo do Regente, e com isso se foi á Rainha; a
qual porque não approvou nenhuma das cousas que lhe aconselhava, se
despediu d'ella e se partiu para seu Rei sem conclusão certa do porque
viera.



CAPITULO LXX

_De como o Regente determinou pôr cêrco ao Crato e ás outras fortalezas
do Priol, e a que pessoas os cêrcos foram encommendados_


O Infante D. Pedro por recados e cartas da Rainha e do Priol que foram
tomados e trazidos a elle dos portos que se guardavam, foi certificado
como procuravam metter gentes d'armas de Castella em Portugal, e
bastecer as fortalezas que sustinham sua voz com armas e mantimentos de
fóra, e assi se fazerem alguns alevantamentos no reino contrairos a seu
Regimento, para que soube certo que em uma parte e na outra se faziam
trigosos percebimentos, e consirando camanho dano se seguiria a dar-se
logar a isso, e não se atalhar, determinou com accôrdo dos Infantes, com
quanto era entrada de inverno, de logo se poer cêrco ao Crato e ás
outras fortalezas do Priol, e cobra-las por força ou partido, como mais
fôsse possivel. Para que logo mandou perceber o reino, que a isso não
foi negligente.

E encommendou-se o cerco e tomada do castelo de Beluer a Lopo d'Almeida,
que depois foi por El-Rei feito primeiro conde d'Abrantes, e assi que
tomasse e segurasse os celleiros das terras chãs do Priol. E assi se
encommendou o cerco da Amieira ao capitão Alvaro Vaz d'Almada, conde
d'Abranches, ordenando a cada um as gentes e apparelhos que cumpriam. E
foi accordado que o Regente e o Infante D. João, e condes d'Ourem e
d'Arrayollos fossem sobre o Crato. Mandou o Regente outrosi em nome
d'El-Rei fazer e pôr editos publicos, com pena de morte e perdimento de
bens, a todos aquelles que estivessem no Crato e nas fortalezas do
Priol, se dentro de dez dias não se sahissem, salvo as vinte pessoas á
Rainha ordenadas, e assi com promessa de perdão de todos os casos aos
que a El-Rei logo se viessem. Exceptuando alguns poucos a que
expressamente o tal perdão não se estendia, em que entrava o Priol e
seus filhos.

Tomou Lopo d'Almeida com tal cuidado o cerco e tomada de Beluer, que por
seus engenhos, forças e combates poz o castello e gente d'elle em tanta
necessidade e affronta, que conveiu ao alcaide, que se chamava João
Lopez de Nobrega, bom homem e esforçado cavalleiro, depois de fazer
muita resistencia, com grande dano dos cercadores, concertar-se e
entregar o castello com segurança sua e dos cercados, tomando primeiro
certos dias de tregoa, em que como bom servidor pediu socorro ao Priol,
e por lh'o não poder dar, entregou por seu mandado o castello a XVII
dias de Dezembro de mil quatro centos e quarenta.

O capitão Alvaro Vaz a que o cerco da Amieira, como disse, era
encarregado, partiu de Lisboa por terra com sua gente d'armas e de pé,
que era muita e mui bem concertada, e assim com as artilherias e
provisões que para o cerco convinham, e todo posto em mui segura e
singular ordenança, fazendo-o assi como homem que o vira e passara em
outros reinos já muitas vezes. E tambem folgou de o ordenar, assi por
dar a entender n'este pequeno cerco o que faria em outros maiores se
lh'os encomendassem.



CAPITULO LXXI

_Como El-Rei quiz vêr e viu o capitão na ordenança de guerra em que
vinha_


Viera-se El-Rei a Alemquer, porque Santarem onde estava, começou de
poerse mal de pestenensa; e posto que fosse de tão pequena edade, porém
bem inclinado de sua propria natureza, que o provera de mui nobre e mui
grande coração, desejou muito de vêr o capitão e sua gente na ordenança
de guerra em que vinham, e sentindo-lhe Alvaro Gonçalvez d'Arayde, seu
aio, este vivo argulho e desejo, louvou-lh'o muito. E disse que era bem
que cumprisse; mas por não errar em seu serviço e estado, indo de
proposito vêr uma sua cousa tão pequena, seria bem que como d'acerto
fosse á caça, ao campo d'entre a Castanheira e Villa-Nova, e que alli
como de recontro veria o capitão e a gente que então havia de passar.

E a outro dia andando alli El-Rei com seus galgos e gaviães, assomou o
capitão, e sabendo já que El-Rei o queria vêr, apurou ainda muito mais
sua ordenança, e de sua pessoa com seus pages armados se concertou em
grande perfeição. Porque n'aquelle auto d'armas, por seu braço e por
esperimentadas ardidezas passadas, a elle n'este reino se dava muito
louvor; e tanto que foi atravez d'onde o El-Rei olhava, se apartou só da
gente, armado sobre uma facanea, e com grande alegria e desenvoltura se
lançou fóra d'ella, e a pé foi beijar as mãos a El-Rei, e lhe disse:

«Senhor, assi como eu sou o primeiro que vossa Senhoria vê n'estes
habitos, assi prazendo a Deus não serei eu n'elles o segundo, em todo o
que cumprir por vosso serviço e por defensão de vossos reinos.»

El-Rei folgou muito de o vêr, e com palavras e contenenças lhe fez mais
honra e mór acolhimento do que de sua pouca edade se esperava, e assi se
despediu o capitão e seguiu sua viagem até á Amieira, que logo cercou e
combateu até que a tomou.

E n'este cerco não aconteceram cousas assignadas para escrever; porém
houve algumas cousas d'agoiro, que por sua novidade tocarei brevemente.
Porque na hora que ali aconteceram, porque pareciam mui duvidosas, se
tomaram d'ellas testemunhos publicos e mui autorizados. Uma foi que em
se acabando d'assentar o cerco, desceu á vista de todos tres vezes uma
aguia do céo sobre um ninho de cegonha, que sobre as casas do Priol
estava, e das duas vezes levou dois cegonhos novos, e da terceira não
ficou o pae, que para a perdição do Priol e dos filhos foi triste
prognostico. A outra foi que a pedra do primeiro tiro de polvora que com
um quartão se fez, deu por um escudo das armas do Priol que estava sobre
a porta da villa, e só sem outra quebradura o desapegou das mãos de dois
anjos que o tinham e o levou ao chão em pedaços. A outra foi que o
segundo tiro que se fez matou um homem, sobre cujo corpo estando já na
egreja para se soterrar, deu outra vez o terceiro tiro, e em um escano
em que jazia o tornou a espedaçar.



CAPITULO LXXII

_Como a Rainha meteu de Castella gente d'armas n'estes reinos para se
bastecer, e do que fizeram_


Sendo a Rainha e o Priol atalhados para dos logares vizinhos nem do
reino já não haverem mantimentos, e assi sentindo já o engano que de
seus alliados em seu movimento receberam, não ficou aberta outra porta
d'esperança, de soccorro e provisão senão a de Castella. Pelo qual a
peso de suas joias e baixellas, mandaram para soldo vir ao Crato um D.
Affonso Anriquez, que estava em Castella na villa d'Alconchel, com até
sessenta de cavallo e cento homens de pé, com os quaes, e com os do
Crato antes de receberem mais impedimentos e affrontas, trabalharam de
por força se bastecer de trigo, cevada, e gados pelos logares d'arredor,
entre os quaes foi Cabeça da Vide, que D. Affonso foi barrejar e roubar
com cento e LXXX de cavallo e duzentos de pé, e recolheu o despojo ao
Crato, sem haver no logar nem no caminho outra resistencia, salvo a que
os d'Alter do Chão lhe quizeram fazer, que por não serem cautelosos no
auto da guerra foram tambem de D. Affonso desbaratados, e alguns de uma
parte e da outra mortos e muitos feridos, com que todo o reino e
principalmente os d'aquella comarca foram para os do Crato mui
indinados, e da Rainha mui descontentes.

O Infante D. Pedro constrangido e nojado d'estas entradas e correduras
que pelo reino assi soltamente se faziam, apressou por isso mais sua
partida. E acompanhado de muita gente que o veiu servir, partiu de
Santarem caminho d'Aviz, onde com o Infante D. João e condes d'Ourem e
d'Arrayollos tinha concertado seu ajuntamento, para hi terem conselho
sobre o que fariam; porque o Infante D. Anrique era na Beira para a
defender, como se disse.



CAPITULO LXXIII

_Da resposta que o Regente houve d'algumas cousas que com sua embaixada
enviou a Roma requerer_


Em se o Regente alongando em uns casaes, que se dizem o Couto, entre
Santarem e Aviz, chegaram a elle Ruy da Cunha, Priol de Santa Maria de
Guimarães, e o Provincial do Carmo D. João, Bispo que depois foi de
Ceuta e da Guarda, que vinham de Roma, onde foram enviados por
embaixadores ao Papa Eugenio; os quaes entre as outras cousas que
requereram e trouxeram concedidas, foi _vivae vocis oraculo_ a
despensação para El-Rei poder casar com D. Isabel, filha maior do
Infante D. Pedro. E não veiu em escripto; porque a Rainha D. Lianor
sentindo que não podia fazer maior nojo, que em lhe estorvar este
casamento, trabalhou com El-Rei e Rainha de Castella, e com El-Rei
d'Aragão e de Napoles, e com El-Rei de Navarra, todos seus irmãos, que
por algumas razões que sem muito fundamento allegaram, fizessem com o
Papa que por alguma maneira não outorgasse a despensação para o dito
casamento necessaria. O que elles todos fizeram por seus embaixadores
com muita instancia, e por tanto o Papa por não desprezar a tantos e
taes Reis, houve então por bom expediente não outorgar a despensação em
escripto por não ser publica, e a concedeu aos embaixadores em secreto,
_vivae vocis oraculo_, como disse, para o casamento se poder logo fazer,
e depois lh'a mandar por Bula patente, como mandou por Fernão Lopez
d'Azevedo, Commendador Mór de Christo, que lá tornou por embaixador.

E assi trouxeram mais por Bulla expedida, em como o Papa isentou para
sempre as administrações de Tuy e d'Olivença dos Bispados de Tuy e de
Badalhouce, a que eram em Castella d'antigamente sobgeitas, e assi houve
o Mestrado d'Aviz d'estes reinos por isento do Mestrado de Calatrava, e
o Mestrado de Santiago por isento da Ordem d'Ucrés, que são em Castella,
a cuja obediencia de primeiro fundamento eram obrigados. E poz aos Reis
de Castella silencio perpetuo, com estreitas censuras e graves
excommunhões, se mais o contrairo requeressem, como até então sempre
requereram. E certo esta graça estimou muito o Regente; porque sabia que
em vida d'El-Rei D. João seu padre, e d'El-Rei D. Duarte seu irmão, com
quanto isto sempre desejaram e requereram com rasões e causas mui
evidentes e sustanciaes, nunca os Papas que n'aquelles tempos foram, em
caso que lhes parecesse razão, com receios d'agravos e importunações dos
Reis de Castella o ousaram outorgar, e depois até agora sempre isso
esteve e está em pacifico effeito.



CAPITULO LXXIV

_Como em se accordando o cêrco do Crato soube o Regente que a Rainha D.
Lianor era partida do Crato para Castella, e como todavia seguiu, e do
que se fez_


Chegou o Regente a Aviz, onde de muitas partes lhe accudiu muita gente,
para a qual com quanto no reino havia grande careza de mantimentos,
houve porém d'elles alli muita abastança. E sendo certificado que o
Infante D. João seria com elle bespora de Natal, lhe leixou a villa para
seu aposentamento. E na ribeira de Seda se foi alojar no campo, onde os
Infantes e conde d'Ourem e conde d'Arrayollos, com outros senhores e
fidalgos do conselho se viram. E logo todos consultaram ácêrca do que
fariam, em que depois de muitos debates, finalmente se accordaram com o
Infante D. João, que disse:

«Que ante de tudo á Rainha por uma pessoa honrada fosse primeiro pedido
e requerido que se tornasse para suas terras, ou para outro qualquer
logar que ella quizesse não sendo sospeito, com todalas seguranças que
ella pedisse, e que elles todos iriam por ella e a serviriam e acatariam
como ella merecia, por ser mulher e madre de dois seus naturaes Reis e
Senhores, e que se ella o quizesse fazer, todo seu trabalho o houvessem
n'isso por bem empregado; porque com isso o menos ficaria por acabar, e
que quando ella esto não houvesse por bem, que então fossem cercar e
combater o Crato até o tomarem por força, ou como melhor podessem,
guardando sempre qualquer casa ou torre em que a Rainha e a Infante
estivessem, por acatamento e reverença de sua real pessoa e estado, cá
era razão apagar-se logo aquella pequena brasa; porque d'ella se não
seguisse ao reino outro incendio e dano maior.»

A Rainha como foi certificada que os Infantes determinavam ir cerca-la,
vendo que o conde de Barcellos e os outros fidalgos se escusavam de ir
por ella e a servir como ficaram, quizera-se logo partir do Crato para
Castella; mas foi aconselhada que por agravar mais seu caso não o
fizesse até os Infantes serem já em caminho contra ella; porque então
pareceria razão faze-lo; pois poderiam dizer que com temor de a não
prenderem ou deshonrarem o fazia, pelo qual tanto que soube que elles
moviam seu arraial da Ribeira de Seda contra o Crato, ella na noite em
que amanheceu dia de S. Thomás, que vem a XXIX de Dezembro, de mil e
quatrocentos e quarenta e um, se partiu para Albuquerque, e foram
principaes em sua companhia o Priol do Crato e D. Affonso Anriquez, e D.
Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando, seu filho, e alguns outros;
porque a mais gente ficou no castello do Crato com Gonçalo da Silveira e
Vasco da Silveira, filhos de Nuno Martins da Silveira, a que a guarda de
todo ficou encomendada. E estes acabaram depois em serviço da Rainha
suas vidas em Castella, e assi os ditos D. Affonso e D. Fernando, e o
Priol do Crato, que no Agosto seguinte falleceram em Çamora.

Alguns moradores do Crato e principaes, comquanto alli estavam sobjeitos
ao Priol, eram porém servidores secretos do Regente. E como sentiram a
partida da Rainha, fizeram logo dois avisos, um ao Regente do caso como
passara, e outro a Garcia Rodriguez de Siqueira, Comendador Mór d'Aviz,
que era capitão em Alter, para que fosse logo como foi por meio e
engenho d'elles cobrar a villa, e depois de se bem apoderar d'ella e a
segurar com fortes palanques do dano que os do castello lhe poderiam
fazer, o notificou logo aos Infantes, que acordaram enviar logo a
Gonçalo da Silveira, e a Vasco da Silveira, Vasco Martins de Mello, por
ser casado com uma sua irmã, filha tambem de Nuno Martinz da Silveira,
para que os aconselhasse como o tempo e razão requeria e que sem mais
resistencia entregassem o castello. Mas Gonçallo da Silveira, sobre quem
a defensão principalmente pendia, se escusou da entrega, como fidalgo em
que pareceu que havia bondade, lealdade e discrição, e o coração lhe não
fallecia.

Com este recado tornou Vasco Martinz aos Infantes, que não leixaram de
seguir seu caminho até serem sobre o logar; porque receiaram que a
Rainha com gente e mantimentos de Castella bastecesse os logares, pois
n'elles com essa esperança leixava sua gente.

O conde d'Ourem com a gente de Lisboa se aposentou dentro na villa, e os
Infantes fóra em torno do castello, onde em chegando fizeram publico
alardo com toda a gente, em que se acharam doze mil homens de peleja com
muita artilharia, que logo foi assentada em ordenança de combate, de que
os mais do castello tomáram grande desmaio; e porém ante d'algum
cometimento, o Regente mandou outra vez por o dito Vasco Martinz
requerer Gonçallo da Silveira que entregasse o castello e se tornasse
para El-Rei que lhe faria muita mercê, e serviria seu officio d'escrivão
da Puridade como o fôra seu pae, e que seu irmão seria acrecentado com
outras abastanças e razões, de que Gonçalo da Silveira algum tanto
vencido com prazer dos Infantes, tomou assento que o não combatessem por
X dias, dentro dos quaes se a Rainha depois de ser requerida por elle,
lhe não desse soccorro e ajuda com que bem se podessem defender que elle
entregaria a fortaleza, e que se lh'o desse, que elle aquelle trabalho e
outro maior soffreria até, morrer por seu serviço.

Foi logo a Rainha de todo esto avisada por Gonçalo Annes, criado do
Priol e alcaide do Crato, que como prudente messegeiro, lhe disse mui
largamente as difficuldades que havia na defensão do castello, por ser
tamanho e contra tal e tanta gente, e enfraquentou muito com vivas
razões a esperança que a Rainha lhe dava, e tinha em uns oitocentos
homens d'armas que a Rainha de Castella sua irmã lhe mandara para isso
offerecer, dizendo-lhe «que estes não eram pagos nem juntos, e estavam
ainda em Castella por suas casas. E que por tantos favores de pães, de
que os Infantes seus irmãos enganosamente a basteciam, não abastavam
para tal tempo e tamanha necessidade, e que em caso que esta gente e
outra mais os quizesse soccorrer, que pois não podia ser pelo céo, menos
seria pela terra em que por todalas partes havia tanta e tão forte
resistencia, que era impossivel ou assignada sandice fazer-se.»

E emfim a Rainha com o Priol visto todo, accordaram que o castello se
entregasse, para que logo mandou Pero de Goes seu filho, que com
segurança dos castellos o leixou livre, e o Regente o entregou logo ao
Infante D. João, e deu em nome d'El-Rei o Priorado do Crato a D. Anrique
de Castro, filho de D. Fernando de Castro, e depois a D. João d'Atayde,
por cuja morte o houve tambem D. Vasco d'Atayde seu irmão. E depois de
despedir com mercês e mui graciosas palavras aquellas pessoas que n'esta
jornada o vieram servir, e que por então não houve mester, se partiu
caminho d'Abrantes, e com elle o conde d'Ourem. E o Infante D. João se
tornou para a cidade d'Evora.



CAPITULO LXXV

_Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique se foram a Lamego para
passarem entre Doiro e Minho. E como o conde de Barcellos se poz em
defesa, e do que se n'isso passou_


E ante de seu apartamento tiveram conselho sobre o que ao diante deviam
fazer, e accordaram que por quanto já se começara d'entender contra os
que eram reveis e desobedientes a seu Regimento, que o Regente se fosse
á Beira juntar-se com o Infante D. Anrique, para que ambos pela melhor
maneira que o tempo lh'o offerecesse, assessegassem os desmandos e
alvoroços em que os fidalgos d'aquella comarca andavam. E assi soubessem
logo se o conde de Barcellos queria estar á sua obediencia e ordenança
como os outros, e se o contradissesse, que procedessem contra elle de
feito e direito, como sua contumacia requeria, pois com ella dava causa
a se fazer em muita parte do reino muito mal, e pouca justiça.

Foi-se o Regente a Coimbra, e alli se refez da mais gente que pôde, e
posta em ordenança e com esperança de guerra se foi a Vizeu, e alli no
Couto se viu com o Infante D. Anrique, que tambem para o caso estava de
gente, armas e mantimentos mui bem percebido, os quaes por assi sentirem
que cumpria se partiram logo para Lamego, onde chegaram com proposito de
assi poderosos passarem o Douro, e o Regente usar inteiramente de seu
officio nas comarcas d'Entre Doiro e Minho, e Tras os Montes.

A Rainha por conselho do conde de Barcellos se partiu d'Albuquerque, com
fundamento de ir ao longo do estremo até através da comarca de Tras os
Montes, para ir entrar em Portugal pelas terras d'Alvaro Pirez de
Tavora, onde o conde de Barcellos e os de sua opinião se offereceram de
a irem receber e servir. E de Ledesma a que chegou, enviou seus
messegeiros ao conde para saber sua determinação e vontade, e para lh'a
fazer maior e mais forte, lhe enviou novos esforços com esperança de
grande honra e acrecentamento seu; os quaes messegeiros foram a elle,
que estava em Guimarães ao tempo que os Infantes chegaram a Lamego, e
sendo de sua chegada d'elles certificado, e da maneira e tenção com que
iam, não pôde dessimular a muita tristeza e grande cuidado que por isso
recebeu, e respondeu á Rainha escusando-se com coisas necessarias, a não
poder cumprir por então seu requerimento, reprendendo com largas razões
o pouco cuidado que os Infantes d'Aragão para sua restituição mostravam.
E por se mostrar forte aos que de sua parte já sentia mui fracos, enviou
dizer ao conde d'Ourem seu filho, que dissesse como disse da sua parte
ao Regente, que escusasse passar o Douro, porque elle lh'o não havia de
consentir, de que o Infante mostrou grande sentimento, e com palavras e
contenença não livres de sanha, respondeu ao conde por maneira, que
sentindo elle como a honra e estado de seu pae se despunha a grande
perigo, pediu ao Regente por mercê que sobre o caso não houvesse por mal
que elle mandasse um cavalleiro por messegeiro a seu pae, de que ao
Infante aprouve, e ainda com desejo de mais assessego o obrigava que
para isso elle não devia mandar alguem, mas ir em pessoa. E porque Luiz
Alvarez de Sousa, que ao conde foi sobr'isso enviado, não lhe abrandou
em nada sua tenção tornou a elle em pessoa o conde d'Ourem seu filho, o
qual como quer que com palavras de muito amor e razões de grande
efficacia lhe pedisse que se decesse de sua opinião, pois o tempo e a
razão assi o queriam, nunca o pôde acabar, e assi assaz triste e anojado
tornou para o Regente sem alguma conclusão.

O conde de Barcellos moveu de Guimarães com mostrança de ao Infante
defender por força a passagem. E assentou-se com sua gente em auto de
guerra em Meisanfrio, que é logar sobre o Douro duas leguas de Lamego. E
mandou alagar e metter de sob a agua todalas barcas e bateis do rio,
pelo qual o Infante aceso já em desejo de vingança para que os desprezos
e porfia do conde o moviam, determinou logo de passar contra elle, e
para isso ordenou que no Douro sobre toneis se fizesse uma ponte porque
a gente e cavallos podessem em breve e mui seguramente passar, e assi se
fez prestes do mais que para rompimento e peleja cumpria. As quaes
cousas vendo o conde d'Ourem aparelhadas com tal trigança para
destruição de seu pae, ajuntou comsigo para sua ajuda alguns principaes,
perante quem fallou ao Regente. E com palavras de grande prudencia e
muita piedade, e com outras de não menos obrigação, lhe pediu que
sobrestivesse em sua passagem e lhe desse logar que volvesse a seu pae;
porque esperava de o tornar á sua obediencia e serviço prouve d'isso ao
Infante, e lhe louvou muito a dôr e cuidado que para remedio de seu pae
a todos mostrava. Porque entre as outras virtudes muitas que no Infante
havia, esta era n'elle de grande perfeição, ser para as execuções de sua
sanha mui temperado, e mui ligeiro de mover por rogos e intercessões dos
bons.

O conde d'Ourem foi logo a seu pae, e tão evidentes lhe mostrou os erros
de sua dureza e os principios que se ordenavam para sua quéda, que
vencido do evidente perigo que via, mais que de sua propria vontade, lhe
prouve vir como veiu a Lamego falar aos Infantes. Os quaes como souberam
de sua vinda sahiram a recebe-lo fóra da cidade acompanhados de muita e
mui nobre gente.

E posto que entre o conde e o Regente havia odios mui verdadeiros, porém
n'aquella hora que se viram houve entre elles palavras fingidas de tanto
amor e cortezia, e se abraçavam a cada passo com tanta alegria, que
pareceu que um não estimava nem desejava mais bem que a vista do outro,
sem alguma lembrança de roturas passadas, e nas contenenças do povo que
os assi viam, bem parecia que todos haviam d'isso grande prazer.

Era hi presente o Arcebispo de Braga D. Fernando, que com vozes altas
começou de cantar o principio do salmo _Ecce quam bonum & quam jucundum
habitare fratres in unum_; como a quem parecia que na concordia d'estes
Senhores se segurava de todo a paz e descanço do Reino. Os quaes como
foram na cidade fallaram entre si suas cousas, e assi nos desvairos
passados, e o Regente recebeu com bem na cara as desculpas do conde, que
ficou de todo á sua obediencia, approvando em todo o seu Regimento, e
prometteu de mais não servir nem seguir a Rainha, salvo n'aquellas
cousas em que os mesmos Infantes a servissem, e assi concludiram que o
casamento d'El-Rei de necessidade se fizesse logo com a filha do
Infante, ao menos com recebimento simples; porque ao tomar de sua casa,
se fariam depois suas festas solenes e reaes, como a sua honra e estado
cumpria. E assi prouve ao Regente a requerimento do conde que seu
cunhado D. Pedro, o Arcebispo de Lisboa, que andava em Castella
desterrado, fosse como foi á sua dinidade restituido, e lhe outorgou
para si e para os seus outras muitas graças e mercês, a que depois seu
agardecimento não respondeu com egual balança.

E concordado assi todo se despediram uns dos outros: o Regente e o conde
d'Ourem para Lisboa, e o Infante D. Anrique para suas terras, e o conde
de Barcellos tornou-se d'onde viera; e isto foi no fim de Fevereiro do
anno de mil e quatrocentos e quarenta e um.



CAPITULO LXXVI

_Das côrtes que se fizeram sobre o casamento d'El-Rei com a Rainha D.
Isabel, filha do Infante D. Pedro_


Como o Regente foi em Lisboa logo ordenou côrtes, que com solene
ordenança de cidades e villas, e pessoas principaes do reino se fizeram
em Torres Vedras, onde além d'outras muitas cousas, em que por bem da
Republica se entendeu, o Infante D. Pedro com fundamentos passados da
vontade d'El-Rei D. Duarte, e com a necessidade presente que disse, com
muita autoridade e eficacia requereu aos do reino outorga e
consentimento para El-Rei seu Senhor casar com sua filha, e o povo por
conhecer ser verdade o que apontava, e que em christãos não havia por
então mulher com que El-Rei tão bem podesse casar como a seu estado e
honra cumpria, e assi movidos da humanidade e resguardo com que o pediu,
não sómente foram d'isso todos contentes, mas ainda para quando embora
tomasse sua casa lh'offereceram um rico presente. Pelo qual o Infante se
foi a Obidos, onde era El-Rei, e alli em dia da Ascensão, á tarde, no
anno de mil e quatrocentos e quarenta e um, á vista de todos se
celebraram os esposoiros entre El-Rei e a Rainha, nas mãos de um Daião
d'Evora que servia El-Rei de seu fisico, entrando El-Rei em edade de dez
annos. E como os procuradores do povo acabaram de ser respondidos a seus
capitulos e requerimentos, se despediram.



CAPITULO LXXVII

_Como o Regente por meio do conde de Barcellos procurou de se concordar
com a Rainha D. Lianor, e das cousas por que ella não quiz_


O Infante D. Pedro de se assi concordar com o conde de Barcellos mostrou
que recebia prazer e descanso, crendo que para tranquillidade do reino
que procurava, tinha a mais aspera difficuldade passada. E para temperar
e vencer a outra da Rainha que sobre tudo desejava, ante de partir de
Lamego fallou com o conde seu irmão, e lhe pediu que para ambos se
concordarem, como sempre desejara, quizesse entre a Rainha e elle ser
medeaneiro; porque elle tinha razão de n'isso a servir, e ella de o
querer.

Mostrou o conde que d'isso lhe prazia muito, e enviou logo a ella que
era já em Madagal, Alvaro Pirez de Tavora, de que muito fiava,
encommendando-lhe muito com razões e causas mui evidentes o concerto da
Rainha com o Infante, e assi sua desculpa pela não servir na fórma que
com ella tinha assentado.

A Rainha não ouviu esta embaixada com boa vontade, nem a acceitou como
se confiava. Assi por haver já por suspeito o conde, pela concordia
feita entre elle e o Regente, em que Alvaro Pirez tambem entrara; como
porque lhe parecia, segundo os Infantes seus irmãos estavam então
apoderados de Castella e Aragão e Navarra, que com as gentes e poder
d'estes reinos apremariam e guerreariam o Regente por maneira que de
necessidade lhe conviesse leixar a ella livremente o Regimento, como
requeria e desejava. E este esforço e presunção tomava ella porque
n'este tempo os Infantes seus irmãos e o Principe D. Anrique, com odio
que tinham ao conde e Condestabre se concordaram e cercaram El-Rei em
Medina del Campo, e o entraram por força, e recolheram sua pessoa
d'El-Rei a seu poder, e lançaram fóra fugidos e destroçados o
Condestabre e o Mestre d'Alcantara, e outros que eram dentro em ajuda e
defensão d'El-Rei. E n'esta sombra de prosperidade em que a Rainha via
seus irmãos em Castella, tomou tanta confiança para seu recurso, que não
quiz haver por bom nenhum meio que de Portugal sem o Regimento e criação
d'El-Rei lhe fosse cometido. Antes para mais apressar sua destruição e
proveza, foi como não devia aconselhada, que para em seu caso obrigar
mais seus irmãos, quando os fosse vêr devia levar e dar-lhe para sua
ajuda alguma gente d'armas, de que em suas revoltas tinham a necessidade
que sabiam, o que á Rainha pareceu bem, e para prover aos seus e a
outros que para isso tomou, de cavallo armas e soldo, vendeu e apenhou a
mór parte de quanta prata e joias tinha. E camanho erro n'isso fez, ella
em suas minguas sem longa tardança o sentiu, porque finalmente o amparo
e soccorro que em suas fadigas houve de seus irmãos, com quanto eram
tamanhos Senhores, se tornou sómente em fortunas dobradas, e claros
enganos em que a trouxeram, e com que acabaram de lhe levar todo o que
para repairo seu e dos seus lhe ficava.



CAPITULO LXXVIII

_Como a Rainha D. Lianor se foi á côrte d'El-Rei de Castella, e das
embaixadas que vieram a Portugal_


A Rainha n'esta enganosa confiança de sua certa restituição se foi á
côrte d'El-Rei de Castella, a que os Infantes d'Aragão então governavam
de todo; dos quaes logo em sua chegada foi com muita honra e acatamento
recebida e agasalhada. Onde depois de em pessoa recontar suas querellas
e aggravos, com mais graveza por ventura do que foram em effeito, El-Rei
por satisfazer a ella e cumprir a vontade dos Infantes, enviou ao
Infante D. Pedro uma e muitas vezes mui continuas embaixadas, umas
brandas e outras com aspereza, umas mostrando desejar paz, e outras mais
desafiando guerra, apontando sempre taes meios em favor e contentamento
da Rainha, que a sem razão e o desserviço d'El-Rei de Portugal e o dano
do seu reino, que claramente comsigo traziam, conselhavam que se não
acceitassem; especialmente porque em todos se requeria que a criação
d'El-Rei e do Principe seu irmão e irmãs fosse á desposição da Rainha,
ou ao menos em poder de dois cavalleiros, quaes a ella prouvesse, que
fossem de todo isentos da juridição e mandado do Infante, o que o reino
todo por causas mui evidentes e necessarias sempre contrariou, e muito
mais o Regente, que mostrava haver por singular bem-aventurança e grande
repouso para si e para seus filhos o amor d'El-Rei, de que tinha certa
esperança, pois com tanto amor e perfeição o criava, e de que seria
desesperado se fóra de seu poder, e com seu odio e de muitos outros o
criassem.

E porém sempre lhe prouve, e assi o respondia, que á Rainha tornando-se
a estes reinos fossem inteiramente dadas todalas terras e renda que
n'elles tinha, com a criação de seus filhos livremente. Ainda que em
umas côrtes que n'este anno de mil e quatrocentos e quarenta e dois em
Evora se fizeram, foi por todolos tres estados requerido e concordado
que a Rainha devia por direito ser de todo privada, e que principalmente
não devia vir a estes Reinos, assi pela gente estrangeira que como imiga
n'elles metera e os guerreara, como pelos grandes trabalhos e muitas
despezas que com receio de guerra tinham por sua causa padecido, em
especial se houve por mui perigoso inconveniente o odio e má vontade que
aos principaes do reino já tinha, de que se esperava ella com El-Rei seu
filho procurar sempre destruições e cruas vinganças, que a muita
lealdade de seus vassallos lhe não mereciam.

Os Infantes d'Aragão confiados no mando da governança de Castella que
possuiam, havendo por seu abatimento não se fazerem os feitos da Rainha
sua irmã á sua vontade, enviaram ao Regente que era em Santarem outra
embaixada, que elles fingiam ser já derradeira, em que vieram por
embaixadores um Gomez de Benavides, e outro Affonso Fernandes de
Ledesma, doutor em leis, e pessoas de grande estima e auctoridade em
Castella; estes em seus apontamentos seguiram os passados dos outros.
Trazendo logo comsigo arautos e trombetas, como officiaes de desafio
real, para que se ás cousas tocantes á Rainha não respondessem conformes
a seu requerimento, que solemnemente desafiassem logo a guerra de reino
a reino. A qual publicavam mui soltamente, crendo que com medo d'ella
este reino ácerca do Regimento se mudara de seu primeiro proposito.

E estando estes embaixadores ainda por responder, veiu com uma carta da
mão d'El-Rei para o Regente, um Custodio, da Ordem de S. Francisco de
Castella, e com o trellado d'ella aos embaixadores, em que
sustancialmente affirmava o que elles mesmos já requereram. Apontando as
cousas porque devia com rasão favorecer e ajudar a Rainha. E que por
ellas sem quebrantamento das pazes podia a estes reinos justamente fazer
guerra.



CAPITULO LXXIX

_De como o Regente sobre a resposta que a estas embaixadas se daria, fez
côrtes geraes_


Estes accidentes tão apressados pozeram o Infante D. Pedro em muito
cuidado; porque eram taes, que de necessidade ou teria guerra, ou por
fraco perderia toda sua honra e estima; porque por isto foi certificado
que ao povo de Castella em ajuntamento de côrtes prouve por industria
dos Infantes que para restituição da Rainha se fizesse guerra a estes
reinos, e para isso se fizessem apurações e lançassem pedidos, que se
logo lançaram.

E porém o Infante disse aos embaixadores que os casos de seu
requerimento eram de calidade, a que se não podia dar direita resposta
sem accordo de todo o reino, e portanto lhes rogava que tivessem assi
até se fazerem côrtes, onde elles tornariam a ser ouvidos e respondidos,
como a todos bem parecesse.

Os embaixadores foram d'isto mui contentes; porque viram levemente o
effeito do principal fundamento e desejo que traziam, que era por
semearem temor divulgar-se sua embaixada por todo o reino.

Assignou o Regente as côrtes na cidade d'Evora, onde por suas cartas
mandou que os procuradores do povo se juntassem no Janeiro do anno que
começava, de mil e quatro centos e quarenta e dois. Notificando-lhe logo
a sustancia e causa de sua vinda; e porque lhe parecia que a guerra se
não poderia escusar, e não fossem com algum improviso dano salteados por
negligencia, determinou que os Infantes a que tambem escreveu, fossem
logo ás frontarias de suas comarcas, e provessem todalas fortalezas da
raia e as fizessem velar, armar, bastecer e repairar, como para tal
necessidade cumpria se sobreviesse, e assim mandassem arredar os gados e
provisões dos estremos. E defender os mercadores que não entrassem em
Castella; e assi se cumpriu e se poz em todo o reino tanto resguardo,
como se a guerra fôra claramente rota, e aos Infantes e grandes e
pessoas principaes do conselho que não podiam vir a ser presentes,
enviou a sustancia de toda a embaixada, e a cada um ácerca do que
responderia pediu seu conselho e parecer em escripto, como sempre
costumou.

Partiu-se o Regente para Evora, e assi os embaixadores, e ao dia que
tinha posto foram juntos os procuradores, onde o Infante por si lhes
propoz com largo recontamento a necessidade que o movera aos chamar, e
assi lhes apresentou a embaixada presente, resumindo as outras passadas
da mesma sustancia, cuja conclusão era que El-Rei de Castella requeria
que por bem e paz d'este reino, El-Rei e seus irmãos fossem entregues á
Rainha, com inteira governança do reino, se não com força e por guerra
de Castella se faria, rogando-lhe que sobre todo consirassem, e como
bons portuguezes e leaes vassallos d'El-Rei lhe dissessem o que devia
dizer e fazer; havendo sempre respeito ao que mais fosse serviço de Deus
e honra d'El-Rei e bem de seus reinos. Apontando a necessidade que havia
de dinheiro, para que sua ajuda cumpria.

E leixando alguns rumores e alvoroços que em continente logo houve, e
muitos dos que sem aquella consiração e resguardo que deviam bradavam
por guerra e a requeriam, finalmente os procuradores recolhidos em seu
consistorio e praticando com muita madureza o caso, tornaram ao Regente
seu parecer, que sustancialmente foi todo remetido a seu juizo, por todo
confiarem de sua lealdade, siso, e esforço, e para as necessidades que
occorriam outorgaram tres pedidos.

E conformando-se o Regente com o parecer dos procuradores e assi com as
respostas que em escripto houve dos ausentes, deu em nome de El-Rei
resposta aos embaixadores, escusando-se por muitas causas a não dever
cumprir, nem haver por bem o que requeriam, e que assi era dos do reino
aconselhado, e que se por isso El-Rei de Castella quizesse mover guerra
contra estes reinos, que lhe pesaria muito por ser entre christãos tão
conjunctos em sangue e amigos. Porém quando tão sem razão a movesse, e
como imigo quizesse n'elles entrar, fosse certo que a contenda não
duraria muito; porque no campo o havia de receber e não o esperar de
trás das paredes. E que esperava em Deus pois era justo, que na victoria
o faria tão herdeiro, como fizera a El-Rei D. João, de cujos lombos
sahira.

Com esta resposta despediu os embaixadores de Castella, que com todas
suas ameaças passadas não publicaram a guerra como mostravam.


FIM DO I VOLUME





*** End of this LibraryBlog Digital Book "Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I)" ***

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