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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) Author: Queirós, José Maria Eça de, 1845-1900 [Editor], Ortigão, José Duarte Ramalho, 1836-1915 [Editor] Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12)" *** made available by the Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal. [Illustration: EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO--AS FARPAS] EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO AS FARPAS _Chronica Mensal_ DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES QUARTA SERIE N.º 2 NOVEMBRO A DEZEMBRO 1882 Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo. P.J. PROUDHON. SUMMARIO Congressos catholicos e ideias clericaes--Anjos e reprobos--As influencias e eclesiasticas na sociedade portugueza--A egreja e as mulheres--Os nossos padres, padre de missões, padre d'aldeia e padre de sala--Os clubs e as sacristias--O jogo, a batota, o rei dos lusos e o rei de copas, a rusga, a _vacca_--Doutor Jardim, sabio, e Rosalia, dama illustre--Novas applicações da mobilia á critica litteraria--A moderna arte portugueza e as escamas da corvina--O jornalismo em Braga--O partido legitimista e a bandeira branca de Senna Freitas--Sampaio o Saraiva de Carvalho--A augusta princeza anjo da caridade e do bric-à-brac--Tragico fim de um gato d'esse anjo--Fausto e jocundo desacato de s.ex.ª o ministro da justiça por s.em.ª o nuncio de sua Santidade--A urna e a corveta Stephania--Os commendadores e os cães de faiança---Milagrosa reapparição de Nossa Senhora Apparecida. * * * * * «Se Deus approva, que tenha a bondade de se deixar ficar sentado.... Está approvado.» Tal é, resumidamente exposta, a commoda maneira de votar por meio da qual não só o congresso catholico, reunido recentemente em Lisboa, mas muitos dos concilios ecclesiasticos que precederam este, se mettem de gorra parlamentar com os legisladores do ceu e constatam a approvação da divindade ás deliberações tomadas pelos clerigos. Para esses cavalheiros,--papas, bispos, conegos, simples padres d'enterro ou sacristães--Deus é absolutamente a mesma coisa que é para o snr Fontes a sua maioria regeneradora, o que quer dizer: uma entidade encarregada de, assistir á apresentação dos decretos e de dar o sim. * * * * * Nos sermões de penitencia das nossas villas e aldeias o truque é o mesmo que nos concilios, mas reforçado com um cordel. O orador sacro, encarregado pela remuneração de 3$600 em dinheiro e um prato de especiones com vinho fino, de refrescar para commodidade das almas em cada uma das domingas da quaresma os ardores do purgatorio, irrigando de eloquencia e de latinidade esse recinto de clarificação espiritual, começa por pôr Deus no throno do altar mor, sob a figura do Senhor dos Passos escondido atraz de uma cortina roxa, e dirige-se em seguida para a cadeira da verdade, acompanhado de uma ponta do barbante com que se ha de puxar a cortina. No final da predica, á peroração, o ecclesiastico, depois de haver enxugado a um dos lenços estendidos sobre o parapeito do pulpito os 3$600 de transpiração escorrida pela fronte e pela região cervical, pega no cordel, volta-se para a cortina, faz uma venia e diz: «Senhor! se minha debil voz, eccoando n'este auditorio conspicuo, a cuja frente diviso o veneravel vulto do illustre conselheiro d'estado honorario, presidente d'esta benemerita irmandade,--se minha debil voz, digo, conseguiu levar ao vosso coração amantissimo a convicção do arrependimento em que se acham immersas as almas que ora vedes prostradas a vossos pés, dignae-vos, Senhor, de apparecer para ouvirdes nossos votos. Apparecei, Senhor! Porque não appareceis?!» E por meio da bem conhecida e sempre efficaz figura de rhetorica intitulada obsecração,--um dos mais arrojados e vehementes de todos os tropos,--o orador, dirigindo-se sempre á cortina, com bola de mão para a lacrimosidade dos fieis, faz sentir a estes por tabella que é mister que elles solucem durante alguns minutos para que Deus lhes appareça, e lhes perdoe. Os fieis então desatam em suspiros de corrente pranto, e o ecclesiastico, acabando emfim por lhes dar Deus de presente, cae elle mesmo prostrado de commoção e de espanto na borda do pulpito, como se nunca em sua vida lhe houvesse apparecido um tão portentoso milagre como esse de se correr a mesma cortina que occulta a imagem do Senhor dos Passos, a que elle tem por officio puxar os cordeis em todas as quaresmas, á razão de trinta e seis tostões por tarde, além do beberete. * * * * * Nos congressos dispensam de ordinario o barbante corroborativo da oratoria sacra. Apenas nomeada a mesa que tem de presidir aos debates, os clerigos persignam-se, abancam, põem deante de si os rapés, e passam desde logo a redigir a acta, dando como presente, entre as pessoas do clero, a do divino Espirito Santo, representado sob a fórma de volatil symbolico e para este effeito invisivel. Emquanto a fazer approvar pela divindade dada como presente na acta, tudo aquillo que elles se lembram de resolver em commum, consideram os clerigos--e mui judiciosamente segundo se nos affigura--que é inutil estar a puxar-lhe por guitas, tendo com Deus a mesma massada que se tem com as marionettes. N'esse presupposto o que os padres decidiram foi o seguinte: «Sempre que Deus houver de regeitar alguma das nossas resoluções, que se manifeste n'esse sentido. Não se manifestando, entende-se que está de accordo.» Com o quê, dão a palavra aos snrs membros que tenham que propôr coisas para approvar. * * * * * Ora Deus, na sua qualidade de ser supremamente sabio, segue, como é notorio, o systema habitual de não se manifestar nunca, quer seja para approvar, quer seja para desapprovar aquillo que um maior ou menor numero de padres, reunidos para esse effeito, determinem expor-lhe. É claro que lhe não faltava agora mais nada, ao grande bom Deus, senão sahir de toda a parte, onde dizem que está, para vir ali assim á capella do Marquez de Castello Melhor, ou a qualquer outra, estabelecer dialogo com o Padre Viegas ou com o Padre Garcia Diniz, para o fim de os cumprimentar ou de os mandar á fava pelos seus discursos! Succede por tanto que de todas as vezes que alguns sacerdotes, em folga por falta de missas ou de enterramentos, se agregam a alguns seculares mordidos pelo bicho carpinteiro do zêlo, e decidem juntos decretar mais fervor á devoção das massas afim de que estas mandem dizer mais missas ou se façam enterrar mais vezes, Deus, misericordioso e benigno, sorri de indifferença ineffavel nas profundidades immaculadas do azul e deixa o clero decretar, exactamente com a mesma longanimidade com que deixa a herva crescer. * * * * * Não affirmaremos porém em absoluto que esta enorme frescata de chinquilho, esta sem-cerimonia de bisca emparceirada com o Eterno pelos sacerdotes, não possa uma ou outra vez offerecer alguns ligeiros perigos, apertando-se de mais com o fiado. Toda a familiaridade tem limites. Deus de quando em quando se pronuncia, posto que indirectamente, no sentido de recordar essa discreta maxima áquelles religiosos que abusam, dando-se ares de privar ainda mais com o ceu do que privam com o proprio botequim do Martinho. Ainda ha pouco no parlamento hispanhol se deu um facto proprio para provocar em nosso espirito amargas conjecturas sobre os inconvenientes de nos tornarmos nojosos á força de sermos nimiamente prolixos em nossas intimidades com o Divino. É de saber que o augusto pretendente D. Carlos, depois de haver consumido nas roletas do exilio, com o bello sexo extrangeiro e em devoções castelhanas, os bens da sua corôa, se achou reduzido ao mais invejavel estado de pureza christã, não tendo de seu senão facturas de fornecedores que pagar, a benção apostolica de Sua Santidade e o direito divino. Para sustentar esse direilo nas còrtes da nação hispanhola havia um deputado especialmente incumbido de narrar á Peninsula tudo aquillo que Deus continuava a fazer pelo mui catholico principe D. Carlos, desde que D. Carlos, com a sua força desarmada e posta em penhor n'um banco de Londres, deixara de fazer por Deus coisa que se visse suspensa por corda no espaço, Pois bem, o que ultimamente succedeu foi que: o deputado alludido, ao principiar a usar da palavra para mais uma vez introduzir a divindade n'uma falla aos de Castella, cahiu subitamente morto. Os anjos haviam-o chamado ás alturas estendendo-lhe do empyreo o ascensor de Jacob a que na terra damos o nome vulgar mas expressivo de apoplexia. Acontecem d'estas ás vezes! Os fieis, a poder de mandarem os philosophos ao diabo, arriscam-se um pouco a acabar como o hispanhol, fulminados repentinamente pelo Altissimo, ao reconhecer-se que efectivamente não estão satisfeitos com a marcha que modernamente teem tomado as coisas sobre a esphera terrestre. * * * * * O mais vulgar porem, da parte de Deus, é a indifferença imperturbavel pelo ardor, ainda o mais comichoso, d'aquelles que servem a sua egreja, pondo-se de Deus á esquina para a gente e vibrando a religião como a grande moca benzida com que atiram á testa de quantos andam a ganhar a sua vida por este mundo, emquanto suas excellencias estão em folga temporal nas sacristias, locupletando-se de bemaventurança futura e d'hostias quotidianas. Assim como nós outros fundamos camisarias ou estancos, fundam elles agencias e sucursaes do ceu por sua conta, despachando os requerimentos dos candidatos a anjos, designando em dias de juizo trimestraes, como os exames de frequencia, os eleitos e os reprobos, e sentando desde logo uns á mão direita e outros á mão esquerda do bem conhecido redactor principal e leitor unico da _Nação,_ o snr Fernando Todo Pedroso. * * * * * Garibaldi, por exemplo, escusa de pensar em entrar jamais no ceu com a sua famosa camisola, cujo vermelho ardente poria ao longo da Via Lactea um rubôr d'aurora. Garibaldi que se aguente como puder nas profundidades do inferno, pequeno de mais talvez para conter toda a paixão de liberdade que encheu na terra o seu coração maldito. Elle levou uma fava preta do Todo Pedroso snr Fernando, e S. Pedro está prevenido. Os doze pescadores, que, á voz de Jesus fallando-lhes na montanba, abandonaram as redes para levar palavras de consolação a todos os opprimidos atravez do universo, não quereriam ao pé de si lá em cima esse official do mesmo officio que tantas vezes abandonou a barca amarrada ao rochedo de Caprera para ir com uma espada na mão arriscar a pelle, não já para consolar, por meio de sermonarios, da liberdade perdida, como nos apologos da biblia, mas para pôr definitivamente a liberdade onde estava a oppressão. S. Paulo, que procedia litterariamente, por meio de epistolas, como Madame de Sévigné, não consentiria de boa mente que se puzesse ao lado da sua penna platonica a espada cheia de bòccas de um companheiro que procurou como pôde lazer por obras n'esta vida o que elle apenas prometteu em doces palavras para a outra.---Assim o decidiram, pitadeando-se de commum accordo sobre o caso, o reverendo Viegas e o reverendo Garcia Diniz, em conselho de sacristia, sob a presidencia do Todo Pedroso. * * * * * O nobre conde de Santiago, pelo contrario, é recebido por aclamação, com a sua chapeleira e o seu ripanso, no comboyo expresso, organisado por estes senhores, do Passeio Publico para a Bemaventurança. Esse pieodoso fidalgo está nomeado secretario do congresso catholico, o que lhe dá no seio da christandade honras antecipadas de serafim. Com o privilegio de redigir as actas do sagrado concilio o nobre conde acha-se concomitantemente investido no direito de poder andar d'azas, desdo já, por este mundo. Mais alguns mezes de fervor e de secretariado da parte de s.ex.ª, e poderemos alimentar a esperança de o ver ainda atravessar o Chiado como o atravessam os perus, isto é--em pennas. A natural pudicicia de s.ex.ª lhe vedará porém talvez o circular entre os viventes vestido unicamente com os espanadores dorsaes destinados ao convivio dos cherubins no gallinheiro celeste. * * * * * O aspecto do recente congresso catholico do Passeio Publico (lado occidental) tal como os noticiarios nol-o descrevem parece-nos de uma pompa particularmente modesta, destinada, a não excitar represalias da parte do snr. França Neto. Meia duzia de padrecas, com as suas sobrecasacas dominicaes e os seus chapeus altos anediados de novo para decoro das corôas subjacentes, mais outros tantos seculares vestidos de preto e puxados á substancia do panno fino pela benzina expurgante, postos todos em volta de uma meza a assoarem-se uns para os outros com emphase, dão-nos menos a ideia de um ajuntamento triumphante de convicções victoriosas do que o painel de um simples ciprestal sentado,--com defluxo. Alem de solicitar a benção apostolica, o congresso catholico de Lisboa resumiu os seus trabalhos em duas unicas resoluções: fundar uma universidade catholica e requerer dos poderes publicos que por meio da sua policia elles façam respeitar nas ruas as pessoas dos ecclesiasticos, presentemente apupados pela multidão, segundo elles mesmos dizem, sempre que apparecem em publico revestidos de habitos sacerdotaes. O que, a ser exacto, é precisamente a mesma coisa que succedia em Paris ao padre Lacordaire no tempo da Restauração. Notando-se que a Restauração foi de todos os governos em França aquelle que mais protegeu o clero, fica-se em duvida sobre se a intervenção do governo será o meio efficaz de garantir aos ecclesiasticos a deferencia e o respeito, que ninguem jamais lhes recusa nos paizes de liberdade religiosa, em que o Estado é atheu, como na America do Norte. * * * * * Se compararmos o espirito e o aspecto d'esta assembleia catholica com algumas reuniões do mesmo genero celebradas na Europa durante o decurso dos ultimos annos, somos obrigados a confessar que o prestigio do sacerdocio decae de um modo sensibilisador. No congresso belga, por exemplo, reunido em Malines no mez d'agosto de 1863, o numero dos adherentes era de 3:000. Na cathedral de Saint-Rombaut, o cardeal-arcebispo Sterchx celebrou a missa solemne d'abertura, depois da qual os membros do congresso seguiram em procissão para a vasta sala das sessões, engrinaldada de festões de rosas e empavesada de tropheus de todas as bandeiras da christandade como uma enorme nau em triumpho. No topo do salão o estrado destinado á meza era coberto por um docel de velludo carmesim franjado d'ouro sobre o qual se destacava na doce pallidez do marfim uma imagem de Jesus cravado de brilhantes na cruz d'ebano. Esveltos soldados da milicia papal, em grande uniforme, de capacetes rutilantes e bigodes recurvos, fazem alas lendo ao tiracollo as bandas symbolicas de seda branca e ouro. O alto clero que vem tomar assento na assembleia passa em pompa, gravemente, por cima do tapete de Smirna desenrolado ao longo da sala. Á frente, os cardeaes com as suas purpuras roçagantes; depois os bispos inglezes, os de Gand, de Tournay, de Namur, appoiados aos seus baculos, e os sacerdotes do rito armenio, de grandes barbas, chapeus altos sem abas com veus roxos, empunhando as suas longas bengalas de castão de ouro. Foi no congresso de Malines que De Montalembert, o antigo collaborador do abbade Lamennais, proferiu o seu monumental discurso sobre a egreja livre no estado livre. De Montalembert acreditava ainda na possibilidade de uma alliança entre o espirito ecclesiastico e o espirito scientifico do mundo moderno, e o seu discurso é n'esse intuito um manifesto de uma rara eloquencia apaixonada, profundamente convicta. «Em toda a parte excepto na Belgica--disse elle--os catholicos são inferiores aos seus adversarios na vida publica, porque os catholicos não souberam ainda congrassar-se com a grande revolução que gerou a nova sociedade, a moderna vida dos povos. Em presença da sociedade moderna os catholicos sentem-se timidos e confusos; teem-lhe medo. Não aprenderam por emquanto a conhecer, a amar a sociedade em que vivem. Muitos estão ainda, pelo coração e pelo espirito, ligados ao antigo regimen, isto é, a um systema que não admittia nem a egualdade civil, nem a liberdade politica, nem a liberdade de consciencia. O antigo regimen tinha o seu lado grande e bello; não pretendo julgal-o aqui, e muito menos pretendo condemnal-o. Basta-me reconhecer-lhe um deffeito, mas esse capital: está morto, e nunca mais resuscitará.» Em seguida Montalembert demonstra que n'este seculo a egreja ou ha de cessar de existir ou ha de viver na democracia e na liberdade. A egreja, ou não tem mais que fazer no mundo, ou tem que contribuir ainda como nos tempos que fizeram a gloria do seu passado, para a perfectibilidade do espirito humano, intervindo no progresso pelo combate da livre razão contra todas as usurpações, contra todos os privilegios, contra todas as tyrannias exercidas sobre a inviolavel fraternidade humana. A liberdade é uma só, unica, indivisivel e sagrada, expressa pelo predominio dos poderes espirituaes sobre os poderes temporaes, representada na parte dynamica pela sciencia, na parte statica pela religião. Na sciencia a liberdade consiste no direito de descobrir a verdade e de a proclamar sem disfarce e sem restricção alguma como base das relações do homem com o homem na independencia absoluta da revelação e da fé. Na religião a liberdade consiste, como dizia Guizot, no direito que tem a consciencia humana de não ser governada nas suas relações com Deus por decretos ou por castigos humanos. «Catholicos--disse Montalembert--se quereis a liberdade para vós, entendei-o bem, é preciso que a queiraes egualmente para todos os homens e debaixo de todos os ceus. Se a pedirdes para vós unicamente, não a tereis nunca: dae-a em toda a parte onde fordes senhores para que vol-a deem em toda a parte onde fordes escravos.» Esta energica apologia da liberdade, enthusiasticamente applaudida, levou o congresso de Malines a ridigir nos seguintes termos uma das resoluções da assembleia: «É do interesse dos catholicos, assim como do todos os cidadãos que sinceramente querem a liberdade, o substituir quanto possivel a intervenção e a omnipotencia do estado pela energia creadora e pelo principio expansivo do espirito de associação.» * * * * * Vejamos agora quaes foram os resultados praticos d'esse grande impulso de eloquencia destinada a fazer entrar o catholicismo no movimento liberal da moderna civilisação. Os destinos da egreja n'este fim do seculo XIX estão profundamente ligados a esse facto culminante na historia das ideias clericaes. O que succedeu no congresso de Malines foi que os cardeaes e os bispos abandonaram a reunião no dia immediato áquelle em que Montalembert fizera o elogio da alliança da egreja catholica com a sciencia e com a liberdade. Compareceram apenas nas sessões subsequentes os membros obscuros do baixo clero, os quaes movidos de um generoso impulso democratico continuavam a applaudir Montalembert, não sem perguntarem a si mesmos com certa inquietação o que se pensaria em Roma dos discursos e das resoluções do congresso belga. A resposta não se fez esperar. Tres ou quatro mezes depois Pio IX escrevia ao arcebispo de Munich uma carta, em que pelo maneira mais formal censurava a audacia dos catholicos que ousavam reunir-se em congressos para proclamarem por sua conta a _liberdade da sciencia_. Esta missiva, pouco terna para com os congressistas de Malines, não obstou a que elles se reunissem ainda uma vez em agosto de 1864. Montalembert não compareceu. Fallaram o padre Hyacinthe e o arcebispo Dupanloup n'um sentido que, apesar de moderado, não pareceu sufficientemente retrogrado a Sua Santidade. O papa respondeu ás utopias liberaes do congresso com a publicação do _Syllabus_ e da encyclica _Quanta cura_, cortando assim pela raiz e de uma vez para sempre toda a illusão de um accordo entre o espirito ecclesiastico e o espirito da civilisação. Em presença d'esses factos, os congressistas de Malines tinham duas resoluções que tomar: submetter-se e acceitar a doutrina da encyclica e do syllabus, ou reagir e protestar. O primeiro caso era a retractação vergonhosa de todos os principios affirmados e de todas as aspirações manifestas no congresso; o segundo caso era a revolta e o schisma no gremio da egreja. N'esta conjunctura escabrosa o congresso preferiu dissolver-se. Desde esse dia o destino do catholicismo ficou fixado. Entre os interesses do clero e os interesses da civilisação ha uma barreira que os proprios padres, ainda os mais instruidos e os mais liberaes, julgaram impossivel transpôr. * * * * * Ora desde que não póde ser um alliado, o que está evidentemente demonstrado, o padre é um inimigo. Para o combatermos a nossa primeira obrigação é tomar conhecimento das forças de que elle dispõe para nos prejudicar. Sobre este ponto a resolução tomada pelo congresso do Passeio Publico de pedir a intervenção da policia civil para evitar que o povo troce o clero, tranquilisa-nos satisfatoriamente. Torquemada requerendo para a queima dos sacrilegos um lampejo emprestado ao chifarote do habil Antunes é um symptoma doce. O congresso propõe-se morder os impios com a condição de que os impios lhe ponham as presas. É a S. Bartholomeu a troco de um dentista. Se os querem ver cantar o côro dos punhaes, cedam-lhes o Vitry. * * * * * A unica coisa grave e perigosa para a sociedade, no congresso catholico de Lisboa, é que, segundo parece, esse congresso foi divertido. As senhoras pelo menos assim o entenderam concorrendo em grande numero a todas as sessões. Que attractivos especiaes tem a classe ecclesiastica para captivar assim as adhesões da mulher? Investigando este phenomeno, vemos em primero logar que ha em Portugal tres especies distinctas de padres:--o padre das missões, o padre d'aldeia e o padre de sala. * * * * * Os padres das missões subdividem-se em dois grupos differentes: os aventureiros e os mysticos. Os aventureiros viajam ordinariamente para a Africa por especulação temporal, por amor á vida d'emigrante, á lavoura dos tropicos, ao lucro mercantil, á intriga da politica colonial e á batota ultramarina. De quando em quando, ao apparececrem-lhes á mão, arrebanhados, alguns centos de pretos mansos e somnolentos, baptisam-os em massa,--cerimonia tocante a que os pretos se submettem adormecidos como verdadeiros justos, conscios por experiencias feitas de que essa operação, altamante civilisadora posto que inoffensiva, os não torna nem mais nem menos pretos do que elles são. Os mysticos, mais raros, são pessoas doentes da hallucinação do martyrio. A sua ambição suprema consiste em serem comidos ás fatias fritas, com mandioca, pelas raças anthropophagas. Logo que se julgam sufficientemente temperados com o latim preciso para excitar a gula canibalesca e assaz tenros de carne pela vida de capoeira aos comedouros dos seminarios, vestem-se com os trajes de D. Basilio no _Barbeiro de Sevilha,_ mettem um breviario debaixo do braço e embarcam para regiões inhospitas e selvagens. Uma vez em communicação com os infieis, nunca mais cessam de lhes metter o breviario em cruz entre a bocca e o prato, até conseguirem realisar a sua aspiração suprema, que é não restar d'elles mais que uma batina e um par de sapatos, deitados para debaixo da meza juntamente com as cascas dos legumes, e dois canibaes a palitarem os dentes, e, a dizerem um para o outro: --Saboroso padre! benza-o Manipanso! * * * * * O padre d'aldeia é d'ordinario o melhor dos homens. A sua rudeza montesinha colloca-o ao abrigo de todas as subtilezas enervantes da penitencia requintada e dos pequenos peccados elegantes e estonteadores. As suas intimidades com a sã natureza dão-lhe o instincto de uma boa religião alegre e repicada, com arcos de murta no adro tapetado de espadanas, de funcho e de rosmaninho, na festa do orago, com morteiros á missa cantada, n'uma vasta satisfação de cajados reluzentes, de sapatorros novos nos rapazes, de barbas feitas nos velhos, e de mangas arregaçadas, de linho branco e fresco, nas queijadeiras postadas em fila no arraial. Na quaresma conduz de sobrepeliz uma grave e, simples via-sacra á roda da egreja, de cruzeiro em cruzeiro, até á grade do cemiterio. Pelo Natal, ao terminar a missa da festa, toma do altar a ingenua e rosada imagem de um pequeno Jesus rechonchudo, de refeguinhos nos artelhos e nos pulsos, e ao som da gaita de folle, passeia-o sob um chuveiro de beijos humidos e repenicados por entre as broas de pão podre, os cabazes d'ovos e os casaes de capões, que atravancam a passagem por entre os fieis ajoelhados na nave. Nos dias ordinarios engrola a missa das almas ao romper do dia n'um latim abreviado, mastigado á pressa, e vae podar as cepas, sachar o cebolo, enxertar os limoeiros ou caçar as perdizes, palmilhando o monte, saltando vallados, e regressando a casa ao toque das Ave-Marias, com os perdigueiros adeante, a espingarda na bandoleira; dando as bôas noites para a direita e para a esquerda ao atravessar a aldeia; batendo no hombro aos homens, beliscando na cara as raparigas, com a boa jovialidade carnal do seu velho confrade de Meudon o reverendo Rabelais. * * * * * O padre de sala grassa principalmente na aristocracia das cidades, cujas casas frequenta por um resto de tradição antiga nas familias nobres, onde o capellão era de rigor nos accessorios da _mise-en-scene,_ como o boleeiro, o creado de farda e a preta. As meninas nobres, que hoje lêem o _Figaro_ e os romances de Daudel, não tomam completamente a serio essa reliquia heraldica. O padre da casa é para ellas um simples utensilio de caracter profano, recreativo e caturra. Troçam-o como um grotesco inoffensivo, e utilisam-o como um serviçal de sexo neutro, collocado na serie zoologica da herilidade entre a creada de quarto e o homem. Encarregam-o de certas compras raciocinadas, que não sabe fazer um simples moço de recados sem o curso dos seminarios. É o padre que vae ao Seíxas buscar as lãs para bordar, segundo os matizes da amostra, que leva o bracelete a compor ao Leitão, e o _chignon_ para frisar ao Godefroy. É elle que acompanha ás lojas de dia e ás visitas sem cerimonia á noite. Leva os agasalhos; ajuda a vestir os paletots, ata os sapatos cujas fitas se deslaçam no caminho, e paga os bilhetes do americano com dinheiro que se lhe fornece para isso. Não está persistente n'uma só casa, como nas antigas capellanias. Anda aos dias. Aos domingos vae jantar a casa das F., onde serve ao croquet ou ao lawn-tennis no jardim, e onde marca as carambolas no bilhar á noite. Ás segundas feiras chaperona a lição de desenho das meninas S. Ás terças acompanha a viscondessinha de X ás suas devoções a S. Luiz e a outros logares. Ás quintas dão-lhe chá preto e pão torrado com manteiga para ir fazer perna ao wihst da velha baroneza de P. Aos serões, em torno do candieiro, depois de despejado o saco das mexeriquices que traz das casas d'onde vem, vê as gravuras das Illustrações, ou dorme. As meninas procuram ás vezes arrancal-o ao torpôr da sua digestão ou da sua ignorancia, ambas egualmente crassas: --Padre José, esperte! não se faça ainda mais mono do que é; scintille para ahi um boccado; tenha faisca, ainda que seja em latim, ou em canto chão! E perante o olhar d'elle, esbugalhado, vermelho, attonito, ellas, em inglez, umas para as outras, picando o _crochet:_ --Cada vez mais bruto! uma lastima! um cumulo! Quem precisa de padre e o não tem á mão, pede-o emprestado, como se pede emprestado ao visinho um alicate ou um martello. Sophia, que está em Cintra, escreve para Lisboa a uma amiga: «Resolvemos abrir duas portas na sala de jantar sobre o jardim. Preciso d'olheiro para os operarios. Cede-me Padre Antonio por oito dias. Dá-lhe dinheiro para o omnibus e manda-m'o ámanhã sem falta.» Ás vezes o padre de sala dosapparece por algum tempo da circulação, posto na escada com a respectiva bagagem,--uma camisa, um pente, dois pares de piugas embrulhadas n'um jornal--, e uma pontuada de bengala nos rins em estimulo de velocidade para a porta da rua. Alguém á noite pergunta: --Que é feito do padre João? E o dono da casa, levantando os olhos do jornal que lê a um canto, responde lentamente: -Mandei-o rinchar para as lesirias. Começava a achar-se folgado de mais para se continuar a ter á argola. É o que lhe fiz sentir esta manhã por meio de uma ligeira admoestação corporea. --Mas o physico do sacerdote é inviolavel é sagrado! --Por isso tambem não foi pelo lado _cruzes_ que eu o admoestei, foi pelo lado _cunhos_. * * * * * De resto, entre as familias dislinctas de Lisboa, quando alguem quer casar-se, confessar-se com decencia, ou receber soccorros espirituaes para morrer com elegancia, vae aos Inglezinhos ou manda pedir a S. Luiz dos Francezes a visita do reverendo Abbé Miel. O padre extrangeiro tem sobre o padre indigena a vantagem de não se haver abandalhado nas eleições, de não ir para a plateia de S. Carlos applaudir a opera e dizer graçolas ás senhoras suas confessadas, que estão nas bancadas ao pé d'elle, de não andar pelas casas particulares com as piugas e com as fraquezas embrulhadas em papeis, e de não misturar nunca--a não ser no sigillo do sanctuario--o bacalhau norueguez do preceito abstinencial com o lombo de porco da carnalidade gentilica e pecaminosa. Alem do que como vêm feitos de fora, não consta na confidencia dos lisboetas nem nas revelações mais desabotoadas das villegiaturas de Cintra ou de Cascaes qual a especie de pau de larangeira com que elles foram manufacturados. * * * * * Apesar porém de todas as apreciaveis inferioridades que tão vantajosamente recommendam os clerigos lusitanos á estima e á tranquillidade dos partidos liberaes e dos chefes de familia, vemos que, apenas quatro padres annunciam um dos seus _meetings_ ao eterno, logo oitocentas senhoras, duzentas por padre, acodem a engrandecer essa manifestação com o effeito scenico dos seus encantos. Que os revolucionarios obtenham outro tanto, se são capazes! Confronte-se, por exemplo, o Club Gomes Leal com a sacristia dos condes de Castello Melhor. Que contraste! Esse club reunirá facilmente nas suas sessões todas as gravatas vermelhas do partido e todas as blusas do bairro. Emquanto aos logares reservados ás damas, será mais difficil prehenchel-os. Logo que D. Angelina Vidal haja tomado assento na assembleia, a commissão encarregada de conduzir as senhoras ao sanctuario da poesia revolucionaria poderá tirar as luvas, accender os cigarros e desabotoar os colletes, que não terá mais ninguem para conduzir. A razão d'este phenomeno significativo é que os padres e os padristas, por menos espertos e menos habeis que sejam, têem por baixo de si a levantal-os mais alto do que todos nós, oito seculos de talento, de discussão e de controversia, que fizeram da theologia o maior dos monumentos do espirito. Os seus doutores, os seus martyres, os seus heresiarchas e os seus apostatas representam no dominio do pensamento o triumpho mais maravilhoso d'essa grande força chamada o estudo. A antiga tradição, a auctoridade consagrada, o respeito adquirido, trespassado pela heriditariedade de geração em geração, torna hoje facil o officio de continuar a manter nas consciencias os habitos do respeito e a pratica da devoção. O mal dos revolucionarios na propaganda moderna consiste no grave erro de suppor que se pode ir para livre pensador assim como geralmente se vae para padre, isto é, por simples estupidez. Ora ser padre quando se não tem cabeça para ser qualquer outra coisa mais util, é corrente, é commodo, faz arranjo ás familias com filhos tapados para contas, e não tem perigo nenhum. Na Egreja quem não sabe outra coisa diz missas. Na Revolução quem não sabe mais nada diz asneiras. Essa é a differença. As mulheres, que em geral não conhecem os chefes da Revolução, assim como tambem não conhecem os da Egreja, que nunca leram Diderot nem Proudhon nem Michelet, como egualmente não leram nunca S. Paulo nem Santo Agostinho nem S. Thomaz, obrigadas a examinar pelos caracteres inferiores e a escolher pelos elementos subalternos, preferem a missa, e fazem bem. Na incapacidade, bem como na pornographia, o latim attenua. O erro dos padres nas suas relações com o seculo--pedimos licença para lh'o dizer--está unicamente em tentarem ainda algumas vezes exprimir-se em vulgar. Para prestigio da classe e decoro d'elles, aconselhamos ardentemente a suas excellencias o uso exclusivo das lingoas mortas,--convindo porem exceptuar de tal numero o latim de Molière, pois consta haver alguns velhos latinistas que ainda entendem esse. * * * * * Saraiva de Carvalho era possuidor de uma cabeça distincta das de todos os demais estadistas monarchicos do seu partido pela circunstancia extra-conservadora e extra-parlamentar, pela circumstancia verdadeiramente tumultuaria, excepcional e incommoda de ter algumas ideias dentro, de as cultivar e de procurar algumas vezes, ainda que debalde, transformal-as em obras. Á dynastia brigantina prestara este pensador o mais relevante serviço, lembrando um dia que as formas vigentes de governo se poderiam vir a substituir pondo-se escriptos no palacio da Ajuda. Era esse o meio mais engenhoso e ao mesmo tempo o mais seguro de perpetuar para todo sempre a localisação da familia dos actuaes inquilinos na desagradavel madrepora de principes a que serve de jazigo aquelle notavel edificio. Pois é evidente que, posto esse casarão a alugar, com escriptos, com annuncios; e ainda com premios animadores ás agencias de casas baratas, ninguem absolutamente no mundo tomaria de renda tal predio, assas desconceituado no publico pela falta de commodos que offerece para habitação, de familia, pelos maus cheiros que n'elle grassam, pela enorme melancolia mesenterica que d'elle transsuda e pela aterradôra quantidade de carochas e de ratos de cano e de throno, que o infestam, sevandijam e conspurcam. Antonio Rodrigues Sampaio era um escriptor de primeira ordem no meio de um jornalismo onde os escriptores cada vez se vão tornando mais raros. Elle foi um dos artistas que mais gloriosamente serviu a sua patria escrevendo bem a sua lingoa, e foi, além d'isso, entre os homens politicos do seu tempo aquelle que mais altas e mais fortes qualidades de espirito, de coração e de caracter sacrificou ás instituições vigentes. O chefe dessas instituições, no dia do enterro de Sampaio, ia mitigar a sua dôr por essa morte, ouvindo a opera em S. Carlos. No dia do enterro de Saraiva de Carvalho o mesmo augusto principe ia para o Gymnasio ver o atirador Paine quebrar globos de cristal a balas de pistola. Comprehende-se a angustia profunda que assim impelliu o primeiro cidadão portuguez a procurar nos interessantes phenomenos da balistica expostos por um pellotiqueiro impavido, ou nos falsetes garganteados por um tenor delambido, uma justa e equitativa compensação á perda dos mais illustres dos seus compatriotas. Referindo as circumstancias funebres d'estes obitos, a historia dirá: _A familia dos mortos pediu desculpa de cumprimentos, e el-rei pediu «bis» ao tenor Gayarre,--uma e outra coisa devida ao estado de consternação em que todos se achavam_. E os prosteros, ao lerem esta pagina commovedora, verterão lagrimas de enternecimento sobre esse testemunho eloquentissimo da delicadeza profunda de tão excelso quão sensivel principe. * * * * * Se não receassemos profanar a dôr tão intima e tão sincera do soberano, se não temessemos alancear, inopportunos, o seu extremoso coração, tão manifestamente envolto em luctuosos crepes na occasião presente, nós ousariamos formular humildemente uma debil pergunta: Julga sua magestade que, assim como os principes têem coração, o não têem os povos egualmente? Quando, em vez das testas communs e opacas, são as fulgidas e rutilantes testas coroadas, as que Deus, levantando-se respeitoso para esse effeito do alto do throno celestial, resolve com a devida, consideração chamar ás alturas, a fim de as fixar com a demais brilhanteria no interessante museu da Via Lactea,--julga por acaso Sua Magestade que n'esses pomposos lances, não choram tão dolorosamente os subditos pelos seus bons reis como os reis choram pelos seus bons subditos? Cuida Sua Magestade que não nos faz tão grande mossa o baque de um grande principe que ha por bem fallecer, como a que em sua magestade faz a queda de um honrado cidadão que morre? Oh! mas que Sua Magestade se digne de nos fazer essa justiça:--é perfeitamente a mesma coisa! Que Sua Magestade o queira ponderar perante o afflictivo transe por que acaba de passar o seu coração generoso e paternal! Quando o sino grande da Sé badala o dobre supremo dos obitos reaes, quando as molas dos regios coches inclinam a orelha tetrica sob as gualdrapas funerarias dos solemnes sahimentos, quando os escudos das quinas se quebram no marmore dos monumentos ao som cavo de uma voz que proclama--_Real, real, real, por el-rei de Portugal_,--a alma do povo póde bem, como a do principe em lances correlativos, precisar, para o fim de não succumbir á intensidade da dôr, de appelar então por seu turno para os santos balsamos que escorrem das cavalletas das operas e das proezas do tiro ao alvo. * * * * * Ousamos por tanto esperar, submissos e confiados, que--tendo em vista, os dolorosos e excruciantes paroxismos que póde attingir a saudade, tanto no coração do povo, como no coração dos principes,--sua magestade se digne de mandar sem demora revogar a lei dura e deshumana que por occorrencia dos obitos de pessoas reaes manda vedar ao corrente pranto das gentes o lacrimatorio dos divertimentos publicos. * * * * * A policia, tomada de um d'esses accessos de zelo intermittente que ás vezes acomette esta veneranda instituição, acaba, de assaltar varias casas de batota em Lisboa, no Porto, na Povoa de Varzim e em Vizeu. Todas essas diligencias se fizeram com grande exito. A policia foi pé ante pé, como o côro dos carabineiros nos _Bandidos_ de Offenbach, e deu em cheio nas maroscas, capturando os jogadores e apprehendendo os baralhos, as roletas, a mobilia da casa, o dinheiro da banca e o dos parceiros. O _Diario do Governo_ d'ontem traz a este respeito uma portaria de louvor, na qual o ministro do reino, em nome de sua magestade el-rei, elogia a policia pelo bem que andou, não só capturando os jogadores, mas--como muito bem acrescenta a portaria--apprehendendo outro sim _algum dinheiro e mobilia._ Como bons subditos fieis e amantes, folgamos de veras com a satisfação intima e cordial que sua magestade el-rei houve por bem experimentar e redigir em prosa official, ao ver os reditos do Estado felizmente acrescentados com algumas cadeiras e alguns cobres, agilmente surripiados pelos representantes da lei a viciosos cidadãos, improvidos e desapercebidos. No Porto o zêlo policial n'esta diligencia chegou ao ponto de emboscar nas ruas os esbirros para prender os jogadores no acto de entrarem para as jogatinas. Não pretendemos julgar o ponto de vista das auctoridades constituidas sobre o assumpto _batotas_, porque estamos convencidos de que essas auctoridades, morigeradas e pudibundas, não foram nunca ás casas de jogo, o que as desarma de toda a habilitação precisa para se poder discutir com ellas sobre esta questão. * * * * * O que escreve estas linhas esteve pela derradeira vez n'uma batota, em S. João da Foz, ha coisa de vinte annos. A espelunca achava-se estabelecida no lindo _cottage_ do Mallen, na Praia dos Inglezes, com um terraço sobre o mar e a entrada pela rua da Senhora da Luz. No meio do grande salão de baile estava armado o jogo sobre uma vasta mesa de pano verde illuminada do tecto por um lustre. Em torno da mesa achava-se reunida a parte masculina da melhor sociedade do Porto e da provincia do Douro e do Minho a banhos na Foz, uns, junto da mesa, sentados, outros em pé por traz d'esses, formando tres ou quatro circulos concentricos. A um topo da mesa um cavalheiro esqueletico, de faces macilentas, adornado de uma longa pêra grisalha, puxava para junto de si por meio de uma pequena rapadeira de mogno polido, em fórma de ensinho, o dinheiro das paradas espalhado no panno verde, e pagava a importancia das apostas. Defronte d'este prestavel individuo, no outro topo da mesa, um cavalheiro, mais gordo, ainda que não mais solicito, e de aspecto egualmente veneravel, punha as cartas na mesa com mãos finas, particularmente bem tratadas e realçadas por dois bellos cachuchos em que scintillava um olho de gato e um rubi. Informei-me da regra do jogo com as pessoas respeitaveis e fidedignas que tinha mais proximo de mim. Eis a regra: Tiravam-se do baralho duas cartas, que o homem das mãos finas collocava na mesa ao lado uma da outra. Lá estava, por exemplo, o trez de espadas a um lado, e o rei de copas ao outro. A gente escolhia, para apostar por ella, a carta que queria, e collocava-lhe ao lado o preço da aposta. Depois do que, ganhava o rei ou ganhava o terno, segundo era um rei ou um terno d'outro naipe a primeira d'essas duas cartas que em seguida sahia do baralho. Devo dizer, á face de Deus e dos homens, que nunca em minha vida me expuzeram negocio que se me figurasse mais intelligivel, mais recto e mais claro! Algumas vezes tenho tido que pedir aos diversos poderes do Estado alguns esclarecimentos á cerca do jogo do machinismo administrativo, e cumpre-me dizer, sem com isto pretender desgostar ninguem, que jamais das regiões officiaes recebi informações tão lucidas e tão leaes como aquellas que sobre as leis do Monte me foram cavalheirosamente ministradas na apreciavel batota a que me refiro. De um só relance e em meio minuto comprehendi o problema todo com uma profundidade maravilhosa, e, sem perda de mais um instante, tirei 100$000 réis que tinha n'uma algibeira e colloquei-os pressuroso sobre o trez de espadas que se achava na mesa. Telintaram libras, de parte a parte, postas pelos circumstantes para a direita ou para a esquerda das cartas. O homem da pá de mogno polido, erguendo para o meu lado o bico da sua pêra grisalha, perguntou-me, indicando o meu dinheiro: --Mata o rei? Ao que eu respondi denodadamente e com voz firme: --Mato-o, sim senhor! Esta phrase pareceu fazer uma certa impressão no auditorio. Houve um silencio. Um desembargador da relação do Porto, ancião de oculos d'ouro e de grande calva sacerdotal, retirou com gesto adunco de cima das cartas 3$000 que tinha posto. O cavalheiro das lindas mãos tossiu ligeiramente, voltou o baralho, e principiou a extrahir com lentidão as cartas, a uma por uma, do masso que comprimia nos dedos. A quarta ou quinta figura estrahida era o rei de espadas. Eu tinha perdido os meus 100$000 réis. Ganhava-os precisamente um illustre professor da Escola Polytechnica, que fizera contra o terno uma parada egual á minha. Esta decisão da sorte--eu o confesso--não me regosijou senão de um modo bem caracteristicamente mediocre. Resolvi porém interrogar mais algumas vezes o acaso, e perdi consecutivamente quanto dinheiro tinha no bolso, ou fosse a importancia de perto de meio anno de collaboração n'um jornal americano,--somma recebida n'esse mesmo dia. Fiquei na batota até pela manhã. Por uma janella aberta sobre o terraço a luz côr de perola da madrugada entrava humedecida e salgada pela viração maritima. As banheiras, filhas e moças da Maria da Luz, armavam as barracas na praia, cantando ao longe em terceiras, n'um côro argentino de sopranos, uma barcarolla local. Os primeiros pregões matutinos dos vendilhões ambulantes penetravam do lado da rua pelas fendas horisontaes das gelosias, que o clarão da manhã pautava luminosamente d'azul. Na sala esvasiada de gente oscillava ainda, esfarrapado, o ar quente da noitada, impregnado do fumo do tabaco e dos cheiros acres do suor e da cerveja asedada no fundo dos copos dispersos no balção do buffette. O chão estava alastrado de lama secca, de pontas de cigarros que a saliva enodoara de amarello, e de charutos mordidos e mastigados raivosamente pelos pontos. O homem das bellas mãos aristocraticas tinha as unhas orladas de preto e o collarinho esverdinhado de transpiração. O cavalheiro da pêra tivera com o romper do dia um accesso de tosse, e depois de haver durante a noite cuspinhado tudo em torno da alta cadeira de braços em que estivera sentado, procurava ainda, ao que parecia, escarrar mais, com os olhos injectados de sangue, as faces escaveiradas, as mãos febris, o dorso curvo, o peito concavo, sacudido pelas convulsões da bronchite. A um canto da casa, sentado n'uma cadeira e cahido de bruços para cima de uma pequena mesa a que tres batoteiros, associados nos lucros da banca, tinham passado a noite jogando o honesto e execravel voltarete, ficara esquecido um janota de calças côr de flôr de alecrim, botinas de polimento, luvas azues e fraque côr de pinhão feito no Pereira Baquet. Julguei-o adormecido, e chamei-o, tocando-lhe no hombro, para me não ir d'ali embora sosinho. Era um rapaz que eu conhecia da praia e da Cantareira. Chamavam-lhe o Chico ... não me lembra já de quê. Tinha dezesete ou dezoito annos, era filho de um lavrador rico da Regoa, e estava a banhos na Foz, hospedado no hotel do Romão, intitulado da Boavista. Quando elle se ergueu da mesa e se poz em pé deante de mim, vi que o misero não tinha estado a dormir, mas sim a chorar. A sua physionomia loura, estupida, linda, ornada de um pequeno buço, de um signal cabelludo na face e de dois bandós côr de ouro anediados pelo melhor cabelleireiro da rua de Santo Antonio, exprimia uma consternação tão profunda, tão ôcca, tão francamente imbecil, que desde logo me atrahiu para elle com uma compaixão verdadeira. Agarrou-se ás primeiras palavras que lhe disse, como um afogado se agarra á primeira cousa fluctuante que passa por elle, e momentos depois o bem parecido e elegante moço vertia no meu peito as suas doloridas confidencias. Seu pae, homem austero e de pulso, cheio de severidade no caracter e de cabellos crespos no interior das orelhas, tinha-o incumbido de cobrar de um negociante de vinhos de Villa Nova de Gaya a importancia de uma letra no valor de 1:600$000 réis. Era d'esta quantia, recebida tres dias antes, que elle acabava de perder a ultima libra, alem de mais trinta moedas, destinadas a custear o resto dos banhos de mar prescriptos pelo doutor da Regoa para um tumor frio que lhe começara a inchar n'um sovaco. --Meu pae, para coisas d'estas, é uma fera!--explicou-me elle com voz estrangulada. E, tendo descalçado uma das luvas azues, comprimia com mão nervosa o alto da sua pequena cabeça de gallo, apagando da testa n'um repellão o bem feito A formado pelas duas curvas divergentes dos bandós. --Como assim!--lhe respondi eu. Pois o meu amigo tem a fortuna inapreciavel de possuir um pae fera, e ainda hesita um momento sobre o que lhe cumpre fazer nas funestas condições em que se acha?... Saiamos lá para fora! Saiamos com pé expedito e rapido d'esta caverna, que até me está a affligir o ter de profanar o nome sagrado do seu veneravel progenitor, proferindo-o perante a pêra cavilosa e obscena d'aquelle tisico, malandro em terceiro grau, que além diviso envesgando para nós os olhos torvos! --Cão!--disse o Chico n'um bramido cavo, abrindo para essa palavra um parenthese no assumpto principal da nossa conferencia, e estendendo da porta da rua o punho cerrado e terrivel para o cerro em corcova do cavalheiro da pêra, que continuava a tossir arrimado a uma padieira da janella. E, uma vez ambos na rua, eu prosegui, reatando o fio do discurso: --Depois da camelice tremenda que fez, desviando dos interesses agricolas das nossas regiões vinhateiras a quantia de réis 1:600$000, para os entregar á nefanda tavolagem, que mais pode appetecer o meu bom e desregrado amigo do que uma d'essas monumentaes sovas, com que os rispidos anciãos, de ouvidos cerrados á misericordia pelo mau genio e pelo muito cabello, costumam assignalar para o respeito dos vindouros os diversos membros da sua prole? Qual coisa mais saudavelmente efficaz para o restabelecimento normal do seu equilibrio nervoso, no momento presente, do que a applicação lombar da bengala de um antepassado, ou a justaposição da abençoada sola e vira de uns bons sapatos paternos ás partes carnudas do seu organismo apostemado pelo estupido remorso da mais colossal e irremediavel asneira?! Aqui estou eu, que matei esta noite o rei.....Não sei se o snr m'o viu matar?... Matei-o como quem mata um pôrco.....Craque! Pois bem; sabe por quanto me ficou esse regicidio? Ficou-me por 176$000 réis. A recordação amarga d'este luctuoso successo converte todo o meu ser n'uma insondavel cloaca de semsaboria, e só uma felicidade invejo: a que se antolha ao meu amigo na doce perspectiva de poder encontrar quem lhe ponha os ossos n'um feixe. --Pois olhe--exclamou o Chico arregalando para mim os olhos illuminados de um repentino jubilo--dou-lhe a minha palavra d'honra que tambem a modo que me está a appetecer isso, a mim! E trocadas entre nós estas profundas e memoraveis palavras, remergulhamos em intimas e silenciosas cogitações, eu e o Chico. Ao longe o duro bronze, a que os espiritos despreoccupados e felizes dão vulgarmente o nome galhofeiro de sino, tangia seis horas. Damas encapuchadas em rendas de lã desciam de suas mansões á praia para se entregarem aos exercicios balnearios, emquanto outras, mais madrugadoras ainda, volviam da praia a suas mansões, com narizes arrebitados e vermelhos, avidas de pão quente com manteiga e de café com leite. Duas horas depois o meu amigo partia para a Regoa, onde seu extremoso pae, prevenido pelo telegrapho, o esperava, no alto dos Padrões da Teixeira, de braços abertos e um marmeleiro em cada braço. Eu voltava taciturno a refazer com tardigrados e arrastados folhetins a somma que o vil e mercenario ensinho do Pêra Tisica n'essa noite desviára de seu natural destino para fins que a meus olhos tinham de ficar para todo o sempre velados pelo mysterio. * * * * * Tal é, em sua natureza e em seus effeitos, a simples coisa chamada batota! Temos visto do jogo muitas e mui variadas definições. A unica, porém, que inteiramente nos satisfaz é a seguinte: O jogo é uma asneira. Reduzida assim a questão aos seus verdadeiros termos, não podemos deixar de perguntar ao governo com que direito elle intervem para o fim de castigar as asneiras em que cada um incorre? Procurar evital-as ainda se lhe poderia permitir, mas punil-as!? Se tivessem de ser presos todos aqueles que fazem asneiras, o proprio governo seria uma coisa impossivel, porque ha muito não haveria ministro nenhum que andasse solto. E, por cima de tudo, procuram ainda impingir-nos a explicação sophistica de que é para o fim de salvar o povo da ruina que a policia maternal assalta e sequéstra as batotas! Ora sempre quero que me digam, no caso pessoal que acima narrei, se eu teria perdido menos do que perdi, dado o facto accidental de terem ido para o rei de Portugal os 176$000 réis que eu dei para o rei de copas? E outrosim quereria saber, no caso que o rei de copas, por meio da sua policia, fizesse ao principe reinante a bonita partida que o principe lhe faz abotoando-se com o que elle ganha, se sua magestade gostaria da chalaça! * * * * * Noticiam de Braga que n'aquella cidade apparecerão brevemente dois novos jornaes, um delles intitulado _Supplicantibus_, e intitulado o outro _Frei Bandalho_. Os dois appetitosos titulos d'esses periodicos bastam para caracterisar bem, em duas unicas pennadas, a elevação intellectual que, não só em Braga como em todo o reino, está presidindo n'este momento á vulgarisação da litteratura jornalistica. Guimarães, Barcellos e Vianna não quererão por certo deixar-se ultrapassar pelos desenvolvimentos literarios do espirito bracarense, e cremos mesmo não ser indiscretos revelando desde já que, estimulados pela mais nobre emulação, os grandes centros intellectuaes do Minho preparam, para concorrer vantajosamente com os novos periodicos braguezes, a apparição proxima d'outros jornaes intitulados o _Reles_, o _Bisborria_ e o _Pulha_. A unica coisa que nos inquieta no meio desta opulentissima exuberancia intellectual é o secreto receio de que, não obstante, os incansaveis esforços empregados para esse fim pelos sabios estadistas gerentes da educação nacional, venham por ventura a escacear um dia, para fazer face com suas auctorisadas pennas a um tão vasto labor mental, os escriptores borra-botas, os troca-tintas e os manécôcos indispensaveis para o caso. * * * * * S.ex.ª o snr Luiz Jardim, professor de direito na Universidade de Coimbra e genro do capitalista Lopes dos Anjos, acaba de dar o nome de _Rosalia_ a uma creança de quem foi padrinho. Um jornal, interprete dos altos sentimentos do snr Luiz Jardim, diz que s.ex.ª escolhera este nome «por elle ser o de uma illustre dama portugueza que floresceu em meiados do seculo XVII.» Inclinemo-nos com reverencia! Elle poz-lhe o nome de Rosalia.... Tornemos a inclinar-nos! E poz-lh'o, porque esse foi o nome de uma illustre dama portugueza dos meiados do decimo setimo seculo..... Prostremo-nos por terra! * * * * * D. Guiomar Torrezão, do _Diario Illustrado,_ dedilhando com mão d'anneis n'aquella folha o cavaquinho da critica amena, diz-nos o seguinte: «Já alguma vez experimentaram a impressão que se sente entrando-se em um boudoir, em uma especie de _bonbonniere_ capitonada de setim azul, impregnada de ixoria, mergulhado em uma meia luz mysteriosa, peneirada por umas cortinas de renda suissa, com arabescos de flores caprichosas e aves raras, de plumagens ondeantes, e ouvindo-se ahi, com as palpebras semi-cerradas e a cabeça enterrada em uma almofada de setim macio e luminoso, um nocturno de Chopin, que vem de longe em longe, evolando-se das teclas de um piano ou das cordas gementes de um violoncello, pousar-nos no ouvido um longo beijo feito de melancolias, vagamente sonhadoras e de harmonias verdadeiramente divinas?... «E' esta mesma impressão que se experimenta lendo-se os poemetos do conde de Sabugosa.» É talvez ligeiramente complicado, como mobilia, o processo critico de D. Guiomar. Uma vez, porem, que elle dá a impressão perfeita da obra de um tão sympatico poeta como o conde de Sabugosa, parece-nos que vale a pena de experimentar.... De resto consta-nos que o armador Alcobia se encarrega do fornecer por preço modico todos os trastes precisos para a comprehensão das differentes obras poeticas, havendo peneiras de renda suissa para todos os preços, já em flores caprichosas, já em plumagens ondulantes, a todos os gostos d'horta ou de capoeira. O mesmo Alcobia se incumbe egualmente de inculcar pianista idoneo para massacrar ao longe os nucturnos de Chopin emquanto o freguez estiver com a cabeça enterrada na almofada de setim phosphorecente. Se, ainda depois de enterrado na almofada, e collocado o pianista ao longe, o paciente se queixar de não desfructar sufficientemente a musica, Alcobia, sem por isso exigir augmento de remuneração, facultará duas buxas de algodão em rama para se lhe introduzirem nas orelhas. Folgamos de veras ao ver assim tão harmonicamente alliadas em proveito da poesia lyrica as duas importantes industrias de fazer critica nos jornaes e de pôr cortinados da Suissa nas casas. * * * * * Entre os mimosos e ricos brindes offerecidos a Leopoldo de Carvalho na noite da sua festa artistica no theatro do Gymnasio, lêmos no _Diario de Noticias_ que sobresahiam em primeira linha dois formosissimos quadros devidos á pericia de uma joven menina da nossa melhor sociedade e feitos de escamas de corvina. Tambem folgamos muito com isto. Em todas as exposições de quadros celebradas nos principaes centros artisticos do mundo durante este derradeiro quarteirão do seculo, se notava com lastima geral que o simples oleo, a tinta de aguarella, o lapis e o esfuminho, eram elementos insufficientissimos para com elles se constituir o quadro a toda a altura das enormes exigencias da esthetica contemporanea. A joven admiradora de Leopoldo, lançando mão genial das escamas da corvina e arrojando-as valorosamente á tela, vem prehencher uma lacuna immensa nos recursos até hoje tão estreitos das artes do desenho. Gloria eterna a tão benefica e prestante menina, honra da patria e do peixe fresco, alegria de seus carinhosos paes, e satisfação completa de suas boas mestras! Nada mais lisongeiro para um luso, em face dos tremendos esforços de processo empregados pelos artistas modernos em lucta com a invencivel perfeição, do que ver essa joven compatriota, inspirada do alto, apartar-se repentinamente da grande legião dos atormentados, empunhar a faca de amanhar o peixe, cahir sobre a corvina, empolgal-a pelo rabo, e escamar em seguida duas obras primas sobre os laureis do festejado actor Leopoldo! Só nos resta agora, para inteira consagração d'este grande facto artistico, que D. Guiomar, empunhando mais uma vez o luminoso facho da critica, nos queira dizer de que côr é que devemos capitonar as casas e que peça de musica temos de mandar tanger por Macario, para o fim de bem nos compenetrarmos das impressões que são chamados a produzir nas organisações accessiveis á comprehensão do bello os novos effeitos estheticos introduzidos no sublime pelas escamas dos peixes. * * * * * Antes d'hontem, 3, nova rusga ás casas de jogo. Em uma batota assaltada, cincoenta jogadores presos, e cincoenta mil réis aprehendidos. O _Correio da Noite_ refere sobre este assumpto que na batota alludida se não jogava depois de algum tempo a esta parte com receio de uma visita policial. A policia porem, com a mais louvavel lisura, fez correr no bairro o boato semi-official de que não havia mais rusgas ás batotas. Os jogadores então, julgando-se ao abrigo carinhoso e paternal da lei, reuniram-se outra vez, a policia vigilante cahiu-lhes em cima, e batoteou-se a si mesma, em nome de el-rei, com todo o dinheiro que empalmou do bolo. A opinião mostra-se satisfeita com este exemplar procedimento da policia, que anima sagazmente os mal intencionados á pratica do crime para o fim politico de pechinchar com os resultados pecuniarios d'elle. E os jornaes continuam a chamar _uma rusga_ a cada uma d'estas diligencias destinadas a reprimir o vicio funesto da tavolagem. Se os jornaes conhecessem melhor a technologia dos jogos de parar, não chamariam a estes lances _uma rusga_; chamar-lhe-hiam--mais propriamente--uma _vacca_. * * * * * Os jogadores até hoje presos teem sido todos condemnados;--coisa que naturalmente produz nas massas um saudavel terror, levando-as ou a não mais jogarem senão nas batotas officiaes, como a Bolsa, a Loteria e as Eleições, ou a jogarem mais reconditamente. Para não desmamarem os povos, violentamente de mais, da saborosa pratica dos crimes a que elles, coitadinhos, estão habituados, os tribunaes, implacaveis com o jogo, mostram-se benignamente contemporisadores com outros erros menos funestos á moral e ao proximo do que o manejo dos baralhos. Ha dias, por exemplo, foi carinhosamente absolvido um cavalheiro que tinha arrancado um olho da cara a uma mulher. O juri tomou em consideração as circumstancias attenuantes que revestiam esse pretendido crime, ou, para que melhor o digamos, _innocente gracejo_. O juri attendeu principalmente a este facto, que não póde deixar de inspirar a mais profunda piedade a todos os corações ternos:--aquelle a quem por um momento pedimos venia para chamar _reu,_ se assim nos é licito exprimir-nos, amava aquella a quem tirou o olho. O movel do crime,--digo--o movel da pilheria, de que o innocente é accusado, foi o amor que lhe inundava o peito. Ai d'aquelle que nunca amou! esse é um bruto, que jamais deverá ser chamado a resolver questões d'olhos. Os que uma vez amaram esses comprehenderão bem todos os thesouros de ternura que trasbordaram da alma do anjo supracitado, ao praticar o acto que o levou, incomprehendido, á barra dos tribunaes humanos. O cherubins do empireo! sacudi sobre o nosso tinteiro as asas candidas e luminosas, para que com uma das vossas pennas possamos pintar a scena que entre esses dois amantes se passou! O cavalheiro principiou naturalmente por pedir á sua doce amada que ella mesma lhe desse o ôlho, em prenda, ou em troca talvez, por um de vidro. Ella responderia primeiro por uma timida recusa, entre reprehensiva e ironica: --Ora, para que queres tu o ôlho?... Importas-te tu bem com o meu ôlho! se me amasses, sim, comprehendo que quizesses um ôlho meu, o ôlho da tua Bébé, para o pôres n'um medalhão. Mas oh! tu não me amas.... --Ah! eu não te amo? Eu é que te não amo?! Eu é que te não quero um ôlho para um berloque?!... Ora espera, que já te mostro se te adoro ou não! E, em seguida, por um d'esses actos de paixão profunda que muitas vezes transformam o homem n'um deus, o cavalheiro abriria um canivete e, delicadamente, apoderar-se-hia do ôlho da creatura. Oh! amor!... amor! Um jornal pareceu não saborear competentemente toda a doçura d'este breve e delicioso idyllio, opinando que deveria ser condenmado á cadeia um malandro tão garantidamente bestial como mostrava ser para o dito jornal o serafim a que nos reportamos. Um dos membros do juri dirigiu á folha alludida uma bella carta patenteando as altas razões juridicas que os levaram, elle e os seus collegas, a absolver o colleccionador d'olhos, cujo amor se debatia em juizo. Diz o jurado: _Se o reu houvesse sido condemnado, teria isso por ventura restituido o ôlho á queixosa?_ Nós já acima nos prostramos no chão junto ás plantas eruditas com que o Dr. Luiz Jardim palmilha as veredas historicas percorridas no seculo XVII pelas damas illustres. Outra vez nos vemos agora forçados a estender-nos ao comprido. Sempre que personagens d'este quilate apparecem ao critico, a restricta obrigação d'este é por-se de rôjos. * * * * * Na sessão inaugural do novo centro legitimista, ultimamente fundado na cidade de Braga, o mui ardente ecclesiastico snr Senna Freitas, terminando um enthusiastico discurso, tirou do seio uma bandeira branca, e n'um rapto de eloquencia obrigou todos os assistentes a jurarem sobre essa bandeira fidelidade eterna ao legitimo rei snr D. Miguel de Bragança Junior. Referindo este facto o _Diario de Noticias_ accresccnta, reprehensivo e severo, que «não se devem fazer comedias partidarias com a independencia da patria.» Julgamos do nosso dever pacificar o justo melindre patriotico do _Diario de Noticias_, affirmando-lhe que depois de haver desfraldado do seio a bandeira branca sobre que se fez a jura, Senna--como consta por pessoas fidedignas--se assoou commovido a essa mesma bandeira. Pelo que se veio a descobrir que ella era unicamente um lenço. Pela parte que nos toca não podemos deixar de applaudir absolutamente a attitude firme e energica que o reverendo Senna assumiu no gremio do venerando partido legitimista, levando pela persuasão oratoria os seus correligionarios politicos a acceitarem como symbolo sacrosanto das suas crenças o moderno lenço d'assoar, em vez de continuarem a seguir servilmente as tradições partidarias da velha côrte toireira e cavalhariçal de Queluz; onde, entre os amigos intimos do snr D. Miguel I, taes como o picador João Sedvem e o caceteiro José da Policia, exigia o uso que nem os juramentos nem os defluxos se depozessem jamais sobre outro qualquer symbolo que não fosse unicamente a mão de cada um. * * * * * Na casa Cordeiro, ao Chiado, leilão de louças, de antiguidades e do moveis artisticos. Tentámos adquirir n'essa venda um espelho com moldura de faiança portugueza e dois bules francezes, stylo da China, em ramagens azues sobre fundo branco. Estes dois lotes foram-nos arrebatados por um licitante mais forte, o qual soubemos, mais larde ser um agente de sua magestade a rainha, encarregado de comprar por conta d'aquella augusta senhora. O negro despeito pela privação dos referidos objectos obriga-nos ao desafogo de alguns commentarios. * * * * * A tendencia geral para o bric-à-brac é o grande escolho dos progressos de algumas das artes industriaes n'este seculo. O gosto das mobilias antigas acabou, assim se póde dizer, com a moderna marcenaria artistica. Em Lisboa, por exemplo, todos os entalhadores de talento se fizeram restauradores, atamancadores, renovadores de trastes antigos. Ninguém se dá já ao trabalho de inventar o mais elegante leito, o mais decorativo armario, o mais gracioso sofá. Contentamo-nos, como suprema realisação das nossas aspirações no conforto e na graça da habitação, em metter a roupa branca nas mesmas gavetas em que os antepassados dos outros guardavam os seus calções curtos de veludo de Utrecht, e de fazermos sentar as nossas mulheres nos mesmos canapés em que se entufaram outrora as cabaias e os guarda-infantes das damas contemporoneas do snr rei D. João v. Pelos vestigios que na arte da mobilia deixa da originalidade do seu gosto, o seculo XIX figurará na historia como o seculo--dos ferros-velhos. * * * * * É aos reis que compete attenuar este desdouro, imprimindo nas formas artisticas do seu tempo o cunho esthetico do seu reinado. É isso de resto o que sempre se vê na historia do movel. A cada uma das modificações caracteristicas por que successivamente vae passando a linha e a côr na alfaia dos tempos modernos corresponde invariavelmente o nome de um soberano, desde Luiz XIII até Napoleão I, o qual, apesar de não ter passado nunca em questões de gosto da sua primeira patente de cabo de esquadra, conseguiu ainda assim dar ao mobiliario da sua epocha o typo da mesma emphase cezarea que o imperial _parvenu_ aprendera na convivencia e nas lições do comediante Talma, encarregado de lhe ensinar a traçar a purpura, e do rhetorico Champagny incumbido de lhe fazer os rascunhos dos «improvisos» para as proclamações de guerra. Os trez grandes decoradores Boule, Gouthière e Riesner, cujas obras obtiveram recentemente no leilão do duque de Hamilton os mais fabulosos preços que podem attingir as materias preciosas, eram os fornecedores dos Bourbons, e foi para as residencias reaes de França que elles fabricaram as suas mais delicadas e primorosas obras. O celebre Boule tinha, como se sabe, as suas officinas estabelecidas no proprio palacio do Louvre, onde estava alojado na categoria de fornecedor privilegiado de Luiz XIV. Riesner era, ainda em 1791, um dos fornecedores de Marie Antoinette. Os nomes d'esses principes, refractarios por outros titulos á consideração e á estima do mundo moderno, viverão por muito tempo immortalisados nas collecções democraticas das artes decorativas, alliados á memoria da doce e benefica influencia que exerceram sobre os progressos do gosto artistico, que são ao mesmo tempo os progressos da elevação do espirito e da dignidade domestica do homem civilisado. * * * * * Sua magestade a rainha senhora D. Maria Pia, comprando os seus moveis nos leilões dos seus subditos, em vez de os mandar fazer pelos artistas mais talentosos do seu reino, não se nos figura que esteja no caminho mais directo para que o seu augusto nome chegue a ter um logar proeminente nos futuros annaes do bom gosto. E nada nos punge mais melancolicamente do que a perspectiva do futuro vacuo em torno da influencia esthetica d'esta princeza de uma elegancia tão distincta quanto talvez ephemera. Ficando-nos os nossos dois lotes n'esse leilão e arrebatando-os pela quantia de mais tres tostões e meio com que cobriu o nosso ultimo lance, sua magestade a rainha vibrou, com fina mão ganhosa, o derradeiro golpe, definitivo e mortal, no estremecido prestigio com que a artistica sumptuosidade suprema dos antigos principes se impunha ainda hoje á fascinação dos miseros burgueses enriquecidos. Que os adelos se barbeassem deante das elegantes _psychés_ das Maintenon e das Pompadour, e que almoçassem nas taças _pâte tendre_, das Dubarry ou das Marie Antoinette, coisa era já bem desconsoladora, bem triste e bem dissolvente! Mas, depois do ultimo leilão, em que nós fomos batidos por sua magestade a rainha, o facto é mil vezes mais grave. Porque--comprehendem bem esta _nuance_--agora é a mais distincta, a mais elegante, a mais aristocratica das princezas, que revê os candidos e impolutos arminhos do seu real manto no mesmo espelho a que na vespera fez a barba o Villas! e é a mesma augusta soberana que, descendo do seu throno com a esvelta graça altiva e triumphante de uma Diana vencedora, vae ella mesma tomar o chá no mesmo bule por cujo bico almoçou dois dias antes o Agostinho, da rua do Alecrim!... Oh! minha senhora! minha senhora! * * * * * Despeitados, como naturalmente sahimos do leilão Cordeiro, imaginem se nos daria prazer ou não a noticia da morte violenta e affrontosa de que foi victima o mais bello gato de sua magestade! Escolhido em Paris, expressamente para a senhora D. Maria Pia, pela competencia unica do grande especialista o pintor Lambert, esse gato de, uma belleza e de uma magestade digna dos versos de Beaudelaire, contrahira em palacio uma especie de tinha, que obrigou os physicos da real camara a raparem-o á escovinha. Foi n'esse estado de tonsura, desfigurando o aristocratico animal até o ponto de o fazer confundir com um simples individuo de telhado, que um dos vigilantes e zelozos camareiros de sua majestade, surprehendeu ha dias o interessante enfermo no acto de tasquinhar na copa uma costelleta destinada ao inviolavel almoço do monarcha. Ora todas as pessoas versadas nas praticas da côrte, por mais perfunctoriamente que seja, sabem muito bem que para todos os fins da etiqueta e da devoção ás reaes pessoas, uma costelleta destinada á refeição do principe é absolutamente a mesma coisa que seria o proprio principe, panado, e posto n'um prato com uma rodella de limão em cima, tão real e perfeitamente como estaria no solio com a sua corôa na cabeça e o seu sceptro em punho. O camareiro pois, vendo seu augusto amo tão vil e perversamente mordiscado por aquelle que Lambert escolhera para fins de certo mais abstinentes e mais respeitosos, o camareiro--dizemos--acceso em zelo pela inviolabilidade da real pessoa encarnada na especie eucharistica de costelleta, foi pé ante pé, e, de surpreza, apoderando-se do inimigo pela ponta da cauda, rejeitou-o por uma janella á distancia kilometrica que em todas as monarchias solidamente constituidas deve sempre medear entre o cheiro das saborosas costelletas dos principes e os appetites caprichosos dos gatos das princezas. Bem feito! * * * * * Aquelle que com amargo fel traça estas linhas colericas, movido unicamente pelo baixo despeito de não haver pechinchado n'um leilão um espelho e dois bules, incorre d'est'arte para com a pessoa da augusta soberana em um reprehensivel excesso de ira plebeia. Elle porem se promtifica desde já a ser mais tarde, elle proprio, o primeiro a reconhecel-o e a lamental-o. * * * * * Andámos tres dias sem poder entender bem qual a causa do conflicto entre o governo de sua magestade e Monsenhor Masella, nuncio apostolico e representante diplomatico de Sua Santidade em Lisboa. O rancor de todo o jornalismo, empenhado na critica d'este incidente, diluiu a historia d'elle n'uma tal quantidade de fel verboso que a menção do facto perde-se inteiramente na onda biliosa dos commentarios. Sahiram para este effeito do fundo do velho guardaroupa da rhetorica liberal todos os atiributos empoeirados e carunchosos da indignação classica, e mais uma vez vimos á luz do dia, expostas em andôr, como n'uma procissão solemne, as reliquias venerandas de um stylo de guerra que, desde o tempo ominoso dos Cabraes, suppunhamos definitivamente morto, empalhado, camphorado e recolhido para sempre nas collecções archeologicas. * * * * * «Portuguezes! descendentes d'aquellcs heroicos e sublimes martyres que com tanto sangue implantaram e regaram n'este abençoado torrão a virente arvore da liberdade, ergamos-nos todos como um só homem!--dizem as folhas. Ergamo-nos, sem distincção de campo nem de facção, para sacudir o jugo a que pretende fazer-nos dobrar a cerviz um falso discipulo do augusto martyr do Golgotha, esquecendo que seu mister é todo de paz e d'amor, renegando escandalosamente a doutrina amantissima do Crucificado, calcando a pés os preceitos evangelicos do Redemptor. Cessem n'este momento solemnissimo todas as divergencias que por ventura hajam desunido a grande familia liberal! Unamo-nos todos em amplexo fraternal para quebrarmos as algemas do fanatismo com que anhelam arroxear-nos os pulsos! Unamo-nos para expulsar do templo sacrosanto de Jesus o vendilhão infamissimo, para desafrontarmos, alfim, a religião de nossos paes, a religião de nossas mães, a religião de nossas filhas, a religião de nossas sobrinhas, de nossas tias, de nossas sogras, de nossas primas, senhores, e de nossas cunhadas!--a nossa sublime religião, finalmente, tal como ella é em sua excelsa pureza, que ora vemos torpemente desvirtuada pelo proprio representante d'aquelle mesmo Redemptor, cujas cinco chagas são o mais augusto emblema da bandeira da nação portuguesa!» * * * * * Os jornaes d'hoje, os d'hontem e os d'antes de hontem veem cobertos d'artigos do teor do pequeno extracto concentrado que temos a honra de offerecer ao leitor como ligeira amostra do genero. O periodico legitimista a _Nação_ foi o unico que ousou tomar a defesa do odioso Nuncio, mas o _Diario da Manhã_ d'hoje agarra-se pelas orelhas á _Nação_ e escaca-a com um d'estes artigos que inutilisam o adversario por espaço de seis dias, porque é preciso andar a procurar-lhe os bocados dispersos no raio de uma legoa em redondo para o tornar a pôr em pé outra vez. Imaginem que o _Diario da Manhã_, desde que começou a questão até hoje, se tinha conservado silencioso, a ver correr o marfim. Eis senão quando a _Nação,_ imprudente, se sae com um artigo insolito a dizer que os unicos prelados portuguezes verdadeiramente no espirito de Deus são os tres prelados de Angra, do Funchal e de Gôa. Nós tínhamos lido o artigo da _Nação_ e confessamos mesmo que no primeiro repente gostamos d'elle. Comprehende-se, de resto, a nossa ingenuidade. Como a _Nação_ é geralmente considerada o periodico que mais entende d'esta coisa de bispos--especialidade em que somos completamente leigos--desde que ella affirmou que os unicos bispos bons eram os d'Angra, do Funchal e de Gôa, nós, na boa fé, appressámo-nos logo a tomar nota do documento, e cá ficamos com mais essa informação devidamente registrada para algum dia em que por acaso viessemos a ter precisão de bispos maus para nosso uso. Mas o _Diario da Manhã_, o qual, pelo que se vê agora, é doutorado n'esta materia, e conhece tão bem todos os bispos como nós outros conhecemos os nossos dedos, o _Diario da Manhã_, que, segundo parece, estava calado e á coca, exactamente á espera de que lhe bolisscm com os bispos, apenas a _Nação_ disse que os unicos tres bispos com geito eram os do Funchal, d'Angra e de Gôa, ah! pae do ceu! Nada menos de cinco columnas na primeira pagina do jornal ocupa a desanda tremenda applicada á _Nação_ pelo _Diario da Manhã_ d'hoje! E é preciso lêl-a toda, de principio a fim, essa tunda, para ahi aprendermos a tristissima verdade de que não póde um homem hoje em dia fiar-se em ninguem. Ficamos sabendo agora que os taes tres excelentissimos prelados com que a _Nação_ nos queria espigar como afiançados, são precisamente os peiores de todos! Prelados bons, segundo o _Diario da Manhã_, prelados desenganados, prelados que se podem dar a contento seja para onde fôr, restituindo-se o seu importe caso não agradem, são o bispo de Coimbra, o bispo de Evora e o arcebispo de Bragança. O bispo de Coimbra, sim scnhores! fallem-me no bispo de Coimbra! isso é que é fazenda. Bispo de Bragança, bom bispo tambem: as ovelhas que o levarem irão tão bem servidas como levando o de Coimbra, ou melhor. O arcebispo d'Evora egualmente se lhes garante a todos os respeitos: é gallinha! Emquanto aos outros tres sujeitinhos recommendados da _Nação_ diz o _Diario da Manhã_ que elles não são outra coisa senão os _soldados do exercito das trevas_. Tomo nota, e cá dou ordem que não estou em casa para nenhum d'esses tres melros. Rua, que é a sala dos cães! Para _soldados do exercito das trevas_ bastam-nos os persevejos, escusa-se de bispos. Supponham porém que o benemerito _Diario da Manhã_ nos não prevenia e que eu, por exemplo, ovelha innocente posto que velha e mesmo já um pouco pellada no lombo--abria o meu seio incauto aos persevejos ... quero dizer, aos bispos ... da, _Nação_!... Que tal estava a rascada, heim? E vamos agora nós a outra coisa, que nos está a lembrar.... Vamos nós agora que o proprio _Diario da Manhã_....--Não queremos melindrar ninguem, e pedimos ao _Diario da Manhã_ que o não leve a mal pelo amor de Deus.... Perguntamos apenas uma coisa: o homem é infallivel? Não é. Infallivel é unicamente o papa, o homem não. _Humanum est errare_...-- Vamos pois, como iamos dizendo, que o mesmo _Diario da Manhã_ não seja tão forte em escolher os bispos como a Vicencia o é em escolher os melões. Ha certeza absoluta de que este amavel confrade não possa incorrer no mesmo erro grosseiro e lastimabilissimo em que cahiu a _Nação?..._ Decididamente pedimos licença para ampliar um tanto mais as instrucções que ha pouco demos á nossa cosinheira: --Gertrudes! não estou em casa para bispo nenhum. * * * * * Todos os jornaes, exceptuada apenas a refalsada _Nação,_ pedem ao governo que sem perda de tempo restitua as suas credenciaes ao nuncio. O _Seculo_ vae mais longe e acreseenta ser preciso que ao nosso representante junto ao Vaticano se enviem instrucções terminantes para impedir que monsenhor Masella receba n'esta occasião o barrete cardinalicio que lhe está promettido por Sua Santidade. No _Seculo_, um jornal republicano e livre pensador, é talvez um pouco estranhavel a pretensão de influir com o seu voto sobre o momento mais propicio para cardinalisar Masella. Se se tratasse simplesmente de cardinalisar um camarão--operação a que se procede cosendo-o--o parecer do _Seculo_ junto da tia Pincha, encarregada de lhe confeccionar uma salada de mariscos, seria até certo ponto admissivel e opportuno. Mas quando é o papa Leão XIII e não a propria tia Pincha que opera, cuida por ventura o _Seculo_ que a coisa é a mesma, e que lhe basta bater na mesa com a ponteira da bengala para que a Curia Romana lhe sirva um cardeal ou para que lh'o não sirva?... Oh! não. Para intervir na distribuição dos barretes cardinalicios o _Seculo_ tem exactamente os mesmos direitos que assistem ao papa para influir na distribuição dos barretes phrygios. O partido republicano do Brazil impõe ás vezes solemnemente o barrete symbolico da Republica aos seus membros mais illustres. Ainda ha pouco o sympathico agitador Lopes Trovão recebeu no Rio de Janeiro, no momento de partir para a Europa, essa honrosa investidura, sendo-lhe adjudicado então um bello barrete, de luxo, bordado a ouro de lei, com galões e borla de canotilho do mesmo vil e precioso metal. Outro tanto--com algum ferro o dizemos mas sem canotilho algum--não temos nós que agradecer á obzequiosidade da mocidade avançada e generosa de Lisboa. O barrete phrygio do nosso uso pessoal, aquelle que nos cobre a fronte invejosa nos dias em que embarcamos no Tejo para ir ao largo pescar o pargo ou a abrotida, adquirimol-o na Ribeira Velha por oito tostões e meio. De lã e vermelho, do matiz radical denominado _rebenta-boi_, é com esse barrete carregado á banda sobre um olho, com o monoculo expectante da critica no outro olho, e com um nicker-bockar nas pernas, que o que traça estas regras se presa de ter servido a causa, já sobre as aguas do mar, já em terra firme, nas praias de banhos durante as estações balnearias, fazendo ranger de despeito higlifico os dentes das instuições caducas, representadas nas villegiaturas maritimas pela musa do constitucionalismo D. Guimar Torresão, dama tão illustre em fins do seculo XIX quanto o foi Rosalia por meiados do seculo XVII, segundo o affirma o mui culto Doutor Jardim ... de S. Pedro d'Alcantara. Se o _Seculo_ segue porém as boas praticas do republicanismo brazileiro, presenteando alguma vez com barretes os personagens mais distinctos do seu partido, que diria o _Seculo_ se, usando da reciprocidade de um direito que elle proprio reconhece, Sua Santidade o Papa lhe viesse dizer em tal conjuntura: --Alto lá! não dêem isso a Trigueiros de Martel, que estou politico com esse sujeito por uma partida que elle me fez. Colloquem antes o barrete sobre a cabeça do martyr Gomes Leal, cabeça de genio e bem assim do turco, cabeça até hoje inteiramente despremiada, não constando que até agora tivesse ainda tido outra coisa, além da caspa propria, senão galos e brechas feitas pelos socos monarchicos do inimigo. * * * * * Foi só no momento preciso a que escrevemos esta pagina depois de varios dias de estudo retroactivo atravez das declamações da imprensa, que emfim conseguimos--por um acaso--descobrir os elementos do conflicto entre o governo portuguez e o representante de sua santidade em Lisboa. Eis o caso: * * * * * Sua excellencia o nobre ministro da justiça, usando d'aquella apreciavel franqueza que tanto agrada entre amigos verdadeiros e sinceros, mostrou a Sua Eminencia o nuncio a lista dos novos bispos que o governo se propunha nomear, pedindo ácerca d'elles a opinião do mesmo snr nuncio. Sua Eminencia, usando por seu turno da mesma franqueza com que tão benevolamente fora tratado pelo snr ministro, respondeu que achava pessimos alguns dos bispos propostos. --Como assim!?--volveu, acidulado e surpreso, o das justiças humanas.--Como cavalheiro que me preso de ser, eu dirijo-me amistosamente a Vossa Eminencia pedindo-lhe a sua opinião franca, desassombrada e sincera, e Vossa Eminencia, em vez de me dar a opinião que eu tão bisarramente lhe peço, dá-me pelo contrario a opinião precisamente opposta á que eu tenho!?... --Perdão...---interrompe o ecclesiastico--eu pensei que, desde que v. ex.ª me consultava.... -Nada de sophismas, eminentissimo senhor!... Não me force Vossa Eminencia a ser um pouco mais acre e a ter de accrescentar: nada de cavilações! Não queira Vossa Eminencia levar-me ao desgosto acerbo de ter de recordar-lhe, que Vossa Eminencia se acha, mercê de Deus, no gremio de um paiz livre e constitucional, onde o governo se não exerce por sophisticações capciosas, antes versa sobre formas parlamentares baseadas nas ficções mais engenhosas e mais lucidas. Uma d'essas ficções fundamentaes do systema que felizmente nos rege consiste no principio sagrado da discussão, da consulta e do voto. Para bem se comprehender toda a belleza d'este profundo principio cumpre observar--e para isto chamo particularmente a attenção de Vossa Eminencia--que, toda a vez que um estadista, chamado aos conselhos da corôa pela augusta confiança do principe, pede ácerca dos seus actos a opinião de qualquer dos poderes do Estado, a obrigação d'esses poderes, quaesquer que elles sejam, _quaesguer que elles sejam_--repito-o--é abundarem approvativamente e jubilosamente no sabio parecer do ministro preopinante. Assim o exigem as sabias praxes de longo tempo estabelecidas e firmadas no feliz e liberrimo governo da nação portugueza. --Mas então,--obtemperou o sacerdote romano--o systema governativo, de cujo elencho V. Ex.ª é tenor applaudido, vem a ser realmente a farça mais divertida _(la piu piacevole)_ que se conhece! O pundonoroso luso da pasta da justiça, apenas o roupeta lhe fallou em farça, meu amiguinho e snr, agora, o vereis! _--Farça!_ bradou s.ex.ª com o gesto nobre mais recommendado pela rhetorica para os grandes lances da indignação suprema. _--Farça!_ O forasteiro ousa chamar _farça_ ao sublime governo constitucional, monarchico-representativo da patria do fallecido marquez de Pombal! do chorado Santos e Silva! e do arrojado tribuno José Estevão Coelho de Magalhães, cognominado por antonomasia o _Deus da Palavra_!!... Cuidará então o snr, por acaso, que seja uma coisa séria a curia! mais o pontificado! mais a infallibílidade do papa! mais as indulgencias para ir para o ceu a trez vintens por cabeça! mais a bulla para misturar carne com peixe a pataco por familia! mais as dispensas, a tanto por incesto e a tanto por divorcio, para se casarem ou descasarem primos carnaes com primos carnaes, genros com sogros e bisnetos com bisavós!... Cuida o snr que ainda alguem toma a serio n'este mundo uma chirinola d'essas?! Uma das coisas com que os snrs nos andam sempre a massar é a sua famosa _vinha do senhor:--Vimos da vinha do senhor! Vamos para a vinha do senhor! Trabalhamos na vinha do senhor!_ Suppoem os snrs porventura que ainda ha no orbe taberneiro, baiuqueiro, tasqueiro, ou bodegueiro convencido de que o senhor tem vinhas?! Os snrs intitulam-se a si mesmos _sal da terra_; ora vamos a saber uma coisa: os snrs estão efectivamente persuadidos de que são sal?... Vive o snr, por exemplo, na convicção profunda e inabalavel de que é medido ás razas pelos almotacés sempre que passa ás portas, e que paga 10 réis de direitos em alqueire sempre que penetra nas zonas fiscaes das deoceses em que circula? Tem o snr, na sua qualidade de sal, a intima certeza de que lhe baste abraçar-se de arripio a uma pescada fresca para que essa pescada fique pronta para se deitar á panella com cebola e batatas?! No dito estado de sal, nutre o snr a austera e firme convicção profissional de que lhe assiste o poder de resequir as hervas e de revivificar os espiritos?... Está o snr bem certo de que não tenha senão a sentar-se no bucho verde para que elle ganhe caruncho, ou a pôr a benta mão sobre os sermões de Garcia Diniz ou sobre os artigos da _Nação_ para que essas producções literarias cessem para logo de ser a mais ensosa e a mais dissaborida coisa que Deus permitte a fazer aos seus ministros em toda a vastidão da crusta terrachea?!... E, então, com tudo isto, os snrs é que são os sérios, e nós é que havemos de ser os farçantes, heim? Emquanto o ministro, arrebatado e fluente, proseguia no seu discurso, que não hesitamos um só momento em qualificar de sacrilego e de perverso, o pastor da Egreja, o procurador de Pedro, havia chamado a si o baculo que deixara atraz da porta do gabinete de s.ex.ª, e experimentava-lhe a elasticidade da fibra, apoiando-se-lhe á cacheira e drobando-o e redobrando-o de ferrão fixado ao solo. * * * * * Até ahi chegam as nossas conjecturas formuladas sobre as informações dispersas que podemos recolher ácerca d'este memoravel incidente. D'esse ponto por deante ignoramos como é que os factos precisamente se passaram. Lemos porem no _Diario de Portugal_ uma phrase reveladôra, que se nos figura perfeitamente clara e definitiva. Diz aquella auctorisada folha: _O nuncio desacatou sua excellencia_. Os boatos das secretarias esclarecem ainmais essa affirmativa de um dos periodicos ministeriaes. _Sua excelencia_--segredam as vozes familiares da burocracia--_apanhou um calor_. * * * * * Dilucidada assim a secreta verdade dos factos, entendemos que o snr nuncio andou admiravelmente bem. E não podemos de modo algum attingir as causas do geral descontentamento que invadiu os periodicos liberaes por occasião d'este jubiloso successo. * * * * * E' indespensavel que de uma vez e para todo o sempre a gente acabe de se compenetrar bem de uma coisa. E vem a ser: Que os governos não entendem, nem podem entender nada, pela palavra, acerca de bispos. Os bispos--dizem-o todos os textos canonicos--são os pastores das almas, incumbidos pelo Espirito Santo de governar a Egreja de Deus. E' n'elles que reside a plenitude do sacerdocio, a posse inteira dos poderes confiados por Jesus Christo aos apostolos. Elles não podem ser considerados senão como puros e legitimos delegados do chefe supremo da Egreja, por elle encarregados de manter a continuidade do sagrado ministerio, de presidir, de governar e de julgar em seu nome e em nome de Deus, de quem o papa é o representante visivel na terra. Ora, se são effectivmnente as ideias, os sentimentos, as aspirações, os interesses do Summo Pontifice e não os do snr Julio de Vilhena que os bispos teem de representar, de deffender e de servir, como é que querem, de boa fé e francamente, que seja o snr Julio de Vilhena e que não seja o papa quem escolha os individuos encarregados de similhante missão? * * * * * Que os bispos saiam melhores ou saiam peiores, escolhidos pelo nuncio de Sua Santidade ou escolhidos pelo ministro de sua magestade fidelissima, que é que teem com isso os jornalistas republicanos e livres pensadores?... Pergunta-se uma coisa a estes jornalistas: Foi para intervir nos mais perfeitos methodos de fazer padres, de dar ordens, ou, de ministrar sacramentos, que suas excelencias se fizeram livres pensadores? Mas escusavam então de se incommodar para isso, prejudicando-se consideravelmente nos meios de acção, de que para tal fim disporiam continuando a ser mesarios da freguesia das Chagas ou irmãos do Senhor dos Passos da parochia das Mercês! Teem, por ventura, estes philosophos democratas e materialistas pretenções secretas pendentes do governo das deoceses do reino? Vejamos, sinceramente: Os snrs querem chrismar-se? querem tomar prima-tonsura ou subdiacono? querem parochiar? querem dizer missas? querem cantar responsos? querem confessar mulheres?... Se querem, digam-o! Desce-se um veu sobre a questão e não se torna mais a fallar n'isso. Se, pelo contrario, os snrs não pretendem coisa nenhuma dos bispados, que diabo então lhes importam, aos snrs, os bispos? Parece-nos ouvir uma voz replicar-nos, dizendo: --Mas ha um facto extra-ecclesiastico e extra-religioso que obriga os republicanos livres pensadores a tomarem interesse e fogo na questão dos bispados, e esse facto vem a ser que é o governo da nação quem paga os bispos. Muito bem, voz! muitissimo bem! Quem paga os bispos é com effeito o governo. E é por essa razão que nós applaudimos com enthusiasmo o snr Nuncio, ao termos a grata noticia de que sua eminencia, _desacatou_ o governo:--para ver se o governo aprende a não ser tolo! * * * * * A corveta _Stephania_ acaba de dar da sua incapacidade como instrumento beligerante o testemunho mais eloquente, mais triste e mais solemne. Mandada á ilha da Madeira para o fim de resolver em favor do governo o empate de uma eleição de deputado, a dita corveta de tal modo manobrou que a eleição de desempate recahiu em massa sobre o candidato republicano de opposição ao governo. Considerada pelos poderes publicos como incapaz do real serviço, consta que este vaso de guerra vae ser aposentado e recolhido debaixo do leito do Arsenal na qualidade de vaso de paz. Para substituir a _Stephania_ nas campanhas navaes das futuras eleições pensa-se em mastrear em corveta o compadre Tavares. Para esse fim estão-se já colligindo nas estações competentes os mexilhões precisos para guarnecer a quilha d'este distincto cavalheiro. Parabens a sua excellencia! * * * * * Agora invocamos a protecção dos anjos para que, com sua assistencia, passemos a narrar em resumido discurso e em florida linguagem, propria da alteza do assumpto, como foi que o milagre se deu no povo do Carnaxide. Era por uma formosa tarde do cálido mez de agosto. O astro do dia se inclinava ao occaso, onde o oceano parecia attrahil-o com as argentadas presas de suas ondas. Sobre a verde alfombra alvos cordeiros, conduzidos pelos zagaes, pasciam as tenras hervas, ao passo que no umbroso bosque o bando alado entoava os louvores do Eterno em doces e bem concertados gorgeios. Debaixo de uma virente faia se achavam alguns camponezes dando alento ao fatigado corpo e discreteando em ameno convivio ácerca de seus bucolicos lavores e bem assim da vida e prendas de Santa Rosa de Lima por ser esse o milagroso dia de tão prodigiosa santa. Eis senão quando, volvendo os olhos, como que tocados por um presentimento divino, para o lado em que se acha a egreja parochial de Carnaxide, viram os ditos camponezes apropinquar-se um vulto em tudo magestoso acima do narravel. Com a mão direita se apoiava esse vulto a um bordão de peregrino, em quanto que com a mão esquerda ora comprimia a fronte pensativa coroada de um pastoril chapeu de palha, ora fazia um gesto cortez para o horisonte como que convidando o mesmo vulto a proseguir na senda da vida em direcção á faia virente. Conjecturaram os camponezes que fosse S. Basilio Magno, S. Pedro Nolasco ou S. Praxedes, e logo viram que não era Santo Antão--por não ter porco ao lado. Junto da faia, aquelle que os camponezes haviam tomado de longe por Praxedes, collocou a mão sobre o coração e arremetendo com a fronte para as nuvens, exclamou: Eu nunca vi Lisboa, e tenho pena! Era s.ex.ª o snr Thomaz Ribeiro, ministro da poesia lyrica e dos negocios do reino. Ao reconhecel-o, os camponezes cahiram em giolhos. --Guarde-vos Deus, bons rusticos!--disse s.ex.ª acommodando o stylo á rude e acanhada comprehensão do auditorio--E que a senhora Santa Rosa de Lima, que é hoje seu dia, vos tenha de sua bemdita mão! E em seguida, descriminando a um par um os individuos no grupo campesino a que nos referimos, s.ex.ª proseguiu continuando a exprimir-se em prosa: --Que fizestes do vosso cordeiro favorito, ó Tityro?--Trazeis comvosco a vossa avena, Melibeu?--Onde a vossa pastora Anarda, amigo Silvano? Todos os camponeses se acercaram então de s.ex.ª, ficando suspensos da facundia de seu labio, pois nunca jamais, nem na freguesia de Carnaxide nem em duas legoas em redondo, se ouvira tanta gentilesa e amenidade de lingoagem como a que sahia em jorras da bôcca d'esse portentoso homem de penna e de governação. Felizes e volozes devolviam as horas em pratica tão discreta quão matizada de piericos primores, quando s.ex.ª, alongando a dextra n'um brando meneio para o pendôr da collina, perguntou: --Que vetustas ruinas são aquellas que alem descortino alvejando na quebrada da serra? E, como houvesse em resposta que essas ruinas eram a antiga egreja de Nossa Senhora Apparecida, --Corramos prestes ao templo!--bradou s.ex.ª--Dirijamo-nos pressurosos a elevar nossas preces e a depor nossas modestas offerendas no altar d'essa Virgem Senhora Nossa que tão galhardamente denominaes _Apparecida!_ Vinde, Silvano! Vinde Melibeu! Tityro, Aleixo, Frondelio, Belmiro e Castalio! Vinde todos, ó pastores! Eia!... Ao templo! ao templo!... Os pastores, então, plangentes e lacrimosos, explicaram voz em grita que Nossa Senhora Apparecida de longo tempo desapparecera. Mão impia de infames governos despoticos a arrebatara do seu templo de Carnaxide para a transportar para a Sé no meio da indignação geral dos povos e das patronas minazes da real melicia. De sorte que, já no tempo em que o feroz usurpador do throno de Lysia se apegára com a Senhora Apparecida para sarar da perna que quebrou ao ir a quatro sollas de Queluz para Cacilhas, no logar do Moinho de Cavallinhos, cantavam os cegos na via publica: D. Miguel foi á Sé, Sentou-se n'uma cadeira, E disso para os malhados: Esta perna está inteira! Ao ouvir taes vozes, já soltas, já metreficadas, s.ex.ª extrahiu a lyra que trazia ao tiracollo em um saco, juntamente com a pasta da publica governação, e sobre o mavioso instrumento jurou que antes que a casta Phebe voltasse por seis vezes a sorrir do ceu ao terno Endymion, ou--por outra--que dentro, de seis mezes contados, a milagreira imagem de Nossa Senhora Apparecida volveria da Sé a Carnaxide, reapparecendo pela segunda vez aos povos em todo o esplendor do seu excelso vulto. Vendo os camponezes que por meio de um tão manifesto e prodigioso milagre assim lhes era restituida sua Senhora, outra vez cahiram submissos em giolhos. E foi só depois de s.ex.ª se haver retirado pela mesma vereda por onde viera; foi depois de lhe terem ouvido ao longe e pela derradeira vez repetir aos montes e ás hervinhas: Eu nunca vi Lisboa, e tenho pena! que os camponezes, reunidos em honesto convivio sob a faia, regressaram a suas pousadas, tangendo alegres tibias e entoando lôas festivaes em honra d'aquelle que tão grande capricho punha em lhes restituir a Senhora Apparecida quão grande era a pena que alimentava em seus carmes de nunca ter visto Lisboa. Gloria pois a s.ex.ª! * * * * * Outrora o portuguez de volta do Brazil, com fortuna, com papagaios e com pedras no peito da camisa e na bexiga, comprava invariavelmente, ao desembarcar, um acommenda, dois cães de faiança e um bilhete da imperial na malaposta de Braga. Depois do que, passava a usofruir n'uma quinta minhota o producto do seu trabalho d'emigrante, representado em molestias sedentarias, em graças regias e em quadrupedes de louça. A patria explorava-o e ria-se d'elle. Agora chega do Rio de Janeiro o snr Eduardo de Lemos, sem pedras e sem papagaios, posto que com fortuna, e, segundo lemos no _Diario do Governo_, elle não só não paga mas resigna uma commenda com que o agraciou a regia munificencia. Tomemos nota do phenomeno, porque elle é o symptoma de uma revolução profunda: elle é o _Emfim Malherbe veio_ da historia dos commendadores e dos cães,--vertebrados da olaria nacional e do grosso commercio extrangeiro. Que o nosso velho mundo decrepito e tremelicante se prepare para o embate hostil e tremendo do novo poder revolucionario que se annuncia! Atraz de Eduardo de Lemos ha no Brazil uma legião inteira, intelligente, instruida e forte, que vae chegar--para se rir. Lisboa 15 de dezembro de 1882. _Ramalho Ortigão._ *** End of this LibraryBlog Digital Book "As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12)" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.