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Title: A Cidade e as Serras
Author: Queirós, José Maria Eça de, 1845-1900
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A Cidade e as Serras" ***


EÇA DE QUEIRÓS

A CIDADE E AS SERRAS


PORTO

LIVRARIA CHARDRON

De Lello & Irmão, editores

1901

Todos os direitos reservados



EÇA DE QUEIRÓS

A CIDADE E AS SERRAS


PORTO

LIVRARIA CHARDRON

De Lello & Irmão, editores

1901

Todos os direitos reservados



Pertence no Brasil o direito de propriedade desta obra ao cidadão
Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia
que lhe oferece a lei n.^o 496 de 1 de Agosto de 1898, fez o competente
depósito na Biblioteca Nacional, segundo a determinação do art. 13.^o
da mesma Lei.


_Porto--Imprensa Moderna_



[Figura de Eça de Queirós]



A CIDADE E AS SERRAS



Obras do mesmo autor:


*Revista de Portugal.* 4 grossos volumes      12$000

*As minas de Salomão.* 1 volume      $600

*Os Maias.* 2 grossos volumes      2$000

*O crime do padre Amaro.* Terceira edição inteiramente refundida,
recomposta, e diferente na forma e na acção da edição primitiva. 1 grosso
volume      1$200

*O primo Basílio.* Quarta edição. 1 grosso volume      1$000

*A Relíquia.* 1 grosso volume      1$000

*O Mandarim.* Quarta edição. 1 volume      $500

*Correspondência de Fradique Mendes.* 1 volume      $600

*A ilustre casa de Ramires.* 1 volume      1$000



A CIDADE E AS SERRAS



I


O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de
renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.

No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes
ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras,
estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já
entulhava grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua quinta
e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o
Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro.
E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora.
Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em
Paris, nos Campos Elísios, n.^o 202.

Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em
Lisboa o _D. Galeão_, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta,
rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa
casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse
momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e
botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou
o enorme Jacinto--até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara
para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:

--Oh Jacinto Galeão, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas
pedras?

E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o Sr. Infante D. Miguel!

Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de
tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala
nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do
«seu Salvador», enfeitado de palmitos como um retábulo, e por baixo a
bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do lixo. Enquanto o
adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo
senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé Maria em
Belém à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as saudades do
_anjinho_, a tramar o regresso do _anjinho_. No dia, entre todos
bendito, em que a _Pérola_ apareceu à barra com o Messias, engrinaldou
a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D.
Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava
de cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia
vomitando a Carta. Durante a guerra com o «outro, com o pedreiro livre»
mandava recoveiros a Santo Tirso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres,
caixas de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrós
atochadas de peças que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando
soube que o Sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um
macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro--Jacinto _Galeão_
correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando
furiosamente:

--Também cá não fico! também cá não fico!

Não, não queria ficar na terra perversa donde partia, esbulhado e
escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!
Embarcou para França com a mulher, a Sr.^a D. Angelina Fafes (da tão
falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o 'Cintinho, menino
amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços; com a aia e com
o moleque. Nas costas da Cantábria o paquete encontrou tão rijos mares
que a Sr.^a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do
beliche, prometeu ao Senhor dos Passos de Alcântara uma coroa
de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu. Em
Baiona, onde arribaram, 'Cintinho teve icterícia. Na estrada
de Orleães, numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam
partiu, e o nédio senhor, a delicada senhora da casa da Avelã, o
menino, marcharam três horas na chuva e na lama do exílio até uma
aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram
nos bancos de uma taberna. No «Hotel dos Santos Padres», em Paris,
sofreram os terrores de um fogo que rebentara na cavalariça, sob o
quarto de _D. Galeão_, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em
camisa, até ao pátio, enterrou o pé nu numa lasca de vidro. Então ergueu
amargamente ao céu o punho cabeludo, e rugiu:

--Irra! É de mais!

Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto _Galeão_ comprou a um
Príncipe polaco, que depois da tomada de Varsóvia se metera frade
cartuxo, aquele palacete dos Campos Elísios, n.^o 202. E sob o pesado
ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou,
descansando de tantas agitações, numa vida de pachorra e de boa mesa,
com alguns companheiros de emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde
de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, de uma
lampreia de escabeche que lhe mandara o seu procurador em Montemor. Os
amigos pensavam que a Sr.^a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a
boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se
queria separar do seu Confessor, nem do seu Médico, que tão bem lhe
compreendiam os escrúpulos e a asma.

--Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que me faz falta
a boa água de Alcolena... O 'Cintinho, esse, em crescendo, que decida.

O 'Cintinho crescera. Era um moço mais esguio e lívido que um círio, de
longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas
pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse
e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina através do 202; e
os criados na copa sempre lhe chamavam a _Sombra_. Nessa sua mudez e
indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo
de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada flor dos
seus vinte anos, brotou nele outro sentimento, de desejo e de pasmo,
pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola,
educada num convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava,
concertava relógios e fabricava chapéus de feltro. No Outono de 1851,
quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elísios, o
'Cintinho cuspilhou sangue. O médico, acarinhando o queixo e com uma
ruga séria na testa imensa, aconselhou que o menino abalasse para o
golfo Juan ou para as tépidas areias de Arcachon.

'Cintinho porém, no seu aferro de sombra, não se quis arredar da
Teresinha Velho, de quem se tornara, através de Paris, a muda, tardonha
sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu
um resto de sangue; e passou, como uma sombra.

Três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.

       *       *       *       *       *

Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a
_Sorte-Ruim_, Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica
de um pinheiro das dunas.

Não teve sarampo e não teve lombrigas. As Letras, a Tabuada, o Latim
entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça. Entre os
camaradas, nos pátios dos colégios, erguendo a sua espada de lata e
lançando um brado de comando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula,
e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade em que se lê Balzac e
Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade;--nem crepúsculos
quentes o retiveram na solidão de uma janela, padecendo de um desejo sem
forma e sem nome. Todos os seus amigos (éramos três, contando o seu
velho escudeiro preto, o Grilo) lhe conservaram sempre amizades puras e
certas--sem que jamais a participação do seu luxo as avivasse ou fossem
desanimadas pelas evidências do seu egoísmo. Sem coração bastante forte
para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o
libertava, do amor só experimentou o mel--esse mel que o amor reserva
aos que o recolhem, à maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e
cantando. Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo dos Homens,
nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem as Ideias
Gerais; e a sua inteligência, nos anos alegres de escolas e
controvérsias, circulava dentro das Filosofias mais densas como enguia
lustrosa na água limpa de um tanque. O seu valor, genuíno, de fino
quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a opinião, ou
mera facécia que lançasse, logo encontrava uma aragem de simpatia e
concordância que a erguia, a mantinha embalada e rebrilhando nas
alturas. Era servido pelas coisas com docilidade e carinho;--e não
recordo que jamais lhe estalasse um botão da camisa, ou que um papel
maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua
vivacidade e pressa uma gaveta pérfida emperrasse. Quando um dia, rindo
com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um sacristão
espanhol um Décimo de Lotaria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre
a sua Roda, correu num fulgor, para lhe trazer quatrocentas mil
pesetas. E no céu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacinto sem
guarda-chuva, retinham com reverência as suas águas até que ele
passasse... Ah! o âmbar e o funcho da Sr.^a D. Angelina tinham
escorraçado do seu destino, bem triunfalmente e para sempre, a
_Sorte-Ruim_! A amorável avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava
citar um soneto natalício do desembargador Nunes Velho contendo um verso
de boa lição:

     Sabei, senhora, que esta Vida é um rio...

Pois um rio de Verão, manso, translúcido, harmoniosamente estendido
sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas
aldeias, não ofereceria àquele que o descesse num barco de cedro, bem
toldado e bem almofadado, com frutas e Champanhe a refrescar em gelo,
um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando à sirga, mais segurança
e doçura do que a Vida oferecia ao meu amigo Jacinto.

Por isso nós lhe chamávamos «o Príncipe da Grã-Ventura»!

       *       *       *       *       *

Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontrámos e acamaradámos em
Paris, nas Escolas do Bairro Latino--para onde me mandara meu bom tio
Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me
riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de
procissão, na Sofia, a cara sórdida do dr. Pais Pita.

Ora nesse tempo Jacinto concebera uma Ideia... Este Príncipe concebera
a Ideia de que «o homem só é superiormente feliz quando é superiormente
civilizado». E por homem civilizado o meu camarada entendia aquele que,
robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde
Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com
todos os mecanismos inventados desde Terâmenes, criador da roda, se
torna um magnífico Adão, quase omnipotente, quase omnisciente, e apto
portanto a recolher dentro de uma sociedade e nos limites do Progresso
(tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os
proveitos que resultam de Saber e de Poder... Pelo menos assim Jacinto
formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversávamos de fins e
destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias
filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.

Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo,
que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a
batalha de Sadova e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde
então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a Espingarda-de-Agulha
que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-Escola quem vencera em Sedan,
estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos
indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado
desenvolvimento da Mecânica e da Erudição. Um desses moços mesmo, o
nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe
facilitar a circulação e lhe condensar o brilho, a uma forma algébrica:

Suma ciência}
     X        }= Suma felicidade
Suma potência}

E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva
a _Equação Metafísica de Jacinto_.

Para Jacinto, porém, o seu conceito não era meramente metafísico e
lançado pelo gozo elegante de exercer a razão especulativa:--mas
constituía uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a
conduta, modalizando a vida. E já a esse tempo, em concordância com o
seu preceito--ele se surtira da _Pequena Enciclopédia dos Conhecimentos
Universais_ em setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados
do 202, num mirante envidraçado, um telescópio. Justamente com esse
telescópio me tornou ele palpável a sua ideia, numa noite de Agosto,
de mole e dormente calor. Nos céus remotos lampejavam relâmpagos
lânguidos. Pela Avenida dos Campos Elísios, os fiacres rolavam para as
frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados, transbordando de
vestidos claros.

--Aqui tens tu, Zé Fernandes, (começou Jacinto, encostado à janela do
mirante) a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que
recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas
distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça
alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros
simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça,
presuntos, queijos, boiões de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo
portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção; tenho sobre ti, que com
os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se
agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de
composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia
de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra
noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza,
elevado pela Civilização à sua máxima potência de visão. E desde já,
pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o
incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não
suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e
compreendes o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade
que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço
que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos devemos cercar
de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções
a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?

Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o
Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em
distinguir através do espaço manchas num astro, ou através da Avenida
dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei, porque sou
bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra
segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e
lançando um gesto para o lado dos cafés e das luzes:

--Vamos então beber, nas máximas proporções, _brandy and soda_, com
gelo!

Por uma conclusão bem natural, a ideia de Civilização, para Jacinto,
não se separava da imagem de Cidade, de uma enorme Cidade, com todos os
seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu
supercivilizado amigo compreendia que longe de Armazéns servidos por
três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias
de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de
Fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas
abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas
de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios
de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante
dos ónibus, tramways, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de
luxo; e de dois milhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar,
através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo--o
homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!

Quando Jacinto, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os
lilases, me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado.
Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por
ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!...

--Oh Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?

Ele encolhia os ombros. A religião! A religião é o desenvolvimento
sumptuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o
terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o
chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto,
prostrado em rezas ante o Deus que distribui o céu ou o inferno!... Mas
o telefone! o fonógrafo!

--Aí tens tu, o fonógrafo!... Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz
verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa
do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a
Cidade!

E depois (acrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessária
à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando
considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois
milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na
natureza o domínio dos Jacintos!) sentia um sossego, um conchego, só
comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no
seu dromedário, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de
lumes e de armas...

Eu murmurava, impressionado:

--Caramba!

Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da
Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão.
Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum
silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com
fome nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na
ponta compassiva de um ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à
súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores.
De que servia, entre plantas e bichos--ser um Génio ou ser um Santo? As
searas não compreendem as _Geórgicas_; e fora necessário o socorro
ansioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um violento
milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S. Francisco de Assis,
que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava «meu irmão lobo»!
Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a
bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas únicas
funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem
ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar,
sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda
se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha
espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa
matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e
o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão
nobremente composto só restava um estômago e por baixo um falo! A
alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade,
mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a
crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e
Jacíntico!

E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos
reais--que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que
fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency.
Oh delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava
dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os seus pés
calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, por mais
crestada, lhe parecia ressumar uma humidade mortal. De sob cada torrão,
da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de
formas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre
despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que
lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um acto
degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não
tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos séculos de
servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava de uma
melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa
esperta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorções
do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.

Depois de uma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre
amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir
de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando
penetramos no lajedo e no gás de Paris--e a nossa vitória quase se
despedaçou contra um ónibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou
descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade,
aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a de um
boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para
sacudir, com os estribilhos da _Femme à Papa_, o rumor importuno que lhe
ficara dos melros cantando nos choupos altos.

Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um
soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais.
Só pelo nariz, afilado, com narinas quase transparentes, de uma
mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às
delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das
eras rudes, crespo e quase lanígero: e o bigode, como o de um Celta,
caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu
fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as
luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes
de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta
destramente pela sua ramalheteira com pétalas de flores dissemelhantes,
cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma
leve folhagem de funcho.

       *       *       *       *       *

Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi
uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de
lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a
pesada gerência dos seus bens «que pedia homem mais novo, com pernas
mais rijas»--me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no
Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha
Nini deixara um espartilho embrulhado no _Jornal dos Debates_, censurei
severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a
flor do meu Saber Jurídico. Depois num Post-Scriptum ele
acrescentava--«O tempo aqui está lindo, o que se pode chamar de rosas,
e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque
vai hoje em trinta e seis anos que casámos, temos cá o abade e o
Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada».

Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da
tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o
arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas
do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço
de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão lustroso e macio,
entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas,
ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam
aguados. E, por entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte
e cheiroso de serra e de pinheiral.

Assobiando um _fado_ meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e
meti solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de Direito Civil,
para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as
leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que
partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto
e piedade:

--Para Guiães!... Oh Zé Fernandes, que horror!

E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me
deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão
longe da Cidade, uma pouca de alma dentro de um pouco de corpo. «Leva uma
poltrona! Leva a _Enciclopédia Geral_! Leva caixas de aspáragos!...»

Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era
arbusto desarreigado que não reviverá. A mágoa com que me acompanhou ao
comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre
mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de
sepultura, eu quase solucei--com saudades minhas.

Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi
com delícias a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos nos pés assisti
à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das
eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na
poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando à candeia,
atiçando fogueiras de S. João, enfeitando presépios de Natal, por ali
me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir
o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando,
em vésperas de S. Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das
Cortes. De Jacinto só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à
pressa por entre o tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito
quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu, tão
quietamente, Deus seja louvado por esta graça, como se cala um
passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia
a roupa do luto. A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco.
Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.



II


Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu
desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas
recurvas do chapéu donde fugiam anéis de um cabelo crespo, ressumava
elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás
das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com
castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o
nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.

--Oh Jacinto!

--Oh Zé Fernandes!

O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na
lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade:

--Há sete anos!...

--Há sete anos!...

E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda
entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e
varrida que a lã de um tapete. No meio o vaso coríntico esperava Abril
para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de
margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava,
as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galeão, sustentavam as
antigas lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.

Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado
por Jacinto--apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados por uma
escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Sr.^a D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro
das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na
antecâmara, onde desembarcámos, encontrei a temperatura macia e tépida
de uma tarde de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termómetro
que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do
calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente humedecendo
aquele ar delicado e superfino.

Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:

--Eis a Civilização!

Jacinto empurrou uma porta, penetrámos numa nave cheia de majestade e
sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa
de lumes eléctricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as
estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores
num concílio.

Não contive a minha admiração:

--Oh Jacinto! Que depósito!

Ele murmurou, num sorriso descorado:

--Há que ler, há que ler...

Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara
mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado. Os
anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode
murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.

Ele erguera uma tapeçaria--entrámos no seu gabinete de trabalho, que me
inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divãs, as madeiras, eram verdes, de um verde profundo de folha de louro.
Sedas verdes envolviam as luzes eléctricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas por cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto de uma
estante quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície, e de
que o lume parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de mármore verde, verde de
mar sombrio, onde esmoreciam as brasas de uma lenha aromática. E entre
aqueles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestais, toda uma
Mecânica sumptuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezes de metais...

Mas Jacinto batia nas almofadas do divã, onde se enterrara com um modo
cansado que eu não lhe conhecia:

--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessário reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas há sete anos!... Em Guiães, sete anos! Que
fizeste tu?

--E tu, que tens feito, Jacinto?

O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera--cumprira com
serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que
pertencem ao espírito...

--E acumulaste Civilização, Jacinto! Santo Deus... Está tremendo, o
202!

Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:

--Sim, há confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistências.

Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente «_Está lá?--Está
lá?_», examinei curiosamente, sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma
estranha e miúda legião de instrumentozinhos de níquel, de aço, de cobre,
de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar--e logo uma ponta malévola me picou um dedo. Nesse instante
rompeu doutro canto um «tic-tic-tic» açodado, quase ansioso. Jacinto
acudiu, com a face no telefone:

--Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve
estar a correr.

E, com efeito, de uma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um
aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma ténia, a
longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo
Jacinto que a fragata russa _Azoff_ entrara em Marselha com avaria!

Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquela avaria da _Azoff_.

--Da _Azoff_?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia.

Depois, consultando um relógio monumental que, ao fundo da Biblioteca,
marcava a hora de todas as Capitais e o curso de todos os Planetas:

--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite; e os de Londres,
desta manhã. As Ilustrações além, naquela pasta de couro com
ferragens.

Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade
serrana todos os gostos de uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, por onde ele decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles,
coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira
de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na água de um poço, pousava uma Máquina de escrever: e adiante era
uma imensa Máquina de calcular, com fileiras de buracos donde
espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro. Depois parei em
frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira de uma
torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces
estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a
última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das
ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras
admirei aparelhos que não compreendia:--um composto de lâminas de
gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas de uma carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca de uma tuba, toda
aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados às
cimalhas, luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço.
Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam forças
universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrara na sua domesticidade!...

Jacinto atirou uma exclamação impaciente:

--Oh, estas penas eléctricas!... Que seca!

Amarrotara com cólera a carta começada--eu escapei, respirando, para a
Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da
Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas.
Avancei--e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois
avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma
parede, desde as escolas Pré-Socráticas até às escolas Neopessimistas.
Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas--e que
todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as
doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em
cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as
Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados,
cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa
colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num
assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia
para a Cristalografia. Essa estante rematava junto de uma janela
rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo--e por
trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História
Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos
últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do
Senhor.

Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amável dos
Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado de todo aquele saber
positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e uma mesa
de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de
cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do
Japão. Cedi à sedução das almofadas; trinquei um damasco, abri um
volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido, como de um insecto
de asas harmoniosas. Sorri à ideia que fossem abelhas, compondo o seu mel
naquele maciço de versos em flor. Depois percebi que o sussurro remoto
e dormente vinha do cofre de mogno, de parecer tão discreto. Arredei uma
_Gazeta de França_; e descortinei um cordão que emergia de um orifício,
escavado no cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade,
encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita à singeleza dos
rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito decidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu
entendimento, sussurrou capciosamente:

--...«E assim, pela disposição dos cubos diabólicos, eu chego a
verificar os espaços hipermágicos!...»

Pulei, com um berro.

--Oh Jacinto, aqui há um homem! Está aqui um homem a falar dentro
de uma caixa!

O meu camarada, habituado aos prodígios, não se alvoroçou:

--É o Conferençofone... Exactamente como o Teatrofone; somente
aplicado às escolas e às conferências. Muito cómodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?

Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:

--Eu sei! Cubos diabólicos, espaços mágicos, toda a sorte de horrores...

Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:

--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metafísica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma maçada! Ouve lá, tu hoje jantas
comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?

--Não, Jacinto... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!

E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanela
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O autor do _Coração Triplo_, um Psicólogo Feminista, de agudeza
transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em
Ciências Sentimentais; e Vorcan, um pintor mítico, que interpretara
etereamente, havia um ano, a simbolia rapsódica do cerco de Tróia,
numa vasta composição, _Helena Devastadora_...

Eu coçava a barba:

--Não, Jacinto, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilização, lentamente, com cautela, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençofone, e os espaços
hipermágicos e o feminista, e o etéreo, e a simbolia devastadora, é
excessivo! Volto amanhã.

Jacinto dobrava vagarosamente a sua carta, onde metera sem rebuço
(como convinha à nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.

--Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes de almoço, com as tuas malas dentro
de um fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto. No Hotel são
embaraços, privações. Aqui tens o telefone, o teatrofone, livros...

Aceitei logo, com simplicidade. E Jacinto, embocando um tubo acústico,
murmurou:

--Grilo!

Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdiu o seu velho escudeiro (aquele moleque que viera com _D.
Galeão_), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro,
reluzente e venerável na sua tesa gravata, no seu colete branco de
botões de ouro. Ele também estimou ver de novo «o siô Fernandes». E,
quando soube que eu ocuparia o quarto do avô Jacinto, teve um claro
sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o
sentir enfim reprovido de uma família.

--Grilo, dizia Jacinto, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telefona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma duche antes de jantar, tépida, a 17.
Fricção com malva-rosa.

E caindo pesadamente para cima do divã, com um bocejo arrastado e
vago:

--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos,
neste velho Paris...

Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:

--Oh Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já
aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?

Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava.--Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela
simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as
penas velhas; o outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito;
aqueloutro, além, raspava emendas... E ainda os havia para colar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...

--Mas com efeito, acrescentou, é uma seca. Com as molas, com os
bicos, às vezes magoam, ferem... Já me sucedeu inutilizar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada!

Então, como o meu amigo espreitara novamente o relógio monumental, não
lhe quis retardar a consolação da ducha e da malva-rosa.

--Bem, Jacinto, já te revi, já me contentei... Agora até amanhã, com as
malas.

--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!

E, através da Biblioteca, penetramos na sala de jantar,--que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, lacada,
mais lustrosa e macia que cetim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco cor de morango, de morango muito maduro e esmagado:
os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma laca nevada: e damascos amorangados estofavam
também as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de
gulas delicadas, de gulas intelectuais.

--Viva o meu Príncipe! Sim senhor... Eis aqui um comedouro muito
compreensível e muito repousante, Jacinto!

--Então janta, homem!

Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacinto me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as frutas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:--um
Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante,
quase assustador de águas--águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas
fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em
garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.

--Santíssimo nome de Deus, Jacinto! Então és ainda o mesmo tremendo
bebedor de água, hein?... _Un aquatico!_ como dizia o nosso poeta
chileno, que andava a traduzir Klopstock.

Ele derramou, por sobre toda aquela garrafaria encarapuçada em metal,
um olhar desconsolado:

--Não... É por causa das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
micróbios... Mas ainda não encontrei uma boa água que me convenha, que
me satisfaça... Até sofro sede.

Desejei então conhecer o jantar do Psicólogo e do Simbolista--traçado,
ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lâminas de marfim.
Começava honradamente por ostras clássicas, de Marennes. Depois
aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa...

--É bom?

Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:

--Sim... Eu não tenho nunca apetite, já há tempos... Já há anos.

Do outro prato só compreendi que continha frangos e túbaras. Depois
saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com
geleia de noz. E por sobremesa simplesmente laranjas geladas em éter.

--Em éter, Jacinto?

O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação de um aroma que
se evola.

--É novo... Parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma das
frutas...

Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:

--Eis a Civilização!

E, descendo os Campos Elísios, encolhido no paletó a cogitar neste
prato simbólico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha Guiães,
onde desde séculos a alma das laranjas permanece ignorada e
desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aqueles pomares
que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bendito Deus, na convivência de um tão grande iniciado como
Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da
Civilização.

E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade de um
homem que, concebendo uma ideia da Vida, a realiza--e através dela e
por ela recolhe a felicidade perfeita.

Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da
Grã-Ventura!



III


No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate e ainda
em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo
banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pêlo de
cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal, (por
causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga,
marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do século XIX necessita
para não desfeiar o conjunto sumptuário da Civilização e manter nela
o seu Tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o
meu espanto--porque as havia largas como a roda maciça de um carro
sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange de um mouro; côncavas, em
forma de telha aldeã; pontiagudas em feitio de folha de hera; rijas que
nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas,
fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilizava o meu
Jacinto. E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata,
permanecia este Príncipe passando pêlos sobre o seu pêlo durante
catorze minutos.

No entanto o Grilo e outro escudeiro, por trás dos biombos de Quioto, de
sedas lavradas, manobravam, com perícia e vigor, os aparelhos do
lavatório--que era apenas um resumo das Máquinas monumentais da Sala de
Banho, a mais estremada maravilha do 202. Nestes mármores simplificados
existiam unicamente dois jactos graduados desde _zero_ até _cem_; as
duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; a fonte esterilizada para os
dentes; o repuxo borbulhante para a barba; e ainda botões discretos,
que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve
orvalho estival. Desse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham
em disciplina e servidão tantas águas ferventes, tantas águas violentas,
saía enfim o meu Jacinto enxugando as mãos a uma toalha de felpo, a
uma toalha de linho, a outra de corda entrançada para restabelecer a
circulação, a outra de seda frouxa para repolir a pele. Depois deste
rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro, ora um bocejo,
Jacinto, estendido num divã, folheava uma Agenda, onde se arrolavam,
inscritas pelo Grilo ou por ele, as ocupações do seu dia, tão
numerosas por vezes que cobriam duas laudas.

Todas elas se prendiam à sua sociabilidade, à sua Civilização muito
complexa, ou a interesses que o meu Príncipe, nesses sete anos, criara
para viver em mais consciente comunhão com todas as funções da Cidade.
(Jacinto com efeito era presidente do Clube da _Espada e Alvo_;
comanditário do Jornal o _Boulevard_; director da _Companhia dos
Telefones de Constantinopla_; sócio dos _Bazares unidos da Arte
Espiritualista_; membro do _Comité de Iniciação das Religiões
Esotéricas_, etc.) Nenhuma destas ocupações parecia porém aprazível ao
meu amigo--porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos,
frequentemente arremessava para o tapete, numa rebelião de homem
livre, aquela Agenda que o escravizava. E numa dessas manhãs (de
vento e neve), apanhando eu o livro opressivo, encadernado em pelica,
de um carinhoso tom de rosa murcha--descobri que o meu Jacinto devia
depois do almoço fazer uma visita na rua da Universidade, outra no
Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir por
fidelidade a uma votação no Clube; acompanhar Madame d'Oriol a uma
exposição de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos
Trèves; comparecer no funeral do velho conde de Malville; presidir um
tribunal de honra numa questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao
ecarté... E ainda se acavalavam outras indicações, escrevinhadas por
Jacinto a lápis:--«Carroceiro--Five-oclock dos Efrains--A pequena das
_Variedades_--Levar a nota ao jornal...» Considerei o meu Príncipe.
Estirado no divã, de olhos miserrimamente cerrados, bocejava, num
bocejo imenso e mudo.

Mas os afazeres de Jacinto começavam logo no 202, cedo, depois do
banho. Desde as oito horas a campainha do telefone repicava por ele,
com impaciência, quase com cólera, como por um escravo tardio. E mal
enxugado, dentro do seu roupão de pêlo de cabra do Tibete ou de grossas
pijamas de pelúcia cor de ouro velho, constantemente saía ao corredor a
cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o
guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um desses, sempre presente (e que
pertencia decerto aos _Telefones de Constantinopla_), era
temeroso--todo ele chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando uma
enorme pasta sebenta, e dardejando, de entre a alta gola de uma peliça
puída, como da abertura de um covil, dois olhinhos torvos e de rapina.
Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro aparecia, com bilhetes numa
salva... Depois eram fornecedores de Indústria e de Arte; negociantes de
cavalos, rubicundos e de paletó branco; inventores com grossos rolos
de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição «única», quase
inverosímil, de Ulrich Zell ou do _Lapidanus_. Jacinto circulava
estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telefone,
desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum emboscado que
surdia das sombras da antecâmara, estendia como um trabuco o seu
memorial ou o seu catálogo!

Ao meio-dia, um tantã argentino e melancólico ressoava, chamando ao
almoço. Com o _Figaro_ ou as _Novidades_ abertas sobre o prato, eu
esperava sempre meia hora pelo meu Príncipe, que entrava numa rajada,
consultando o relógio, exalando com a face moída o seu queixume eterno:

--Que maçada! E depois uma noite abominável, enrodilhada em sonhos...
Tomei sulforal, chamei o Grilo para me esfregar com terebintina... Uma
seca!

Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por mais engenhoso,
o seduzia;--e, como através do seu tumulto matinal fumava incontáveis
cigarretes que o ressequiam, começava por se encharcar com um imenso
copo de água oxigenada, ou carbonatada, ou gasosa, misturada de um cognac
raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Siracusa.
Depois, à pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e
além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta;--e reclamava
impacientemente o café, um café de Moca, mandado cada mês por um feitor
do Dedjah, fervido à turca, muito espesso, que ele remexia com um pau
de canela!

--E tu, Zé Fernandes, que vais tu fazer?

--Eu?

Recostado na cadeira, com delícias, os dedos metidos nas cavas do
colete:

--Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!

O meu solícito amigo, remexendo o café com o pau de canela, rebuscava
através da numerosa Civilização da Cidade uma ocupação que me
encantasse. Mas apenas sugeria uma Exposição, ou uma Conferência, ou
monumentos, ou passeios, logo encolhia os ombros desconsolados:

--Por fim nem vale a pena, é uma seca!

Acendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome,
impresso a ouro na mortalha. Torcendo, numa pressa nervosa, os fios do
bigode, ainda escutava, à porta da Biblioteca, o seu procurador, o
nédio e majestoso Laporte. E enfim, seguido de um criado, que sobraçava
um maço tremendo de jornais para lhe abastecer o coupé, o Príncipe da
Grã-Ventura mergulhava na Cidade.

       *       *       *       *       *

Quando o dia social de Jacinto se apresentava mais desafogado, e o céu
de Março nos concedia caridosamente um pouco de azul aguado, saíamos
depois de almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos e errantes
passeios eram outrora, na nossa idade de Estudantes, um gozo muito
querido de Jacinto--porque neles mais intensamente e mais
minuciosamente saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha
companhia, só lhe davam uma impaciência e uma fadiga que desoladoramente
destoava do antigo, iluminado êxtase. Com espanto (mesmo com dor,
porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar de uma crença)
descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o
denso formigueiro humano sobre o asfalto, e a torrente sombria dos
trens sobre o macadame, afligiam o meu amigo pela brutalidade da sua
pressa, do seu egoísmo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no
meu braço, este Jacinto novo começou a lamentar que as ruas, na nossa
Civilização, não fossem calçadas de guta-percha! E a guta-percha
claramente representava, para o meu amigo, a substância discreta que
amortece o choque e a rudeza das coisas. Oh maravilha! Jacinto querendo
borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as funções
da Cidade! Depois, nem me permitiu pasmar diante daquelas dourejadas
e espelhadas lojas que ele outrora considerava como os «preciosos
museus do século XIX»...

--Não vale a pena, Zé Fernandes. Há uma imensa pobreza e secura
de invenção! Sempre os mesmos florões Luís XV, sempre as mesmas
pelúcias... Não vale a pena!

Eu arregalava os olhos para este transformado Jacinto. E sobretudo me
impressionava o seu horror pela Multidão--por certos efeitos da
Multidão, só para ele sensíveis, e a que chamava os «sulcos».

--Tu não os sentes, Zé Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o
rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito agudo e
petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no olfacto, e
estraga para todo o dia o ar respirável. É um dito que se surpreende
num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de
estupidez, e que nos fica colado à alma, como um salpico, lembrando a
imensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura
intolerável pela pretensão, ou pelo mau gosto, ou pela impertinência, ou
pela relice, ou pela dureza, e de que se não pode sacudir mais a visão
repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Zé Fernandes! De resto, que diabo,
são as pequeninas misérias de uma Civilização deliciosa!

Tudo isto era especioso, talvez pueril--mas para mim revelava, naquele
chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. Nessa mesma
tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetrámos nos centros
de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de caliça parda,
eriçado de chaminés de lata negra, com as janelas sempre fechadas, as
cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só
ferro, só argamassa, só estuque: linhas hirtas, ângulos ásperos: tudo
seco, tudo rígido. E dos chãos aos telhados, por toda a fachada,
tapando as varandas, comendo os muros, Tabuletas, Tabuletas...

--Oh, este Paris, Jacinto, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro
bazar!

E, mais para sondar o meu Príncipe do que por persuasão, insisti na
fealdade e tristeza destes prédios, duros armazéns, cujos andares são
prateleiras onde se apilha humanidade! E uma humanidade impiedosamente
catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas,
bem envernizadas. A reles e de trabalho nos altos, nos desvãos, sobre
pranchas de pinho nu, entre o pó e a traça...

Jacinto murmurou, com a face arrepiada:

--É feio, é muito feio!

E acudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:

--Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez! Que
produção!

Onde Jacinto me parecia mais renegado era na sua antiga e quase
religiosa afeição pelo Bosque de Bolonha. Quando moço, ele construíra
sobre o Bosque teorias complicadas e consideráveis. E sustentava, com
olhos rutilantes de fanático, que no Bosque a Cidade cada tarde ia
retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença das suas
Duquesas, das suas Cortesãs, dos seus Políticos, dos seus Financeiros,
dos seus Generais, dos seus Académicos, dos seus Artistas, dos seus
Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu
pessoal se mantinha em número, em vitalidade, em função, e que nenhum
elemento da sua grandeza desaparecera ou deperecera! «Ir ao Bois»
constituía então para o meu Príncipe um acto de consciência. E voltava
sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuía todos os seus
astros, garantindo a eternidade da sua luz!

Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que ele me levava ao
Bosque, onde eu, aproveitando a clemência de Abril, tentava enganar a
minha saudade de arvoredos. Enquanto subíamos, ao trote nobre das suas
éguas lustrosas, a Avenida dos Campos Elísios e a do Bosque,
rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos,
Jacinto, soprando o fumo da cigarrete pelas vidraças abertas do coupé,
permanecia o bom camarada, de veia amável, com quem era doce filosofar
através de Paris. Mas logo que passávamos as grades douradas do Bosque,
e penetrávamos na Avenida das Acácias, e enfiávamos na lenta fila dos
trens de luxo e de praça, sob o silêncio decoroso, apenas cortado pelo
tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia,--o meu
Príncipe emudecia, molemente engelhado no fundo das almofadas, de onde
só despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo antigo
hábito de verificar a presença confortadora do «pessoal, dos astros»,
ainda, por vezes, apontava para algum coupé ou vitória rodando com
rodar rangente noutra arrastada fila--e murmurava um nome. E assim fui
conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Efraim; e o longo
nariz patrício de Madame de Trèves abrigando um sorriso perene; e as
bochechas flácidas do poeta neoplatónico Dornan, sempre espapado no
fundo de fiacres; e os longos bandós pré-rafaelitas e negros de Madame
Verghane; e o monóculo defumado do director do _Boulevard_; e o
bigodinho vencedor do Duque de Marizac, reinando de cima do seu faéton
de guerra; e ainda outros sorrisos imóveis, e barbichas à Renascença, e
pálpebras amortecidas, e olhos farejantes, e peles empoadas de arroz,
que eram todas ilustres e da intimidade do meu Príncipe. Mas, do topo
da Avenida das Acácias, recomeçávamos a descer, em passo sopeado,
esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque
atrás de landau, vitória atrás de fiacre, fatalmente revíamos o
binóculo sombrio do homem do _Boulevard_, e os bandós furiosamente
negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neoplatónico, e a
barba talmúdica, e todas aquelas figuras, de uma imobilidade de cera,
super-conhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de
revividos anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó de arroz,
na mesma imobilidade de cera; então Jacinto não se continha, gritava
ao cocheiro:

--Para casa, depressa!

E era pela Avenida do Bosque, pelos Campos Elísios, uma fuga ardente das
éguas a quem a lentidão sopeada, num roer de freios, entre outras éguas
também delas superconhecidas, lançavam numa exasperação comparável à
de Jacinto.

Para o sondar eu denegria o Bosque:

--Já não é tão divertido, perdeu o brilho!...

Ele acudia, timidamente:

--Não, é agradável, não há nada mais agradável; mas...

E acusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus afazeres.
Recolhíamos então ao 202, onde, com efeito, em breve embrulhado no seu
roupão branco, diante da mesa de cristal, entre a legião das escovas,
com toda a electricidade refulgindo, o meu Príncipe se começava a
adornar para o serviço social da noite.

E foi justamente numa dessas noites (um sábado) que nós passámos,
naquele quarto tão civilizado e protegido, por um desses brutos e
revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já
tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no Clube para o acompanhar depois
ao _Lohengrin_ na Ópera) Jacinto arrocheava o nó da gravata
branca--quando no lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se
dessoldasse a torneira, o jacto de água a ferver rebentou furiosamente,
fumegando e silvando. Uma névoa densa de vapor quente abafou as
luzes--e, perdidos nela, sentíamos, por entre os gritos do escudeiro e
do Grilo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva
que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como
se todas as forças da natureza, submetidas ao serviço de Jacinto, se
agitassem, animadas por aquela rebelião da água--ouvimos roncos surdos
no interior das paredes, e pelos fios dos lumes eléctricos sulcaram
faíscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a névoa
grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão,
atraídas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava
polícia, uma multidão. E na escada esbarrei com um repórter, de chapéu
para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente «se havia mortos?»

Domada a água, clareada a bruma, vim encontrar Jacinto no meio do
quarto, em ceroulas, lívido:

--Oh Zé Fernandes, esta nossa indústria!... Que impotência, que
impotência! Pela segunda vez, este desastre! E agora, aparelhos
perfeitos, um processo novo...

--E eu encharcado por esse processo novo! E sem outra casaca!

Em redor, as nobres sedas bordadas, os brocatéis Luís XIII, cobertos de
manchas negras, fumegavam. O meu Príncipe, enfiado, enxugava uma
fotografia de Madame d'Oriol, de ombros decotados, que o jorro bruto
maculara de empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães a água
aquecia em seguras panelas--e subia ao meu lavatório, pela mão forte da
Catarina, em seguras infusas! Não jantámos com o duque de Marizac, no
Clube. E, na Ópera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu
branco cisne e as suas brancas armas--entalado, aperreado, cortado nos
sovacos pela casaca que Jacinto me emprestara e que rescendia
estonteadoramente a flores de Nessari.

       *       *       *       *       *

No domingo, muito cedo, o Grilo, que na véspera escaldara as mãos e as
trazia embrulhadas em seda, penetrou no meu quarto, descerrou as
cortinas, e à beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:

--Vem no _Figaro_!

Desdobrou triunfalmente o jornal. Eram, nos _Ecos, doze linhas, onde
as nossas águas rugiam e espadavam, com tanta magnificência e tanta
publicidade, que também sorri, deleitado.

--E toda a manhã, o telefone, siô Fernandes! exclamava o Grilo,
rebrilhando em ébano. A quererem saber, a quererem saber... «Está lá?
Está escaldado?» Paris aflito, siô Fernandes!

O telefone, com efeito, repicava, insaciável. E quando desci para o
almoço, a toalha desaparecia sob uma camada de telegramas, que o meu
Príncipe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a «maçada». Só
desanuviou, ao ler um desses papéis azuis, que atirou para cima do meu
prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorríramos, o
Grilo e eu:

--É do Grão-Duque Casimiro... Ratão amável! Coitado!

Saboreei, através dos ovos, o telegrama de S. Alteza. «O quê! o meu
Jacinto inundado! Muito chic, nos Campos Elísios! Não volto ao 202 sem
bóia de salvação! Compassivo abraço! Casimiro...» Murmurei também com
deferência:--«Amável! Coitado!» Depois, revolvendo lentamente o montão
de telegramas que se alastrava até ao meu copo:

--Oh Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te
telefona, te telegrafa, te...?

--Diana?... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!

--Tua?

--Minha, minha... Não! tenho um bocado.

E como eu lamentava que o meu Príncipe, senhor tão rico e de tão fino
orgulho, por economia de uma gamela própria chafurdasse com outros numa
gamela pública--Jacinto levantou os ombros, com um camarão espetado
no garfo:

--Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter
cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris,
nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os
seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as
suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é
necessário que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um
sindicato! Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado... Mas meramente
por Civismo, para dotar a cidade com uma cocotte monumental. De resto
não chafurdo. Pobre Diana!... Dos ombros para baixo nem sei se tem a
pele cor de neve ou cor de limão.

Arregalei um olho divertido:

--Dos ombros para baixo?... E para cima?

--Oh para cima tem pó de arroz!... Mas é uma seca! Sempre bilhetes,
sempre telefones, sempre telegramas. E três mil francos por mês, além
das flores... Uma maçada!

E as duas rugas do meu Príncipe, aos lados do seu afilado nariz, curvado
sobre a salada, eram como dois vales muito tristes, ao entardecer.

Acabávamos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, num
murmúrio, anunciou Madame d'Oriol. Jacinto pousou com tranquilidade o
charuto; eu quase me engasguei, num sorvo alvoroçado de café. Entre os
reposteiros de damasco cor de morango ela apareceu, toda de negro,
de um negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um
lindo gesto para nos sossegar. E imediatamente, numa volubilidade
docemente chalrada:

--É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Madalena, não me
contive, quis ver os estragos... Uma inundação em Paris, nos
Campos Elísios! Não há senão este Jacinto. E vem no _Figaro!_ O que eu
estava assustada, quando telefonei! Imaginem! Água a ferver, como no
Vesúvio... Mas é de uma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os
tapetes... Estou morrendo por admirar as ruínas!

Jacinto, que não me pareceu comovido, nem agradecido com aquele
interesse, retomara risonhamente o charuto:

--Está tudo seco, minha querida senhora, tudo seco! A beleza foi
ontem, quando a água fumegava e rugia! Ora que pena não ter ao menos
caído uma parede!

Mas ela insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços
de uma inundação. O _Figaro_ contara... E era uma aventura deliciosa, uma
casa escaldada nos Campos Elísios!

Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas que frisavam no chapéu até à
ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo
tenro sob o boliço do pássaro a chalrar. Só o sorriso, por trás do véu
espesso, conservava um brilho imóvel. E já no ar se espalhara um aroma,
uma doçura, emanadas de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.

Jacinto no entanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d'Oriol
ainda louvava o _Figaro_ amável, e confessava quanto tremera... Eu
voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Príncipe da Grã-Ventura
por aquela perfeita flor de Civilização que lhe perfumava a vida.
Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flor. E corri
vivamente à antecâmara, verificar diante do espelho o meu penteado e o
nó da minha gravata. Depois recolhi à sala de jantar, e junto da
janela, folheando languidamente a _Revista do Século XIX_, tomei uma
atitude de elegância e de alta cultura. Quase imediatamente eles
reapareceram: e Madame d'Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava
espoliada, nada encontrara que recordasse as águas furiosas, roçou pela
mesa, onde Jacinto procurava, para lhe oferecer, tangerinas de Malta,
ou castanhas geladas, ou um biscoito molhado em vinho de Tokai.

Ela recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta, nem
forte--mas cada prega do vestido, ou curva da capa, caía e ondulava
harmoniosamente, como perfeições recobrindo perfeições. Sob o véu
cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos
olhos largos. E com aquelas sedas e veludos negros, e um pouco do
cabelo louro, de um louro quente, torcido fortemente sobre as peles
negras que lhe orlavam o pescoço, toda ela derramava uma sensação de
macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flor de
Civilização:--e pensava no secular trabalho e na cultura superior que
necessitara o terreno onde ela tão delicadamente brotara, já
desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa por ser flor de esforço e
de estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de
antemurcho.

No entanto, com a sua volubilidade de pássaro, chalrando para mim,
chalrando para Jacinto, ela mostrava o seu lindo espanto por aquele
montão de telegramas sobre a toalha.

--Tudo esta manhã, por causa da inundação?... Ah, Jacinto é hoje o
homem, o único homem de Paris! Muitas mulheres nesses telegramas?

Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Príncipe empurrou para a
sua amiga o telegrama do Grão-Duque. Então Madame d'Oriol teve um _ah!_
muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S. A. que os
seus dedos acariciavam com uma reverência gulosa. E sempre grave, sempre
séria:

--É brilhante!

Oh, certamente! naquele desastre tudo se passara com muito brilho,
num tom muito Parisiense. E a deliciosa criatura não se podia demorar,
porque fizera marcar um lugar na igreja da Madalena para o sermão!

Jacinto exclamou com inocência:

--Sermão?... É já a estação dos sermões?

Madame d'Oriol teve um movimento de carinhoso escândalo e dor. O quê!
pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da Quaresma? De
resto não se admirava--Jacinto era um turco! E, imediatamente celebrou
o pregador, um frade dominicano, o Père Granon! Oh de uma eloquência!
de uma violência! No derradeiro sermão pregara sobre o amor, a
fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas de uma inspiração, de uma brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrível que esmagava, em que se lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço nu, um braço soberbo,
muito branco, muito forte!

O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejara dentro do véu
negro. E Jacinto, rindo:

--Um bom braço de director espiritual, hein? Para vergar, espancar
almas...

Ela acudiu:

--Não! infelizmente o Père Granon não confessa!

E de repente reconsiderou--aceitava um biscoito, um cálice de Tokai. Era
necessário um cordial para afrontar as emoções do Père Granon! Ambos
nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa, outro oferecendo o prato
de bombons. Franziu o véu para os olhos, chupou à pressa um bolo que
ensopara no Tokai. E como Jacinto, reparando casualmente no chapéu que
ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado, Madame d'Oriol
apagou o sorriso, toda séria, ante uma coisa séria:

--Elegante, não é verdade?... É uma criação inteiramente nova de Madame
Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo, agora na Quaresma.

O seu olhar, que me envolvera, também me convidava a admirar. Aproximei
o meu focinho de homem das serras para contemplar essa criação suprema
do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o veludo, na sombra das
plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada por um prego, pousava
delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos!

Ambos nos extasiámos. E Madame d'Oriol, num movimento e num sorriso
que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Madalena.

O meu Príncipe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e moles. E
bruscamente, levantando os ombros com uma determinação imensa, como se
deslocasse um mundo:

--Oh Zé Fernandes, vamos passar este Domingo nalguma coisa simples e
natural...

--Em quê?

Jacinto circungirou os olhares muito abertos, como se, através da Vida
Universal, procurasse ansiosamente uma coisa natural e simples. Depois,
descansando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito
longe, cansados e com pouca esperança:

--Vamos ao Jardim das Plantas, ver a girafa!



IV


Nessa fecunda semana, uma noite, recolhíamos ambos da Ópera, quando
Jacinto, bocejando, me anunciou uma festa no 202.

--Uma festa?...

--Por causa do Grão-Duque, coitado, que me vai mandar um peixe delicioso
e muito raro que se pesca na Dalmácia. Eu queria um almoço curto. O
Grão-Duque reclamou uma ceia. É um bárbaro, besuntado com literatura do
século XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris! Reúno no domingo
três ou quatro mulheres, e uns dez homens bem típicos, para o divertir.
Também aproveitas. Folheias Paris num resumo... Mas é uma maçada
amarga!

Sem interesse pela sua festa, Jacinto não se afadigou em a compor com
relevo ou brilho. Encomendou apenas uma orquestra de Tziganes (os
Tziganes, as suas jalecas escarlates; a melancolia áspera das Czardas
ainda nesses tempos remotos emocionavam Paris): e mandou, na
Biblioteca, ligar o Teatrofone com a Ópera, com a Comédia Francesa,
com o Alcazar e com os Bufos, prevendo todos os gostos desde o trágico
até ao pícaro. Depois no domingo, ao entardecer, ambos visitámos a mesa
da ceia, que resplandecia com as velhas baixelas de D. Galeão. E a
faustosa profusão de orquídeas, em longas silvas por sobre a toalha
bordada a seda, enroladas aos fruteiros de Saxe, transbordando de
cristais lavrados e filagranados de ouro, espalhava uma tão fina sensação
de luxo e gosto, que eu murmurei:--«Caramba, bendito, seja o dinheiro!»
Pela primeira vez, também, admirei a copa e a sua instalação abundante
e minuciosa--sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades
da cozinha, um para os peixes e carnes aquecido por tubos de água
fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas
frigoríficas. Oh, este 202!

Às nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de Jacinto para escrever
a minha boa tia Vicência, enquanto ele ficara no toucador com o
manicuro que lhe polia as unhas, passámos nesse delicioso palácio,
florido e em gala, por bem corriqueiro susto! Todos os lumes eléctricos,
subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha imensa desconfiança
daquelas forças universais, pulei logo para a porta, tropeçando nas
trevas, ganindo um _Aqui d'El-Rei!_ que tresandava a Guiães. Jacinto em
cima berrava, com o manicuro agarrado ao pijama. E de novo, como serva
ralaça que recolhe arrastando as chinelas, a luz ressurgiu com
lentidão. Mas o meu Príncipe, que descera, enfiado, mandou buscar um
engenheiro à Companhia Central da Electricidade Doméstica. Por precaução
outro criado correu à mercearia comprar pacotes de velas. E o Grilo
desenterrava já dos armários os candelabros abandonados, os pesados
castiçais arcaicos dos tempos incientíficos de D. Galeão: era uma
reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde, à
ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilização. O
Electricista, que acudira esbaforido, afiançou porém que a Electricidade
se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei na
algibeira dois cotos de estearina.

A Electricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu
quarto, tarde (porque perdera o colete de baile e só depois de uma busca
furiosa e praguejada o encontrei caído por trás da cama!), todo o 202
refulgia, e os Tziganes, na antecâmara, sacudindo as guedelhas, atiravam
as arcadas de uma valsa tão arrastadora que, pelas paredes, os imensos
Personagens das tapeçarias, Príamo, Nestor, o engenhoso Ulisses,
arfavam, buliam com os pés venerandos!

Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de
Jacinto. E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Trèves, que,
acompanhada pelo ilustre historiador Danjon (da Academia Francesa),
percorria maravilhada os Aparelhos, os Instrumentos, toda a sumptuosa
Mecânica do meu supercivilizado Príncipe. Nunca ela me parecera mais
majestosa do que naquelas sedas cor de açafrão, com rendas cruzadas no
peito à Maria Antonieta, o cabelo crespo e ruivo levantado em rolo
sobre a testa dominadora, e o curvo nariz patrício, abrigando o sorriso
sempre luzidio, sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir
de um regato. Direita como num sólio, a longa luneta de tartaruga
acercada dos olhos miúdos e turvamente azulados, ela escutava diante do
Grafofono, depois diante do Microfono, como melodias superiores, os
comentários que o meu Jacinto ia atabalhoando com uma amabilidade
penosa. E ante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente
torneados, em que atribuía a Jacinto, com astuta candura, todas
aquelas invenções do Saber! Os utensílios misteriosos que atulhavam a
mesa de ébano foram para ela uma iniciação que a enlevou. Oh, o
«numerador de páginas»! oh, o «colador de estampilhas»! A carícia
demorada dos seus dedos secos aquecia os metais. E suplicava os
endereços dos fabricantes para se prover de todas aquelas utilidades
adoráveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia e
fácil! Mas era necessário o talento, o gosto de Jacinto, para escolher,
para «criar!» E não só ao meu amigo (que o recebia com resignação) ela
ofertava o fino mel. Afagando com o cabo da luneta o Telégrafo, achou
a possibilidade de recordar a eloquência do Historiador. Mesmo para mim
(de quem ignorava o nome) arranjou junto do Fonógrafo, e acerca de
«vozes de amigos que é doce coleccionar», uma lisonjazinha redondinha e
lustrosa, que eu chupei como um rebuçado celeste. Boa casaleira que vai
atirando o grão aos frangos famintos, a cada passo, maternalmente, ela
nutria uma vaidade. Sôfrego de outro rebuçado, acompanhei a sua cauda
sussurrante e cor de açafrão. Ela parara diante da Máquina de contar, de
que Jacinto já lhe fornecera pacientemente uma explicação sapiente. E
de novo roçou os buracos de onde espreitam os números negros, e com o seu
enlevado sorriso murmurou:--«Prodigiosa, esta prensa eléctrica!...»

Jacinto acudiu:

--Não! Não! Esta é...

Mas ela sorria, seguia... Madame de Trèves não compreendera nenhum
aparelho do meu Príncipe! Madame de Trèves não atendera a nenhuma
dissertação do meu Príncipe! Naquele gabinete de sumptuosa Mecânica
ela somente se ocupara em exercer, com proveito e com perfeição, a
Arte de Agradar. Toda ela era uma sublime falsidade. Não escondi a
Danjon a admiração que me penetrava.

O facundo Académico revirou os olhos bogalhudos:

--Oh! e um gosto, uma inteligência, uma sedução!... E depois como se
janta bem em casa dela! Que café!... Mulher superior, meu caro senhor,
verdadeiramente superior!

Deslizei para a biblioteca. Logo à entrada da erudita nave, junto da
estante dos Padres da Igreja onde alguns cavalheiros conversavam, parei
a saudar o director do _Boulevard_ e o Psicólogo feminista, o autor do
_Coração Triplo_, com quem na véspera me familiarizara ao almoço, no
202. O seu acolhimento foi paternal: e, como se necessitasse a minha
presença, reteve na sua mão ilustre, rutilante de anéis, com força e
com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aqueles senhores, com
efeito, celebravam o seu Romance, a _Couraça_, lançado nessa semana
entre gritinhos de gozo e um quente rumor de saias alvoroçadas. Um
sobretudo, com uma vasta cabeça arranjada à Van Dick e que parecia
postiça, proclamava, alçado na ponta das botas, que nunca penetrara tão
fundamente, na velha alma humana, a ponta da Psicologia Experimental!
Todos concordavam, se apertavam contra o Psicólogo, o tratavam por
«mestre». Eu mesmo, que nem sequer entrevira a capa amarela da
_Couraça_, mas para quem ele voltava os olhos pedinchões e famintos de
mais mel, murmurei com um leve assobio:--«uma delícia!»

E o Psicólogo, reluzindo, com o lábio húmido, entalado num alto
colarinho onde se enroscava uma gravata à 1830, confessava modestamente
que dissecara todas aquelas almas da _Couraça_ com «algum cuidado»,
sobre documentos, sobre pedaços de vida ainda quentes, ainda a
sangrar... E foi então que Marizac, o duque de Marizac, notou, com um
sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar as mãos dos
bolsos:

--No entanto, meu caro, nesse livro tão profundamente estudado há um
erro bem estranho, bem curioso!...

O Psicólogo, vivamente, atirara a cabeça para trás:

--Um erro?

Oh, sim, um erro! E bem inesperado num mestre tão experiente!... Era
atribuir à esplêndida amorosa da _Couraça_, uma duquesa, e do gosto
mais puro,--_um colete de cetim preto_! Esse colete, assim preto, de
cetim, aparecia na bela página de análise e paixão em que ela se
despia no quarto de Rui d'Alize. E Marizac, sempre com as mãos nos
bolsos, mais grave, apelava para aqueles senhores. Pois era
verosímil, numa mulher como a duquesa, estética, pré-rafaelítica, que
se vestia no Doucet, no Paquin, nos costureiros intelectuais, um
colete de cetim preto?

O Psicólogo emudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma tão
suprema autoridade sobre a roupa íntima das duquesas, que à tarde, em
quartos de rapazes, por impulsos idealistas e anseios de alma
dolorida--se põem em colete e saia branca!... De resto o director do
_Boulevard_ condenara logo sem piedade, com uma experiência firme,
aquele colete, só possível nalguma merceeira atrasada que ainda
procurasse efeitos de carne nédia sobre cetim negro. E eu, para que me
não julgassem alheio às coisas dos adultérios ducais e do luxo, acudi,
metendo os dedos pelo cabelo:

--Realmente, preto, só se estivesse de luto pesado, pelo pai!

O pobre mestre da _Couraça_ sucumbira. Era a sua glória de Doutor em
Elegâncias Femininas desmantelada--e Paris supondo que ele nunca vira
uma duquesa desatacar o colete na sua alcova de Psicólogo! Então,
passando o lenço sobre os lábios que a angústia ressequira, confessou o
erro, e contritamente o atribuiu a uma improvisação tumultuosa:

--Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com
efeito! é absurdo, um colete preto!... Mesmo por harmonia com o estado
da alma da duquesa devia ser lilás, talvez cor de reseda muito
desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines... É prodigioso
como me escapou! Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem anotadas,
bem documentadas!...

Na sua amargura, terminou por suplicar a Marizac que espalhasse por
toda a parte, no Clube, nas salas, a sua confissão. Fora um engano de
artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas
profundidades negras das almas! Não reparara no colete, confundira os
tons... E gritou, com os braços estendidos para o director do
_Boulevard_:

--Estou pronto a fazer uma rectificação, numa _interview_, meu caro
mestre! Mande um dos seus redactores... Amanhã, às dez horas! Fazemos
uma _interview_, fixamos a cor. Evidentemente é lilás... Mande um dos
seus homens, meu caro mestre! É também uma ocasião para eu confessar,
bem alto, os serviços que o _Boulevard_ tem feito às ciências
psicológicas e feministas!

Assim ele suplicava, encostado à estante, às lombadas dos Santos
Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Biblioteca Jacinto que se
debatia e se recusava entre dois homens.

Eram os dois homens de Madame de Trèves--o marido, conde de Trèves,
descendente dos reis de Cândia, e o amante, o terrível banqueiro judeu,
David Efraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu Príncipe que nem
me reconheceram, ambos num aperto de mão mole e vago me trataram por
«caro conde»! Num relance, rebuscando charutos sobre a mesa de
limoeiro, compreendi que se tramava a _Companhia das Esmeraldas da
Birmânia_, medonha empresa em que cintilavam milhões, e para que os
dois confederados de bolsa e de alcova, desde o começo do ano, pediam o
nome, a influência, o dinheiro de Jacinto. Ele resistira, num enfado
dos negócios, desconfiado daquelas esmeraldas soterradas num vale da
Ásia. E agora o conde de Trèves, um homem esgrouviado, de face
rechupada, eriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e amarela
como um melão, assegurava ao meu pobre Príncipe que no Prospecto já
preparado, demonstrando a grandeza do negócio, perpassava um fulgor das
_Mil e Uma Noites_. Mas sobretudo aquela escavação de esmeraldas
convidava todo o espírito culto pela sua acção civilizadora. Era uma
corrente de ideias ocidentais, invadindo, educando a Birmânia. Ele
aceitara a direcção por patriotismo...

--De resto é um negócio de jóias, de arte, de progresso, que deve ser
feito, num mundo superior, entre amigos...

E do outro lado o terrível Efraim, passando a mão curta e gorda sobre a
sua bela barba, mais frisada e negra que a de um Rei Assírio, afiançava
o triunfo da empresa pelas grossas forças que nela entravam, os
Nagayers, os Bolsans, os Saccart...

Jacinto franzia o nariz, enervado:

--Mas, ao menos, estão feitos os estudos? Já se provou que há
esmeraldas?

Tanta ingenuidade exasperou Efraim:

--Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!... Há sempre esmeraldas
desde que haja accionistas!

E eu admirava a grandeza daquela máxima--quando apareceu, esbaforido,
desdobrando o lenço muito perfumado, um dos familiares do 202, Todelle
(António de Todelle), moço já calvo, de infinitas prendas, que conduzia
Cotillons, imitava cantores de Café Concerto, temperava saladas raras,
conhecia todos os enredos de Paris.

--Já veio?... Já cá está o Grão-Duque?

Não, S. Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle?

--Não pôde... No sofá... Esfolou uma perna.

--Oh!

--Quase nada... Caiu do velocípede!

Jacinto, logo interessado:

--Ah! Madame de Todelle anda já de velocípede?

--Aprende. Nem tem velocípede!... Agora, na Quaresma, é que se aplicou
mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no
Bosque, zás, terra!... Perna esfolada. Aqui.

E na sua própria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão.
Efraim, brutal e sério, murmurou:--«Diabo! é no melhor sítio!» Mas
Todelle nem o escutara, correndo para o director do _Boulevard_, que se
avançava, lento e barrigudo, com o seu monóculo negro semelhante a um
pacho. Ambos se colaram contra uma estante, num cochichar profundo.

Jacinto e eu entrámos então no bilhar, forrado de velhos couros de
Córdova, onde se fumava. Ao canto de um divã, o grande Dornan, o poeta
neoplatónico e místico, o Mestre subtil de todos os ritmos, espapado
nas almofadas, com um dos pés sob a coxa gorda, como um Deus índio, dois
botões do colete desabotoados, a papeira caída sobre o largo decote do
colarinho, mamava majestosamente um imenso charuto. Ao pé dele,
também sentado, um velho que eu nunca encontrara no 202, esbelto, de
cabelos brancos em anéis passados por trás das orelhas, a face coberta
de pó de arroz, um bigodinho muito negro e arrebitado, findara
certamente alguma história de bom e grosso sal--porque diante do divã,
de pé, Joban, o supremo Crítico de Teatro, ria com a calva escarlate de
gozo, e um moço muito ruivo (descendente de Coligny), de perfil de
periquito, sacudia os braços curtos como asas, e gania: «delicioso!
divino!» Só o poeta idealista permanecera impassível, na sua majestade
obesa. Mas, quando nos acercámos, esse Mestre do ritmo perfeito, depois
de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das
pálpebras, começou numa voz de rico e sonoro metal:

--Há melhor, há infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame
Noredal. Madame Noredal tem umas imensas nádegas...

Desgraçadamente para o meu regalo Todelle invadiu o bilhar, reclamando
Jacinto com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir no
Fonógrafo uma ária da Patti! O meu amigo sacudiu logo os ombros,
numa surda irritação:

--Ária da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos estão em confusão. Além
disso o Fonógrafo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho três. Nenhum
trabalha!

--Bem! exclamou alegremente Todelle. Canto eu a _Pauvre fille_... É mais
de ceia! _Oh, la pauv', pauv', pauv'_...

Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para o salão cor
de rosa murcha, onde, como Deusas num círculo escolhido do Olimpo,
resplandeciam Madame d'Oriol, Madame Verghane, a princesa de Carman, e
uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e
de ombros tão nus, e braços tão nus, e peitos tão nus, que o seu vestido
branco com bordados de ouro pálido parecia uma camisa, a escorregar.
Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho:--«Quem é?» Mas já o
festivo homem correra para Madame d'Oriol, com quem riam, numa
familiaridade superior e fácil, Marizac (o duque de Marizac) e um moço
de barba cor de milho e mais leve que uma penugem, que se balouçava
gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento. E eu, encalhado
contra o piano, esfregava lentamente as mãos, amassando o meu embaraço,
quando Madame Verghane se ergueu do sofá onde conversava com um velho
(que tinha a Grã-Cruz de Santo André), e avançou, deslizou no tapete,
pequena e nédia, na sua copiosa cauda de veludo verde-negro. Tão fina
era a cinta, entre os encontros fecundos e a vastidão do peito, todo nu
e cor de nácar, que eu receava que ela partisse pelo meio, no seu lento
ondular. Os seus famosos bandós negros, de um negro furioso, inteiramente
lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro de ouro que os circundava,
reluzia uma estrela de brilhantes, como na fronte dos anjos de
Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha autoridade no 202, ela
despediu sobre mim ao passar, como raio benéfico, um sorriso que lhe
liquescia mais os olhos líquidos, e murmurou:

--O Grão-Duque vem, com certeza?

--Oh com certeza, minha senhora, para o peixe!

--P'ra o peixe?...

Mas justamente, na antecâmara, rompeu, em rufos e arcadas triunfais, a
marcha de Rakoczy. Era ele! Na Biblioteca, o nosso retumbante mordomo
anunciava:

--S. Alteza o Grão-Duque Casimiro!

Madame de Verghane, com um curto suspiro de emoção, alteou o peito, como
para lhe expor melhor a magnificência ebúrnea. E o homem do _Boulevard_,
o velho da Grã-Cruz, Efraim, quase me empurraram, investindo para a
porta, na imensa sofreguidão de Pessoa Real.

Precedido por Jacinto, o Grão-Duque surgiu. Era um possante homem, de
barba em bico, já grisalha, um pouco calvo. Durante um momento hesitou,
com um balanço lento sobre os pés pequeninos, calçados de sapatos rasos,
quase sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado e risonho,
veio apertar a mão às senhoras que mergulhavam nos veludos e sedas, em
mesuras de Corte. E imediatamente, batendo com carinhosa jovialidade no
ombro de Jacinto:

--E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hein?

Um murmúrio de Jacinto tranquilizou S. Alteza.

--Ainda bem, ainda bem! exclamou ele, no seu vozeirão de comando. Que
eu não jantei, absolutamente não jantei! É que se está jantando
deploravelmente em casa do Joseph. Mas porque se vai jantar ainda ao
Joseph? Sempre que chego a Paris, pergunto: «Onde é que se janta agora?»
Em casa do Joseph!... Qual! não se janta! Hoje, por exemplo,
galinholas... Uma peste! Não tem, não tem a noção da galinhola!

Os seus olhos azulados, de um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela
indignação:

--Paris está perdendo todas as suas superioridades. Já se não janta, em
Paris!

Então, em redor, aqueles senhores concordaram, desolados. O conde de
Trèves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições. E o
director do _Boulevard_, que se empurrava todo para S. Alteza, atribuía
a decadência da cozinha, em França, à República, ao gosto democrático e
torpe pelo barato.

--No Paillard, todavia...--começou o Efraim.

--No Paillard! gritou logo o Grão-Duque. Mas os Borgonhas são tão maus!
os Borgonhas são tão maus!...

Deixara pender os braços, os ombros, descoroçoado. Depois, com o seu
lento andar balançado como o de um velho piloto, atirando um pouco para
trás as lapelas da casaca, foi saudar Madame d'Oriol, que toda ela
faiscou, no sorriso, nos olhos, nas jóias, em cada prega das suas sedas
cor de salmão. Mas apenas a clara e macia criatura, batendo o leque como
uma asa alegre, começara a chalrar, S. Alteza reparou no aparelho do
Teatrofone, pousado sobre uma mesa entre flores, e chamou Jacinto:

--Em comunicação com o Alcazar?... O Teatrofone?

--Certamente, meu senhor.

Excelente! Muito chic! Ele ficara com pena de não ouvir a Gilberte
numa cançoneta nova, as _Casquettes_. Onze e meia! Era justamente a
essa hora que ela cantava, no último acto da _Revista
Eléctrica_...--Colou às orelhas os dois «receptores» do Teatrofone, e
quedou embebido, com uma ruga séria na testa dura. De repente, num
comando forte:

--É ela! Chut! Venham ouvir!... É ela! Venham todos! Princesa de
Carman, para aqui! Todos! É ela! Chut...

Então, como Jacinto instalara prodigamente dois Teatrofones, cada um
provido de doze fios, as senhoras, todos aqueles cavalheiros, se
apressaram a acercar submissamente um receptor do ouvido, e a permanecer
imóveis para saborear _Les Casquettes_. E no salão cor de rosa murcha,
na nave da Biblioteca, onde se espalhara um silêncio augusto, só eu
fiquei desligado do Teatrofone, com as mãos nas algibeiras e ocioso.

No relógio monumental, que marcava a hora de todas as Capitais e o
movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a
mudez e a imobilidade pensativa daqueles dorsos, daqueles decotes,
a Electricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada
orelha atenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa.
Dornan, esboroado sobre a mesa, cerrara as pálpebras, numa meditação de
monge obeso. O historiador dos Duques de Anjou, com o «receptor» na ponta
delicada dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria
um dever palaciano. Madame d'Oriol sorria, toda lânguida, como se o fio
lhe murmurasse doçuras. Para desentorpecer arrisquei um passo tímido.
Mas caiu logo sobre mim um _chut_ severo do Grão-Duque! Recuei para
entre as cortinas da janela, a abrigar a minha ociosidade. O Filólogo
da _Couraça_, distante da mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia
o beiço, num esforço de penetração. A beatitude de S. Alteza, enterrado
numa vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o colo de Madame Verghane
arfava como uma onda de leite. E o meu pobre Jacinto, numa aplicação
conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão tristemente como sobre
uma sepultura.

Então, ante aqueles seres de superior civilização, sorvendo num
silêncio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo
do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos
canos das fezes,--pensei na minha aldeia adormecida. O crescente de lua,
que, seguido de uma estrelinha, corria entre nuvens sobre os telhados e
as chaminés negras dos Campos Elísios, também andava lá fugindo, mais
lustrosa e mais doce, por cima dos pinheirais. As rãs coaxavam ao longe
no Pego da Dona. A ermidinha de S. Joaquim branquejava no cabeço,
nuazinha e cândida...

Uma das senhoras murmurou:

--Mas, não é a Gilberte!...

E um dos homens:

--Parece um cornetim...

--Agora são palmas...

--Não, é o Paulin!

O Grão-Duque lançou um _chut_ feroz... No pátio da nossa casa ladravam
os cães. De além do ribeiro respondiam os cães do João Saranda. Como me
encontrei descendo por uma quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao
ombro? E sentia, entre a seda das cortinas, num fino ar macio, o
cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos currais através
das sebes altas, e o sussurro dormente das levadas...

Despertei a um brado que não saía nem dos eidos, nem das sombras. Era o
Grão-Duque que se erguera, encolhia furiosamente os ombros:

--Não se ouve nada!... Só guinchos! E um zumbido! Que maçada!... Pois é
uma beleza, a cançoneta:

Oh les casquettes,
Oh les casque-e-e-tes!...

Todos largaram os fios--proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo
bendito, abrindo largamente os dois batentes, anunciou:

--_Monseigneur est servi_!

Na mesa, que pelo esplendor das orquídeas mereceu os louvores ruidosos
de S. Alteza, fiquei entre o etéreo poeta Dornan e aquele moço de
penugem loura que balouçava como uma espiga ao vento. Depois de
desdobrar o guardanapo, de o acomodar regaladamente sobre os joelhos,
Dornan desenvencilhou da corrente do relógio uma enorme luneta para
percorrer o _menu_--que aprovou. E inclinando para mim a sua face de
Apóstolo obeso:

--Este Porto de 1834, aqui em casa do Jacinto, deve ser autêntico...
Hein?

Assegurei ao Mestre dos Ritmos que o «Porto» envelhecera nas adegas
clássicas do avô Galeão. Ele afastou, numa preparação metódica, os
longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a boca grossa. Os
escudeiros serviram um consommé frio com trufas. E o moço cor de milho,
que espalhara pela mesa o seu olhar azul e doce, murmurou, com uma
desconsolação risonha:

--Que pena!... Só falta aqui um general e um bispo!

Com efeito! Todas as Classes Dominantes comiam nesse momento as trufas
do meu Jacinto... Mas defronte Madame d'Oriol lançara um riso mais
cantado que um gorjeio. O Grão-Duque, numa silva de orquídeas que
orlava o seu talher, notara uma, sombriamente horrenda, semelhante a um
lacrau esverdinhado, de asas lustrosas, gordo e túmido de veneno: e
muito delicadamente ofertara a flor monstruosa a Madame d'Oriol, que,
com trinado riso, solenemente, a colocou no seio. Colado àquela
carne macia, de uma brancura de nata fina, o lacrau inchara, mais verde,
com as asas frementes. Todos os olhos se acendiam, se cravavam no lindo
peito, a que a flor disforme, de cor venenosa, apimentava o sabor. Ela
reluzia, triunfava. Para ajeitar melhor a orquídea os seus dedos
alargaram o decote, aclararam belezas, guiando aquelas curiosidades
flamejantes que a despiam. A face vincada de Jacinto pendia para o
prato vazio. E o alto lírico do _Crepúsculo Místico_, passando a mão
pelas barbas, rosnou com desdém:

--Bela mulher... Mas ancas secas, e aposto que não tem nádegas!

No entanto o moço de loura penugem voltara à sua estranha mágoa. Não
possuirmos um general com a sua espada, e um bispo com seu báculo!...

--Para quê, meu caro senhor?

Ele atirou um gesto suave em que todos os seus anéis faiscaram:

--Para uma bomba de dinamite... Temos aqui um esplêndido ramalhete de
flores de Civilização, com um Grão-Duque no meio. Imagine uma bomba de
dinamite, atirada da porta!... Que belo fim de ceia, num fim de
século!

E como eu o considerava assombrado, ele, bebendo golos de
Chateau-Yquem, declarou que hoje a única emoção, verdadeiramente fina,
seria aniquilar a Civilização. Nem a ciência, nem as artes, nem o
dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas
almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de _criar_ estava
esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de _destruir_!

Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros.
Mas eu não atendia o gentil pedante, colhido por outro
cuidado--reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacara
como no conto do Palácio Petrificado. E o prato agora devido era o peixe
famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!
Jacinto, nervoso, esmagava entre os dedos uma flor. E todos os
escudeiros sumidos!

Felizmente o Grão-Duque contava a história de uma caçada, nas coutadas de
Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro, saltara bruscamente
do cavalo, num descampado, sem árvores. Ele e todos os caçadores
param--e a galante senhora, lívida, com a amazona arregaçada, corre para
trás de uma pedra... Mas nunca soubemos em que se ocupava a banqueira,
nesse descampado, agachada atrás da pedra--porque justamente o mordomo
apareceu, reluzente de suor, e balbuciou uma confidência a Jacinto,
que mordeu o beiço, trespassado. O Grão-Duque emudecera. Todos se
entreolhavam, numa ansiedade alegre. Então o meu Príncipe, com
paciência, com heroicidade, forçando palidamente o sorriso:

--Meus amigos, há uma desgraça...

Dornan pulou na cadeira:

--Fogo?

Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos, que inesperadamente, ao
subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara, e não se movia, encalhado!

O Grão-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como
um esmalte mal posto:

--Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que
estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E porque o não trouxeram à
mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a copa?

E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que
tropeçava, vergava os ombros, ante esta esmagadora cólera de Príncipe.
Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S. Alteza. E eu
não me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o desastre,
enquanto Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!

O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde
mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais a face esbraseada.
Espreitei, por sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva, sobre uma
larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda
fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata,
torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o
Grão-Duque que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos
cabos em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de
bronze eterno.

Sedas roçagaram à entrada da copa. Era Madame d'Oriol, e atrás Madame
Verghane, com os olhos a faiscar, na curiosidade daquele lance em que
o Príncipe soltara tanta paixão. Marizac, nosso íntimo, surgiu também,
risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o
Psicólogo, que se abeirou, psicologou, atribuindo intenções sagazes
ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Grão-Duque, escarlate,
mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos
afundavam a face, murmuravam: «lá está!» Todelle, na sua precipitação,
quase se despenhou. O periquito descendente de Coligny batia as asas,
ganindo:--«Que cheiro ele deita, que delícia!» Na copa atulhada os
decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó
de arroz meteu o pé num balde de gelo, com um berro ferino. E o
Historiador dos Duques de Anjou movia por cima de todos o seu nariz
bicudo e triste.

De repente, Todelle teve uma ideia!

--É muito simples... É pescar o peixe!

O Grão-Duque bateu na coxa uma palmada triunfal. Está claro! Pescar o
peixe! E no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova, toda a sua
cólera se sumira, de novo se tornara o Príncipe amável, de magnífica
polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir à pesca
miraculosa! Ele mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a
divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho.
Imediatamente Madame d'Oriol, excitada, ofereceu um dos seus ganchos.
Apinhados em volta dela, sentindo o seu perfume, o calor da sua pele,
todos exaltámos a amorável dedicação. E o Psicólogo proclamou que nunca
se pescara com tão divino anzol!

Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um
cordel, já o Grão-Duque, radiante, vergara o gancho em anzol. Jacinto,
com uma paciência lívida, erguia uma lâmpada sobre a escuridão do poço
fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o director do
_Boulevard_, o Conde de Trèves, o homem de cabeça à Van-Dick, sorriam,
amontoados à porta, num interesse reverente pela fantasia de S.
Alteza. Madame de Trèves, essa, examinava serenamente, com a sua nobre
luneta, a instalação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os
punhos cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço encovado, no tédio
sombrio de fera a quem arrancaram a posta.

No entanto S. Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco
agudo, sem presa, bamboleando na extremidade da guita frouxa, não
fisgava.

--Oh Jacinto, erga essa luz! gritava ele, inchado e suado. Mais!...
Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o gancho o pode prender.
Agora... Qual! Que diabo! Não vai!

Tirou a face do poço, resfolgando e afrontado. Não era possível! Só
carpinteiros, com alavancas!... E todos, ansiosamente, bradámos que se
abandonasse o peixe!

O Príncipe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim «fora
mais divertido pescá-lo do que comê-lo!» E o elegante bando refluiu
sofregamente para a mesa, ao som de uma valsa de Strauss, que os Tziganes
arremessaram em arcadas de lânguido ardor. Só Madame de Trèves se demorou
ainda, retendo o meu pobre Jacinto, para lhe assegurar quanto admirava
o arranjo da sua copa... Oh perfeita! Que compreensão da vida, que fina
inteligência do conforto!

S. Alteza, encalmado pelo esforço, esvaziou poderosamente dois copos de
Chateau-Lagrange. Todos o aclamavam como um pescador genial. E os
escudeiros serviram o _Barão de Pauillac_, cordeiro das lezírias
marinhas, que, preparado com ritos quase sagrados, toma este grande nome
sonoro e entra no Nobiliário de França.

Eu comi com o apetite de um herói de Homero. Sobre o meu copo e o de
Dornan o Champanhe cintilou e jorrou ininterrompidamente como uma
fonte de Inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se derretiam
na boca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime
a «Santa Clara». E como, do outro lado, o moço de penugem loura
insistia pela destruição do velho mundo, também concordei, e, sorvendo o
Champanhe coalhado em sorvete, maldissemos o Século, a Civilização,
todos os orgulhos da Ciência! Através das flores e das luzes, no
entanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane,
que ria como uma bacante. E nem me apiedava de Jacinto que, com a
doçura de S. Jacinto sobre o cepo, esperava o fim do seu martírio e da
sua festa.

Ela findou. Ainda recordo, às três horas da noite, o Grão-Duque na
antecâmara, muito vermelho, mal firme nos pés pequeninos, sem acertar
com as mangas da peliça que Jacinto e eu lhe ajudámos a
enfiar--convidando o meu amigo, numa efusão carinhosa, a ir caçar às
suas terras da Dalmácia...

--Devo ao meu Jacinto uma bela pesca, quero que ele me deva uma bela
caçada!

E enquanto o acompanhávamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta
escada onde o mordomo o precedia erguendo um candelabro de três lumes,
S. Alteza repisava, pegajoso:

--Uma bela caçada... E também vai Fernandes! Bom Fernandes, Zé
Fernandes! Ceia superior, meu Jacinto! O _Barão de Pauillac_,
divino!... Creio que o devemos nomear Duque... O Senhor Duque de
Pauillac! Mais um bocado da perna do Senhor Duque de Pauillac. Ah!
Ah!... Não venham fora! Não se constipem!

E do fundo do coupé, ao rodar, ainda bradou:

--O peixe, Jacinto, desencalha o peixe! Excelente, ao almoço, frio,
com molho verde!

Trepando cansadamente os degraus, numa moleza de Champanhe e sono em
que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Príncipe:

--Foi divertido, Jacinto! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o
elevador...

E Jacinto, num som cavo que era bocejo e rugido:

--Uma maçada! E tudo falha!

       *       *       *       *       *

Três dias depois desta festa no 202 recebeu o meu Príncipe
inesperadamente, de Portugal, uma nova considerável. Sobre a sua quinta
e solar de Tormes, por toda a serra, passara uma tormenta devastadora de
vento, corisco e água. Com as grossas chuvas, «ou por outras causas que
os peritos dirão» (como exclamava na sua carta angustiada o procurador
Silvério), um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o vale
da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica
do século XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os
tempos de el-rei D. Manuel. Os ossos veneráveis desses Jacintos jaziam
agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silvério já
começara com os moços da quinta a desatulhar dos «preciosos restos». Mas
esperava ansiosamente as ordens de sua exc.^a...

Jacinto empalidecera, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo
e firme desde os Godos, que de repente ruía! Esses jazigos de paz
piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro
fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data,
uma história, confundidas num lixo de ruína!

--Coisa estranha, coisa estranha!...

E toda a noite me interrogou acerca da serra e de Tormes, que eu
conhecia desde pequeno, por que o velho solar, com a sua nobre alameda
de faias seculares, se erguia a duas léguas da nossa casa, no antigo
caminho de Guiães à estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom
Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha:--e muitas vezes,
depois da minha intimidade com Jacinto, eu entrara no robusto casarão
de granito, e avaliara o grão espalhado pelas salas sonoras, e provara o
vinho novo nas adegas imensas...

--E a igreja, Zé Fernandes?... Entraste na igreja?

--Nunca... Mas era pitoresca, com uma torrezinha quadrada, toda negra,
onde há muitos anos vivia uma família de cegonhas... Terrível
transtorno para as cegonhas!

--Coisa estranha! murmurava ainda o meu Príncipe, agourado.

E telegrafou ao Silvério que desatulhasse o vale, recolhesse as
ossadas, reedificasse a Igreja, e, para esta obra de piedade e
reverência, gastasse o dinheiro, sem contar, como a água de um rio largo.



V


No entanto Jacinto, desesperado com tantos desastres humilhadores--as
torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o Vapor que se
encolhia, a Electricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as
resistências finais da Matéria e da Força por novas e mais poderosas
acumulações de Mecanismos. E nessas semanas de Abril, enquanto as
rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquelas quietas casas
dos Campos Elísios que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu,
envolta num pó de caliça e de empreitada, com o bruto picar de pedra, o
retininte martelar de ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era
doce fumar antes do almoço um pensativo cigarro, circulavam agora, desde
madrugada, ranchos de operários, de blusas brancas, assobiando o
_Petit-Bleu_, e intimidando os meus passos quando eu atravessava em
fralda e chinelas para o banho ou para outros retiros. Apenas se varava
com perícia algum andaime obstruindo as portas--logo se esbarrava com
uma pilha de tábuas, uma seira de ferramentas ou um balde enorme
de argamassa. E os pedaços de soalho levantado mostravam tristemente,
como num cadáver aberto, todos os interiores do 202, a ossatura, os
sensíveis nervos de arame, os negros intestinos de ferro fundido.

Cada dia estacava diante do portão alguma lenta carroça, donde os
criados, em mangas de camisa, descarregavam caixotes de madeira, fardos
de lona, que se despregavam e se descosiam numa sala asfaltada, ao
fundo do jardim, por trás da sebe de lilases. E eu descia, reclamado
pelo meu Príncipe, para admirar uma nova Máquina que nos tornaria a vida
mais fácil, estabelecendo de um modo mais seguro o nosso domínio sobre a
Substância. Durante os calores, que apertaram depois da Ascensão,
ensaiámos esperançadamente, para refrescar as águas minerais, a
Soda-Water e os Medocs ligeiros, três geleiras, que se amontoaram na
copa sucessivamente desprestigiadas. Com os morangos novos apareceu um
instrumentozinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente.
Depois recebemos outro, prodigioso, de prata e cristal, para remexer
freneticamente as saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo
o vinagre esparrinhou sobre os olhos do meu Príncipe, que fugiu aos
uivos! Mas ele teimava... Nos actos mais elementares, para aliviar ou
apressar o esforço, se socorria Jacinto da Dinâmica. E agora era por
intervenção de uma Máquina que abotoava as ceroulas.

E simultaneamente, ou em obediência à sua Ideia, ou governado pelo
despotismo do hábito, não cessava, ao lado da Mecânica acumulada, de
acumular Erudição. Oh, a invasão dos livros no 202! Solitários, aos
pares, em pacotes, dentro de caixas, franzinos, gordos e repletos de
autoridade, envoltos em plebeia capa amarela ou revestidos de
marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente, invadiam por todas as
largas portas a Biblioteca, onde se estiravam sobre o tapete, se
repimpavam nas cadeiras macias, se entronizavam em cima das mesas
robustas, e sobretudo trepavam contra as janelas, em sôfregas pilhas,
como se, sufocados pela sua própria multidão, procurassem com ânsia
espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns vidros mais altos
restavam descobertos, sem tapume de livros, perenemente se adensava um
pensativo crepúsculo de Outono enquanto fora Junho refulgia. A
Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário
sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não
se franzia uma cortina sem que de trás surgisse, hirta, uma ruma de
livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo
urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda
colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!

Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que, no meu
quarto, moído e mole de um passeio a Versalhes, com as pálpebras
poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito,
praguejando, um pavoroso Dicionário de Indústria em trinta e sete
volumes! Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros,
os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facúndia humana... E já me
estirara, adormecia, quando topei, quase parti a preciosa rótula do
joelho, contra a lombada de um tomo que velhacamente se aninhara entre a
parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo
afrontoso--que entornou o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E
nem sei se depois adormeci--porque os meus pés, a que não sentia nem o
pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a
tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim que o
luar branqueava, depois na Avenida dos Campos Elísios, povoada e ruidosa
como numa festa cívica. E, oh portento! todas as casas aos lados eram
construídas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de
livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com
títulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a
brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia,
avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei trepar,
arquejante, ora enterrando a perna em flácidas camadas de versos, ora
batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de Exegese e
Crítica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para além das
nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Eles rolavam
serenamente, enormes e mudos, recobertos por espessas crostas de livros,
donde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre dois volumes mal
juntos, um raiozinho de luz sufocada e ansiada. E assim ascendi ao
Paraíso. Decerto era o Paraíso--porque com meus olhos de mortal argila
avistei o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde.
Numa claridade que dele irradiava mais clara que todas as claridades,
entre fundas estantes de ouro abarrotadas de códices, sentado em
vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por
sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos--o Altíssimo
lia. A fronte superdivina que concebera o Mundo pousava sobre a mão
superforte que o Mundo criara--e o Criador lia e sorria. Ousei,
arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro
coruscante. O livro era brochado, de três francos... O Eterno lia
Voltaire, numa edição barata, e sorria.

Uma porta faiscou e rangeu, como se alguém penetrasse no Paraíso. Pensei
que um Santo novo chegara da Terra. Era Jacinto, com o charuto em
brasa, um molho de cravos na lapela, sobraçando três livros amarelos
que a Princesa de Carman lhe emprestara para ler!

       *       *       *       *       *

Numa dessas activas semanas, porém, a minha atenção subitamente se
despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do 202, conservava no 202
a minha mala e a minha roupa: e, acostado à bandeira do meu Príncipe,
ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão sumptuoso. Mas a minha
alma, a minha embrutecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo,
habitavam então na rua do Hélder, n.^o 16, quarto andar, porta à
esquerda.

Descia eu uma tarde, numa leda paz de ideias e sensações, o Boulevard da
Madalena, quando avistei, diante da Estação dos Ónibus, rondando no
asfalto, num passo lento e felino, uma criatura seca, muito morena,
quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes, e uma mata
de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu velho de
plumas negras. Parei, como colhido por um repuxão nas entranhas. A
criatura passou--no seu magro rondar de gata negra, sobre um beiral de
telhado, ao luar de Janeiro. Dois poços fundos não luzem mais negra e
taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros. Não
recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de seda, lustroso e
ensebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma súplica por entre os
dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais
silenciosos que condenados, para um gabinete do Café Durand, safado e
morno. Diante do espelho, a criatura, com a lentidão de um rito triste,
tirou o chapéu e a romeira salpicada de vidrilhos. A seda puída do
corpete esgarçava nos cotovelos agudos. E os seus cabelos eram
imensos, de uma dureza e espessura de juba brava, em dois tons
amarelos, uns mais dourados, outros mais crestados, como a côdea de uma
torta ao sair quente do forno.

Com um riso trémulo, agarrei os seus dedos compridos e frios:

--E o nomezinho, hein?

Ela séria, quase grave:

--Madame Colombe, 16, rua do Hélder, quarto andar, porta à esquerda.

E eu (miserável Zé Fernandes!) também me senti muito sério, trespassado
por uma emoção grave, como se nos envolvesse, naquela alcova de Café,
a majestade de um Sacramento. À porta, empurrada levemente, o criado
avançou a face nédia. Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e
Borgonha. E foi somente ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando
convulsamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a boca, todo a
tremer, num beijo profundo e terrível, em que deixei a alma, entre
saliva e gosto de pimentão! Depois, numa tipóia aberta, sob um bafo
mole de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos Campos Elísios. Em
frente à grade do 202 murmurei, para a deslumbrar com o meu luxo:--«Moro
ali, todo o ano!...» E como ao mirar o Palacete, debruçada, ela
roçara a mata fulva do pêlo crespo pela minha barba--berrei
desesperadamente ao cocheiro; que galopasse para a rua do Hélder, n.^o
16, quarto andar, porta à esquerda!

Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os
Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial,
como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um
bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava
a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava
a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas
semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé
Fernandes--Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava
ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno
rubro e rugidor: ora me parecia ser uma faminta fogueira onde
flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses
dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de
cretones sujos, de uma bata de lã cor de lilás com sotaches negros, de
vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, e de um corpo
tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a
sensação de incessantemente e com arroubado deleite me despojar,
arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns
joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os
meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete libras em
ouro que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do sólido,
decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando
através de um sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer.

Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do
Hélder, encontrei a porta fechada--e arrancado da ombreira aquele
cartão de _Madame Colombe_ que eu lia sempre tão devotamente e que era a
sua tabuleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse!
Aquela era a porta do Mundo que ante mim se fechara! Para além estavam
as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho,
naquele patamar do Não-Ser, fora da porta que se fechara, único ser
fora do Mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência de uma
pedra, até ao cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas
em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado
o Universo!

--Madame Colombe?

A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:

--Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!

Para outra terra! com outra porca!... Vazio, negramente vazio de todo o
pensar, de todo o sentir, de todo o querer--boiei aos tombos, como um
tonel vazio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei num
banco da Praça da Madalena, onde tapei com as mãos, a que não sentia a
febre, os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já
se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu, dentre
todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas
as ruínas--a ideia de jantar. Penetrei no Durand, com os passos
entorpecidos de um ressuscitado. E, numa recordação que me escaldava a
alma, encomendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o
colarinho, ensopado pelo ardor daquela tarde de Julho, entre a poeira
da Madalena, pensei com desconforto:--«Santíssimo Nome de Deus! Que
imensa sede me fez esta desgraça!...» De manso acenei ao moço:--«Antes
do Borgonha, uma garrafa de Champanhe, com muito gelo, e um grande
copo!...» Creio que aquele Champanhe se engarrafara no Céu onde corre
perenemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bendita que
me coube penetrara, antes de arrolhada, um jorro largo dessa fonte
inefável. Jesus! que transcendente regalo, o daquele nobre copo,
embaciado, nevado, a espumar, a picar, num brilho de ouro! E depois,
garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de Cognac! E depois
Hortelã-Pimenta granitada em gelo! E depois um desejo arquejante de
espancar, com o meu rijo marmeleiro de Guiães, a porca que fugira com
outra porca! Dentro da tipóia fechada, que me transportou num galope ao
202, não sufoquei este santo impulso, e com os meus punhos serranos
atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde _via_, furiosamente
_via_ a mata imensa de pêlo amarelo, em que a minha alma uma tarde
se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se emporcalhara!
Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão desesperadamente a
besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dois moços acudiram e me
sustiveram, recebendo pelos ombros, sobre as nucas servis, os restos
cansados da minha cólera.

Em cima, repeli a solicitude do Grilo que tentava impor ao _siô_ Zé
Fernandes, a Zé Fernandes de Guiães, a imensa indignidade de um chá de
macela! E estirado no leito de D. Galeão, com as botas sobre o
travesseiro, o chapéu alto sobre os olhos, ri, num doloroso riso,
deste Mundo burlesco e sórdido de Jacintos e de Colombes! E de repente
senti uma angústia horrenda. Era Ela! Era a Madame Colombe, que
esfuziara da chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e desabotoara
o meu colete, e arrombara as minhas costelas, e toda ela, com as
saias sujas, mergulhara dentro do meu peito, e abocara o meu coração, e
chupava a sorvos lentos, como na rua do Hélder, o sangue do meu coração!
Então, certo da Morte, ganindo pela tia Vicência, pendi do leito para
mergulhar na minha sepultura, que, através da névoa final, eu distinguia
sobre o tapete--redondinha, vidrada, de porcelana e com asa. E, sobre a
minha sepultura, que tão irreverentemente se assemelhava ao meu vaso,
vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta. Depois, num
esforço ultrahumano, com um rugido, sentindo que, não somente toda a
entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe! Recaí
sobre o leito de D. Galeão... Recarreguei o chapéu sobre os olhos para
não sentir os raios do sol. Era um sol novo, um sol espiritual, que se
erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma criancinha docemente
embalada num berço de verga pelo Anjo da Guarda.

De manhã, lavei a pele num banho profundo, perfumado com todos os
aromas do 202, desde folhas de limonete da Índia até essência de jasmim
de França: e lavei a alma com uma rica carta da Tia Vicência, em letra
farta, contando da nossa casa, e da linda promessa das vinhas, e da
compota de ginja que nunca lhe saíra tão fina, e da alegre fogueira do
pátio em noite de S. João, e da menininha muito gorda e cabeluda que
viera do céu para a minha afilhada Joaninha. Depois, à janela, bem
limpo de alma e de corpo, numa quinzena de sedinha branca, tomando chá
de Naïpò, respirando os rosais do jardim revividos pela chuva da
madrugada, considerei, em divertido pasmo, que, durante sete semanas, me
emporcalhara, na rua do Hélder, com um estardalho muito magro e muito
tisnado! E conclui que padecera de uma longa sezão, sezão da carne, sezão
da imaginação, apanhada num charco de Paris--nesses charcos que se
formam através da Cidade com as águas mortas, os limos, os lixos, os
tortulhos e os vermes de uma Civilização que apodrece.

       *       *       *       *       *

Então, curado, todo o meu espírito, como uma agulha para o Norte, se
virou logo para o meu complicado Príncipe, que, nas derradeiras semanas
da minha infecção sentimental, eu entrevira sempre descaído por cima de
sofás, ou vagueando através da Biblioteca entre os seus trinta mil
volumes, com arrastados bocejos de inércia e de vacuidade. Eu, na minha
pressa indigna, só lhe lançava um distraído--«que é isso?» Ele, no seu
moroso desalento, só murmurava um seco--«é calor!»

E, nessa manhã da minha libertação, ao penetrar antes de almoço no seu
quarto, no sofá o encontrei enterrado, com o _Figaro_ aberto sobre a
barriga, a Agenda caída sobre o tapete, toda a face envolta em sombra,
e os pés abandonados, numa soberana tristeza, ao pedicuro que lhe polia
as unhas. Decerto o meu olhar realumiado e repurificado, a brancura das
minhas flanelas reproduzindo a quietação das minhas sensações, e a
segura harmonia em que todo o meu ser visivelmente se movia,
impressionaram o meu Príncipe--a quem a melancolia nunca embotava a
agudeza. Ergueu molemente um braço mole:

--Então esse capricho?

Derramei, sobre ele todo o fulgor de um riso vitorioso:

--Morto! E, como o Sr. de Malbrouck, «morto e bem enterrado.» Jaz! Ou
antes, rola! Com efeito deve andar agora rolando por dentro do cano do
esgoto!

Jacinto bocejou, murmurou:

--Este Zé Fernandes de Noronha e Sande!...

E, no meu nome, no meu digno nome assim embrulhado num bocejo com
desprendida ironia, se resumiu todo o interesse daquele Príncipe pela
suja tormenta em que se debatera o meu coração! Mas não me melindrou
esse consumado egoísmo... Claramente percebia eu que o meu Jacinto
atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele tão afundado na
sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um camarada não o
comoviam, como muito remotas, intangíveis, separadas da sua
sensibilidade por imensas camadas de algodão. Pobre Príncipe da
Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do
pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão bravamente
todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a Força e
a Matéria!--E esse fastio não o escondeu mais do seu velho Zé Fernandes
quando recomeçou entre nós a comunhão de vida e de alma a que eu tão
torpemente me arrancara, uma tarde, diante da Estação dos Ónibus, no
charco da Madalena.

Não eram certamente confissões enunciadas. O elegante e reservado
Jacinto não torcia os braços, gemendo--«Oh vida maldita!» Eram apenas
expressões saciadas; um gesto de repelir com rancor a importunidade das
coisas; por vezes uma imobilidade determinada, de protesto, no fundo
de um divã, donde se não desenterrava, como para um repouso que
desejasse eterno; depois os bocejos, os ocos bocejos com que sublinhava
cada passo, continuado por fraqueza ou por dever iniludível; e
sobretudo aquele murmurar que se tornara perene e natural--«Para
quê?»--«Não vale a pena!»--«Que maçada!...»

Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo:

--Jacinto anda tão murcho, tão corcunda... Que será, Grilo?

O venerando preto declarou com uma certeza imensa:

--S. Exc.^a sofre de fartura.

Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris:--e
na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como
ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia
saborear plenamente a «delícia de viver», ele não encontrava agora
forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o
esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil. Pobre Jacinto! Um
jornal velho, setenta vezes relido desde a Crónica até aos Anúncios,
com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o Solitário,
que só possuísse na sua Solidão esse alimento intelectual, do que o
Parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu nesse Verão
capciosamente o arrastava a um Café-Concerto, ou ao festivo Pavilhão
d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira com um
maravilhoso ramo de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o
castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada,
que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em
abalar, a sua fuga de ave solta... Raramente (e então com veemente
arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus Clubes, ao fundo
dos Campos Elísios. Não se ocupara mais das suas Sociedades e
Companhias, nem dos _Telefones de Constantinopla_, nem das _Religiões
Esotéricas_, nem do _Bazar Espiritualista_, cujas cartas fechadas se
amontoavam sobre a mesa de ébano, donde o Grilo as varria tristemente
como o lixo de uma vida finda. Também lentamente se despegava de todas as
suas convivências. As páginas da Agenda cor-de-rosa murcha andavam
desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de Mail-Coach, ou a
um convite para algum Castelo amigo dos arredores de Paris, era tão
arrastadamente, com um esforço tão saturado ao enfiar o paletó leve,
que me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de província,
a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda
comer uma lampreia de ovos!

Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem
defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu
Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de
Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de
atulhamento! Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos móveis
roliços e fofos, todos os seus metais e todos os seus livros, tão
espessamente o oprimiam, que escancarava sem cessar as janelas para
prolongar o espaço, a claridade, a frescura. Mas era então a poeira,
suja e acre, rolada em bafos mornos, que o enfurecia:

--Oh, este pó da Cidade!

--Mas, oh Jacinto, por que não vamos para Fontainebleau, ou para
Montmorency, ou...

--P'ra o campo? O quê! P'ra o campo?!

E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre tanta
indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no arrependimento de ter
afrontosamente ultrajado o Príncipe que tanto amava. Desventurado
Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka a fumegar, errava então pelas
salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem afeições
e sem ocupações. Esses desafeiçoados e desocupados passos
monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, à Biblioteca
de ébano, onde acumulara Civilização nas máximas proporções para gozar
nas máximas proporções a delícia de viver. Espalhava em torno um olhar
farto. Nenhuma curiosidade ou interesse lhe solicitavam as mãos,
enterradas nas algibeiras das pantalonas de seda, numa inércia de
derrota. Anulado, bocejava com descoroçoada moleza. E nada mais
instrutivo e doloroso do que este supremo homem do século XIX, no meio
de todos os aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios
que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta
mil volumes repletos do saber dos séculos--estacando, com as mãos
derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão
mole de um bocejo, o embaraço de viver!



VI


Todas as tardes, cultivando uma dessas intimidades que entre tudo o que
cansa jamais cansam, Jacinto, às quatro horas, com regularidade devota,
visitava Madame d'Oriol:--porque essa flor de Parisianismo permanecera
em Paris, mesmo depois do Grand-Prix, a desbotar na calma e no cisco da
Cidade. Numa dessas tardes, porém, o Telefone, ansiosamente repicado,
avisou Jacinto de que a sua doce amiga jantava em Enghien com os
Trèves. (Esses senhores gozavam o seu Verão à beira do lago, numa casa
toda branca e vestida de rosinhas brancas que pertencia a Efraim).

Era um domingo silencioso, enevoado e macio, convidando às
voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha alma) sugeri
a Jacinto que subíssemos à Basílica do _Sacré-Coeur_, em construção
nos altos de Montmartre.

--É uma seca, Zé Fernandes...

--Com mil demónios! Eu nunca vi a Basílica...

--Bem, bem! Vamos à Basílica, homem fatal de Noronha e Sande!

E por fim logo que começámos a penetrar, para além de S. Vicente de
Paula, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província,
com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas
cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante
das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando
em canas--o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza
das coisas.

A vitória parou em frente à larga rua de escadarias que trepa, cortando
vielazinhas campestres, até à esplanada, onde, envolta em andaimes, se
ergue a Basílica imensa. Em cada patamar barracas de arraial devoto,
forradas de paninho vermelho, transbordavam de Imagens, Bentinhos,
Crucifixos, Corações de Jesus bordados a retrós, claros molhos de
Rosários. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria. Dois
padres desciam, tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava
na doçura cinzenta da tarde. E Jacinto murmurou, com agrado:

--É curioso!

Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes e
andaimes, toda branca e seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E
Jacinto, por um impulso bem Jacíntico, caminhou gulosamente para a
borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície
cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada
de caliça e telha. E, na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de
fumo, mais ténue e ralo que o fumear de um escombro mal apagado, era todo
o vestígio visível da sua vida magnífica.

Então chasqueei risonhamente o meu Príncipe. Aí estava pois a Cidade,
augusta criação da Humanidade! Ei-la aí, belo Jacinto! Sobre a crosta
cinzenta da Terra--uma camada de caliça, apenas mais cinzenta! No
entanto ainda momentos antes a deixáramos prodigiosamente viva, cheia
de um povo forte, com todos os seus poderosos órgãos funcionando,
abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiência, na triunfal
plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça. E agora
eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos,
escutávamos--e de toda a estridente e radiante Civilização da Cidade não
percebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o 202, o soberbo 202, com os
seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica, os seus
trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de telha e cinza! Para
este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla de cem
metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço?
Hein, Jacinto?... Onde estão os teus Armazéns servidos por três mil
caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro universal? E as Bibliotecas
atulhadas com o saber dos séculos? Tudo se fundiu numa nódoa parda que
suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que ele suba,
fumando o seu cigarro, a uma arredada colina--a sublime edificação dos
Tempos não é mais que um silencioso monturo da espessura e da cor do pó
final. O que será então aos olhos de Deus!

E ante estes clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu
Príncipe, ele murmurou, pensativo:

--Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão!

Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu
Príncipe, uma Ilusão! E a mais amarga, por que o Homem pensa ter na
Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a
sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza
harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou
obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos
como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem
sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda--esse ser em que Deus,
espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na
Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma
necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre
e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar,
rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o
enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos,
serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A
sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os Santos)
onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada
pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia
rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de
seres que tumultuam na arquejante ocupação de _desejar_--e que, nunca
fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança
ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se
desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do
viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e
faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com
desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o
interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da
rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto?
Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva
se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho
Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão
a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos
caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa lei
natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de
Lesbos!... Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência,
porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a
extravagância. Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que
constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela
envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as
expressões já exprimidas:--ou então, para se destacar na pardacenta e
chata Rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num
gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e
que detenha a multidão como um mostrengo numa Feira. Todos,
intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o
mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila,
as pegadas pisadas;--e alguns são macacos, saltando no topo de mastros
vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade,
nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e
alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como
o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se
murmuram através de arames--o homem aparece como uma criatura
anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem
sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo
ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a
bela Cidade!

E ante estas encanecidas e veneráveis invectivas, retumbadas
pontualmente por todos os Moralistas bucólicos, desde Hesíodo, através
dos séculos--o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elas
brotassem, inesperadas e frescas, de uma Revelação superior, naqueles
cimos de Montmartre:

--Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!

Insisti logo, com abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil
filosofar. E se ao menos essa ilusão da Cidade tornasse feliz a
totalidade dos seres, que a mantêm... Mas não! Só uma estreita e
reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O
resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos
especiais que só nela existem! Deste terraço, junto a esta rica
Basílica consagrada ao Coração que amou o Pobre e por ele sangrou, bem
avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva sob esse antigo
opróbrio de que nem Religiões, nem Filosofias, nem Morais, nem a sua
própria força brutal a poderão jamais libertar! Aí jaz, espalhada pela
Cidade, como esterco vil que fecunda a Cidade. Os séculos rolam; e
sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles,
através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com
este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a
abundância da Cidade! Ei-la agora coberta de moradas em que eles se não
abrigam; armazenada de estofos, com que eles se não agasalham;
abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a
neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas
pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris... A neve
cai, muda e branca na treva: as criancinhas gelam nos seus trapos: e a
polícia, em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido
sono daqueles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de
Bolonha com peliças de três mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua
Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá,
nesta amarga desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho, por cada
arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que
incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a
condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas tigelas fumegasse a
justa ração de caldo--não poderia aparecer nas baixelas de prata a
luxuosa porção de _foie-gras_ e túbaras que são o orgulho da
Civilização. Há andrajos em trapeiras--para que as belas Madamas
d'Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, subam, em doce ondulação, a
escadaria da Ópera. Há mãos regeladas que se estendem, e beiços sumidos
que agradecem o dom magnânimo de um _sou_--para que os Efrains tenham
dez milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha
aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas, netas
dos Duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus
pequeninos--para que os Jacintos, em Janeiro, debiquem, bocejando,
sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champanhe e avivados de um fio
de éter!

--E eu comi dos teus morangos, Jacinto! Miseráveis, tu e eu!

Ele murmurou, desolado:

--É horrível, comemos desses morangos... E talvez por uma ilusão!

Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade,
estendida na planície, fosse escandalosa. E caminhámos devagar, sob a
moleza cinzenta da tarde, filosofando--considerando que para esta
iniquidade não havia cura humana, trazida pelo esforço humano. Ah, os
Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só
abandonarão ou afrouxarão a exploração das Plebes, se uma influência
celeste, por milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes
converter as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no
pecado--e contra ele são impotentes os prantos dos Humanitários, os
raciocínios dos Lógicos, as bombas dos Anarquistas. Para amolecer tão
duro granito só uma doçura divina. Eis pois esperança da terra novamente
posta num Messias!... Um decerto desceu outrora dos grandes Céus; e,
para mostrar bem que mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela
porta de um curral. Mas a sua passagem entre os homens foi tão curta! Um
meigo sermão numa montanha, ao fim de uma tarde meiga; uma repreensão
moderada aos Fariseus que então redigiam o _Boulevard_; algumas
vergastadas nos Efrains vendilhões; e logo, através da porta da morte,
a fuga radiosa para o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve
demasiada pressa em recolher a casa de seu Pai! E os homens a quem ele
incumbira a continuação da sua obra, envolvidos logo pelas influências
dos Efrains, dos Trèves, da gente do _Boulevard_, bem depressa
esqueceram a lição da Montanha e do lago de Tiberíade--e eis que por seu
turno revestem a púrpura, e são Bispos, e são Papas, e se aliam à
opressão, e reinam com ela, e edificam a duração do seu Reino sobre a
miséria dos sem-pão e dos sem-lar! Assim tem de ser recomeçada a obra da
Redenção. Jesus, ou Guatama, ou Cristna, ou outro desses filhos que
Deus por vezes escolhe no seio de uma Virgem, nos quietos vergéis da
Ásia, deverá novamente descer à terra de servidão. Virá ele, o
desejado? Porventura já algum grave rei do Oriente despertou, e olhou a
estrela, e tomou a mirra nas suas mãos reais, e montou pensativamente
sobre o seu dromedário? Já por esses arredores da dura Cidade, de noite,
enquanto Caifás e Madalena ceiam lagosta no Paillard, andou um Anjo,
atento, num voo lento, escolhendo um curral? Já de longe, sem moço que
os tanja, na gostosa pressa de um divino encontro, vem trotando a vaca,
trotando o burrinho?

--Tu sabes, Jacinto?

Não, Jacinto não sabia--e queria acender o charuto. Forneci um
fósforo ao meu Príncipe. Ainda rondámos no terraço, espalhando pelo ar
outras ideias sólidas que no ar se desfaziam. Depois penetrávamos na
Basílica--quando um Sacristão nédio, de barrete de veludo, cerrou
fortemente a porta, e um Padre passou, enterrando na algibeira, com um
cansado gesto final e como para sempre, o seu velho Breviário.

--Estou com uma sede, Jacinto... Foi esta tremenda Filosofia!

Descemos a escadaria, armada em arraial devoto. O meu pensativo camarada
comprou uma imagem da Basílica. E saltávamos para a vitória, quando
alguém gritou rijamente, numa surpresa:

--Eh Jacinto!

O meu Príncipe abriu os braços, também espantado:

--Eh Maurício!

E, num alvoroço, atravessou a rua, para um café, onde, sob o toldo de
riscadinho, um robusto homem, de barba em bico, remexia o seu absinto,
com o chapéu de palha descaído na nuca, a quinzena solta sobre a camisa
de seda, sem gravata, como se descansasse num banco, entre as sombras
do seu jardim.

E ambos, apertando as mãos, se admiravam daquele encontro, num
domingo de Verão, sobre as alturas de Montmartre.

--Oh! eu estou aqui no meu bairro! exclamava alegremente Maurício. Em
família, em chinelos... Há três meses que subi para estes cimos da
Verdade... Mas tu na Santa Colina, homem profano da planície e das ruas
de Israel!

O meu Príncipe mostrou o seu Zé Fernandes:

--Com este amigo, em peregrinação à Basílica... O meu amigo Fernandes
Lorena... Maurício de Mayolle, velho camarada.

Mr. de Mayolle (que, pela face larga e nariz nobremente grosso, lembrava
Francisco de Valois, Rei de França) ergueu o seu chapéu de palha. E
empurrava uma cadeira, insistia que nos acomodássemos para um absinto
ou para um bock.

--Toma um bock, Zé Fernandes! lembrou Jacinto. Tu estavas a ganir com
sede!

Corri lentamente a língua sobre os beiços, mais secos que pergaminhos:

--Estou a guardar esta sedezinha para logo, para o jantar, com um
vinhozinho gelado!

Maurício saudou, com silenciosa admiração, esta minha avisada malícia. E
imediatamente, para o meu Príncipe:

--Há três anos que te não vejo, Jacinto... Como tem sido possível,
neste Paris que é uma aldeola e que tu atravancas?

--A vida, Maurício, a espalhada vida... Com efeito! Há três anos,
desde a casa dos Lamotte-Orcel. Tu ainda visitas esse santuário?

Maurício atirou um gesto desdenhoso e largo, que sacudia um mundo:

--Oh! Há mais de um ano que me separei dessa bicharia herética... Uma
turba indisciplinada, meu Jacinto! Nenhuma fixidez, um diletantismo
estonteado, carência completa e cómica de toda a base experimental...
Quando tu ias aos Lamotte-Orcel, e à Parola do 37, e à _Cerveja Ideal_,
o que reinava?...

Jacinto catou lentamente as suas recordações por entre os pêlos do
bigode:

--Eu sei!... Reinava Wagner e a Mitologia Édica, e o Raganarock, e as
Nornas... Muito Pré-Rafaelismo também, e Montagna, e Fra Angelico... Em
moral, o Renanismo.

Maurício sacudia os ombros. Oh, tudo isso pertencia a um passado
arcaico, quase lacustre! Quando Madame de Lamotte-Orcel remobilara a
sala com veludos Morris, grossas alcachofras sobre tons de açafrão, já o
Renanismo passara, tão esquecido como o Cartesianismo...

--Tu ainda és do tempo do culto do _Eu_?

O meu Príncipe suspirou risonhamente:

--Ainda o cultivei.

--Pois bem! Logo depois foi o Hartmanismo, o Inconsciente. Depois o
Nietzismo, o Feudalismo espiritual... Depois grassou o Tolstoïsmo, um
furor imenso de renunciamento neo-cenobítico. Ainda me lembro de um
jantar em que apareceu um mostrengo de um eslavo, de guedelha sórdida,
que atirava olhos medonhos para o decote da pobre condessa de Arche, e
que grunhia com o dedo espetado:--«Busquemos a luz, muito por baixo, no
pó da terra!»--E à sobremesa bebemos à delícia da humildade e do
trabalho servil, com aquele Champanhe Marceaux granitado que a Matilde
dava nos grandes dias em copos da forma do San-Gral! Depois veio
Emersonismo... Mas a praga cruel foi Ibsenismo! Enfim, meu filho, uma
Babel de Éticas e Estéticas. Paris parecia demente. Já havia uns
desgarrados que tendiam para o Luciferismo. E amiguinhas nossas,
coitadas, iam descambando para o Falismo, uma moxinifada
místico-brejeira, pregada por aquele pobre La Carte que depois se fez
Monge Branco, e que anda no Deserto... Um horror! E uma tarde, de
repente, toda esta massa se precipita com ânsia para o Ruskinismo!

Eu, agarrado à bengala, bem fincada no chão, sentia como um vendaval que
redemoinhava, me torcia o crânio! E até Jacinto balbuciou, esgazeado:

--O Ruskinismo?

--Sim, o velho Ruskin,... John Ruskin!

O meu ditoso Príncipe compreendeu:

--Ah, Ruskin!... _As sete lâmpadas da Arquitectura_, _A Coroa de
Oliveira Brava_... É o culto da Beleza.

--Sim! O culto da Beleza, confirmou Maurício. Mas a esse tempo eu,
enojado, já descera de todas essas nuvens vãs... Pisava um chão mais
seguro, mais fértil.

Deu um sorvo lento ao absinto, cerrando as pálpebras. Jacinto
esperava, com o seu fino nariz dilatado, como para respirar a Flor de
Novidade que ia desabrochar:

--E então? então?...

Mas o outro murmurou, dispersamente, por entre reticências em que se
velava:

--Vim para Montmartre... Tenho aqui um amigo, um homem de génio, que
percorreu toda a Índia... Viveu com os Toddas, esteve nos mosteiros de
Garma-Khian e de Dashi-Lumbo, e estudou com Gegen-Chutu no retiro santo
de Urga... Gegen-Chutu foi a décima sexta encarnação de Guatama, e era
portanto um Boddi-sattva... Trabalhamos, procuramos... Não são visões.
Mas factos, experiências bem antigas, que vêm talvez desde os tempos de
Cristna...

Através destes nomes, que exalavam um perfume triste de vetustos
ritos, arredara a cadeira. E de pé, deixando cair sobre a mesa,
distraidamente, para pagar o absinto, moedas de prata e moedas de
cobre, murmurava com os olhos descansados em Jacinto, mas perdidos
noutra visão:

--Por fim tudo se reduz ao supremo desenvolvimento da Vontade dentro da
suprema pureza da Vida. É toda a ciência e força dos grandes mestres
Hindus... Mas a pureza absoluta da vida, eis a luta, eis o obstáculo!
Não basta mesmo o Deserto, nem o bosque do mais velho templo no alto
Tibete... Ainda assim, meu Jacinto, já obtivemos resultados bem
estranhos. Sabes as experiências de Tyndall, com as chamas
sensitivas... O pobre químico, para demonstrar as vibrações do som,
tocou quase às portas da verdade esotérica. Mas quê! homem de ciência,
portanto homem de estupidez, ficou aquém, entre as suas placas e as suas
retortas! Nós fomos além. Verificámos as _ondulações da Vontade_! Diante
de nós, pela expansão da energia do meu companheiro, e em cadência com o
seu mandado, uma chama, a três metros, ondulou, rastejou, despediu
línguas ardentes, lambeu uma alta parede, rugiu furiosa e negra,
resplandeceu direita e silenciosa, e bruscamente abatida em cinza
morreu!

E o estranho homem, com o chapéu para a nuca, ficou imóvel, de braços
abertos e os olhares esgazeados, como no renovado assombro e no transe
daquele prodígio. Depois, recaindo no seu modo fácil e sereno,
acendendo de vagar um cigarro:

--Uma destas manhãs, Jacinto, apareço no 202, para almoçar contigo, e
levo o meu amigo. Ele só come arroz, uma pouca de salada, e fruta. E
conversamos... Tu tinhas um exemplar do _Sepher-Zerijah_ e outro do
_Targum d'Onkelus_. Preciso folhear esses livros.

Apertou a mão do meu Príncipe, saudou este assombrado Zé Fernandes, e
serenamente seguiu pela quieta rua, com o chapéu de palha para a nuca,
as mãos enterradas nas algibeiras, como um homem natural entre coisas
naturais.

--Oh Jacinto! Quem é este bruxo? Conta!... Quem é ele, santíssimo nome
de Deus?

Recostado na vitória, ajeitando o vinco das calças, o meu Príncipe
contou, concisamente. Era um nobre e leal rapaz, muito rico, muito
inteligente, da antiga casa soberana de Mayolle, descendente dos Duques
de Septimânia... E murmurou, através do costumado bocejo:

--O desenvolvimento supremo da vontade!... Teosofia, Budismo
esotérico... Aspirações, decepções... Já experimentei... Uma maçada!

Atravessamos, calados, o rumor de Paris, sob a moleza abafada do
crepúsculo de Verão, para jantar no Bosque, no Pavilhão de Armenonville,
onde os Tziganes, avistando Jacinto, tocaram o _Hino da Carta_ com
paixão, com langor, numa cadência de _czarda_ dolorosa e áspera.

E eu, desdobrando regaladamente o guardanapo:

--Pois venha agora para a minha rica sede esse vinhozinho gelado!
Grandemente o mereço, caramba, que superiormente filosofei!... E creio
que estabeleci definitivamente no espírito do Sr. D. Jacinto o salutar
horror da cidade!

O meu Príncipe percorria, catando o bigode, a Lista dos Vinhos, enquanto
o Copeiro, esperava com pensativa reverência:

--Mande gelar duas garrafas de champanhe S.^t Marceaux... Mas antes, um
Barsac velho, apenas refrescado... Água de Evian... Não, de Bussang!
Bem, d'Evian e de Bussang! E, para começar, um bock.

Depois, bocejando, desabotoando lentamente a sobrecasaca cinzenta:

--Pois estou com vontade de construir uma casa nos cimos de Montmartre,
com um miradouro no alto, todo de vidro e ferro, para descansar de tarde
e dominar a Cidade...



VII


Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora:--e eu pensava em
realizar finalmente a minha romagem às cidades da Europa, sempre
retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da Carne.
Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé
Fernandes o acompanhasse, todas as tardes, a casa de Madame d'Oriol! E
eu compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino Aquiles, que,
sob a tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseis, nunca
dispensava Pátroclo) desejava ter, no retiro do Amor, a presença, o
conforto e o socorro da Amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã
combinava pelo telefone com Madame d'Oriol essa hora de quietação e
doçura. E assim encontrávamos sempre a superfina Dama prevenida e
solitária naquela sala da rua de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal
cabíamos, sufocávamos na confusão, entre os cestos de flores, e os
ouros rocalhados, e os monstros do Japão, e a galante fragilidade dos
Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés de sofás adormecedores, e
os biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas...
Aninhada numa cadeira de bambu lacada de branco, entre almofadas
aromatizadas de verbena da Índia, com um romance pousado no regaço, ela
esperava o seu amigo, numa certa indolência passiva e mansa que me
lembrava sempre o Oriente e um Harém. Mas, pelas frescas sedinhas
Pompadour, parecia também uma marquesinha de Versalhes cansada do grande
século; ou então, com brocados sombrios e largos cintos cravejados, era
como uma veneziana, preparada para um Doge. A minha intrusão, na
intimidade daquelas tardes, não a contrariava--antes lhe trazia um
vassalo novo, com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu
_cher Fernandez_!

E apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a uma
ferida fresca, e começava a chalrar--logo nos envolvia o burburinho e a
murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua pessoa que era o
resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o resumo do seu
Paris:--e a sua existência, desde casada, consistira em ornar com
suprema ciência o seu lindo corpo; entrar com perfeição numa sala e
irradiar; remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de
cera; decotar e branquear o colo; debicar uma perna de galinhola em
mesas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a
vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os «Echos» e
as «Festas» do _Figaro_; e de vez em quando murmurar para o marido--«Ah,
és tu?...» Além disso, ao lusco-fusco, num sofá, alguns certos
suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu
Príncipe, nesse ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de
Cidade e de Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorrira, desde casada, que
já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas
nem na alma, nem na pele, mostrava outras máculas de fadiga. A sua
Agenda de Visitas continha mil e trezentos nomes, todos do Nobiliário.
Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjara no cérebro
(onde de certo penetrara o pó de arroz que desde o colégio acamava na
testa) algumas Ideias Gerais. Em Política era pelos Príncipes; e todos os
outros «horrores», a República, o Socialismo, a Democracia que se não
lava, os sacudia risonhamente, com um bater de leque. Na Semana Santa
juntava às rendas do chapéu a Coroa amarga de espinhos--por serem esses,
para a gente bem-nascida, dias de penitência e dor. E, diante de todo o
Livro ou de todo o Quadro, sentia a emoção e formulava finamente o
juízo, que no seu Mundo, e nessa Semana, fosse elegante formular e
sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos de uma
paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas num
Livro de Contas encadernado em pelúcia verde-mar. A sua religião íntima
(e mais genuína do que a outra, que a levava todos os domingos à missa
de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo que na amável
cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem
abrigo--ela preparava com comovido cuidado os seus vestidos de
patinagem. E preparava também os de Caridade--porque era boa, e
concorria para Bazares, Concertos e Tômbolas, quando fossem patrocinados
pelas Duquesas do seu «rancho». Depois, na Primavera, muito
metodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as capas de
Inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.

Pois respirando esta macia e fina flor passámos nós as tardes desse
Julho enquanto as outras flores pendiam e murchavam na calma e no pó.
Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não parecia encontrar esse
contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais cansa. Era já com
a paciente lentidão com que se sobem todos os Calvários, os mais bem
tapetados, que ele subia a escadaria de Madame d'Oriol, tão suave e
orlada de tão frescas palmeiras. Quando a apetitosa criatura, com
dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão
desdobra a cauda, o meu pobre Príncipe puxava os pêlos do bigode
murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de Maio, enquanto os
melros cantam nas sebes, assiste, numa igreja negra, a um responso
fúnebre por um Príncipe. E no beijo que ele chuchurreava sobre a mão da
sua doce amiga, para se despedir, havia sempre alacridade e alívio.

Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através da
Biblioteca e do Gabinete, puxando sem curiosidade a tira do telégrafo,
atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a
colina dos Jornais e Revistas, terminava por me chamar, já com a
preguiça triste da façanha a que se impelia:

--Vamos a casa de Madame d'Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas para
hoje seis ou sete coisas, mas não posso, é uma seca! Vamos a casa de
Madame d'Oriol... Ao menos lá, às vezes, há um bocado de frescura e paz.

E foi numa dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava
desesperadamente um «bocado de frescura e paz», que encontramos, ao meio
da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame d'Oriol. Eu
já o conhecia--porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café,
ceando com dançarinas do _Moulin Rouge_. Era um moço gordalhufo,
indolente, de uma brancura crua de toucinho, com uma calvície já séria e
já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos
carregados de anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo
emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou diante de Jacinto--e
sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:

--Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos
uma cena, e tremenda.

Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgaçada:

--Estamos separados, cada um vive como lhe apetece, é excelente! Mas
em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso consentir
que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do
trintanário. Amantes na nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer
dormir com os criados que emigre para o fundo da província, para a sua
casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que eu lhe disse!
Ficou como uma fera.

Sacudiu então a mão do Jacinto que «era da sua roda»--rebolou pela
escadaria florida e nobre. O meu Príncipe, imóvel nos degraus, de face
pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois, olhando
para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio novo pode
caber:

--Já agora subamos, sim?

       *       *       *       *       *

Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às
Cidades da Europa.

Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo
o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num
vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de
suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas
mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi
derreadamente, atrás de um criado, a escadaria desconhecida de um Hotel;
e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma
cama desconhecida, de onde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas
desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina
que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com
cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três
ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé
direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me
chegasse o _boeuf-à-la-mode_, já frio, com molho coalhado--e que o
copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu provava e repelia com
desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos
mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Catedrais. Trilhei
molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e
quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos,
ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezas, sombrias
manchas de betume, tristezas das formas imóveis!... E o dia mais doce
foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho
inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o
José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boavista...
Gastei seis mil francos. Tinha viajado.

Enfim, numa bendita manhã de Outubro, na primeira friagem e névoa
de Outono, avistei com enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda
fechadas do meu 202! Afaguei o ombro do Porteiro. No patamar, onde
encontrei o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos
do Grilo excelente:

--E Jacinto?

O digno negro murmurou, de entre os altos, reluzentes colarinhos:

--S. Exc.^a circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da
Duquesa de Loches. Era o contrato de casamento de Mademoiselle de
Loches... Ainda tomou antes de se deitar um chá gelado... E disse a
coçar a cabeça: «Eh! que maçada! Eh! que maçada!»

Depois do banho e do chocolate, às dez horas, consolado e quentinho
dentro do roupão de veludo, rompi pelo quarto do meu Príncipe, de
braços abertos e sedentos:

--Oh Jacinto!

--Oh viajante!...

Quando nos estreitámos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar a
face--e nela a alma. Encolhido numa quinzena de pano cor de malva
orlada de peles de marta, com os pêlos do bigode murchos, as suas
duas rugas mais cavadas, uma moleza nos ombros largos, o meu amigo
parecia já vergado sob o peso e a opressão e o terror do seu dia. Eu
sorri, para que ele sorrisse:

--Valente Jacinto... Então como tens vivido?

Ele respondeu, muito serenamente:

--Como um morto.

Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve:

--Aborrecidote, hein?

O meu Príncipe lançou, num gesto tão vencido, um _oh_ tão cansado--que
eu compadecido de novo o abracei, o estreitei, como para lhe comunicar
uma parte desta alegria sólida e pura que recebi do meu Deus!

       *       *       *       *       *

Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente,
escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o
saturava. O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em
sondar e formular esse tédio--na esperança de o vencer logo que lhe
conhecesse bem a origem e a potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu
a comédia pouco divertida de um Melancólico que perpetuamente raciocina a
sua Melancolia! Nesse raciocínio, ele partia sempre do facto
irrecusável e maciço--que a sua vida especial de Jacinto continha
todos os interesses e todas as facilidades, possíveis no século XIX,
numa vida de homem que não é um Génio, nem um Santo. Com efeito!
Apesar do apetite embotado por doze anos de Champanhes e molhos ricos
ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua
inteligência não aparecera nem tremor nem morrão; a boa terra de
Portugal, e algumas Companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a
sua doce centena de contos; sempre activas e sempre fiéis o cercavam as
simpatias de uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de
confortos; nenhuma amargura de coração o atormentava;--e todavia era um
Triste. Porquê?... E daqui saltava, com certeza fulgurante, à conclusão
de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava
amortalhada, não provinham da sua individualidade de Jacinto--mas da
Vida, do lamentável, do desastroso facto de Viver! E assim o saudável,
intelectual, riquíssimo, bem-acolhido Jacinto tombara no Pessimismo.

E um Pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para
ser tão naturalmente optimista como um pardal ou um gato. E, até aos
doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado, com a sua
pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira
fadiga, ou melancolia, ou contrariedade, ou pena--e as lágrimas eram
para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas. Só quando
crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele
esse fermento de tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das
primeiras curiosidades, e que depois alastrara, o invadira todo, se lhe
tornara consubstancial e como o sangue das suas veias. Sofrer portanto
era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos
diferentes da Vida. Na turba dos humanos é a angustiada luta pelo pão,
pelo tecto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades mais altas,
é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o
orgulho chocando contra obstáculo; nele, que tinha os bens todos e
desejos nenhuns, era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade,
fastio da Inteligência--eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a
sua ocupação era bocejar, correr com os dedos desalentados a face
pendida para nela palpar e apetecer a caveira.

Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o
_Eclesiastes_ até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos
do Pessimismo. Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação
de que o seu mal não era mesquinhamente «Jacíntico»--mas grandiosamente
resultante de uma Lei Universal. Já há quatro mil anos, na remota
Jerusalém, a Vida, mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia
em Ilusão. Já o Rei incomparável, de sapiência divina, sumo Vencedor,
sumo Edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas
conquistas, e os mármores novos dos seus Templos, e as suas três mil
concubinas, e as Rainhas que subiam do fundo da Etiópia para que ele
as fecundasse e no seu ventre depusesse um Deus! Não há nada novo sob o
sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males.
Quanto mais se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos do
pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efémero, em Jerusalém e em Paris!
E ele, obscuro no 202, padecia por ser homem e por viver--como no seu
trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de
David.

Não se separava então do _Eclesiastes_. E circulava por Paris trazendo
dentro do coupé Salomão, como irmão de dor, com quem repetia o grito
desolado que é a suma da verdade humana--_Vanitas Vanitatum_! Tudo é
Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá,
num roupão de seda, absorvendo Schopenhauer--enquanto o pedicuro,
ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com respeito e perícia as unhas dos
pés. Ao lado pousava a chávena de Saxe, cheia desse café de Moca
enviado por emires do Deserto, que não o contentava nunca, nem pela
força, nem pelo aroma. A espaços pousava o livro no peito, resvalava um
olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dor o
torturaria--pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o
remexer assim, perpetuamente, em pés alheios... E quando o pedicuro se
erguia, Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade--com um
«adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»

Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio.
Jacinto encontrara enfim na vida uma ocupação grata--maldizer a Vida!
E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais ricas, as
mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de
novo luxo, de interesses novos de espírito, e até de fervores
humanitários, e até de curiosidades supernaturais.

O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que ele
iniciou em Paris, repetindo Heliogábalo, os Festins de Cor contados na
História Augusta: e ofereceu às suas amigas esse sublime jantar cor-de-rosa,
em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças,
os cristais, os gelados, os Champanhes, e até (por uma invenção da
Alta-Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os escudeiros
serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do
tecto, de um velário de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas... A
Cidade, deslumbrada, clamou--«Bravo, Jacinto!» E o meu Príncipe, ao
rematar a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e
gritou triunfalmente:--«Hein? Que maçada!...»

Depois foi o Humanitarismo: e fundou um Hospício no campo, entre
jardins, para velhinhos desamparados, outro para crianças débeis à beira
do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e Mayolle, e o Hindu de
Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências para
verificar a misteriosa _exteriorização da motilidade_. Depois,
desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do _Times_, para
que no seu gabinete, como num coração, palpitasse toda a vida Social da
Europa.

E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da
sociabilidade, e da inteligência indagadora, voltava para mim, de
braços alegres, com um grito vitorioso:--«Vês tu, Zé Fernandes? Uma
maçada!»--Arrebatava então o seu _Eclesiastes_, o seu Schopenhauer, e,
estendido no sofá, saboreava voluptuosamente a concordância da Doutrina
e da Experiência. Possuía uma Fé--o Pessimismo: era um apóstolo rico e
esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da
sua Fé! Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!

No começo do Inverno, porém, notei com inquietação que Jacinto já não
folheava o _Eclesiastes_, desleixava Schopenhauer. Nem festas, nem
Teosofismos, nem os seus Hospícios, nem os fios do _Times_, pareciam
interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da sua
Crença. E a sua abominável função de novo se limitou a bocejar, a
passar os dedos moles sobre a face pendida palpando a caveira.
Incessantemente aludia à morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo,
no melancólico crepúsculo da Biblioteca, antes de refulgirem as luzes,
consideravelmente me aterrou, falando num tom regelado de mortes
rápidas, sem dor, pelo choque de uma vasta pilha eléctrica ou pela
violência compassiva do acido cianídrico. Diabo! O Pessimismo, que
aparecera na Inteligência do meu Príncipe como um conceito
elegante--atacara bruscamente a Vontade!

Todo o seu movimento então foi o de um boi inconsciente que marcha sob a
canga e o aguilhão. Já não esperava da Vida contentamento--nem mesmo se
lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena. «Tudo é indiferente, Zé
Fernandes!» E tão indiferentemente sairia à sua janela para receber
uma Coroa Imperial oferecida por um Povo--como se estenderia numa
poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo tudo inútil, e não
conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante
actividade ou a mais desgostada inércia? O seu gesto constante, que me
irritava, era encolher os ombros. Perante duas ideias, dois caminhos,
dois pratos, encolhia os ombros! Que importava?... E no mínimo acto,
raspar um fósforo ou desdobrar um Jornal, punha uma morosidade tão
desconsolada que todo ele parecia ligado, desde os dedos até à alma,
pelas voltas apertadas de uma corda que se não via e que o travava.

       *       *       *       *       *

Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus anos, a 10 de
Janeiro. Cedo, de manhã, recebera, com uma carta de Madame de Trèves, um
açafate de camélias, azáleas, orquídeas e lírios do vale. E foi este
mimo que lhe recordou a data considerável. Soprou sobre as pétalas o
fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escárnio:

--Então, há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada?

E como eu propunha que telefonássemos aos amigos para beberem no 202 o
Champanhe do «Natalício»--ele recusou, com o nariz enojado. Oh! Não!
Que horrível seca!... E bradou mesmo para o Grilo:

--Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei
para Marselha... Morri!

E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os
telegramas, as cartas, que subiam, se arredondavam em colina sobre a
mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram, em
vistosos cestos, com vistosos laços, foram por ele comparadas às que se
depõe sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo presente
de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao tapete ou se
alteava até ao tecto--para quê, senhor Deus meu?

Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredámos do 202, com os
pés estendidos ao lume, em preguiçoso silêncio. Eu terminara por
adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do Grilo...
Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel!
E nunca eu me compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a
acumular todas as noções formuladas desde Aristóteles e a juntar todos
os inventos realizados desde Tharamenes, como nessa tarde de festa, em
que ele, cercado de Civilização nas máximas proporções para gozar nas
máximas proporções a delícia de viver, se encontrava reduzido, junto ao
seu lar, a recortar papéis com uma tesoura!

O Grilo trazia um presente do Grão-Duque--uma caixa de prata, forrada
de cedro, e cheia de um chá precioso, colhido, flor a flor, nas veigas de
Kiang-Sou por mãos puras de virgens, e conduzido através da Ásia, em
caravanas, com a veneração de uma relíquia. Então, para despertar o nosso
torpor, lembrei que tomássemos o divino chá--ocupação bem harmónica com
a tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama
bailando no fogão. Jacinto acedeu--e um escudeiro acercou logo a mesa
de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros. Mas o meu
Príncipe, depois de a altear, para meu espanto, até aos cristais do
lustre, não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as
molas, que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira. E o
escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, quimérica,
unicamente aproveitável para o gigante Adamastor. Depois veio a caixa do
chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de
alfaias de prata, que comunicavam a essa ocupação, tão simples e doce
em casa de minha tia, _fazer chá_, a majestade de um rito. Prevenido pelo
meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Sou, ergui a chávena
aos lábios com reverência. Era uma infusão descorada que sabia a malva e
a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou... Não tomámos chá.

Ao cabo doutro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos no
lume:

--E as obras de Tormes? A igreja... Já haverá igreja nova?

Jacinto retomara o papel e a tesoura:

--Não sei... Não tornei a receber carta do Silvério... Nem imagino onde
param os ossos... Que lúgubre história!

Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo
ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz doce, com as
iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa
meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim
onde no 202 se inscreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor
a ideia patriarcal:

--Arroz doce! Está escrito com dois _ss_, mas não tem dúvida...
Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz doce!... Desde a
morte da avó.

Mas quando o arroz doce apareceu triunfalmente, que vexame! Era um
prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de
pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e desaparecia sob os
frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma
coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as
iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua, vinham
traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos,
num mudo horror, o prato acanalhado. E Jacinto, erguendo o copo de
Champanhe, murmurou como num funeral pagão:

--_Ad Manes_, aos nossos mortos!

Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do lume.
Fora, o vento bramava como num ermo serrano: e as vidraças tremiam,
alagadas, sob as bátegas da chuva irada. Que dolorosa noite para os dez
mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha aldeia, entre
cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob
o abrigo da sua telha vã, com a sua panela atestada de couves, se
agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que não tenham lenha
ou couve, lá está o João das Quintas, ou a tia Vicência, ou o abade,
que conhecem todos os pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como
sendo dos seus, quando o carro vai ao mato e a fornada entra no forno.
Ah Portugal pequenino, que ainda és doce aos pequeninos!

Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer languidamente os
jornais que o mordomo trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de
prata--jornais de Paris, jornais de Londres, Semanários, Magazines,
Revistas, Ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das Revistas
espreitava o sumário, logo farto; às Ilustrações rasgava as folhas com
o dedo indiferente, bocejando por cima das gravuras. Depois, mais
estirado para o lume:

--É uma seca... Não há que ler.

E de repente, revoltado contra este fastio opressor que o escravizava,
saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou
erecto, dardejando em torno um olhar imperativo e duro, como se
intimasse aquele seu 202, tão abarrotado de Civilização, a que por um
momento sequer fornecesse à sua alma um interesse vivo, à sua vida um
fugitivo gosto! Mas o 202 permaneceu insensível: nem uma luz, para o
animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram sob o embate
mais rude de água e vento.

Então o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até ao seu
gabinete, começou a percorrer todos os aparelhos completadores e
facilitadores da Vida--o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu
Fonógrafo, o seu Radiómetro, o seu Grafófono, o seu Microfone, a
sua Máquina de Escrever, a sua Máquina de Contar, a sua Imprensa
Eléctrica, a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus
tubos, todos os seus fios... Assim um Suplicante percorre altares
donde espera socorro. E toda a sua sumptuosa Mecânica se conservou
rígida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lâmina
vibrasse, para entreter o seu Senhor.

Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o
curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite,
anunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu
peso--diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado.
O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama--com um
livro... E durante um momento, estacou no meio da Biblioteca,
considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e
majestade como Doutores num Concílio--depois as pilhas tumultuárias dos
livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso e a
consagração das estantes de ébano. Torcendo molemente o bigode caminhou
por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou
raças: pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou
na Revolução Francesa donde se arredou desencantado: e palpou com mão
indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até a
aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas,
que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro,
nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não
apeteceu nenhuma dessas seis mil almas--e recuou, desconsolado, até
aos Biólogos... Tão maciça e cerrada era a estante de Biologia que o
meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma cidadela inacessível!
Rolou a escada--e, fugindo, trepou, até às alturas da Astronomia:
destacou astros, recolocou mundos: todo um Sistema Solar desabou com
fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das
obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.
Apanhava, folheava, arremessava: para desentulhar um volume, demolia uma
torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as Religiões:
e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos
interrogava, de todos se desinteressava, rolando quase de rastos, nas
grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ânsia de
encontrar um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem
coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão todo
alastrado, os seus setenta mil volumes--e, sem lhes provar a substância,
já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua
abundância. Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu
melancolicamente um velho _Diário de Notícias_, e com ele debaixo do
braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.



VIII


Ao fim desse Inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava
na cama, sentindo através da vidraça cheia de sol ainda pálido um bafo
de Primavera ainda tímido--Jacinto assomou à porta do meu quarto,
revestido de flanelas leves, de uma alvura de açucena. Parou lentamente
à beira dos colchões, e, com gravidade, como se anunciasse o seu
casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta declaração
formidável:

--Zé Fernandes, vou partir para Tormes.

O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau preto do velho D.
Galeão:

--Para Tormes? Oh Jacinto, quem assassinaste?...

Deleitado com a minha emoção, o Príncipe da Grã-Ventura tirou da
algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto relidas,
fundamente estudadas:

--«Il.^{mo} e Exc.^{mo} sr.--Tenho grande satisfação em comunicar a
V. Exc.^a que por toda esta semana devem ficar prontas as obras da
capela...»

--É do Silvério? exclamei.

--É do Silvério. «...as obras da capela nova. Os venerandos restos dos
excelsos avós de V. Exc.^a, senhores de todo o meu respeito, podem pois
ser em breve trasladados da igreja de S. José, onde têm estado
depositados por bondade do nosso Abade, que muito se recomenda a V.
Exc.^a... Submisso, aguardo as prestantes ordens de V. Exc.^a a respeito
desta majestosa e aflitiva cerimónia...»

Atirei os braços, compreendendo:

--Ah! bem! Queres ir assistir à trasladação...

Jacinto sumiu a carta no bolso.

--Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é por causa dos outros avós, que
são ossos vagos, e que eu não conheci. É por causa do avô Galeão...
Também não o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu estás deitado
na cama dele; eu ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar ao
Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo novo.
Há aqui um escrúpulo de decência, de elegância moral... Enfim, decidi.
Apertei os punhos na cabeça, e gritei--_vou a Tormes_! E vou!... E tu
vens!

Eu enfiara as chinelas, apertava os cordões do roupão:

--Mas tu sabes, meu bom Jacinto, que a casa de Tormes está
inabitável...

Ele cravou em mim os olhos aterrados.

--Medonha, hein?

--Medonha, medonha, não... É uma bela casa, de bela pedra. Mas os
caseiros, que lá vivem há trinta anos, dormem em catres, comem o caldo
à lareira, e usam as salas para secar o milho. Creio que os únicos
móveis de Tormes, se bem recordo, são um armário, e uma espineta de
charão, coxa, já sem teclas.

O meu pobre Príncipe suspirou, com um gesto rendido em que se abandonava
ao Destino:

--Acabou!... _Alea jacta est!_ E como só partimos para Abril, há tempo de
pintar, de assoalhar, de envidraçar... Mando daqui de Paris tapetes e
camas... Um estofador de Lisboa vai depois forrar e disfarçar algum
buraco... Levamos livros, uma Máquina para fabricar gelo... E é mesmo
uma ocasião de pôr enfim numa das minhas casas de Portugal alguma
decência e ordem. Pois não achas? E então essa! Uma casa que data de
1410... Ainda existia o Império Bizantino!

Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão. O meu
Príncipe acendeu muito pensativamente um cigarro; e não se arredou do
toucador, considerando o meu preparo com uma atenção triste que me
incomodava. Por fim, como se remoesse uma sentença minha, para lhe
reter bem a moral e o suco:

--Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é um dever, um
absoluto dever, ir eu a Tormes?

Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar com divertido espanto o
meu Príncipe:

--Oh Jacinto! foi em ti, só em ti que nasceu a ideia desse dever! E
honra te seja, menino... Não cedas a ninguém essa honra!

Ele atirou o cigarro--e, com as mãos enterradas nas algibeiras das
pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras, embicando contra os
postes torneados do velho leito de D. Galeão, num balanço vago, como
barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem rumo no mar
incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada,
por gradações de sentimentos, desde o daguerreótipo do papá até à
fotografia do _Carocho_ perdigueiro, a galeria da minha Família.

E nunca o meu Príncipe (que eu contemplava esticando os suspensórios) me
pareceu tão corcovado, tão minguado, como gasto por uma lima que desde
muito o andasse fundamente limando. Assim viera findar, desfeita em
Civilização, naquele super-requintado magricelas sem músculo e sem
energia, a raça fortíssima dos Jacintos! Esses guedelhudos Jacintões,
que nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o moiro no Salado
ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras para
lavrar as suas chãs e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a
lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora, ali estava
aquele último Jacinto, um Jacintículo, com a macia pele embebida em
aromas, a curta alma enrodilhada em Filosofias, travado e suspirando
baixinho na miúda indecisão de viver.

--Oh Zé Fernandes, quem é esta lavradeirona tão rechonchuda?

Estendi o pescoço para a Fotografia que ele erguera dentre a minha
galeria, no seu honroso caixilho de pelúcia escarlate:

--Mais respeito, Sr. D. Jacinto... Um pouco mais de respeito,
cavalheiro!... É minha prima Joaninha, de Sandofim, da Casa da Flor da
Malva.

--Flor da Malva, murmurou o meu Príncipe. É a casa do Condestável, de
Nun'Álvares.

--Flor da Rosa, homem! A casa do Condestável era na Flor da Rosa, no
Alentejo... Essa tua ignorância trapalhona das coisas de Portugal!

O meu Príncipe deixou escorregar molemente a fotografia da minha
prima dentre os dedos moles--que levou à face, no seu gesto horrendo
de palpar através da face a caveira. Depois, de repente, com um soberbo
esforço, em que se endireitou e cresceu:

--Bem! _Alea jacta est!_ Partamos pois para as serras!... E agora nem
reflexão, nem descanso!... À obra! E a caminho!

Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete que
abre os Destinos--e no corredor gritou pelo Grilo, com uma larga e
açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a de um Chefe
ordenando, na alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste
marche, com pendões e bagagens...

Logo nessa manhã (com uma actividade em que eu reconheci a pressa
enjoada de quem bebe óleo de rícino), escreveu ao Silvério mandando
caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço apareceu na
Biblioteca, chamado violentamente pelo telefone, para combinar a
remessa de mobílias e confortos, o director da _Companhia Universal de
Transportes_.

Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado num
jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre botas
brancas, uma sacola de marroquim a tiracolo, e na botoeira uma roseta
multicor resumindo as suas condecorações exóticas de Madagáscar, de
Nicarágua, da Pérsia, outras ainda, que provavam a universalidade dos
seus serviços. Apenas Jacinto mencionou «Tormes, no Douro...»--ele
logo, através de um sorriso superior, estendeu o braço, detendo outros
esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.

--Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!

Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota--enquanto eu
considerava, assombrado, a vastidão do seu saber Corográfico, assim
familiar com os recantos de uma serra de Portugal e com todos os seus
velhos solares. Já ele atirara a carteira para o bolso... E «nós, seus
caros senhores, não tínhamos senão a encaixotar as roupas, as mobílias,
as preciosidades! Ele mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a
que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço...»

--Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Espanha-Medina-Salamanca...
Perfeitamente! Tormes... Muito pitoresco! E antigo, histórico!
Perfeitamente, perfeitamente!

Desengonçou a cabeça numa vénia profundíssima--e saiu da Biblioteca,
com passos que devoravam léguas, anunciavam a presteza dos seus
Transportes.

--Vê tu, murmurou Jacinto muito sério. Que prontidão, que
facilidade!... Em Portugal era uma tragédia. Não há senão Paris!

Começou então no 202 o colossal encaixotamento de todos os confortos
necessários ao meu Príncipe para um mês de serra áspera--camas de pena,
banheiras de níquel, lâmpadas Carcel, divãs profundos, cortinas para
vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os
sótãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galeão, foram
esvaziados--porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós
românticos de 1830. De todos os armazéns de Paris chegavam cada manhã
fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emaladores desfaziam,
atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os
nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido,
organizava a remessa de fornalhas, geleiras, bocais de trufas, latas de
conservas, bojudas garrafas de águas minerais. Jacinto, lembrando as
trovoadas da serra, comprou um imenso pára-raios. Desde o amanhecer,
nos pátios, no jardim, se martelava, se pregava, com vasto fragor, como
na construção de uma cidade. E o desfilar das bagagens, através do
portão, lembrava uma página de Heródoto contando a marcha dos Persas.

Das janelas, Jacinto com o braço estendido, saboreava aquela
actividade e aquela disciplina:

--Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Saímos do 202, chegamos à
serra, encontramos o 202. Não há senão Paris!

Recomeçara a amar a Cidade, o meu Príncipe, enquanto preparava o seu
Êxodo. Depois de ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores,
descortinado confortos novos para o abandonado solar, telefonado gordas
listas de encomendas a cada loja de Paris--era com delícia que se
vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vitória ou saltava
para a almofada do faéton, e corria ao Bosque, e saudava a barba
talmúdica do Efraim, e os bandós furiosamente negros da Verghane, e o
Psicólogo de fiacre, e a condessa de Trèves na sua nova caleche de
oito molas fornecida pelas operações conjuntas da Bolsa e da alcova.
Depois arrebanhava amigos para jantares de surpresa no Voisin ou no
Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a impaciência de uma fome
alegre, vigiando fervorosamente que os Bordéus estivessem bem aquecidos
e os Champanhes bem granitados. E no teatro das _Nouveautés_, no
_Palais Royal_, nos _Buffos_, ria, batendo na coxa, com encanecidas
facécias de encanecidas farsas, antiquíssimos trejeitos de antiquíssimos
actores, com que já rira na sua infância, antes da guerra, sob o segundo
Napoleão!

De novo, em duas semanas, se abarrotaram as páginas da sua Agenda. A
magnificência do seu traje, como imperador Frederico II de Suábia,
deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde também
fui, de «moço de forcado».) E na _Associação para o Desenvolvimento das
Religiões Esotéricas_ discursou e batalhou bravamente pela construção
de um Templo Budista em Montmartre!

Com espanto meu recomeçou também a conversar, como nos tempos de Escola,
da «famosa Civilização nas suas máximas proporções.» Mandou encaixotar o
seu velho telescópio para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu
espírito germinasse a ideia de criar, no cimo da serra, uma Cidade com
todos os seus órgãos. Pelo menos não consentia o meu Jacinto que essas
semanas da silvestre Tormes interrompessem a ilimitada acumulação das
noções--porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que
entre tantos confortos e formas de Civilização esquecêramos os livros!
Assim era--e que vexame para a nossa Intelectualidade! Mas que livros
escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu
Príncipe decidiu logo dedicar os seus dias serranos ao estudo da
História Natural--e nós mesmos, imediatamente, deitámos para o fundo
de um vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plínio.
Despejámos depois para dentro, às braçadas, Geologia, Mineralogia,
Botânica... Espalhámos por cima uma camada aérea de Astronomia. E, para
fixar bem no caixote estas Ciências oscilantes, entalámos em redor
cunhas de Metafísica.

Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, saiu do
portão do 202 na derradeira carroça da _Companhia dos Transportes_, toda
esta animação de Jacinto se abateu como a efervescência num copo de
Champanhe. Era em meados já tépidos de Março. E de novo os seus
desagradáveis bocejos atroaram o 202, e todos os sofás rangeram sob o
peso do corpo que ele lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela
fartura e pelo tédio, num desejo de repouso eterno, bem envolto de
solidão e silêncio. Desesperei. O quê! Aturaria eu ainda aquele
Príncipe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepúsculo
entristecia a Biblioteca, aludindo, num tom rouco, à doçura das
mortes rápidas pela violência misericordiosa do acido cianídrico? Ah
não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado sobre um divã, de
braços em cruz, como se fosse a sua estátua de mármore sobre o seu
jazigo de granito, positivamente o abanei com furor, berrando:

--Acorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar pronto, a
reluzir, a abarrotar de coisas! Os ossos de teus avós pedem repouso, em
cova sua!... A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos nós, os
vivos!... Irra! São cinco de Abril!... É o bom tempo da serra!

O meu Príncipe ressurgiu lentamente da inércia de pedra:

--O Silvério não me escreveu, nunca me escreveu... Mas, com efeito,
deve estar tudo preparado... Já lá temos certamente criados, o
cozinheiro de Lisboa... Eu só levo o Grilo, e o Anatole que enverniza
bem o calçado, e tem jeito como pedicuro... Hoje é Domingo.

Atirou os pés para o tapete, com heroísmo:

--Bem, partimos no Sábado!... Avisa tu o Silvério!

Começou então o laborioso e pensativo estudo dos Horários--e o dedo
magro de Jacinto, por sobre o mapa, avançando e recuando entre Paris e
Tormes. Para escolher o «salão» que devíamos habitar durante a temida
jornada, duas vezes percorremos o depósito da Estação de Orléans,
atolados em lama, atrás do Chefe do Tráfico que entontecia. O meu
Príncipe recusava este salão por causa da cor tristonha dos estofos;
depois recusava aquele por causa da mesquinhez aflitiva do
Water-Closet! Uma das suas inquietações era o banho, nas manhãs que
passaríamos rolando. Sugeri uma banheira de borracha. Jacinto,
indeciso, suspirava... Mas nada o aterrou como o transbordo em Medina del
Campo, de noite, nas trevas da Velha Castela. Debalde a Companhia do
Norte de Espanha e a de Salamanca, por cartas, por telegramas,
sossegaram o meu camarada, afirmando que, quando ele chegasse no
comboio de Irun dentro do seu salão, já outro salão ligado ao comboio de
Portugal esperaria, bem aquecido, bem alumiado, com uma ceia que lhe
ofertava um dos Directores, D. Esteban Castillo, ruidoso e rubicundo
conviva do 202! Jacinto corria os dedos ansiosos pela face:--«E os
sacos, as peles, os livros, quem os transportaria do salão de Irun
para o salão de Salamanca?» Eu berrava, desesperado, que os carregadores
de Medina eram os mais rápidos, os mais destros de toda a Europa! Ele
murmurava:--«Pois sim, mas em Espanha, de noite!...» A noite, longe da
Cidade, sem telefone, sem luz eléctrica, sem postos de polícia, parecia
ao meu Príncipe povoada de surpresas e assaltos. Só acalmou depois de
verificar no Observatório Astronómico, sob a garantia do sábio professor
Bertrand, que a noite da nossa jornada era de lua cheia!

Enfim, na sexta-feira, findou a tremenda organização daquela viagem
histórica! O sábado predestinado amanheceu com generoso sol, de
afagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala, embrulhadas em papel
pardo, as fotografias das criaturinhas suaves que, nesses vinte e
sete meses de Paris, me tinham chamado «_mon petit chou! mon rat
cheri!_»--quando Jacinto rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de
orquídeas na sobrecasaca, pálido e todo nervoso.

--Vamos ao Bosque, por despedida?

Fomos--à grande despedida! E que encanto! Até nas almofadas e molas da
vitória senti logo uma elasticidade mais embaladora. Depois, pela
Avenida do Bosque, quase me pesava não ficar sempiternamente rolando, ao
trote rimado das éguas perfeitas, no rebrilho rico de metais e vernizes,
sobre aquele macadame mais alisado que mármore, entre tão bem regadas
flores e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade fina,
de elegância bem acabada, que almoçara o seu chocolate em porcelanas de
Sèvres ou de Minton, saíra de entre sedas e tapetes de três mil francos,
e respirava a beleza de Abril com vagar, requinte e pensamentos
ligeiros! O Bosque resplandecia numa harmonia de verde, azul e ouro.
Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas áleas que a Arte
traçou e enroscou na espessura--nenhum esgalho desgrenhado desmanchava
as ondulações macias da folhagem que o Estado escova e lava. O piar das
aves apenas se elevava para espalhar uma graça leve de vida alada;--e
mais natural parecia, entre o arvoredo sociável, o ranger das selas
novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas espartilhadas
pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville cruzámos
Madame de Trèves, que nos envolveu ambos na carícia do seu sorriso, mais
avivado àquela hora pelo vermelhão ainda húmido. Logo atrás a barba
talmúdica de Efraim negrejou, fresca também da brilhantina da manhã, no
alto de um faéton tilintante. Outros amigos de Jacinto circulavam nas
Acácias--e as mãos que lhe acenavam, lentas e afáveis, calçavam luvas
frescas cor de palha, cor de pérola, cor de lilás. Todelle relampejou
rente de nós sobre uma grande bicicleta. Dornan, alastrado numa cadeira
de ferro, sob um espinheiro em flor, mamava o seu imenso charuto, como
perdido na busca de rimas sensuais e nédias. Adiante foi o Psicólogo,
que nos não avistou, conversando com um requebro melancólico para dentro
de um coupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso imprimia
dignidade e decência. E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a
cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a
Jacinto se aparecia à noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu
Príncipe rosnou um--«não, parto para o sul...»--que mal lhe passou
de entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa
estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e da História Romana!...
Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus, pernas nuas,
limpando com os cabelos os pés do Cristo!--O Cristo, um latagão
soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da Guerra, gemendo,
derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e
Tarquínio ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em
mesas soltas, todos nos seus trajes históricos. Ele já estava
aparceirado com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso
esse--Agripina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as
formas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por
polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva todas as formas
de Madame de Malbe... Enfim colossal, e estupendamente instrutivo!

Acenámos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que
Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os
braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e
fortes. Depois, em frente ao Arco de Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:

--É muito grave, deixar a Europa!

       *       *       *       *       *

Enfim, partimos! Sob a doçura do crepúsculo que se enublara deixámos o
202. O Grilo e o Anatole seguiam num fiacre atulhado de livros, de
estojos, de paletós, de impermeáveis, de travesseiras, de águas
minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas: e mais atrás um
ónibus rangia sob a carga de vinte e três malas. Na Estação, Jacinto
ainda comprou todos os Jornais, todas as Ilustrações, Horários, mais
livros, e um saca-rolhas de forma complicada e hostil. Guiados pelo
Chefe do Tráfico, pelo Secretário da Companhia, ocupámos copiosamente o
nosso salão. Eu pus o meu boné de seda, calcei as minhas chinelas. Um
silvo varou a noite. Paris lampejou, fugiu num derradeiro clarão de
janelas... Para o sorver, Jacinto ainda se arremessou à portinhola.
Mas rolávamos já na treva da Província. O meu Príncipe então recaiu nas
almofadas:

--Que aventura, Zé Fernandes!

Até Chartres, em silêncio, folheámos as Ilustrações. Em Orléans, o
guarda veio arranjar respeitosamente as nossas camas. Derreado com
aqueles catorze meses de Civilização adormeci--e só acordei em Bordéus
quando Grilo, zeloso, nos trouxe o nosso chocolate. Fora, uma chuva
miudinha pingava molemente de um espesso céu de algodão sujo. Jacinto
não se deitara, desconfiado da aspereza e da humidade dos lençóis. E,
metido num roupão de flanela branco, com a face arrepiada e
estremunhada, ensopando um bolo no chocolate, rosnava sombriamente:

--Este horror!... E agora com chuva!

Em Biarritz, ambos observámos com uma certeza indolente:

--É Biarritz.

Depois Jacinto, que espreitava pela janela embaciada, reconheceu o
lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador Danjon.
Era ele, o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado de uma dama
roliça que levava pela trela uma cadelinha felpuda. Jacinto baixou a
vidraça violentamente, berrou pelo Historiador, na ânsia de comunicar
ainda, através dele, com a Cidade, com o 202!... Mas o comboio
mergulhara na chuva e névoa.

Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida fácil, os abrolhos
da Incivilização, Jacinto suspirou com desalento:

--Agora adeus, começa a Espanha!...

Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra bendita, saltei
para diante do meu Príncipe, e num saracoteio de tremendo salero,
castanholando os dedos, entoei uma «petenera» condigna:

A la puerta de mi casa
Ay Soledad, Soleda... á... á... á.

Ele estendeu os braços, suplicante:

--Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!

--_Irun_! _Irun_!...

Nessa Irun almoçámos com suculência--porque sobre nós velava, como
Deusa omnipresente, a Companhia do Norte. Depois «el jefe d'Aduana, el
jefe d'Estacion», preciosamente nos instalaram noutro salão, novo, com
cetins cor de azeitona, mas tão pequeno que uma rica porção dos nossos
confortos em mantas, livros, sacos e impermeáveis, passou para o
compartimento do _Sleeping_ onde se repoltreavam o Grilo e o Anatole,
ambos de bonés escoceses, e fumando gordos charutos.--_Buen viaje_!
_Gracias_! _Servidores_!--E entrámos silvando nos Pirenéus.

Sob a influência da chuva embaciadora, daquelas serras sempre iguais,
que se desenrolavam, arrepiadas, diluídas na névoa, resvalei a uma
sonolência doce;--e, quando descerrava as pálpebras, encontrava
Jacinto a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre que
cruzara os magros dedos, considerando vales e montes com a melancolia
de quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio em que,
arremessando o livro, enterrando mais o chapéu mole, se ergueu com
tanta decisão, que receei detivesse o comboio para saltar à estrada,
correr através das Vascongadas e da Navarra, para trás, para o 202!
Sacudi o meu torpor, exclamei:--«oh menino!...» Não! O pobre amigo ia
apenas continuar o seu tédio para outro canto, enterrado noutra
almofada, com outro livro fechado. E à maneira que a escuridão da tarde
crescia, e com ela a borrasca de vento e água, uma inquietação mais
aterrada se apoderava do meu Príncipe, assim desgarrado da Civilização,
arrastado para a Natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Não
cessou então de me interrogar sobre Tormes:

--As noites são horríveis, hein, Zé Fernandes? Tudo negro, enorme
solidão... E médico?... Há médico?

Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou as
vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e lufava um
grande vento solto. A Máquina apitava, com angústia. Uma lanterna
lampejou, correndo. Jacinto batia o pé:--«É medonho! é medonho!»...
Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças surdiam
cabeças esticadas, assustadas.--«_Que hay_? _Que hay_?»--A uma rajada,
que me alagou, recuei:--e esperámos durante lentos, calados minutos,
esfregando desesperadamente os vidros embaciados para sondar a
escuridão. De repente o comboio recomeçou a rolar, muito sereno.

Em breve apareceram as luzinhas mortas de uma estação abarracada. Um
condutor, com o casacão de oleado todo a escorrer, trepou ao salão:--e
por ele soubemos, enquanto carimbava apressadamente os bilhetes, que o
trem, muito atrasado, talvez não alcançasse em Medina o comboio de
Salamanca!

--Mas então?...

O casaco de oleado escorregara pela portinhola, fundido na noite,
deixando um cheiro de humidade e azeite. E nós encetámos um novo
tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até
Medina, desengatava em Medina:--e eis os nossos preciosos corpos, com as
nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre
vinte e três malas, numa rude confusão espanhola, sob a tormenta de
ventania e de água!

--Oh, Zé Fernandes, uma noite em Medina!

Ao meu Príncipe aparecia como desventura suprema essa noite em Medina,
numa _fonda_ sórdida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos
através dos lençóis de estopa encardida!... Não cessei então de fitar,
num desassossego, os ponteiros do relógio:--enquanto Jacinto, pela
vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a
negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio
paciente fumegando... Depois recaía no divã, limpava os bigodes e os
olhos, maldizia a Espanha. O trem arquejava, rompendo o vasto vento da
planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! Algum
sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando,
enquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas,
rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam
mais soturno. Jacinto esmurrava o joelho:--«Mas por que pára este
infame comboio? Não há tráfico, não há gente! Oh esta Espanha!...» A
sineta badalava, moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca.

Resignadamente comecei a percorrer um _Jornal do Comércio_, antigo,
trazido de Paris. Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com
passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim se escoou, às
gotas, uma hora cheia de eternidade.--Um silvo, outro silvo!... Luzes
mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos
solavancos, os encontros de carris. Enfim, Medina!... Um muro sujo de
barracão alvejou--e bruscamente, à portinhola aberta com violência,
aparece um cavalheiro barbudo, de capa à espanhola, gritando pelo Sr.
D. Jacinto!... Depressa! depressa! que parte o comboio de Salamanca!

--«Que no hay un momento, caballeros! Que no hay un momento!»

Agarro estonteadamente o meu paletó, o _Jornal do Comércio_. Saltámos
com ânsia:--e, pela plataforma, por sobre os trilhos, através de
charcos, tropeçando em fardos, empurrados pelo vento, pelo homem da capa
à espanhola, enfiámos outra portinhola, que se fechou com um estalo
tremendo... Ambos arquejávamos. Era um salão forrado de um pano verde
que comia a luz escassa. E eu estendia o braço, para receber dos
carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros, as nossas
mantas--quando, em silêncio, sem um apito, o trem despegou e rolou.
Ambos nos atirámos às vidraças, em brados furiosos:

--Pare! As nossas malas, as nossas mantas!... P'ra aqui!... Oh Grilo!
Oh Grilo!

Uma imensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado
tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacinto ergueu os punhos, num furor
que o engasgava:

--Oh! Que serviço! Oh que canalhas!... Só em Espanha!... E agora? As
malas perdidas!... Nem uma camisa, nem uma escova!

Calmei o meu desgraçado amigo:

--Escuta! eu entrevi dois carregadores arrebanhando as nossas coisas...
Decerto o Grilo fiscalizou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com
tudo para o seu compartimento... Foi um erro não trazer o Grilo
connosco, no salão... Até podíamos jogar a manilha!

De resto a solicitude da Companhia, Deusa omnipresente, velava sobre o
nosso conforto--pois que à porta do lavatório branquejava o cesto da
nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com estas doces
palavras a lápis--_à D. Jacinto y su egregio amigo, que les dè gusto_!
Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranquilidade nos penetrou no
coração sentindo também as nossas malas sob a tutela da Deusa
omnipresente.

--Tens fome Jacinto?

--Não. Tenho horror, furor, rancor!... E tenho sono.

Com efeito! depois de tão desencontradas emoções só apetecíamos as
camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí sobre a travesseira,
sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe, que não se despira, apenas
embrulhara os pés no _meu_ paletó, nosso único agasalho, ressonava com
majestade.

Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na
claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um
boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:

--V. Exc.^as não têm nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...

Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:

--Não temos aqui nada... Pergunte V. Exc.^a pelo Grilo... Aí atrás,
num compartimento... Ele tem as chaves, tem tudo... É o Grilo.

A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci
com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de lenço
branco cruzado no peito, de certo já preparava o leitão.

Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito
sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes--e
outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de
limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido,
de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava
pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha,
diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o
telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio
azul de que meus olhos andavam aguados.

Sacudi violentamente Jacinto:

--Acorda, homem, que estás na tua terra!

Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem
pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

--Então é Portugal, hein?... Cheira bem.

--Está claro que cheira bem, animal!

A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso,
como se passeasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando
e gozando a beleza da terra e do céu.

O meu Príncipe alargava os braços, desolado:

--E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colónia!...
Entro em Portugal, imundo!

--Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver os
nossos confortos... Olha para o rio!

Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até
largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada,
branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito
caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem
se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento
carregado de pipas. Para além, outros socalcos, de um verde pálido de
reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até
outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina
abundância do azul. Jacinto acariciava os pêlos corredios do bigode:

--O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu
estou com uma fome, Zé Fernandes!

Também eu! Destapamos o cesto de D. Esteban donde surdiu um bodo
grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro
de duas nobres garrafas de Amontillado, além de duas garrafas de Rioja,
aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto, Jacinto
lamentou contritamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar
histórico, assim abandonado e vazio! Que delícia, por aquela manhã tão
lustrosa e tépida, subir à serra, encontrar a sua casa bem apetrechada,
bem civilizada... Para o animar, lembrei que com as obras do Silvério,
tantos caixotes de Civilização remetidos de Paris, Tormes estaria
confortável mesmo para Epicuro. Oh! mas Jacinto entendia um palácio
perfeito, um 202 no deserto!... E, assim discorrendo, atacámos as
perdizes. Eu desarrolhava uma garrafa de Amontillado--quando o comboio,
muito sorrateiramente, penetrou numa Estação. Era a Régua. E o meu
Príncipe pousou logo a faca para chamar o Grilo, reclamar as malas que
traziam o asseio dos nossos corpos.

--Espera, Jacinto! Temos muito tempo, O comboio pára aqui uma hora...
Come com tranquilidade. Não escangalhemos este almocinho com arrumações
de maletas... O Grilo não tarda a aparecer.

E corri mesmo a cortina, porque de fora um padre muito alto, com uma
ponta de cigarro colada ao beiço, parara a espreitar indiscretamente o
nosso festim. Mas quando acabámos as perdizes, e Jacinto confiadamente
desembrulhava um queijo manchego, sem que Grilo ou Anatole
comparecessem, eu, inquieto, corri à portinhola para apressar esses
servos tardios... E nesse instante o comboio, largando, deslizou com o
mesmo silêncio sorrateiro. Para o meu Príncipe foi um desgosto:

--Aí ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova... E eu que queria
mudar de camisa! Por culpa tua, Zé Fernandes!

--É espantoso!... Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e abala!
Paciência, Jacinto. Em duas horas estamos na Estação de Tormes...
Também não valia a pena mudar de camisa para subir à serra! Em casa
tomamos um banho, antes de jantar... Já deve estar instalada a
banheira.

Ambos nos consolámos com copinhos de uma divina aguardente Chinchon.
Depois, estendidos nos sofás, saboreando os dois charutos que nos
restavam, com as vidraças abertas ao ar adorável, conversámos de Tormes.
Na estação certamente estaria o Silvério, com os cavalos...

--Que tempo leva a subir?

Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio pelas
terras com o caseiro, o excelente Melchior, para que o Senhor de
Tormes, solenemente, tomasse posse do seu Senhorio. E à noite o
primeiro bródio da serra, com os pitéus vernáculos do velho Portugal!

Jacinto sorria, seduzido:

--Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silvério. Eu recomendei
que fosse um soberbo cozinheiro português, clássico. Mas que soubesse
trufar um peru, afogar um bife em molho de moela, estas coisas simples
da cozinha de França!... O pior é não te demorares, seguires logo para
Guiães...

--Ah, menino, anos da tia Vicência no sábado... Dia sagrado! Mas
volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma larga
Bucólica. E, está claro, para assistir à trasladação.

Jacinto estendera o braço:

--Que casarão é aquele, além no outeiro, com a torre?

Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro... Tormes era nesse
feitio atarracado e maciço. Casa de séculos e para séculos--mas sem
torre.

--E logo se vê, da estação, Tormes?...

--Não! Muito no alto, numa prega da serra, entre arvoredo.

No meu Príncipe já evidentemente nascera uma curiosidade pela sua rude
casa ancestral. Mirava o relógio, impaciente. Ainda trinta minutos!
Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de
iniciado:

--Que doçura, que paz...

--Três horas e meia, estamos a chegar, Jacinto!

Guardei o meu velho _Jornal do Comércio_ dentro do bolso do paletó,
que deitei sobre o braço;--e ambos em pé, às janelas, esperámos com
alvoroço a pequenina Estação de Tormes, termo ditoso das nossas
provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre
rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, as
duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás a serra coberta de
velho e denso arvoredo... Logo na plataforma avistei com gosto a imensa
barriga, as bochechas menineiras do chefe da Estação, o louro Pimenta,
meu condiscípulo em Retórica, no Liceu de Braga. Os cavalos decerto
esperavam, à sombra, sob as figueiras.

Mal o trem parou ambos saltámos alegremente. A bojuda massa do Pimenta
rebolou para mim com amizade:

--Viva o amigo Zé Fernandes!

--Oh belo Pimentão!...

Apresentei o senhor de Tormes. E imediatamente:

--Ouve lá, Pimentinha... Não está aí o Silvério?

--Não... O Silvério há quase dois meses que partiu para Castelo de
Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada de um boi!

Atirei a Jacinto um olhar inquieto:

--Ora essa! E o Melchior, o caseiro?... Pois não estão aí os cavalos
para subirmos à quinta?

O digno chefe ergueu com surpresa as sobrancelhas cor de milho:

--Não!... Nem Melchior, nem cavalos... O Melchior... Há que tempos eu
não vejo o Melchior!

O carregador badalou lentamente a sineta para o comboio rolar. Então,
não avistando em torno, na lisa e despovoada Estação, nem criados nem
malas, o meu Príncipe e eu lançámos o mesmo grito de angústia:

--E o Grilo? as bagagens?...

Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero:

--Grilo!... Oh Grilo!... Anatole!... Oh Grilo!

Na esperança que ele e o Anatole viessem mortalmente adormecidos,
trepávamos aos estribos, atirando a cabeça para dentro dos
compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que
retumbava:--«Grilo, estás aí, Grilo?»--Já de uma terceira classe, onde
uma viola repenicava, um jocoso gania, troçando:--«Não há por aí um
grilo? Andam por aí uns senhores a pedir um grilo!»--E nem Anatole,
nem Grilo!

A sineta tilintou.

--Oh Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o comboio!... As
nossas bagagens, homem!

E, aflito, empurrei o enorme chefe para o furgão de carga, a
pesquisar, descortinar as nossas vinte e três malas! Apenas encontrámos
barris, cestos de vime, latas de azeite, um baú amarrado com cordas...
Jacinto mordia os beiços, lívido. E o Pimentinha, esgazeado:

--Oh filhos, eu não posso atrasar o comboio!...

A sineta repicou... E com um belo fumo claro o comboio desapareceu por
detrás das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto.
Ali ficávamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grilo, sem
procurador, sem caseiro, sem cavalos, sem malas! Eu conservava o
paletó alvadio, donde surdia o _Jornal do Comércio_. Jacinto, uma
bengala. Eram todos os nossos bens!

O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos.
Contei então àquele amigo o atarantado trasfego em Medina sob a
borrasca, o Grilo desgarrado, encalhado com as vinte e três malas, ou
rolando talvez para Madrid sem nos deixar um lenço...

--Eu não tenho um lenço!... Tenho este _Jornal do Comércio_. É toda a
minha roupa branca.

--Grande arrelia, caramba! murmurava o Pimenta, impressionado. E agora?

--Agora, exclamei, é trepar, para a quinta, à pata... A não ser que se
arranjassem aí uns burros.

Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda
pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha uma boa égua e um
jumento... E o prestante homem enfiou numa carreira para a
Giesta--enquanto o meu Príncipe e eu caíamos para cima de um banco,
arquejantes e sucumbidos, como náufragos. O vasto Pimentinha, com as
mãos nas algibeiras, não cessava de nos contemplar, de murmurar:--«É de
arrelia».--O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a
calma já pesada de Maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de
pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com
uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma
vilazinha clara. O espaço imenso repousava num imenso silêncio.
Naquelas solidões de monte e penedia os pardais, revoando no telhado,
pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha
dominava, atulhava a região.

--Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm aí os bichos!... Só o que não
calhou foi um selinzinho para a jumenta!

Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão
duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a aparecer no
córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com
albarda, um rapaz e um podengo. Apertámos a mão suada e amiga do
Pimentinha. Eu cedi a égua ao senhor de Tormes. E começámos a trepar o
caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o
trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os
Jacintos do século XIV! Logo depois de atravessarmos uma trémula ponte
de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe, com o
olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das
oliveiras...--E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável
beleza daquela serra bendita!

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz
as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu
Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales,
poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e
redondos, de um verde tão moço que eram como um musgo macio onde
apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso,
largas ramadas estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos
pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm
as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que
mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores
silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do
seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de
silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas: e,
dentre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá
galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob
as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas.
Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante... Espertos
regatinhos fugiam, rindo com os seixos, dentre as patas da égua e do
burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra;
fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das
alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava
por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados... Todo um
cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral,
solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam
laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos
prados com carneiros e vacas retouçando:--ou mais estreitos, entalados
em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de
repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou
doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar
pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos,
por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar
fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um
esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...

Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:

--Que beleza!

E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:

--Que beleza!

Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por
trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam
as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros
de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente
quando nós passámos. Muito tempo um melro nos seguia, de azinheiro a
olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de
macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos,
serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as
serras!

Assim, vagarosamente e maravilhados, chegámos àquela avenida de faias,
que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma
vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os
calcanhares, gritou:--«Aqui é que estemos, meus amos!» E ao fundo das
faias, com efeito, aparecia o portão da quinta de Tormes, com o seu
brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais
envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacinto, na
sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho, transpusemos o limiar
solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra
gasta, um homem nédio, rapado como um padre, sem colete, sem jaleca,
acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Príncipe. Era o
Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu, toda a boca se lhe
escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu
lhe revelei, daquele cavalheiro de bigodes louros que descia da égua
esfregando os quadris, o senhor de Tormes--o bom Melchior recuou,
colhido de espanto e terror como diante de uma avantesma.

--Ora essa!... Santíssimo nome de Deus! Pois então...

E, entre o rosnar dos cães, num bracejar desolado, balbuciou uma
história que por seu turno apavorava Jacinto, como se o negro muro do
casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava S. Ex.^a! Ninguém
esperava S. Ex.^a!... (Ele dizia _sua incelência_)... O Sr. Silvério
estava para Castelo de Vide desde Março, com a mãe, que apanhara uma
cornada na virilha. E de certo houvera engano, cartas perdidas... Porque
o Sr. Silvério só contava com S. Exc.^a em Setembro, para a vindima! Na
casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul,
ainda continuava sem telhas; muitas vidraças esperavam, ainda sem
vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!...

Jacinto cruzou os braços numa cólera tumultuosa que o sufocava. Por
fim, com um berro:

--Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em Fevereiro, há
quatro meses?...

O desgraçado Melchior arregalava os olhos miúdos, que se embaciavam de
lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera!... E na sua
perturbação mirava pelas arcadas do pátio, palpava na algibeira das
pantalonas. Os caixotes?... Não, não tinha os caixotes!

--E agora, Zé Fernandes?

Encolhi os ombros:

--Agora, meu filho, só vires comigo para Guiães... Mas são duas horas
fartas a cavalo. E não temos cavalos! O melhor é ver o casarão, comer
a boa galinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto, dormir
numa enxerga, e amanhã cedo, antes do calor, trotar para cima, para a
tia Vicência.

Jacinto replicou, com uma decisão furiosa:

--Amanhã troto, mas para baixo, para a estação!... E depois, para
Lisboa!

E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima
uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de
negras vigas, toda ornada, por entre os pilares de granito, com caixas
de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarelo---e penetrei atrás
de Jacinto nas salas nobres, que ele contemplava com um murmúrio de
horror. Eram enormes, de uma sonoridade de casa capitular, com os grossos
muros enegrecidos pelo tempo e o abandono, e regeladas, desoladamente
nuas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma
enxada entre paus. Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam
através dos rasgões manchas de céu. As janelas, sem vidraças,
conservavam essas maciças portadas, com fechos para as trancas, que,
quando se cerram, espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além,
uma tábua podre rangia e cedia.

--Inabitável! rugia Jacinto surdamente. Um horror! Uma infâmia!...

Mas depois, noutras salas, o soalho alternava com remendos de tábuas
novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhíssimos tectos de
rico carvalho sombrio. As paredes repeliam pela alvura crua da cal
fresca. E o sol mal atravessava as vidraças--embaciadas e gordurentas da
massa e das mãos dos vidraceiros.

Penetrámos enfim na última, a mais vasta, rasgada por seis janelas,
mobilada com um armário e com uma enxerga parda e curta estirada a um
canto: e junto dela parámos, e sobre ela depusemos tristemente o que
nos restava de vinte e três malas--o meu paletó alvadio, a bengala de
Jacinto, e o _Jornal do Comércio_ que nos era comum. Através das
janelas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava e
circulava como num eirado, com um cheiro fresco de horta regada. Mas o
que avistávamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um
cabeço e descendo pelo pendor suave, à maneira de uma hoste em marcha,
com pinheiros na frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais
longe as serras de além rio, de uma fina e macia cor de violeta; depois a
brancura do céu, todo liso, sem uma nuvem, de uma majestade divina. E lá
debaixo, dos vales, subia, desgarrada e melancólica, uma voz de
pegureiro cantando.

Jacinto caminhou lentamente para o poial de uma janela, onde caiu
esbarrondado pelo desastre, sem resistência ante aquele brusco
desaparecimento de toda a Civilização! Eu palpava a enxerga, dura e
regelada como um granito de Inverno. E pensando nos luxuosos colchões de
penas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também
a minha indignação:

--Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos
caixotes enormes?...

Jacinto sacudiu amargamente os ombros:

--Encalhados, por aí, algures, num barracão!... Em Medina, talvez,
nessa horrenda Medina. Indiferença das Companhias, inércia do
Silvério... Enfim a Península, a barbárie!

Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por céu
e monte:

--É uma beleza!

O meu Príncipe, depois de um silêncio grave, murmurou, com a face
encostada à mão:

--É uma lindeza... E que paz!

Sob a janela vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal,
talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha
e mal alisada, dominava o vale, donde já subia tenuemente a névoa
de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado se
encravava em laranjal. E de uma fontinha rústica, meio afogada em rosas
tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água.

--Estou com apetite desesperado daquela água! declarou Jacinto,
muito sério.

--Também eu... Desçamos ao quintal, hein? E passamos pela cozinha, a
saber do frango.

Voltámos à varanda. O meu Príncipe, mais conciliado com o destino
inclemente, colheu um cravo amarelo. E por outra porta baixa, de
rijíssimas ombreiras, mergulhámos numa sala, alastrada de caliça, sem
tecto, coberta apenas de grossas vigas, donde se ergueu uma revoada de
pardais.

--Olha para este horror! murmurava Jacinto arrepiado.

E descemos por uma lôbrega escada de castelo, tenteando depois um
corredor tenebroso de lajes ásperas, atravancado por profundas arcas,
capazes de guardar todo o grão de uma província. Ao fundo a cozinha,
imensa, era uma massa de formas negras, madeira negra, pedra negra,
densas negruras de felugem secular. E neste negrume refulgia a um
canto, sobre o chão de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos
e panelas de ferro, despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta
no muro, depois por entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira,
onde se aqueciam e assavam as suas grossas peças de porco e boi os
Jacintos medievais, agora desaproveitada pela frugalidade dos caseiros,
negrejava um poeirento montão de cestas e ferramentas; e a claridade
toda entrava por uma porta de castanho, escancarada sobre um quintalejo
rústico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em
roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depenava frangos, remexia
as caçarolas, picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro. Todas
emudeceram quando aparecemos--e dentre elas o pobre Melchior,
estonteado, com o sangue a espirrar na nédia face de abade, correu para
nós, jurando «que o jantarinho de suas Incelências não demorava um
credo»...

--E a respeito de camas, oh amigo Melchior?

O digno homem ciciou uma desculpa encolhida «sobre enxergazinhas no
chão...»

--É o que basta! acudi eu, para o consolar. Por uma noite, com lençóis
frescos...

--Ah, lá pelos lençoizinhos respondo eu!... Mas um desgosto assim, meu
senhor! A gente apanhada sem um colchãozinho de lã, sem um lombozinho de
vaca... Que eu já pensei, até lembrei à minha comadre, V. Inc.^{as}
podiam ir dormir aos _Ninhos_, a casa do Silvério. Tinham lá camas de
ferro, lavatórios... Ele sempre é uma leguazita e mau caminho...

Jacinto, bondoso, acudiu:

--Não, tudo se arranja, Melchior. Por uma noite!... Até gosto mais de
dormir em Tormes, na minha casa da serra!

Saímos ao terreiro, retalho de horta fechado por grossas rochas
encabeladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde
lourejava o centeio. O meu Príncipe bebeu da água nevada e luzidia da
fonte, regaladamente, com os beiços na bica; apeteceu a alface
rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos de uma copada
cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a
que um bando de pombas branqueava o telhado, deslizámos até ao carreiro,
cortado no costado do monte. E andando, pensativamente, o meu Príncipe
pasmava para os milheirais, para os vetustos carvalhos plantados por
vetustos Jacintos, para os casebres espalhados sobre os cabeços à orla
negra dos pinheirais.

De novo penetrámos na avenida de faias e transpusemos o portão senhorial
entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacinto
reconheceu «certa nobreza» na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe
agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçada para
nela se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pajens.
Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da capela, louvou o
Silvério, «esse ralaço», por cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.

--E esta varanda também é agradável, murmurou ele mergulhando a face no
aroma dos cravos. Precisa grandes poltronas, grandes divãs de verga...

Dentro, na «nossa sala», ambos nos sentámos nos poiais da janela,
contemplando o doce sossego crepuscular que lentamente se estabelecia
sobre vale e monte. No alto tremeluzia uma estrelinha, a Vénus
diamantina, lânguida anunciadora da noite e dos seus contentamentos.
Jacinto nunca considerara demoradamente aquela estrela, de amorosa
refulgência, que perpetua no nosso Céu católico a memória da Deusa
incomparável:--nem assistira jamais, com a alma atenta, ao majestoso
adormecer da Natureza. E este enegrecimento dos montes que se embuçam
em sombra; os arvoredos emudecendo, cansados de sussurrar; o rebrilho
dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e
agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola
pelas quebradas; o segredado cochichar das águas e das relvas
escuras--eram para ele como iniciações. Daquela janela, aberta sobre
as serras, entrevia uma outra vida, que não anda somente cheia do Homem
e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem enfim
descansa.

Deste enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do «jantarinho de
suas Incelências». Era noutra sala, mais nua, mais abandonada:--e aí
logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo
desconforto, escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada ao muro
denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa,
duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de
louça amarela, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro.
Os copos, de um vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que
neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro,
atestada de azeitonas pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea
de um imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial
reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaia dos velhos Jacintos, de
hirto espaldar de couro, com a madeira roída de caruncho, a clina fugia
em melenas pelos rasgões do assento puído.

Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das
ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira,
entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que
seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe
perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto
ocupou a sede ancestral--e, durante momentos (de esgazeada ansiedade
para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da
toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado,
provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou--e levantou para
mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos.
Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu,
com espanto:--«Está bom!»

Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia:
três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.

--Também lá volto! exclamava Jacinto com uma convicção imensa. É que
estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta,
esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que
enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado--e pousou sobre a mesa
uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto,
em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada
tímida--e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara,
luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma
lentidão de frade que se regala. Depois um brado:

--Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!

E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres
palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao
bródio...

--Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!

O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado:

--Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até
suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também
vai engordar e enrijar!

O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o
Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava...
E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma
longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em
louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da
salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da
serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar:--«É divino!» Mas
nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda
infusa verde--um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma,
entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela
de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu
Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio:

--_Quo te carmina dicam, Rethica_? Quem dignamente te cantará, vinho
amável destas serras?

Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo
também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:

--_Hanc olim veteres vitam coluere Sabini_... Assim viveram os velhos
Sabinos. Assim Rómulo e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim
Roma se tornou a maravilha do mundo!

E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós
os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.

       *       *       *       *       *

Ah! Jantámos deliciosissimamente, sob os auspícios do Melchior--que
ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós
se alongava uma noite de monte, voltámos para as janelas desvidraçadas,
na sala imensa, a contemplar o sumptuoso céu de Verão. Filosofámos
então com pachorra e facúndia.

Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os
astros--por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade
que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa
comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da
Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a
fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que como pedaços de chumbo puxam
a alma para o pó rasteiro--um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem
jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os
astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime
imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente,
ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se
tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe
compreender os nossos...

--Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do
telhado?

--Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?

--Não sei.

Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí
do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Ele, porque na sua
Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o
Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se
desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse
Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de
nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos,
somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e
Sande, constituímos modos diversos de um Ser único, e as nossas
diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do
mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do
astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar
sonoro--tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo
Deus. E nenhum frémito de vida, por menor, passa numa fibra desse
sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até
às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol que não avisto, nunca
avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de
limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte:--e,
quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno
estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto
abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:

--Acredita!... O sol tremeu.

E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses
grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce,
perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés
Fernandes, sentados às janelas doutras Tormes, contemplam o céu
nocturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante
Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem
frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vénus
de Milo e talvez na Princesa, de Carman) singularmente feia e burlesca.
Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e de uma carne mais
dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos eles
são seres pensantes e têm consciência da Vida--porque decerto cada
Mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a
todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante,
formulando a única certeza talvez certa, o grande _Penso logo existo_.
Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, às janelas dos nossos
casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa Terrícula, constantemente
perfazemos um acto sacrossanto que nos penetra e nos funde--que é
sentirmos no Pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e
portanto realizarmos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do
Universo!--Hein, Jacinto?...

O meu amigo rosnou:

--Talvez... Estou a cair com sono.

--Também eu. «Remontámos muito, Ex.^{mo} Sr.!» como dizia o Pestaninha
em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto
das serras, a olhar para as estrelas!... Tu sempre vais amanhã?

--Concerteza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. «Penso _logo
fujo_!» Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma
poltrona, sem um livro?... Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas
demoro em Lisboa, para conversar com o Sesimbra, o meu Administrador. E
também à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa
voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...

--É verdade, os ossos...

--Mas resta ainda o Grilo... Que animal! Por onde andará esse perdido?

Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sebo já
derretida no castiçal de lata era como um lume de cigarro num
descampado, meditámos na sorte do Grilo. O estimado negro ou fora
despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos
gritos--ou, regaladamente adormecido, rolara com o Anatole no comboio
para Madrid. Mas ambos os casos apareciam ao meu Príncipe como
irremediavelmente destruidores do seu conforto...

--Não, escuta, Jacinto... Se o Grilo encalhou em Medina, dormiu na
Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para Tormes. Quando
amanhã desceres à Estação, às quatro horas, encontras o teu precioso
homem, com as tuas preciosas malas, metido nesse comboio que te leva
ao Porto e à Capital...

Jacinto sacudiu os braços como quem se debate nas malhas de uma rede:

--E se seguiu para Madrid?

--Então, por esta semana, cá aparece em Tormes, onde encontra ordem
para regressar a Lisboa e reentrar no teu séquito... Resta o
interessante caso das minhas bagagens. Se amanhã encontrares na Estação
o Grilo, separa a minha mala negra, e o saco de lona, e a chapeleira.
O Grilo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para
Guiães. Se o Grilo aportar Tormes, esfogueteado de Madrid, com toda
essa malaria, deixa as minhas coisas aqui, ao Melchior... Eu amanhã
falo ao Melchior.

Jacinto sacudiu furiosamente o colarinho:

--Mas como posso eu partir para Lisboa, amanhã, com esta camisa de dois
dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço... Nem ao
menos uma escova de dentes!

Fértil em ideias, estendi as mãos, num belo gesto tutelar:

--Tudo se arranja, meu Jacinto, tudo se arranja! Eu, largando daqui
cedo, pelas seis horas, chego a Guiães às dez, ainda sem calor. E, mesmo
antes do almoço e da cavaqueira com a tia Vicência, imediatamente te
mando por um moço um saco de roupa branca. As minhas camisas e as
minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem
direito a elegâncias e a roupas bem cortadas. O moço, num bom trote,
entra aqui às duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres para a
Estação... Posso meter na mala uma escova de dentes.

--Oh Zé Fernandes! Então mete também uma esponja... E um frasco de água-de-colónia!

--Água de alfazema, excelente, feita pela tia Vicência...

O meu Príncipe suspirou, impressionado com a sua miséria esquálida, e
esta dádiva de roupas:

--Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções e de astros...

Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que
«estavam preparadinhas as camas de suas Incelências.» E seguindo o bom
caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós, o meu Príncipe e eu,
ainda há pouco irmanados com os astros? Em duas saletas, que uma
abertura em arco, lôbrego arco de pedra, separava--duas enxergas sobre o
soalho. Junto à cabeceira da mais larga, que pertencia ao senhor de
Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como lavatório,
um alguidar vidrado em cima de uma tripeça. Para mim, serrano daquelas
serras, nem alguidar nem alqueire.

Lentamente, com o pé, o meu supercivilizado amigo palpou a enxerga. E
decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre
ela, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.

--E o pior não é ainda a enxerga, murmurou enfim com um suspiro. É que
não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de
camisa engomada.

Por inspiração minha recorremos ao Melchior. De novo, esse benemérito
providenciou, trazendo a Jacinto, para ele desafogar os pés, uns
tamancos--e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de
estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos
e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Príncipe lembrei
que Platão quando compunha o _Banquete_, Vasco da Gama quando dobrava o
Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas
fortes, oh Jacinto!... E é só vestido de estamenha que se penetra no
Paraíso.

--Tens tu, volveu o meu amigo secamente, alguma coisa que eu leia? Não
posso adormecer sem um livro.

Eu? Um livro? Possuía apenas o velho numero do _Jornal do Comércio_,
que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo
meio, partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade,
que era a dos anúncios... E quem não viu então Jacinto, senhor de
Tormes, acaçapado à borda da enxerga, rente da vela de sebo que se
derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos, perdido dentro
das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo
num pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as partidas dos
Paquetes--não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do
Desalento.

Recolhido à minha alcova espartana, desabotoava o colete, num
delicioso cansaço, quando o meu Príncipe ainda me reclamou:

--Zé Fernandes...

--Diz.

--Manda também no saco um abotoador de botas.

Estirado comodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao
penetrar no Sono, que é um primo da Morte, «Deus seja louvado!» Depois
tomei a metade do _Jornal do Comércio_ que me pertencia.

--Zé Fernandes...

--Que é?

--Também podias meter no saco pós dos dentes... E uma lima das
unhas... E um romance!

Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes. Mas da sua alcova,
depois de soprar a vela, Jacinto murmurou entre um bocejo:

--Zé Fernandes...

--Hein?

--Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençóis ao menos são
frescos, cheiram bem, a sadio!



IX


Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu Jacinto, que,
com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia beatificamente na sua enxerga
de granito--parti para Guiães.

Ao cabo de uma semana, recolhendo uma manhã para o almoço, encontrei no
corredor as minhas malas tão desejadas, que um moço do casal da Giesta
trouxera num carro com «recados do Sr. Pimentinha». O meu pensamento
pulou para o meu Príncipe. E lancei pelo telégrafo, para Lisboa, para o
Hotel Bragança, este brado alegre:--«Estás lá? Sei recuperaste Grilo e
Civilização! Hurrah! Abraço!»--Só depois de sete dias, ocupados numa
delicada apanha de espargos com que outrora civilizara a horta da tia
Vicência, notei o silêncio de Jacinto. Num bilhete postal renovei,
desenvolvi o grito amigo:--«Estás lá? São os prazeres da Baixa que assim
te tornam desatento e mudo? Eu, todo espargos! Responde, quando chegas?
Tempo delicioso! 23^o à sombra. E os ossos?...»--Veio depois a devota
romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a lua nova andei num corte
de mato, na minha terra das Corcas. A tia Vicência vomitou, com uma
indigestão de morcelas. E o silêncio do meu Príncipe era ingrato e
ferrenho.

Enfim uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima
Joaninha, parei em Sandofim, na venda do Manuel Rico, para beber de
certo vinho branco que a minha alma conhece--e sempre pede.

Defronte, à porta do ferrador, o Severo, sobrinho do Melchior de Tormes
e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco, escarranchado num
banco. Mandei encher outro quartilho: ele acariciou o pescoço da minha
égua que já salvara de um esfriamento: e, como eu indagasse do nosso
Melchior, o Severo contou que na véspera jantara com ele em Tormes, e
se abeirara também do fidalgo...

--Ora essa! Então o Sr. D. Jacinto está em Tormes?

O meu espanto divertiu o Severo:

--Então V. Exc.^a... Pois em Tormes é que ele está, há mais de cinco
semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima, e vai lá uma
grandeza!

Santíssimo nome de Deus! Ao outro dia, domingo, depois da missa e sem me
assustar com a calma que carregava, trotei alvoroçadamente para Tormes.
Ao latir dos rafeiros, quando transpus o portal solarengo, a comadre do
Melchior acudiu dos lados do curral, com um alguidar de lavagem
encostado à cintura.--Então o Sr. D. Jacinto?... O Sr. D. Jacinto
andava lá para baixo, com o Silvério e com o Melchior, nos campos de
Freixomil...

--E o Sr. Grilo, o preto?

--Há bocadinho também o enxerguei no pomar, com o francês, a apanhar
limões doces...

Todas as janelas do solar rebrilhavam, com vidraças novas, bem polidas.
A um canto do pátio notei baldes de cal e tigelas de tintas. Uma escada
de pedreiro descansara durante o Dia Santo arrimada contra o telhado. E,
rente ao muro da capela, dois gatos dormiam sobre montões de palha
desempacotada de caixotes consideráveis.

--Bem, pensei eu. Eis a Civilização!

Recolhi a égua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas,
reluzia num raio de sol uma banheira de zinco. Dentro encontrei todos
os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito caiadas
e nuas, refrigeravam como as de um convento. Um quarto, a que me levaram
três portas escancaradas com franqueza serrana, era certamente o de
Jacinto: a roupa pendia de cabides de pau: o leito de ferro, com
coberta de fustão, encolhia timidamente a sua rigidez virginal a um
canto, entre o muro e a banquinha onde um castiçal de latão resplandecia
sobre um volume do _D. Quixote_ no lavatório pintado de amarelo,
imitando bambu, apenas cabia o jarro, a bacia, um naco gordo de sabão; e
uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da escova, da tesoura, do
pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de água de alfazema que
eu mandara de Guiães. As três janelas, sem cortinas, contemplavam a
beleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se perfumava
nas resinas dos pinheirais, depois nas roseiras da horta. Em frente, no
corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a
previdência do meu Príncipe o destinara ao seu Zé Fernandes. Pendurei
logo dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.

Mas na sala imensa, onde tanto filosofáramos considerando as
estrelas, Jacinto arranjara um centro de repouso e de estudo--e
desenrolara essa «grandeza» que impressionava o Severo. As cadeiras de
verga da Madeira, amplas e de braços, ofereciam o conforto de
almofadinhas de chita. Sobre a mesa enorme de pau branco, carpinteirada
em Tormes, admirei um candeeiro de metal de três bicos, um tinteiro de
frade armado de penas de pato, um vaso de capela transbordando de
cravos. Entre duas janelas uma cómoda antiga, embutida, com ferragens
lavradas, recebera sobre o seu mármore rosado o devoto peso de um
Presépio, onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos, cordeiros
de esguedelhada lã, se apressavam através de alcantis para o Menino, que
na sua lapinha lhes abria os braços, coroado por uma enorme Coroa Real.
Uma estante de madeira enchia outro pedaço de parede, entre dois
retratos negros com caixilhos negros; sobre uma das suas prateleiras
repousavam duas espingardas; nas outras esperavam, espalhados, como os
primeiros Doutores nas bancadas de um concílio, alguns nobres livros, um
Plutarco, um Virgílio, a Odisseia, o Manual de Epicteto, as Crónicas
de Froissart. Depois, em fila decorosa, cadeiras de palhinha, muito
novas, muito envernizadas. E a um canto um molho de varapaus.

Tudo resplandecia de asseio e ordem. As portadas das janelas, cerradas,
abrigavam do sol que batia aquele lado de Tormes, escaldando os
peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia, na suavizada
penumbra, uma frescura. Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem da
casa, se elevava um rumor. Tormes dormia no esplendor da manhã santa. E,
penetrado por aquela consoladora quietação de convento rural, terminei
por me estender numa cadeira de verga, junto da mesa, abrir
languidamente um tomo de Virgílio, e murmurar, apropriando o doce verso
que encontrara:

Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum...

Afortunado Jacinto, na verdade! Agora, entre campos que são teus e
águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz!

Li ainda outros versos. E, na fadiga das duas horas de égua e calor
desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino
Bucoliasta--quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E
muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei
a uma planta estiolada, emurchecida na escuridão, entre tapetes e
sedas, que, levada para vento e sol, profusamente regada, reverdece,
desabrocha e honra a Natureza! Jacinto já não corcovava. Sobre a sua
arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais
verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que
o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão
crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia,
resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o
bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a
face,--mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei? Era um
Jacinto novíssimo. E quase me assustava, por eu ter de aprender e
penetrar, neste novo Príncipe, os modos e as ideias novas.

--Caramba, Jacinto, mas então...?

Ele encolheu jovialmente os ombros realargados. E só me soube contar,
trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho
remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e
de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como
_desanuviado_,desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com
chouriço, sublime. Passeara por toda aquela magnificência da serra com
pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma
cama, uns cabides... E ali estava...

--Para todo o Verão?

--Não! Mas um mês... Dois meses! Enquanto houver chouriços, e a água da
fonte, bebida pela telha ou numa folha de couve, me souber tão
divinamente!

Caí sobre a cadeira de verga, e contemplei, arregalado, quase
esgazeado, o meu Príncipe! Ele enrolava numa mortalha tabaco picado,
tabaco grosso, guardado numa malga vidrada. E exclamava:

--Ando aí pelas terras desde o romper de alva! Pesquei já hoje quatro
trutas, magníficas... Lá em baixo, no Naves, um riachote que se atira
pelo vale da Seranda... Temos logo ao jantar essas trutas!

Mas eu, ávido pela história daquela ressurreição:

--Então, não estiveste em Lisboa?... Eu telegrafei...

--Qual telégrafo! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé da fonte da
Lira, à sombra de uma grande árvore, _sub tegmine_ não sei quê, a ler
esse adorável Virgílio... E também a arranjar o meu palácio! Que te
parece, Zé Fernandes? Em três semanas, tudo soalhado, envidraçado,
caiado, encadeirado!... Trabalhou a freguesia inteira! Até eu pintei,
com uma imensa brocha. Viste o comedouro?

--Não.

--Então vem admirar a beleza na simplicidade, bárbaro!

Era a mesma onde nós tanto exaltáramos o arroz com favas--mas muito
esfregada, muito caiada, com um rodapé besuntado de azul estridente onde
logo adivinhei a obra do meu Príncipe. Uma toalha de linho de Guimarães
cobria a mesa, com as franjas roçando o soalho. No fundo dos pratos de
louça forte reluzia um galo amarelo. Era o mesmo galo e a mesma louça
em que na nossa casa, em Guiães, se servem os feijões dos cavadores...

Mas no pátio os cães latiram. E Jacinto correu à varanda, com uma
ligeireza curiosa que me deleitou. Ah, bem definitivamente se
esfrangalhara aquela rede de malha que se não percebia e que outrora o
travava!--Nesse momento apareceu o Grilo, de quinzena de linho,
segurando em cada mão uma garrafa de vinho branco. Todo se alegrou «em
ver na quinta o siô Fernandes». Mas a sua veneranda face já não
resplandecia, como em Paris, com um tão sereno e ditoso brilho de ébano.
Até me pareceu que corcovava... Quando o interroguei sobre aquela
mudança, estendeu duvidosamente o beiço grosso:

--O menino gosta, eu então também gosto... Que o ar aqui é muito bom,
siô Fernandes, o ar é muito bom!

Depois, mais baixo, envolvendo num gesto desolado a louça de Barcelos,
as facas de cabo de osso, as prateleiras de pinho como num refeitório de
Franciscanos:

--Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!

Jacinto voltava com um maço de jornais cintados:

--Era o carteiro. Já vês que não amuei inteiramente com a Civilização.
Eis a Imprensa!... Mas nada de _Figaro_, ou da horrenda _Dois-Mundos_!
Jornais de Agricultura! Para aprender como se produzem as risonhas
messes, e sob que signo se casa a vinha ao olmo, e que cuidados
necessita a abelha provida... _Quid faciat laetas segetes_... De resto
para esta nobre educação, já me bastavam as _Geórgicas_, que tu ignoras!

Eu ri:

--Alto lá! _Nos quoque gens sumus et nostrum Virgilium sabemus_!

Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas--como
Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:

--Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!

Pulei, imensamente divertido:

--Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? e as fosfatadas? e as
esterilizadas? e as sódicas?...

O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a
aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água
refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu admirei sobretudo a
moça... Que olhos, de um negro tão líquido e sério! No andar, no quebrar
da cinta, que harmonia e que graça de Ninfa latina!

E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição:

--Oh Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete a
esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma
coisa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda
viva, da serra...

O meu Príncipe sorria, com sinceridade:

--Não! não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia. É uma bela
moça, mas uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade,
nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca taurina. Merece o seu
nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso
a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não
parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu
filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a
fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... São
porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé
Fernandes, é para mim um repouso.

Lentamente, gozando a frescura, o silêncio, a liberdade do vasto
casarão, retrocedemos à sala que Jacinto já denominara a _Livraria_. E,
de repente, ao avistar num canto uma caixa com a tampa meio despregada,
quase me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou:

--E os caixotes? Oh Jacinto?... Toda aquela imensa caixotaria que nós
mandámos, abarrotada de Civilização? Soubeste? Apareceram?

O meu Príncipe parou, bateu alegremente na coxa:

--Sublime! Tu ainda te lembras daquele homenzinho, de saco a
tiracolo, que nós admirámos tanto pela sua sagacidade, o seu saber
geográfico?... Lembras? Apenas falei em Tormes, gritou que conhecia,
rabiscou uma nota... Nem era necessário mais! «Oh! Tormes,
perfeitamente, muito antigo, muito curioso!» Pois mandou tudo para
Alba-de-Tormes, em Espanha! Está tudo em Espanha!

Cocei o queixo, desconsolado:

--Ora, ora... Um homem tão esperto, tão expedito, que fazia tanta honra
ao Progresso! Tudo para Espanha!... E mandaste vir?

--Não! Talvez mais tarde... Agora, Zé Fernandes, estou saboreando esta
delícia de me erguer pela manhã, e de ter só uma escova para alisar o
cabelo.

Considerei, cheio de recordações, o meu amigo:

--Tinhas umas nove...

--Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não me
bastavam!... Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os meus
setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as
minhas ocupações: tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil!

       *       *       *       *       *

De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos coleantes
daquela quinta rica, que, através de duas léguas, ondula por vale e
monte. Não me encontrara mais com Jacinto em meio da Natureza, desde o
remoto dia de entremez em que ele tanto sofrera no sociável e policiado
bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurança e idílico amor
ele se movia através dessa Natureza, donde andara tantos anos
desviado por teoria e por hábito! Já não arreceava a humidade mortal
das relvas; nem repelia como impertinente o roçar das ramagens; nem o
silêncio dos altos o inquietava como um despovoamento do Universo. Era
com delícias, com um consolado sentimento de estabilidade recuperada,
que enterrava os grossos sapatos nas terras moles, como no seu elemento
natural e paterno: sem razão, deixava os trilhos fáceis, para se
embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face a carícia
das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, imóvel, retendo os meus
gestos e quase o meu hálito, para se embeber de silêncio e de paz: e
duas vezes o surpreendi atento e sorrindo à beira de um regatinho
palreiro, como se lhe escutasse a confidência...

Depois filosofava, sem descontinuar, com o entusiasmo de um
convertido, ávido de converter:

--Como a inteligência aqui se liberta, hein? E como tudo é animado
de uma vida forte e profunda!... Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não há
aqui pensamento...

--Eu?! Eu não digo nada, Jacinto...

--Pois é uma maneira de reflectir muito estreita e muito grosseira...

--Ora essa! Mas eu...

--Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu caro doutor...

--Que não sou!

--A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e naquele pedaço de
terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças que
se revelam, e que atingem a sua expressão suprema, que é a Forma. Não,
essa tua filosofia está ainda extremamente grosseira...

--Irra! mas eu não...

--E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa diversidade de
formas... E todas belas!

Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência. Na
Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas
folhas de hera, que, na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na Cidade,
pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as
faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação; as ideias
têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras;
e até o que há mais pessoal e íntimo, a Ilusão, é em todos idêntica, e
todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro... A
_mesmice_--eis o horror das Cidades!

--Mas aqui! Olha para aquele castanheiro. Há três semanas que cada
manhã o vejo, e sempre me parece outro... A sombra, o sol, o vento, as
nuvens, a chuva, incessantemente lhe compõem uma expressão diversa e
nova, sempre interessante. Nunca a sua frequentação me poderia fartar...

Eu murmurei:

--É pena que não converse!

O meu Príncipe recuou, com olhares chamejantes, de Apóstolo:

--Como que não converse? Mas é justamente um conversador sublime! Está
claro, não tem ditos, nem parola teorias, _ore rotundo_. Mas nunca eu
passo junto dele que não me sugira um pensamento ou me não desvende
uma verdade... Ainda hoje quando eu voltava de pescar as trutas...
Parei: e logo ele me fez sentir como toda a sua vida de vegetal é
isenta de trabalho, da ansiedade, do esforço que a vida humana impõe;
não tem de se preocupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o
abrigo; filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que ele se mova ou se
inquiete... E é esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta majestade.
Pois não achas?

Eu sorria, concordava. Tudo isto era de certo rebuscado e especioso. Mas
que importavam as requintadas metáforas, e essa Metafísica mal madura,
colhida à pressa nos ramos de um castanheiro? Sob toda aquela ideologia
transparecia uma excelente realidade--a reconciliação do meu Príncipe
com a Vida. Segura estava a sua Ressurreição depois de tantos anos de
cova, da cova mole em que jazera, enfaixado como uma múmia nas faixas
do Pessimismo!

E o que esse Príncipe, nesta tarde me esfalfou! Farejava, com uma
curiosidade insaciável, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços
correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os esplendores nunca
contemplados de um Mundo inédito. E o seu tormento era não conhecer os
nomes das árvores, da mais rasteira planta brotando das fendas de um
socalco... Constantemente me folheava como a um Dicionário Botânico.

--Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais ilustres da
Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei se aquele senhor além é um
amieiro ou um sobreiro...

--É um azinheiro, Jacinto.

Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa
adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada
folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente
desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava
tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que
caíramos, suspirar de puro alívio.

Depois, muito gravemente:

--Tu dizes que na natureza não há pensamento...

--Outra vez! Olha que maçada! Eu...

--Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o
sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas
certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se
esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se
realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que
aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se
agita:--que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema,
contra nada se insurja, e deixe o Mundo rolar, não esperando dele
senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro
da mão de Deus. Hein, não te parece, Zé Fernandes?

--Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento
de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de
certos Jacintos... E também me parece que andámos léguas. Estou
derreado. E que fome!

--Tanto melhor, para as trutas, e para o cabrito assado que nos
espera...

--Bravo! Quem te cozinha?

--Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Hás-de ver a canja! Hás-de
ver a cabidela! Ela é horrenda, quase anã, com os olhos tortos, um
verde e outro preto. Mas que paladar! Que génio!

Com efeito! Horácio dedicaria uma ode àquele cabrito assado num
espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho Melchior, e a cabidela,
em que a sublime anã de olhos tortos pusera inspirações que não são da
terra, e aquela doçura da noite de Junho, que pelas janelas abertas
nos envolveu no seu veludo negro, tão mole e tão consolado fiquei,
que, na sala onde nos esperava o café, caí numa cadeira de verga, na
mais larga, e de melhores almofadas, e atirei um berro de pura delícia.

Depois, com uma recordação, limpando o café do pêlo dos bigodes:

--Ó Jacinto, e quando nós andávamos por Paris com o Pessimismo às
costas, a gemer que tudo era ilusão e dor?

O meu Príncipe, que o cabrito tornara ainda mais alegre, trilhava a
grandes passadas o soalho, enrolando o cigarro:

--Oh! que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E maior besta eu, que o
sorvia, e que me desolava com sinceridade! E todavia,--continuava ele,
remexendo a chávena--o Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os
que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o
tornar uma lei universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o
carácter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o
sofredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal
sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso
vizinho:--porque nos sentimos escolhidos e destacados para a
infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a Fortuna. Quem se
queixaria de ser coxo--se toda a humanidade coxeasse? E quais não seriam
os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e
borrasca de um Inverno especial, organizado nos céus para o envolver a
ele unicamente--enquanto em redor, toda a Humanidade se movesse na
luminosa benignidade de uma Primavera?

--Com efeito, murmurei eu, esse sujeito teria imensa razão para
urrar...

--E depois, clamava ainda o meu amigo, o Pessimismo é excelente para os
Inertes, por que lhes atenua o desgracioso delito da Inércia. Se toda
a meta é um monte de Dor, onde a alma vai esbarrar, para quê marchar
para a meta, através dos embaraços do mundo? E de resto todos os Líricos
e Teóricos do Pessimismo, desde Salomão até o maligno Schopenhauer,
lançam o seu cântico ou a sua doutrina para disfarçar a humilhação das
suas misérias, subordinando-as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei
Cósmica, e ornando assim com a auréola de uma origem quase divina as
suas miúdas desgraçazinhas de temperamento ou de Sorte. O bom
Schopenhauer formula todo o seu schopenhauerismo, quando é um filósofo
sem editor, e um professor sem discípulos; e sofre horrendamente de
terrores e manias; e esconde o seu dinheiro debaixo do sobrado; e redige
as suas contas em grego nos perpétuos lamentos da desconfiança; e vive
nas adegas com o medo de incêndios; e viaja com um copo de lata na
algibeira para não beber em vidro que beiços de leproso tivessem
contaminado!... Então Schopenhauer é sombriamente Schopenhauerista. Mas
apenas penetra na celebridade, e os seus miseráveis nervos se acalmam, e
o cerca uma paz amável, não há então, em todo Francfort, burguês mais
optimista, de face mais jucunda, e gozando mais regradamente os bens da
inteligência e da Vida!... E o outro, o Israelita, o muito pedantesco
rei de Jerusalém! quando descobre esse sublime Retórico que o mundo é
Ilusão e Vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando o Poder lhe escapa
das mãos trémulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se lhe torna
ridiculamente supérfluo. Então rompem os pomposos queixumes! Tudo é
vaidade e aflição de espírito! nada existe estável sob o sol! Com
efeito, meu bom Salomão, tudo passa--principalmente o poder de usar
trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiático,
besuntado de Literatura, a sua virilidade,--e onde se sumirá o lamento
do Eclesiastes? Então voltará, em segunda e triunfal edição, o êxtase
do _Livro dos Cantares_!...

Assim discursava o meu amigo no nocturno silêncio de Tormes. Creio que
ainda estabeleceu sobre o Pessimismo outras coisas joviais, profundas ou
elegantes;--mas eu adormecera, beatificamente envolto em Optimismo e
doçura.

Em breve porém, me fez pular, escancarar as pálpebras moles, uma rija,
larga, sadia e genuína risada. Era Jacinto, estirado numa cadeira, que
lia o D. Quixote... Oh bem aventurado Príncipe! Conservara ele o agudo
poder de arrancar teorias a uma espiga de milho ainda verde, e por uma
clemência de Deus, que fizera reflorir o tronco seco, recuperara o dom
divino de rir, com as facécias de Sancho!

Aproveitando a minha companhia, as duas semanas de bucólica ociosidade
que eu lhe concedera, o meu Jacinto preparou então a cerimónia tão
falada, tão meditada, a trasladação dos ossos dos velhos Jacintos--dos
«respeitáveis ossos» como murmurava, cumprimentando, o bom Silvério, o
procurador, nessa manhã de sexta-feira, em que almoçava connosco,
metido num espantoso jaquetão de veludilho amarelo debruado de seda
azul! A cerimónia, de resto, reclamava muita singeleza por serem tão
incertos, quase impessoais, aqueles restos, que nós estabeleceríamos na
Capelinha do vale da Carriça, na Capelinha toda nova, toda nua e toda
fria, ainda sem alma e sem calor de Deus.

--Por que enfim V. Ex.^a compreende,--explicava o Silvério passando o
guardanapo por sobre a larga face suada e por sobre as imensas barbas
negras, como as de um turco--, naquela mixórdia... Oh! peço desculpa a
V. Ex.^a! Naquela confusão, quando tudo desabou, não pudemos mais
conhecer a quem pertenciam os ossos. Nem sequer, falando verdade, nós
sabíamos bem que dignos avós de V. Ex.^a jaziam na capela velha, assim
tão antigos, com os letreiros apagados, senhores de todo o nosso
respeito, certamente, mas, se V. Ex.^a me permite, senhores já muito
desfeitos... Depois veio o desastre, a mixórdia. E aqui está o que
decidi, depois de pensar. Mandei arranjar tantos caixões de chumbo,
quantas as caveiras que se apanharam lá em baixo na Carriça, entre o
lixo e o pedregulho. Havia sete caveiras e meia. Quero dizer, sete
caveiras e uma caveirinha pequenina. Metemos cada caveira em seu
caixão. Depois... Que quer V. Ex.^a? Não havia outro meio! E aqui o Sr.
Fernandes dirá se não acha que procedemos com habilidade. A cada caveira
juntamos uma certa porção de ossos, uma porção razoável... Não havia
outro meio... Nem todos os ossos se acharam. Canelas, por exemplo,
faltavam! E é bem possível que as costelas de um daqueles senhores
ficasse com a cabeça de outro... Mas quem podia saber? Só Deus. Enfim
fizemos o que a prudência mandava... Depois, no dia de Juízo, cada um
destes fidalgos apresentará os ossos que lhe pertencerem.

Lançava estas coisas macabras e tremendas, penetrado de respeito, quase
com majestade, espetando, ora em mim, ora no meu Príncipe, os olhinhos
agudos e reluzentes como vidrilhos.

Eu aprovei o pitoresco homem:

--Perfeitamente! Andou perfeitamente, amigo Silvério. São tão vagos, tão
anónimos, todos esses avós! Só faz pena, grande pena, que se
tresmalhassem os restos do avô Galeão.

--Não estava cá! acudiu Jacinto. Vim a Tormes expressamente por causa
do avô Galeão, e por fim o seu jazigo nunca foi aqui, na Capelinha da
Carriça... Felizmente!

O Silvério sacudia gravemente a calva trigueira:

--Nunca tivemos o Ex.^{mo} Sr. Galeão. Há cem anos, Sr. Fernandes, há
cem anos que se não depositava na capela velha corpo de cavalheiro cá
da casa.

--Onde estará então?...

O meu Príncipe encolheu os ombros. Por esse Reino... Na igrejinha, no
cemitério de alguma das freguesias numerosas, onde ele possuía terras.
Casa tão espalhada!

--Bem! concluí. Então, como se trata de ossadas vagas, sem nome, sem
data, convém uma ceremoniazinha muito simples, muito sóbria.

--Quietinha, quietinha! murmurou o Silvério, dando um forte sorvo
assobiado ao café.

E foi quietinha, de uma rústica e doce singeleza, a cerimónia daqueles
altos senhores. Cedo, por uma manhã, levemente enevoada, os oito caixões
pequeninos, cobertos de um veludo vermelho mais de festa que de funeral,
com molhos de rosas espalhados, contendo cada um o seu montezinho
de ossos incertos, saíram aos ombros dos coveiros de Tormes e dos moços
da quinta, da Igreja de S. José, cujo sino leve tangia, na enevoada
doçura da manhã,--quanto fina e levemente!--como pia um passarinho
triste. Adiante, um airoso moço de sobrepeliz, erguia com zelo a velha
cruz prateada; abrigando o pescoço sob um imenso lenço de rapé, de
quadrados azuis, o velho e corcovado sacristão segurava pensativamente a
caldeirinha de água benta; e o bom abade de S. José, com os dedos entre
o breviário fechado, movia os lábios, numa lenta, murmurosa reza, que
ia, pelo doce ar, espalhando mais doçura. Logo atrás do último cofre, o
mais pequenino, o da caveirinha pequena, Jacinto caminhava; e eu, a
estalar dentro de um fato preto de Jacinto, tirado à pressa de uma das
malas de Paris quando, de manhã, já tarde para mandar a Guiães, me
lembrei que toda a minha roupa era de cores festivais e pastoris.

Depois marchava o Silvério, soleníssimo, com um imenso peitilho, onde
as barbas imensas se alastravam, negríssimas. De casaca, com o grosso
beiço descaído, descaído todo ele por aquela melancolia de enterro
que se juntava à melancolia da serra, o Grilo enfiava no braço a sua
coroa, enorme, de rosas e de heras. Por fim seguia o Melchior, entre um
rancho de mulheres, que, sumidas na sombra dos lenços pretos, desfiando
longos rosários, rosnavam surdas ave-marias, através de espaçados
suspiros, tão doridos como se inconsoladamente lhes doesse a perda
daqueles Jacintos. Assim, pelas várzeas entrecorridas de regueiros,
lenta nos recostos dos matos, escorregando mais rápida, pelos córregos
pedregosos, seguia a procissão, sempre com a cruz adiante, alta e
prateada, rebrilhando por vezes num breve raiozinho de sol que,
vagarosamente, surdia da névoa desfeita. Ramos baixos de lodão ou de
salgueiro passavam uma derradeira carícia sobre o veludo dos caixões.

Um regato por vezes nos acompanhava, com discreto fulgir entre as
relvas, sussurrando e como rezando também, alegremente: e nos
quintalinhos umbrosos, à nossa passagem, os galos, de cima das pilhas
de mato, faziam soar o seu clarim festivo. Depois, adiante da fonte da
Lira, como o caminho se alongava, e desejássemos poupar o nosso velho
abade, cortámos através de uma seara, já alta, quase madura, toda
entremeada de papoilas, O sol radiou: sob a brisa larga, que levara a
névoa, toda a messe ondulou numa lenta vaga dourada, em que se
balouçavam os esquifes; e, como enorme papoila, a mais vermelha,
rutilava o guarda-sol de paninho logo aberto pelo sacristão para
abrigar o abade.

Jacinto tocou no meu cotovelo:

--Que lindos vamos! Ora vê tu a Natureza... Num simples enterrar
de ossos, quanta graça e quanta beleza!

Na Capelinha, nova, dominando o vale da Carriça, solitária e muito
nua, no meio de um adro, ainda mal alisado, sem uma verdura de relva, uma
frescura de arbusto, dois moços seguravam à porta molhos de tochas, que o
Silvério distribuiu, a passos graves, com cortesias, soleníssimo.
Dentro as curtas chamas, mal luziam, mal derramavam a sua amarelidão
triste, esbatidas na reluzente brancura dos muros estacados, na jovial
claridade que caía das altas vidraças bem polidas. Em torno dos
esquifes, pousados sobre bancos, que pesados veludilhos recobriam, o
abade murmurava um suave latim, enquanto ao fundo as mulheres, sumidas
na sombra dos seus negros lenços, gemiam _amens_ agudos, abafavam um
respeitoso soluço. Depois, tomando levemente o hissope, ainda o bom
abade aspergiu, para uma derradeira purificação, os incertos ossos dos
incertos Jacintos. E todos desfilámos por diante do meu Príncipe,
timidamente encostado à ombreira, com o Silvério ao lado esmagando
contra o peitilho as barbas imensas, a face descaída, cerradas as
pálpebras como contendo lágrimas.

No adro, o meu Príncipe acendeu regaladamente um cigarro pedido ao
Melchior:

--E então, Zé Fernandes, que te pareceu a cerimoniazinha?

--Muito campestre, muito suave, muito risonha... Uma delícia.

Mas o Abade, que se desvestira na Sacristia, apareceu, já com o seu
grande casaco de lustrina, e seu velho chapéu desabado, trazidos pelo
moço da Residência, num saco de chita. Jacinto, imediatamente lhe
agradeceu tantos cuidados, a afável hospitalidade que oferecera aos
ossos, durante a construção da Capelinha nova. E o suave velho, todo
branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro sorriso de
dentes sadios, louvava Jacinto, que assim viera de tão longe, em tão
longa jornada, para cumprir aquele dever de bom neto.

--São avós muito remotos, e agora tão confusos! murmurava Jacinto
sorrindo.

--Pois mais mérito ainda o de V. Ex.^a. Respeitar um avô morto, bem é
corrente... Mas respeitar os ossos de um quinto avô, de um sétimo avô!

--Sobretudo, Sr. Abade, quando deles nada se sabe, e naturalmente
nada fizeram.

O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo:

--Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excelentes! E por fim, quem
muito se demora no mundo, como eu, termina por se convencer que no mundo
não há coisa ou ser inútil. Ainda ontem eu lia num jornal do Porto,
que por fim, segundo se descobriu, são as minhocas que estrumam e lavram
a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o arado. Até as
minhocas são úteis. Não há nada inútil... Eu tinha lá na residência uma
porção de cardos a um canto da horta, que me afligiam. Pois reflecti e
terminei por me regalar com eles em xarope. Os avós de V. Ex.^a por cá
andaram, por cá trabalharam, por cá padeceram. Quer dizer: por cá
serviram. E, em todo o caso, que lhes rezemos um Padre-Nosso por alma
não lhes pode fazer senão bem, a eles e a nós.

E assim, docemente filosofando, parámos num souto de carvalheiras,
onde esperava a velhíssima égua do Abade, por que o santo homem agora,
depois do reumatismo do último Inverno, já não afrontava rijamente
como antes os trilhos duros da serra. Para ele montar, filialmente
Jacinto segurou o estribo. E enquanto a égua se empurrava pelo córrego
acima, quase tapada sob o imenso guarda-sol vermelho em que se abrigava
o velho, nós recolhemos a casa metendo pela serra da Lombinha, através
dos milhos, e depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa
preta do meu Príncipe.

--Estão pois acomodados estes senhores, Zé Fernandes! Só resta rezar
por eles o Padre-Nosso, que recomenda o abade... Somente, eu não sei,
já não me lembro do Padre-Nosso.

--Não te aflijas, Jacinto: peço à tia Vicência que reze por mim e por
ti. É sempre a tia Vicência que reza os meus Padres-Nossos.

Durante essas semanas que preguicei em Tormes, eu assisti, com
enternecido interesse, a uma considerável evolução de Jacinto nas suas
relações com a Natureza. Daquele período sentimental de contemplação,
em que colhia teorias nos ramos de qualquer cerejeira, e edificava
Sistemas sobre o espumar das levadas, o meu Príncipe lentamente passava
para o desejo da Acção... E de uma acção directa e material, em que a sua
mão, enfim restituída a uma função superior, revolvesse o torrão.

Depois de tanto _comentar_, o meu Príncipe, evidentemente, aspirava a
_criar_.

Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque,
enquanto o Manuel hortelão apanhava laranjas no alto de uma escada arrimada
a uma alta laranjeira, Jacinto observou, mais para si do que para mim:

--É curioso... Nunca plantei uma árvore!

--Pois é um dos três grandes actos, sem os quais segundo diz não sei que
Filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem... Fazer um filho, plantar
uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem. É
possível que talvez nunca prestasses um serviço a uma árvore, como se
presta a um semelhante!

--Sim... Em Paris, quando era pequeno, regava os lilases. E no Verão é
um belo serviço! Mas nunca semeei.

E como o Manuel descia da escada, o meu Príncipe, que nunca acreditara
inteiramente--pobre homem!--no meu saber agrícola, imediatamente
reclamou o parecer daquela autoridade:

--Oh Manuel, ouça lá, o que é que se poderia agora semear?

Com o cesto das laranjas enfiado no braço, o Manuel exclamou, através
de um lento riso, entre respeitoso e divertido:

--Semear, patrão? Agora é antes colher... Olhe que já se anda a limpar a
eirazinha para a debulha, meu patrão.

--Pois sim... Mas sem ser milho nem cevada... Então ali no pomar, rente
do muro velho, não se podia plantar uma fila de pessegueiros?

O riso do Manuel crescia.

--Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos ou para o Natal. Agora
só a couvinha na horta, a beldroega, os espinafres, algum feijãozinho em
terra muito fresca...

O meu Príncipe sacudiu com brando gesto estes legumes rasteiros.

--Bem, boa noite, Manuel. Essas laranjas são da tal laranjeira que diz o
Melchior, muito doces, muito finas? Então leve para os seus pequenos.
Leve muitas para os pequenos.

Não! o empenho era criar a árvore. Pela árvore contemplada na serra em
sua verdadeira majestade, na beneficência da sua sombra, na frescura
embaladora do seu rumorejar, na graça e santidade dos ninhos que a
povoam, começara talvez, lentamente, o seu amor novo da Terra. E agora
sonhava uma Tormes toda coberta de árvores, cujos frutos e verduras, e
sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o
cuidado das suas mãos paternais.

No silêncio grave do crepúsculo, que descia, murmurou ainda:

--Oh Zé Fernandes; quais são as árvores que crescem mais depressa?

--Eh, meu Jacinto... A árvore que cresce mais depressa é o eucalipto, o
feiíssimo e ridículo eucalipto. Em seis anos tens aí Tormes coberta de
eucaliptos...

--Tudo tão lento, Zé Fernandes...

Porque o seu sonho, que eu compreendia, seria plantar caroços que
subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes ramarias, antes de
ele voltar ao 202, no começo do Inverno...

--Um carvalho!... Trinta anos, antes que seja belo! Desanimo! É bom
para Deus, que pode esperar... _Patiens quia aeternus_. Trinta anos!
Daqui a trinta anos, árvores só para me cobrirem a sepultura!

--Já é um ganho. E depois para teus filhos, Jacinto...

--Filhos! onde os tenho eu?

--É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia. Não faltam por aí terras
agradáveis... Em nove meses tens uma planta feita. E quanto mais
tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.

Ele murmurou, cruzando as mãos sobre o joelho:

--Tudo leva tanto tempo!...

E à borda do tanque nos quedámos, calados, na fresca doçura do
anoitecer, entre o cheiro avivado das madressilvas do muro, olhando o
crescente da lua, que surdia dos telhados de Tormes.

E decerto esta pressa de se tornar entre a Natureza não mais um
sonhador, mas um criador, arremessou vivamente o seu interesse para os
gados! Repetidamente, nos nossos passeios através da quinta, ele lhe
notava a solidão.

--Faltam aqui animais, Zé Fernandes!

Imaginava eu, que ele apetecia em Tormes o ornato elegante de veados e
pavões. Mas um domingo, costeando o largo campo da Ribeirinha, sempre
escasso de águas, agora mais ressequido por Verão de tanta secura, o meu
Príncipe parou a considerar os três carneiros do caseiro, que retouçavam
com penúria uma relvagem pobre.

E, de repente, como magoado:

--Justamente! Aqui está o espaço para um belo prado, um imenso prado,
muito verde, muito farto, com rebanhos de carneiros brancos, gordíssimos
como bolas de algodão pousadas na relva!... Era lindo, hein? É fácil,
não é verdade, Zé Fernandes?

--Sim... Trazes a água para o prado. Águas não faltam, na serra.

E o meu Príncipe encadeando logo nesta inspirada ideia outra, mais rica
e vasta, lembrou quanta beleza daria a Tormes encher esses prados,
esses verdes ferragiais, de manadas de vacas, formosas vacas inglesas,
bem nédias e bem luzidias. Hein? Uma beleza. Para abrigar esses gados
ricos, construiria currais perfeitos, de uma arquitectura leve e útil,
toda em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados
pela água... Hein? Que formosura! Depois, com todas essas vacas, e o
leite jorrando, nada mais fácil e mais divertido, e até mais moral, que
a instalação de uma queijeira, à fresca moda Holandesa, toda branca e
reluzente, de azulejos e de mármore, para fabricar os Camemberts, os
Bries... os Coulommiers... Para a casa, que conforto! E para toda a
serra, que actividade!

--Pois não te parece, Zé Fernandes?

--Concerteza. Tu tens, em abundância, os quatro Elementos: o ar, a
água, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente se
faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!

--Pois não é verdade? E até como negócio! Está claro, para mim o lucro é
o deleite moral do trabalho, o emprego fecundo do dia... Mas uma
queijaria, assim perfeita, rende. Rende prodigiosamente. E educa o
paladar, incita a instalações iguais, implanta talvez no país uma
indústria nova e rica! Ora com essa instalação, perfeita, quanto me
poderá custar cada queijo?

Fechei um olho, calculando:

--Eu te digo.... Cada queijo, um desses queijinhos redondos, como o
Camembert ou o Rabaçal, pode vir a custar-te, a ti Jacinto queijeiro,
entre duzentos e cinquenta e trezentos mil réis.

O meu Príncipe recuou, com dois olhos alegres espantados para mim.

--Como trezentos mil réis?

--Ponhamos duzentos... Tem a certeza! Com todos esses prados, e os
encanamentos de água e a configuração da serra alterada, e as vacas
inglesas, e os edifícios de porcelana e vidro, e as máquinas, a
extravagância, e a patuscada bucólica, cada queijo te custa, a ti
produtor, duzentos mil réis. Mas com certeza o vendes no Porto por um
tostão. Põe cinquenta réis para a caixa, rótulos, transporte, comissão,
etc. Tens apenas, em cada queijo uma perda de cento e noventa e nove mil
oitocentos e cinquenta réis!

O meu Príncipe não desanimou.

--Perfeitamente! Faço um desses espantosos queijos por semana, ao
sábado, para o comermos nós ambos ao domingo!

E tanta energia lhe comunicava o seu novo Optimismo, tão ansiosamente
aspirava a criar, que logo, arrastando o Silvério e o Melchior por
cabeços e barrancos, largou a percorrer a quinta toda, para determinar
onde cresceriam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se
ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os currais elegantes. Com a
esplêndida segurança dos seus cento e nove contos de renda, não surgia
dificuldade, risonhamente murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com
respeitoso pasmo, pelo Silvério, que ele não afastasse brandamente, com
jeito leve, como um galho de roseira brava atravessado numa vereda.

Aquelas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um vale importuno
dividia dois campos? Que se atulhasse! O Silvério suspirava, enxugando
sobre a escura calva um suor quase de angústia. Pobre Silvério! Rijamente
sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando despesas que
se afiguravam sobre-humanas à sua parcimónia serrana, forçado a
arquejar, sem descanso, sob soalheiras de Junho, o desgraçado retomara
na Serra o jeito que Jacinto deixara em Paris,--e era ele que corria
pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados... Enfim uma tarde
desabafou comigo, a um canto da varanda, enquanto Jacinto, na
livraria, escrevia a um seu amigo de Holanda, o conde Rylant, Mordomo-Mor
da Corte, pedindo desenhos, e planos, e orçamentos de uma queijeira
perfeita.

--Pois, Sr. Fernandes, se toda esta grandeza vai por diante, sempre lhe
digo que o Sr. D. Jacinto enterra aqui na serra dezenas de contos...
Dezenas de contos!

E como eu aludia à fortuna do meu Príncipe, a quem todas essas obras
tão vastas, que alterariam o antiquíssimo rosto da serra, não custavam
mais que a outros o concerto de um socalco,--o bom Silvério atirou os
longos braços para as coxas gordas, ainda mais desolado:

--Pois por isso mesmo, Sr. Fernandes! Se o Sr. D. Jacinto não tivesse
a dinheirama, recuava. Assim, é zás zás, para diante; e eu não o censuro
pela ideia. Lograsse eu a renda de S. Ex.^a, que me atirava também a uma
lavoura de capricho. Mas não aqui, Sr. Fernandes, nestas serranias,
entre alcantis. Pois um senhor que possui aquela linda propriedade de
Montemor, nos campos do Mondego, onde até podia plantar jardins de
desbancar os do Palácio de Cristal do Porto! E a Veleira? O Sr.
Fernandes não conhece a Veleira, lá para os lados de Penafiel? Isso é
um condado! E uma terra chã, boa terra, toda junta, ali em volta da
casa, com uma torre. Um regalo, Sr. Fernandes. Mas sobretudo Montemor!
Lá é que eram prados e manadas de vacas inglesas, e queijeira e horta
rica, de fartar, e aí trinta perus na capoeira...

--Então que quer, Silvério? O Jacinto gosta da serra. E depois este é o
solar da família, e aqui começaram no século XIV os Jacintos...

O pobre Silvério, no seu desespero, esquecia o respeito devido à secular
nobreza da casa.

--Ora! até ficam mal ao Sr. Fernandes essas ideias, neste século da
liberdade... Pois estamos lá em tempos de se falar em fidalguias, agora
que por toda a parte anda tudo em República? Leia o _Século_, Sr.
Fernandes! leia o _Século_, e verá! E depois eu sempre quero ver o Sr.
D. Jacinto, aqui no Inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela
manhã, e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que atiram
carvalheiras de raízes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a
serra!... Olhe, até mesmo por amor da saúde o Sr. D. Jacinto, que é
fraquinho e acostumado à cidade, necessita sair da serra. Em Montemor,
em Montemor é que S. Ex.^a estava bem. E o Sr. Fernandes, tão amigo
dele e assim com tanta influência, devia teimar, e berrar, até que o
levasse para Montemor.

Mas, infelizmente para a quietação do Silvério, Jacinto lançara raízes,
e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra. Era realmente como se o
tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão, donde brotara a
sua raça, e o antiquíssimo húmus refluísse e o penetrasse todo, e o
andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e
preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava.

E depois o que o prendia à serra era o ter nela encontrado o que na
Cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrara nunca,--dias tão
cheios, tão deliciosamente ocupados, de um tão saboroso interesse, que
sempre penetrava neles, como numa festa ou numa glória.

Logo de manhã, às seis horas, eu, no meu quarto, mexendo ainda
regaladamente o meu corpo nos colchões de fresco folhelho, sentia os
seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu cantarolar, desafinado, mas
ditoso como o de um melro. Em poucos instantes escancarava com fragor a
minha porta, já de chapéu desabado, já de bengalão de cerejeira,
disposto com reservado fervor para os trilhos conhecidos da serra. E era
sempre a mesma nova, quase orgulhosa:

--Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão bem, com uma tal
serenidade, que começo a acreditar que sou um justo! Um dia lindo!
Quando abri a janela, às cinco horas, quase gritei de puro gosto!

Na sua pressa, nem me deixava demorar na frescura da banheira; e quando
eu repetia a risca mal começada do cabelo, aquele antigo homem das
trinta e nove escovas, protestava contra esse desbarato efeminado de um
tempo devido aos fortes gozos da terra.

Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pátio, desembocávamos da
alameda de plátanos, e diante de nós se dividiam matutinamente, mais
brancos entre o verde matutino, os caminhos coleantes da quinta, toda a
sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente lentidão de
quem penetra num Templo. E repetidamente sustentava ser «contrário à
Estética, à Filosofia e à Religião, andar depressa através dos
campos.» De resto, com aquela subtil sensibilidade bucólica que nele
se desenvolvera, e incessantemente se afinava, qualquer breve beleza,
do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente
poderia ele entreter toda uma manhã, caminhar por entre um pinheiral,
de tronco a tronco, calado, embebido no silêncio, na frescura, no
resinoso aroma, empurrando com o pé as agulhas e as pinhas secas.
Qualquer água corrente o retinha, enternecido naquela serviçal
actividade, que se apressa, cantando, para o torrão que tem sede, e
nele se some, e se perde. E recordo ainda quando me reteve meio
domingo, depois da Missa, no cabeço, junto a um velho curral
desmantelado, sob uma grande árvore,--só por que em torno havia
quietação, doce aragem, um fino piar de ave na ramaria, um murmúrio de
regato entre canas verdes, e por sobre a sebe, ao lado, um perfume,
muito fino e muito fresco, de flores escondidas.

Depois, quando eu, velho familiar das serras, me não abandonava aos
mesmos êxtases que a ele lhe enchiam a alma ainda noviça--o meu
Príncipe rugia, com a indignação de um poeta que descobre um merceeiro
bocejando sobre Shakespeare ou Musset. Eu ria.

--Meu filho, olha que eu não passo de um pequeno proprietário. Para mim
não se trata de saber se a terra é _linda_, mas se a terra é _boa_. Olha
o que diz a Bíblia! «Trabalharás a quinta com o suor do teu rosto!» E
não diz «contemplarás a quinta com o enlevo da tua imaginação!»

--Pudera! exclamava o meu Príncipe. Um livro escrito por Judeus, por
ásperos semitas, sempre com o turvo olho posto no lucro! Repara, homem,
para aquele bocadinho de vale, e consegue não pensar, por um momento,
nos trinta mil réis que ele rende! Verás que pela sua beleza e graça
ele te dá mais contentamento à alma que os trinta mil réis ao corpo. E
na vida só a alma importa.

Recolhendo ao casarão, já o encontrávamos com as janelas meio cerradas,
os soalhos borrifados para aquelas quentes réstias de sol de Junho, que
depois do almoço docemente nos retinham na livraria, preguiçando.

Mas realmente a alegre actividade do meu Príncipe não cessava, nem
amolecia, sob o peso da sesta. A essa hora, enquanto pelo arvoredo
mudo os mais agitados pardais dormiam, e o sol mesmo parecia repousar,
imóvel na rutilância da sua luz, Jacinto com o espírito
acordado,--ávido de sempre gozar, agora que reconquistara essa
faculdade,--tomava com delícia o _seu livro_. Por que o dono de trinta
mil volumes era agora, na sua casa de Tormes, depois de ressuscitado, o
homem que só tem um livro. Essa mesma Natureza, que o desligara das
ligaduras amortalhadoras do tédio, e lhe gritara o seu belo _Ambula_,
caminha!--também certamente lhe gritara _et lege_, e lê. E libertado
enfim do invólucro sufocante da sua Biblioteca imensa, o meu ditoso
amigo compreendia enfim a incomparável delícia de _ler um livro_.
Quando eu correra a Tormes, (depois das revelações do Severo na venda do
Torto,) ele findava o D. Quixote, e ainda eu lhe escutara as
derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e de certo profundas, que
o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o
meu Príncipe mergulhara na _Odisseia_,--e todo ele vivia no espanto e no
deslumbramento de assim ter encontrado no meio do caminho da sua vida, o
velho errante, o velho Homero!

--Oh Zé Fernandes, como sucedeu que eu chegasse a esta idade sem ter
lido Homero?...

--Outras leituras, mais urgentes... O _Figaro_, George Ohnet...

--Tu leste a _Ilíada_?

--Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a _Ilíada_.

Os olhos do meu Príncipe fuzilavam.

--Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista,
um desavergonhado de um sofista, que se gabava de não ter lido a
_Ilíada_?

--Não.

--Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremenda.

--Para lá, Alcibíades! Olha que eu li a _Odisseia_!

Oh! mas decerto eu a lera, corridamente, com a alma desatenta! E
insistia em me iniciar, ele, e me conduzir, através do Livro sem igual.
Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava por consentir, e me
estirava no canapé de verga. Ele, diante da mesa, direito na cadeira,
abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava
numa lenta ode sentida. Aquele grande mar da _Odisseia_,--
resplandecente e sonoro, sempre azul, todo azul, sob o voo branco das
gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a areia fina ou contra
as rochas de mármore das Ilhas divinas,--exalava logo uma frescura
salina, bem-vinda e consoladora naquela calma de Junho, em que a serra
se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulisses e os seus
perigos sobre-humanos, tantas lamúrias sublimes, e um anseio tão
espalhado da Pátria perdida, e toda aquela intriga, em que embrulhava
os Heróis, lograva as Deusas, iludia o Fado, tinham um delicioso sabor
ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de subtileza ou de
engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança imutável com que cada
manhã sempre o Sol igual nascia, e sempre centeios e milhos, regados por
águas iguais, seguramente medravam, espigavam, amadureciam... Embalado
pela recitação grave e monótona do meu Príncipe, eu cerrava as pálpebras
docemente. Em breve um vasto tumulto, por terra e céu, me alvoroçava...
E eram os rugidos de Polifemo, ou a grita dos companheiros de Ulisses
roubando as vacas de Apolo. Com os olhos logo esbugalhados para
Jacinto, eu murmurava: _Sublime!_ E sempre, nesse momento o engenhoso
Ulisses, de carapuço vermelho e o longo remo ao ombro, surpreendia com
a sua facúndia a clemência dos Príncipes, ou reclamava presentes devidos
ao Hóspede, ou surripiava astutamente algum favor aos Deuses. E Tormes
dormia, no esplendor de Junho. Novamente, eu cerrava as pálpebras
consoladas, sob a carícia inefável do largo dizer homérico... E meio
adormecido, encantado, incessantemente avistava, longe, na divina
Hélade, entre o mar muito azul e o ceu muito azul, a branca vela,
hesitante, procurando Ítaca...

Depois da sesta o meu Príncipe de novo se soltava para os campos. E a
essa hora, sempre mais activa, voltava com ardor aos «seus planos», a
essas culturas de luxo e elegantes oficinas que cobririam a serra de
magnificências rurais. Agora andava todo no esplêndido apetite de uma
horta que ele concebera, imensa horta ajardinada, em que todos os
legumes, clássicos ou exóticos, cresceriam, soberbamente, em vistosos
talhões, fechados por sebes de rosas, de cravos, de alfazema, de
dálias. A água das regas desceria por lindos córregos de louça
esmaltada. Nas ruas, a sombra cairia de densas latadas de moscatel,
pousando em esteios revestidos de azulejo. E o meu Príncipe desenhara o
plano desta espantosa horta, a lápis vermelho, num papel imenso, que
o Melchior e o Silvério, consultados, longamente contemplaram,--um
coçando risonhamente a nuca, o outro com os braços duramente cruzados, e
o sobrolho trágico.

Mas este plano, o da queijaria, o da capoeira, e outro, sumptuoso, de um
pombal tão povoado que todo o céu de Tormes às tardes se tornaria branco
e todo fremente de asas--não saíam das nossas gostosas palestras, ou dos
papéis em que Jacinto os debuxava, e que se amontoavam sobre a mesa,
platónicos, imóveis, entre o tinteiro de latão e o vaso com flores.

Nem enxadada fendera terra, nem alavanca deslocara pedra, nem serra
serrara madeira, para encetar estas maravilhas. Contra a resistência
rebolada e escorregadia do Melchior, contra a respeitosa inércia do
Silvério se quedavam, encalhados, os planos do meu Príncipe, como
galeras vistosas em rochas ou em lodo.

Não convinha bulir em nada, (clamava o Silvério) antes das colheitas e
da vindima! E depois, (acrescentava o Melchior com um sorriso de grande
promessa) «para boas obras mês de Janeiro» porque lá ensina o ditado:

Em Janeiro--mete obreiro
Mês meante--que não ante.

E, de resto, o gozo de conceber as suas obras e de indicar, estendendo a
bengala por cima de vale e monte, os sítios privilegiados que elas
aformoseariam, bastava por ora ao meu Príncipe, ainda mais imaginativo
que operante. E, enquanto meditava estas transformações da terra, muito
progressivamente e com um amável esforço, se ia familiarizando com os
homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada a Tormes, o meu
Príncipe sofria de uma estranha timidez diante dos caseiros, dos
jornaleiros, e até de qualquer rapazinho que passasse, tangendo uma
vaca para o pasto. Nunca ele então se demoraria a conversar com os
moços, quando à borda de um caminho ou num campo em monda eles se
endireitavam de chapéu na mão, num respeito de velha vassalagem. De
certo o empecia a preguiça, e talvez ainda o púdico recato de transpor
toda a imensa distância que se alargava desde a sua complicada
super-civilização até à rude simplicidade daquelas almas
naturais:--mas sobretudo o retinha o medo de mostrar a sua ignorância da
lavoura e da terra, ou de parecer talvez desdenhoso de ocupações e de
interesses, que para os outros eram supremos e quase religiosos. Remia
então esta reserva com uma profusão de sorrisos, de doces acenos,
tirando também o chapéu em cortesias profundas, com uma tal ênfase de
polidez que eu por vezes receava que ele murmurasse aos jornaleiros:
«Tenha V. Ex.^a muito boas tardes;... Criado de V. Ex.^a!»

Mas agora, depois daquelas semanas de serra, e de já saber (com um
saber ainda frágil,) a época das sementeiras e das ceifas, e que as
árvores de fruta se semeiam no Inverno, já se aprazia em parar junto
dos trabalhadores, contemplar descansadamente o trabalho, dizer coisas
afáveis e vagas.

--Então, isso vai andando?... Ora ainda bem!... Este bocado de torrão
aqui é rico... O talude ali adiante está precisando conserto...

E cada um destes tão simples dizeres lhe era doce, como se por meio
deles penetrasse mais fundamente na intimidade da terra, e
consolidasse a sua encarnação em «homem do campo,» deixando de ser uma
mera sombra circulando entre realidades. Já por isso não cruzava no
caminho o mocinho atrás das vacas, que não o detivesse, o não
interrogasse: «Para onde vais tu? De quem é o gado? Como te chamas?» E,
contente consigo, sempre gabava gratamente o desembaraço do rapaz, ou a
esperteza dos seus olhos. Outra satisfação do meu Príncipe era conhecer
os nomes de todos os campos, as nascentes de água, e as delimitações da
sua quinta.

--Vês acolá, para além do ribeiro, o pinheiral. Já não é meu, é dos
Albuquerques.

E com a perene alegria de Jacinto as noites da serra, no vasto
casarão, eram fáceis e curtas. O meu Príncipe era então uma alma que se
simplificava:--e qualquer pequenino gozo lhe bastava, desde que nele
entrasse paz ou doçura. Com verdadeira delícia ficava, depois do café,
estendido numa cadeira, sentindo através das janelas abertas, a
nocturna tranquilidade da serra, sob a mudez estrelada do céu.

As histórias, muito simples e muito caseiras, que eu lhe contava, de
Guiães, do abade, da tia Vicência, dos nossos parentes da Flor da
Malva, tão sinceramente o interessavam que eu encetara, para seu regalo,
a crónica completa de Guiães, com todos os namoricos, e as façanhas de
forças, e as desavenças por causa de servidões ou de águas. Também por
vezes nos enfronhávamos, com aferro numa partida de gamão, sobre um
belo tabuleiro de pau preto, com pedras de velho marfim, que nos
emprestara o Silvério. Mas nada de certo o encantava tanto como
atravessar as casas, pé ante pé, até uma saleta que dava para o pomar, e
aí ficar encostado à janela, sem luz, num enlevado sossego, a escutar
longamente, languidamente, os rouxinóis que cantavam no laranjal.



X


Numa dessas manhãs--justamente na véspera do meu regresso a Guiães--, o
tempo, que andara pela serra tão alegre, num inalterado riso de luz
rutilante, todo vestido de azul e ouro, fazendo poeira pelos caminhos, e
alegrando toda a natureza, desde os pássaros até os regatos,
subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento
tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo
embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e
contagiosa que toda a serra entristeceu. E não houve mais pássaro que
cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das ervas com um lento
murmúrio de choro.

Quando Jacinto entrou no meu quarto, não resisti à malícia de o
aterrar:

--Sudoeste! gralhas a grasnar por todos esses soutos... Temos muita
água, Sr. D. Jacinto! Talvez duas semanas de água! E agora é se vai
saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva pegada, com
vendaval, com a serra toda a escorrer!

O meu Príncipe caminhou para a janela com as mãos nas algibeiras:

--Com efeito! Está carregado. Já mandei abrir uma das malas de Paris e
tirar um casacão impermeável... Não importa! Fica o arvoredo mais verde.
E é bom que eu conheça Tormes nos seus hábitos de Inverno.

Mas como o Melchior lhe afiançara que a «chuvinha só viria para a
tarde», Jacinto decidiu ir antes de almoço à Corujeira, onde o Silvério
o esperava para decidirem da sorte de uns castanheiros, muito velhos,
muito pitorescos, inteiramente interessantes, mas já roídos, e
ameaçando desabar. E, confiando nas previsões do Melchior, partimos sem
que Jacinto se vestisse à prova de água. Não andáramos porém meio
caminho, quando, depois de um arrepio nas árvores, um negrume carregou,
e, bruscamente, desabou sobre nós uma grossa chuva oblíqua, vergastada
pelo vento, que nos deixou estonteados, agarrando os chapéus,
enrodilhados na borrasca. Chamados por uma grande voz, que se esganiçava
no vento, avistámos num campo mais alto, à beira de um alpendre, o
Silvério, debaixo de um guarda-chuva vermelho, que acenava, nos indicava
o trilho mais curto para aquele abrigo. E para lá rompemos, com a chuva
a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos, cambaleantes,
atordoados no vendaval, que num instante alagara os campos, inchara os
ribeiros, esboroava a terra dos socalcos, lançara num desespero todo o
arvoredo, tornara a serra negra, bravamente agreste, hostil,
inabitável.

Quando enfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que o Silvério nos
esperava à beira do campo, corremos para o alpendre, nos refugiámos
naquele abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu Príncipe,
enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfalecido:

--Apre! que ferocidade!

Parecia espantado daquela brusca, violenta cólera de uma serra tão
amável e acolhedora, que em dois meses, inalteradamente, só lhe
oferecera doçura e sombra, e suaves céus, e quietas ramagens, e
murmúrios discretos de ribeirinhos mansos.

--Santo Deus! Vem muitas vezes assim, estas borrascas?

Imediatamente o Silvério aterrou o meu Príncipe:

--Isto agora são brincadeiras de Verão, meu senhor! Mas há-de V. Ex.^a
ver no Inverno, se V. Ex.^a se aguentar por cá! Então é cada temporal,
que até parece que os montes estremecem!

E contou como fora também apanhado, quando ia para a Corujeira.
Felizmente, logo pela manhã, quando sentiu o ar carrancudo e as
folhinhas dos choupos a tremer, se acautelara com o chapéu de chuva e
calçara as suas grandes botas.

--Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um caseiro de
cá. Aquela casa, ali abaixo, onde está a figueira... Mas a mulher tem
estado doente, já há dias... E como pode ser obra que se pegue, bexigas
ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o seguro morreu de velho!
Meti para o alpendre... E não passara um credo quando lobriguei a V.
Ex.^a... Coisa assim!... E o Sr. D. Jacinto é voltar para casa, e
mudar-se, que temos um dia e uma noite de água.

Mas, justamente, a chuva começara a cair perpendicular, de um céu ainda
negro, onde o vento se calara; e para além do rio e dos montes havia uma
claridade, como entre cortinas de pano cinzento que se descerram.

Jacinto repousava. Eu não cessara de me sacudir, de bater os pés
encharcados, que me arrefeciam. E o bom Silvério, passando a mão
pensativa sobre o negrume das suas barbas, reflectia, emendava os seus
prognósticos:

--Pois, não senhor... Ainda estia! Nunca pensei. É que tornejou o vento.

O alpendre que nos cobria assentava sobre duas paredes em ângulo, de
pedra solta, restos de algum casebre desmantelado, e sobre um esteio
fazendo cunhal. Nesse momento só abrigava madeira, um cuculo de cestos
vazios, e um carro de bois, onde o meu Príncipe se sentara, enrolando um
cigarro confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos fios
reluzentes. E todos três nos calávamos, naquela contemplação inerte e
sem pensamento, em que uma chuva grossa e serena sempre imobiliza e
retém olhos e almas.

--Ó Sr. Silvério, murmurou lentamente o meu Príncipe, que é que o
senhor esteve aí a dizer de bexigas?

O procurador voltou a face surpreendido:

--Eu, Ex.^{mo} Sr.?... Ah sim! a mulher do Esgueira! É que pode ser,
pode ser... Não imagine V. Ex.^a que faltam por cá doenças. O ar é bom.
Não digo que não! Arzinho são, aguazinha leve. Mas às vezes, se V. Ex.^a
me dá licença, vai por aí muita maleita.

--Mas não há médico, não há botica?

O Silvério teve o riso superior de quem habita regiões civilizadas e bem
providas...

--Então não havia de haver? Pois há um boticário, em Guiães, lá quase ao
pé da casa aqui do nosso amigo. E homem entendido... o Firmino, hein,
Sr. Fernandes? Homem capaz. Médico é o Dr. Avelino, daqui a légua e
meia, nas Bolsas. Mas já V. Ex.^a vê, esta gentinha é pobre!... Tomaram
eles para pão, quanto mais para remédios!

E de novo se estabeleceu um silêncio, sob o alpendre, onde penetrava a
friagem crescente da serra encharcada. Para além do rio, a prometedora
claridade não se alargara entre as duas espessas cortinas pardacentas.
No campo, em declive diante de nós, ia um longo correr de ribeiros
barrentos. Eu terminara por me sentar na ponta de um madeiro, enervado,
já com a fome aguçada pela manhã agreste. E Jacinto, na borda do carro,
com os pés no ar, cofiava os bigodes húmidos, palpava a face, onde, com
espanto meu, reaparecera a sombra, a sombra triste dos dias passados, a
sombra do 202!

E, então, surdiu por trás da parede do alpendre um rapazito, muito
rotinho, muito magrinho, com uma carita miúda, toda amarela sob a
porcaria, e onde dois grandes olhos pretos se arregalavam para nós, com
vago pasmo e vago medo. Silvério imediatamente o conheceu.

--Como vai a tua mãe? Escusas de te chegar para cá, deixa-te estar aí.
Eu ouço bem. Como vai a tua mãe?

Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram. Mas Jacinto,
interessado:

--Que diz ele? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua mãe?

Foi o Silvério que informou respeitosamente:

--É a tal mulher que está doente, a mulher do Esgueira, ali do casal da
figueira. E ainda tem outro abaixo deste... Filharada não lhe falta.

--Mas este pequeno também parece doente!--exclamou Jacinto. Coitadito,
tão amarelo!... Tu também estás doente?

O rapazinho emudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados.
E o Silvério sorria, com bondade:

--Nada! este é sãozinho... Coitado, é assim amarelado e enfezadito, por
que... Que quer V. Ex.^a? Mal comido! muita miséria... Quando há o
bocadito de pão é para todo o rancho. Fomezinha, fomezinha!

Jacinto pulou bruscamente da borda do carro.

--Fome? Então ele tem fome? Há aqui gente com fome?

Os seus olhos rebrilhavam, num espanto comovido, em que pediam, ora a
mim, ora ao Silvério, a confirmação desta miséria insuspeitada. E fui
eu que esclareci o meu Príncipe:

--Homem! está claro que há fome! Tu imaginavas talvez que o Paraíso se
tinha perpetuado aqui nas serras, sem trabalho e sem miséria... Em toda
a parte há pobres, até na Austrália, nas minas de ouro. Onde há trabalho
há proletariado, seja em Paris, seja no Douro...

O meu Príncipe, teve um gesto de aflita impaciência:

--Eu não quero saber o que há no Douro. O que eu pergunto é se aqui, em
Tormes, na minha propriedade, dentro destes campos que são meus, há
gente que trabalhe para mim, e que tenha fome... Se há criancinhas, como
esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.

O Silvério sorria, respeitosamente, ante aquela cândida ignorância das
realidades da Serra:

--Pois está bem de ver, meu senhor, que há para aí caseiros que são
muito pobres. Quase todos... É uma miséria, que se não fosse algum
socorro que se lhes dá, nem eu sei!... Este Esgueira, com o rancho de
filhos que tem, é uma desgraça... Havia V. Ex.^a de ver as casitas em
que eles vivem... São chiqueiros. A do Esgueira, acolá...

--Vamos vê-la! atalhou Jacinto com uma decisão exaltada.

E saiu logo do alpendre, sem atender à chuva, que ainda caía, mais
leve e mais rala. Mas então Silvério alargou os braços diante dele,
com ansiedade, como para o salvar de um precipício.

--Não! V. Ex.^a lá na casa do Esgueira é que não entra! Não se sabe o
que a mulher tem, e cautela e caldo de galinha...

Jacinto não se alterou na sua polidez paciente:

--Obrigado pelo seu cuidado, Silvério... Abra o seu chapéu de chuva, e
avante!

Então o Procurador vergou os ombros, e, como S. Ex.^a mandava, abriu
com estrondo o imenso pára-águas, abrigou respeitosamente Jacinto,
através do campo encharcado. Eu segui, pensando na esmola sumptuosa que
o bom Deus mandava àquele pobre casal por um remoto senhor das Cidades!
Atrás vinha o pequenito perdido num imenso pasmo.

Como todos os casebres da serra, o do Esgueira era de grossa pedra
solta, sem reboco, com um vago telhado, de telha musgosa e negra, um
postigo no alto, e a rude porta que servia para o ar, para a luz, para o
fumo, e para a gente. E em redor, a Natureza e o Trabalho tinham,
através de anos, acumulado ali trepadeiras e flores silvestres, e
cantinhos de horta, e sebes cheirosas, e velhos bancos roídos de musgo, e
panelas com terra onde crescia salsa, e regueiros cantantes, e videiras
enforcadas nos olmos, e sombras e charcos espelhados, que tornavam
deliciosa, para uma Écloga, aquela morada da Fome, da Doença e da
Tristeza.

Cautelosamente, com a ponteira do guarda-chuva, Silvério empurrou a
porta, chamando:

--Eh! tia Maria... Olá rapariga!

E na fenda entreaberta apareceu uma moça, muito alta, escura e suja,
com uns tristes olhos pisados, que se espantaram para nós, serenamente.

--Então como vai a tua mãe?--Abre lá a porta, que estão aqui estes
senhores...

Ela abriu, lentamente, e ia murmurando numa voz dolente e arrastada
mas sem queixume, que um vago, resignado sorriso acompanhava:

--Ora, coitada! como há-de ir? Malzinha... malzinha.

E dentro, num gemido que subia como do chão, dentre abafos, amodorrado
e lento, a mãe repetiu a desconsolada queixa:

--Ai! para aqui estou, e malzinha, malzinha!...

O Silvério, sem passar da porta, com o guarda-chuva em riste, meio
aberto, como um escudo contra a infecção, lançou uma consolação vaga:

--Não há-de ser nada, tia Maria!... Isso foi friagem! Não foi senão
friagem!

E, sobre o ombro de Jacinto, encolhido:

--Já V. Ex.^a vê... Muita miséria! Até lhe chove lá dentro.

E, no pedaço de chão que viam, chão de terra batida, uma mancha húmida
reluzia, da chuva pingada de uma telha rota. A parede, coberta de
fuligem, das longas fumaraças da lareira, era tão negra como o chão. E
aquela penumbra suja parecia atulhada, numa desordem escura, de
trapos, de cacos, de restos de coisas, onde só mostravam forma
compreensível uma arca de pau negro, e por cima, pendurado de um prego,
entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote escarlate.

Então Jacinto, muito embaraçado, murmurou abstraidamente:

--Está bem, está bem...

E largou pelo campo para o lado do alpendre como se fugisse, enquanto o
Silvério decerto revelava à rapariga, a presença augusta do «fidalgo»,
porque a sentimos, da porta, levantar a voz dolorida:

--Ai! Nosso Senhor lhe dê muito boa sorte! Nosso Senhor o acompanhe!

Quando o Silvério, com as grandes passadas das suas grandes botas, nos
colheu, no meio do campo, Jacinto parara, olhava para mim, com os dedos
trémulos a torturar o bigode, e murmurava:

--É horrível, Zé Fernandes, é horrível.

Ao lado, o vozeirão do Silvério trovejou:

--Que queres tu outra vez, rapaz? Vai para a tua mãe, criatura!

Era o pequeno rotinho, esfaimadinho, que se prendia a nós, num imenso
pasmo das nossas pessoas, e com a confusa esperança, talvez, que
delas, como de Deuses encontrados num caminho, lhe viesse afago ou
proveito. E Jacinto, para quem ele mais especialmente arregalava os
olhos tristes, e que aquela miséria, e a sua muda humildade,
embaraçavam, acanhavam horrivelmente, só soube sorrir, murmurar o seu
vago: «Está bem, está bem...» Fui eu que dei ao pequenito um tostão,
para o fartar, o despegar dos nossos passos. Mas como ele, com o seu
tostão bem agarrado, nos seguia ainda, como no sulco da nossa
magnificência, o Silvério teve de o espantar, como a um pássaro, batendo
as mãos, e de lhe gritar:

--Já para casa! E leve esse dinheiro à mãe. Roda, roda!...

--E nós vamos almoçar, lembrei eu olhando o relógio. O dia ainda vai
estar lindo.

Sobre o rio, com efeito, reluzia um pedaço de azul lavado e lustroso; e
a grossa camada de nuvens já se ia enrolando sob a lenta varredela do
vento, que as levava, despejadas e rotas, para um canto escuso do céu.

Então recolhemos lentamente para casa, por uma vereda íngreme, que
ensinara o Silvério, e onde um leve enxurro vinha ainda, saltando e
chalrando. De cada ramo tocado, rechovia uma chuva leve. Toda a verdura,
que bebera largamente, reluzia consolada.

Bruscamente, ao sairmos da vereda para um caminho mais largo, entre um
socalco e um renque de vinha, Jacinto parou, tirando lentamente a
cigarreira:

--Pois, Silvério, eu não quero mais estas horríveis misérias na quinta.

O Procurador deu um jeito aos ombros, com um vago _eh_! _eh_!
de obediência e dúvida.

--Antes de tudo, continuava Jacinto, mande já hoje chamar esse Dr.
Avelino para aquela pobre mulher... E os remédios que os vão buscar
logo a Guiães. E recomendação ao médico para voltar amanhã, e em cada
dia; até que ela melhore... Escute! E quero, Melchior, que lhe leve
dinheiro, para os caldos, para a dieta, uns dez, ou quinze mil réis...
Bastará?

O Procurador não conteve um riso respeitoso. Quinze mil réis! Uns
tostões bastavam... Nem era bom acostumar assim, a tanta franqueza,
aquela gente. Depois todos queriam, todos pedinchavam...

--Mas é que todos hão-de ter, disse Jacinto simplesmente.

--V. Ex.^a manda, murmurou o Silvério.

Encolhera os ombros, parado no caminho, no espanto daquelas
extravagâncias. Eu tive de o apressar, impaciente:

--Vamos conversando e andando! É meio-dia! Estou com uma fome de lobo!

Caminhámos, com o Silvério no meio, pensativo, a fronte enrugada sob a
vasta aba do chapéu, a barba imensa espalhada pelo peito, e a barraca
exorbitante do guarda-chuva vermelho enrolada debaixo do braço. E
Jacinto, puxando nervosamente o bigode, arriscava outras ideias
benfazejas, cautelosamente, no seu indominável medo do Silvério:

--E as casas também... Aquela casa é um covil!... Gostava de abrigar
melhor aquela pobre gente... E naturalmente, as dos outros caseiros são
pocilgas iguais... Era necessário uma reforma! Construir casas novas a
todos os rendeiros da quinta...

--A todos?...--O Silvério gaguejava,--emudeceu.

E Jacinto balbuciava aterrado:

--A todos... Enfim, quero dizer... Quantos serão eles?

Silvério atirou um gesto enorme:

--São vinte e coisas... Vinte e três! se bem lembro. Upa! Upa! Vinte e
sete...

Então Jacinto emudeceu também, como reconhecendo a vastidão do número.
Mas desejou saber, por quanto ficaria cada casa!... Oh! uma casa
simples, mas limpa, confortável, como a que tinha a irmã do Melchior, ao
pé do lagar. Silvério estacou de novo. Uma casa como a da Ermelinda?
Queria Sua Ex.^a saber? E alijou a cifra, muito de alto, como uma pedra
imensa, para esmagar Jacinto:

--Duzentos mil réis, Ex^mo Senhor! E é para mais que não para menos!

Eu ria da trágica ameaça do excelente homem. E Jacinto, muito
docemente, para conciliar o Silvério:

--Bem, meu amigo... Eram uns seis contos de réis! Digamos dez, por que
eu queria dar a todos alguma mobília e alguma roupa.

Então o Silvério teve um brado de terror:

--Mas então, Ex.^mo Senhor, é uma revolução!

E como nós, irresistivelmente, ríamos dos seus olhos esgazeados de
horror, dos seus imensos braços abertos para trás, como se visse o
mundo desabar,--o bom Silvério encavacou:

--Ah! V. Ex.^{as} riem? Casas para todos, mobílias, pratas, bragal, dez
contos de réis! Então também eu rio! Ah! ah! ah! Ora viva a bela
chalaça!... Está boa a risota!

E subitamente, numa profunda mesura, como declinando toda a
responsabilidade naquele disparate magnífico:

--Enfim, V. Ex.^a é quem manda!

--Está mandado, Silvério. E também quero saber as rendas que paga essa
gente, os contratos que existem, para os melhorar. Há muito que
melhorar. Venha você almoçar connosco. E conversamos.

Tão saturado de espanto estava o Silvério, que nem recebeu mais espanto
com essa «melhoria de rendas». Agradeceu o convite, penhorado. Mas pedia
licença a Sua Ex.^a para passar primeiramente pelo lagar, para ver os
carpinteiros que andavam a concertar a trave do rio. Era um instante, e
estava em seguida às ordens de S. Ex.^a.

Meteu a corta-mato, saltando um cancelo. E nós seguimos, com passos
que eram ligeiros, pela hora do almoço que se retardara, pelo azul
alegre que reaparecia, e por toda aquela justiça feita à pobreza da
serra.

--Não perdeste hoje o teu dia, Jacinto, disse eu, batendo, com uma
ternura que não disfarcei, no ombro do meu amigo.

--Que miséria, Zé Fernandes! Eu nem sonhava... Haver por aí, à vista da
minha casa, outras casas, onde crianças têm fome! É horrível...

Estávamos entrando na alameda. Um raio de sol, saindo dentre duas
grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma esquina do casarão, ao
fundo, uma viva tira de ouro. O clarim dos galos soava claro e alto. E
um doce vento, que se erguera, punha nas folhas lavadas e luzidias um
frémito alegre e doce.

--Sabes o que eu estava pensando, Jacinto?... Que te aconteceu aquela
lenda de Santo Ambrósio... Não, não era Santo Ambrósio... Não me lembra
o santo... Nem era ainda santo... apenas um cavaleiro pecador, que se
enamorara de uma mulher, pusera toda a sua alma nessa mulher, só por a
avistar a distância na rua. Depois, uma tarde que a seguia, enlevado,
ela entrou num portal de igreja, e aí, de repente, ergueu o véu,
entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre cavaleiro o seio roído por uma
chaga! Tu, também andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua
beleza de Verão. E a serra, hoje, zás! de repente, descobre a sua
grande úlcera... É talvez a tua preparação para S. Jacinto.

Ele parou, pensativo, com os dedos nas cavas do colete:

---É verdade! Vi a chaga! Mas enfim, esta, louvado seja Deus, é das que
eu posso curar!

Não desiludi o meu Príncipe. E ambos subimos alegremente a escadaria do
casarão.



XI


No dia que seguiu estas largas caridades recolhi a Guiães. E, desde
então, tantas vezes trotei por aquelas três léguas entre a nossa e a
velha alameda dos Jacintos, que a minha égua, quando a desviava dessa
estrada familiar, conduzindo a uma cavalariça familiar, (onde ela
privava com o garrano do Melchior) relinchava de pura saudade. Até a tia
Vicência se mostrava vagamente ciumenta daquela Tormes, para onde eu
sempre corria, daquele Príncipe de quem incessantemente celebrava o
rejuvenescimento, a caridade, os pitéus, e as quimeras agrícolas. Já um
dia com um grão de sal e ironia,--o único que cabia num coração todo
cheio de inocência,--ela me dissera, movendo com mais vivacidade as
agulhas da sua meia:

--Olha que te podes gabar! Até me tens feito curiosidade de conhecer
esse Jacinto... Traz cá essa maravilha, menino!

Eu rira:

--Sossegue, tia Vicência, que o trarei agora, para o dia dos meus anos,
a jantar... Damos uma festa, haverá um bailarico no pátio, e vem aí
toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se arranje uma noiva para
o Jacinto.

Eu, com efeito, já convidara o meu Príncipe para este «natalício». E de
resto convinha que o senhor de Tormes conhecesse todos aqueles senhores
das boas casas da serra... Sobretudo, como eu lhe dizia rindo, convinha
que ele conhecesse algumas mulheres, algumas daquelas fortes
raparigas dos solares serranos, porque Tormes tinha uma solidão muito
monástica; e o homem, sem um pouco do Eterno Feminino, facilmente se
enrudece e ganha uma casca áspera como a das árvores, na solidão.

--E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza, e o
renunciamento às mentiras da Civilização é uma linda história... Mas,
caramba, faltam mulheres!

Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:

--Com efeito, há aqui falta de mulher, com M. grande. Mas essas
senhoras aí das casas dos arredores... Não sei, estou pensando que se
devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes para a
panela--mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às
Flores são sempre as mulheres das Cortes, das Capitais, às quais,
invariavelmente, desde Hesíodo e de Horácio, se rendem os poetas... E
evidentemente não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte,
numa cenoura ou numa couve... Não devem ser interessantes as senhoras
da minha serra.

--Eu te digo... A tua vizinha mais chegada, a filha do D. Teotónio, com
efeito, salvo o respeito que se deve à casa ilustre dos Barbedos, é um
mostrengo! A irmã dos Albergarias, da quinta da Loja, também não
tentaria nem mesmo o precisado Santo Antão. Sobretudo se se despisse,
por que é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e não dos
nutritivos.

--Tu o disseste: espinafre!

--Temos também a D. Beatriz Veloso... Essa é bonita... Mas, menino, que
horrivelmente bem falante! Fala como as heroínas do Camilo. Tu nunca
leste o Camilo... E depois, um tom de voz que te não sei descrever, o
tom com que se fala em D. Maria, em peças de sentimento. Tu também
nunca viste o Teatro de D. Maria... Enfim, um horror! E perguntas
pavorosas. «V. Ex.^a. Sr. Doutor, não se delicia com Lamartine?» Já me
disse esta, a indecente!

--E tu?

--Eu! Arregalei os olhos... «Oh Lamartine!». Mas, coitada, é uma
excelente rapariga! Agora, por outro lado, temos as Rojões, as filhas
de João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres, com um cheiro
e um brilho a sadio, e muito simples... A tia Vicência morre por elas.
Depois há a mulher do Dr. Alípio, que é uma beleza. Oh! uma criatura
esplêndida! Mas, enfim, é a mulher do Dr. Alípio, e tu renunciaste aos
deveres da Civilização... Além disso, mulher muito séria, toda absorvida
nos seus dois pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo... E quem
mais? Já agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a
Melo Rebelo, de Sandofim, muito engraçada, com cabelo lindo... Borda
na perfeição, faz doces como uma freira do antigo Regime... Havia
também uma Júlia Lobo, muito linda, mas morreu... Agora não me lembro
mais. Mas falta a flor da Serra, que é a minha prima Joaninha, da Flor
da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga.

--E tu, primo Zé, como tens tu resistido?

--Somos como irmãos, criados de pequeninos, mais acostumados e
familiares que tu e eu... A familiaridade esbate os sexos. A mãe dela
era a única irmã da tia Vicência, e morreu muito nova. A Joaninha,
quase desde o berço que se criou em nossa casa, em Guiães. O pai é bom
homem, o tio Adrião. Erudito, antiquário, coleccionador... Colecciona
toda a sorte de coisas esquisitas, campainhas, esporas, sinetes,
fivelas... Tem uma colecção curiosa. Ele há muito que deseja vir a
Tormes, para te visitar... Mas, coitado, sofre da bexiga, não pode
montar a cavalo. E a estrada da Flor da Malva aqui é impossível para
carruagens...

O meu Príncipe espreguiçara longamente os braços:

--Não, está claro! eu é que hei-de visitar teu tio, e a tia Vicência...
Desejo conhecer os meus vizinhos. Mas mais tarde, quando sossegar. Agora
ando todo ocupado com o meu povo.

E com efeito! Jacinto era agora como um Rei fundador de um Reino, e
grande edificador. Por todo o seu domínio de Tormes andavam obras, para
o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se concertavam, outras
mais velhas, que se derrubavam para se reconstruírem com uma largueza
cómoda. Pelos caminhos constantemente chiavam carros, carregados de
pedra, ou de madeiras cortadas nos pinheirais.

Na taberna do Pedro, à entrada da freguesia, ia um desusado movimento,
de pedreiros e carpinteiros contratados para as obras;--e o Pedro, com
as mangas arregaçadas, por trás do balcão, não cessava de encher os
decilitros com uma vasta infusa.

Jacinto, que tinha agora dois cavalos, todas as manhãs cedo percorria
as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra vez, latejar e irromper
no meu Príncipe o seu velho, maníaco furor de acumular Civilização! O
plano primitivo das obras era incessantemente alargado, aperfeiçoado.
Nas janelas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular costume
da serra, decidira pôr vidraças, apesar do mestre de obras lhe dizer
honradamente, que depois de habitadas um mês, não haveria casa com um só
vidro. Para substituir as traves clássicas queria estucar os tectos;--e
eu via bem claramente que ele se continha, se retesava dentro do
Bom-Senso, para não dotar cada casa com campainhas eléctricas. Nem
sequer me espantei, quando ele uma manhã me declarou que a porcaria da
gente do campo provinha de eles não terem onde comodamente se lavar,
pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma banheira. Descíamos
nesse momento, com os cavalos à rédea, por uma azinhaga precipitada e
escabrosa; um vento leve ramalhava nas árvores, um regato saltava
ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei--mas realmente me
pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se riam
alegremente do meu Príncipe. E além destes confortos, a que o João,
mestre de obras, com os olhos loucamente arregalados chamava «as
grandezas», Jacinto meditava o bem das almas. Já encomendara ao seu
arquitecto, em Paris, o plano perfeito de uma escola, que ele queria
erguer, naquele campo da Carriça, junto à capelinha que abrigava «os
ossos». Pouco a pouco, aí criaria também uma biblioteca, com livros
de estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem já não era
possível ensinar a ler. Eu vergava os ombros, pensando:--«Aí vem a
terrível acumulação das Noções! Eis o livro invadindo a Serra!» Mas
outras ideias de Jacinto eram tocantes,--e eu mesmo me entusiasmei, e
excitei o entusiasmo da tia Vicência com o seu plano de uma Creche, onde
ele esperava ter manhãs muito divertidas vendo as criancinhas a
gatinhar, a correr tropegamente atrás de uma bola. De resto, o nosso
boticário de Guiães estava já apalavrado para estabelecer uma pequena
farmácia em Tormes, sob a direcção do seu praticante, um afilhado da
tia Vicência, que tinha publicado um artigo sobre as festas populares do
Douro no _Almanaque de Lembranças_. E já fora oferecido o partido médico
de Tormes, com ordenado de 600$000 réis.

--Não te falta senão um Teatro! dizia eu, rindo.

--Um teatro não. Mas tenho a ideia de uma sala, com projecções de
lanterna mágica, para ensinar a esta pobre gente as cidades desse
mundo, e as coisas de África, e um bocado de História.

E também me ensoberbeci com esta inovação!--E quando a contei ao tio
Adrião, o digno antiquário bateu, apesar do seu reumatismo, uma palmada
tremenda na coxa. «Sim, senhor! Bela ideia! Assim se podia ensinar
àquela gente iletrada, vivamente, por imagens, a História Santa, a
História Romana, até a História de Portugal!...» E voltado para a prima
Joaninha, o tio Adrião declarou Jacinto um «homem de coração!»

E realmente pela Serra crescia a popularidade do meu Príncipe.
Naquele, «guarde-o Deus, meu senhor!» com que as mulheres ao passar o
saudavam, se voltavam para o ver ainda, havia uma seriedade de oração, o
bem sincero desejo de que Deus o guardasse sempre. As crianças a quem
ele distribuía tostões, farejavam de longe a sua passagem,--e era em
torno dele um escuro formigueiro de caritas trigueiras e sujas, com
grandes olhos arregalados, que se ainda tinham pasmo, já não tinham
medo. Como o cavalo de Jacinto uma tarde se chapara, ao desembocar da
alameda, numas grossas pedras que aí deformavam a estrada, logo ao
outro dia um bando de homens, sem que Jacinto o ordenasse, veio por
dedicação ensaibrar e alisar aquele pedaço perigoso de caminho,
aterrados com o risco que correra o bom senhor. Já pela serra se
espalhava esse nome de «bom senhor». Os mais idosos da freguesia não o
encontravam sem exclamarem, uns com gravidade, outros com grandes risos
desdentados:--_Este é o nosso benfeitor!_ Por vezes, alguma velha corria
do fundo do eido, ou vinha à porta do casebre, ao avistá-lo no caminho,
para gritar, com grandes gestos dos braços magros: «Ai que Deus o cubra
de bênçãos! Que Deus o cubra de bênçãos!»

Aos domingos, o padre José Maria, (bom amigo meu e grande caçador) vinha
de Sandofim, na sua égua ruça, a Tormes, para celebrar a missa na
Capelinha. Jacinto assistia ao ofício na sua tribuna, como os
Jacintos doutras eras, para que aqueles simples o não supusessem
estranho a Deus. Quase sempre então ele recebia presentes, que as
filhas dos caseiros, ou os pequenos, vinham muito corados, trazer-lhe à
varanda, e eram vasos de manjericão, ou um grosso ramalhete de cravos, e
por vezes um gordo pato. Havia então uma distribuição de cavacas e
merengues de Guiães, às raparigas e às crianças,--e, no pátio, para os
homens circulavam as infusas de vinho branco. O Silvério já sustentava
com espanto, e redobrado respeito, que o Sr. D. Jacinto em breve
disporia de mais votos nas eleições que o Dr. Alípio. E eu próprio me
impressionei, quando o Melchior me contou que o João Torrado, um velho
singular daqueles sítios, de grandes barbas brancas, ervanário,
vagamente alveitar, um pouco adivinho, morador misterioso de uma cova no
alto da serra, a todos afirmava que aquele bom senhor era El-Rei D.
Sebastião, que voltara!



XII


Assim chegou Setembro, e com ele o meu natalício, que era a 3 e num
Domingo. Toda essa semana a passara eu em Guiães, nos preparos da
vindima,--e de manhã cedo, nesse Domingo ilustre, me fui debruçar da
varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, por onde
devia aparecer o meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé
Fernandes. A tia Vicência, desde a madrugada, andava atarefada pela
cozinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Príncipe «o
pessoal» da serra, convidara para jantar algumas famílias amigas, dos
arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e podiam, pelas
estradas mal seguras, recolher tarde, depois de um bailarico campestre,
no pátio, já enfeitado para esse efeito de lanternas chinesas. Mas logo
às dez horas me desesperei, ao receber, por um moço da Flor da Malva,
uma carta da prima Joaninha, em que dizia «a pena de não poder vir
porque o Papá estava desde a véspera com um leicenço, e ela não o
queria abandonar.» Corri indignado à cozinha, onde a tia Vicência
presidia a um violento bater de gemas de ovos dentro de uma imensa
terrina.

--A Joaninha não vem! Sempre assim! Diz que o pai tem um leicenço...
Aquele tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para ter leicenços, ou
para ter a pontada...

A boa face redondinha e corada da tia Vicência enterneceu-se.

--Coitado! será em sítio que não se pudesse sentar na carruagem!
Coitado! Olha, se lhe escreveres, diz-lhe que ponha um emplastrozinho
de folhas de alecrim. É com que teu tio se dava bem.

Eu gritei simplesmente para o moço, que dava de beber ao burro no pátio:

--Diz à Sr.^a D. Joaninha que sentimos muito... Que talvez eu lá
apareça amanhã.

E voltei à janela, impaciente, por que o relógio do corredor, muito
atrasado, já cantara a meia hora depois das dez e o Príncipe tardava
para o almoço. Mas, mal eu me chegara à varanda, apareceu justamente na
volta da estrada Jacinto, de grande chapéu de palha, no seu cavalo,
seguido do Grilo que, também de chapéu de palha, e abrigado sob um
imenso guarda-sol verde, se escarranchava no albardão da velha égua do
Melchior. Atrás, um moço com uma maleta à cabeça. E eu, na alegria de
avistar enfim o meu Príncipe trotando para a minha casa de aldeia, no dia
dos meus trinta e seis anos, pensava noutro natalício, no dele, em
Paris, no 202, quando, entre todos os esplendores da Civilização, nós
bebemos tristemente _ad manes_, aos nossos mortos!

--_Salvé!_ gritei da varanda. _Salvè, domine Jacinthi_!

E entoei, para o acolher, num alegre tarantantan, o Hino da Carta!

--Isto por aqui também é lindo!--gritou ele de baixo. E o teu palácio
tem um soberbo ar... Por onde é a porta?

Mas eu já me precipitava para o pátio--onde Jacinto, apeando, contou
alegremente os tormentos do Grilo, que nunca montara a cavalo, e não
cessara de berrar ante os perigos daquela aventura.

E o digno preto, ofegante, lustroso de suor, e lívido sob o esplendor
da sua negrura, exclamava, apontando com a mão trémula para a pobre
égua, que solta, de cabeça pensativa, parecia de pedra, sobre as patas
mais imóveis que marcos:

--Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veio quieta. Sempre
para a esquerda, sempre para a direita, pé aqui, pé além! Só para me
sacudir! Só para me sacudir!

E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma pontoada vingativa
contra a égua, sobre o albardão.

Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua
janela ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacinto louvava grandemente
a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas
feudais de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternais da
tia Vicência, que enchera de flores os dois vasos da China sobre a
cómoda, e adornara a cama com uma das nossas colchas da Índia mais
ricas, cor de canário, com grandes aves de ouro. Eu sorria, enternecido.
Então estreitámos os ossos num grande abraço, pelo natalício... «Trinta
e oito, hein, Zé Fernandes?»--«Trinta e quatro, animal!» E o meu
Príncipe abrindo a mala, sóbria maleta de filósofo, ofereceu os
«nobres presentes, que são devidos», como diz sempre o astuto Ulisses na
Odisseia. Era um alfinete de gravata, com uma safira, uma cigarreira de
aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira em delicado esmalte,
e uma faca para livros de velho lavor Chinês. Eu protestava contra a
prodigalidade.

--É tudo das malas de Paris... Mandei-as abrir ontem à noite. E tomei a
liberdade de trazer esta lembrança à tua tia Vicência. Não vale nada...
É só por ter pertencido à princesa de Lamballe.

Era uma caldeirinha de água benta, em prata lavrada, de um gosto florido e quase galante.

--A tia Vicência não sabe quem é a princesa de Lamballe, mas ficará
encantada! E é uma garantia, por que ela suspeita da tua religião, como
homem de Paris, da terra das impiedades... E agora, lavar, escovar, e ao
almoço!

A tia Vicência pareceu toda surpreendida, e logo encantada com o meu
camarada, que ela supusera realmente um Príncipe, arrogante, escarpado
e difícil. Quando ele lhe ofereceu a caldeirinha, com um delicado
pedido «para se lembrar dele nas suas orações», duas largas rosas,
mais róseas e frescas que as rosas que enchiam a mesa, cobriram as faces
redondas da boa senhora, que nunca recebera tão piedoso presente, com
tão linda palavra. Mas o que sobretudo a cativou foi o tremendo
apetite de Jacinto, a entusiasmada convicção com que ele,
acumulando no prato montes de cabidela, depois altas serras de arroz de
forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cozinha,
jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ela resplandecia:

--Até faz gosto, até faz gosto!... Ora mais uma destas batatinhas
recheadas...

--Concerteza, minha senhora! até duas! As minhas rações, em mesas
destas, tão perfeitas, são sempre as de Gargântua.

--Não cites Rabelais, que a tia Vicência não conhece os autores
profanos! exclamava eu, também radiante. E prova esse vinho branco cá da
nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.

E o almoço foi muito alegre, muito íntimo, muito conversado, sobre as
obras de Jacinto em Tormes, e a sua Creche, que enlevava a tia
Vicência, e as esperanças da vindima, e a minha prima Joaninha, que
tinha o papá doente, e o péssimo estado dos caminhos. Mas o
enternecimento maior foi quando, ao servir o café, o criado pôs ao lado
de Jacinto um pires com um pau de canela, o seu estranho e costumado
pau de canela. Não o esquecera a tia Vicência! Ali tinha o seu pauzinho
de canela!--Queria que ele, em Guiães, continuasse os seus hábitos
como em Tormes... E aquele pau de canela foi o símbolo de adopção do
meu Príncipe como novo sobrinho da tia Vicência.

Ela em breve recolheu à cozinha, aos preparativos do banquete. Nós
fumámos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob a
recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietário,
mostrei ao meu Príncipe a propriedade toda, com desapiedada
minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma árvore, um pé
de vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empalidecer, de
cansaço, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um
vago--«muito bonito! bela terra!»--é que voltei os passos para casa,
tornejando ainda numa volta larga para lhe mostrar o lagar, uma
plantação de espargos, e o sítio onde existira a ruína de um velho castro
romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na fresca sala, ainda o
empurrei, como uma rês, para a livraria do meu bom tio Afonso, para lhe
mostrar as preciosidades, uma magnífica crónica de D. João I por Fernão
Lopes, a primeira edição do _Imperador Clarimundo_, uma _Henriada_, com
a assinatura de Voltaire, forais de El-Rei D. Manuel, e outras
maravilhas. Ele respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o
arrastei à adega, para que admirasse a famosa pipa, que tinha, em
relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes. Eram
quatro horas. O meu Príncipe tinha o ar esgazeado e lívido. Cravando
nele os olhos inexoráveis, olhos em que eu mesmo sentia reluzir a
ferocidade, declarei «que iríamos agora ver a tulha.» Mas então, com as
mãos nos rins, ele murmurou, humildemente, num murmúrio de criança:

--Não se me dava de me sentar um poucochinho!

Tive então piedade, abri as garras, deixei que ele se arrastasse, atrás
de mim, para o seu quarto, onde freneticamente descalçou as botas, se
atirou para um fresco canapé forrado de ganga, murmurando num
abatimento profundo:--«Bela propriedade!»

Consenti generosamente que ele adormecesse,--e eu mesmo desci a
verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda,
no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos,
escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no
pátio, a velha caleche do D. Teotónio, com a parelha ruça. Espreitando
da janela descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca, sob
o guarda-pó, sem a horrendíssima filha. Corri alegremente ao quarto da
tia Vicência, que, ajudada pela Catarina, abrochava à pressa as suas
pulseiras ricas de topázios.

--Tia Vicência! chegou o D. Teotónio! Felizmente vem sem a filha... Não
se demore, os outros não tardam. O Manuel que esteja bem penteado, de
gravata bem tesa!... Vamos a ver como corre a festa!



XIII


Ai de mim! a festa no meu aniversário não se passou com brilho, nem com
alegria!

Quando o meu Príncipe entrou na sala, com uma elegância, (onde eu senti
as malas de Paris, abertas na véspera)--uma rosa branca no jaquetão
preto, colete branco lavrado e trespassado, copiosa gravata de seda
branca, tufando, e presa por uma pérola negra,--já todos os convidados
estavam na sala,--o D. Teotónio, o Ricardo Veloso, o Dr. Alípio, o
gordo Melo Rebelo, de Sandofim, os dois manos Albergarias, da quinta
da Loja--; todos de pé, num pelotão cerrado. Em torno do sofá onde a
tia Vicência se instalara, um magotezinho de cadeiras reunira as
senhoras,--a Beatriz Veloso, de cassa branca sobre seda, que a tornava
mais aérea e magra, com a sua trunfa imensa de cabelo riçado; as duas
Rojões, (com a tia Adelaide Rojão) vermelhinhas como camoesas, ambas de
branco; e a mulher do Dr. Alípio, de preto, esplêndida como uma Vénus
Rústica... E foi na sala, como se realmente entrasse um Príncipe,
desses países do Norte onde os Príncipes são magníficos, muito
distantes dos homens, e aterram as gentes. Um silêncio, como se o tecto
de carvalho descesse, nos esmagava: e todos os olhos se enristaram
contra o meu desgraçado Jacinto, como numa caçada hindu, quando à orla
da floresta surge o Tigre Real. Debalde,--nas confusas, apressadas
apresentações, com que eu o levava através da sala,--os seus apertos de
mão, os sorrisos, o vago murmúrio, «da sua honra, do seu prazer» foram
repassados de simpatia, de simplicidade. Todos os cavalheiros
permaneciam reservados, observando o Príncipe, que subira à serra: e as
senhoras mais se aconchegavam à sombra da tia Vicência, como ovelhas à
volta do pastor, quando na altura assoma o lobo. Eu, já inquieto, lancei
o D. Teotónio, o mais ornamental daqueles cavalheiros.

--O Sr. D. Teotónio foi muito amável em vir, Jacinto. Raras vezes sai
da sua linda casa da Abrujeira.

O digno D. Teotónio sorriu, cofiando os espessos bigodes brancos, de
velho brigadeiro:

--V. Ex.^a chegou directamente de Viena?

Não! Jacinto viera directamente de Paris, com o amigo Zé Fernandes. D.
Teotónio insistiu:

--Mas certamente visita muitas vezes Viena...

Jacinto sorria surpreendido:

--Viena, porquê?... Não. Há mais de quinze anos que não vou a Viena.

O fidalgo murmurou um lento _ah_! e ficou calado, de pálpebras baixas,
como revolvendo análises profundas, com as mãos cruzadas sob as abas da
longa sobrecasaca azul.

Eu então, vigilante, lancei o Dr. Alípio:

--O nosso Doutor, meu caro Jacinto, é o mais poderoso influente de todo
o distrito.

O Doutor curvou a cabeça bem feita, com um belo cabelo preto,
admiravelmente alisado e lustroso. Mas a tia Vicência, que se erguera do
sofá, chamava o meu Príncipe, porque o Manuel anunciara o jantar,
mudamente, mostrando apenas, à porta da sala, a sua corpulenta
pessoa,--inteiriçado e vermelho.

À mesa, onde os pudins, as travessas de doce de ovos, os antigos vinhos
da Madeira e do Porto, nas suas pesadas garrafas de cristal lapidado,
fundiam com felicidade os seus tons ricos e quentes, Jacinto ficou
entre a tia Vicência e uma das Rojões, a Luizinha, sua afilhada, que,
por costume velho, quando jantava em Guiães, sempre se colocava à
sombra da sua boa madrinha. E a sopa, que era de galinha com macarrão,
foi comida num tão largo e pesado silêncio que eu, na ânsia de o
quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães depois
de tanto tempo e em minha própria casa:

--Deliciosa, esta sopa!

Jacinto ecoou:

--Divina!!

Mas como todos os convidados certamente estranharam este meu brado, e a
excessiva admiração de Jacinto, o silêncio, carregado de cerimónia,
mais se carregou de embaraço. Felizmente a tia Vicência, com aquele seu
bom sorriso, observou que Jacinto parecia gostar da comida
portuguesa... E eu, sempre no intuito de animar a conversa, nem deixei
que o meu Príncipe confirmasse o seu amor da cozinha vernácula, e
gritei:

--Como gostar! Mas é que delira!... Pudera! Tanto tempo em Paris,
privado dos pitéus lusitanos...

E como, ditosamente, me lembrara o prato de arroz doce preparado na
ocasião do natalício de Jacinto, pelo cozinheiro do 202, contei a
história, profusamente, exagerando, afirmando que esse arroz doce
continha _foie gras_, e que sobre a sua ornamentada pirâmide flutuava a
bandeira tricolor, por cima do busto do conde de Chambord! Mas o arroz
doce de Paris, assim estragado tão longe da Serra, não interessara
ninguém. Puxou apenas alguns sorrisos de polida condescendência, quando
eu, alternadamente, me voltava para um cavalheiro, para uma senhora,
insistindo, exclamando:--Extraordinário, hein?

D. Teotónio observou, misteriosamente, que o «cozinheiro sabia para
quem cozinhava.» E a bela mulher do Dr. Alípio ousou murmurar, corando:

--Havia de ser bonito prato, e talvez não fosse mau!

Eu, sempre na ânsia de espiritualizar o banquete, de produzir
conversação, ataquei com desabrida alegria a Sr.^a D. Luísa, por ela
assim defender a profanação do nosso grande acepipe nacional! Mas, pobre
de mim! tão excessiva e ruidosamente interpelei a formosa senhora, que
ela se enconchou, emudeceu, toda corada, e mais formosa assim. E outro
silêncio se abatia sobre a mesa, como uma névoa, quando a tia Vicência,
providencial, se desculpou para com Jacinto de não ter peixe! Mas quê!
ali na Serra era impossível, ainda a peso de ouro, ter peixe, a não ser a
pescada salgada, ou o bacalhau. O excelente Rojão, com aquele seu
modo, tão suave que cada sílaba para correr mais docemente parecia
lubrificada com óleos santos, lembrou que o Sr. D. Jacinto possuía uma
larga faixa do rio Douro com privilégio para a pesca do sável. Jacinto
não sabia, nem imaginava que houvesse sáveis... O Dr. Alípio não se
admirava por que essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro,
há vinte anos, na mocidade do Sr. D. Jacinto. E hoje, segundo o D.
Teotónio, não valiam dois mil réis. Se já não há sáveis!... E a
propósito das antigas pescas do Douro se ia formando, em torno da mesa,
entre os homens mais vizinhos, lentas cavaqueirinhas rurais, que as
senhoras aproveitavam para cochichar, no desabafo daquele silêncio
cerimonioso, que viera pesando cada vez mais desde a sopa até os frangos
guisados. Receoso de que essa orla de murmúrios lentos, sem brilho e sem
alegria, se estabelecesse de novo, me abalancei (para animar), a
interpelar Jacinto, recordando a famosa aventura do peixe da Dalmácia
encalhado no ascensor.

--Isso foi uma das melhores histórias que nos sucederam em Paris! O
Jacinto, por causa de um peixe muito raro, que lhe mandara o Grão-Duque
Casimiro, dava uma magnífica ceia, a que o Grão-Duque... o Grão-Duque
Casimiro, o irmão do Imperador...

Todos os olhos se desviaram para o meu Jacinto, que se servia de
ervilhas:--e o Melo Rebelo quase se engasgou, num sorvo precipitado
ao copo, para contemplar no meu amigo algum reflexo do Grão-Duque. E eu
contei, com profusão, o peixe encalhado, o Grão-Duque pescando, o anzol
feito com um gancho da Princesa de Carman, o duque de Marizac, caindo
quase no poço do elevador... Mas não se produziu um único riso, e a
atenção mesma era dada com esforço, por cortesia. Debalde eu
arremessava aqueles nomes magníficos de Príncipes e princesas,
misturados a coisas picarescas... Nenhum dos meus convidados
compreendia o maquinismo do elevador, um prato encalhado num poço
negro... Perante o gancho da princesa as Albergarias baixaram os olhos.
E a minha deliciosa história morreu numa reticência, ainda mais
regelada pela exclamação inocente da tia Vicência:

--Oh! filho, que coisas!

Mas, como Jacinto se enfronhara de repente numa larga conversa com a
Luisinha Rojão, que ria, toda luminosa e palradora,--todos, como
libertados do peso cerimonioso da sua presença augusta, se lançaram nas
conversinhas discretas, a que o champanhe, agora, depois do assado, dava
mais viveza. Eram os soturnos murmúrios, em torno da mesa, que
definitivamente se perpetuavam. Foi então que desisti de animar o
jantar. Mergulhei com a bela mulher do Doutor Alípio na grande questão
social desse tempo em Guiães, o casamento da D. Amélia Noronha com o
feitor! E eu defendia a D. Amélia, os direitos do amor, quando se
alargou um silêncio,--e era Jacinto, que se debruçava, de copo na mão.

--Velho amigo Zé Fernandes, à tua! Muitos e bons, e sempre em companhia
de tua tia e minha senhora, a quem peço para saudar.

Todos os copos, onde a espuma morria sobre um fundo de champanhe, se
ergueram num largo rumor de amizade, e boa vizinhança. Eu acenei ao
Manuel, vivamente, para encher os copos; e logo, também de pé, atirando
para trás a sobrecasaca:

--Meus senhores, peço uma grande saúde para o meu velho amigo Jacinto,
que pela primeira vez honra esta casa fraternal... Que digo eu? que pela
primeira vez honra com a sua presença a sua querida pátria! E que por cá
fique, pelas serras, muitos anos, todos bons. À tua, meu velho!

Outro rumor correu pela mesa, mas cerimonioso e sereno. A nossa
oratória, positivamente, não incendiara as imaginações! A tia Vicência
fez tilintar o seu copo, quase vazio, com o de Jacinto, que tocou no
copo da sua vizinha, a Luisinha Rojão, toda resplandecente, e mais
vermelha que uma peónia. Depois foi um encadeamento de saúdes, com os
copos quase vazios, entre todos os convidados, sem esquecer o tio
Adrião, e o Abade, ambos ausentes, ambos com furúnculos. E a tia
Vicência espalhava aquele olhar, que prepara o erguer, o arrastar de
cadeiras,--quando D. Teotónio, erguendo o seu copo de vinho do Porto,
com a outra mão apoiada à mesa, meio erguido, chamou Jacinto, e numa
voz respeitosa, quase cava:

--Esta é toda particular, e entre nós... Brindo o ausente!

Esvaziou o copo, como em religião, pontificando. Jacinto bebeu
assombrado, sem compreender. As cadeiras arrastavam,--eu dei o braço à
tia Albergaria.

E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com a sua chávena de
café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares
finos, que lhe valiam a alcunha de _Dr. Agudo_:--«Espero que ao menos,
cá por Guiães, não se erga de novo a forca!...» E o mesmo fino olhar me
indicava o D. Teotónio, que arrastara Jacinto para entre as cortinas
de uma janela, e discorria, com um ar de fé e de mistério. Era o
miguelismo, por Deus! O bom D. Teotónio considerava Jacinto como um
hereditário, ferrenho, miguelista,--e na sua inesperada vinda ao seu
solar de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de uma propaganda
enérgica, e o primeiro passo para uma tentativa de Restauração. E na
reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a
suspeita liberal, o receio de uma influência rica, nova, nas Eleições
próximas, e a nascente irritação contra as velhas ideias, representadas
naquele moço, tão rico, de civilização tão superior. Quase entornei o
café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o Melo Rebelo,
que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o
_Dr. Agudo_.

--Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes
trabalhar no miguelismo?

Muito sério, Melo Rebelo chegou o seu grosso bigode à minha orelha:

--Até corre, como certo, que o Príncipe D. Miguel está com ele em
Tormes!

E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alípio--tão agudo!--confirmou:

--É o que corre... Disfarçado em criado!

Em criado? Oh! santo Deus! Era o Baptista! Justamente, Ricardo Veloso
veio, puxando do seu cigarrinho, para o acender no meu charuto. E o bom
Rebelo logo invocou o seu testemunho.--Pois não corria, que o filho de
D. Miguel estava em Tormes, escondido?...

--Disfarçado em lacaio, confirmou logo o digno Rebelo.

Acendeu o cigarro, soprou o fumo, e erguendo muito as sobrancelhas
meditativas:

--Se assim é, lá me parece desplante... Que eu não desgostava de o ver.
Dizem que é bonito moço, bem apessoado. Mas enfim, meu tio João Vaz
Rebelo foi partido às postas, a machado, nas prisões de Almeida... E se
recomeçam essas questões, mau, mau! Ora o seu amigo...

Emudeceu. Jacinto, que se libertara do velho D. Teotónio, e ainda
conservava um resto de riso, de assombro divertido, vinha para mim,
desabafar:

--Extraordinário! Vejo que, aqui, na serra, ainda se conservam, sem uma
ruga, as velhas e boas ideias...

Imediatamente, sem se conter, Melo Rebelo acudiu:

--É conforme o que V. Ex.^a chama _boas ideias_.

E eu agora, furioso com aquela disparatada invenção, que cercava
de hostilidade o meu pobre Jacinto, estragava aquela amável noite
de anos, intervim, vivamente:

--Tu jogas o voltarete, Jacinto? Não jogas... Então vamos arranjar duas
mesas... O D. Teotónio há-de querer cartas.

E arrastei Jacinto para as senhoras, que de novo se aninhavam à sombra
da tia Vicência, estabelecida no seu canto do sofá. Todas se calavam,
parecia encolherem-se ante a aparição do meu Príncipe, como pombas
avistando o abutre. E deixei o temido homem afirmando à mulher do Dr.
Alípio (um pouco desgarrada do bando das aves tímidas) que lhe dera
grande prazer aquela ocasião de conhecer as suas vizinhas de Tormes...
Ela abrira nervosamente o leque, sorria, e nunca de certo Jacinto
admirara na Cidade uma boca mais vermelha, dentinhos mais rutilantes.
Mas depois de organizar a mesa do voltarete, tive de abancar, eu, para
substituir o Manuel Albergaria, que era dispéptico, se declarara
«afrontado», e desejava respirar um momento na varanda. Todos aqueles
cavalheiros, de resto, se queixavam de calor. Mandei abrir as janelas
que davam sobre as mimosas do pátio. O Veloso, ao baralhar, parava,
bufando, como oprimido:

--Está abafado... Ainda temos trovoada!

E o Dr. Alípio, inquieto, porque tinha uma hora de estrada até casa, e
uma das éguas da caleche era escabriada, correu à janela, espreitar o
céu, que enegrecera, morno e pesado.

--Com efeito, vai cair água.

As hastes das mimosas ramalhavam, arrepiadas: e o ar que agitava as
cortinas era intermitente, estonteado. De certo na sala, entre as
senhoras, surgira a mesma inquietação, porque a tia Albergaria
apareceu, avisando o mano Jorge.

Era prudente pensar em partir, a noite ameaçava... E o Dr. Alípio,
puxando o relógio, propôs que, levantada aquela remissa, se preparasse
a marcha. Justamente o Albergaria recolhia da varanda desafrontado,
aliviado com um cálice de genebra: e retomou as suas cartas,
anunciando também que vinha aí uma trovoada valente.

Voltando à sala, encontrei Jacinto muito alegre entre as senhoras, que
se familiarizaram, escutando cheias de riso e gosto, a história da sua
chegada a Tormes, sem malas, sem criados, tão desprovido que dormira com
a camisa da caseira! Mas a minha pobre noite de anos findava,
desorganizada. A tia Albergaria rondava de janela em janela, assustada
com a volta à Roqueirinha, espreitando a treva abafada. Calçando
lentamente as luvas, a bela mulher do Dr. Alípio perguntava se ainda
havia a remissa. E a tia Vicência apressara o chá, que o Manuel seguido
pela Gertrudes, com a bandeja de bolos, já começava a servir às
senhoras. Jacinto, de pé, oferecendo chávenas, gracejava:

--Então tanta pressa, tanto medo, por causa de uma trovoadinha?

Elas replicavam, familiarizadas, numa crescente simpatia pelo meu
Príncipe:

--Ora o senhor fala bem, porque fica debaixo de telhas...

--Sempre o queríamos ver... se fosse agora para Tormes, com esta noite
cerrada!

O voltarete findara nas duas mesas: e aqueles cavalheiros, das
janelas, gritavam ordens para o pátio negro, onde as carruagens
esperavam atreladas:

--Desce a cabeça da vitória, ó Diogo!

--Acende o lampião, Pedro! Sempre ajuda a luz das lanternas.

A criada Quitéria chegava à porta com os braços carregados de xales, de
mantilhas de renda. Como uma das Albergarias ia no assento de diante na
vitória, eu corri a buscar o meu casaco de borracha, para ela se
abrigar se a chuva viesse. E só o D. Teotónio, que tinha até casa
apenas meia légua de estrada boa, se não apressava, filado outra vez no
meu Príncipe, que levava para os cantos mais solitários, em conversas
profundas, que o seu dedo solene, espetado, sublinhava gravemente. Mas
a tia Albergaria gritou que já chovia;--e então foi uma pressa das
senhoras, que beijocavam vivamente a tia Vicência, enquanto os homens,
na antecâmara, enfiavam açodadamente os paletós.

Jacinto e eu descemos ao pátio para acompanhar aquela debandada,--e
uma a uma, a traquitana do Dr. Alípio, a vitória das Albergarias, a
velha e imensa caleche dos Velosos, rolaram sob a noite, entre os
nossos desejos de boa jornada. Por fim D. Teotónio calçou as luvas
pretas e entrou para a sua caleche, dizendo a Jacinto:

--Pois, primo e amigo, Deus permita que, do nosso encontro, e do mais
que se passar, algum bem resulte a esta terra!

Subindo a escada, o meu Príncipe desabafou:

--Este Teotónio é extraordinário! Sabes o que descobri por fim?... Que
me toma por um miguelista, e imagina que eu vim para Tormes preparar a
restauração de D. Miguel?!

--E tu?

--Eu fiquei tão espantado, que nem o desiludi!

--Pois sabe mais, meu pobre amigo. Todos pensam o mesmo, estão
desconfiados, e receiam ver de novo erguidas as forcas em Guiães! E
corre que tu tens o Príncipe D. Miguel escondido em Tormes, disfarçado
em criado. E sabes quem ele é? o Baptista!

--Isso é sublime! murmurou Jacinto, com uns grandes olhos abertos.

Na sala, a tia Vicência nos esperava desconsolada, entre todas as luzes,
que ardiam ainda no silêncio e paz do serão debandado:

--Ora uma coisa assim! Nem quererem ficar para tomar um copinho de
geleia, um cálice de vinho do Porto!

--Esteve tudo muito desanimado, tia Vicência! exclamei desafogando o meu
tédio. Todo esse mulherio emudeceu; os amigos com um ar desconfiado...

Jacinto protestou, muito divertido, muito sincero:

Não! pelo contrário. Gostei imenso. Excelente gente! E tão simples...
Todas estas raparigas me pareceram óptimas. E tão frescas, tão alegres!
Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que não sou miguelista.

Então contámos à tia Vicência a prodigiosa história de D. Miguel
escondido em Tormes... Ela ria! Que coisa! E mau seria...

--Mas o Sr. Jacinto, não é?

--Eu, minha senhora, sou socialista...

Acudi, explicando à tia Vicência, que socialista era ser pelos pobres. A
doce senhora considerava esse partido o melhor, o verdadeiro:

--O meu Afonso, que Deus haja, era liberal... Meu pai, também e até
amigo do Duque da Terceira...

Mas um rude trovão rolou, atroou a noite negra:--e uma bátega de água
cantou nos vidros, e nas pedras da varanda.

--Santa Bárbara! gritou a tia Vicência! Ai aquela pobre gente!... Até
estou com cuidado... As Rojões, que vão na vitória!

E correu para o quarto, na sua pressa de acender as duas velas
costumadas no oratório, ainda antes de ir guardar as pratas, e rezar o
terço, com a Gertrudes.



XIV


Ao outro dia, depois de almoço, eu e Jacinto montámos a cavalo para um
grande passeio até à Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu
furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de
testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima
Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando
todos no jardim a escolher uma bela rosa-chá para a botoeira do meu
Príncipe, a tia Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça,
a caridade, e a doçura da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:

--Oh! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas à
Virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de idolatria! O
Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um
desapontamento tremendo!

E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava-me aquela
manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela no meu
quarto, e lhe chamara uma _lavradeirona_. Com efeito, era grande e
forte a Joaninha. Mas a fotografia datava do seu tempo de viço
rústico, quando ela era apenas uma bela forte e sã planta da serra.
Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia,--e a alma que
nela se formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor
rubicundo.

A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera, e as terras
reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, oferecia uma doçura
luminosa, fina, fresca, que tornava doce, como diz o velho Eurípedes ou
o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar, sem pressa
nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia muito de leve,
e roçava-nos com uma carícia quase alada. O vale parecia a Jacinto,
que nunca ali passara, uma pintura da Escola Francesa do século XVIII,
tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e
frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de
fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras tenras! Os
nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da
manhã adorável. E não sei, nunca soube, que plantazinhas silvestres e
escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira,
naquele caminho, ao começar o Outono.

--Que delicioso dia! murmurou Jacinto. Este caminho para a Flor da
Malva é o caminho do céu... Oh Zé Fernandes, de que é este cheirinho tão
doce, tão bom?

Eu sorri, com certo pensamento:

--Não sei... É talvez já o cheiro do céu!

Depois, parando o cavalo, apontei com o chicote para o vale:

--Olha, acolá, onde está aquela fila de olmos, e há o riacho, já são
terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os pêssegos mais
deliciosos de Portugal... Hei-de pedir à prima Joaninha que te mande um
cesto deles. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma
coisa de celeste. Também lhe hei-de pedir que te mande o doce.

Ele ria:

--Será explorar de mais a prima Joaninha. E eu (porquê?) recordei e
atirei ao meu Príncipe estes dois versos de uma balada cavalheiresca,
composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procópio:

--Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um anel
E com um anel uma rosa.

Jacinto riu alegremente:

--Zé Fernandes, seria excessivo, só por causa de meia dúzia de pêssegos,
e de um boião de doce.

Assim ríamos, quando apareceu, à volta da estrada, o longo muro da
quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José de Sandofim. E
imediatamente piquei para o largo, para a taverna do Torto, por causa
daquele vinhinho branco, que sempre, quando por ali a levo, a minha
alma me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:

--Oh! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois de almoço, vais beber
vinho branco?

--É um costumezinho antigo... Aqui à taverninha do Torto... um
decilitrozinho... A almazinha assim mo pede.

E parámos; eu gritei pelo Manuel, que apareceu, rebolando a sua grossa
pança, sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.

--Dois copos, Torto amigo. Que aqui este cavalheiro também aprecia.

Depois de um pálido protesto, o meu Príncipe também quis, mirou o
límpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvaziou o copo, com delícia,
e um estalinho de alto apreço.

--Delicioso vinho!... Hei-de querer deste vinho em Tormes... É
perfeito.

--Hein? Fresquinho, leve, aromático, alegrador, todo alma!... Encha lá
outra vez os copos, amigo Torto. Este cavalheiro aqui é o Sr. D.
Jacinto, o fidalgo de Tormes.

Então, de trás da ombreira da taverna, uma grande voz bradou, cavamente,
solenemente:

--Bendito seja o pai dos Pobres!

E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe
comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um
bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois
olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o
profeta da Serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem
despegar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir
outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.

--Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à
pobreza.

O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e
quase negro, de uma manga muito curta.

--A mão!

E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João
Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo,
murmurando:

--Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!

Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa
lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a
caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:

--Pois louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe,
que não o meu dia, e vi um homem!

Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:

--Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos
sítios, que El-Rei D. Sebastião voltara?

O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo
de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como
seguindo a percussão dos seus pensamentos:

--Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem
vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há
corpos de agora com almas de outrora. Corpo é vestido, alma é pessoa...
Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa,
quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros... Em ruim corpo se
esconde bom senhor!

E como ele findara num murmúrio, eu, atirando um olhar a Jacinto, e
para gozarmos aqueles estranhos, pitorescos modos de vidente, insisti:

--Mas, ó tio João, você realmente, em sua consciência, pensa que El-Rei
D. Sebastião não morreu na batalha?

O velho ergueu para mim a face, que se enrugara numa desconfiança:

--Essas coisas são muito antigas. E não calham bem aqui à porta do
Torto. O vinho era bom, e V. S.^a tem pressa, meu menino! A flor da Flor
da Malva lá tem o paizinho doente... Mas o mal já vai pela serra abaixo
com a inchação às costas. Dá gosto ver quem dá gosto aos tristes. Por
cima de Tormes há uma estrela clara. E é trotar, trotar, que o dia está
lindo!

Com a magra mão lançou um gesto para que seguíssemos. E já passávamos o
cruzeiro quando o seu brado ardente, de novo reboou, com solenidade
cava:

--Bendito seja o Pai dos Pobres.

Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as
aclamações de um povo. E Jacinto pasmava de que ainda houvesse no reino
um Sebastianista.

--Todos o somos ainda em Portugal, Jacinto! Na serra ou na cidade cada
um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia é uma forma
do Sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro,
espreito, a ver se chega o meu. Ou antes a minha, por que eu espero uma
D. Sebastiana... E tu, felizardo?

--Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes... Sou o último
Jacinto; Jacinto ponto final... Que casa é aquela com os dois
torreões?

--A Flor da Malva.

Jacinto tirou o relógio:

--São três horas. Gastámos hora e meia... Mas foi um belo passeio, e
instrutivo. É lindo este sítio.

Sobre um outeirinho, afastada da estrada por arvoredo, que um muro
cerrava, e dominando, a Flor da Malva voltava para Oriente e para o Sol
a sua longa fachada com os dois torreões quadrados, onde as janelas, de
varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de ferro, ladeado
por dois bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde um
imenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as fortes
raízes descarnadas da grande árvore, um pequeno esperava segurando um
burro pela arreata.

--Está por aí o Manuel da Porta?

--Ainda agora subiu pela alameda.

--Bem: empurra lá o portão.

E subimos, por uma curta avenida de velhas árvores, até outro terreiro,
com um alpendre, uma casa de moços, toda coberta de heras, e uma casota
de cão, de onde saltou, com um rumor de corrente arrastada, um molosso, o
Tritão, que eu logo sosseguei fazendo-lhe reconhecer o seu velho amigo Zé
Fernandes. E o Manuel da Porta correu da fonte, onde enchia um grande
balde, para nos segurar os cavalos.

--Como está o tio Adrião?

Surdo, o excelente Manuel sorriu, deleitado:

--E então vossa excelência, bem? A Sr.^a D. Joaninha ainda agora
andava no laranjal com o pequeno da Josefa.

Seguimos por ruazinhas bem areadas, orladas de alfazema e buxo alto,
enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele pequenito da Josefa era
um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e o seu cuidado
todo.

--Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem aí pela freguesia uma
verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas e presentes, e ajudar
as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes trata as tosses. Nunca a
encontro sem alguma criancita ao colo... Agora anda na paixão deste
Josezinho.

Mas quando chegámos ao laranjal, à beira da larga rua da quinta que
levava ao tanque, debalde procurei, e me embrenhei, e até gritei:--Eh,
prima Joaninha!...

--Talvez esteja lá para baixo, para o tanque...

Descemos a rua, entre árvores, que a cobriam com as densas ramas
encruzadas. Uma fresca, límpida água de rega corria e luzia num caneiro
de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda tinham uma frescura
de Verão. E o pequeno campo, que se avistava para além, rebrilhava com
doçura, todo amarelo e branco, dos malmequeres e botões de ouro.

O tanque, redondo, fora esvaziado para se lavar, e agora de novo o
repuxo o ia enchendo de uma água muito clara, ainda baixa, onde os peixes
vermelhos se agitavam na alegria de recuperarem o seu pequeno oceano.
Sobre um dos bancos de pedra que circundavam o tanque pousava um cesto
cheio de dálias cortadas. E um moço, que sobre uma escada podava as
camélias, vira a Sr.^a D. Joana seguir para o lado da parreira.

Marchámos para a parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas
mulheres, longe, ensaboavam num lavadouro, na sombra de grandes
nogueiras. Gritei:--Eh lá? Vocês viram por aí a Sr.^a D. Joana? Uma
das moças esganiçou a voz, que se perdeu no vasto ar luminoso e doce.

--Bem: vamos a casa! Não podemos farejar assim, toda a tarde.

--É uma bela quinta, murmurava o meu Príncipe encantado.

--Magnífica! E bem tratada... O tio Adrião tem um feitor excelente...
Não é o teu Melchior. Observa, aprende, lavrador! Olha aquele
cebolinho!

Passámos pela horta, uma horta ajardinada, como a sonhara o meu
Príncipe, com os seus talhões debruados de alfazema, e madressilva
enroscada nos pilares de pedra, que faziam ruazinhas frescas toldadas de
parra densa. E demos volta à capela, onde crescia aos dois lados da
porta uma roseira-chá, com uma rosa única, muito aberta, e uma moita de
baunilha, onde Jacinto apanhou um raminho para cheirar. Depois entrámos
no terraço em frente da casa, com a sua balaustrada de pedra, toda
enrodilhada de jasmineiros amarelos. A porta envidraçada estava aberta:
e subimos pela escadaria de pedra, no imenso silêncio em que toda a
Flor da Malva repousava, até à antecâmara, de altos tectos apainelados,
com longos bancos de pau, onde desmaiavam na sua velha pintura as
complicadas armas dos Cerqueiras. Empurrei a porta de uma outra sala, que
tinha as janelas da varanda abertas, cada uma com a gaiola de um
canário.

--É curioso!--exclamou Jacinto. Parece o meu Presépio... E as minhas
cadeiras.

E com efeito. Sobre uma cómoda antiga, com bronzes antigos, pousava um
presépio semelhante ao da livraria de Jacinto. E as cadeiras de couro
lavrado tinham, como as que ele descobrira no sótão, umas armas sob um
chapéu de Cardeal.

--Oh senhores! exclamei. Não haverá um criado?

Bati as mãos, fortemente. E o mesmo doce silêncio permaneceu, muito
largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da quinta, apenas cortado
pelo saltitar dos canários nos poleiros das gaiolas.

--É o Palácio da Bela Adormecida no bosque! murmurou Jacinto, quase
indignado. Dá um berro!

--Não, caramba! Vou lá dentro!

Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha,
corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no
pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor
branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos
cabelos,--lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos,
luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e
cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis.

E foi assim que Jacinto, nessa tarde de Setembro, na Flor da Malva,
viu aquela com quem casou em Maio, na capelinha de azulejos, quando o
grande pé de roseira se cobrira todo de rosas.



XV


E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco
anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Príncipe já não é o último
Jacinto, Jacinto ponto final--porque naquele solar que decaíra,
correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha, minha
afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade. E, pai de
família, principiara a fazer-se monótono, pela perfeição da beleza
moral, aquele homem tão pitoresco pela inquietação filosófica, e
pelos variados tormentos da fantasia insaciada. Quando ele agora, bom
sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a quinta, em sólidas
palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras--eu quase lamentava esse
outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore, e riscando
o ar com a bengala, planeava queijeiras de cristal e porcelana, para
fabricar queijinhos que custariam duzentos mil réis cada um!

Também a paternidade lhe despertara a responsabilidade. Jacinto possuía
agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscado a lápis, com
falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas despesas, as
suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas. Visitara já as
suas propriedades de Montemor, da Beira; e concertava, mobilava as
velhas casas dessas propriedades para que os seus filhos, mais tarde,
crescidos, encontrassem «ninhos feitos». Mas onde eu reconheci que
definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se estabelecera na alma
do meu Príncipe, foi quando ele, já sabido daquele primeiro e ardente
fanatismo da Simplicidade--entreabriu a porta de Tormes à Civilização.
Dois meses antes de nascer a Teresinha, uma tarde, entrou pela avenida
de plátanos uma chiante e longa fila de carros, requisitados por toda a
freguesia, e acuculados de caixotes. Eram os famosos caixotes, por tanto
tempo encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam, para despejar a
Cidade sobre a Serra. Eu pensei:--Mau! o meu pobre Jacinto teve uma
recaída! Mas os confortos mais complicados, que continha aquela
caixotaria temerosa, foram, com surpresa minha, desviados para os sótãos
imensos, para o pó da inutilidade: e o velho solar apenas se regalou
com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas pelas janelas
desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para que os repousos,
por que ele suspirara, fossem mais lentos e suaves. Atribuí esta
moderação a minha prima Joaninha, que amava Tormes na sua nudez rude.
Ela jurou que assim o ordenara o seu Jacinto. Mas, decorridas semanas,
tremi. Aparecera, vindo de Lisboa, um contramestre, com operários, e
mais caixotes, para instalar um telefone!

--Um telefone, em Tormes, Jacinto?

O meu Príncipe explicou, com humildade:

--Para casa de meu sogro!... Bem vês.

--Era razoável e carinhoso. O telefone porém, subtilmente, mudamente,
estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacinto, alargando os
braços, quase suplicante:

--Para casa do médico. Compreendes...

Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães, acordei aos berros da tia
Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros homens, trazendo
arame, para instalar na nossa casa o novo invento. Sosseguei a tia
Vicência, jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem trazia
doenças, nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu,
encolhendo os ombros:

--Que queres? Em Guiães está o boticário, está o carniceiro... E,
depois, estás tu!

Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro de um mês temos a
pobre Joana a apertar o vestido por meio de uma máquina! Pois não! o
Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer
aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino
para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistámos mais
sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então
compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o
equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele
fora o Príncipe sem Principado. E uma tarde, no pomar, encontrando o
nosso velho Grilo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra
lhe dera meninos para trazer às cavaleiras, observei ao digno preto,
que lia o seu _Figaro_, armado de imensos óculos redondos:

--Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o Sr. D. Jacinto
está firme.

O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para o ar os cinco
dedos em curva como pétalas de uma tulipa:

--S. Ex.^a brotou!

Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquele ressequido galho de Cidade,
plantado na serra, pegara, chupara o húmus do torrão herdado, criara
seiva, afundara raízes, engrossara de tronco, atirara ramos, rebentara
em flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando frutos,
derramando sombra. E abrigados pela grande árvore, e por ela nutridos,
cem casais em redor a bendiziam.



XVI


Muitas vezes Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num
regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima
Joaninha. E eu seria o companheiro fiel, para arquivar os espantos da
minha serrana ante a Cidade! Depois conveio em esperar que o Jacintinho
completasse dois anos, para poder jornadear sem desconforto, e
apontando já com o seu dedo para as coisas da Civilização. Mas, quando
ele, em Outubro, fez esses dois anos desejados, a prima Joaninha
sentiu uma preguiça imensa, quase aterrada, do comboio, do estridor da
Cidade, do 202, e dos seus esplendores. «Estamos aqui tão bem! está um
tempo tão lindo!» murmurava, deitando os braços, sempre deslumbrada, ao
rijo pescoço do seu Jacinto. Ele desistia logo de Paris, encantado.
«Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos Elísios estiverem
em flor!» Mas em Abril vieram aqueles cansaços que imobilizavam a
prima Joaninha no divã, ditosa, risonha, com umas pintas na pele, e o
roupão mais solto. Por todo um longo ano estava desfeita a alegre
aventura. Eu andava então sofrendo de desocupação. As chuvas de Março
prometiam uma farta colheita. Uma certa Ana Vaqueira, corada e bem
feita, viúva, que surtia as necessidades do meu coração, partira com o
irmão para o Brasil, onde ele dirigia uma venda. Desde o Inverno,
sentia também no corpo como um começo de ferrugem, que o emperrava, e,
certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha de bolor.
Depois a minha égua morreu... Parti eu para Paris.

Logo em Hendaia, apenas pisei a doce terra de França, o meu pensamento,
como pombo a um velho pombal, voou ao 202,--talvez por eu ver um enorme
cartaz em que uma mulher nua, com flores bacânticas nas tranças, se
estorcia, segurando numa das mãos uma garrafa espumante, e brandindo na
outra, para o anunciar ao Mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E oh
surpresa! eis que, logo adiante, na estação quieta e clara de Saint
Jean-de-Luz, um moço esbelto, de perfeita elegância, entra vivamente no
meu compartimento, e, depois de me encarar, grita:

--Eh, Fernandes!

Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202... Com que reconhecimento lhe
sacudi a mão fina, por ele me ter reconhecido! E, atirando para o canto
do vagão um paletó, um maço de jornais, que o escudeiro lhe passara, o
bom Marizac exclamava na mesma surpresa alegre:

--E Jacinto?

Contei Tormes, a serra, o seu primeiro amor pela Natureza, o seu outro
grande amor por minha prima, e os dois filhos, que ele trazia
escarranchados no pescoço.

--Ah que canalha! exclamou Marizac com os olhos espetados em mim! É
capaz de ser feliz!

--Espantosamente, loucamente... Qual! não há advérbios...

--Indecentemente--murmurou Marizac muito sério. Que canalha!

Eu então desejei saber do nosso rancho familiar do 202. Ele encolheu os
ombros, acendendo a cigarette:

--Todo esse mundo circula...

--Madame d'Oriol?

--Continua.

--Os Trèves? o Efraim?

--Continuam, todos três.

Lançou um gesto lânguido.

--Durante cinco anos, em Paris, tudo continua... As mulheres com um
pouco mais de pós de arroz, e a pele um pouco mais mole, e melada. Os
homens com um tanto mais de dispepsia. E tudo segue. Tivemos os
Anarquistas. A princesa de Carman abalou com um acrobata do Circo de
Inverno... E--e voilà!

--Dornan?

--Continua... Não o encontrei mais desde o 202. Mas vejo às vezes o nome
dele, no _Boulevard_, com versos preciosos, obscenidades muito
apuradas, muito subtis.

--E o Psicólogo?... Ora, como se chamava ele?...

--Continua também. Sempre com as feminices a três francos e cinquenta...
Duquesas em camisa, almas nuas... Coisas que se vendem bem!

Mas quando eu, encantado, ia indagar de Todelle, do Grão-Duque, o
comboio entrou na estação de Biarritz:--e rapidamente, apanhando o
paletó e os jornais, depois de me apertar a mão, o delicioso Marizac
saltou pela portinhola, que o seu criado abrira, gritando:

--Até Paris!... Sempre rue Cambori.

Então, no compartimento solitário, bocejei, com uma estranha sensação de
monotonia, de saciedade, como cercado já de gentes muito vistas,
murmurando histórias muito sabidas, e coisas muito ditas, através de
sorrisos estafados. Dos dois lados do comboio era a longa planície
monótona, sem variedade, muito miudamente cultivada, muito miudamente
retalhada, de um verde de reseda, verde cinzento e apagado, onde nenhum
lampejo, nem tom alegre de flor, nem acidente do solo, desmanchavam a
mediocridade discreta e ordeira. Pálidos choupos, em renques pautados e
finos, bordavam canaizinhos muito direitos e claros. Os casais, todos da
mesma cor pardacenta, mal se elevavam do solo, mal se destacavam da
verdura desbotada, como encolhidos na sua mediocridade e cautela. E o
céu, por cima, liso, sem uma nuvem, com um sol descorado, parecia um
vasto espelho muito lavado a grande água, até que de todo se lhe safasse
o esmalte e o brilho. Adormeci numa doce insipidez.

Com que linda manhã de Maio entrei em Paris! Tão fresca e fina, e já
macia, que, apesar de cansado, mergulhei com repugnância no profundo,
sombrio leito do Grand-Hotel, todo fechado de espessos veludos, grossos
cordões, pesadas borlas, como um palanque de gala. Nessa profunda cova
de penas sonhei que em Tormes se construíra uma Torre Eiffel e que em
volta dela as senhoras da Serra, as mais respeitáveis, a própria tia
Albergaria, dançavam, nuas, agitando no ar saca-rolhas imensos. Com as
comoções deste pesadelo, e depois o banho, e o desemalar da mala, já
se acercavam as duas horas quando enfim emergi do grande portão, pisei,
ao cabo de cinco anos, o Boulevard. E imediatamente me pareceu que
todos esses cinco anos eu ali permanecera à porta do Grand-Hotel, tão
estafadamente conhecido me era aquele estridente rolar da cidade, e as
magras árvores, e as grossas tabuletas, e os imensos chapéus emplumados
sobre tranças pintadas de amarelo, e as empertigadas sobrecasacas com
grossas rosetas da legião de honra, e os garotos, em voz rouca e baixa,
oferecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de fósforos
obscenas... Santo Deus! pensei, há que anos eu estou em Paris! Comprei
então, num quiosque, um jornal, a Voz de Paris, para que ele me
contasse, durante o almoço, as novas da Cidade. A mesa do quiosque
desaparecia, alastrada de jornais ilustrados:--e em todos se repetia a
mesma mulher, sempre nua, ou meia despida, ora mostrando as costelas
magras, de gata faminta, ora voltando para o Leitor duas tremendas
nádegas... Eu outra vez murmurei:--Santo Deus! No Café da Paz, o criado
lívido, e com um resto de pó de arroz sobre a sua lividez, aconselhou ao
meu apetite, por ser tão tarde, um linguado frito e uma costeleta.

--E que vinho, Sr. Conde?

--Chablis, Sr. Duque!

Ele sorriu à minha deliciosa pilhéria,--e eu abri, contente, a Voz de
Paris. Na primeira coluna, através de uma prosa muito retorcida, toda em
brilhos de jóia barata, entrevi uma Princesa nua, e um Capitão de
Dragões, que soluçava. Saltei a outras colunas, onde se contavam feitos
de cocottes de nomes sonoros. Na outra página escritores eloquentes
celebravam vinhos digestivos e tónicos. Depois eram os crimes do
costume.--Não há nada de novo! Pus de parte a Voz de Paris,--e então
foi, entre mim e o linguado, uma luta pavorosa. O miserável, que se
frigira rancorosamente contra mim, não consentia que eu descolasse da
sua espinha uma febra escassa. Todo ele se ressequira numa sola
impenetrável e tostada, onde a faca vergava, impotente e trémula. Gritei
pelo moço lívido, o qual, com faca mais rija, fincando no soalho os
sapatos de fivela, arrancou enfim àquele malvado duas tirinhas, finas
e curtas como palitos, que engoli juntas, e me esfomearam. De uma garfada
findei a costeleta. E paguei quinze francos com um bom luís de ouro. No
troco, que o moço me deu, com a polidez requintada de uma civilização
muito difundida, havia dois francos falsos. E por aquela doce tarde de
Maio saí para tomar no terraço um café cor de chapéu coco, que sabia a
fava.

Com o charuto aceso contemplei o Boulevard, àquela hora em toda a
pressa e estridor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente dos
ónibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente,
como toda uma escura humanidade formigando entre patas e rodas, numa
pressa inquieta. Aquele movimento continuado e rude bem depressa
entonteceu este espírito, por cinco anos afeito à quietação das serras
imutáveis. Tentava então, puerilmente, repousar nalguma forma imóvel,
ónibus parado, fiacre que estacara, num brusco escorregar da pileca:
mas logo algum dorso apressado se encafuava pela portinhola da tipóia,
ou um cacho de figuras escuras trepava sofregamente para o ónibus:--e,
rápido, recomeçava o rolar retumbante. Imóveis, de certo, estavam os
altos prédios hirtos, ribas de pedra e cal, que continham,
disciplinavam, aquela torrente ofegante. Mas da rua aos telhados, em
cada varanda, por toda a fachada, eram tabuletas encimando tabuletas,
que outras tabuletas apertavam:--e mais me cansava o perceber a tenaz
incessância do trabalho latente, a devorante canseira do lucro,
arquejante por trás das frontarias decorosas e mudas. Então, enquanto
fumava o meu charuto, estranhamente se apossaram de mim os sentimentos
que Jacinto outrora experimentara no meio da Natureza, e que tanto me
divertiam. Ali, à porta do café, entre a indiferença e a pressa da
Cidade, também eu senti, como ele no campo, a vaga tristeza da minha
fragilidade e da minha solidão. Bem certamente estava ali como perdido
num mundo, que me não era fraternal. Quem me conhecia? Quem se
interessaria por Zé Fernandes? Se eu sentisse fome, e o confessasse,
ninguém me daria metade do seu pão. Por mais aflitamente que a minha
face revelasse uma angústia, ninguém na sua pressa pararia para me
consolar. De que me serviriam também as excelências de alma, que só na
alma florescem? Se eu fosse um santo, aquela turba não se importaria
com a minha santidade; e se eu abrisse os braços e gritasse, ali no
Boulevard--«ó homens, meus irmãos!» os homens, mais ferozes que o lobo
ante o Pobrezinho de Assis, ririam e passariam indiferentes. Dois
impulsos únicos, correspondendo a duas funções únicas, parecia estarem
vivos naquela multidão,--o lucro e o gozo. Isolada entre eles, e ao
contágio ambiente da sua influência, em breve a minha alma se
contrairia, se tornaria num duro calhau de Egoísmo. Do ser que eu
trouxera da Serra só restaria em pouco tempo esse calhau, e nele,
vivos, os dois apetites da Cidade,--encher a bolsa, saciar a carne! E
pouco a pouco as mesmas exagerações de Jacinto perante a Natureza me
invadiam perante a Cidade. Aquele Boulevard ressumava para mim um bafo
mortal, extraído dos seus milhões de micróbios. De cada porta me
parecia sair um ardil para me roubar. Em cada face, avistada à
portinhola de um fiacre, suspeitava um bandido em manobra. Todas as
mulheres me pareciam caiadas como sepulcros, tendo só podridão por
dentro. E considerava de uma melancolia funambulesca as formas de toda
aquela Multidão, a sua pressa áspera e vã, a afectação das atitudes,
as imensas plumas das chapeletas, as expressões postiças e falsas, a
pompa dos peitos alteados, o dorso redondo dos velhos olhando as imagens
obscenas das vitrinas. Ah! tudo isto era pueril, quase cómico da minha
parte, mas é o que eu sentia no Boulevard, pensando na necessidade de
remergulhar na Serra, para que ao seu puro ar se me despegasse a crosta
da Cidade, e eu ressurgisse humano, e Zé-Fernândico!

Então, para dissipar aquele pesadume de solidão, paguei o café e parti,
lentamente, a visitar o 202. Ao passar na Madalena, diante da estação
dos ónibus, pensei:--Que será feito de Madame Colombe? E, oh miséria!
pelo meu miserável ser subiu uma curta e quente baforada de desejo bruto
por aquela besta suja e magra! Era o charco onde eu me envenenara, e
que me envolvia nas emanações subtis do seu veneno. Depois, ao dobrar da
rue Royale para a Praça da Concórdia, topei com um robusto e possante
homem, que estacou, ergueu o braço, ergueu o vozeirão, num modo de
comando:

--Eh, Fernandes!

O Grão-Duque! O belo Grão-Duque, de jaquetão alvadio e chapéu tirolês
cor de mel! Apertei com gratidão reverente a mão do Príncipe, que me
reconhecera.

--E Jacinto? Em Paris?...

Contei Tormes, a serra, o rejuvenescimento do nosso amigo entre a
Natureza, a minha doce prima, e os bravos pequenos, que ele trazia às
cavaleiras. O Grão-Duque encolheu os ombros, desolado:

--Oh lá, lá, lá!... Peuh! Casado, na aldeia, com filharada... Homem
perdido! Ora não há!... E um rapaz útil! que nos divertia, e tinha
gosto! Aquele jantar cor-de-rosa foi uma festa linda... Não se fez, não
se tornou a fazer nada tão brilhante em Paris... E Madame d'Oriol...
Ainda há dias a vi no Palácio de Gelo... Potável, mulher ainda muito
potável... Não é todavia o meu género... Adocicada, leitosa, pomadada,
neve à la vanille!... Ora esse Jacinto!...

--E Vossa Alteza, em Paris com demora?

O formidável homem baixou a face, franzida e confidencial:

--Nenhuma. Paris não se aguenta... Está estragado, positivamente
estragado... Nem se come! Agora é o Ernest, da Praça Gaillon, o Ernest,
que era maitre-d'hotel do Maire... Já lá comeu? Um horror. Tudo é o
Ernest, agora! Onde se come? No Ernest. Qual! Ainda esta manhã lá
almocei... Um horror! Uma salada Chambord... palhada, indecentemente
palhada! Não tem, não tem a noção da salada! Paris foi! Teatros, uma
estopada. Mulheres, hui! Lambidas todas. Não há nada! Ainda assim, num
dos teatritos de Montmartre, na Roulotte, está uma revista, que se vê:
_Para cá as mulheres_!--engraçada, bem despida... A Celestine tem uma
cantiga, meia sentimental, meia porca, o _Amor no Water-Closet_, que
diverte, tem topete... Onde está, Fernandes?

--No Grand-Hotel, meu senhor.

--Que barraca!... E o seu Rei sempre bom?

Curvei a cabeça:

--Sua Majestade, bem.

--Estimo! Pois, Fernandes, tive prazer... Esse Jacinto é que me desola!
Vá vêr a Revista... Boas pernas, a Celestine... E tem graça o tal _Amor
no Water-Closet_.

Um rijíssimo aperto de mão,--e S. Alteza subiu pesadamente para a
vitória, ainda com um aceno amável, que me penhorou... Excelente
homem, este Grão-Duque! Mais reconciliado com Paris, atravessei para os
Campos Elísios. Em toda a sua nobre e formosa largueza, toda verde, com
os castanheiros em flor, corriam, subindo, descendo, velocípedes. Parei
a contemplar aquela fealdade nova, estes inumeráveis espinhaços
arqueados, e gâmbias magras, agitando-se desesperadamente sobre duas
rodas. Velhos gordos, de cachaço escarlate, pedalavam, gordamente.
Galfarros esguios, de tíbias descarnadas, fugiam numa linha esfuziada.
E as mulheres, muito pintadas, de bolero curto, calções bufantes,
giravam, mais rapidamente ainda, no prazer equívoco da carreira,
escarranchadas em hastes de ferro. E a cada instante outras medonhas
máquinas passavam, vitórias e faétons a vapor, com uma complicação de
tubos e caldeiras, torneiras e chaminés, rolando numa trepidação
estridente e pesada, espalhando um grosso fedor de petróleo. Segui para
o 202, pensando no que diria um grego do tempo de Fídias, se visse esta
nova beleza e graça do caminhar humano!...

No 202, o porteiro, o velho Vian, quando me reconheceu, mostrou uma
alegria enternecedora. Não se fartou de saber do casamento de Jacinto,
e daqueles queridos meninos. E era para ele uma felicidade que eu
aparecesse, justamente quando tudo se andara limpando para a entrada da
Primavera. Quando penetrei na amada casa senti mais vivamente a minha
solidão. Não restava em toda ela nem um dos costumados aspectos que
fizessem reviver a velha camaradagem com o meu Príncipe. Logo na
antecâmara grandes lonas cobriam as tapeçarias heróicas, e igual lona
parda escondia os estofos das cadeiras e dos muros, e as largas estantes
de ébano da Biblioteca, onde os trinta mil volumes, nobremente
enfileirados como Doutores num Concílio, pareciam separados do mundo
por aquele pano que sobre eles descera depois de finda a comédia da
sua força e da sua autoridade. No gabinete de Jacinto, de sobre a mesa
de escrita, desaparecera aquela confusão de instrumentozinhos, de que
eu perdera já a memória: e só a Mecânica sumptuosa, por sobre peanhas e
pedestais, recentemente espanejada, reluzia, com as suas engrenagens,
tubos, rodas, rigidezes de metais, numa frieza inerte, na inactividade
definitiva das coisas desusadas, como já dispostas num Museu, para
exemplificar a instrumentação caduca de um mundo passado. Tentei mover o
telefone, que se não moveu; a mola da electricidade não acendeu nenhum
lume: todas as forças universais tinham abandonado o serviço do 202,
como servos despedidos. E então, passeando através das salas, realmente
me pareceu que percorria um museu de antiguidades; e que mais tarde
outros homens, com uma compreensão mais pura e exacta da Vida e da
Felicidade, percorreriam como eu, longas salas, atulhadas com os
instrumentos da Super-Civilização, e, como eu, encolheriam
desdenhosamente os ombros ante a grande Ilusão que findara, agora para
sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guardada debaixo de
lona.

Quando saí do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas
rolara momentos pela avenida das Acácias, no silêncio decoroso,
unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas
esmagando a areia, comecei a reconhecer as velhas figuras, sempre com o
mesmo sorriso, o mesmo pó de arroz; as mesmas pálpebras amortecidas, os
mesmos olhos farejantes, a mesma imobilidade de cera! O romancista da
_Couraça_ passou numa vitória, fixou em mim o monóculo defumado, mas
permaneceu indiferente. Os bandós negros de Madame Verghane,
tapando-lhe as orelhas, pareciam ainda mais furiosamente negros entre a
harmonia de todo o branco que a vestia, chapéu, plumas, flores, rendas e
corpete, onde o seu peito imenso se empolava como uma onda. No passeio,
sob as Acácias, espapado em duas cadeiras, o director do _Boulevard_
mamava o resto do seu charuto. E num grande landeau, Madame de Trèves
continuava o seu sorriso de há cinco anos, com duas pregazinhas mais
moles aos cantos dos lábios secos.

Abalei para o Grand-Hotel, bocejando,--como outrora Jacinto. E findei
o meu dia de Paris, no Teatro das Variedades, estonteado com uma
comédia muito fina, muito aclamada, toda faiscante do mais vivo
parisianismo, em que todo o enredo se enrodilhava à volta de uma Cama,
onde alternadamente se espojavam mulheres em camisa, sujeitos gordos em
ceroulas, um coronel com papas de linhaça nas nádegas, cozinheiras de
meias de seda bordadas, e ainda mais gente, ruidosa e saltitante, a
esfuziar de cio e de pilhéria. Tomei um chá melancólico no Julien, no
meio de um áspero e lúgubre namoro de prostitutas, fariscando a presa.
Em duas delas, de pele oleosa e cobreada, olhos oblíquos, cabelos
duros e negros como clinas, senti o Oriente, a sua provocação felina...
Interroguei o criado, um medonho ser, de uma obesidade balofa e lívida,
de eunuco. O monstro explicou numa voz roufenha e surda:

--Mulheres de Madagáscar... Foram importadas quando a França ocupou a
ilha!

Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard
revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartara havia cinco anos,
sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem
descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde, de
cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno de alcova e
de pós- de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique, como
rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava,
ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo molho, de cores e
sabores de pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e
dourejado, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei por grossos preços
garrafas do nosso adstringente e rústico vinho de Torres, enobrecido
com o título de Château isto, Château aquilo, e pó postiço no gargalo.
À noite, nos teatros, encontrava a Cama, a costumada cama, como centro
e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai
os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes
de erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planície me levou
a procurar melhor aragem de espírito nas alturas da Colina, em
Montmartre; e aí, no meio de uma multidão elegante de Senhoras, de
Duquesas, de Generais, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do
alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de
gozo as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os
corpetes de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres
damas. E recolhia enjoado com tanto relento de Alcova, vagamente
dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente
comigo, por me não divertir, não compreender a Cidade, e errar através
dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula de um
Censor, de um Catão austero. Oh senhores!--pensava,--pois eu não me
divertirei nesta deliciosa Cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?

Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual,
mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, diante de certos cafés, a
memória da minha Nini; e, como outrora, preguiçosamente, subi as
escadas da Sorbonne. Num anfiteatro, onde sentira um grosso sussurro,
um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para
alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da
Cidade Antiga. Mas, mal eu entrara, o seu dizer elegante e límpido foi
sufocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça
bestial, que saía da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das
Escolas, Primavera sagrada, em que eu fora flor murcha. O Professor
parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas.
Quando o grosso grunhido se moderou em sussurro desconfiado, ele
recomeçou com alta serenidade. Todas as suas ideias eram frias e
substanciais, expressas numa língua pura e forte; mas, imediatamente,
rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de
galo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas para
estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta gola de um
macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando
endefluxado. Perguntei ao velho:

--Que querem eles? É embirração com o professor... é política?

O velho abanou a cabeça, espirrando:

--Não... É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem
ideias... Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça.

Então, indignado, berrei:

--Silêncio, brutos!

E eis que um abortozinho de rapaz, amarelado e sebento, de longas
melenas, umas enormes lunetas rebrilhantes, se arrebita, me fita, e me
berra:

--_Sale Maure_!

Ergui o meu grosso punho serrano,--e o desgraçado, numa confusão de
melenas, com sangue por toda a face, aluiu, como um montão de trapos
moles, ganindo desesperadamente, enquanto o furacão de uivos e
cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que cruzara os
braços, esperando, com uma serenidade simples.

Desde esse momento decidi abandonar a fastidiosa Cidade; e o único dia
alegre e divertido que nela passei foi o derradeiro, comprando para os
meus queridinhos de Tormes brinquedos consideráveis, tremendamente
complicados pela Civilização,--vapores de aço e cobre, providos de
caldeiras para viajar em tanques; leões de pele verídica rugindo
pavorosamente, bonecas vestidas pela Laferrière, com fonógrafo no
ventre...

Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janela, sobre o
Boulevard, as minhas despedidas à Cidade:

--Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da
tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu
génio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.
Adeusinho!

Na tarde do seguinte Domingo, debruçado da janela do comboio, que
vagarosamente deslizava pela borda do rio lento, num silêncio todo
feito de azul e sol, avistei, na plataforma da quieta estação da minha
aldeia, os Senhores de Tormes, com a minha afilhada Teresa, muito
vermelha, arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacintinho, que
empunhava uma bandeira branca. O alvoroço ditoso com que abracei e
beijei aquela tribo bem amada conviria perfeitamente a quem voltasse
vivo de uma guerra distante, na Tartária. Na alegria de recuperar a
Serra, até beijoquei o chefe Pimentinha, que a estalar de obesidade se
açodava gritando ao carregador todo o cuidado com as minhas malas.

Jacinto, magnífico, de grande chapéu serrano e jaqueta, de novo me
abraçou:

--E esse Paris?

--Medonho!

Abri depois os braços para o bravo Jacintinho.

--Então para que é essa bandeira, meu cavaleiro?

--É a bandeira do Castelo! declarou ele, com uma bela seriedade nos
seus grandes olhos.

A mãe ria. Desde essa manhã, logo que soubera da chegada do Ti-Zé,
apareceu de bandeira, feita pelo Grilo, e não a largara mais; com ela
almoçara, com ela descera de Tormes!

--Bravo! E, prima Joaninha, olhe que está magnífica! Eu, também, venho
daquelas peles meladas de Paris... Mas acho-a triunfal! E o tio
Adrião, e a tia Vicência?

--Tudo óptimo! gritou Jacinto. A serra, Deus louvado, prospera. E
agora, para cima! Tu hoje ficas em Tormes. Para contar da Civilização.

No largo por trás da estação, debaixo dos eucaliptos, que revi com
gosto, esperavam os três cavalos, e dois belos burros brancos, um com
cadeirinha para a Teresa, outro com um cesto de verga, para meter
dentro o heróico Jacintinho, um e outro servidos à estribeira por um
criado. Eu ajudara a prima Joaninha a montar, quando o carregador
apareceu com um maço de jornais e papéis, que eu esquecera na
carruagem. Era uma papelada, de que me sortira na Estação de Orleans,
toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo,
de erotismo. Jacinto, que as reconhecera, gritou rindo:

--Deita isso fora!

E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do Pátio, aquele pútrido
rebotalho da Civilização. E montei. Mas ao dobrar para o caminho
empinado da serra, ainda me voltei, para gritar adeus ao Pimenta, de
quem me esquecera. O digno chefe, debruçado sobre o monturo, apanhava,
sacudia, recolhia com amor aquelas belas estampas, que chegavam de
Paris, contavam as delícias de Paris, derramavam através do mundo a
sedução de Paris.

Em fila começámos a subir para a Serra. A tarde adoçava o seu esplendor
de estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores
silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as
suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num
alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes,
luzidias, despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada.
Vidraças distantes de casas amáveis, flamejavam com um fulgor de ouro. A
serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira. E, sempre
adiante da nossa fila, por entre a verdura, flutuava no ar a bandeira
branca, que o Jacintinho não largava, de dentro do seu cesto, com a
haste bem segura na mão. Era _a bandeira do Castelo_, afirmara ele.

E na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza
campestre e mansa,--o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos
ventos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os
dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu--, tão longe
de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno,
e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós,
serenamente e seguramente subíamos--para o Castelo da Grã-Ventura!


Fim



ADVERTÊNCIA


Desde a página 241, até o final, as provas deste livro não foram
revistas pelo autor, arrebatado pela morte antes de haver dado a esta
parte da sua escrita aquela última demão, em que habitualmente ele
punha a diligência mais perseverante e mais admiravelmente lúcida.

Aquele dos seus amigos e companheiro de letras, a quem foi confiado o
trabalho delicado e piedoso de tocar no manuscrito póstumo de Eça de
Queirós, ao concluir o desempenho de tal missão, beija com o mais
enternecido e saudoso respeito a mão, para todo sempre imobilizada, que
traçou estas páginas encantadoras; e faz votos por que a revisão de que
se incumbiu não deslustre muito grosseiramente a imortal auréola com
que ficará resplandecendo na literatura portuguesa este livro, em que o
espírito do grande escritor parece exalar-se da vida num terno
suspiro de doçura, de paz, e de puro amor à terra da sua pátria.

24 de Abril de 1901.



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