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Title: A Relíquia
Author: Queirós, José Maria Eça de, 1845-1900
Language: Portuguese
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produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)



A RELIQUIA



*A Reliquia*


Decidi compôr, nos vagares d'este verão, na minha quinta do _Mosteiro_
(antigo solar dos condes de Landoso) as memorias da minha Vida--que
n'este seculo, tão consumido pelas incertezas da Intelligencia e tão
angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu
cunhado Chrispim, uma lição lucida e forte.

Em 1875, nas vesperas de Santo Antonio, uma desillusão de incomparavel
amargura abalou o meu sêr: por esse tempo minha tia D. Patrocinio das
Neves mandou-me do Campo de Sant'Anna, onde moravamos, em romagem a
Jerusalem: dentro d'essas santas muralhas, n'um dia abrazado do mez de
Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa, Elius Lamma legado
imperial da Syria e J. Kaiapha Summo Pontifice testemunhei,
miraculosamente, escandalosos successos: depois voltei--e uma grande
mudança se fez nos meus bens e na minha moral.

São estes casos--espaçados e altos n'uma existencia de bacharel como, em
campo de herva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e
murmurio--que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, emquanto
no meu telhado voam as andorinhas, e as moitas de cravos vermelhos
perfumam o meu pomar.

Esta jornada á terra do Egypto e á Palestina permanecerá sempre como a
gloria superior da minha carreira; e bem desejaria que d'ella ficasse
nas Lettras, para a Posteridade, um monumento airoso e macisso. Mas
hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituaes, pretendi que as
paginas intimas em que a relembro se não assemelhassem a um _Guia
Pittoresco do Oriente_. Por isso (apesar das solicitações da vaidade)
supprimi n'este manuscripto succulentas, resplandecentes narrativas de
Ruinas e de Costumes...

De resto esse paiz do Evangelho, que tanto fascina a humanidade
sensivel, é bem menos interessante que o meu sêcco e paterno Alemtejo:
nem me parece que as terras favorecidas por uma presença Messianica
ganhem jámais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os
Lugares Santos da India em que o Budha viveu--arvoredos de Migadaia,
outeiros de Veluvana, ou esse dôce valle de Rajagria por onde se
alongavam os olhos adoraveis do Mestre perfeito quando um fogo rebentou
nos juncaes, e Elle ensinou, em singela parabola, como a Ignorancia é
uma fogueira que devora o homem--alimentada pelas enganosas sensações de
Vida que os sentidos recebem das enganosas apparencias do Mundo. Tambem
não visitei a caverna d'Hira, nem os devotos areaes entre Meca e Medina
que tantas vezes trilhou Mahomet, o Propheta Excellente, lento e
pensativo sobre o seu dromedario. Mas, desde as figueiras de Bethania
até ás aguas caladas de Galilêa, conheço bem os sitios onde habitou esse
outro Intermediario divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem
chamamos Jesus-Nosso-Senhor:--e só n'elles achei bruteza, seccura,
sordidez, soledade e entulho.

Jerusalem é uma villa turca, com viellas andrajosas, acaçapada entre
muralhas côr de lôdo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.

O Jordão, fio d'agua barrento e pêco que se arrasta entre areaes, nem
póde ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do
_Mosteiro_, banha as raizes dos meus amieiros: e todavia vêde! estas
meigas aguas portuguezas não correram jámais entre os joelhos d'um
Messias, nem jámais as roçaram as azas dos anjos, armados e rutilantes,
trazendo do céo á terra as ameaças do Altissimo!

Entretanto como ha espiritos insaciaveis que, lendo d'uma jornada pelas
terras da Escriptura, anhelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao
preço da cerveja--eu recommendo a obra copiosa e luminosa do meu
companheiro de romagem, o allemão Topsius, doutor pela Universidade de
Bonn e membro do _Instituto Imperial de Excavações Historicas_. São sete
volumes _in-quarto_, atochados, impressos em Leipzig, com este titulo
fino e profundo--Jerusalem Passeada e Commentada.

Em cada pagina d'esse solido Itinerario o douto Topsius falla de mim,
com admiração e com saudade. Denomina-me sempre o _illustre fidalgo
lusitano_; e a fidalguia do seu camarada, que elle faz remontar aos
Barcas, enche manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Além
d'isso o esclarecido Topsius aproveita-me, através d'esses repletos
volumes, para pendurar ficticiamente, nos meus labios e no meu craneo,
dizeres e juizos ensopados de beata e babosa credulidade--que elle logo
rebate e derroca com sagacidade e facundia! Diz, por exemplo:--«Diante
de tal ruina, do tempo da Cruzada de Godofredo, o illustre fidalgo
lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo um dia com a Santa
Veronica...»--E logo alastra a tremenda, turgida argumentação com que me
deliu. Como porém as arengas que me attribue não são inferiores em sabio
chorume e arrogancia theologica ás de Bossuet, eu não denunciei n'uma
nota á _Gazeta de Colonia_--por que tortuoso artificio a afiada razão da
Germania se enfeita assim de triumphos sobre a romba fé do Meio-Dia.

Ha porém um ponto de Jerusalem Passeada que não posso deixar sem
energica contestação. É quando o doutissimo Topsius allude a dois
embrulhos de papel, que me acompanharam e me occuparam, na minha
peregrinação, desde as viellas de Alexandria até ás quebradas do
Carmello. N'aquella fórma rotunda que caracterisa a sua eloquencia
universitaria, o dr. Topsius diz:--«O illustre fidalgo lusitano
transportava alli restos dos seus antepassados, recolhidos por elle,
antes de deixar o sólo sacro da patria, no seu velho solar torreado!...»
Maneira de dizer singularmente fallaz e censuravel! Porque faz suppôr á
Allemanha erudita que eu viajava pelas terras do Evangelho--trazendo
embrulhados n'um papel pardo os ossos dos meus avós!

Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por
me denunciar á Egreja como um profanador leviano de sepulturas
domesticas: menos me pezam a mim, commendador e proprietario, as
fulminações da Egreja--que as folhas sêccas que ás vezes cahem sobre o
meu guardasol de cima d'um ramo morto: nem realmente a Egreja, depois de
ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um mólho d'ossos, se
importa que elles para sempre jazam resguardados sob a rigida paz d'um
marmore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras molles d'um papel
pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a Burguezia
Liberal:--e só da Burguezia Liberal, omnipresente e omnipotente, se
alcançam, n'estes tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas
da vida, desde os empregos nos bancos até ás commendas da Conceição. Eu
tenho filhos, tenho ambições. Ora a Burguezia Liberal aprecia, recolhe,
assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares: é o
vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e crú: mas com razão
detesta o bacharel, filho d'algo, que passeie por diante d'ella,
enfunado e têso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados--como
um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ella lhe faltam.

Por isso intímo o meu douto Topsius (que com seus penetrantes oculos viu
formar os meus embrulhos, já na terra do Egypto, já na terra de Canaan)
a que na edição segunda de Jerusalem Passeada, sacudindo pudicos
escrupulos de Academico e estreitos desdens de Philosopho, divulgue á
Allemanha scientifica e á Allemanha sentimental qual era o recheio que
continham esses papeis pardos--tão francamente como eu o revelo aos meus
concidadãos n'estas paginas de repouso e de ferias, onde a Realidade
sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da
Historia, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farça!



I


Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em theologia, author
de uma devota _Vida de Santa Philomena_, e prior da Amendoeirinha. Meu
pai, afilhado de Nossa Senhora da Assumpção, chamava-se Rufino da
Assumpção Raposo--e vivia em Evora com a minha avó, Philomena Raposo,
por alcunha a «Repolhuda,» doceira na rua do Lagar dos Dizimos. O papá
tinha um emprego no correio, e escrevia por gosto no _Pharol do
Alemtejo_.

Em 1853, um ecclesiastico illustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de
Chorazin (que é em Galilêa), veio passae o S. João a Evora, a casa do
conego Pitta, onde o papá muitas vezes á noite costumava ir tocar
violão. Por cortezia com os dois sacerdotes, o papá publicou no _Pharol_
uma chronica, laboriosamente respigada no _Peculio de Prégadores_,
felicitando Evora «pela dita d'abrigar em seus muros o insigne prelado
D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclarissima torre de santidade.»
O bispo de Chorazin recortou este pedaço do _Pharol_ para o metter entre
as folhas do seu Breviario; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o
aceio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que elle cantava,
acompanhando-se no violão, a xacara do conde Ordonho. Mas quando soube
que este Rufino da Assumpção, tão moreno e sympathico, era o afilhado
carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos no bom
Seminario de S. José e nas veredas theologicas da Universidade, a sua
affeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Evora deu-lhe
um relogio de prata; e, por influencia d'elle, o papá, depois de
arrastar alguns mezes a sua madraçaria pela alfandega do Porto, como
aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfandega de
Vianna.

As macieiras cobriam-se de flôr quando o papá chegou ás veigas suaves
d'Entre-Minho-e-Lima; e logo n'esse julho conheceu um cavalheiro de
Lisboa, o commendador G. Godinho, que estava passando o verão com duas
sobrinhas, junto ao rio, n'uma quinta chamada o _Mosteiro_, antigo solar
dos condes de Lindoso. A mais velha d'estas senhoras, D. Maria do
Patrocinio, usava oculos escuros, e vinha todas as manhãs da quinta á
cidade, n'um burrinho, com o criado de farda, ouvir missa a Sant'Anna. A
outra, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia de cór os
versos do _Amor e Melancolia_, e passava horas, á beira da agua, entre a
sombra dos amieiros, rojando o vestido branco pelas relvas, a fazer
raminhos silvestres.

O papá começou a frequentar o _Mosteiro_. Um guarda da alfandega
levava-lhe o violão; e emquanto o commendador e outro amigo da casa, o
Margaride, doutor delegado, se embebiam n'uma partida de gamão, e D.
Maria do Patrocinio rezava em cima o terço--o papá, na varanda, ao lado
de D. Rosa, defronte da lua, redonda e branca sobre o rio, fazia gemer
no silencio os bordões e dizia as tristezas do conde Ordonho. Outras
vezes jogava elle a partida de gamão: D. Rosa, sentava-se então ao pé do
titi, com uma flôr nos cabellos, um livro cahido no regaço; e o papá,
chocalhando os dados, sentia a caricia promettedora dos seus olhos
pestanudos.

Casaram. Eu nasci n'uma tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã morreu,
ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Alleluia. Jaz, coberta de
goivos, no cemiterio de Vianna, n'uma rua junto ao muro, humida da
sombra dos chorões, onde ella gostava de ir passear nas tardes de verão,
vestida de branco, com a sua cadellinha felpuda que se chamava
_Traviata_.

O commendador e D. Maria não voltaram ao _Mosteiro_. Eu cresci, tive o
sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto da
sala, dentro d'um sacco de baeta verde. N'um julho de grande calor, a
minha criada Gervasia vestiu-me o fato pesado de velludilho preto; o
papá poz um fumo no chapéo de palha; era o luto do commendador G.
Godinho a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes,
«malandro.»

Depois, n'uma noite de entrudo, o papá morreu de repente, com uma
apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado
d'urso, para ir ao baile das senhoras Macedos.

Eu fazia então sete annos; e lembro-me de ter visto, ao outro dia, no
nosso pateo, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda
negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguem
lavára, e já tinham seccado nas lages. Á porta uma velha esperava,
rezando, encolhida no seu mantéo de baetilha.

As janellas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre
um banco, um candieiro de latão ficou dando a sua luzinha de capella,
fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha, emquanto
a Marianna, choramigando, abanava o fogareiro, eu vi passar no largo da
Senhora da Agonia, o homem que trazia ás costas o caixão do papá. No
alto frio do monte a capellinha da Senhora, com a sua cruz negra,
parecia mais triste ainda, branca e nua, entre os pinheiros, quasi a
sumir-se na nevoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava, sem
descontinuar, um grande mar d'inverno.

Á noite, no quarto de engommar, a minha criada Gervasia sentou-me no
chão, embrulhado n'um saiote. De quando em quando, rangiam no corredor
as botas do João, guarda da alfandega, que andava a defumar com
alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão de ló. Adormeci: e
logo achei-me a caminhar á beira d'um rio claro, onde os choupos, já
muito velhos, pareciam, ter uma alma e suspiravam; e ao meu lado ia
andando um homem nú, com duas chagas nos pés, e duas chagas nas mãos,
que era Jesus, Nosso Senhor.

Passados dias, acordaram-me, n'uma madrugada em que a janella do meu
quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um prenuncio de
coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito risonho e gordo fazia-me
cocegas nos pés com ternura e chamava-me _bréjeirote_. A Gervasia
disse-me que era o snr. Mathias, que me ia levar para muito longe, para
casa da tia Patrocinio: e o snr. Mathias, com a sua pitada suspensa,
olhava espantado para as meias rôtas que me calçára a Gervasia.
Embrulharam-me no chale-manta cinzento do papá; o João, guarda da
alfandega, trouxe-me ao collo até á porta da rua, onde estava uma
liteira com cortinas d'oleado.

Começámos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo adormecido, eu
sentia as lentas campainhas dos machos: e o snr. Mathias, defronte de
mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na cara, e dizia: «Ora cá
vamos.» Uma tarde, ao escurecer, parámos de repente n'um sitio ermo,
onde havia um lamaçal; o liteireiro, furioso, praguejava, sacudindo o
archote acceso. Em redor, dolente e negro, rumorejava um pinheiral. O
snr. Mathias, enfiado, tirou o relogio da algibeira e escondeu-o no cano
da bota.

Uma noite, atravessámos uma cidade onde os candieiros da rua tinham uma
luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da fórma d'uma tulipa
aberta. Na estalagem em que apeámos, o criado, chamado Gonçalves,
conhecia o snr. Mathias: e depois de nos trazer os bifes, ficou
familiarmente encostado á mesa, de guardanapo ao hombro, contando coisas
do snr. barão, e da ingleza do snr. barão. Quando recolhiamos ao quarto,
alumiados pelo Gonçalves, passou por nós, bruscamente, no corredor, uma
senhora, grande e branca, com um rumor forte de sêdas claras, espalhando
um aroma d'almiscar. Era a ingleza do snr. barão. No meu leito de ferro,
desperto pelo barulho das seges, eu pensava n'ella, rezando Ave-Marias.
Nunca roçára corpo tão bello, d'um perfume tão penetrante: ella era
cheia de graça, o Senhor estava com ella, e passava, bemdita entre as
mulheres, com um rumor de sêdas claras...

Depois, partimos n'um grande coche que tinha as armas do rei, e rolava a
direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavallos
gordos. O snr. Mathias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada,
dizia-me, aqui e além, o nome d'uma povoação aninhada em torno d'uma
velha igreja, na frescura d'um valle. Ao entardecer, por vezes, n'uma
encosta, as janellas d'uma calma vivenda faiscavam com um fulgor d'ouro
novo. O coche passava; a casa ficava adormecendo entre as arvores;
através dos vidros embaciados eu via luzir a estrella de Venus. Alta
noite tocava uma corneta; e entravamos, atroando as calçadas, n'uma
villa adormecida. Defronte do portão da estalagem moviam-se
silenciosamente lanternas mortiças. Em cima, n'uma sala aconchegada, com
a mesa cheia de talheres, fumegavam as terrinas; os passageiros,
arripiados, bocejavam, tirando as luvas grossas de lã; e eu comia o meu
caldo de gallinha, estremunhado e sem vontade, ao lado do snr. Mathias,
que conhecia sempre algum moço, perguntava pelo doutor delegado, ou
queria saber como iam as obras da camara.

Emfim, n'um domingo de manhã, estando a choviscar, chegámos a um
casarão, n'um largo cheio de lama. O snr. Mathias disse-me que era
Lisboa; e, abafando-me no meu chale-manta, sentou-me n'um banco, ao
fundo d'uma sala humida, onde havia bagagens e grandes balanças de
ferro. Um sino lento tocava á missa; diante da porta passou uma
companhia de soldados, com as armas sob as capas d'oleado. Um homem
carregou os nossos bahús, entrámos n'uma sege, eu adormeci sobre o
hombro do snr. Mathias. Quando elle me poz no chão, estavamos n'um pateo
triste, lageado de pedrinha miuda, com assentos pintados de preto: e na
escada uma moça gorda cochichava com um homem d'opa escarlate, que
trazia ao collo o mealheiro das Almas.

Era a Vicencia, a criada da tia Patrocinio. O snr. Mathias subiu os
degraus conversando com ella, e levando-me ternamente pela mão. N'uma
sala forrada de papel escuro, encontrámos uma senhora muito alta, muito
secca, vestida de preto, com um grilhão d'ouro no peito; um lenço rôxo,
amarrado no queixo, cahia-lhe n'um bioco lugubre sobre a testa; e no
fundo d'essa sombra negrejavam dois oculos defumados. Por traz d'ella,
na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dôres olhava para mim, com o
peito trespassado d'espadas.

--Esta é a titi, disse-me o snr. Mathias. É necessario gostar muito da
titi... É necessario dizer sempre que _sim_ á titi!

Lentamente, a custo, ella baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu
senti um beijo vago, d'uma frialdade de pedra: e logo a titi recuou,
enojada.

--Credo, Vicencia! Que horror! Acho que lhe puzeram azeite no cabello!

Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ella,
murmurei:

--Sim, titi.

Então o snr. Mathias gabou o meu genio, o meu proposito na liteira, a
limpeza com que eu comia a minha sopa á mesa das estalagens.

--Está bem, rosnou a titi seccamente. Era o que faltava, portar-se mal,
sabendo o que eu faço por elle... Vá, Vicencia, leve-o lá para dentro...
Lave-lhe essa ramella, veja se elle sabe fazer o signal da cruz...

O snr. Mathias deu-me dois beijos repenicados. A Vicencia levou-me para
a cozinha.

Á noite vestiram-me o meu fato de velludilho; e a Vicencia, séria,
d'avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas
de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as columnas
d'um altar. A titi estava sentada no meio do canapé, vestida de sêda
preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anneis.
Ao lado, em cadeiras tambem douradas, conversavam dois ecclesiasticos.
Um, risonho e nedio, de cabellinho encaracolado e já branco, abriu os
braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só
«boas noites.» E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um
homemzinho, de cara rapada e collarinhos enormes, comprimentou,
atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.

Cada um d'elles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste
perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava _Tedrico_. O outro,
amoravel, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as
syllabas e dissesse _The-o-do-ri-co_. Depois acharam-me parecido com a
mamã, nos olhos. A titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu
não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes collarinhos fechou o
livro, fechou a luneta, e timidamente quiz saber se eu trazia saudades
de Vianna. Eu murmurei, atordoado:

--Sim, titi.

Então o padre mais idoso e nedio chegou-me para os joelhos,
recommendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre
obediente á titi...

--O Theodorico não tem ninguem senão a titi... É necessario dizer sempre
que _sim_ á titi...

Eu repeti, encolhido:

--Sim, titi.

A titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da bocca. Depois disse-me
que voltasse para a cozinha, para a Vicencia, sempre a seguir pelo
corredor...

--E quando passar pelo oratorio, onde está a luz e a cortina verde,
ajoelhe, faça o seu signalzinho da cruz...

Não fiz o signal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratorio da titi
deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de sêda rôxa, com
paineis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do
Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos
de marfim e de madeira, com aureolas lustrosas, viviam n'um bosque de
violetas e de camelias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar
duas salvas nobres de prata, encostadas á parede, em repouso, como
broqueis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um docel,
Nosso Senhor Jesus Christo era todo d'ouro, e reluzia.

Cheguei-me devagar até junto da almofada de velludo verde, pousada
diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da titi. Ergui para Jesus
crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céo os
anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de
ouro, cravejados talvez de pedras: o seu brilho formava a luz do dia; e
as estrellas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo
através dos véos negros, em que os embrulhava á noite, para dormirem, o
carinho beato dos homens.

Depois do chá, a Vicencia foi-me deitar n'uma alcovinha pegada ao seu
quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, ergueu-me a face
para o céo. E dictou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saude da
titi, pelo repouso da mamã, e por alma d'um commendador que fôra muito
bom, muito santo, e muito rico, e que se chamava Godinho.

       *       *       *       *       *

Apenas completei nove annos, a titi mandou-me fazer camisas, um fato de
pano preto, e collocou-me, como interno, no collegio dos Isidoros, então
em Santa Isabel.

Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz Chrispim,
mais crescido que eu, filho da firma Telles, Chrispim & C.^a, donos da
fabrica do fiação á Pampulha. O Chrispim ajudava á missa aos domingos;
e, de joelhos, com os seus cabellos compridos e louros, lembrava a
suavidade d'um anjo. Ás vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a
face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; á noite, na
sala, d'estudo, á mesa onde folheavamos os somnolentos diccionarios,
passava-me bilhetinhos a lapis, chamando-me _seu idolatrado_ o
promettendo-me caixinhas de pennas d'aço...

Á quinta-feira era o desagradavel dia de lavarmos os pés. E tres vezes
por semana o sebento padre Soares, vinha, de palito na bocca,
interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.

--Ora depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caiphás... Olá, o
da pontinha do banco, quem era Caiphás?... Emende! Emende adiante!...
Tambem não! Irra, cabeçudos! Era um judeu o dos peores... Ora diz que,
lá n'um sitio muito feio da Judêa, ha uma arvore toda d'espinhos, que é
mesmo d'arripiar...

A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e d'estalo, fechavamos a
cartilha.

O tristonho pateo de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa
da visinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar
uma fumaça do cigarro, ás escondidas, n'uma sala terrea onde aos
domingos o mestre de dansa, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos
decotados, nos ensinava mazurkas.

Cada mez a Vicencia, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa,
para ir passar um domingo com a titi. Isidoro Junior, antes de eu sair,
examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia
d'elle, dava-me uma ensaboadella furiosa, chamando-me baixo _sebento_.
Depois trazia-me até á porta, fazia-me uma caricia, tratava-me de seu
_querido amiguinho_, e mandava pela Vicencia os seus respeitos á snr.^a
D. Patrocinio das Neves.

Nós moravamos no Campo de Sant'Anna. Ao descer o Chiado, eu parava n'uma
loja de estampas, diante do languido quadro d'uma mulher loura, com os
peitos nús, recostada n'uma pelle de tigre, e sustentando na ponta dos
dedos, mais finos que os do Chrispim, um pesado fio de perolas. A
claridade d'aquella nudez fazia-me pensar na ingleza do snr. barão: e
esse aroma, que tanto me perturbára no corredor da estalagem,
respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua cheia de sol, pelas
sêdas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e
graves.

A titi, em casa, estendia-me a mão a beijar: e toda a manhã eu ficava
folheando volumes do _Panorama Universal_, na saleta d'ella, onde havia
um sofá de riscadinho, um armario rico de pau preto, e lithographias
coloridas, com ternas passagens da vida purissima do seu favorito santo,
o patriarcha S. José. A titi, de lenço rôxo carregado para a testa,
sentada á janella por dentro dos vidros, com os pés embrulhados n'uma
manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas.

Ás tres horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço
começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o _Credo_, desfiando os
_Mandamentos_, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e
adocicado a rapé e a formiga.

Aos domingos vinham jantar comnosco os dois ecclesiasticos. O de
cabellinho encaracolado era o padre Casimiro, procurador da titi:
dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar _arbor arboris, currus
curri_; proclamava-me com affecto «talentaço.» E o outro ecclesiastico
elogiava o collegio dos Isidoros, formosissimo estabelecimento de
educação, como não havia nem na Belgica. Esse chamava-se padre Pinheiro.
Cada vez me parecia mais moreno, mais triste. Sempre que passava por
diante d'um espelho, deitava a lingua de fóra, e alli se esquecia a
estical-a, a estudal-a, desconfiado e aterrado.

Ao jantar o padre Casimiro gostava de vêr o meu appetite.

--Vai mais um bocadinho da vitellinha guisada? Rapazes querem-se alegres
e bem comidos!...

E padre Pinheiro, palpando o estomago:

--Felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitella!

Elle e a titi fallavam então de doenças. Padre Casimiro, córadinho, com
o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio, o copo cheio, sorria
beatificamente.

Quando, na praça, entre as arvores, começavam a luzir os candieiros de
gaz, a Vicencia punha o seu chale velho de xadrez e ia levar-me ao
collegio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara rapada
e vastos collarinhos, que era o snr. José Justino, secretario da
confraria de S. José, e tabellião da titi, com cartorio a S. Paulo. No
pateo, tirando já o seu paletot, fazia-me uma festa no queixo, e
perguntava á Vicencia pela saude da snr.^a D. Patrocinio. Subia; nós
fechavamos o pesado portão. E eu respirava consoladamente--porque me
entristecia aquelle casarão com os seus damascos vermelhos, os santos
innumeraveis, e o cheirinho a capella.

Pelo caminho a Vicencia fallava-me da titi, que a trouxera, havia seis
annos, da Misericordia. Assim eu fui sabendo que ella padecia do figado;
tinha sempre muito dinheiro em ouro n'uma bolsa de sêda verde; e o
commendador Godinho, tio d'ella e da minha mamã, deixára-lhe duzentos
contos em predios, em papeis, e a quinta do _Mosteiro_ ao pé de Vianna,
e pratas e louças da India... Que rica que era a titi! Era necessario
ser bom, agradar sempre á titi!

Á porta do collegio a Vicencia dizia «Adeus, amorzinho,» e dava-me um
grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu
pensava na Vicencia, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e
brancos como leite. E assim, foi nascendo no meu coração, pudicamente,
uma paixão pela Vicencia.

Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio _lambisgoia_.
Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um
murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Chrispim sahira dos
Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela
Vicencia desappareceu um dia, insensivelmente, como uma flôr que se
perde na rua.

E os annos assim foram passando: pelas vesperas de Natal accendia-se um
brazeiro no refeitorio, eu envergava o meu casacão forrado de baeta e
ornado d'uma gola d'astrakan; depois chegavam as andorinhas aos beiraes
do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias, vinham
braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés d'ouro de Jesus;
depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava á titi
um gigo d'uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar
rhetorica.

       *       *       *       *       *

Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os
Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do dr.
Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me n'um
papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga,
padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu corpo
a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre
Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.

Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e
foi um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o
desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d'um anthraz. Passei
então para a divertida hospedagem das Pimentas--e conheci logo, sem
moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca
mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu
joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca;
embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com
saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo fados;
usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho
a alcunha de _Raposão_. Todos os quinze dias porém escrevia á titi, na
minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a
severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas
rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces
desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que
consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...

Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir,
mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil. Não
ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e antes
de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no oratorio. Eu
proprio me condemnára a esta detestavel devoção!

--Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com
seccura, a titi.

E eu, sorrindo abjectamente:

--Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico
terço!...

Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste,
queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia outro
commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita das Neves, o
Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz em Mangualde. Rico
por morte de seu mano Abel, secretario da Camara Patriarchal, o doutor
aposentára-se, farto dos autos, e vivia em ocio, lendo os periodicos,
n'um predio seu na Praça da Figueira. Como conhecêra o papá, e muitas
vezes o acompanhará ao _Mosteiro_, tratou-me logo com authoridade e por
_você_.

Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido, onde
destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras
vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta, uma noticia
pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na Baixa!» Apenas uma
fumaraça n'uma chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, n'um sombrio
accesso d'imaginação, compuzera duas tragedias; e d'ahi lhe ficára este
gosto morbido d'exagerar e d'impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle,
saborêa o grandioso...»

E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma
pitada.

Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas vezes
lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes inteiras
vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no _Mosteiro_,
quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos amieiros. E
mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em sexta-feira de
Paixão. Além d'isso, mesmo na minha presença, elle gabava francamente á
titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus modos.

--O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V.
exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!

Eu córava, modesto.

Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que
eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho.
O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--«o Xavier, teu primo,
moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que
fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos, herdados de seu
pai, dono d'uma cordoaria em Alcantara. O commendador G. Godinho, mezes
antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade á
secretaria da Justiça, com vinte mil reis por mez. E o Xavier agora
vivia com uma hespanhola chamada Carmen, e tres filhos d'ella, n'um
casebre da rua da Fé.

Eu fui lá n'um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a
unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d'uma cadeira. O Xavier
toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen,
despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de
vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada n'um
trapo e com a cabecinha coberta de feridas.

Immediatamente o Xavier, tratando-me por _tu_, fallou-me da tia
Patrocinio... Era a sua esperança, n'aquella sombria miseria, a tia
Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não
podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n'aquelle casebre,
sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados, a chorar
por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já fizera o
Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?

--Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer...
Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao
tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão
d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida,
Theodorico! Olha que é duro, menino!

Enternecido, prometti fallar á titi.

Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que
entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no
peccado.

E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não
voltei á rua da Fé.

No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo
dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em
segredo.

Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na
cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita, de
mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os
pequenos, no chão, rapavam um tacho d'açorda. E na alcova o Xavier,
enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de
escarros de sangue, tossia, despedaçadamente:

--És tu, rapaz?

--Então que é isso, Xavier?

Elle exprimiu, n'um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se de
costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi.
Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não
respondera. E, agora, ia mandar para o _Jornal de Noticias_ um annuncio,
a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico
commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves deixaria
um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na pagina d'um
jornal.

--Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando
ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio.
Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um
Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é
que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos
trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!

Ergui-me, commovido.

--Conta commigo, Xavier.

--Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á
Concha.

Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi,
solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!

Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa,
desdobrou o _Jornal de Noticias_. E decerto achou logo o annuncio do
Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina onde
elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.

Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre, os
olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de
lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea de
pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu ia
lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o
primeiro pedaço de carne d'aquelle verão de miseria. Abri os labios. Mas
já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz:

--Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se
mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para
mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou...
Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que
tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!

Baixei a cabeça, murmurei:

--E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não
mettesse com saias!

Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto,
fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as
palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam com
saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no Terreiro da
Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu peccado, a
photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e uma carta
d'ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da sua alma» e me
pedia dezoito tostões! Eu cosera essas reliquias dentro do fôrro d'um
collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi, por entre a
minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella guardava a
chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia
poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para a
titi!

Abri devagarinho o bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da
Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua
photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei
tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão as
cinzas da minha ternura.

N'essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que
choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um
visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do
casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital
n'uma maca.

Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo
humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente
o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.

--Oh, Raposão!

Era o Silverio, por alcunha o _Rinchão_, meu condiscipulo, e companheiro
de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no Alemtejo, com seu
tio, ricaço illustre, o barão d'Alconchel. E agora, de volta, ia vêr uma
Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, n'uma casa côr de
rosa, com roseirinhas á varanda.

--Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita,
a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a
Adelia... É um mulherão!

Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher
religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou
da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do
Rinchão, enfiando as luvas pretas.

Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira,
encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de duraque.
E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os
chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu sentei-me ao
lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos.
Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á cozinha, abraçados, a
buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á Adelia, córando:

--Então a menina d'onde é?

Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era
tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro,
cortezmente, dizendo-me--o _cavalheiro_. Apreciei estes modos. As mangas
largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão brancos e
macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.

Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis.
Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se chamava
Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu
coração, enrodilhar-se no meu.

--Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto?
disse-me ella, rindo.

O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em mim
uma flôr de madrigal.

--É para não me tirar d'aqui d'ao pé da menina nem um instantinho que
seja.

Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi o
resto do Madeira que ella deixára no calice.

A Ernestina, poetica, e cantando o _fado_, aninhou-se nos joelhos do
Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a face--e
os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido,
mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.

N'esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo uma
face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma mesa do
mogno, d'entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez, horas, fanhoso,
ironico, pachorrento.

Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei,
esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e
infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as botas
enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de
damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e
fuzilando. Ainda balbuciei:

--Titi...

Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.

--Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha de
estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, emquanto eu
fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!

Sob a rajada estridente da indignação da snr.^a D. Patrocinio, padre
Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O dr.
Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu
pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como
sacerdote, como procurador, influente e suave.

--D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa...
Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no
Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...

Exclamei amargamente:

--Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No
convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo meu, que ia
lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma
tia, uma commendadeira... Estivemos á espera, a passear no pateo... A
irmã vai casar, elle andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do
apaixonada que ella está... Eu morto por me safar, mas com ceremonia do
rapaz, que é sobrinho do barão d'Alconchel... E elle zás, zás, a fallar
da irmã, e do namoro, e das cartas...

A tia Patrocinio uivou de furor.

--Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa
para o pateo d'uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até
devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a
estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão...

Então o dr. Margaride estendeu a mão pacificadora e solemne:

--Está tudo explicado! O nosso Theodorico foi imprudente, mas o sitio
onde esteve é respeitavel... E eu conheço o barão d'Alconchel. É um
cavalheiro da maior circumspecção, e um dos mais abastados do
Alemtejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietarios de Portugal...
O mais rico, direi!... Mesmo lá fóra não haverá fortuna territorial que
lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça!
Centenares de contos! milhões!

Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras d'ouro. E o bom
Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:

--Tome o seu chásinho, Theodorico, vá tomando o seu chásinho. E creia
que a tia não deseja senão o seu bem...

Puxei, com a mão a tremer, a minha chavena de chá: e, remexendo
desfallecidamente o fundo d'assucar, pensava em abandonar para sempre a
casa d'aquella velha medonha que assim, me ultrajava diante da
Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a
nascer, forte, respeitavel e negra.

Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do commendador G.
Godinho. Eu via-as, macissas e resplandecentes, diante de mim: o grande
bule terminando em bico de pato; o assucareiro cuja aza tinha a fórma
d'uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil em figura de macho trotando
sob os seus alforges. E tudo pertencia á titi. Que rica que era a titi!
Era necessario ser bom, agradar sempre á titi!...

Por isso, mais tarde, quando ella penetrou no oratorio para cumprir o
terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martellando o peito, e
supplicando ao Christo de ouro que me perdoasse ter offendido a titi.

       *       *       *       *       *

Um dia emfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor mettidas
n'um canudo de lata. A titi examinou-as reverente, achando um sabor
ecclesiastico ás linhas em latim, ás paramentosas fitas vermelhas, e ao
sêllo dentro do seu relicario.

--Está bom, disse ella, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves, vê
não lhe faltes...

Corri logo ao oratorio, com o canudo na mão, agradecer ao Christo de
ouro o meu glorioso grau de bacharel.

Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba, que agora
tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e
a esfregar as mãos.

--Boa nova vos trago aqui, snr. doutor Theodorico!...

E depois de me acariciar, segundo o seu affectuoso costume, com
palmadinhas dôces nos rins, o santo procurador revelou-me que a titi,
satisfeita commigo, decidira comprar-me um cavallo para eu dar honestos
passeios, e espairecer por Lisboa.

--Um cavallo! Oh, padre Casimiro!

Um cavallo. E além d'isso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já
letrado, soffresse um vexame, por lhe faltar ás vezes um troco para
deitar na salva de Nossa Senhora do Rosario, a titi estabelecia-me uma
mezada de tres moedas.

Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amoravel
intenção da titi era que eu não tivesse outra occupação além de cavalgar
por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.

--Olhe, Theodorico, eu parece-me que a titi não quer que você tenha
outro mister senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai
passal-a boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e
diga-lhe uma coisinha mimosa.

Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarcha
S. José, a titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia,
com um chale de Tonkin pelos hombros.

--Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer...

--Está bom, vai com Deus.

Então, devotamente, beijei-lhe a franja do chale. A titi gostou. Eu fui
com Deus.

Começou d'ahi, farta e regalada, a minha existencia de sobrinho da
snr.^a D. Patrocinio das Neves. Ás oito horas, pontualmente, vestido de
preto, ia com a titi á igreja de Sant'Anna, ouvir a missa do padre
Pinheiro. Depois d'almoço, tendo pedido licença á titi, e rezadas no
oratorio tres _Gloria Patri_ contra as tentações, sahia a cavallo, de
calça clara. Quasi sempre a titi me dava alguma incumbencia beata:
passar em S. Domingos, e dizer a oração pelos tres santos martyres do
Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desaggravo pelo
Sagrado Coração de Jesus...

E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos
recados que ella mandava a casa do Senhor.

Mas era este o momento desagradavel do meu dia: ás vezes, ao sahir,
surrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscipulo
republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de
procissão, chasqueando o Senhor da Cana Verde.

--Oh, Raposão! pois tu agora...

Eu negava, vexado:

--Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual!
entrei aqui por causa d'uma rapariga... Adeus, tenho a egua á espera.

Montava--e de luva preta, a perna bem collada á sella, um botãosinho de
camelia no peito, ia caracolando, em ocio e luxo, até ao largo do
Loreto. Outras vezes deixava a egua no Arco do Bandeira, e gozava uma
manhã regalada no bilhar do Montanha.

Antes do jantar, em chinelas, no oratorio com a titi, eu fazia a
jaculatoria a S. José, aio de Jesus, custodio de Maria e amorosissimo
patriarcha. Á mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em
torno d'uma travessa d'aletria, eu contava á titi o meu passeio, as
igrejas em que me deleitára, e quaes os altares alumiados. A Vicencia
escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas
janellas, onde um retrato de nosso santo padre Pio IX enchia a tira de
parede verde, tendo por baixo, pendente d'um cordão, um velho oculo
d'alcance, reliquia do commendador G. Godinho. Depois do café a titi,
lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e
pesado, na sombra do lenço rôxo.

Eu ia enfiar as botas; e, authorisado agora por ella a recrear-me fóra
de casa até ás nove e meia, corria ao fim da rua da Magdalena, ao pé do
largo dos Caldas. Ahi, com resguardo, encolhido na gola do meu
sobretudo, cosido com o muro, como se o candieiro de gaz que alli havia
fosse o olho inexoravel da titi--penetrava sofregamente na escadinha da
Adelia...

Sim, da Adelia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o
_Rinchão_ me levou ao Salitre, o beijo que ella me dera, languida e
branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurára mesmo fazer-lhe versos: e
esse amor dentro do meu peito foi no ultimo anno de Universidade, no
anno de Direito ecclesiastico, como um maravilhoso lirio que ninguem via
e que perfumava a minha vida... Apenas a titi me estabeleceu a mezada
das tres moedas, corri em triumpho ao Salitre; lá havia as roseirinhas á
janella, mas a Adelia já lá não estava. E foi ainda o prestante
_Rinchão_ que me mostrou esse primeiro andar, junto ao largo dos Caldas,
onde ella agora vivia patrocinada por Eleuterio Serra, da firma Serra
Brito & C.^a, com loja de fazendas e moelas na Conceição Velha.
Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto:
«Minha senhora.» Ella respondeu, com dignidade:--«O cavalheiro póde vir
aqui ao meio dia.» Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate,
atada com uma fita de sêda azul: pizando commovido a esteira nova da
sala, eu antevia, pela engommada brancura das bambinellas, a frescura
das suas saias; e o rigido alinho dos moveis revelava-me a rectidão dos
seus sentimentos. Ella entrou, um pouco constipada, com um chale
vermelho pelos hombros. Reconheceu logo o amigo do _Rinchão_; fallou da
Ernestina, com severidade, chamando-lhe «porcalhona.» E a sua voz
enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus
braços, d'um longo dia d'agasalho e somnolencia, sob o peso dos
cobertores, na penumbra molle da sua alcova. Depois ella quiz saber se
eu era empregado ou estava no commercio... Eu contei-lhe com orgulho a
riqueza da titi, os seus predios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas
mãos grossas presas nas minhas:

--Se a titi agora rebentasse, eu é que lhe punha á menina uma casa chic!

Ella murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar:

--Ora! o cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais commigo!

Ajoelhei sobre a esteira, tremulo, esmagando o peito contra os seus
joelhos, offertando-me como uma rez; ella abriu o seu chale, aceitou-me
misericordiosamente.

Agora, á noitinha (emquanto Eleuterio, no club da rua Nova do Carmo,
jogava a manilha) eu tinha alli na alcova da Adelia a radiante festa da
minha vida. Levára para lá um par de chinelas--era o eleito do seu seio.
Ás nove e meia, despenteada, envolta á pressa n'um roupão de flanella,
com os pés nús, acompanhava-me pela escadinha de traz, colhendo em cada
degrau, nos meus labios, um beijo lento e saudoso.

--Adeus, Délinha!

--Agasalha-te, riquinho!

E eu recolhia devagar ao campo de Sant'Anna, ruminando o meu gozo!

O verão passou, languidamente. Os primeiros ventos d'outono levaram as
andorinhas e as folhagens do campo de Sant'Anna: e logo n'esse outubro,
de repente, a minha vida se tornou mais facil, mais larga. A titi
mandára-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão d'ella, indo
ouvir a S. Carlos o _Poliuto_--opera que o dr. Margaride recommendára,
como «repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição.» Fui
com elle, de luvas brancas, frizado. Depois, no outro dia, ao almoço,
contei á titi o devoto enredo, os idolos derrubados, os canticos, as
fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo velludo vestia a
rainha.

--E sabe quem me veio fallar, titi? O barão d'Alconchel, o ricaço, tio
d'aquelle rapaz que foi meu condiscipulo. Veio apertar-me a mão, esteve
um bocado commigo no salão... Tratou-me com muita consideração.

A titi gostou d'esta consideração.

Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nedio
decote d'uma senhora immodesta, núa nos braços, núa no peito, mostrando
toda essa carne, esplendida e irreligiosa, que é a desolação do justo e
a angustia da Igreja.

--Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a titi, estava com nojo!

A titi gostou d'este nojo.

E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de
chinelas, ao oratorio, a fazer uma curta petição ás chagas do nosso
Christo d'ouro--a titi, já de braços cruzados e somnolenta, disse-me
d'entre a sombra do lenço:

--Está bom, se queres, volta hoje a S. Carlos... E lá quando te
appetecer, não te acanhes, tens licença, pódes ir gozar um bocado de
musica... Agora que estás um homem, e que parece que tens proposito, não
me importa que fiques fóra, até ás onze ou onze e meia... Em todo o caso
a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo prompto, para
começarmos o terço.

Ella não viu o triumphante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei,
requebrado, a babar-me de gosto devoto:

--Lá o terço, titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior
divertimento... Nem que el-rei me convidasse para um chásinho no paço!

Corri, delirante, a enfiar a casaca. E este foi o começo d'essa anhelada
liberdade que eu conquistára laboriosamente, vergando o espinhaço diante
da titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem vinda, agora
que Eleuterio Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e
deixára a Adelia só, solta, bella, mais jovial, mais fogosa!

Sim, decerto, eu ganhára a confiança da titi com os meus modos pontuaes,
sisudos, servis e beatos! Mas o que a levára a alargar assim, com
generosidade, as minhas horas de honesto recreio, fôra (como ella disse
confidencialmente ao padre Casimiro) a certeza de que eu «me portava com
religião e não andava atraz de saias.»

Porque para a tia Patrocinio todas as acções humanas, passadas por fóra
dos portaes das igrejas, consistiam em _andar atraz de calças_ ou _andar
atraz de saias_:--e ambos estes dôces impulsos naturaes lhe eram
igualmente odiosos!

Donzella, e velha, e resequida como um galho de sarmento; não tendo
jámais provado na livida pelle senão os bigodes do commendador G.
Godinho, paternaes e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de
Christo nú, essas jaculatorias das _Horas de piedade_, soluçantes de
amor divino--a titi entranhára-se, pouco a pouco, d'um rancor invejoso e
amargo a todas as fórmas e a todas as graças do amor humano.

E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a snr.^a D.
Patrocinio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja.
Um moço grave, amando sériamente, era para ella «uma porcaria!» Quando
sabia d'uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado,
rosnava--«que nojo!» E quasi achava a Natureza obscena por ter creado
dois sexos.

Rica, apreciando o conforto, nunca quizera em casa um escudeiro--para
que não houvesse na cozinha, nos corredores, _saias a roçar com calças_.
E apesar de irem embranquecendo os cabellos da Vicencia, de ser
decrepita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada
Eusebia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos bahús, e até
na palha dos enxergões, a vêr se descobria photographia d'homem, carta
d'homem, rasto d'homem, cheiro d'homem.

Todas as recreações moças; um passeio gentil com senhoras, em burrinhos;
um botão de rosa orvalhado offerecido na ponta dos dedos; uma decorosa
contradança em jucundo dia de Paschoa; outras alegrias, ainda mais
candidas, pareciam á titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes
_relaxações_. Diante d'ella já os sisudos amigos da casa não ousavam
mencionar d'essas emoventes historias, lidas nas gazetas, e em que
transparecem motivos d'amor--porque isso a escandalisava como o
desbragamento de uma nudez.

--Padre Pinheiro! gritou ella um dia furiosa, com os oculos chammejantes
para o desventuroso ecclesiastico, ao ouvil-o narrar d'uma criada que em
França atirára o filho á sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me
respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria!

Mas era ella propria que sem cessar alludia a desvarios e a peccados da
Carne--para os vituperar, com odio: atirava então o novello de linha
para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia--como
se trespassasse alli, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto
coração dos homens. E quasi todos os dias, com os dentes rilhados,
repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que
comesse o seu pão, andasse atraz de saias, ou se désse a relaxações,
havia d'ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.

Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar
me ficasse na roupa ou na pelle o delicioso cheiro da Adelia, eu trazia
na algibeira bocados soltos d'incenso. Antes de galgar a triste
escadaria de casa, penetrava subtilmente na cavalhariça deserta, ao
fundo do pateo; queimava no tampo d'uma barrica vazia um pedaço da
devota resina; e alli me demorava, expondo ao aroma purificador as abas
do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a
satisfação de vêr logo a titi farejar, regalada:

--Jesus, que rico cheirinho a igreja!

Modesto, e com um suspiro, eu murmurava:

--Sou eu, titi...

Além d'isso, para melhor a persuadir «da minha indifferença por saias,»
colloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com
sêllo--certo que a religiosa D. Patrocinio, minha senhora e tia, a
abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escripta por mim a um
condiscipulo d'Arrayollos; e dizia, em letra nobre, estas cousas
edificantes: «Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de philosophia,
por elle me ter convidado a ir a uma casa deshonesta. Não admitto
d'estas offensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava taes
relaxações. E parece-me ser uma grandissima cavalgadura aquelle que, por
causa d'uma distracção que é _fogo-viste-linguiça_, se arrisca a penar,
por todos os seculos e seculos, amen, nas fogueiras de Satanaz, salvo
seja! Ora n'uma d'essas refinadissimas asneiras não é capaz de cahir o
teu do C.--_Raposo_.»

A titi leu, a titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe
que ia ouvir a _Norma_, beijava com unção os ossos dos seus dedos;--e
corria, ao largo dos Caldas, á alcova da Adelia, a afundar-me
perdidamente nas beatitudes do Peccado. Alli, á meia luz que dava
através da porta envidraçada o candieiro de petroline da sala, os
cortinados de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras
celestes de nuvem; o cheiro dos pós d'arroz excedia em doçura o olor dos
junquilhos mysticos; eu estava no céo, eu era S. Theodorico; e sobre os
hombros nús da minha amada desenrolavam-se as madeixas do seu cabello
negro, forte e duro como a cauda d'um corcel de guerra.

N'uma d'essas noites, eu sahia d'uma confeitaria do Rocio, de comprar
trouxas d'ovos para levar á minha Adelia--quando encontrei o dr.
Margaride que me annunciou, depois do seu abraço paternal, que ia a S.
Carlos vêr o _Propheta_.

--E você, vejo-o de casaca, naturalmente tambem vem...

Fiquei varado. Com effeito vestira a casaca, dissera á titi que ia gozar
o _Propheta_, opera de tanta virtude como uma santa instrumental
d'igreja... E agora tinha de soffrer o _Propheta_, deveras, entalado
n'uma cadeira da Geral, roçando o joelho do douto magistrado--em vez de
preguiçar n'um colchão amoroso, vendo a minha deusa, em camisa, comer o
seu docinho d'ovos.

--Sim, com effeito, tambem eu ia d'aqui para o _Propheta_, murmurei
aniquilado. Diz que é uma musicasinha de muita virtude... A titi gostou
muito que eu viesse.

Com o meu inutil cartucho de trouxas d'ovos, lá fui subindo,
melancolicamente, ao lado do dr. Margaride, a rua Nova do Carmo.

Occupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente, branca e com
tons d'ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adelia, e no
desalinho das suas saias--quando reparei que d'uma friza ao lado uma
senhora loura e madura, uma Ceres outonal, vestida de sêda côr de palha,
voltava para mim, a cada dôce arcada das rebecas, os seus olhos claros e
sérios.

Perguntei logo ao dr. Margaride se conhecia aquella dama «que eu
costumava encontrar ás sextas na igreja da Graça, visitando o Senhor dos
Passos, com uma devoção, um fervor...»

--O sujeito que está por traz, a abrir a bocca, é o visconde de Souto
Santos. E ella ou é a mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a
cunhada, a viscondessa de Villar-o-Velho...

Á sahida, a viscondessa (de Souto Santos ou de Villar-o-Velho) ficou um
momento á porta esperando a sua carruagem, embrulhada n'uma capa branca
que uma pennugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais
altiva, incapaz de rolar, tonta e pallida, n'um travesseiro d'amor; a
cauda côr de palha alastrava-se sobre as lages; era esplendida, era
viscondessa; e outra vez me procuraram, me trespassaram os seus olhos
claros e sérios.

A noite estava estrellada. E, descendo o Chiado em silencio ao lado do
dr. Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da titi fosse meu e
dourasse a minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de
Souto Santos ou de Villar-o-Velho, não na sua friza, mas na minha
alcova, já cahida a grande capa branca, despidas já as sêdas côr de
palha, alva só do brilho da sua nudez, e fazendo-se pequenina entre os
meus braços... Ai, quando chegaria a hora, dôce entre todas, de morrer a
titi?

--Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? perguntou-me o dr.
Margaride ao desembocarmos no Rocio. Não sei se você conhece a torrada
do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.

No Martinho, já silencioso, o gaz ia adormecendo entre os espelhos
baços; e havia apenas n'uma mesa do fundo um moço triste, com a cabeça
enterrada entre os punhos diante d'um capilé.

O Margaride encommendou o chá--e vendo-me olhar com inquietação os
ponteiros do relogio, affirmou-me que eu chegaria a casa ainda a horas
de fazer a minha tocante devoção com a titi.

--A titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde...
A titi agora louvado seja Deus, tem mais confiança em mim.

--E você merece-o... Faz-lhe a vontade, é sisudo... Ella pouco a pouco
tem-lhe ganho amizade, segundo me diz o Casimiro...

Então lembrei-me da velha affeição que ligava o dr. Margaride ao padre
Casimiro, procurador da tia Patrocinio e seu zeloso confessor. E,
arrebatando a opportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao
magistrado, largamente, como a um pai.

--É verdade, a titi tem-me amizade... Mas acredite v. exc.^a, dr.
Margaride, que o meu futuro inquieta-me ás vezes... Olhe que tenho
pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se
seria difficil entrar como despachante na alfandega. Porque emfim a titi
é rica, é muito rica; eu sou seu sobrinho, unico parente, unico
herdeiro; mas...

E olhei anciosamente para o dr. Margaride, que, pelo loquaz padre
Casimiro, conhecia talvez o testamento da titi... O silencio grave em
que elle ficou, com as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro:
e n'esse instante o criado trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e
felicitando o magistrado por o vêr melhor do seu catarrho.

--Deliciosa torrada! murmurou o doutor.

--Excellente torrada! suspirei eu cortezmente.

De vez em quando o dr. Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a
face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com
religião.

Eu arrisquei outra palavra timida.

--A titi, é verdade, tem-me amizade...

--A titi tem-lhe amizade, atalhou com a bocca cheia o magistrado, e você
é o seu unico parente... Mas a questão é outra, Theodorico. É que você
tem um rival.

--Rebento-o! gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chammas,
esmurrando o marmore da mesa.

O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o dr.
Margaride reprovou com severidade a minha violencia.

--Essa expressão é impropria d'um cavalheiro, e d'um moço comedido. Em
geral não se rebenta ninguem... E além d'isso o seu rival não é outro,
Theodorico, senão Nosso Senhor Jesus Christo!

Nosso Senhor Jesus Christo? E só comprehendi, quando o esclarecido
jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no ultimo
anno da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e
predios, a Irmandades da sua sympathia e a padres da sua devoção.

--Estou perdido! murmurei.

Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste
diante do seu capilé. E pareceu-me que elle se assemelhava a mim como um
irmão, que era eu proprio, Theodorico, já desherdado, sordido, com as
botas cambadas, vindo alli ruminar as dôres da minha vida, á noite,
diante d'um capilé.

Mas o dr. Margaride acabára a torrada. E estendendo regaladamente as
pernas, consolou-me, de palito na bocca, affavel e perspicaz.

--Nem tudo está perdido, Theodorico. Não me parece que esteja tudo
perdido... É possivel que a senhora sua tia tenha mudado d'idéa... Você
é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ella...
Tudo isto influe. Que é necessario dizel-o, o rival é forte!

  Eu gemi:

  --É d'arromba!

--É forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Christo
padeceu por nós, é religião do Estado, não ha senão curvar a cabeça...
Olhe, quer você a minha opinião? Pois ahi a tem, franca e sem rebuço,
para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocinio, sua
tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como
deixal-a á Santa Madre Igreja...

O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, já abafado no seu
paletot, ainda me disse baixinho:

--Com franqueza, que tal, a torrada?

--Não ha melhor torrada em Lisboa, dr. Margaride.

Elle apertou-me a mão com affecto--e separamo-nos, quando estava dando a
meia noite no velho relogio do Carmo.

Estugando o passo pela rua Nova da Palma, eu sentia agora bem
claramente, bem, amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro!
Porque até ahi, essa minha devoção complicada, com que eu procurára
agradar á titi e ao seu ouro, fôra sempre regular, mas nunca fôra
fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa
Senhora do Rosario? Diante de Nossa Senhora em todas as suas
encarnações, e bem em evidencia para commover a titi, eu devia mostrar
habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo
pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilicios... Até ahi a titi
podia dizer com approvação: «É exemplar.» Era-me preciso, para herdar,
que ella exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «É santo!»

Sim! eu devia identificar-me tanto com as coisas ecclesiasticas e
submergir me n'ellas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não
podesse distinguir-me claramente d'esse conjunto rançoso de cruzes,
imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era
para ella a Religião e o Céo; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar
dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já
salpicada d'estrellas, e diaphana como a tunica de bem-aventurança.
Então, evidentemente, ella testaria em meu favor--certa que testava em
favor de Christo e da sua dôce Madre Igreja!

Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho
de Maria, a aprazivel fortuna do commendador G. Godinho. Pois quê! Não
bastavam ao Senhor os seus thesouros incontaveis; as sombrias cathedraes
de marmore que atulham a terra e a entristecem; as inscripções, os
papeis de credito que a piedade humana constantemente averba em seu
nome; as pás d'ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés
trespassados de pregos; as alfaias, os calices, e os botões de punho de
diamantes que elle usa na camisa, na sua igreja da Graça? E ainda
voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e
uns insipidos predios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos,
fugitivos haveres--tu, ó filho do Carpinteiro, mostrando á titi a chaga
que por ella recebeste, uma tarde, n'uma cidade barbara da Asia, e eu
adorando essa chaga, com tanto ruido e tanto fausto, que a titi não
possa saber onde está o merito, se em ti que morreste por nos amar de
mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!...
Assim pensava, olhando de través o céo, no silencio da rua de S. Lazaro.

Quando cheguei a casa, senti que a titi estava no oratorio, sósinha, a
rezar. Enfiei para o meu quarto, surrateiramente; descalcei-me; despi a
casaca; esguedelhei o cabello; atirei-me de joelhos para o soalho--e fui
assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito,
clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...

Ao ouvir, no silencio da casa, estas lugubres lamentações de arrastada
penitencia, a titi veio á porta do oratorio, espavorida.

--Que é isso, Theodorico, filho, que tens tu?...

Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfallecido de paixão divina.

--Desculpe, titi... Estava no theatro com o dr. Margaride, estivemos
ambos a tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar
para casa, alli na rua Nova da Palma, começo a pensar que havia de
morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor
padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Emfim, a titi faz
favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratorio, para alliviar...

Muda, impressionada, ella accendeu reverentemente, uma a uma, todas as
velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de S. José, favorito
da sua alma, para que fosse elle o primeiro a receber a ardente rajada
de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ancioso.
Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silencio, desappareceu, cerrando
o reposteiro com recato. E eu alli fiquei, sentado na almofada da titi,
coçando os joelhos, suspirando alto--e pensando na viscondessa de Souto
Santos ou de Villar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por
aquelles hombros maduros e succulentos, se a podesse ter só um instante,
alli mesmo que fosse, no oratorio, aos pés de ouro de Jesus, meu
Salvador!

       *       *       *       *       *

Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o
bacalhau das sextas-feiras não fosse uma sufficiente mortificação,
n'esses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo d'agua e
trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o á noite, de cebolada, com
bifes á ingleza, em casa da minha Adelia. No meu guarda-roupa, n'esse
duro inverno, houve apenas um paletot velho, tão renunciado me quiz
mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá,
purificando os cheviottes profanos, a minha opa rôxa de irmão do Senhor
dos Passos, e o devoto habito cinzento da Ordem Terceira de S.
Francisco. Sobre a commoda ardia uma lamparina perennal diante da
lithographia colorida de Nossa Senhora do Patrocinio: eu punha todos os
dias rosas dentro d'um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a titi,
quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira,
desvanecida, sem saber se era á Virgem, ou se era a ella,
indirectamente, que eu dedicava aquelle preito da luz e o louvor dos
aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como
galeria d'antepassados espirituaes de quem tirava o constante exemplo
das difficeis virtudes; mas não houve de resto no céo santo, por mais
obscuro, a quem eu não offertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos
em flôr. Fui eu que fiz conhecer á titi S. Telesforo, Santa Secundina, o
beato Antonio Estronconio, Santa Restituta, Santa Umbulina, irmã do grão
S. Bernardo, e a nossa dilecta e suavissima patricia Santa Basilissa,
que é solemnisada juntamente com S. Hypacio, n'esse festivo dia d'agosto
em que embarcam os cirios para a Atalaya.

Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a
vesperas. Jámais falhei igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao
Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santissimo eu lá
estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desaggravos ao
Sacramento. Novenas em que eu rezei contam-se pelos lumes do céo. E o
Septenario das Dôres era um dos meus dôces cuidados.

Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia
á missa das sete a Sant'Anna, e á missa das nove da igreja de S. José, e
á missa do meio dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a
uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando á pressa o cigarro:
depois voava ao Santissirno exposto na parochial de Santa Engracia, á
devoção do Terço no convento de Santa Joanna, á benção do Sacramento na
capella de Nossa Senhora ás Picôas, á novena das Chagas de Christo, na
sua igreja, com musica. Tomava então a tipoia do _Pingalho_, e ainda
visitava, ao acaso, de fugida, os Martyres e S. Domingos, a igreja do
convento do Desagravo e a igreja da Visitação das Selesias, a capella de
Monserrate ás Amoreiras e a Gloria ao Cardal da Graça, as Flamengas e as
Albertas, a Pena, o Rato, a Sé!

Á noite, em casa da Adelia, estava tão derreado, mono e molle ao canto
do sofá,--que ella atirava-me murros pelos hombros, e gritava, furiosa:

--Esperta, morcão!

Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adelia, em vez de me chamar
_morcão_, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudal-a
a desatacar o collete--passou, sempre que os meus labios insaciaveis se
collavam de mais ao seu collo, a empurrar-me, a chamar-me _carraça_...
Foi isto pelas alegres vesperas de Santo Antonio, ao apparecerem os
primeiros manjaricões, no quinto mez da minha devoção perfeita.

A Adelia começára a andar pensativa e distrahida. Tinha ás vezes, quando
eu lhe fallava, um modo de dizer «hein?», com o olhar incerto e
disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou
de me fazer a caricia melhor, que eu mais appetecia--a penetrante e a
regaladora beijoca na orelha.

Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu
paletot; ainda me chamava _riquinho_; ainda me acompanhava ao patamar em
camisa, dando, ao descollar do nosso abraço, esse lento suspiro que era
para mim a mais preciosa evidencia da sua paixão;--mas já me não
favorecia com a beijoquinha na orelha.

Quando eu entrava abrazado--encontrava-a por vestir, por pentear, molle,
estremunhada e com olheiras. Estendia-me a mãosinha desamoravel,
bocejava, colhia preguiçosamente a viola: e emquanto eu, a um canto,
chupando cigarros mudos, esperava que se abrisse a portinha envidraçada
da alcova que dava para o céo--a deshumana Adelia, estirada no sofá, de
chinelas cahidas, beliscava os bordões, murmurando, por entre longos
_ais_, cantigas de estranha saudade...

N'um arranco de ternura, eu ia ajoelhar-me á beira do seu peito. E lá
vinha logo a dura, a regelada palavra:

--Está quieto, carraça!

E recusava-me sempre o seu carinho. Dizia-me: «não posso, estou com
azia.» Dizia-me: «adeus, tenho a dôr na ilharga.»

Eu sacudia os joelhos, recolhia ao Campo de Sant'Anna--espoliado,
miserrimo, chorando na escuridão da minha alma pelos tempos ineffaveis
em que ella me chamava _morcão_!

Uma noite de julho, macia como um velludo preto e pespontada
d'estrellas, chegando mais cedo a casa d'ella, encontrei a portinha
aberta. O candieiro de petroline, pousado no soalho do patamar, enchia a
escada de luz;--e dei com a Adelia, em saia branca, fallando a um rapaz
de bigodinho louro, embrulhado pelintramente n'uma capa á hespanhola.
Ella empallideceu, elle encolheu--quando eu surgi, grande e barbudo, com
a minha bengala na mão. Depois a Adelia, sorrindo, sem perturbação, vera
e limpida, apresentou-me «seu sobrinho Adelino.» Era filho da mana
Ricardina, a que vivia em Vizeu, e irmão do Theodoriquinho... Tirando o
chapéo, apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do snr. Adelino:

--Estimo muito conhecel-o, cavalheiro. Sua mamã, seu mano, bons?

N'essa noite a Adelia, resplandecente, tornou a chamar-me _morcão_,
restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa semana foi deliciosa como
a d'um noivado. O verão ardia; e começára na Conceição Velha a novena de
S. Joaquim. Eu sahia de casa á hora repousante em que se regam as ruas,
mais contente que os passaros chalrando nas arvores do campo de
Sant'Anna. Na salinha clara, com todas as cadeiras cobertas de fustão
branco, encontrava a minha Adelia de chambre, fresca de se ter lavado,
cheirando a agua de colonia, e aos lindos cravos vermelhos que a
toucavam; e depois das manhãs calorosas, nada havia mais idyllico, mais
dôce que as nossas merendas de morangos na cozinha, ao ar da janella,
contemplando bocadinhos verdes de quintaes e ceroulas humildes a seccar
em cordas... Ora uma tarde que assim nos apraziamos, ella pediu-me oito
libras.

Oito libras!... Descendo á noite a rua da Magdalena, eu ruminava quem
m'as poderia emprestar sem juro e rasgadamente. O bom Casimiro estava em
Torres, o prestante _Rinchão_ estava em Paris... E pensava já no padre
Pinheiro (cujas dôres de rins eu lamentava sempre com affecto) quando
avistei a escapar-se, todo encolhido, todo surrateiro, d'uma d'essas
viellas impuras onde Venus Mercenaria arrasta os seus chinelos--o José
Justino, o nosso José Justino, o piedoso secretario da confraria de S.
José, o virtuosissimo tabellião da titi!...

Gritei logo: «boas noites, Justininho!» E regressei ao Campo de
Sant'Anna, tranquillo, gozando já a repenicada beijoca que me daria a
Délinha, quando eu risonho lhe estendesse na mão as oito rodellas
d'ouro. Ao outro dia cedo, corri ao cartorio do Justino, a S. Paulo,
contei-lhe a pranteada historia d'um condiscipulo meu, tisico,
miseravel, arquejando sobre uma enxerga, n'uma fetida casa d'hospedes,
ao pé do largo dos Caldas.

--É uma desgraça, Justino! Nem dinheiro tem para um caldinho... Eu é que
o ajudo: mas, que diabo, estou a tinir... Faço-lhe companhia, é o que
posso; leio-lhe orações, e _Exercicios da vida christã_. Hontem á noite
vinha eu de lá... E acredite você, Justino, que nem gósto d'andar por
aquellas ruas, tão tarde... Jesus, que ruas que indecencia, que
immoralidade!... Aquelles beccos d'escadinhas, hein?... Eu hontem bem
percebi que você ia horrorisado: eu tambem... De sorte que esta manhã
estava no oratorio da titi, a rezar pelo meu condiscipulo, a pedir a
Nosso Senhor que o ajudasse e que lhe désse algum dinheiro, e vai
pareceu-me ouvir uma voz lá de cima da cruz a dizer: «entende-te com o
Justino, falla ao nosso Justininho, elle que te dê oito libras para o
rapaz...» Fiquei tão agradecido a Nosso Senhor! De modo que aqui venho,
Justino, por ordem d'Elle.

O Justino escutava-me, branco como os seus collarinhos, dando estalinhos
tristes nos dedos;--depois, em silencio, estendeu-me uma a uma sobre a
carteira as oito moedas d'ouro. Assim eu servi a minha Adelia.

Fugaz foi porém a minha gloria!

D'ahi a dias estando no Montanha, regalado, a gozar uma carapinhada--o
criado veio avisar-me que uma mocinha trigueira e de chale, a snr.^a
Marianna, esperava por mim á esquina... Santo Deus! A Marianna era a
criada da Adelia. E corri, a tremer, certo de que a minha bem-amada
ficára soffrendo da sua abominavel dôr na sua branca ilharga. Pensei
mesmo em começar o Rosario das dezoito apparições de Nossa Senhora de
Lourdes, que a titi considera efficacissimo em casos de pontada ou de
touros tresmalhados...

--Ha novidade, Marianna?

Ella levou-me para dentro d'um pateo onde cheirava mal; e ahi, com os
olhos vermelhos, destraçando furiosamente o chale, rouca ainda da bulha
que tivera com a Adelia, rompeu a contar-me coisas torpes, execrandas,
sordidas. A Adelia enganava-me! O snr. Adelino não era sobrinho: era o
querido, o _chulo_. Apenas eu sahia, elle entrava: a Adelia
dependurava-se-lhe do pescoço, n'um delirio; e chamavam-me então o
_carraça_, o _carola_, o _bode_, vituperios mais negros, cuspindo sobre
o meu retrato. As oito libras tinham sido para o Adelino comprar fato de
verão; e ainda sobrára para irem á feira de Belem, em tipoia descoberta,
e de guitarra... A Adelia adorava-o com pieguice e com furor:
cortava-lhe os callos; e os suspiros da sua impaciencia, quando elle
tardava, lembravam o bramar das cervas, nos mattos quentes, em maio!...
Duvidava eu? Queria uma evidencia? Que fosse n'essa noite, tarde, depois
da uma hora, bater á portinha da Adelia!

Livido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me suffocava vinha
do canto escuro do pateo--se das immundicies que borbulhavam da bocca da
Marianna, como d'um cano d'esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a
desfallecer:

--Está bom Marianna, obrigadinho, eu verei, vá com Deus...

Cheguei a casa tão sombrio, tão murcho, que a titi perguntou-me, com um
risinho, se eu «malhára abaixo da egoa.»

--Da egoa?... Não, titi, credo! Estive na igreja da Graça...

--É que vens tão enfiado, assim com as pernas molles... E então o Senhor
hoje estava bonito?

--Ai, titi, estava rico!... Mas não sei porquê, pareceu-me tão
tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao padre Eugenio: «Ó Eugeninho,
o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me elle: «Que quer você, amigo? É
que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, titi! Vê muita
ingratidão, muita falsidade, muita traição!

Rugia, enfurecido: e cerrára o punho como para o deixar cahir, punidor e
terrivel, sobre a vasta perfidia humana. Mas contive-me, abotoei devagar
a quinzena, recalquei um soluço.

--Pois é verdade, titi... Fez-me tanta impressão aquella tristeza do
Senhor que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho
tido um desgosto: está um condiscipulo meu muito mal, coitadinho, a
espichar...

E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscencias do
Xavier e da rua da Fé), estirei a carcassa d'um condiscipulo sobre a
podridão d'uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de
caldos... Que miseria, titi, que miseria! E então um moço tão
respeitador das coisas santas, que escrevia tão bem na _Nação_!...

--Desgraças, murmurou a tia Patrocinio, meneando as agulhas da meia.

--É verdade, desgraças, titi. Ora como elle não tem familia e a gente da
casa é desleixada, nós os condiscipulos é que vamos por turnos
servir-lhe d'enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a titi
me désse licença para eu ficar fóra, até cerca das duas horas... Depois
vem outro rapaz, muito instruido, que é deputado.

A tia Patrocinio permittiu:--e até se offereceu para pedir ao patriarcha
S. José que fosse preparando ao meu condiscipulo uma morte somnolenta e
ditosa...

--Isso é que era um grande favor, titi! Elle chama-se Macieira... O
Macieira vesgo. É para S. José saber.

Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na molleza do luar de
julho. E por cada rua me acompanharam sempre, fluctuantes e
transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa á hespanhola,
enroscadas, beijando-se furiosamente--e só desligando os beiços pisados
para rirem alto de mim e para me chamarem _carola_.

Cheguei ao Rocio quando batia uma hora no relogio do Carmo. Ainda fumei
um cigarro, indeciso, por debaixo das arvores. Depois voltei os passos
para a casa da Adelia, vagaroso, e com medo. Na sua janella vi uma luz
enlanguecida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta,--mas hesitei
com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparavel... Meu
Deus! Talvez a Marianna, por vingança, calumniasse a minha Adelia! Ainda
na vespera ella me chamára _riquinho_, com tanto ardor! Não seria mais
sensato e mais proveitoso acreditar n'ella, tolerar-lhe um fugitivo
transporte pelo snr. Adelino, e continuar a receber egoistamente o meu
beijinho na orelha?

Mas então á idéa lacerante de que ella tambem beijava na orelha o snr.
Adelino, e que o snr. Adelino também dizia _ai! ai!_ como
eu--assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros,
alli, n'esses degraus onde tantas vezes arrulhára a suavidade dos nossos
adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o
seu fragil, ingrato peito.

Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ella surgiu em camisa,
com os seus bellos cabellos revoltos:

--Quem é o bruto?

--Sou eu, abre.

Reconheceu-me--a luz dentro desappareceu; e foi como se aquella torcida
de candieiro, apagando-se, deixasse tambem a minha alma em escuridão,
fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente só, viuvo, sem
occupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janellas negras, e
murmurava: «ai, que eu rebento!»

Outra vez a camisa da Adelia alvejou na varanda.

--Não posso abrir, que ceei tarde e estou com somno!

--Abre! gritei erguendo os braços desesperados. Abre ou nunca mais cá
volto!...

--Pois á fava, e recados á tia.

--Fica-te, bebeda!

Tendo-lhe atirado, como uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito
teso, muito digno. Mas á esquina aluí de dôr, para cima d'um portal, a
soluçar, escoado em pranto, delido.

Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias d'estio...
Tendo contado á titi que andava a escrever dois artigos, piamente
destinados ao _Almanach da Immaculada Conceição_ para 1878, encerrava-me
no quarto, toda a manhã, emquanto faiscavam ao sol as pedras da minha
varanda. Ahi, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía,
entre suspiros, recordações da Adelia; ou diante do espelho contemplava
o lugar macio da orelha em que ella costumava dar-me o beijo... Depois
sentia um ruido de vidraça--e o seu perfido, o seu affrontoso brado «á
fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os
murros que não podia vibrar ao peito magro do snr. Adelino.

Á tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada
janella aberta ás aragens da tarde, cada cortina de cassa engommada me
lembrava a intimidade da alcovinha da Adelia; n'um simples par de meias,
esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua
perna; tudo o que era luminoso me suggeria o seu olhar; e até o sorvete
de morango, no Martinho, me fazia repassar nos labios o adocicado e
gostoso sabor dos seus beijos.

Á noite, depois do chá, refugiava-me no oratorio, como n'uma fortaleza
de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado
na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal
precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva côr de carne,
quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos,
arredondava-se em fórmas divinamente cheias e bellas; por entre a corôa
d'espinhos, desenrolavam-se lascivos anneis de cabellos crespos e
negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos,
dois esplendidos seios de mulher, com um botãosinho de rosa na ponta;--e
era ella, a minha Adelia, que assim estava no alto da cruz, núa,
soberba, risonha, victoriosa, profanando o altar, com os braços abertos
para mim!

Eu não via n'isto uma tentação do Demonio--antes me parecia uma graça do
Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas
do meu amor. O céo é talvez grato: e esses innumeraveis santos, a quem
eu prodigalisára Novenas e Coroinhas, desejariam talvez recompensar a
minha amabilidade restituindo-me as caricias que me roubára o homem
cruel da capa á hespanhola. Puz mais flôres sobre a commoda diante de
Nossa Senhora do Patrocinio; contei-lhe as angustias do meu coração. Por
traz do limpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados,
ella foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em
ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor:

--Ó minha querida Senhora do Patrocinio, faze que a Adelinha goste outra
vez de mim!

Depois utilisei o valimento da titi com os santos seus amigos--o
amorosissimo e perdoador S. José, S. Luiz Gonzaga, tão benevolo para a
juventude. Pedia-lhe que fizesse uma Petição por certa necessidade
minha, secreta e toda pura. Ella accedia, com alacridade; e eu,
espreitando pelo reposteiro do oratorio, regalava-me de vêr a rigida
senhora, de joelhos, de contas na mão, em supplicas aos Patriarchas
castissimos para que a Adelia me désse outra vez a beijoquinha na
orelha.

Uma noite, cedo, foi experimentar se o céo escutára tão valiosas preces.
Cheguei á porta da Adelia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha
humilde. O snr. Adelino assomou á janella, em mangas de camisa.

--Sou eu, snr. Adelino, murmurei abjectamente e tirando o chapéo. Queria
fallar á Adeliasinha.

Elle rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que
disse _o carola_. E lá do fundo, d'entre os cortinados, onde eu a
presentia toda desalinhada e formosa, a minha Adelia gritou com furor:

--Atira-lhe para cima dos lombos o balde da agua suja!

Fugi.

       *       *       *       *       *

No fim de setembro, o _Rinchão_ chegou de Paris: e um domingo, á
noitinha, á volta da Novena de S. Caetano, entrando no Martinho,
encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos
d'amor e de gentil audacia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei
a ouvir o _Rinchão_. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monoculo
pendente d'uma fita larga, uma rosa amarella no peito, o _Rinchão_
impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu
prestigio: «Uma noite no Caffé de la Paix, estando eu a cear com a Cora,
com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um principe...» O que o
_Rinchão_ tinha visto! o que o _Rinchão_ tinha gozado! Uma condessa
italiana, delirante, parenta do Papa, e chamada _Popotte_, amára-o,
levára-o aos Campos-Elyseos na sua victoria--cujo velho brazão eram dois
chavelhos encruzados. Jantára em restaurantes onde a luz vinha de
serpentinas d'ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam
respeitosamente _Mr. le Comte_. E o _Acazar_, com festões de gaz entre
as arvores, e a Paulina cantando, de braços nús, o _Chouriço de
Marselha_--revelára-lhe a verdade, a grandeza da civilisação.

--Viste Victor Hugo? perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as
unhas.

--Não, nunca andava cá na roda chic!

Toda essa semana, então, a idéa de vêr Paris brilhou incessantemente no
meu espirito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o
appetite d'esses gozos do Orgulho e da Carne com que se abarrotára o
_Rinchão_, que a anciedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas, claro
rio e claro céo, só me lembravam a Adelia, o homem amargo de capa á
hespanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a titi
abrisse a sua bolsa de sêda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos,
colher ouro, e partir para Paris!...

Mas, para a snr.^a D. Patrocinio, Paris era uma região ascorosa, cheia
de mentira, cheia de gula--onde um povo sem santos, com as mãos
maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o
sol, ou luza o gaz, commettendo uma _relaxação_. Como ousaria eu mostrar
á titi o desejo immodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva
moral?...

Logo no domingo porém, jantando no Campo de Sant'Anna os amigos
dilectos, aconteceu fallar-se, ao cozido, d'um sabio condiscipulo do
padre Casimiro que recentemente deixára a quietação da sua cella no
Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O
nosso modesto Casimiro não comprehendia esta cubiça d'uma mitra,
cravejada de pedras vãs: para elle a plenitude d'uma vida ecclesiastica
era estar assim aos sessenta annos, são e sereno, sem saudades e sem
temores, comendo o arrozinho do forno da snr.^a D. Patrocinio das
Neves...

--Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitavel senhora, que este seu
arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz d'estes, e
amigos que o apreciem, parece-me a mais legitima e a melhor para uma
alma justa...

E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem aggravo do
Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabellião Justino era
uma quintasinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde elle
pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.

--Olhe, Justino, disse a titi, uma coisa que lhe havia de fazer falta
era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma
missinha, não ha outra que console... A mim, se me tirassem a de
Sant'Anna, parece-me que começava a definhar...

Era o padre Pinheiro que a celebrava; a titi, enternecida, collocou-lhe
no prato outra aza de gallinha;--e padre Pinheiro revelou tambem a
ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria vêr o Papa restaurado
n'esse throno forte e fecundo em que resplandecera Leão X...

--Se ao menos houvesse mais caridade com elle! exclamou a titi. Mas o
Santissimo Padre, o vigariosinho de Nosso Senhor, assim n'uma masmorra,
em farrapos, sobre palha... É de Caipházes, é de judeus!

Bebeu um gole da sua agua morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma--a
rezar a Ave-Maria que sempre offertava pela saude do Pontifice e pelo
termo do seu captiveiro.

O dr. Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontifice dormisse
sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo
Padre, querendo, podia ter carruagem.

--Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiára;
mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandissima commodidade...

Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam
as suas ambições) qual era a do douto, do eminente dr. Margaride.

--Diga lá a sua, dr. Margaride, diga lá a sua! clamaram todos, com
affecto.

Elle sorria, grave.

--Deixe-me v. exc.^a primeiro, D. Patrocinio, minha senhora, servir-me
d'essa lingua guizada, que marcha para nós e que me parece preciosa.

Depois de fornecido, o veneravel magistrado confessou que appetecia ser
Par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para
defender o principio sacro da authoridade...

--Só por isto, acrescentou com energia. Porque desejava tambem, antes de
morrer, poder dar, se v. exc.^a, D. Patrocinio, me permitte a expressão,
uma cacheirada mortal no atheismo e na anarchia. E dava-lh'a!

Todos declararam fervorosamente o dr. Margaride digno d'esses fastigios
sociaes. Elle agradeceu, seriissimo. Depois volveu para mim a face
magestosa e livida:

--E o nosso Theodorico? O nosso Theodorico ainda não nos disse qual era
a sua ambição.

Córei: e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas
serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do
seu champagne--fascinante, embriagante, e adormentando toda a dôr... Mas
baixei os olhos; e affirmei que só aspirava a rezar as minhas corôas, ao
lado da titi, com proveito e com descanso...

O dr. Margaride porém pousára o talher, insistia. Não lhe parecia um
desapego de Deus, nem uma ingratidão com a titi, que eu, intelligente,
saudavel, bom cavalleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cubiça...

--Nutro! exclamei então decidido como aquelle que arremessa um dardo.
Nutro, dr. Margaride. Gostava muito de vêr Paris.

--Cruzes! gritou a snr.^a D. Patrocinio, horrorisada. Ir a Paris!...

--Para vêr as igrejas, titi!

--Não é necessario ir tão longe para vêr bonitas igrejas, replicou ella,
rispidamente. E lá em festas com orgão, e um Santissimo armado com luxo,
e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar
gosto, ninguem bate cá os nossos portuguezes!...

Calei-me, esmagado. E o esclarecido dr. Margaride applaudiu o
patriotismo ecclesiastico da titi. Decerto, não era n'uma republica sem
Deus, que se deviam procurar as magnificencias do culto...

--Não, minha senhora, lá para saborear coisas grandiosas da nossa santa
religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe v.
exc.^a onde eu ia, snr.^a D. Maria do Patrocinio?

--O nosso doutor, lembrou o padre Pinheiro, corria direito a Roma...

--Upa, padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!

Upa? Nem o bom Pinheiro, nem a titi comprehendiam o que houvesse de
superior a Roma pontifical! O dr. Margaride então ergueu solemnemente as
sobrancelhas, densas e negras como ebano.

--Ia á Terra Santa, D. Patrocinio! Ia á Palestina, minha senhora! Ia vêr
Jerusalem e o Jordão! Queria eu tambem estar um momento, de pé, sobre o
Golgotha, como Chateaubriand, com o meu chapéo na mão, a meditar, a
embeber-me, a dizer «salvè!» E havia de trazer apontamentos, minha
senhora, havia de publicar impressões historicas. Ora ahi tem v. exc.^a
onde eu ia... Ia a Sião!

Servira-se o lombo assado; e houve, por sobre os pratos, um recolhimento
reverente a esta evocação da terra sagrada onde padeceu o Senhor. Eu
parecia-me vêr lá muito longe, na Arabia, ao fim de arquejantes dias de
jornada sobre o dorso d'um camêlo, um montão de ruinas em torno d'uma
cruz; um rio sinistro corre ao lado entre oliveiras; o céo arqueia-se
mudo e triste como a abobada d'um tumulo. Assim devia ser Jerusalem.

--Linda viagem! murmurou o nosso Casimiro, pensativo.

--Sem contar, rosnou padre Pinheiro, baixo e como ciciando uma oração,
que Nosso Senhor Jesus Christo vê com grande apreço, e muito agradece,
essas visitas ao seu Santo Sepulchro.

--Até quem lá vai, disse o Justino, tem perdão de peccados. Não é
verdade, Pinheiro? Eu assim li no _Panorama_... Vem-se de lá limpinho de
tudo!

Padre Pinheiro (tendo recusado, com mágoa, a couve-flôr, que considerava
indigesta) deu esclarecimentos. Quem ia á Terra Santa, n'uma devota
peregrinação, recebia sobre o marmore do Santo Sepulchro, das mãos do
Patriarcha de Jerusalem, e pagando os rituaes emolumentos, as suas
Indulgencias Plenarias...

--Não só para si, segundo tenho ouvido dizer, acrescentou o instruido
ecclesiastico, mas para uma pessoa querida de familia, piedosa, e
comprovadamente impedida de fazer a jornada... Pagando, já se vê,
emolumentos dobrados.

--Por exemplo! exclamou o dr. Margaride inspirado, batendo-me com força
nas costas. Assim para uma boa titi, uma titi adorada, uma titi que tem
sido um anjo, toda virtude, toda generosidade!...

--Pagando, já se vê, insistiu padre Pinheiro, os emolumentos dobrados!

A titi não dizia nada; os seus oculos, girando do Sacerdote para o
Magistrado, pareciam estranhamente dilatados, e brilhando mais com o
clarão interior d'uma idéa: um pouco de sangue subira á sua face
esverdinhada. A Vicencia offereceu o arroz dôce. Nós rezamos as graças.

Mais tarde no meu quarto, despindo-me, senti-me triste, infinitamente.
Nunca a titi me deixaria visitar a terra immunda de França: e aqui
ficaria enclausurado n'esta Lisboa onde tudo me era tortura, e as mais
rumorosas ruas me aggravavam o ermo do meu coração, e até a pureza do
fino céo de estio me recordava a torva perfidia d'essa que fôra para mim
estrella e Rainha da Graça... Depois, n'esse dia, ao jantar, a titi
parecera-me mais rija, solida ainda, duradoura, e por longos annos dona
da bolsa de sêda verde, dos predios e dos contos do commendador G.
Godinho... Ai de mim! Quanto tempo mais teria de rezar com a odiosa
velha o fastiento terço, de beijar o pé do Senhor dos Passos, sujo de
tanta bocca fidalga, de palmilhar novenas, e de magoar os joelhos diante
do corpo d'um Deus, magro e cheio de feridas? Oh vida entre todas
amargurosa! E já não tinha, para me consolar do enfadonho serviço de
Jesus, os macios braços da Adelia...

       *       *       *       *       *

De manhã, apparelhada a egoa, e já d'esporas, fui saber se minha titi
tinha algum pio recado para S. Roque, por ser esse seu milagroso dia. Na
saleta votada ás glorias de S. José, a titi, ao canto do sofá, com o
chale de Tonkin cahido dos hombros, examinava o seu grande caderno de
contas, aberto sobre os joelhos; e, defronte, calado, com as mãos
cruzadas atraz das costas, o bom Casimiro sorria pensativamente ás
flôres do tapete.

--Ora venha cá, venha cá! disse elle, mal eu assomei curvando o
espinhaço. Ouça lá a novidade! Que você é uma joia, respeitador de
velhos, e tudo merece de Deus e da senhora sua tia. Chegue-se cá, venha
de lá esse abraço!

Sorri, inquieto. A titi enrolava o seu caderno.

--Theodorico! começou ella, cruzando os braços, impertigada. Theodorico!
tenho estado aqui a consultar com o snr. padre Casimiro. E estou
decidida a que alguem que me pertença, e que seja do meu sangue, vá
fazer por minha intenção uma peregrinação á Terra Santa...

--Hein, felizão! murmurou Casimiro, resplandecendo.

--Assim, proseguiu a titi, está entendido e ficas sabendo que vaes a
Jerusalem e a todos os divinos lugares. Escusas de me agradecer, é para
meu gosto, e para honrar o tumulo de Jesus Christo, já que eu lá não
posso ir... Como, louvado seja Nosso Senhor, não me faltam os meios, has
de fazer a viagem com todas as commodidades; e para não estar com mais
duvidas, e pela pressa d'agradar a Nosso Senhor, ainda has de partir
n'este mez... Bem, agora vai, que eu preciso conversar com o snr. padre
Casimiro. Obrigado, não quero nada para o snr. S. Roque: já me entendi
com elle.

Balbuciei: «Muito agradecido, titi; adeusinho, padre Casimiro.» E segui
pelo corredor, atordoado.

No meu quarto corri ao espelho a contemplar, pasmado, este rosto e estas
barbas, onde em breve pousaria o pó do Jerusalem... Depois, cahi sobre o
leito.

--Olha que tremenda espiga!

Ir a Jerusalem! E onde era Jerusalem? Recorri ao bahú que continha os
meus compendios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com elle aberto
sobre a commoda, diante da Senhora do Patrocinio, comecei a procurar
Jerusalem lá para o lado onde vivem os Infieis, ondulam as escuras
caravanas, e uma pouca d'agua n'um poço é como um dom precioso do
Senhor.

O meu dedo errante sentia já o cansaço d'uma longa jornada: e parei á
beira tortuosa d'um rio que devia ser o devoto Jordão. Era o Danubio. E
de repente o nome de Jerusalem surgiu, negro, n'uma vasta solidão
branca, sem nomes, sem linhas, toda de arêas, nua, junto ao mar. Alli
estava Jerusalem. Meu Deus! Que remoto, que ermo, que triste!

Mas então comecei a considerar que, para chegar a esse sólo de
penitencia, tinha d'atravessar regiões amaveis, femininas e cheias de
festa. Era primeiro essa bella Andaluzia, terra de Maria Santissima,
perfumada de flôr de laranjeira, onde as mulheres só com metter dois
cravos no cabello, e traçando um chale escarlate, amansam o coração mais
rebelde, _bendita sêa su gracia_! Era adiante Napoles--e as suas ruas
escuras, quentes, com retabulos da Virgem, e cheirando a mulher, como os
corredores d'um lupanar. Era depois mais longe ainda a Grecia: desde a
aula de Rhetorica ella apparecera-me sempre como um bosque sacro de
loureiros onde alvejam frontões de templos, e, nos lugares de sombra em
que arrulham as pombas, Venus de repente surge, côr de luz e côr de
rosa, offerecendo a todo o labio, ou bestial ou divino, o mimo dos seus
seios immortaes. Venus já não vivia na Grecia; mas as mulheres tinham
conservado lá o esplendor da sua fórma e o encanto do seu impudor...
Jesus! o que eu podia gozar! Um clarão sulcou-me a alma. E gritei, com
um murro sobre o Atlas, que fez estremecer a castissima Senhora do
Patrocinio e todas as estrellas da sua corôa:

--Caramba, vou fartar o bandulho!

Sim, fartal-o! E mesmo, receando que a titi, por avareza do seu ouro ou
desconfiança da minha piedade, renunciasse á idéa d'esta peregrinação
tão promettedora de gozos--resolvi ligal-a supernaturalmente por uma
ordem divina. Fui ao oratorio; desmanchei o cabello, como se por entre
elle tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi,
esgazeado, com os braços a tremer no ar.

--Ó titi! pois não quer saber? Estava agora no oratorio, a rezar de
satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de
cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: «Fazes bem, Theodorico,
fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulchro... E estou muito contente
com tua tia... Tua tia é das minhas!...»

Ella juntou as mãos, n'um fogoso transporte d'amor:

--Louvado seja o seu santissimo nome!... Pois disse isso? Ai, era bem
capaz, que Nosso Senhor sabe que é para o honrar que eu lá te mando...
Louvado seja outra vez o seu santissimo nome! Louvado seja em Terra e
Céo! Anda, filho, vai, reza-lhe... Não te fartes, não te fartes!

Eu ia, murmurando uma Ave-Maria. Ella correu ainda á porta, n'uma
effusão de sympathia:

--E olha, Theodorico, vê lá a respeito de roupa branca... Talvez te
sejam necessarias mais ceroulas... Encommenda, filho, encommenda, que
graças a Nossa Senhora do Rosario tenho posses, e quero que vás com
decencia e te apresentes bem lá na sepulturasinha de Deus!...

Encommendei: e, tendo comprado um _Guia do Oriente_ e um capacete de
cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalem,
com Benjamim Sarrosa & C.^a, judeu sagaz, que ia todos os annos, de
turbante, comprar bois a Marrocos. Benjamim marcou-me, miudamente, n'um
papel, o meu grandioso itinerario. Embarcaria no _Malaga_, vapor da casa
Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, n'um mar
sempre azul, á velha terra do Egypto. Ahi um repouso sensual na festiva
Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da
Syria, aportaria a Jaffa, a de verdejantes pomares; e de lá, seguindo
uma estrada macadamisada, ao chouto d'uma egoa dôce, veria, ao fim d'um
dia e ao fim d'uma noite, surgirem, negras entre collinas tristes, as
muralhas de Jerusalem!

--Diabo, Benjamim... Parece-me muito mar, muito paquete. Então nem um
bocadinho de Hespanha? Ó menino, olhe que eu quero refastelar-me.

--Refastela-se em Alexandria. Tem lá tudo. Tem o bilhar, tem a tipoia,
tem a batota, tem a mulherinha... Tudo do bom. É lá que você se
refastela!

No emtanto, já no Montanha e na tabacaria do Brito se fallava da minha
santa empresa. Uma manhã, li, escarlate d'orgulho, no _Jornal das
Novidades_ estas linhas honorificas: «Parte brevemente a visitar
Jerusalem, e todos os sacros lugares em que padeceu por nós o Redemptor,
o nosso amigo Theodorico Raposo, sobrinho da exc.^{ma} D. Patrocinio das
Neves, opulenla proprietaria, e modelo de virtudes christãs. Boa
viagem!» A titi, desvanecida, guardou o jornal no oratorio, debaixo da
peanha de S. José: e eu jubilei, por imaginar o despeito da Adelia
(leitora fiel do _Jornal_) ao vêr-me assim abalar desprendido d'ella,
atestado d'ouro, para essas terras musulmanas--onde a cada passo se topa
um serralho, mudo e cheirando a rosa entre sycomoros...

A vespera da partida, na sala dos damascos, teve elevação e solemnidade.
O Justino contemplava-me--como se contempla uma figura historica.

--O nosso Theodorico... Que viagem!... O que se vai fallar n'isto!

E padre Pinheiro murmurava com unção:

--Foi uma inspiração do Senhor! E que bem que lhe ha de fazer á saude!

Depois mostrei o meu capacete de cortiça. Todos o admiraram. O nosso
Casimiro, todavia, depois de coçar pensativamente o queixo, observou que
me daria talvez mais seriedade um chapéo alto...

A titi acudiu, afflicta:

--É o que eu lhe disse! Acho de pouca ceremonia, para a cidade em que
morreu Nosso Senhor...

--Ó titi, mas já lhe expliquei! Isto é só para o deserto!... Em
Jerusalem, está claro, e em todos aquelles santos lugares, ando de
chapéo alto...

--Sempre é mais de cavalheiro, affirmou o dr. Margaride.

Padre Pinheiro quiz saber, solicitamente, se eu ia prevenido com
remedios para o caso d'um contratempo intestinal n'esses descampados
biblicos...

--Levo tudo. O Benjamim deu-me a lista... Até linhaça, até arnica!...

O pachorrento relogio do corredor começou a gemer as dez; eu devia
madrugar; e o dr. Margaride, commovido, agasalhava já o pescoço no seu
lenço de sêda. Então, antes dos abraços, perguntei aos meus leaes amigos
que «lembrançasinha» desejavam d'essas terras remotas onde vivera o
Senhor. Padre Pinheiro queria um frasquinho d'agua do Jordão. Justino
(que já me pedira no vão da janella um pacote de tabaco turco) diante da
titi só appetecia um raminho de oliveira, do monte Olivete. O dr.
Margaride contentava-se com uma boa photographia do sepulchro de Jesus
Christo, para encaxilhar...

Com a carteira aberta, depois de alistar estas piedosas
imcumbencias--voltei-me para a titi, risonho, carinhoso, humilde...

--Cá por mim, disse ella do meio do sofá como d'um altar, tesa nos seus
setins de domingo, o que desejo é que faças essa viagem com toda a
devoção, sem deixar pedra por beijar, nem perder novena, nem ficar
lugarzinho em que não rezes ou o terço ou a corôa... Além d'isso, tambem
estimo que tenhas saude.

Eu ia depôr na sua mão, brilhante de anneis, um beijo gratissimo. Ella
deteve-me--mais aprumada e secca:

--Até aqui tens sido apropositado, não tens faltado aos preceitos, nem
te tens dado a relaxações... Por isso te vaes regalar de vêr as
oliveiras onde Nosso Senhor suou sangue, e de beber no Jordãosinho...
Mas se eu soubesse que n'esta passeata tinhas tido maus pensamentos, e
praticado uma relaxação, ou andado atraz de saias, fica certo que,
apesar de ser a unica pessoa do meu sangue, e teres visitado Jerusalem,
e gozar indulgencias, havias de ir para a rua, sem uma côdea, como um
cão!

Curvei a cabeça, apavorado. E a titi, depois de roçar o lenço de rendas
pelos beiços sumidos, proseguiu com mais authoridade, e uma emoção
crescente que lhe punha, sob o corpete raso, como o fugitivo arfar d'um
peito humano:

--E agora quero dizer-te para teu governo uma só coisa!...

Todos de pé, e reverentes, logo percebemos que a titi se preparava a
proferir uma palavra suprema. N'essa hora de separação, rodeada dos seus
sacerdotes, rodeada dos seus magistrados, D. Patrocinio das Neves ia
decerto revelar qual fôra o seu intimo motivo, em me mandar, como
sobrinho e como romeiro, á cidade de Jerusalem. Eu ia saber emfim, e tão
indubitavelmente como se ella m'o escrevesse n'um pergaminho, qual
deveria ser o mais precioso dos meus cuidados, velando ou dormindo, nas
terras do Evangelho!

--Aqui está! declarou a titi. Se entendes que mereço alguma coisa pelo
que tenho feito por ti desde que morreu tua mãi, já educando-te, já
vestindo-te, já dando-te egoa para passeares, já cuidando da tua alma,
então traze-me d'esses santos lugares uma santa reliquia, uma reliquia
milagrosa que eu guarde, com que me fique sempre apegando nas minhas
afflicções e que cure as minhas doenças.

E pela vez primeira, depois de cincoenta annos de aridez, uma lagrima
breve escorregou no carão da titi, por sob os seus oculos sombrios.

O dr. Margaride rompeu para mim, arrebatadamente:

--Theodorico, que amor que lhe tem a titi! Rebusque essas ruinas,
esquadrinhe esses sepulcros! Traga uma reliquia á titi!

Eu bradei, exaltado:

--Titi, palavra de Raposão que lhe hei de trazer uma tremenda reliquia!

Pela severa sala de damascos transbordou, ruidosa e tocante, a commoção
dos nossos corações. Eu achei me com os beiços do Justino, ainda molles
da torrada, collados á minha barba...

Cedo, na manhã de domingo, 6 de setembro e dia de Santa Libania, fui
bater, devagar, ao quarto da titi, ainda adormecida no seu leito
castissimo. Senti, por sobre o tapete, aproximar-se o som molle dos seus
chinelos. Entreabriu pudicamente a porta; e, decerto em camisa,
estendeu-me, através da fenda, a sua mão escarnada, livida, cheirando a
rapé. Appeteceu-me mordel-a; depuz n'ella um beijo baboso; a titi
murmurou:

--Adeus, menino... Dá muitas saudades ao Senhor!

Desci a escadaria, já de capacete, sobraçando o meu _Guia do Oriente_.
Atraz a Vicencia soluçava.

A minha mala nova de couro, o meu repleto sacco de lona enchiam o coupé
do _Pingalho_. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos
telhados; na capella de Sant'Anna tocava para a missa. E um raio de sol,
vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a
face, acolhedor e risonho, como uma caricia do Senhor.

Fechei a tipoia, estirei-me, gritei: «Larga, _Pingalho_!»

E, romeiro abastado, soprando á brisa o fumo do meu cigarro--assim
deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalem!



II


Foi n'um domingo e dia de S. Jeronymo que meus pés latinos pisaram
emfim, no caes de Alexandria, a terra do Oriente, sensual e religiosa.
Agradeci ao Senhor da Boa Viagem. E o meu companheiro, o illustre
Topsius, Doutor allemão pela Universidade de Bonn, socio do _Instituto
imperial de Excavações historicas_, murmurou, grave como n'uma
invocação, desdobrando o seu vastissimo guardasol verde:

--Egypto! Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja em ti
propicio o teu Deus Phtah, Deus das Letras, Deus da Historia, inspirador
da obra de Arte e da obra de Verdade!...

Através d'este zumbido scientifico eu sentia-me envolvido n'um bafo
morno como o d'uma estufa, amollecedormente tocado d'aromas de sandalo e
rosa. No caes faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo,
o barracão da Alfandega. Mas além as pombas brancas voavam em torno aos
minaretes brancos; o ceu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um
languido palacio dormia á beira d'agua; e ao longe perdiam-se os areaes
da antiga Lybia, esbatidos n'uma poeirada quente, livre, e da côr d'um
leão.

Amei logo esta terra de indolencia, de sonho e de luz. E saltando para a
caleche forrada de chita, que nos ia levar ao _Hotel das Pyramides_,
invoquei as Divindades, como o illustrado Doutor de Bonn:

--Egypto, Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja propicio...

--Não! que vos seja propicia, D. Raposo, Isis, a vacca amorosa! acudiu o
eruditissimo homem, risonho, e abraçado á minha chapeleira.

Não comprehendi, mas venerei. Eu conhecêra Topsius em Malta, uma fresca
manhã, estando a comprar violetas a uma ramalheteira que tinha já nos
olhos grandes um langor musulmano: elle andava medindo consideradamente
com o seu guardasol as paredes marciaes e monasticas do palacio do
Grão-Mestre.

Persuadido que era um dever espiritual e doutoral, n'estas terras do
Levante, cheias de historia, medir os monumentos da antiguidade, tirei o
meu lenço e fui-o gravemente passeando, esticado como um covado, sobre
as austeras cantarias. Topsius dardejou-me logo, por cima dos oculos
d'ouro, um olhar desconfiado e ciumento. Mas tranquillisado, de certo,
pela minha face jucunda e material, pelas minhas luvas almiscaradas,
pelo meu futil raminho de violetas--ergueu cortezmente de sobre o longo
cabello, corredio e côr de milho, o seu bonésinho de sêda preta. Eu
saudei com o meu capacete de cortiça; e communicamos. Disse-lhe o meu
nome, a minha patria, os santos motivos que me levavam a Jerusalem. Elle
contou-me que nascêra na gloriosa Allemanha; e ia tambem á Judêa, depois
á Galilêa, n'uma peregrinação scientifica, colhêr notas para a sua
formidavel obra, a _Historia dos Herodes_. Mas demorava-se em Alexandria
a amontoar os pesados materiaes de outro livro monumental, a _Historia
dos Lagidas_... Porque estas duas turbulentas familias, os Herodes e os
Lagidas, eram propriedade historica do doutissimo Topsius.

--Então, ambos com o mesmo roteiro, podiamos acamaradar, Doutor Topsius!

Elle espigado, magrissimo e pernudo, com uma rabona curta de lustrina
enchumaçada de manuscriptos, cortejou gostosamente:

--Pois acamarademos, D. Raposo! Será uma deleitosa economia!

Encovado na gola, de guedelha cahida, o nariz agudo e pensativo, a calça
esguia,--o meu erudito amigo parecia-me uma cegonha, risivel e cheia de
letras, com oculos d'ouro na ponta do bico. Mas já a minha animalidade
reverenciava a sua intellectualidade: e fômos beber cerveja.

A sabedoria n'este moço era dom hereditario. Seu avô materno, o
naturalista Shlock, escreveu um famoso tratado em oito volumes sobre a
_Expressão physionomica dos Lagartos_, que assombrou a Allemanha. E seu
tio, o decrepito Topsius, o memoravel egyptologo, aos setenta e sete
annos dictou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e
facil--a _Synthese monotheista da Theogonia egypcia, considerada nas
relações do Deus Phtah e do Deus Imhotep com as Triadas dos Nómos_.

O pai de Topsius, desgraçadamente, através d'esta alta sciencia
domestica, permanecia figle n'um a charanga, em Munich: mas o meu
camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dois annos tinha
esclarecido, radiantemente, em dezenove artigos publicados no _Boletim
hebdomadario de Excavações historicas_, a questão, vital para a
Civilisação, d'uma parede de tijolo erguida pelo rei Pi-Sibkmé, da
vigesima primeira dynastia, em torno do templo de Ramèses II, na
lendaria cidade de Tanis. Em toda a Allemanha scientifica, hoje, a
opinião de Topsius ácerca d'esta parede brilha com a irrefutabilidade do
sol.

Só conservo de Topsius recordações suaves ou elevadas. Já sobre as aguas
bravias do mar de Tyro; já nas ruas fuscas de Jerusalem; já dormindo
lado a lado, sob a tenda, junto aos destroços de Jerichó; já pelas
estradas verdes de Galilêa--encontrei-o sempre instructivo, serviçal,
paciente e discreto. Raramente comprehendia as suas sentenças, sonoras e
bem cunhadas, tendo a preciosidade de medalhas d'ouro; mas, como diante
da porta impenetravel d'um santuario, eu reverenciava, por saber que lá
dentro, na sombra, refulgia a essencia pura da Idéa. Por vezes tambem o
Doutor Topsius rosnava uma praga immunda; e então uma grata communhão se
estabelecia entre elle e o meu singelo intellecto de bacharel em leis.
Ficou-me a dever seis moedas;--mas esta diminuta migalha de pecunia
desapparece na copiosa onda de saber historico com que fecundou o meu
espirito. Uma coisa apenas, além do seu pigarro d'erudito, me
desagradava n'elle--o habito de se servir da minha escova de dentes.

Era tambem intoleravelmente vaidoso da sua patria. Sem cessar, erguendo
o bico, sublimava a Allemanha, mãi espiritual dos povos; depois
ameaçava-me com a irresistibilidade das suas armas. A omnisciencia da
Allemanha! A omnipotencia da Allemanha! Ella imperava, vasto acampamento
entrincheirado d'in-folios, onde ronda e falla d'alto a Metaphysica
armada! Eu, brioso, não gostava d'estas jactancias. Assim, quando no
_Hotel das Pyramides_ nos apresentaram um livro para n'elle registarmos
nossos nomes e nossas terras, o meu douto amigo traçou o seu «Topsius»,
ajuntando por baixo, altivamente, em letras tesas e disciplinadas como
galuchos:--«Da Imperial Allemanha.» Arrebatei a penna; e recordando o
barbudo João de Castro, Ormuz em chammas, Adamastor, a capella de S.
Roque, o Tejo e outras glorias, escrevi largamente em curvas mais
enfunadas que velas de galeões:--«Raposo, Portuguez, d'Áquem e
d'Álém-mar.» E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou,
suspirando e a desfallecer:

--Em o cavalheiro necessitando alguma coisa, chame pelo Alpedrinha.

Um patricio! Elle contou-me a sua sombria historia, desafivelando a
minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos, compuzera um
negrologio, sabia ainda mesmo de cór os versos mais doloridos «do nosso
Soares de Passos.» Mas apenas sua mamãsinha morrêra, tendo herdado
terras, correra á fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na travessa da
Conceição uma hespanhola deleitosissima, do adocicado nome de Dulce; e
largou com ella para Madrid, n'um idyllio. Ahi o jogo empobreceu-o, a
Dulce trahiu-o, um _chulo_ esfaqueou-o. Curado e macilento passou a
Marselha; e durante annos arrastou como um frangalho social, através de
miserias inenarraveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Athenas.
Na Morêa, habitando uma choça junto a um pantano, empregára-se na
pavorosa pesca das sanguesugas; e de turbante, com ôdres negros ao
hombro, apregoou agua pelas viellas de Smyrna. O fecundo Egypto
attrahira-o sempre, irresistivelmente... E alli estava no _Hotel das
Pyramides_, moço de bagagens e triste.

--E se o cavalheiro trouxesse por ahi algum jornal da nossa Lisboa, eu
gostava de saber como vai a Politica.

Concedi-lhe generosamente todos os _Jornaes de Noticias_ que embrulhavam
os meus botins.

O dono do hotel era um grego de Lacedemonia, de bigodes ferozes, e que
_hablaba un poquitito el castellano_. Respeitosamente elle proprio, têso
na sua sobrecasaca preta ornada d'uma condecoração, nos conduziu á sala
do almoço--_la más preciosa, sin duda, de todo el Oriente, caballeros_!

Sobre a mesa murchava um ramo grosso de flôres escarlates: no frasco do
azeite fluctuavam familiarmente cadaveres de moscas; as chinelas do
criado topavam a cada instante um velho _Jornal dos Debates_, manchado
de vinho, rojando alli desde a vespera, pisado por outras chinelas
indolentes: e no tecto, a fumaraça fetida dos candieiros de latão
juntára nuvens pretas ás nuvens côr de rosa onde esvoaçavam anjos e
andorinhas. Por baixo da varanda uma rebeca e uma harpa tocavam a
_Mandolinata_. E emquanto Topsius se alagava de cerveja, eu sentia
estranhamente crescer o meu amor por esta terra de preguiça e de luz.

Depois do café, o meu sapientissimo amigo, com o lapis dos apontamentos
na algibeira da rabona, abalou a rebuscar antigualhas e pedras do tempo
dos Ptolomeus. Eu, accendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e
confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era
por intenção da tia Patrocinio, que me recommendára uma jaculatoria a S.
José, apenas pisasse esse sólo do Egypto, tornado, desde a fuga da Santa
Familia em cima do seu burrinho, chão devoto como o d'uma Sé. Amar era
por necessidade do meu coração, ancioso e ardido. Alpedrinha, em
silencio, ergueu as persianas, e mostrou-me uma clara praça, ornamentada
ao centro por um heroe de bronze, cavalgando um corcel de bronze: uma
aragem quente levantava poeiradas lentas por sobre dois tanques seccos;
e em redor perfilavam-se no azul altos predios, hasteando cada um a
bandeira da sua patria como cidadellas rivaes sobre um sólo vencido.
Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha
vendia canas d'assucar, a tranquilla rua das Duas Irmãs. Ahi (murmurou
elle) eu veria, pendurada sobre a porta d'uma lojinha discreta, uma
pesada mão de pau, tosca e rôxa--e por cima, em taboleta negra, estes
dizeres convidativos a ouro: «Miss Mary, Luvas e Flores de Cera.» Era
esse o refugio que elle aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua,
junto d'uma fonte chorando entre arvores, havia uma capella nova onde a
minha alma acharia consolação e frescura.

--E diga o cavalheiro a miss Mary que vai de mandado do _Hotel das
Pyramides_.

Puz uma rosa ao peito--e sahi, ovante. Logo da entrada das Duas Irmãs
avistei a ermidinha virginal, dormindo castamente sob os platanos, ao
rumor meigo da agua. Mas o amantissimo patriarcha S. José estava
certamente, a essa hora, occupado em receber jaculatorias mais
instantes, e evoladas de labios mais nobres: não quiz importunar o
bondosissimo santo;--e parei diante da mão de pau, pintada de rôxo, que
parecia estar alli esperando, alongada e aberta, para empolgar o meu
coração.

Entrei, commovido. Por traz do balcão envernizado, junto a um vaso de
rosas e magnolias, ella estava lendo o seu _Times_, com um gato branco
no collo. O que me prendeu logo foram os seus olhos azues-claros, d'um
azul que só ha nas porcelanas, simples, celestes, como eu nunca vira na
morena Lisboa. Mas encanto maior ainda tinham os seus cabellos, crespos,
frisadinhos como uma carapinha d'ouro, tão dôces e finos que appetecia
ficar eternamente e devotamente a mexer-lhes com os dedos tremulos; e
era irresistivel o profano nimbo luminoso que elles punham em torno da
sua face gordinha, d'uma brancura de leite onde se desfez carmezim, toda
tenra e succulenta. Sorrindo, e baixando com sentimento as pestanas
escuras, perguntou-me se eu queria _pellica_ ou _Suecia_.

Eu murmurei, roçando-me sôfregamente pelo balcão:

--Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha.

Ella escolheu entre o ramo um timido botão de rosa, e deu-m'o na ponta
dos dedos. Eu trinquei-o, com furor. E a voracidade d'esta caricia
pareceu agradar-lhe, porque um sangue mais quente veio afoguear-lhe a
face--e chamou-me baixo «mausinho!» Esqueci S. José e a sua
jaculatoria--e as nossas mãos, um momento unidas para ella me calçar a
luva clara, não se desenlaçaram mais, n'essas semanas que passei, na
cidade dos Lagidas, em festivas delicias musulmanas!

Ella era d'York, esse heroico condado da velha Inglaterra, onde as
mulheres crescem fortes e bem desabrochadas, como as rosas dos seus
jardins reaes. Por causa da sua meiguice e do seu riso d'ouro quando lhe
fazia cocegas, eu puzera-lhe o nome galante e cacarejante de
_Maricoquinhas_. Topsius, que a apreciava, chamava-lhe «a nossa
symbolica Cleopatra.» Ella amava a minha barba negra e potente: e, só
para não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a vêr o Cairo,
o Nilo, e a eterna Esphinge, deitada á porta do deserto, sorrindo da
Humanidade vã...

Vestido de branco como um lirio, eu gozava manhãs ineffaveis, encostado
ao balcão da Mary, amaciando respeitosamente a espinha do gato. Ella era
silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu
modo gentil de dobrar o _Times_, saturava o meu coração de luminosa
alegria. Nem precisava chamar-me «seu portuguezinho valente, seu
bibichinho.» Bastava que o seu peito arfasse:--só para vêr aquella dôce
onda languida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos,
eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem
repouso, até onde as aguas do Nilo são brancas!

De tarde, na caleche de chita com o nosso doutissimo Topsius, davamos
lentos, amorosos passeios á beira do canal Mamoudieh. Sob as frondosas
arvores, rente aos muros de jardins de serralho, eu sentia o aroma
perturbador de magnolias, e outros calidos perfumes que não conhecia.
Por vezes uma leve flôr rôxa ou branca cahia-me sobre o regaço: com um
suspiro eu roçava a barba pelo rosto macio da minha Maricoquinhas; ella,
sensivel, estremecia. Na agua jaziam as barcas pesadas que sobem o Nilo,
sagrado e bemfazejo, ancorando junto ás ruinas dos templos, costeando as
ilhas verdes onde dormem os crocodilos. Pouco a pouco a tarde cahia.
Vagarosamente rolavamos na sombra olorosa. Topsius murmurava versos de
Goethe. E as palmeiras da margem fronteira recortavam-se no poente
amarello--como feitas em relevo de bronze sobre uma lamina d'ouro.

Maricocas jantava sempre comnosco no _Hotel das Pyramides_; e diante
d'ella Topsius desabrochava todo em flôres d'erudição amavel.
Contava-nos as tardes de festa da velha Alexandria dos Ptolomeus, no
canal que levava a Canopia: ambas as margens resplandeciam de palacios e
de jardins; as barcas, com toldos de sêda, vogavam ao som dos alaúdes;
os sacerdotes d'Osiris, cobertos de pelles de leopardo, dançavam sob os
laranjaes; e nos terraços abrindo os véos, as damas d'Alexandria bebiam
á Venus Assyria, pelo calice da flôr do lotus. Uma voluptuosidade
esparsa amollecia as almas. Os philosophos mesmo eram frascarios.

--E, dizia Topsius requebrando o olho, em toda a Alexandria só havia uma
dama honesta que commentava Homero e era tia de Seneca. Só uma!

Maricoquinhas suspirava. Que encanto, viver n'essa Alexandria, e navegar
para Canopia, n'uma barca toldada de sêda!

--Sem mim? gritava eu, ciumento.

Ella jurava que sem o seu portuguezinho valente não queria habitar nem o
céo!

Eu, regalado, pagava o _champagne_.

E os dias assim foram passando, leves, flaccidos, gostosos, repicados de
beijos--até que chegou a vespera sombria de partirmos para Jerusalem.

--O cavalheiro, dizia-me n'essa manhã Alpedrinha engraxando os meus
botins, o que devia era ficar aqui na Alexandriasinha, a refocilar...

Ah! se pudesse! Mas irrecusaveis eram os mandados da titi! E, por amor
do seu ouro, lá tinha d'ir á negra Jerusalem, ajoelhar diante de
oliveiras seccas, desfiar rosarios piedosos ao pé de frios sepulchros...

--Tu já estiveste em Jerusalem, Alpedrinha? perguntei, enfiando
desconsoladamente as ceroulas.

--Não senhor, mas sei... Peor que Braga!

--Irra!

A nossa cêa com Maricocas, á noite, no meu quarto, foi cortada de
silencios, de suspiros: as velas tinham a melancolia de tochas: o vinho
anuviava-nos como aquelle que se bebe nos funeraes. Topsius offertava
consolações generosas.

--Bella dama, bella dama, o nosso Raposo ha de voltar... Estou mesmo
certo que trará da ardente terra da Syria, da terra da Venus e da Esposa
dos Cantares, uma chamma no seu coração mais fogosa e mais moça...

Eu mordia o beiço, suffocado:

--Pois está visto! Ainda havemos d'andar de caleche pelo Mamoudieh...
Isto é só ir rezar uns padre-nossos ao Calvario... Até me faz bem...
Volto como um touro.

Depois do café fomos encostar-nos á varanda a olhar, calados, aquella
sumptuosa noite do Egypto. As estrellas eram como uma grossa poeirada de
luz que o bom Deus levantava lá em cima, passeando sósinho pelas
estradas do céo. O silencio tinha uma solemnidade de sacrario. Nos
escuros terraços, em baixo, uma fórma branca movendo-se por vezes, de
leve, mostrava que outras creaturas estavam alli, como nós, deixando a
alma embeber-se mudamente no esplendor sideral: e n'esta diffusa
religiosidade, igual á d'uma multidão pasmando para os lumes d'um
altar-mór, eu sentia subir aos labios irresistivelmente a doçura d'uma
Ave-Maria...

Ao longe o mar dormia. E, á quente irradiação dos astros, eu podia
distinguir, n'um pontal de arêa, mergulhando quasi n'agua, uma casa
deserta, pequenina, toda branca e poetica entre duas palmeiras... Então
comecei a pensar que, mal a titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu
poderia comprar esse dôce retiro, forral-o de lindas sêdas, e viver ao
lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas
as inquietações da civilisação. Desaggravos ao Sagrado Coração de Jesus
ser-me-hiam tão indifferentes como as guerras que entre si travassem os
Reis. Do céo só me importaria a luz anilada que banhasse a minha
vidraça; da terra só me importariam as flôres abertas no meu jardim para
aromatisar a minha alegria. E passaria os dias n'uma fôfa preguiça
oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola franceza, e recebendo
perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me dava
só com deixar arfar o seio e chamar-me «seu portuguezinho valente.»

Apertei-a contra mim n'um desejo de a sorver. Junto á sua orelha, d'uma
brancura de concha branca, balbuciei nomes ineffaveis: disse-lhe
_rechonchudinha_, disse-lhe _riquiquitinha_. Ella estremeceu, ergueu os
olhos magoados para a poeirada d'ouro.

--Que d'estrellas! Deus queira que ámanhã o mar esteja manso!

Então, á idéa d'essas longas ondas que me iam levar á rispida terra do
Evangelho, tão longe da minha Mary, um pezar infinito afogou-me o
peito--e irrepressivelmente se me escapou dos labios, em gemidos
entoados, queixosos e requebrados... Cantei. Por sobre os terraços
adormecidos da musulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para
as estrellas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam
estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos--suspirei o
_fado_ mais sentido da saudade portugueza:

  Co'a minh'alma aqui te ficas,
  Eu parto só com os meus ais,
  E tudo me diz, Maricas,
  Que não te verei nunca mais.

Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quiz saber se estes dôces
versos eram de Luiz de Camões. Eu, choramigando, disse-lhe que
estes--ouvira-os no Dáfundo ao _Calcinhas_.

Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta _Calcinhas_. Eu fechei
a vidraça: e depois d'ir ao corredor fazer ás escondidas um rapido
signal da cruz, vim desapertar sôfregamente, e pela vez derradeira, os
atacadores do collete da minha saborosa bem-amada.

Breve, avaramente breve, foi essa noite estrellada do Egypto!

Cedo, amargamente cedo, veio o grego de Lacedemonia avisar-me que já
fumegava na bahia, aspera e cheia de vento, _el paquete_, ferozmente
chamado o _Caimão_, que me devia levar para as tristezas d'Israel.

_El señor D. Topsius_, madrugador, já estava em baixo a almoçar
pachorrentamente os seus ovos com presunto, a sua vasta caneca de
cerveja. Eu tomei apenas um gole de café, no quarto, a um canto da
commoda, em mangas de camisa, com os olhos vermelhos sob a nevoa das
lagrimas. A minha solida mala de couro atravancava o corredor, fechada e
afivelada; mas Alpedrinha estava ainda accommodando, á pressa, a roupa
suja dentro do sacco de lona. E Maricoquinhas, sentada desoladamente á
borda do leito, com o seu gentil chapéo enfeitado de papoulas e as
olheirinhas pisadas--contemplava aquelle enfardelar de flanellas, como
se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do sacco, para
partirem e não voltarem mais!

--Levas tanta roupa suja, Theodorico!

Balbuciei, dilacerado:

--Manda-se lavar em Jerusalem com a ajuda de Nosso Senhor!

Deitei os meus bentinhos ao pescoço. N'esse instante Topsius assomava á
porta, cachimbando, com a barraca do seu guardasol fechada sob o braço,
de galochas anchas para a humidade do tombadilho--e um volume da Biblia
enchumaçando-lhe a rabona d'alpaca. Ao vêr-me sem collete, reprehendeu a
minha amorosa preguiça.

--Mas comprehendo, bella dama, comprehendo! acudiu elle, ás cortezias a
Mary, esgrouviado e onduloso, d'oculos na ponta do bico. É doloroso
deixar os braços de Cleopatra... Já Antonio por elles perdeu Roma e o
mundo... Eu mesmo, todo absorvido na minha missão, com recantos
crepusculares da Historia a alumiar, levo gratas memorias d'estes dias
de Alexandria... Deliciosissimos os nossos passeios pelo Mamoudieh!...
Permitta-me que apanhe a sua luva, bella dama!... E se voltar jámais a
esta terra dos Ptolomeus, não me esquecerá a rua das _Duas irmãs_...
«Miss Mary, luvas e flôres de cêra.» Perfeitamente. Consentirá que lhe
mande, quando completa, a minha _Historia dos Lagidas_... Ha detalhes
muito picantes... Quando Cleopatra se apaixonou por Herodes, o rei da
Judêa...

Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava, alvoroçado:

--Cavalheiro! Ainda ha aqui roupa suja!

Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de
rendas, com laços de sêda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma
saudoso de violeta e d'amor... Ai! era a camisa de dormir da Mary,
quente ainda dos meus abraços!

--Pertence á snr.^a D. Mary! É a tua camisinha, amor! gemi eu, cruzando
os suspensorios.

A minha luveirinha ergueu-se, tremula, descórada--e teve um poetico
rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-m'a para os braços, tão
ardentemente, como se entre as dobras viesse tambem o seu coração.

--Dou-t'a, Theodorico! Leva-a, Theodorico! Ainda está amarrotada da
nossa ternura!... Leva-a para dormires com ella ao teu lado, como se
fosse commigo... Espera, espera ainda, amor! Quero pôr-lhe uma palavra,
uma dedicatoria!

Correu á mesa, onde jaziam restos do papel sisudo em que eu escrevia á
titi a historia edificativa dos meus jejuns em Alexandria, das noites
consumidas a embeber-me do Evangelho... E eu, com a camisinha perfumada
nos braços, sentindo duas bagas de pranto rolarem-me pelas barbas,
procurava angustiosamente em redor onde guardar aquella preciosa
reliquia d'amor. As malas estavam fechadas. O sacco de lona estalava,
repleto.

Topsius, impaciente, tirára das profundezas do seio o seu relogio de
prata. O nosso Lacedemonio, á porta, rosnava:

--_D. Theodorico, es tarde, es mui tarde_...

Mas a minha bem-amada já sacudia o papel, coberto das letras que ella
traçára, largas, impetuosas e francas como o seu amor: «_Ao meu
Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que
gozámos_!»

--Oh, riquinha! E onde hei de eu metter isto? Eu não hei de levar a
camisa nos braços, assim núa e ao léo!

Já Alpedrinha, de joelhos, desafivelava desesperadamente o sacco. Então
Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel
pardo, apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de
luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, commodo e
gracioso--que eu metti debaixo do braço, apertando-o com avara,
inflammada paixão.

Depois foi um murmurio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras...

--Mary, anjo querido!

--Theodorico, amor!...

--Escreve-me para Jerusalem...

--Lembra-te da tua bichaninha bonita...

Rolei pela escada, tonto. E a caleche que tantas vezes me passeára,
enlaçado com Mary, por sob os arvoredos aromaticos do Mamoudieh--lá
partiu, ao trote da parelha branca, arrancando-me a uma felicidade onde
o meu coração deitára raizes, agora despedaçadas e gottejando sangue no
silencio do meu peito. O douto Topsius, abarracado sob o seu guardasol
verde, recomeçára, impassivel, a murmurar coisas de velha erudição.
Sabia eu por onde iamos rodando? Por sobre a nobre calçada dos
Sete-Stados, que o primeiro dos Lagidas construira para communicar com a
ilha de Pharos, louvada nos versos de Homero! Nem o escutava, debruçado
para traz, na caleche, agitando o lenço molhado da minha saudade. A dôce
Maricoquinhas, á porta do Hotel, ao lado d'Alpedrinha, linda sob o
chapéo florido de papoulas, fazia esvoaçar tambem o seu lenço amoroso e
acariciador: e um momento estas duas cambraias brancas sacudiram uma
para a outra, no ar quente, o ardor dos nossos corações. Depois eu cahi
sobre a almofada de chita como cae um corpo morto...

Apenas embarcado no _Caimão_, corri a esconder no beliche a minha dôr.
Topsius ainda me agarrou pela manga para me mostrar sitios das grandezas
dos Ptolomeus, o porto do Eunotos, a enseada de marmore onde ancoravam
as galeras de Cleopatra. Fugi; na escada esbarrei, quasi rolei sobre uma
Irmã da Caridade, que subia timidamente com as suas contas na mão.
Rosnei um «desculpe, minha santinha.» E tombando emfim no catre, deixei
escapar o pranto á larga, por cima do embrulho de papel pardo: elle era
tudo que me restava d'essa paixão de incomparavel esplendor, passada na
terra do Egypto.

Dois dias e duas noites o _Caimão_ arquejou e rolou nos vagalhões do mar
de Tyro. Enrodilhado n'um cobertor, sem largar do peito o embrulhinho da
Mary, eu recusava com odio as bolachas que de vez em quando me trazia o
humanissimo Topsius; e desattento ás coisas eruditas que elle
imperturbavelmente me contava d'estas aguas chamadas pelos egypcios o
_Grande Verde_, rebuscava debalde na memoria bocados soltos de uma
oração que ouvira á titi para amansar as vagas iradas.

Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir
sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a
rosmaninho: e achei-me incomprehensivelmente a subir uma collina agreste
de companhia com a Adelia, e com a minha loura Mary--que sahira de
dentro do embrulho, fresca, nitida, sem ter sequer amarrotado as
papoulas do seu chapéo! Depois, por traz d'um penedo, surgiu-nos um
homem nú, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam,
vermelhos como vidros redondos de lanternas; e com o rabo infindavel ia
fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas
seccas. Sem nos cortejar, impudentemente, poz-se a marchar ao nosso
lado. Eu percebi bem que era o Diabo; mas não senti escrupulo, nem
terror. A insaciavel Adelia atirava olhadellas obliquas á potencia dos
seus musculos. Eu dizia-lhe, indignado: «Porca, até te serve o Diabo?»

Assim marchando, chegámos ao alto do monte--onde uma palmeira se
desgrenhava sobre um abysmo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós,
muito longe, o céo desdobrava-se como um vasto estofo amarello: e sobre
esse fundo vivo, côr de gema d'ovo, destacava um negrissimo outeiro,
tendo cravadas no alto tres cruzinhas em linha, finas e d'um só traço. O
Diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: «A do meio é
a de Jesus, filho de José, a quem tambem chamam o Christo; e chegamos a
tempo para saborear a Ascensão.» Com effeito! A cruz do meio, a do
Christo, desairragada do outeiro, como um arbusto que o vento arranca,
começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céo. E logo
de todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustel-a, apressados como as
pombas quando acodem ao grão; uns puxavam-na de cima, tendo-lhe amarrado
ao meio longas cordas de sêda; outros, de baixo, empurravam-na--e nós
viamos o esforço entumecido dos seus braços azulados. Por vezes do
madeiro desprendia-se, como uma cereja muito madura, uma grossa gotta de
sangue: um seraphim recolhia-a nas mãos e ia collocal-a sobre a parte
mais alta do céo, onde ella ficava suspensa e brilhando com o resplendor
d'uma estrella. Um ancião enorme de tunica branca, a que mal
distinguiamos as feições, entre a abundancia da coma revolta e os flocos
de barbas nevadas, commandava, estirado entre nuvens, estas manobras da
Ascensão, n'uma lingua semelhante ao latim e forte como o rolar de cem
carros de guerra. Subitamente tudo desappareceu. E o Diabo, olhando para
mim, pensativo: «_Consummatum est_, amigo! Mais outro Deus! Mais outra
Religião! E esta vai espalhar em terra e céo um inenarravel tedio.»

E logo, levando-me pela collina abaixo, o Diabo rompeu a contar-me
animadamente os Cultos, as Festas, as Religiões que floreciam na sua
mocidade. Toda esta costa do Grande Verde, então, desde Byblos até
Carthago, desde Eleusis até Memphis, estava atulhada de deuses. Uns
deslumbravam pela perfeição da sua belleza, outros pela complicação da
sua ferocidade. Mas todos se misturavam á vida humana, divinisando-a:
viajavam em carros triumphaes, respiravam as flôres, bebiam os vinhos,
defloravam as virgens adormecidas. Por isso eram amados com um amor que
não mais voltará: e os povos, emigrando, podiam abandonar os seus gados
ou esquecer os rios onde tinham bebido--mas levavam carinhosamente os
seus deuses ao collo. «O amigo, perguntou elle, nunca esteve em
Babylonia?» Ahi todas as mulheres, matronas ou donzellas, se vinham um
dia prostituir nos bosques sagrados, em honra da deusa Mylitta. As mais
ricas chegavam em carros marchetados de prata, puxados a búfalos, e
escoltadas d'escravas; as mais pobres traziam uma corda ao pescoço.
Umas, estendendo um tapete na herva, agachavam-se como rezes pacientes;
outras, erguidas, núas, brancas, com a cabeça escondida n'um véo preto,
eram como esplendidos marmores entre os troncos dos alamos. E todas
assim esperavam que qualquer, atirando-lhe uma moeda de prata, lhes
dissesse: «Em nome de Venus!» Seguiam-no então, fosse um principe vindo
de Suza com tiara de perolas, ou o mercador que desce o Euphrates no seu
barco de couro: e toda a noite rugia na escuridão das ramagens o delirio
da Luxuria ritual. Depois o Diabo disse-me as fogueiras humanas de
Molok, os Mysterios da Boa-Deusa em que os lirios se regavam com sangue,
e os ardentes funeraes d'Adonis...

E parando, risonhamente: «o amigo nunca esteve no Egypto?» Eu disse-lhe
que estivera e conhecera lá Maricocas. E o Diabo, cortez: «Não era
Maricocas, era Isis!» Quando a inundação chegava até Memphis, as aguas
cobriam-se de barcas sagradas, Uma alegria heroica, subindo para o sol,
fazia os homens iguaes aos deuses. Osiris, com os seus cornos de boi,
montava Isis; e, entre o estridor das harpas de bronze, ouvia-se por
todo o Nilo o rugido amoroso da Vacca divina.

Depois o Diabo contava-me como brilhavam, dôces e bellas, na Grecia as
religiões da Natureza. Ahi tudo era branco, polido, puro, luminoso e
sereno: uma harmonia sahia das fórmas dos marmores, da constituição das
cidades, da eloquencia das academias e das destrezas dos athletas: por
entre as ilhas da Ionia, fluctuando na molleza do mar mudo como cestas
de flôres, as Nereidas dependuravam-se da borda dos navios, para ouvir
as historias dos viajantes; as Musas, de pé, cantavam pelos valles: e a
belleza de Venus era como uma condensação da belleza da Hellenia.

Mas apparecera este carpinteiro de Galilêa--e logo tudo acabára! A face
humana tornava-se para sempre pallida, cheia de mortificação: uma cruz
escura, esmagando a terra, seccava o esplendor das rosas, tirava o sabor
aos beijos:--e era grata ao deus novo a fealdade das fórmas.

Julgando Lucifer entristecido, eu procurava consolal-o: «Deixe estar,
ainda ha de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição, muito
sangue, muito furor! Não lamente as fogueiras de Molok. Ha de ter
fogueiras de judeus.» E elle, espantado: «Eu? Uns ou outros, que me
importa, Raposo? Elles passam, eu fico!»

Assim, despercebido, a conversar com Satanaz, achei-me no campo de
Sant'Anna. E tendo parado, emquanto elle desenvencilhava os cornos dos
ramos d'uma das arvores--ouvi de repente ao meu lado um berro: «Olha o
Theodorico com o Porco-sujo!» Voltei-me. Era a titi! A titi, livida,
terrivel, erguendo, para me espancar, o seu livro de missa! Coberto de
suor--acordei.

Topsius gritava, á porta do beliche, alegremente:

--Levante-se, Raposo! Estamos á vista da Palestina!

O _Caimão_ parára; e no silencio eu sentia a agua roçando-lhe o costado,
de leve, n'um murmurio de mansa caricia. Porque sonhára eu assim, ao
avisinhar-me de Jerusalem, com os Deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o
Demonio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?...

       *       *       *       *       *

Desenrodilhei-me da manta; atordoado, sujo, sem largar o precioso
embrulho da Mary, subi ao tombadilho, encolhido no meu jaquetão. Um ar
fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de
flôr de laranjeira. O mar emmudecera, todo azul, na frescura da manhã. E
ante meus olhos peccadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e
baixa--com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de
flechas de sol irradiando como os raios d'um resplendor de santo.

--Jaffa! gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. Ahi tem o
D. Raposo a mais antiga cidade da Asia, a velhissima Jeppo, anterior ao
Diluvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e
d'historia... Foi aqui que o borrachissimo Noé construiu a sua Arca!

Cortejei, assombrado.

--Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a apparecer coisas
de religião!

E conservei-me descoberto--porque o _Caimão_, ao ancorar diante da Terra
Santa, tomára o recolhimento d'uma capella, cheia de piedosas occupações
e d'unção. Um lazarista, de longa sotaina, passeava, com os olhos
baixos, meditando o seu Breviario. Sumidas dentro dos capuzes negros de
lustrina, duas Religiosas corriam os dedos pallidos pelas contas dos
seus rosarios. Ao longo da amurada humida, peregrinos da Abyssinia,
hirsutos padres gregos de Alexandria, pasmavam para o casario de Jaffa,
aureolado de sol, como para a illuminação d'um sacrario. E a sineta á
pôpa tilintava, na brisa salgada, com uma doçura devota de toque de
missa...

Mas, vendo uma barcaça escura remar para o _Caimão_,--baixei depressa ao
beliche a pôr o meu capacete de cortiça, calçar luvas pretas, para pisar
decorosamente a terra do meu Salvador. Ao voltar, bem escovado, bem
perfumado, achei a lancha atulhada. E descia, com alvoroço, atraz d'um
franciscano barbudo--quando o amado embrulhinho da Mary escapou dos meus
braços carinhosos, rolou em saltos pela escada como uma pella, raspou a
borda do bote... Ia sumir-se nas aguas amargas! Dei um berro! Uma das
Religiosas apanhou-o, ligeira e cheia de misericordia.

--Agradecido, minha senhora! gritei, enfiado. É um pacotesinho de roupa!
Seja pelo sagrado amor de Maria!

Ella refugiou-se modestamente na sombra do seu capuz; e como eu me
accommodára, mais longe, entre Topsius e o franciscano barbudo que
cheirava a alho--a santa creatura guardou o embrulho sobre o seu puro
regaço, deitou-lhe mesmo por cima as contas do seu rosario.

O arraes, empunhando o leme, bradou: «Allah é grande, larga!» Os arabes
remaram cantando. O sol surgiu por traz de Jaffa. E eu, encostado ao meu
guardachuva, contemplava a pudica religiosa que assim levava, ao collo,
para a terra de castidade, a camisinha da Mary.

Era nova: e entre o bioco triste de lustrina preta parecia de marfim o
seu rosto oval, onde as pestanas longas punham a sombra d'uma dolente
melancolia. Os beiços tinham perdido toda a côr e todo o calor, para
sempre inuteis, destinados sómente a beijar os pés arroxeados do cadaver
d'um Deus. Comparada com Mary, rosa d'York aberta e sensual, perfumando
Alexandria--esta pendia como um lirio ainda fechado e já murcho na
humidade d'uma capella. Ia certamente para algum hospicio da Terra
Santa. A vida para ella devia ser uma successão de chagas a cobrir de
fios e de lençoes a estender por cima de faces mortas. E era decerto o
medo do Senhor que a tornava assim tão pallida.

--Bem tola! murmurei eu.

Pobre e esteril creatura! Percebeu ella por acaso o que continha aquelle
embrulho pardo? Sentiu ella subir de lá, e espalhar-se no escuro do seu
capuz, um perfume estranho e enlanguecedor de baunilha e de pelle
amorosa? A quentura do leito revolto, que ficára nas rendas da camisa,
atravessou por acaso o papel e veio aquecer-lhe brandamente os joelhos?
Quem sabe! Durante um momento pareceu-me que uma gota de sangue novo lhe
roseou a face desmaiada, e que debaixo do habito, onde brilhava uma
cruz, o seu seio arfou, perturbado: mesmo julguei vêr lampejar, por
entre as suas pestanas, um raio fugitivo e assustado procurando as
minhas barbas cerradas e pretas... Mas foi só um relance. Outra vez, sob
o capuz, o rosto recahiu na sua frialdade de marmore santo; e sobre o
seio submettido a cruz pesou, ciumenta e de ferro. Ao seu lado, a outra
religiosa, rochonchuda e de lunetas, sorria para o verde mar, sorria
para o sabio Topsius--com um sorriso claro que sahia da paz do seu
coração e lhe punha uma covinha no queixo.

Apenas saltámos na arêa da Palestina, corri a agradecer, de capacete na
mão, garboso e palaciano.

--Minha irmã, estou muito penhorado... Grande desgosto se se perdesse o
pacotesinho!... É de minha tia, uma encommenda para Jerusalem... Lá lhe
contarei... A titi é muito respeitadora de coisas santas, pella-se pela
caridade...

Muda, no refolho do seu capuz, ella estendeu-me o embrulhinho com a
ponta dos dedos, debeis e mais transparentes que os d'uma Senhora da
Agonia. E os dois habitos negros sumiram-se, entre muros faiscantes de
cal nova, n'uma viella em escadas onde apodrecia o cadaver d'um cão sob
o vôo dos moscardos. Eu murmurei ainda: «Bem tola!»

Quando me voltei, Topsius, á sombra do seu guardasol, conversava com o
homem prestante--que foi nosso Guia através das terras da Escriptura.
Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento;
usava jaqueta de velludilho e botas brancas de montar; as coronhas
prateadas de duas pistolas, emergindo d'uma facha de lã negra,
armavam-lhe heroicamente o peito forte: e trazia amarrado na cabeça, com
as pontas e as franjas atiradas para traz, um lenço rutilante de sêda
amarella. O seu nome era Paulo Potte, a sua patria o Montenegro: e toda
a costa da Syria o conhecia pelo _alegre Potte_. Jesus, que alegre
matalote! A alegria faiscava-lhe na pupilla azul-clara; a alegria
cantava-lhe nos dentes incomparaveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos
buliçosas; a alegria resoava-lhe no bater dos tacões. Desde Ascalon até
aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares d'Engadi--elle
era o _alegre Potte_. Estendeu-me rasgadamente a bolsa de tabaco
perfumado. Topsius maravilhou-se do seu saber biblico. Eu, com palmadas
pelo ventre, gritei-lhe logo--_meu gajo_! E, depois de valentes apertos
de mão, fomos para o _Hotel de Josaphat_ firmar o nosso contracto,
bebendo vasta cerveja.

O alegrissimo Potte depressa organisou a nossa caravana para a cidade do
Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro arabe, embrulhado n'um
farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem
cessar, procurava o negro afago do seu olhar de velludo; e, por luxo
oriental, como escolta, seguia-nos um beduino, velho, catarrhoso, com o
albornós de lã de camêlo listrado de cinzento, e uma forte lança
ferrugenta toda enfeitada de borlas.

Guardei n'um alforge, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha
da Mary: depois, já na sella, alongados os lóros do pernudo Topsius, o
festivo Potte, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e
de Ricardo-Coração-de-Leão--_Avante, a Jerusalem, Deus o quer_! E a
trote, com os charutos em brasa, sahimos de Jaffa pela porta do
Mercado--á hora em que suavemente tocava a vesperas no Hospicio dos
Padres Latinos.

Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins,
hortas, pomares, laranjaes, palmeiraes, terra de Promissão,
resplandecente e amavel. Por entre as sebes de myrtos perdia-se o
fugidio cantar das aguas. O ar todo, d'uma doçura ineffavel, como para
n'elle respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume
de jasmins e limoeiros. O grave e pacifico chiar das noras ia
adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romanzeiras em flôr. Alta e
serena no azul, voava uma grande aguia.

Consolados, parámos n'uma fonte de marmore vermelho e negro, abrigada á
sombra de sycomoros onde arrulhavam rôlas: ao lado erguia-se uma tenda,
com um tapete na relva coberto d'uvas e de malgas de leite; e o velho de
barbas brancas que a occupava saudou-nos em nome de Allah, com a nobreza
de um patriarcha. A cerveja tinha-me feito sêde: foi uma rapariga bella
como a antiga Rachel, que me deu a beber do seu cantaro de fórma
biblica, sorrindo, com o seio descoberto, duas longas argolas d'ouro
batendo-lhe a face morena--e um cordeirinho branco e familiar preso da
ponta da tunica.

A tarde descia, muda e dourada, quando penetrámos na planicie de Saron,
que a Biblia outr'ora encheu de rosas. No silencio tilintavam os
chocalhos d'um rebanho de cabras negras, que um arabe ia pastoreando, nú
como um S. João. Lá ao fundo, os montes sinistros da Judêa, tocados pelo
sol obliquo que se afundava sobre o mar de Tyro, pareciam ainda
formosos, azues e cheios de doçura de longe, como as illusões do
peccado. Depois tudo escureceu. Duas estrellas de um resplendor infinito
appareceram:--e começaram a caminhar adiante de nós para os lados de
Jerusalem.

       *       *       *       *       *

O nosso quarto, no _Hotel do Mediterraneo_, em Jerusalem, com a sua
abobada caiada de branco, o chão de tijolo, semelhava uma rigida cella
de rude mosteiro. Mas, fronteiro á janella, um tabique delgado,
revestido de papel de ramagens azues, dividia-o d'outro quarto, onde nós
sentiamos uma voz fresca cantarolar a _Ballada do rei de Thule_: e ahi,
exhalando conforto e civilisação, brilhava um guarda-roupa de mogno, que
eu abri, como se abre um relicario, para encerrar o meu embrulhinho
bemdito.

Os dois leitosinhos de ferro desappareciam sob as pregas virginaes dos
cortinados de cambraia branca; e ao meio havia uma mesa de pinho, onde
Topsius estudava o mappa da Palestina, emquanto eu, de chinelos,
passeava, limando as unhas. Era a devota sexta-feira em que a
christandade commemora, enternecida, os SS. Martyres d'Evora. Nós
tinhamos chegado n'essa tarde, sob uma chuva triste e miuda, á cidade do
Senhor: e de vez em quando Topsius, erguendo os oculos de cima das
estradas de Galilêa, contemplava-me de braços cruzados e murmurava com
amizade:

--Ora está o amigo Raposo em Jerusalem!

Eu, parando ao espelho, dava um olhar ás barbas crescidas, á face
crestada, e murmurava tambem, agradado:

--É verdade, cá está o bello Raposo em Jerusalem!

E voltava, insaciado, a admirar através dos vidros baços a divina Sião.
Sob a chuva melancolica erguiam-se defronte as paredes brancas d'um
convento silencioso, com as persianas verdes corridas, e duas enormes
goteiras de zinco a cada esquina, uma escoando-se ruidosamente sobre uma
viella deserta--a outra cahindo no chão molle d'uma horta plantada de
couves, onde orneava um jumento. D'esse lado, era uma vastidão
infindavel de telhados em terraço, lugubres e côr de lodo, com uma
cupulasinha de tijolo em fórma de forno, e longas varas para seccar
farrapos; e quasi todos decrepitos, desmantelados, miserrimos, pareciam
desfazer-se na agua lenta que os alagava. Do outro elevava-se uma
encosta atulhada de casebres sordidos, com verduras de quintal,
esfumadas, arripiadas na nevoa humida: por entre elles, torcia-se uma
viella esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam frades
de alpercatas sob os seus guardachuvas, sombrios judeus de melenas
cahidas, ou algum vagoroso beduino arregaçando o seu albornós... Por
cima pesava o céo pardacento. E assim da minha janella me apparecia a
velha Sião, a bem-edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e
formosa entre as cidades.

--Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é peor que
Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um theatro! nada!
Olha que cidade para viver Nosso Senhor!

--Sim! No tempo d'elle era mais divertida, resmungou o meu sapiente
amigo.

E logo me propôz que no domingo partissemos para as margens do
Jordão--onde o reclamavam os seus estudos sobre os Herodes. Ahi eu
poderia ter deleites campestres--banhando-me nas aguas santas, atirando
ás perdizes, entre as palmeiras de Jerichó. Accedi com gosto. E descemos
a comer, chamados por uma sineta de convento, funeraria e badalando na
sombra do corredor.

O refeitorio era tambem abobadado, com uma esteira d'esparto sobre o
chão de ladrilho: e estavamos sós, o erudito investigador dos Herodes e
eu, na mesa tristonha, adornada com flôres de papel em vasinhos
rachados. Remexendo o macarrão de uma sopa dissaborida, murmurei,
succumbido: «Jesus, Topsius, que grande massada!» Mas uma porta de
vidraça ao fundo abriu-se de leve; e logo exclamei, arrebatado:
«Caramba, Topsius, que grande mulher!»

Grande, em verdade! Solida e saudavel como eu; branca, da alvura do
linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de
cabello ondeado e castanho; presa n'um vestido de sarja azul que os
seios rijos quasi faziam estalar--ella entrou, derramando um fresco
cheiro de sabão Windsor e d'agua de Colonia, e logo alumiou todo o
refeitorio com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo
Topsius comparou-a á fortissima deusa Cybele.

Cybele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo
ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, accommodou-se um
Hercules tranquillo, calvo, de espessas barbas grisalhas--que, no mero
gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a omnipotencia do dinheiro e o
envelhecido habito de mandar. Por um _yes_ que ella murmurou comprehendi
que era da terra de Maricocas. E lembrava-me a ingleza do senhor barão.

Ella collocára junto ao prato um livro aberto que me pareceu ser de
versos: o barbaças, mastigando com o vagar magestoso d'um leão, folheava
tambem, em silencio o seu _Guia do Oriente_. E eu esquecia o meu
carneiro guisado, para contemplar devoradoramente cada uma das suas
perfeições. De vez em quando ella erguia a franja cerrada das suas
pestanas: eu esperava com ancia o dom d'esse claro e suave olhar; mas
ella derramava-o pelos muros caiados, pelas flôres de papel, e deixava-o
recahir, desinteressado e frio, sobre as paginas do seu poema.

Depois do café beijou a mão cabelluda do barbaças; e desappareceu pela
porta envidraçada, levando comsigo o aroma, a luz, e a alegria de
Jerusalem. O Hercules accendeu morosamente o cachimbo; disse ao moço
«que lhe mandasse o Ibrahim, o guia»; levantou-se, pesado e membrudo.
Junto á porta derrubou o guardachuva de Topsius, do venerabilissimo
Topsius, gloria da Allemanha, membro do _Instituto imperial de
Excavações historicas_; e passou--sem o erguer, nem sequer baixar o olho
altivo.

--Irra, bruto! rosnei, a borbulhar de furor.

O meu douto amigo, com a sua cobardia social d'allemão disciplinado,
apanhou o seu guardachuva e escovou-lhe o paninho, murmurando, já
tremulo, que talvez «o barbaças fosse um duque...»

--Qual duque! Para mim não ha duques! Eu sou Raposo, dos Raposos do
Alemtejo... Rachava-o!

Mas a tarde descia--e deviamos fazer a nossa visita reverente ao
sepulchro do nosso Deus. Corri ao quarto, a ornar-me com o meu chapéo
alto, como promettera á titi; e penetrava no corredor quando vi Cybele
abrir a porta, _junto da nossa porta_, e sahir envolta n'uma capa
cinzenta, com uma gorra onde alvejavam duas pennas de gaivota. O coração
bateu-me no delirio de uma grande esperança. Assim, era ella que
cantarolava a _Ballada do rei de Thule_! Assim, os nossos leitos estavam
apenas separados pelo fino, fragil tabique coberto de ramarias azues!
Nem procurei as luvas pretas: desci n'um alvoroço, certo de que a ia
encontrar no sepulchro de Jesus: e planeava já verrumar no tabique um
buraco, por onde o meu olho namorado pudesse ir saciar-se nas bellezas
do seu desalinho.

Ainda chovia, lugubremente. Apenas começámos a atolar-nos no enxurro da
Via-Dolorosa, entalada entre muros côr de lodo--chamei Potte para
debaixo do meu guardachuva, perguntei-lhe se vira no hotel a minha forte
e sardenta Cybele. O jucundo Potte já a admirára. E pelo Ibrahim, seu
compadre dilecto, sabia que o barbaças era um escossez, negociante de
cortumes...

--Ahi está, Topsius! gritei eu. Negociante de cortumes... Qual duque! É
uma besta! Eu rachava-o! Em coisas de dignidade sou uma fera. Rachava-o!

A filha, a das bastas tranças, dizia Potte, tinha um nome radiante de
pedra preciosa: chamava-se _Ruby_, rubim. Amava os cavallos, era
arrojada; na Alta Galilêa, d'onde vinham, matára uma aguia negra...

--Ora aqui têm os cavalheiros a casa de Pilatos...

--Deixa lá a casa de Pilatos, homem! Importa-me bem com Pilatos! E então
que diz mais o Ibrahim? Desembucha, Potte!

Alli a Via-Dolorosa estreitava-se, abobadada, como um corredor de
Catacumba. Dois mendigos chaguentos roíam cascas de melões, assapados na
lama e grunhindo. Um cão uivava. E o risonho Potte contava-me que o
Ibrahim vira muitas vezes Miss Ruby enlevada na belleza dos homens da
Syria: de noite, á porta da tenda, emquanto o papá cervejava, ella dizia
versos baixinho, olhando para a palpitação das estrellas. Eu pensava:
«Caramba! tenho mulher!»

--Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulchro...

Fechei o meu guardachuva. Ao fundo de um adro, de lages descolladas,
erguia-se a fachada d'uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas
portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como superflua; a
outra timidamente, medrosamente entreaberta. E aos flancos debeis d'este
templo soturno manchado de tons de ruina, collavam-se duas construcções
desmanteladas, do rito latino e do rito grego--como filhas apavoradas
que a Morte alcançou, e que se refugiam ao seio da mãi, meia morta
tambem e já fria.

Calcei então as minhas luvas pretas. E immediatamente, um bando voraz
d'homens sordidos envolveu-nos com alarido, offerecendo reliquias,
rosarios, cruzes, escapularios, bocadinhos de taboas aplainadas por S.
José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de agua do Jordão, cirios,
agnus-dei, lithographias da Paixão, flôres de papel feitas em Nazareth,
pedras benzidas, caroços d'azeitona do Monte Olivete, e tunicas «como
usava a Virgem Maria!» E á porta do Sepulchro de Christo, onde a titi me
recommendára que entrasse de rastos, gemendo e rezando a corôa--tive de
esmurrar um malandrão de barbas de ermita, que se dependurára da minha
rabona, faminto, rabido, ganindo que lhe comprassemos boquilhas feitas
de um pedaço da arca de Noé!

--Irra, caramba, larga-me, animal!

E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guardachuva a pingar,
dentro do santuario sublime onde a Christandade guarda o tumulo do seu
Christo. Mas logo estaquei, surprehendido, sentindo um delicioso e grato
aroma de tabaco da Syria. N'um amplo estrado, afofado em divan, com
tapetes da Caramania e velhas almofadas de sêda, reclinavam-se tres
turcos, barbudos e graves, fumando longos cachimbos de cerejeira. Tinham
dependurado na parede as suas armas. O chão estava negro dos seus
escarros. E, diante, um servo em farrapos esperava, com uma taça
fumegante de café, na palma de cada mão.

Pensei que o Catholicismo, previdente, estabelecera á porta do lugar
divino uma _Loja de bebidas e aguas-ardentes_, para conforto dos seus
romeiros. Disse baixo a Potte:

--Grande idéa! Parece-me que tambem vou tomar um cafésinho!

Mas logo o festivo Potte me explicou que esses homens sérios, de
cachimbo, eram soldados musulmanos policiando os altares christãos, para
impedir que em torno ao mausoleu de Jesus se dilacerem por superstição,
por fanatismo, por inveja de alfaias, os Sacerdocios rivaes que alli
celebram os seus Ritos rivaes--Catholicos como o padre Pinheiro, Gregos
orthodoxos para quem a cruz tem quatro braços, Abissynios e Armenios,
Coptas que descendem dos que outr'ora em Memphis adoravam o boi Apis,
Nestorianos que veem da Chaldêa, Georgianos que veem do mar Caspio,
Maronitas que veem do Libano,--todos christãos, todos intolerantes,
todos ferozes!... Então saudei com gratidão esses soldados de Mahomet
que, para manter o recolhimento piedoso em torno do Christo Morto,
serenos e armados velam á porta, fumando.

Logo á entrada parámos diante d'uma lapide quadrada, incrustada nas
lages escuras, tão polida e reluzindo com um tão dôce brilho de nacar
que parecia a agua quieta d'um tanque onde se reflectiam as luzes das
lampadas. Potte puxou-me a manga, lembrou-me que era costume beijar
aquelle pedaço de rocha, santa entre todas, que outr'ora, no jardim de
José d'Arimathêa...

--Bem sei, bem sei... Beijo, Topsius?

--Vá beijando sempre, disse-me o prudente historiographo dos Herodes.
Não se lhe péga nada; e agrada á senhora sua tia.

Não beijei. Em fila e calados, penetrámos n'uma vasta cupula, tão
esfumada no crepusculo que o circulo de frestas redondas na cimalha
brilhava apenas, pallidamente, como um aro de perolas em torno de uma
tiara: as columnas que a sustentavam, finas e juntas como as lanças
d'uma grade, riscavam a sombra em redor--cada uma picada pela mancha
vermelha e mortal d'uma lampada de bronze. Ao centro do lagedo sonoro
elevava-se, espelhado e branco, um Mausoleu de marmore--com lavores e
com florões: um velho, pano de damasco cobria-o como um toldo, recamado
de bordados d'ouro esvaído: e duas alas de tocheiros faziam-lhe uma
avenida de lumes funerarios até á porta, estreita como uma fenda, tapada
por um trapo côr de sangue. Um padre armenio que desapparecia sob o seu
amplo manto negro, sob o capuz descido, incensava-o, dormente e
mudamente.

Potte puxou-me outra vez pela manga:

--O tumulo!

Oh minha alma piedosa! Oh titi! Ahi estava pois, ao alcance dos meus
labios, o tumulo do meu Senhor!--E immediatamente rompi como um rafeiro,
por entre a turba ruidosa de frades e peregrinos, a buscar um rosto
gordinho e sardento e uma gorra com pennas de gaivota! Longamente, errei
estonteado... Ora esbarrava n'um franciscano cingido na sua corda
d'esparto; ora me arredava diante d'um padre copta, deslisando como uma
sombra tenue, precedido por serventes que tangiam as pandeiretas
sagradas do tempo d'Osiris. Aqui topava n'um montão de roupagens
brancas, cahido nas lages como um fardo, d'onde se escapavam gemidos de
contrição; adiante tropeçava n'um negro, todo nú, estirado ao pé d'uma
columna, dormindo placidamente. Por vezes o clamor sacro d'um orgão
resoava, rolava pelos marmores da nave, morria com um susurro de vaga
espraiada: e logo mais longe um canto armenio, tremulo e ancioso, batia
os muros austeros como a palpitação das azas d'uma ave presa que quer
fugir para a luz. Junto d'um altar apartei dois gordos sacristães, um
grego, outro latino, que se tratavam furiosamente de _birbantes_,
esbrazeados, cheirando a cebola: e fui d'encontro a um bando de romeiros
russos de grenhas hirsutas, vindos decerto do Caspio, com os pés
doloridos embrulhados em trapos, que não ousavam mover-se, enleados de
terror divino, torcendo o barrete de feltro entre as mãos, d'onde lhes
pendiam grossos rosarios de vidro. Crianças, em farrapos, brincavam na
escuridão das arcarias; outras pediam esmola. O aroma do incenso
suffocava; e padres de cultos rivaes puxavam-me pela rabona para me
mostrarem reliquias rivaes, heroicas ou divinas--uns as esporas de
Godofredo, outros um pedaço da Cana Verde.

Atordoado, enfileirei-me n'uma procissão penitente--onde eu julgára
entrevêr, brancas, altivas, entre véos pretos d'arrependimento, as duas
pennas de gaivota. Uma carmelita, á frente, resmungava a ladainha,
detendo-nos a cada passo, arrebanhados n'um assombro devoto, á porta de
capellas cavernosas, dedicadas á Paixão--a do _Improperio_ onde o Senhor
foi flagellado, a da _Tunica_ onde o Senhor foi despido. Depois subimos,
de tochas na mão, uma escadaria tenebrosa, escavada na rocha...--E
subitamente todo o tropel devoto se atirou de rojo, ululando, carpindo,
gemendo, flagellando os peitos, clamando pelo Senhor, lugubre e
delirante. Estavamos sobre a Pedra do Calvario.

Em torno a capella que a abriga resplandecia com um luxo sensual e
pagão. No tecto azul-ferrete brilhavam soes de prata, signos do Zodiaco,
estrellas, azas d'anjos, flôres de purpura: e, d'entre este fausto
sideral, pendiam de correntes de perolas os velhos symbolos da
Fecundidade, os ovos de avestruz, ovos sacros d'Astarté e de Baccho
d'ouro. Sobre o altar elevava-se uma cruz vermelha com um Christo tosco
pintado a ouro--que parecia vibrar, viver através do fulgor diffuso dos
mólhos de lumes, da faiscação das alfaias, do fumo dos aromaticos
ardendo em taças de bronze. Globos espelhados, pousando sobre peanhas
d'ebano, reflectiam as joias dos retabulos, a refulgencia das paredes
revestidas de jaspe, de nacar e de agatha. E no chão, em meio d'este
clarão precioso de pedraria e luz, emergindo d'entre as lages de marmore
branco--destacava um bocado de rocha bruta e brava com uma fenda
alargada e polida por longos seculos de beijos e de afagos beatos. Um
archidiacono grego, de barbas esqualidas, gritou: «N'esta rocha foi
cravada a cruz! A cruz! A cruz! Miserere! Kirie Eleison! Christo!
Christo!» As rezas precipitaram-se, mais ardentes, entre soluços. Um
cantico dolente balançava-se, ao ranger dos incensadores. Kirie Eleison!
Kirie Eleison! E os diaconos perpassavam rapidamente, sôfregamente, com
vastos saccos de velludo, onde tilintavam, se afundavam, se sumiam as
offrendas dos simples.

Fugi, aturdido e confuso. O sabio historiador dos Herodes passeava no
adro, sob o seu guardachuva, respirando o ar humido. De novo nos
accommetteu o bando esfaimado dos vendilhões de reliquias. Repelli-os
rudemente: e sahi do Santo Lugar como entrára--em peccado e praguejando.

No hotel, Topsius recolheu logo ao quarto a registrar as suas impressões
do Sepulchro de Jesus; eu fiquei no pateo cervejando e cachimbando com o
aprazivel Potte. Quando subi, tarde, o meu esclarecido amigo já
resonava, com a vela accesa--e com um livro aberto sobre o leito, um
livro meu, trazido de Lisboa para me recrear no paiz do Evangelho, o
_Homem dos tres calções_. Descalçando os botins, sujos da lama veneravel
da Via-Dolorosa--eu pensava na minha Cybele. Em que sacratissimas
ruinas, sob que arvores divinisadas por terem dado sombra ao Senhor,
passára ella essa tarde nevoenta de Jerusalem? Fôra ao valle do Cedron?
Fôra ao branco tumulo de Rachel?...

Suspirei, amoroso e moído: e abria os lençoes bocejando--quando
distinctamente, através do tabique fino, senti um ruido d'agua despejada
n'uma banheira. Escutei, alvoroçado: e logo n'esse silencio negro e
magoado que sempre envolve Jerusalem, me chegou, perceptivel, o som leve
d'uma esponja arremessada na agua. Corri, collei a face contra o papel
de ramagens azues. Passos brandos e nús pisavam a esteira que recobria o
ladrilho de tijolo; e a agua rumorejou, como agitada por um dôce braço
despido que lhe experimentava o calor. Então, abrazado, fui ouvindo
todos os rumores intimos de um longo, lento, languido banho: o espremer
da esponja; o fôfo esfregar da mão cheia de espuma de sabão; o suspiro
lasso e consolado do corpo que se estira sob a caricia da agua tepida,
tocada d'uma gotta de perfume... A testa, tumida de sangue, latejava-me:
e percorria desesperadamente o tabique, procurando um buraco, uma fenda.
Tentei verrumal-o com a tesoura; as pontas finas quebraram-se na
espessura da caliça... Outra vez a agua cantou, escoando da esponja:--e
eu, tremendo todo, julgava vêr as gottas vagarosas a escorrer entre o
rego d'esses seios duros e brancos que faziam estalar o vestido de
sarja...

Não resisti: descalço, em ceroulas, sahi ao corredor adormecido; e
cravei á fechadura, da sua porta um olho tão esbugalhado, tão
ardente--que quasi receava feril-a com a devorante chamma do seu raio
sanguineo... Enxerguei n'um circulo de claridade uma toalha cahida na
esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E
assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ella
atravessasse, núa e esplendida, n'esse disco escasso de luz--quando
senti de repente, por traz, uma porta ranger, um clarão banhar a parede.
Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu,
miserrimo Raposo, não podia escapar. D'um lado estava elle, enorme. Do
outro o topo do corredor, maciço.

Vagarosamente, calado, com methodo, o Hercules pousou a vela no chão,
ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu
rugi: «bruto!» Elle ciciou: «silencio!» E outra vez, tendo-me alli
acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou
tremendamente quadris, nadegas, canellas, a minha carne toda, bem
cuidada e preciosa! Depois, tranquillamente, apanhou o seu castiçal.
Então eu, livido, em ceroulas, disse-lhe com immensa dignidade:

--Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do tumulo do
Senhor, e eu não querer dar escandalos por causa de minha tia... Mas se
estivessemos em Lisboa, fóra de portas, n'um sitio que eu cá sei,
comia-lhe os figados! Nem você sabe de que se livrou. Vá com esta,
comia-lhe os figados!

E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções
d'arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.

Ao outro dia cedo o profundo Topsius foi peregrinar ao monte das
Oliveiras, á fonte clara de Siloé. Eu, dorido, não podendo montar a
cavallo, fiquei no sofá de riscadinho com o _Homem dos tres calções_. E
até para evitar o affrontoso barbaças não desci ao refeitorio,
pretextando tristeza e langor. Mas ao mergulhar o sol no mar de
Tyro--estava restabelecido e vivaz: Potte preparára para essa noite uma
festividade sensual em casa da Fatmé, matrona bem acolhedoura, que tinha
no Bairro dos Armenios um dôce pombal de pombas: e nós iamos lá
contemplar a gloriosa bailadeira da Palestina, a _Flôr de Jerichó_, a
saracotear essa dansa da _Abelha_, que esbrazêa os mais frios e deprava
os mais puros...

A recatada portinha da Fatmé, ornada d'um pé de vinha secca, abria-se ao
canto d'um muro negro junto á Torre de David. Fatmé esperava-nos,
magestosa e obesa, envolta em véos brancos, com fios de coraes entre as
tranças, os braços nús--tendo cada um a cicatriz escura de um bubão de
peste. Tomou-me submissamente a mão, levou-a á testa oleosa, levou-a aos
labios empastados d'escarlate, e conduziu-me em ceremonia defronte d'uma
cortina preta, franjada d'ouro como o pano d'um esquife. E eu estremeci,
ao penetrar emfim nos segredos deslumbradores d'um serralho mudo e
cheirando a rosa.

Era uma sala caiada de fresco, com sanefas de algodão vermelho encimando
a gelosia; e ao longo das paredes corria um divan amassado, revestido de
sêda amarella, com remendos de sêda mais clara. N'um bocado de tapete da
Persia pousava um brazeiro de latão, apagado, sob o montão de cinzas;
ahi ficára esquecido um pantufo de velludo, estrellado de lentejoulas.
Do tecto de madeira alvadia, onde se alastrava uma nodoa de humidade,
pendia de duas correntes enfeitadas de borlas um candieiro de petroline.
Um bandolim dormia a um canto, entre almofadas. No ar morno errava um
cheiro adocicado e molle a mofo e a benjoim. Pelos ladrilhos, por baixo
dos poaiaes da gelosia, corriam carochas.

Sentei-me sisudamente ao lado do historiador dos Herodes. Uma negra de
Dongola, encamisada de escarlate, com braceletes de prata a tilintar nos
braços, veio offerecer-nos um café aromatico: e quasi immediatamente
Topsius appareceu, descorçoado, dizendo que não podiamos saborear a
famosa dansa da _Abelha_! A _Rosa de Jerichó_ fôra bailar diante de um
principe de Allemanha, chegado n'essa manhã a Sião, a adorar o tumulo do
Senhor. E Fatmé apertava com humildade o coração, invocava Allah,
dizia-se nossa escrava! Mas era uma fatalidade! A _Rosa de Jerichó_ fôra
para o principe louro que viera, com cavallos e com plumas, do paiz dos
Germanos!...

Eu, despeitado, observei que não era um principe: mas minha tia tinha
luzidas riquezas: os Raposos primavam pelo sangue no fidalgo Alemtejo.
Se _Flôr de Jerichó_ estava ajustada para regosijar meus olhos
catholicos, era uma desconsideração tel-a cedido ao romeiro couraçado
que viera da hereje Allemanha...

O erudito Topsius resmungou, alçando o bico com petulancia, que a
Allemanha era a mãi espiritual dos povos...

--O brilho que sae do capacete allemão, D. Raposo, é a luz que guia a
humanidade!

--Sebo para o capacete! A mim ninguem me guia! Eu sou Raposo, dos
Raposos do Alemtejo!... Ninguem me guia senão Nosso Senhor Jesus
Christo... E em Portugal ha grandes homens! Ha Affonso Henriques, ha o
Herculano... Sebo!

Ergui-me, medonho. O sapientissimo Topsius tremia, encolhido. Potte
acudiu:

--Paz, christãos e amigos, paz!

Topsius e eu reencruzámo-nos logo no divan--tendo apertado as mãos,
galhardamente e com honra.

Fatmé, no emtanto, jurava que Allah era grande e que ella era a nossa
escrava. E, se nós a quizessemos mimosear com sete piastras d'ouro, ella
em compensação da _Rosa de Jerichó_ offerecia-nos uma joia inapreciavel,
uma Circassiana, mais branca que a lua cheia, mais airosa que os lirios
que nascem em Galgalá.

--Venha a Circassiana! gritei, excitado. Caramba, eu vim aos Santos
Lugares para me refocilar... Venha a Circassiana! Larga as piastras,
Potte! Irra! Quero regalar a carne!

Fatmé sahiu, recuando: o festivo Potte reclinou-se entre nós, abrindo a
sua bolsa perfumada de tabaco de Alepo. Então, uma portinha branca,
sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve: e uma figura entrou,
velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de sêda carmesim tufavam
com languidez, desde a sua cinta ondeante até aos tornozêlos, onde
franziam, fixos por uma liga d'ouro; os seus pésinhos mal pousavam,
alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarello; e através do véo de
gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços--brilhavam
recamos d'ouro, scentelhas de joias, e as duas estrellas negras dos seus
olhos. Espreguicei-me, tumido de desejo.

Por traz d'ella Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véo devagar,
devagar--e d'entre a nuvem de gaze surgiu um carão côr de gesso,
escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que
negrejavam no langor nescio do sorriso... Potte pulou do divan,
injuriando Fatmé: ella gritava por Allah, batendo nos seios, que soavam
mollemente como odres mal cheios.

E desappareceram, assanhados, levados n'uma rajada de ira. A
Circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso putrido, veio
estender-nos a mão suja, a pedir «presentinhos» n'um tom rouco
d'aguardente. Repelli-a com nojo. Ella coçou um braço, depois a ilharga;
apanhou tranquillamente o seu véo, e sahiu arrastando as chinelas.

--Oh Topsius! rosnei eu. Isto parece-me uma grande infamia!

O sabio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ella é sempre
enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos
humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma
entristece...

--Qual alma! não ha alma! O que ha é um eminentissimo desaforo! Na rua
do Arco do Bandeira, esta Fatmé tinha já dois murros na bochecha...
Irra!

Sentia-me feroz, com desejos de escavacar o bandolim... Mas Potte
reappareceu, cofiando os bigodões, dizendo que por mais nove piastras
d'ouro Fatmé consentia em mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem
das margens do Nilo, da alta Nubia, bella como a noite mais bella do
Oriente. E elle vira-a, afiançava-a, valia o tributo d'uma fertil
provincia.

Fragil e liberal, cedi. Uma a uma, as nove piastras d'ouro tiniram na
mão gordufa de Fatmé.

De novo a porta caiada rangeu, ficou, cerrada--e, sobre o tom alvaiado,
destacou, na sua nudez côr de bronze, uma esplendida femea, feita como
uma Venus. Durante um momento parou, muda, assustada pela luz o pelos
homens, roçando os joelhos lentamente. Uma tanga branca cobria-lhe os
flancos possantes e ageis: os cabellos hirsutos, lustrosos d'oleo, com
sequins d'ouro entreleçados, cahiam-lhe sobre o dorso, como uma juba
selvagem; um fio solto de contas de vidro azul enroscava-se-lhe em torno
do pescoço e vinha escorregar por entre o rego dos seios rijos,
perfeitos e de ebano. De repente soltou convulsamente, repicando a
lingua, uma ululação desolada: _Lu_! _lu_! _lu_! _lu_! _lu_! Atirou-se
de bruços para o divan: e estirada, na attitude d'uma Esphinge, ficou
dardejando sobre nós, séria e immovel, os seus grandes olhos tenebrosos.

--Hein? dizia Potte, acotovelando-me. Veja-lhe o corpo... Olhe, os
braços! Olhe a espinha como arqueia! É uma panthera!

E Fatmé, de olhos em alvo, chilreava beijos na ponta dos
dedos--exprimindo os deleites transcendentes que devia dar o amor
d'aquella Nubia... Certo, pela persistencia do seu olhar, que as minhas
barbas fortes a tinham captivado, desenrosquei-me do divan, fui-me
acercando, devagar, como para uma preza certa. Os seus olhos
alargavam-se, inquietos e faiscantes. Gentilmente, chamando-lhe «minha
lindinha», acariciei-lhe o hombro frio: e logo ao contacto da minha
pelle branca a Nubia recuou, arripiada, com um grito abafado de gazella
ferida. Não gostei. Mas quiz ser amavel. Disse-lhe paternalmente:

--Ah! se tu conhecesses a minha patria!... E olha que sou capaz de te
levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dáfundo, cêa-se no Silva... Isto
aqui é uma choldra! E as raparigas como tu são bem tratadas, dá-se-lhes
consideração, os jornaes fallam d'ellas, casam com proprietarios...

Murmurava-lhe ainda outras coisas profundas e dôces. Ella não
comprehendia o meu fallar: e nos seus olhos esgazeados fluctuava a longa
saudade da sua aldêa da Nubia, dos rebanhos de bufalos que dormem á
sombra das tamareiras, do grande rio que corre eterno e sereno entre as
ruinas das Religiões e os tumulos das Dynastias...

Imaginando então despertar o seu coração com a chamma do meu, puxei-a
para mim lascivamente. Ella fugiu; encolheu-se toda a um canto, a
tremer; e deixando cahir a cabeça entre as mãos começou a chorar,
longamente.

--Olha que massada! gritei, embaçado.

E agarrei o capacete, abalei, esgaçando quasi no meu furor o pano preto
franjado d'ouro. Parámos n'uma cella ladrilhada onde cheirava mal. E ahi
bruscamente foi entre Potte e a nedia matrona uma bulha ferina sobre a
paga d'aquella radiante festa do Oriente: ella reclamava mais sete
piastras d'ouro: Potte, de bigode erriçado, cuspia-lhe injurias em
arabe, rudes e chocando-se como calhaus que se despenham n'um valle. E
sahimos d'aquelle lugar de deleite perseguidos pelos gritos de Fatmé,
que se babava de furor, agitava os braços marcados da peste e nos
amaldiçoava, e a nossos paes, e aos ossos de nossos avós, e a terra que
nos gerára, e o pão que comiamos, e as sombras que nos cobrissem! Depois
na rua negra dois cães seguiram-nos muito tempo, ladrando lugubremente.

Entrei no _Hotel do Mediterraneo_, afogado em saudades da minha terra
risonha: os gozos de que me via privado n'esta lobrega, inimiga Sião,
faziam-me anciar mais inflammadamente pelos que me daria a facil,
amoravel Lisboa, quando, morta a titi, eu herdasse a bolsa sonora de
sêda verde!... Lá não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota
severa e bestial! Lá nenhum corpo barbaro fugiria, com lagrimas, á
caricia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da titi, o meu amor não seria
jámais ultrajado, nem a minha concupiscencia jámais repellida. Ah! meu
Deus! Assim eu lograsse pela minha santidade captivar a titi!...--E
logo, abancando, escrevi á hedionda senhora esta carta ternissima:

«Querida titi do meu coração! Cada vez me sinto com mais virtude. E
attribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao
seu santo tumulo. De dia e de noite passo o tempo a meditar a sua divina
Paixão e a pensar na titi. Agora mesmo venho da Via-Dolorosa. Ai, que
enternecedora que estava! É uma rua tão benta, tão benta, que até tenho
escrupulo de a pisar com os botins; e n'outro dia não me contive,
agachei-me, beijei-lhe as ricas pedrinhas! Esta noite passei-a quasi
toda a rezar á Senhora do Patrocinio que todo o mundo aqui em Jerusalem
respeita muitissimo. Tem um altar muito lindo; ainda que a este respeito
bem razão tinha a minha boa tia (como tem razão em tudo) quando dizia
que lá para festas e procissões não ha como os nossos portuguezes. Pois
esta noite, assim que ajoelhei deante da capella da Senhora, depois de
seis Salve-Rainhas, voltei-me para a bella imagem e disse-lhe:--Ai, quem
me dera saber como está minha tia Patrocinio!--E quer a titi acreditar?
Pois olhe, a Senhora com a sua divina bocca disse-me, palavras textuaes,
que até, para não me esquecerem, as escrevi no punho da camisa:--A minha
querida afilhada vai bem, Raposo, e espera fazer-te feliz!--E isto não é
milagre extraordinario, porque me contam aqui todas as familias
respeitaveis com quem vou tomar chá que a Senhora e seu divino Filho
dirigem sempre algumas palavras bonitas a quem os vem visitar. Saberá
que já lhe obtive certas reliquias, uma palhinha do presepio, e uma
taboinha aplainada por S. José. O meu companheiro allemão, que, como
mencionei á titi na minha carta de Alexandria, é de muita religião e
muito sabio, consultou os livros que traz e affirmou-me que a taboinha
era das mesmas que, segundo está provado, S. José costumava aplainar nas
horas vagas. Emquanto _á grande reliquia_, aquella que lhe quero levar
para a curar de todos os seus males e dar a salvação á sua alma e
pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, _essa espero em breve obtel-a_. Mas
por ora não posso dizer nada... Recados aos nossos amigos em quem penso
muito e por quem tenho rezado constantemente; sobretudo ao nosso
virtuoso Casimiro. E a titi deite a sua benção ao seu sobrinho fiel e
que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua
saude--_Theodorico_.--P.S. Ai, titi, que asco que me fez hoje a casa de
Pilatos! Até lhe escarrei! E cá disse á Santa Veronica que a titi tinha
muita devoção com ella. Pareceu-me que a senhora santa ficou muito
regalada... É o que eu digo aqui a todos estes ecclesiasticos e aos
patriarchas:--É necessario conhecer-se a titi para se saber o que é
virtude!»

Antes de me despir, fui escutar, collada a orelha ao tabique de
ramagens. A ingleza dormia serena, insensivel: eu resmunguei brandindo
para lá o punho fechado:

--Besta!

Depois abri o guarda-roupa, tirei o dilecto embrulho da camisinha da
Mary, depuz n'elle o meu beijo repenicado e grato.

Cedo, ao alvorar do outro dia, partimos para o devoto Jordão.

       *       *       *       *       *

Fastidiosa, modorrenta, foi a nossa marcha entre as collinas de Judá!
Ellas succedem-se, lividas, redondas como craneos, resequidas,
escalvadas por um vento de maldição: só a espaços n'alguma encosta
rasteja um tojo escasso, que na vibração inexoravel da luz parece de
longe um bolor de velhice e de abandono. O chão faisca, côr de cal. O
silencio radiante entristece como o que cae da aboboda de um jazigo. No
fulgor duro do céo rondava em torno a nós, lento e negro, um abutre...
Ao declinar do sol erguemos as nossas tendas nas ruinas de Jericó.

Saboroso foi então descançar sobre macios tapetes, bebendo devagar
limonada, na doçura da tarde. A frescura de um riacho alegre, que
chalrava junto ao nosso acampamento por entre arbustos silvestres,
misturava-se ao aroma da flôr que elles davam, amarella como a da
giesta; adiante verdejava um prado de hervas altas, avivado pela
brancura de vaidosos, languidos lirios; junto d'agua passeavam aos pares
pensativas cegonhas. Do lado de Judá erguia-se o monte da Quarentena,
torvo, fusco na sua tristeza de eterna penitencia; e para as bandas de
Moab os meus olhos perdiam-se na velha, sagrada terra de Canaan, areal
cinzento e desolado que se estende, como a alva mortalha d'uma raça
esquecida, até ás solidões do Mar Morto.

Fomos, ao alvorecer, com os alforges fornidos, fazer essa votiva
romaria. Era então em dezembro; esse inverno da Syria ia
transparentemente dôce; e trotando pela areia fina ao meu lado, o
erudito Topsius contava-me como esta planicie de Canaan fôra outr'ora
toda coberta de rumorosas cidades, de brancos caminhos entre vinhedos, e
d'aguas de rega refrescando os muros das eiras; as mulheres, toucadas
d'anemonas, pisavam a uva cantando; o perfume dos jardins era mais grato
ao céo que o incenso: e as caravanas que entravam no valle pelo lado de
Segor achavam aqui a abundancia do rico Egypto--e diziam que era este em
verdade o vergel do Senhor.

--Depois, acrescentava Topsius sorrindo com infinito sarcasmo, um dia o
Altissimo aborreceu-se e arrazou tudo!

--Mas porquê? porquê?

--Birra; mau humor; ferocidade...

Os cavallos relincharam sentindo a visinhança das aguas malditas:--e bem
depressa ellas appareceram, estendidas até ás montanhas de Moab,
immoveis, mudas, faiscando solitarias sob o céo solitario. Oh tristeza
incomparavel! E comprehende-se que pesa ainda sobre ellas a colera do
Senhor, quando se considera que alli jazem, ha tantos seculos--sem uma
recreavel villa como Cascaes; sem claras barracas de lona alinhadas á
sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras, meigas e de
galochas, lhe recolham poeticamente as conchinas na areia; sem que as
alegrem, á hora das estrellas, as rebecas de uma Assembléa toda festiva
e com gaz--alli mortas, enterradas entre duras serras como entre as
cantarias de um tumulo.

--Além era a cidadella de Makeros, disse gravemente o erudito Topsius,
alçado sobre os estribos, alongando o guardasol para a costa azulada do
mar. Alli viveu um dos meus Herodes, Antipas, o tetrarcha da Galilêa,
filho de Herodes o Grande: alli, D. Raposo, foi degolado o Baptista.

E seguindo a passo para o Jordão (emquanto o alegre Potte nos fazia
cigarros do bom tabaco de Aleppo) Topsius contou-me essa lamentavel
historia. Makeros, a mais altiva fortaleza da Asia, erguia-se sobre
pavorosos rochedos de basalto. As suas muralhas tinham cento e cincoenta
covados d'altura; as aguias mal podiam chegar até onde subiam as suas
torres. Por fóra era toda negra e soturna: mas dentro resplandecia de
marfins, de jaspes, d'alabastros; e nos profundos tectos de cedro os
largos broqueis d'ouro suspensos faziam como as constellações d'um céo
de verão. No centro da montanha, n'um subterraneo, viviam as duzentas
egoas de Herodes, as mais bellas da terta, brancas como o leite, com
clinas negras como o ebano, alimentadas a bolos de mel, e tão ligeiras
que podiam, correr, sem lhes macular a pureza, por sobre um prado de
acuçenas. Depois, mais fundo ainda, n'um carcere, jazia Iokanan--que a
Igreja chama o Baptista.

--Mas então, esclarecido amigo, como foi essa desgraça?

--Pois foi assim, D. Raposo... O meu Herodes conhecera em Roma
Herodiade, sua sobrinha, esposa de seu irmão Filippe, que vivia na
Italia, indolente e esquecido da Judêa, gozando o luxo latino. Era
esplendidamente, sombriamente bella. Herodiade!... Antipas Herodes
arrebata-a n'uma galera para a Syria; repudia sua mulher, uma moabita
nobre, filha do rei Aretas, que governava o deserto e as caravanas; e
fecha-se incestuosamente com Herodiade n'essa cidadella de Makeros.
Colera em toda a devota Judêa contra este ultraje á lei do Senhor! E
então Antipas Herodes, arteiro, manda buscar o Baptista que prégava no
vão do Jordão...

--Mas para quê, Topsius?

--Pois para isto, D. Raposo... A vêr se o rude propheta, acariciado,
amimado, amollecido pelo louvor e pelo bom vinho de Sichem, approvava
estes negros amores, e pela persuasão da sua voz, dominante em Judêa e
Galilêa, os tornava aos olhos dos fieis brancos como a neve do Carmello.
Mas, desgraçadamente, D. Raposo, o Baptista não tinha originalidade.
Santo respeitavel, sim; mas nenhuma originalidade... O Baptista imitava
em tudo servilmente o grande propheta Elias; vivia n'um buraco como
Elias; cobria-se de pelles de feras como Elias; nutria-se do gafanhotos
como Elias; repetia as imprecações classicas de Elias:--e como Elias
clamára contra o incesto d'Achab, logo o Baptista trovejou contra o
incesto de Herodiade. Por imitação, D. Raposo!

--E emmudeceram-no com a masmorra!

--Qual! Rugiu peor, mais terrivelmente! E Herodiade escondia a cabeça no
manto para não ouvir esse clamor de maldição, sahido do fundo da
montanha.

Eu balbuciei, com uma lagrima a amollentar-me a palpebra:

--E Herodes mandou então degolar o nosso bom S. João!

--Não! Antipas Herodes era um frouxo, um tibio... Muito lubrico, D.
Raposo, infinitamente lubrico, D. Raposo! Mas que indecisão!... Além
d'isso, como todos os galileus, tinha uma secreta fraqueza, uma
irremediavel sympathia por prophetas. E depois arreceava a vingança de
Elias, o patrono, o amigo d'Iokanan... Porque Elias não morreu, D.
Raposo. Habita o céo, vivo, em carne, ainda coberto de farrapos,
implacavel, vociferador e medonho...

--Safa! murmurei, arripiado.

--Pois ahi está... Iokanan ia vivendo, ia rugindo. Mas sinuoso e subtil
é o odio da mulher, D. Raposo. Chega, no mez de Schebat, o dia dos annos
de Herodes. Ha um vasto festim em Makeros, a que assistia Vitellius,
então viajando na Syria. D. Raposo lembra-se do crasso Vitellius que
depois foi senhor do mundo... Pois á hora em que pelo ceremonial das
Provincias Tributarias se bebia á saude de Cesar e de Roma, entra
subitamente na sala, ao som dos tamborinos e dançando á maneira de
Babylonia, uma virgem maravilhosa. Era Salomé, a filha de Herodiade e de
seu marido Filippe, que ella educára secretamente em Cesarea, n'um
bosque, junto do Templo d'Hercules. Salomé dançou, núa e deslumbrante.
Antipas Herodes, inflammado, estonteado de desejo, promette dar tudo o
que ella pedisse pelo beijo dos seus labios... Ella toma um prato
d'ouro, e tendo olhado a mãi, pede a cabeça do Baptista. Antipas,
aterrado, offerece-lhe a cidade de Tiberiade, thesouros, as cem aldeias
de Genesareth... Ella sorriu, olhou a mãi: e outra vez, incerta e
gaguejando pediu a cabeça de Iokanan... Então todos os convivas,
Saducceus, Escribas, homens ricos da Decapola, mesmo Vitellius e os
romanos, gritaram alegremente: «Tu prometteste, tetrarca, tu juraste,
tetrarca!» Momentos depois, D. Raposo, um negro da Idumea entrou,
trazendo n'uma das mãos um alfange, na outra presa pelos cabellos a
cabeça do propheta. E assim acabou S. João, por quem se canta e se
queimam fogueiras n'uma dôce noite de junho...

Escutando, embevecidos e a passo, estas coisas tão antigas--avistámos ao
longe, na areia fulva, uma sebe de verdura triste e da côr do bronze.
Potte gritou: «o Jordão! o Jordão!» E arrebatadamente galopámos para o
rio da Escriptura.

O festivo Potte conhecia, á beira da corrente baptismal, um sitio
deleitosissimo para uma sesta christã: e ahi passamos as horas quentes,
recostados n'um tapete, languidos, e bebendo cerveja, depois de bem
esfriada nas aguas do rio santo. Elle faz alli um claro, suave remanso,
a repousar da lenta, abrazada jornada que traz, através do deserto,
desde o lago de Galilêa: e antes de mergulhar para sempre no amargor do
Mar Morto--alli preguiça, espraiado sobre a areia fina; canta baixo e
cheio de transparencia, rolando os seixos lustrosos do seu leito; e
dorme nos sitios mais frescos, immovel e verde, á sombra dos
tamarindos... Por sobre nós rumorejavam as folhas dos altos choupos da
Persia: entre as hervas balançavam-se flôres desconhecidas, das que
toucavam outr'ora as tranças das virgens de Canaan em manhãs de vindima;
e na escuridão fofa das ramagens, onde já as não vinha assustar a voz
terrivel de Jehovah, gorgeavam pacificamente as toutinegras. Defronte
elevavam-se azues e sem mancha, como feitas d'um só bloco de pedra
preciosa, as montanhas de Moab. O céo branco, mudo, recolhido, parecia
descançar deliciosamente do duro tumulto que o agitou quando alli vivia,
entre preces e mortandades, o sombrio Povo de Deus: e onde
constantemente batiam as azas dos Seraphins, e fluctuavam as roupagens
dos prophetas arrebatados pelo Altissimo, era calmante vêr agora passar
apenas uma revoada de pombos bravos, voando para os pomares d'Engaddi.

Obedecendo á recommendação da titi, despi-me, e banhei-me nas aguas do
Baptista. Ao principio, enleado de emoção beata, pisei a areia
reverentemente como se fosse o tapete d'um altar-mór: e de braços
cruzados, nú, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S.
Joãosinho, susurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquella
bucolica banheira entre arvores; Potte atirou-me a minha esponja; e
ensaboei-me nas aguas sagradas, trauteando o _fado_ da Adelia.

Ao refrescar, quando montavamos a cavallo, uma tribu de beduinos,
descendo das collinas de Galgalá, trouxe os seus rebanhos de camêlos a
beber ao Jordão; as crias brancas e felpudas corriam, balando; os
pastores, de lança alta, soltando gritos de batalha, galopavam, n'um
amplo esvoaçar d'albornozes; e era como se resurgisse em todo o valle,
no esplendor da tarde, uma pastoral da idade biblica, quando Agar era
moça! Teso na sella, com as redeas bem colhidas, eu senti um curto
arrepio de heroismo; ambicionava uma espada, uma Lei, um Deus por quem
combater... Lentamente alargara-se pela planicie sacra um silencio
enlevado. E o mais alto cerro de Moab cobriu-se de um fulgor raro, côr
de rosa e côr d'ouro, como se n'elle de novo, fugitivamente, ao passar,
se reflectisse a face do Senhor! Topsius alçou a mão sapiente:

--Aquelle cimo illuminado, D. Raposo, é o Moriah, onde morreu Moysés!

Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas d'essas aguas, d'esses
montes, sentia-me forte--e igual aos homens fortes do Exodo. Pareceu-me
ser um d'elles, familiar de Jehovah, e tendo chegado do negro Egypto com
as minhas sandalias na mão... Esse alliviado suspiro que trazia a briza
vinha das tribus d'Israel, emergindo emfim do deserto! Pelas encostas
além, seguida d'uma escolta d'anjos, a Arca dourada descia balançada
sobre os hombros dos levitas vestidos de linho e cantando. Outra vez nas
seccas areias reverdecia a terra da Promissão. Jericó branquejava entre
as seáras: e através dos palmares cerrados já resoavam em marcha os
clarins de Josué!

Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaan este urro
piedoso:

--Viva Nosso Senhor Jesus Christo! Viva toda a Côrte do Céo!

       *       *       *       *       *

Cedo, ao outro dia, domingo, o incansavel Topsius partiu, bem enlapisado
e bem enguardasolado, a estudar as ruinas de Jericó, essa velha Cidade
das Palmeiras que Herodes cobrira de thermas, de templos, de jardins,
d'estatuas, e onde passaram os seus tortuosos amores com Cleopatra... E
eu, á porta da tenda, escarranchado n'um caixote, fiquei a tomar o meu
café, olhando os pacificos aspectos do nosso acampamento. O cozinheiro
depennava frangos; o beduino triste areava á beira d'agua o seu pacato
alfange; o nosso lindo arrieiro esquecia a ração ás egoas para seguir no
céo, d'um brilho de saphira, a branca passagem das cegonhas voando aos
pares para a Samaria.

Depois puz o capacete, fui vadiar na doçura da manhã, de mãos nos
bolsos, cantarolando um _fado_ meigo. E ia pensando na Adelia e no snr.
Adelino... Enroscados na alcova, beijando-se furiosamente, estavam-me
talvez chamando _carola_, emquanto eu passeava alli, nos retiros da
Escriptura! Áquella hora a titi, de mantelete preto, com o seu ripanço,
sahia para a missa de Sant'Anna: os creados do Montanha, esguedelhados,
assobiando, escovavam o pano dos bilhares: e o dr. Margaride, á janella,
na praça da Figueira, pondo os oculos, abria o _Diario de Noticias_. Ó
minha dôce Lisboa!... Mas ainda mais perto, para além do deserto de
Gaza, no verde Egypto, a minha Maricoquinhas n'esse instante estava
enchendo o vaso do balcão com magnolias e rosas; o seu gato dormia no
velludo da cadeira; ella suspirava pelo «seu portuguezinho valente...»
Suspirei tambem: mais triste nos labios se me fez o _fado_ triste.

E de repente, olhando, achei-me, como perdido, n'um sitio de grande
solidão e de grande melancolia. Era longe do regato e dos aromaticos
arbustos de flôr amarella; já não via as nossas tendas brancas; e diante
de mim arredondava-se um ermo árido, livido, de areia, fechado todo por
penedos lisos, direitos como os muros d'um poço--tão lugubres que a luz
loura da quente manhã do Oriente desmaiava alli, mortalmente, desbotada
e magoada. Eu lembrava-me de gravuras, assim desoladas, onde um eremita
de longas barbas medita um in-folio junto de uma caveira. Mas nenhum
solitario aniquilava alli a carne em heroica penitencia. Sómente, ao
meio do fero recinto, isolada, orgulhosa, com um ar de raridade e de
reliquia, como se as penedias se tivessem amontoado para lhe arranjarem
um resguardo de Sacrario--erguia-se uma arvore tão repellente, que logo
me fez morrer nos labios o resto do _fado_ triste...

Era um tronco grosso, curto, atochado e sem nós de raizes, semelhante a
uma enorme moca bruscamente cravada na areia: a casca corredia tinha o
lustre oleoso de uma pelle negra: e da sua cabeça entumecida, de um tom
de tição apagado--rompiam, como longas pernas d'aranha, oito galhos que
contei, pretos, molles, lanugentos, viscosos, e armados de espinhos...
Depois de olhar em silencio para aquelle monstro, tirei devagar o meu
capacete e murmurei:

--Para que viva!

É que me encontrava certamente diante d'uma arvore illustre! Fôra um
galho igual (o nono talvez) que, arranjado outr'ora em fórma de corôa
por um centurião romano da guarnição de Jerusalem, ornára sarcastimente,
no dia do suplicio, a cabeça de um carpinteiro de Galilêa, condemnado...
Sim, condemnado por andar, entre quietas aldeias e nos santos pateos do
Templo, dizendo-se filho de David e dizendo-se filho de Deus, a prégar
contra a velha Religião, contra as velhas Instituições, contra a velha
Ordem, contra as velhas Fórmas! E eis que esse galho por ter tocado os
cabellos incultos do rebelde torna-se divino, sobe aos altares, e do
alto enfeitado dos andores faz prostrar no lagedo, á sua passagem, as
multidões enternecidas...

No collegio dos Isidoros, ás terças e sabbados, o sebento padre Soares
dizia esfuracando os dentes--«que havia, meninos, lá n'um sitio da
Judêa...» Era alli! «...uma arvore que segundo dizem os authores é mesmo
d'arripiar...» Era aquella! Eu tinha ante meus frivolos olhos de
Bacharel a sacratissima Arvore d'Espinhos!

E logo uma idéa sulcou-me o espirito com um brilho de visitação
celeste... Levar á titi um d'esses galhos, o mais pennugento, o mais
espinhoso, como sendo a reliquia fecunda em milagres a que ella poderia
consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês
celestiaes! «Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito
por ti, traze-me então d'esses santos lugares uma santa reliquia...»
Assim dissera a snr.^a D. Patrocinio das Neves na vespera da minha
jornada piedosa, enthronada nos seus damascos vermelhos, diante da
Magistratura e da Igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus
oculos austeros. Que lhe podia eu offerecer mais sagrado, mais
enternecedor, mais efficaz, que um ramo da Arvore d'Espinhos, colhido no
valle do Jordão, n'uma clara, rosada manhã de missa?

Mas de repente assaltou-me uma aspera inquietação... E se realmente uma
virtude transcendente circulasse nas fibras d'aquelle tronco? E se a
titi começasse a melhorar do figado, a reverdecer, mal eu installasse no
seu oratorio, entre lumes e flôres, um d'esses galhos erriçados de
espinhos? Ó miserrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o
principio milagroso da Saude, e a tornava rija, indestructivel,
ininterravel, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu
que só começaria a viver--quando ella começasse a morrer!

Rondando então em torno á Arvore d'Espinhos, interroguei-a, sombrio e
rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes
sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas
classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça
coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo commigo para
um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das
melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o
incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das
mãos postas, todas as caricias da oração--não é para que tu, prolongando
indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança
e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres
atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e
Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi--então fica-te ahi,
entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o
excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!... Mas se
promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre
galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida
decomposição dos seus tecidos--então vaes ter em Lisboa o macio agasalho
d'uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as
satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não
has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram... Falla, monstro!»

O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma,
aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d'estio, o
presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A
Arvore d'Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua
seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.^a D.
Patrocinio--como uma promessa sufficiente de que, transportado para o
oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d'essa hedionda
senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, n'esse ermo,
como um pacto taciturno, profundo e mortal.

Mas era esta realmente a Arvore d'Espinhos? A rapidez da sua
condescendencia fazia-me suspeitar a excellencia da sua divindade.
Resolvi consultar o solido, sapientissimo Topsius.

Corri á fonte de Elyseo, onde elle rebuscava pedras, lascas, lixos,
restos da orgulhosa Cidade das Palmeiras. Avistei logo o luminoso
historiographo acocorado junto a uma poça d'agua, com os oculos
sôfregos, esgarafunhando um pedaço de pilastra negra, meia enterrada no
lodo. Ao lado um burro, esquecido da herva tenra, contemplava
philosophicamente e com melancolia o afan, a paixão d'aquelle sabio, de
rastos no chão, á procura das Thermas de Herodes.

Contei a Topsius o meu achado, a minha incerteza... Elle ergueu-se logo,
serviçal, zeloso, presto ás lides do Saber.

--Um arbusto d'espinhos? murmurava, estancando o suor. Ha de ser o
_Nabka_... Banalissimo em toda a Syria! Hasselquist, o botanico,
pretende que d'ahi se fez a Corôa d'Espinhos... Tem umas folhinhas
verdes, muito tocantes, em fórma de coração, como as da hera... Ah, não
tem? Perfeitamente, então é o _Lycium Spinosum_. Foi o que serviu,
segundo a tradição latina, para a Corôa d'Injuria... Que quanto a mim a
tradição é futil; e Hasselquist ignaro, infinitamente ignaro... Mas eu
vou já aclarar isso, D. Raposo. Aclarar irrefutavelmente e para sempre!

Abalámos. No ermo, ante a arvore medonha, Topsius, alçando
cathedraticamente o bico, recolheu um momento aos depositos interiores
do seu saber--e depois declarou que eu não podia levar a minha tia
devotissima nada mais precioso. E a sua demonstração foi faiscante.
Todos os instrumentos da Crucificação (disse elle, floreando o
guardasol), os Pregos, a Esponja, a Cana Verde, um momento divinisados
como materiaes da Divina Tragedia, reentraram pouco a pouco, pelas
urgencias da civilisação, nos usos grosseiros da vida... Assim, o Prego
não ficou _per eternum_ na ociosidade dos altares, memorando as Chagas
Sacratissimas: a humanidade, catholica e commerciante, foi gradualmente
levada a utilisar o prego como uma valiosa ferragem: e tendo trespassado
as mãos do Messias, elle hoje segura, laborioso e modesto, as tampas de
caixões impurissimos... Os mais reverentes irmãos do Senhor dos Passos
empregam a Cana para pescar; ella entra na folgante composição do
foguete; e o Estado mesmo (tão escrupuloso em materia religiosa) assim a
usa em noites alegres de nova Constituição ou em festivos delirios pelas
bodas de Principes... A Esponja, outr'ora embebida no vinagre de
sarcasmo e offerecida n'uma lança, é hoje aproveitada n'esses
irreligiosos ceremoniaes da limpeza--que a Igreja sempre reprovou com
odio... Até a Cruz, a Fórma suprema, tem perdido entre os homens a sua
divina significação. A christandade, depois de a ter usado como lábaro,
usa-a como enfeite. A cruz é broche, a cruz é breloque; pende nos
collares, tilinta nas pulseiras; é gravada em sinetes de lacre, é
incrustada em botões de punho;--e a Cruz realmente n'este soberbo seculo
pertence mais á Ourivesaria do que pertence á Religião...

--Mas a Corôa d'Espinhos, D. Raposo, essa não _tornou a servir para mais
nada_!

Sim, _para mais nada_! A Igreja recebeu-a das mãos de um proconsul
romano--e ella ficou isoladamente e para toda a eternidade na Igreja,
commemorando o Grande Ultraje. Em todo este vario Universo ella só
encontra um lugar congenere na penumbra das capellas; o seu unico
prestimo é persuadir á contrição. Nenhum joalheiro jámais a imitou em
ouro, cravejada de rubis, para ornar um penteado loiro; ella é só
Instrumento de Martyrio; e com salpicos de sangue, sobre os caracoes
frisados das imagens, inspira infinitamente as lagrimas... O mais astuto
Industrial, depois de a retorcer pensativamente nas mãos,
restituil-a-hia aos altares como coisa inutil na Vida, no Commercio, na
Civilisação; ella é só attributo da Paixão, recurso de tristes,
enternecedora de fracos. Só ella, entre os accessorios da Escriptura,
provoca sinceramente a oração. Quem, por mais adorabundo, se prostraria,
a borbulhar de Padre-Nossos, diante d'uma esponja cahida n'uma tina, ou
d'uma cana á beira d'um regato?... Mas para a Corôa d'Espinhos erguem-se
sempre as mãos crentes; e a sensação da sua deshumanidade passa ainda na
melancolia dos Misereres!

Que maior maravilha podia eu levar á titi?...

--Sim, Topsius, meu catita... Os teus dizeres são d'oiro puro... Mas a
outra, a verdadeira, _a que serviu_, teria sido tirada d'aqui, d'este
tronco? Hein, amiguinho?

O erudito Topsius desdobrou lentamente o seu lenço de quadrados: e
declarou (contra a futil tradição latina e contra o ignarissimo
Hasselquist) que a Corôa d'Espinhos fôra arranjada d'uma silva, fina e
flexivel, que abunda nos valles de Jerusalem, com que se accende o lume,
com que se erriçam as sebes, e que dá uma flôrzinha rôxa, triste e sem
cheiro...

Eu murmurei, succumbido:

--Que pena! A titi fazia tanto gosto que fosse d'aqui, Topsius! A titi é
tão rica!...

Então este sagaz philosopho comprehendeu que ha Razões de Familia como
ha Razões d'Estado--e foi sublime. Estendeu a mão por cima da arvore,
cobrindo-a assim largamente com a garantia da sua sciencia--e disse
estas palavras memoraveis:

--D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Póde pois afiançar á senhora
sua tia da parte d'um homem que a Allemanha escuta em questões de
critica archeologica, que o galho que lhe levar d'aqui, arranjado em
corôa, foi...

--Foi?--berrei ancioso.

--Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do rabbi Jeschoua Natzarieh, a
quem os latinos chamam Jesus do Nazareth, e outros tambem chamam o
Christo!...

Fallára o alto saber germanico! Puxei o meu navalhão sevilhano, decepei
um dos galhos. E emquanto Topsius voltava a procurar pelas hervas
humidas a cidadella de Cypron e outras pedras de Herodes--eu recolhi ás
tendas, em triumpho, com a minha preciosidade. O prazenteiro Potte,
sentado n'um sellim, estava moendo café.

--Soberbo galho! gritou elle. Quer-se arranjadinho em corôa... Fica
d'uma devoção!

E logo, com a sua rara destreza de mãos, o jocundo homem entrelaçou o
galho rude em forma de corôa santa. E tão parecida! tão tocante!...

--Só lhe faltam as pinguinhas de sangue! murmurava eu, enternecido.
Jesus! o que a titi se vai babar!

Mas como levariamos para Jerusalem, através dos cerros de Judá, aquelles
incommodos espinhos--que, apenas armados na sua fórma Passional,
pareciam já avidos de rasgar carne innocente? Para o alegre Potte não
havia difficuldades; tirou do fundo do seu provido alforge uma fofa
nuvem de algodão em rama; envolveu n'ella delicadamente a Corôa
d'Aggravo, como uma joia fragil; depois com uma folha de papel pardo e
um nastro escarlate--fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e
nitido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava n'esse outro
embrulho de rendas e laços de sêda, cheirando a violeta e a amor, que
ficára em Jerusalem, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.

--Potte, Potte! gritei, radiante. Nem tu sabes que grossa moeda me vai
render esse galhinho, dentro d'esse pacotinho!

Apenas Topsius voltou da sacra fonte d'Elyseo--eu offereci, para
celebrar o encontro providencial da Grande Reliquia, uma das garrafas de
Champagne, que Potte trazia nos alforges, encarapuçadas d'ouro. Topsius
bebeu «á Sciencia!» Eu bebi «á Religião!» E largamente a espuma de _Moet
et Chandon_ regou a terra de Canaan.

Á noite, para maior festividade, accendemos uma fogueira: e as mulheres
arabes de Jericó vieram dançar diante das nossas tendas. Recolhemos
tarde, quando por sobre Moab, para os lados de Makéros, a lua apparecia,
fina e recurva, como esse alfange d'ouro que decepou a cabeça ardente
d'Iokanan.

O embrulho da Corôa d'Espinhos estava á beira do meu catre. O lume
apagára-se, o nosso acampamento dormia no infinito silencio do Valle da
Escriptura... Tranquillo, regalado, adormeci tambem.



III


Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre,
quando me pareceu que uma claridade trémula, como a d'uma tocha
fumegante, penetrava na tenda--e através d'ella uma voz me chamava,
lamentosa e dolente:

--Theodorico, Theodorico, ergue-te, e parte para Jerusalem!

Arrojei a manta, assustado:--e vi o doutissimo Topsius, que, á luz
mortal de uma vela, bruxoleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de
Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era
elle que me despertava, açodado, fervoroso:

--A pé, Theodorico, a pé! As egoas estão selladas! Amanhã é Paschoa! Ao
alvorecer devemos chegar ás portas de Jerusalem!

Arredando os cabellos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado Doutor:

--Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos
alforges, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?

O erudito homem alçou os seus oculos d'ouro que resplandeciam com uma
desusada, irresistivel intellectualidade. Uma capa branca, que eu nunca
lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em prégas graves e puras de toga
latina: e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com labios que
pareciam classicos e de marmore:

--D. Raposo! Esta aurora que vae nascer, e em pouco tocar os cimos do
Hebron, é a de 15 do mez de Nizam; e não houve em toda a historia
d'Israel, desde que as tribus voltaram de Babylonia, nem haverá, até que
Tito venha pôr o ultimo cêrco ao Templo, um dia mais interessante! Eu
preciso estar em Jerusalem para vêr, viva e rumorejando, esta pagina do
Evangelho! Vamos pois fazer a santa Paschoa a casa de Gamaliel, que é um
amigo d'Hillel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas,
patriota forte e membro do Sanhedrin. Foi elle que disse: «para te
livrares do tormento da duvida, impõe-te uma auctoridade.» Portanto, a
pé, D. Raposo!

Assim murmurou o meu amigo, erecto e lento. E eu, submissamente, como
perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silencio as minhas
grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, elle
empurrou-me com impaciencia para fóra da tenda--sem mesmo me deixar
recolher o relogio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso,
eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e
vermelha...

Devia ser meia noite. Dois cães ladravam ao longe, surdamente, como
entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de
vergel e á flôr da laranjeira. O ceu d'Israel faiscava com desacostumado
esplendor: e em cima do monte Nebo, um bello astro mais branco, d'uma
refulgencia divina, olhava para mim, palpitando anciosamente, como se
procurasse, captivo na sua mudez, dizer um segredo á minha alma!

As egoas esperavam, immoveis sob as longas clinas. Montei. E então,
emquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei para os
lados da fonte d'Elyseo--uma fórma maravilhosa que me arripiou de terror
transcendente.

Era, ao clarão diamantino das estrellas da Syria, como a branca muralha
d'uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam pallidamente entre a
espessura de bosques sagrados; para as collinas distantes fugiam
esbatidos os arcos ligeiros d'um aqueducto. Uma chamma fumegava no alto
d'uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som
longo de bozina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões uma
aldêa dormia entre palmeiras.

Topsius, na sella, prompto a marchar, embrulhára a mão nas clinas da
egoa.

--Aquillo, branco, além? murmurei, suffocado.

Elle disse simplesmente:

--Jericó.

Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emmudecido, o nobre
historiador dos Herodos: era por uma estrada direita, feita de lages
negras de basalto. Ah! que differente do aspero caminho por onde
tinhamos descido a Canaan, faiscante e côr de cal, através de collinas
onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice
e de abandono! E tudo em redor me parecia differente tambem, a fórma das
rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrellas... Que
mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes
uma faisca dura saltava das ferraduras das egoas. E sem descontinuar
Topsius galopava, agarrado ás clinas, com as duas bandas da capa branca
batendo como os dois panos de uma bandeira...

Mas subitamente parou. Era junto d'uma casa quadrada, entre arvores,
toda apagada e muda, tendo no tôpo uma haste sobre que pousava
estranhamente, como recortada n'uma lamina de ferro, a figura d'uma
cegonha. Á entrada esmorecia uma fogueira: remexi as achas: e á curta
chamma que resaltou comprehendi que era uma antiga estalagem á beira
d'uma antiga estrada. Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e
erriçada de pregos, brilhava em negro, n'uma lapide branca, a taboleta
latina--_Ad Gruem Majorem_: e ao lado, enchendo parte da fachada,
desenrolava-se uma inscripção rudemente entalhada na pedra, que eu
decifrei a custo, e em que Apollo promettia a saude ao hospede, e
Septimanus, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho
reparador, vinho forte da Campania, frescos palhetes d'Engaddi, e «todas
as commodidades á maneira de Roma.»

Murmurei, desconfiado:

--Á maneira de Roma!

Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens,
dissemelhantes de mim, no fallar e no traje, bebiam alli, sob a
protecção d'outros deuses, o vinho em amphoras do tempo de Horacio?...

Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago na noite. Agora findára a
estrada de basalto sonoro: e subiamos a passo um brusco caminho, cavado
entre rochas, onde grossos pedregulhos resoavam, rolavam sob as patas
das egoas, como no leito d'uma torrente que um lento Agosto seccou. O
erudito Doutor, sacudido na sella, praguejava roucamente contra o
Sanhedrin, contra a hirta Lei judaica, opposta indobravelmente a toda a
obra culta que quer fazer o Proconsul... Sempre o Phariseu via com
rancor o aqueducto romano que lhe trazia a agua, a estrada romana que o
levava ás cidades, a therma romana que lhe curava as pustulas...

--Maldito seja o Phariseu!

Somnolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava,
encolhido no meu albornoz:

--Phariseu, sepulchro caiado... Maldito seja!

Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos;
as estrellas desmaiavam.

Breves faz o Senhor as noites macias do mez de Nizam, quando se come em
Jerusalem o anho branco de Paschoa: e bem cedo o céo se vestiu d'alvo do
lado do paiz de Moab.

Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a
rosmaninho.

E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho,
um homem estranho, bravio, coberto com uma pelle de carneiro, que me
recordou Elias e todas as cóleras da Escriptura; o peito, as pernas
pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes,
emmaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe
desvairadamente... Descobriu-nos; e logo, sacudindo os braços como quem
arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor!
Chamou-nos «pagãos», chamou-nos «cães»: gritava «malditas sejam as
vossas mães, sêccos sejam os peitos que vos crearam!» Crueis e cheios de
presagios cahiam os seus brados do alto das rochas: e, retardado pelos
passos lentos da egoa, Topsius encolhia-se na capa como sob uma saraiva
inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura,
chamei-lhe _bebedo_, atirei-lhe obscenidades; e via no emtanto, sob a
chamma selvagem dos seus olhos, a bocca clamorosa e negra torcer-se-lhe,
babar-se de furor devoto...

Mas, desembocando da ravina, encontrámos, larga e lageada, a estrada
romana que vai a Sichem: e trotando por ella, sentiamos o allivio de
penetrar emfim n'uma região culta, piedosa, humana e legal. A agua
abundava: sobre as collinas erguiam-se fortalezas novas: pedras sagradas
delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados d'anemonas
pisavam o trigo da colheita de Paschoa; e em vergeis onde a figueira já
tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na
mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes avistavamos um homem, de pé,
junto da sua vinha, ou á beira dos canaes de rega, direito, com a ponta
do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa
oração do _Schema_. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de
cantaros de barro amarello, gritou-nos: «Bemditas sejam as vossas mães,
boa vos seja a Paschoa!» E um leproso, que descançava á sombra, nos
olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em
Jerusalem o Rabbi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.

Já nos aproximavamos de Bethania. Para dar de beber ás egoas parámos
n'uma linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius,
arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana que
vem de Galilêa celebrar a Paschoa a Jerusalem--quando soou, adiante, na
estrada, um rumor lento d'armas em marcha... E eu vi, assombrado,
apparecerem soldados romanos, d'esses que tantas vezes amaldiçoára em
estampas da Paixão!

Barbudos, tostados pelo sol da Syria, marchavam solidamente, em
cadencia, com um passo bovino, fazendo resoar sobre as lages as
sandalias ferradas: todos traziam ás costas os escudos envoltos em
saccos de lona: e cada um erguia ao hombro uma alta forquilha, d'onde
pendiam trouxas encordelada, pratos de bronze, ferramentas e cachos de
tamaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde:
outras, nas mãos cabelludas balançavam um dardo curto. O Decurião gordo
e loiro, seguido de uma gazella familiar, enfeitada com coraes,
dormitava, ao passo miudo da egoa, embrulhado n'um manto escarlate. E
atraz, ao lado das mulas carregadas de saccos de trigo e mólhos de
lenha, os arrieiros cantavam ao som d'uma flauta de barro, tocada por um
negro quasi nú que tinha no peito, em traços vermelhos, o numero da
Legião.

Eu recuára para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um Germano
servil, desmontára, ajoelhando quasi no pó, ante as Armas de Roma: e não
se conteve, berrou, agitando os braços e a capa:

--Longa vida a Caio Tiberio, tres vezes Consul, Illyrico, Panonico,
Germanico, Imperador, Pacificador e Augusto!...

Alguns legionarios riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um
rumor do ferro--emquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras
aos brados, fugia para o cimo dos cêrros.

De novo galopámos. A estrada de basalto findou; e penetrámos entre
arvoredos, n'um aroma de pomares, através de abundancia e frescura.

Oh, que differentes se mostravam estes caminhos, estas collinas, que eu
vira dias antes, em torno á Cidade Santa, deseccadas por um vento
d'abstracção, e brancas, da côr das ossadas... Agora tudo era verde,
regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdêra o tom magoado, a
côr dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalem: as folhas dos
ramos d'abril desabrochavam n'um azul, moço, tenro, cheio de esperança
como ellas. E a cada instante se me iam os olhos longamente n'esses
vergeis da Escriptura, que são feitos da oliveira, da figueira e da
vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplendidos que o rei Salomão,
os lirios vermelhos dos campos!

Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido d'uma sebe toda
entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me, mostrou-me no alto d'um
outeiro, sobre um fundo sombrio de cyprestes e cedros, uma casa abrindo
para o lado do oriente e da luz o seu portico branco. Pertencia, disse
elle, a um romano, parente de Valerius Gratus, antigo Legado imperial da
Syria: e tudo alli parecia penetrado de paz amavel e de graça latina. Um
tapete viçoso de relva bem lisa estendia-se em declive até a uma alea de
alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flôres
escarlates, as iniciaes de Valerius Gratus: em redor, entre canteiros de
rosas, de açucenas, orlados de myrto, resplandeciam nobres vasos de
marmore carynthico, onde se enrolavam folhas de acantho: um servo, de
capuz cinzento, talhava um teixo em fórma d'urna, ao lado d'um buxo alto
já talhado sabiamente em feitio de lyra; aves domesticas picavam o chão,
coberto d'arêa escarlate, n'uma rua de platanos onde os braços d'hera
faziam de tronco a tronco festões como os que ornam um templo: a rama
dos loureiros velava de sombras a nudez das estatuas. E sob um
caramanchão de vinha, ao rumor d'agua lenta cantando n'uma bacia de
bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma
imagem d'Esculapio um longo rôlo de papyro--emquanto uma rapariga, com
uma flecha d'ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma
grinalda com as flôres que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos
cavallos ella ergueu os olhos claros. Topsius gritou--_O, salvè,
pulcherrima_! Eu gritei--_Viva la gracia_! Os melros cantavam nas
romanzeiras em flôr.

Mas adiante o facundo Topsius deteve-me ainda, apontando-me outra
vivenda de campo, escura e severa entre cyprestes: e disse-me baixo que
era d'Osanias, um rico sadduceu de Jerusalem, da familia pontifical de
Boethos, e membro do Sanhedrin. Nenhum ornato pagão lhe profanava os
muros. Quadrada, fechada, hirta, ella reproduzia a austeridade da Lei.
Mas os largos celleiros, cobertos de colmo, os lagares, os vinhedos,
diziam as riquezas feitas de duros tributos: no pateo dez escravos não
bastavam a guardar os saccos de trigo, ôdres, carneiros marcados de
vermelho, recolhidos em pagamento do dizimo n'esse dia de Paschoa. Junto
á estrada, com uma piedade ostentosa, caiada de fresco, reluzia, ao sol,
entre roseiras, a sepultura domestica.

Assim caminhando chegámos aos palmares onde se aninha Betphagé. E por um
atalho virente que Topsius conhecia, começámos a subir o Monte das
Oliveiras, até o Lagar da Moabita--que é uma paragem de caravanas n'essa
infinita, vetusta Via Real que vem do Egypto, seguindo até Damasco a
bem-regada.

E foi como um deslumbramento, ao encontrarmos sobre todo o Monte, por
entre os olivedos da encosta até ao Cedron, por entre os pomares do
valle até Siloeh, em meio dos tumulos novos dos Sacrificadores, e mesmo
para os lados onde se empoeira a estrada de Hebron--o despertar rumoroso
de todo um povo acampado! Tendas negras do deserto, feitas de pelles de
carneiro e rodeadas de pedras: barracas de lona, da gente da Idumêa,
alvejando ao sol entre as verduras; cabanas armadas com ramos, onde se
abrigam os pastores d'Ascalon; toldos de tapetes que os peregrinos de
Nephtali suspendem em varas de cedro;--era toda a Judêa, ás portas de
Jerusalem, a celebrar a Paschoa Sagrada! E havia ainda, em volta ao
casal onde velava um posto de Legionarios, os mercadores gregos da
Decapola, tecelões phenicios de Tiberiade, e a gente pagã que, através
da Samaria, vem dos lados de Cesarêa e do mar.

Fomos marchando, lentos e cautelosos. Á sombra das oliveiras os camêlos
descarregados ruminavam placidamente; e as egoas da Perea, com as patas
entravadas, pendiam a cabeça sob a espessura das longas clinas. Junto ás
tendas, cujos panos meio levantados nos deixavam entrevêr brilhos
d'armas penduradas ou o esmalte d'um grande prato, raparigas, com os
braços reluzindo de braceletes, pisavam entre duas pedras o grão do
centeio; outras, mugiam as cabras; por toda a parte se accendiam fogos
claros; e com os filhos pela mão, o cantaro esguio ao hombro, uma fila
de mulheres descia cantando para a fonte de Siloeh.

As patas dos nossos cavallos prendiam-se nas cordas retesadas das
barracas dos Idumeus. Depois estacavamos diante de tapetes alastrados,
onde um mercador de Cesarêa, com um manto á carthagineza, vistoso e
bordado de flôres, expunha peças de linho do Egypto, estendia sêdas de
Cós, fazia reluzir armas marchetadas; ou com um frasco na palma de cada
mão, celebrava as perfeições do nardo da Assyria e dos oleos dôces da
Parthia... Os homens em redor, arredando-se, demoravam em nós os seus
olhos languidos e altivos; por vezes murmuravam uma injuria surda; ou
por causa dos oculos do douto Topsius, um riso d'escarneo mostrava
dentes agudos de fera, entre rudes barbas negras.

Sob as arvores, encostados aos muros, filas de mendidos ganiam,
mostrando o caco com que rapavam as chagas. Diante d'uma cabana feita de
ramos de loureiro, um velho obeso, rubro como um Sileno, apregoava o
vinho fresco de Sichem, as favas novas de abril. Os homens fuscos do
deserto apinhavam-se em torno dos gigos de fruta. Um pastor d'Ascalon,
em andas, no meio d'um rebanho de cordeiros brancos, tocava bozina,
chamando os devotos a comprar o anho puro da Paschoa. E por entre a
multidão onde constantemente se erguiam paus, em rixas bruscas, soldados
romanos rondavam aos pares com um ramo d'oliveira no capacete, benignos
e paternaes.

Assim chegámos junto de dois altos, frondosos cedros,--tão cobertos de
pombas brancas voando, que eram como duas grandes macieiras, na
primavera, que um vento estivesse destoucando das flôres. Subitamente,
Topsius parára, abria os braços; eu tambem: e com o coração suspenso
alli ficámos immoveis, deslumbrados, vendo lá em baixo, na luz,
resplandecer Jerusalem.

O sol banhava-a, sumptuosamente! Uma severa, altiva muralha, guarnecida
de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores
d'ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cedron, já sêcco pelos
calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado do Hinnon e
até aos cerros de Gareb. E, dentro, em face aos cedros que nos
assombreavam, o Templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar
toda a Judêa, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado
de bastiões de marmore, como a refulgente cidadella d'um Deus!...

Debruçado sobre as clinas, o sapiente Topsius apontava-me o adro
primordial, chamado «o Pateo dos Gentilicos», vasto bastante para
receber todas as multidões de Israel, todas as da terra pagã: o chão
liso rebrilhava como a agua limpida d'uma piscina: e as columnas de
marmore de Paros que o ladeavam, formando os Porticos de Salomão,
profundos e cheios de frescura, eram mais bastas que os troncos nos
cerrados palmares de Jerichó. Em meio d'esta área, cheia de ar e de luz,
elevava-se, em escadarias lustrosas como se fossem d'alabastro, com
portas chapeadas de prata, arcarias, torreões d'onde voavam pombas, um
nobre terraço, só accessivel aos fieis da Lei, ao Povo eleito de Deus, o
orgulhoso «Adro de Israel». D'ahi erguia-se ainda, com outras claras
escadarias, outro branco terraço, o «Atrio dos Sacerdotes»: no brilho
diffuso que o enchia negrejava um enorme altar de pedras brutas,
enristando a cada angulo um sombrio corno de bronze: aos lados dois
longos fumos direitos, subiam devagar, mergulhavam no azul com a
serenidade d'uma prece perennal. E ao fundo, mais alto, offuscante, com
os seus recamos d'ouro sobre a alvura dos marmores, niveo e fulvo, como
feito de ouro puro e neve pura, refulgia maravilhosamente, lançando o
seu clarão aos montes em redor, o _Hieron_, o Santuario dos Santuarios,
a morada de Jehovah: sobre a porta pendia o Véo Mystico, tecido em
Babylonia, côr do Fogo e côr dos Mares: pelas paredes trepava a folhagem
d'uma vinha d'esmeralda com cachos d'outras pedrarias: da cupula
irradiavam longas lanças de ouro que o aureolavam de raios como um sol:
e assim, resplandecente, triumphante, augusto, precioso, elle elevava-se
para aquelle céo de festa Paschal, offertando-se todo, como o dom mais
bello, o dom mais raro da Terra!

Mas ao lado do Templo, mais alto que elle, dominando-o com a severidade
d'um amo orgulhoso, Topsius mostrou-me a Torre Antonia, negra, macissa,
impenetravel, cidadella de forças romanas... Na plataforma, entre as
ameias, movia-se gente armada: sobre um bastião, uma figura forte,
envolta n'um manto vermelho de Centurião, estendia o braço; e toques
lentos de bozina pareciam fallar, dar ordens, para outras torres que ao
longe se azulavam no ar limpido, algemando a Cidade Santa. Cesar
pareceu-me mais forte que Jehovah!

E mostrou-me ainda, para além da Antonia, o velho burgo de David. Era um
tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como
um rebanho de cabras brancas para um valle ainda em sombra, onde uma
praça monumental se abria entre arcarias: depois trepava, fendido em
ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a collina fronteira d'Acra, rica,
com palacios, e cisternas redondas que luziam á luz semelhantes a
broqueis d'aço. Mais longe ainda, para além de velhos muros derrocados
era o bairro novo de Bezetha, em construcção; o Circo de Herodes
arredondava ahi as suas arcarias; e os jardins d'Antipas estiravam-se
por um ultimo outeiro, até junto ao tumulo de Helena, assoalhados,
frescos, regados pelas aguas dôces de Enrogel.

--Ah Topsius, que cidade! murmurei maravilhado.

--Rabbi Eliezer diz que não viu jámais cidade bella quem não viu
Jerusalem!

Mas ao nosso lado passava gente alegre, correndo, para os lados da verde
estrada que sobe de Bethania: e um velho que puxava á pressa a arreata
do seu burro, carregado de mólhos de palmas, gritou-nos que se avistára
e vinha chegando a caravana da Galilêa! Então, curiosos, trotámos até um
comoro, junto a uma sebe de cactos, onde já se apinhavam mulheres com os
filhos ao collo, sacudindo véos claros, soltando palavras de benção e de
boa acolhida:--e logo vimos, n'uma poeirada lenta que o sol dourava, a
densa fila dos peregrinos que são os derradeiros a chegar a Jerusalem,
vindos de longe, da alta Galilêa, desde Gescala e dos montes. Um rumor
de canticos enchia a estrada festiva: em torno a um estandarte verde
agitavam-se palmas e ramos floridos de amendoeira; e os grandes fardos,
carregando o dorso dos camêlos, balanceavam em cadencia por entre os
turbantes brancos cerrados e movendo-se em marcha.

Seis cavalleiros da guarda Babylonica d'Antipas Herodes, tetrarca de
Galilêa, escoltavam a caravana desde Tiberiade: traziam mitras de felpo,
as longas barbas separadas em tranças, as pernas ligadas em tiras de
couro amarello: e caracolavam á frente, fazendo estalar n'uma das mãos
açoites de corda, com a outra atirando ao ar e aparando alfanges que
faiscavam. Logo atraz era uma collegiada de Levitas, em côro, a passos
largos, apoiados a bordões enfeitados de flôres, com os rôlos da Lei
apertados sobre o peito, psalmodiando rijo os louvores de Sião. E em
torno moços robustos, com as faces infladas e rubras, sopravam para o
céo furiosamente em trompas recurvas de bronze.

Mas, d'entre a gente apertada á beira da estrada, rompeu uma acclamação.
Era um velho, sem turbante, de cabellos soltos, recuando e dançando
freneticamente: das mãos cabelludas que elle agitava no ar sahia um
repique de castanholas: ora arremessava uma perna, ora outra: e toda a
sua face barbuda de Rei David ardia com um fulgôr inspirado. Atraz
d'elle, raparigas, pulando compassadamente sobre a ponta ligeira das
sandalias, feriam com dolencia harpas leves; outras, rodando sobre si,
batiam d'alto os tamborinos--e as suas manilhas de prata brilhavam no pó
que os seus pés levantavam, sob a roda das tunicas enfunadas... Então,
arrebatada, a turba entoou o velho canto das jornadas rituaes e os
psalmos de Peregrinação.

--Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalem! Tu és perfeita! Quem te
ama conhece a abundancia!

E eu bradava tambem, transportado:

--Tu és o palacio do Senhor, ó Jerusalem, e o repouso do meu coração!

Lenta e rumorosa a caravana passava. As mulheres dos levitas, em burros,
veladas e rebuçadas, semelhavam grandes saccos molles: as mais pobres, a
pé, traziam nas pontas dobradas do manto frutas e o grão da aveia. Os
previdentes, já com a sua offrenda ao Senhor, arrastavam preso do cinto
um cordeiro branco; os mais fortes seguravam ás costas, presos pelos
braços, os doentes--cujos olhos dilatados, nas faces maceradas,
procuravam anciosamente as muralhas da Cidade Santa, onde todo o mal se
cura.

Entre os peregrinos e a alegre multidão que os acolhia, as bençãos
cruzavam-se, ruidosas e ardentes; alguns perguntavam pelos visinhos,
pelas searas ou pelos avós que tinham ficado na aldêa á sombra da sua
vinha: e ouvindo que lhe fôra roubada a pedra do seu moinho, um velho,
ao meu lado, com as barbas d'um Abrahão, arremessou-se a terra a
arrepellar-se e a esfarrapar a tunica. Mas já, fechando a marcha,
passavam as mulas com guisos carregadas de lenha e de ôdres d'azeite: e
atraz uma turba de fanaticos que nos arredores, em Betphagé e em
Rephrain, se tinham juntado á caravana, appareceu, atirando para os
lados cabaças de vinho já vazias, brandindo facas, pedindo a morte dos
Samaritanos e ameaçando a gente pagã...

Então seguindo Topsius trotei de novo através do monte para junto dos
cedros cobertos do vôo alvo das pombas: e n'esse instante tambem os
peregrinos, emergindo da estrada, avistavam emfim Jerusalem que
resplandecia lá em baixo formosa, toda branca na luz... Então foi um
santo, tumultuoso, inflammado delirio! Prostrada, a turba batia as faces
na terra dura: um clamor de orações subia ao céo puro por entre o
estridor das tubas: as mulheres erguiam os filhos nos braços
offertando-os arrebatadamente ao Senhor! Alguns permaneciam immoveis,
como assombrados, ante os esplendores de Sião: e quentes lagrimas de fé,
de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. Os velhos
mostravam com o dedo os terraços do Templo, as ruas antigas, os sacros
lugares da historia de Israel: «alli é a porta d'Ephrain, acolá era a
torre das Fornalhas; aquellas pedras brancas, além, são do tumulo de
Rachel...» E os que escutavam em redor, apinhados, batiam as mãos,
gritavam: «Bemdita sejas, Sião!» Outros, estonteados, com o cinto
desapertado, corriam tropeçando nas cordas das tendas, nos gigos de
fruta, a trocar a moeda romana, a comprar o anho da offerta. Por vezes,
d'entre as arvores, um canto subia, claro, fino, candido, e que ficava
tremendo no ar: a terra um momento parecia escutar, como o céo:
serenamente, Sião rebrilhava, do Templo os dois fumos lentos ascendiam,
com uma continuidade de prece eterna... Depois o canto morria: de novo
as bençãos rompiam, clamorosas: a alma inteira de Judá abysmava-se no
resplendor do santuario: e braços magros erguiam-se phreneticamente para
estreitar Jehovah.

De repente Topsius colheu-me as redeas da egoa: e quasi ao meu lado um
homem com uma tunica côr d'açafrão, surgindo esgazeado de traz de uma
oliveira e brandindo uma espada, saltou para cima d'uma pedra e gritou
desesperadamente:

--Homens de Galilêa, acudi, e vós, homens de Nephtali!...

Peregrinos correram, erguendo os bastões: e as mulheres sahiam das
tendas, pallidas, apertando os filhos ao collo. O homem fazia tremer a
espada no ar, todo elle tremia tambem: e outra vez bradou,
desoladamente:

--Homens de Galilêa, Rabbi Jeschoua foi preso! Rabbi Jeschoua foi levado
a casa de Hannan, homens de Nephtali!

--D. Raposo, disse Topsius então, com os olhos faiscantes, o Homem foi
preso, e compareceu já diante do Sanhedrin!... Depressa, depressa,
amigo, a Jerusalem, a casa de Gamaliel!

       *       *       *       *       *

E á hora em que no Templo se fazia a offerta do Perfume, quando o sol já
ia alto sobre o Hebron, Topsius e eu penetrámos, pela porta do Pescado,
a passo, n'uma rua da antiga Jerusalem. Era ingreme, tortuosa,
poeirenta, com casas baixas e pobres de tijolo; sobre as portas,
fechadas por uma corrêa, sobre as janellas esguias como fendas
gradeadas, havia verduras e palmas entretecidas, fazendo ornatos de
Paschoa. Nos terraços, rodeados de balaustradas, mulheres diligentes
sacudiam os tapetes, joeiravam o trigo; outras, chalrando, penduravam
lampadas de barro em festões para as illuminações rituaes.

Ao nosso lado ia marchando fatigado um harpista egypcio, com uma pluma
escarlate presa na peruca frisada, um pano branco envolvendo-lhe a cinta
fina, os braços pesados de braceletes, e a harpa ás costas, recurva como
uma foice e lavrada em flôres de lotus. Topsius perguntou-lhe se elle
vinha d'Alexandria. E ainda se cantavam nas tabernas do Eunotos as
cantigas da batalha d'Accio? O homem logo, mostrando n'um riso triste os
dentes longos, pousou a harpa, ia ferir os bordões... Picámos as egoas:
e assustámos duas mulheres cobertas de véos amarellos, com casaes de
pombas enroladas na ponta do manto, que se apressavam decerto para o
Templo, airosas, ligeiras, fazendo retinir os guisos das suas sandalias.

Aqui e além um lume caseiro ardia no meio da rua, com trempes,
caçarolas, d'onde sahia um cheiro acre d'alho: crianças de ventre enorme
que rolavam núas pela poeira, roendo vorazmente cascas d'abobora crua,
ficavam pasmadas para nós, com grandes olhos ramellosos onde fervilhavam
moscas. Diante d'uma forja um bando hirsuto de pastores de Moab
esperavam emquanto dentro, martellando n'um nimbo de chispas, os
ferreiros lhes batiam ferros novos para as lanças. Um negro, com um
pente em fórma de sol toucando-lhe a carapinha, apregoava, n'um grito
lugubre, bolos de centeio de feitios obscenos.

Calados, atravessámos uma praça, clara e lageada, que andava em obras.
Ao fundo uma casa de banhos, moderna, uma Therma romana, estendia com ar
de luxo e de ociosidade a longa arcada do seu portico de granito: no
pateo interior, por entre os platanos que o refrescavam, cujos ramos
suspendiam velarios de linho alvo, corriam escravos nús, reluzentes de
suor, levando vasos d'essencias e braçadas de flôres; das aberturas
gradeadas, ao rez das lages, sahia um bafo molle d'estufa que cheirava a
rosa. E sob uma das columnas vestibulares, onde uma lapide d'onyx
indicava a entrada das mulheres, estava de pé, immovel, offertando-se
aos votos como um idolo, uma creatura maravilhosa: sobre a sua face
redonda, d'uma brancura de lua cheia, com labios grossos, rubros de
sangue, erguia-se a mitra amarella das prostitutas de Babylonia; dos
hombros fortes, por cima da tumida rijeza dos seios direitos, cahia em
pregas duras de brocado uma dalmatica negra radiantemente recamada de
ramagens côr de ouro. Na mão tinha uma flôr de cactus; e as suas
palpebras pesadas, as pestanas densas, abriam-se e fechavam-se em
rythmo, ao mover onduloso d'um leque que uma escrava preta, agachada a
seus pés, balançava cantando. Quando os seus olhos se cerravam, tudo em
redor parecia escurecer; e quando se levantava a negra cortina das suas
pestanas, vinha d'essa larga pupilla um clarão, uma influencia, como a
do sol do meio dia no deserto que abraza e vagamente entristece. E assim
se offertava, magnifica, com os seus grandes membros de marmore, a sua
mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e d'Adonis, lasciva e
pontifical...

Toquei no braço de Topsius, murmurei, pallido:

--Caramba! Vou aos banhos!

Sêcco, impertigado na sua capa branca, elle volveu asperamente:

--Espera-nos Gamaliel, filho de Simeon. E a sabedoria dos Rabbis lá
disse que a mulher é o caminho da iniquidade!

E bruscamente penetrou n'uma lobrega viella, toda abobadada: as patas
das egoas, ferindo as lages, acirraram contra nós uivos de cães,
maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltámos por
uma brecha da antiga muralha de Ezekiah, passámos uma velha cisterna
sêcca onde os lagartos dormiam: e trotando pela poeira solta d'uma longa
rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão,
parámos no alto diante d'uma entrada mais nobre, em arco, com uma grade
baixa d'arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.

No meio d'um vasto pateo ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro
toldava a agua clara d'um tanque. Em volta, sobre pilastras de marmore
verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, d'onde pendia aqui e
além um tapete da Assyria com flôres bordadas. Um puro azul brilhava no
alto;--e ao canto, sob um alpendre, um negro atrellado por cordas como
uma alimaria a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de
cicatrizes, ia fazendo gemer e girar lentamente a grande mó de pedra do
moinho domestico.

No escuro d'uma porta appareceu um homem obeso, sem barba, quasi tão
amarello como a tunica lassa que o envolvia todo: tinha na mão uma vara
de marfim e mal podia erguer as palpebras molles.

--Teu amo? gritou-lhe Topsius, desmontando.

--Entra, disse o homem n'uma voz fugidia e fina como um silvo de cobra.

Por uma escadaria rica de granito negro chegámos a um patamar--onde
pousavam dois candelabros, espigados como os arbustos de que
reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas: e entre elles estava de pé,
diante de nós, Gamaliel, filho de Simeon. Era muito alto, muito magro; e
a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um
sinete de coral pendurado d'uma fita escarlate. O seu turbante branco,
entremeado de fios de perolas, descobria uma tira de pergaminho collada
sobre a testa e cheia de textos sagrados: sob aquella alvura, os seus
olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa tunica azul
cobria-o até ás sandalias, orlada de compridas franjas que arrastavam: e
cosidas ás mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de
pergaminho onde negrejavam outras escripturas rituaes.

Topsius saudou-o á moda do Egypto, deixando cahir lentamente a mão até á
joelheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e
murmurou, como psalmodiando:

--Entrai, sêde bem vindos, comei e regosijai-vos...

E atraz de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetrámos n'uma
sala onde se achavam tres homens. Um, que se afastou da janella para nos
acolher, era magnificamente bello, com longos cabellos castanhos,
pendendo em anneis dôces em torno d'um pescoço forte, macio e branco
como um marmore corinthio: na faxa negra que lhe apertava a tunica
brilhava, com pedrarias, o punho d'ouro d'uma espada curta. O outro,
calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão livida que
parecia coberta de farinha, ficára encruzado, embrulhado no seu manto
côr de vinho, sobre um divan feito de correias--tendo uma almofada de
purpura debaixo de cada braço; e o seu gesto d'acolhida foi mais
distrahido e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro.
Mas Topsius quasi se prostrára, a beijar os seus sapatos redondos de
couro amarello, atados por fios de ouro--porque aquelle era o venerando
Osanias, da familia pontifical de Beothos, ainda do sangue real de
Aristobolus! O outro homem não o saudámos, nem elle tambem nos viu;
estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz d'uma tunica de
linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado n'uma oração: e só de
vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da
fina brancura da tunica, que lhe pendia d'uma corda, apertada á cintura,
grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.

No emtanto, descalçando as luvas, eu examinava o tecto da sala, todo de
cedro, com lavores retocados d'escarlate. O azul liso e lustroso das
paredes era como a continuação d'aquelle céo d'Oriente, quente e puro,
que resplandecia através da janella, onde se destacava, pendido do muro,
na plena luz, um ramo solitario de madresilva. Sobre uma tripeça,
incrustada de nacar, n'um incensador de bronze, fumegava uma resina
aromatica.

Mas Gamaliel aproximára-se--e depois de ter olhado duramente as minhas
botas de montar disse com lentidão:

--A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...

Murmurei polidamente uma recusa... E elle, grave como se recitasse um
texto:

--A hora do meio dia é a mais grata ao Senhor. Joseph disse a Benjamim:
«tu comerás commigo ao meio dia.» Mas a alegria do hospede é tambem doce
ao Muito-Alto, ao Muito-Forte... Estaes fracos, ides comer, para que a
vossa alma me abençôe.

Bateu as palmas--um servo, com os cabellos apertados n'um diadema de
metal, entrou trazendo um jarro cheio d'agua tepida que cheirava a rosa,
onde eu purifiquei as mãos; outro offereceu bolos de mel sobre viçosas
folhas de parra; outro verteu em taças de louça brilhante um vinho forte
e negro d'Emaús. E para que o hospede não comesse só, Gamaliel partiu um
gomo de romã, e com as palpebras cerradas levou á beira dos labios uma
malga, onde boiavam pedaços de gêlo entre flôres de laranjeira.

--Pois agora, disse eu lambendo os dedos, tenho lastro até ao meio
dia...

--Que a tua alma se regosije!

Accendi um cigarro, debrucei-me na janella. A casa de Gamaliel ficava
n'um alto, decerto por traz do Templo, sobre a collina d'Ophel: alli o
ar era tão dôce e macio, que só o sentir a sua caricia enchia de paz o
coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes o Grande; e
para além floriam jardins e pomares dando sombra ao Valle da Fonte, e
subindo até á collina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de
Siloé. Por uma fenda, entre o monte do Escandalo e a collina dos
Tumulos, eu via resplandecer o mar Morto como uma chapa de prata: as
montanhas de Moab ondulavam depois, suaves, d'um azul apenas mais denso
que o do céo: e uma fórma branca, que parecia tremer na vibração da luz,
devia ser a cidadella de Makeros sobre o seu rochedo, nos confins da
Idumêa. No terraço relvoso d'uma casa, ao pé das muralhas, uma figura
immovel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guisos, olhava como
eu para esses longes da Arabia: e ao lado uma rapariga, ligeira e
delgada, com os braços nús erguidos, chamava um bando de pombas que
esvoaçavam em redor. A tunica aberta descobria-lhe o seiosinho cheio de
seiva: e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no
silencio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que
dizia, como o homem do manto côr d'açafrão no Monte das Oliveiras: «Sim,
esta noite, em Bethania, Rabbi Jeschoua foi preso...»

Depois ajuntou, lento, com os olhos semi-cerrados, erguendo por entre os
dedos os longos fios da barba:

--Mas Poncius teve um escrupulo... Não quiz julgar um homem de Galilêa
que é subdito de Antipas Herodes... E como o Tetrarcha veio á Paschoa a
Jerusalem, Poncius mandou o Rabbi á sua morada, a Bezetha...

Os doutos oculos de Topsius rebrilharam d'espanto.

--Coisa estranha! exclamou, abrindo os braços magros. Poncius
escrupuloso, Poncius formalista! E desde quando respeita Poncius a
judicatura do Tetrarcha? Quantos pobres galileus não fez elle matar sem
licença do Tetrarcha, quando foi da revolta do aqueducto, quando espadas
romanas, por ordem de Poncius, misturaram nos pateos do Templo o sangue
dos homens de Nephtali ao sangue dos bois do Sacrificio!

Gamaliel murmurou sombriamente:

--O Romano é cruel, mas escravo da legalidade.

Então Osanias, filho de Beothos, disse com um sorriso molle e sem
dentes, agitando de leve, sobre a purpura das almofadas, as mãos
resplandecentes de anneis:

--Ou talvez seja que a mulher de Poncius proteja o Rabbi.

Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da Romana. E como os oculos
de Topsius interrogavam o venerando Osanias elle admirou-se que o Doutor
ignorasse coisas tão conversadas no Templo, até pelos pastores que vem
da Idumêa vender os cordeiros da Offrenda. Sempre que o Rabbi prégava no
Portico de Salomão, do lado da porta de Suza, Claudia vinha vêl-o do
alto do terraço da Torre Antonia, só, envolta n'um véo negro... Menahem,
que guardava no mez de Tebeth a escadaria dos Gentis, vira a mulher de
Poncius acenar com o véo ao Rabbi. E talvez Claudia, saciada de Capreia,
de todos os cocheiros do Circo, de todos os histriões de Suburra, e dos
brinquedos d'Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Accius,
quizesse provar, vindo á Syria, a que sabiam os beijos d'um propheta de
Galilêa...

O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o
capuz de sobre os cabellos revoltos: o seu largo olhar azul fulgurou por
toda a sala, n'um relampago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das
pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo:

--Osanias, o Rabbi é casto!

O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabbi! E então essa galilêa de
Magdala, que vivera no bairro de Bezetha, e nas festas do Prurim se
misturava com as prostitutas gregas ás portas do theatro d'Herodes?... E
Joanna, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros d'Antipas? E outra
d'Ephrain, Suzanna, que uma noite, a um gesto do Rabbi, a um aceno do
seu desejo, deixára o tear, deixára os filhos, e com o peculio
domestico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesarêa...?

--Oh Osanias! gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha
uma espada com pedrarias. Oh filho de Beothos, como tu conheces, uma a
uma, as incontinencias d'um Rabbi galileu, filho das hervas do chão e
mais miseravel que ellas! Nem que se tratasse d'Elius Lamma, nosso
Legado Imperial, que o Senhor cubra de males!

Os olhos d'Osanias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram
d'agudeza e malicia.

--Oh Manassés! É para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros
de Judas de Galaunitida, não nos accuseis sempre, a nós sadduceus, de
saber só o que se passa no Atrio dos Sacerdotes e nos eirados da casa
d'Hannan...

Uma tosse rouca reteve-o um espaço, suffocando, sob a ponta do manto em
que vivamente se embuçára. Depois, mais quebrado, com laivos rôxos na
face farinhenta:

--Que em verdade foi justamente na casa d'Hannan que ouvimos isto a
Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou elle que
esse Rabbi de Galilêa chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e
outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de
Sichem, erguer-se afogueado, de traz da borda d'um poço, com uma mulher
da Samaria!

O homem coberto d'alvo linho ergueu-se d'um salto, todo direito e
tremulo; e no grito que lhe escapou havia o horror de quem surprehende a
profanação d'um altar!

Mas Gamaliel, com uma sêcca authoridade, cravou n'elle os olhos duros:

--Oh Gad, aos trinta annos o Rabbi não é casado! Qual é o seu trabalho?
Onde está o campo que lavra? Alguem jámais conheceu a sua vinha?
Vagabundeia pelos caminhos, e vive do que lhe offertam essas mulheres
dissolutas! E que outra coisa fazem esses moços sem barba de Sybaris e
de Lesbos, que passeiam todo o dia na via Judiciaria, e que vós outros,
Essenios, abominaes de tal sorte, que correis a lavar as vestes n'uma
cisterna se um d'elles roça por vós?... Tu ouviste Osanias, filho de
Beothos... Só Jehovah é grande! e em verdade te digo que quando Rabbi
Jeschoua, desprezando a Lei, dá á mulher adultera um perdão que tanto
captiva os simples, cede á frouxidão da sua moral e não á abundancia da
sua misericordia!

Com a face abrazada, e atirando os braços ao ar, Gad bradou:

--Mas o Rabbi faz milagres!

E foi o formoso Manassés, com um sereno desdem, que respondeu ao
Essenio:

--Socega, Gad, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres.
Fêl-os Apollonius, e fêl-os Gabienus... E que são os prodigios do teu
galileu comparados aos das filhas do Grão Sacerdote Anius, e aos do
sabio Rabbi Chekiná?

E Osanias escarnecia a simplez de Gad:

--Em verdade, que aprendeis vós outros, Essenios, no vosso oasis
d'Engaddi? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria,
ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fabricas de papyros,
e vês lá Magos fazendo milagres por um drachma, que é o preço d'um dia
de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe
Oannes, que tem barbatanas de nacar e préga nas margens do Euphrates, em
noites de lua cheia!

Gad sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirára sob a
immensidão do seu desdem. Deu um passo vagaroso, depois outro,--e
considerando, apiedadamente, aquelles homens enfatuados, endurecidos e
cheios d'irrisão:

--Vós dizeis, vós dizeis, vãos á maneira de moscardos que zumbem! Vós
dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galilêa, que é bem fertil, bem verde,
quando elle fallava era como se corresse uma fonte de leite em terra de
fome e seccura: até a luz parecia um bem maior! As aguas, no lago de
Tiberiade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o
rodeavam subia a gravidade d'uma fé já madura... Elle fallava: e como
pombas que desdobram as azas e vôam da porta d'um santuario, nós viamos
desprender-se dos seus labios, irem voar por sobre as nações do mundo
toda a sorte de cousas nobres e santas, a Caridade, a Fraternidade, a
Justiça, a Misericordia, e as fórmas novas, bellas, divinamente bellas,
do Amor!

A sua face resplandecia, enlevada para os céos, como seguindo o vôo
d'essas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, Doutor da Lei, o
rebatia com uma dura auctoridade:

--Que ha d'original e d'individual em todas essas idéas, homem? Pensas
que o Rabbi as tirou da abundancia do seu coração? Está cheia d'ellas a
nossa doutrina!... Queres ouvir fallar de Amor, de Caridade, de
Igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrah... Tudo isso o prégou
Hillel, tudo isso o disse Schemaia! Cousas tão justas se encontram nos
livros pagãos, que são, ao pé dos nossos, como o lôdo ao pé da agua pura
de Siloeh!... Vós mesmos os Essenios tendes preceitos melhores!... Os
Rabbis de Babylonia, d'Alexandria, ensinaram sempre leis puras de
Justiça e de Igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iokanan, a quem chamaes
o Baptista, que lá acabou tão miseravelmente n'um ergastulo de
Makeros...

--Iokanan! exclamou Gad, estremecendo, como rudemente acordado da
suavidade d'um sonho.

Os seus olhos brilhantes humedeceram. Tres vezes, curvado para o chão,
com os braços abertos, repetiu o nome de Iokanan, como chamando alguem
d'entre os mortos. Depois, com duas lagrimas rolando pela barba,
murmurou muito baixo, n'uma confidencia que o enchia de terror e de fé:

--Fui eu que subi a Makeros a buscar a cabeça do Baptista! E quando
descia o caminho, com ella embrulhada no meu manto, ainda a outra,
Herodiade, estirada por sobre a muralha como a femea lasciva do tigre,
rugia e me gritava injurias!... Tres dias e tres noites segui pelas
estradas de Galilêa, levando a cabeça do justo pendurada pelos
cabellos... Ás vezes, detraz d'um rochedo, um anjo surgia todo coberto
de negro, abria as azas e punha-se a caminhar ao meu lado...

De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos resoaram nas lages: e
ficou prostrado, orando anciosamente, com os braços estendidos em cruz.

Então Gamaliel adiantou-se para o sabio Topsius; e, mais direito que uma
columna do Templo, com os cotovêlos collados á cinta, as mãos magras
espalmadas para fóra:

--Nós temos uma Lei, a nossa Lei é clara. Ella é a palavra do Senhor; e
o Senhor disse: «Eu sou Jehovah, o eterno, o primeiro e o ultimo, o que
não transmitte a outros nem o seu nome, nem a sua gloria: antes de mim
não houve Deus algum, não existe Deus algum ao meu lado, não haverá Deus
algum depois de mim...» Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda:
«Se pois entre vós apparecer um propheta, um visionario que faça
milagres e queira introdizir outro Deus e chame os simples ao culto
d'esse Deus,--esse propheta e visionario morrerá!» Esta é a Lei, esta é
a voz do Senhor. Ora o Rabbi de Nazareth proclamou-se Deus em Galilêa,
nas synagogas, nas ruas de Jerusalem, nos pateos santos do Templo... O
Rabbi deve morrer.

Mas o formoso Manassés, cujo languido olhar entenebrecia como um céo
onde vai trovejar, interpoz-se entre o Doutor da Lei e o historiador dos
Herodes. E nobremente repelliu a letra cruel da Doutrina:

--Não, não! Que importa que a lampada d'um sepulchro diga que é o sol?
Que importa que um homem abra os braços e grite que é um Deus? As nossas
leis são suaves: por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil
a Gareb...

Eu, caridosso, ia louvar Manassés. Mas já elle bradava com violencia e
fervor:

--Todavia esse Rabbi de Galilêa deve decerto morrer, porque é um mau
cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o
tributo a Cesar? O Rabbi estende a mão a Roma, o romano não é o seu
inimigo. Ha tres annos que préga, e ninguem jámais lhe ouviu proclamar a
necessidade santa de expulsar o Estrangeiro. Nós esperamos um Messias
que traga uma espada e liberte Israel, e este, nescio e verboso, declara
que traz só o _pão da verdade_! Quando ha um pretor romano em Jerusalem,
quando são lanças romanas que velam ás portas do nosso Deus, a que vem
esse visionario fallar do pão do céo e do vinho da verdade? A unica
verdade util é que não deve haver romanos em Jerusalem!...

Osanias, inquieto, olhou a janella cheia de luz, por onde as ameaças de
Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o
discipulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:

--Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céo
é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta
terra d'Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O
Rabbi é traidor á patria! O Rabbi deve morrer!

Tremulo, agarrára a espada: e o seu olhar alargava-se, com uma
fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a gloria
dos supplicios.

Então Osanias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava n'uma pinha
d'ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuvear a sua velhice leviana. E
começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do
Enthusiasmo e da Doutrina aponta o mandado inilludivel da Necessidade:

--Decerto, decerto, pouco importa que um visionario se diga Messias e
filho de Deus, ameace destruir a Lei e destruir o Templo. O Templo e a
Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh
Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar
o carrasco a Gareb, porque um Rabbi de Galilêa, que se lembra dos filhos
de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudencia e malicia nas
relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos: mas pódes
tu com ellas desviar a corrente do Jordão da terra de Canaan para a
terra da Trakaunitida? Não. Nem pódes tambem impedir que as legiões de
Cesar, que cobriram as cidades da Grecia, venham cobrir o paiz de Judá!
Sabio e forte era Judas Macchabeo, e fez amizade com Roma... Porque Roma
é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando elle vem, o
insensato offerece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente
recolhe á sua morada e está quieto. Indomavel era a Galacia; Filippe e
Perseu tinham exercitos na planicie; Antiochus o Grande commandava cento
e vinte elephantes e carros de guerra innumeraveis... Roma passou;
d'elles que resta? Escravos, pagando tributos...

Curvára-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre
nós os olhos miudos que dardejavam um brilho inexoravel e frio,
proseguiu, sempre de manso e subtil:

--Mas em verdade vos digo, que esse Rabbi de Galilêa deve morrer! Porque
é o dever do homem que tem bens na terra e searas apagar depressa com a
sandalia, sobre as lages da eira, a fagulha que ameaça inflammar-lhe a
mêda... Com o romano em Jerusalem, todo aquelle que venha e se proclame
Messias, como o de Galilêa, é nocivo e perigoso para Israel. O romano
não comprehende o Reino do céo que elle promette: mas vê que essas
prédicas, essas exaltações divinas agitam sombriamente o povo dentro dos
porticos do Templo... E então diz: «na verdade este Templo, com o seu
ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a auctoridade de
Cesar na Judêa...» E logo, lentamente, annulla a força do Templo
diminuindo a riqueza, os privilegios do seu sacerdocio. Já para nossa
humilhação, as vestes pontificaes são guardadas no erario da Torre
Antonia: ámanhã será o Candelabro d'ouro! Já o Pretor usou, para nos
empobrecer, o dinheiro do Corban! Ámanhã os dizimos da colheita, o dos
gados, o dinheiro da offrenda, o óbolo das trombetas, os tributos
rituaes, todos os haveres do sacerdocio, até as viandas dos sacrificios,
nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para
irmos mendigar nas estradas de Samaria, á espera dos mercadores ricos da
Decapola... Em verdade vos digo, se quizermos conservar as honras e os
thesouros, que são nossos pela antiga Lei, e que fazem o esplendor
d'Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um Templo quieto,
policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabbi
deve morrer!

Assim diante de mim fallou Osanias, filho de Beothos, e membro do
Sanhedrin.

Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverencia as mãos
sobre o peito, saudou tres vezes aquelles homens facundos. Gad, immovel,
orava. No azul da janella uma abelha côr d'ouro zumbia em torno da flôr
de madresilva. E Topsius dizia com pompa:

--Homens que me haveis acolhido, a verdade abunda nos vossos espiritos
como a uva abunda nas videiras! Vós sois tres torres que guardaes Israel
entre as nações: uma defende a unidade da Religião, outra mantem o
enthusiasmo da Patria: e a terceira, que és tu, venerando filho de
Beothos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma
cousa mais preciosa que é a Ordem!... Vós sois tres torres: e contra
cada uma o Rabbi de Galilêa ergue o braço e lança a primeira pedrada!
Mas vós guardaes Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis
deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o Judaismo
nunca poderiam viver juntos.

E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara fragil, disse, mostrando
os dentes brancos:

--Por isso o crucificamos!

Foi como uma faca acerada que, lampejando e silvando, se viesse cravar
no meu peito! Arrebatei, suffocado, a manga do douto historiador:

--Topsius! Thopsius! quem é esse Rabbi que prégava em Galilêa, e faz
milagres e vai ser crucificado?

O sabio doutor arregalou os olhos com tanto pasmo, como se eu lhe
perguntasse qual era o astro que d'além dos montes traz a luz da manhã.
Depois, seccamente:

--Rabbi Jeschoua bar Joseph, que veio de Nazareth em Galilêa, a quem
alguns chamam Jesus e outros tambem chamam o Christo.

--O nosso! gritei, vacillando, como um homem atordoado.

E os meus joelhos catholicos quasi bateram as lages, n'um impulso de
ficar alli cahido, enrodilhado no meu pavor, rezando desesperadamente e
para sempre. Mas logo como uma labareda chammejou por todo o meu sêr o
desejo de correr ao seu encontro e pôr os meus olhos mortaes no corpo do
meu Senhor, no seu corpo humano e real, vestido do linho de que os
homens se vestem, coberto com o pó que levantam os caminhos humanos!...
E ao mesmo tempo, mais do que treme a folha n'um aspero vento, tremia a
minha alma n'um terror sombrio:--o terror do servo negligente diante do
amo justo! Estava eu bastante purificado com jejuns e terços para
affrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga
deficiencia da minha devoção! Eu não beijára jámais, com sufficiente
amor, o seu pé dorido e rôxo na sua igreja da Graça! Ai de mim! Quantos
domingos, n'esses tempos carnaes em que a Adelia, sol da minha vida, me
esperava na travessa dos Caldas, fumando e em camisa--não maldissera eu
a lentidão das Missas e a monotonia dos Septenarios! E sendo assim do
craneo á sola dos pés uma crosta de peccado, como poderia meu corpo não
tombar, já reprobo, já tisnado, quando os dois globos dos olhos do
Senhor, como duas metades do céo, se voltassem vagarosamente para mim?

Mas _vêr_ Jesus! Vêr como eram os seus cabellos, que pregas fazia a sua
tunica, e o que acontecia na terra quando os seus labios se abriam!...
Para além d'esses eirados onde as mulheres atiravam grão ás pombas;
n'uma d'essas ruas d'onde me chegava claro e cantado o pregão dos
vendedores de pães azymos--ia passando talvez n'esse temeroso instante,
entre barbudos, graves soldados romanos, Jesus, meu Salvador, com uma
corda amarrada nas mãos. A lenta aragem que balançava na janella o ramo
de madresilva, e lhe avivava o aroma, acabava talvez de roçar a fronte
do meu Deus, já ensanguentada d'espinhos! Era só empurrar aquella porta
de cedro, atravessar o pateo onde gemia a mó do moinho domestico,--e
logo, na rua, eu poderia _vêr_ presente e corporeo o meu Senhor Jesus
tão realmente e tão bem como o viram S. João e S. Matheus. Seguiria a
sua sacra sombra no muro branco--onde cahiria tambem a minha sombra. Na
mesma poeira que as minhas solas pisassem--beijaria a pégada ainda
quente dos seus pés! E abafando com ambas as mãos o barulho do meu
coração,--eu poderia surprehender, sahido da sua bocca ineffavel, um ai,
um soluço, um queixume, uma promessa! Eu saberia então uma palavra nova
do Christo, não escripta no Evangelho;--e só eu teria o direito
pontifical de a repetir ás multidões prostradas. A minha auctoridade
surgia, na Igreja, como a d'um Testamento novissimo. Eu era uma
testemunha inedita da Paixão. Tornava-me S. Theodorico Evangelista!

Então, com uma desesperada anciedade que espantou aquelles Orientaes de
maneiras mesuradas, eu gritei:

--Onde o posso vêr? Onde está Jesus de Nazareth, meu Senhor?

N'esse momento um escravo, correndo na ponta leve das sandalias, veio
cahir de bruços nas lages, diante de Gamaliel; beijava-lhe as franjas da
tunica, as suas costellas magras arquejavam; por fim murmurou, exhausto:

--Amo, o Rabbi está no Pretorio!

Gad emergiu da sua oração com um salto de fera, apertou em tôrno dos
rins a corda de nós, e correu arrebatadamente, com o capuz solto,
espalhando em redor o sulco louro dos seus cabellos revoltos. Topsius
traçára a sua capa branca, com essas pregas de toga latina que lhe davam
a solemnidade d'um marmore; e tendo comparado a hospitalidade de
Gamaliel á d'Abrahão, bradou-me triumphantemente:

--Ao Pretorio!

       *       *       *       *       *

Muito tempo segui Topsius através da antiga Jerusalem, n'uma caminhada
offegante, todo perdido no tumulto dos meus pensamentos. Passámos junto
a um jardim de rosas, do tempo dos Prophetas, esplendido e silencioso,
que dois levitas guardavam com lanças douradas. Depois foi uma rua
fresca, toda aromatisada pelas lojas dos perfumistas, ornadas de
taboletas em fórma de flôres e d'almofarizes: um toldo de esteiras finas
assombreava as portas, o chão estava regado e juncado d'herva dôce e de
folhas d'anemonas: e pela sombra preguiçavam moços languidos, de
cabellos frisados em cachos, de olheiras pintadas, mal podendo erguer,
nas mãos pesadas d'anneis, as sêdas roçagantes das tunicas côr de cereja
e côr d'ouro. Além d'essa rua indolente abria-se uma praça, que
escaldava ao sol, com uma poeira grossa e branca, onde os pés se
enterravam: solitaria, no meio, uma vetusta palmeira arqueava o seu
penacho, immovel e como de bronze: e ao fundo, negrejavam na luz as
columnatas de granito do velho palacio de Herodes. Ahi era o Pretorio.

Defronte do arco d'entrada, onde rondavam, com plumas pretas no elmo
reluzente, dois legionarios da Syria--um bando de raparigas, tendo
detraz da orelha uma rosa e no regaço coifas d'esparto, apregoavam os
pães azymos. Sob um enorme guardasol de pennas, cravado no chão, homens
de mitra de feltro, com taboas sobre os joelhos e balanças trocavam a
moeda romana. E os vendedores d'agua, com os seus ôdres felpudos,
lançavam um grito tremulo. Entrámos: e logo um terror me envolveu.

Era um claro pateo, aberto sob o azul, ladeado de marmore, tendo de cada
lado uma arcada, elevada em terraço, com parapeito, fresca e sonora como
um claustro de mosteiro. Da arcaria ao fundo, encimada pela frontaria
austera do Palacio, estendia-se um velario, d'um estofo escarlate
franjado d'ouro, fazendo uma sombra quadrada e dura: dois mastros de pau
de sycomoro sustentavam-n'o, rematados por uma flôr de lotus.

Ahi apertava-se um magote de gente--onde se confundiam as tunicas dos
Phariseus orladas d'azul, o rude saião d'estamenha dos obreiros apertado
com um cinto de couro, os vastos albornozes listrados de cinzento e
branco dos homens de Galilêa, e a capa carmezim de grande capuz dos
mercadores de Tiberiade; algumas mulheres já fóra do abrigo do velario,
alçavam-se na ponta das chinelas amarellas, estendendo por cima do rosto
contra o sol, uma dobra do manto ligeiro: e d'aquella multidão sahia um
cheiro morno de suor e de myrrha. Para além, por cima dos turbantes
alvos apinhados, brilhavam pontas de lança. E ao fundo, sobre um sólio,
um homem, um magistrado, envolto nas pregas nobres d'uma toga pretexta,
e mais immovel que um marmore, apoiava sobre o punho forte a barba densa
e grisalha: os seus olhos encovados pareciam indolentemente adormecidos:
uma fita escarlate prendia-lhe os cabellos: e por traz, sobre um
pedestal que fazia espaldar á sua cadeira curul, a figura de bronze da
Loba Romana abria de travez a guela voraz. Perguntei a Topsius quem era
aquelle magistrado melancolico.

--Um certo Poncius, chamado Pilatus, que foi Prefeito em Batavia.

Lentamente caminhei pelo pateo, procurando, como n'um templo, fazer mais
subtil e respeitoso o ruido das minhas solas. Um grave silencio cahia do
céo rutilante: só, por vezes, rompia do lado dos jardins, aspero e
triste, o gritar dos pavões. Estendidos no chão, junto á balaustrada do
claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava
moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes,
postos contra uma columna, havia trabalhadores compondo o telhado. E
crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas
lages.

Subitamente, alguem familiar tocou no hombro do historiador dos Herodes.
Era o formoso Manassés; e com elle vinha um velho magnifico, d'uma
nobreza de Pontifice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da
simarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve,
lustrosa d'oleo, cahia-lhe até á faxa que o cingia; e os hombros largos
desappareciam sob a esparsa abundancia dos cabellos alvos, sahindo do
turbante como uma pura romeira de arminhos reaes. Uma das mãos, cheia de
anneis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma
criança pallida, que tinha os olhos mais bellos que estrellas, e
semelhava junto ao ancião um lirio á sombra d'um cedro.

--Subi á galeria, disse-nos Manassés. Tereis lá repouso e frescura...

Seguimos o Patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o
outro tão velho, tão augusto.

--Rabbi Robam, murmurou com veneração o meu douto amigo. Uma luz do
Sanhedrin, facundo e subtil entre todos, e confidente de Kaipha...

Reverente, saudei tres vezes Rabbi Robam--que se sentára n'um banco de
marmore, pensativo, aconchegando sobre o seu vasto peito ancestral a
cabeça da criança mais loura que os milhos de Joppé. Depois continuámos
devagar pela galeria sonora e clara: na sua extremidade brilhava uma
porta sumptuosa de cedro com chapas de prata lavradas: um Pretoriano de
Cesarêa guardava-a, somnolento, encostado ao seu alto escudo de vime.
Ahi, commovido, caminhei para o parapeito: e logo meus olhos mortaes
encontraram lá em baixo--a fórma encarnada do meu Deus!

Mas, oh rara surpreza da alma variavel, não senti extasis nem terror!
Era como se de repente me tivessem fugido da memoria longos, laboriosos
seculos de Historia e de Religião. Nem pensei que aquelle homem sêcco e
moreno fosse o Remidor da Humanidade... Achei-me inexplicavelmente
anterior nos tempos. Eu já não era Theodorico Raposo, christão e
bacharel: a minha individualidade como que a perdera, á maneira d'um
manto que escorrega, n'essa carreira anciosa desde a casa de Gamaliel.
Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrára, me refizera um
_sêr_; eu era tambem um antigo. Era Theodoricus, um Lusitano, que viera
n'uma galera das praias resoantes do Promontorio Magno, e viajava, sendo
Tiberio imperador, em terras tributarias de Roma. E aquelle homem não
era Jesus, nem Christo, nem Messias,--mas apenas um moço de Galilêa que,
cheio d'um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar
todo um mundo e renovar todo um céo, e encontra a uma esquina um
Nethenim do Templo que o amarra e o traz ao Pretor, n'uma manhã
d'audiencia, entre um ladrão que roubára na estrada de Sichem e outro
que atirára facadas n'uma rixa em Emath!

N'um espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o
assento curul do Pretor sob a Loba Romana--Jesus estava de pé, com as
mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um
largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azues,
cobria-o até aos pés, calçados de sandalias já gastas pelos caminhos do
deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa corôa
inhumana de espinhos, de que eu lêra nos Evangelhos; tinha um turbante
branco, feito d'uma longa faxa de linho enrolada, cujas pontas lhe
pendiam de cada lado sobre os hombros; um cordel amarrava-lh'o por baixo
da barba encaracolada e aguda. Os cabellos sêccos, passados por traz das
orelhas, cahiam-lhe em anneis pelas costas; e no rosto magro,
requeimado, sob sobrancelhas densas, unidas n'um só traço, negrejava com
uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia,
forte e sereno diante do Pretor. Só algum estremecimento das mãos presas
trahia o tumulto do seu coração; e ás vezes respirava longamente, como
se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos
lagos de Galilêa, suffocasse entre aquelles marmores, sob o pesado
velario romano, na estreiteza formalista da Lei.

A um lado, Sarêas, o vogal do Sanhedrin, tendo deposto no chão o seu
manto e o seu baculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de
pergaminho, n'um murmurio cantado e dormente. Sentado n'um escabello, o
Assessor romano, suffocado pelo calor já aspero do mez de Nizam,
refrescava com um leque de folhas d'heras sêccas a face rapada e branca
como um gesso: um escriba, velho e nedio, n'uma mesa de pedra cheia de
tabularios e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus calamos: e
entre ambos o interprete, um phenicio imberbe, sorria com a face no ar,
com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado sobre a
jaqueta de linho um papagaio vermelho. Em torno ao velario,
constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galilêa
preso, diante do Pretor de Roma...

No emtanto Sarêas, tendo enrolado em torno á haste de ferro o pergaminho
escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo para marcar nos
seus labios o sêllo da verdade,--e immediatamente encetou uma arenga em
grego, com textos, verbosa e aduladora. Fallava do Tetrarca de Galilêa,
o nobre Antipas; louvava a sua prudencia; celebrava seu pai Herodes o
Grande, restaurador do Templo... A gloria d'Herodes enchia a terra; fôra
terrivel, sempre fiel aos Cesares; seu filho Antipas era engenhoso e
forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria elle estranhava que o
Tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanhedrin que condemnava
Jesus á morte... Não fôra essa sentença fundada nas Leis que dera o
Senhor? O justo Hanan interrogára o Rabbi, que emmudecera, n'um silencio
ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sabio, ao puro, ao
piedoso Hanan? Por isso um zeloso, sem se conter, atirára a mão violenta
á face do Rabbi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a
veneração do Pontificado?

A sua voz cava e larga rolava, infindavelmente. Eu, cansado, bocejava.
Por baixo de nós dois homens encruzados nas lages comiam tamaras de
Bethabara que traziam no saião, bebendo d'uma cabaça. Pilatos, com o
punho sob a barba, olhava somnolentamente os seus borzeguins escarlates
picados de estrellas d'ouro.

E Sarêas agora proclamava os direitos do Templo. Elle era o orgulho da
nação, a morada eleita do Senhor! Cesar Augusto offertára-lhe escudos e
vasos de ouro... E esse Templo, como o respeitára o Rabbi? Ameaçando
destruil-o! «Eu derrocarei o templo de Jehovah e edifical-o-hei em tres
dias!» Testemunhas puras ouvindo esta rude impiedade tinham coberto a
cabeça de cinza para afastar a cólera do Senhor... Ora a blasphemia
atirada ao santuario resaltava até ao seio de Deus!...

Sob o velario, os Phariseus, os Escribas, os Nethenins do Templo,
escravos sordidos, susurravam como arbustos agrestes que um vento começa
a agitar. E Jesus permanecia immovel, abstrahidamente indifferente, com
os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e
formoso, longe das coisas duras e vãs que o maculavam. Então o Assessor
romano ergueu-se, depôz no escabello o seu leque de folhas, traçou com
arte o manto forense, orlado de azul, saudou tres vezes o Pretor,--e a
sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo scintillar uma joia.

--Que diz elle?...

--Coisas infinitamente habeis, murmurou Topsius. É um pedante, mas tem
razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jehovah, nem
lhe importam os prophetas que se erguem contra Jehovah; e que a espada
de Cesar não vinga deuses que não protegem Cesar!... O romano é
engenhoso!

Offegando, o Assessor recahiu languidamente no escabello. E logo Sarêas
volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos Phariseus,
como a evocar os seus protestos, e refugiando-se na sua força. Agora,
mais retumbante, accusava Jesus, não da sua revolta contra Jehovah e o
Templo, mas das suas pretenções como principe da casa de David! Toda a
gente em Jerusalem o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta
d'Ouro, n'um falso triumpho, entre palmas verdes, cercado d'uma multidão
de galileus, que gritavam--«Hossana ao filho de David, Hossana ao rei
d'Israel!...»

--Elle é o filho de David, que vem para nos tornar melhores! gritou ao
longe a voz de Gad, cheia de persuasão e d'amor.

Mas de repente Sarêas collou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais
teso que um conto de lança: o escriba romano, de pé, com os punhos
fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nedio: o Assessor
sorria, attento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabbi: e eu, tremendo,
vi um Legionario empurrar Jesus que ergueu a face...

Debruçado de leve para o Rabbi, com as mãos abertas que pareciam soltar,
deixar cahir todo o interesse por esse pleito ritual de sectarios
arguciosos, Poncius murmurou, enfastiado e incerto:

--És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!...
Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?

O interprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de marmore, repetiu
muito alto estas coisas na antiga lingua hebraica dos Livros Santos: e,
como o Rabbi permanecia silencioso, gritou-as na falla chaldaica que se
usa em Galilêa.

Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura,
dominadora e serena:

--O meu reino não é d'aqui! Se por vontade de meu Pai eu fosse rei de
Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu
reino não é d'este mundo!

Um grito estrugiu, desesperado:

--Tirai-o então d'este mundo!

E logo, como lenha preparada que uma faisca inflamma, o furor dos
Phariseus e dos serventes do Templo irrompeu, crepitando, em clamores
impacientes:

--Crucificai-o! crucificai-o!

Pomposamente o interprete redizia em grego ao Pretor os brados
tumultuosos, lançados na lingua syriaca que falla o povo em Judêa...
Poncius bateu o borzeguim sobre o marmore. Os dois lictores ergueram ao
ar as varas rematadas n'uma figura d'aguia: o escriba gritou o nome de
Caio Tiberio: e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um
terror diante da magestade do Povo Romano.

De novo Poncius fallou, lento e vago:

--Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?

Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandalia pousou fortemente
sobre as lages como se tomasse posse suprema da terra. E o que sahiu dos
seus labios tremulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor
que dos seus olhos negros sahiu.

--Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade,
quem quizer pertencer á verdade tem de escutar a minha voz!

Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois encolhendo os
hombros:

--Mas, homem, o que é a verdade?

Jesus de Nazareth emmudeceu--e no Pretorio espalhou-se um silencio como
se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...

Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro
degraus de bronze;--e precedido dos lictores, seguido do Assessor,
penetrou no Palacio, por entre, o rumor d'armas dos legionarios que o
saudavam batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.

Immediatamente elevou-se por todo o pateo um aspero e ardente susurro
como de abelhas irritadas. Sarêas perorava, brandindo o baculo, entre os
Phariseus que apertavam as mãos n'um terror. Outros, afastados,
cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que
esvoaçava, corria n'uma ancia o Pretorio, por entre os que dormiam, ao
sol, por entre os vendedores de pães azymos, gritando: «Israel está
perdido!» E eu vi Levitas fanaticos arrancarem as borlas das tunicas,
como n'uma calamidade publica.

Gad surgiu diante de nós, erguendo os braços triumphantes:

--O Pretor é justo e liberta o Rabbi!...

E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O
Rabbi, apenas solto, deixaria Jerusalem--onde as pedras eram menos duras
que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Bethania: e
partiriam ao romper da lua para o oasis d'Engaddi! Lá estavam aquelles
que o amavam. Não era Jesus o irmão dos Essenios? Como elles o Rabbi
prégava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres,
a incomparavel belleza do reino de Deus...

Eu, credulo, regosijava-me--quando um tumulto invadiu a galeria que um
escravo viera regar. Era o bando escuro dos Phariseus, em marcha para o
banco de pedra, onde Rabbi Robam conversava com Manassés, enrolando
dôcemente nos dedos os cabellos da criança, mais louros que os minhos.
Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sarêas, no meio,
curvado, mas com a firmeza de quem intíma, dizia:

--Rabbi Robam, é necessário que vás fallar ao Pretor e salvar a nossa
lei!

E logo, de todos os lados, foi um supplicar ancioso:

--Rabbi, falla ao Pretor! Rabbi, salva Israel!

Lentamente o velho erguia-se, magestoso como um grande Moysés. E diante
d'elle um Levita, muito pallido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:

--Rabbi, tu és justo, sabio, perfeito e forte diante do Senhor!

Rabbi Robam levantou as duas mãos abertas para o céo: e todos se
curvaram como se o espirito de Jehovah, obedecendo á muda invocação,
tivesse descido para encher aquelle coração justo. Depois, com a mão da
criança na sua, poz-se a caminhar em silencio; atraz a turba fazia um
rumor de sandalias lassas sobre as lages de marmore.

Parámos, amontoados, diante da porta de cedro--onde o pretoriano cruzára
a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos
rangeram; um tribuno do Palacio acudiu tendo na mão um longo galho de
vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros
forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se pallidamente uma
estatua de Augusto, com o pedestal juncado de corôas de louro e de ramos
votivos: dois grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos,
na sombra.

Nenhum dos judeus entrou--porque pisar em dia paschal um sólo pagão era
coisa impura diante do Senhor. Sarêas annunciou altivamente ao Tribuno
que «alguns da nação d'Israel, á porta do Palacio de seus paes, estavam
esperando o Pretor.» Depois pesou um silencio, cheio d'anciedade...

Mas dois lictores avançaram: e logo atraz, caminhando a passos largos,
com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos appareceu.

Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judêa. Elle
parára junto á estatua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da
figura de marmore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e
disse:

--Que a paz seja comvosco e com as vossas palavras... Fallai!

Sarêas, vogal do Sanhedrin, adiantando-se, declarou que os seus corações
vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o
Pretorio sem confirmar nem annullar a sentença do Sanhedrin que
condemnava Jesus-ben-José--elles se achavam como o homem que vê a uva na
vinha, suspensa, sem seccar e sem amadurecer!

Poncius pareceu-me penetrado d'equidade e clemencia.

--Eu interroguei o vosso preso, disse elle; e não lhe achei culpa que
deva punir o Procurador da Judêa... Antipas Herodes, que é prudente e
forte, que pratíca a vossa Lei e ora no vosso Templo, interrogou-o
tambem e nenhuma culpa n'elle encontrou... Esse homem diz apenas coisas
incoherentes como os que fallam em sonhos... Mas as suas mãos estão
puras de sangue; nem ouvi que elle escalasse o muro do seu visinho...
Cesar não é um amo inexoravel... Esse homem é apenas um visionario.

Então, com um sombrio murmurio, todos recuaram, deixando Rabbi Robam só
no limiar da sala romana. Um brilho de joia tremia na ponta da sua
tiára: as suas cans cahindo sobre os vastos hombros coroavam-no de
magestade como a neve faz aos montes: as franjas azues do seu manto
solto rojavam nas lages, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a
Lei aos seus discipulos, ergueu a mão e disse:

--Official de Cesar, Poncius, muito justo e muito sabio! O homem que tu
chamas visionario, ha annos que offende todas as nossas leis e blasphema
o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando t'o trouxemos nós?
Sómente quando o vimos entrar em triumpho pela Porta d'Ouro, acclamado
como rei da Judêa. Porque a Judêa não tem outro rei senão Tiberio: e
apenas um sedicioso se proclama em revolta contra Cesar, apressamo-nos a
castigal-o. Assim fazemos nós, que não temos mandado de Cesar, nem
cobramos do seu erario: e tu, official de Cesar, não queres que seja
castigado o rebelde a teu amo?...

A face larga de Poncius, que uma somnolencia amollecia, relampeou,
raiada vivamente de sangue. Aquella tortuosidade de judeus que,
execrando Roma, apregoavam agora um zêlo ruidoso por Cesar para poderem,
em nome da sua auctoridade, saciar um odio sacerdotal--revoltou a
rectidão do Romano: e a audaciosa admoestação foi intoleravel ao seu
orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia:

--Cessai! Os procuradores de Cesar não vêm aprender a uma colonia
barbara da Asia os seus deveres para com Cesar!

Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com
indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabbi proseguiu, mais indifferente á
ira de Poncius do que ao balar d'um anho que arrastasse ás aras:

--Que faria o procurador de Cesar em Alexandria se um visionario
descesse de Bubastes proclamando-se rei do Egypto? O que tu não queres
fazer n'esta terra barbara da Asia! Teu amo dá-te a guardar uma vinha, e
tu deixas que entrem n'ella e que a vindimem? Para que estás então na
Judêa, para que está a sexta legião na torre Antonia? Mas o nosso
espirito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Poncius, para
que Cesar a ouça!...

Poncius deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes,
cravados n'aquelles judeus que astutamente o iam enlaçando na trama
subtil dos seus rancores religiosos:

--Eu não receio as vossas intrigas! murmurou surdamente. Elius Lamma é
meu amigo!... E Cesar conhece-me bem!

--Tu vês o que não está nos nossos corações! disse Rabbi Robam, calmo
como se conversasse á sombra do seu vergel. Mas nós vemos bem o que está
no teu, Poncius! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo
de Galilêa?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja
divindade não respeitas, como pódes querer salvar um propheta cujas
prophecias não crês?... A tua malicia é outra, romano! Tu queres a
destruição de Judá!

Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os
Phariseus: alguns palpavam o seio da tunica como procurando uma arma. E
Rabbi Robam continuava, denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:

--Tu queres deixar impune o homem que prégou a insurreição,
declarando-se rei n'uma provincia de Cesar, para tentar, pela
impunidade, outras ambições mais fortes e levar outro Judas de Gamala a
atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater
sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da
Judêa. Tu queres uma revolta para a afogares em sangue, e apresentar-te
depois a Cesar como soldado victorioso, administrador sabio, digno d'um
proconsulado ou d'um governo na Italia! É a isso que chamaes a fé
romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé
punica... Não nos supponhas porém tão simples como um pastor d'Idumêa!
Nós estamos em paz com Cesar, e cumprimos o nosso dever condemnando o
homem que se revoltou contra Cesar... Tu não queres cumprir o teu,
confirmando essa condemnação? Bem! Mandaremos emissarios a Roma, levando
a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante Cesar a
nossa responsabilidade, mostraremos a Cesar como procede na Judêa
aquelle que representa a lei do Imperio!... E agora, Pretor, pódes
voltar ao Pretorio.

--E lembra-te dos Escudos Votivos, gritou Sarêas. Talvez novamente vejas
a quem Cesar dá razão!

Poncius baixára a face, perturbado. Decerto imaginava já vêr além, n'um
claro terraço junto ao mar de Capreia, Sejanus, Cesonius, todos os seus
inimigos, fallando ao ouvido de Tiberio e mostrando-lhe os emissarios do
Templo... Cesar, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um
pacto d'elle com esse «rei dos Judeus» para sublevarem uma rica
provincia imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter
podiam custar-lhe o proconsulado da Judêa! Orgulho e justiça foram então
na sua alma frouxa como ondas um momento altas que uma sobre outra se
abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os
braços, como trazido por um impulso magnanimo de conciliação--e começou
a dizer, mais branco que a sua toga:

--Ha sete annos que governo a Judêa. Encontrastes-me jámais injusto, ou
infiel ás promessas juradas?... Decerto as vossas ameaças não me
movem... Cesar conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de Cesar,
não deve haver desaccordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum
outro Procurador desde Coponius tenho respeitado as vossas leis...
Quando vieram os dois homens de Samaria polluir o vosso Templo, não os
fiz eu suppliciar? Entre nós não deve haver dissenções, nem palavras
amargas...

Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e
sacudindo-as, como molhadas n'uma agua impura:

--Quereis a vida d'esse visionario? Que me importa? Tomai-a... Não vos
basta a flagellação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que
derramo esse sangue!

O levita macilento bradou com paixão:

--Somos nós, e que esse sangue cáia sobre as nossas cabeças!

E alguns estremeceram--crentes de que todas as palavras têm um poder
sobrenatural e tornam vivas as coisas pensadas.

Poncius deixára a sala: o Decurião, saudando, cerrou a porta de cedro.
Então Rabbi Robam voltou-se, sereno, resplandecente como um justo: e
adiantando-se por entre os Phariseus, que se baixavam a beijar-lhe as
franjas da tunica--murmurava com uma grave doçura:

--Antes soffra um só homem do que soffra um povo inteiro!

Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagára a testa, cahi,
tremulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente
distinguia no Pretorio dois legionarios, de cinturão desapertado,
bebendo n'uma grande malga de ferro que um negro ia enchendo com o ôdre
suspenso aos hombros; adiante uma mulher bella e forte, sentada ao sol,
com os filhos pendurados dos dois peitos nús; mais longe um pegureiro
envolto em pelles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois
cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixára na tenda, ardendo
junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um somno
ligeiro... Quando despertei a cadeira curul permanecia vazia--com a
almofada de purpura em frente, sobre o marmore, gasta, cavada pelos pés
do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, n'um longo rumor de
arraial, o velho atrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas
d'estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as
lages d'uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e
as mulheres que os seguiam, sordidas e macilentas, atiravam de longe com
o braço fremente maldições ao Rabbi. Outros no emtanto, caminhando na
ponta das sandalias, apregoavam baixo coisas infimas e ricas, mettidas
no seio entre as dobras dos saiões--grãos d'aveia torrada, potes de
unguentos, coraes, braceletes de filigrana de Sidon. Interroguei
Topsius: e o meu douto amigo, limpando os oculos, explicou-me que eram
decerto os mercadores contra quem Jesus, na vespera de Paschoa, erguendo
um bastão, reclamára a estreita applicação da Lei que interdiz traficos
profanos no Templo, fóra dos porticos de Salomão...

--Outra imprudencia do Rabbi, D. Raposo! murmurou com ironia o fino
historiador.

Entretanto, como cahira a sexta hora judaica e findára o trabalho,
vinham entrando obreiros das tinturarias visinhas, ennodoados de
escarlate ou azul; escribas das synagogas apertando debaixo dos braços
os seus tabularios; jardineiros com a fouce a tiracollo, o ramo de murta
no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da
orelha... Tocadores phenicios a um canto afinavam as harpas, tiravam
suspiros das flautas de barro: e diante de nós rondavam duas prostitutas
gregas de Tiberiade, com perucas amarellas, mostrando a ponta da lingua
e sacudindo a roda da tunica d'onde voava um cheiro de mangerona. Os
legionarios, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma
cercadura de ferro em torno de Jesus: e eu, agora, mal podia distinguir
o Rabbi através d'essa multidão susurrante, em que as consoantes asperas
de Moab e do deserto se chocavam por sobre a molleza grave da falla
chaldaica...

Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão
que offerecia n'um cabaz d'esparto, acamados sobre folhas de parra,
figos rachados de Bephtagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe,
debruçado no parapeito, o preço d'aquelle mimo dos vergeis que os
Evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços como se
encontrasse o esperado do seu coração:

--Entre mim e ti, ó creatura d'abundancia que vens d'além do mar, que
são estes poucos figos? Jehovah manda que os irmãos troquem presentes e
bençãos! Estes fructos colhi-os no horto, um a um, á hora em que o dia
nasce no Hebron; são succulentos e consoladores; poderiam ser postos na
mesa de Hannan!... Mas que valem vãs palavras entre mim e ti se os
nossos peitos se entendem? Toma estes figos, os melhores da Syria, e que
o Senhor cubra de bens aquella que te creou!

Eu sabia que esta offerta era uma cortezia consagrada, em compras e
vendas, desde o tempo dos Patriarchas. Cumpri tambem o ceremonial:
declarei que Jehovah, o muito forte, me ordenava que com o dinheiro
cunhado pelos Principes eu pagasse os fructos da Terra... Então o
hortelão abaixou a cabeça, cedeu ao mandamento divino; e pousando o
cesto nas lages, tomando um figo em cada uma das mãos negras e cheias de
terra:

--Em verdade, exclamou, Jehovah é o mais forte! Se elle o manda, eu devo
pôr um preço a estes fructos da sua bondade, mais dôces que os labios da
esposa! Justo é pois, ó homem abundante, que por estes dois que me
enchem as palmas, tão perfumados e frescos, tu me dês um bom _traphik_.

Oh Deus magnifico de Judá! O facundo hebreu reclamava por cada figo um
tostão da moeda real da minha patria! Bradei-lhe:--«Irra, ladrão!»
Depois, guloso e tentado, offereci-lhe um drachma por todos os figos que
coubessem no forro largo d'um turbante. O homem levou as mãos ao seio da
tunica, para a despedaçar na immensidade da sua humilhação. E ia invocar
Jehovah, Elias, todos os Prophetas seus patronos--quando o sapiente
Topsius, enojado, interveio seccamente, mostrando-lhe uma miuda rodella
de ferro que tinha por cunho um lirio aberto:

--Na verdade Jehovah é grande! E tu és ruidoso e vazio como o ôdre cheio
de vento! Pois pelos figos do cesto inteiro te dou eu este _meah_. E se
não queres, conheço o caminho dos hortos tão bem como o do Templo, e sei
onde as aguas dôces de Enrogel banham os melhores pomares... Vai-te!

O homem logo, trepando anciosamente até ao parapeito de marmore, atulhou
de figos a ponta do albornoz que eu lhe estendera, carrancudo e digno.
Depois, descobrindo os dentes brancos, murmurou risonhamente que nós
eramos mais beneficos que o orvalho do Carmello!

Saborosa e rara me parecia aquella merenda de figos de Bephtagé, no
palacio de Herodes. Mas apenas nos accommodáramos com a fruta no regaço,
reparei em baixo n'um velhito magro, que cravava em nós humildemente uns
olhos ennevoados, queixosos, cheios de cansaço. Compadecido ia
arremessar-lhe figos e uma moeda de prata dos Ptolomeus--quando elle,
mergulhando a mão tremula nos farrapos que mal lhe velavam o peito
cabelludo, estendeu-me, com um sorriso macerado, uma pedra que reluzia.
Era uma placa oval d'alabastro tendo gravada uma imagem do Templo. E
emquanto Topsius doutamente a examinava, o velho foi tirando do seio
outras pedras de marmore, d'onyx, de jaspe, com representações do
Tabernaculo no deserto, os nomes das tribus entalhados, e figuras
confusas em relevo simulando as batalhas dos Machabeus... Depois ficou
com os braços cruzados; e no seu pobre rosto escavado pelos cuidados
luzia uma anciedade, como se de nós sómente esperasse misericordia e
descanso.

Topsius deduziu que elle era um d'esses Guebros, adoradores do fogo e
habeis nas artes, que vão descalços até ao Egypto, com fachos accesos,
salpicar sobre a Esphinge o sangue d'um gallo negro. Mas o velho negou,
horrorisado--e tristemente murmurou a sua historia. Era um pedreiro de
Naim, que trabalhára no Templo e nas construcções que Antipas Herodes
erguia em Bezetha. O açoite dos intendentes rasgára-lhe a carne; depois
a doença levára-lhe a força como a geada sécca a macieira. E agora, sem
trabalho, com os filhos de sua filha a alimentar, procurava pedras raras
nos montes--e gravava n'ellas nomes santos, sitios santos, para as
vender no Templo aos fieis. Em vespera de Paschoa, porém, viera um Rabbi
de Galilêa cheio de cólera que lhe arrancára o seu pão!...

--Aquelle! balbuciou suffocado, sacudindo a mão para o lado de Jesus.

Eu protestei. Como lhe poderia ter vindo a injustiça e a dôr d'esse
Rabbi, de coração divino, que era o melhor amigo dos pobres?

--Então vendias no Templo? perguntou o terso historiador dos Herodes.

--Sim, suspirou o velho, era lá, pelas festas, que eu ganhava o pão do
longo anno! N'esses dias subia ao Templo, offertava a minha prece ao
Senhor, e junto á porta de Suza, diante do Portico do Rei, estendia a
minha esteira e dispunha as minhas pedras que brilhavam ao sol...
Decerto, eu não tinha direito de pôr alli tenda: mas como poderia eu
pagar ao Templo o aluguer de um covado de lagedo para vender o trabalho
das minhas mãos! Todos os que apregôam á sombra, debaixo do portico,
sobre taboleiros de cedro, são mercadores ricos que podem satisfazer a
licença: alguns pagam um siclo d'ouro. Eu não podia com crianças em casa
sem pão... Por isso ficava a um canto, fóra do portico, no peor sitio.
Alli estava bem encolhido, bem calado; nem mesmo me queixava quando
homens duros me empurravam ou me davam com os bastões na cabeça. E ao pé
de mim havia outros, pobres como eu: Eboim, de Joppé, que offerecia um
oleo para fazer crescer os cabellos, e Osêas, de Ramah, que vendia
flautas de barro... Os soldados da Torre Antonia que fazem a ronda
passavam por nós e desviavam os olhos. Até Menahem, que estava quasi
sempre de guarda pela Paschoa, nos dizia:--«está bem, ficai, comtanto
que não apregoeis alto.» Porque todos sabiam que eramos pobres, não
podiamos pagar o covado de lage, e tinhamos nas nossas moradas crianças
com fome... Na Paschoa e nos Tabernaculos vêm da terra distante
peregrinos a Jerusalem; e todos me compravam uma imagem do Templo para
mostrar na sua aldeia, ou uma das pedras da lua que afugentam o
demonio... Ás vezes, ao fim do dia, tinha feito tres drachmas; enchia o
saião de lentilha e descia ao meu casebre, alegre, cantando os louvores
do Senhor!...

Eu, d'enternecido, esquecera a merenda. E o velho desafogava o seu longo
queixume:

--Mas eis que ha dias esse Rabbi de Galilêa apparece no Templo, cheio de
palavras de cólera, ergue o bastão e arremessa-se sobre nós, bradando
que aquella «era a casa de seu pai, e que nós a polluiamos!...» E
dispersou todas as minhas pedras, que nunca mais vi, que eram o meu pão!
Quebrou nas lages os vasos d'oleo d'Eboim, de Joppé, que nem gritava,
espantado. Acudiram os guardas do Templo. Menahem acudiu tambem; até,
indignado, disse ao Rabbi:--«És bem duro com os pobres. Que auctoridade
tens tu?» E o Rabbi fallou «de seu pai», e reclamou contra nós a lei
severa do Templo. Menahem baixou a cabeça... E nós tivemos de fugir,
apupados pelos mercadores ricos, que bem encruzados nos seus tapetes de
Babylonia, e com o seu lagedo bem pago, batiam palmas ao Rabbi... Ah!
contra esses o Rabbi nada podia dizer: eram ricos, tinham pago!... E
agora aqui ando! Minha filha, viuva e doente, não póde trabalhar,
embrulhada a um canto nos seus trapos: e os filhos de minha filha,
pequeninos, têm fome, olham para mim, vêem-me tão triste e nem choram. E
que fiz eu? Sempre fui humilde, cumpro o Sabbat, vou á synagoga de Naim
que é a minha, e as raras migalhas que sobravam do meu pão juntava-as
para aquelles que nem migalhas têm na terra... Que mal fazia eu
vendendo? Em que offendia o Senhor? Sempre, antes de estender a esteira,
beijava as lages do Templo: cada pedra era purificada pelas aguas
lustraes... Em verdade Jehovah é grande, e sabe... Mas eu fui expulso
pelo Rabbi, sómente porque sou pobre!

Calou-se--e as suas mãos magras, tatuadas de linhas magicas, tremiam,
limpando as longas lagrimas que o alagavam.

Bati no peito, desesperado. E a minha angustia toda era por Jesus
ignorar esta desgraça, que, na violencia do seu espiritualismo, suas
mãos misericordiosas tinham involuntariamente creado, como a chuva
benefica por vezes, fazendo nascer a sementeira, quebra e mata uma flôr
isolada. Então para que não houvesse nada imperfeito na sua vida, nem
d'ella ficasse uma queixa na terra--paguei a divida de Jesus (assim seu
Pai perdôe a minha!) atirando para o saião do velho moedas
consideraveis, drachmas, crysos gregos de Philippe, aureos romanos
d'Augusto, até uma grossa peça da Cyrenaica que eu estimava por ter uma
cabeça de Zeus Amnon que parecia a minha imagem. Topsius juntou a este
thesouro um lepta de cobre--que tem em Judêa o valor d'um grão de
milho...

O velho pedreiro de Naim empallidecia, suffocado. Depois, com o dinheiro
n'uma dobra do saião, bem apertado contra o peito, murmurou timida e
religiosamente, erguendo os olhos ainda molhados para as alturas:

--Pai, que estás nos céos, lembra-te da face d'este homem, que me deu o
pão de longos dias!...

E soluçando sumiu-se entre a turba--que agora de todo o atrio
rumorosamente affluia, se apinhava em torno aos mastros altos do
velario. O escriba apparecera, mais vermelho e limpando os beiços. Ao
lado do Rabbi e dos guardas do Templo, Sarêas viera perfilar-se
encostado ao seu baculo. Depois, entre um brilho d'armas, surgiram as
varas brancas dos lictores: e novamente Poncius, pallido e pesado, na
sua vasta toga, subiu os degraus de bronze, retomou o o Assento Curul.

Um silencio cahiu, tão attento, que se ouviam as bozinas tocando ao
longe na Torre Marianna. Sarêas desenrolou o seu escuro pergaminho,
estendeu-o sobre a mesa de pedra entre os tabularios: e eu vi as mãos
gordas e morosas do escriba traçarem uma rubrica, estamparem um sêllo
sob as linhas vermelhas que condemnavam á morte Jesus de Galilêa, meu
Senhor... Depois Poncius Pilatus, com uma dignidade indolente, erguendo
apenas de leve o braço nú, confirmou em nome de Cesar a «sentença do
Sanhedrin, que julga em Jerusalem...»

Immediatamente Sarêas atirou sobre o turbante uma ponta do manto, ficou
orando, com as mãos abertas para o céo. E os Phariseus triumphavam:
junto a nós, dois muito velhos beijavam-se em silencio nas barbas
brancas: outros sacudiam no ar os bastões, ou lançavam sarcasticamente a
acclamação forense dos romanos: «_Bene et belle_! _Non potest melius_!»

Mas de subito o Interprete appareceu em cima d'um escabello, alteando
sobre o peito o seu papagaio flammante. A turba emmudecera,
surprehendida. E o phenicio, depois de ter consultado com o escriba,
sorriu, gritou em chaldaico, alargando os braços cercados de manilhas de
coral:

--Escutai! N'esta vossa festa de Paschoa, o Pretor de Jerusalem costuma,
desde que Valerius Gratus assim o determinou, e com assenso de Cesar,
perdoar a um criminoso... O Pretor propõe-vos o perdão d'este... Escutai
ainda! Vós tendes tambem o direito de escolher, vós mesmos, entre os
condemnados... O Pretor tem em seu poder, nos ergastulos de Herodes,
outro sentenciado á morte...

Hesitou,--e debruçado do escabello interrogava de novo o escriba que
remexia n'uma atarantação os papyros e os tabularios. Sarêas, sacudindo
a ponta do manto que escondia a sua oração, ficára assombrado para o
Pretor, com as mãos abertas no ar. Mas já o Interprete bradava, erguendo
mais a face risonha:

--Um dos condemnados é Rabbi Jeschoua, que ahi tendes, e que se disse
filho de David... É esse que propõe o Pretor. O outro, endurecido no
mal, foi preso por ter morto um legionario traiçoeiramente, n'uma rixa,
ao pé do Xistus. O seu nome é Bar-Abbás... Escolhei!

Um grito brusco e roufenho partiu d'entre os Phariseus:

--Bar-Abbás!

Aqui e além, pelo atrio, confusamente resoou o nome de Bar-Abbás. E um
escravo do Templo, de saião amarello, pulando até aos degraus do sólio,
rompeu a berrar, em face de Poncius, com palmadas furiosas nas côxas:

--Bar-Abbás! Ouve bem! Bar-Abbás! O povo só quer Bar-Abbás!

A haste d'um legionario fel-o rolar nas lages. Mas já toda a multidão,
mais leve e facil d'inflammar do que a palha na meda, clamava por
Bar-Abbás: uns com furor, batendo as sandalias e os cajados ferrados
como para aluir o Pretorio; outros de longe, encruzados ao sol,
indolentes e erguendo um dedo. Os vendilhões do Templo, rancorosos,
sacudindo as balanças de ferro e repicando sinetas, berravam, por entre
maldições ao Rabbi: «Bar-Abbás é o melhor!» E até as prostitutas de
Tiberiade, pintadas de vermelhão como idolos, feriam o ar de gritos
silvantes:

--Bar-Abbás! Bar-Abbás!

Raros alli conheciam Bar-Abbás; muitos, de certo, não odiavam o
Rabbi--mas todos engrossavam o tumulto promptamente, sentindo, n'essa
reclamação do preso que atacára Legionarios, um ultraje ao Pretor
romano, togado e augusto no seu tribunal. Poncius no entanto,
indifferente, traçava letras n'uma vasta lauda de pergaminho pousada
sobre os joelhos. E em torno os clamores disciplinados retumbavam em
cadencia, como malhos n'uma eira:

--Bar-Abbás! Bar-Abbás! Bar-Abbás!

Então Jesus, vagarosamente, voltou-se para aquelle mundo duro e
revoltoso que o condemnava: e nos seus refulgentes olhos humedecidos, no
fugitivo tremor dos seus labios, só transpareceu n'esse instante uma
mágua misericordiosa pela opaca inconsciencia dos homens, que assim
empurravam para a morte o melhor amigo dos homens... Com os pulsos
presos, limpou uma gotta de suor: depois ficou diante do Pretor, tão
imperturbado e quêdo, como se já não pertencesse á terra.

O escriba, batendo com uma regra de ferro na pedra da mesa, tres vezes
bradára o nome de Cesar. O tumulto ardente esmorecia. Poncius ergueu-se:
e grave, sem trahir impaciencia ou cólera, lançou, sacudindo a mão, o
mandado final:

--Ide e crucificai-o!

Desceu o estrado; a turba batia ferozmente as palmas.

Oito soldados da cohorte Syriaca appareceram, apetrechados em marcha,
com os escudos revestidos de lona, as ferramentas entrouxadas, e o largo
cantil da _posca_. Sarêas, vogal do Sanhedrin, tocando no hombro de
Jesus, entregou-o ao decurião: um soldado desapertou-lhe as cordas,
outro tirou-lhe o albornoz de lã: e eu vi o dôce Rabbi de Galilêa dar o
seu primeiro passo para a morte.

Apressados, enrolando o cigarro, deixámos logo o palacio de Herodes por
uma passagem que o douto Topsius conhecia, lobrega e humida, com fendas
gradeadas d'onde vinha um canto triste de escravos encarcerados...
Sahimos a um terreiro, abrigado pelo muro d'um jardim todo plantado de
cyprestes. Dois dromedarios deitados no pó ruminavam, junto d'um montão
d'hervas cortadas. E o alto historiador tomava já o caminho do Templo,
quando, sob as ruinas d'um arco que a hera cobria, vimos povo apinhado
em torno d'um Essenio, cujas mangas d'alvo linho batiam o ar como as
azas d'um passaro irritado.

Era Gad, rouco d'indignação, clamando contra um homem esgrouviado, de
barba rala e ruiva, com grossas argolas de ouro nas orelhas, que tremia
e balbuciava:

--Não fui eu, não fui eu...

--Foste tu! bradava o Essenio, estampando a sandalia na terra.
Conheço-te bem. Tua mãi é cardadeira em Capárnaum, e maldita seja pelo
leite que te deu!...

O homem recuava, baixando a cabeça, como um animal encurralado á força:

--Não fui eu! Eu sou Rephrahim, filho de Eliesar, de Ramah! Sempre todos
me conheceram são e forte como a palmeira nova!

--Torto e inutil eras tu como um sarmento velho de vide, cão e filho
d'um cão! gritou Gad. Vi-te bem... Foi em Capárnaum, na viella onde está
a fonte, ao pé da Synagoga, que tu appareceste a Jesus, Rabbi de
Nazareth! Beijavas-lhe as sandalias, dizias «Rabbi, cura-me! Rabbi, vê
esta mão que não póde trabalhar!» E mostravas-lhe a mão, essa, a
direita, secca, mirrada e negra, como o ramo que definhou sobre o
tronco! Era no Sabbath: estavam os tres chefes da Synagoga, e Elzear, e
Simeon. E todos olhavam Jesus para vêr se elle ousaria curar no dia do
Senhor... Tu choravas, de rojo no chão. E por acaso o Rabbi repelliu-te?
Mandou-te procurar a raiz do baraz? Ah cão, filho d'um cão! O Rabbi,
indifferente ás accusações da Synagoga, e só escutando a sua
misericordia, disse-te: «estende a mão!» Tocou-a, e ella reverdeceu logo
como a planta regada pelo orvalho do céo! Estava sã, forte, firme; e tu
movias ora um dedo, ora outro, espantado e tremendo.

Um murmurio d'enlevo correu entre a multidão, maravilhada pelo dôce
milagre. E o Essenio exclamava, com os braços tremulos no ar:

--Assim foi a caridade do Rabbi! E estendeu-te elle a ponta do manto,
como fazem os Rabbis de Jerusalem, para que lhe deitasses dentro um
siclo de prata? Não. Disse aos seus amigos que te dessem da provisão de
lentilha... E tu largaste a correr pelo caminho, refeito e agil,
gritando para o lado da tua casa: «Oh mãi, oh mãi, estou curado!...» E
foste tu, porco e filho de porco, que ha pouco no Pretorio pedias a cruz
para o Rabbi e gritavas por Bar-Abbás! Não negues, bocca immunda; eu
ouvi-te; estava por traz de ti, e via incharem-te as cordoveias do
pescoço com o furor da tua ingratidão!

Alguns, escandalisados, gritavam: «maldito! maldito!» Um velho, com
justiceira gravidade, apanhára duas grossas pedras. E o homem de
Capárnaum, encolhido, esmagado, ainda rosnou surdamente:

--Não fui eu, não fui eu... Eu sou de Ramah!

Gad, furioso, agarrou-o pelas barbas:

--N'esse braço, quando o arregaçaste diante do Rabbi, todos te viram
duas cicatrizes curvas como de dois golpes de foice!... E tu vaes
mostral-as agora, cão e filho d'um cão!

Despedaçou-lhe a manga da tunica nova; arrastou-o em redor, apertado nas
suas mãos de bronze, como um bode teimoso; mostrou bem as duas
cicatrizes, lividas no pêllo ruivo; e assim o arremessou
desprezivelmente para entre o povo--que, levantando o pó do caminho,
perseguiu o homem de Capárnaum com apupos e com pedradas...

Acercamo-nos de Gad sorrindo, louvando a sua fidelidade a Jesus. Elle,
acalmado, estendera as mãos a um vendedor d'agua, que lh'as purificava
com um largo jorro do seu ôdre felpudo: depois limpando-as á toalha de
linho que lhe pendia do cinto:

--Escutai! José de Ramatha reclamou o corpo do Rabbi, o Pretor
concedeu-lh'o... Esperai-me á nona hora romana no pateo de Gamaliel...
Onde ides?

Topsius confessou que iamos ao Templo, por motivos intellectuaes d'arte,
d'archeologia...

--Vão é aquelle que admira pedras! rosnou o altivo idealista.

E afastou-se puxando o capuz sobre a face, por entre as bençãos do povo
que crê e ama os Essenios.

       *       *       *       *       *

Para poupar, até ao Templo, a rude caminhada pelo Tyropêo e pela ponte
do Xistus, tomámos duas liteiras--das que um liberto de Poncius
ultimamente alugava, junto ao Pretorio, «á moda de Roma».

Cançado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas seccas
que cheirava a murta: e lentamente começou a invadir-me a alma uma
inquietação estranha, temerosa, que já no Pretorio me roçára de leve
como a aza arripiada d'uma ave agourenta... Ia eu ficar para sempre
n'esta cidade forte dos Judeus? Perdera eu irremediavelmente a minha
individualidade de Raposo, de catholico, de bacharel, contemporaneo do
_Times_ e do Gaz--para me tornar um homem da Antiguidade classica, coevo
de Tiberio? E, dado este mirifico retrogresso nos tempos, se voltasse á
minha patria, que iria eu encontrar á beira do rio claro?...

Decerto encontraria uma colonia romana: na encosta da collina mais
fresca uma edificação de pedra onde vive o proconsul; ao lado um templo
pequeno de Apollo ou de Marte coberto de lousa; nos altos um campo
entrincheirado onde estão os legionarios; e em redor a villa lusitana,
esparsa, com os seus caminhos agrestes, cabanas de pedra solta,
alpendres para recolher o gado, e estacadas no lodo onde se amarram
jangadas... Assim encontraria a minha patria. E que faria lá, pobre,
solitario? Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do Templo,
racharia a lenha das cohortes para ganhar um salario romano?... Miseria
incomparavel!

Mas se ficasse em Jerusalem? Que carreira tomaria n'esta sombria, devota
cidade da Asia? Tornar-me-hia um Judeu, resando o Schema, cumprindo o
Sabbath, perfumando a barba de nardo, indo preguiçar nos atrios do
Templo, seguindo as lições d'um Rabbi, e passeando ás tardes, com um
bastão dourado, nos jardins de Gareb entre os tumulos?... E esta
existencia igualmente me parecia pavorosa!... Não! a ficar encarcerado
no mundo antigo com o doutissimo Topsius, então deveriamos galopar
n'essa mesma noite, ao erguer da lua, para Joppé; de lá embarcar em
qualquer trirema phenicia que partisse para Italia; e ir habitar Roma,
ainda que fosse n'uma das escuras viellas do Velabro, n'uma d'essas
altas, fumarentas trapeiras, com duzentas escadas a subir, empestadas
pelos guisados d'alho e tripa, que escassamente atravessam duas calendas
sem desabar ou arder.

Assim me inquietava quando a liteira parou; descerrei as cortinas; vi
ante mim os vastos granitos da muralha do Templo. Penetrámos sob a
abobada da porta de Huldah; e fômos logo detidos emquanto os guardas do
Templo arrancavam a um pegureiro, teimoso e rude, a clava armada de
prégos com que elle queria atravessar o Santuario. O rolante rumor que
vinha de longe, dos Atrios, já me atemorisava, semelhante ao d'uma selva
ou d'um grande mar irritado...

E ao emergir emfim da abobada estreita agarrei o braço magro do
Historiador dos Herodes, no deslumbramento que me tornou, intenso e
repassado de terror! Um brilho de neve e ouro vibrava profusamente no ar
molle, irradiado dos claros marmores, dos granitos brunidos, dos recamos
preciosos banhados pelo divino sol de Nizam. Os lisos pateos que eu de
manhã vira desertos, alvejando como a agua quieta d'um lago,
desappareciam agora sob o povo que os atulhava, adornado e festivo. Os
cheiros estonteavam, acres, emanados dos estofos tingidos, das resinas
aromaticas, da gordura frigindo em brazas. Sobre o denso ruido passavam
roucos mugidos de bois. E perennemente os fumos votivos se sumiam na
refulgencia do céo...

--Caramba! murmurei, enfiado. Isto são magnificencias de entupir!

Fômos penetrando sob os Porticos de Salomão, onde resoava o profano
tumulto d'um mercado. Por traz de grossas caixas gradeadas encruzavam-se
os Cambistas, com uma moeda d'ouro pendente da orelha entre as melenas
sordidas, trocando o dinheiro sacerdotal do Templo pelas moedas pagãs de
todas as regiões, de todas as idades, desde as macissas rodellas do
velho Lacio mais pesadas que broqueis, até aos tijolos gravados que
circulam, como «notas» nas feiras da Assyria. Adiante, brilhava a
frescura e abundancia d'um pomar: as romãs, estaladas de maduras,
trasbordavam dos gigos: hortelões com um ramo d'amendoeira preso ao
carapuço apregoavam grinaldas d'anemonas ou hervas amargas de Paschoa:
jarras de leite puro pousavam sobre saccos de lentilha; e os cordeiros,
deitados nas lages, amarrados pelas patas ás columnas, balavam
tristemente de sêde.

Mas a multidão sobretudo apinhava-se, com suspiros de cubiça, em torno
aos tecidos e ás joias. Mercadores das colonias phenicias, das Ilhas
gregas, de Tardis, da Mesopotamia, de Tadmor, uns com soberbas simarras
de lã bordada, outros com toscos tabardos de couro pintado, desdobravam
os panos azues de Tyro que reproduzem o brilho ardente dos céos do
Oriente, as sêdas impudicas de Sheba d'uma transparencia verde que vôa
na aragem, e esses estofos solemnes de Babylonia que sempre me
extasiavam, negros com largas flôres côr de sangue... Dentro de cofres
de cedro, espalhados sobre tapetes da Galacia, reluziam espelhos de
prata simulando a lua e os seus raios, sinetes de turmalina que os
hebreus usam ao peito, manilhas de pedrarias enfiadas em cornos
d'antilopes, diademas de sal-gema com que se enfeitam os noivos; e,
resguardadas mais preciosamente, talismans e amuletos que me pareciam
pueris, pedaços de raizes, pedregulhos negros, couros tisnados e ossos
com letras.

Topsius ainda parou entre as tendas dos perfumistas apreçando um
esplendido bastão de Tylos, d'uma rara madeira mosqueada como a pelle do
tigre, mas logo fugimos ao ardente cheiro que alli suffocava, vindo das
resinas, das gommas dos paizes dos Negros, dos mólhos de plumas de
abestruz, da mirrha d'Oronte, das ceras de Cirenaica, dos oleos rosados
de Cysico, e das grandes coifas de pelle d'hyppopotamo cheias de
violetas seccas e de folhas de baccaris...

Entrámos então na galeria chamada _Real_, toda votada á Doutrina e á
Lei. Ahi, cada dia, tumultuam rancorosamente as controversias entre
Sadduceus, Escribas, Sophorins, Phariseus, sectarios de Schemaia,
sectarios de Hillel, Juristas, Grammaticos, fanaticos de toda a terra
judaica. Junto ás columnas de marmore installavam-se os Mestres da Lei,
sobre altos escabellos, tendo ao lado um prato de metal onde cahiam os
óbolos dos fieis: e em torno, encruzados no chão, com as sandalias ao
pescoço, as pellicas cobertas de letras vermelhas desdobradas nos
joelhos, os discipulos, imberbes ou decrepitos, resmoneavam os dictames
balançando os hombros lentos. Aqui e além, no meio de devotos embebidos,
dois doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos
pontos da Doutrina. «Póde-se comer um ovo de gallinha posto no dia de
Sabbath? Por que osso da espinha dorsal começa a Resurreição?» O
philosophico Topsius ria, disfarçado n'uma préga da capa: mas eu tremia
quando os doutores, escaveirados e barbudos, se ameaçavam, gritavam
_racca_! _racca_! mergulhando a mão no seio da tunica á procura d'um
ferro escondido.

A cada momento cruzavamos esses Phariseus, resoantes e vazios como
tambores, que vêm ao Templo assoalhar a sua piedade--uns com as costas
vergadas, esmagadas pela vastidão do peccado humano; outros, tropeçando
e apalpando o ar, d'olhos fechados, para não vêr as fórmas impuras das
mulheres; alguns mascarrados de cinza, gemendo, com as mãos apertadas
sobre o estomago--em testemunho dos seus duros jejuns! Depois Topsius
mostrou-me um Rabbi, interpretador de sonhos: n'um carão livido e
chupado os seus olhos fundos luziam com a tristeza de lampadas de
sepulchro: e, sentado sobre saccos de lã, estendia por cima de cada
devoto, que vinha ajoelhar aos seus pés nús, a ponta d'um vasto manto
negro com signos brancos pintados. Eu, curioso, pensava em o
consultar--quando de repente gritos afflictos resoaram no atrio.
Corremos. Eram levitas, com cordas e vergas, chibatando furiosamente um
leproso que, em estado de impureza, penetrára no pateo de Israel. O
sangue salpicava as lages. Em torno crianças riam.

Ia cahindo a sexta hora judaica, a mais grata ao Senhor, quando o sol,
na sua marcha para o mar, pára sobre Jerusalem a contemplal-a com
paixão: e, para nos acercarmos do «atrio d'Israel», fomos penosamente
fendendo a multidão que alli remoinhava vinda de toda a terra culta e
barbara... O rude saião de pelles dos pegureiros das Idumêas roçava a
chlamyde curta dos gregos de face rapada e mais brancos que marmores.
Havia homens solemnes da planicie de Babylonia, com as barbas mettidas
dentro de saccos azues que uma corrente de prata lhes prendia ás mitras
de couro pintado: e havia gaulezes ruivos, de bigodes pendentes como as
hervas das suas lagôas, que riam e parolavam, devorando com a casca os
limões dôces da Syria. Por vezes um romano togado passava, tão grave
como se descesse d'um pedestal. Gente da Dacia e da Mysia, com as pernas
enfeixadas em ligaduras de feltro, tropeçava deslumbrada pelo claro
esplendor dos marmores. E não era menos estranho ir eu, Theodorico
Raposo, arrastando alli as minhas botas de montar, atraz d'um Sacerdote
de Moloch, enorme e sensual na sua simarra de purpura, que, em meio d'um
bando de mercadores de Serepta, desdenhava d'aquelle templo sem imagens,
sem bosques, e mais ruidoso que uma feira phenicia.

Assim lentamente nos fomos chegando á porta chamada «A Bella», que dava
accesso para o Atrio sagrado d'Israel. Bella em verdade, preciosa e
triumphal, sobre os quatorze degraus de marmore verde de Numidia,
mosqueado de amarello: os seus largos batentes, revestidos de chapas de
prata, faiscavam como os d'um reliquario: e os dois humbraes,
semelhantes a grossos mólhos de palmas, sustentavam uma torre, redonda e
branca, guarnecida de escudos tomados aos inimigos de Judá, brilhantes
no sol como um collar de gloria sobre o pescoço forte d'um heroe! Mas
diante d'este adito maravilhoso erguia-se severamente um pilar, encimado
por uma placa negra com letras d'ouro, onde se desenrolava esta ameaça
em grego, em latim, em aramaico, em chaldaico: _que nenhum Estrangeiro
aqui penetre sob pena de morrer_!

Fortunadamente avistámos o magro Gamaliel que se encaminhava ao Santo
Pateo, descalço, apertando ao peito um mólho d'espigas votivas: com elle
vinha um homem nedio e risonho, de face côr de papoula, coroado por uma
enorme mitra de lã negra enfeitada de fios de coral... Curvados até ás
lages, saudámos o austero Doutor da Lei. Elle psalmodiou logo, de
palpebras cerradas:

--Sêde bemvindos... Esta é a hora melhor para receber a benção do
Senhor. O Senhor disse: «sahi das vossas habitações, vinde a mim com as
primicias dos vossos fructos, eu vos abençoarei em todas as obras das
vossas mãos...» Vós hoje pertenceis miraculosamente a Israel. Subi á
morada do Eterno! Este que vem a meu lado é Eliezer de Silo, benefico e
sabio entre todos nas coisas da natureza.

Deu-nos duas espigas de milho: e atraz d'elle pisámos com as nossas
solas gentilicas o Adro interdicto de Judá.

Caminhando ao meu lado, Eliezer de Silo, cortez e suave, perguntou-me se
era remota a minha patria e perigosos os seus caminhos...

Eu rosnei, vaga e recatadamente:

--Sim... Chegamos de Jerichó.

--Boa, por lá, a colheita do balsamo?

--Rica! afiancei, com calor. Louvado seja o Eterno, que n'este seu anno
de graça estamos lá abarrotadinhos de balsamo!

Elle pareceu regosijado. E revelou-me então que era um dos Medicos que
residem no Templo--onde os Sacerdotes e os Sacrificadores soffrem
perennemente «dissabores intestinaes», por pisarem suados e descalços as
lages frias dos Adros.

--Por isso, murmurou elle com uma faisca alegre no olho benigno, o povo
em Sião nos chama _Doutores da Tripa_!

Torci-me de riso, de gozo, com aquella jocosidade assim susurrada na
austera morada do Eterno... Depois, recordando os meus dissabores
intestinaes em Jerichó, por muito amar os divinos e perfidos melões da
Syria--perguntei ao amavel Physico se n'essas occorrencias elle
preconisava o bismutho...

O homem magistral abanou cautamente a sua mitra bojuda. Depois,
espetando um dedo no ar, segredou-me esta receita incomparavel:

--Tomai gomma de Alexandria, açafrão de jardim, uma cebola da Persia e
vinho negro de Emmaus... Misturai, cozei... Deixai esfriar n'um vaso de
prata... Collocai-vos n'uma encruzilhada, ao nascer do sol...

Mas emmudeceu subitamente, com os braços abertos e a face pendida para
as lages. Penetráramos no soberbo adro, chamado «Pateo das Mulheres»: e
n'esse instante terminavam as Bençãos que á sexta hora um sacerdote vem
alli derramar do alto da porta de Nicanor.

Severa, toda de bronze--ella deixava entrevêr, lá ao fundo, os ouros, a
neve, as pedrarias do Santuario refulgindo com serenidade... Nos largos
degraus, mais lustrosos que alabastro, desenrolavam-se duas collegiadas
de levitas, ajoelhados e vestidos de branco--uns com uma trompa recurva,
outros pousando os dedos sobre as cordas mudas de lyras. E, por entre
estas alas de homens prostrados, um grande velho emmaciado vinha
descendo devagar os degraus, com um incensador de ouro na mão...

A sua tunica justa de byssus tinha a fimbria orlada de pinhas
d'esmeralda, alternando com guizos que tiniam finamente; os pés sem
sandalias e tingidos d'heneh pareciam de coral; e ao meio da facha que
lhe cingia as costellas magras brilhava, bordado a ouro, um grande sol.
Os fieis ajoelhados, quedos, sem um murmurio, quasi pousavam nas lages a
cabeça escondida sob os mantos e sob os véos: e com as côres festivas,
onde dominava o vermelho da anemona e o verde da figueira, era como se o
adro estivesse juncado de flôres e folhagens, n'uma manhã de triumpho,
para passar Salomão!

Com a barba aguda e dura levantada aos céos--o velho incensou o lado do
Oriente e das areias, depois o lado do Occidente e dos mares; e o
recolhimento era tão enlevado que se ouviam no fundo do Santuario os
mugidos lentos dos bois. Desceu ainda, alçou mais a mitra salpicada de
joias, atirou o incensador que rangeu faiscando ao sol--e com o fumo
branco veio rolando tenue e cheirosa, sobre Israel, a benção do
Muito-Forte. Então os levitas, unisonamente, feriram as cordas das
lyras: das trombetas curvas subiu um grito de bronze: e todo o povo
erguido, com os braços ao céo, entoou um psalmo celebrando a eternidade
de Judá... E subitamente tudo cessou: os Levitas recolhiam pela
escadaria de marmore sem um rumor dos pés nús: Eliezer de Silo e o
rigido Gamaliel tinham desapparecido sob os Porticos: e o claro pateo em
redor resplandecia sumptuoso e cheio de mulheres.

Os revestimentos de alabastro eram tão lustrosos que Topsius mirava
n'elles como n'um espelho as pregas nobres da sua capa: todos os fructos
da Asia e as flôres dos vergeis se entrelaçavam, em copiosos lavores de
prata, nas portas das camaras rituaes onde se perfuma o oleo, se
consagra a lenha, se purifica a lepra: entre as columnas pendiam em
festões fios grossos de perolas e de contas d'onyx, mais numerosos que
no peito de uma noiva: e nos mealheiros de bronze, semelhantes a
trombetas de guerra colossaes, pousadas nas lages, enrolavam-se,
scintillando e reclamando as dadivas, inscripções em relevo de ouro,
graciosas como versos de canticos--_Queimai Incensos e Nardos, Offertai
Pombas e Rôlas_...

Mas o santo adro resplandecia de mulheres: e meus olhos bem depressa
deixaram metaes e marmores, para captivadamente se prenderem áquellas
filhas de Jerusalem, cheias de graça e morenas como as tendas do Cedar!
Todas traziam no Templo o rosto descoberto: ou apenas um fôfo véo, d'uma
musselina leve como o ar, á moda romana, enrodilhado finamente no
turbante, punha em torno das faces uma alvura d'espuma, onde os olhos
negros tomavam um quebranto mais humido, enlanguecidos pelas densas
pestanas, alongados pela tintura de cypro. A abundancia barbara dos
ouros, das pedrarias, envolvia-as n'uma radiancia tremula desde os
peitos fortes até aos cabellos mais crespos que a lã das cabras de
Galaad. As sandalias, ornadas de guizos e de correntes, arrastavam sobre
as lages uma melodia argentina, tanta era a graça concertada dos seus
movimentos ondulados e graves: e os tecidos bordados, os algodões de
Galacia, os finos linhos de côres que as cingiam, ensopados nas
escencias ardentes d'ambar, de malobathro e de baccaris, enchiam o ar de
fragancia e de molleza a alma dos homens. As mais ricas caminhavam
solemnemente entre escravas vestidas de panos amarellos, que lhes
traziam o párasol de pennas de pavão, os rolos devotos em que está
escripta a Lei, saccos de tamaras dôces, espelhos ligeiros de prata. As
mais pobres, com uma simples camisa de algodão de riscadinho multicôr, e
sem mais joias que um rude talisman de coral, corriam, chalravam,
mostrando nús os braços e o collo côr de medronho mal maduro... E sobre
todas o meu desejo zumbia--como uma abelha que hesita entre flôres de
igual doçura!

--Ai Topsius, Topsius! rosnava eu. Que mulheres! Que mulheres! Eu
estoiro, esclarecido amigo!

O sabio affirmava com desdem que ellas não tinham mais intellectualidade
que os pavões dos jardins d'Antipas; e que nenhuma decerto alli lêra
Aristoteles ou Sophocles!... Eu encolhia os hombros. Oh esplendor dos
céos! por qual d'estas mulheres que não lêra Sophocles não daria eu, se
fosse Cesar, uma cidade de Italia e toda a Iberia! Umas entonteciam-me
pela sua graça dolente e macerada de virgens de devoção, vivendo na
penumbra constante dos quartos de cedro, com o corpo saturado de
perfumes, a alma esmagada de orações. Outras deslumbravam-me pela
sumptuosidade solida e succulenta da sua belleza. Que largos, escuros
olhos d'idolos! Que claros, macios membros de marmore! Que sombria
molleza! Que nudezes magnificas, quando á beira do leito baixo se lhes
desenrolassem os cabellos pesados, e fossem dôcemente escorregando os
véos e os linhos de Galacia!...

Foi necessario que Topsius me arrastasse pelo albornoz para a escadaria
de Nicanor. E ainda estacava a cada degrau, alongando para traz os olhos
esbrazeados, resfolgando como um touro em maio nas lezirias.

--Ai, filhinhas de Sião! Que sois de vos deixar aqui os miolos!

Ao voltar-me, puxado pelo douto Historiador, bati no focinho d'um
cordeiro branco que um velho conduzia ás costas, amarrado pelas patas e
enfeitado de rosas. Em frente corria uma longa balaustrada de cédro
lavrado--onde uma cancella toda de prata, aberta e lassa nos seus
gonzos, se movia em silencio, faiscando.

--É aqui, disse o erudito Topsius, que se dão a beber as aguas amargas
ás mulheres adulteras... E agora, D. Raposo, ahi tem Israel adorando o
seu Deus.

Era emfim o Adro Sacerdotal! E eu estremeci diante d'aquelle Santuario
entre todos monstruoso e deslumbrante. Ao meio do vasto e claro terrado
erguia-se, feito de enormes pedras negras, o altar dos Holocaustos: aos
seus cantos enristavam-se quatro cornos de bronze; d'um pendiam
grinaldas de lirios; d'outros fios de coraes; o outro pingava sangue. Da
immensa grelha do altar subia uma fumaça avermelhada e lenta: e em redor
apinhavam-se os Sacrificadores, descalços, todos de branco--com
forquilhas de bronze nas mãos pallidas, espetos de prata, facas passadas
nos cintos côr de céo... No afanoso, severo rumôr do ceremonial
sacrosanto confundia-se o balar de cordeiros, o som argentino de pratos,
o crepitar das lenhas, as pancadas surdas de malho, o cantar lento da
agua em bacias de marmore, e o estridor das bozinas. Apesar dos
aromaticos que ardiam em caçoulas, das longas ventarolas de folhas de
palmeira com que os serventes agitavam o ar, eu puz o lenço na face,
enjoado com esse cheiro molle de carne crua, de sangue, de gordura frita
e de açafrão, que o Senhor reclamou a Moysés como o dom melhor a receber
da Terra...

Ao fundo, bois enfeitados de flôres, vitellas brancas com os cornos
dourados, sacudiam, mugindo e marrando, as cordas que os prendiam a
fortes argolas de bronze: mais longe, sobre mesas de marmore, entre
pedaços de gêlo, pousavam, vermelhas e sangrentas, grossas peças de
carne, sobre que os levitas balançavam leques de pennas para afugentar
os moscardos. De columnas rematadas por faiscantes globos de crystal,
pendiam cordeiros mortos, que os Netenins, resguardados por aventaes de
couro cobertos de textos sagrados, esfolavam com cutelos de prata:
emquanto os victimarios de saião azul, retesando os braços, conduziam
baldes d'onde trasbordavam e iam arrastando entranhas. Coroados por uma
mitra redonda de metal, escravos idumeos constantemente limpavam as
lages com esponjas: alguns vergavam sob mólhos de lenha; outros,
agachados, sopravam fogareiros de pedra.

A cada momento algum velho Sacrificador, descalço, marchava para o
altar, trazendo ao collo um anho tenro que não balava, contente e quente
entre os dois braços nús: um tocador de lyra precedia-o: levitas atraz
transportavam os jarros d'oleos aromaticos. Em frente á ara, rodeado de
Acolytos, o Sacrificador lançava sobre o cordeiro um punhado de sal;
depois, psalmodiando, cortava-lhe uma pouca de lã entre os cornos. As
bozinas resoavam; um grito d'animal ferido perdia-se no tumulto sacro;
por cima das tiáras brancas duas mãos vermelhas erguiam-se ao ar
sacudindo sangue; da grelha do altar resaltava, avivada pelos oleos e
pela gordura, uma chamma d'alegria e de offerta; e o fumo avermelhado e
lento ascendia serenamente ao azul, levando nos seus rolos o cheiro que
deleita o Eterno.

--É um talho! murmurei eu, aturdido. É um talho! Topsius, doutor, vamos
outra vez lá baixo ás mulherinhas...

O sabio olhou para o sol. Depois, gravemente, pousando-me no hombro a
mão amiga:

--É quasi a nona hora, D. Raposo!... E temos de ir fóra da Porta
Judiciaria, para além do Gareb, a um sitio agreste que se chama o
_Calvario_.

Empallideci. E pareceu-me que nenhuma vantagem espiritual obteria minha
alma, nenhuma inesperada acquisição enriqueceria o saber de Topsius--por
irmos contemplar no alto d'um morro, entre urzes, Jesus atado a um
madeiro e soffrendo: era apenas um tormento para a nossa sensibilidade!
Mas, submisso, segui o meu sapiente amigo pela escadaria das Aguas, que
leva ao largo lageado de basalto onde começam as primeiras casas d'Acra.
Visinhas do Santuario, habitadas por Sacerdotes, ellas ostentavam uma
profusa devoção Paschal, em palmas, lampadas, alcatifas penduradas dos
eirados: e algumas tinham os hombraes salpicados com o sangue fresco
d'um anho.

Antes de penetrar n'uma sordida, andrajosa rua que se ia torcendo sob
velhos toldes de esparto, voltei-me para o Templo: agora só via a
immensa muralha de granito, com bastiões no alto, sombria e
inderrubavel: e a arrogancia da sua força e da sua eternidade encheu de
cólera o meu coração. Emquanto sobre uma collina de morte, destinada aos
escravos, o homem de Galilêa, incomparavel amigo dos homens, arrefecia
na sua cruz, e para sempre se apagava aquella pura voz de amor e
d'espiritualidade--alli ficava o Templo que o matava, rutilante e
triumphal, com o balar dos seus gados, o estridor dos seus sophismas, a
usura sob os Porticos, o sangue sobre as Aras, a iniquidade do seu duro
orgulho, a importunidade do seu perenne incenso... Então, com os dentes
cerrados, mostrei o punho a Jehovah e á sua cidadella, e bradei:

--Arrasados sejaes!

       *       *       *       *       *

Não descerrei mais os labios sêccos até chegarmos á estreita porta nas
muralhas de Ezekiah, que os Romanos denominavam a _Judiciaria_. E logo
ahi estremeci, vendo collado n'um pilar de pedra um pergaminho com três
sentenças transcriptas--«a d'um ladrão de Bettebara, a d'um assassino de
Emath, e a de Jesus de Galilêa!» O escriba do Sanhedrin, que conforme á
Lei alli vigiára para recolher, até que os condemnados passassem, algum
inesperado testemunho d'inculpabilidade, ia partir, com os seus
tabularios debaixo do braço, depois de traçar sobre cada sentença um
grosso risco vermelho. E aquelle córte final, côr de sangue, passado á
pressa por um escripturario que recolhia contente á sua morada, a comer
o seu anho, commoveu-me mais que a melancolia dos Livros Santos.

Sebes de cactos em flôr bordavam a estrada; e para além eram verdes
outeiros onde os muros baixos de pedra solta, vestidos de rosas bravas,
delimitavam os hortos. Tudo alli resplandecia, festivo e pacifico. Á
sombra das figueiras, debaixo dos pilares das parreiras, as mulheres,
encruzadas em tapetes, fiavam o linho ou atavam os ramos d'alfazema e
manjerona que se offerecem na Paschoa: e crianças em redor, com o
pescoço carregado d'amuletos de coral, balouçavam-se em cordas, atiravam
á setta... Pela estrada descia uma fila de lentos dromedarios levando
mercadorias para Joppé: dois homens robustos recolhiam da caça, com
altos coturnos vermelhos cobertos de pó, a aljava batendo-lhe a côxa,
uma rede atirada para as costas, e os braços carregados de perdizes e
d'abutres amarrados pelas patas: e diante de nós caminhava devagar,
apoiado ao hombro d'uma criança que o conduzia, um velho pobre, de
longas barbas, trazendo presa ao cinto como um bardo a lyra grega de
cinco cordas, e sobre a fronte uma corôa de louro...

Ao fundo d'um muro, coberto de ramos de amendoeiras, diante d'uma
cancella pintada de vermelho, dois servos esperavam, sentados n'um
tronco cahido, com os olhos baixos e as mãos sobre os joelhos. Topsius
parou, puxou-me o albornoz:

--É este o horto de José de Ramatha, um amigo de Jesus, membro do
Sanhedrin, homem d'espirito inquieto, que se inclina para os Essenios...
E justamente, ahi vem Gad!

Do fundo do horto, com effeito, por uma rua de murta e rosas, Gad descia
correndo com uma trouxa de linho e um cabaz de vime enfiados n'um pau.
Parámos.

--O Rabbi? gritou-lhe o alto Historiador, transpondo a cancella.

O Essenio entregou a um dos escravos a trouxa, e o cesto que estava
cheio de myrrha e d'hervas aromaticas; e ficou diante de nós um momento,
tremulo, suffocado, com a mão fortemente pousada sobre o coração para
lhe serenar a anciedade.

--Soffreu muito! murmurou, por fim. Soffreu quando lhe trespassaram as
mãos... Mais ainda ao erguer da cruz... E repelliu primeiro o vinho de
Misericordia, que lhe daria a inconsciencia... O Rabbi queria entrar com
a alma clara na morte por que chamára!... Mas José de Ramatha,
Nicodemus, estavam lá vigiando. Ambos lhe lembraram as coisas
promettidas uma noite em Bethania... O Rabbi então tomou a malga das
mãos da mulher de Rosmophin, e bebeu.

E o Essenio, pregados em Topsius os olhos reluzentes, como para cravar
bem seguramente na sua alma uma recommendação suprema, recuou um passo e
disse com uma grave lentidão:

--Á noite, depois da ceia, no eirado de Gamaliel...

E outra vez desappareceu na rua fresca do horto, entre a murta e as
roseiras. Topsius deixou logo a estrada de Joppé: e estugando o passo
por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos
das piteiras, explicava-me que a bebida de Misericordia--era um vinho
forte de Tharses, com succo de papoulas e especiarias, fornecido por uma
confraria de mulheres devotas para insensibilizar os suppliciados... Mas
eu mal escutava aquelle copioso espirito. No alto d'um aspero outeiro,
todo de rocha e urze, avistára, destacando duramente no claro azul do
céo liso, um montão de gente parada: e em meio d'ella sobrelevavam-se
tres pontas grossas de madeiros e moviam-se, faiscando ao sol, elmos
polidos de Legionarios. Turbado, encostei-me á beira do caminho, n'um
penedo branco que escaldava. Mas vendo Topsius marchar, com a sabia
serenidade de quem considera a Morte uma purificadora libertação das
fórmas imperfeitas--não quiz ser menos forte, nem menos espiritual:
arranquei o albornoz que me abafava, galguei intrepidamente a collina
temerosa.

D'um lado cavava-se o Valle de Hinom, abrazado e livido, sem uma herva,
sem uma sombra, juncado d'ossos, de carcassas, de cinzas. E diante de
nós o môrro ascendia, com manchas leprosas de tojo negro, e a espaços
furado por uma ponta de rocha polida e branca como um osso. O corrego,
onde os nossos passos espantavam os lagartos, ia perder-se entre as
ruinas d'um casebre de adobe: duas amendoeiras, mais tristes que plantas
crescidas na fenda d'um sepulchro, erguiam ao lado a sua rama rala e sem
flôr, onde cantavam asperamente cigarras. E na sombra tenue, quatro
mulheres descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas tunicas
pobres, choravam como n'um funeral.

Uma, sem se mover, hirta contra um tronco, gemia surdamente sob a ponta
do manto negro: outra, exhausta de lagrimas, jazia n'uma pedra, com a
cabeça cahida nos joelhos, e os esplendidos cabellos louros
desmanchados, alastrados até ao chão. Mas as outras duas deliravam,
arranhadas, ensanguentadas, batendo desesperadamente nos peitos,
cobrindo a face de terra; depois, lançando ao céo os braços nús,
abalavam o môrro com gritos--«oh meu encanto, oh meu thesouro, oh meu
sol!» E um cão, que farejava entre as ruinas, abria a guela, uivava
tambem, sinistramente.

Espavorido, puxei a capa do douto Topsius--e cortámos pelas urzes até ao
alto, onde se apinhavam, olhando e galrando, obreiros das officinas de
Gareb, serventes do Templo, vendilhões, e alguns d'esses sacerdotes
miseraveis e em farrapos, que vivem de negromancia e d'esmolas. Diante
da branca capa em que Topsius se togava, dois cambistas, com moedas
d'ouro pendentes das orelhas, arredaram-se, murmurando bençãos servis.
Uma corda d'esparto deteve-nos, presa a postes cravados no chão para
isolar o alto do môrro, e, no sitio em que ficáramos, enrolada a uma
velha oliveira que tinha pendurados dos ramos escudos de Legionarios e
um manto vermelho.

Então, ancioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta,
cravada com cunhas n'uma fenda de rocha. O Rabbi agonisava. E aquelle
corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente,
atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão
passado entre as pernas--encheu-me de terror e d'espanto... O sangue que
manchára a madeira nova, ennegrecia-lhe as mãos, coalhado em torno aos
cravos: os pés quasi tocavam o chão, amarrados n'uma grossa corda, rôxos
e torcidos de dôr. A cabeça, ora escurecida por uma onda de sangue, ora
mais livida que um marmore, rolava d'um hombro a outro dôcemente; e por
entre os cabellos emmaranhados, que o suor empastára, os olhos
esmoreciam, sumidos, apagados--parecendo levar com a sua luz para sempre
toda a luz e toda a esperança da terra...

O centurião, sem manto, com os braços cruzados sobre a couraça de
escamas, rondava gravemente junto á cruz do Rabbi, cravando por vezes os
olhos duros na gente do Templo, cheia de rumores e de risos. E Topsius
mostrou-me defronte, rente á corda, um homem cuja face amarella e triste
quasi desapparecia entre as duas longas mechas negras de cabello que lhe
desciam sobre o peito--e que abria e enrolava com impaciencia um
pergaminho, ora espiando a marcha lenta do sol, ora fallando baixo a um
escravo ao seu lado.

--É Joseph de Ramatha, segredou-me o douto Historiador. Vamos ter com
elle, ouvir as coisas que convém saber...

Mas n'esse instante, d'entre o bando sordido dos servos do Templo e dos
sacerdotes miseraveis que são nutridos pelos sobejos dos holocaustos,
rompeu um ruido mais forte como o grasnar de corvos n'um alto. E um
d'elles, colossal, esqualido, com costuras de facadas através da barba
rala, atirou os braços para a cruz do Rabbi, e gritou n'uma baforada de
vinho:

--Tu que és forte, e querias destruir o Templo e as suas muralhas,
porque não quebras ao menos o pau d'essa cruz?

Em torno estalaram risadas alvares. E outro, espalmando as mãos sobre o
peito, curvado com infinito escarneo, saudava o Rabbi:

--Herdeiro de David, oh meu principe, que te parece esse throno?

--Filho de Deus! Chama teu pai, vê se teu pai te vem salvar! rouquejava
a meu lado um magro velho, que tremia e sacudia a barba, apoiado ao seu
bordão.

Alguns vendilhões bestiaes apanhavam torrões seccos a que misturavam
cuspo, para arremessar ao Rabbi: uma pedra por fim passou, resoou
cavamente no madeiro. Então o Centurião correu, indignado; a folha da
sua larga espada lampejou no ar; e o bando recuou blasphemando--emquanto
alguns embrulhavam na ponta do saião os dedos que escorriam sangue.

Nós acercámo-nos de José de Ramatha. Mas o sombrio homem abalou
bruscamente, esquivando a importunidade do sabio Topsius. E, magoados
com a sua rudeza alli ficámos junto d'um tronco de oliveira secca,
defronte das outras cruzes.

Os dois condemnados tinham acordado do primeiro desmaio, sob a frescura
da aragem da tarde. Um, grosso, pelludo, com os olhos esbugalhados, o
peito atirado para diante e as costellas a estalar, como se n'um esforço
desesperado quizesse arrancar-se do madeiro--urrava sem descontinuar,
medonhamente: o sangue pingava-lhe em gottas lentas dos pés negros, das
mãos esgaçadas: e abandonado, sem affeição ou piedade que o assistissem,
era como um lobo ferido que uiva e morre n'um brejo. O outro, delgado e
louro, pendia sem um gemido, como uma haste de planta meio quebrada.
Defronte d'elle uma mulher macilenta e em farrapos, passando a cada
instante o joelho sobre a corda, estendia-lhe nos braços uma criancinha
núa, e gritava, já rouca: «Olha ainda, olha ainda!» As palpebras lividas
não se moviam: um negro, que entrouxava as ferramentas da crucificação,
ia empurral-a com brandura: ella emmudecia, apertava desesperadamente o
filho para que lh'o não levassem tambem, batendo os dentes, tremendo
toda: e a criancinha entre os farrapos procurava o seio magro.

Soldados, sentados no chão, desdobravam as tunicas dos suppliciados:
outros, com o elmo enfiado no braço, limpavam o suor--ou por uma malga
de ferro, a goles lentos, bebiam a _posca_. E em baixo, na poeira da
estrada, sob o sol mais dôce, passava gente recolhendo pacificamente dos
campos e dos hortos. Um velho picava as suas vaccas para o lado da porta
de Genath: mulheres, cantando, carregavam lenha: um cavalleiro trotava,
embrulhado n'um manto branco. Ás vezes os que atravessavam o caminho ou
voltavam dos pomares de Gareb avistavam as tres cruzes erguidas:
arregaçavam a tunica, subiam a collina devagar através das urzes. O
rotulo da cruz do Rabbi, escripto em grego e em latim, causava logo
assombro. «Rei dos Judeus»! Quem era esse? Dois moços, patricios e
sadduceus, com brincos de perolas nas orelhas e bordaduras d'ouro nos
borzeguins, interpellaram o Centurião, escandalisados. Porque escrevera
o Pretor--«Rei dos Judeus»? Era aquelle, alli pregado na cruz, Caio
Tiberio? Só Tiberio era rei da Judêa! O Pretor quizera offender Israel!
Mas em verdade só ultrajava Cesar!...

Impassivel, o Centurião fallava a dois Legionarios que remexiam no chão
em grossas barras de ferro. E a mulher que acompanhava os sadduceus, uma
romana miudinha e morena, com fitas de purpura nos cabellos empoados
d'azul, contemplava suavemente o Rabbi e aspirava o seu frasco de
essencias--lamentando decerto aquelle moço, rei vencido, rei barbaro,
que morria no poste dos escravos.

Cansado, fui sentar-me com Topsius n'uma pedra. Era perto da oitava hora
judaica: o sol, sereno como um heroe que envelhece, descia para o mar
por sobre as palmeiras de Bethania. Diante de nós o Gareb verdejava,
coberto de jardins. Junto ás muralhas, no bairro novo de Bezetha,
grandes panos vermelhos e azues seccavam em cordas ás portas das
tinturarias; um lume vermelhejava no fundo d'uma forja; crianças
corriam, brincando sobre a borda d'uma piscina. Adiante, no alto da
torre Hippica, que estendia já a sua sombra sobre o valle de Hinom,
soldados de pé na amurada apontavam a setta aos abutres voando no azul.
E para além, entre arvoredos, surgiam, frescos e rosados pela tarde, os
eirados do palacio de Herodes.

Triste, com o espirito disperso, eu pensava no Egypto, nas nossas
tendas, na vela que lá me esquecera ardendo, fumarenta e
vermelha--quando avistei, subindo a collina devagar, apoiado ao hombro
da criança que o conduzia, o velho que já cruzáramos na estrada de
Joppé, com uma lyra presa á cintura. Os seus passos arrastavam-se mais
incertos, na fadiga d'uma jornada penosa; uma tristeza abatia-lhe sobre
o peito a clara barba ondeante; e debaixo do manto côr de vinho, que lhe
cobria a cabeça, as folhas da corôa de louro pendiam raras e murchas.

Topsius gritou-lhe: «Eh, Rapsodo!» E quando elle, tenteando as urzes do
caminho, se acercou--o douto Historiador perguntou-lhe se das dôces
Ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face
entristecida; e muito nobremente murmurou que uma mocidade imperecivel
sorri nos mais antigos cantos da Hellenia. Depois, tendo assentado a
sandalia sobre uma pedra, tomou a lyra entre as mãos vagarosas; a
criança, direita, com as pestanas baixas, pôz á bôca uma flauta de cana;
e, no resplandor da tarde que envolvia e dourava Sião, o Rapsodo soltou
um canto já tremulo, mas glorioso e repassado de adoração, como ante a
ara d'um templo, n'uma praia da Ionia... E eu percebi que elle cantava
os Deuses, a sua belleza, a sua actividade heroica. Dizia o Delphico,
imberbe e côr d'ouro, afinando os pensamentos humanos pelo rythmo da sua
cythara; Atheneia, armada e industriosa, guiando as mãos dos homens
sobre os teares; Zeus, ancestral e sereno, dando a belleza ás raças, a
ordem ás cidades; e acima de todos, sem fórma e esparso, o Fado, mais
forte que todos!

Mas subitamente um grito varou o céo no alto da collina, supremo e
arrebatado como o de uma libertação! Os dedos frouxos do velho
emmudeceram entre as cordas de metal: com a cabeça descabida, a corôa do
louro épico meio desfolhada, parecia chorar sobre a lyra hellenica,
d'ora em diante e para longas idades silenciosa e inutil. E ao lado a
criança, tirando a flauta dos labios, erguia para as cruzes negras os
olhos claros--onde subia a curiosidade e a paixão d'um mundo novo.

Topsius pediu ao velho a sua historia. Elle contou-a, com amargura.
Viera de Samnos a Cesarêa, e tocava o konnor junto ao Templo d'Hercules.
Mas a gente abandonava o puro culto dos heroes; e só havia festas e
offrendas para a Boa Deusa da Syria! Acompanhára depois uns mercadores a
Tiberiade: os homens ahi não respeitavam a velhice, e tinham corações
interesseiros como escravos. Seguira então pelas longas estradas,
parando nos postos romanos onde os soldados o escutavam; nas aldeias de
Samaria batia ás portas dos lagares; e para ganhar o pão duro tocára a
cythara grega nos funeraes dos barbaros. Agora errava alli, n'essa
cidade onde havia um grande Templo, e um Deus feroz e sem fórma que
detestava as gentes. E o seu desejo era voltar a Mileto, sua patria,
sentir o fino murmurio das aguas do Meandro, poder palpar os marmores
santos do templo de Phebo Dydimeo--onde elle em criança levára n'um
cesto e cantando os primeiros anneis dos seus cabellos...

As lagrimas rolavam pela sua face, tristes como a chuva por um muro em
ruinas. E a minha piedade foi grande por aquelle Rapsodo das ilhas da
Grecia, perdido tambem na dura cidade dos judeus, envolto pela
influencia sinistra d'um Deus alheio! Dei-lhe a minha derradeira moeda
de prata. Elle desceu a collina, apoiado ao hombro da criança, lento e
curvado, com a orla esfarrapada do manto trapejando nas pernas núas, e
muda e mal segura do cinto a lyra heroica de cinco cordas.

No emtanto, em torno ás cruzes, no alto, crescera um rumor de revolta. E
fômos encontrar a gente do Templo, com as mãos no ar, mostrando o sol
que descia como um escudo d'ouro para o lado do mar de Tyro, intimando o
Centurião a que baixasse os condemnados da cruz antes de soar a hora
santa da Paschoa! Os mais devotos reclamavam que se applicasse aos
crucificados, se ainda viviam, o _crurifragio_ romano, quebrando-lhes os
ossos com barras de ferro, arrojando-os ao despenhadeiro de Hinom. E a
indifferença do Centurião exasperava o zelo piedoso. Ousaria elle
macular o Sabbath, deixando um corpo morto no ar? Alguns enrolavam a
ponta do manto para correr, e ir a Acra avisar o Pretor.

--O sol declina! O sol vai deixar o Hebron! gritou de cima d'uma pedra
um levita, aterrado.

--Acabai-os, acabai-os!

E ao nosso lado, um formoso moço exclamava, requebrando os olhos
languidos, movendo os braços cheios de manilhas d'ouro:

--Atirai o Rabbi aos corvos! Dai ás aves de rapina a sua Paschoa!

O Centurião, que espreitava o alto da torre Marianna onde os escudos
suspensos luziam batidos pelo sol derradeiro--acenou devagar com a
espada. Dois Legionarios, lançando pesadamente ao hombro as barras de
ferro, marcharam com elle para as cruzes. Eu, arripiado, agarrei o braço
de Topsius. Mas diante do madeiro de Jesus o Centurião parou, erguendo a
mão...

O corpo branco e forte do Rabbi tinha a serenidade d'um adormecimento:
os pés empoeirados, que ha pouco a dôr torcia dentro das cordas, pendiam
agora direitos para o chão como se o fossem em breve pisar: e a face não
se via, tombada para traz mollemente por sobre um dos braços da cruz,
toda voltada para o céo onde elle puzera o seu desejo e o seu reino...
Eu olhei tambem o céo: rebrilhava, sem uma sombra, sem uma nuvem, liso,
claro, mudo, muito alto, e cheio de impassibilidade...

--Quem reclamou o corpo d'este homem? gritou, procurando para os lados,
o Centurião.

--Eu, que o amei em vida! acudiu Joseph de Ramatha, estendendo por cima
da corda o seu pergaminho.

O escravo que esperava junto d'elle depoz logo no chão a trouxa de linho
e correu para as ruinas do casebre onde as mulheres choravam entre as
amendoeiras.

E por traz de nós, Phariseus e Sadduceus que se tinham juntado
estranhavam com azedume que José de Ramatha, um membro do Sanhedrin,
assim solicitasse o corpo do Rabbi para o perfumar e lhe fazer soar em
torno as flautas e os prantos d'um funeral... Um d'elles, corcovado, com
esfiadas melenas luzidias d'oleo, affirmava que sempre conhecera José de
Ramatha inclinado para todos os innovadores, todos os sediciosos... Mais
d'uma vez o vira fallar com esse Rabbi junto ao campo dos Tintureiros...
E com elles estava Nicodemus, homem rico que tem gados, que tem vinhas,
e todas as casas que estão d'ambos os lados da Synagoga de Cyrenaica...

Outro, rubicundo e molle, gemeu:

--Que será da nação, se os mais considerados se juntam aos que adulam o
pobre, e lhe ensinam que os fructos da terra devem ser igualmente para
todos!...

--Raça de Messias! bradou o mais moço com furor, atirando o bastão
contra as urzes. Raça de Messias, perdição d'Israel!

Mas o Sadduceu de melenas oleosas ergueu devagar a mão, ligada em tiras
sagradas:

--Socegai: Jehovah é grande: e tudo em verdade determina para melhor...
No Templo e no Conselho não faltarão jámais homens fortes que mantenham
a velha Ordem; e em cima dos calvarios, felizmente, hão de sempre
erguer-se as cruzes!...

E todos susurraram:

--Amen!

No emtanto o Centurião, com os soldados atraz levando ao hombro as
barras de ferro, marchava para os outros madeiros onde os condemnados,
vivos e cheios d'agonia pediam agua--um pendido e gemendo, outro
torcido, com as mãos rasgadas, rugindo terrivelmente. Topsius, que
sorria friamente, murmurou: «É tempo, vamos.»

Com os olhos alagados d'agua amarga, tropeçando nas pedras, desci ao
lado do fecundo critico a collina de Immolação. E sentia uma densa
melancolia entenebrecer a minha alma pensando n'essas cruzes vindouras,
annunciadas pelo conservador de guedelha oleosa... Assim seria, oh dura
miseria! Sim! d'ora ávante, por todos os seculos a vir, iria sempre
recomeçando em torno á lenha das fogueiras, sob a frialdade das
masmorras, junto ás escadas das forcas--este affrontoso escandalo de se
juntarem Sacerdotes, Patricios, Magistrados, Soldados, Doutores e
Mercadores para matarem ferozmente no alto d'um morro o justo que
penetrado do esplendor de Deus ensine a Adoração em Espirito, ou cheio
do amor dos homens proclame o Reino da Igualdade!

Com estes pensamentos recolhi a Jerusalem--emquanto as aves, mais
felizes que os homens, cantavam nos cedros do Gareb...

       *       *       *       *       *

Escurecera e era a hora da Ceia Paschal, quando chegámos a casa de
Gamaliel: no pateo, preso a uma argola, estava o burro, albardado de
panos pretos, que trouxera o amavel physico Eliezer de Silo.

Na sala azul, de tecto de cedro, perfumada de malobrathro, o austero
Doutor já nos aguardava estendido no divan de correias brancas, com os
pés nús, as largas mangas arregaçadas e pregadas no hombro--e ao lado um
bordão de viagem, uma cabaça d'agua e uma trouxa, emblemas rituaes da
sahida do Egypto. Defronte d'elle, n'uma mesa incrustada de madreperola,
entre vasos de barro com flôres pintadas, açafates de filigrana de prata
transbordando de fruta e pedaços scintillantes de gelo, erguia-se um
candelabro em fórma de arbusto, tendo na ponta de cada galho uma pallida
chamma azul: e, com os olhos perdidos no seu brilho tremulo, as mãos
cruzadas no ventre, Eliezer, o benigno «Doutor da Tripa», sorria
beatificamente encostado a almofadas de couro vermelho. Junto d'elle
dois escabellos, recobertos com tapetes da Assyria, esperavam por mim e
pelo sagaz Historiador.

--Sêde bem vindos, rosnou Gamaliel. Grandes são as maravilhas de Sião,
deveis vir esfomeados...

Bateu de leve as palmas. Os escravos, caminhando sem ruido nas sandalias
de feltro, e precedidos majestosamente pelo homem obeso de tunica
amarella, entraram, erguendo muito alto largos pratos de cobre que
fumegavam.

A um lado tinhamos, para limpar os dedos, um bôlo de farinha branco,
fino e molle como um pano de linho; do outro um prato largo, com
cercadura de perolas, onde negrejava entre ramos de salsa um montão de
cigarras fritas; no chão jarros com agua de rosa. Cumprimos as abluções:
e Gamaliel, tendo purificado a bocca com um pedaço de gêlo, murmurou a
oração ritual sobre a vasta travessa de prata, onde o cabrito assado
fazia transbordar o môlho d'açafrão e saumura.

Topsius, bom sabedor das maneiras orientaes, arrotou fortemente, por
cortezia, demonstrando fartura e deleite: depois, com uma febra de anho
entre os dedos, affirmou sorrindo aos Doutores que Jerusalem lhe
parecera magnifica, formosa de claridade, e bemdita entre as cidades...

Eliezer de Silo acudiu, com os olhos cerrados de gozo, como se o
acariciassem:

--Ella é uma joia melhor que o diamante, e o Senhor engastou-a no centro
da Terra para que irradiasse igualmente o seu brilho em redor...

--No centro da Terra!... murmurou o Historiador, com douto espanto.

Sim! E, ensopando um pedaço de bôlo no môlho d'açafrão, o profundo
Physico explicou a Terra. Ella é chata e mais redonda que um disco; no
meio está Jerusalem a santa, como um coração cheio do amor do Altissimo;
em redor a Judêa, rica em balsamos e palmeiras, cerca-a de sombra e de
aromas; para além ficam os pagãos, em regiões duras onde nem o mel nem o
leite abundam; depois são os mares tenebrosos... E por cima o céo,
sonoro e solido.

--Solido!... balbuciou o meu sapiente amigo, esgazeado.

Os escravos serviam em taças de prata cerveja amarella da Media. Com
solicitude Gamaliel aconselhou-me que, para lhe avivar o sabôr,
trincasse uma cigarra frita. E Rabbi Eliezer, sabio entre todos nas
coisas da Natureza, revelava a Topsius a divina construcção do céo.

Elle é feito de sete duras, maravilhosas, rutilantes camadas de crystal;
por cima d'ellas constantemente rolam as grandes aguas; sobre as aguas
fluctua n'um fulgôr o espirito de Jehovah... Estas laminas de crystal,
furadas como um crivo, resvalam umas sobre as outras com uma musica dôce
e lenta que os prophetas mais queridos por vezes ouviam... Elle mesmo,
uma noite que orava no eirado da sua casa em Silo, sentira por um raro
favor do Altissimo essa harmonia, tão penetrante e suave que as lagrimas
uma a uma lhe cahiam nas mãos abertas... Ora nos mezes de Kisleu e de
Tebeth os furos das laminas coincidem, e por elles cahem sobre a Terra
as gotas das aguas eternas que fazem crescer as searas!

--A chuva? perguntou Topsius, com acatamento.

--A chuva! respondeu Eliezer, com serenidade.

Topsius, mordendo um sorriso, ergueu para Gamaliel os seus oculos d'ouro
que faiscavam de sabia ironia: mas o piedoso filho de Simeon conservava
sobre a face, emmagrecida no estudo da Lei, uma seriedade impenetravel.
Então o Historiador, remexendo as azeitonas, desejou saber do
esclarecido Physico por que tinham os crystaes do céo essa côr azul que
enleva a alma...

Eliezer de Silo elucidou-o:

--Uma grande montanha azul, invisivel até hoje aos homens, ergue-se a
occidente: ora, quando o sol a bate, a sua reverberação banha o crystal
do céo e anila-o.

É talvez n'essa montanha que vivem as almas dos justos!...

Gamaliel tossiu brandamente e murmurou: «Bebamos, louvando o Senhor!».

Ergueu uma taça cheia de vinho de Sichem, pronunciou sobre ella uma
benção--passou-m'a, chamando a paz sobre o meu coração. Eu rosnei: «Á
sua, muitos e felizes!» E Topsius, recebendo a taça com veneração,
bebeu--«á prosperidade d'Israel, á sua força, ao seu saber!»

Depois os servos, precedidos pelo homem obeso de tunica amarella, que
fazia resoar sobre as lages com pompa a sua vara de marfim, trouxeram a
mais devota comida paschal--as hervas amargas.

Era uma travessa repleta de alface, agriões, chicorea, macella, com
vinagre e grossas pedras de sal. Gamaliel mastigava-as solemnemente,
como cumprindo um rito. Ellas representavam as amarguras de Israel no
captiveiro do Egypto. E Eliezer, chupando os dedos, declarou-as
deliciosas, fortificadoras e repassadas de alta lição espiritual.

Mas Topsius lembrou, fundado nos auctores gregos, que todos os legumes
amollecem no homem a virilidade, lhe descoram a eloquencia, lhe enervam
o heroismo: e com torrencial erudição citou logo Theophrasto, Eubulo,
Nicandro na segunda parte do seu _Diccionario_, Phenias no seu _Tratado
das Plantas_, Dephilo e Epicharmo!...

Gamaliel, seccamente, condemnou a inanidade d'essa sciencia--porque
Hecateus de Mileto, só no primeiro livro da sua _Descripção da Asia_,
encerra cincoenta e tres erros, quatorze blasphemias e cento e nove
omissões... Assim dizia o leviano grego que a tamara, maravilhoso dom do
Altissimo, enfraquece o intellecto!...

--Mas, exclamou Topsius com ardor, a mesma doutrina estabelece
Xenophonte no livro segundo do _Anabasis_! E Xenophonte...

Gamaliel rejeitou a auctoridade de Xenophonte. Então Topsius, vermelho,
batendo com uma colhér de ouro na borda da mesa, exaltou a eloquencia de
Xenophonte, a forte nobreza do seu sentimento, a sua terna reverencia
por Socrates!... E emquanto eu partia um empadão de Commagenia, os dois
facundos doutores, asperamente, romperam debatendo Socrates. Gamaliel
affirmava que as _vozes secretas_ ouvidas por Socrates, e que tão divina
e puramente o governavam, eram murmurios distantes que lhe chegavam da
Judêa, repercussões miraculosas da voz do Senhor... Topsius pulava,
encolhia os hombros, com desesperado sarcasmo. Socrates inspirado por
Jehovah! Ora lérias!

No emtanto era certo (insistia Gamaliel, já livido) que os gentilicos
iam emergindo da sua treva, attrahidos pela luz forte e pura que
derramava Jerusalem:--porque a reverencia pelos Deuses apparecia em
Eschylo profunda e cheia de terror; em Sophocles, amavel e cheia de
serenidade; em Euripides, superficial e cheia de duvida... E cada um dos
Tragicos dava assim, largamente, um passo para o Deus verdadeiro!

--Oh Gamaliel, filho de Simeon, murmurou Eliezer de Silo, tu, que
possues a verdade, para que dás accesso no teu espirito aos pagãos?

Gamaliel respondeu:

--Para os desprezar melhor dentro em mim!

Farto de tão classica controversia, acheguei a Eliezer um covilhete de
mel do Hebron--e contei-lhe quanto me agradára o caminho do Gareb entre
jardins. Elle concordou que Jerusalem, cercada de vergeis, era dôce á
vista como a fronte da noiva toucada d'anemonas. Depois estranhou que eu
escolhesse, para me recrear, esses arredores de Gihon, cheios
d'açougues, junto ao môrro escalvado onde se erguem as cruzes. Mais
suave me teria sido a fragrancia de Siloeh...

--Fui vêr Jesus, atalhei severamente. Fui vêr Jesus, crucificado esta
tarde por mandado do Sanhedrin...

Eliezer, com oriental cortezia, bateu no peito demonstrando mágua. E
quiz saber se pertencia ao meu sangue, ou partilhára commigo o pão de
alliança, esse Jesus que eu fôra assistir na sua morte d'escravo.

Eu considerei-o, assombrado:

--É o Messias!

E elle considerou-me mais assombrado ainda, com um fio de mel a
escorrer-lhe na barba.

Oh raridade! Eliezer, doutor do Templo, Physico do Sanhedrin, não
conhecia Jesus de Galilêa! Atarefado com os enfermos que pela Paschoa
atulham Jerusalem (confessou elle) não fôra ao Xistus, nem á loja do
perfumista Cleos, nem aos eirados de Hannan, onde as novas voam mais
numerosas que as pombas: por isso nada ouvira da apparição d'um
Messias...

De resto, acrescentou, não podia ser o Messias! Esse deveria chamar-se
_Manahem_ «o consolador», porque traria a consolação a Israel. E haveria
dois Messias: o primeiro, da tribu de José, seria vencido por Gog; o
segundo, filho de David e cheio de força, venceria Magog. Antes d'elle
nascer começariam sete annos de maravilhas: haveria mares evaporados,
estrellas despregadas do céo, fomes e taes farturas que até as rochas
dariam fructo: no ultimo anno correria sangue entre as nações: emfim
resoaria uma voz portentosa: e, sobre o Hebron, com uma espada de fogo,
surgiria o Messias!...

Dizia estas coisas peregrinas fendendo a casca d'um figo. Depois com um
suspiro:

--Ora ainda nenhuma d'essas maravilhas, meu filho, annunciou a
consolação!...

E atolou os dentes no figo.

Então fui eu, Theodorico, Ibero, d'um remoto municipio romano, que
contei a um Physico de Jerusalem, creado entre os marmores do Templo, a
vida do Senhor! Disse as coisas dôces e as coisas fortes: as tres claras
estrellas sobre o seu berço; a sua palavra amansando as aguas de
Galilêa; o coração dos simples palpitando por elle; o Reino do Céo que
promettia; e a sua face augusta brilhando diante do Pretor de Roma...

--Depois os Padres, os Patricios e os Ricos crucificaram-no!

Doutor Eliezer, volvendo a remexer o açafate de figos, murmurou
pensativamente:

--Triste, triste!... Todavia, meu filho, o Sanhedrin é misericordioso.
Em sete annos, desde que o sirvo, apenas tem lançado tres sentenças de
morte... Sim, decerto o mundo necessita bem escutar uma palavra de amor
e de justiça: mas Israel tem soffrido tanto com innovadores, com
prophetas!... Emfim, nunca se deveria derramar o sangue do homem... E a
verdade é que estes figos de Bephtagé não valem os meus de Silo!

Calado, enrolei um cigarro. E n'esse instante o douto Topsius, debatendo
ainda com Gamaliel o Hellenismo e as escólas Socraticas, empinado,
d'oculos na ponta do bico, soltava este resumo forte:

--Socrates é a semente; Platão a flôr; Aristoteles o fructo... E d'esta
arvore, assim completa, se tem nutrido o espirito humano!

Mas Gamaliel subitamente ergueu-se: Doutor Eliezer tambem, arrotando com
effusão. Ambos tomaram os cajados, ambos gritaram:

--Alleluia! Louvai o Senhor que nos tirou da terra do Egypto!

Findára a ceia Paschal. O esclarecido Historiador, que limpava o suor da
controversia, olhou logo vivamente o relogio e rogou a Gamaliel
permissão de subir ao terraço, a refrescar a sua emoção no ar macio
d'Ophel... O Doutor da Lei conduziu-nos á varanda alumiada pallidamente
por lampadas de mica, mostrou-nos a ingreme escada de ebano que levava
aos eirados; e chamando sobre nós a graça do Senhor, penetrou com
Eliezer n'um aposento cerrado por cortinas de Mesopotamia--d'onde sahiu
um aroma, um fino rumor de risos e sons lentos de lyra.

Que dôce ar no terraço! E que alegre essa noite de Paschoa em Jerusalem!
No céo, mudo e fechado como um palacio onde ha luto, nenhum astro
brilhava: mas o burgo de David e a collina d'Acra, com as suas
illuminações rituaes, pareciam salpicadas d'ouro. Em cada eirado, vasos
com estopa ardendo em oleo lançavam uma chamma ondeante e vermelha. Aqui
e além, n'alguma casa mais alta os fios de luzes, na parede escura,
reluziam como um collar de joias no pescoço d'uma negra. O ar estava
dôcemente cortado dos gemidos de flauta, da dolente vibração das cordas
do konnor: e em ruas alumiadas por grandes fogueiras de lenha, viamos
esvoaçar, claras e curtas, as tunicas de gregos dançando a _callabida_.
Só as torres, mais vastas na noite, a Hippica, a Marianna, a Pharsala se
conservavam escuras: e o mugido das suas bozinas passava por vezes,
rouco e rude, como uma ameaça, sobre a santa cidade em festa.

Mas para além das muralhas recomeçava a alegria da noite paschal. Havia
luzes em Siloeh. Nos acampamentos, sobre o monte das Oliveiras, ardiam
fogos claros: e como as portas ficavam abertas, filas de tochas
fumegavam pelos caminhos, por entre um rumor de cantares.

Só uma collina, além do Gareb, permanecera em treva. N'essa hora, por
baixo d'ella, n'uma ravina entre rochas, alvejavam dois corpos
despedaçados, onde os bicos dos abutres com um ruido secco de ferros
entrechocados faziam a sua ceia Paschal. Ao menos outro corpo, precioso
envolucro d'um espirito perfeito, jazia resguardado n'um tumulo novo,
envolto em linho fino, ungido, perfumado de canella e de nardo. Assim o
tinham deixado n'essa noite, a mais santa d'Israel, aquelles que o
amavam--e que desde então para todo o sempre mais entranhadamente o
amariam... Assim o tinham deixado com uma pedra lisa por cima: e agora
entre as casas de Jerusalem, cheias de luzes e cheias de cantos--alguma
havia, escura e fechada, onde corriam lagrimas sem consolação. Ahi o lar
esfriára, apagado: a lampada triste esmorecia sobre o alqueire: na bilha
não havia agua, porque ninguem fôra á fonte; e sentadas na esteira, com
os cabellos cahidos, aquellas que o tinham seguido de Galilêa fallavam
d'elle, das primeiras esperanças, das parabolas contadas por entre os
trigaes, dos tempos suaves á beira do lago...

Assim eu pensava, debruçado sobre o muro, olhando Jerusalem--quando no
terraço surgiu, sem rumor, uma fórma envolta em linhos brancos,
espalhando um aroma de canella e de nardo. Pareceu-me que d'ella
irradiava um clarão, que os seus pés não pisavam as lages--e o meu
coração tremeu! Mas d'entre os pallidos panos uma benção sahiu, grave e
familiar:

--Que a paz seja comvosco!

Ah! que allivio! Era Gad.

--Que a paz seja comtigo!

O Essenio parou diante de nós, calado; e eu sentia os seus olhos
procurarem o fundo da minha alma, para lhe sondar bem a grandeza e a
força. Por fim murmurou, immovel como uma imagem tumular nas suas
grandes vestes brancas:

--A lua vai nascer... Todas as coisas esperadas se estão cumprindo...
Agora, dizei! Sentis o coração forte para acompanhar Jesus, e guardal-o
até ao oasis d'Engaddi?

Ergui-me, atirando os braços ao ar, n'um terror!... Acompanhar o Rabbi!
Elle não jazia pois morto, ligado e perfumado, sob uma pedra, n'uma
horta do Qareb?... Vivia! Ao nascer da lua, entre os seus amigos, ia
partir para Engaddi! Agarrei anciosamente o hombro de Topsius,
amparando-me ao seu saber forte e á sua auctoridade...

O meu douto amigo parecia enleado n'uma pesada incerteza:

--Sim, talvez... O nosso coração é forte, mas... Além d'isso não temos
armas!

--Vinde commigo! acudiu Gad, ardentemente. Passaremos por casa d'alguem
que nos dirá as coisas que convém saber, e que vos dará armas!...

Ainda trémulo, sem me desamparar do sapiente Historiador, ousei
balbuciar:

--E Jesus?... Onde está?

--Em casa de José de Ramatha, segredou o Essenio espreitando em roda
como o avaro que falla d'um thesouro. Para que nada suspeitasse a gente
do Templo, mesmo na presença d'elles depositámos o Rabbi no tumulo novo
que está no horto de José. Tres vezes as mulheres choraram sobre a pedra
que segundo os ritos, como sabeis, não fechava inteiramente o tumulo,
deixando uma larga fenda por onde se via o rosto do Rabbi. Alguns
serventes do Templo olharam, e disseram: «Está bem.» Cada um recolheu á
sua morada... Eu entrei pela porta de Genath, nada mais vi. Mas, apenas
anoitecesse, José e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo
de Jesus, e com as receitas que vem no livro de Salomão fazel-o reviver
do desmaio em que o deixou o vinho narcotisado e o soffrimento... Vinde
pois, vós que o amaes tambem e crêdes n'elle!...

Impressionado, decidido, Topsius traçou a sua farta capa: e descemos,
n'um cauto silencio, pela escada que do terraço levava um caminho de
pedra miuda collado á muralha nova d'Herodes.

Longo tempo marchámos na escuridão, guiados pelas roupagens brancas do
Essenio. D'entre casebres em ruinas, por vezes um cão saltava uivando.
Sobre as altas ameias passavam mortiças lanternas de ronda. Depois uma
sombra que tossia ergueu-se de sob uma arvore, triste e molle como se
sahisse da sua sepultura; e roçando o meu braço, puxando a capa de
Topsius, rogava-nos através de gemidos e baforadas d'alho que fôssemos
dormir ao seu leito que ella perfumára de nardo.

Parámos finalmente diante d'um muro, a que uma esteira grossa d'esparto
cerrava a entrada. Um corredor que ressumbrava agua levou-nos a um pateo
rodeado por uma varanda, assente sobre rudes vigas de madeira: o chão
molle como lodo abafava o rumor das nossas solas.

Gad, tres vezes espaçadas, soltou o grito dos chacaes. Nós esperavamos
no meio do pateo, á borda d'um poço, coberto com tábuas: o céo, por
cima, guardava a escuridão dura e impenetravel d'um bronze. A um canto,
emfim, sob a varanda, um clarão vivo de lampada surgiu--alumiando a
barba negra do homem que a trazia e que lançára sobre a cabeça a ponta
d'um albornoz pardo de galileu. Mas a luz morreu sob um sôpro forte. E o
homem, lentamente, na treva, caminhou para nós.

Gad cortou a desolada mudez:

--Que a paz seja comtigo, irmão! Estamos promptos.

O homem pousou devagar a lampada sobre a tampa do poço, e disse:

--Tudo está consummado.

Gad, estremecendo, gritou:

--O Rabbi?

O homem atirou a mão para abafar o grito do Essenio. Depois, tendo
sondado a sombra em redor com olhos inquietos que reluziam como os d'um
animal do deserto:

--São coisas mais altas do que podemos entender. Tudo parecia certo. O
vinho narcotisado fôra bem preparado pela mulher de Rosmophim, que é
habil e conhece os simples... Eu tinha fallado ao Centurião, um camarada
a quem salvei a vida na Germania, na campanha de Publius. E, quando
rolámos a pedra sobre o tumulo de José de Ramatha, o corpo do Rabbi
estava quente!

Mas calou-se: e, como se o pateo fechado sob o céo negro não fosse
bastante secreto e seguro, tocou no hombro de Gad, e sem um rumor dos
pés nús recolheu á escuridão mais densa sob a varanda, até ás pedras do
muro. Nós, rente a elle e mudos, tremiamos de anciedade:--e eu senti que
uma revelação ia passar, suprema e prodigiosa, alumiando os Mysterios.

--Ao anoitecer, segredou o homem por fim com um murmurio triste d'agua
correndo na sombra, voltámos ao tumulo. Olhámos pela fenda: a face do
Rabbi estava serena e cheia de magestade. Levantámos a pedra, tirámos o
corpo. Parecia adormecido, tão bello, como divino, nos panos que o
envolviam... José tinha uma lanterna: e levámol-o pelo Gareb, correndo
através do arvoredo. Ao pé da fonte encontrámos uma ronda da Cohorte
auxiliar. Dissemos: «é um homem de Joppé que adoeceu, e que nós levamos
á sua synagoga.» A ronda disse: «passai». Em casa de José estava Simeon
o Essenio, que viveu em Alexandria e sabe a natureza das plantas: e tudo
fôra preparado, até a raiz do baraz... Estendemos Jesus na esteira.
Démos-lhe a beber os cordiaes, chamámol-o, esperámos, orámos... Mas ai!
sentiamos, sob as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante
abriu lentamente os olhos, uma palavra sahiu-lhe dos labios. Era vaga,
não a comprehendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava
de um abandono... Depois estremeceu: um pouco de sangue appareceu-lhe ao
canto da bocca... E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemus, o Rabbi
ficou morto!

Gad cahiu pesadamente de joelhos, soluçando: e o homem, como se todas as
coisas tivessem sido ditas, deu um passo para buscar a sua lampada ao
poço. Topsius deteve-o, com avidez:

--Escuta! Preciso toda a verdade. Que fizestes depois?

O homem parou junto a um dos pilares de madeira. Depois, alargando os
braços na escuridão, e tão perto das nossas faces que eu sentia o seu
bafo quente:

--Era necessario, para bem da terra, que se cumprissem as prophecias!
Durante duas horas José de Ramatha orou, prostrado. Não sei se o Senhor
lhe fallou em segredo; mas, quando se ergueu, resplandecia todo e
gritou: «Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!» Depois, por sua
ordem, enterrámos o Rabbi n'uma caverna que elle tem, talhada na rocha,
por traz do moinho...

Atravessou o pateo, tomou a sua lampada. E recolhia lentamente, sem um
rumor, quando Gad, erguendo a face, o chamou através dos seus soluços:

--Escuta ainda! Grande é o Senhor, na verdade!... E o outro tumulo, onde
as mulheres de Galilêa o deixaram, ligado e envolto em panos, com aloes
e com nardo?

O homem, sem parar, murmurou, já sumido na treva:

--Lá ficou aberto, lá ficou vazio!...

Então Topsius arrastou-me pelo braço tão arrebatadamente que
tropeçavamos no escuro contra os pilares da varanda. Uma porta ao fundo
abriu-se, com um brusco estrondo de ferros cahidos... E vi uma praça,
rodeada de pallidos arcos, triste e fria, com herva entre as fendas das
lages dessoldadas, como n'uma cidade abandonada. Topsius estacou, os
seus oculos faiscavam:

--Theodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalem!... A nossa
jornada ao Passado acabou... A lenda inicial do christianismo está
feita, vai findar o mundo antigo!

Eu considerei, assombrado e arripiado, o douto Historiador. Os seus
cabellos ondeavam agitados por um vento de inspiração. E o que levemente
sahia dos seus finos labios retumbava, terrivel e enorme, cahindo sobre
o meu coração:

--Depois d'ámanhã, quando acabar o Sabbath, as mulheres de Galilêa
voltarão ao sepulchro de José de Ramatha onde deixaram Jesus
sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!...
«Desappareceu, não está aqui!...» Então Maria de Magdala, crente e
apaixonada, irá gritar por Jerusalém--«_resuscitou, resuscitou_!» E
assim o amor d'uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais á
humanidade!

E, atirando os braços ao ar, correu através da praça--onde os pilares de
marmore começavam a tombar, sem ruido e mollemente. Arquejando, parámos
no portão de Gamaliel. Um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de
cadêas partidas, segurava os nossos cavallos. Montámos. Com um fragor de
pedras levadas n'uma torrente, varámos a Porta d'Ouro: e galopámos para
Jerichó, pela estrada romana de Sichem, tão vertiginosamente que não
sentiamos as ferraduras ferir as lages negras de basalto. Adiante, a
capa branca de Topsius torcia-se açoutada por uma rajada furiosa. Os
montes corriam aos lados, como fardos sobre dorsos de camêlos na
debandada d'um povo. As ventas da minha egoa dardejavam jactos de fumo
avermelhado:--e eu agarrava-me ás clinas, tonto, como se rolasse entre
nuvens...

De repente avistámos, alargada, cavada até ás serras de Moab, a planicie
de Canaan. O nosso acampamento alvejava junto ás bragas dormentes da
fogueira. Os cavallos estacaram, tremendo. Corremos ás tendas: sobre a
mesa, a vela que Topsius accendera para se vestir, havia mil e
oitocentos annos, morria n'um fogacho livido... E derreado da infinita
jornada atirei-me para o catre, sem mesmo descalçar as botas brancas de
pó...

Immediatamente me pareceu que uma tocha fumegante penetrára na tenda,
esparzindo um brilho d'ouro... Ergui-me, assustado. N'um largo raio de
sol, vindo dos montes de Moab, o jocundo Potte entrava, em mangas de
camisa, com as minhas botas na mão!

Arrojei a manta, arredei os cabellos, para verificar melhor a mudança
terrivel que desde a vespera se fizera no Universo! Sobre a mesa jaziam
as garrafas do _champagne_ com que brindaramos á Sciencia e á Religião.
O embrulho da Corôa d'Espinhos pousava á minha cabeceira. Topsius, no
seu catre, em camisola e com um lenço amarrado na testa, bocejava, pondo
os oculos de ouro no bico. E o risonho Potte, censurando a nossa
preguiça, queria saber se appeteciamos n'essa manhã--«tapioca ou café».

Deixei sahir deliciosamente do peito um ruidoso, consolado suspiro. E no
jubilo triumphal de me sentir reentrado na minha individualidade e no
meu seculo pulei sobre o colxão, com a fralda ao vento, bradei:

--Tapioca, meu Potte! Uma tapioca bem docinha e mollesinha, que saiba
bem ao meu Portugal!...



IV


Ao outro dia, que fôra um radioso domingo, levantámos de Jerichó as
nossas tendas; e caminhando com o sol para occidente; pelo valle de
Cherith, começámos a romagem de Galilêa.

Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse seccado
dentro em mim, ou que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da
Historia e batida ahi por asperas rajadas de emoção, não se pudesse já
aprazer n'estes quietos e êrmos caminhos da Syria--senti sempre
indifferença e cansaço, do paiz de Ephraim ao paiz de Zebelon.

Quando n'essa noite acampámos em Bethel, vinha a lua cheia sahindo por
traz dos montes negros de Gilead... O festivo Potte mostrou-me logo o
chão sagrado em que Jacob, pastor de Bersabé, tendo adormecido sobre uma
rocha, vira uma escada que faiscava, fincada a seus pés e arrimada ás
estrellas, por onde ascendiam e baixavam, entre terra e céo, anjos
calados, com as azas fechadas... Eu bocejei formidavelmente e
rosnei:--«Tem seu chic!...»

E assim rosnando e bocejando, atravessei a terra dos prodigios. A graça
dos valles foi-me tão fastidiosa como a santidade das ruinas. No poço de
Jacob, sentado nas mesmas pedras em que Jesus, cansado como eu da calma
d'estas estradas e como eu bebendo do cantaro d'uma Samaritana, ensinára
a nova e pura maneira de adorar; nas encostas do Carmello, n'uma cella
de mosteiro, ouvindo de noite ramalhar os cedros que abrigaram Elias, e
gemerem em baixo as ondas, vassallas de Hyram rei de Tyro; galopando com
o albornoz ao vento pela planicie de Esdrelon; remando dôcemente no lago
de Grenesareth, coberto de silencio e de luz--sempre o Tedio marchou a
meu lado como companheiro fiel, que a cada passo me apertava ao seu
peito molle, debaixo do seu manto pardo...

Ás vezes, porém, uma saudade fina e gostosa, vinda do remoto Passado,
levantava de leve a minha alma, como uma aragem lenta faz a uma cortina
muito pesada... E então, fumando diante das tendas, trotando pelo leito
sêcco das torrentes, eu _revia_, com deleite, pedaços soltos d'essa
Antiguidade que me apaixonára:--a Therma romana onde uma creatura
maravilhosa de mitra amarella se offertava, lasciva e pontifical; o
formoso Manassés levando a mão á espada cheia de pedrarias; mercadores,
no Templo, desdobrando os brocados de Babylonia; a sentença do Rabbi com
um traço vermelho, n'um pilar de pedra, á porta _Judiciaria_; ruas
illuminadas, gregos dançando a _callabida_... E era logo um desejo
angustioso de remergulhar n'esse mundo irrecuperavel. Coisa risivel! eu,
Raposo e bacharel, no farto gozo de todos os confortos da
Civilisação--tinha saudade d'essa barbara Jerusalem que habitára n'um
dia do mez de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judêa!

Depois estas memorias esmoreciam como fogos a que falta a lenha. Na
minha alma só restavam cinzas--e, diante das ruinas do monte Ebal ou sob
os pomares que perfumam Sichem a Levitica, recomeçava a bocejar.

Quando chegámos a Nazareth, que apparece na desolação da Palestina como
um ramalhete pousado na pedra d'uma sepultura--nem me interessaram as
lindas judias por quem se banhou de ternura o coração de Santo Antonino.
Com a sua cantara vermelha ao hombro, ellas subiam por entre os
sycomoros á fonte onde Maria, mãi de Jesus, ia todas as tardes, cantando
como estas e como estas vestida de branco... O jocundo Potte, torcendo
os bigodes, murmurava-lhes madrigaes; ellas sorriam, baixando as
pestanas pesadas e meigas. Era diante d'esta suave modestia que Santo
Antonino, apoiado ao seu bordão, sacudindo a sua longa barba, suspirava:
«Oh virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça!» Eu, por mim,
rosnava seccamente: «lambisgoias»!

Através de viellas onde a vinha e a figueira abrigam casas humildes,
como convém á dôce aldeia d'aquelle que ensinou a humildade, trepámos ao
cimo de Nazareth, batido sempre do largo vento que sopra das Idumeias.
Ahi Topsius tirou o barrete saudando essas planicies, esses longes, que
decerto Jesus vinha contemplar, concebendo diante da sua luz e da sua
graça as incomparaveis bellezas do reino de Deus... O dedo do douto
Historiador ia-me apontando todos os lugares religiosos--cujos nomes
sonoros cahem na alma com uma solemnidade de prophecia ou com um fragor
de batalha: Esdrelon, Endor, Sulem, Thabor... Eu olhava, enrolando um
cigarro. Sobre o Carmello sorria uma brancura de neve; as planicies da
Perea fulguravam, rolando uma poeira de ouro; o golfo de Kaipha era todo
azul; uma tristeza cobria ao longe as montanhas de Samaria; grandes
aguias torneavam sobre os valles... Bocejando, rosnei:

--Vistasinha catita!

Uma madrugada, emfim, recomeçámos a descer para Jerusalem. Desde Samaria
a Ramah fomos alagados por esses vastos e negros chuveiros da Syria que
armam logo torrentes rugindo entre as rochas, sob os aloendros em flôr:
depois, junto á collina de Gibeah onde outr'ora no seu jardim, entre o
loiro e o cypreste, David tangia harpa olhando Sião--tudo se vestiu, de
serenidade e de azul. E uma inquietação engolfou-se em minha alma como
um vento triste n'uma ruina... Eu ia avistar Jerusalem! Mas--_qual_?
Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo sumptuosamente ao sol de
Nizam, com as torres formidaveis, o Templo côr de ouro e côr de neve,
Acra cheia de palacios, Bezetha regada pelas aguas d'Enrogel?...

--El-Kurds! El-Kurds! gritou o velho beduino, com a lança no ar,
annunciando pela sua alcunha musulmana a cidade do Senhor.

Galopei, a tremer... E logo a vi, lá em baixo, junto á ravina do Cedron,
sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas
caducas--como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha
a um canto nos farrapos do seu mantéo.

Bem depressa, transpassada a Porta de Damasco, as patas dos nossos
cavallos atroaram o lagedo da rua Christã: rente ao muro um frade gordo,
com o breviario e o guardasol de paninho entalados sob o braço, ia
sorvendo uma pitada estrondosa. Apeámos no _Hotel do Mediterraneo_: no
esguio pateo, sob um annuncio das «Pilulas Holloway» um inglez, com um
quadrado de vidro collado ao olho claro, os sapatões atirados para cima
do divan de chita, lia o _Times_; por traz d'uma varanda aberta, onde
seccavam ceroulas brancas com nodoas de café, uma goela roufenha
vozeava: _C'est le beau Nicolas, holà_!... Ah! era esta, era esta, a
Jerusalém Catholica!... Depois ao penetrar no nosso quarto, claro e
alegrado pelo tabique de ramagens azues, ainda um instante me rebrilhou
na memoria certa sala, com candelabros d'ouro e uma estatua d'Augusto,
onde um homem togado estendia o braço e dizia: «Cesar conhece-me bem!»

Corri logo á janella a sorver o ar vivo da moderna Sião. Lá estava o
convento com as suas persianas verdes fechadas, e as gotteiras agora
mudas n'esta tarde de sol e doçura... Entre socalcos de jardins, lá se
torciam as escadinhas, cruzadas por Franciscanos d'alpercatas, por
judeus magros de sujas melenas... E que repouso na frescura d'estas
paredes de cella depois das estradas abrazadas de Samaria! Fui apalpar a
cama fofa. Abri o guarda-roupa de mogno. Fiz uma caricia leve ao
embrulhinho da camisa da Mary, redondo e gracioso com o seu nastro
vermelho, aninhado entre piugas.

N'esse instante o jocundo Potte entrou a trazer-me o precioso embrulho
da Corôa d'Espinhos, redondo e nitido com o seu nastro vermelho; e
alegremente deu-me as novas de Jerusalem. Colhera-as do barbeiro da
Via-Dolorosa e eram consideraveis. De Constantinopla viera um _firman_
exilando o Patriarcha grego, pobre velho evangelico, com uma doença de
figado, que soccorria os pobres. O snr. consul Damiani affirmára na loja
de reliquias da rua Armenia, batendo o pé, que antes do dia de Reis, por
causa da birra do murro entre os Franscicanos e a _Missão Protestante_,
a Italia tomaria armas contra a Allemanha. Em Bethlem, na egreja da
Natividade, um padre latino n'uma bulha, ao benzer hostias, rachára a
cabeça d'um padre copta com uma tocha de cera... E enfim, novidade mais
jubilosa, abrira-se para alegria de Sião, ao pé da porta de Herodes,
deitando sobre o valle de Josaphat, um café com bilhares, chamado o
_Retiro do Sinai_!

Subitamente, saudades dolentes do passado, cinzas que me cobriam a alma
foram varridas por um fresco vento de mocidade e de modernidade... Pulei
sobre o ladrilho sonoro:

--Viva o bello _Retiro_! A elle! ás iscas! á carambola! Irra! que estava
morto por me refestellar! E depois ás mulherinhas!... Põe ahi o embrulho
da Corôa, bello Potte... Isso significa muito bago! Jesus, o que ahi a
titi se vai babar!... Planta-o em cima da commoda, entre os castiçaes...
E logo, depois da comidinha, Pottesinho, para o _Retiro do Sinai_!

Justamente o sabio Topsius entrava esbaforido, com uma formosa nova
historica! Durante a nossa romagem a Galilêa, a _Commissão de Excavações
Biblicas_ encontrára, sob lixos seculares, uma das lapides de marmore
que, segundo Josepho e Philon e os Talmuds, se erguiam no Templo, junto
á Porta Bella, com uma inscripção prohibindo a entrada aos Gentilicos...
E elle instava que marchassemos, engolida a sopa, a pasmar para essa
maravilha... Um momento ainda me rebrilhou na memoria uma Porta, bella
em verdade, preciosa e triumphal, sobre os seus quatorze degraus de
marmore verde de Numidia...

Mas sacudi desabridamente os braços, n'uma revolta:

--Não quero! gritei. Estou farto!... Irra! E aqui lh'o declaro, Topsius,
solemnemente: de hoje em diante não torno a vêr nem mais um pedregulho,
nem mais um sitio de Religião... Irra! Tenho a minha dóse: e forte,
muito forte, doutor!

O sabio, enfiado, abalou com a rabona collada ás nádegas.

       *       *       *       *       *

N'essa semana occupei-me em documentar e empacotar as Reliquias Menores
que destinava á tia Patrocinio. Copiosas e bem preciosas eram ellas--e
com devotissimo lustre brilhariam no thesouro da mais orgulhosa Sé! Além
das que Sião importa de Marselha em caixotes--rosarios, bentinhos,
medalhas, escapularios; além das que fornecem no Santo Sepulcho os
vendilhões--frascos d'agua do Jordão, pedrinhas da Via Dolorosa,
azeitonas do Monte Olivete, conchas do lago de Genesareth--eu levava-lhe
outras raras, peregrinas, ineditas... Era uma taboinha aplainada por S.
José; duas palhinhas do curral onde nasceu o Senhor; um bocadinho do
cantaro com que a Virgem ia á fonte; uma ferradura do burrinho em que
fugiu a Santa Familia para a terra do Egypto; e um prégo torto e
ferrugento...

Estas preciosidades, embrulhadas em papeis de côr, atadas com fitinhas
de sêda, guarnecidas de tocantes disticos--foram acondicionadas n'um
forte caixote, que a minha prudencia fez revestir de chapas de ferro.
Depois cuidei da Reliquia Maior, a Corôa de Espinhos, fonte de
celestiaes mercês para a titi--e de sonora pecunia para mim, seu
cavalleiro e seu romeiro.

Para a encaixotar, ambicionei uma madeira preclara e santa. Topsius
aconselhava o cedro do Libano--tão bello que por elle Salomão fez
alliança com Hyram rei de Tyro. O jocundo Potte porém, menos
archeologico, lembrou o honesto pinho de Flandres benzido pelo
Patriarcha de Jerusalem. Eu diria á titi que os prégos para o pregar
tinham pertencido á Arca de Noé: que um Ermitão os achára
miraculosamente no monte Ararat; que a ferragem que n'elles deixára o
lodo primitivo, dissolvida em agua benta, curava catarrhos... Tramámos
estas coisas consideraveis, cervejando no _Sinai_.

Durante esta atarefada semana, o embrulho da Corôa d'Espinhos
permanecera na commoda entre os dois castiçaes de vidro: foi só na
vespera de deixarmos Jerusalem que o encaixotei com carinho. Forrei a
madeira de chita azul, comprada na Via Dolorosa; fiz fôfo e dôce o fundo
do caixote com uma camada d'algodão mais branco que a neve do Carmello;
e colloquei dentro o adoravel embrulho, sem o remexer, como Topsius o
arranjára, no seu papel pardo e no seu nastro vermelho--porque estas
mesmas dobras do papel vincadas em Jerichó, este mesmo nó do nastro
atado junto ao Jordão, teriam para a snr.^a D. Patrocinio um
insubstituivel sabor de devoção... O esguio Topsius considerava estes
piedosos aprestes, fumando o seu cachimbo de louça.

--Oh Topsius, que chelpa isto me vai render! E diga lá, amiguinho, diga
lá! Então acha que eu posso affirmar á titi que _esta Corôa d'Espinhos
foi a mesma que_...

O doutissimo homem, por entre o fumo leve, soltou uma solidissima
maxima:

--As reliquias, D. Raposo, não valem pela authenticidade que possuem,
mas pela fé que inspiram. Póde dizer á titi que foi a mesma!

--Bemdito sejas, doutor!

N'essa tarde, o erudito homem acompanhára aos Tumulos dos Reis a
_Commissão de Excavações_. Eu parti, só, para o Horto das
Oliveiras--porque não havia, em torno a Jerusalem, lugar de sombra onde
mais gratamente em tardes serenas gozasse um pachorrento cachimbo.

Sahi pela porta de Santo Estevão; trotei pela ponte do Cedron; galguei o
atalho entre piteiras até ao murosinho, caiado e aldeão, que cerra o
jardim de Gethsemani. Empurrei a portinha verde, pintada de fresco, com
a sua aldraba de cobre: e penetrei no pomar onde Jesus ajoelhou e gemeu
sob a folhagem das Oliveiras. Alli vivem ainda, essas arvores santas que
ramalharam embaladoramente sobre a sua cabeça fatigada do mundo! São
oito, negras, carcomidas pela decrepitude, escoradas com estacas de
madeira, amodorradas, já esquecidas d'essa noite de Nizam em que os
anjos, voando sem rumor, espreitavam através dos seus ramos as
desconsolações humanas do filho de Deus... Nos buracos dos seus troncos
estão guardados enxós e podões: nas pontas dos galhos raras e tenues
folhinhas, d'um verde sem seiva, tremem e mal vivem como os sorrisos
d'um moribundo.

E em redor que hortasinha caridosamente regada, estrumada com devoção!
Em canteiros, com sebes de alfena, verdejam frescas alfaces: as
ruasinhas areadas não têm uma folha murcha que lhes macule o aceio de
capella: rente aos muros, onde rebrilham em nichos doze Apostolos de
louça, correm alfobres de cebolinho e cenoura fechados por cheirosa
alfazema... Porque não floria aqui, em tempos de Jesus, tão suave
quintal? Talvez a placida ordem d'estes uteis legumes calmasse a
tormenta do seu coração!

Sentei-me debaixo da mais velha oliveira. O frade guardião, risonho
santo de barbas sem fim, regava com o habito arregaçado os seus vasos de
rainunculos. A tarde cahia com melancolico esplendor.

E, enchendo o cachimbo, eu sorria aos meus pensamentos. Sim! Ao outro
dia deixaria essa cinzenta cidade, que lá em baixo se agachava entre os
seus muros funebres como viuva que não quer ser consolada... Depois uma
manhã, cortando a vaga azul, avistaria a serra fresca de Cintra: as
gaivotas da patria vinham dar-me o grito de boa acolhida, esvoaçando em
torno aos mastros; Lisboa pouco a pouco surgia, com as suas brancas
caliças, a herva nos seus telhados, indolente e dôce aos meus olhos...
Berrando «oh titi, oh titi!», eu trepava as escadas de pedra da nossa
casa em Sant'Anna: e a titi, com fios de baba no queixo, punha-se a
tremer diante da Grande Reliquia que eu lhe offerecia, modesto. Então,
na presença de testemunhas celestes, de S. Pedro, de Nossa Senhora do
Patrocinio, de S. Casimiro e de S. José, ella chamava-me «seu filho, seu
herdeiro!» E ao outro dia começava a amarellecer, a definhar, a gemer...
Oh delicia!

De leve, sobre o muro, entre as madresilvas um passaro cantou: e mais
alegre que elle cantou uma esperança no meu coração! Era a titi na cama,
com o lenço negro amarrado na cabeça, apalpando angustiosamente as
dobras do lençol suado, arquejando com terror do Diabo... Era a titi a
espichar, retesando as canellas. N'um dia macio de Maio mettiam-n'a já
fria e cheirando mal, dentro d'um caixão bem pregado e bem seguro. Com
tipoias atraz, lá marchava D. Patrocinio para a sua cova, para os
bichos. Depois quebrava-se o lacre do testamento na sala dos damascos,
onde eu preparára para o tabellião Justino pasteis e vinho do Porto:
carregado de luto, amparado ao marmore da mesa, eu afogava n'um lenço
amarfanhado o escandaloso brilho da minha face: e d'entre as folhas de
papel sellado sentia, rolando com um tinir d'ouro, rolando com um
susurro de searas, rolando, rolando para mim os contos de G. Godinho!...
Oh extasi!

O santo frade pousára o regador, e passeava com o Breviario aberto n'uma
ruasinha de murta. Que faria eu, na minha casa em Sant'Anna, apenas
levassem a fetida velha, amortalhada n'um habito de Nossa Senhora? Uma
alta justiça: correr ao oratorio, apagar as luzes, desfolhar os ramos,
abandonar os santos á escuridão e ao bolor! Sim, todo eu, Raposo e
liberal, necessitava a desforra de me ter prostrado diante das suas
figuras pintadas como um sordido sacrista, de me ter recommendado á sua
influencia de calendario como um escravo credulo! Eu servira os santos
para servir a titi. Mas agora, ineffavel deleite, ella na sua cova
apodrecia: n'aquelles olhos, onde nunca escorrera uma lagrima caridosa,
fervilhavam gulosamente os vermes: sob aquelles beiços, desfeitos em
lôdo, surgiam emfim sorrindo os seus velhos dentes furados que jámais
tinham sorrido... Os contos de G. Godinho eram meus; e libertado da
ascorosa senhora, eu já não devia aos seus santos nem rezas nem rosas!
Depois, cumprida esta obra de justiça philosophica, corria a Paris, ás
mulherinhas!

O bom frade, risonho na sua barba de neve, bateu-me no hombro, chamou-me
seu filho, lembrou-me que se fechava o Santo Horto e que lhe seria grata
a minha esmola... Dei-lhe uma placa: e recolhi regalado a Jerusalem,
devagar, pelo valle de Josaphat, cantarolando um _fado_ meigo.

Ao outro dia de tarde, tocava o sino a Novena na egreja da Flagellação
quando a nossa caravana se formou á porta do _Hotel do Mediterraneo_,
para partirmos de Jerusalem. Os caixões das reliquias iam sobre o macho,
entre os fardos. O beduino, mais encatarrhoado, abafára-se n'um ignobil
_cachenez_ de sacristão. Topsius montava outra egoa, séria e
pachorrenta. E eu, que por alegria puzera uma rosa vermelha ao peito,
resmunguei, ao pisarmos pela vez derradeira a Via Dolorosa:--«Fica-te,
possilga de Sião!»

Já chegávamos á porta de Damasco quando um grito esbaforido resoou, no
alto da rua, á esquina do convento dos Abyssinios:

--Amigo Potte, doutor, cavalheiros!... Um embrulho! Esqueceu um
embrulho...

Era o negro do Hotel, em cabello, agitando um embrulho que logo
reconheci pelo papel pardo e pelo nastro vermelho. A camisinha de dormir
da Mary! E recordei que com effeito, ao emmalar, eu não o vira no
guarda-roupa, no seu ninho de piugas.

Esfalfado, o servo contou que depois de partirmos, varrendo o quarto,
descobrira o embrulhinho entre pó e aranhas, detraz da commoda;
limpára-o carinhosamente; e como fôra sempre seu afan servir o fidalgo
lusitano, abalára, mesmo sem a jaleca...

--Basta! rosnei eu, sêcco e carrancudo.

Dei-lhe as moedas de cobre que me atulhavam as algibeiras. E pensava:
«Como rolou elle para traz da commoda?» Talvez o negro atabalhoado que,
arrumando, o tirára do seu ninho de piugas... Pois antes lá permanecesse
para sempre, entre o pó e as aranhas! Porque em verdade este pacote era
agora audazmente impertinente.

Decerto! eu amava a Mary. A esperança que em breve na terra do Egypto
seria apertado pelos seus braços gordinhos ainda me fazia espreguiçar
com langor. Mas guardando fielmente a sua imagem no coração, não
necessitava trazer perennemente á garupa a sua camisinha de dormir. Com
que direito pois corria esta bretanha atraz de mim, pelas ruas de
Jerusalem, querendo installar-se violentamente nas minhas malas e
acompanhar-me á minha patria?

E era essa idéa de patria que me torturava, emquanto nos afastavamos das
muralhas da Cidade Santa... Como poderia eu jámais penetrar com este
pacote lubrico na casa ecclesiastica da tia Patrocinio? Constantemente a
titi se encafuava no meu quarto, munida de chaves falsas, aspera e
avida, rebuscando pelos cantos, nas minhas cartas e nas minhas
ceroulas... Que cólera a esverdearia se n'uma noite de pesquizas ella
encontrasse estas rendas babujadas pelos meus labios, fedendo a peccado,
com a offerta em letra cursiva «_Ao meu portuguezinho valente_!»

«Se soubesse que n'esta santa viagem te tinhas mettido com saias,
escorraçava-te como um cão!» Assim o dissera a titi, em vesperas da
minha romagem, diante da Magistratura e da Egreja. E iria eu, pelo luxo
sentimental de conservar a reliquia d'uma luveira, perder a amizade da
velha que tão caramente conquistára com terços, pingos d'agua benta e
humilhações da razão liberal? Jámais!... E, se não afoguei logo o
embrulho funesto na agua d'um charco, ao atravessarmos as choças de
Kolonieh, foi para não revelar ao penetrante Topsius as covardias do meu
coração. Mas decidi que mal penetrassemos com a noite nas montanhas de
Judá, retardaria o passo á egoa, e longe dos oculos do Historiador,
longe das solicitudes de Potte, arrojaria a um barranco a terrivel
camisa da Mary, evidencia do meu peccado e damno da minha fortuna. E que
bem depressa os dentes dos chacaes a rasgassem! Bem depressa os
chuveiros do Senhor a apodrecessem!

Já passáramos o tumulo de Samuel por traz dos rochedos d'Emmaus, já para
sempre Jerusalem desapparecera aos meus olhos, quando a egoa de Topsius,
avistando uma fonte, n'um valle cavado junto á estrada, deixou a
caravana, deixou o dever--e trotou para a agua, com impudencia e com
alacridade. Estaquei, indignado:

--Puxe-lhe a redea, doutor! Olha que descaro d'egoa! Ainda agora
bebeu... Não lhe ceda! Puxe mais! Não lhe toque, homem!

Mas debalde o philosopho, com os cotovêlos sahidos, as pernas esticadas,
lhe repuxava bridões e clinas. A cavalgadura abalou com o philosopho.

Corri tambem á fonte, para não abandonar n'aquelle ermo o precioso
homem. Era um fio d'agua turva, escorrendo d'uma quelha, sobre um tanque
escavado na rocha. Ao pé branquejava, já partida, a grande carcassa d'um
dromedario. Os ramos d'uma mimosa, alli solitaria, tinham sido queimados
por um fogo de caravana. Longe, na espinha escarnada d'uma collina, um
pastor, negro no céo opalino, ia caminhando devagar entre as suas
ovelhas com a lança pousada ao hombro. E na sombria mudez de tudo a
fonte chorava.

Aquella quebrada era tão deserta que me lembrou deixar alli a
desfazer-se, como a ossada do dromedario, o embrulhinho da Mary... A
egoa do Historiador beberava com pachorra. E eu procurava aqui, além, um
barranco ou um charco--quando me pareceu que junto da fonte, e misturado
ao pranto d'ella, corria tambem um pranto humano.

Torneei um penedo que avançava soberbamente como a prôa d'uma galera--e
descobri, agachada e refugiada entre as pedras e os cardos, uma mulher
que chorava, com uma criancinha no regaço: os seus cabellos crespos
espalhavam-se pelos hombros e pelos braços, que os trapos negros mal
cobriam: e sobre o filho, que dormia no calor do collo, o seu chôro
corria, mais contínuo, mais triste que o da fonte, e como se não devesse
findar jámais.

Gritei pelo jocundo Potte. Quando elle trotou para nós, agarrando a
coronha prateada da sua pistola, suppliquei que perguntasse á mulher a
causa d'essas longas lagrimas. Mas ella parecia entontecida pela
miseria: fallou surdamente d'um casebre queimado, de cavalleiros turcos
que tinham passado, do leite que lhe seccava... Depois apertou a criança
contra a face--e suffocada, sob os cabellos esguedelhados, recomeçou a
chorar.

O festivo Potte deitou-lhe uma moeda de prata; Topsius tomou, para a sua
severa conferencia sobre a _Judêa Musulmana_, um apontamento d'aquelle
infortunio. E eu, commovido, procurava na algibeira o meu cobre--quando
me recordei que o dera n'um punhado ao negro do _Hotel do Mediterraneo_.
Mas tive uma util inspiração. Atirei-lhe o perigoso embrulho da
camisinha da Mary; e a meu pedido o risonho Potte explicou á
desventurada que qualquer das peccadoras que habitam junto á torre de
David, a gorda Fatmé ou Palmira a _Samaritana_, lhe daria duas piastras
d'ouro por esse vestido de luxo, de amor e de civilisação.

Trotámos para a estrada. Atraz de nós a mulher lançava-nos, por entre
soluços e beijos ao filho, todas as bençãos do seu coração: e a nossa
caravana retomou a marcha--emquanto o arrieiro adiante, escarranchado
sobre as bagagens, cantava á estrella de Venus que se erguera esse canto
da Syria, aspero, alongado e dolente, em que se falla d'amor, de Allah,
d'uma batalha com lanças, e dos rosaes de Damasco...

       *       *       *       *       *

Ao apearmos de manhã no _Hotel de Josaphat_, na vetusta
Jaffa--prodigiosa foi a minha surpreza vendo, pensativamente sentado no
pateo, com um bojudo turbante branco, o mofino Alpedrinha!... Fiz-lhe
ranger os ossos n'um abraço voraz. E quando Topsius e o jocundo Potte
partiram, debaixo do guardasol de paninho, a colher novas do paquete que
nos devia levar á terra do Egypto--Alpedrinha contou-me a sua historia,
escovando o meu albornoz.

Fôra por tristeza que deixára a «Alexandriasinha». O _Hotel das
Pyramides_, as maletas carregadas, tinham já saturado a sua alma d'um
tedio insondavel: e o nosso embarque no _Caimão_ para Jerusalem dera-lhe
a saudade dos mares, das cidades cheias d'historia, das multidões
desconhecidas... Um judeu de Keshan, que ia fundar uma estalagem em
Bagdad com bilhar, alliciára-o para «marcador». E elle, mettendo n'um
sacco as piastras juntas nas amarguras do Egypto, ia tentar essa
aventura do Progresso junto ás aguas lentas do Euphrates, na terra de
Babylonia. Mas, cansado de acarretar fardos alheios, buscava primeiro
Jerusalem, insensivelmente, levado talvez pelo Espirito como o Apostolo,
para descansar com as mãos quietas a uma esquina da Via Dolorosa...

--E o cavalheiro recebeu alguns jornaes da nossa Lisboa? Gostava de
saber como vai por lá a rapaziada...

Emquanto elle assim balbuciava, triste e com o turbante á banda, eu
revia risonhamente a terra quente do Egypto, a rua clara das _Duas
Irmãs_, a capellinha entre platanos, as papoilas do chapéo da Mary... E
mais agudo me picava outra vez o desejo da minha loira luveira. Que dôce
grito de paixão nos seus beiços gordinhos, quando uma tarde, queimado
pelo sol da Syria e mais forte, eu surgisse diante do seu balcão
espantando o gato branco! E a camisinha?... Bem! contaria que uma noite,
junto d'uma fonte, m'a tinham roubado cavalleiros turcos com lanças.

--Dize lá, Alpedrinha! Tenl-a visto, a Maricoquinhas? Que tal está?
hein? Rechonchudinha?

Elle baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivára duas
rosas.

--Já não está... Foi para Thebas!

--Para Thebas? Onde ha umas ruinas?... Mas isso é no alto Egypto! Isso é
em cascos de Nubia! Ora essa!... Que foi ella lá fazer?

--Alindar as vistas, murmurou Alpedrinha com desolação.

Alindar as vistas! Só comprehendi quando o patricio me contou que a
ingrata rosa d'York, adorno d'Alexandria, fôra levada por um italiano de
cabellos compridos, que ia a Thebas photographar as ruinas d'esses
palacios onde viviam face a face Rameses, rei dos homens, e Amnon, rei
dos Deuses... E Maricoquinhas ia amenisar «as vistas», apparecendo
n'ellas, á sombra austera dos granitos sacerdotaes, com a graça moderna
do seu guardasolinho fechado e do seu chapéo de papoilas...

--Que descarada! gritei eu, varado. Então com um italiano? E gostando
d'elle? Ou só negocio?... Hein, gostando?

--Babadinha, balbuciou Alpedrinha.

E, com um suspiro, atroou o _Hotel de Josaphat_. Perante este _ai_,
repassado de tormento e de paixão, relampejou-me n'alma uma suspeita
abominavel.

--Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui ha perfidia, Alpedrinha!

Elle baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos
ladrilhos. E antes que elle o levantasse já eu lhe empolgára com sanha o
braço molle.

--Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Tambem
petiscaste?

A minha face barbuda chammejava... Mas Alpedrinha era meridional, das
nossas terras palreiras da vangloria e do vinho. O medo cedeu á
vaidade,--e revirando para mim o bugalho branco do olho:

--Tambem petisquei!

Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Tambem
aquella--com aquelle! Oh, a Terra! a Terra! que é ella senão um montão
de coisas pôdres, rolando pelos céos com basofias d'astro?

--E dize lá, Alpedrinha, dize lá, tambem te deu uma camisa?

--A mim um chambresinho...

Tambem a elle--roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.

--E ouve lá... Tambem te chamava «seu portuguezinho valente?»

--Como eu servia com turcos, chamava-me seu «moirosinho catita».

Ia rebolar-me no divan, rasgal-o com as unhas, rir sempre, n'um
desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte
appareceram alvoroçados.

--Então?...

Sim, chegára de Smyrna um paquete que levantava n'essa tarde ferro para
o Egypto, e que era o nosso dilecto _Caimão_!

--Ainda bem! gritei, atirando patadas ao ladrilho. Ainda bem, que estava
farto do Oriente!... Irra! que não apanhei aqui senão soalheiras,
traições, sonhos medonhos e botas pelos quadris! Estava farto!

Assim eu bramava, sanhudo. Mas n'essa tarde, na praia, diante da barcaça
negra que nos devia levar ao _Caimão_, entrou-me n'alma uma longa
saudade da Palestina, e das nossas tendas erguidas sob o esplendor das
estrellas, e da caravana marchando e cantando por entre as ruinas de
nomes sonoros.

O labio tremeu-me, quando Potte commovido me estendeu a sua bolsa de
tabaco d'Alepo:

--D. Raposo, é o ultimo cigarro que lhe dá o alegre Potte.

E a lagrima rolou por fim quando Alpedrinha, em silencio, me estendeu os
braços magros.

Da barcaça, acocorado sobre os caixões das Reliquias, ainda o vi na
praia, sacudindo para mim um lenço triste de quadrados--ao lado de Potte
que nos atirava beijos, com as grossas botas mettidas n'agua. E já no
_Caimão_, debruçado na amurada, ainda o avistei immovel sobre as pedras
do molhe, segurando com as mãos, contra a brisa salgada, o seu vasto
turbante branco.

Desventuroso Alpedrinha! Só eu, em verdade, comprehendi a tua grandeza!
Tu eras o derradeiro Lusiada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos
varões fortes que iam nas armadas á India! A mesma sêde divina do
desconhecido te levára, como elles, para essa terra de Oriente, d'onde
sobem ao céo os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei.
Sómente não tendo já, como os velhos Lusiadas, crenças heroicas
concebendo empresas heroicas, tu não vaes como elles, com um grande
rosario e com uma grande espada, impôr ás gentes estranhas o teu rei e o
teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! nem rei por
quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te
gastas nas occupações unicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos
modernos Lusiadas--descansar encostado ás esquinas, ou tristemente
carregar fardos alheios...

As rodas do _Caimão_ bateram a agua. Topsius ergueu o seu boné de
sêda--e gravemente gritou para o lado de Jaffa, que escurecia na
pallidez da tarde, sobre os seus tristes rochedos, entre os seus pomares
verde-negros:

--Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!

Eu acenei tambem com o capacete:

--Adeusinho, adeusinho, coisas de Religião!

Afastava-me devagar da amurada quando roçou por mim a longa capa de
lustrina d'uma Religiosa; e d'entre a sombra pudica do capuz, que se
voltou de leve, um fulgor de olhos negros procurou as minhas barbas
potentes. Oh maravilha! Era a mesma santa irmã que levára nos seus
castos joelhos, através d'estas aguas da Escriptura, a camisa immunda da
Mary!

Era a mesma! Porque collocava novamente o destino junto a mim, no
estreito tombadilho do _Caimão_, este lirio de capella ainda fechado e
já murcho? Quem sabe! Talvez para que ao calor do meu desejo elle
reverdecesse, désse flôr, e não ficasse para sempre esteril e inutil,
tombado aos pés do cadaver de um Deus!... E não vinha agora guardada
pela outra Religiosa, rechonchuda e de luneta! A sorte abandonava-m'a
indefesa, como a pombinha no êrmo.

Rompeu-me então n'alma a fulgurante esperança d'um amor de monja mais
forte que o medo de Deus, d'um seio magoado pela estamenha de penitencia
cahindo, todo a tremer e vencido, entre os meus braços valentes!...
Decidi segredar-lhe logo alli: «Oh minha irmãsinha, estou todo lamecha
por si!» E inflammado, torcendo os bigodes, caminhei para a dôce
Religiosa, que se refugiára n'um banco, passando os dedos pallidos pelas
contas do seu rosario...

Mas, bruscamente, o taboado do _Caimão_ fugiu sob meus pés ovantes.
Estaquei, enfiado. Oh miseria! humilhação! Era a vaga enjoadora... Corri
á borda; sujei immundamente o azul do mar de Tyro; depois rolei para o
beliche--e só ergui do travesseiro a face mortal quando senti as
correntes do _Caimão_ mergulharem nas calmas aguas onde outr'ora,
fugindo d'Accio, cahiram á pressa as ancoras douradas das galeras de
Cleopatra!

E outra vez, estremunhado e esguedelhado, te avistei, terra baixa do
Egypto, quente e da côr d'um leão! Em torno aos finos minaretes voavam
as pombas serenas. O languido palacio dormia á beira da agua entre
palmeiras. Topsius sobraçava a minha chapeleira, serrazinando coisas
doutissimas sobre o antigo Pharol. E a pallida Religiosa já deixára o
_Caimão_, pomba do êrmo escapada ao milhafre--porque o milhafre no seu
vôo fechára a aza, sordidamente enjoado!

N'essa mesma tarde, no _Hotel das Pyramides_, soube com jubilo que um
vapor de gado, _El Cid Campeador_, partia de madrugada para as terras
bemditas de Portugal! Na caleche de riscadinho, só com o douto Topsius,
dei o derradeiro passeio nas sombras olorosas do Mamoudieh. E passei a
curta noite n'uma rua deleitosa. Oh meus concidadãos, ide lá, se
appeteceis conhecer os deleites asperos do Oriente... Os bicos de gaz
sem globo assobiam largamente, torcidos ao vento: as casas baixas, de
pau, são apenas fechadas por uma cortina branca, atravessada de
claridade: tudo cheira a sandalo e alho: e mulheres sentadas sobre
esteiras, em camisa, com flôres nas tranças, murmuram suavemente:--_Eh
môssiu_! _Eh milord_!... Recolhi tarde, exhausto. Ao passar na rua das
_Duas Irmãs_ avistei sobre a porta d'uma loja cerrada a mão de pau,
pintada de rôxo, que empolgára o meu coração. Atirei-lhe uma bengalada.
Este foi o ultimo feito das minhas longas jornadas.

De manhã, o fiel e douto Topsius veio, de galochas, acompanhar-me ao
barracão da alfandega. Enlacei-o longamente nos braços tremulos:

--Adeus, companheiro, adeus! Escreva... Campo de Sant'Anna, 47...

Elle murmurou, estreitado commigo:

--Aquelles trinta mil reis, lá mandarei...

Apertei-o generosamente, para abafar essa explicação de pecunia. Depois,
já com a bota na prôa do bote que me ia levar ao _Cid Campeador_:

--Então, posso dizer á titi que a corôasinha d'espinhos é a mesma...

Elle ergueu as mãos, solemne como um pontifice do saber:

--Póde dizer-lhe em meu nome que foi a _mesmissima_, espinho por
espinho...

Baixou o bico de cegonha ornado d'oculos--e beijámo-nos na face como
dois irmãos.

Os negros remaram. Eu levava, pousado sobre os joelhos, o caixote da
suprema Reliquia. Mas quando o meu bote, á vela, fendia a agua
azul--passou rente d'outro bote lento, levado a remos para o lado do
palacio que dormia entre palmeiras. E n'um relance vi o habito negro, o
capuz descido... Um largo, sequioso olhar, pela vez derradeira, procurou
as minhas barbas. De pé, ainda gritei: «Oh filhinha, oh magana!» Mas já
o vento me levára. Ella, no seu bote, sumia a face contrita--e sobre o
delicado peito que ousára arfar decerto a cruz pesou mais forte,
ciumenta e de ferro!

Fiquei môno... Quem sabe? Era aquelle talvez em toda a vasta terra o
unico coração em que o meu poderia repousar, como n'um asylo seguro...
Mas quê! Ella era só monja, eu só sobrinho. Ella ia para o seu Deus, eu
ia para a minha tia. E quando n'estas aguas os nossos peitos se
cruzavam, e sentindo a sua concordancia batiam mudamente um para o
outro--o meu barco corria com vela alegre para Occidente, e o barco que
a levava, lento e negro, ia a remos para Oriente... Desencontro contínuo
das almas congeneres--n'este mundo de eterno esforço e de eterna
imperfeição!



V


Duas semanas depois, rolando na tipoia do _Pingalho_ pelo campo de
Sant'Anna, com a portinhola entreaberta e a bota estendida para o
estribo, avistei entre as arvores sem folhas o portão negro da casa da
titi! E, dentro d'esse duro calhambeque, eu resplandecia mais que um
gordo Cesar, coroado de folhagens d'ouro, sobre o seu vasto carro,
voltando de domar povos e deuses.

Era decerto em mim o deleite de revêr, sob aquelle céo de janeiro tão
azul e tão fino, a minha Lisboa, com as suas quietas ruas côr de caliça
suja, e aqui e além as taboinhas verdes descidas nas janellas como
palpebras pesadas de langor e de somno. Mas era sobretudo a certeza da
gloriosa mudança que se fizera na minha fortuna domestica e na minha
influencia social.

Até ahi, que fôra eu em casa da snr.^a D. Patrocinio? O menino
Theodorico que, apesar da sua carta de Doutor e das suas barbas de
Raposão, não podia mandar sellar a egoa para ir espontar o cabello á
Baixa, sem implorar licença á titi... E agora? O nosso dr. Theodorico,
que ganhára no contacto santo com os lugares do Evangelho uma
auctoridade quasi pontifical! Que fôra eu até ahi, no Chiado, entre os
meus concidadãos? O Raposito, que tinha um cavallo. E agora? O grande
Raposo, que peregrinára poeticamente na Terra Santa, como Chateaubriand,
e que pelas remotas estalagens em que pousára, pelas roliças
Circassianas que beijocára, podia parolar com superioridade na Sociedade
de Geographia ou em casa da Benta _Bexigosa_...

O _Pingalho_ estacou as pilecas. Saltei, com o caixote da Reliquia
estreitado ao coração... E, ao fundo do pateo triste, lageado de
pedrinha, vi a snr.^a D. Patrocinio das Neves, vestida de sêdas negras,
toucada de rendas negras, arreganhando no carão livido, sob os oculos
defumados, as dentuças risonhas para mim!

--Oh, titi!

--Oh, menino!

Larguei o caixote santo, cahi no seu peito sêcco; e o cheirinho que
vinha d'ella a rapé, a capella e a formiga, era como a alma esparsa das
coisas domesticas que me envolvia, para me fazer reentrar na piedosa
rotina do lar.

--Ai filho, que queimadinho que vens!...

--Titi, trago-lhe muitas saudades do Senhor...

--Da-m'as todas, dá-m'as todas!...

E retendo-me, cingido á dura táboa do seu peito, roçou os beiços frios
pelas minhas barbas--tão respeitosamente como se fossem as barbas de pau
da imagem de S. Theodorico.

Ao lado, a Vicencia limpava o olho com a ponta do avental novo. O
_Pingalho_ descarregára a minha mala de couro. Então, erguendo o
precioso caixote de pinho de Flandres benzido, murmurei, com uma
modestia cheia de unção:

--Aqui está ella, titi, aqui está ella! Aqui a tem, ahi lh'a dou, a sua
divina Reliquia, que pertenceu ao Senhor!

As emaciadas, lividas mãos da hedionda senhora tremeram ao tocar
aquellas táboas que continham o principio miraculoso da sua saude e o
amparo das suas afflicções. Muda, têsa, estreitando sôfregamente o
caixote, galgou os degraus de pedra, atravessou a sala de Nossa Senhora
das Sete-Dôres, enfiou para o oratorio. Eu atraz, magnifico, de
capacete, ia rosnando: «ora vivam! ora vivam!»--á cozinheira, á
desdentada Eusebia, que se curvavam no corredor como á passagem do
Santissimo.

Depois, no oratorio, diante do altar juncado de camelias brancas, fui
perfeito. Não ajoelhei, não me persignei: de longe, com dois dedos, fiz
ao Jesus d'ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar--e atirei-lhe um
olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se têm
velhos segredos. A titi surprehendeu esta intimidade com o Senhor:--e
quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de velludo verde)
foi tanto para o seu Salvador como para o seu sobrinho que levantou as
mãos adorabundas.

Findos os Padre-nossos de graças pelo meu regresso, ella, ainda
prostrada, lembrou com humildade:

--Filho, seria bom que eu soubesse que reliquia é, para as velas, para o
respeito...

Acudi, sacudindo os joelhos:

--Logo se verá. Á noite é que se desencaixotam as reliquias... Foi o que
me recommendou o patriarcha de Jerusalem... Em todo o caso accenda a
titi mais quatro luzes, que até a madeirinha é santa!

Accendeu-as, submissa: collocou, com beato cuidado, o caixote sobre o
altar: depôz-lhe um beijo chilreado e longo: estendeu-lhe por cima uma
esplendida toalha de rendas... Eu então, episcopalmente, tracei sobre a
toalha com dois dedos uma benção em cruz.

Ella esperava, com os oculos negros postos em mim, embaciados de
ternura:

--E agora, filho, agora?

--Agora o jantarinho, titi, que tenho a tripa a tinir...

A snr.^a D. Patrocinio logo, apanhando as saias, correu a apressar a
Vicencia. Eu fui desafivelar a maleta para o meu quarto--que a titi
esteirára de novo: as cortinas de cassa tufavam, têsas de gomma; um ramo
de violetas perfumava a commoda.

Longas horas nos detivemos á mesa--onde a travessa d'arroz dôce
ostentava as minhas iniciaes, debaixo d'um coração e d'uma cruz,
desenhadas a canella pela titi. E, inesgotavelmente, narrei a minha
santa jornada. Disse os devotos dias do Egypto, passados a beijar uma
por uma as pégadas que lá deixára a Santa Familia na sua fuga; disse o
desembarque em Jaffa com o meu amigo Topsius, um sabio allemão, doutor
em theologia, e a deliciosa missa que lá saboreáramos; disse as collinas
de Judá cobertas de Presepes onde eu, com a minha egoa pela redea, ia
ajoelhar, transmittindo ás Imagens e ás Custodias os recados da tia
Patrocinio... Disse Jerusalem, pedra a pedra! E a titi, sem comer,
apertando as mãos, suspirava com devotissimo pasmo:

--Ai que santo! ai que santo ouvir estas coisas! Jesus! até dá uns
gostinhos por dentro!...

Eu sorria, humilde. E cada vez que a considerava de soslaio, ella me
parecia outra Patrocinio das Neves. Os seus fundos oculos negros, que
outr'ora reluziam tão asperamente, conservavam um contínuo embaciamento
de ternura humida. Na voz, que perdera a rispidez silvante, errava,
amollecendo-a, um suspiro acariciador e fanhoso. Emmagrecera: mas nos
seus sêccos ossos parecia correr emfim um calor de medulla humana! Eu
pensava--«Ainda a hei de pôr como um velludo.»

E, sem moderação, prodigalisava as provas da minha intimidade com o Céo.

Dizia:--«Uma tarde, no Monte das Oliveiras, estando a rezar, passou de
repente um anjo...» Dizia:--«Tirei-me dos meus cuidados, fui ao tumulo
de Nosso Senhor, abri a tampa, gritei para dentro...»

Ella pendia a cabeça, esmagada, ante estes privilegios prodigiosos, só
comparaveis aos de Santo Antão ou de S. Braz.

Depois enumerava as minhas tremendas rezas, os meus terrificos jejuns.
Em Nazareth, ao pé da fonte onde Nossa Senhora enchia o cantaro, rezára
mil Ave-Marias, de joelhos á chuva... No deserto, onde vivera S. João,
sustentára-me como elle de gafanhotos...

E a titi, com baba no queixo:

--Ai que ternura, ai que ternura, os gafanhotinhos!... E que gosto para
o nosso rico S. João!... Como elle havia de ficar! E olha, filho, não te
fizeram mal?

--Se até engordei, titi! Nada, era o que eu dizia ao, meu amigo allemão:
«Já que a gente veio a uma pechincha d'estas, é aproveitar, e salvar a
nossa alminha...»

Ella virava-se para a Vicencia--que sorria, pasmada, no seu pouso
tradicional entre as duas janellas, sob o retrato de Pio IX e o velho
oculo do commendador G. Godinho:

--Ai Vicencia, que elle vem cheiinho de virtude! Ai que vem mesmo
atochadinho d'ella!

--Parece-me que Nosso Senhor Jesus Christo não ficou descontente
commigo! murmurava eu, estendendo a colhér para o dôce de marmelo.

E todos os meus movimentos (até o lamber da calda) os contemplava a
odiosa senhora, venerandamente, como preciosas acções de santidade.

Depois, com um suspiro:

--E outra coisa, filho... Trazes de lá algumas orações, das boas, das
que te ensinassem por lá os patriarchas, os fradesinhos?...

--Trago-as de chupeta, titi!

E numerosas, copiadas das carteiras dos santos, efficazes para todos os
achaques! Tinha-as para tosses, para quando os gavetões das commodas
emperram, para vesperas de loteria...

--E terás alguma para caimbras? Que eu ás vezes, de noite, filho...

--Trago uma que não falha em caimbras. Deu-m'a um monge meu amigo a quem
costuma apparecer o Menino Jesus...

Disse--e accendi um cigarro.

Nunca eu ousára fumar diante da titi! Ella detestára sempre o tabaco,
mais que nenhuma outra emanação do peccado. Mas agora arrastou
gulosamente a sua cadeira para mim--como para um milagroso cofre,
repleto d'essas rezas que dominam a hostilidade das coisas, vencem toda
a enfermidade, eternisam as velhas sobre a terra.

--Has de m'a dar, filho... É uma caridade que fazes!

--Oh, titi, ora essa! Todas! E diga, diga lá... Como vai a titi dos seus
padecimentos?

Ella deu um ai, d'infinito desalento. Ia mal, ia mal... Cada dia se
sentia mais fraca, como se se fosse a desfazer... Emfim já não morria
sem aquelle gostinho de me ter mandado a Jerusalem visitar o Senhor; e
esperava que elle lh'o levasse em conta, e as despezas que fizera, e o
que lhe custára a separação... Mas ia mal, ia mal!

Eu desviára a face, a esconder o vivo e escandaloso lampejo de jubilo
que a illuminára. Depois animei-a, com generosidade. Que podia a titi
recear? Não tinha ella agora, «para se apegar», vencer as leis da
decomposição natural, aquella reliquia de Nosso Senhor?...

--E outra coisa, titi... Os amiguinhos, como vão?

Ella annunciou-me a desconsoladora nova. O melhor e mais grato, o
delicioso Casimiro, recolhera á cama no domingo com as «perninhas
inchadas...» Os doutores affirmavam que era uma anasarca... Ella
desconfiava d'uma praga que lhe rogára um gallego...

--Seja como fôr, o santinho lá está! Tem-me feito uma falta, uma
falta... Ai filho, nem tu imaginas!... O que me tem valido é o sobrinho,
o padre Negrão...

--O Negrão? murmurei, estranho ao nome.

Ah! eu não conhecia... Padre Negrão vivia ao pé de Torres. Nunca vinha a
Lisboa, que lhe fazia nojo, com tanta relaxação... Só por ella, e para a
ajudar nos seus negocios, é que o santinho condescendera em deixar a sua
aldeia. E tão delicado, tão serviçal... Ai! era uma perfeição!

--Tem-me feito uma virtude que nem calculas, filho... Só o que elle tem
rezado por ti, para que Deus te protegesse n'essas terras de turcos... E
a companhia que me faz! Que todos os dias o tenho cá a jantar... Hoje
não quiz elle vir. Até me disse uma coisa muito linda: «não quero, minha
senhora, atalhar expansões.» Que lá isso, fallar bem, e assim coisas que
tocam... Ai, não ha outro... Nem imaginas, até regala... É de appetite!

Sacudi o cigarro, seccado. Porque vinha aquelle padre de Torres, contra
os costumes domesticos, comer _todos os dias_ o cozido da titi?
Resmunguei com auctoridade:

--Lá em Jerusalem os padres e os patriarchas só vêm jantar aos
domingos... Faz mais virtude.

Escurecera. A Vicencia accendeu o gaz no corredor: e como breve
chegariam os dilectos amigos, avisados pela titi para saudar o
Peregrino, recolhi ao meu quarto a enfiar a sobrecasaca preta.

Ahi, considerando ao espelho a face requeimada, sorri gloriosamente e
pensei:--«Ah Theodorico, venceste!»

Sim, vencera! Como a titi me tinha acolhido! com que veneração! com que
devoção!...--E ia mal, ia mal!... Bem depressa eu sentiria, com o
coração suffocado de gozo, as martelladas sobre o seu caixão. E nada
podia desalojar-me do testamento da snr.^a D. Patrocinio! Eu tornára-me
para ella S. Theodorico! A hedionda velha estava emfim convencida que
deixar-me o seu ouro--era como doal-o a Jesus e aos Apostolos e a toda a
Santa Madre Egreja!

Mas a porta rangeu--a titi entrou, com o seu antigo chale de Tonkin
pelos hombros. E, caso estranho, pareceu-me ser a D. Patrocinio das
Neves d'outro tempo, hirta, agreste, esverdeada, odiando o amor como
coisa suja, e sacudindo de si para sempre os homens que se tinham
mettido com saias! Com effeito! Os seus oculos, outra vez sêccos,
reluziam, cravavam-se desconfiadamente na minha mala... Justos céos! Era
a antiga D. Patrocinio. Lá vinham, as suas lividas, aduncas mãos,
cruzadas sobre o chale, arrepanhando-lhe as franjas, sôfregas de
esquadrinhar a minha roupa branca! Lá se cavava, aos cantos dos seus
labios sumidos, um rigido sulco d'azedume!... Tremi: mas visitou-me logo
uma inspiração do Senhor. Diante da mala, abri os braços, com candura:

--Pois é verdade!... Aqui tem a titi a maleta que lá andou por
Jerusalem... Aqui está, bem aberta, para todo o mundo vêr que é a mala
d'um homem de religião! Que é o que dizia o meu amigo allemão, pessoa
que sabia tudo: «Lá isso, Raposo, meu santinho, quando n'uma viagem se
peccou, e se fizeram relaxações, e se andou atraz de saias, trazem-se
sempre provas na mala. Por mais que se escondam, que se deitem fóra,
sempre lá esquece coisa que cheire a peccado!...» Assim m'o disse muitas
vezes, até uma occasião diante d'um Patriarcha... E o Patriarcha
approvou. Por isso, eu cá, é malinha aberta, sem receio... Póde-se
esquadrinhar, póde-se cheirar... A que cheira é a religião! Olhe, titi,
olhe... Aqui estão as ceroulinhas e as piuguinhas. Isso não póde deixar
de ser, porque é peccado andar nú... Mas o resto, tudo santo! O meu
rosario, o livrinho de missa, os bentinhos, tudo do melhor, tudo do
Santo Sepulchro...

--Tens alli uns embrulhos! rosnou a asquerosa senhora, estendendo um
grande dedo descarnado.

Abri-os logo, com alacridade. Eram dois frascos lacrados d'agua do
Jordão! E muito sério, muito digno, fiquei diante da snr.^a D.
Patrocinio com uma garrafinha do liquido divino na palma de cada mão...
Então ella, com os oculos de novo embaciados, beijou penitentemente os
frascos: uma pouca da baba do beijo escorreu nas minhas unhas. Depois, á
porta, suspirando, já rendida:

--Olha, filho, até estou a tremer... E é d'estes gostinhos todos!

Sahiu. Eu fiquei coçando o queixo. Sim, ainda havia uma circumstancia
que me escorraçaria do testamento da titi! Seria apparecer diante
d'ella, material e tangivel, uma evidencia das minhas relaxações... Mas
como surgiria ella jámais n'este logico Universo? Todas as passadas
fragilidades da minha carne eram como os fumos esparsos d'uma fogueira
apagada que nenhum esforço póde novamente condensar. E o meu derradeiro
peccado--saboreado tão longe, no velho Egypto, como chegaria jámais á
noticia da titi? Nenhuma combinação humana lograria trazer ao campo de
Sant'Anna as duas unicas testemunhas d'elle--uma luveira occupada agora
a encostar as papoilas do seu chapéo aos granitos de Raméses em Thebas,
e um Doutor encafuado n'uma rua escolastica, á sombra d'uma vetusta
Universidade da Allemanha, escarafunchando o cisco historico dos
Herodes... E, a não ser essa flôr de deboche e essa columna de sciencia,
ninguem mais na terra conhecia os meus culpados delirios na cidade
amorosa dos Lagidas.

Demais, o terrvel documento da minha juncção com a sordida Mary, a
camisa de dormir aromatisada de violeta, lá cobria agora em Sião uma
languida cinta de circassiana ou os seios côr de bronze d'uma nubia de
Koskoro: a compromettedora offerta «_ao meu portuguezinho valente_» fôra
despregada, queimada no brazeiro: já as rendas se iriam esgaçando no
serviço forte do amor; e rôta, suja, gasta, ella bem depressa seria
arremessada ao lixo secular de Jerusalem! Sim, nada se poderia interpôr
entre a minha justa sofreguidão e a bolsa verde da titi. Nada, a não ser
a carne mesma da velha, a sua carcassa rangente, habitada por uma
teimosa chamma vital, que se não quizesse extinguir!... Oh fado
horrivel! Se a titi, obstinada, renitente, vivesse ainda quando abrissem
os cravos do outro anno! E então não me contive. Atirei a alma para as
alturas, gritei desesperadamente, em toda a ancia do meu desejo:

--Oh Santa Virgem Maria, faze que ella rebente depressa!

N'esse momento soou a grossa sineta do pateo. E foi-me grato reconhecer,
depois da longa separação, as duas badaladas curtas e timidas do nosso
modesto Justino: mais grato ainda sentir, logo após, o repique magestoso
do dr. Margaride. Immediatamente a titi escancarou a porta do meu
quarto, n'uma penosa atarantação:

--Theodorico, filho, ouve! Tem-me estado a lembrar... Parece-me que para
destapar a reliquia é melhor esperar até que se vão logo embora o
Justino e o Margaride! Ai, eu sou muito amiga d'elles, são pessoas de
muita virtude... Mas acho que para uma ceremonia d'estas é melhor que
estejam só pessoas d'egreja...

Ella, pela sua devoção, considerava-se pessoa d'egreja. Eu, pela minha
jornada, era quasi pessoa do céo.

--Não, titi... O Patriarcha de Jerusalem recommendou-me que fosse diante
de todos os amigos da casa, na capella, com velas... É mais efficaz... E
olhe, diga á Vicencia que me venha buscar as botas para limpar.

--Ai eu lh'as dou!... São estas? Estão sujinhas, estão! Já cá te vêm,
filho, já cá te vêm!

E a snr.^a D. Patrocinio das Neves agarrou as botas! E a snr.^a D.
Patrocinio das Neves levou as botas!

Ah, estava mudada, estava bem mudada!... E ao espelho, cravando no setim
da gravata uma cruz de coral de Malta, eu pensava que desde esse dia ia
reinar alli, no campo de Sant'Anna, de cima da minha santidade, e que
para apressar a obra lenta da morte--talvez viesse a espancar aquella
velha.

Foi-me dôce, ao penetrar na sala, encontrar os dilectos amigos, com
casacos sérios, de pé, alargando para mim os braços extremosos. A titi
pousava no sofá, têsa, desvanecida, com setins de festa e com joias. E
ao lado, um padre muito magro vergava a espinha com os dedos
enclavinhados no peito--mostrando n'uma face chupada dentes afiados e
famintos. Era o Negrão. Dei-lhe dois dedos, sêccamente:

--Estimo vê-lo por cá...

--Grandissima honra para este seu servo! ciciou elle, puxando os meus
dedos para o coração.

E, mais vergado o dorso servil, correu a erguer o _abat-jour_ do
candieiro--para que a luz me banhasse, e se pudesse vêr na madureza do
meu semblante a efficacia da minha peregrinação.

Padre Pinheiro decidiu, com um sorriso de doente:

--Mais magro!

Justino hesitou, fez estalar os dedos:

--Mais queimado!

E o Margaride, carinhosamente:

--Mais homem!

O onduloso padre Negrão revirou-se, arqueado para a titi como para um
Sacramento entre os seus mólhos de luzes:

--E com um todo d'inspirar respeito! Inteiramente digno de ser o
sobrinho da virtuosissima D. Patrocinio!...

No emtanto em torno tumultuavam as curiosidades amigas: «E a saudinha?»
«Então, Jerusalem?» «Que tal, as comidas?...»

Mas a titi bateu com o leque no joelho, n'um receio que tão familiar
alvoroço importunasse S. Theodorico. E o Negrão acudiu, com um zelo
mellifluo:

--Methodo, meus senhores, methodo!... Assim todos á uma não se goza... É
melhor deixarmos fallar o nosso interessante Theodorico!...

Detestei aquelle _nosso_, odiei aquelle padre. Porque corria tanto mel
no seu fallar? Porque se privilegiava elle no sofá, roçando a sordida
joelheira da calça pelos castos setins da titi?

Mas o dr. Margaride, abrindo a caixa de rapé, concordou que o methodo
seria mais proficuo...

--Aqui nos sentamos todos, fazemos roda, e o nosso Theodorico conta por
ordem todas as maravilhas que viu!

O esgalgado Negrão, com uma escandalosa privança, correu dentro a colhêr
um copo d'agua e assacar para me lubrificar as vias. Estendi o lenço
sobre o joelho. Tossi--e comecei a esboçar a soberba jornada. Disse o
luxo do _Malaga_; Gibraltar e o seu môrro encarapuçado de nuvens; a
abundancia das «mesas redondas» com puddings e aguas-gazosas...

--Tudo á grande, á franceza! suspirou padre Pinheiro, com um brilho de
gula no olho amortecido. Mas naturalmente, tudo muito indigesto...

--Eu lhe digo, padre Pinheiro... Sim, tudo á grande, tudo á franceza:
mas coisas saudaveis, que não esquentavam os intestinos... Bello
rosbeef, bello carneiro...

--Que não valiam decerto o seu franguinho de cabidella, excellentissima
senhora! atalhou unctuosamente o Negrão, junto do hombro agudo da titi.

Execrei aquelle padre! E, remexendo a agua com assucar, decidi em meu
espirito que, mal eu começasse a governar ferreamente o campo de
Sant'Anna--não mais a cabidella da minha familia escorregaria na guela
aduladora d'aquelle servo de Deus.

No emtanto o bom Justino, repuxando o collarinho, sorria para mim,
embevecido. E como passava eu as noites em Alexandria? Havia uma
assembléa, onde espairecesse? Conhecia eu alguma familia considerada,
com quem tomasse uma chavena de chá?...

--Eu lhe digo, Justino... Conhecia. Mas, a fallar verdade, tinha
repugnancia em frequentar casas de turcos... Sempre é gente que não
acredita senão em Mafoma!... Olhe, sabe o que fazia á noite? Depois de
jantar ia a uma egrejinha cá da nossa bella religião, sem
estrangeirices, onde havia sempre um Santissimo d'appetite... Fazia as
minhas devoções: depois ia-me encontrar com o allemão, o meu amigo, o
lente, n'uma grande praça que dizem lá os de Alexandria que é muito
melhor que o Rocio... Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta
lindeza do nosso Rocio, o ladrilhinho, as arvores, a estatua, o
theatro... Emfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o
Rocio... E lá o disse aos turcos!

--E fica-lhe bem ter levantado assim as coisas portuguezas! observou o
dr. Margaride, contente e rufando na tabaqueira. Direi mais... É acto de
patriota... Nem d'outra maneira procediam os Gamas e os Albuquerques!

--Pois é verdade... Ia-me encontrar com o allemão; e então para
espairecer um bocado, porque emfim uma distracção sempre é necessaria
quando se anda a viajar, iamos tomar um café... Que lá isso, sim! Lá
café fazem-n'o os turcos que é uma perfeição!

--Bom cafésinho, hein? acudiu padre Pinheiro, chegando a cadeira para
mim com interesse sôfrego. E forte, forte? Bom aroma?

--Sim, padre Pinheiro, de consolar!... Pois tomavamos o nosso cafésinho,
depois vinhamos para o hotel, e ahi no quarto, com os santos Evangelhos,
punhamo-nos a estudar todos aquelles divinos lugares na Judêa onde
tinhamos d'ir rezar... E como o allemão era lente e sabia tudo, eu era
instruir-me, instruir-me!... Até elle ás vezes dizia: «Vossê, Raposo,
com estas noitadas, vai d'aqui um chavão...» E lá isso, o que é de
coisas santas e de Christo, sei tudo... Pois, senhores, assim passavamos
á luz do candieiro até às dez, onze horas... Depois chásinho, terço, e
cama.

--Sim senhor, noites muito bem gozadas, noites muito fructuosas!
declarou, sorrindo para a titi, o estimavel dr. Margaride.

--Ai, isso fez-lhe muita virtude! suspirava a horrenda senhora. Foi como
se subisse um bocadinho ao céo... Até o que elle diz cheira bem...
Cheira a santo.

Modestissimamente, baixei a palpebra lenta.

Mas Negrão, com sinuosa perfidia, notou que mais proveitoso seria, e de
maior unção repassaria as almas--escutar coisas de festas, de milagres,
de penitencias...

--Estou seguindo o meu itinerario, snr. padre Negrão, repliquei
asperamente.

--Como fez Chateaubriand, como fazem todos os famosos auctores!
confirmou Margaride, approvando.

E foi com os olhos n'elle, como no mais douto, que eu disse a partida de
Alexandria n'uma tarde de tormenta: o tocante momento em que uma santa
irmã da Caridade (que estivera já em Lisboa e que ouvira fallar da
virtude da titi) me salvára das aguas salgadas um embrulho em que eu
trazia terra do Egypto, da que pisára a Santa Familia: a nossa chegada a
Jaffa, que, por um prodigio, apenas eu subira ao tombadilho, de chapéo
alto e pensando na titi, se coroára de raios de sol...

--Magnifico! exclamou o dr. Margaride. E diga, meu Theodorico... Não
tinham comsigo um sabio guia, que lhes fosse apontando as ruinas, lhes
fosse commentando...

--Ora essa, dr. Margaride! Tinhamos um grande latinista, o padre Potte!

Remolhei o labio. E disse as emoções da gloriosa noite em que
acampáramos junto a Ramleh, com a lua no céo alumiando coisas da
religião, beduinos velando de lança ao hombro, e em redor leões a
rugir...

--Que scena! bradou o dr. Margaride, erguendo-se arrebatadamente. Que
enorme scena! Não estar eu lá! Parece uma d'estas coisas grandiosas da
Biblia, do _Eurico_! É d'inspirar! Eu por mim, se tal visse, não me
continha!... Não me continha, fazia uma ode sublime!

O Negrão puxou a aba do casaco ao facundo magistrado:

--É melhor deixar fallar o nosso Theodorico, para podermos todos
saborear...

Margaride, abespinhado, franziu as sobrancelhas temerosas e mais negras
que o ebano:

--Ninguem n'esta sala, melhor que eu, snr. padre Negrão, saboreia o
grandioso!

E a titi, insaciavel, batendo com o leque:

--Está bem, está bem... Conta, filho, não te fartes! Olha, conta assim
uma coisa que te acontecesse com Nosso Senhor, que nos faça ternura...

Todos emmudeceram, reverentes. Eu então disse a marcha para Jerusalem
com duas estrellas na frente a guiar-nos, como acontece sempre aos
peregrinos mais finos e de boa familia: as lagrimas que derramára, ao
avistar, n'uma manhã de chuva, as muralhas de Jerusalem: e na minha
visita ao Santo Sepulchro, de casaca, com padre Potte, as palavras que
balbuciára diante do Tumulo, por entre soluços e no meio d'acolytos--«Oh
meu Jesus, oh meu Senhor, aqui estou, aqui venho da parte da titi!...»

E a medonha senhora, suffocada:

--Que ternura que faz!... Diante do tumulosinho!...

Então passei o lenço pela face excitada, e disse:

--N'essa noite recolhi ao hotel para rezar... E agora, meus senhores, ha
aqui um pontosinho desagradavel...

E contritamente confessei que, forçado pela Religião, pelo nome honrado
de Raposo, e pela dignidade de Portugal--tivera um conflicto no hotel
com um grande inglez de barbas.

--Uma bulha! acudiu com perversidade o vil Negrão, ancioso por empanar o
brilho de santidade com que eu deslumbrava a titi. Uma bulha, na cidade
de Jesus Christo! Ora essa! Que desacato!

Com os dentes cerrados encarei o torpissimo padre:

--Sim senhor! um chinfrim!... Mas fique v. s.^a sabendo que o snr.
patriarcha de Jerusalem me deu toda a razão, até me bateu no hombro e me
disse: «Pois Theodorico, parabens, vossê portou-se como um pimpão!» Que
tem agora v. s.^a a piar?

Negrão curvou a cabeça, onde a corôa punha uma lividez azulada de lua em
tempo de peste:

--Se Sua Eminencia approvou...

--Sim senhor! E aqui tem a titi porque foi a bulha!... No quarto ao lado
do meu havia uma ingleza, uma hereje, que mal eu me punha a rezar, ahi
começava ella a tocar piano, e a cantar fados e tolices e coisas
immoraes do _Barba-Azul_, dos theatros... Ora imagine a titi, estar uma
pessoa a dizer com todo o fervor e de joelhos: «Oh Santa Maria do
Patrocinio, faze que a minha boa titi tenha muitos annos de vida»--e vir
lá de traz do tabique uma voz d'excommungada a ganir: «_Sou o
Barba-Azul, olê! ser viuvo é o meu filé_!...» É d'encavacar!... De modo
que uma noite, desesperado, não me tenho em mim, sáio do corredor,
atiro-lhe um murro á porta, e grito-lhe para dentro: «Faz favor d'estar
calada, que está aqui um christão que quer rezar!...»

--E com todo o direito, affirmou o dr. Margaride. Vossê tinha por si a
lei!

--Assim, me disse o Patriarcha! Pois senhores, como ia contando, grito
isto para dentro á mulher, e ia recolher muito sério ao meu quarto,
quando me sae de lá o pai, um grande barbaças, de bengalorio na mão...
Eu fui muito prudente: cruzei os braços e, com bons modos, disse-lhe que
não queria alli escandalos ao pé do tumulo de Nosso Senhor, e o que
desejava era rezar em socego... E vai que me ha de elle responder? Que
se estava a... Emfim, nem eu posso repetir! Uma coisa indecente contra o
tumulo de Nosso Senhor... E eu, titi, passa-me uma oura pela cabeça,
agarro-o pelo cachaço...

--E magoaste-o, filho?

--Escavaquei-o, titi!

Todos acclamaram a minha ferocidade. Padre Pinheiro citou leis canonicas
auctorisando a Fé a desancar a Impiedade. Justino, aos pulos, celebrou
esse John Bull desmantelado a sólida murraça lusitana. E eu, excitado
pelos louvores como por clarins d'ataque, bradava de pé, medonho:

--Lá impiedades diante de mim, não! Arrombo tudo, esborracho tudo... Em
coisas de religião sou uma fera!

E aproveitei esta santa cólera para brandir, como um aviso, diante do
queixo sumido do Negrão, o meu punho cabelludo e pavoroso. O macilento e
esgrouviado servo de Deus encolheu. Mas n'esse instante a Vicencia
entrava com o chá, nas pratas ricas de G. Godinho.

Então os dilectos amigos, com a torrada na mão, romperam em ardentes
encomios:

--Que instructiva viagem! É como ter um curso!

--E que bello bocadinho de noite aqui se tem passado!... Qual S. Carlos!
Isto é que é gozar!

--E como elle conta! Que fervor! que memoria!...

Lentamente o bom Justino, com a sua chavena fornecida de bolos,
acercára-se da janella, como a espreitar o céo estrellado: e d'entre as
franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me
confidencialmente. Fui, trauteando o _Bem-dito_; ambos mergulhámos na
sombra dos damascos; e o virtuoso tabellião, roçando o labio pelas
minhas barbas:

--Oh amiguinho, e de mulheres?

Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu collarinho:

--De se deixarem lá os miolos, Justininho!

As suas pupillas faiscaram como as de um gato em janeiro; a chicara
ficou-lhe tremelicando na mão.

E eu, pensativo, repenetrando na luz:

--Sim, bonita noite... Mas não são aquellas estrellinhas santinhas que
nós viamos lá no Jordão!...

Então padre Pinheiro, tomando aos goles cautelosos a sua chalada, veio
timidamente bater-me no hombro... Lembrára-me eu, n'essas Santas Terras,
com tantas distracções, do seu frasquinho d'agua do Jordão?...

--Oh padre Pinheiro, pois está claro!... Trago tudo! E o raminho do
Monte Olivete para o nosso Justino... E a photographia para o nosso
Margaride... Tudo!

Corri ao quarto, a buscar essas dôces «lembrancinhas» da Palestina. E ao
regressar sustentando pelas pontas um lenço repleto de devotas
preciosidades, estaquei por traz do reposteiro ao sentir dentro o meu
nome... Suave gozo! Era o inestimavel dr. Margaride que afiançava á
titi, com a sua tremenda auctoridade:

--D. Patrocinio, eu não lh'o quiz dizer diante d'elle... Mas isto agora
é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro! Isto é ter, de casa e
pucarinho, um amigo intimo de Nosso Senhor Jesus Christo!...

Tossi, entrei. Mas a snr.^a D. Patrocinio ruminava um escrupulo
ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ella) que
se repartissem estas Reliquias minimas antes de lhe ser entregue a ella,
como senhora e como tia, na capella, a Grande Reliquia...

--Porque saibam os meus amigos, annunciou ella com o seu chatissimo
peito impando de satisfação, que o meu Theodorico trouxe-me uma Santa
Reliquia, com que eu me vou apegar nas minhas afflicções, e que me vai
curar dos meus males!

--Bravissimo! gritou o impetuoso dr. Margaride. Com quê, Theodorico,
seguiu-se o meu conselho? Esgaravataram-se esses sepulchros?...
Bravissimo! É de generoso romeiro!

--É de sobrinho, como já o não ha no nosso Portugal! acudiu padre
Pinheiro junto ao espelho, onde estudava a lingua saburrenta...

--É de filho, é de filho! proclamava o Justino, alçado na ponta dos
botins.

Então o Negrão, mostrando os dentes famintos, babujou esta coisa
vilissima:

--Resta saber, cavalheiros, de que Reliquia se trata.

Tive sêde, ardente sêde do sangue d'aquelle padre! Trespassei-o com dois
olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em braza:

--Talvez v. s.^a, se é um verdadeiro sacerdote, se atire de focinho para
baixo a rezar, quando apparecer aquella maravilha!...

E voltei-me para a snr.^a D. Patrocinio, com a impaciencia de uma nobre
alma offendida que carece de reparação:

--É já, titi! Vamos ao Oratorio! Quero que fique tudo aqui assombrado!
Foi o que disse o meu amigo allemão: «Essa reliquia, ao destapar-se, é
de ficar uma familia inteira azabumbada!...»

Deslumbrada, a titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me d'um
martello. Quando voltei, o dr. Margaride, grave, calçava as suas luvas
pretas... E atraz da snr.^a D. Patrocinio, cujos setins faziam no
sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetrámos no corredor onde o
grande bico de gaz silvava dentro do seu vidro fôsco. Ao fundo a
Vicencia e a cozinheira espreitavam com os seus rosarios na mão.

O Oratorio resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas
chammas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de
Gloria. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das
camelias--as tunicas dos Santos, azues e vermelhas, com o seu lustre de
sêda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas do céo
para aquella rara noite de festa... Por vezes o raio d'uma aureola
tremia, despedia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem
estremecimentos de jubilo. E na sua cruz de pau preto, o Christo,
riquissimo, macisso, todo d'ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia
preciosamente.

--Tudo com muito gosto! Que divina scena! murmurou o dr. Margaride,
deliciado na sua paixão de grandioso.

Com piedosos cuidados colloquei o caixote na almofada de velludo:
vergado, rosnei sobre elle uma _Ave_; depois, ergui a toalha que o
cobria, e com ella no braço, tendo escarrado solemnemente, fallei:

--Titi, meus senhores... Eu não quiz revelar ainda a Reliquia que vem
aqui no caixotinho, porque assim m'o recommendou o snr. Patriarcha de
Jerusalem... Agora é que vou dizer... Mas antes de tudo, parece-me bem a
pêllo explicar que tudo cá n'esta Reliquia, papel, nastro, caixotinho,
prégos, tudo é santo! Assim por exemplo os préguinhos... são da Arca de
Noé... Póde vêr, snr. padre Negrão, póde apalpar! são os da Arca, até
ainda enferrujados... É tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além
d'isso quero declarar diante de todos que esta Reliquia pertence aqui á
titi, e que lh'a trago para lhe provar que em Jerusalem não pensei senão
n'ella, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar esta
pechincha...

--Commigo te has de vêr sempre, filho! tartamudeou a horrenda senhora,
enlevada.

Beijei-lhe a mão, sellando este pacto de que a Magistratura e a Egreja
eram veridicas testemunhas. Depois, retomando o martello:

--E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações
que mais lhe calharem, devo dizer o que é a Reliquia...

Tossi, cerrei os olhos:

--É a Corôa d'Espinhos!

Esmagada, com um rouco gemido, a titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o
nos braços tremulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo
austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus collarinhos; e o
ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, d'onde sahia
assombro e indignação! Justos céos! Magistrados e Sacerdotes
evidenciavam uma incredulidade--terrivel para a minha fortuna!

Eu tremia, com suores--quando padre Pinheiro, muito sério, convicto, se
debruçou, apertou a mão da titi a felicital-a pela posição religiosa a
que a elevava a posse d'aquella Reliquia. Então, cedendo á forte
auctoridade liturgica de padre Pinheiro, todos, em fila, n'uma muda
congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora.

Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei á beira do caixote, cravei o formão
na fenda da tampa, alcei o martello em triumpho...

--Theodorico! Filho! berrou a titi, arripiada, como se eu fosse
martellar a carne viva do Senhor.

--Não ha receio, titi! Aprendi em Jerusalem, a manejar estas coisinhas
de Deus!...

Despregada a táboa fina, alvejou a camada d'algodão. Ergui-a com terna
reverencia: e ante os olhos extaticos surgiu o sacratissimo embrulho de
papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.

--Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! suspirou a titi a esvaír-se de
gosto beato, com o branco do olho apparecendo por sobre o negro dos
oculos.

Ergui-me, rubro de orgulho:

--É á minha querida titi, só a ella, que compete, pela sua muita
virtude, desembrulhar o pacotinho!...

Acordando do seu langor, trémula e pallida, mas com a gravidade d'um
pontifice, a titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, collocou-o
sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com
o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma
as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho appareceu... A titi
segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente--e sobre a ara,
por entre os santos, em cima das camelias, aos pés da Cruz--espalhou-se,
com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!

A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor,
enxovalhada pelos meus abraços, com cada préga fedendo a peccado! A
camisa de dormir da Mary! E pregado n'ella por um alfinete, bem evidente
ao clarão das velas, o cartão com a offerta em letra encorpada:--«_Ao
meu Theodorico, meu portuguezinho possante, em lembrança do muito que
gozámos_!» Assignado, _M. M._... A camisa de dormir da Mary!

Mal sei o que occorreu no florido Oratorio! Achei-me á porta,
enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, n'um desmaio.
Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as accusações
do Negrão bradadas contra mim junto á touca da titi:--«Deboche!
escarneo! camisa de prostituta! achincalho á snr.^a D. Patrocinio!
profanação do Oratorio!» Distingui a sua bota arrojando furiosamente
para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem,
como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas
arquejavam, afflictas. E, ensopado em suor, entre as prégas da cortina,
percebi a titi caminhando para mim, lenta, livida, hirta, medonha...
Estacou. Os seus frios e ferozes oculos trespassaram-me. E através dos
dentes cerrados cuspiu esta palavra:

--Porcalhão!

E sahiu.

Rolei para o quarto, tombei no leito, esbarrondado. Um rumor d'escandalo
acordára o casarão severo. E a Vicencia surgiu diante de mim, enfiada,
com o seu avental branco na mão:

--Menino! Menino! A senhora manda dizer que sáia immediatamente para o
meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa... E diz que
póde levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!

Despedido!

Ergui a face molle da travesseira de rendas. E a Vicencia, atontada,
torcendo o avental:

--Ai, menino! Ai, menino! se não sae já para a rua, a senhora diz que
manda chamar um policia!

Escorraçado!

Atirei os pés incertos para o soalho. Mergulhei na algibeira uma escova
de dentes: topando nos moveis, procurei as chinelas que embrulhei n'um
numero da _Nação_. Sem reparo, agarrei d'entre as malas um caixote com
bandas de ferro:--e em ponta de botins desci a escada da titi, encolhido
e rasteiro, como um cão tinhoso vexado da sua tinha.

Mal transpuz o pateo, a Vicencia, cumprindo as ordens sanhudas da titi,
bateu-me nas costas com o portão chapeado de ferro--desprezivelmente e
para sempre!

Estava só na rua e na vida! Á luz dos frios astros contei na palma o meu
dinheiro. Tinha duas libras, dezoito tostões, um duro hespanhol e
cobres... E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as
malas, era a das Reliquias menores. Complicado sarcasmo do Destino! Para
cobrir meu corpo desabrigado--nada mais tinha que taboinhas aplainadas
por S. José, e cacos de barro do cantaro da Virgem! Metti no bolso o
embrulho das chinelas; e, sem voltar os olhos turvos á casa de minha
tia, marchei a pé, com o caixote ás costas, na noite cheia de silencio e
d'estrellas, para a Baixa, para o _Hotel da Pomba d'Ouro_.

       *       *       *       *       *

Ao outro dia, descórado e miserrimo á mesa da _Pomba_, remexia uma
sombria sôpa de grão e nabo--quando um cavalheiro, de collete de velludo
negro, veio occupar o talher fronteiro, junto d'uma garrafa d'agua de
Vidago, d'uma caixa de pilulas e d'um numero da _Nação_. Na sua testa,
immensa e arqueada como um frontão de capella, torciam-se duas veias
grossas: e sob as ventas largas, ennegrecidas de rapé, o bigode era um
tufo curto de pêllos grisalhos, duros como cêrdas d'escova. O gallego,
ao servir-lhe o nabo e grão, rosnou com estima: «Ora seja bem
apparecidinho o snr. Lino!»

Ao cozido este cavalheiro, abandonando a _Nação_ onde percorrêra
miudamente os annuncios, pousou em mim os olhos amarellentos de bilis e
baços, e observou que estavamos gozando desde os Reis um tempinho
d'appetite...

--De rosas, murmurei com reserva.

O snr. Lino entalou mais o guardanapo para dentro do collarinho lasso:

--E v. s.^a, se não é curiosidade, vem das provincias do Norte?

Passei vagarosamente a mão pelos cabellos:

--Não, senhor... Venho de Jerusalem!

D'assombrado o snr. Lino perdeu a garfada de arroz. E, depois de ter
ruminado mudamente a sua emoção, confessou que lhe interessavam muito
todos esses lugares santos porque tinha religião, graças a Deus! E tinha
um emprego, graças tambem a Deus, na Camara Patriarchal...

--Ah, na Camara Patriarchal! acudi eu. Sim, muito respeitavel... Eu
conheci muito um Patriarcha... Conheci muito o snr. Patriarcha de
Jerusalem. Cavalheiro muito santo, muito catita... Até nos ficamos
tratando de _tu_!

O snr. Lino offereceu-me da sua agua de Vidago--e conversámos das terras
da Escriptura.

--Que tal Jerusalem, como lojas?...

--Como lojas?... Lojas de modas?

--Não, não! atalhou o snr. Lino. Quero dizer lojas de santidade, de
reliquiarias, de coisinhas divinas...

--Sim... Menos mau. Ha o Damiani na Via Dolorosa que tem tudo, até ossos
de Martyres... Mas o melhor é cada um esquadrinhar, escavar... Eu
n'essas coisas trouxe maravilhas!

Uma chamma de singular cubiça avivou as pupillas amarelladas do snr.
Lino, da Camara Patriarchal. E de repente, com uma decisão d'inspirado:

--Andrésinho, a pinguinha de Porto... Hoje é brodio!

Quando o gallego pousou a garrafa, com a sua data traçada á mão n'um
velho rotulo de papel almasso--o snr. Lino offertou-me um calice cheio.

--Á sua!

--Com a ajuda do Senhor!... Á sua!

Por cortezia, rilhado o queijo, convidei aquelle homem que graças a Deus
tinha religião, a entrar no meu quarto e admirar as photographias de
Jerusalem. Elle aceitou, com alvoroço: mas, apenas transpôz a porta,
correu sem etiqueta e gulosamente ao meu leito--onde jaziam espalhadas
algumas das Reliquias que eu desencaixotára essa manhã.

--O cavalheiro aprecia? indaguei, desenrolando uma vista do monte
Olivete, e pensando em lhe offertar um rosario.

Elle revirava em silencio, nas mãos gordas e de unhas roidas, um frasco
d'agua do Jordão. Cheirou-o, pesou-o, chocalhou-o. Depois, muito sério,
com as veias entumecidas na vastissima fronte:

--Tem attestado?

Estendi-lhe a certidão do frade Franciscano, garantindo como authentica
e sem mistura a agua do rio baptismal. Elle saboreou o venerando papel.
E enthusiasmado:

--Dou quinze tostões pelo frasquinho!

Foi, no meu intellecto de Bacharel, como se uma janella se abrisse e por
ella entrasse o sol! Vi inesperadamente, ao seu clarão forte, a natureza
real d'essas medalhas, bentinhos, aguas, lascas, pedrinhas, palhas, que
eu considerára até então um lixo ecclesiastico esquecido pela vassoura
da Philosophia! As Reliquias eram _valores_! Tinham a qualidade
omnipotente de _valores_! Dava-se um caco de barro--e recebia-se uma
rodella d'ouro!... E, illuminado, comecei insensivelmente a sorrir, com
as mãos encostadas á mesa como a um balcão de armazem:

--Quinze tostões por agua pura do Jordão! Boa! Em pouca conta tem v.
s.^a o nosso S. João Baptista... Quinze tostões! Chega a ser
impiedade!... V. s.^a imagina que a agua do Jordão é como agua do
Arsenal? Ora essa!... Tres mil reis recusei eu a um padre de Santa
Justa, esta manhã, ahi, ao pé d'essa cama...

Elle fez saltar o frasco na palma gorda, considerou, calculou:

--Dou quatro mil reis.

--Vá lá, por sermos companheiros na _Pomba_!

E quando o snr. Lino sahiu do meu quarto, com o frasco do Jordão
embrulhado na _Nação_, eu, Theodorico Raposo, achava-me fatalmente,
providencialmente, estabelecido vendilhão de reliquias!

D'ellas comi, d'ellas fumei, d'ellas amei, durante dois mezes, quieto e
aprazido na _Pomba d'Ouro_. Quasi sempre o snr. Lino surdia de manhã no
meu quarto, de chinelos, escolhia um caco do cantaro da Virgem ou uma
palhinha do Presepio, empacotava na _Nação_, largava a pecunia e abalava
assobiando o _De Profundis_. E evidentemente o digno homem revendia as
minhas preciosidades com gordo provento--porque bem depressa, sobre o
seu collete de velludo preto, rebrilhou uma corrente d'ouro.

No emtanto, muito habil e fino, eu não tentára (nem com supplicas, nem
com explicações, nem com patrocinios) amansar as beatas iras da titi e
repenetrar na sua estima. Contentava-me em ir á egreja de Sant'Anna,
todo de negro, com um ripanço. Não encontrava a titi, que tinha agora de
manhã no Oratorio missa do torpissimo Negrão. Mas lá me prostrava,
batendo contritamente no peito, suspirando para o Sacrario--certo que,
pelo Melchior sacristão, as novas da minha devoção inalteravel chegariam
á hedionda senhora.

Muito manhoso, tambem não procurára os amigos da titi--que deviam
prudentemente partilhar as paixões da sua alma para lograrem os favores
do seu testamento: assim poupava embaraços angustiosos a esses
benemeritos da Magistratura e da Egreja. Sempre que encontrava padre
Pinheiro ou dr. Margaride, cruzava as mãos dentro das mangas, baixava os
olhos, evidenciando humildade e compunção. E este retrahimento era
decerto grato aos amigos, porque uma noite, topando o Justino perto da
casa da Benta Bexigosa, o digno homem segredou junto da minha barba,
depois de se ter assegurado da solidão da rua:

--Ande-me assim, amiguinho!... Tudo se ha de arranjar... Que ella por
ora está uma fera... Oh diabo, ahi vem gente!

E abalou.

No emtanto, por intermédio do Lino, eu vendilhava reliquias. Bem
depressa porém recordado dos compendios de _Economia Politica_, reflecti
que os meus proventos engordariam se, eliminando o Lino, eu mesmo me
dirigisse ousadamente ao consumidor pio.

Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas
com listas e preços de Reliquias. Mandei propostas d'ossos de Martyres a
egrejas de provincia. Paguei copinhos d'aguardente a sacristães para que
elles segredassem a velhas com achaques--«P'ra coisas de Santidade não
ha como o snr. dr. Raposo, que vem fresquinho de Jerusalem!...» E
bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a agua do Jordão, em
frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chammas: vendi
d'esta agua para baptisados, para comidas, para banhos: e durante um
momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e limpido que o da
Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente n'um quarto da _Pomba
d'Ouro_. Imaginativo, introduzi _novidades_ rendosas e poeticas: lancei
no commercio com efficacia «o pedacinho da bilha com que Nossa Senhora
ia á fonte»: fui eu que acreditei na piedade nacional «uma das
ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Familia.» Agora quando o
Lino de chinelos batia á porta do meu quarto, onde as medas de palhinhas
do Presepio alternavam com as pilhas de taboinhas de S. José, eu
entreabria uma fenda avara e ciciava:

--Foi-se... Esgotadinho!... Só para a semana... Vem-me ahi um caixotinho
da Terra Santa...

As veias frontaes do capacissimo homem inchavam n'uma indignação de
intermediario espoliado.

Todas as minhas Reliquias eram acolhidas com o mais forte fervor--porque
provinham «do Raposo, fresquinho de Jerusalem.» Os outros Reliquistas
não tinham esta esplendida garantia d'uma jornada á Terra Santa. Só eu,
Raposo, percorrêra esse vastissimo deposito de santidade. Só eu de resto
sabia lançar na folha sebacea de papel que authenticava a reliquia--a
firma floreada do snr. Patriarcha de Jerusalem.

Mas bem cedo reconheci que esta profusão de Reliquilharia saturára a
devoção do meu paiz! Atochado, empanturrado de Reliquias, este catholico
Portugal já não tinha capacidade--nem para receber um d'esses raminhos
seccos de flôres de Nazareth, que eu cedia a cinco tostões!

Inquieto, baixei melancolicamente os preços. Prodigalisei, no _Diario de
Noticias_, annuncios tentadores--«_Preciosidades da Terra Santa, em
conta, na tabacaria Rego, se diz_...» Muitas manhãs, com um casacão
ecclesiatico e um _cache-nez_ de sêda disfarçando a minha barba,
assaltei á porta das egrejas velhas beatas: offerecia pedaços da tunica
da Virgem Maria, cordeis das sandalias de S. Pedro: e rosnava com ancia,
roçando-me pelos manteletes e pelas toucas: «Baratinhos, minha senhora,
baratinhos... Excellentes para catarrhos!...»

Já devia uma carregada conta na _Pomba d'Ouro_; descia as escadas
sorrateiramente, para não encontrar o patrão; chamava com sabujice ao
gallego--«meu André, meu catitinha...»

E punha toda a minha esperança n'um renovamento da Fé! A menor noticia
de festa de egreja me regosijava como um acrescimo de devoção no povo.
Odiava ferozmente os republicanos e os philosophos que abalam o
Catholicismo--e portanto diminuem o valor das reliquias que elle
instituiu. Escrevi artigos para a _Nação_, em que bradava: «Se vos não
apegaes aos ossos dos Martyres, como quereis que prospere este paiz?» No
café do Montanha dava murros sobre as mesas: «É necessario Religião,
caramba! Sem Religião nem o bifezinho sabe!» Em casa da Benta Bexigosa
ameaçava as raparigas, se ellas não usassem os seus bentinhos e os seus
escapularios, de não voltar alli, de ir a casa da D. Adelaide!... A
minha inquietação pelo «pão de cada dia» foi mesmo tão aspera que de
novo solicitei a intervenção do Lino--homem de vastas relações
ecclesiasticas, parente de capellães de convento. Outra vez lhe mostrei
o meu leito juncado de reliquias. Outra vez lhe disse, esfregando as
mãos: «Vamos a mais negocio, amiguinho! Aqui tenho sortimento fresco,
chegadinho de Sião!»

Mas, do digno homem da Camara Patriarcal, só colhi recriminações
acerbas...

--Essa léria não péga, senhor! gritou elle, com as veias a estalar de
cólera na fronte esbrazeada. Foi v. s.^a que estragou o commercio!...
Está o mercado abarrotado, já não ha maneira de vender nem um cueirinho
do menino Jesus, uma reliquia que se vendia tão bem! O seu negocio com
as ferraduras é perfeitamente indecente... Perfeitamente indecente! É o
que me dizia n'outro dia um capellão, primo meu: «São ferraduras de mais
para um paiz tão pequeno!...» Quatorze ferraduras, senhor! É abusar!
Sabe v. s.^a quantos prégos, dos que pregaram Christo na cruz, v. s.^a
tem impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!... Não lhe
digo mais nada... Setenta e cinco!

E sahiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado.

Venturosamente, n'essa noite, encontrei o _Rinchão_ em casa da Benta
Bexigosa, e recebi d'elle uma consideravel encommenda de reliquias. O
_Rinchão_ ia desposar uma menina Nogueira, filha da snr.^a Nogueira,
rica beata de Beja e rica proprietaria de porcos: e elle «queria dar um
presente catita á carola da velha, tudo coisinhas da Cartilha e do Santo
Sepulchro.» Arranjei-lhe um lindo cofre de reliquias (ahi colloquei o
meu septuagesimo sexto prégo) ornado das minhas graciosas flôres seccas
de Galilêa. Com a generosa pecunia que me deu o _Rinchão_ paguei á
_Pomba d'Ouro_; e tomei prudentemente um quarto na casa d'hospedes do
Pitta, á travessa da Palha.

Assim, diminuia a minha prosperidade. O meu quarto agora era nos altos,
no quinto andar, com um catre de ferro, e uma poltrona vetusta cujo
miôlo de estopa fetida rompia entre a chita esgaçada. Como unico ornato
pendia sobre a commoda, n'um caixilho enfeitado de borlas, uma
lithographia de Christo crucificado, a côres; nuvens negras de tormenta
rolavam-lhe aos pés; e os seus olhos claros, arregalados, seguiam e
miravam todos os meus actos, os mais intimos, mesmo o delicado aparar
dos callos.

Havia uma semana que, assim installado, farejava Lisboa á busca do pão
incerto, com botas a que se começava a romper a sola, quando uma manhã o
André da _Pomba d'Ouro_ me trouxe uma carta que lá fôra deixada na
vespera, com a marca «urgente». O papel tinha tarja preta: o sinete era
de lacre negro. Abri, tremendo. E vi a assignatura do Justino.

«Meu querido amigo. É meu penoso dever, que cumpro com lagrimas,
participar-lhe que sua respeitavel tia e minha senhora inesperadamente
succumbiu...»

Caramba! A velha rebentára!

Anciosamente saltei através das linhas tropeçando sobre os
detalhes--«congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a
chorar... O nosso Negrão!...» E empallidecendo, n'um suor que me
alagava, avistei, ao fim da lauda, a nova medonha:--«do testamento da
virtuosa senhora, consta que deixa a seu sobrinho Theodorico o oculo que
se acha pendurado na sala de jantar...»

Desherdado!

Agarrei o chapéo, corri aos encontrões pelas ruas até ao cartorio do
Justino, a S. Paulo. Achei-o á banca, com uma gravata de lucto e a penna
atraz da orelha, comendo fatias de vitella sobre um velho _Diario de
Noticias_.

--Com que, o oculo...?--balbuciei, esfalfado, arrimado á esquina d'uma
estante.

--É verdade. O oculo!--murmurou elle, com a bôca atulhada.

Fui tombar, quasi desmaiado, sobre o canapé de couro. Elle offereceu-me
vinho de Bucellas. Bebi um calice. E passando a mão tremula sobre a face
livida:

--Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...

O Justino suspirou. A santa senhora, coitadinha, deixára-lhe duas
inscripções de conto... E de resto dispersára no seu testamento as
riquezas de G. Godinho do modo mais incoherente e mais perverso. O
predio do campo de Sant'Anna e quarenta contos de inscripções para o
Senhor dos Passos da Graça. As acções da Companhia do Gaz, as melhores
pratas, a casa de Linda-a-Pastora para o Casimiro, que já se não mexia,
moribundo. Padre Pinheiro recebia um predio na rua do Arsenal. A
deliciosa quinta do _Mosteiro_, com o seu pittoresco portão d'entrada
onde se viam ainda as armas dos condes de Landoso, as inscripções de
Credito Publico, a mobilia do campo de Sant'Anna, o Christo d'ouro--para
o padre Negrão. Tres contos de reis e o relogio para o Margaride. A
Vicencia tivera as roupas de cama. Eu--o oculo!

--Para vêr o resto de longe! considerou philosophicamente o Justino,
dando estalinhos nos dedos.

Recolhi á travessa da Palha. E durante horas, em chinelas, com os olhos
chammejantes, revolvi o desejo desesperado de ultrajar o cadaver da
titi--cuspindo-lhe sobre o carão livido, esfuracando com uma bengala a
podridão do seu ventre. Chamei contra ella todas as cóleras da Natureza.
Pedi ás arvores que recusassem sombra á sua sepultura! Pedi aos ventos
que sobre ella soprassem todos os lixos da terra! Invoquei o Demonio:
«Dou-te a minha alma se torturares incansavelmente a velha!» Gritei com
os braços para as alturas: «Deus, se tens um céo, escorraça-a de lá!»
Planeei quebrar a pedradas o mausoleu que lhe erguessem... E decidi
escrever communicados nos jornaes contando que ella se prostituia a um
gallego, todas as tardes, no sótão, d'oculos negros e em fralda!

Esfalfado de a odiar--adormeci densamente.

Foi o Pitta que me acordou, ao anoitecer, entrando com um longo
embrulho. Era o oculo. Mandava-m'o o Justino, com estas palavras amigas:
«Ahi vai a modesta herança!»

Accendi uma vela. Com aspera amargura tomei o oculo, abri a vidraça--e
_olhei por elle_, como da borda d'uma nau que vai perdida nas aguas.
Sim, muito sagazmente o affirmára Justino, a asquerosa Patrocinio
deixava-me o oculo com rancoroso sarcasmo--para _eu vêr através d'elle o
resto da herança_! E eu _via_, apesar da escura noite, nitidamente _via_
o Senhor dos Passos sumindo os maços de inscripções dentro da sua tunica
rôxa; o Casimiro tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas,
espalhadas sobre o seu leito; e o vilissimo Negrão, de casaco de cotim e
galochas, passeando regalado á beira d'agua, sob os olmos do _Mosteiro_!
E eu alli, com o oculo!

Eu alli para sempre, na travessa da Palha, possuindo na algibeira d'umas
calças com fundilhos setecentos e vinte--para me debater através da
cidade e da vida! Com um urro atirei o oculo, que foi rolando até junto
da chapeleira onde eu guardava o capacete de cortiça da minha jornada em
Terra Santa. Alli estavam, esse capacete e esse oculo, emblemas das
minhas duas existencias--a de esplendor e a de penuria! Havia mezes, com
aquelle capacete na nuca, eu era o triumphante Raposo, herdeiro da
snr.^a D. Patrocinio das Neves, remexendo ouro nas algibeiras, e
sentindo em torno, perfumadas e á espera de que eu as colhesse, todas as
flôres da Civilisação! E agora, com o oculo, eu era o pelintrissimo
Raposo de botas cambadas, sentindo em roda, negros e promptos a
ferirem-me, todos os cardos da Vida... E tudo isto, porque? Porque um
dia, na estalagem d'uma cidade da Asia, se tinham trocado dois embrulhos
de papel pardo!

Não houvera jámais zombaria igual da Sorte! A uma tia beata, que odiava
o amor como coisa suja e só esperava, para me deixar predios e pratas,
que eu, desdenhando saias, lhe rebuscasse em Jerusalem uma
reliquia--trazia a camisa de dormir d'uma luveira! E n'um impulso de
caridade, destinado a captivar o céo, atirava como pingue esmola a uma
pobre em farrapos, com o filho faminto chorando ao collo--um galho cheio
d'espinhos!... Oh Deus, dize-me tu! Dize-me tu, oh Demonio! como se fez,
como se fez esta troca de embrulhos--que é a tragedia da minha vida?

Elles eram semelhantes no papel, no formato, no nastro!... O da camisa
jazia no fundo escuro do guarda-fato; o da reliquia campeava sobre a
commoda, glorioso, entre dois castiçaes. E ninguem lhes tocára: nem o
jocundo Potte; nem o erudito Topsius; nem eu! Ninguém com mãos humanas,
mãos mortaes, ousára mover os dois embrulhos. Quem os movera então? Só
alguem, com mãos _invisiveis_!

Sim, havia alguem, incorporeo, todo poderoso--que por odio trocára
miraculosamente os espinhos em rendas, para que a titi me desherdasse e
eu fosse precipitado para sempre nas Profundas Sociaes!

E quando assim esbravejava, esguedelhado--encontrei frigidamente
cravados em mim e mais abertos, como gozando a derrota da minha vida, os
olhos claros do Christo crucificado, dentro do seu caixilho com
borlas...

--Foste tu! gritei, de repente illuminado e comprehendendo o prodigio.
Foste tu! Foste tu!

E, com os punhos fechados para elle, desafoguei fartamente os queixumes,
os aggravos do meu coração:

--Sim, foste tu, que transformaste ante os olhos devotos da titi a corôa
de dôr da tua Lenda--na camisa suja da Mary!... E porque? Que te fiz eu?
Deus ingrato e variavel! Onde, quando, gozaste tu devoção mais perfeita?
Não acudia eu todos os domingos, vestido de preto, a ouvir as missas
melhores que te offerta Lisboa? Não me atochava eu todas as
sextas-feiras, para te agradar, de bacalhau e de azeite? Não gastava eu
dias, no oratorio da titi, com os joelhos doridos, rosnando os terços da
tua predilecção? Em que cartilhas houve rezas que eu não decorasse para
ti? Em que jardins desabrocharam flôres com que eu não enfeitasse os
teus altares?

E arrebatado, arrepiando os cabellos, repuxando as barbas, eu clamava
ainda, tão perto da imagem que as baforadas da minha cólera lhe
embaciavam o vidro:

--Olha bem para mim!... Não te recordas de ter visto este rosto, estes
pêllos, ha seculos, n'um atrio de marmore, sob um velario, onde julgava
um Pretor de Roma? Talvez te não lembres! Tanto dista d'um Deus
victorioso sobre o seu andor a um Rabbi de provincia amarrado com
cordas!... Pois bem! N'esse dia de Nizam, em que não tinhas ainda
confortaveis lugares no céo e na bemaventurança a distribuir aos teus
fieis; n'esse dia, em que ainda te não tornáras para ninguem fonte de
riqueza e esteio de poder; n'esse dia, em que a titi, e todos os que
hoje se prostram a teus pés, te teriam apupado como os vendilhões do
Templo, os Phariseus e a populaça d'Acra; n'esse dia, em que os Soldados
que hoje te escoltam com charangas, os Magistrados que hoje encarceram
quem te desacate ou te renegue, os Proprietarios que hoje te
prodigalisam ouro e festas d'egreja--se teriam juntado com as suas armas
e os seus codigos e as suas bolsas, para obterem a tua morte como
revolucionario, inimigo da Ordem, terror da Propriedade: n'esse dia, em
que tu eras apenas uma Intelligencia creadora e uma Bondade activa, e
portanto considerado pelos homens sérios como um perigo social--houve em
Jerusalem um coração que espontaneamente, sem engodo no céo, nem terror
do inferno, estremeceu por ti. Foi o meu!... E agora persegues-me.
Porque?...

Subitamente, oh maravilha! do tosco caixilho com borlas irradiaram
tremulos raios, côr de neve e côr d'ouro. O vidro abriu-se ao meio com o
fragor faiscante de uma porta do céo. E de dentro o Christo no seu
madeiro, sem despregar os braços, deslisou para mim serenamente,
crescendo até ao estuque do tecto, mais bello em magestade e brilho que
o sol ao sahir dos montes.

Com um berro cahi sobre os joelhos; bati a fronte apavorada no soalho. E
então senti esparsamente pelo quarto, com um rumor manso de brisa entre
jasmins, uma Voz repousada e suave:

--Quando tu ias ao alto da Graça beijar no pé uma imagem--era para
contar servilmente á titi a piedade com que deras o beijo: porque jámais
houve oração nos teus labios, humildade no teu olhar--que não fosse para
que a titi ficasse agradada no seu fervor de beata. O Deus a que te
prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o céo para que teus braços
trementes se erguiam--o testamento da titi... Para lograres n'elle o
lugar melhor fingiste-te devoto sendo incredulo; casto sendo devasso;
caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a
rapacidade de herdeiro... Tu foste illimitadamente o _Hypocrita_! Tinhas
duas existencias: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de
rosarios, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente,
outra, toda de gula, cheia da Adelia e da Benta... Mentiste sempre:--e
só eras verdadeiro para o céo, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a
Jesus e á Virgem que rebentassem depressa a titi. Depois resumiste esse
laborioso dolo d'uma vida inteira n'um embrulho--onde accommodáras um
galho, tão falso como o teu coração; e com elle contavas empolgar
definitivamente as pratas e predios de D. Patrocinio! Mas n'outro
embrulho parecido trazias pela Palestina, com rendas e laços, a
irrecusavel evidencia do teu fingimento... Ora justiceiramente aconteceu
que o embrulho que offertaste á titi e que a titi abriu--foi aquelle que
lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Theodorico, a
_inutilidade da hypocrisia_.

Eu gemia sobre as táboas. A Voz susurrou, mais larga, como o vento da
tarde entre as ramas:

--Eu não sei quem fez essa troca dos teus embrulhos, picaresca e
terrivel; talvez ninguem; talvez tu mesmo! Os teus tedios de desherdado
não provêm d'essa mudança de espinhos em rendas:--mas de vivêres duas
vidas, uma verdadeira e de iniquidade, outra fingida e de santidade.
Desde que contradictoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do
lado esquerdo o obsceno Raposo--não poderias seguir muito tempo, junto
da titi, mostrando só o lado, vestido de casimiras de domingo, onde
resplandecia a virtude; um dia fatalmente chegaria em que ella,
espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as maculas do
vicio... E ahi está porque eu alludo, Theodorico, á _inutilidade da
hypocrisia_.

De rojo eu estendia abjectamente os labios para os pés do Christo,
transparentes, suspensos no ar, com prégos que despediam tremulas
radiancias de joia. E a Voz passou sobre mim, cheia e rumorosa, como a
rajada que curva os cyprestes:

--Tu dizes que eu te persigo! Não. O oculo, isso a que chamas Profundas
Sociaes, são obra das tuas mãos--não obra minha. Eu não construo os
episodios da tua vida; assisto a elles e julgo-os placidamente... Sem
que eu me mova, nem intervenha influencia sobrenatural--tu pódes ainda
descer a miserias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraisos da
terra e ser director d'um Banco... Isso depende meramente de ti, e do
teu esforço d'homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, ha pouco, se eu me
não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da
minha voz... Eu não sou Jesus de Nazareth, nem outro Deus creado pelos
homens... Sou anterior aos deuses transitorios: elles dentro em mim
nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim
se dissolvem: e eternamente permaneço em torno d'elles e superior a
elles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpetuo esforço de realisar
fóra de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciencia;
sou n'este instante a tua propria Consciencia reflectida fóra de ti, no
ar e na luz, e tomando ante teus olhos a fórma familiar, sob a qual, tu
mal educado e pouco philosophico, estás habituado a comprehender-me...
Mas basta que te ergas e me fites, para que esta imagem resplandecente
de todo se desvaneça.

E ainda eu não levantára os olhos--já tudo desapparecera!

Então, transportado como perante uma evidencia do Sobrenatural, atirei
as mãos ao céo e bradei:

--Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e
padeceste por nós...

Mas emmudeci... Aquella ineffavel Voz resoava ainda em minha alma,
mostrando-me a inutilidade da hypocrisia. Consultei a minha consciencia,
que reentrára dentro de mim--e bem certo de não acreditar que Jesus
fosse filho de Deus e d'uma mulher casada de Galilêa (como Hercules era
filho de Jupiter e d'uma mulher casada da Argolida)--cuspi dos meus
labios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inutil da oração.

       *       *       *       *       *

Ao outro dia, casualmente, entrei no jardim de S. Pedro
d'Alcantara--sitio que não pizára desde os meus annos de latim. E mal
dera alguns passos, entre os canteiros, encontrei o meu antigo Chrispim,
filho de Telles Chrispim & C.^a, com fabrica de fiação á
Pampulha--camarada que não avistára desde o meu grau de bacharel. Era
este o louro Chrispim, que outr'ora no collegio dos Isidoros me dava
beijos vorazes no corredor, e me escrevia á noite bilhetinhos
promettendo-me caixas com pennas d'aço. Chrispim velho morrera: Telles,
rico e obeso, passára a Visconde de S. Telles: e este meu Chrispim agora
era a Firma.

Trocado um ruidoso abraço, Chrispim & C.^a notou pensativamente que eu
estava «muitissimo feio.» Depois invejou a minha jornada á Terra Santa
(que elle soubera pelo _Jornal das Novidades_) e alludiu, com amigavel
regosijo, á «grossa maquia que me devia ter deixado a snr.^a D.
Patrocinio das Neves...»

Amargamente mostrei-lhe as minhas botas cambadas. Parámos n'um banco,
junto d'uma trepadeira de rosas; e ahi, no silencio e no perfume, narrei
a camisa funesta da Mary, a Reliquia no seu embrulho, o desastre no
Oratorio, o oculo, o meu quarto miseravel na travessa da Palha...

--De modo, Chrispimzinho da minh'alma, que aqui me encontro sem pão!

Chrispim & C.^a, impressionado, torcendo os bigodes louros, murmurou que
em Portugal, graças á Carta e á Religião, todo o mundo tinha uma fatia
de pão: o que a alguns faltava era o queijo.

--Ora o queijo dou-t'o eu, meu velho! ajuntou alegremente a Firma,
atirando-me uma palmada ao joelho. Um dos empregados do escriptorio lá
na Pampulha começou a fazer versos, a metter-se com actrizes... E muito
republicano, achincalhando as coisas santas... Emfim, um horror,
desembaracei-me d'elle! Ora tu tinhas boa letra. Uma conta de sommar
sempre saberás fazer... Lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e
cinco mil reis, sempre é o queijo!...

Com duas lagrimas a tremerem-me nas pestanas abracei a Firma. Chrispim e
C.^a murmurou outra vez, com uma careta de quem, sente um gosto azêdo:

--Irra! que estás muitissimo feio!

Comecei então a servir com desvelo a fabrica de fiação á Pampulha: e
todos os dias á carteira, com mangas de lustrina, copiava cartas na
minha letra de bellas curvas e alinhava algarismos n'um vasto _Livro de
Caixa_... A Firma ensinára-me a «regra de tres», e outras habilidades.
E, como de sementes trazidas por um vento casual a um torrão
desaproveitado, rompem inesperadamente plantas uteis que prosperam--das
lições da Firma brotaram, na minha inculta natureza de bacharel em leis,
aptidões consideraveis para o negocio da fiação. Já a Firma dizia,
compenetrada, na Assembléa do Carmo:

--Lá o meu Raposo, apesar de Coimbra e dos compendios que lhe metteram
no caco, tem dedo para as coisas sérias!

Ora n'um sabbado d'agosto, á tarde, quando eu ia fechar o _Livro de
Caixa_, Chrispim & C.^a parou diante da minha carteira, risonho e
accendendo o charuto:

--Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir?

Silenciosamente, tirei a minha manga de lustrina.

--Eu pergunto isto, ajuntou logo a Firma, porque ámanhã vou com minha
irmã á Outra Banda, a uma quinta nossa, á _Ribeira_. Ora se tu não estás
muito apegado a outra missa, vinhas á de Santos, ás nove, iamos almoçar
ao _Hotel Central_, e embarcavamos de lá para Cacilhas. Estou com
vontade que conheças minha irmã!...

Chrispim & C.^a era um cavalheiro religioso que considerava a Religião
indispensavel á sua saude, á sua prosperidade commercial, e á boa ordem
do paiz. Visitava com sinceridade o Senhor dos Passos da Graça, e
pertencia á Irmandade de S. José. O empregado, cuja carteira eu
occupava, tornára-se-lhe sobretudo intoleravel por escrever no _Futuro_,
gazeta republicana, folhetins louvando Renan e ultrajando a Eucharistia.
Eu ia dizer a Chrispim & C.^a que estava tão apegado á missa da
Conceição Nova, que outra não me podia saber bem... Mas lembrei a Voz
austera e salutar da travessa da Palha! Recalquei a mentira beata que já
me sujava os labios--e disse, muito pallido e muito firme:

--Olha, Chrispim, eu nunca vou á missa... Tudo isso são patranhas... Eu
não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos n'um
pedaço d'hostia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca teve... Tudo
isso são idolatrias, são carolices... Digo-te isto rasgadamente... Pódes
fazer agora commigo o que quizeres. Paciencia!

A Firma considerou-me um momento mordendo o beiço:

--Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gósto de gente
lisa... O outro velhaco, que estava ahi a essa carteira, diante de mim
dizia: «Grande homem, o Papa!» E depois ia para os botequins e punha o
Santo Padre de rastos... Pois acabou-se! Não tens religião, mas tens
cavalheirismo... Em todo o caso, ás dez no _Central_ para o almocinho, e
á vela depois para a _Ribeira_!

Assim eu conheci a irmã da Firma. Chamava-se D. Jesuina, tinha trinta e
dois annos e era zarôlha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a
riqueza dos seus cabellos ruivos como os d'Eva, o seu peito solido e
succulento, a sua pelle côr de maçã madura, o riso são dos seus dentes
claros--tornavam-me pensativo, quando á tardinha, com o meu charuto, eu
recolhia á Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das falúas...

Fôra educada nas Selesias: sabia Geographia e todos os rios da China,
sabia Historia e todos os reis de França; e chamava-me
Theodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido á Palestina. Aos domingos
agora eu jantava na Pampulha: D. Jesuina fazia um prato d'ovos
queimados: e o seu olho vesgo pousava, com incessante agrado, na minha
face potente e barbuda de Raposão. Uma tarde ao café, Chrispim & C.^a
louvou a Familia Real, a sua moderação constitucional, a graça caridosa
da Rainha. Depois descemos ao jardim: e andando D. Jesuina a regar, e eu
ao lado enrolando um cigarro, suspirei e murmurei junto ao seu
hombro:--«V. exc.^a, D. Jesuina, é que estava a calhar para Rainha, se
cá o Raposinho fosse Rei!» Ella, córando, deu-me a ultima rosa do verão.

Em vesperas de Natal, Chrispim & C.^a chegou á minha carteira, pousou
galhofeiramente o chapéo sobre a pagina do _Livro de Caixa_ que eu
ennegrecia de cifras, e cruzando os braços, com um riso de lealdade e
estima:

--Então com que, Rainha, se o Raposinho fosse Rei...? Ora diga lá o snr.
Raposo. Ha ahi dentro d'esse peito amor verdadeiro á mana Jesuina?

Chrispim & C.^a admirava a paixão e o ideal. Eu ia já dizer que adorava
a snr.^a D. Jesuina como a uma estrella remota... Mas recordei a Voz
altiva e pura da travessa da Palha! Recalquei a mentira sentimental que
já me enlanguecia o labio--e disse corajosamente:

--Amor, amor, não... Mas acho-a um bello mulherão: gosto-lhe muito do
dote; e havia de ser um bom marido.

--Dá cá essa mão honrada! gritou a Firma.

       *       *       *       *       *

Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a
commenda de Christo. E o Dr. Margaride, que janta commigo todos os
domingos de casaca, affirma que o Estado, pela minha illustração, as
minhas consideraveis viagens e o meu patriotismo--me deve o titulo de
Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o _Mosteiro_. O digno Magistrado
uma tarde, á mesa, annunciou que o horrendo Negrão, desejando arredondar
as suas propriedades em Torres, decidira vender o velho solar dos condes
de Landoso.

--Ora aquellas arvores, Theodorico--lembrou o benemerito homem--deram
sombra á senhora sua mamã. Direi mais: as mesmas sombras cobriram seu
respeitabilissimo pai, Theodorico!... Eu por mim, se tivesse a honra de
ser um Raposo, não me continha, comprava o _Mosteiro_, erguia lá um
torreão com ameias!

Chrispim & C.^a disse, pousando o copo:

--Compra, é coisa de familia, fica-te bem.

E, n'uma vespera de Paschoa, assignei no cartorio do Justino, com o
procurador do Negrão, a escriptura que me tornava emfim, depois de
tantas esperanças e de tantos desalentos, o senhor do _Mosteiro_!

--Que faz agora esse maroto d'esse Negrão? indaguei eu do bom Justino,
apenas sahiu o agente do sordido sacerdote.

O dilecto e fiel amigo deu estalinhos nos dedos. O Negrão pechinchava!
Herdára tudo do padre Casimiro, que lá tinha o seu corpo no alto de S.
João e a sua alma no seio de Deus. E agora era o intimo do padre
Pinheiro que não tinha herdeiros, e que elle levára para Torres, «para o
curar». O pobre Pinheiro lá andava, mais chupado, empanturrando-se com
os tremendos jantares do Negrão, deitando a lingua de fóra diante de
cada espelho. E não durava, coitado! De sorte que o Negrão vinha a
reunir (com excepção do que fôra para o Senhor dos Passos, que não podia
tornar a morrer, esse!) o melhor da fortuna de G. Godinho.

Eu rosnei, pallido:

--Que besta!

--Chame-lhe besta, amiguinho!... Tem carruagem, tem casa em Lisboa,
tomou a Adelia por conta...

--Que Adelia?

--Uma de boas carnes, que esteve com o Eleuterio... Depois esteve muito
era segredo com um basbaque, um bacharel, não sei quem...

--Sei eu.

--Pois essa! Tem-n'a por conta o Negrão, com luxo, tapete na escada,
cortinas de damasco, tudo... E está mais gordo. Vi-o hontem, vinha de
prégar... Pelo menos disse-me que «sahia de S. Roque esfalfado de dizer
amabilidades a um diabo d'um Santo!» Que o Negrão ás vezes é engraçado.
E tem bons amigos, lábia, influencia em Torres... Ainda o vemos Bispo!

Recolhi á minha familia, pensativo. Tudo o que eu esperára e amára (até
á Adelia!) o possuia agora legitimamente o horrendo Negrão!... Perda
pavorosa! E que não proviera da troca dos meus embrulhos, nem dos erros
da minha hyprocrisia.

Agora, pai, commendador, proprietario, eu tinha uma comprehensão mais
positiva da vida: e sentia bem que fôra esbulhado dos contos de G.
Godinho simplesmente por me ter faltado no Oratorio da titi--a coragem
d'affirmar!

Sim! quando em vez d'uma Corôa de Martyrio apparecera, sobre o altar da
titi, uma camisa de peccado--eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis
ahi a Reliquia! Quiz fazer a surpreza... Não é a Corôa de Espinhos. É
melhor! É a camisa de Santa Maria Magdalena!... Deu-m'a ella no
Deserto!...»

E logo o provava com esse papel, escripto em letra perfeita: _Ao meu
portuguezinho valente, pelo muito que gozámos_... Era essa a carta em
que a Santa me offertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas
iniciaes--_M. M._! Lá destacava essa clara, evidente confissão--«_o
muito que gozámos_»: o muito que eu gozára em mandar á Santa as minhas
orações para o céo, o muito que a Santa gozára no céo em receber as
minhas orações!

E quem o duvidaria? Não mostram os santos Missionarios de Braga, nos
seus sermões, bilhetes remettidos do céo pela Virgem Maria, sem sêllo? E
não garante a _Nação_ a divina authenticidade d'essas missivas, que têm
nas dobras a fragrancia do paraiso? Os dois sacerdotes, Negrão e
Pinheiro, conscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de
procurar esteios para a Fé oscillante--acclamariam logo na camisa, na
carta e nas iniciaes, um miraculoso triumpho da Egreja! A tia Patrocinio
cahiria sobre o meu peito, chamando-me «seu filho e seu herdeiro.» E
eis-me rico! Eis-me beatificado! O meu retrato seria pendurado na
sacristia da Sé. O Papa enviar-me-hia uma Benção Apostolica, pelos fios
do telegrapho.

Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociaes. E quem sabe? Bem
poderiam ficar tambem satisfeitas as ambições intellectuaes que me
pegára o douto Topsius. Porque talvez a Sciencia, invejosa do triumpho
da Fé, reclamasse para si esta camisa de Maria de Magdala como documento
archeologico... Ella poderia alumiar escuros pontos na Historia dos
Costumes contemporaneos do Novo Testamento--o feitio das camisas na
Judêa no primeiro seculo, o estado industrial das rendas da Syria sob a
administração Romana, a maneira de abainhar entre as raças semiticas...
Eu surgiria, na consideração da Europa, igual aos Champollions, aos
Topsius, aos Lepsius, e outros sagazes resuscitadores de Passado. A
Academia logo gritaria--«A mim, o Raposo!» Renan, esse heresiarcha
sentimental, murmuraria--«Que suave collega, o Raposo!» Sem demora se
escreveriam sobre a camisa da Mary sabios, ponderosos livros em allemão,
com mappas da minha romagem em Galilêa... E eis-me ahi bemquisto pela
Egreja, celebrado pelas Universidades, com o meu cantinho certo na
Bemaventurança, a minha pagina retida na Historia, começando a engordar
pacificamente dentro dos contos de G. Godinho!

E tudo isto perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou
esse _descarado heroismo d'affirmar_, que, batendo na Terra com pé
forte, ou pallidamente elevando os olhos ao Céo--cria através da
universal illusão, Sciencias e Religiões.



Porto: 1887--Typ. de A. J. da Silva Teixeira

_70, Rua da Cancella Velha, 70_





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