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Title: Raios de extincta luz - poesias ineditas (1859-1863) Author: Quental, Antero Tarquínio de, 1842-1891 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Raios de extincta luz - poesias ineditas (1859-1863)" *** produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) _ANTHERO DE QUENTAL_ RAIOS DE EXTINCTA LUZ POESIAS INEDITAS (1859-1863) COM OUTRAS PELA PRIMEIRA VEZ COLLIGIDAS PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO POR THEOPHILO BRAGA LISBOA *M. GOMES, Livreiro-Editor* 70, _Rua Garrett_, 72 1892 RAIOS DE EXTINCTA LUZ _TIRAGEM ESPECIAL_ _D'esta edição tirarem-se_: 4 Exemplares em papel das manufacturas imperiaes do Japão, numerados de 1 a 4. 16 Exemplares em papel Whatman, numerados de 5 a 20. ANTHERO DE QUENTAL RAIOS DE EXTINCTA LUZ POESIAS INEDITAS (1859-1863) com outras pela primeira vez colligidas PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO POR THEOPHILO BRAGA LISBOA *M. GOMES, Livreiro-Editor* 70, _Rua Garrett, 72_ 1892 A Wilhelm Storck, Oliveira Martins Eça de Queiroz, Alberto Sampaio, Jayme Batalha Reis Luiz de Magalhães, Joaquim de Araujo João de Deus D. Carolina Michaelis de Vasconcellos Santos Valente, Alberto Telles Antonio de Azevedo Castello Branco, José Ben Saude F. Machado de Faria e Maia José Falcão, Manuel de Arriaga Anselmo de Andrade, Manuel Duarte de Almeida etc., etc. _a todos os que amaram e admiraram Anthero_ _C._ EXPLICAÇÃO PRÉVIA A publicação d'este livro é um phenomeno litterario de alta importancia. Compõe-se de uma collecção de _Poesias ineditas_ de Anthero de Quental, na primeira phase artistica, de 1859 a 1863, quando o seu ideal era ainda religioso, romantico e espiritualista. Phase ignorada do publico, acha-se descripta pelo poeta na sua Autobiographia, quando allude á «educação catholica e tradicional de um espirito naturalmente religioso, nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra conhecida.» Ao dar á publicidade o livro revolucionario as _Odes modernas_, em 1865, accentuada poesia de combate, Anthero rasgou todas as composições anteriores, para que não ficassem vestigios d'esse periodo contemplativo. Dera então o maximo relêvo á «revolução moral e intellectual», como o facto mais importante da sua vida, segundo confessa na Autobiographia. Truncando as suas origens artisticas, apagava uma pagina psychologica, tão cheia de verdade e naturalidade, que a critica nunca poderia reconstruir. Por uma casualidade feliz um companheiro de Anthero de Quental, que por esse tempo frequentava a faculdade de medicina, copiára todas as poesias romanticas: chamava-se Eduardo Xavier de Oliveira Barros Leite, fallecido prematuramente em 1872. Por um enlace de familia, obtive por occasião da sua morte o caderno das poesias que copiára, e que o proprio auctor, que lhe sobreviveu vinte annos, mal suspeitava terem sido conservadas. Guardei-as pois, como um valioso documento, onde estavam os primeiros germens do talento poetico de Anthero de Quental; publicando-as depois da sua morte desgraçada, restituimos-lhe á vida subjectiva uma pagina luminosa e sympathica que faltava á sua obra e á litteratura portugueza. O titulo do livro, _Raios de extincta Luz_, tem a significação do seu apparecimento posthumo, e o valor de exprimir um presentimento do poeta, ao começar com este hemistychio a invocação escripta em 1860 para uma colleccionação projectada. Para completar este monumento, fizemos pesquizas por albuns particulares, onde ainda encontrámos primorosos ineditos. Ao dr. José Bernardino agradecemos a contribuição valiosa com que enriqueceu este livro; e a Joaquim de Araujo os excerptos ineditos da traducção do _Fausto_ e outras composições dispersas, que Anthero reservava para incluir em uma futura edição das _Odes modernas_ e das _Primaveras romanticas_. Manda o dever moral que se reconheça a cooperação do activo e intelligente livreiro-editor Manuel Gomes, que ligou a sua iniciativa á publicação das poesias ignoradas do excelso poeta. Incorporando-as n'este volume, aqui ficam reunidas a primeira e a ultima maneira artistica de Anthero de Quental, podendo agora ser julgada de um modo definitivo a sua obra poetica completa. ANTHERO DE QUENTAL ESCORSO BIOGRAPHICO Bem conhecida é esta alta individualidade, que se manifestou entre a moderna geração com um extraordinario temperamento de luctador, e que de repente caíu em uma apathia invencivel, em um desalento moral progressivo, em uma decadencia physica precoce, e por ultimo no desespero, que em 11 de setembro de 1891 determinou o suicidio. Quando em tão breve espaço vemos essas bellas organisações litterarias, como Camillo Castello Branco, Julio Cesar Machado e Anthero de Quental truncarem a sua carreira pelo suicidio, não pode deixar de explicar-se essa fatalidade pela nevrose que n'elles era o estimulo do seu talento e o motor das suas desgraças. E essa mesma nevrose, que se manifestava brilhantemente pela invenção imaginosa, pela graça delicada ou pela inspiração poetica, nunca lhes deixára adquirir uma disciplina mental que os levasse á analyse de si mesmos, nem uma subordinação moral que os fortificasse contra o seu espontaneo pessimismo. A critica da acção litteraria de Anthero de Quental está implicita n'esta caracteristica do seu organismo. Anthero de Quental nasceu na Ilha de S. Miguel em 1842, em uma familia de morgados; n'aquella pequena ilha a falta de cruzamentos nas familias aristocraticas tem determinado uma terrivel degenerescencia, que se manifesta pela idiotia e pela loucura. Na familia de Anthero de Quental existem casos d'esta terrivel _tare hereditaire_. A frequencia na Universidade de Coimbra, desorientadora para as mais fortes organisações, não deixou de actuar profundamente no espirito de Anthero de Quental, lançando-o em uma dissolvente anarchia mental pelos habitos das arruaças escolares e pelas leituras radicalistas que o levavam a uma grande sobreexcitação. Foi n'esta crise da adolescencia que em Anthero de Quental desabrochou o talento poetico e a paixão revolucionaria, que deu origem a uma liga de espiritos emancipados de todo o supernaturalismo e de toda a auctoridade temporal, que se denominou a _Sociedade do Raio_. Este titulo provinha das imprecações que lançavam ao espaço em occasião de trovoadas, provocando o raio para que os fulminasse, como expressão de uma vontade individual no universo. As perseguições contra a Polonia e as luctas pela libertação e unificação da Italia, tambem acordaram o interesse de Anthero para as questões politicas. As suas leituras favoritas eram os livros de Proudhon, de Feuerbach, de Quinet e Michelet, e isso rapidamente, vivendo em uma atmosphera de discussão permanente, de uma dialectica de sophismas, aggravada por uma irregularidade de vida, que veiu mais tarde a determinar a doença que o embaraçou na sua actividade. Anthero de Quental vivia entre um grupo de estudantes que o divinisára, considerando-o como um apostolo, um iniciador da humanidade. E elle proprio chegou a acreditar n'aquella missão, e passados annos, em uma carta autobiographica, definia-se como o porta-estandarte das idéas modernas em Portugal. N'este periodo da vida de Anthero era elle dominado por um condiscipulo natural de Penafiel, chamado Germano Vieira de Meyrelles, a quem dedicou a primeira edição das _Odes modernas_. Este Germano Meyrelles era um typo rachytico e aleijado, dotado de um sarcasmo maligno, resultado da sua imperfeição physica; exerceu no espirito de Anthero uma acção corrosiva, privando-o de todos os enthusiasmos, e levando-o quasi á apathia mental. Quando Germano Meyrelles morreu miseravelmente, deixando duas crianças filhas naturaes, Anthero tomou conta d'ellas e educou-as em sua companhia, deixando-lhes o remanescente da sua herança. O talento de Anthero revelou-se pela poesia no jornal _O Academico_; em 1861, levado pela admiração do lyrismo de João de Deus, cultivou a fórma do Soneto, que estava longe ainda da belleza que attingiu na sua ultima phase pessimista. As idéas politicas revolucionarias e negativistas de que se deixára possuir determinaram a primeira alteração nas suas concepções poeticas. Em 1865 publicou em Coimbra a collecção de poesias d'esta phase revolucionaria com o titulo de _Odes modernas_; mas os productos da sua actividade poetica, transição para as _Odes modernas_ e _Sonetos_, são totalmente desconhecidos, porque Anthero de Quental rasgou todas as composições que não se harmonisavam com o seu novo ideal revolucionario. Um dos adoradores de Anthero de Quental, que o acompanhava nas tropelias nocturnas, e que tambem morreu doido em 1872, Eduardo Xavier, colligira em volume essas poesias da phase romantica; é essa collecção que possuiamos que hoje publicamos, da existencia da qual o proprio Anthero nem suspeitava. A crise moral de Anthero começou propriamente em 1865, quando se achou sósinho em Coimbra; o curso juridico a que elle pertencia acabára a formatura em 1863; Anthero teve de repetir um anno, e ao terminar a formatura em 1864, achou-se sem estimulos que o obrigassem a saír de Coimbra. Vivia então solitario, meditabundo, desenfadando-se em digressões nocturnas. Foi n'esse anno de 1865, que irrompeu a celebre _Questão de Coimbra_; eu é que o estimulei a saír á estacada, dando réplica ás insidias de Castilho. Anthero publicou n'esse anno a carta _Bom senso e bom gosto_, que o revelara ao paiz um polemista ardente, um estylista vigoroso, um espirito possuido de uma alta inspiração. Anthero de Quental contrahira perante o paiz e a geração moderna o compromisso de pôr em obra essas generosas aspirações. De dia a dia tornava-se mais reparavel o seu silencio, mais censuravel a falta de actividade litteraria. Anthero soffria um profundo mal estar, que o não deixava entregar-se ao remanso do estudo; saíu de Coimbra para ir viver em Penafiel com o seu amigo Germano; depois foi para Guimarães para ao pé de Alberto Sampaio; foi para o Algarve para o seu amigo Negrão; foi á America, a Pariz, aos Açores, e por ultimo fixara-se mais algum tempo em Villa do Conde. Não estava bem em parte alguma. Os trabalhos litterarios não o seduziam; em Lisboa achou-se com José Fontana, que se aproveitou do seu perstigio moral para a organisação do partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queiroz, Jayme Batalha Reis, inaugurou em 1871 as _Conferencias democraticas_ do Casino, mandadas encerrar pelo ministro marquez d'Avila. N'estes dous actos Anthero foi impellido, caindo outra vez na apathia de onde nunca mais saiu, promettendo apezar de tudo vir a publicar um _Programma para os trabalhos da Geração moderna_. Por occasião da encyclica de Pio IX proclamando o Syllabus, e por occasião da revolução de Hespanha em 1868, Anthero de Quental publicou dous opusculos, mais para mostrar as suas aptidões de folliculario do que a vista clara e o seguro juizo dos acontecimentos. A sua doença moral tornava-se uma lesão physica, accentuando-se a sua doença nervosa em 1874. Na impossibilidade de toda a ordem de trabalho, mas carecendo de occupar a imaginação no meio dos seus soffrimentos, Anthero de Quental ia dia a dia burilando um ou outro soneto, em que dava expressão ao estado moral em que se achava; os amigos foram colligindo estes sonetos, vindo ao fim de algum tempo Oliveira Martins a formar um precioso volume de que elle mesmo foi o editor carinhoso. Fez a esse livro uma introduccão vaga sobre intenções buddhicas e intuições nirvânicas, mas não nos deu a nota viva do poeta. Os _Sonetos_ de Anthero produziram uma forte impressão, não só pela profundidade dos sentimentos como principalmente pela perfeição esmeradissima da fórma; porque os versos das _Odes modernas_, na expressão das paixões revolucionarias, eram pouco plasticos, e revelavam mais o philosopho do que o artista. Nos _Sonetos_ Anthero transfigurara-se. O Dr. Storck, que acabava de traduzir em bellos versos para a lingua allemã a obra completa de Camões, ao receber um exemplar dos _Sonetos_ de Anthero fez a alta consagração de os traduzir para essa lingua eminentemente philosophica. Para acompanhar a sua traducção pediu o Dr. Storck a Anthero algumas notas biographicas; em carta de 14 de Maio de 1887 escreveu o poeta uma especie de Autobiographia que vem junto dos _Sonetos_. É um documento importante, não pelos dados biographicos, que são vagos e exagerados, mas pelo alcance psychologico, porque pelas phrases com que Anthero se glorifica dando-se como o estylísta dotado com o _dom da prosa portugueza_ e o _porta-estandarte das ideias_ em Portugal, vê-se que obedecia a uma certa vesania mental, que lhe motivava fundas decepções e terriveis desalentos. N'esta phase de espirito, Anthero caiu debaixo da influencia de Oliveira Martins, que não foi mais saudavel do que a de Germano Meyrelles. Oliveira Martins tinha sido um dos seus collaboradores na organisação democratica e socialista em Lisboa, quando publicava a _Republica_ e o _Pensamento social_; mas um dia abandona o seu ideal, e filia-se em um esgotado partido monarchico a que pretendeu ir levar vida nova. Foi esta apostasia uma desillusão para Anthero; soffreu-a calladamente, pedindo aos amigos que lhe não fallassem n'isso. Vivia então em absoluto isolamento em Villa do Conde, onde era visitado como um pontifice. Em Janeiro de 1890 deu-se o facto brutal do _Ultimatum_ do governo inglez sobre a questão africana; da natural reacção do sentimento nacional contra este acto de selvagismo diplomatico, nasceu no Porto o movimento de agremiação da _Liga patriotica do Norte_. Para dar aos espiritos uma certa unificação moral, lembraram-se do nome de Anthero de Quental; foram buscal-o a villa do Conde, e conseguiram interessal-o pelo movimento nacional. Prezidiu a alguns comicios e a sessões preparatorias da _Liga patriotica do Norte_; mas o poeta não conhecia a mechanica das assembléas parlamentares, foi facilmente envolvido por todos aquelles que procuravam desnaturar um movimento tão saudavel, e por fim quando a _Liga patriotica_ se dissolveu com o mais escandaloso fiasco, Anthero de Quental retirou-se á sua impotencia, ferido com um desalento mortal. A data do seu testamento em 9 de setembro de 1890 revela que elle já pensava em acabar com a existencia. A dissolução dos caracteres dos seus contemporaneos de Coimbra mais o desalentava; partira para a ilha de S. Miguel em Julho de 1891, e a falta de interesse e o tedio de aquella solidão augmentada pela mesquinhez da vida de Ponta Delgada, determinou a fatal resolução de 11 de setembro, em que se suicidou com dous tiros de rewolver na bocca. Foi uma existencia verdadeiramente desgraçada; não se revelou com a pujança que possuia. Herdeiro de uma terrivel nevrose, não teve a ventura de deparar uma doutrina moral, uma philosophia que lhe fortificasse o espirito; pelo contrario, as suas leituras de Schopenhauer, e a cultura do ideal pessimista em que se enlevava artisticamente, incutiram no seu espirito a ideia do suicidio que involuntariamente se tornou effectiva. A sua obra é mais um documento psychologico do que um producto esthetico; e n'este sentido será estudada e confrontada com a de outros genios egualmente desgraçados. CARTA AUTOBIOGRAPHICA *DIRIGIDA AO PROFESSOR WILHELM STORCK* Traductor dos _Sonetos completos_ Ponta Delgada (ilha de S. Miguel, Açores), 14 de maio de 1887. Ex.^{mo} Snr. Só agora me chegou ás mãos a sua estimada carta de 23 de abril ultimo, pelo facto de me encontrar, ha dois mezes, n'esta ilha (que é a minha patria) trazido aqui por urgentes negocios de familia. A demora das communicações com o continente explica este atrazo. Agradeço a v. ex.^a as amaveis e para mim tão honrosas expressões de sua carta, e nada me póde ser, como poeta e como homem, mais grato do que o apreço que um tal mestre e critico manifesta pelas minhas composições, ao ponto de querer ser meu interprete e introductor junto do publico o mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente. Discipulo da Allemanha philosophica e poetica, oxalá que ella receba com benignidade essas pobres flôres, que uma semente sua, trazida pelo vento do seculo, faz desabrochar n'este solo pouco preparado. Qualquer que seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espirito, que generosamente me toma pela mão, para me apresentar. As informações biographicas e bibliographicas que v. ex.^a me pede, podem reduzir-se ao seguinte: nasci n'esta ilha de S. Miguel, descendente de uma das mais antigas familias dos seus colonisadores, em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 annos. Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ella bacharel formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aquelles annos, tendo sido e ficando um insignificante legista. O facto importante da minha vida, durante aquelles annos, e provavelmente o mais decisivo d'ella, foi a especie de revolução intellectual e moral que em mim se deu, ao sahir, pobre creança arrancada do viver quasi patriarchal de uma provincia remota e immersa no seu placido somno historico, para o meio da irrespeitosa agitação intellectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espirito moderno. Varrida n'um instante toda a minha educação catholica e tradicional, cahi n'um estado de duvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espirito naturalmente religioso, tinha nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrivel de espirito, partilhado mais ou menos por quasi todos os da minha geração, a primeira em Portugal que sahiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição. Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas proprias da primeira mocidade, a turbulencia e a petulancia, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciencia e methodo, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos 18 annos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia. No meio das cahoticas leituras a que então me entregava, devorando com egual voracidade romances e livros de sciencias naturaes, poetas e publicistas e até theologos, a leitura do _Fausto_ de Goethe (na traducção franceza de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a nova philosophia allemã exerceram todavia sobre o meu espirito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o _Germanismo_; e, se entre os francezes, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi sem duvida por serem estes dois os que mais se resentem do espirito de Alem-Rheno. Li depois muito de Hegel, nas traducções francezas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi allemão); não sei se o entendi bem, nem a indepencia do meu espirito me consentia ser discipulo: mas é certo que me seduziam as tendencias grandiosas d'aquella estupenda synthese. Em todo o caso o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações philosophicas, e posso dizer que foi dentro d'elle que se deu a minha evolução intellectual. Como accommodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mysterios da incoherencia da mocidade! O que é certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do que solida, desci confiado para a arêna: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo! Consummi muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornaes, em folhetos, em proclamações, em conferencias revolucionarias: ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Iberica, fundava com a outra mão sociedades operarias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns 7 ou 8 annos uma especie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã popularidade. Do que publiquei por esse tempo, ahi vae o que ainda posso lembrar. O meu primeiro folheto é do anno de 1864. Intitula-se: _Defeza da Carta Encyclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal_. É um protesto contra a falta de logica com que as folhas liberaes atacavam o _Syllabus_, declarando-se ao mesmo tempo fieis catholicos. O auctor, glorificando o Pontífice pela belleza da sua altitude intransigente em face do seculo, via n'essa intransigencia uma lei historica, resava respeitosamente um _De profundis_ sobre a egreja condemnada pela mesma grandeza da sua instituição a cahir inteira mas não a render-se, e atacava a hypocrisia dos jornaes liberaes. O meu ultimo folheto é de 1871. Intitula-se: _Carta ao ex.^{mo} marquez de Avila e Bolama, sobre a Portaria que mandou fechar as Conferencias do Casino lisbonense_. As Conferencias Democraticas tinham sido fundadas por mim com o concurso de homens moços (que quasi todos têm hoje nome na politica) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operaria. Pareceram perigosas ao governo, que arbitrariamente as mandou fechar. O meu folheto parece que concorreu, segundo se disse, para a queda do ministerio, que, de resto, não podia durar muito, sendo dos chamados de transição. É uma diatribe, mas eloquente. Entre esses dous extremos, colloca-se a famosa _Questão Litteraria_ ou a _Questão de Coimbra_, que durante mais de 6 mezes agitou o nosso pequeno mundo litterario, e foi o ponto de partida da actual evolução da litteratura portugueza. Os _novos_ datam todos de então. O Hegeltanismo dos Coimbrões fez explosão. O velho Castilho, o Arcade posthumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra o sua chefatura anachronica. Houve em tudo isto muita irreverencia e muito excesso; mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituido de idéa, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direcção, a _orientar-se_ como depois se disse, nas correntes do espirito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação intellectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não comprehendia, julgou poder supprimil-a com processos de velho pedagogo. _Inde irae_. Rompi eu o fogo com o folheto _Bom senso e Bom gosto, carta ao ex.^{mo} A. F. de Castilho_. Seguiu-se Theophilo Braga, seguiram-se depois muitos outros, _la melée devint génerale_. Todo o inverno de 1865 a 66 se passou n'este batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos Academicos, que já não eram catholicos nem monarchicos, que fallavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham fallado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes barbaros e sciencias desconhecidas, como glottica, philologia etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulancia e irreverencia, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa fé e que, em summa, havia a esperar d'elles alguma cousa, _quando assentassem_. Os factos confirmaram esta impressão: os 10 ou 12 primeiros nomes da litteratura de hoje sahiram todos (salvos 2 ou 3) da Escola Coimbrã ou da influencia d'ella. O Germanismo tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova éra para o pensamento portuguez. O velho Portugal ainda conservado artificialmente por uma litteratura de convenção morrera definitivamente. D'esta especie de revolução fui eu o porta estandarte, com o que me não desvaneço sobre maneira, mas tambem não me arrependo. Se a uma ordem artificial se seguia uma especie de anarchia, é isso ainda assim preferivel, porque uma contem germens de vida, e da outra nada havia a esperar. Pertence ainda a essa epoca o folheto: _Dignidade das Lettras e Litteraturas officiaes_. Durante o anno de 1867 e parte de 68 viajei em França e Hespanha e visitei os Estados Unidos da America. No fim d'esse anno de 68 publiquei o folheto: _Portugal perante a Revolução de Hespanha_. Advogava ahi a União Iberica por meio da Republica Federal, então representada em Hespanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Côrtes Constituintes. Era uma grande illusão, da qual porém só desisti (como de muitas outras d'esse tempo) á força de golpes brutaes e repetidos da experiencia. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas cousas da sociedade! O meu _Discurso sobre as causas da decadencia dos Povos peninsulares nos seculos XVII e XVIII_, embora pizasse um terreno mais solido, o terreno da historia, resente-se ainda muito da influencia das ideias politicas preconcebidas, da critica historica com _tendencias_. É do anno de 1871. N'esse anno e no seguinte tomei parte activa no movimento socialista, que se iniciava em Lisboa, e tanto n'essa cidade como no Porto escrevi bastante nos jornaes politicos. Incidentemente publiquei n'um pequeno volume, uma serie de estudos com o titulo de _Considerações sobre a Philosophia da Historia litteraria portugueza_. Creio que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoavel em prosa. Confesso sinceramente que dou muita pouca importancia a todos esses meus escriptosinhos de occasião, e até, ás vezes, preciso de certa força de reflexão para me não envergonhar de ter publicado tanta cousa pouco pensada. E todavia era applaudido! Porque? Em primeiro logar, creio eu, porque os que me applaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do que eu. Em segundo logar, porque me concedeu a natureza o dom da prosa portugueza, não da prosa de convenção, arremedando o estylo dos seculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o seu typo na lingua viva e falada hoje, analytica já nos movimentos da phrase, mas na linguagem ainda e sempre portugueza. Isso agradou, porque era o que convinha e, em summa, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É certo porém que tudo aquillo são escriptinhos de accasião e que, em prosa, não produzi ainda o que se chama _uma obra_, isto é, uma cousa original, pessoal e aprofundada. Ha muito tempo que sei escrever, mas foi necessario chegar aos 45 annos para ter que escrever. Por isso, deixemos toda essa farragem que não cito senão para corresponder ao desejo de v. ex.^a na materia bibliographica. E passemos aos versos. Além da collecção de sonetos que v. ex.^a conhece, publiquei ainda mais dois volumes. Um, de 1872, com o titulo de _Primaveras Romanticas_ contêm os meus _Juvenilia_, as poesias de amor e phantasia, compostas na sua quasi totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por varias publicações periodicas, e que só em 72 reuni em volume, juntamente com mais alguma cousa posterior, do mesmo caracter e estylo. Talvez a melhor maneira de caracterisar esse volume será dizer em francez que é _du Heine de deuxième qualité_. Como muitas pessoas, por cá, têm achado essa semelhança, por isso a indico. A 2.^a secção dos _Sonetos completos_ que não contêm senão composições d'esse periodo dará a v. ex.^a uma idéa sufficiente do fundo e do estylo d'aquella poesia; assim como a 3.^a secção lhe dará idéa das _Odes modernas_, cuja 1.^a edição appareceu em 1865. Não sei bem como caracterisar este livro: não é certamente mediocre; ha n'elle paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de declamatoria e abstracta, por vezes aquella poesia é indistincta, e não define bem e typicamente o estado de espirito que a produziu. O que ella representa perfeitamente é a singular alliança, a que atraz me referi já, do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francez. Acima de tudo é, como dizem os francezes, _poesia de combate_: o pamphletario divisa-se muitas vezes por detraz do poeta, e a egreja, a monarchia, os grandes do mundo, são o alvo das suas apostrophes de nivelador idealista. N'outras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se n'ellas a intenção philosophica do livro, vaga sim, mas humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do pensamento, apenas vagamente idealista e humanitaria, fizeram a fortuna do livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que _veiu no seu momento_: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este cyclo os sonetos comprehendidos na 3.^a secção dos _Sonetos completos_, muitos dos quaes já entraram nas _Odes modernas_. Em 1874 teve este livro uma 2.^a edição muito correcta e contendo varias composições novas que considero, tal como é e com todos os defeitos inherente á propria essencia do genero, como definitiva. N'esse mesmo anno de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte visinha, a ruina de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, propria da nevrose, puzeram-me novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existencia. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existencia em geral incomprehensivel. Da lucta que então combati, durante ou 5 ou 6 annos, com o meu proprio pensamento o meu proprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vacuo e para o desespero, dão testemunha, além de muitas poesias, que depois destrui (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introducção aos _Sonetos_) as composições que perfazem a secção 4.^a (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as v. ex.^a, não preciso commental-as. Direi sómente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmonico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciencia suspensa, o sentimento, no que elle tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só apparente; no fundo não é mais do que um paganismo intellectuel e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sahir do naturalismo, dentro do qual nascera para a intelligencia e me desenvolvera. Era a minha atmosphera, e todavia sentia-me asphixiar dentro d'ella. O Naturalismo, na sua fórma empirica e scientifica, é o _struggle for life_, o horror de uma lucta universal no meio da cegueira universal; na sua fórma transcendente é uma dialetica gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequencias que eu via sahir da doutrina com que me creara, da minha _alma mater_, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veiu ao mundo. A reacção forças moraes e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciencia moral não pode ser a unica voz sem significação no meio das vozes innumeras do Universo, refundindo a minha educação philosophica, achava, quer nas doutrinas, quer na historia, a confirmação d'este ponto de vista. Voltei a ler muito os philosophos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo ás origens do pensammento allemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e mysticos antigos e modernos, entre todos a _Theologia Germanica_ e os livros buddhistas. Achei que o mysticismo, sendo o desenvolvimento psychologico, deve corresponder, a não ser a consciencia humana extravagancia no meio do Universo, á essencia mais funda das cousas. O naturalismo appareceu-me, não já como a explicação ultima das coisas, mas apenas como o systema exterior, a lei das apparencias e a phenomenologia do Sêr. No _Psychismo_, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação ultima e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos physicos elementares. A _monadologia_ de Leibnitz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espirito é que é o typo da realidade: a natureza não é mais do que uma longiqua imitação, um vago arremedo, um symbolo obscuro e imperfeito do espirito. O Universo tem pois como lei suprema o bem, essencia do espirito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexivel da natureza, não é uma palavra vã: ella é possivel e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um carcere: elle é pelo contrario o senhor do mundo, porque é o seu supremo interprete. Só por elle é que o Universo sabe para que existe: só elle realiza o fim do Universo. Estes pensamentos e muitos outros, mas concatenados systematicamente, formam o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha philosophia. O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um buddhista. Ha, com effeito, muita coisa commum entre as minhas doutrinas e o Buddhismo, mas creio que ha n'ellas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que é esta a tendencia do espirito moderno que, dada a sua direcção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de banca rota, senão por esta porta do psychodynamismo ou panpsychismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de attracção da grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Allemanha, encontram-se claros symptomas d'esta tendencia. O occidente produzirá pois, por seu turno, o seu Buddhismo, a sua doutrina mystica definitiva, mas com mais solidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o Oriente. Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição dogmatica das minhas idéas philosophicas. Quizera concentrar n'essa obra suprema toda a actividade dos annos que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos, não me permitte esforço tão grande e tão aturado como fôra indispensavel para levar a cabo tão grande empreza. Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bussola do espirito humano. Morrerei tambem, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais intimas aspirações da alma humana e, como diziam os antigos, na paz do Senhor!--Assim o espero. Os ultimos 21 Sonetos do meu livrinho dão um reflexo d'esta phase final do meu espirito e representam symbolica e sentimentalmente as minhas actuaes idéas sobre o mundo e a vida humana. É bem pouco para tão vasto assumpto, mas não estava na minha mão fazer mais, nem melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa perfeitamente involuntaria; pelo menos ganhei com isso fazel-os sempre perfeitamente sinceros. Estimo este livrinho dos _Sonetos_ por acompanhar, como a notação de um diario intimo e sem mais preoccupações do que a exactidão das notas de um diario, as phases successivas da minha vida intellectual e sentimental. Elle fórma uma especie de autobiographia de um pensamento e como que as memorias de uma consciencia. Se entrei em tão largos desenvolvimentos biographicos, foi por entender que, sem elles, se havia de perder a maior parte do interesse que a leitura dos meus _Sonetos_ pode inspirar. Os criticos allemães acharão talvez interessante observar as reacções provocadas pela inoculação do Germanismo, no espirito não preparado de um meridional, descendente dos navegadores catholicos do seculo XVI. Poderá essa ser mais uma pagina, embora tenue, na historia do Germanismo na Europa, e porventura parecerá curiosa aos que se occupam de psychologia comparada dos povos. Ao bom e amavel espirito que me introduz, a mim neophyto, n'esses grandes circulos do pensamento e do saber, tributo, além de muita sympathia, indelevel gratidão. E sou de v. ex.^a com a maxima consideração criado m.^o obrg.^o _Anthero de Quental_. A OBRA POETICA DE ANTHERO DE QUENTAL 1. _Sonetos de Anthero_. Editor Sténio. Coimbra, Imprensa Litteraria, 1861. In-8.^o de XII e 23 pag. Contém 21 Sonetos, dos quaes 16 foram incorporados nos _Sonetos completos_; os 5 restantes ficam incluidos nos _Raios de extincta Luz_. O prologo é uma apresentação em verso por Santos Valente. A carta a João de Deus sobre a theoria do Soneto foi reproduzida no vol. II do _Circulo camoniano_. 2. _Beatrice_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1863. In-8.^o grande, de 40 pag. Este poemeto, formado de trechos lyricos, está incorporado nas _Primaveras romanticas_. 3. _Fiat lux_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1864. In-8.^o grande, de 16 pag. Extremamente raro, por que foi rasgado pelo auctor poucos dias depois de publicado. Fica incorporado este poemeto nos _Raios de extincta Luz_. 4. _Odes modernas_. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1865. In-8.^o grande, de 160 pag. O texto termina a pag. 150, sendo as ultimas 10 pag. occupadas por uma nota. ----Segunda edição (Contendo varias composições ineditas). Porto, 1875. In-8.^o pequeno, de 186 pag. N'esta foi cortada a carta dedicatoria a Germano Meyrelles, e bem assim a dedicatoria dos Sonetos _A Ideia_, a Camillo Castello Branco; os versos que começam: «Como a serpente larga a pelle antiga» (pag. 100), _Á Irlanda_ (pag. 121), e as duas quadras sobre Mahomet e o Christo (pag. 133). 5. _Primaveras romanticas_ (Versos dos vinte annos). Porto, Imprensa Portugueza, 1871. Com retrato photographico. In-8.^o grande, VII e 202 pag. Uma grande parte d'estes versos fora primeiramente publicada no _Seculo XIX_, jornal de Penafiel, em 1864, e outros com o pseudonymo de Carlos Fradique Mendes. (Vid. n.^o 2). 6. _Sonetos_ (Bibliotheca da Renascença, I). Porto, Imprensa Portugueza, 1881. In-8.^o pequeno, de 32 pag. e 4 não numeradas. Contém 28 Sonetos colligidos por Joaquim de Araujo. 7. _Sonetos completos_. Publicados por J. P. de Oliveira Martins. Porto, Livraria Portuense de Lopes e C.^a--Editores. 1886. In-8.^o pequeno; 48 pag. de introducção por Oliveira Martins, e 126 de texto.--Contém a collecção dos _Sonetos_ da Bibliotheca da Renascença, e todos os Sonetos dispersos pelas outras obras de Anthero, á excepção de 5 Sonetos desprezados (Vid. n.^o 1) e do Soneto _Accusação_ (Aos homens de sangue de Versalhes em 1871), que vem nas _Odes modernas_, a pag. 167 (Vid. n.^o 4). ----Segunda edição. Porto, 1891. Accrescentada com a traducção allemã do Dr. Wilhelm Storck, e algumas versões italianas. 8. _Cadencias Vagas_. Separata dos versos colligidos por Joaquim de Araujo para o volume dos _Raios de extincta Luz_. Lisboa, Typographia da Academia real das Sciencias, 1892. In-16.^o, VIII e 72 pag. (Tiragem restricta). 9. _Raios de extincta Luz_. Poesias ineditas (1859-1863) com outras pela primeira vez colligidas. Publicadas e precedidas de um Escorso biographico por Theophilo Braga. Lisboa. M. Gomes. Livreiro-Editor, 70, Rua Garrett (Chiado), 72. Typographia da Academia real das Sciencias, 1892. In-16.^o, de XLVIII pag. de introducção, e 258 pag. de texto. Entram n'esta collecção as seguintes: *Folhas avulsas*: I. _Poesia_ de Anthero de Quental recitada na noite de 13 de maio de 1862, no Theatro Academico, por A. Fialho Machado. II. _A Gennaro Perrelli_, Ao artista e patriota italiano. Imprensa Litteraria (Sem data). III. _Á Italia_. Poesia de Anthero, recitada no Theatro Academico por A. Fialho Machado, na noite de 22 de outubro de 1862. Coimbra, Imprensa Litteraria. IV. _Zara_. Poesia. Imprensa portugueza. Porto. Folha solta, com restricta tiragem para as pessoas da familia do Dr. Antonio Joaquim de Araujo. V. _A casa do Coração_. Impressa sobre um fundo lithographado, com o retrato de Anthero, e distribuida no Saráo da Liga das Artes Graphicas, no Porto, em honra do illustre morto. * * * * * ORDEM PARA UMA EDIÇÃO DEFINITIVA DAS OBRAS POETICAS COMPLETAS DE ANTHERO I. _Raios de extincta Luz_ (1859 a 1863). II. _Primaveras romanticas_ (1863 a 1865). III. _Odes modernas_ (1865 a 1871). IV. _Sonetos completos_ (1860 a 1884). I PALAVRAS ALADAS PALAVRAS ALADAS Raios de extincta luz, eccos perdidos De voz que se sumiu no espaço absorta-- Meus cantos voarão de edade em edade, Como folhas que ao longe o vento espalha. Não sabe a folha já mirrada e secca, Que um sôpro do tufão levou revolta, Que outro sopro talvez desfaça em breve-- Não sabe a triste o ramo onde nascera, A seiva que a nutriu, quando inda bella, O tronco que adornou com verde galla, E onde entre irmãs folgou por tarde amena? Soltos do tronco, sem calor, sem vida, Filhos orphãos que um seio não aquece, Um seio maternal ebrio de affectos, Meus cantos voarão de edade em edade, Como folhas que ao longe o vento espalha. Mas se alguem, vendo a folha abandonada, Lembrar e vir na mente o tempo antigo Em que bella, vestindo pompa e gallas, Brilhou rica de seiva e luz e vida; Se na mente sonhar a pura essencia Que animara esse pó ahi revolto; Se corpo der á sombra fugitiva, E a voz unir ao ecco, e o foco ao raio; Se alguem souber do canto o sentir intimo, Oh, esse ha de entender a vida, a crença D'essa alma que animara outr'ora o canto. Se alguem tiver no peito a urna mystica Onde o Amor se recolhe, esse hade amar-me; Se livre, por tyrannos não comprado, Pulsar um coração, esse commigo Hade a aurora saudar do _novo dia_; Se uma alma recordar a eterna patria Que lhe dera o Senhor, do céo saudosa Commigo a Deus n'um hymno hade elevar-se. Aos mais será mysterio o canto e a lyra, Á Liberdade, a Amor e a Deus votada: E já, soltos do tronco onde medraram, Meus cantos voarão de edade em edade, Como folhas que ao longe o vento espalha. Coimbra, Novembro, 1860. II LAÇO D'AMOR A poesia _As Estrellas_ appareceu pela primeira vez publicada na segunda parte da _Beatrice_ (p. 27 a 31), mas sem titulo, e com a epigraphe _Excelsior_. O poeta leu-m'a em 1861 com o titulo _As Estrellas_, como uma das suas melhores Odes. No manuscripto que possuo tem a data:--_Figueira, Setembro_--1860; não apresenta variantes apreciaveis da edição do 1863, por isso a não reproduzimos. _T. B._ LAÇO D'AMOR _Ao amigo Santos Valente enviando-lhe para o seu Album a poesia AS ESTRELLAS_ Que heide dar de melhor? Ai, n'estes tempos De pobres affeições, de tibias crenças, --Fonte que os sóes do estio tem seccado-- Aonde ha fé tam viva, que trasborde, Enchendo um peito n'outro peito amigo? Que esperanças cá da terra ha hi tam firmes, Tam ricas de futuro, que dois sêres Possam firmar-se n'ellas sem receio E abandonar-se todo ao seu arrimo, Qual braço de mulher em braço de homem? E quem pode encontrar-se em egual via, E ir, com norte egual, seguir seu rumo Quando tantos caminhos vão cruzando N'estes tempos o mundo do espirito? Ah, n'este sec'lo, amigo, solitario Cada qual segue triste a sua estrada, Caminheiro de um dia, e silencioso, Contando, como o avaro, os tristes restos Das suas illusões, das suas crenças, A si pergunta o que ficou de tudo; Olha as bandas longiquas do horizonte E de novo interroga, em desalento, Se o futuro lhe guarda alguma esp'rança, Se o abysmo é o termo da jornada?! Se lá de longe em longe alguma tenda, Se uma fonte que ensombra alta palmeira. Lhe alveja no deserto; se inda um pouco Lhe repousa a cabeça afadigada, Não faz, crente no Deus que o tem guiado, A oração da noite, a acção de graças E, antes que cerre as palpebras, medita... No repouso só busca o esquecimento: Dorme o somno agitado de uma noite Sob a tenda que o acaso lhe depara; De manhã, sem levar uma saudade, Sem as deixar tambem, eil-o seguindo Do fatal peregrinar a longa via. Que lhe importa o passado ou o futuro? P'ra dôr que soffre em si tudo é presente, Aqui, ali, em toda a parte o punge... Quem lhe dera esquecer, não recordar-se... Orações? são incenso cujo aroma É de lagrimas... e as d'elle se hão seccado! Orgulhoso na dôr, da dôr o orgulho Fal-o erguer solitario e silencioso, Como se ergue o granito no deserto Ermo, nú... se medita... e só comsigo. Assim vae cada qual seguindo o rumo Que o accaso ou o fado lhe depara: Quem se pode encontrar? que laço estreito Ha que os aperte? Idéa ou sentimento Aonde em crença egual juntos communguem? ........................................ ........................................ ........................................ Com tudo Deus existe! e nós, seus filhos, --Ingratos--se n'uma hora o olvidámos, Dentro temos a voz de eterno brado! Quem pode renegar seu pae? Nós somos Como esse Adão occulto no arvoredo Que não quer responder a _quem_ o chama: Porém se a voz do pae clamou tres vezes, Não pode resistir--«Eis-me presente.»-- Dissidentes no mais, Deus nos reune: No impio, ou crente, em todos Deus existe E todos chama a si, e a todos ama. Nós somos como rios que descendem De varia serra, e em vario leito correm: Mas, que importa? essas serpes tortuosas, Após rodeios mil, após mil voltas, Vão todas dar no mar; some-as o Oceano. Que importa a crença varia e o vario affecto? Este laço de amor a todos une: --Existe um Deus que é Pae; somos seus filhos. Coimbra, Maio, 1861. III FORÇA--AMOR FORÇA--AMOR O que destroe os mundos, E dá que os mar's frementes, Em volta aos continentes, Cavem abysmos fundos; A mão que faz que a noite, Sem luz, amor, encanto, Se envolva em negro manto Aonde o mal se acoite; Que pôs no olhar o brilho, E deu ao labio o riso, Á planta o pomo liso. Seio de mãe ao filho; O que é verbo da vida, Do amor, da luz, do affecto, O que sustenta o insecto E a planta desvalida; E disse á nuvem branca --Em densas trevas morre, E disse ao vento--corre, Assola, espalha, arranca; Quem faz da vida morte, De puro incenso, fumo; E deixa, em mar sem rumo, O homem luctar co'a sorte; Se é Deus... oh! não! não pode Do amor o foco immenso, Que abraza em fogo intenso, Se á mente nos acode; Não pode o sôpro d'elle Mandar a morte e o pranto, Em vez do doce encanto, Que immenso amor revele! Algum genio das trevas, --Espirito infecundo-- Espalha sobre o mundo Estas vinganças sevas. Não elle; o Deus suave! D'aquelle seio immenso, Só manda á terra o incenso E o balsamo que a lave! ........................................ ........................................ --«Estranhas ver a morte? De vida andas repleto: O Deus, o Deus do affecto Tambem é o Deus forte: Poeta! és tu que ignoras --Envolto em sonho aéreo-- O revolto mysterio De mais revoltas horas!-- Dezembro, 1860. IV PAZ EM DEUS PAZ EM DEUS ...pax hominibus bona voluntate. O Deus que me creou pôz-me no peito Um thesouro tão rico de esperança, Que não ha quem m'o roube ou quem m'o gaste; E pôz-me n'alma fonte tão perenne D'aquelle Eterno-Amor, que de lá desce, Que não ha sol ou calma que m'a seque. A fonte que nasceu em solo árido Se um dia murmurou, morreu no outro; Mas a que vem dos montes, que o céo tocam, Descendo lentamente e sem ruido, Té que brota entre as flores da campina, Essa não morre com a luz de um dia... Fonte de puras aguas abundantes, Traz do céo sua origem. Lá se esconde, Entre nuvens, o foco que a alimenta: Eterna, como o céo d'onde partira, E serena, como elle, a paz e a vida, Como elle, tem no seio e d'elle manam. Assim d'aquelle amor. Constante e puro, Que ardor ou calma ou sol pode seccal-o? Que pó da terra conspurcar-lhe o brilho? A maldade dos homens não te mancha, Oh minha paz, oh minha pomba candida! Na terra o caçador te aponta a flecha, E o tiro parte em vão. Como tocar-te, Se tão alto voaste, e o dardo apenas Mediu a meia altura que levavas? A flecha cae na terra... ao céo tu foges! Vae pomba immaculada! irei comtigo Abrigar-me tambem no seio eterno, Quando um dia o Senhor julgar que é finda A missão que me deu de aqui servil-o. Aqui fica-me a esp'rança que me alente, Fica a luz que me guia, o Amor, a crença. E foi Deus quem me deu o meu thesouro, Como á ave que vôa deu a penna, Que a libra pelo espaço; e ao olho morto Do ancião, a luz que aponta melhor mundo. Na assembléa dos homens, se um, olhando-me Disser--«Aquelle é rei»--irei prostrar-me Diante do Senhor, abrindo o espirito Á voz que dentro d'elle Deus murmura; E Deus vendo-me puro na consciencia Dirá--«Ergue-te em paz: não és culpado»--! Se sentir dentro d'alma alguma f'rida Vertendo sangue e fel, em dor extrema, Buscarei no Senhor o meu alivio: E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga, Dirá--«Fica-te em paz: estás curado»--! Oh minha doce paz! por ti se cumpram Os decretos do Eterno: tu me escuda Dos tiros que a maldade em mim dispara; A força do leão põe-me na mente, A mansidão da pomba dentro d'alma. Oh pomba ingenua, pomba immaculada, Filha do céo ao céo voemos juntos. Janeiro, 1861. V N'UMA NOITE DE PRIMAVERA N'UMA NOITE DE PRIMAVERA (*DO POEMA VASCO*) 1.^o FRAGMENTO Esta quadra d'amor quanto nos punge, Com tão doce pungir! Como sorrindo Nos mata de desejos; nos esmaga Sob o peso infinito dos anhelos, Que esta vida e mil outras não fartaram! Esta quadra d'amor, com seus sorrisos, Quanto nos punge o peito, ai, quanto mata! Tal é a essencia do Amor; tal Deus ha posto Um veneno no mal, na flôr um áspide! Prazer e dôr, sereis talvez um unico, Unico sêr, que nos penetra e abraza N'um fogo que nos doe, mas que é tão doce? Punhal, que ferindo o peito, nos consola, Mas, que a affagar nos vae roubando a vida, Antegosto do que é o céo e o inferno? Será isto o amor? será?... quem sabe? Talvez! Se é laço universal e unico Deve o bem como o mal juntar n'um todo; Se é vida é tambem morte; se é saudade, É desejo tambem; e se algum anjo O creou, ha demonio que o perturba; Se é um sol que nos brilha dentro d'alma, Tambem queima e devora, tambem mata! E é isto amor? será! será! quem sabe? De vida mais completa é antegosto, De melhor existir que além começa: Talvez! então o amor será a morte? Triste noiva, é mistér esp'rar-lhe a vinda Para amar e gozar e viver muito?! Celebre-se o hymeneo sobre uma campa: Aguarde-se a hora extrema, como aurora De um bem, que além da vida só começa; E contando os momentos como sec'los, O primeiro dos dias seja o ultimo... Mas será isto amor? será!... quem sabe? Talvez!... Mas quando a lousa funeraria Rangendo, cobre um corpo estremecido: Quando a terra só pode dar-lhe os osc'los, Que inda ha pouco lhe davamos convulsos, Que vem, que vem aos olhos? Vem só lagrimas E ao peito vem só dôr! O lucto, o pranto Se assentam sobre as campas, não a esp'rança! E será isto amor? será!... quem sabe? Mas as lousas são frias. Quem pernoita Na deveza onde só o eterno somno Se dorme... não! ninguem por lá pernoita! As dôres, como gazes, se evaporam; No ambiente da vida os ais não podem Muito tempo eccoar; ha tanta lagrima, Tantas consolações para os que soffrem! Não duram, não!... a mão que enchuga o pranto Beija-se... e mais... e mais... encontra-se a alma Com quem se casa a pobre solitaria: E a outra! a outra lá! partiu-se o laço... E é isto amor? será! será?... quem sabe? Feliz do que viaja em mundo novo!... Triste do que ficou sobre uma lousa Assentado a chorar: o que é da esp'rança? Nunca sahiu da campa voz amiga A consolar a dôr! Fica-lhe apenas Um premio, triste premio! o das lagrimas: Esse--se foi constante--hade cingir-lhe A fronte com a c'roa... do martyrio... E será isto amor? será!... quem sabe? ........................................ 2.^o FRAGMENTO ........................................ Será! será! Que importa, se é tão doce, Se mata com um sorriso, entre caricias! Vae, razão fria! vae... isto ou aquillo Que importa seja o amor?! É sempre bello --Um momento sequer--gozar a vida. É bello o amor; é bella a vida; é bello Tudo aonde o Senhor a mão ha posto... E o Senhor fez o mundo! e a ti, ó noite, Noite de primavera, deu-te estrellas, Que são almas no espaço a procurar-se; A ti, mulher, a ti deu-te o mysterio De matar ou dar vida... e a mim, sim!--creio-- Inda hade dar-me uma hora de ventura! ........................................ Oh! dae-me a taça do veneno doce, Que mata embriagando! Dae-me prestes Uma taça de amor aonde libe!... Abril, 1861. VI PSALMO PSALMO (CXXXII DE DAVID) Do amor he santo o laço! O forte ao fraco ajude: Ao irmão mais fraco escude Do irmão mais forte o braço. E a graça do Senhor virá sobre elles: Virá, bem como um oleo perfumado, Que na fronte de Arão cahido, escorre, Que inunda a barba toda, e vem descendo 'Té que a fimbria da tunica lhe beija. Virá, bem como o orvalho sobre o monte Sacrosanto de Hermon, e sobre o cimo, O cimo de Sion, que Deus amara: Porque sobre as justas frontes Dos irmãos que estreita o amor, --Mais que o orvalho sobre os montes-- Desce a graça do Senhor. Novembro, 1860. VII Á BEIRA-MAR Á BEIRA-MAR *O CREPUSCULO* Oh! vem Maria! sobre a rocha erguida Em asp'ra costa, sobranceira ao mar, Vamos sósinhos ver as brancas ondas Sobre os rochedos, em cachões, saltar! Alli, bem juntos, ao cahir da tarde, De mãos trocadas a fallar de amor, Quero, ao contar-te mil segredos d'alma, Ver-te nas faces virginal pudôr. É proprio o sitio, é propicia a hora, Incerta, dubia entre sombra e luz; Já descem trevas pelos fundos valles, Inda algum brilho sobre o mar reluz: Inda no dorso das inquietas ondas Dourada fita tremeluz, além; Mas, já ao longe, da campina os viços, Envolvem sombras que dos montes vêm. Gigante immenso de esplendor e brilho, O sol, um instante, viu-se alli nutar; Depois cançado, declinando rapido A lassa fronte repousou no mar. Semelha ao entrar-lhe pelo seio tumido, Que de mil fógos inda foi tingir, Medalha de ouro, que em caldeira immensa, A pouco e pouco visse alguem fundir. Em tanto a sombra vae descendo os montes E envolve as terras mysterioso véo; Já se divisa, vergonhosa e timida, Pallida estrella tremular no céo: Como em teu seio, pura virgem, nasce Ligeira magoa de fugaz pezar, Que vae crescendo, e transmudada em lagrimas Te vem dos olhos nos crystaes brilhar: Como nos brota dentro de alma, e lavra A pouco e pouco no veloz crescer, Algum affecto que em paixão tornado Nos vem no peito com fulgor arder: Assim da estrella nasce o brilho, e cresce A pouco e pouco pelo céo de anil; Ponto luzente, no começo apenas, Por fim brilhante, entre saphiras mil. Soidão callada pela terra alarga-se Preludio augusto da _nocturna voz_; Em doce enlevo, scisma o homem statico Em Deus, comsigo meditando a sós. Hora saudosa de incerteza mystica, De lucta harmonica entre sombra e luz. Por ti nos desce sobre o seio ardente A santa crença que p'ra Deus conduz! Hora em que é grato no regaço amigo De alguma esperança de melhor porvir, Olvidar magoas de um presente incerto, E, esp'rando, e crendo, n'essa fé dormir. Em que amor gera dentro de alma os laços Que as almas ligam com estreito nó, E que no arroubo de amoroso rapto Funde dois sêres n'uma vida só. E eu tambem quero sentir n'alma os intimos Celestes gosos que esta hora tem; Em livro aberto lêr um nome augusto Que em lettras de ouro vejo escripto além. E no regaço da mulher amada, Que é minha esp'rança de melhor porvir, Quero estas magoas ir depôr e apenas Guardar um peito para amor sentir. E antes que as terras illuminem fógos, Com a luz divina que o Senhor lhe deu; E antes que morram esses brilhos ultimos Do sol nas dobras do nocturno véo; Quero ao soido gemedor das ondas Casar as magoas d'este immenso amor, Ardente e puro, como aquelles lumes Candentes fócos de vivaz fulgor. Quero nas horas do crepusculo ameno Sobre o rochedo sobranceiro ao mar, Aos pés da virgem que escolheu minha alma Ler-lhe nos olhos confissões sem par. Figueira da Foz, 1860. VIII ASPIRAÇÃO ASPIRAÇÃO Porque é que minha alma anceia De visões e magoas cheia, Porque ao longe devaneia Minha mente sem cessar? Porque á tarde, em fins do dia, Ao cahir da maresia, Vou sobre a costa bravia Magoas carpir sobre o mar? Porque se me opprime o peito --Já de ha muito á magoa affeito-- N'esse momento imperfeito, Mixto de trevas e luz, Quando tudo, ao longe e ao perto, Se veste de um brilho incerto E eu, d'esta alma no deserto, Só diviso a paz na Cruz? Porque ao murmurio das fontes, Quando a sombra desce os montes, Fito o olhar nos horizontes E fico mudo a scismar! Porque á noite, á lua cheia, «Por noites da minha aldeia», Chóro e riu e devaneia Meu agitado pensar? Oh! quem é que assim me inspira Á mente que me delira, Ao coração que suspira Allivios, consôlo e paz? Quem faz que além d'esta vida Veja uma outra promettida E anceie essa patria querida, Não esta patria fallaz? Não vem de mim nem da terra --Que tal ouvir não encerra-- O que este peito descerra N'um hymno de tanta fé: Eu scismo ás vezes de amores, Porém são outros ardores, Outros são os seus fervores, Outro amor que este não é... Eu tenho sonhos de gloria, Que me acodem á memoria Como a visão illusoria, Que brilha e que se desfaz: De ouro e nome tenho sêde;-- Do poder aspiro á séde... Mas toda esta gloria cede Á _gloria_ de luz e paz! Oh! trasborda-me este affecto, Que aqui dentro anda secreto, Como de vaso repleto Trasborda puro o licor! Oh! inunda-me este oceano De um amor tão sobre-humano, Tam puro de todo o engano... Que nem sei se é isto amor! Oh! embala-me esta esp'rança, Aonde a alma me descança Em pura e santa bonança, Tão bafejada de Deus, Que não pode--eu bem o vejo-- Descender-me este desejo Senão da patria que invejo... Oh! esta esp'rança é dos céos! És tu oh Deus que me chamas! És tu Senhor que me inflammas N'aquellas ardentes chammas, Que me dão tão pura luz! És tu, oh Pae! que da altura, Olhando a minha amargura, Me estendes a mão segura, A mão que a ti nos conduz! Sim! minha alma te pressente! Guiada por luz ingente D'esse fanal que não mente, Já p'ra ti desprende o vôo... Oh! quem tem essa luz querida, Não tem outra promettida, Não pode amar outra vida... Senhor! eu busco-te... eu vou! Coimbra, 1861 IX A PYRAMIDE NO DESERTO A PYRAMIDE NO DESERTO Além na solidão, sobre os desertos, Tu só te ergues altiva e apontas céos; E deixas, sobranceira ás tempestades, Rugir de um mar de areia os escarcéos! Tu só! Quem te creou? Mysterio immenso Ao nascer te encobriu, te envolve o sêr... E agora eis-te, rival das serranias, Como ellas condemnada a não morrer. Tu só! Além, na extrema do horizonte, Passa o Arabe no auge do furor, Luz-lhe na mão o alfange, o olhar fuzila, Vão com elle em tropel morte e terror! Mas lá surge do accaso arroxeado, Ao mando de medonho furacão, Nuvem de ardente pó que rue sobre elle, Que o sepulta em deserto, árido chão. Mas tu sorris ás furias da tormenta, Não temendo arrostal-a inda uma vez, E ella, a que troou pelos espaços, Vem tremendo morrer-te ahi aos pés. Do cimo sublimado, erguido ás nuvens, Vês os sec'los nascer, ruir no pó; E em meio da ruina dos imperios Ficas tu, ó gigante, eterno e só! Além, n'esse deserto a quem assombras, Que vidas, que paixões se hão revolvido! E a todas o deserto, qual sudario, Nas dobras da mortalha ha envolvido. Tu podes apontar ao viajante Um nome ou um logar na solidão: Dizer--Alli, Palmira foi cidade-- --Aqui, foi um heroe Napoleão.-- Tu só podes dizel-o. Quem mais sabe, Que pó envolve agora o que morreu? Quem pode differençar, n'um mar infindo, Um pó de um outro pó que o envolveu? Só tu! Na solidão, sobre os desertos, Tu só te ergues altiva, e apontas céos; E deixas, sobranceira ás tempestades, Rugir de um mar de areia os escarcéos! Coimbra, Dezembro, 1859. X DESALENTO-CONFORTO DESALENTO _A Sorte, amigo, a sorte é dura ás vezes! Agora nos affaga e nos alenta; E logo nos opprimem seus revezes... Após leda bonança vem tormenta; Succede a noite escura ao claro dia, E ao rapido prazer a magoa lenta! Assim de minha ardente phantasia Aos sonhos perfumados de venturas Que a beijar-me a fronte eu já sentia, Ai! seguiram-se tristes amarguras Que a vida a pouco e pouco vão comendo; Deixando espinhos só onde as verduras Eram brandos aromas rescendendo_! Alberto Telles CONFORTO (*PARAPHRASE DO SONETO ANTECEDENTE*) A Sorte só p'ra o fraco é dura ás vezes! P'ra o forte, que a virtude e crença alenta, P'ra esse não ha sortes nem revezes... Porque após da bonança vem tormenta, Porque a noite succede ao claro dia, É força definhar em magoa lenta? Não! que aos males, que gera a phantasia, O sabio oppõe as intimas venturas Da virtude e da fé que em si sentia. Não chores mais, poeta, as amarguras Que só os bens da terra vão comendo: A consciencia é jardim onde as verduras Mil perfumes p'ra o céo vão rescendendo. XI A SENDA DO CALVARIO A SENDA DO CALVARIO Ave, Christus! Deixae, deixae passar o homem forte, O ungido do Senhor; Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte Tambem é cruz de amor! Deixae! na praça o povo agglomerado Vomita a injuria alli; E elle, sereno o rosto e resignado, Olha o céo, e sorri. Sorri... não fero riso de despreso Que ao passar pelo labio perde o encanto, Mas riso que transluz por entre o pranto Ao que da cruz de amor arrasta o peso. Sorri... Que mais importa ao homem forte Ou despreso ou louvor, Se da estrella seguiu, que foi seu norte, O magico pallor? Tem dentro, como em erguida fortaleza, A fé, voz que lhe vae bradando--«Avante! É teu premio o opprobrio do ignorante, De tal morte morrer, tua grandeza!--» E diz, vendo a consciencia onde serena Lê a imagem de Deus, E do futuro vendo a praia amena: --«Posso subir aos céos! Posso agora, depondo em terra o peso Da missão dolorosa d'esta vida, Buscar a patria minha promettida, D'onde o divino amor transluz acceso.--» Ai pode! Heroe, e martyr, deixa a terra, Que é cumprida a missão: O Mundo o teu preceito guarda e encerra Na mente e coração... Morres tu; mas a idéa que deixaste Não morre, como a luz em fim do dia, Nem o fogo do céo que em ti ardia, Nem o exemplo sublime, que legaste! Oh, martyr! cada lagrima chovida N'essa senda de dôr, Conquista mais um espirito p'ra vida, Para a luz do Senhor; E um dia (e talvez cedo venha o dia) De cada dôr que ahi te curva agora, Nascerá qual da noite nasce a aurora Um mundo de verdade e de harmonia! ........................................ Deixae, deixae passar o homem forte, O ungido do Senhor; Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte, Tambem é cruz de amor! S. Miguel, Julho de 1859. XII A JOÃO DE DEUS A JOÃO DE DEUS DEPOIS DE LER A SUA POESIA Fique em silencio eterno a minha lyra; Pomba do céo tu vae; Deus te bem fade, N'esta alma em teu logar guardo a saudade, Se a essencia sobrevive á flor que expira. ........................................ Foi o canto do cysne, o canto derradeiro D'aquella augusta voz que se esvaiu no ar; Adeus da terna amante ao seu amor primeiro Que eterno ella julgou, mas cedo viu findar; Ultimo adeus de quem, ha pouco ainda crente --N'uma hora apenas--vê, qual sombra na corrente, Morrer-lhe as illusões co'a morte d'esse amor E triste se envolveu no vêo de uma erma dôr. Soffreu da soledade... E onde ha hi um peito Que não soffra tambem, ainda ao mal affeito? Soffreu da soledade em que a alma lhe ficou, Depois que ao longe e triste o ecco se finou D'aquella _unica voz_, que ainda repetia A sua voz, bem como, á tarde em fins do dia, A nuvem que passou reflecte um raio ao sol, Que mesmo occulto a tinge aos fogos do arrebol. Soffreu quando da sorte a mão pesada veiu Poisar-lhe sobre o peito e comprimiu alli A ancia que animára o arfar d'aquelle seio, Seio que só bateu--poesia!--amor!--por ti! E elle então disse: «Aqui deponho a minha lyra: Se esta alma a outros céos, a outra patria aspira, Se esta ancia infinita não posso aqui fartar, Que val'--ecco sem voz--que val' o meu cantar? Val' mais que eu, em silencio, espere o grande dia, Cuja aurora immortal, em luz, em poesia, Me hade envolver, e assim levar-me áquelle céo. Céo do que amou, creu, esperou e soffreu. Emtanto--esp'rando--viva em silencio profundo, Deixando em vão rugir,--qual voz do mar--o mundo; Aqui guardo a saudade, esse talisman só, Como da flor já secca inda se guarda o pó.--» Cobriu o rosto após co' manto da tristeza; O sol d'aquelle céo fugiu ao longe... além... E a noite sem luar, sem brilho, sem belleza Ao negro que hia lá veiu ajuntar tambem. ........................................ ........................................ Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se Um momento é do homem; porém não prostrar-se Gemendo em desalento, e face contra o chão, Como quem acceitou da dôr a escravidão. Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro A crença que lhe nega este presente impuro: Não quem deixa cahir a lyra, não quem vae Pedir ao desalento abrigo e amor de pae. É virtude soffrer, nunca perder a crença; É ter esp'rança tal que a dôr mais crua vença; É não pedir seu premio aos homens, mas a Deus, E passar n'este valle, o olhar fito nos céos. Tal é tua missão:--Luctar! O soffrimento, Ao pé do eterno bem, o que é mais que um momento? Coimbra, Março, 1861 _Como a poesia de João de Deus citada na epigraphe da p. 73, não foi incorporada nas collecções das_ Flores do Campo _e_ Folhas Soltas, _transcrevemol-a aqui para intelligencia do texto dos nossos cadernos manuscriptos de Coimbra, notando as variantes da primeira estrophe_. ADEUS _Fique em silencio eterno a minha lyra_; Vae, effluvio de Deus! _Deus te bem fade: N'esta alma, em teu logar_ fica _a saudade, Se a essencia sobrevive á flôr que expira. Dizer-te adeus! não pude; quando occorre Tal voz ao labio, o labio empallidece, Como a nota da lyra nos fallece Ante a lua que cae, e o sol que morre: Ante o sôpro que varre o cedro e o vime, Ante o sublime aspecto do oceano, Ante a esposa do martyr sobrehumano, Ante tudo o que é grande e que é sublime. Embora!... quando a lampada crepita Já falta d'oleo, languida esvoaça; A nuvem estala; ruge a onda e passa, Guarda silencio a abobada infinita_. João de Deus XIII PER AMICA SILENTIA LUNAE PER AMICA SILENTIA LUNAE Guardai in alto......................... ........................................ Dante, _Inf._ C. 1.^o I Eu amo a noite ás horas socegadas Que o Senhor manda á terra, como balsamo A tanta dôr que a punge, e o sol do dia Parece escarnecer com tanto brilho, Nem sabe respeitar; quando o silencio Com manto protector envolve os tristes, Os que choram saudades; quando o orvalho Refresca o seio á flôr, e em cada balsa A viração prepassa suspirando; Quando é mais puro o ár, mais doce a brisa, Mais sumidos, mais vagos os rumores, E detraz da montanha, saudosa Como a virgem dos sonhos, surge a lua. II Eu amo então a noite.--Paz e esperança A quem soffre, buscando algum allivio; Ao feliz exultando de alegrias A lembrança de Deus a quem as deve; A quem descreu de achar inda na terra Ventura que lhe foge... o olvido ao menos; A toda a crença um exultar de affectos; A todo o desconforto, uma esperança; A toda a natureza, amor e vida; Eis o thesouro santo que nos abre --A nós e ao mundo--a noite, eis seu tributo. É doce então abrir os seios d'alma Aos effluvios do céo: flor que hão crestado Ardentias do sol, e ainda timida Palpitando entre o susto e a esperança, Retoma agora aos poucos novo alento Ao sentir-se segura, e abrindo o calix Estremece de amor a cada gôtta Dos orvalhos do céo: como que a vida Solta de tanto laço que a comprime, Como gaz que ao calor se ha dilatado, Se expande livre agora e cresce e absorve Em si mil harmonias, mil poderes Que esse universo tem: como as correntes Occultas, que os oceanos communicam, A natureza e o espirito permutam Sympathias e forças, em que a alma Mais cresce e mais comprehende, e mais abrange, E n'este permutar de força e força Quasi na vida universal se funda. III Passa a lua; do alto olhando a terra Procura o triste por lhe dar allivio; Prepassa a viração e busca do ermo A florinha minada que refresque; Corre manso o regato, e banha a erva Que um pé calcou, e o sol deixou crestada; Tremúla a estrella, symbolo de esperanças, Enviam-se harmonias as espheras; Tudo amor, tudo affectos communica; E o espirito do homem busca livre Da sob'rana harmonia a eterna fórmula, Do eterno amor o fóco, a patria sua. Lembranças de um viver já pressentido, Ou memorias--talvez--de uma outra vida, Que nos relembra vaga, e como em sonhos, E sobre o fundo d'esta se destacam Como pela penumbra um vulto incerto... Aspirações, memorias, ou saudades, O que nos enche o peito e nos enleva Como um sonho de amor--e mais ainda-- Senão este mysterio do futuro, Esta attracção do sêr a vida nova, Que se foge e se busca e nos revela A vida universal, então sentida Mais forte na harmonia do Universo? IV Busca-se, anceia-se, e o alvejar da campa Mais que o sorriso de uma amante é doce; A lembrança da morte mais que a esp'rança Do poder ou da gloria nos enleva; Terrores, incertezas se dissipam, E sem saudade, sem temor se anhela Mais mundo, mais espaço, e viver novo! V E quem pode temer? Teme o que um dia Sonhou na mente uma ambição terrena E mais não vê por todo esse universo, E além d'elle não vê sublime e grande: O, que engolfado nos prazeres do mundo, Esqueceu o seu Deus e seus destinos Nem sonha mais ventura além da campa: O que pungido por cruel espinho De uma duvida atroz, sente a cada hora Cahir-lhe a uma e uma cada crença De sobre alma, deixando-a erma e nua, Como as humidas prégas de um sudario, Aos poucos desdobrado, deixam vêr-se Os descarnados membros do cadaver. VI Mas quem se assenta ás horas do mysterio, Entre as flôres do prado, ou sobre a encosta Da collina virente e olhando a lua Que banha em luz a esphera crystallina, Inveja quem habita n'esses mundos... E fita o olhar por esse espaço, e cuida Sondar-lhe o infinito; quem anhela Desvendar-lhe os mysterios e buscando A região que se sonha e não se avista Dal-a por patria á sua alma... oh! esse A viagem não teme, antes anceia, Quebrada a fórma d'este sêr, alar-se Em busca de outra mais perfeita, e sempre De degráo em degráo, de esphera em esphera, --Metempsycose eterna!--sublimar-se Na progressão d'este ascender constante Da parte ao todo, do mortal principio Em busca de um futuro inattingivel, Porém melhor cada hora, e a cada passo. E quem pode temel-a, essa viagem, Quando fitando o olhar no alto, avista Banhado em luz o espaço immenso e puro, Patente e franca a estrada do Universo, E como que visivel o infinito? Quando tudo no céo e pela terra Parece, como irmão, dar-nos confiança Em nós e em si para seguir avante? Quando se sente palpitar no seio Não só já a mesquinha vida propria Mas todo o grande sêr do que é creado? Quando nas aras do Universo, o espirito Communga, como irmão, na mesma crença, Com tudo quanto vive, e a mais aspira, Ah! quem pode temer, noite de encanto, Noite pura e sagrada ao Deus de affecto, Protegido por tua luz amiga, A aspiração dos immortaes destinos. Um pouco mais ao peregrinar constante, A entrevista do infinito e do homem? VII Por ti, noite de amor, por ti nos desce Tanta ventura ao seio; e como o orvalho Que o pó da terra ressequido e árido, Que o vento impelle, fixa sobre o sólo E como que consola e allivia, Assim como teu effluvio o triste espirito Que incerto das paixões refoge á duvida, N'uma crença fixaste--a crença eterna Do amor universal, todo harmonias, Porque és affectos toda! Em cada balsa Descanta um rouxinol; a cada rosa Uma brisa osculou; em cada fonte Brilha um raio da lua; em cada peito Murmura um ecco que de amor só falla! Mosteiro da Batalha, 1861. XIV NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE (C. C. P. P.) Este é o livro das vinganças nobres, O inferno dos que têm o céo na terra: Nem vingança; justiça. --Oh vós que as lagrimas Trazeis sempre nos olhos, sem que sequem, Lazaros no banquete da existencia, Oh filhos do dever! lêde este livro, Porque atravez de um mundo de miserias, Do largo perigrinar chegando ao termo, Heisde ouvir, lá das bandas do futuro, A grande voz do Christo, a voz eterna, Erguer-se sobre os filhos da verdade: «--Felizes dos que soffrem--terão premio: Feliz do pobre e triste, orphão de affectos, Será rico: no céo seu pae o espera!» Coimbra, Dezembro, 1861. XV DANTE--DIVINA COMEDIA DANTE--DIVINA COMEDIA (PURGATORIO, CANTO VI) Oh Italia aviltada! Oh não sem rumo No meio da tormenta! E era esta a rainha das provincias? Hoje... cloaca informe! Outr'ora mal bradasse:--«Patria, Patria!» Um cidadão, um filho, Alma nobre--acolhias-l'o no seio No seio que lhe abrias! Agora espreita cada um o peito Do visinho e olha o gladio: E os que estreita no cinto o mesmo muro E o mesmo fôsso... comem-se! Alonga, alonga, oh triste, pelas praias Teus olhos macerados; Desce-os, desce, infeliz, ao proprio seio... A paz! onde a encontraste? Julho, 1862. XVI MOMENTOS DE TEDIO SONETOS MOMENTOS DE TEDIO I Sinite parvulos ad me venire Ventura! aurora d'outro eterno dia-- Amor--Verdade--Bem--Quanto desprende Seu vôo cá da terra e quanto estende Azas no céo, só busca esta harmonia, E as alturas fechadas! tudo esfria E morre, lá por cima, e não se entende... Certo é que o fructo só p'ra terra pende, Parece que p'ra terra a luz se cria! Ha tanto quem sem lucta espere havel-a! Sem se erguer, quêdo o mundo, cuide vêl-a... Talvez, se assim quedasse, a possuisse! Chama-se isto voar! Toda essa altura Dava-a bem por uma hora de ventura... Antes minha alma não voasse... e visse! Coimbra, Novembro, 1862. II A UM CRUCIFIXO (_Primeira elaboração do Soneto de p. 20 dos_ Sonetos Completos) Dieu n'est pas! Dieu n'est plus Ha mil annos, oh Christo, ergueste os magros braços, E clamaste da cruz: «Ha Deus!» e olhaste, oh crente, O horizonte futuro, e viste em tua mente O alvor _do céo_ banhar _de luz_ esses espaços! Porque morreu sem ecco o ecco de teus passos? E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente? Morreste! ó dorme em paz: não volvas, que descrente Arrojáras de novo á campa os membros lassos!... _Ha mil annos! ha mil! Que é d'ella a tua esp'rança? Ainda, como então, Amor--traduz--Vingança, E é o int'resse glacial das almas o sudario_! _Ainda_, como então, víras o mundo exangue? E ouvíras perguntar: «De que serviu o sangue Com que regaste, oh Christo, as urzes do Calvario?!» Coimbra, Novembro, 1862. * * * * * VARIANTE DO 2.^o TERCETO Agora, como então, na mesma terra erma, A mesma humanidade é sempre a mesma enferma, Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudario. III DECOMPOSIÇÃO «Eu não sou dos que a patria só adoram» Como adora o regato a propria serra: Deus n'uma gleba apenas não se encerra; Se visita esses mundos, que demoram De céo a céo, tambem cafres o imploram. Mas deixae que uma lagrima sincera Possam os olhos dar, olhando-a, á terra De onde a primeira vez aos céos se foram. Sim, vêr-te, Portugal! eu chóro ao ver-te!... Como ao Leão gigante do Occidente Lhe cáe a garra, e em nada se converte!... Não é isto o que eu chóro: o que me dóe, É como aquella juba omnipotente, Em pennas de pavão se decompõe!... Coimbra, Janeiro, 1863. IV NIHIL Homem! Homem! mendigo do Infinito! Abres a bocca e estendes os teus braços A vêr se os astros cáem dos espaços A encher o vacuo immenso do finito! Porque sóbes á rocha de granito? Porque é que dás no ár tantos abraços? E cuidas amarrar com ferreos laços Um reflexo da sombra de um esp'rito? Vê que o céo, por escarneo, a luz nos lança! Que, á tua voz, a voz da immensidão Responde com immensa gargalhada! A idéa fechou a porta á esp'rança, Quando lhe foi pedir gazalho e pão... Deixou-a cara a cara com o Nada!!... Maio, 1863. V QUINZE ANNOS (_Primeira elaboração do Soneto de p. 30 dos_ Sonetos Completos) Eu amo a vasta sombra das montanhas Que estendem sobre os largos continentes Os seus braços de rocha negra, ingentes, Bem como braços colossaes de aranhas. D'ali o nosso olhar vê tão extranhas Coisas, por esse céo! e tão ardentes Visões _amostra_ o mar de ondas trementes E as estrellas, d'ali, vê-as tamanhas. Amo a grandeza _tenebrosa e_ vasta: A grande idéa como _um grande fruito_ De _um_'arvore colossal que _isto_ domina; Mas tu, criança, sê tu boa... e basta, Sabe amar e sorrir... _mulher, é muito_... Mas a ti só te quero pequenina... Coimbra, 18 de abril de 1863. VI SARCASMOS Está deserta a estrada do Infinito, É apenas o cêo do nada espelho, A eternidade é fossil: Deus é velho, E o homem olha o céo de fito em fito! A cruz de Christo está feita um palito, Embrulham-se caminhos no Evangelho; Cada qual dá a Deus o seu conselho: Nem já é Verbo o verbo... é só um _Dito_! Nada d'isto me dá a mim cansado; Mas morrer Satanaz tambem de frio... Mas não haver já mal que se combata... Não poder já ao demo um condemnado Render a alma immortal... por desfastio... É isto o que me dóe, o que me mata!... Maio, 1863. XVII AMOR DE FILHA AMOR DE FILHA (NO ALBUM DE UMA SENHORA) ...........o sangue é vida, e as Mães a fonte d'ella... João de Deus Ainda a trabalhar, dedos formosos! Nem tanto affinco: Deus tambem não quer Que se cumpra o preceito tanto á letra; Preceito é trabalhar, não que se estraguem Esses formosos dedos de mulher. Já o sol se escondeu atraz da serra, E o bordado não céssas de bordar; Quando abri de manhã esta janella, Já lá estavas no posto, de olhos roxos, Como se foram roxos de chorar! Forte trabalho! não me enganas, bella! Bem sei eu quem te dá tamanho ardor... Pois nem um olhar a quem passou na rua, Dizendo:--É bella! e olhando-te? nem isso?... Ai tanto trabalhar! só por amor... Que importa o que passou? no peito um nome Te domina, e na mente uma imagem só... Feliz cabeça, que hade ornar em breve O bordado gentil em que trabalhas Com esse affinco, que causou meu dó. Feliz! sim; que lhe guarda aquelle peito Largo e rico thesouro de affeição; Pois magoar estes olhos, e estes dedos Formosos estragar--homem ditoso-- Só faz o amor que vem do coração!... Tu, que talvez repouzes no ocio brando, (Se não corres talvez de flôr em flôr) Vê tu que sacrificios immerecidos!... Mas um menino cego é quem nos vence, Que a isto e a mais obriga o louco amor! ........................................ Mas, não! Quem lá no fundo, meio occulto Entrevejo na sombra, como quem Teme do dia a luz--luz orgulhosa, Luz que ao feliz afaga, ao triste afflige-- Quem triste e só, se occulta mais além? Quem, se o dia findou, recebe o beijo E outro recebe logo que é manhã? Quem--emquanto a alampada nocturna Alumia a vigilia--sente em sonhos Uma lagrima de amor molhar-lhe as cans? Perdão, mulher! e mais que mulher, filha, Perdão! louco julguei e impio tambem, Que tinhas outro amor: como se possa Ter uma filha amor ou pensamento Que todo não pertença a sua mãe! Feliz, quem--pobre--tem um tal arrimo; Quem--cega--pode vêr uma tal luz: Quem--cega e pobre e triste e desprezada-- Tem uma mão de filha que piedosa Té aos degráos do tumulo a conduz!... ........................................ É nobre o teu trabalho, mulher bella-- Bella d'aquella luz que vem dos céos, A quem nas áras da fiel piedade Sacrifica illusões da mocidade E segue o seu caminho crente em Deus! Nem mais um riso, amigos! Respeitemos O que ella faz ali com tanto ardor; Não são enfeites vãos, do prazer socios, É o pão de uma mãe que ali grangêa, Trabalha por amor... mas outro amor. Trabalha e enchuga o pranto á velha enferma: Trabalha noite e dia; é Deus que o quer: Que importa á filha, quando a mãe lhe soffre, Que o sol nasça ou decline, ou que se estraguem Os seus formosos dedos de mulher? Coimbra, 1862. XVIII GARGALHADAS GARGALHADAS (NO ALBUM DO SEU CONDISCIPULO DR. JOSÉ BERNARDINO) _Risum teneatis_! Bem é fallar de tristezas Por estes tempos de risos, Em que passa a Gargalhada Na face dos paraisos, E, como o vento do pólo Forte--mas triste, mas frio-- Que leva as folhas co'as flores, Como as enchentes do rio. É o nivel da egualdade Desde a rocha até á flor, Desde o amor da virtude 'Té á virtude do amor. Como os remoinhos de pó Que a gente vê, a tremer, Sob-la tarde, nas estradas, Como demonios correr; Como a espuma batida Que a rocha escarra no mar E a onda depois atira, Com escarneo, por esse ár; Como os grôus em debandada Ao partir-se-lhe a cadeia: E o torvelinho que atira No deserto os grãos de areia; Como tudo, emfim, que geme No abraço dos turbilhões E, de olhos postos no inferno, Lança ao céo as maldições: Folhas mortas e flores vivas, Pó da terra e diamantes, Aguas correntes e charcos, Os de perto e os mais distantes; Vozes profundas da terra, Vozes do peito gementes, De envolto as feras bravias Com as aves innocentes; Como as palhas assopradas Depois das malhas, na eira, Ou gottas de agua rolando De alta náo na larga esteira-- Tudo partido, enlaçado, Em desesp'rados abraços, Ruindo pelas quebradas, Rolando pelos espaços, Nos _paraisos perdidos_ E--agora--feitos desertos, Como legião de demonios Rugindo infernaes concertos; Tudo vae, se rasga e parte, Como em cidade assaltada, Sob esses tufões gelados Da tormenta--Gargalhada! Das tormentas! Que sem conto São esses ventos de morte; E d'um ao outro horizonte; E d'um modo e d'outra sorte. Os suões do céo humano E os simúns do seu deserto; O que a gente vê ao longe, O que a gente sente ao perto; A gargalhada do sabio, Que se chama... indagação; A gargalhada do sceptico, Que tem nome... negação: A gargalhada do santo, Que tem nome--fé e crença; A gargalhada do impio, Que se chama... indifferença: A gargalhada da historia Que se chama... Revolução: E a gargalhada de Deus, Que tem nome... Escuridão; Eil-as 'hi vêm, as tormentas, De todos os horizontes, Subindo de todos vales, Descendo de todos montes. Eil-as 'hi vêm: já espectros, Já como lavas ruindo: Já nuvem, já mar, já fogo, Mas sempre, sempre cahindo, Desde a França... e são revoltas; Da Allemanha... e são idéas; Desde a America... e são fardos; E da Russia... e são cadeias; De Inglaterra... e são carvões De fumo enchendo os pórtos; Do Oriente... e são os sonhos; E da Italia... Christos mortos; Da Hespanha... e são traições, Á noite, por traz dos brejos, --Mão na faca e mão nas costas-- E _dê cá_... e são bocejos. É d'estes lados que sopram... E são os ventos assim... Levando os cedros do monte Como os lyrios do jardim... * * * * * E, comtudo, no meio da _alegria_ Terrivel, que enche o espaço como o ecco Das grandes trovoadas--e debaixo De tantos ventos e de tantos climas, A Alma--a flor do Paraiso antigo-- Lyrio bello do valle--peito humano, A Sulamite da Sião celeste-- A Psyche triste e palida, que vaga Nas praias do infinito--a Alma, oh homens, Em meio do folgar que vae no mundo, Cada vez chora mais e mais soluça, E mais saudosa--a eterna expatriada!-- ........................................ ........................................ É que o rir do leão sempre é rugido-- E isto, que sae da bocca tenebrosa Do mundo--e o mundo escuro diz Progresso, E Força, e Vida, e Lei--isto é soluço Que sae do peito condemnado,--e quando Vae a sahir, para illudir o misero, Diz á bocca: «Olha tu como nós rimos»... Mas não é mais que o arranco da agonia! Nem pode ser.--Aquelle riso enorme Quando sae é co'o ruido das tormentas E, como as grandes aguas, vae rolando, E esmaga... e não consola! É como a orgia Que cuidando folgar... se está matando! E como esses que dizem dos rochedos Que _brincam_ com as ondas... quando as partem! Não é o riso bello da Harmonia, É apenas gargalhada de Possessos! Ha dentro d'este mundo algum demonio, Que o obriga a torcer assim a bocca Lá quando mais se agita e mais lhe dóe! Senão, olhae e vêde essa alegria --Quer seja Idéa ou Força ou Arte, ou seja A Industria ou o Prazer--de qualquer lado Que rebente dos labios--vêde como Faz frio a quem a vê! como entristece Vêr o gigante louco dar-se beijos Como em mulher formosa... e ao longe, ao longe Todo o campo alastrado de flôr's mortas! ........................................ ........................................ Mas basta! A luz doirada Um dia hade surgir! E a venda, d'esses olhos, Por fim tambem cahir! E a Gargalhada immensa Fechar a horrivel bocca! E ser canto suave Essa atroada rouca! Então!.................. ........................ ........................ ........................ Alma, que sonhas? Que louco desvairar!... _Então!!_... Mas--Hoje--esta hora... É toda p'ra chorar! Coimbra, Novembro, 1863. XIX Á ITALIA Á ITALIA POESIA RECITADA NO THEATRO ACADEMICO POR A. FIALHO DE MACHADO _na noite de 22 de outubro de 1862_ Italia e Portugal! que duas patrias! Ambas tam bellas, tam amadas ambas! Uma, a patria do berço; outra a das almas: Uma, a das artes; outra a dos combates! Oh! deixae que hoje, aqui, sobre o meu peito, As estreite, a final.--Ha quanto tempo Eu quizera juntar-vos, pelas frontes, Beijar-vos, bem unidas, soluçando, Como quem, tendo pae, mãe encontrasse. Portugal! nobre filho de guerreiros! Viste, primeiro, o sol da liberdade, Mais feliz, não maior e nem mais digno Que tua irmã, a Italia.--Ella, entretanto, Chorava, olhando o céo, negro de nuvens! Cobriram-n'a de affrontas! sobre os hombros A toga negra, já como sudario: O seu corpo partido em dez retalhos: O extrangeiro assentado nos seus lares... E não se via sol no céo da Italia! Dizei-me vós, se pode o grande rio Existir, sem que as fontes o basteçam? Se pode quem nasceu fadado ás glorias, Esquecido morrer? Se os fortes netos De Mario e de Catão, ir assentar-se Sosinhos sobre o tumulo dos fortes --Olhos no chão e pulsos algemados? Se é possivel que exista um povo--um povo!-- Sem ser livre, e sem sol o céo da Italia?! O céo da Italia!... esse céo Tem, por sol, a liberdade! Riqueza... de claridade... Mas se foi Deus quem lh'a deu?! O que Deus dá é sagrado!... 'Stava o povo escravisado E par'cia, de esquecido, Prostrar-se tam compungido Ante os pés de seu Senhor?! Pois bem! a esse povo escravo Bastou-lhe o brado d'um bravo Para se erguer,--eil-o em pé! E aos tyrannos, aos senhores, Aos fortes, cheios de fé, Bastou-lhes ouvir os clamores D'essa turba esfomeada Para deixarem a espada... Raia a nova claridade, A aurora da liberdade, D'um proscripto no palor! O povo toma as espadas, Meias gastas e olvidadas, Sobre as campas dos avós: E, ainda vestido de dó, Com esforço sobrehumano, Ergue os hombros... e o tyranno Treme... nuta... eil-o no pó!... Quem derruba, sobranceiro, Altos colossos por terra? Quem é que faz d'uma guerra A festa do mundo inteiro? Um homem? Não! A Justiça!... Deus!--o unico juiz Dos povos na grande liça! Só Deus!-- Elle dá ao triste Allivios... não odios vís! A essa Italia que hoje existe Segredou-lhe, em quanto oppressa, Como sagrada promessa, Em vez de iras da vingança, Estas palavras d'esperança: «Tudo tem allivio á magoa: A flôr murcha, a gotta d'agua; Cruz, o moribundo exangue; Um filho, a fera mais seva; Amor, o martyr; a treva, Um raio de claridade... E o povo, que é vida e sangue, Não hade ter liberdade?!» XX A GENNARO PERRELLI A GENNARO PERRELLI AO ARTISTA E AO PATRIOTA ITALIANO A arte é como a luz: brilha do alto, Mas quer livre brilhar: do Deus do bello Ella é religião: seu templo immenso Quer sacerdotes mas rejeita o bonzo. E o artista é como astro gravitando Em céo e espaço livre: acaso o servo Pode entoar um canto de ventura? Só a mão, que não aperta Grilhão de escravo, disperta Na arte tal magestade, Tal sentir e tal verdade-- Vêde essa fronte inspirada Do artista, allumiada Ao clarão da liberdade! XXI GUITARRILHA DE SATAN Estes versos appareceram pela primeira vez publicados com o pseudonymo de _Carlos Fradique Mendes_. GUITARRILHA DE SATAN Estranha apparição Que em minhas noites vejo, Ó filha do desejo! Ó filha da soidão! Não sei qual é o teu nome, E d'onde vens ignoro: Sei só que tremo e choro Como de frio e fome! Que por fundir comtigo Suspiros, ais, rugidos, Déra ideaes queridos, Deuses e fé que sigo. Sim! dera as prophecias E os cultos salvadores, E os Golgothas e as dôres E as Biblias dos Messias! Por ti minh'alma clama, Corre a meus braços breve, Sejas de fogo ou neve, Sejas cristal ou lama! Se és Beatriz, sou Dante; Sou santo, se és divina; Se és Laïs ou Messalina, Sou Nero, ó minha amante! 1869. XXII SERENATA D'esta poesia escreveu o auctor ao sr. dr. Wilhelm Storck, em carta por este communicada a J. de Araujo: «A... _Serenata_ nunca foi impressa que eu saiba, embora não seja de modo algum inédita, pois tendo sido composta ha 4 annos, na Ilha de S. Miguel, a pedido de um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios musicaes em bellas noites de verão.» Storck traduziu esta poesia. Ácerca da traducção escrevia-lhe D. Carolina Michaëlis, em maio de 1891: «A. de Q. recebeu a sua traducção da _Serenata_, a qual lhe agrada extraordinariamente. Antepõe-na ao original d'elle, e diz que lhe sôa como uma canção allemã.» SERENATA Cahiu do céo uma estrella, Ai, que eu bem a vi tombar! Era a noite pura e bella, Murmurava ao longe o mar... Era tudo extase e calma, Perfume, encanto, fulgor... Só no fundo da minha alma Que desconforto e que dôr! Dorme e sonha, minha bella, Emballada ao som do mar... Cahiu do céo uma estrella, Triste do que a viu tombar! Era uma estrella cahida, Uma entre tantas, não mais! Era uma illusão perdida, Era um ai entre mil ais! E has de viver torturado, Louco, incerto coração, Só por um astro apagado, Por uma morta illusão? Dorme e sonha, minha bella... Como chora ao longe o mar! Cahiu do céo uma estrella, Ai de mim que a vi tombar! 1873. XXIII O POSSESSO O POSSESSO (_Commentario ás_ Litanies de Satan) I Não creio em ti, Deus-Padre omnipotente, Creador d'esse espaço constellado, Que do Cahos e o Nada conglobado Arrancaste o Universo refervente; Não creio em ti, Deus-Filho, em cuja mente Foi o Bem inefavel feito e nado; E não creio no Espirito gerado Do eterno Amor, como uma chamma ardente; Saibam-n'o a terra e os céos: do Crédo antigo, Cheio de Graça e Fé, refugio e abrigo, Benção da noite e prece da manhã, Só creio no Peccado ineluctavel, Na Maldição primeira inexpiavel, E no eterno reinado de Satan! II Quando o Tedio, com plumbeo capacete, Esmaga a fronte ao homem desolado, E o Fausto pensador vê a seu lado A Negação sentada ao seu bufete, Seu labio é vil tres vezes, se repete Preces vãs e esconjuros, humilhado: O nome de Homem, tragico e sagrado, Só a quem desafia a Deus compete! É grata a maldição á alma robusta Do que nenhum pavor divino assusta, E no Vasio ergueu seu templo e altar... Mais fecundo que o Céo, creou o Inferno A blasfemia.--Honra, pois, e preito eterno A Satan, que nos deu o blasfemar! 1873. XXIV EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL Quem vos fez, céo profundo e luminoso, Terra fecunda, poderoso oceano, E a ti deu vida, coração humano, Que és todo um céo e um mar mysterioso, Bem sabia que o céo, o mar, a terra, Tinham de ser só carcere e gehena; Que havia a vida ser só lucto e pena, E campo, o coração, de eterna guerra. Por isso o estranho artifice sombrio, Que, concebendo o plano da obra ingente, Ironico talvez, talvez demente, Logo se arrependeu e o confundiu; Não deu seu nome, como o archonte epónymo, Á obra de sua mente e sua mão: O Creador furtou-se á Creação... E sendo um máo auctor ficou--anonymo. 1879. XXV NA SEPULTURA DE ZARA Estes bellos versos não eram destinados á imprensa, e appareceram publicados em uma revista de Lisboa, sem consentimento do auctor ou da familia da menina cuja morte pranteiam. Anthero recusara-se a imprimil-os, como se vê da seguinte carta que appareceu entre os papeis de Eduardo Coimbra e que a mãe do mallogrado moço, a sr.^a D. Anna Coimbra offereceu com varios outros documentos ao mais querido amigo de seu filho: «_Villa do Conde, sabbado. Meu joven poeta São reservados, e pertencem ao nosso Joaquim os versos a que allude. É claro que sem licença d'elle não devem imprimir-se. Deixe-os no tumulo da desditosa criança, que lá fallam melhor aos que a estremeceram. Se porém combinarem trasladal-os para qualquer publicação, addiccione o meu amigo ao nome da pobre Zara o do desolado irmão. Para elle foram feitos, a elle serão dedicados. E nada mais por hoje, meu amado poeta Seu do C._ Anthero de Q.» ZARA A JOAQUIM DE ARAUJO Feliz de quem passou por entre a magoa E as paixões da existencia tumultuosa, Inconsciente, como passa a rosa, E leve, como a sombra sobre a agua. Era-te a vida um sonho. Indefinido E tenue, mas suave e transparente... Acordaste, sorriste... e vagamente Continuates o sonho interrompido. 1881. TRADUCÇÃO ALLEMÃ DE WILHELM STORCK Glückselig wer vorüberging am Weh Des Lebens und der Leidenschaft Getose Unwissend, wie vorübergeht die Rose, Und flüchtig, wie der Schatten ob der See. Dein Leben war ein Traum, begriffen kaum Und leicht und Lieblichkeit D'u trankest; Du wachtest auf und lacheltest und sankest Züruck in Deinen unterbroch'nen Traum. Münster, abril, 91. XXVI GLOSA CAMONIANA Dous ou tres dias antes da morte de Eduardo Coimbra (8, outubro, 84) escreveu Anthero esta bella quadra junto do leito, em que o moço poeta, quasi agonisante, lhe pedia «um improviso» para a carteira-album que pouco antes mandara comprar. Essa carteira offereceu-a a mãe do poeta em recordação dolorosa, ao fiel amigo, que rubricára n'ella o seu nome, junto do de Anthero, e que dias depois lhe entregava a chave do caixão do pobre Eduardo. GLOSA CAMONIANA (NA CARTEIRA DE EDUARDO COIMBRA) Pés em chagas, seguimos pela via Dolorosa, em demanda da Verdade; Mas achal-a entre os homens ninguem hade... _Triste o que espera_! _triste o que confia_! 1884. XXVII AS FADAS Estes versos foram escriptos em Lisboa, para a collecção--_Thesouro poetico da infancia_, que o proprio auctor coordenou. Foram lidos no dia immediato a João de Deus, «que delles se mostrou satisfeito», como Anthero escrevia a um amigo. «Para mim, poeta de genero apocalyptico, foi um verdadeiro _tour de force_.» AS FADAS As fadas... eu creio n'ellas! Umas são moças e bellas, Outras, velhas de pasmar... Umas vivem nos rochedos, Outras, pelos arvoredos, Outras, á beira do mar... Algumas em fonte fria Escondem-se, emquanto é dia, Sáem só ao escurecer... Outras, debaixo da terra, Nas grutas verdes da serra, É que se vão esconder... O vestir... são taes riquezas, Que rainhas, nem princezas Nenhuma assim se vestiu! Porque as riquezas das fadas São sabidas, celebradas Por toda a gente que as viu... Quando a noite é clara e amena E a lua vae mais serena, Qualquer as póde espreitar, Fazendo roda, occupadas Em dobar suas meadas De ouro e de prata, ao luar. O luar é os seus amores! Sentadinhas entre as flóres Horas se ficam sem fim, Cantando suas cantigas, Fiando suas estrigas, Em roca de oiro e marfim. Eu sei os nomes d'algumas: Viviana ama as espumas Das ondas nos areaes, Vive junto ao mar, sósinha, Mas costuma ser madrinha Nos baptisados reaes. Morgana é muito enganosa; Ás vezes, moça e formosa, E outras, velha, a rir, a rir... Ora festiva, ora grave, E vôa como uma ave, Se a gente lhe quer bulir. Que direi de Melusina? De Titania, a pequenina, Que dorme sobre um jasmim? De cem outras, cuja gloria Enche as paginas da historia Dos reinos de el-rei Merlin? Umas tem mando nos áres; Outras, na terra, nos mares; E todas trazem na mão Aquella vara famosa, A vara maravilhosa, A varinha do condão. O que ellas querem, n'um pronto, Fez-se alli! parece um conto... Mesmo de fadas... eu sei! São condões que dão á gente, Ou dinheiro reluzente Ou joias, que nem um rei! A mais pobre creancinha Se quiz ser sua madrinha, Uma fada... ai, que feliz! São palacios, n'um momento... Belleza, que é um portento... Riqueza, que nem se diz... Ou então, prendas, talento, Sciencia, discernimento, Graças, chiste, discrição... Vê-se o pobre innocentinho Feito um sabio, um adivinho, Que aos mais sabios vae á mão! Mas, com tudo isto, as fadas São muito desconfiadas; Quem as vê não hade rir. Querem ellas que as respeitem, E não gostam que as espreitem, Nem se lhes hade mentir. Quem as offende... Cautela! A mais risonha, a mais bella, Torna-se logo tão má, Tão cruel, tão vingativa! É inimiga aggressiva, É serpente que alli está! E têm vinganças terriveis! Semeiam cousas horriveis, Que nascem logo no chão... Linguas de fogo que estalam! Sapos com azas, que falam! Um anão preto! um dragão! Ou deitam sortes na gente... O nariz faz-se serpente, A dar pulos, a crescer... É-se morcego ou veado... E anda-se assim encantado, Emquanto a fada quizer! Por isso quem por estradas Fôr, de noite, e vir as fadas Nos altos mirando o céo, Deve com geito falar-lhes Muito cortez e tirar-lhes Até ao chão o chapéo. Porque a fortuna da gente Está ás vezes sómente N'uma palavra que diz; Por uma palavra, engraça Uma fada com quem passa, E torna-o logo feliz. Quantas vezes, já deitado, Mas sem somno, inda acordado, Me ponho a considerar Que condão eu pediria, Se uma fada, um bello dia, Me quizesse a mim fadar... O que seria? um thesouro? Um reino? um vestido de ouro? Ou um leito de marfim? Ou um palacio encantado, Com seu lago prateado E com pavões no jardim? Ou podia, se eu quizesse, Pedir tambem que me désse Um condão, para falar A lingua dos passarinhos, Que conversam nos seus ninhos... Ou então, saber voar! Oh, se esta noite, sonhando, Alguma fada, engraçando Commigo (podia ser!) Me tocasse da varinha, E fosse minha madrinha Mesmo a dormir, sem a vêr... E que ámanhã acordasse E me achasse... eu sei? me achasse Feito um principe, um emir!... Até já, imaginando, Se estão meus olhos fechando... Deixa-me já, já dormir! XXVIII O SOL DO BELLO O SOL DO BELLO RECITADA NA NOITE DE 13 DE MAIO DE 1862, NO THEATRO ACADEMICO, POR A. FIALHO MACHADO O sol do bello a todos alumia! Sua auréola cinge cada fronte Bem como o rei do dia, mal desponte, Dá luz egual a todo o sêr creado! Este baptismo santo envolve e lava Todos na mesma onda inspiradora! Queima com a mesma chamma abrasadora! Orvalha em egual pranto derramado! Juntas as almas, que o sentir enlaça, Commungam, como irmãs, na mesma taça! Vê-os, agora, artista.--Elles estendem-te Os seus braços e o affecto é que os impele! Esse braço, que vezes mil repele O laço, que em vão, tenta escravisal-o... A corrupção hypocrita de tantos... Que sabe resistir a quem o opprime... É esse que, n'um impeto sublime, Se ergue a ti, se ergue ao irmão para estreital-o. É que a alma, que não verga á tyrannia, Curva-se, livre, ao bello que a alumia! Sim! aquelles que do alto de um _vão throno_ --Mal firme throno que estremece ao vento-- Pedem, como tributo de um momento, Respeito, amor, affecto á mocidade, (Mas pedem como quem ordena a escravos) Não são esses aqui os respeitados! Não são esses que são aqui amados! Não escuta voz de imperio a liberdade! Mas quem de amor nos labios traz doçura Esse é que leva a flor de uma alma pura! Pura e nobre! Embora, despeitados, Lhe chamem louco e frio a esse peito... Não se acreditam vozes de despeito. Frio! quem diz que é frio o peito moço? Que o sentimento é extincto n'estas almas? Dil-o a _velhice_ que não tem no seio Nem uma voz de amor, nem um anceio, A dar ao bello, que arrebata o nosso:-- Dil-o quem a deseja corrompida... Porém na mocidade habita a vida! A vida! sim! Bem como em cofre de ouro Se guarda o que ha melhor, o que ha mais puro, Deu-lhe o Senhor a guarda do futuro, Confiou-lhe em deposito essas gemas --O amor, a fé, o bello, a liberdade! O amor! o que nos dá sentir profundo! A fé! a que nos mostra melhor mundo! A liberdade! a que espedaça algemas! O bello! a nossa flammula brilhante! E sobre tudo, a voz que brada--avante! XXIX IBERIA (_Do_ Seculo XIX, _de Penafiel, n.^o 20, 1864_). IBERIA I Flor dos povos! oh tu que inda te embalas, E inda em botão, aos ventos do futuro! Que tens por vazos e jardins e salas Toda a vasta extensão do tempo escuro! E frontes gloriosas a adornal-as, A fronte da historia, o grande auguro! Lirio que saes do seio á humanidade Como filha melhor--Fraternidade! Deixa que escreva aqui teu nome todo, E já d'aqui aspire teu perfume! E, arredando co'as mãos o frio lodo Do presente, me aqueça a esse teu lume! Deixa beijar-te em sonho, e d'este modo Trazer-te unida ao seio, que consumme Esta ancia ardente de destino novo, E este fogo roubado ao seio do povo! Porque te vemos só quando sonhamos... E, irmã! só nos sorris em nosso somno... E, a dormir, doce amiga, te beijamos! Tu--só em nossas almas--tens teu throno Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos, E, como um cão fiel segue o seu dono, Trazemos ante o olhar tua lembrança, E caminhamos cheios de confiança! Fraternidade! esta palavra é suave, Como antegosto de melhor destino! Como a onda de um Ganges que nos lave! E como a pósse de um penhor divino! Como o vôo sereno de uma ave Que, sendo apenas ponto pequenino, Emtanto faz, transpondo ao longe um monte, Sonhar com melhor céo e outro horisonte! O grande céo! o céo da humanidade! Onde os povos serão constellações, E, destillando a luz da liberdade, Serão astros e estrellas as nações! Onde hade o grande laço da egualdade Reunir a vontade e os corações! Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céos, Terão todos tambem o mesmo Deus. Não vejo outro Evangelho de ouro escripto Dentro no homem,--nem sei que outro areal, Outro cabo, outro monte de granito, Do grande navegar surja a final! Guiados pelo instincto do infinito É para lá que os povos--náo real!-- Hão a prôa virar lá quando um dia Marearem pela bussula harmonia! II Hãode então, como irmãos, reconhecer-se Os amigos--ha tanto tempo ausentes! Hão então (caso novo e estranho!) ver-se Face a face as nações, sem que dementes As entranhas se rasguem! e hade lêr-se Um protocolo, em letras de ouro, ingentes, Escripto, sem emenda e sem errata, Por mãos do amor--o grande diplomata! III Elle é quem concilia as differenças, Quem nos concilios hade erguer a voz, Tirando nova ideia e novas crenças Das esfriadas cinzas dos avós! E, sem trabalhos, e sem dôres immensas, E sem rios de sangue e pranto após, Rasgando o ventre á velha liberdade Sairá á luz a joven Egualdade! É doce vêr assim, á luz da esperança, Pelo futuro dentro, as cousas bellas... Prevêr do céo humano essa mudança, Que em sóes converte as minimas estrellas! Do passado infeliz eis a vingança! E dos _mortos_ as faces amarellas, Córando de ventura e de alegria, Hãode surgir, emfim, á luz do dia! IV E nós tambem, tambem commungaremos Na grande communhão das novas gentes: Tambem os nossos braços ergueremos --Braços livres de jovens impacientes-- E o cinto d'este _Velho_ quebraremos, De aonde a espada e o sceptro estão pendentes, (Já tão gastos!) lançando-os á ribeira... Para o coroar de palmas e oliveira! Hespanha--irmã! que boda alegre a nossa! Como hãode então teus seios palpitar! Que ribeira de lagrimas tão grossa Teu branco véo de noiva hade estancar! Como hade parecer pequena poça Para os _banhos_, então, o grande mar! E entornar-nos volupia nos desejos O mixto de odio antigo e novos beijos! ........................................ Mas tu 'stás presa!... e nós... 'stamos dementes! Separa-nos o abysmo! os teus algozes... A _cruz de Ignacio_... e as garras inclementes Dos _leões_ orgulhosos e ferozes... E a estupidez do _povo dos valentes_, D'estes pardaes de atroadoras vozes... Entre nós nos cavaram oceanos... Sejam-lhe ponte os corpos dos tyrannos! Porque beijas teus ferros, pobre louca, E cuidas 'star beijando cousa santa? E, tendo em tuas mãos cousa tão pouca, Tão tenue como a capa de uma santa, Pensas avassalar a terra amouca, E te ergues com vaidade e _gloria_ tanta? Oh! tu, cuidando os orbes abraçar, Só ruinas abraças--Throno e Altar! Lembre-te a voz do Cid! a atroadora Voz que se ouvia ao longe nos combates! Porque tu estás feita psalmeadora No côro das egrejas--porque bates No peito, em vez de erguer dominadora A tua mão em meio de combates, E livre e bella, oh Hespanha, olhar os céos Procurando por lá teu novo Deus! V Como nos amaremos, doce amiga! Como então amaremos! que noivado O nosso não será!... Não tem a espiga No campo côr melhor, nem mais doirado Esplendor, do que tu, bella _inimiga_. Hasde vêr a ventura... quando o estrado Do leito nupcial fôr Liberdade, E fôr docel o céo--Fraternidade. XXX VERSÕES E IMITAÇÕES EXCERPTOS DE UMA TRADUCÇÃO DO FAUSTO I *DEDICATORIA* Ainda uma outra vez, imagens fluctuantes, Vos ergueis ante mim, como outr'ora radiantes Ante mim, que vos fito em vago enleio incerto! Voaes... mas eu hesito em vos retêr agora... Assusta o meu olhar a luz da vossa aurora, E teme as illusões, meu coração desperto! Que aérea multidão! que virginaes choreas! Meu velho coração, pois que inda te incendeias Não é melhor ceder? sim, sim, rejuvenesce! D'entre as nevoas surgi, visões do tempo antigo! Sim, levae-me tambem no vosso bando amigo, Levae-me aonde ha luz e cantos, e alvorece! Reconheço entre vós as sombras fugidías De outro tempo melhor, de mais alegres dias: Meu coração evoca imagens adoradas... Susurra em torno a mim voz de saudoso encanto: É o primeiro amor, que passa como um canto De antigas tradições vagamente escutadas... E as lagrimas, tambem, correm silenciosas! O lamento dorido, as magoas saudosas, Renovam-se; desperta a dor que dormitava... Sim, a dor, ante mim, mostra-me os dias idos, E nomeia-me os bens, sob meus pés fundidos, Quando em minha illusão julguei que os abraçava! Almas a quem cantei, não me ouvireis agora! O circulo fiel dos amigos d'outr'ora Desfez-se como a voz d'este canto primeiro! Rodeia-me hoje a turba: o seu applauso é triste: Quem folgou de escutar-me, em tempo, se inda existe Disperso erra no mundo, ah! n'um mundo estrangeiro... Como a saudade então, uma longa saudade, D'esse reino encantado, onde ha paz e verdade, Me falla ao coração n'uma queixa sumida! Meu canto sobe e desce, incerto e fluctuante, Sobe e desce indeciso e com tom murmurante, Bem como uma harpa eólea aos ventos suspendida. E tremo sem saber porquê, e lentamente Sinto o pranto nascer, correndo docemente, Ungindo o coração que embala e adormece... O que tenho, o que sou, mal o vejo a distancia... É a nuvem no mar, é um sonho de infancia... Só, á luz da saudade, o passado apparece! II *NA CATHEDRAL* _Officios; orgão e canto._ MARGARIDA _no meio da multidão. O_ ESPIRITO RUIM _por detrás d'ella_. O ESPIRITO RUIM Como foste, como eu te conheci, E como estás mudada, Margarida! Que pensamento é que te traz aqui? Ainda adormecida, Tua alma ha pouco, lembras-te? buscava, Esta sombra do altar--mas não chorava, Não, não chorava as lagrimas que choras! Rezar era então brinco de criança, Para ti, innocente... Lias nas tuas Horas As tuas orações--e docemente Sorria a Deus tua infantil confiança... Margarida! Quantas ruinas em tão curta vida! Que pensamento occulto te tortura? E, no teu coração, Que peccado te roe essa alma impura? Não rezes: Deus não te ouve a oração! Rezas por tua mãe? por ti foi morta, Sim, morta lentamente, a infeliz! Olha o sangue espalhado á tua porta... De quem é elle, diz? E escuta! n'esse seio criminoso O que é que já se move? Sim, o que é que se agita, e te commove Com um presentimento doloroso? MARGARIDA Ai de mim! ai de mim! quem podesse livrar-me D'esta turba cruel de negros pensamentos! Vejo-os de toda a parte e a todos os momentos, Erguer-se em volta a mim, correndo a torturar-me! CÔRO E ORGÃO Dies irae, dies illa Solvet saeclum in favilla. O ESPIRITO RUIM Cae sobre ti a colera do céo! Sôa a trombeta! as campas se quebrantam! A terra estremeceu, Os mortos se levantam. Tambem teu miseravel coração, Que dormia desfeito, Já renasce das cinzas, já o chamam Para os fogos eternos que se inflammam... Teu pobre coração Estala-te tambem dentro do peito! MARGARIDA Oh! quem me dera ao menos d'aqui fóra! Esta musica faz-me uma afflicção! Este orgão parece alguem que chora... Parte-me o coração! CÔRO E ORGÃO Judex ergo cum sedebit, Quidquid latet apparebit, Nil inultum remanebit. MARGARIDA Que oppressão! que quebranto! A abobada estremece! Estas pedras, parece Que querem desabar! Soffocam-me de espanto Estes tectos escuros! Affrontam-me estes muros! Mais ar! mais ar! O ESPIRITO RUIM Esconde-te infeliz! e onde irá occultar Seu peccado e vergonha essa alma deshonrada? Mais ar? pedes mais ar? Ai de ti desgraçada! CÔRO E ORGÃO Quid sum miser, tunc dicturus, Quem patronum rogaturus Cum vix justus sit securus? O ESPIRITO RUIM Os justos no céo de horror e desgosto... De ti, de te vêr, desviam o rosto... Estende o inferno as mãos para aqui... Ai, de ti! CÔRO E ORGÃO Quid sum miser, tunc dicturus. MARGARIDA Visinha, dê-me os seus saes. (Cae desmaiada) III *A CANÇÃO DO REI DE THULE* Era uma vez um bom rei Em Thule--essa ilha distante, Ao morrer, deixou-lhe a amante Um copo de ouro de lei. Era um copo de oiro fino Todo lavrado a primor; Se fosse o calix divino Não lhe tinha mais amor. Seus tristes olhos leaes Não tinham outra alegria: E só por elle bebia, Nos seus banquetes reaes. Chegada a hora da morte Poz-se o rei a meditar Grandezas da sua sorte Seus reinos á beira-mar. Deixava um rico thesouro, Palacios, villas, cidades: De nada tinha saudades, A não ser do copo de ouro. No castello da deveza, N'aquellas salas sem fim, Mandou armar uma meza Para um ultimo festim. Convidou sem mais tardar Os seus fieis cavalleiros, Para os brindes derradeiros No castello á beira-mar. Então, vasando-o de um trago, E com entranhada magoa, Poz nas ondas o olhar vago E atirou com a taça á agua. Viu-a boiar suspendida, 'Té que as ondas a levaram: Os olhos se lhe toldaram, E não bebeu mais em vida! 1870-71. A DÔR (DO POETA HUNGARO SANDOR PETÖFI) O que é a Dôr? Um mar. E a alegria? Pérola occulta n'esse mar fremente. Quantas vezes a pérola encantada, Entre as rochas profundas sepultada, Se dissolve esquecida, lentamente, E nunca chega a vêr a luz do dia? 1881. A CASA DO CORAÇÃO IMITADO DO ALLEMÃO (_No Album da filha de João de Deus_) O coração tem dois quartos: Moram ali, sem se vêr, N'um a Dôr, n'outro o Prazer. Quando o Prazer no seu quarto Acorda cheio de ardor, No seu, adormece a Dôr... Cuidado, Prazer! Cautella, Canta e ri mais devagar... Não vá a Dôr acordar... ESTANCIAS IMITADAS DO ALLEMÃO Rebentam flores mil das minhas lagrimas, E só serpentes nascem dos meus cantos; É que os meus cantos são envenenados, E só puros, só doces os meus prantos. * * * * * Se queres conhecer o homem e o mundo, Não desvies de ti o olhar profundo; Mas foge de te ouvir e de te vêr, Se a ti mesmo te queres conhecer. 1887. ROMANCE DE GOESTO ANSURES (POSTO EM LINGUAGEM MODERNA) No figueiral figueiredo, Lá no figueiral entrei. Seis donzellas encontrára, Seis donzellas encontrei; Para ellas caminhára, Para ellas caminhei; Chorando a todas achára, A todas chorando achei; Logo ali lhes perguntára, Logo ali lhes perguntei, Quem foi que ousou maltratal-as, Tratal-as de tão má lei? No figueiral figueiredo, Lá no figueiral entrei. Uma d'ellas respondera: --Cavalleiro, não o sei... Mal haja, mal haja a terra Que tem máo e fraco rei, Que se eu as armas vestira, Por minha fé, que não sei Se homem ousára levar-me, Levar-me de tão má lei... Com Deus ide cavalleiro, Ide com Deus, que não sei Se onde me fallaes agora Nunca mais vos fallarei. No figueiral figueiredo, Lá no figueiral entrei. Eu então lhe replicára: --Por minha fé, não irei; Antes olhos d'essa cara Bem caros os comprarei; A longas terras distantes Só por seguir-vos me irei; Por caminhos dasvairados Atraz de vós andarei; Linguas moiras de aravias Por vós eu as fallarei; Moiros se me apparecerem A todos os matarei. No figueiral figueiredo, Lá no figueiral entrei. N'isto o moiro que as guardára, Perto d'ali encontrei: Se elle bem me ameaçára, Eu melhor o ameacei; Um tronco secco esgalhára, Um tronco secco esgalhei; Com elle a todos matára, A todos desbaratei; As donzellas libertára, Todas sim as libertei; Aquella que me fallára Com ella me casarei. No figueiral figueiredo, Lá no figueiral entrei. XXXI SONETOS DESPREZADOS Incorporamos aqui os Sonetos IV, X, XVI, XVII e XX, da collecção de Coimbra, de 1861, não incluidos no volume dos _Sonetos completos_. A M. E. Terra do exilio! Aqui tambem as flores Têm perfume e matiz; tambem vicejam Rosas no prado, e pelo prado adejam Zéfiros brandos suspirando amores: Tambem cá tem a terra seus primores; Pelos vales as fontes rumorejam; Tem as moitas seus sôpros, que bafejam, E o céo tem sua luz e seus ardores. Em toda a natureza ha amor e cantos, Em toda a natureza Deus se encerra... E comtudo esta é a causa de meus prantos! Eu sou bem como a flor que não descerra Em clima alheio. Que importam teus encantos? Não és, terra do exilio, a minha terra. AD AMICOS PROPTER SOLATIUM Renasço, amigos, vivo! Ha pouco ainda Disse ao viver: «_Afunda-te no nada_!» E já, bem vêdes, surjo á luz dourada, --No labio o rir, no peito esp'rança infinda! Ah, flor da vida! flor viçosa e linda! Envolto na mortalha regelada Do _só_ pensar--perdão!--foste olvidada... Flor do sentir e crêr e amar... bem vinda! A vida! como a sinto, ardente, immensa! Não unica! tomando a immensidade! Livre! perante Deus surgindo forte! Que amor! que luz! que pira vasta, intensa! Plenitude! harmonia! realidade! Mas melhor que tudo isto é sempre a morte! A Q. M. Q. Fica-te em paz! não pode a mão do homem Partir o seio á arvéloa queixosa, Quando o canto soltar, e a voz chorosa Erguer lá contra as magoas que a consommem. Respeito o teu sacrario: embora tomem Por orgulho o respeito; eu colho a rosa Mas não a flor modesta e melindrosa, Que se occulta entre as mais... e que as mais somem. Mais que amor tenho crença: essa existencia Pede-me um culto por quem dera a vida, Por que dou esta dôr, que aqui se encerra. Mulher! mulher! de que valera a essencia, A essencia pura, a uma alma que é descrida? Fica-te em paz: fique eu com minha guerra! IGNOTO DEO Corre aos braços da mãe o filho amado; --Por olvidar, volvendo a sua historia-- Corre á mente do inf'liz doce memoria; Corre á luz de um olhar o olhar buscado; Vem o alivio animar peito magoado; Corre o forte a buscar na morte a gloria; Desfeita do viver sombra illusoria, Foge o espirito livre ao seu anciado. Tudo busca quem o ama: a luz dourada Busca do seu viver, como no escuro Quem avista uma luz lhe vae ao encontro. Só tu, ventura! uma vez sonhada; Só tu, sombra de _amor_! que em vão procuro, Só tu, foges de mim, só não te encontro! IGNOTO DEO Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquelle Que tanta vez peccou, porém, contrito Tanta vez tem erguido a ti o grito Da aguia que o tufão no alto compelle. E a aguia soffre tambem, como ave imbele, E mais que ella (que põe mais alto o fito) Mas da aguia que luctou, o brado afflicto, Senhor! o teu ouvido não repelle. Eu não caio, meu Deus, sem ter luctado; Fraco sou, por que sou de barro e limo, Porém, na tua _Lei_ medito e scismo. E eu sou teu filho! A um filho desgraçado Que hade um pae recusar? Oh, dá-me arrimo, Estende-me tua mão por sobre o abysmo. XXXII FIAT LUX! (POEMETO) FIAT LUX! Et terra erat inanis et vacua. Tinham os astros já mil annos,--tinham Talvez cem mil--ou tinham um minuto-- (Pois quem sabe contar horas ou seculos No relogio--que tem o firmamento Por quadrante,--e algarismos, sóes e estrellas?) 'Stavam ha muito ali. O velho Cahos, O oleiro do infinito, que entre as duas Mãos--o tempo e o espaço--os amassára, Cansou por fim tambem de fazer mundos, Não tendo já mais barro, nem mais raios Com que o barro pintar. Ora, limpando As mãos, que estavam sujas do trabalho, E esfregando uma palma contra a outra, Soprou depois os restos, sem vêr onde, Por esse abysmo além. Oh pó de mundos! Migalha dos banquetes do Principio! Triste parto das sombras, atirado Sobre o berço de luz do firmamento! Morcêgo horrivel, meio tonto e cego, Cahido no salão de lustres de astros! O pó soprado, informe bola escura, Como filho engeitado, que se esconde Pela sombra dos muros, foi rolando Pelos cantos do espaço, involto em trevas... Que o não vissem os sóes. * * * * * E foi descendo, Extranho, negro, horrivel, monstruoso. E, quanto era maior a treva, ainda Mais o medo crescia que o olhassem... E mais o horror de si o endoudecia... E mais girava, immenso já de inchado De terror e delirio! Os grandes astros Como um viveiro immenso de fulgores Atiravam, de sol em sol, as notas Do eterno concerto... * * * * * E foi rolando, Vertiginoso e bebado de horrores! O feio, ebrio da mesma fealdade! O mal, possesso do seu mal! As trevas Cheias de medo de se vêr tão negras! E o firmamento arfava n'um delirio De harmonia e ventura! O espaço ardente Suava luz--girando no infinito-- Pelos póros do céo... que são estrellas. * * * * * Oh! como a ave da noite eterna, ao vêr-se Dentro do dia eterno... endoidecia! Como rolava tonta a um lado e ao outro Batendo as duas azas--Sombra e Espanto,-- Por todo esse infinito já não via Um só buraco que a escondesse! * * * * * O Abysmo --Escravo, mas heroe--chorava mudo... E engulia os soluços. Despojado, Que lhe havia elle dar? Os outros riam. * * * * * Oh! a belleza é cruel! A altura é fria! E impiedosa e feroz! A ave aérea Não tem dó do insecto! A virgem branca Pisa o negro reptil! o louro infante Crucifica o morcêgo! Os astros de ouro Viram a Terra assim... e não choraram! * * * * * Um riso louco, então, feito de raios Infinitos de luz, encheu o espaço! O giro das espheras cambaleava E estorcia-se, doido, em grandes frouxos De hilaridade e brilho! E o écco eterno Que em vez de voz, repete os esplendores, Confuso co'as mil ondas tumultuosas Parecia tempestade de harmonia. Todo o céo se inclinava, incendiado N'uma aurora boreal prodigiosa, Vendo o truão horrivel do infinito! * * * * * Foi então que o Abysmo, o triste escravo Dos senhores da luz--partido, oppresso Co'a immensa dôr d'aquelle rir,--não pôde Suster-se mais. Ouviu-se desde baixo Vir subindo um suspiro--e quantos éccos Da antiga confusão ha 'hi no espaço: E todas as tristezas que ficaram Dos combates de outr'ora: e os soffrimentos De quantas luctas houve, antes do tempo: E essas mil dôres, e essas mil torturas, Que custou cada sol: todo esse inferno De negrumes, que o céo lançou, despindo-os, Quando quiz ser só luz... de ais e gemidos Quando quiz ser só canto... a parte infame Que na injusta partilha coube ao Abysmo... Tudo isto, no suspiro do captivo, --Triste, mas grave; queixa, mas não súpplica... Antes accusação,--na voz debaixo Tudo isto ali subiu! * * * * * Os grandes astros Enfiaram de pasmo e emudeceram! E, se em seios de luz ha 'hi remorsos, Sentiram-no n'essa hora... * * * * * Então abriram-se As portas do silencio--e, como um sôpro Que agitasse as espheras, voz sem timbre (Se ha ouvir...) se ouviu: «_Quem faz chorar o Abysmo_?» * * * * * Oh! o grande bem e a grande formosura, Que tendo a estrella e o céo, inclina a face Para a grande abjecção! A Aurora immensa, Que quer saber quem escurece a Treva! A ventura sem fim, que se conturba Porque a desgraça soffre! O Abysmo horrivel Sentiu que seus mil males vacillavam, Sobre a base da eterna injúria, e se íam Co' esse sôpro de amor.--E estranho, e pávido, Duvidou se soffria e teve, em sonho, Como visões do céo d'onde o lançaram... E quasi perdoou... 'Stava adorando! * * * * * Oh, gotta de piedade, que adoçaste Aquelle oceano de injustiça! Oh, lagrima Teda feita de bem!... Bebeu-te o Abysmo! * * * * * E a Terra informe viu. Como o silencio De algum poço--que o fundo das montanhas Guarda velado pela treva--pode Ouvir, cheio de horror, o écco primeiro De uma pedra descendo: como o centro Da mina pode vêr o alvião primeiro Que a abre de par em par,--assim a Terra Viu a coisa sem nome que descia Pelo infinito abaixo. * * * * * Olhou transida. Era uma Mão--que parecia treva, Tanto brilhava! E vinha-se alongando Com cinco dedos--cinco continentes De luz--fixa, sem côr, indefinivel, Leviathan de brilho, pelo ether Descia--e as ondas de harmonia erguiam-se Como em tormenta de espleddor--horrivel... Tanto era bello! Ao longe, ao longe, ao longe, 'Té aonde a visão abre os espaços, A orla do infinito radiava. * * * * * E cada sol, e cada estrella, vendo Aquella Mão descer, dizia--_Certo Que me vem afagar_!--E estremecia. E a Mão passou em face das estrellas... Mas não as viu.--Passou o grande côro Dos sóes... e não os viu.--A via-lactea... E não a viu.--E foi seguindo ávante. * * * * * Lá onde o escuro é tanto que suffoca O tempo, no nevoeiro esquecimento, Onde em vaga fronteira se confundem O sêr e o não sêr--lá para o extremo, É onde a Mão já ía... * * * * * E os grandes astros, De sol em sol, de um horisonte ao outro, Inquietos, através do ether immenso, Lançavam vozes de ouro, perguntando «_Onde vae o Senhor_?» * * * * * E a Mão descia. Já não havia mais. Tinha chegado Por defronte da Terra. E n'essa hora Dois infinitos--um de horror, e o outro Infinito esplendor, se contemplaram. * * * * * E os astros de ouro pelo céo disseram: «_Eis que Deus vae brincar tambem co'a Terra_!» E a Mão estava. E a Terra negra olhava-a, Como um selvagem um espelho; o susto Co'o prazer inefavel combatiam-se Lá dentro... e a massa informe estremecia. Convulsa se agitava. Fascinada Parecia recuar... e approximava-se! E, n'um ultimo esfôrço, dando um salto Enorme, por fugir--cahiu no centro D'aquella Mão. * * * * * E os astros murmuravam Aos sóes: «_Certo que Deus a precipita_!» * * * * * Mas a Mão não se abriu para lançal-a. Os grandes dedos sobre a massa horrivel Se fecharam. Pareciam, sobre o corpo Tenebroso, que tinham apertado, Cinco chagas de luz. E consultaram. * * * * * Os cinco dedos entre si disseram: «_Que havemos nós fazer a isto_?» E todos Immoveis ali estavam. E entre os dedos D'onde--bem como um sapo entre os dois seios De uma virgem--a Terra olhava o espaço, Pareceram-lhe ao longe os grandes astros Como pontinhos negros. Um segundo Roubado á eternidade é quanto basta, Quer se seja morrão, quer seja estrella. * * * * * Então a grande Mão abriu-se e disse Á Terra: _Vae_!--E como aguia sublime Desde os Alpes se atira, a Terra ergueu-se, Levando um vôo immenso entre as estrellas! * * * * * Viam-se-lhe luzir no dorso negro Cinco traços de luz! Leito de brilho Aonde os cinco dedos se poisaram! E lepra de esplendor! * * * * * Rolou no espaço. E os astros entre si se consultaram: «_Dar-lhe-hemos nós logar_?» E o Sol altivo Fallou e disse:--Eu vejo-lhe no dorso Uma mancha de luz--a _Natureza_! E a Lyra disse:--Eu vejo-lhe outra fórma Resplendente--é _Idéa_! E Vesper disse: --Eu vejo-lhe um signal de affago--é _Alma_! E Venus disse:--Eu vejo reluzir-lhe Uma cicatriz de luz--é _Amor_! E disse, Então, o Sete-estrello:--Eu adoro-lhe Como o sitio de um beijo do Eterno... --É _Immortalidade_! * * * * * E o côro immenso Abriu-se e deu logar á Terra escura, De cuja face cinco grandes f'ridas Gottejavam a luz--a _Natureza_, Que tem de Deus a força; a _Idéa_, filha Da immensidade d'elle; a _Alma_, eterna Como seu sêr; o _Amor_, que é olhar d'elle; E a _Immortalidade_ luminosa, Que é o berço onde n'elle repousámos. * * * * * ........................................ ........................................ ........................................ E, agora, oh Terra! que és, entre mil rodas, Uma roda do carro--vae rolando E desprende, ao rodar por sobre o tempo, Tuas cinco faíscas prodigiosas, Pela estrada do Sêr--a Eternidade! Bussaco, Outubro de 1863. XXXIII OMBRA OMBRA (DA ANTHERO DE QUENTAL) Quando Cristo sentì che la sua ora Giunta era alfine, a quei che lo cercavano Grave, calmo, sereno appresentossi. Venia la turba in arme! Ma di tanti Non un sol si attentó muovere il passo E por la mano in su il figliuol dell'uomo. Tutti con bassi gli occhi, a Gesú innanzi Inerme, nascondean l'armi. Ma quegli, Che il doveva tradir, fattosi presso, Lo strinse fra le braccia mormorando _Dio ti salvi Maestro_! E, siccome era Pattuito, baciollo in sulla faccia. Cosí gli altri avanzandosi, lo presero. Ma Gesú, gli occhi al ciel, senza vederli Li perdonava e li seguia sereno. Era scabro il cammino. In cima a un monte Saliano; e da' due fianchi e giuso al basso, Su la terra era notte. E, quando al fine Aggiunser la più eccelsa erta del colle, Di repente fu visto illuminarsi Uno de' lati d'una blanda e dolce Luce; ma immensa. E quanta terra in quella Dal monte all' oceàn capia, su cui, Dall'alto riflettendosi, la viva Face splendea, si rischiarava tutta Da valle a monte, e risalia la bianca Luce a mezzo l'azzurro arco del cielo. E puro somigliava albor lunare O da quel lato rinascente aurora. Ed era questo il lume che su Giuda Non risplendea, Dall' altra parte intanto Era tenebra fonda e parea come Di quei triste il delitto ella ascondesse Tutt' all' ingiro, in procellosa notte Biancicante di neve all' orizzonte. Cosí, divisa in due parti la terra, Involta questa rimanea nell' ombra. ........................................ Fu da quest' ombra che la chiesa nacque. Domenico Milelli, _Rottami_, p. 39. 1890. FIM INDICE Dedicatoria Explicação prévia Escorso biographico de Anthero de Quental Autobiographia de Anthero Bibliographia I--Palavras aladas II--Laço de amor III--Força--Amor IV--Paz em Deus V--N'uma noite de primavera VI--Psalmo VII--Á beira-mar VIII--Aspiração IX--A Pyramide no deserto X--Desalento--Conforto XI--A senda do Calvario XII--A João de Deus XIII--Per amica silentia lunae XIV--Na primeira pagina do Inferno de Dante XV--Dante--Divina Comedia XVI--Momentos de Tedio (Sonetos) I. Sinite parvulos II. A um Crucifixo III. Decomposição IV. Nihil V. Quinze annos VI. Sarcasmos XVII--Amor de filha XVIII--Gargalhadas XIX--Á Italia XX--A Gennaro Perrelli XXI--Guitarrilha de Satan XXII--Serenata XXIII--O Possesso (Sonetos) XXIV--Epigramma transcendental XXV--Na Sepultura de Zara Versão do Dr. Storck XXVI--Glosa camoniana XXVII--As Fadas XXVIII--O sol do Bello XXIX--Iberia XXX--Versões e imitações Excerptos de uma traducção do _Fausto_: I. Dedicatoria II. Na Cathedral III. A canção do Rei de Thule A Dôr, imitação de Petöfi A casa do Coração (do allemão) Estancias (do allemão) Romance de Goesto Ansures (ao moderno) XXXI--Sonetos desprezados XXXII--Fiat lux! (Poemeto) XXXIII--Ombra, versão italiana de Domenico Milelli _Acabado de imprimir_ EM 10 DE JUNHO DE 1892 _commemorando o 312.^o anno_ DA MORTE DE CAMÕES * * * * * NA TYPOGRAPHIA DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS para *M. GOMES*, LIVREIRO-EDITOR estabelecido na Rua Garrett (Chiado), 70-72 LISBOA. M. GOMES, Livreiro-Editor _70, RUA GARRETT (CHIADO), 72--LISBOA_ Livreiro de Suas Magestades e Altezas EDIÇÕES Visconde de Condeixa O Mosteiro da Batalha, 1 vol. gr. in folio illustrado com 26 heliogravuras 13$500 Alberto Braga Contos escolhidos, ed. illustrada por Casanova. 1$000 Edmond Demoulins O socialismo perante a sciencia social, 1 vol. $200 A. de Oliveira-Soares O Paraiso perdido $700 Macedo Papança (Conde de Monsaraz) Poesias: O ultimo romantico--Paginas soltas--Severo Torrelli, 1 vol. 1$000 Griselia, mysterio, traducção em verso, 1 vol. $500 Colette (Claudia de Campos) Rindo, 1 vol. de Contos. L. A. Palmeirim Os excentricos do meu tempo, 1 vol. Alfredo da Cunha Endeixas e Madrigaes, 1 vol. de poesias Cartonado H. Lopes de Mendonça A morta, drama em verso 1 vol. José de Lacerda Flor de pantano, 1 vol. de poesias Antonio Vianna José da Silva Carvalho e o seu tempo, 1 gr. vol. e _fac-similes_ ULTIMAS NOVIDADES _em livros francezes, italianos, hespanhoes, allemães e inglezes que põe á venda no mesmo dia da publicação, sobre litteratura e todos os ramos das sciencias_ * * * * * Assignaturas de jornaes, pelos preços do estrangeiro, para o que tem montado serviço especial * * * * * COMMISSÕES Encarrega-se de quaesquer que lhe incumbam para o que tem correspondentes especiaes em todos os paizes. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Raios de extincta luz - poesias ineditas (1859-1863)" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.