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Title: José Estevão - (Edição do centenario)
Author: Sousa, Eduardo de
Language: Portuguese
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Eduardo de Souza

José Estevão

(Edição do centenario)

Livraria Moreira-Editora

Porto--1909



Eduardo de Souza

José Estevão

(Edição do centenario)

Livraria Moreira-Editora

Porto--1909


_Typographia a vapor de Arthur José de Souza & Irmão_

66. Largo de S. Domingos, 67



QUINZE ANNOS DEPOIS


Passa o primeiro centenario de José Estevão e a sua terra natal
celebra-lhe com festivaes a commemoração de gloria. Era do seu dever. Era
de honra sua.

Eis porque tambem sahe agora a lume a reproducção--segunda--d'essas
sinceras e desataviadas palavras que uma vez, por occasião das ultimas
festas commemorativas do grande tribuno, o signatario d'este opusculo
teve ensejo de pronunciar no Theatro Aveirense. Foi no radioso e, para
elle, inolvidavel sarau de 13 de agosto de 1894, tão cheio de galas e
d'esplendores, e em que a unica nota discordante, gentilmente perdoada
pela benevola assistencia, foi precisamente devida á palavra pallida e
sem louçanias do ephemero e arrojado orador que alli appareceu--nem elle
já se lembra bem como!--a dizer de José Estevão e da sua grande
eloquencia.

É, pois, esta reedição, agora que passa o centenario do tribuno, do
mesmo passo que uma opportuna homenagem, como que tambem uma especie de
publicação posthuma feita por quem, como orador, ha muito já se deu por
definitivamente morto. Sobre o seu nome oratorio, fruste e fugaz, cahiu
com justiça e, porventura, com piedade, a irremovida, a grossa, a pesada
terra do esquecimento. Felizmente para elle! Felizmente para os outros!

Todavia, se requintes litterarios e movimentos oratorios, como
conspicuamente se dizia nos bons tempos em que o ominoso e erudito
Figueiredo coimbrão dos «Logares Selectos» empunhava com gravidade a
férula didactica de canonista supremo em coisas de eloquencias e de
rhetoricas, não caracterisam nem valorisam a parlenda que adeante se
reproduz, tem ella, no emtanto, o merito--unico--da sinceridade na
emoção e do desassombro nas affirmações que contém. Porque, se para o
orador foi um acto de audacia, só desculpavel pela temeridade da
juventude, apresentar-se a fallar em publico no logar e nos termos em
que fallou, não foi menos um ousado gesto de coragem civica abalançar-se
a dizer o que disse e quando o disse--em plena dictadura
Hintze-Franco--com a aggravante de pouco tempo ser volvido ainda sobre o
sangrento e mallogrado movimento politico do Porto que o arrastara ao
pretorio, e do pretorio á prisão. Demais era elle um alumno militar e,
como tal, sujeito a regulamentos especiaes, aliás então bem mais
benignos do que esses outros, verdadeiramente draconianos, que ora para
ahi vigoram como doutrina legal.

Eis aqui os titulos pelos quaes essas paginas que adeante vão impressas
ainda hoje são muito gratas ao auctor, e o principal motivo porque elle
as reedita, concorrendo assim mais uma vez com o seu modesto tributo
para a glorificação do portentoso tribuno liberal.

Publicadas pouco depois em opusculo, completamente esgotado e esquecido
já, essas paginas, desvaliosas como são e como desvalioso ao tempo
era--e ainda hoje é--o seu auctor, nem por isso a dictadura d'então
deixou de procurar molestal-o, _sob a falsa denuncia official_, d'elle
haver proferido o seu discurso, se assim se lhe póde chamar, n'um...
comicio republicano!

Por esse motivo foi elle chamado a Lisboa á presença do Commandante
Geral da Armada,--era assim que então se dizia--o vice-almirante
Baptista d'Andrade que, depois de o ouvir, o mandou tranquilla e
amavelmente em paz, quando se inteirou de que o «feroz tribuno» para o
qual se lhe insinuavam as fulminações das suas reprimendas ou
procedimento mais grave ainda, se limitara, no pleno uso do seu direito
e sem aggravo da disciplina, a tomar parte n'um sarau litterario-musical
promovido por uma commissão de que era presidente o governador civil de
Aveiro e ao qual este mesmo presidira, sendo até, por signal, o primeiro
a felicitar calorosamente o orador pelo seu discurso, sem duvida
impulsionado n'esse acto cortez mais por um requinte de benevola
gentileza, do que por quaesquer problematicos meritos oratorios que
n'elle vislumbrasse...[1]

Os tempos eram ainda então um pouco diversos dos de hoje, como se vê, e
os homens em evidencia nos meios politicos, algo mais toleraveis, em
regra, na sua estatura mental e moral do que a grande maioria dos
d'agora.

Se até os proprios rapazes das escolas--os do _Ultimatum_, os d'essa
geração academica a que o auctor pertenceu--eram todos mais ou menos
como elle, desinteressados, desempennados, enthusiastas, irreverentes,
saccudidos por fremitos generosos, susceptiveis dos mais ousados
movimentos, como dos mais tresloucados disparates. Se até pensamos muito
a serio em organisar um batalhão academico que fôsse expulsar os
inglezes do Chinde, começando mesmo a fazer-se uma inscripção especial,
que mais ávante não foi pela sensata intervenção do governo... Sem
duvida, que eramos todos ingenuamente patriotas e candidamente
democratas!

Novos, muito novos que então eramos, seguramente! Mas já tinhamos
devorado todos os grandes Romanticos; e, se na nossa alma vibratil
encontrara um echo apaixonado a inspirada canção alacre de Mimi, tambem
o nosso coração palpitara ardentemente com os êstos inflammados
d'Enjolras, soberbo e loiro, juba ao vento, trepando por entre fumo e
balas ao alto da barricada...

Novos, muito novos que então eramos, seguramente! Mas conheciamos todo o
movimento litterario, scientifico e artistico contemporaneo. Poderiamos
ignorar, por ventura, não poucas vezes, as lições estopantes dos
compendios da aula; mas o que, com certeza não ignoravamos, eram as mais
modernas estrophes de Moréas e Verlaine, toda a obra poetica dos
_parnasianos_, os poemas marmoreos de Leconte de Lisle, e as rimas
acirrantes e esplendidas de Baudelaire. Os nomes de Flaubert e dos
Goncourt não sahiam das nossas boccas, n'uma encantação perenne; e era
com uma anciedade viva, com um fervor religioso, que aguardavamos os
volumes mais recentes de Bourget e Daudet e da galeria gigantesca dos
Rougon-Macquart. _Germinal_ desabrochara e florira para nós n'um Sinai
de fulgurações e assombros...

Novos, muito novos que então eramos, seguramente. Mas entre nós havia, e
em não pequena cópia, quem folheasse febrilmente todo o pensamento
contemporaneo--os philosophos, os sociologos, os naturalistas... A
anthropologia e a prehistoria tinham, nos nossos grupos, ferventes
cultores. Fundavamos associações scientificas, como essa que se formou
sob a invocação do nome glorioso de Carlos Ribeiro. Tinhamos revistas
litterarias e revistas de sciencias; e redigiamos jornaes de combate.
Eram da nossa _souche_--para só fallar dos mortos--poetas como Antonio
Nobre, publicistas e ethnographistas como Rocha Peixoto, jornalistas
como Hygino de Souza...

Por isso o brusco advento da Republica Brasileira fôra para quasi todos
nós uma revelação e uma iniciação, gerando a esperança que nos inspirou
e acalentou quando a affronta do _ultimatum_ inglez nos feriu até ao
coração e nos pungiu até ás lagrimas e... até á cólera. E vibramos, e
protestamos, e actuamos tão intensamente que seduzimos e attrahimos até
nós, como guias e como balsões de redempção e luz, poetas e pensadores
formidaveis, como Anthero e Junqueiro...

Novos, muito novos que então eramos, seguramente. Mas já as «Farpas»
haviam sido a nossa biblia. Com ellas aprenderamos a zombar dos nossos
_grandes homens_ que então ainda davam as cartas na sociedade e na
politica. Com ellas haviamos lobrigado, dentro dos seus vultos
magestosos e imponentes, a estopa misera e ridicula que os enchia e
atufava...

O Eça tinha-nos modelado e descoberto já tambem, com a sua subtil arte
incomparavel de ironia e belleza, o conselheiro Accacio--esse
symbolo!--que nós viamos irreverentemente em toda a parte e em todos os
grandes logares, perseguindo-o com a nossa troça implacavel, com a nossa
galhofa insultante e cruel--no parlamento, na burocracia, na cathedra e
no jornalismo...

Ai de nós! ai de nós! que vamos envelhecendo e que todos pouco mais ou
menos então assim fomos, vibrantes e combativos, vivendo no azul dos
grandes ideaes, nutrindo-nos, cheios de crença, de todas as espirituaes
curiosidades luminosas! Ai de nós! ai de nós! que assim fomos, quando
eramos novos, mas que nada tinhamos de mesquinhos e de subservientes,
tendo feito da rebellião um culto e da irreverencia uma catapulta! Ai de
nós! que, se temos de chorar hoje a nossa mocidade que lá vai, de
revivêl-a com os olhos humedecidos d'agua, e--como diz o poeta--

    _...volver para traz o nosso olhar plangente,_
    _Para traz, para traz, para os tempos remotos,_
    _Tão cheios de canções, tão cheios de embriaguez,_
    _Porque, ai! a juventude é como a flôr do lotus_
    _Que em cem annos floresce apenas uma vez!_

ai de nós! que, se assim temos de carpir esses dias cheios, bellos e
irradiantes, não temos felizmente de amaldiçoar, n'um arrependimento, os
nossos ideaes d'então, as nossas crenças, os nossos odios e mesmo as
nossas loucuras. Da sua memoria ainda hoje vivemos, no seu enlevo ainda
hoje nos consolamos, a sua saudade ainda hoje nos inspira. Porque, se
somos ainda hoje intransigentemente liberaes e firmemente democratas, é
porque muito grande foi a nossa esperança e muito vivo o nosso ardor. E
ante as gerações que nos succederam, creadas, como ahi se está vendo,
precisamente no culto do conselheiro Accacio--o conselheiro Accacio, o
nosso supremo odio!--timoratas, respeitadoras, tementes a Deus e á
Ordem, genuinas filhas da lei escolar do snr. João Franco e do
açambarcamento didactico de Loyola e S. Thomaz, nós, que nos
consideravamos tão pequenos já em face das duas gerações egregias que
immediatamente nos haviam precedido, forçados somos agora á amarga
decepção de termos de nos considerar comparativamente grandes, ao
conspecto da miseria que por ahi vai d'uma mocidade de velhos precoces e
calculistas, sem alôres, sem norte, sem vertebras, conselheiros _in
herbis_, archeiros por vocação e sachristães ingenitos, irmãos de
confrarias e confrades de Ligas conservadoras, deixando-se arrastar até
á ignominia suprema de acatarem como mentor um velho beato como o snr.
Samodães e de seguirem docilmente, como a um cornáca, ao festejado e
festeiro meu caro Lencastre--dos vivas e das viajatas...

Que enorme distancia moral entre 1890 e 1909!

      *      *      *      *      *

Mas agora reparo que já vae longa esta prefação, bem mais longa do que
minha intenção era ao traçar-lhe as primeiras linhas. Prolixidades e
rabujices, sem duvida, de quem começa a envelhecer e que só
verdadeiramente ainda sente e vibra, ante a desconsolação do presente,
com a emotiva saudade do passado que, a cada dia que foge, mais e mais
se afunda no occaso. O leitor benevolo desculpará, porém, o
comprehensivel e perdoavel desabafo, tanto mais que, quando os _novos_
hoje se apresentam degenerescentemente velhos, não deve ser d'estranhar
que, ao menos _por honra do convento_, aquelles que já attingiram a
altura da vida d'onde começa a avistar-se a declinação do poente, como
que se sintam obrigados a lembrar-lhes o quanto e como fôram moços e a
mostrar-lhes o quanto ainda de mocidade lhes resta nas bastantes
energias.

E a opportunidade do centenario de José Estevão é flagrante para o
proposito. D'ahi a resurreição d'esse discurso que adeante se estampa.

Como ha quinze annos, na carta ao dr. Mello Freitas, posso e devo ainda
hoje repetir, por minha parte, na actual consagração centenaria de José
Estevão e perante o movimento liberal que se define e ella testemunha, o
que eu então dizia, concluindo:--«Não defino a minha
attitude--confirmo-a».


Porto, 17--XII--1909.

                                                       _Eduardo de Souza._



AO DOUTOR

Joaquim de Mello Freitas

Synthetisando a commissão organisadora do sarau

                                                                Homenagem.



                                                              _Meu amigo:_


_Se a memoria de amabilidades e attenções que não mereci, mas que
penhoraram a minha gratidão, não impuzesse acima de todas as
considerações esta dedicatoria, bastariam a justifical-a o seu nome tão
popular e tão querido em Aveiro, a sua limpida tradição de democrata
intransigente e os seus incontestaveis talentos de periodista illustre._

_Bem sei que, se quizerem apreciar as palavras que adiante seguem
atravez do prisma de merecimentos litterarios que totalmente as
desguarnecem, ellas nada valerão; todavia em algum conceito as poderão,
acaso, conservar as consciencias honestas e os leaes corações, se, por
ventura, em parlendas d'esta natureza, de alguma cousa valem sinceridade
e desassombro. Proferidas ha apenas quatro mezes, em periodo franco de
dictadura, talvez que ellas nunca mais sahissem á publicidade se a
reacção politica se não accentuasse agora, dando-lhes, portanto, uma
opportunidade nova._

_Circumstancias especiaes, que todos os que me conhecem podem apreciar
devidamente, impôr-me-hiam talvez a conveniencia de me acingir a um
palavroso e esteril discurso academico, se para isso as minhas apoucadas
forças dessem; mas, fallando-se de José Estevão, o grande tribuno da
Liberdade, o meu coração de patriota impunha-me o dever, que
singelamente cumpri, de lavrar um vibrante protesto contra essa
regressão triumphante que, dia a dia, se vae affirmando._

_Felizmente que, no momento em que escrevo estas linhas, são chamados
todos os liberaes a definir a sua attitude na defeza das liberdades
esmagadas... Eu não defino a minha--confirmo-a._

_Creia-me sempre, caro doutor,_

_Porto, 11--XII--94._

                                                 _Seu am.^o m.^to obg.^do_

                                                       _Eduardo de Souza._



                                        _Minhas senhoras e meus senhores:_

Ha cinco annos, n'este mesmo logar, mergulhado na obscuridade de onde
talvez o meu nome nunca devêra ter sahido, assistia eu á brilhante
glorificação do filho mais illustre d'esta terra, á apotheose magnifica
de uma das mais nitidas e mais crystallinas glorias da nossa patria.
Aveiro pagava então a José Estevão a sua divida de honra e de gratidão,
levantando-lhe essa estatua que, lá fóra, n'um amplo e arrojado gesto,
parece atirar aos espaços alguma d'essas apostrophes de lava que faziam
a maravilha e o assombro de uma eloquencia como outra ainda não houve
mais.

Para aqui, para o logar em que me encontro agora, destacara então o povo
dous dos seus mais queridos e mais ardentes tribunos, de um dos quaes
Aveiro se honra e se orgulha, tambem, por certo, de ser adoptivo
berço[2]; a tribuna parlamentar enviara uma das suas mais firmes e mais
bem merecidas reputações, lustre do fôro, mestre na jurisprudencia[3]; e
a arte inimitavel da palavra, a fina e perturbante eloquencia que seduz
e domina como os canticos magicos e traiçoeiros das sirenas, aqui puzéra
a voz mais captivante da moderna oratoria portugueza. Em Antonio
Candido, meus senhores, na sua attica eloquencia, repassada d'um mundano
e amavel scepticismo, infelizmente desgarrada dos magnos principios em
que os grandes corações e os fortes espiritos se robustecem e se
retemperam, encontrou a grande, a extraordinaria voz de José Estevão,
tão repassada de coração, tão espontanea de sinceridade, tão consciente
de justiça, a consagração mais encantadora que palavra de artista pagão
entretecer pudera com o nectar dulcissimo dos deuses e as notas mais
harmoniosas que lhe trouxessem os echos perdidos da já longiqua Ágora
hellenica. Ao enorme orador-prodigio o magico orador-artista thuribulava
então a gloria. A Demosthenes morto, mas redivivo nos espiritos e nos
corações, dir-se-hia que Eskines porfiara em levantar o monumento mais
magnificente na oração a mais offuscante... Aqui tambem, meus senhores,
o filho de José Estevão, como se já lhe não bastasse a lyra; como se o
romance ainda pouco fôsse para lhe realçar o nome feito de poeta; como
se a imprensa se lhe antolhasse ainda campo em demasia estreito para o
seu querer sempre inquieto; procurando novos horisontes á sua
intelligencia insatisfeita, arcando com o peso incommensuravel d'uma
gloria herdada, ousou por um momento remexer nos paternos loiros; e da
sua oração opulenta ainda eu guardo, senhores, ainda guardaes vós
outros, por certo, a recordação do frémito enthusiastico com que lhe
saudamos o arrojo no deslumbramento da victoria.

E hoje, meus senhores, hoje... estou eu aqui, na oratoria mesquinho,
modesto na intelligencia, e, com um nome obscuro, ouso enfileirar-me ao
lado de collegas meus que, em Coimbra e no Porto, conseguiram já
aureolar seus nomes n'um diluculo brilhante promettedor das mais
esplendidas manhãs no talento e no trabalho. E porque vim eu aqui?
Porque me pareceu que esta era uma festa da Liberdade, e, como n'uma
epocha em que as liberdades vão sendo cerceadas, é perigoso saudar a
Liberdade e pugnar pelos seus direitos, eu vim aqui! Vim aqui, senhores,
porque nos termos penhorantes, impressivos, instantes com que me honrou
o immerecido convite de collegas meus nas escolas e vossos conterraneos,
eu quiz vêr a indicação de um arduo dever a cumprir. E, se nos talentos,
se nos meritos, eu me reputo dos derradeiros, na sinceridade, na
dedicação, com orgulho reclamo um dos primeiros logares para mim. Por
isso é que eu estou aqui.

      *      *      *      *      *

Meus senhores: É nos periodos mais agitados da historia dos povos,
quando os principios se degladiam mais rudemente, quando as paixões
desencontradas se precipitam na mais accêsa lucta, ou quando as
nacionalidades perigam n'alguma d'essas crises agonicas de onde surgirá
a sua morte ou a sua revivescencia que os grandes oradores, as vozes
extraordinarias que dominam e arrastam, que captivam e seduzem, que
subjugam mais do que convencem, estrugem tambem sobre as multidões
incertas, levando-as á decisão suprema que determinará a orientação
futura. N'essas vozes sem par, que ainda ficam resoando atravez dos
tempos, quaes clanglôres heroicos de trombeta, mais altos, mais sonoros
na amplificação formidavel das eras que sem cessar se desdobram e
continuam, sente-se palpitar a carne viva das ideias, sente-se correr
impetuoso, o quente, o rubro sangue da patria.

E assim, na Grecia, é a voz severa de Demosthenes que se ergue deante da
politica absorvente de Filippe. E ás bellas cidades gregas, ás perolas
da Hellade, onde pela primeira vez floriu a Liberdade; onde o mel divino
escorria suavissimamente dos labios encantados de Platão; onde a fórma
attingia a sua mais sublime essencia no cinzel perdido de Phidias, e
onde Phrynéa, a belleza suprema, prostrava a seus pés, vencida e
deslumbrada, a fria e severa justiça;--ás bellas cidades gregas que as
primeiras foram que inspiraram, que ouviram e que cantaram as rhapsodias
sublimes de Homero errante;--ás bellas cidades gregas, queridas dos
deuses, banhadas pelos mares azues que viram passar as velas enfunadas e
aventurosas dos argonautas, e de cuja branca espuma, fina como as
rendas, suave como os velludos, se formou o corpo fresco e bello e vivo
da Venus Amphytrite;--ás bellas cidades gregas, desunidas e descuidadas,
immersas nos requintes e na molleza da mais refinada civilisação,
scepticas, epicuristas, sensuaes, o verbo flammejante de Demosthenes,
sobrio, implacavel de razão e de justiça, impetuoso e ardente, chama á
lucta pela Liberdade e pela Independencia, acoroçoando as energias
abatidas, pregando a religião do dever civico, da honra e da dedicação á
patria. E, quando em Cheronéa as hostes do macedonio abateram por fim a
democracia hellenica, a sua voz resurge no desastre, mais vigorosa, mais
ardente, mais sublime, encontrando na dôr e na indignação a sua mais
excelsa nota, e, por toda a Grecia, perante a victoria de Fillippe,
perante o dominio omnipotente de Alexandre, por todas as cidades, por
todas as ilhas, por todos os recantos do continente e por todos os echos
dos mares onde outr'ora resoara a voz do rhapsodo sublime, o verbo do
orador resoou tambem, sublimemente, resumindo a alma moribunda da
Grecia, fazendo á liberdade da patria as exequias mais portentosas e
dando ao espirito grego o mais assombroso epitaphio--o unico digno dos
hexametros de Homero...

É tambem nos ultimos periodos da Republica Romana, quando a velha, a
barbara cidade de Romulo; a republica severa dos Cincinnatos e dos
Catões, senhora do mundo; tendo levado as suas legiões victoriosas de
norte a sul, de oriente a occidente, destruindo imperios, subjugando
povos, escravisando reis; vencedora de Hannibal e de Carthago; opulenta,
magnificente, faustosa; apopletica de riquezas e anemica já de virtudes;
quando os famintos, os rotos, os miseraveis, os nús se levantavam
reclamando o seu magro quinhão nos thesouros fabulosos dos Crassos e dos
Lucullos; quando Sylla havia já raivado n'uma furia de perseguições e de
sangue, e Mario, desterrado, fôra acabar nas solidões de Minturno; é
então que a voz de Cicero, cheia de finura e de encantos, d'uma subtil
argucia posta ao serviço de uma obra de justiça, rendilhada, fina,
irresistivel echoou pela primeira vez no Forum, encadeiando nas suas
graças a vingança impendente do Dictador.--E, quando a liberdade romana,
prestes a succumbir perante as machinações da tyrannia, se defendia
n'uma lucta derradeira; quando o espectro do cesarismo se erguia já
ameaçadoramente, levado de roldão nos borbotões da anarchia plebéa, essa
voz encantadora, para prolongar a existencia da Republica agonisante, do
fundo da sua alma, arranca no Capitolio a objurgatoria mais vehemente
que os annaes do Lacio proclamam.

É pela voz de Mirabeau que a Revolução troveja, n'um cyclone pavoroso de
eloquencia, destruindo, arrastando, subvertendo pelas suas bases
seculares toda a sociedade velha. Nas suas phrases torrentuosas, cheias,
em catadupa, alargando-se n'um estuario caudaloso de reclamações e de
protestos, sente-se penetrar finalmente o povo em vagalhões escumantes
na posse dos seus direitos, rôtos os diques dos preconceitos e das
castas. «Não é um homem, não é um povo que falla,--diz um poeta
enorme,--é um acontecimento».

E quando a Republica periga; quando os conluios dos reis ameaçam de
todas as partes as conquistas do direito; quando por todas as fronteiras
da França o inimigo invade o territorio, numeroso e terrivel; no meio da
anciedade publica, dominando os pavores, confortando os animos,
levantando os corações, empolgando tudo, do alto da tribuna da
Convenção--esse assombro!--energico, heroico, sublime, Danton proclama e
decreta a victoria, e dá á França, dá á Republica, dá á Liberdade, o
mais maravilhoso exercito que o mundo viu!

É tambem, entre nós, depois que os combatentes pela Rainha e pela Carta
depuzeram as heroicas armas triumphantes, que apparece esse orador
extraordinario, o artilheiro _sans peur et sans reproche_ das linhas do
Porto, que havia de levar aos mais altos cimos, nunca depois ainda
attingidos a gloria da tribuna portugueza.

      *      *      *      *      *

Eu não quero de fórma alguma, meus senhores, apresentar-vos aqui a
biographia d'esse varão notavel, o mais illustre d'entre todos os vossos
conterraneos de todos os tempos, aquelle que tanto amou a sua terra
natal que póde afoutamente dizer-se que é a José Estevão que Aveiro deve
ainda hoje a importancia que logra entre as outras cidades do paiz.
Trabalho escusado e impertinente seria esse, pois que a sua vida todos
vós a conheceis, pois que os echos das suas orações formidaveis ainda
hoje soam aos ouvidos de todos vós, pugnando sempre pelo direito e pela
justiça, pela liberdade e pelos principios democraticos, combatendo
incessantemente todos os privilegios e todas as oppressões,
constituindo-se o homem ligio, a sentinella sempre viva, sempre
vigilante, sempre álerta das reclamações do povo contra as tentativas
sempre incansaveis, pertinazes e incessantes dos inimigos da
Civilisação, na sua obra de treva e de retrocesso.

E assim era preciso que fôsse; assim era preciso que elle se inspirasse
nos grandes sentimentos collectivos, nas profundas catastrophes
nacionaes, nas justas e imprescriptiveis reivindicações de todas as
franquias populares para que a sua voz soasse tão alto e tão
longinquamente que ainda hoje os nossos applausos, os nossos
enthusiasmos, as nossas admirações a vão seguindo na sua ascenção
luminosa e crescente aos páramos azues e sem termo da posteridade.
Porque é preciso que se não esqueça, porque é preciso que fique mais uma
vez bem gravado nos espiritos, que só são verdadeiramente
extraordinarios, que só teem direito a merecer e a conquistar os
suffragios implacaveis e justiceiros do futuro, aquelles que applicam
desinteressadamente a sua intelligencia, a sua palavra, a sua vontade e
o seu coração á defeza de uma obra de Bem e de Verdade.

Para receber as honras do Pantheon da historia necessario é que se tenha
mergulhado fundamente, sem segundo sentido, lealmente, nas aguas sempre
vivas e fecundas das aspirações populares, porque é na benção dos
desherdados, nos applausos dos que labutam incessantemente de sol a sol,
dos que soffrem, e dos que são esmagados sem justiça nas luctas
implacaveis da existencia que se vão constituindo as apotheoses do
porvir. E justo é que assim seja, porque seria a verdade uma ficção,
porque seria a moral a mais odiosa, a mais cynica, a mais repellente de
todas as mystificações, se houvessem decisivamente de triumphar aquelles
que tudo sacrificam ao successo ephemero d'um dia e não os que, no culto
sincero dos generosos principios, acham no coração e na consciencia a
força que os anima a arrostar os embates da adversidade e as
perseguições mesquinhas dos odios desencadeiados e victoriosos...

E José Estevão foi assim. Se incandescente foi a sua palavra, se vasta
foi a sua intelligencia, mais incandescente, mais vasto foi ainda o seu
coração. E, d'ess'arte, a palavra sem egual que fez o libello dos
ambiciosos mesquinhos, dos pardos aventureiros que, inspirados nos
conluios das camarilhas, apoiados na força tyrannica e brutal das
baionetas, protegidos pelos incensorios mysticos das sachristias,
servidos pelo oiro vil illicitamente arrancado ás necessidades e ás
miserias crescentes do paiz, sempre entre nós conspiraram para, á sombra
do manto regio, firmarem sobre o cadaver das regalias publicas o poderio
d'um throno que se diz de origem popular; aquella palavra que arrancou
ousadamente a mascara a esse sophisma que se chama a _Carta_, apodando-a
justamente de «mentira» e accusando-a «de não ter realisado nenhuma das
condições do systema representativo», o que nós hoje estamos vendo á
saciedade; aquella palavra tão prestigiosa e que tão nobremente
condemnou aquillo a que tambem chamava «a tyrannia mansa exercida em
nome da legalidade»; que pedia a liberdade para o jury, a liberdade para
a urna, a liberdade para a administração local; que queria a imprensa
sem peias, e para os seus exageros, sujeital-a, quando muito, á livre e
desassombrada apreciação dos jurys criminaes; que sempre considerou como
um sagrado direito o mais amplo uso da reunião e da associação; aquella
palavra que sempre se rebellou contra todas as leis de excepção por
perigosas, por iniquas, por levarem sob a capa da justiça os rancôres
mal disfarçados da vingança; que dizia que para sujeitar o paiz ao jugo
estrangeiro mistér é primeiro subjugal-o com leis duras e annular a sua
vontade nos negocios publicos; aquella palavra, tão nobre, tão
alevantada, tão ardente, que é, só por si, o mais solemne e vehemente
protesto contra os manejos audaciosos e impudentes d'aquelles que
pretendem amordaçar a expressão da livre voz das tribunas populares, e
que bastou para levar um momento de vencida as hostes quasi triumphantes
da reacção clerical; aquella palavra, magestosa como os oceanos
rugidores, que á rica, á poderosa, á insaciável Inglaterra castigou um
dia, levantando a toda a altura a justiça do nosso direito contra a
affronta que a _sempre fiel alliada_ dos nossos reis tinha vilmente
inflingido á nossa bandeira, nos mares de Africa, accusando-a de
acobertar a escravatura negra; aquella palavra d'uma tão rasgada
envergadura, d'uma colera tão sublime, d'uma tão tempestuosa indignação,
que conseguiu vingar a honra da patria, respondendo com os raios de
Isaias ás imposições iniquas e deshonrosas das aguias do Imperio
Francez, quando, partidas de Cherburgo, criminosas já de terem
estrangulado á traição n'uma emboscada nocturna as patrias liberdades,
vieram ao nosso Tejo, minazes e arrogantes, confirmar a sua deshonra,
roubando-nos a sinistra barca negreira que os nossos marinheiros haviam
apprehendido em incontestavel e vergonhoso trafico; aquella palavra
immensa, tão vibrante, tão commovida, tão ousada, só podia com certeza,
senhores, ser animada por uma alma leonina, só podia, com certeza,
senhores, ser aquecida por um extraordinario coração!

Mas o meu fito, vindo aqui, não foi, como já tive a honra de vol-o
dizer, ensinar-vos o que foi o mais illustre dos vossos conterraneos e
qual o grande papel que elle desempenhou nos recontros da Liberdade; mas
tão só o fazer-vos notar bem nitidamente a responsabilidade historica
que a cidade de Aveiro assume n'este momento, commemorando o nome de
José Estevão.

Commemorações d'estas, ou são ficticias e cahem de per si no ridiculo e
no desprezo do tempo, ou teem, como devem ter, a inspiral-as e a
dirigil-as algum superior e elevado pensamento.

A meus olhos é significativo e solemne o momento em que esta
commemoração se faz.

Quando ha portuguezes nos desterros de Africa e nas amarguras do exilio
que ainda soffrem duramente as consequencias de um corajoso e mal
succedido impulso que os levou a romper as fronteiras da legalidade, a
qual é muita vez a mordaça do direito; quando o pensamento é apenas
tolerado e as liberdades publicas são consideradas como alto favor dos
dirigentes; quando, olhando para a tribuna parlamentar, ella se vê
deserta e chega mesmo a parecer que ella é morta; quando a reacção
clerical vae já, ousadamente, dispondo com espavento as suas forças á
plena luz do sol, merecendo até os applausos e as adhesões officiaes;
quando a Inglaterra nos enxovalha mais uma vez com o mais cynico
desplante; quando a Allemanha entra tambem pelos nossos dominios
descurados e ahi se estabelece, d'elles aferrando um largo torrão nas
suas garras rapaces; quando a França, rompendo com as suas tradições de
cortezia, nos trata duramente e com o pungente desdem de crédor poderoso
para com devedores trapaceiros; quando o Brazil, senhores, o Brazil que
nós descobrimos, o Brazil a que tantas tradições de gloria, de sangue,
de affectividade e de interesses nos prendiam e prendem ainda; o Brazil,
ferido na sua hospitalidade, affrontado no seu pundonor, expulsa
summariamente dos seus territorios a nossa bandeira; quando tantas
calamidades e tantas vergonhas se succedem incessantemente n'um
turbilhão mais vertiginoso que o dos mortos no celebre _lied_ allemão;
vir commemorar o nome de José Estevão implica fatalmente a indicação
para se organisar quanto antes e com a energia das supremas crises o
patriotico movimento que nos redima e arranque a esta apathia miseravel
em que vamos vegetando.

E não se diga que somos um pequeno paiz, fraco e exposto a soffrer
sempre sem protesto os vexames das poderosas nações; como disse José
Estevão, «nas nações pequenas não se avalia a sua grandeza senão pela
grandeza dos seus ministros; quanto mais pequenos são os seus estados,
mais forçoso é que mais importantes, mais honestos, mais dignos sejam os
homens que se encontram á frente dos seus negocios.»

É isto que se me offerece dizer agora que se evoca a memoria do soldado
da Liberdade, do sublevado de Almeida, do combatente do Vizo. E se isto
assim não fôr, senhores, uma coisa só nos resta--morrer de ignominia...


    [1] Tratava-se d'uma denuncia enviada ao ministerio da guerra de que
    então era ministro o snr. Pimentel Pinto e que este communicara ao
    ministerio da marinha, cujo titular era Ferreira d'Almeida. Quando o
    auctor d'este opusculo, a esse tempo aspirante a facultativo do
    ultramar e alumno da Escola Medico-Cirurgica do Porto, se retirava
    do Commando Geral, foi chamado ao ministerio da marinha onde o chefe
    do gabinete do ministro, o fallecido Sergio de Souza, então capitão
    de mar e guerra, lhe communicou, por ordem do mesmo ministro,
    aquelle facto, mostrando-lhe a respectiva denuncia, cuja
    assignatura, cautellosamente e como era, aliás, do seu dever, lhe
    occultou. Por essa occasião felicitou-o tambem em seu nome pessoal e
    em nome do ministro pelas explicações dadas ao almirante Baptista de
    Andrade, accrescentando que o ministro não desejava de fórma alguma
    que se suppozesse ter partido d'elle a iniciativa do procedimento
    havido.

    E não partira, com effeito, como mais tarde o auctor apurou. A
    denuncia fôra enviada do Porto e o denunciante tinha esporas e
    galões de official do exercito. Fiquemos por aqui, como castigo
    bastante, embora generoso, para o villão...

    [2] Os drs. Manoel de Arriaga e S. de Magalhães Lima.

    [3] O conselheiro J. Dias Ferreira.





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