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Title: Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba Author: Trueba, António de, 1821?-1889 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba" *** of public domain material from Google Book Search) PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO DE TRUEBA TRADUZIDOS LIVREMENTE POR F. DE CASTRO MONTEIRO com uma introducção POR I. DE VILHENA BARBOSA PORTO Imprensa Portuguesa--Editora 1872 PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO DE TRUEBA PRIMORES DA LITTERATURA HESPANHOLA CONTOS ESCOLHIDOS DE D. ANTONIO DE TRUEBA TRADUZIDOS LIVREMENTE POR F. DE CASTRO MONTEIRO com uma introducção POR I. DE VILHENA BARBOSA PORTO Imprensa Portuguesa--Editora 1872 AO SEU PREZADO AMIGO I. DE VILHENA BARBOSA SOCIO CORRESPONDENTE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS Como testemunho de gratidão Offerece _O traductor._ _Meu querido Vilhena Barbosa._[1] A grata recordação das lições que de ti recebi, quando no meu espirito começava a desenvolver-se o gosto pelo estudo da litteratura; os salutares conselhos, que me dispensaste, nos primeiros annos da minha adolescencia, apontando-me a escolha dos auctores, que deveriam formar o meu estylo, e robustecer as minhas tendencias litterarias; aquellas nossas conversas, de tamanho interesse para mim, em que as luzes do teu illustrado entendimento tentavam dissipar as trevas da minha ignorancia, conversas que, pouco a pouco, e no decurso d'alguns annos de convivencia intima, iam subindo d'alcance, á medida que, pelo estudo, eu me habilitava a comprehender-te e a discutir comtigo, seriam já, de per si, sobejo motivo para que eu te dedicasse este livrinho, se não houvesse ainda razões de entranhadissimo affecto, razões todas do coração, e completamente alheias á cultura das letras, que a isso me obrigam, com força de irresistivel encanto. A minha vida está, desde os mais verdes annos, ligada, por laços indissoluveis, a essa dedicação illimitada que sempre me votaste. Era eu bem creança, e já tu me franqueavas os arcanos da tua vasta erudição. Não sei que confiança era a tua na mediocridade da minha esphera intellectual. Eram horas esquecidas d'instructiva palestra, em que a historia patria, a philosophia da historia, as sciencias naturaes, e a litteratura constituiam um thema variado, que me deleitava e instruia, animando-me a procurar nos livros cabedal de conhecimentos com que podesse corresponder ao teu paternal intento de me tornar util a mim e á sociedade. Oh! que saudosos tempos, de feliz memoria, são esses para mim! Quando nos separavamos, continuavas tu, de longe, a indicar-me os bons modelos, e a apontar-me um futuro, que a tua céga amisade antevia para mim, mas que, _erat scriptum_, eu não deveria attingir. Nunca me abandonaste; e, se foi baldado o teu intento, ao menos da constancia do teu affecto tiro eu motivo de muito orgulho, e isso basta para me consolar. Nos primeiros mezes de 1860, época de terrivel amargura para o meu coração, revelou-se a tua amisade por mim pela prova mais grandiosa, que póde aquilatar os sentimentos d'alma. Em dezembro, tinha eu vindo de Coimbra ao Porto, a férias. Entrava em casa com aquelle alvoroço, que tu por vezes presenciaste, e que sempre me dominava, ao acercar-me de meus paes e de minha irmã. Minha mãe chorava de alegria, cingindo-me n'um amoroso e prolongado abraço, e eu correspondia ao seu carinho com todo o affecto, que me inundava o coração. Sabes como eu a amava. Por mais d'uma vez te achaste ao nosso lado, no momento de nos separarmos. Eram os transportes de duas almas enamoradas, em presença da amarga e tyrannica necessidade da ausencia. Assim tambem, quando as ferias se avisinhavam, contavamos ambos as horas e até os instantes, que faltavam para a nossa approximação, com frenetica impaciencia. N'essas emoções encontradas, por entre riso e lagrimas, se deslisaram os primeiros annos da minha mocidade. Punge-me recordar esse tempo de tão acerba saudade; enlucta-se-me a alma, quando se me retrata na mente a imagem de minha piedosa mãe; e a ti sei eu que hade offender-te a notavel modestia, que é um dos ornamentos do teu nobre caracter, este publico testemunho, que te offereço, da minha gratidão. Mas ainda que o coração se me despedace ao escrever estas linhas, e a despeito da contrariadade, que possa levantar no teu espirito, proseguirei no meu intento. Tem paciencia, e ouve o que talvez a tua consciencia nunca te mostrasse em relevo, por causa d'esse sentimento elevadissimo, que esconde aos olhos do homem a nobreza das suas proprias acções. Poucos dias depois da minha chegada ao Porto, adoeceu minha mãe; e com tal violencia se apresentou a molestia, que foram infructiferos todos os esforços, que a medicina fez para a salvar. A 22 de Janeiro voou aquella alma angelica, a abrigar-se no seio de Deus. Passarei um véo por sobre o abysmo de insondavel martyrio, em que esse angustiosissimo lance me sepultou! Decorrido um mez, lembrou-me meu pae a necessidade de voltar para Coimbra. Acordei então do lethargo em que caíra, depois do fatal acontecimento; comprehendi quanto havia de justo e paternal n'aquella indicação, e parti. Quando me encerrei no meu quarto escolastico, e que meditei na transformação, que, em tão breve lapso de tempo, se operára na minha vida moral, senti-me succumbir; arrastei-me para junto da janella, que olhava para o Mondego, e alongando a vista por aquelle formoso quadro, tão poetico e tão melancolico, deixei-me dominar completamente pela vehemencia da saudade, que me opprimia, e assim permaneci por espaço de muitas horas. Nos dias que se seguiram, foi sempre calando, mais e mais, no meu coração, aquella profunda tristeza, que nada podia dissipar. Os meus companheiros de casa, moços distinctissimos, os quaes ainda hoje amo como irmãos, envidavam todos os seus recursos para me fazer saír d'aquelle estado de depressão de espirito, que me senhoreava; mas nada podiam conseguir. Por espaço de muitos dias, quando chegava o correio, erguia-me de subito, machinalmente, para correr ao seu encontro; mas logo, lembrando-me que já não existia aquella santa, que diariamente me confortava e fortalecia o espirito, com o balsamo salutar do seu carinhoso affecto, caía novamente na minha tristeza habitual. Tão dolorosa e renitente enfermidade moral, não podia deixar de transmittir-se ao corpo. Adoeci. Os progressos da doença foram rapidos e assustadores! Eu delirava, e no meu delirio, evocava o nome de minha mãe. A sciencia deu á molestia um nome; mas o meu coração dava-lhe outro. Os médicos chamavam-lhe pneumonia... mas eu chamava-lhe _Saudade_! Todos os meus companheiros, á porfia, se esforçavam por me provar a sua amisade. D'elles porém havia um, a quem todos respeitavamos, que logo se collocou á cabeceira do meu leito, servindo-me regularmente de enfermeiro. Não referirei aqui o seu nome por lhe não ferir a modestia, que a tem, em tão subido gráo como tu, e a qual eu não ouso devassar. Recordo-me d'elle com muita saudade e muito reconhecimento. E nunca mais nos encontramos! Uma noite acordei e vi um vulto ajoelhado junto do meu leito; sobresaltou-me, porque me parecia um padre! Era elle, vestido de batina, e que resava no seu livro de orações! Ergueu-se rapidamente e disfarçou para me não assustar. Eu dissimulei; fingi que o não vira, e nunca lhe fallei d'esta scena edificante, que ha de sempre permanecer gravada no meu coração. Este livro deve chegar um dia ás mãos d'esse nobre mancebo, de quem o destino me separou; que elle se recorde de mim com saudade, ao lêr estas palavras, e veja n'ellas a expressão do muito reconhecimento, que tambem lhe consagro. A molestia aggravara-se, e ao terceiro dia, apresentava-se temerosa! Eu sentia-me isolado, á mingua do conforto da familia; mas prohibira expressamente, que avisassem meu extremoso pae da gravidade da minha situação. Este, ignorando a verdade, e presa de muitos trabalhos domesticos, não foi ter commigo a Coimbra; mas escreveu-te para Lisboa, avisando-te de que eu me achava enfermo. No dia em que recebeste a sua carta, dirigiste-te a um dos meus companheiros de casa, e este fallou-te com franqueza. Isto soube-o eu mais tarde. Vinte e quatro horas depois de teres lido a resposta, a que alludo, dispertava eu d'um somno angustioso, e vi-te ao meu lado. Quiz erguer-me e lançar-me nos teus braços, mas não pude. Fizeste por me serenar o espirito, sobreexcitado pela tua presença alli, e começaste a dispensar-me os thesouros do teu acrisolado affecto. A molestia teve-me baloiçado entre a vida e a morte; e por fim, graças á bondade do Altissimo, que me julgou talvez novo para deixar o mundo, e que me proporcionou os desvelos do teu carinho, começou a declinar. Foi longa a convalescença. Quando, no decurso d'ella, eu me conservava ainda de cama, tu, sentado á minha cabeceira, lias alto para me distrahir, ou divagavas sobre aquelles assumptos, que sabias me eram mais gratos. Ministravas-me cuidadosamente os remedios e as comidas, temperadas pela tua propria mão, e informavas diariamente a minha familia das progressivas melhoras, que eu experimentava. Afinal, ergui-me da cama, e, poucos dias depois, comecei a dar alguns passeios, pelo teu braço. Ficava a minha casa proxima ao Jardim botanico, e era para ahi que sempre nos dirigiamos. Estavamos então entrados na primavera, essa estação encantadora, em que o coração se retempera no ar embalsamado que nos rodeia; essa _gioventù del anno_, como lhe chama o poeta, em que toda a natureza nos sorri, com ineffavel magia. Eu sentia-me _renascer_; parecia-me participar da qualidade dos arbustos e das plantas, que nos cercavam; corria-me nas veias uma nova seiva, e impressionava-me em extremo o grandioso espectaculo, que se offerecia a meus olhos. Depois de darmos algumas voltas por aquellas frondosas avenidas, sentavamo-nos n'um banco do jardim, e um ao outro communicavamos as impressões, que recebiamos d'aquelle panorama encantador das «saudosas margens do Mondego», que d'alli se observa em todo o esplendor da sua belleza. Depois, quando o sol, declinando, nos aconselhava a regressar a casa, levantavamo-nos e deixavamos vagarosamente aquella mansão deliciosa. Os extremos da tua amisade tinham-me furtado talvez a uma prematura morte, mas não lograram desanuviar-me o coração da magoa, que o suffocava. Deixava-me por vezes dominar de profunda tristeza, e assim me conservava por largas horas, alheiado completamente do mundo exterior, e só entregue a amargas cogitações. Um dia entraste no meu quarto, e disseste-me que era preciso saír de Coimbra; que tinhas conversado largamente com o medico, e que este fôra de parecer de que a distracção era o unico remedio que podia completar o meu restabelecimento. Sobresaltou-me a lembrança de que teria de me separar logo de ti. Era uma injustiça que fazia á devoção do teu affecto; mas confesso-te que não suppunha que tu levasses a tua generosa dedicação por mim, até entrares commigo na casa paterna. Sabia que a ausencia de Lisboa era em extremo prejudicial aos teus interesses, e por isso imaginava que tu darias por terminada a tua caridosa missão, com a minha partida para o Porto. Quanto me enganava! Eu estava ainda muito falto de forças e mal podia entender nos aprestos da viagem; tu porém a tudo proveste com paternal cuidado. Afinal, por uma aprazivel manhã, saímos de Coimbra. Alugaramos uma carruagem, a melhor que se pôde encontrar, e por essa bella estrada, que o mau fado da nossa administração publica, devia, poucos annos depois, tornar quasi deserta, admirando o formosissimo paiz que ella atravessa, formosissimo pela luxuriante vegetação que o cobre, e pela extensão dos seus variadissimos panoramas, seguimos agradavelmente até á primeira paragem, onde deviamos pernoitar. Se bem me recordo era a estalagem d'Albergaria, esse covil immundo, da qual ainda hoje me não lembro, que não sinta logo pelo corpo, um certo pruído, que me excita horrorosamente os nervos. No dia immediato continuamos a nossa jornada, mas não com tanta felicidade como na vespera. Levantára-se muito vento, e parece-me que te estou vendo, meu bom Ignacio, receioso de que o frio prejudicasse o regular andamento da minha convalescença, repartindo-me em mil cuidados, para me pôr a salvo d'uma recaída! E agora me lembra um episodio d'essa saudosa jornada, que tem relação com o que levo dito, e que é mais um attestado do conforto e da commodidade das taes locandas da antiga estrada coimbrã. Quando chegamos a S. João da Madeira, saímos da carruagem, e entramos na hospedaria, para jantar. Depois que démos as nossas ordens, na cosinha, subimos para a sala, onde deviamos esperar que nos servissem; mas era tal a _ventania_, que entrava pelos buracos dos vidros, e pelas fendas do telhado, que, não querendo voltar logo para a carruagem, de que já estavamos fartos, tomamos o partido de nos sentarmos a um canto, e abrir os chapéos de sol, a vêr se d'este modo podiamos afrontar a intemperie. Pouco tempo porém estivemos n'essa posição caricata; afinal entendemos que o mais acertado era jantarmos dentro da carruagem, e assim o fizemos. Ainda hoje me rio, quando me acode á ideia essa scena de comedia, que acabo de descrever. D'ahi por algumas horas chegavamos aos Carvalhos, onde nos esperavam, meu pae e minha irmã, e todos juntos seguimos para o Porto. Com a viagem, que descrevi com leves traços, termina esse episodio da nossa vida, em que se patenteia bem a elevação do teu caracter, e a dedicação que te devo; mil annos que eu vivesse, nunca esta pagina da minha mocidade, se me apagaria da memoria. Sei, e já o disse no principio d'esta carta, que vou offender a tua modestia, tornando publico esse exemplo que déste da nobreza dos teus sentimentos. Não importa. És tu geralmente apreciado como homem de letras, quero que todos te apreciem tambem como homem de coração;--como exemplo do amigo dedicado. Porto, 12 de janeiro de 1872. F. de Castro Monteiro. [1]Vilhena Barbosa só terá conhecimento d'esta carta, quando lhe chegar á mão o meu livro. O respeito que me merece a sua proverbial modestia obriga-me a deixar aqui esta declaração. INTRODUCÇÃO I As letras e as artes têm muitos pontos de affinidade. Ambas filhas predilectas da civilisação; caminhando a par na via dos progressos humanitarios; auxiliando-se e concorrendo mutuamente para o seu commum desenvolvimento e esplendor; cabendo-lhes egual quinhão de gloria nos aperfeiçoamentos, grandeza e prosperidade de qualquer nação; tem identico valor e significação para se aquilatar por ellas a cultura de um povo; e, finalmente, ambas são um como espelho em que a humanidade se retrata, tal qual é, segundo as epochas da sua historia. Nas artes é, principalmente, a architectura, pelas intimas relações que tem com a sociedade, a que resume em si, com maior exactidão, as idêas, as crenças, as aspirações, as necessidades, em fim, a vida moral e physica dos povos. Nas letras o romance, a meu vêr, como nas artes a architectura, é qual lamina em que se espelham, com fidelidade, os pensamentos, a indole e os costumes da sociedade para a qual foram escriptos. Na traça mesquinha ou grandiosa de um monumento; nas suas fórmas acanhadas ou esveltas; na ornamentação pesada e mal disposta, ou ligeira e graciosamente distribuida; na esculptura dos ornatos grosseiros e sem significação ideal, ou delicados e expressivamente symbolicos, escreveu o architecto, sem attentar em tal, uma pagina da historia dos seus contemporaneos, eloquentissima na sua mudez, e cheia de verdade, porque a mão do seu auctor era dirigida, não por paixões ou respeitos humanos, mas unicamente pelo amor da arte. E julgando o artista que a movia em cega obediencia aos preceitos da mesma arte, a sua dextra seguia tambem os impulsos da sua imaginação, que não podia eximir-se á despotica influencia das idêas e costumes dominantes; e além d'isso, no desempenho da sua missão, tinha de satisfazer as exigencias e necessidades publicas, que são sempre determinadas pelo movimento intellectual e pela successiva modificação dos costumes. O romancista quer que o seu livro corra mundo, e seja lido com prazer. Para alcançar este _desideratum_, procura deleitar, e para este fim tem de vasar a sua obra nos moldes do gosto publico; isto é, tem de a accommodar ás idêas e costumes em voga n'essa epocha. E ainda que consideremos o escriptor, pegando da penna, sem que o mova o interesse pecuniario, forçosamente ha de escrever sob a mesma poderosa influencia das idêas e costumes publicos. II Quando as cruzadas, minando pela base o feudalismo, crearam o espirito cavalleiroso, que, d'envolta com o sentimento religioso, foi adoçando pouco a pouco a fereza da edade media, e, ao mesmo tempo, abrindo a porta á illustração do seculo, surgiu o romance, como guarda avançada das letras; cruzada não menos santa, preparada no remanso do gabinete pelos primeiros chronistas, annunciada e apregoada pelos antigos trovadores. O romance mostrou-se desde logo o retrato fiel da sociedade, em todas as phases da sua vida moral e physica. Pois que n'essas eras se manifestavam e expandiam o sentimento religioso em guerras contra os infieis, e o do prazer em justas, torneios e caçadas, ou em saraus, onde os trovadores cantavam, ao som do alaúde, amores e guerras; pois que a justiça humana chamava amiudadas vezes os delinquentes ao campo dos combates judiciarios; pois que as moradas da nobreza eram castellos, cercados de fossos, e eriçados de ameias; as espadas, as lanças e as armaduras os melhores ornamentos das suas salas; a montearia, a diversão predilecta das illustres castellãs; o romance, reproduzindo todas estas feições sociaes, tomou a fórma de novellas de cavallaria. Amores e guerras constituiam, portanto, o assumpto obrigado d'essas composições. A honra, o valor, a coragem, a dedicação desinteressada, a fé e a esperança estreitamente unidas, todos estes dotes de um perfeito cavalleiro, todas estas idêas, que então occupavam os espiritos quasi exclusivamente, até dos que não possuiam tão nobres qualidades, sobresaíam e brilhavam com tanto fulgor nas paginas d'essas novellas, como as estrellas que scintillam no manto negro da noute. III Em quanto as cruzadas, attrahindo a um campo commum as differentes nações da Europa, e pondo em contacto o Occidente com o Oriente, faziam raiar a aurora de uma nova civilisação, travavam encarniçada lucta a realeza e o feudalismo. Aquella, soccorrendo-se ao principio popular, acabou por triumphar do seu poderoso adversario. Porém, durante a pugna, o poder real teve de arcar com o poder theocratico, o qual, a seu turno, alcançára victoria sobre a propria realeza. A influencia dos pontifices no regimen dos estados, que tão benevola e providencial se ostentou, em quanto serviu de medianeira entre os opprimidos e os oppressores, estendendo sobre os mais fracos a égide do poder espiritual, veiu a tornar-se oppressiva e intoleravel, desde que, abusando da sua intervenção nos negocios temporaes das nações, converteu em tyrannia aquella missão paternal. A supremacía dos papas, actuando na politica dos governos e nas idêas e costumes populares, imprimiu uma grande modificação no viver da sociedade. Essa modificação não tardou a estampar-se no romance, despojando-o dos esplendores e galanteria, com que até alli se ataviára, e fazendo-lhe vestir a roupagem, modesta e singela, mas não falta de poesia, das lendas religiosas, que lá foram aninhar-se nas chronicas monasticas, parecendo fugir ás impurezas do seculo. A fé viva, sugeitando a razão além do dogma; a esperança vivissima em uma eternidade de gloria e de suprema ventura na outra vida, como recompensa do refreamento das paixões e das abstinencias, e como compensação das grandes dôres; o curso geral das cogitações e controversias dos sabios para as materias theologicas; as diversões populares restringindo-se, quasi exclusivamente, ás procissões, nas quaes eram admittidas dansas, e toda a sorte de exhibições phantasticas e burlescas, aos arraiaes e outras festividades religiosas, e, finalmente, aos autos sacros, que constituiam o theatro na infancia, depois do seu renascimento; as provas do fogo, do ferro em brasa, e da agua fervente, denominadas _juizo de Deus_, aceites nos tribunaes de justiça como testemunhos irrecusaveis da innocencia ou da culpabilidade: todo este pensar e este viver reflectiam-se nas lendas religiosas com a mesma exactidão e vigor, com que o sol reflecte na superficie das aguas a sua fronte luminosa. IV Não é meu intento traçar a historia d'este ramo de litteratura. Direi, todavia, que d'aquelle modo continuou o romance, em todos os tempos, e sob todas as fórmas, a reproduzir em si, com mais ou menos naturalidade e viveza de côres, as mudanças que se vão operando nas idêas e nos costumes. D'est'arte se revestiu das fórmas classicas, quando, sob a influencia dos sabios e dos artistas, foragidos de Constantinopla, ao desmoronar do imperio do Oriente, se operou nas letras, nas artes, e no proprio viver da sociedade, a grande revolução denominada _renascença_, a qual foi inspirar-se nas obras grandiosas da antiga Grecia. Do mesmo modo assumiu o romance a gravidade philosophica, quando Voltaire, Rousseau, e outros grandes pensadores do seculo passado, proclamando verdades, que faziam estremecer em seus thronos os monarchas despoticos, convidavam os estadistas a meditarem nos problemas sociaes, cuja semente assim lançavam á terra; e excitavam os povos a reflectir na significação e importancia dos direitos do homem. Assim o romance se tornou historico, logo que a sociedade, sentindo o mal estar de uma organisação que os progressos da civilisação iam fazendo caducar, recorria ao passado, como que procurando nos archivos da historia o elixir para se rejuvenescer; isto é, estudando nas antigas sociedades as fórmas governativas, que mais lhe quadrariam sob a revolução que se preparava. Quando, em nossos dias, a applicação do vapor á locomoção e ás machinas industriaes, bem como a telegraphia electrica, pondo em facil e rapida communicação todos os povos do globo, estabeleceram novas condições de existencia social, que hão de operar forçosamente, em maior ou menor espaço de tempo, uma transformação completa, não só no modo de viver, mas tambem na organisação da sociedade; quando a attenção dos homens pensadores começava a fixar-se na grande revolução prevista, e a meditar nos difficeis problemas que ella em breve deveria offerecer á resolução dos philosophos e dos estadistas; quando a attenção geral dos povos, desapegada das tradições do passado, se absorvia inteiramente na contemplação do presente, admirando as maravilhas do progresso, anciando saciar-se dos gosos, que elle gera com mão fecunda e prodiga, o romance, deixando tambem em repouso os archivos da historia, começou a inspirar-se nas scenas da vida actual. E ao passo que retratava a sociedade, dando colorido e relevo a cada uma das suas feições, lançava á arena da discussão as novas e grandes questões sociaes. Porém, partindo do mesmo ponto, movidos por egual impulso, os romancistas contemporaneos, que se dedicaram a descrever os costumes e praticas da actualidade, dividiram-se em duas turmas, seguindo caminho differente. Uns, impellidos por uma idêa elevada e generosa, pintaram com côres negras, mas verdadeiras, todas as angustias e miserias da sociedade moderna, estudando-lhes as causas, apontando os perigos futuros, fazendo avultar os defeitos e defficiencias das instituições; chamando, em fim, a solicitude dos poderes publicos para o horrivel cancro, que vae corroendo o corpo social. Á frente d'estes illustrados romancistas colocára-se Eugenio Sue. Infelizmente, muitos discipulos d'esta eschola, esquecendo ou despresando os intuitos philosophicos do mestre, trataram sómente de deleitar; e reconhecendo as tendencias do seculo para os gosos sensuaes, e para os grandes sobresaltos do espirito e do coração, puzeram em acção todas as paixões violentas, e todos os instinctos ferozes da humanidade. Compozeram d'est'arte, é bem certo, quadros grandiosos, cheios de vida e de animação, scintilantes de fogo e de energia, em que se succedem uns aos outros os episodios dramaticos, e as scenas tragicas. Mas, atravez das galas da poesia, com que os adornaram, e sob o brilho seductor dos ouropeis com que se esforçam por atenuar, senão santificar, a hidiondez de torpezas e devassidões repugnantes, transparece o virus da corrupção da alma, ministrado em taça de ouro á mocidade inexperiente e ávida de commoções fortes. A outra turma de romancistas tem trilhado mais nobre senda, no desempenho de uma missão civilisadora e santa. Os seus romances não deslumbrarão, talvez, o espirito com o esplendor das imagens; não o sobresaltarão com a rapida successão de casos extraordinarios; não subjugam a razão, nem expõem o coração a contínuo tremor com o longo encadeamento de commoções violentas. Como o prado, que, sob o sol da primavera, se veste de verdores, que vae matisando pouco a pouco de flores singelas, mas rescendendo de suaves aromas, resplandecentes e encantadoras pela viveza e variedade das côres; e que no inverno troca as alegrias em tristezas, as galas em miseria, para outra vez folgar e enriquecer-se sob o novo sceptro de Flora; assim nas producções d'estes romancistas alternam-se as scenas meigas e suaves da familia com os tristes acasos da sorte, com as tribulações da desventura, emfim, com as tempestades da vida. N'estes quadros avultam tambem os contrastes, como na natureza; os toques de luz e de sombra, colhidos nas vicissitudes da fortuna e no tumultuar das paixões. Figuram ahi alguns dos vicios e crimes, que são no mundo moral a imagem das forças destruidoras no mundo physico. Mas apresentam-se, não com o semblante vellado, embora por véo transparente, que mal deixa distinguir-lhes a fealdade; não com as feições embellesadas e disfarçadas com arrebiques e louçainhas, que fascinem e lhes conciliem as sympathias das almas ingenuas e credulas, mas sim taes quaes são, na sua completa nudez, em toda a sua asquerosa deformidade. Finalmente, d'esta lucta entre o bem e o mal, figurada n'estes romances, sáe a virtude ou o arrependimento coroado pela felicidade, e o crime ou o vicio punido pela justiça dos homens, ou pela de Deos, que dos proprios vicios e crimes fez gerar o castigo que os pune na terra. A esta turma de romancistas, a que pertence a eschola allemã, veiu associar-se uma outra, ainda mais singela e modesta, talvez, mas tambem guiada pelo mesmo impulso generoso de deleitar, moralisando. Compõe-se esta de um certo numero de auctores de contos e tradições populares, entre os quaes occupa logar de honra D. Antonio de Trueba. V Nascido na Biscaya em 1821, uma das provincias da romantica e cavalleirosa Hespanha, tão original no curso e transformações do seu longo viver; nascido na Biscaya, repetimos, onde se tem conservado mais arraigado o respeito ás tradições do passado, o amor aos antigos fóros populares, e o apego aos velhos costumes, D. Antonio de Trueba não podia eximir-se a essa triplice e poderosa influencia. Bebendo com o leite aquelle respeito; bafejado desde o berço por aquelle amor; preso áquelles costumes pelas mais doces recordações da infancia, o seu espirito difficilmente poderia deixar de revoltar-se contra o progresso, que tudo nivela, abatendo o que era grande, e exaltando o que era humilde; contra as idêas do seculo, que mofam das crenças do passado; que despojam de poesia as tradições; que parecem tender a materialisar a vida á força de commodidades e gosos, creados para deleite dos sentidos. Resuscitando, pois, as tradições das antigas eras, empenhou-se em fazer reviver, com todo o brilho d'outr'ora, as santas crenças de seus maiores. Pondo em parallelo, em alguns dos seus contos populares, os costumes da velha sociedade com os que se vão modificando e surgindo no meio do desenvolvimento do espirito humano, insurge-se, é certo, contra o progresso, e, apontando para a corrupção que elle gera e alimenta, deixa expandir-se a sua indignação. Mas, quando se pensa em que o auctor d'esses contos e tradições foi creado no remanso e singeleza da vida campestre; quando se considera em que os dias da infancia e da adolescencia se lhe deslisaram tranquillos e alegres no seio da familia, sem que viessem perturbar-lhe o repouso, desvairar-lhe as idêas e corromper-lhe o coração, o bulicio das cidades, o tumultuar das paixões e a seducção dos vicios; quando se reflecte em que os verdores, e as suaves harmonias, e os contrastes pittorescos do seu valle natal lhe infundiram n'alma a doce poesia da natureza; e que os carinhos e maximas moraes de uma extremosa mãe e virtuosa perceptora lhe fizeram o espirito meigo, franco, recto e eminentemente religioso; quando se attenta em tudo isto, comprehende-se, acha-se natural, e desculpa-se aquella insurreição contra os progressos do seculo. Qual mimosa sensitiva, que se contráe e desfallece ao simples contacto da mão indiscreta ou bemfazeja, como se a ferisse duro e traiçoeiro golpe; assim Trueba se confrangiu logo que, transpondo as montanhas do seu pacifico valle, e achando-se de improviso face a face com a sociedade, que desconhecia, viu, como que offuscando o brilho das grandes idêas do progresso, os sentimentos nobres e patrioticos, e as aspirações elevadas e generosas do coração humano, luctando por toda a parte, e quasi sempre vencidas pela ambição do poder e das honras, pela cubiça do ouro, pela sêde dos gosos e dos prazeres, pela fortuna dos mais atrevidos, e pela inveja dos menos felizes. Irritou-se, vendo as conveniencias partidarias e individuaes supplantarem muitas vezes o interesse publico; vendo as leis severas e inexoraveis para com os fracos e desvalidos, e frouxas e flexiveis para com os poderosos ou protegidos; vendo elevaram-se homens, que a falta de merito condemnava á obscuridade, emquanto ficavam esquecidos e occultos, nas sombras da modestia e da humildade, muitos cidadãos dos mais prestantes; ouvindo apregoar maximas e alardear virtudes e serviços, que os exemplos e os factos desmentiam; indignou-se, reconhecendo no curso da civilisação as tendencias do seculo para converter nos gelos da descrença e do egoismo o ardor da fé, a luz benefica da esperança, o fogo santo da abnegação, do amor do proximo e da patria! Na confrontação do presente com o passado o seu juizo não podia deixar de ser desfavoravel ao primeiro, porque tudo o que via e ouvia, annuviando-lhe os verdadeiros resplendores do progresso, contrariava as suas idêas e os seus habitos, e derrocava pela base os poeticos e formosos castellos, que phantaseara nos sonhos dourados da adolescencia. E a sua rapida passagem da estreiteza de apertado valle, segregado por assim dizer, do resto da Hespanha, para a amplidão dos grandes centros industriaes, para o seio da turbulenta e voluptuosa Madrid, offuscando-lhe a vista, como se sahira de improviso das trevas para a claridade, forçosamente lhe havia de obstar a que visse n'essa anarchia das ideias, n'esse desenfreamento das paixões, n'essa relaxação dos costumes, emfim, n'essa corrupção moral, que tanto o escandalisavam, as consequencias naturaes da grande e inevitavel revolução social, que estamos presenceando. Não lhe deixaria attentar em que este acontecimento é o resultado dos maravilhosos descobrimentos do seculo XIX, os quaes acabando com as distancias, pondo em intimas e faceis relações todos os povos do globo, e na presença uns dos outros todos os cultos religiosos, as locubrações dos sabios de todo o mundo, todos os productos da terra e da industria humana, haviam de produzir, por effeito de uma força irresistivel, o duro embate das velhas idêas e dos interesses á sombra d'ellas creados, com as idêas e interesses, que os progressos humanitarios iam gerando e desenvolvendo. Não lhe permittiria reconhecer que d'aquelle embate havia de nascer a lucta a todo o transe; da lucta o exacerbamento das paixões; d'estas o affrouxamento dos vinculos sociaes e dos proprios laços de familia; e de tudo isto a desordem nas idêas e a corrupção geral nos costumes. É este o triste apanagio das revoluções, que tendem, não a derrubar um throno, ou a mudar uma ou outra instituição, mas sim a assentar em bases inteiramente novas o edificio social. A nossa época é, infelizmente, um d'esses periodos de desmoronamento, e por conseguinte de transição, que apparecem de seculos a seculos na historia geral das nações, como gigantescos e temerosos marcos, erguidos no caminho por onde a Providencia impelle a humanidade, para assignalarem e separarem as grandes phases da civilisação. Portanto essa condemnação dos progressos do seculo, que apparece em alguns dos contos de Trueba, em rasão dos motivos que lhe dão origem, não deslustra, antes pelo contrario honra o seu coração bondoso e o seu caracter justo e leal. Mas se alguem, mais severo, ou menos attento ao que expendi em seu abono, quizer lançar-lhe em rosto as suas opiniões reaccionarias, leve-lhe em conta a belleza dos quadros que traça com suavissimo pincel; a singelesa e elegancia do estylo, com que dá relevo e vida ás meigas scenas de familia e aos risonhos paineis da natureza, e, finalmente, a moralidade que ressumbra de todas as paginas dos seus livros. VI D'este juizo das obras de Trueba, que se me affigura imparcial, deduz-se naturalmente um pensamento de louvor a quem promove entre nós a vulgarisação d'estas boas producções. Em uma quadra, como esta, em que a litteratura portugueza está sendo a todo o momento, não enriquecida, mas sim invadida por traducções de romances que, na maior parte dos casos, não a honram pela pureza da linguagem, e a desauthorisam pela licenciosidade dos costumes, que põem em seductora exposição; presta o traductor um bom serviço ás letras e á moral publica. Auctores como Trueba illustram e ennobrecem a litteratura que os adopta e perfilha. Livros, como os seus, podem ser offerecidos á mocidade por leaes conselheiros e guias seguros nos escabrosos caminhos da vida. Na versão prestou o traductor verdadeiro culto aos preceitos e exigencias da lingua materna, conservando aos pensamentos e ás imagens originaes toda a sua elevação e vigor, todo o seu brilho e poesia. A litteratura hespanhola é tão rica e variada em todos os ramos do saber humano, quão mal conhecida, infelizmente, em o nosso paiz, n'estes tempos modernos. Desde o principio d'este seculo temo-nos quasi restringido a cultivar a litteratura franceza, dedicando-lhe a nossa exclusiva admiração, em prejuizo de outras não menos opulentas e brilhantes. Por conseguinte tambem por este lado o distincto traductor dos contos de Trueba bemmerece dos seus concidadãos. O seu talento, já provado nas lides de escriptor publico, apresenta agora n'este ensaio a amostra do que vale no difficil genero, que encetou; difficilimo, sem duvida, quando se quer verter em linguagem de lei os pensamentos de auctor estranho com toda a belleza e vigor da inspiração original. I. DE VILHENA BARBOSA. CONTOS DE TRUEBA NOSTALGIA--O MADEIRO DA FORCA--A NECESSIDADE--A PORTARIA DO CEU--O PRESTE JOÃO DAS INDIAS NOSTALGIA I Mães que tendes filhos e que fundaes a sua felicidade e a vossa em mandal-os para Madrid ou para a America; lêde este conto, que para vós o escrevo. Não penseis que é invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta historia no dia 10 de novembro de 1836, época em que Madrid era, _peor_ e _melhor_ do que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se do que succede com a baixella de prata, que, quanto mais a esfregam, mais brilha e menos peza. Havia em Madrid um frio intensissimo: nevára na véspera, e antes que a neve tivesse tido tempo de derreter nas ruas, sobreviera uma geada fortissima, o que junto ao vento de Madrid, que mata um homem e não apaga um _candil_, dava á temperatura d'aquella heroica cidade o caracter e a temperatura da Siberia. D. João Quijano, rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava no seu escriptorio, situado nos baixos da casa, com seu sobrinho D. Lucas, e n'uma sala contigua trabalhavam em silencio, sentados ás suas carteiras, dois caixeiros encarregados da contabilidade e da correspondencia. O gabinete do banqueiro tinha um postigo com vidraça que dava para o escriptorio geral, e pelo qual o tio e o sobrinho espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os caixeiros cumpriam as suas obrigações; phrase de que D. Lucas se servia para os fazer trabalhar, quando os ouvia fallar em cousas alheias aos assumptos commerciaes da casa. D. João era homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, córado, robusto, de nariz grande e cabelleira tão bem arranjada e composta, que os proprios caixeiros não teriam dado por ella, se não fôra o genio de sua mulher D. Joanna, que, nos seus accessos de cólera, lh'o lançava em rosto, chamando-lhe «tio _cabelleira_». D. Lucas devia ter os seus vinte oito a trinta annos; era pouco mais alto que um cão sentado, e nem a sua phisionomia, nem as suas palavras revelavam talento ou bondade de coração. Não obstante isso tolerava-lhe o tio os defeitos, e até sentia estima por elle, não só por ser empregado antigo da casa, mas tambem porque podia dizer-se que era D. Lucas quem carregava com todo o peso do estabelecimento. --Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João, levantando os olhos para um relogio, que estava collocado na parede, em frente da escrevaninha do banqueiro,--se tem de ir á Bolsa, não se descuide que são quasi duas horas. --Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D. João; quem ha de saír de casa por um tempo d'estes? A vida é curta, e se eu morrer... tocam os sinos a defuncto, e está tudo acabado... Demais deve estar por ahi a chegar o pequeno e tenho desejos de o vêr. Recebi pelo correio uma carta de meu irmão Martinho, na qual este me diz que o rapaz saíu de lá no primeiro do mez, na carroça de Chomin, e segundo o meu calculo, temol-o por ahi hoje. Talvez não fosse mau mandar o Toribio á estalagem. --Não sei para que; quando elle chegar, cá virá ter. --O pobre pequeno deve vir tolhido de frio. --Não lhe dê isso cuidado; não inspira compaixão quem vem como elle para Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de comer brôa e batatas n'uma aldeia da Biscaya. --Pois apesar d'isso estou bem certo de que preferiria encontrar hoje, ao apear-se da carroça, a cosinha de seus pães, com a sua priguiceira e um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar n'esta habitação ricamente mobilada e com chaminé á franceza. --Parece-lhe que o empreguemos em compras e recados? --Não foi essa por certo a ideia de seus paes quando resolveram mandal-o para Madrid. É preciso collocal-o no escriptorio a fim de que, pouco a pouco, se vá instruindo e orientando no negocio. --Pouco a pouco! Verá como antes de um mez o faço saber mais do que Merlin. _A letra com sangue entra_... --Não concordo comtigo, Lucas. Toma conta, não lhe ponhas sequer a mão; não quero que aconteça com este o que aconteceu com outros, que á força de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar para a terra... Dispunha-se D. Lucas a tomar a defesa do seu barbaro systema d'educação, quando tocou a campainha;--calaram-se de subito, tio e sobrinho, applicando o ouvido na direcção do portal. --Elle ahi está! exclamaram ambos a um tempo, ao ouvirem no patamar a voz do pequeno que saudava o creado que fôra abrir-lhe a porta. --Senhor, disse este com sorriso d'escarneo, apparecendo á entrada do escriptorio, está aqui Chomin com o _rocim-chegado_. D. João franziu as sobrancelhas como descontente de que o creado se atrevesse a proferir o estupido equivoco que vae escripto em italico, ao passo que o sobrinho soltou uma estrondosa gargalhada em honra da graça de Toribio, que era um asturiano tonto com pretenções a faceto: --Que entrem, respondeu D. João. Com effeito Chomin, que era um dos recoveiros das provincias Vascongadas, entrou no escriptorio, acompanhado d'um menino de doze a treze annos. II Não se tinha enganado D. João, suppondo que a pobre creança chegaria gelada. Angelo (era assim que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano e Sobrinho) estava a tiritar com frio; tinha as mãos e a cara lividas e os seus olhos indicavam que, na noite antecedente, em vez de se terem fechado para o somno, se tinham aberto para o pranto. O pobre rapazinho parou á porta do escriptorio, com o chapéu na mão, de cabeça baixa, e mal pôde articular um cumprimento. --Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das saudações do estylo. Desde que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com saudades das suas vaccas e das suas cabras. --Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Angelo. --Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão trigo de Madrid faz esquecer de prompto a brôa de Biscaya. Bem diz o provérbio que «_de Madrid só para o céo_». D. João acercou-se de Angelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela cabeça: --Vamos, homem, então, que tal achas Madrid? Parece-te melhor que a tua aldeia? --Não, senhor, respondeu o pequeno com os olhos arrasados de lagrimas. --Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se a rir e fazendo uma nova caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a melhor terra é sempre aquella que nos viu nascer. --Sim, sim, ria-se tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto de enfado; ria-se da sandice d'esse bruto. Não ha duvida, o rapaz promette! Mas deixa estar que caíste em mãos de quem te sabe ensinar! --Não se afflija, snr. D. Lucas; o _rapazelho_ põe-se fino com um bom par de açoites todos os dias. --Isso fica por minha conta, respondeu D. Lucas. --Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o banqueiro; que admira que o pequeno tenha saudades de seus paes, se nunca se separou d'elles? E accrescentou, dirigindo-se a Angelo: deves trazer vontade de comer? --Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lagrimas. --Não chores, disse D. João; chega-te para o lume e aquece-te, emquanto não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do teu serviço e verás como antes de um anno te tornas um verdadeiro negociante. O pequeno approximou-se da chaminé com o chapéu na mão; mas como o cegavam as lagrimas, tropeçou n'uma cadeira e lançou por terra uns papeis que estavam sobre ella. --Desastrado! não vês por onde andas? exclamou D. Lucas, agarrando-lhe n'um braço e sacudindo-o com violencia. De repente effectuou-se no animo do menino uma reacção inesperada. Elle que, um momento antes, mal se atrevia a levantar os olhos, ou a pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com altivez, e virando-se para D. Lucas, disse-lhe: --Expulse-se-me de sua casa, mas não me maltrate. Aqui maltratam-me, emquanto na minha aldeia me choram. Como quer então o senhor que eu goste mais d'esta terra do que da minha?! E accrescentou, dirigindo-se ao almocreve: --Já não quero aqui ficar; volto comsigo para a Biscaya. Estas palavras, bem longe de commoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram rir este e encolerisar aquelle, que murmurou, levantando o punho fechado sobre a cabeça da creança: --Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um murro! D. João, porém, saíu em defeza do pobre rapaz, arredando d'elle com violencia seu sobrinho, e exclamando: --Lucas, já te disse que não consinto que lhe ponhas a mão. Se o achas rude e acanhado, se está commovido e saudoso, recorda-te de como eras tambem, e do modo como te apresentaste quanto vieste para Madrid. E Vm.^ce, snr. carroceiro, fique sabendo que não se tratam os racionaes como as mulas. --Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não passa de um gracejo, e senão elle que diga a maneira como eu o tratei pelo caminho. --Carregando-me de lenços de contrabando! O que me valeu foi não me revistarem á entrada das portas; do contrario estaria a estas horas na cadeia! --Não está mau modo de cuidar da innocente creança, que foi confiada á sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o almocreve. Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar uma parte de si á policia. --Ora, snr. D. João!... Então o senhor faz caso do que dizem creanças? --Já lhe disse que se retire da minha presença. --Está bem, snr. D. João; mas... --Não ha aqui mas, nem meio mas. Tenho dito, ponha-se no andar da rua. O carroceiro não se atreveu a replicar e retirou-se murmurando não sei que insolencia. D. João arrastou uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado de Angelo que tinha cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um tanto mais satisfeito por ver que nem todos n'aquella casa o tratavam com aspereza, e que se havia ali quem o maltratasse, tambem tinha quem o defendesse e lhe proporcionasse consolações e affagos, que lhe faziam lembrar os que deixára no lar domestico. D. Lucas despeitado por vêr que o tio tomava as dôres pelo recem-chegado, a ponto de o reprehender a elle pela sua falta de humanidade, tinha-se retirado para o escriptorio, e por conseguinte ficaram sós, Angelo e D. João. Era este natural da aldeia do pequeno, e posto tivesse ido para a côrte de tenra edade, e absorvessem de ordinario todos os seus pensamentos e acções os assumptos commerciaes, nem por isso havia renegado o paiz natal, nem esquecido os seus parentes. --Vamos, Angelo, disse elle ao rapazinho com modo carinhoso, dando-lhe uma palmada no hombro; conversemos um bocado ácerca da nossa aldeia; venham de lá algumas noticias frescas d'aquella boa gente. Então de quem te despediste tu antes de partir? --Despedi-me de todos os meus parentes e vizinhos. --Muito bem! N'esse caso havias de vêr meu irmão, não é verdade? --Sim, senhor, recommendou-me que lhe désse muitas lembranças, e bem assim á senhora D. Joanna, e a D. Lucas... mas a este é que eu as não dou. --Não sei porque não, filho. --Porque me trata muito mal. --Não faças caso, homem. Com que então deram-te lembranças para mim? --Sim, senhor, e especialmente o snr. abbade. --Deve estar muito velho, o bom do padre! coitado! --Não, senhor; se o visse andar por aquelles montes ficava admirado. Ninguem dirá que tem mais de quarenta annos. Como não ha, lá na aldeia, quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saude, não tem nem uma dôr de cabeça. O colloquio de D. João e Angelo, interessantissimo para ambos elles, foi interrompido logo em começo pela entrada do asturiano, que tinha chamado ao menino _rocim-chegado_. --Senhor, disse o creado, manda dizer a senhora que está a _mesa na sôpa_. O banqueiro riu-se d'esta troca de palavras e encaminhou-se para o primeiro andar. III Não estava a mesa na sôpa, mas estava a sôpa na mesa, e D. Joanna, a esposa de Quijano, aguardava com impaciencia a chegada do marido, não porque tivesse o estomago vazio, mas sim porque o seu caracter irascivel e dominador não supportava que a fizessem esperar. D. Joanna, que entrára como creada e acabára por ser ama em casa de D. João Quijano, tinha o relogio atrazado, pois assegurava ter trinta annos, ao passo que a sua physionomia, e o que ainda é mais, a certidão do baptismo, lhe davam quarenta. Deter-me-hei pouco na descripção dos seus dotes physicos; direi apenas que as creadas, que despedia todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem pela ultima vez as escadas, com os epithetos de: _dentes de cavallo_, _estafermo_, e _olhos de gato_. Quanto ao moral era D. Joanna a personificação da antithese; alternavam-se n'ella a vaidade e a modestia, a avareza e a liberalidade, a crueldade e a compaixão, a elegancia e a falta de gosto no vestir. Se um dia fazia gala, em uma reunião de pessoas distinctas, de não ter gasto até a edade de quatorze annos, outro calçado que não fosse o do seu _proprio coiro_, despedia, no dia seguinte, uma creada por a pobre rapariga pedir, na sua innocencia, ao carteiro, que lhe lêsse uma carta do seu noivo, por isso que sua ama não sabia lêr; agora despedia um mendigo com a seguinte blasphemia: «Vá pedir a S. Bernardino», que na bôca dos que podem e não querem dar, substitue a _supplica_--«queira perdoar, irmãosinho, não póde ser agora»--que costumam usar os que querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer vizinho estava doente e precisado de meios, era muito capaz de lhe mandar uma boa esmola. Pela manhã dava uma _tarêa_ ao cão por este ter mordido o gato, e de tarde dava outra ao gato por ter arranhado o cão; na quarta feira ia passear ao Prado, de vestido de velludo, e na quinta apresentava-se no mesmo sitio de vestido de chita. Se sou tão minucioso e até prolixo, é porque não quero que alguem critique e censure no pintor as inconsequencias do original. D. Joanna dominava por tal arte o marido, que a vontade d'elle estava sempre subordinada á sua. D. João tremia diante d'um gesto ameaçador da mulher, e por mais d'uma vez teve ella um accesso medonho de cólera só porque o honrado banqueiro entrou em casa ás dez horas em vez de se recolher ás nove. --Ora, com effeito, disse D. Joanna, quando D. João entrou na sala do jantar, já julgava que seria preciso metter-lhe empenhos, e dirigir-lhe algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar. Se se persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito enganado. --Sempre tens muito mau genio, Joanninha! disse o banqueiro, esfregando as mãos e com um sorriso affavel nos labios. Sentou-se D. João á mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua mulher; esta porém empurrou-o com tal violencia, que todo o seu conteúdo se entornou na toalha. --Tambem tenho mãos para me servir. --Como gostares mais, Joanninha, disse D. João humildemente. Principiaram a jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra a sua mulher, em tom agradavel e risonho, não foi possivel quebrar-lhe o silencio. Por fim resolveu-se D. Joanna a fallar, perguntando ao marido: --Então que negocios tão importantes foram esses que o obrigaram a deixar-me esperar por si meia hora? --Meia hora! Não sei como não disseste uma, filha! --Faça o favor de me não contradizer! exclamou D. Joanna, com um gesto terrivel. Eu fallo mais verdade do que você e toda a sua geração. --Então! Não vale a pena alterares-te por tão pouco! A dizer a verdade, nem por isso eram lá muito grandes os negocios que me prendiam;--estava conversando com o pequeno. --Com que pequeno? --Com Angelo. --Pois elle já chegou? --Chegou, sim. Ainda o não sabias? --Não, senhor, ninguem me disse nada. N'esta casa sou eu sempre a _ultima palavra do credo_... Pois não devia ser assim, e d'hoje para o futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma coisa d'estas, porque, no fim de contas, eu é que sou a dona d'esta casa; entende o senhor? E dizendo isto, D. Joanna atirou o trinchador com tal furia, que fez um prato em pedaços. --Oh! menina!... por quem és, Joanninha. --Deixe-me... não me diga uma palavra, quando não... O banqueiro fez um movimento para traz, porque a mulher tinha pegado n'uma faca e agitava-a convulsivamente. A final o silencio e a humildade do marido desarmaram aquella megera. --Então, quando veiu o pequeno? perguntou ella. --Haviam de ser duas horas, filhinha; eu suppunha que o creado t'o teria dito. --Não me disse nada. Aquelle Toribio é um bruto, que ha de ir hoje mesmo para o meio da rua. E que me diz tambem ao mono do rapaz, que não soube subir para me vir cumprimentar?! --Bem vês que elle, coitado, não sabe... --Pois tem obrigação de saber que sou eu a dona d'esta casa. --Em primeiro logar o pobre pequeno chegou meio morto de frio, e depois aquelle excommungado de Lucas começou a embirrar com elle, de modo que a creança ficou logo sem saber de que freguezia era. --Eu me encarrego de o pôr fino com umas correias que alí tenho. --Não digas isso, Joanninha; para o pôr fino, como tu dizes, requerem-se carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que comigo tem de se haver, se lhe puzer a mão. A ti não é preciso repetir a mesma coisa, porque tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido de que has de ser para Angelo uma segunda mãe. Afianço-te que está morto por te vêr; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar por ti. Esta mentira do banqueiro foi o bastante para reconciliar Angelo com D. Joanna, que disse: --Mas o que faz essa creatura no escriptorio? Porque o não mandaste subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa? Provavelmente está ainda em jejum, molhado, cheio de frio... --Nada, não, elle disse-me que não tinha vontade de comer; e quanto a aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao fogão. --E porque foi, então, que Lucas o tratou mal? --Que queres? coisas d'elle! Por ter dito que gostava mais da sua terra do que de Madrid. --Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar com a creança? Aqui estou eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no entanto, morro pela minha aldeia...--Toribio! accrescentou D. Joanna, chamando pelo creado dos trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do senhor, que suba. --Quem, o _rocim-chegado_? perguntou o asturiano com um sorriso malicioso. --Atrevido! exclamaram, a um tempo, D. Joanna e o banqueiro; se tornares a divertir-te á custa d'Angelo, vaes immediatamente para o andar da rua. O asturiano baixou a cabeça, pouco satisfeito com o exito do seu gracejo, e um instante depois subia com o pequeno. Angelo saudou D. Joanna com bastante desembaraço, e depois que ella lhe chegou um prato de bolos, acabou de perder todo o seu acanhamento, e respondeu com vivacidade ás mil perguntas que por largo espaço de tempo lhe dirigiram os dois esposos. --Tens muitas saudades de tua mãe? lhe perguntou D. Joanna. --Muitissimas, respondeu o pequeno. --Pois, se fôres bom rapaz, hei-de estimar-te e cuidar tanto de ti, como se fôra ella propria. --Muito obrigado, minha senhora!... disse o menino; e arrazaram-se-lhe os olhos de lagrimas... lagrimas d'alegria e de agradecimento. O banqueiro e sua mulher levantaram-se da mesa. --Deixa-te estar aqui, filho, disse D. Joanna a Angelo; espera que vaes tu agora tambem comer e os teus companheiros. IV Pouco depois entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e sentaram-se á mesa. Angelo porém conservou-se n'um canto, de cabeça baixa, receioso, e sem se atrever a levantar os olhos para D. Lucas. --Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o sobrinho de Quijano. Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras lá para a tua terra. Alegrou-se o menino e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração, ao ouvir estas palavras; regosijou-o a lembrança de voltar para a sua aldeia e enluctou-se-lhe a alma com o novo insulto que acabava de lhe ser dirigido. Approximou-se timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia, segundo a opinião de D. Lucas; este dando-lhe um murro nas costas exclamou: --Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não deixa ficar estes animaes a pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito, n'uma manjadoura em logar de mesa! Todos os caixeiros do banqueiro desataram a rir em honra do chiste de D. Lucas. O pobre Angelo derramava entretanto uma torrente de lagrimas, e comparava as caricias da sua familia com aquellas offensas barbaras e grosseiras. --Então, comes ou não comes? perguntou D. Lucas. --Não tenho vontade, respondeu Angelo. --Tanto melhor; d'esse modo não corres perigo de agarrar alguma indigestão, e hão de abater essas bochechas de _frade Bernardo_. Por unica resposta continuou Angelo a chorar e a suspirar pelos paes, pelos irmãos, pelos seus companheiros d'infancia e pelas queridas montanhas de Biscaya, onde até ali tinha vivido tão livre, tão estimado de todos e tão feliz! E os caixeiros de Quijano a escarnecerem-n'o, a rirem-se d'elle, sem a mais leve sombra de compaixão, como se a pobre creança fosse um corpo sem alma, como se a considerassem sem coração para sentir! É na verdade uma coisa que indigna e irrita as pessoas sensiveis, e que até revolta o animo, a falta d'humanidade com que são, de ordinario, tratados nos grandes centros, e particularmente em Madrid, os rapazes que para ali são mandados das aldeias! Chega uma pobre creança, que nunca saíu do seio da sua familia, onde, se a não cercavam riquezas e commodidades, lhe sobravam carinhos e ternos cuidados; chega ordinariamente cheia de frio, extenuada de fadiga, muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em logar de a confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita então mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua innocencia e da sua humildade, das suas lagrimas e da sua linguagem. Ai! não accuseis o auctor d'este livro de se entregar a falsas declamações; a justificação d'essas palavras conserva-a elle impressa na sua memoria propensa a recordar, e no intimo do seu coração sempre disposto a perdoar, para nunca mais saír d'ali. Durante a primeira tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi Angelo victima da selvageria, que estou condemnando. Abusaram indignamente da sua natural simplicidade e prudencia, obrigando-o a praticar um certo numero de coisas, que repugna enumerar; por ultimo fizeram-n'o persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira vez em Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos direitos proporcionaes ao peso que tivessem. Puzeram-n'o em cima d'uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo, que a pobre creança já tinha o corpo quasi desconjuntado; quando terminou aquella experiencia de martyrio, que faz lembrar os tormentos inventados por Diocleciano e Torquemada, teve elle de soffrer outro talvez mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias dos seus verdugos, que desapiedadamente lhe retalhavam o coração! E os caixeiros do banqueiro, homens barbados, que, como taes, estavam constituidos na obrigação de proteger o fraco e de consolar o triste; que eram chamados a desempenhar graves e sagrados deveres na sociedade, mostravam-se contentes com a sua obra, e imaginavam-se, talvez, cheios de talento e de graça por haverem illudido e martyrisado uma creança, que, pela primeira vez na sua vida, vertia lagrimas de desespero, longe de seus paes que a idolatravam, e das queridas montanhas da sua patria! Tudo soffreu a pobre creatura em silencio; nem sequer lhe restou o linitivo de se queixar a D. João dos barbaros tratos de que foi victima; prohibiram-lh'o os seus verdugos com ameaças que lhe infundiram novo terror e novo desalento. V Dormia toda a familia de Quijano no andar nobre da casa, á excepção do caixeiro mais moderno e dos cães, que se acommodavam no pavimento terreo, destinado quasi exclusivamente ao escriptorio e suas dependencias. Os dois cães, Moiro e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que estava ricamente mobilado, ao passo que o caixeiro se alojava n'um quarto pequeno e humido, alumiado apenas por uma especie de fresta ou gateira aberta na parede, situado n'um patamar constantemente varrido pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha d'um pateo que havia nas trazeiras da casa; a mobilia d'esse mesquinho aposento consistia toda em um leito de pinho com colchão, dois lençoes, um cobertor, um travesseiro e um lanceiro ou cabide tôsco para pendurar o fato e... grandes cortinados de teias d'aranha pendentes do tecto. Em tempo dormia o caixeiro mais moderno (rapaz de tempo) n'um quarto excellente do andar nobre; D. Lucas porém havia disposto as coisas por outra fórma, muito antes da época a que me refiro; tinha lá umas ideias _suas_ d'hygiene, em virtude das quaes dizia que muitas vezes os caixeiros adoeciam por passarem repentinamente d'uma vida incommoda para uma vida commoda, d'um colchão duro para um colchão molle, d'um quarto mau para um quarto bom. Quiz o tio oppôr-se áquella estupida innovação, ponderando que o que fazia adoecer os rapazes que entravam para sua casa não era senão o pessimo tratamento que recebiam de D. Lucas; este porém, taes argumentos empregou em defesa da sua theoria, que, para se livrar de polemicas, teve o pacifico banqueiro de concordar com elle. Os rapazes continuaram a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquillo era fingimento e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom do banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações de sua mulher, não quiz continuar em divergencia com o sobrinho, e acabou por admittir o seu barbaro systema penitenciario. Patrões e caixeiros ceavam quasi simultaneamente, sendo as sóbras da mesa dos primeiros servidas aos segundos. D. Lucas comia de ordinario com estes, excepto porém nos dias sanctificados e á noite, que fazia companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro tolerar que os caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida pelo tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se facilmente. D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca edade, carecia para o fazer de occultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando já eram escusadas essas precauções, continuou a matar o vicio ás occultas, talvez por habito, e talvez tambem por não dar o seu braço a torcer, por isso que em tempo tinha jurado e tornado a jurar ao tio que bastava o cheiro do tabaco para o transtornar completamente. Erguia-se da mesa, ainda com o bocado na bocca, e entrando na cosinha, onde comiam os caixeiros, apertando o seu cigarro, que se não atrevia a accender, com medo de que na sala se presentisse o cheiro, pegava n'um castiçal e dava a voz de _deitar_ ao _rapaz de tempo_. Achava-se este ainda em meio da ceia, por isso que os outros lhe levavam sempre um prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado por fumar, de maneira que o pobre rapaz não tinha outro remedio senão levantar-se da mesa, dar as boas noites a toda a familia, começando pelos caixeiros, e seguir a D. Lucas, que já pelas escadas abaixo tirava cada fumaça que valia bem um dobrão. Em quanto o pequeno se deitava, alumiado pela vela collocada no corredor, em frente da porta do quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu cigarro, pegava no castiçal, fazia quatro festas aos cães, deitados n'um colchãosinho muito fôfo, e em seguida subia as escadas a fim de passar um bocado da noite na companhia dos donos da casa. Se D. João tivesse um hospede e este lhe perguntasse a razão porque o sobrinho descia ao escriptorio, ainda bem não tinha acabado de cear, seria esta a resposta do banqueiro: --Vae deitar os cães e o pequeno, dar uma vista d'olhos lá por baixo, vêr se está tudo bem fechado, e demora-se até poder trazer para cima a luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fógos. Como estes rapazes são em geral muito _dorminhocos_ e Lucas entende que por nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que o pequeno esteja para ahi a turrar com somno, dá-se pressa em o levar para a cama. Succedeu a Angelo nem mais nem menos do que aos seus antecessores, com a differença, porém, de que á pobre creança lhe foi dobradamente mais custoso deitar-se a meia ração, por isso que todo o dia estivera fazendo cruzes na bocca, e quando o chamaram para a ceia tinha fome canina. Uma pessoa adulta, oppressa pelo peso de tão profundo desgosto como era o d'elle, teria olhado para a comida com repugnancia, ainda que estivesse a caír de fraqueza; mas é que uma pobre creança, se acontece perder o appetite por espaço d'algumas horas, prompto o recupera, por mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos. Angelo deitou-se e Dom Lucas despediu-se d'elle do seguinte modo: --Ora queira Deus que pela manhã não haja preguiça! Aqui não se trata só de comer e dormir. Ás seis horas _varrer_ bem o escriptorio. Dom Lucas, como temos visto, usava muito d'essa especie de linguagem impessoal inventada pelos lacaios com o fim de se esquivarem a dar tratamento. VI Angelo, com a solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte da ceia de que a maldade de D. Lucas o privára. Alí podia sequer chorar desafogadamente, podia rogar a Deus que o restituisse ás suas montanhas, invocar o nome de seus paes, e execrar até os seus algozes, sem que uma gargalhada de despreso, um dito humilhante ou uma pancada fossem perturbal-o nas suas cogitações. Ai! muito chorou a pobre creança, n'aquella noite! --Como é triste viver em Madrid! pensava elle. E dizerem na minha terra que--_de Madrid só para o céo!_--As pessoas que dizem isso de certo nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas em lodaçaes immundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens e os cavallos atropellam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras alagam os individuos que seguem pelos passeios; e o vento que sopra das portas faz rebentar o sangue nas mãos e na cara! É bem differente d'isto o meu querido paiz, os campos amenos da Biscaya! Lá alveja a neve lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas arvores e nos telhados, e quando o sol ou a chuva a derretem não é em lodo que se converte, mas sim em cristallinos arroios; lá não se apinhôa, confunde e atropella a gente, o gado e os carros, que a todos Deus concedeu campo e largueza por onde se espalhem á vontade; e se tambem ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saude em vez de tiral-a. Ai! quão differente teria corrido para mim o dia, se o passasse na minha aldeia! Se lá estivesse, andaria no campo a patinhar no gelo; teria feito grandes bólas de neve no alto da montanha, para as vêr despenhar-se no valle; em seguida voltaria a casa, e depois de ter almoçado junto do lume, subiria á trapeira para apanhar os passaros, que ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não encontram nos campos cobertos de neve; e á noite, em quanto minha mãe estivesse preparando a ceia, contar-me-hia meu avô as suas façanhas da guerra da independencia. No fim da ceia iria para a cama acompanhado por minha mãe, que depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente, se despediria de mim, como de costume, com um dôce beijo. Ai! que differença! assim não estaria, como agora estou, acordado e a chorar, mas dormiria tranquillo e socegado até que, com outro beijo, fosse despertar-me pela manhã! Entregue a tão saudosos pensamentos passou Angelo em claro quasi toda a noite. Já se ouviam na rua os pregões dos vendilhões e fornecedores da cidade, o barulho dos carros e os passos dos transeuntes, quando, vencido pela vigilia, e tomado do cansaço do corpo e do espirito, caíu n'um benefico somno. Adormeceu profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que ficára e a sua respiração serena e plácida, revelavam uma dulcissima tranquillidade d'espirito; entreabria-lhe os labios aprasivel sorriso, e, de vez em quando, soltava d'elles os nomes de _pae_, _mãe_, e outros como estes saudosos e gratos ao coração da desventurada creança. Agora sonhava que se achava na aldeia, cercado da sua familia ou brincando com os seus companheiros de infancia; depois, que trepava ao cimo das arvores em busca d'um ninho de rôla, ou de pombo torcaz; derribava ás pedradas as maçãs e as nozes; corria ao bosque a fazer assobios da casca do castanheiro, ou ao ribeiro para construir moinhos de junco; logo subia ao alto da montanha, coroada por uma ermida, em roda da qual andava o tambor chamando para a romaria. Por ultimo sonhava que era noute de S. João, que todo o valle estava illuminado pelas fogueiras accesas nos oiteiros, e o inundavam d'alegria o repique dos sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham sempre aquella festa classica e essencialmente infantil! Embalado n'estes sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os encantos do seu paiz natal, sonhos que melhor do que ninguem póde adivinhar o auctor d'este livro, porque tambem chorou e sonhou como Angelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram compassadas no relogio do escriptorio. VII Manoel e Marianno (eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro) desceram as escadas, e vendo que Angelo se não tinha ainda levantado, dirigiram-se para o seu aposento. --É melhor acordal-o, dizia Manoel, porque se chega D. Lucas e o encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do costume. --E que tem lá isso? replicou Marianno, para nós é até um divertimento. A pena que me resta é não haver aqui á mão um bom molho de ortigas. --Não tenhas mau coração. Já não soffreu pouco hontem o pobre pequeno, principalmente com a historia da balança. --E que tem que soffresse?! Tambem nós soffriamos quando eramos como elle. --Pois por isso mesmo que a nós nos trataram mal é que eu entendo, que devemos tratar agora bem os que se acham em identicas circumstancias. E dizendo isto, approximou-se da cama de Angelo, e principiou a abanal-o e a chamar por elle; mas o menino estava tão ferrado no somno, que continuava a dormir profundamente. --Que é lá isso, perguntou D. Lucas, apparecendo á porta do quarto. Então esse estupido ainda está na cama?! --Está, sim, senhor, respondeu Marianno. D. Lucas proferiu uma praga e accrescentou, dirigindo-se a Marianno: --Vaes vêr como esperta n'um instante. Traz-me lá de cima, da talha, uma bilha d'agua para se lhe applicar o remedio. Marianno, que parecia feito á similhança de D. Lucas, obedeceu de prompto, e largou pelas escadas acima, esfregando as mãos de contente. No primeiro andar, e debruçado n'uma varanda de ferro que dava para o pateo interior da casa, coberto por um tolde, estava Toribio, escutando o que se passava em baixo, pois d'alli se ouvia tudo perfeitamente. --Que temos, snr. D. Marianno, perguntou elle ao caixeiro. --Vou buscar uma bilha d'agua para fazermos a _operação_. --Ao _rocim-chegado_? --Nem mais nem menos; vem d'ahi, se te queres rir. --Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia de fazer o _remedio_. Mas a agua não deve ser da talha; essa está pouco fria por causa da proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro d'ella, que, de proposito, deixei ficar de noite sobre o alpendre. --És um rapaz de talento, Toribio! exclamou, rindo, Marianno, em quanto o bruto do creado pegava no jarro da agua. --Deve estar excellente! accrescentou, vendo-a coberta d'uma espessa crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos, á maneira que descia os degraus da escada. Toribio não quiz privar-se do barbaro goso de assistir ao martyrio que ia soffrer a pobre creança, e correu, todo alvoroçado, atraz de Marianno. Dom Lucas pegou no jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria o menino até ao pescoço, despejou-lhe de golpe toda a agua por sobre o peito, com grande satisfação de Marianno e Toribio. Manoel, esse, coitado, estava compungido da sorte do rapazinho. Angelo soltou um grito e ergueu-se de subito, ao sentir no corpo a agua gelada. --Isto é para vêr se acordas! disse D. Lucas, e completou a phrase com uma nova praga. O menino não replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou immediatamente comsigo da cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma palavra. Os seus olhos não derramavam lagrimas, mas derramava sangue o seu coração! Tinha á cabeceira da cama uma estampa, já enegrecida pelo tempo, representando Jesus crucificado. Ergueu os olhos para a divina imagem e exclamou no intimo de sua alma afflicta: --Senhor, levae-me já para o céo ou para as minhas montanhas! VIII Do seio d'aquella nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre Angelo um raio de esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas e dos seus companheiros, veiu no conhecimento de que os caixeiros do banqueiro tinham licença de saír nos dias santificados e para logo concebeu a esperança de gosar tambem d'esse prazer, libertando-se da tristeza e da oppressão de toda a semana, n'aquelle dia de folga e de liberdade. De quantas necessidades experimentava era por certo a maior a de respirar por algum tempo livremente, vendo o céo e o sol, as arvores e os campos. Manoel era o unico que dirigia a palavra a Angelo sem aquella aspereza e zombaria com que sempre lhe fallavam D. Lucas e Marianno. Por isso, depois de dois dias de hesitação, abalançou-se o menino a perguntar-lhe se tambem lhe dariam, a elle, licença para saír ao domingo para o campo.. --De certo, isso nem se pergunta, respondeu Manoel. Esta resposta, que a outro qualquer pareceria em extremo laconica, fez verter lagrimas de agradecimento e de alegria a Angelo; de agradecimento porque encerrava em si um thesouro d'indulgencia, comparada com as que todos os dias recebia n'aquella casa, e de alegria por lhe vir confirmar as fagueiras esperanças que nutrira. As palavras de D. Lucas já não pareciam á innocente creança sêccas e desabridas, nem tão pouco se lhe afiguravam crueis os motejos de Marianno e de Toribio; já não julgava insupportavel o trabalho a que o submettiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o quarto em que dormia, humido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortavel e alegre desde que n'elle sonhava com os prazeres do domingo, embalado nas risonhas esperanças de disfructar, ao menos um dia na semana, gosos similhantes áquelles, que diariamente o deleitavam nos campos do seu paiz natal. --Se os bosques e os prados da minha terra são tão formosos, pensava elle, como não hão de ser encantadores os d'aqui, se até por elles passeiam os reis e a sua côrte? E quando as caçadas, lá nos meus sitios, são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid, onde tudo deve participar da grandeza da capital? E os aprestes de caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e o polvarinho marchetados de prata, e as polainas e os correões bordados a sêda! Muito me hei de divertir! Parece-me que já estou a atravessar espessos bosques de carvalhos e castanheiros seculares, a passar regatos cristallinos, e torrentes espumosas, e a vêr, a meu salvo, do alto d'uma fraga, do cimo d'uma collina ou da copa d'uma arvore, o javalí e o veado perseguidos pelos cães. Por fim, ao caír da tarde, quando tivermos reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descançar debaixo das ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casaes, onde não deixarão de nos offerecer excellente leite e fructa saborosa. E quando entrarmos na cidade! Com que orgulho, com que alegria não atravessaremos nós essas ruas, com grandes enfiadas de perdizes ás costas, e trazendo á arreata uns poucos de burros carregados de javalís e lebres! Chegou finalmente o domingo tão desejado. O céo appareceu limpido e puro; despontou o sol mais formoso que nunca, e um vento forte, que soprára toda a noite, tinha seccado completamente o solo. Tudo contribuia para aformosear e revestir de galas o dia destinado a compensar Angelo dos desgostos e maus tratos que soffrera até ali. Na véspera á noite tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença dos donos da casa, que eram fieis observadores dos preceitos religiosos: --Amanhã _levantar_ cedo para ouvir missa antes de partir para o campo. Os caixeiros, e bem assim D. Lucas, levantaram-se effectivamente muito cedo, mas não foi para ouvir missa. Bem se importava D. Lucas com a missa, quando se tratava de caça que era o seu divertimento favorito! O sobrinho de Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Angelo foi encarregado de fazer varetas de junco, Manoel de encher de polvora os polvarinhos e de chumbo as bolsas dos correões, e Marianno de fazer provisão de fulminantes. Soou finalmente a hora da partida; D. Lucas, Manoel e Marianno calçaram botins muito grossos, afivelaram vistosas polainas bordadas a seda de differentes côres, lançaram ás costas grandes saccos de caça e armaram-se não só de espingardas de dois canos, como tambem de facas de matto; por ultimo tiveram o cuidado de metter para os bolsos um bom punhado de balas. Angelo olhava para aquelles preparativos com indizivel satisfação, e dizia com os seus botões: --Estas polainas, estes enormes saccos de caça, estas facas de matto e estas balas indicam que vamos correr montes espessos e escabrosos, que a caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com javalís ferozes, e talvez até com ursos e lobos. O que porém dava que entender a Angelo era vêr que D. Lucas se dispunha a levar comsigo os dois cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam ter forças para arrostar com os perigos e fadigas d'uma caçada como a que elle phantasiava na sua infantil imaginação. Saíram a final, e tomaram pela rua abaixo; «muito barata ha de estar ámanhã a caça!» diziam algumas pessoas ao verem-n'os passar. E Angelo, que não comprehendia a ironia que se continha n'estas palavras, cada vez se confirmava mais na ideia que tinha formado da caçada. IX Quando avistaram a porta de Toledo, ficou Angelo a pular de contente; mais alguns passos apenas e estavam no campo, onde ia recrear a vista na contemplação d'uma perspectiva encantadora; era esse o juizo que formava, e que tinha como certo. Se tanto o deleitavam as ridentes paisagens do seu paiz, com mais razão entendia a pobre creança que o haviam de captivar as dos arredores de Madrid, a capital da Hespanha onde tudo devia ser magnifico e admiravel. Lá, na frente, pensava elle, hão de avistar-se talvez grandes montanhas cobertas de frondoso arvoredo; a um lado elevar-se-ha uma verde colina coroada pelas ruinas d'um castello mysterioso e sombrio; do lado opposto erguer-se-hão ás nuvens penhas alcantiladas, por entre as quaes se despenharão com rouco bramido impetuosas torrentes, e pelas faldas dos montes ha de estender-se por certo uma veiga deliciosa, semeada de casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas ribas estarão collocados, destacando no horisonte, inumeros moínhos, completando a paisagem com os seus tectos elegantes e pittorescos... É este o espectaculo grandioso, que vae, n'um momento, offerecer-se aos meus olhos! E vendo que estavam quasi a chegar á porta, desceu Angelo a vista com o proposito firme de a não levantar, em quanto não sentisse debaixo dos pés a herva do campo, para assim poder abranger a um tempo e de repente, o formoso panorama, que se lhe desenhava na mente. A areia e a brisa subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa relva, que sonhára, lhe fizeram conhecer que já se achava fóra de Madrid. Ergueu de subito os olhos e abarcou ancioso com a vista a paisagem, que tinha diante de si. Ai! que differença entre o panorama, que se lhe apresentava e aquelle que phantasiára na sua pueril imaginação! Em frente limitavam o horisonte os cêrros escalvados e agrestes de Santo Izidro, coroados não de arvores formosas e de castellos mysteriosos, mas sim de telhados denegridos pelo fumo e de lugubres cemiterios, circumdados de muros de terra. Do lado esquerdo uma planicie estéril e monótona, da qual os accidentes mais bellos são o cêrro dos Anjos e o cêrro Negro. Á direita as vendas ou retiros miseraveis e as aridas encostas, que dominam a ponte de Segovia; e em baixo, na planicie, o triste Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares e lavadouros!... Um cruel desalento e uma profunda melancholia se apoderaram para logo de Angelo; comtudo não perdeu de todo a esperança de deparar com o paraiso dos seus sonhos. --Quem sabe? pensava elle, talvez que ao transpor aquellas imminencias se descubra uma paisagem menos arida e triste do que esta que d'aqui se observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o Manzanares pela ponte de Santo Izidro. De repente D. Lucas parou, recommendando, por signaes, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram, e elle então adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente, e com os perros da espingarda levantados. Angelo suppoz que D. Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos um bando de perdizes. Por fim o grande caçador de Madrid disparou a arma, e exclamou cheio de alegria: --Lá caíu, lá caíu! Áquelle já ninguem lhe vale! E desappareceu por entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos depois tornou a apparecer, mostrando triumphante um passaro _ribeirinho_ que acabava de matar! As illusões de Angelo soffreram um novo golpe. Que caçada era aquella em que os caçadores se alvoroçavam tanto com a morte d'um passarito? Para que serviam então tantas balas, tantas facas de matto e tantos saccos e correões de caça?! Os caçadores treparam aos cêrros de Santo Izidro, e Angelo dirigiu a vista para o novo horisonte. Alli, como na porta de Toledo, não via para todos os lados para onde olhava, senão áridas serranias, collinas escalvadas, umas poucas d'arvores rachiticas, e alguns silvados e espinhaes, contornando o regato de Luche. D. Lucas não desanimava como Angelo. Atravessando campos semeados, atraz d'um pardal ou d'uma cotovia, foi-se affastando, poupo e pouco, seguido pelos seus companheiros. Angelo já se sentia fatigado, e outro tanto acontecia aos dois _improvisados_ cães de caça. Sentou-se por fim n'uma pedra, e os cãesitos, vencidos egualmente de cançaço, deitaram-se n'um rego do campo; D. Lucas, porém, vendo isto, deu um empurrão á pobre creança, e affagando os cães, obrigou-a a carregar com elles.--«Tu que não pódes leva-me ás costas.» Como D. Lucas seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um coelho de entre os pés. D. Lucas disparou-lhe um tiro a corta-matto, porém o coelho proseguiu no seu caminho sem ter soffrido o _mais leve incommodo_. O caçador soltou uma praga e affirmou aos seus companheiros, que o coelho ia ferido, e que se não tinha morrido logo ali, a culpa não era sua, mas sim da polvora, que não prestava para nada. E o pobre Angelo que já não podia com o corpo, e menos ainda com a alma, continuava a seguil-os, carregado com os cães. Com estas e outras proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram por ultimo o caminho de Madrid, levando nos correões meia duzia de passaritos. De vez em quando Angelo ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro ajudava-o então a andar, proferindo uma praga, ou dando-lhe um pontapé. Junto á porta de Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro coelhos. --Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo não lhe correu mal, hein? --Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que tal? --Ora deixe-me, homem, estou desesperado com esta maldita polvora. --Então que tem? está humida, talvez? --Nada, humida não está; mas não sei o que tem, que não presta para nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as peças de caça feridas. --Pois a mim é que isso não acontece; a caça que me fugir preguem-m'a na testa. Tenho uma polvora de contrabando, que não quero que haja melhor. --Homem, vende-me vocemecê uns poucos d'arrateis? --Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia d'estes lá lh'os levo a casa. --Muito bem. Vamos agora a vêr esses _bicharôcos_. --Póde vêr á vontade, que são quatro peças de caça aceiadas. --Isso vejo eu. Provavelmente são para vender na praça?... --Está bem de ver, nem a gente vive d'outra coisa. --Pois, n'esse caso, fico eu com os coelhos. --Estão ás suas ordens, snr. D. Lucas. --E quanto lhe hei de dar por elles? --Dá-me aquillo que o senhor quizer. --Está bom, ahi tem um duro, serve? --Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu desejo é que os senhores os comam com saúde. Até outra vez, se Deus quizer. --Adeus, tio Lobo. O _verdadeiro_ caçador tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano. D. Lucas tratou logo de enfeitar o seu correão com os quatro coelhos, e pouco depois entrava em Madrid, tão inchado que não cabia na rua de Toledo, e causando inveja áquelles que ainda pela manhã tinham zombado d'elle. X Dois ou tres dias depois da famosa caçada, estavam no gabinete de D. João Quijano, palestreando junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho D. Lucas e quatro ou cinco amigos intimos da casa. Fóra, no escriptorio, trabalhavam em silencio os caixeiros e com elles Angelo, cujas côres rosadas iam pouco e pouco desapparecendo, e cuja tristeza era cada vez mais profunda. --Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou um dos amigos. --Ás mil maravilhas, respondeu D. Lucas. --Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo o rei dos caçadores! Pois não sabem que, domingo, teve a habilidade de se apresentar aqui com quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?! --Que nos diz, homem? --Nem mais nem menos, é como lhes conto. Aprendam como elle a matar coelhos onde ninguem os costuma matar, nos suburbios de Madrid. --Sempre queria saber como isso foi, disse um dos interlocutores. --Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei domingo quatro coelhos, junto ao ribeiro do Luche. Aquillo foi n'um abrir e fechar d'olhos, e é preciso advertir que a polvora não prestava para nada. --Não sei como isso se faz; eu cá, por mais voltas que dou, não sou capaz de levantar um coelho por estas visinhanças. --É porque os senhores são caçadores das duzias! Eu por mim, nem sequer preciso de cão; havendo coelho, está prompto; faço-o saltar, e depois de lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque onde eu puzer a vista ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de domingo foi um momento em quanto caíram. --Pois, senhor, não tem que vêr, é um bom caçador! D'isso está elle convencido. A caçada de domingo ha de ser apregoada por toda a cidade; não falla d'outra cousa a quantas pessoas aqui entram! Estava ainda o sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza, como matára os quatro coelhos, quando entrou no escriptorio o tio Lobo, que ia levar a D. Lucas os dois arrateis de polvora de contrabando, que este lhe encommendára. --Esta ahi o snr. D. Lucas? perguntou o caçador aos caixeiros. --Sim, senhor, respondeu Angelo. --Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fóra o tio Lobo, que o procura. O pequeno entrou no gabinete. D. Lucas, que ainda não tinha acabado de contar como matára os quatro coelhos, ficou logo furioso por lhe interromperem a historia, e antes que o pequeno tivesse tido tempo de fallar, perguntou-lhe, com aquella amabilidade que lhe era propria: --Que queres tu d'aqui, borrego? --É que está ali fora o Lobo, respondeu Angelo. Desataram todos a rir, vendo a relação casual, que havia entre a pergunta e a resposta. Não era para admirar que Angelo omitisse a denominação de _tio_, que costumava preceder o nome do caçador, porque esse tratamento, que é tão vulgar em quasi toda a Hespanha, não se usava nem se usa, na sua provincia, senão quando o justificam os laços de consanguinidade. Julgando por tanto que se riam por não se haver explicado bem, ficou corrido de vergonha, e tratou de se fazer comprehender melhor. --Parece-me que é assim que tenho ouvido chamar-lhe; e accrescentou, «é aquelle caçador a quem o senhor comprou domingo os quatro coelhos junto á porta de Toledo.» Estas palavras de Angelo foram acolhidas com uma gargalhada ainda mais ruidosa do que a anterior, porém menos inoffensiva; uma gargalhada de mofa, insultante, sangrenta, e isto porque os caçadores têm dois grandes defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos, e assim como não perdem a occasião de mentir, tambem não perdem nunca o ensejo de humilhar os que caçam, ou suppõem caçar mais do que elles. D. Lucas ficou por espaço d'um segundo immovel, envergonhado e corrido; porém, de repente, injectaram-se-lhe os olhos de sangue, engorgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente livido e desfigurado. Arremeçou-se como um tigre sobre a pobre creança, vociferando e praguejando como possesso, e lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a d'encontro á parede e começou a descarregar-lhe furiosas patadas no estomago, antes que D. João e as outras pessoas, que se achavam presentes, tivessem tido tempo para se interpor entre aquella fera e o innocente cordeiro, que, por unica defesa, invocava o nome de sua mãe. Oh! tu, Fernan Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo hespanhol, amigo dos pobres d'espirito e dos ricos de coração, que tens cabeça d'homem para pensar e alma de mulher para sentir; tu que és o amigo por excellencia dos meninos e das mães, dos fracos e dos attribulados; tu que buscas e encontras as dôres e as afflicções do proximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com tanto sentimento e caridade, as prantêas, dize-me, meu bom Fernando, não achas que os sabios legisladores da humanidade tem sido extremamente crueis e ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do codigo, que protege os homens, em vez de os acobertar com a égide celeste do codigo que protege os anjos?! XI Alguns mezes haviam já decorrido depois do dia em que Angelo escapou, por milagre, de morrer ás mãos de D. Lucas. Era por uma aprazivel manhã de primavera. A sala de jantar de D. João Quijano tinha uma janella, que olhava para o norte. Em quanto o banqueiro e sua mulher tomavam chocolate na sala, Angelo fôra para a varanda, e ali se conservava, com a vista immovel e fixa na direcção do seu paiz. O pobre pequeno estava mais alto do que quando chegára das montanhas de Biscaya, porém tinha emagrecido consideravelmente. Cobria-lhe o rosto uma pallidez mortal, e nos seus bellos olhos, tão meigos e sympathicos, retratava-se-lhe a profundissima tristeza que lhe ia n'alma. --O que fazes tu ahi, Angelo? perguntou carinhosamente D. Joanna. O menino não respondeu. --Oh! meu Deus! O que terá esta creança?! accrescentou a mulher do banqueiro, com verdadeira afflicção. --Não sei o que elle tem, Joanna, mas ninguem me tira da cabeça que está doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do medico dizer, passados quinze dias, que o considerava completamente restabelecido. --Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr a mão. --Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão abatido e melancholico, que receio muito pela sua existencia. --Ai! Nossa Senhora permitta que te enganes. Angelo se chama e foi elle na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia á nossa casa; porque, desde que para aqui veiu esse menino, nós que sempre andavamos de rixa, estamos inteiramente mudados, e tenho fé em que elle ha de acabar por abrandar e adoçar por uma vez este meu maldito genio. --Assim é, Joanninha, exclamou o banqueiro commovido; sempre esperei que quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande mudança. Não quiz Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação essa criança, a quem queres hoje quasi tanto como se fôras sua mãe. --Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo ardente de voltar para a sua aldeia... suspirava tanto por isso, a principio... --Tambem me não parece que seja essa a causa do seu soffrimento. Desde que os paes lhe disseram n'uma carta, que era elle o unico amparo com que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra, nada poderia fazer em beneficio d'elles, não cessa de dizer que está satisfeito em Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor, costuma repetir o proverbio «_de Madrid só para o céo_». --Pois é preciso mandar chamar o medico, porque se não cuidarmos d'elle váe cada dia a peior. Angelo, accrescentou D. Joanna, chamando novamente pelo menino. Este deixou como assustado a immobilidade em que estava, olhou novamente com ineffavel languidez para o norte, e entrou na sala. --Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com ternura D. Joanna, correndo-lhe a mão pela cara. --Não tenho nada, respondeu Angelo. --O que fazias na varanda? --Nada; estava a vêr o sol. --Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate comnosco. --Não me appetece. --Mas o que é isso? O que te falta? Não te quero eu como se fôra tua mãe? O menino não respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas, e os de D. Joanna tambem. --Olha, accrescentou esta, não vás outra vez para a varanda que te faz mal o sol; vae antes um bocado até ao escriptorio, não para trabalhar, mas para vêr se te distrahes com os teus companheiros. Angelo saíu da sala, e desceu a escada. Ás tres horas, subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel e Marianno. --Onde ficou Angelo? perguntou D. Joanna. --Não veiu cá para cima. --Virgem santissima! Onde estará então a pobre creança?! --Talvez se fosse deitar. --D. Joanna correu pressurosa ao quarto de Angelo, e foi encontral-o na cama. --O que quer isso dizer, filho? O que tens?.. Estás doente? --Sim, minha senhora, respondeu Angelo com voz sumida. --Então o que te dóe? --Não me dóe nada, mas sinto-me doente. --Toribio! Toribio! vae, corre chamar o medico, que está o menino doente, gritou da escada D. Joanna. Pouco depois chegou o medico. Tomou o pulso a Angelo, e fez um gesto de mau agouro. --É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com anciedade, D. Joanna e o banqueiro. --Gravissima, respondeu o medico... e observando-o novamente, accrescentou, em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;--está quasi a morrer. Angelo abriu por um momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava já empanado pelo sopro da morte, volveu-os para a imagem do Senhor crucificado, como querendo expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os logo, para nunca mais os tornar a abrir. Todos proromperam em amargo pranto, á excepção de D. Lucas. --E de que morreu? perguntou este ao medico, que tinha antecipadamente interrogado a familia ácerca dos padecimentos de Angelo. --Morreu, lhe tornou o medico, de uma affecção moral, para cujo desenvolvimento contribuiram por certo padecimentos physicos. Os meninos são homens no sentimento, e creanças no vigor; por isso Deus amaldiçôa os seus oppressores. Este menino morreu da mais santa de todas as enfermidades; morreu de _Nostalgia_. FIM DA NOSTALGIA. O MADEIRO DA FORCA I A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações[2] de Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media uma especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas, aos quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa. Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde habitavamos. Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz dos montes, que recortavam o horisonte, e nas quebradas das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao valle; em baixo, na planicie, saíam as raparigas das herdades, e pondo á cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, á fonte do _Castanhal_, para que seus paes e irmãos achassem em casa agua fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao hombro as enxadas, e resando as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar. Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuario de Colisa. Entramos a fallar d'aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra dos santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras a alma contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos. Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação de Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n'aquelle tempo, como as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam d'elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do commercio dos homens. Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda, que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o immerso em mystica alegria. Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar por aquelles bosques espessos e fragosos, a vêr se encontrava alguns caminhantes, que n'elles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado. --Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle. --Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte, lhe responderam. --_Quem as faz paga-as_, disse o anachoreta, dando tregoas á sua compaixão. Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n'uma encrusilhada, pegaram n'um grande madeiro secco, que, havia muitos annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades d'esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n'o d'aquella forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que elle tinha expirado. [2] _Encartaciones_, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e regalias especiaes. II N'esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados pelas féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d'aquelles temerosos desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do nevoeiro. Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da egreja de Valmaseda.--O anjo porém não lhe appareceu n'aquella noite! O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com o agastamento do Senhor. Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d'espessa névoa, saíu em auxilio dos caminhantes. De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca, da qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de repugnancia e movido d'espanto; e levantando a vista acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no madeiro da forca. O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com semblante severo e carregado. Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão e misericordia. --Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua protecção. Hontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente d'esta forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença para a sua tribulação. Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos hombros, leva-o pelo mundo, e seja elle o unico travesseiro, em que descances a cabeça. --E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento. --Sim, lhe tornou o anjo. Quando d'esse madeiro brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou. Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de brilhantes resplendores. Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras, foi com elle aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado. III Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a gente o escarnecia e fugia d'elle horrorisada. Uma noite, tendo perdido a esperança d'encontrar asylo entre os homens, penetrou n'um bosque, esperando encontral-o no meio das féras, e vendo uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella, e deu comsigo á porta d'uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume. --Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite. --Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro d'uma hora; se aqui o encontrassem, com certeza o matavam. Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha signaes, que indicassem que estava para rebentar, d'onde se deprehendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir á velha que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem. Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça. Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro, offereceu-lhe um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo:--offendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á forca: «_quem as faz, paga-as_», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha cabeça, até que d'elle brote um ramo verde, que será o signal de que o Senhor me perdoou.» --Ai! exclamou a velha, rompendo n'um choro inconsolavel, se é tão difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras, e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento. O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca. Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n'o, arrancaram dos punhaes para o assassinar. A mãe, porém, contou-lhes a historia d'aquelle ancião, e pediu-lhes de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das suas enormes culpas. --Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada d'escarneo: --Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo verde d'esse madeiro secco. Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas. Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco tinha brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a leval-a comsigo para o ceu. FIM DO MADEIRO DA FORCA. A NECESSIDADE I Ainda hoje existe, junto á confluencia de dois rios, um formoso castanheiro, a cuja sombra eu me sento, sempre que por alli passo, haja ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu creança, costumavamos sentar-nos, minha mãe e eu, á sombra d'aquella mesma arvore, quando iamos a uma aldeiasinha, que ficava perto da nossa. A pequena distancia do castanheiro vêem-se ainda as ruinas d'um moínho, taes quaes eram nos tempos saudosos da minha infancia; e a lembrança de minha mãe, do castanheiro e das ruinas, faz-me recordar d'um conto, que ella me contou, em uma tarde de verão, ao pé da arvore frondosa, a cuja sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me. O ultimo moleiro, que habitou o moínho, era conhecido n'aquellas redondezas pelo appellido de Senéca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro o accento que puz sobre o segundo «_e_» d'este appellido, pois que o moleiro de quem estou fallando, e que minha mãe conheceu e tratou, era tão modesto, que ainda hoje no ceu se veria muito afflicto e contrariado, se o confundissem com o philosopho cordovez. Não tinha Senéca pretenções a philosopho, mas era-o até sem querer, e a isto devia elle indubitavelmente o seu appellido, em cuja applicação não podemos deixar de reconhecer uma philosophia muito profunda; se não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admiravel a do povo, que, com a mudança d'um simples accento, marca o abysmo, que separa o philosopho da natureza do philosopho do estudo! Tinha eu que fazer, se quizesse referir os muitos rasgos d'engenho e sã philosophia com que Senéca _illustrou_ a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto limitar-me-hei a referir um dos que mais captivaram minha pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infancia. II Senéca não tinha outra familia senão um filho de dez annos, nem outras cavallarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem ficava no moínho, curando das moagens, emquanto elle andava com o burro, levando e trazendo folles por aldeias e casaes, e o pobre Senéca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permittiam tomar uma creada, que substituisse sua mulher no moínho, nem um creado, que o substituisse a elle no transporte dos folles. --E como te has de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos, quando o viram viuvo, e sem outro auxilio mais que o do pequeno. --Não me dá isso cuidado, respondia Senéca, não faltará quem me ajude. --Isso é bom de dizer; mas quem te ha de ajudar? --Quem?... A Necessidade. Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Senéca, porém sem comprehender o que elle queria dizer na sua. Uma certa manhã apparelhou Senéca o _burrico_, poz-lhe em cima um sacco, que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe: --Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga á padaria de Somorrostro. O pequeno _desatou_ a chorar. --Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pae. --Que ha de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar no chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar. --Não te dê isso cuidado, disse Senéca; se tal acontecer, não faltará quem te ajude a levantar o burro. --E quem é que me ha de ajudar n'essas devezas tão solitarias, que não se encontra por ellas viva alma?! --Quem? A Necessidade. Se o burro caír, ou se deitar no chão e se não podér erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu auxilio. --Está bem, disse o pequeno, limpando as lagrimas com a manga da jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho de Somorrostro, que distava uma legua do moínho. --Ora, ora, ora! Sempre este Senéca tem coisas!... diziam os visinhos, ao verem o rapazito com o burro atraz de si. Com que então a Necessidade, com cujo auxilio contava Senéca, para levar e trazer os folles, era essa pobre creança?!... E o pequeno, quem é que o ha de ajudar? III Seguia o filho de Senéca com o seu burro á arreata ao longo dos carvalhaes, que assombram as margens do rio, que corre pelo valle profundo, que separa Somorrostro de Galdámes e Sopuerta, quando, ao chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão: --Ai! que bella cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu podesse soltar esta maldita carga, que me vae amolando as costellas! E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao comprido no meio do chão. --Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado;--porque convém saber que em Hespanha, e com especialidade na Biscaya, não só aos pequenos como tambem aos grandes, o primeiro auxilio que lhes occorre invocar nas maiores afflicções, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham no ceu. E pegando n'uma vergasta começou a zurzir o burro sem dôr nem piedade; porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o podia conseguir. Estava já o pequeno quasi a chorar, quando se lembrou do conselho, que o pae lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar: --Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a erguer este burro?! O pequeno bem olhava para todos os lados, a vêr se apparecia a Necessidade, mas não via ninguem. Já cansado de chamar e de esperar pela Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o sacco ao apparelho do burro, e alliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada e o animal ergueu-se d'um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo cabresto, levou-o para junto d'uma ribanceira, e rolando o sacco até lá, pôde, a muito custo, collocal-o em cima do animal; apertou-o bem com o arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e proseguiu no seu caminho, mais alegre que umas paschoas. Passada uma hora chegava o rapaz ao moínho, cantando e fazendo trotar o seu _ginete_. --Olá, pequeno, disse-lhe o pae, apenas o avistou, como te foi pela tua viagem? --Muito mal, meu pae. --Então o que te aconteceu, homem? --Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não foi capaz de se levantar. --E então o que fizeste? --Desprendi a carga, levei o burro para o pé d'uma ribanceira, fui rolando o sacco até lá... --Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, não é assim? --Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não appareceu... --Rapaz, disse Senéca, vê como tu te enganas;--quem te levantou e carregou o burro não foi senão a Necessidade. Tinha razão Senéca, e tambem eu a tenho para dizer aqui que a necessidade presta tanto auxilio e tamanhos beneficios ao homem, que não sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficencia. FIM DA NECESSIDADE. A PORTARIA DO CEU I O tio Paciencia era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava honradamente o pão de cada dia, mette que mette a sovella e puxa que puxa o fio, em um portal de Madrid, e devia o apellido por que era conhecido á resignação com que sempre tinha soffrido os muitos trabalhos, que o Senhor lhe havia dado. Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou dezeseis annos, mas tinha a innocencia de uma creança de oito, e como ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram eguaes, perguntou ao mestre se aquillo seria verdade. --Não acredites n'essas cousas, lhe respondeu o mestre. Só no ceu é que os homens são eguaes. Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se com a idêa de que o eram no ceu, e quando algum freguez da loja convidava o mestre para beber uma pinga na taberna proxima, dizia com os seus botões o pobre aprendiz: --Pena é que não sejamos todos eguaes na terra, como succede no ceu, porque se assim fosse, por certo que o freguez me não differençaria do mestre, e, como elle, iria eu tambem agora á taberna beber a minha pinga; mas, acabou-se... paciencia... no ceu seremos todos eguaes. Passados dois annos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais do que nunca teve elle motivo para lamentar que os homens não fossem eguaes na terra como no ceu, por isso que na sua companhia havia soldados distinctos, e cabos, sargentos e officiaes, que provavam ser verdade aquillo que o mestre lhe tinha dito ácerca da egualdade humana; porém consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no ceu se acabariam as distincções, e todos seriam eguaes. Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do officio de sapateiro, estabeleceu-se n'um portal, e alí passou o resto dos seus dias, conformando-se com as privações que soffria, na esperança de ir para o ceu e gosar então d'essa igualdade, que não encontrára na terra. No andar nobre da casa, cujo portal occupava, vivia um marquez, que por certo muito o houvera magoado com o espectaculo da sua opulencia, se não fôra um excellente homem, e a não ser tamanha a sua paciencia, e sobre tudo tão arreigada no seu coração a esperança de lhe poder dizer um dia no ceu: «meu amiguinho, aqui todos nós somos eguaes.» Não era porém só o marquez que lhe fazia sentir, que não fossem todos os homens eguaes na terra; até os seus amigos mais intimos queriam differençar-se d'elle. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macario, homens de tão boa conducta, que não podia o tio Paciencia viver sem a sua honrada companhia. O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos toiros, e passava por ser muito entendido em materia tauromachica. Quando, no reinado de Fernando VII, se creou uma escóla para ensinar esta sciencia, esteve o bom do homem quasi a ser nomeado _lente cathedratico_ da faculdade, e este precedente era o bastante para que elle se considerasse superior ao tio Paciencia, o qual, reconhecendo esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo e elle não eram eguaes na terra, o seriam por certo no ceu. O tio Macario era muito feio, mas casou com uma mulher lindissima, porém levadinha da breca. Ao cabo de vinte annos d'um viver amargurado, morreu-lhe o demonio da mulher, e o pobre homem ficou tão descançado que lhe parecia ter entrado no ceu; passados tempos, enamorou-se d'outra rapariga, que não ficava a dever nada á primeira, e casou segunda vez, apesar de todos os esforços que o seu amigo, o tio Paciencia, fez para lhe tirar isso da cabeça. Ora, como o tio Paciencia nunca tinha conseguido que as mulheres se agradassem d'elle, ao passo que do tio Macario se agradavam aos pares, julgava este ter certa superioridade sobre o primeiro, que, da sua parte, não deixava tambem de a reconhecer, e que devéras se teria affligido com isso, se não fôra a lembrança de que o seu bom amigo e elle seriam eguaes no ceu, já que na terra o não podiam ser. O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a uma corrida de toiros; tanto assim, que até costumava dizer: «Parece-me que trocava de bom grado a gloria eterna por uma boa tourada», ao que o tio Paciencia replicava sempre, agastado: «Homem, não digas heresias, que não vá Deus castigar-te.» Um dia em que os passaros caíam das arvores, assados pelo sol, havia em Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vêl-os, _á pata_, segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre, que o levou d'esta para melhor vida. No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macario, por causa d'uma tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, porquanto se a primeira mulher lh'as dava grandes, a segunda não lhe ficava atraz. A mulher, que nunca perdia a occasião de lhe communicar uma boa noticia, deu-se pressa em lhe participar, que o tio Mamerto tinha _esticado a canella_, e ouvindo isto, o pobre Macario, que já não estava para muitos sustos, _esticou_ tambem a sua. Como eu já disse, não podia o tio Paciencia viver sem os seus dois amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia, elles lhe não tivessem apparecido para palestrar um pouco e fumar um cigarro na sua companhia, quando á noitinha deixou o trabalho, foi procural-os, e soube então que ambos tinham morrido. Essa noticia causou-lhe um abalo enorme, e, n'aquella mesma noite, tomou atraz d'elles o caminho do outro mundo, com a grande consolação de que ia finalmente para onde todos os homens eram eguaes. Toda a visinhança sentiu muito a morte do tio Paciencia, pois todos depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caracter docil e serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco d'Hespanha, encarregavam d'isso o tio Paciencia, que era capaz de morrer arrebentado, para dar conta da incumbencia. Na manhã seguinte á morte dos tres amigos, o bruto do creado particular do marquez, quando entrou no quarto, teve a imprudencia de dizer a seu amo que o sapateiro do portal morrêra, ao saber que dois amigos seus tinham faltado quasi de repente. E como o marquez era um fidalgo muito apprehensivo, e corriam uns certos rumores de cholera em Madrid, assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do creado, que, poucas horas depois, era cadaver, com grande desgosto da pobreza do bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: «Estes homens, assim, nunca deviam morrer.» II O tio Paciencia emprehendeu a jornada do ceu, muito contente com a esperança de gosar da gloria eterna, de viver em um mundo onde todos os homens eram eguaes, e finalmente de encontrar ali os seus queridos amigos Mamerto e Macario. Com relação porém a este ultimo pensamento não deixava elle de ter suas duvidas, porque dizia lá para os seus botões: --E se lhe não querem abrir as portas do ceu?! Elles foram sempre homens de bem ás direitas; mas o demonio da paixão de Mamerto pelos toiros, e a tolice do Macario de casar segunda vez, tendo-se saído tão mal da primeira, fazem-me receiar que lhes dêem com a porta na cara. Para saír um tanto de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto passar por alí dois sugeitos, com estes e aquelles signaes; e como elle lhe respondesse affirmativamente, proseguiu o tio Paciencia no seu caminho, mais alegre que umas paschoas. O caminho do ceu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão porque n'elle se não encontrava senão gente pobre e habituada á fadiga. Impressionado o tio Paciencia por não ver nenhum _figurão_, entre tantos caminhantes, dizia, de si para si: --Não admira que os homens ricos não façam esta viagem, porque teriam de fazel-a no cavallinho de S. Francisco. Se podessem emprehendel-a de carruagem, os diabos me levem, se não viamos por aqui mais trens do que no Prado e na Fonte Castelhana. O tio Paciencia interrompeu as suas reflexões ao vêr approximar-se, vindo do lado do ceu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que o tio Mamerto. O tio Paciencia sentiu uma pancada no coração, annunciando-lhe alguma desgraça, quando reconheceu o seu amigo. --O que tens tu, homem? perguntou elle ao tio Mamerto. --Que demonio hei-de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não ha segundo, não me fechavam para sempre as portas do ceu! --Mas então como foi isso? explica-te com a bréca, que me tens o coração em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão pelos toiros. --Parece-me que concorreu. --Vamos, por quem és, conta-me o que se passou. --Cheguei á portaria do ceu, e encontrei alí uma porção de gente, que estava á espera de vez para entregar os passaportes para o outro mundo. O porteiro, que visava os papeis, com a sua grande calva _á mostra_, e o seu mólho de chaves na mão, levava a coisa com toda a pachorra, e moía-os com perguntas, primeiro que permittisse a entrada. Eu, que, como é bem natural, estava morto por me vêr lá dentro, disse com os meus botões:--Este velho, com os seus vagares, é capaz de me conservar aqui de fóra até á noite. Pois deixa estar, que se te pilho distraído, atiro commigo lá para dentro, ainda que depois me cortes uma orelha, como fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar n'este expediente, quando vejo o porteiro armar uma questão com um pobre diabo, a quem não deixava entrar, com o pretexto de ter sido apaixonado de toiros. Ahi temos nós os toiros! disse eu, ao vêr aquillo. O velhote é capaz de me fazer esperar uma eternidade, e por fim, se chega a saber que tambem fui affeiçoado ás toiradas, nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E que faço eu? Assim que o porteiro deu uma volta: zás! _raspo-me_ lá para dentro. Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vae senão quando o porteiro, dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece que lhe falta um. «--Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não é senão o madrileno. Ou elle não fosse de Madrid, o maroto, que se escoou lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar contas! «--Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim geitos de cortezão, quer que eu lh'o saque de lá para fóra por uma orelha? «--Deixemos-nos d'orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns musicos, a quem fallava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido recommendados por Santa Cecilia: Toquem lá a musica da saída do toiro! «Os musicos começam de tocar, e eu (sempre sou muito bruto!) ao ouvir aquelle toque, julgo que ha corrida de toiros na portaria, e sáio muito lépido a vêl-a; de repente, o porteiro fecha a porta e deixa-me ficar de fóra, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me: «--Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por toiros como essa, não póde Deus perdoal-a. «E aqui tens tu, querido Paciencia, como eu vou caminho do inferno por causa da minha maldita mania pelas toiradas!» O tio Paciencia prorompeu em amargo pranto ao vêr a infelicidade do seu velho amigo, e esteve quasi a prégar-lhe um sermão, mas não o fez por se lembrar de que era prégar no deserto; ambos continuaram, por ultimo, o seu caminho; o tio Paciencia o do ceu, que era costa acima, e o tio Mamerto o do inferno, que era costa abaixo. --Querem vêr que tambem me acontece alguma na portaria? O tal senhor porteiro tem um geniosinho endemoninhado! Isto dizia o tio Paciencia, seguindo sempre o seu caminho, quando avistou outro homem, que vinha do lado do ceu. Este não se carpia, nem se arrepellava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava profunda tristeza. --Esperem! disse o tio Paciencia. Os diabos me levem se aquelle não é o tio Macario! Pois que? Não é senão elle! Com effeito, o tio Macario era o da cabeça baixa. Os dois amigos abraçaram-se commovidos. --Tu por aqui, Paciencia! disse o tio Macario. Para onde vaes, homem? --Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o ceu. --Duvido muito que lá entres. --Então porque? --Porque é difficilimo entrar lá. --E em que consiste a difficuldade? --Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto. E para prova, basta o que se deu commigo. --Conta depressa. --Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, á porta; chamamos, e apparece-nos o porteiro, com a sua grande calva e o competente mólho de chaves na mão. «--Que é o que querem? pergunta elle. «--Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar? «--Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada. «--Casado, responde o tal sugeito. «--N'esse caso póde entrar, que basta essa penitencia para um homem ganhar o ceu; e isto por maiores que sejam os peccados, que haja commettido. «E o meu companheiro entrou lá para dentro. «--Caspite! disse eu com os meus botões; se aquelle ganhou o ceu por se ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por me haver casado duas. E larguei atraz do meu companheiro. «--Onde vae o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha. «--Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o ceu. «--É casado ou solteiro? «--Casado duas vezes á falta d'uma. «--Duas vezes?! «--Sim, senhor, duas vezes. «--Pois vá para as profundas do inferno, que tolos d'esse lóte não têm entrada no ceu. «E aqui vou eu, amigo Paciencia, caminho do inferno! São coisas que só a mim acontecem!...» --É bem feito, disse o tio Paciencia, entre compadecido e indignado da parvoice do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão de Deus quem duas vezes se casasse? O tio Paciencia já não ia muito satisfeito e tranquillo, ao aproximar-se das portas do ceu, porque as noticias que recebera do geniosinho do tal porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado. --Vamos, tio Paciencia, dizia elle, é preciso que não desmintas, n'esta occasião, o appellido que te puzeram, porque, se consegues catechisar o porteiro, cólas-te lá dentro, e depois é que já ninguem te dá volta. O velhote é exquisito de genio, caturra e curioso como todos os porteiros... Mas tambem, deve a gente lembrar-se de que o pobre do homem é tão velho, que já não póde com os calções, e devemos ser indulgentes para com os velhos como para com as creanças, porque os extremos tocam-se. Demais, a paciencia é uma virtude, que o proprio Jesus recommendava ao apostolo S. Pedro, como se vê da seguinte cantiga: Era S. Pedro na calva perseguido do mosquito, e o Mestre lhe dizia: --Tem paciencia, _Periquito_! Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciencia as portas do ceu, e estremeceu d'alegria, lembrando-se de que estava já a meio kilometro de distancia do mundo onde todos os homens eram eguaes. Chegou finalmente á portaria, e viu que não havia lá viva alma, o que devéras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado, como quando ia trocar notas ao banco d'Hespanha. Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pello na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe: --O que quer você d'aqui? --Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou o tio Paciencia, com a maior humildade, tirando o chapeu. Como passou? Passou bem? --Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor? --E a senhora e os meninos estão de saúde? --Homem, despache d'aí, diga o que quer. --O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha vêr se o senhor me deixaria entrar. --Sente-se ahi, n'esse banco, e espere que venha mais gente, que não se póde andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que é mais pesado que um marido jogador. --Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar. --Não ha de quê. O velhote fechou o postigo, e o tio Paciencia, a quem as ultimas palavras, que ouvíra, deram alma nova, sentou-se n'um banco, e começou o seguinte soliloquio, para passar o tempo: --O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra. Quem diabo podia suppôr que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar como Deus manda! Mas apesar de ter o genio um tanto assomado, bem se conhece que é um santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco da paciencia. Estava o tio Paciencia entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo uma tremenda aldabrada na porta, que por pouco a fazia em hastilhas, ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogancia chamava, era nem mais, nem menos, que o seu visinho marquez. --É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir aquelle barulho. Quem é o bruto que chama assim? --O excellentissimo senhor marquez de Pelusilla, grande d'Hespanha de primeira classe, cavalleiro de todas as ordens creadas e por crear, senador do reino, etc., etc. Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando pelo espinhaço com muitas reverencias, e exclamando: --Perdoe v. exc.^a se o fiz esperar algum tempo, mas... é que eu não suppunha, que tivessemos por cá tamanha honra. Queira v. exc.^a entrar, que, pela _balburdia_ que lá vae por dentro, é de crêr que já tenha corrido a noticia de que temos por estes bairros o cavalheiro mais illustre e mais rico de toda a Hespanha. Com effeito o ceu estava alvoroçado com a chegada do marquez, para o qual começava a improvisar-se uma recepção esplendida. Repicavam os sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direcções; já não havia uma varanda, nem uma janella d'onde não pendesse um cobertor de damasco, ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa. As imprensas vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquez; os garôtos _esganiçavam-se_ todos a dar vivas a sua excellencia; as virgens largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na cabeça a sua grinalda de flores, lançavam mão da lyra, e tocavam e cantavam como desesperadas; desde as charangas das ruas até a orchestra do theatro real, todas as musicas faziam ouvir as suas harmonias; em summa, era tudo festa, jubilo e regosijo. Até o proprio porteiro, quando voltou a fechar a porta, deu um pulo de contente, exclamando: --Bravissimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar! --Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o tio Paciencia, indignado com o que estava presenciando. Repetiam-se lá por dentro as manifestações d'alegria, e o estrondo dos festejos, e o tio Paciencia, que assistia áquelle enthusiasmo, continuava n'estes termos o seu soliloquio: --E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vae com a chegada do marquez! Com que, passo toda a minha vida a soffrer com santa paciencia os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que no ceu todos os homens são eguaes, e que, por conseguinte, me verei aqui livre de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas, chego ás portas do ceu e recebo logo a prova mais irritante de desegualdade, que póde imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque sou um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, á espera na portaria, e ao marquez, só porque é marquez e rico, e por vir carregado de cruzes e _calvarios_, abrem-se-lhe, de par em par, as portas, e recebem-n'o com repiques de sinos, com foguetes, musicas, versos, e colchas de seda nas janellas!... Isto realmente é para fazer ferver o sangue nas veias a um santo!... Porém, paciencia, snr. Paciencia!... Se consigo a final entrar lá para dentro, o que já me vae parecendo bem difficil, posso reputar-me feliz, porque alli deve passar-se divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho deu passagem ao marquez, e pela baforada, que sae, quando abrem ou fecham a porta ou o postigo. O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciencia das suas meditações; fez-se vêr a calva do porteiro, o qual vinha examinar se já havia gente reunida, á espera, na portaria. --O que faz você ahi? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciencia. --Senhor, respondeu humildemente o tio Paciencia, estava esperando... --Se as lebres esperassem tanto!... --Como o senhor não apparecia... --Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar, que de todo se me varreu da idêa... Eu vou já abrir, amigo. Ora!... mas porque não chamou por mim, homem de Deus?!... --O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro... --Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no ceu todos os homens são eguaes. --Devéras?! exclamou o tio Paciencia, dando um salto d'alegria. --Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com cathegorias! Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro. O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o marquez, mas o sufficiente para que podesse passar _um homem_. O tio Paciencia acercou-se da cancella, lançou um relancear d'olhos lá para dentro, e deteve-se ali, dolorosamente surprehendido. As virgens não largavam a costura, nem os rapazes saíam da escóla; não havia uma triste sineta que tocasse; os foguetes não rasgavam as nuvens; as musicas não deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha de chita adornava as janellas, nem tãopouco as imprensas vomitavam versos!... O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto do tio Paciencia, e acudiu a desvanecel-o, dizendo-lhe: --Que quer isso dizer, homem? Então fica para ahi pasmado, em vez de entrar cá para dentro?. --Não me disse o senhor, ainda ha pouco, que no ceu todos os homens eram eguaes? --Disse, sim senhor, e d'ahi?... --Então... como é que ao marquez... --Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada escriptura, que é mais facil entrar um camello pelo buraco d'uma agulha do que um rico no ceu?... --Não, senhor, não sabia isso. --Pois póde acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros, lavradores, mendigos, gente, em summa, farta de trabalhar e de padecer, chega aqui a todo o instante, e não temos que estranhar a sua chegada. Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; passam-se seculos sem vermos o _focinho_ a um figurão, como esse que veiu hoje, de modo que, quando algum nos apparece por cá, anda tudo n'uma poeira! Ora, venha, ande lá para dentro, que já é tempo de descançar. O tio Paciencia transpoz o limiar da porta, e não podendo com a alegria, que o dominava, caíu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para o Senhor, que saía ao seu encontro: --Senhor! Bemdito sejaes vós, que daes a bemaventurança eterna aos que padecem na terra! FIM DA PORTARIA DO CEU. O PRESTE JOÃO DAS INDIAS I Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo que deleitam, ensinem. Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar a cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual todos fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome. Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico successor directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como o monarcha se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino, e fallou-lhes do seguinte modo: --Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida tão repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não passa por ora d'um _comecilho_. Asseguro-vos que pouco me importa morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d'estado, com um principe, que não fosse muito do seu agrado. --Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do reino, faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas. Quando a princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com o principe, que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se atreva a querer oppôr-se á liberrima escolha de S. A., esteja V. M. certo de que tem que se haver comnosco. --Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas _patranhas_? replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade n'uma estrepitosa gargalhada. Nem que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que então estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato, e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr do seu gosto, mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros, os quaes, só por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa. --Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz essencialmente monarchico... --Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino, e que, se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a negar o direito de pessoas decentes! --De accôrdo, mas é que esses são uns vilões que nunca deveram ter parte na luta dos partidos. --Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes. --Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que póde marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens. --Pois bem, n'esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece), deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que se deve fallar d'essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado. --Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide principalmente em tres religiões, a saber: a religião christã, a mahometana e a judaica. Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o seu juizo, ácerca da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro. --Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça. --Ah! pois isso é coisa muito séria! --Vae-te d'ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis que no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque ha muito quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião; porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os meus botões: «deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor? Que religião póde haver n'um paiz tão desmoralisado como este, onde todos os dias se manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a religião christã, segundo a qual todos os homens são eguaes: haviam de marchar bem as coisas, desde o momento em que os escravos, que tiram os coches, soubessem que valem tanto como os senhores, que vão dentro d'elles, mui _repimpados_!» --Visto isso, entende V. M. que a melhor religião... é não ter religião nenhuma, não é verdade? --Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á terra. O que eu te digo é que não tenho querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu... Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica, e avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque n'aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella, sem ter tempo sequer para dizer «Jesus». II Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha d'uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade de sua excelsa filha, e então é que foram ellas! Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d'um unico estadista, e se este deveria ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia _una_, e por então terminou a contenda; porém os partidos politicos, para os quaes vêr os seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo uma e a mesma coisa, começaram novamente a tecer os pausinhos. Era o regente um soldado destemido e honrado d'uma vez; porém como homem d'estado não passava d'um _simplorio_, que entendia tanto de governo como eu entendo de lagares d'azeite; os seus inimigos, aproveitando-se da inepcia com que elle dirigia a politica, não descançaram em quanto lhe não deram um pontapé, e o expulsaram do palacio. Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão, porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz de se metter cem braças pela terra abaixo; d'ahi resultava que cada dia havia um pronunciamento. Por effeito de um d'esses pronunciamentos, caíu o regente, e organisou-se então uma regencia composta de tres magnates. Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus amigalhotes, um só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar os favores da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem agora esse um por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a tal regencia trina! Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e correu voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a _concurso_ e a daria ao principe, que mais lhe agradasse. Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes trajavam rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro diante da princeza, suppondo talvez, que o vil _metal_ teria para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam á _mostra_ faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos cêrros pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella boa pequena, que tão bello partido era. Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos moiros montados em cavallos, mais ligeiros que o vento, escaramuçando e jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza. Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios, e o seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração das donzellas. --Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou o presidente do conselho de ministros á rainha. --Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade, gosto de todos. --Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um. --Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes bem guapos!... mas entre os judeus e os moiros... não te digo nada!... --Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada; deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d'alguns mezes, e depois, então, poderá V. M. escolher, com perfeito conhecimento de causa; isto de escolha de marido é, para as raparigas, operação muito delicada... O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as suas _zumbaias_ á real moça, cuja mão ambicionavam. Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha afim de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria e augmento da christandade. Havia n'aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda a gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia. O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe: --Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a mim, coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é um paiz desgraçado, onde ninguem crê em Deus, nem em Santa Maria; onde todos são impios e atheus. Se a rainha se casa com algum pêrro judio, estamos bem aviados; vae tudo para o diabo. Se porém a rainha dér a mão de esposa a um christão, corto a cabeça, se todos os indios, dentro em poucos annos, não forem tão christãos como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa Santidade. --Se fôr coisa que eu possa conceder-te... --Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella gente no bom caminho. --Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres. --Pois, n'esse caso, vou immediatamente tirar passaporte. --Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma peça... particularmente os judeus... --Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de saber mais do que elles. --Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal. --Graças, Santissimo Padre! Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d'um luzidissimo séquito de sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de Roma, e munido de riquissimos paramentos e decorações d'egreja, inclusive um orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n'aquelle genero, tomou o caminho das Indias. Felizmente os inglezes não eram, n'aquella época, tão philantropicos, como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios, são mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que os hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta. III Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo que a fama trombeteira lhes tinha levado noticia do saber, da virtude, do zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste João. Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder ter mão em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho: --Olha que este christão não é _nenhuma asneira_!... Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se de S. M., e disse-lhe: --Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião de Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras são umas _religiõesitas de tres ao vintem_, que nem com cem varas chegariam ao ceu, d'onde procede, e onde apoia sua augusta fronte o christianismo. E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe digo é a pura verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença, judeus, mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos qual das tres religiões é a melhor, e, sobre tudo, qual é aquella, que mais favorece as mulheres, pois essa é a grande questão, nas circumstancias actuaes. --Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos, respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim, e veremos, então, quem é que leva a melhor. Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno, e as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus e mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença. --Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João quem tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro, e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem a palavra o Preste João.» Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial a augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de muitas razões, e toques de campainha. --Senhores, disse o Preste João, trata-se de orientar a S. M. acerca d'um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem a quem, de preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa a S. M., é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se mahometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para S. M., desde o momento em que esta augusta senhora, ou para melhor dizer, _senhorita_, souber qual é das tres religiões aquella, que mais protege e favorece os fracos em geral, e a mulher, em particular. «Comecemos pela religião judaica. «A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso o velho Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu Agár por mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta que Esaú casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo, revelado mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás a mulher do teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher», e Salomão, que era o prototypo da sabedoria hebraica, teve milhares de concubinas. Pergunto eu agora a S. M. se está disposta a soffrer que o seu futuro marido lhe dê uma, ou mais substitutas?! --Substitutas! a mim!... exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva! --Pois eu continúo.... Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva a sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão. O orador continúa: --Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me causam dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar o Messias, até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal castigados por haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão: «quem espera, desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era o tal Mafoma? --O propheta de Deus! exclamam os mahometanos, pondo a mão no peito, e dobrando-se reverentemente. --Qual propheta, nem qual cabaça!... Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os _moiraços dos chanfalhos_, rugindo de cólera, foi tudo obra d'um momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete da guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se os perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar: --Mafoma era um _sugeito_ que passava por sabio e grande, entre os seus compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos cégos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões: Como hei de eu arranjar a dominar estes _barbaças_, que não tratam senão de se divertir com as moças?... como?... esperem lá... já sei. Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes na cabeça, que ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito: arranjou o tal _alcorão_, segundo o qual, a mulher e o cavallo vem a ser, para o homem, uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de encontrar moças ás duzias, e obra desenganada. --E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos. --Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês encontrar?! Só se forem alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda do progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a religião estupida de Mafoma. --Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os mahometanos. --Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra. --Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos. Não se contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem centos d'ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome de serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e não encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto porque esses barbaros até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a natureza concede á creatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem á mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol, que não negam aos mais immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei impia, sobre o falso propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro e fanatico, que a segue! --Ah! perro christão!... gritam, a um tempo, todos os musulmanos, ao ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva, mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges, com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os metteu na ordem, a poder de muita coronhada d'armas. Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João o seu discurso: --Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e o que deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria, em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado do Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo e santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a a esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade de todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d'elle, igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos em cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica que favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer. --Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente. --A religião de Moysés, replicou um rabino, já completamente desanimado, não carece de entrar em discussões, para provar a sua superioridade sobre todas as outras. --Ficamos _inteirados!_ disse a rainha, e accrescentou: Teem a palavra os doutores musulmanos. --Nós _cá_, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos senão d'alfange em punho. --Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo mais assumptos a tratar, está levantada a sessão. IV Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem desagradaveis, lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára levianamente, determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa prova em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na sua presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que professavam. Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram a proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que deviam verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era das tres religiões aquella a que mais devia a mulher. Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes annunciaram que iam executar a _Zala_. Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu que a tal _Zala_ consistia tão sómente em cruzarem aquelles _ratões_ as mãos no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou mais fria que o proprio gêlo. --Muito engraçados são os taes _moirinhos_! disse S. M., com riso disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus, a vêr que tal se portavam. O grande rabino, com o seu barrete _enterrado_ até ás orelhas, como usam os seus correligionarios, sacou d'um livro, e immediatamente appareceram todos os judeus com os seus ripanços nas mãos. Ora, os taes livros seriam muito edificantes, mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes poderia pegar. O rabino principiou a entoar um psalmo, e todos os judeus o acompanharam; cantavam porém tão desentoadamente, e davam tão insoffriveis bérros, que a pobre da rainha não teve outro remedio senão tapar os ouvidos, e mandar a toda a pressa que cessasse tamanha algaravia. Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente ordenado. Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n'um sitio, que tinha excellentes condições acusticas, tossiram e _aguçaram o pigarro_ os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como em principio dissemos, eram os melhores de Roma; e, em seguida, subiu o Preste João ao altar, magnificamente revestido, bem como os dois acólitos, que o acompanhavam. A missa foi solemnissima, e tanto os celebrantes, como os cantores e o organista fizeram prodigios, que deixaram de bôcca aberta a rainha e a sua côrte. Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram por entre os dentes: --Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos! E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o Preste João, e disse-lhe: --Decididamente caso com um christão. --Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia. Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura de occupar o thalamo de tão formosa princeza. --Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada como uma romã. --E quem é esse feliz mortal? --Tu. --Eu!... V. M. não está em seu juiso! --Então! faz-te agora de manto de seda!... --Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres catholicos não podem casar?... --Que me dizes, homem? --Digo-lhe isto, real senhora! --Pois, amigo; partiste-me o coração! --Então, porque? --Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso com ninguem. --Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem parecidos do que eu. --Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu. --Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar. --Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d'esposa a algum d'esses moiros... que... diga-se a verdade, entre elles ha rapazes bem _tirados das canellas_, e o que me não agrada n'elles é apenas a religião, que professam... Quando o Preste João ouviu estas palavras, tremeu dos pés á cabeça, pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar com um mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões de habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que, se casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião de Christo. --Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o unico que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, pelo correio d'hoje, pedindo-lhe a competente licença. --Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos, de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos! O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, muito pelo miudo, o que se passava, e, na _volta do correio_, recebeu de Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias. Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e muito regosijo (bem entendido, depois da rainha se ter feito christã) e, passados annos, recebiam o baptismo todos esses milhões de milhões de indios, que os inglezes, nos nossos dias, se fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade. Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com mais graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem a conta. FIM. *** End of this LibraryBlog Digital Book "Contos escolhidos de D. Antonio de Trueba" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.