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Title: A fundação da monarchia portugueza - narração anti-iberica Author: Vasconcelos, António Augusto Teixeira de, 1816-1878 Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A fundação da monarchia portugueza - narração anti-iberica" *** visite http://pt-scriba.blogspot.com/ (This book was produced from scanned images of public domain material LIVROS PARA O POVO II A FUNDAÇÃO DA MONARCHIA PORTUGUEZA NARRAÇÃO ANTI-IBERICA POR *A. A. TEIXEIRA DE VASCONCELLOS* NATURAL DO PORTO * * * * * LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1860 AOS DIGNOS PROPRIETARIOS DO COMMERCIO DO PORTO Meus caros senhores: A bondade com que v. s.^as me offereceram no seu periodico uma tarefa effectiva, e bem remunerada, deu-me o descanso necessario para continuar os trabalhos litterarios, que eu começara mais rico de intenções patrioticas que de cabedaes para os levar a cabo. Á imprensa de toda a Europa e de uma parte da America devo as maiores finezas, e quanta protecção e auxilio ella póde dar. Á imprensa portugueza tambem estou em grandes obrigações, mas entre os que militam n'ella são v. s.^as dos que mais efficazmente se esmeraram em me ajudar e favorecer. Ao amor de mãe, com que toda a imprensa me tratou, correspondo eu com o affecto filial, que sempre lhe tive; e a v. s.^as offereço o primeiro livro que publico n'este anno. Aceitem-o como testemunho da minha estima e agradecimento. É a primeira dedicatoria que faço. Sou com a maior consideração De v. s.^as Amigo e venerador obrigado _A. A. Teixeira de Vasconcellos._ Lisboa, rua du Santo Antonio, á Estrella, n.^o 66, 21 de julho de 1860. *PALAVRAS NECESSARIAS* O livrinho que hoje sáe á luz, devia ter sido escripto e publicado ha um anno, e após elle muitos outros do mesmo genero. Não aconteceu porém assim, porque não era negocio dependente só da minha vontade. Desde que o foi, peguei na penna e não a tornei a pôr no tinteiro sem ter acabado o livro. Tenho para mim que as classes populares carecem de uma bibliotheca composta de livros uteis, de doutrina sã, de lição curiosa, e baratos, e ando a ver se cabe nas minhas forças ír-lh'a preparando com estes volumes. A tal empenho, assim como ao de revelar á Europa na lingua franceza o que ainda valemos como nação independente, espero poder consagrar o resto dos meus dias, apesar dos obstaculos que já me têem apparecido, e ás vezes da parte d'aquelles a quem incumbia afasta-los; sem embargo das difficuldades inseparaveis d'estas duas emprezas, e sem me affligir com as miserias--muito miseraveis--que tenho encontrado no meu caminho. Tudo isso vou arredando e vencendo alegremente. Alegremente digo eu, e digo bem. Quem combate pela verdade contra o erro, pela energia contra a preguiça, pelo bom senso contra a toleima, e pela patria contra os que a calumniam, tem occasiões de grande contentamento. Com isso me animo e conforto para continuar. Este é pois o segundo volume dos _Livros para o povo_. Trata da fundação da monarchia portugueza, como estava indicado no programma d'esta publicação, e é pelo que pertence aos factos um resumo do que a tal respeito escreveu o nosso illustre historiador o sr. Alexandre Herculano no tom. I da sua Historia geral de Portugal. Parece-nos que sáe á luz em occasião opportuna. Agora que nos andam a dizer que a nossa nacionalidade e independencia não podem durar muito, é justo que o povo saiba ou se recorde como ambas principiaram e nasceram de elementos, de certo, bem inferiores aos que temos hoje para as defender e sustentar. Não é uma questão de dynastias. Os portuguezes já eram livres antes de fabricarem a corôa que puzeram na cabeça de D. Affonso Henriques. É uma questão de liberdade e de brio nacional. Para que o povo a resolva com conhecimento de causa, é conveniente que saiba o que faz, e quanto vale o que falsos amigos lhe aconselham que destrua. Se ainda depois tiver em pouco a sua nacionalidade, é que já não merece conserva-la. A minha voz não é suspeita. Acato muito os reis porque são os representantes do principio monarchico o qual me parece garantir a liberdade mais duravelmente do que qualquer outro, mas tratar a questão da independencia nacional em relação a uma familia, diminuiria a grandeza do assumpto, por elevada e nobre que essa familia seja. Tambem não sou cortezão do povo. É peior que ser cortezão dos reis. É mister disfarçar mais, mentir sempre, e soffrer tudo. A popularidade vem com difficuldade e desvanece-se em um volver de olhos. Não vale o que custa. Nunca a procurei. N'estes livros, que são para o povo, escrevo o que me parece justo e util sem curar de lhe conquistar o affecto. Sei mesmo que terei occasiões de lhe desagradar. As minhas opiniões acerca da questão iberica são conhecidas em Portugal e fóra do reino. Não são de hoje. A occasião de as manifestar mais extensamente é que veiu agora sem que eu a procurasse. Pareceu-me que a podia e devia aproveitar em beneficio publico, e assim o fiz, como qualquer outro portuguez o teria feito, escrevendo ácerca da fundação da monarchia. A idéa da união de Portugal com Hespanha é antiga, mas sempre nasceu de despeito ou de ambição quer dos homens de lá, quer dos de cá. Ora vão fundar o futuro dos povos sobre duas más paixões e verão que resultados alcançam! Os hespanhoes quando estão poderosos, querem arredondar o territorio, e quando andam mal governados, querem quem os governe bem. Em ambos os casos tem sempre olhado para Portugal com cobiça. Triste remedio para elles e para nós! Eu tenho muita affeição aos hespanhoes. É uma grande nação. Quero-os para visinhos, para irmãos, para amigos, para alliados, para confrades no trabalho da civilisação, para tudo emfim, menos para darem cabo do que tanto nos custou a estabelecer e firmar. Eu bem sei que se diz que nós ficaremos sendo os senhores, que a côrte ha de vir para Lisboa, e que até as armas portuguezas terão no escudo iberico o melhor logar antes das de Leão, de Castella e de Granada. Muito obrigado pela honra que nos fazem. Nós somos pequenos para tanto. A respeito da união de Portugal a Hespanha cada um diz o que lhe occorre á idéa; qual nos designa para sermos victimas de uma organisação geral de nacionalidades; qual nos imagina desejosos de pertencer á nação visinha; este pretende preparar-nos para a annexação pelo receio da possibilidade della; aquelle para utilidade propria avisa-nos do perigo que talvez inventou. Tudo isto póde ser verdade e tambem póde ser mentira. Acreditemos que é verdade; sejamos cada vez mais zelosos da nossa nacionalidade; procedamos de modo que a Europa nos julgue dignos de continuar a ser independentes, e não deixemos arreigar a idéa de que a fusão é inevitavel. No fim de tudo, dos portuguezes a quem a idéa da união iberica agradou pela grandeza das consequencias que parecia resultarem d'ella, nenhum ha que na hora extrema seja capaz de renegar a patria. Nem dos hespanhoes sensatos haverá muitos que sonhem com a conquista e annexação do territorio portuguez contra nossa vontade. A questão é pois unicamente theorica. O resto da Europa pouco se importa das nossas cousas. Olha para o mappa, e resolve o negocio geographicamente. Em vez de dividir o territorio em dois estados iguaes, dando-nos a a metade occidental da peninsula, apaga a historia de sete seculos, e annexa-nos á Hespanha, já se sabe, para nosso bem. Contra este modo de sentencear devemos nós todos protestar por palavras e obras--_verbo et opere_.--Por palavras, indicando os dotes de nação forte e independente, que realmente possuimos; e por obras, dispondo-nos sem precipitação nem negligencia para sustentar o nosso bom direito. Possa este modesto livro contribuir para esse fim e ajudar a conservar vivas na lembrança do povo, as tradições da nossa gloria e das nossas virtudes antigas. Esse é o meu sincero desejo. A FUNDAÇÃO DA MONARCHIA PORTUGUEZA ..............e venceram: Que pelo rei e patria combatendo Nunca foram vencidos portugueses GARRETT. _Romanc_. I INTRODUCÇÃO A independencia de Portugal dura ha sete seculos. O braço leonez não pôde suffoca-la ao nascer, e os arabes tiveram que ceder os territorios do sul á energia dos cavalleiros e peões do conde D. Henrique, e ao esforço dos primeiros reis da dynastia affonsina. As fraquezas do formoso rei D. Fernando, os planos da rainha D. Leonor Telles, as ambições desleaes de alguns fidalgos e prelados, e as armas de D. João I de Castella não conseguiram sujeitar os portuguezes á dominação estrangeira. O povo não quiz ser castelhano. Bem lhe andaram a dizer que mais valia ser provincia de uma grande monarchia do que reino independente, mas pequeno e fraco. O povo quiz antes ficar pequeno em sua casa, do que ir ser grande na casa alheia. Com um mancebo por chefe combateu contra os castelhanos, conteve os naturaes que propendiam para o dominio estrangeiro, e depois de ter vencido as hostes inimigas, poz a corôa portugueza na cabeça do mestre de Aviz. Este principe era bastardo e clerigo. Que importava isso? A nação adoptou-o por seu filho legitimo; e elle proprio em Aljubarrota, escreveu com a espada nas costas dos castelhanos a sua carta de legitimação. O papa dispensou nos votos ecclesiasticos, e deu-lhe licença para casar. E ficou tão bom rei como se filho legitimo tivera nascido, e tão bem casado como se nunca houvera sido clerigo. Reis, como aquelle, houve poucos. Filhos, como elle teve, raras vezes nascem nos paços dos soberanos. Nobre raça foi aquella dynastia de Aviz! Abençoada posteridade de D. João I e de D. Filippa de Alencastro! Esta familia nasceu na batalha de Aljubarrota, e extinguiu-se na de Alcacerquivir. Começou a 14 de agosto de 1385, e acabou a 4 de agosto de 1578. Fundou-a um mancebo de vinte e sete annos! Sacrificou-a um moço de vinte e quatro! Nunca entrei na admiravel egreja de Santa Maria da Batalha, que me não sentisse melhorado pelo ar patriotico que se respira sob aquellas venerandas abobodas. Qual será o portuguez que passe com indifferença diante do tumulo de D. João I e de sua virtuosa mulher? N'aquella atmosphera de patriotismo, de coragem, e de dedicação pela causa popular, n'aquelle recinto onde a memoria recorda exemplos de todas as virtudes publicas e particulares, os fracos animam-se, confortam-se os tibios, e as almas generosas exaltam-se, extasiam-se e fortalecem-se mais ainda. Junto d'aquelles marmores mudamente eloquentes, vi eu um dos homens de mais nobre e elevado coração entre os que n'esta terra já houve, chorar sobre as nossas calamidades civis, e ouvi-lhe derramar em jorros de inspiração poetica a saudade d'esses tempos gloriosos, e o amor da patria a que foi fiel até á morte![1] Triste morte por vergonha nossa! Ali na capella chamada do Fundador jazem tambem os illustres filhos do mestre de Aviz. Quem não rogará a Deus pelo descanço eterno de taes principes? Até os estrangeiros curvam a cabeça diante do monumento que encerra os despojos mortaes do infante D. Henrique, porque as descobertas e viagens, que elle dirigiu e favoreceu, aproveitaram á humanidade inteira. E D. Fernando, o santo, o triste principe captivo que Portugal deixou morrer em poder dos mouros para salvar a honra da patria, como se não fôra irmão de El-Rei? E D. Pedro, o malfadado duque de Coimbra, a victima de Alfarrobeira, de cuja regencia abençoada anda a memoria entre nós na tradicção agradecida? Esclarecidos principes! Os portuguezes quizeram sobreviver á familia real. Não poderam. O povo ainda fez muito em favor de D. Antonio, prior do Crato, mas este principe não era para tomar sobre os seus hombros a empreza do mestre de Aviz. Só se parecia com elle em ser bastardo e clerigo. Os tempos eram outros; lamentavel o estado do reino; o povo descorçoado e pobre; a alta nobreza e o clero mais ricos de ambição que de virtudes; o rei de Castella muito poderoso, astuto e munificente; o cardeal rei caduco e tonto. Quem venceu então os portuguezes não foi o duque de Alva. A batalha chamada de Alcantara foi um insignificante feito de armas. Vencidos já elles estavam pelo concurso de mil circumstancias desgraçadas. Até o duque de Bragança D. João, que não quizéra em 1579 ser rei do Brazil, recebeu em 1581 nas cortes de Thomar o tosão de oiro contra o costume dos seus passados que nunca tinham aceitado ordem nacional ou estrangeira. Este era por sua mulher, a infanta D. Catharina, o legitimo herdeiro da corôa. O povo não podia resistir só. Todos julgaram que Portugal acabára. Enganaram-se. A enfermidade de Alcacerquivir teve uma convalescença de sessenta annos, mas o doente recobrou as forças, e quando menos o esperavam, voltou á sua invencivel teima de ser independente e livre. Eu não sei, se os duques, marquezes e condes antes queriam ser grandes da Hespanha do que pertencer á côrte portugueza. Não sei, se os capitães e generaes preferiam commandar em Italia ou em Flandres, se os homens de estado sacrificavam a idéa nacional á grandeza da monarchia, e se o alto clero dava mais valor á mitra de Toledo que á de Braga. Talvez que assim fosse pelo que mais tarde se viu, quando o novo rei teve de mandar cortar a cabeça a um duque, a um marquez e a um conde, e metter em uma masmorra um grande prelado. O que eu sei é que o povo não queria ser castelhano, e tanto fez que depois de vinte e oito annos de trabalhos conseguiu que o deixassem ser portuguez e livre. Dos fidalgos alguns ficaram em Castella, onde serviam. Padres tambem houve que se fizeram castelhanos. O povo esse, não. Em Braga havia um homem, cujos bens eram todos em Galliza. Pois deixou-os confiscar, mas veiu para Braga, e morreu portuguez. Bom povo! Já as pazes estavam feitas com Castella e ainda os castelhanos nos andavam a mostrar os dentes. E assim fizeram sempre, até que com o exercito francez vieram para repartirem esta terra em 1807, Mas o povo cá estava com os mesmos dotes do tempo passado, e com a mesma mania de independencia e de liberdade. Por mais que lhe fallassem do grande genio e do poder immenso de Napoleão I, por mais que lhe mostrassem os granadeiros de Marengo e de Austrelitz e por mais que lhe dissessem que os vinham proteger, o povo teimava. Bem amigos de Camões são os portuguezes. O general Junot promettia um Camões para a Beira. Pois nem com isso ganhou os animos dos beirões. Contentaram-se com o seu Braz Garcia de Mascarenhas[2], e não quizeram o Camões francez. Nunca este bom povo portuguez faltou aos seus principes em prol da patria, qualquer que fosse a conjunctura, e por grande que parecesse o poder dos adversarios. Lealdade, perseverança, coragem, dedicação e desinteresse eram qualidades antigas dos portuguezes. Nem virtudes se lhes chamava. O nosso povo era assim. Fazia o seu dever. Do arado á bésta, ao mosquete ou á escopeta havia a distancia do comprimento do braço. Louvado Deus! O braço ainda é o mesmo! E a distancia tambem! No empenho de reconstituir a independencia portugueza, vieram os inglezes ajudar-nos, e aproveitar as nossas boas disposições contra a França. Cá ficaram por fim a governar como se o reino fosse d'elles. O povo não os podia supportar. Em uma linda manhã do mez de agosto de 1820, ergueu-se de mau humor, e mandou os inglezes para Inglaterra. Fez bem. Lá é o logar d'elles. Pois ainda cá voltaram em 1826, mas foram-se embora sem fazerem cousa alguma, porque para vencer o Silveira bastaram as tropas portuguezas. O caso foi que d'ahi ficou sempre aos realistas a idéa de dizerem que as instituições liberaes tinham sido sustentadas pelas bayonetas estrangeiras. Deus perdoe a quem lhes poz nas mãos esta pedra para quebrarem a cabeça aos liberaes. Os inglezes vieram outra vez em 1847 de braço dado com os castelhanos. Ninguem sabe quem os chamou, ou quem o sabe, não o quer dizer. Melhor é que nunca o diga. Bem farto de malquerenças anda o mundo. Não precisa que lhe acrescentem o numero dos odios. E a todos esses attentados directos e indirectos resistiu constantemente o povo portuguez. Vigorosa nacionalidade é aquella que nem o poder de visinhos ambiciosos, nem os erros ou deslealdades dos naturaes poderam ainda destruir. Curiosa historia a da fundação d'este pequeno estado que desde o seculo XII até aos nossos dias tem sabido annullar, mais pela energia do caracter popular do que por outros meios, multiplicados elementos de destruição e de morte. Este estudo é talvez mais proveitoso hoje do que nunca o foi, porque depois de termos circumnavegado o globo, e arvorado a nossa bandeira em tantas partes do mundo, parece que caminhâmos agora para uma situação tão critica e arriscada, como aquella em que inscrevemos o nome portuguez no livro de oiro dos povos livres e independentes. Ao menos assim o dizem os politicos, e póde ser que o perigo venha á força de chamarem por elle. Tem-se visto. O conhecimento do modo pelo qual nos constituimos em nacionalidade distincta e forte, poderá convencer-nos de que só depende de nós mesmos a sustentação d'este heroico feito de nossos maiores. Já não é pouco. As nações que têem perdido a independencia, sofrem na historia a accusação de a não terem sabido defender ou de já não serem dignas de a possuir. Fóra d'esta triste alternativa as nações ou não morrem ou ressurgem. Vamos á narração. II O REINO DE LEÃO Bermudo III subiu ao throno de Leão depois da morte de seu pae Affonso V, fallecido de molestia quando intentava tomar Vizeu. Bermudo tinha uma irmã chamada D. Sancha, e os fidalgos de Castella desejavam que casasse com ella o conde Garcia, seu joven soberano. O conde já era, pelo casamento de uma de suas irmãs, cunhado do rei de Leão. A outra era mulher de D. Sancho, rei de Navarra. Os magnates castelhanos, dirigiram-se com o joven conde para Leão, porém Bermudo estava em Oviedo. Resolveram então ir ter com elle á côrte, mas antes de começarem a jornada, o moço Garcia foi assassinado por uma familia, inimiga declarada da sua. Chamava-se esta familia _Vigila_. Outros lhe chamam _Vela_. As consequencias d'este crime foram de grande importancia na peninsula hespanhola, principalmente para o ramo primogenito da dynastia leoneza. Sancho, rei de Navarra, tomou o encargo de vingar a morte de seu cunhado Garcia, e succedeu-lhe na soberania das terras de Castella. Apesar da innocencia de Bermudo no attentado dos Velas, elle foi quem pagou mais caro esse triste acontecimento. É sorte dos principes expiarem os erros de quem os cérca e aconselha ou de quem em nome d'elles preocede mal. Um pretexto de pouca valia fez dentro em breve romper a guerra entre Navarra e Leão, e Bermudo, pouco feliz nos feitos militares contra Sancho, teve de dar a Fernando, filho do rei de Navarra, sua irmã Sancha por mulher. Cedeu tambem então todo o territorio entre os rios Cea e Pizuerga, com o que ficaram mui dilatados os dominios de Sancho já soberano de Navarra e de Aragão, agora senhor de Castella, e de uma boa parte das terras de Leão. Esta cedencia foi feita em 1032. Tão vastos estados não passaram unidos ao primogenito de Sancho. O bravo rei de Navarra deu o Aragão a seu filho Ramiro; a Castella e as terras entre o Cea e o Pizuerga a Fernando. Garcia, tambem filho de Sancho, succedeu na corôa de Navarra. Talvez cuidou o velho rei que o parentesco de cunhados entre Fernando de Castella e Bermudo de Leão os faria amigos, e bons visinhos. Enganou-se. Os reis são mais parentes pelos laços da politica e dos interesses do que pelos do sangue. O desventuroso Bermudo não pôde resignar-se a possuir unicamente uma pequena porção do reino que lhe transmittira Affonso V seu pae. Em breve começou a guerra entre os dois cunhados, e se bastasse a boa vontade dos fidalgos, e a energia do rei para reconquistar as terras cedidas cinco annos antes, de certo que assim teria acontecido. Foi-lhes porém contraria a fortuna das armas. A batalha de Carrion tinha de ser o ultimo feito militar de Bermudo III. Ali perdeu a vida ás mãos de seu proprio cunhado Fernando de Castella, e a varonia da raça real de Leão extinguiu-se inteiramente. Os historiadores dizem que o tragico fim de Bermudo acontecêra no anno de 1037. Fernando I rei de Castella succedeu ao cunhado na corôa de Leão. A morte de Bermudo chamava ao throno a rainha de Castella D. Sancha, sua irmã, e mulher de Fernando; a prole de ambos continuava a successão da familia de que Bermudo fôra o ultimo representante varão. O novo soberano era dotado de grandes qualidades, e sabia temperar a ambição com a prudencia e espirito moderado, que mais seguram e firmam o poder dos reis. A ambição demasiada é quasi sempre funesta aos thronos e ás nações, porém o defeito contrario póde tambem produzir graves inconvenientes. Napoleão I foi victima da sua ambição insensata, e arruinou a França. Victor Manuel, se não fosse ambicioso poria em risco a propria corôa, a sorte do Piemonte, e o destino da Italia. Ha um regulador para a ambição dos reis, é o interesse das nações. Por este cumpre-lhes arriscar-se a tudo. O principe que só vive para si ou para a sua dinastia não é completamente soberano; é meio rei. D. Fernando de Castella soube, apesar dos tempos em que viveu, achar o meio termo entre esses dois extremos. Seu irmão Garcia morreu pouco depois em uma batalha contra o exercito de Fernando. A corôa de Navarra podia então reunir-se com as de Castella e de Leão. Era muito. Fernando soube resistir á tentação, e voltou as suas armas contra os arabes, tomando-lhes largos territorios até ao fim do anno de 1065 em que morreu na cidade de Leão. Deixou tres filhos e duas filhas. O primogenito que se chamava Sancho, subiu ao throno de Castella: Affonso foi proclamado rei de Leão e das Asturias, Garcia poz na cabeça a corôa de Galliza e da terra portucalense até ao rio Mondego. Urraca governou Samora; e Elvira foi soberana de Toro; ambas com o titulo de rainhas, como era de uso então. A paz entre Castella e Leão não foi duradoura. Os dois irmãos Affonso e Sancho tiveram dentro em pouco que pelejar um contra o outro, e o rei de Leão depois de uma victoria ficou prisioneiro de seu irmão por um estratagema d'aquelle grande capitão que a Hespanha ainda hoje celebra com o simples nome de Cid. Foi no anno de 1071. N'aquelles tempos um rei prisioneiro era presa de difficil guarda. Matavam-o as mais das vezes. Outras contentavam-se de o cegar. Rapar-lhe a cabeça e obriga-lo a entrar em uma clausura monastica era um acto de brandura e de moderação. Sancho não quiz abusar da victoria, e mandou seu irmão para o mosteiro de Sahagun; porém este, ou porque se enfastiava da clausura ou porque receiava que alguma circumstancia fortuita lhe viesse aggravar a pena, fugiu da prisão e foi pedir hospitalidade a Al-Mamum, emir de Toledo. Os arabes nem sempre andavam a pelejar com os christãos. Até ás vezes uns e outros eram amigos e companheiros de armas. Em muitas occasiões as tropas arabes batalharam nos exercitos christãos, e os cavalleiros da cruz combateram nas hostes infieis. Interesses mundanos! Transacções politicas! Era como hoje, como foi hontem, e como amanhã ha de tornar a ser! O chefe musulmano deu ao rei christão desthronado a hospitalidade proverbial dos arabes, de que a historia da peninsula hespanhola offerece repetidos exemplos. Affonso ficou em Toledo até o anno de 1072 em que Sancho rei de Castella foi morto com uma lançada por Bellido Arnulfes diante dos muros de Samora. Altos juizos de Deus! O prisioneiro de Sancho de Castella, o clausurado de Sahagun, o principe desthronado e fugitivo, e o hospede tranquillo dos adversarios mais encarniçados da sua raça, estava destinado para ser um dos mais poderosos soberanos do seu tempo. Tambem na nossa idade o prisioneiro de Strasburgo e de Bolonha, o encarcerado de Ham, o principe desherdado e fugitivo, e o hospede paciente dos inglezes, não parecia fadado para governar uma das maiores nações da terra, e para vencer a aguia russa na Crimêa, e a austriaca em Solferino; Napoleão III e Affonso VI podem comparar-se n'este ponto, apesar dos oito seculos que os separam. Affonso VI saíu de Toledo para voltar ao governo dos seus estados e para reunir sob o seu dominio a Castella, Leão, as Asturias, a Rioja e a Biscaia. A Galliza, descontente de Garcia, contra quem já se tinham revoltado os de Entre Douro e Minho, não se oppoz á prisão do seu soberano, e deixou-se encorporar na grande monarchia de Fernando Magno, reconstituida agora por seu filho Affonso. Garcia morreu na prisão. Dizem de D. Affonso VI que depois de sair de Toledo para tornar a reinar, o obrigára o Cid a jurar que não fôra cumplice de Bellido Arnulfes na morte de D. Sancho. Deus sabe se o bom do Cid teve tal escrupulo. No fim de tudo taes patranhas se contam do Cid que nem a gente sabe o que ha de acreditar! É certo porém que D. Garcia perdeu a corôa da Galliza mas foi bem tratado na prisão onde ficou até morrer apesar de ser irmão do rei. Rasões de estado! D'estas já por cá se viram! Se os principes christãos andavam sempre em guerra, que por muitas rasões se poderia chamar guerra civil, os arabes não viviam entre si em união mais intima. A queda dos Beni-Umeyas foi seguida de graves dissensões ao cabo das quaes a cidade de Toledo veiu em 1085 a caír nas mãos de Affonso VI, cêrca de quatro seculos depois d'aquelle dia em que Rodrigo, o ultimo rei dos wisigodos, saíra dos muros da capital para ir acabar os seus dias na batalha do Chrissus. Affonso VI soube sacrificar os designios ambiciosos de soberano visinho, e de guerreiro christão, aos deveres da amisade agradecida. Nas guerras entre o emir de Toledo e o de Sevilha, Al-Mamum teve sempre por alliado a Affonso VI seu antigo hospede, e só depois da morte do generoso arabe, e da expulsão de seu filho, é que o estandarte christão tremulou na velha capital da monarchia wisigothica. A posse de Toledo, e as victorias successivas de Affonso VI, atemorisaram Ibn-Abed, emir de Sevilha, e inspiraram-lhe a idéa de chamar de Africa os almoravides commandados por Abu-Yacub. Foram elles que no dia 23 de outubro de 1086 destroçaram na batalha de Zalaka junto a Badajoz os esquadrões do rei de Leão e de Castella. Dezesete annos depois, o emir el-moslemym Iussuf era já senhor de todo o territorio desde Saragoça até á margem esquerda do Tejo, e Affonso VI, apesar do titulo pomposo de imperador, que a vasta área dos seus estados lhe grangeára, apenas tinha alcançado algumas victorias na parte occidental da peninsula hespanhola. Santarem, Lisboa e Cintra tinham sido tomadas por elle em 1093, e o governo d'esse novo territorio confiado a Sueiro Mendes irmão do _lidador_. O imperador era então um dos mais poderosos principes da christandade. Dos outros soberanos da Europa pouco tinha que receiar. Na peninsula porém não podia ter descanso, emquanto os arabes conservassem n'ella um imperio, grande pela extensão de terreno, vigoroso pelo valor dos musulmanos, forte pela facilidade de receber soccorros enviados de Africa, tranquillo pela moderação e brandura do governo, e não menos importante pela cultura das sciencias, das letras e das artes, e pelo desenvolvimento da agricultura, da industria e do commercio. O imperio arabe na peninsula hespanhola era já um estado florescente, quando os christãos saíram das montanhas á voz de Pelagio, e começaram a organisar mesmo nas cidades e na côrte uma existencia mais de acampamento militar que de sociedade constituida. A missão de Affonso VI era pois a guerra incessante contra os arabes. Estas circumstancias attrahiam á côrte castelhana um grande numero de fidalgos estrangeiros. Instigava-os a tendencia militar e aventureira da epocha; impellia-os a idéa religiosa, e o desejo do triumpho completo da cruz contra o crescente; e a estes nobres pensamentos juntava-se a ambição não menos elevada de ganhar pela força do proprio braço terras e dominios conquistados aos infieis. Estes fidalgos eram pela maior parte francezes; não só pela proximidade das duas nações, mas porque de França viera a rainha D. Constança, esposa do imperador Affonso VI, e filha da illustre casa de Borgonha. Dois parentes da rainha avultavam na côrte mais do que os outros cavalleiros. Eram Raymundo, filho do conde Guilherme de Borgonha, e Henrique, filho de Henrique de Borgonha e de sua mulher Sybilla, prima co-irmã de Raymundo. Henrique por seu avô Roberto, o velho, duque de Borgonha, era descendente de Roberto, o pio, rei de França, e de Hugo Capeto, e por consequencia sobrinho de Henrique I, rei de França. Estes dois fidalgos borgonheses deviam privar com a rainha com quem tinham parentesco proximo, e com o soberano a cujo serviço andavam. Com effeito Affonso VI deu a Raymundo sua filha Urraca, com o governo de Galliza e da terra portucalense, e Henrique casou com D. Tareja, filha natural do rei e de Ximena Nunes ou Muniones, obtendo com esta alliança o governo do districto de Braga sob o commando de Raymundo. O casamento foi celebrado antes do anno de 1095. Não chegaram ao nosso tempo documentos ácerca das condições com que se concluiu o casamento de Henrique de Borgonha com D. Tareja, porém sabe-se que em 1097 já o territorio que se estende desde o rio Minho até ao Tejo era governado por D. Henrique, sem opposição alguma do conde Raymundo de Galliza. O marido de D. Tareja possuia tambem todos os bens pertencentes á corôa de Leão, que estavam situados dentro dos limites designados. Devia ser concessão de Affonso VI. O territorio portucalense coube a Henrique de Borgonha como dote de sua mulher? Foi-lhe dado como governo ou como estado expressamente separado da corôa de Leão em favor dos noivos? Houve desde logo conloio entre Henrique e Raymundo para assegurar a plena soberania de ambos, sob a apparencia de sujeição ao sogro commum? A extensão das terras conquistadas aos arabes contribuiu para firmar mais a separação, e para augmentar a importancia do conde D. Henrique? Estas questões pedem larga escriptura, e fazem pouco ao assumpto d'este livro. O facto é que no fim do XI seculo a terra portucalense obedecia a D. Henrique, sem que todavia este principe deixasse de reconhecer a supremacia do rei de Leão. O conde borgonhez oriundo de uma das mais poderosas casas da Europa, sobrinho do rei de França, genro do imperador, e primo do conde de Galliza, com quem o ligavam tambem os laços da affinidade, reunia em si todos os requisitos necessarios para obter, dentro em breve, preponderancia consideravel em todos os negocios da peninsula hespanhola. Conservar e desenvolver essa influencia, dependia só dos dotes pessoaes do principe. A auctoridade moral do conde D. Henrique na côrte de D. Affonso VI de certo se baseava principalmente n'estas circumstancias, pois que a qualidade illegitima de D. Tareja não impoz ao principe borgonhez nenhuma inferioridade que lhe diminuisse o poder ou que restringisse as suas pertenções ambiciosas. III A TERRA PORTUCALENSE A terra chamada portucalense era conhecida com este nome desde o meado do seculo XI. Tinha por limites ao norte o rio Minho, e ao sul o Mondego, comquanto as armas christãs já tivessem por mais do que uma vez chegado ao Tejo, e mesmo tomado Lisboa, como fica dito. Lamego, Vizeu e Ceia eram as terras mais consideraveis da fronteira oriental. Ao sueste acabava o territorio na serra da Estrella, e ao oeste no oceano. O districto de Coimbra ou condado colimbriense, começava no Douro, e acabava no Mondego. Um mosarabe da Beira, chamado Sesnando, deixára o serviço do emir de Sevilha Ibn-Abed, e fôra propôr ao rei Fernando Magno a conquista d'este territorio. A tentativa foi coroada de exito feliz, e Sesnando recebeu do soberano leonez o governo d'esta nova provincia, acrescentada com a terra portucalense ao sul do Douro. Esta região desde o Douro até ao Mondego, não era a Lusitania de Strabão, a qual chegava até ao mar no norte e no occidente, e ao Tejo pelo lado do sul; nem tão pouco se póde confundir com a Lusitania do imperador Augusto, divisão geographica limitada ao norte pelo Douro, e ao sul pelo Guadiana. Era uma região conquistada, reunida e disposta pelos incansaveis pelejadores christãos. Estavamos tão acostumados a dar a Portugal o nome de Lusitania, e a tomarmos a denominação latina de lusitanos, que chegamos a julgar-nos decaídos do esplendor genealogico da nossa raça, quando o sr. Alexandre Herculano escreveu que só no seculo XV tinhamos começado a usurpar essas qualificações. Parece que foi em 1481, diante da santidade de Sixto IV, que o bispo de Evora D. Garcia de Menezes deu pela primeira vez o nome de lusitanos aos habitantes de Portugal. Até então foramos sempre portucalenses desde tempos remotissimos. A origem d'este nome está hoje bem averiguada. Na margem esquerda do Douro, onde hoje se chama Gaia, havia uma povoação com o nome de _Cale_. Pequena ou grande, era a unica povoação da entrada do rio, e por isso o porto se chamou _Portus Cale_, porto de Cale. Querem alguns que a terra tivesse sido povoada por gaulezes que deram ao porto o nome de _Portus Gallorum_, ou _Portus Galliæ_. Eu não creio que esse intrincado ponto mereça a pena de ser resolvido. A verdade é que o nome de _Cale_ figura no itinerario de Antonino, que a designação _Portucale_ data do seculo V, e que a aldeia de Gaia ainda em 912 se chamava assim. O territorio visinho e dependente de _Portucale_ foi-lhe a pouco e pouco tomando o nome, deixando ao burgo primitivo a denominação de Cale, que tambem insensivelmente se converteu na de Gaia. Os christãos aproveitaram a inexpugnavel posição fronteira, e fortificaram-a. Desde então houve na margem direita o _Portucale Castrum novum_, e na outra o _Portucale Castrum antiquum_, ou por outra fortaleza velha, e fortaleza nova, ambas com o nome de _Portucale_. De nome de cidadella passou a designação de districto, d'ahi a condado, e mais tarde a reino, segundo a conquista christã se alargou mais, e á medida que a administração e governo deram a esse tracto de territorio alguma homogeneidade. Deixemos pois o nome latino de lusitanos, mesmo com o risco de desagradarmos a tres ou quatro idolatras das tradicções romanas, e fiquemos portucalenses, já que d'ahi nos transformámos em portuguezes. É melhor guardar o nome que é feitura nossa, do que andarmos a torcer a geographia e a historia para amontoar fabula sobre fabula. IV O CONDE BORGONHEZ O conde D. Henrique não se entreteve por muito tempo nos cuidados do governo. Em 1103 estava na Palestina, d'onde o encontrâmos de volta dois annos depois, e na côrte do sogro em 1106. Não se sabe quaes foram os motivos que resolveram D. Henrique a deixar o seu governo, e a separar-se da esposa com quem havia pouco se casára, para se associar ao empenho dos cruzados, em resgatar o tumulo do Redemptor. As causas d'esta determinação deviam ser poderosas: nós não as conhecemos. Dos hespanhoes só alguns cavalleiros isolados foram ás primeiras cruzadas. Que melhor e mais santa guerra podia achar na Palestina, quem tinha á porta de casa os inimigos da cruz? O proprio pontifice Paschoal II veiu a prohibir aos cavalleiros hespanhoes, que se alistassem entre os cruzados, e em Italia obrigavam-os a embarcar de novo para Hespanha. O conde D. Henrique obedeceu talvez á idéa geral de sacrificar todos os interesses ás crenças e deveres religiosos, e porventura a instigações e convite dos seus parentes de França, de cujo auxilio elle porventura contava tirar proveito mais tarde. Suppõem-se que o conde partira na armada genoveza que em 1104 prestou auxilio ao conde de Flandres Balduino na conquista de Ptolemaida. De volta do oriente o conde borgonhez entregou-se inteiramente á governação dos seus estados, empenhando-se devéras em fortalecer o proprio poder, acrescentando o territorio nas guerras contra os arabes, a preparando-se para acabar com qualquer especie de supremacia estrangeira. Estes intuitos deviam mais do que uma vez occasionar guerra no norte com os leoneses, e no sul com os musulmanos. Para aquella a base de operações era Guimarães, côrte e residencia do D. Henrique e de D. Tareja. Para a guerra do sul a base de operações era Coimbra. De Coimbra deviam partir as expedições destinadas a libertar de novo os territorios do sul, e ali sabia-se, melhor do que em qualquer outra parte, a occasião em que mais desprevenidos andavam os infieis, e em que se podia contar com um triumpho menos disputado. Em Guimarães agitavam-se questões de natureza mais complicada; questões diplomaticas de successão ao throno de Affonso VI, de allianças estrangeiras, de independencia do territorio separado da monarchia de Leão, e de tudo quanto podia favorecer os planos ambiciosos de Henrique de Borgonha. Os dois primos Raymundo e Henrique fizeram entre si, em 1106 ou no começo de 1107, um tratado secreto ácerca da repartição dos estados do sogro, então ainda vivo; porém, Deus que muitas vezes zomba dos melhores calculos dos homens, permittiu que Raymundo morresse em 1107, sem herdar de Affonso VI, que todavia lhe não sobreviveu muito tempo. O convenio entre os dois condes tinha por fim evitar que a coroa de Affonso VI passasse para o infante D. Sancho filho de Zaida Ibn-Abed, que alguns tratavam como esposa do imperador. A filha do emir de Sevilha não podia ser mulher de Affonso VI, então casado com a rainha D. Constança, mas o amor de pae para com o infante, seu unico filho varão, inspirava receios aos maridos das duas princezas Urraca e Tareja. Este temor não agitava sómente os animos de Raymundo e de Henrique: tambem lá de longe o celebre Hugo, abbade de Cluni, e parente dos condes, meditava n'este caso, e entrava no trama, se o não promovera elle proprio. É certo que o tratado foi jurado pelos dois primos e concunhados nas mãos de Dalmacio Veget, agente de Hugo. O imperador morreu em Toledo no mez de junho de 1109, pouco depois de ter perdido seu filho e herdeiro D. Sancho, que elle mandára com o conde Gomes de Cabra a soccorrer o castello de Uclés. O tratado entre os dois primos não teve execução. Urraca, viuva de Raymundo, succedeu, segundo o testamento de Affonso VI, na corôa de Leão e de Castella, e deixando em Galliza seu filho D. Affonso entregue á tutela dos condes de Trava, casou em segundas nupcias com Affonso I rei de Aragão. Este segundo casamento foi celebrado mais a exigencias dos barões castelhanos e leonezes, do que por vontade de D. Urraca. Queriam um homem para commanda-los, e que fosse pelo seu esforço e valentia digno de tal encargo. Affonso de Aragão era já então nomeado como batalhador. Por essa qualidade o escolheram. Mas a pobre rainha não pôde accommodar-se ao caracter aspero e violento do aragonez, D'ahi provieram muitas occasiões de guerra e de desordem e d'ahi tambem começou a surgir a possibilidade de Portugal vir a ser um estado independente, e separado para sempre da corôa leoneza. Entretanto o conde Henrique não estava ocioso. Apenas soube da morte do sogro com quem já andava mal avindo, partiu para França a reunir ali os meios necessarios para se apoderar dos estados de Affonso VI, ou para colher o maior proveito possivel das alterações e dificuldades, que necessariamente deviam seguir a morte do imperador. Esta viagem não teve bom exito. D. Henrique foi preso em França por motivos que a historia se esqueceu de registrar, fugiu da prisão, e recolheu a Portugal pelo Aragão cujo rei já separado de D. Urraca se alliou facilmente com elle. Desde o seu regresso de França, que foi em 1111, o conde Henrique mudou de politica, provavelmente porque a falta do auxilio esperado lhe impunha a obrigação de ser mais circumspecto, e de certo tambem porque a morte de Raymundo, e o casamento de D. Urraca tinham dado aos negocios da peninsula uma direcção muito differente. A rainha D. Urraca pouco depois de casada, separou-se do segundo marido Affonso[NT] rei de Aragão, e passou o resto de seus dias em reconciliações e separações successivas, sempre precedidas, acompanhadas e seguidas dos disturbios e agitações que resultam das discordias internas das familias soberanas, a cujo exemplo se compõem os costumes dos povos. Esta situação das monarchias leoneza, castelhana e aragoneza, que o casamento de D. Urraca e de D. Affonso tinha unido, e que o caracter dos dois conjuges separava a cada instante, aggravava-se com desintelligencias repetidas entre Castella e Galliza. Os fidalgos gallegos, sob a direcção do conde de Trava, tutor do joven filho de Raymundo, complicaram frequentes vezes as difficuldades da corôa de Leão e Castella, querendo realisar a separação decretada no testamento do imperador em proveito do principe Affonso Raymundes. D. Henrique soube valer-se habilmente das desavenças alheias, alliando-se ora com D. Urraca, ora com D. Affonso de Aragão, e mesmo com os magnates de Galliza. Desinteressado dessas questões, o seu principal fim era prolonga-las, collocando-se do lado de quem menos probabilidades tinha de resistir ao poder do outro. Assim, o vencedor de hoje podia facilmente ser o vencido de ámanhã, e nenhum dos belligerantes ficaria nunca tão poderoso, que se lembrasse de attentar contra a soberania de Henrique. Entretanto brotavam e florescíam na terra portucalense os elementos de independencia, que mais tarde deviam produzir a formação da nacionalidade portugueza. A cada guerra civil a alliança de Henrique era solicitada com empenho e ninguem ousava regatear-lhe as concessões, ou pôr cobro ás demasias do seu poder. A sua supremacia era incontestavel, reconheciam agora uns, logo outros, e a final todos. N'aquellas epochas de preponderancia feudal e militar, a politica sagaz de D. Henrique não dependia só da sua ambição e do seu espirito elevado. Era indispensavel que os cavalleiros portuguezes seguissem de boa vontade as modificações da politica do conde borgonhez e de D. Tareja, e que sacrificassem a um principio geral as affeições e os interesses que podessem liga-los a D. Urraca, a D. Affonso, ou aos fidalgos gallegos. Essa necessidade reconhecida por todos dominava o animo dos portuguezes. Unia-os o desejo da propria independencia, sentimento especial da nossa raça, que o decurso de tantos seculos ainda não pôde destruir, nem a unidade da civilisação moderna conseguiu modificar. Os portuguezes do começo do seculo XII seguiram o conde Henrique em todas as suas mudanças politicas e diplomaticas com tal confiança e tenacidade, que ambas se podem enumerar entre as causas mais energicas da independencia de Portugal. Sem esta união intima entre o chefe do estado e os seus magnates, a gente portugueza ter-se-ía dividido nos differentes bandos em que frequentemente se separava a familia hespanhola, e d'essa divisão resultaria o enfraquecimento do poder material e da força moral de D. Henrique, bem como a impossibilidade de resistir aos esforços do monarcha de Leão, quando este principe tentasse encorporar de novo nos seus dominios a terra portugueza. O desejo de possuir a maior porção possivel dos estados de Affonso VI prevalecia sobre qualquer outro pensamento no animo do conde de Portugal. Por isso talvez não acudiu a Santarem e ás outras terras do sul, que os arabes tomaram de novo, e apenas pôde empregar-se em socegar os habitantes de Coimbra, que irritados pelo procedimento de Munio Barroso e de Ebraldo chegaram a recusar a D. Henrique a entrada na cidade. O conde andava então inteiramente entregue á idéa de se aproveitar das dissensões entre sua cunhada D. Urraca e Affonso[NT] I de Aragão, servindo-se para esse fim de allianças contraídas e desfeitas segundo a malicia dos seus intuitos lhe aconselhava. O conde D. Henrique morreu em Astorga no 1.^o de maio de 1114, transformado já de simples governador do districto de Braga em soberano quasi independente. Não era rei, posto que D. Tareja usasse ás vezes o titulo de rainha, não era principe, nem infante, mas desde a morte do sogro, era senhor na rigorosa accepção da palavra quanto ao facto, embora o direito publico da epocha o sujeitasse ao rei de Leão. Os portuguezes devem venerar a memoria do principe borgonhez, porque desde a sua volta do Oriente não teve em vista senão a independencia d'esta terra e soube empregar em tão nobre empenho grande sagacidade, invencivel firmeza, e consummada prudencia. Quando os restos mortaes do conde D. Henrique entraram na sé de Braga a repousar no tumulo onde inda jazem, as bases da independencia portugueza estavam lançadas, e por mão de mestre. Este foi o verdadeiro fundador da nossa nacionalidade. Os portuguezes chamados a intervir nas guerras civis de Hespanha ora a favor de D. Affonso, ora a favor de D. Urraca, ora a favor do principe de Galliza foram-se separando insensivelmente de cada uma d'essas parcialidades, e adquirindo as qualidades de povo independente. A monarchia appareceu mais tarde. Era a consequencia necessaria da existencia da nação, e dos costumes e tradições d'aquelle tempo. V GOVERNO DE D. TAREJA D. Affonso Henriques, filho primogenito do conde, era de menor idade á morte do pae. D. Tareja teve pois de tomar o governo, e com elle o difficil encargo de continuar a obra politica do marido, de quem ella fôra talvez o conselheiro mais intimo. A nobre viuva de D. Henrique mostrou no cumprimento de tão delicada missão muita habilidade, e grande pertinacia, qualidades contra as quaes não prevaleceram nem o poder da monarchia de Leão, nem as correrias incessantes dos arabes do sul de Portugal. Ella soube dirigir astutamente as dissenções dos sempre mal avindos soberanos de Leão, de Castella e de Aragão, para acrescentar o territorio portuguez por meio de cessões effectivas ou de promessas solemnemente estipuladas, bem que ás vezes inuteis pelas reconciliações amiudadas e repentinas de D. Urraca com D. Affonso de Aragão. A auctoridade moral do governo não diminuiu nas mãos delicadas de D. Tareja. Cercada dos barões portuguezes, identificada com o espirito que os animava, e decidida a seguir o systema do conde Henrique, a mãe de D. Affonso mostrou rara firmeza de caracter, e astuciosa prudencia. No intento de desenvolver as forças do seu pequeno estado, e de o separar inteiramente da monarchia leoneza, foi invariavel; porém nas manifestações exteriores d'este nobre pensamento, regulou-se cautelosamente pelas circumstancias accidentaes da peninsula. D. Urrava rainha de Leão, irmã legitima de D. Tareja, vendo esta princeza viuva e com um filho de menor idade, devia frequentes vezes lembrar-se de reunir á sua corôa o territorio portuguez, melhorado pelas conquistas e esforços do conde D. Henrique. Esta era pois a mais forte inimiga dos portuguezes, e contra ella se voltaram quasi incessantemente as armas de D. Tareja, sob pretextos differentes. A viuva de D. Henrique teria talvez em vista crear, por meio de multiplicados combates, sentimentos de invencivel hostilidade contra os leonezes no animo dos seus vassallos. Preparava-os assim para a grande luta da completa independencia de Portugal. E com tal habilidade se soube D. Tareja dirigir nas relações politicas com os seus adversarios externos, que obteve a confirmação do tratado antigo ácerca de Samora, que uma das reconciliações conjugaes de D. Urraca invalidára. O districto d'esta cidade passou a ser portuguez. O negocio mais difficultoso nos conselhos politicos de D. Tareja foi sempre, por certo a escolha do melhor arbitrio para sustentar a posse dos dominios do conde D. Henrique, sem ficar inteiramente na sujeição da corôa leoneza, e sem se revoltar abertamente contra ella. Este parece ter sido o alvo constante da politica da mãe de Affonso Henriques. Á morte do conde D. Henrique, D. Tareja partiu para Astorga, onde estava a côrte, e crê-se que fôra por suggestão sua que Affonso I de Aragão repellíra de si, e expulsára da cidade D. Urraca, sua mulher, por suspeitas de envenenamento, negando-lhe até a prova do combate ou juizo de Deus com que ella queria para logo justificar-se. A opinião dos barões de Leão e Castella foi favoravel á esposa ultrajada, a quem se tolhêra a defeza. Affonso I viu-se obrigado a regressar ao Aragão, mas D. Tareja não succumbiu a este desastre. Sua irmã D. Urraca entendeu talvez, que não podia lutar com uma princeza cujos cavalleiros e homens de armas só a ella obedeciam em negocios de politica externa, e que alem d'esta vantagem tinha relações intimas com os principaes senhores da Galliza e com o astuto Gelmires, poderoso bispo de Compostela. Apesar das intrigas de Astorga as duas irmãs fizeram pazes entre si. N'este convenio a superioridade estava do lado de D. Urraca, que era de direito soberana da terra governada per D. Tareja, e que esquecia injurias e offensas gravissimas. A viuva de D. Henrique teve de reconhecer a supremacia da irmã, e nas côrtes reunidas em 1115 em Oviedo assignou como infanta em seu nome e de seus filhos. A ausencia dos barões portuguezes; a falta de menção de que Tareja os representava n'aquella assembléa, e por elles fazia preito á irmã, indicam qual era já então o espirito dos portuguezes, e quão graves as circumstancias a que D. Tareja se via forçada a obedecer. Esta submissão pessoal não durou muito. Na primeira discordia entre D. Urraca e os fidalgos de Galliza, D. Tareja declarou-se em favor d'estes e aggrediu vivamente a irmã. N'essa luta ganharam os portuguezes a posse de uma grande parte dos districtos de Tuy e Orense, que conservaram bastante tempo. Os combates incessantes no norte foram interrompidos em 1116 pelos arabes do sul, que tomaram Miranda para lá do Mondego, passaram este rio, appossaram-se do castello de Santa Eulalia junto a Montemór, e no verão do anno seguinte vieram durante vinte dias atacar Coimbra, onde estava D. Tareja. A infanta dos portuguezes, como estão lhe chamavam, soube defender a cidade de modo que os arabes levantaram o cerco. Á necessidade de resistir ás invasões dos infieis correspondia sempre menor arrogancia na manifestação dos sentimentos de independencia para com a rainha de Leão. A supremacia de D. Urraca era tão pouco contestada que o arcebispo de Braga D. Paio, irmão do Lidador e dos Mendes da Maia, que tanto fizeram depois pela liberdade d'esta terra, pediu em 1121 á soberana de Leão e de Castella a confirmação do couto da cidade archiepiscopal. As duas irmãs eram inimigas. A paz entre ellas podia ser dictada por motivos politicos; do coração não vinha. Os designios de D. Tareja e dos seus subditos eram manifestos. A necessidade de sujeitar Portugal não esquecia a D. Urraca. D'ahi resultou a guerra de 1121 na qual a rainha de Leão atravessou o Minho, chegou até ás margens do Douro, obrigou D. Tareja a encerrar-se no castello de Lanhoso, e ali a foi cercar. D'esta penosa situação pôde saír sem grande esforço, graças ás intrigas que se urdiam em segredo na propria comitiva de D. Urraca. Tratava-se de proclamar o principe de Galliza, filho d'esta rainha e de seu primeiro marido o conde Raymundo, e n'este empenho andavam os senhores de Galliza, o bispo de Compostella, e todos quantos se diziam cansados das discordias continuas entre D. Urraca e seu segundo marido Affonso de Aragão, bem como os que detestavam o conde Pedro de Lara, poderoso amante da soberana de Leão. D. Tareja fôra sempre ligada com esta parcialidade, como D. Henrique o fôra com Raymundo no intento da reciproca independencia, e se ficasse prisioneira da irmã, perder-se-ía um alliado importante para a execução dos planos contra D. Urraca. Soberanos e potentados estrangeiros, parentes da casa de Borgonha entravam na conspiração contra a esposa de Affonso de Aragão. Fernando Peres de Trava, antigo official do prelado de Compostella, parente e amigo dos primeiros fidalgos de Galliza, era amante de D. Tareja, e governava por mercê sua o Porto e Coimbra. As relações d'este fidalgo na côrte de D. Urraca só podiam ser favoraveis á mulher que elle amava. D'este conjuncto de circumstancias, e talvez de outras que ignorâmos, nasceu a paz, na qual D. Tareja conservou as terras de Galliza, cuja posse havia dado causa á guerra, e obteve varias terras e aldeias nos districtos de Samora, Toro, Salamanca, Avila, Valhadolid e Toledo, como tenencia da irmã. A quem a viuva de D. Henrique deveu estas vantagens, apesar das victorias de D. Urraca, póde conjecturar-se pelos successos posteriores. A Galliza dentro em pouco revoltou-se contra a rainha de Leão, e D. Tareja sem tomar activamente parte nas contendas que se seguiram até março de 1126 em que morreu a irmã, protegeu os revoltosos por todos os modos ao seu alcance, conseguindo conservar os territorios que possuia na Galliza, segundo o tratado de paz de 1121. Algumas palavras do sr. Alexandre Herculano explicarão, melhor de que nós o poderiamos fazer, as causas d'esta inconstancia politica da infanta dos portuguezes. «Cada um dos personagens que figurava n'aquelle drama, diz o nosso illustre historiador, quer principes, quer senhores só pensava em tirar das desgraças publicas a maior vantagem possivel. As allianças faziam-se, e desfaziam-se rapidamente; porque nenhuma sinceridade havia no procedimento dos individuos. Os interesses particulares dos nobres e prelados cruzavam-se com as questões politicas, o modificavam-nas diversamente.» As acções de D. Tareja devem ser apreciadas n'este sentido. Ella obedecia á tradicção conjugal da independencia, ao proprio sentimento de liberdade, e ás tendencias e espirito dos barões e homens de armas de Portugal. As qualidades incontestaveis de D. Tareja fizeram-a geralmente respeitada, tanto nas terras que governava, como em toda a peninsula hespanhola e mesmo nos paizes afastados. O papa mais do que uma vez a tratára como rainha, qualificação que só era legal ou de costume dar-se ás filhas legitimas dos reis, e ella propria tomou este titulo nos documentos publicos, promiscuamente com o de filha de D. Affonso, ou de infanta dos portuguezes. Portugal começou tambem cerca de 1117 a ser designado como reino, manifestação nominal de independencia, anterior á elevação da dynastia real. Antes que o principe fosse independente no exercicio da soberania, já a opinião geral attribuia ao territorio essa qualidade, Portugal era reino sem ter ainda escolhido rei. O povo livre não podia tardar em proclamar um chefe que sustentando as ambições patrioticas dos portuguezes, acabasse com a supremacia politica do rei de Leão. D. Urraca morreu em 1126, e seu filho Affonso VII fez tregoas com D. Tareja. Duraram pouco, porque ella recusou sugeitar-se ás obrigações da tenencia dos territorios que recebera em 1121. Na nova campanha Portugal não pôde esquivar-se a reconhecer a suzerania de Leão, e perdeu as terras de que pertendia o dominio absoluto. D. Affonso Henriques foi durante esta guerra cercado pelo filho de D. Urraca em Guimarães, onde estava talvez já quasi revoltado contra a mãe, e para que o cerco fosse levantado, teve de prometter a seu primo Affonso VII, que lhe faria preito e homenagem das terras de Portugal. Egas Moniz, poderoso fidalgo de Entre Douro e Minho, e aio do principe portuguez, ficou por fiador da palavra de Affonso Henriques; e o rei de Leão aceitando a fiança do mais honrado cavalleiro d'aquelles tempos, levantou o cerco, e retirou-se de Guimarães. A palavra do joven principe não foi cumprida. Fosse que o animo de D. Affonso Henriques repugnasse a começar a vida politica pelo reconhecimento da supremacia estrangeira, ou fosse que os proceres do reino obrigassem o infante a faltar ás promessas de Guimarães, e a sacrificar a propria honra á independencia de Portugal, é certo que o filho de D. Tareja não cumpriu os ajustes do aio. Então Egas Moniz reuniu a sua familia, e partiu com ella para a côrte de D. Affonso VII, não a fazer-lhe o preito que Affonso Henriques recusára, mas de corda ao pescoço e descalço, a prostrar-se aos pés do rei de Leão, e a offerecer-lhe o proprio sangue, o da mulher, e o dos filhos, para lavar a nodoa que a falta de cumprimento da palavra dada lançava na reputação de um cavalleiro. Tão primorosa lealdade maravilhou a côrte, e captivou o animo de Affonso VII. O fidalgo portuguez voltou em liberdade para o reino, e o soberano de Leão declarou illibada a honra de Egas Moniz. Depois que os ossos do aio de D. Affonso Henriques, foram repousar no mosteiro de Paço de Sousa, pozeram-lhe no tumulo, em esculturas grosseiras, a representação d'esta gloriosa façanha, que ali se vê ainda hoje servindo de eloquentissimo epitaphio ás cinzas do velho fidalgo de Riba-Douro. Estes feitos heroicos só se manifestam nas epochas em que as nações estão dispostas para commettimentos generosos e sublimes, porque do conjuncto das virtudes particulares é que se fórma o caracter geral da nação. Nos tempos de abatimento e de decadencia nacional, não se encontram taes exemplos, e se apparecem excepcionalmente, provocam a escarneo, em vez de conseguirem louvor e admiração. Nação, cujos proceres tinham sentimentos tão elevados, era digna de ser livre, e por isso o foi. A nobre acção de D. Egas Moniz foi praticada durante o anno de 1127, tempo em que D. Tareja tinha já perdido no animo dos portuguezes a influencia que soubera conquistar. A que fôra sempre varonil na governação do estado, não pôde evitar as tentações da fraqueza humana, e o seu coração de mulher deixou-se captivar do conde Fernando Peres de Trava, da nobre familia de Galliza, á qual fôra confiada por D. Urraca a tutella de Affonso VII. O conde, amante e valido, intervinha nos negocios publicos. Nenhum acto indicára que essa intervenção fosse desleal, nem a politica de D. Tareja se desviára do caminho traçado pelo conde D. Henrique; mas os portuguezes eram já ciosos da sua independencia, e avessos a toda a influencia estrangeira. O filho de D. Tareja, que se creára com fidalgos portuguezes, e que devia ter a peito a honra e bom nome da sua casa, odiava o conde de Trava, e preparava-se para lhe destruir o poder, embora para isso fosse necessario arrancar á propria mãe o governo do reino. Com effeito a rainha D. Tareja teve de abandonar o poder em 1128, em virtude de acontecimentos em que seu filho tomou a mais energica iniciativa. A viuva do conde D. Henrique contribuiu vigorosamente para facilitar a independencia de Portugal. Teve qualidades politicas de grande quilate, e os effeitos d'essas virtudes chegaram até á nossa idade. Das fraquezas da sua vida particular só ella foi victima; fraquezas que eram vulgares n'aquella epocha, e que infelizmente nem raras foram nos seculos posteriores. A historia não levou em conta a D. Tareja nem a fragilidade da natureza humana, nem os costumes do seculo em que ella viveu, nem a expiação infligida por seu proprio filho, privando-a do governo e prendendo-a, nem o abandono em que morreu, malquista d'aquelles, a cujas vantagens consagrára a vida, e em favor de quem soubera tirar partido até dos proprios erros. D. Tareja morreu no 1.^o de novembro de 1130 e repousa em Braga, junto ás cinzas de seu marido. A historia foi ingrata. Não o sejamos nós. Abençoemos a memoria da soberana que ajudou a crear-nos para sermos independentes e livres, e perdoemos-lhe esses desvios. As idades futuras terão de nos perdoar outros bem mais criminosos, e que nem sempre poderão desculpar-se com tão gloriosas compensações. VI D. AFFONSO HENRIQUES Affonso Henriques tinha quatorze annos, quando no domingo de Pentecostes do anno de 1125 se armou cavalleiro na cathedral de Samora, terra que pertencia então ao reino de Portugal por cessão da rainha D. Urraca. O modo pelo qual esta cerimonia fôra disposta, indicava de sobejo as intenções do principe, mesmo no caso em que este acto se não pudesse julgar senão imitação exacta do que, em dia igual do anno anterior, praticára em Compostella seu primo Affonso VII. As armas com que devia armar-se o joven filho do conde Henrique tinham sido collocadas sobre o altar de S. Salvador na cathedral de Samora. Antes que começasse a festa do Espirito Santo, o moço Affonso Henriques entrou na igreja, caminhou para o altar, tomou as armas, e cingiu-as elle proprio para não conceder a pessoa alguma a supremacia de lhe ter conferido o grau de cavalleiro. Dos velhos guerreiros de seu pae havia muitos que mereciam esta honra. Seguido d'elles entrou no templo convidando-os a assistir áquelle acto solemne, e a serem testemunhas da firmeza do principe, destinado a commanda-los; porém mostrou-lhes desde logo a energica vontade de não depender senão de si proprio. Esta solemnidade foi um preparativo para acabar com a influencia do conde de Trava. Com effeito tres annos depois de armado cavalleiro, Affonso Henriques declarou guerra a sua mãe, ajudado do arcebispo D. Paio e de seus irmãos, de Mendes Ermigio, de Garcia Soares e de Sancho Nunes que depois foi seu cunhado, e primeiro senhor de Barboza. D. Tareja quiz resistir. Alguns portuguezes seguiram o seu partido; porém a maior parte das suas forças eram gallegos da parcialidade e dependencia do conde de Trava, fracos defensores contra o principio da nacionalidade e da independencia de que o jovem principe se declarára campeão. Os partidarios de D. Tareja foram derrotados no campo de S. Mamede perto de Guimarães, e a viuva do conde Henrique caíu prisioneira em poder do filho. A nacionalidade portugueza era já então tão vigorosamente distincta que os gallegos do exercito de D. Tareja eram chamados nas chronicas contemporaneas _indignos estrangeiros_, apesar de que a identidade de linguagem, de costumes, de religião e de raça entre os habitantes de Galliza e os de Entre Douro e Minho, devesse contribuir para que portuguezes e gallegos se reputassem mutuamente irmãos. Esta notavel antipathia, inexplicavel á primeira vista, era um dos mais importantes resultados da politica do conde Henrique e de D. Tareja. Mas a independencia de Portugal não estava segura; nem proclamada sequer. O rei de Leão era moço, poderoso e valente. Affonso Henriques nem titulo tinha para designar o poder que de facto exercia. Conde não queria elle chamar-se. Infante era um titulo commum aos filhos de estirpe real, e posto que Portugal se intitulasse reino, o nome de rei não o podia o principe tomar impunemente em face de um contendor como Affonso VII. Dizem os historiadores que D. Affonso Henriques era agil nos exercicios do corpo, dextro no manejo das armas, bom cavalleiro, bem apessoado de corpo e de gentil presença, intelligente, discreto, e dotado de singular eloquencia. Eram grandes estas qualidades, mas os deveres que o principe tinha a cumprir, careciam do concurso efficaz de todas ellas. A independencia de Portugal, preparada de tão longa mão pela tenacidade e astucia dos paes de Affonso Henriques, havia de trazer comsigo guerras amiudadas com o rei de Leão, e os arabes não eram menos temiveis no sul do reino. Poucos mancebos tiveram aos dezesete annos tão pesados encargos sobre os hombros! Affonso Henriques não esperou que o atacassem. Impetuoso, como o pedia a sua idade, e a indole de uma nação tão moça como elle, entrou por Galliza em 1130, e começou a guerra contra os leonezes, talvez para recuperar os territorios que ali possuíra sua mãe. N'esta entrada ninguem lhe resistiu, porém voltando a Galliza foi derrotado por Fernando Peres e Rodrigo Vela. Affonso Henriques não desanimou com o desastre, e pela terceira vez levou a guerra ao paiz visinho: Affonso VII veiu em pessoa com um exercito numeroso obstar ás correrias do primo, e tomou Celmes que os portuguezes tinham fortificado. Ali acabou esta campanha no anno de 1134. Affonso VII estava então no maior auge do poder. A fortuna era-lhe propicia em toda a Hespanha. Affonso de Aragão seu padrasto já não existia; o conde de Barcelona, e o rei de Navarra reconheciam a suzerania de Leão; a Castella era sua igualmente; o emir de Roda submettêra-se espontaneamente. Alem dos Pyreneos os condes de Tolosa e outros senhores prezavam-se de serem vassallos de D. Affonso. Só uma pequena provincia cercada do lado do meio dia pelos arabes, recusava aceitar de bom grado a preponderancia leoneza, e um moço de dezesete annos, chefe d'essa provincia, ousava entrar de mão armada pelas terras de tão vasta e poderosa monarchia! Este nobre exemplo de coragem mostra bem quanto póde a energia de alma, e a força de vontade, ainda em combate contra forças muito superiores. Nenhum povo teve mais numerosas occasiões de confirmar esta verdade, e nenhum outro as aproveitou com mais efficacia do que o nosso. Para defender os proprios lares até as creanças são valentes, e tão forte é cada qual em sua casa para o arrancarem d'ella depois de morto, dizia o marquez de Pombal a um embaixador de Hespanha, são necessarios quatro homens[3]. Affonso VII reuniu côrtes em Leão no anno de 1135 e n'ellas foi proclamado imperador. O moço Affonso Henriques, em vez de ir prestar homenagem ao poder do primo tratou de alliar-se com D. Garcia rei de Navarra, e accordou-se com alguns fidalgos de Castella, ambiciosos ou descontentes de D. Affonso VII. Firmadas estas allianças, principiou de novo a guerra com assignaladas victorias. Os arabes entretanto tomaram Leiria; porém Affonso Henriques correu a reconquistar aquella cidade, e em pouco tempo voltou a continuar a guerra em Galliza onde o imperador viera em pessoa, como quem sabia que homem era o principe portuguez, e quanto valiam os cavalleiros e homens de armas, que o seguiam. Os dois principes avistaram-se em Tuy no dia 4 de julho de 1137, e ali fizeram pazes, talvez porque as correrias dos arabes no sul traziam inquieto o animo de D. Affonso Henriques, cuja actividade se voltou então para a guerra contra os infieis, indo ataca-los no territorio alem do Tejo. N'esta paz de Tuy o filho de D. Tareja reconheceu a supremacia feudal do rei de Leão, acto cujos effeitos na ordem politica do reino portuguez não foram importantes. Cento e cincoenta portuguezes assignaram com D. Affonso Henriques este preito e homenagem ao imperador. A guerra contra os arabes foi favoravel ao filho do conde D. Henrique, e da victoria alcançada em Ourique no dia 25 de julho de 1139 chegou a noticia ao nosso tempo, acrescentada com exagerações e milagres. A imaginação patriotica e religiosa de alguns historiadores quiz dar assim maior relevo a esse feito de armas. Singular erro de gente sizuda e zelosa pelo bem da sua patria! De que serve alterar a historia, e inventar apparições e milagres, quando se trata de referir acções para as quaes é sufficiente o esforço humano? Justo é que todos creiam na protecção divina, sem a qual não ha verdadeira prosperidade sobre a terra; mas não cuidemos por isso que a força do nosso braço é inutil, que a nossa energia moral é nulla, e que Deus ha de intervir directa e pessoalmente nos negocios mundanos a regular os interesses dos conquistadores, das dynastias e dos povos. Confiemos no poder de Deus e no triumpho da justiça e da verdade; porém não abusemos do nome da divindade, embora seja para excitar sentimentos virtuosos e dignos. As pias fraudes não fortificam o sentimento religioso, antes o abalam e destroem. Da guerra contra os infieis voltou em breve Affonso Henriques á antiga pendencia com os leonezes, commandados outra vez em pessoa pelo imperador. O chefe de um dos corpos do exercito de Affonso VII, depois de ver derrotados os que o seguiam, caíu prisioneiro dos portuguezes, e a final o grosso dos dois exercitos avistou-se perto de Val de Vez. Ali na planicie que separava os portuguezes e os leonezes havia todos os dias combates parciaes, e em um d'esses Affonso Furtado, irmão natural do imperador, e outros fidalgos foram vencidos e prisioneiros. Emquanto estes successos se passavam, o arcebispo de Braga negociava as pazes entre os dois primos co-irmãos, dos quaes nenhum ousava arriscar a fortuna da sua causa em uma batalha decisiva. D'esta vez ou porque a infelicidade de Affonso Furtado commovesse o imperador ou por outras causas politicas de maior alcance, foi Affonso VII quem solicitou a intervenção do arcebispo portuguez, que a final conseguiu trazer a termos de concordia os dois netos de Affonso VI. Affonso Henriques dizia-se então infante, mas desde 1113 intitulava-se tambem principe dos portuguezes. Esta denominação de principe do povo em vez de principe do territorio, já usada por D. Tareja e renovada nos nossos tempos em França para designar aquelles que por eleição popular e não por direito hereditario incontestavel sobem ao throno, foi talvez n'aquella epocha um meio de satisfazer os desejos de independencia dos portuguezes, sem contestar absolutamente o direito soberano da corôa de Leão. Na terra para a qual a energia nacional ganhára o titulo de reino, o nome de principe dos portuguezes era de indubitavel legitimidade. Depois da paz de Val de Vez o filho de D. Tareja aceitou o titulo de rei, e começou a usar d'esta designação, e quando em 1143 os dois primos renovaram e confirmaram em Samora os ajustes de Val de Vez, Affonso VII reconheceu a realeza de Affonso I de Portugal. Este reconhecimento não era absoluto. Affonso VII, como imperador de toda a Hespanha, não lhe importava que o chefe dos portuguezes se chamasse rei, comtanto que se confessasse seu vassallo. É de crer que este ponto delicado fosse discutido nas conferencias de Samora, e que os mediadores andassem buscando um meio de conciliar os caracteres altivos e duros dos dois soberanos. O certo é que Affonso I de Portugal recebeu do primo a investidura da cidade de Astorga, e pôde assim dizer-se vassallo do rei de Leão sem comprometter a independencia e a liberdade do novo reino, nem ferir a susceptibilidade dos portuguezes. O rei de Portugal ficou livre quanto o podia ficar perante o imperador das Hespanhas; o senhor de Astorga, esse reconheceu por soberano quem lhe dera aquella possessão. Affonso I conhecia o primo, e sabia que taes pazes, fundadas em arbitrios mais subtis que positivos, não podiam ser duradouras. A sua clara intelligencia, e o conhecimento dos negocios da sua epocha, ensinavam-lhe que só havia um poder que os reis e os povos respeitavam, e que nenhuma instituição era estavel sem a protecção e benção d'esse poder supremo. Tratou pois de assegurar por meio da crença religiosa a realeza de que fôra recentemente investido. Fez n'esse mesmo anno homenagem do reino ao pontifice nas mãos do cardeal Guido, e prometteu pagar á santa sé de Roma quatro onças de oiro cada anno, dar cem _aureos_ por uma só vez, e reconhecer-se vassallo de S. Pedro e do papa; sujeição nominal bem mais commoda do que o preito ao imperador. Pela sua parte o pontifice devia obrigar-se a ajudar o rei portuguez em tudo quanto podesse interessar o reino, e a não reconhecer em Portugal nenhuma supremacia secular ou ecclesiastica que não fosse a de Roma. A dadiva de mil _morabitinos_ completava as vantagens offerecidas por D. Affonso I á Santa Sé. Esta proposta era dirigida ao papa Innocencio II, porém foi Lucio II quem respondeu ao rei de Portugal nos principios de maio de 1144. A resposta não era facil, porque o summo pontifice não podia resolver este negocio, sem renunciar á suzerania de um reino ou á amizade de um dos soberanos mais poderosos do mundo. Lucio II soube conciliar estas difficuldades aceitando todas as propostas de D. Affonso, mas não lhe dando senão o titulo de duque de Portugal. A independencia do solo portuguez ficava assim reconhecida pelo pontifice; e o reino acceito como feudo da Santa Sé, embora o papa evitasse dar-lhe esse nome. A confirmação do titulo de rei na pessoa de Affonso I não podia tardar muito, até porque o proprio Affonso VII reconhecêra em Samora a legitimidade d'essa designação. As consequencias d'estes actos começaram a manifestar-se logo. Todos os principes e fidalgos da peninsula hespanhola acompanharam Affonso VI á conquista de Almeria. D. Affonso I de Portugal não foi, e conjectura-se que essa ausencia do principe portuguez em um feito de armas contra os infieis, não tivera outra causa que não fosse o desejo de oppor ás requisições do primo a nova situação independente, em que o feudo á Santa Sé collocára os portuguezes e o seu rei. Affonso I aceitou de bom grado o arbitrio de Roma, contente de conseguir o cumprimento da missão legada por seus paes, embora tivesse de caminhar como elles passo a passo, e por veredas tortuosas, que todavia levavam ao ponto a que desejava chegar. Finalmente no anno de 1179 o pontifice Alexandre III confirmou clara e abertamente o titulo de rei na pessoa do valente filho do conde D. Henrique, mediante o pagamento annual de dois marcos de oiro em substituição das quatro onças do mesmo metal, anteriormente promettidas a Innocencio II. Assim se cumpriu, sessenta annos depois da morte de conde D. Henrique, a laboriosa empreza de fundar a independencia de Portugal e de dar a esta terra uma dynastia propria, e representada por um principe nascido entre o Minho e o Douro, creado entre os portuguezes, e experimentado nas lides da guerra, já combatendo pela liberdade dos seus contra os leonezes, já varrendo do solo nacional as phalanges dos arabes. A investidura religiosa da dignidade de rei, foi a ultima recompensa dos trabalhos e perseverança de D. Affonso em executar a idéa do conde D. Henrique e de D. Tareja, e em satisfazer as gloriosas ambições dos portuguezes. Seis annos depois falleceu em Coimbra, aos 6 de dezembro de 1185, tendo governado quarenta e cinco annos como rei, e doze como principe e infante. Deixou numerosa posteridade da rainha Mafalda sua mulher, filha de Amadeu II, conde de Mauriana e de Saboia, chefe d'aquella grande familia de heroes, cuja gloria a Europa inteira respeita ainda hoje em Victor Manuel II, valente rei da Sardenha, e libertador da Italia. A narração dos feitos de D. Affonso Henriques não pertence a este livro senão na parte que respeita á fundação da monarchia. A conquista de Lisboa, de Santarem, de Leiria e de outras terras importantes, a fundação dos mosteiros de Alcobaça, de Tarouca, de Santa Cruz de Coimbra e de S. Vicente de Fóra, a edificação da cathedral de Lisboa, e o desastre de Badajoz em que Affonso Henriques ficou prisioneiro do rei leonez, terão o seu devido logar em outro livro d'esta collecção, assim como todos os acontecimentos importantes do seu reinado. Depois de tantos seculos, o nome de D. Affonso Henriques é ainda pronunciado com respeito pelo povo portuguez, reconhecido á memoria do soberano que, a despeito de adversarios tão poderosos, fundou a independencia de Portugal. «Sem a menor sombra de vaidade nacional, diz o sr. Alexandre Herculano, parece-nos ser licito dizer, que o esforço e constancia dos portuguezes e do seu principe n'esta conjunctura é um dos mais bellos exemplos d'aquella energia moral, de que tão rica era a idade media, e a troco da qual a Europa moderna tem ido comprando a brandura do trato entre os homens, e os commodos da civilisação.[4] VII A MONARCHIA A historia da fundação da monarchia portugueza está concluida. D. Affonso VII reconheceu a qualidade real na pessoa do primo. O papa Lucio II aceitou o feudo da terra portugueza para a Santa Sé, e Alexandre III sagrou a realeza de D. Affonso Henriques em nome de Deus, de cujo poder os jurisconsultos e theologos derivavam então directamente toda a especie de auctoridade. Esta empreza de separar da monarchia de Leão e de Castella o novo reino de Portugal póde dizer-se, que foi um dos feitos mais extraordinarios do seculo XII, não só em relação ao poder e esforço dos dois imperadores que successivamente occuparam o throno hespanhol, mas principalmente pelo modo com que se houve em tão delicado assumpto o conde D. Henrique, e depois d'elle a sua energica viuva, e seu corajoso filho. A rapidez com que em menos de meio seculo surgiu a nacionalidade portugueza, dotada de attributos e qualidades que logo separaram, e distinguiram os portuguezes dos gallegos e dos leonezes, a dexteridade com que a viuva e o filho do conde borgonhez souberam vencer todos os obstaculos, e fazer com que insensivelmente fossem legitimadas pelos proprios adversarios as pretensões mais contrarias aos direitos da corôa de Leão, e finalmente a coragem com que lutaram nos campos de batalha contra a rainha D. Urraca e contra seu filho, são na verdade admiraveis, mesmo attribuindo ás discordias de Affonso de Aragão e de sua mulher a facilidade venturosa, com que tão ousados commettimentos se executaram! Todavia a malicia de D. Henrique, a flexibilidade astuciosa e a energia de D. Tareja, e o animo ousado de D. Affonso Henriques valeriam pouco--já o dissemos--se n'aquellas lutas entre os soberanos christãos de Hespanha, os portuguezes se decidissem parte em favor de uns, e parte em favor de outros. Felizmente o desejo da independencia nacional não só abafou qualquer outro sentimento de parcialidade, mas até resistiu aos rogos, convites e promessas, com que de certo amiudadas vezes tentaria a rainha D. Urraca, seu segundo marido rei de Aragão ou o principe Affonso Raymundes de Galliza, attrahir á sua causa os barões e prelados portuguezes, senão o proprio povo. Não queremos diminuir de modo algum a gloria dos principes, em cujo nome se lançaram as bases da independencia de Portugal. Oxalá que podessemos honrar sempre a memoria de todos os principes, como nos é grato faze-lo ácerca dos fundadores da nossa nacionalidade! Ganharia com isso o principio monarchico a que temos affeição. Mas n'este caso fôra injustiça negar que, sem a constancia e lealdade dos portuguezes, a causa da nossa liberdade não chegaria a obter tão assinalado triumpho. Os nossos progenitores quizeram que esta terra fosse independente do rei de Leão, e perseveraram n'esse pensamento apesar de grandes contrariedades e revezes. Seguiram o conde D. Henrique no começo d'esta nobre tentativa, e foram sempre dedicados e leaes áquelle principe, á sua mulher, e a seu filho. A rudeza dos tempos, o desenvolvimento das paixões, e a barbaridade dos costumes, tornavam então raros estes exemplos que hoje poderiam ser resultado de simples bom senso, quando o não fossem de grandes virtudes politicas. Os barões portuguezes do duodecimo seculo não eram melhores do que os demais senhores christãos de Hespanha ou dos outros paizes, mas nas discordias civis, com que frequentes vezes ensanguentaram a terra portugueza, o principio da independencia nacional nunca deixou de ser acatado por todas as parcialidades. Esse era então o alvo das cogitações geraes, o enlevo de todos os animos, e o incentivo dos feitos mais generosos. Honra a esses nobres senhores pelo que praticaram em beneficio da patria, e pelo virtuoso exemplo que deram! Os prelados portuguezes tambem contribuiram para amparar a nossa nacionalidade nascente, e para facilitar a realisação da independencia nacional. Pelas mãos d'elles desceram sobre o primeiro rei portuguez as bençãos do ceo; e a mediação dos prelados, evitando combates sanguinolentos, e concertando pazes entre os belligerantes, desviou grandes males, e fez ao novo reino assignalados serviços. O povo esse deu vida e fazenda, como dá sempre generosamente para sustentar as causas que tem por nacionaes. Na fronteira do norte combateu contra leonezes e gallegos; no sul pelejou contra os arabes, e ás vezes no regresso á sua pobre casa já a não encontrou, que lh'a tinham destruido os inimigos com alguma das continuas correrias, em que levavam a ferro e fogo as povoações pacificas e inermes. Outras vezes, onde cuidava refazer-se das fadigas e gastos da guerra, teve que abandonar o pouco, que lhe restára, á cubiçosa exigencia do senhor feudal. E assim mesmo nunca descreu da possibilidade da independencia, nem faltou ao principe com o auxilio do seu braço! Em todos os tempos, e em todas as circumstancias o povo portuguez foi sempre o mesmo! Nunca este bom povo attentou na quantidade dos adversarios, nem hesitou perante o poder d'elles! Era modelo de virtudes civicas ha sete seculos. Ainda hoje o é. Indomavel na guerra, era na paz de condição branda e submissa, de direcção facil, e de fidelidade heroica em ambos os casos. É o mesmo agora. A nossa independencia foi obra da cooperação unanime de todos os portuguezes. Felicitemo-nos d'esta admiravel concordia, e reconheçamos no começo da nossa existencia politica os effeitos de um vigor popular, que a historia não teve de mencionar com frequencia ácerca de outros povos. A virilidade nacional era já tão forte na precoce juventude d'este povo, que mais impellia do que acompanhava os principes que a conjuncção dos tempos preparára para chefes da nação. Á fundação da monarchia seguiram-se guerras incessantes com os infieis, dessidencias com Castella, alterações civis de grande momento entre os primeiros do reino, alguns governos fracos, e muitas occasiões de engrandecimento e de gloria seguidas de tristes desastres e de funestos azares, dos quaes alguns pertencem á nossa idade. A força dos animos populares conservou-se intacta. Os portuguezes mostraram-se no Bussaco, na Roliça e no Vimeiro, como outr'ora em Montes Claros, em Aljubarrota, e em Val de Vez ou em Ourique. O progresso social melhorou os nossos costumes, e alterou o modo da nossa existencia, mas não enfraqueceu o caracter nacional, que já tinha resistido a outras transformações anteriores. A civilisação não pára no seu fecundo e incessante trabalho, porém onde encontra uma nacionalidade forte, respeita-a, e sabe emprega-la utilmente. As nacionalidades que não vivem da energia do caracter popular ou que não souberam remoçar-se a tempo, caminham para a morte. As outras não, porque volveram a ser jovens, e começam agora a viver de novo. Aquellas dissolvem-se de podridão, e corrompem as outras. Estas são instrumentos de progresso, e como elementos da harmonia universal contribuem para o complemento dos fins da creação. Sejamos nós assim. Entremos na confraternidade universal dos povos, mas não queimemos por isso a nossa boa casa, porque em nenhuma outra estaremos tanto á vontade como n'esta que nossos passados fizeram, amassando com o proprio sangue o barro de que lhe levantaram os muros. Amemos os hespanhoes. São nossos irmãos, mas juremos a nós mesmos ficar portuguezes, como no-lo estão pedindo a honra e o interesse. Vergonha seria que n'este reino fossem mais patriotas os principes do que o povo, e que ninguem sentisse nas veias o sangue dos barões e homens de armas de D. Affonso I. Do fundo do seu tumulo de Santa Cruz, estão os ossos venerandos do nosso primeiro rei animando os portuguezes a sustentar a nobre empreza, em que elle lidou até á morte, e pela qual tantos milhares de filhos d'esta terra tem perecido heroicamente. Quem ousaria renunciar a esta herança gloriosissima? Ninguem. A nossa nacionalidade tem poderosas rasões de existencia, e não póde depender, senão momentaneamente, do capricho de um conquistador ou das combinações de um estadista. Nenhum d'elles poderá contra este reino mais do que em favor nosso ha de valer sempre o caracter firme do povo, o desenvolvimento da civilisação, e a seriedade circumspecta do nosso procedimento politico. Esses dotes são os alliados mais fieis e poderosos do povo portuguez. Com elles, e só com elles, se salvou nas crises difficeis. D'elles depende tambem no presente e no futuro. Se por qualquer circumstancia infeliz vierem a faltar-nos essas qualidades na hora do perigo, ainda encontraremos na herança paterna um dever glorioso: Acabar com honra, escrevendo com o nosso sangue a derradeira pagina da historia portugueza. INDICE Dedicatoria Palavras necessarias Introducção--I O reino de Leão--II A terra portucalense--III O conde borgonhez--IV Governo de D. Tareja--V D. Affonso Henriques--VI A monarchia--VII * * * * * NOTAS [1] Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque morto de bala na batalha de Torres Vedras nos fins do anno de 1846. [2] Autor de um poema intitulado _Viriato Tragico_. [3] Este dito do marquez de Pombal é citado pelo sr. Rebello da Silva em um excelente artigo publicado na Epocha e intitulado _A ultima corrida de toiros em Salvaterra_. [4] Hist. de Port. tom. I liv. II pag. 306. NOTAS DE TRANSCRIÇÃO [NT] No original o autor colocou o nome de Fernando onde deveria estar Affonso *** End of this LibraryBlog Digital Book "A fundação da monarchia portugueza - narração anti-iberica" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.