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Title: Ramalho Ortigão
Author: Arantes, Hemeterio
Language: Portuguese
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                            HEMETERIO ARANTES

                             Ramalho Ortigão



                                  1915
                            LIVRARIA FERREIRA
                        FERREIRA LDA. --EDITORES
                     _132-138, Rua do Ouro, 132-138_
                                 LISBOA



RAMALHO ORTIGÃO



DO MESMO AUCTOR

_Livro de Maria_ (versos)--_1898_

_Frei Agostinho da Cruz_--_1909_

A PUBLICAR

_Mundo de Christo_

(Pessôas e Casos)



HEMETERIO ARANTES

Ramalho Ortigão



1915
LIVRARIA FERREIRA
FERREIRA LDA.--EDITORES
_132-138, Rua do Ouro, 132-138_
LISBOA



Imprensa Libanio da Silva, Travessa do Fala-Só, 24--Lisboa



A dois dos «Vencidos da Vida»

Os Senhores

Conselheiro Antonio Candido

e

Conde de Sabugosa



                                                    SENHORES:

A Vós, meus senhores e amigos, que sois, com o grande poeta Guerra
Junqueiro e o illustre diplomata Marquez de Soveral, os derradeiros
sobreviventes d'uma selecta companhia de homens-de-lettras e
homens-do-mundo: é a Vós que eu me permitto offerecer este palido e leve
estudo--ephemero artigo de indole folhetinesca--sobre determinada feição
da personalidade litteraria de um dos Vossos.

Eu creio que ninguem, melhor do que Vós, avaliará o intuito admirativo e
piedoso d'estas paginas de critica facil em que a exegese subjectiva
quasi que completamente desappareceu para dar logar á palpação material
ao _facto_ litterario que mal encobre, na maioria dos casos, a genese
espiritual d'onde provém.

Ramalho Ortigão foi bem e em verdade um preclaro representante da sua
epocha mental; Vós, seus socios de Escóla e companheiros das veladas
celebres, no aristocratico _Braganza_ e na democratica _Perna-de-Pau_,
ao lerdes este escripto, regressareis momentaneamente a essa já
affastada quadra, em que o _espirito_ esfusiou na troca de
pontos-de-vista sobre as questões mais variadas e mais complexas que
commoviam, então, a humanidade pensante. E, depois da visita
retrospectiva a esse tempo saudoso, demorareis a vossa attenção, liberta
de qualquer facciosismo, no quadro que nos offerece o Portugal de hoje
e... concluireis.

A theoria da «Arte pela Arte», onde a vossa Escola entroncava, conduzia
o artista em geral, e muito particularmente o homem-de-lettras, á
inteira despreoccupação do significado moral da sua obra e das
consequencias que d'ella resultariam para a vida pratica. Ia-se mais
longe: essa vida pratica inspirava o maior dos despresos e tanto que,
para muitos, elle chegou a ser formulado no seguinte paradoxo--o
pensamento jamais poderá influir na vida pratica!

«O unico dever do philosopho, do poeta, do auctor dramatico e do
romancista--diz-nos T. de Wyzewa, n'um estudo sobre o _Disciple_--era
procurar exprimir plenamente as suas ideias, os seus sentimentos, os
resultados da sua observação ou da sua phantasia sem se preoccupar com
os vãos e estupidos lamentos do cego rebanho dos «moralistas» de
qualquer proveniencia e feitio».

A grande massa dos leitores portuguezes dos livros de Oliveira Martins,
dos romances de Eça e das _Farpas_ de Ramalho não tinha a preparação
sufficiente para distinguir um _processo artistico_ nas malhas tecidas
com oiro d'aquelles trechos lapidares. Direi mais: a maioria dos
leitores dos romances de Eça perdia o fio da efabulação, levada,
attrahida como que n'uma suggestão hypnotica pelo pormenor picante que
lhe passava, nos lombos, um arrepio delicioso...

Quem viu na _Reliquia_, por exemplo, o castigo da hypocrisia e a
rehabilitação do hypocrita quando se decidiu a trabalhar e a pôr de
banda a mentira?

E, sem contestação, se não fosse este tenue veiosinho doutrinario (e, é
claro, aquelle assombroso _sonho_ palestiniano, inspirado, talvez, na
vulgarisação d'um evangelho apocrypho por Petruccelli della Gattina) o
que ficaria d'essa colossal _Reliquia_ senão o monumento mais
monstruoso, mais gratuito e mais perversamente levantado, pelo genio, á
indignidade das lettras?

De fórma que esses livros, peccando pelo que em si continham de
pernicioso, lançados para um _meio_ que não sabia dar-lhes o desconto
das demasias, duplamente eram perigosos.

Pois padece duvida que a concepção dos nossos deveres e direitos nos
advém das emoções estheticas ou intellectuaes que os Mestres verteram
com subtileza e tacto, atravez das suas obras, no nosso espirito ávido
de luz?!

E não é certo que essas emoções serão tanto mais fortes e duradouras
quanto mais bello e paramentado de atavios seja o seu fautor?!

Da obra hegemonica (e chamo-lhe assim porque a obra-de-regresso é
pequena e tardia) d'estes tres grandes vultos litterarios, a de Ramalho,
sendo talvez aquella que mais influencia teve por--pela sua indole e
facilidade de acquisição--penetrar n'um maior ambito de ledores, em todo
o caso, é a que menos presta o flanco ás tremendas responsabilidades de
ter fomentado este estado de espirito e de factos que caracterisa a
Actualidade Portugueza.

O Sr. Dr. Ricardo Jorge, n'um, como todos os que da sua penna diamantina
saem, estudo magistral ultimamente publicado sobre o illustre morto,
diz-nos:

«Ramalho, o censor, alía n'uma congruencia equilibrada o cosmopolitismo
ao congenialismo; domina-o o instincto racial e topico...», profunda
observação, d'um analysta consumado, que explica muitas das
passagens, se não todo o recheio d'este desataviado escripto, que a
Vós, meus senhores e amigos, dedico, porque de Ramalho fostes socios e
companheiros, esperando que, ao lêl-o, n'elle reconheçaes (como para si
desejava Louis Blanc) o _accento d'uma voz sincera e as palpitações d'um
coração sedento de justiça_.


1915, 2 de Des.º

                                                                    _H._



            «_As Farpas eram iconoclastas: vinham para desmantelar os
            bustos olympicos, deviam deixar aos S. Paulos o cuidado
            de plantar as cruzes.»_

                EÇA DE QUEIROZ (_Carta-biographia de Ramalho Ortigão_).

A morte de José Duarte Ramalho Ortigão, um dos ultimos sobreviventes
d'uma grande geração de espiritos altos, suscitou um movimento quasi
unanime de sympathia, de piedade, de saudade e de admiração (que é
consolador enaltecer e util conservar de memoria) por esse glorioso
escriptor e por esse grande homem de bem.

Quando, em 1878, Eça de Queiroz escrevia, de Newcastle, a Joaquim de
Araujo, aquella tão conhecida e tão citada carta, que constitue a
biographia do espirito de Ramalho Ortigão, essa biographia ficou
definitivamente feita; tudo o mais que se lhe accrescente--e bastante se
tem escripto--não passa, em ultima analyse, de sabias e eruditas
variações sobre aquelle _leit motif_.

De modo que todos esses artigos, alguns celebres, servem mais para
determinar o estado-d'alma dos seus auctores--o que é convenientissimo
para a historia litteraria--do que propriamente para subsidiar a obra e
os intuitos do auctor das _Farpas_ e da _Hollanda_. O que Eça de
Queiroz, com a percuciente e genial agudeza do seu engenho, não podia,
ha 30 annos, determinar: era quaes fossem os motivos de ordem
intellectual e moral que haveriam de transformar o vibrante
pamphletario d'então, no corajoso, no desassombrado, no vibrante auctor
do _Rei D. Carlos, o Martyrisado_. E o que, talvez, elle ainda menos
podesse, era demarcar o caminho, a trajectoria que haveria de percorrer
um _espirito educado já fóra do catholicismo e do romantismo ou tendo-se
emancipado d'elles, reclamando-se exclusivamente da Revolução e para a
Revolução_ até talhar, para mortalha do seu despojo terreno, o habito
d'uma ordem monastica!

Gloria a Deus por ter consentido que, no anno da Graça de 1915, me fosse
dado lêr na _Capital_ (28 de Setembro):

«Ramalho Ortigão é ainda uma figura a estudar e na mudança das suas
opiniões cumpre não ver causas e intuitos que lhe deprimam o caracter».

Julio Dantas, na _Illustração Portugueza_ (n.º 503 de 11 de Outubro)
escreve:

«... era a affirmação veemente d'um caracter cheio de elevação moral, de
nobre independencia e de orgulhoso desprendimento».

E Lopes de Mendonça, em nome da Academia das Sciencias de Lisboa,
pronuncia, sobre o caixão, que vae desapparecer para sempre, palavras
repassadas de sentimento:

«A sua vida de trabalhador honrado foi um exemplo e um estimulo...
Chegou-lhe a hora da paz imperturbada. Quando nos couber a vez de a
compartilharmos que seja tão serena, como a d'elle, a nossa consciencia.»

São testemunhos insuspeitos e por isso não é demais celebrar-lhes a
nobreza e a sinceridade, quando lhes seria mais commodo remetterem-se,
no capitulo da mudança de opiniões, a um discreto silencio ou
explical-a physiologicamente pela cachexia senil.

A lição a tirar dos trechos citados, e de muitos outros que seria
prolixo accumular, é a respeitosa, a enternecida unanimidade de
pareceres sobre a perfeita hombridade civica e moral de Ramalho Ortigão
até aos ultimos instantes da vida, porque, quando nos chegar a vez de
compartilharmos a paz imperturbada, que a nossa consciencia seja tão
serena como a d'elle!

Mas não foi só Ramalho que mudou de ideias, regressando a principios de
conservantismo; foram ainda outros que, tendo feito uma larga obra
resultante da emancipação do catholicismo e do romantismo, reclamando-se
exclusivamente da Revolução e para a Revolução, mudaram tambem.

Oliveira Martins: o demolidor formidavel do _Portugal Contemporaneo_ e
de tantos outros libellos que lançaram na alma da mocidade portugueza as
duvidas mais crueis sobre os nossos destinos como nação: baralhando,
anarchisando, com a magia incomparavel da sua penna de escriptor eximio,
as vagas ideias que nos tinham ministrado... Oliveira Martins, o
engrandecedor do poder real, o ministro da corôa mais consultado e
ouvido, quasi um cortezão, decididamente votado ao principio
conservador, demais a mais morrendo como catholico:

    Confessado e commungado
    Como a bom christão cumpria!...

Eça de Queiroz: o supremo Eça, o glorioso, o quasi divino Eça--o
Maior--aquelle que mais venenos propinou nas particulas
eucharisticas dos seus romances e dos demais escriptos! Eça, a esboçar
uma obra de rehabilitação moral, Eça conservador, catholico ou, como
tal, recebendo os sacramentos antes de deixar este mundo...

Fialho de Almeida: o tremendo fundibulario dos _Gatos_, o genial garoto
que fez da linguagem uma funda tosca de barbantes rijos com que atirava
calhaus mortiferos a toda a Ordem estabelecida... Fialho, volver-se um
dia, destemido campeão d'essa Ordem e enfileirar na primeira linha dos
poucos atiradores que ousavam combater o existente portuguez, erguido
sobre o montão de ruinas que elle tanto ajudara a cimentar...

      *      *      *      *      *

Como se operam estas transformações radicaes e, por assim dizer,
diametralmente oppostas na geometria das ideias e dos sentimentos?!

Para os espiritos-fortes, para aquelles a quem, por causas multiplas,
apraz ainda--e talvez definitivamente--cortejar o estado de coisas
derivado do encyclopedismo d'onde a Revolução proveio e do romantismo,
que se lhe seguiu e que ainda hoje preside aos destinos dos povos, sob a
fórma do parlamentarismo e do governo das maiorias, para esses espiritos
cegos, surdos e encerrados dentro do collete de forças do seu feroz
dogmatismo, duas theorias explicam estes retumbantes regressos, estas
conversões escandalosas aos principios conservadores em politica,
coincidindo, na maioria dos casos, com o regresso á ideia mistica e á
pratica cultual da religião.

São ellas, primeira: o fundo de misticismo atavico de que cada um de
nós é provido e que, podendo conservar-se latente por dilatados annos,
um dia, pelos motivos mais futeis ou mais interesseiros, desabrocha,
transformando o individuo, até ahi civilisado e dirigente, n'um ser
subalterno, inferior, n'um sem-valia quando não n'um mistificador. A
segunda, a theoria preagonica, que vem a ser: a influencia terrorista
exercida pelo tumulo (com a ajuda de suggestões familiares...) em
individuos enfraquecidos por a idade ou por achaques e que, _à tout
hasard_, tratam de se pôr de bem com o Eterno e com o prior da sua
freguesia, não vá o diabo colhel-os de surpresa...

Claramente: Pasteur, de Quatrefages, o Pe. Secchi, Claude Bernard,
que gastaram a vida a perscrutar os mysterios da sciencia na
microbiologia, na paleontologia, na astronomia, na phisiologia, estavam
inquinados do virus que lhes viera do berço.

A cohorte formidanda d'aquelles que, todos os dias, se convertem ao
principio conservador e religioso, e que em França constitue o melhor da
sua intellectualidade, essa indubitavelmente foi picada pelo microbio
tumular do medo...

Quando Balzac--o mestre incontestado do romance naturalista
moderno--gravou na primeira pagina da _Comedia Humana_: «J'écris à la
lumière de deux verités éternelles, la Monarchie et la Réligion»,
alguem, d'entre os livres-pensadores hodiernos, terá sombra de duvida em
o declarar atacado, damnado por essa dupla phobia que perennemente se
exhala do berço e que a tumba perennemente exhala?!

Mas estas duas theorias--chamemos-lhe, já agora, microbianas--parecem-me
inconsequentes se observarmos o movimento intellectual que vae na
esteira dos grandes convertidos e que se accentúa, d'um modo patente,
nas escholas de direito, nas de medicina, nas de lettras, nas de
sciencias sociaes... O individuo isolado desdobra-se em legião,
transforma-se em grey, escreve um evangelho, fórma um corpo de doutrina.
Ora, a doutrina não tem berço d'onde se desprendam miasmas herdados e
não tem coval d'onde se ergam espectros terroristas do Além...

Inconsequentes, ainda, se attentarmos em que o fundo de misticismo
atavico religioso apenas se accentuou, com incremento que em cada dia
augmenta, ha uma duzia de annos. Então, as influencias misticas do berço
e as influencias preagonicas não incidiam (se não por excepção) sobre os
individuos de 1890, por exemplo, e determinam reviravoltas subitas e
ruidosas nos individuos de então para cá?!

Porquê?

Entre nós, estes phenomenos mais ou menos retumbantes, mais ou menos
silenciosos, de regresso ao conservantismo politico e religioso, toma um
caracter de particular importancia digna de estudo e, quer-me parecer,
de limpidas conclusões.

Os espiritos que mais influiram sobre a mentalidade portugueza das
ultimas decadas--os nossos super-homens--foram: Anthero, Camillo,
Theophilo, Junqueiro, Oliveira Martins, Eça, Ramalho, Fialho, a quem,
ainda poderemos juntar, embora a sua acção fosse menos profunda por agir
sobre um publico mais restricto, mais especialisado, José Pereira
Sampaio (_Bruno_), Basilio Telles, Antonio Candido.

D'estes tres ultimos, direi, summariamente, que Bruno, depois de exercer
uma acção mediadora, de grande nobresa e isenção no regimen de que
fôra um dos corifeus mais cotados, se entregou a um mutismo descoroçoado
de desilludido, de incomprehendido...; que Basilio Telles, chamado a
collaborar pessoalmente nos successivos governos que a sua acção de
publicista illustre ajudou a collocar da Arcada do Terreiro do Paço, se
limita a escrever uma carta de recusa e a deixar-se quieto na sua
thebaida portuense...; e que Antonio Candido, depois de enriquecer com o
mais prodigioso verbo--que jamais ouvidos de Portugal ouviram--todas as
tribunas onde a eloquencia alta pode ter assento, se recolheu ao
eloquente silencio dos vencidos... na torre-de-marfim dos seus affectos
e das suas recordações.

Dividamos os restantes em dois grupos. No primeiro--o dos poetas e
phantasistas--collocaremos Anthero, Junqueiro, Camillo, Theophilo; no
segundo--o dos propriamente criticos--Oliveira Martins, Eça, Ramalho,
Fialho.

Propositadamente, colloquei o Snr. Dr. Theophilo Braga entre os poetas e
phantasistas, porque, embora a sua obra poetica seja menos conhecida que
os seus trabalhos de construcção historica, é certo que o fundo
impulsivo de sensibilidade do vate e do phantasista transparece, como o
azeite, á tona de toda a sua obra de racionalismo e de critica atravez
da copiosa collecção dos seus escriptos do polygrapho eminente.

O Snr. Guerra Junqueiro, depois que escreveu _A Patria_, penso que não
póde, com direito, infileirar entre os profissionaes da observação e da
dedução critica. Fica, e esta gloria lhe bastará, um dos mais
extraordinarios poetas de que Portugal se possa orgulhar.

Qualquer dos dois permanece, e bem, no seu posto das avançadas
romanticas da politica e no soberbo affastamento das religiões. Não
foram inoculados nem pelos microbios que saem do berço nem por aquelles
que o medo da outra vida labora nas tumbas.

De Camillo, o mais assombroso dos romancistas portuguezes e aquelle que,
com Castilho, possuiu o mais surprehendente vocabulario de que ha
memoria, de Camillo--o Principe--ninguem, com propriedade, poderá dizer
que fosse, nos dominios da Sociologia, mais do que um insigne
_dilletante_. Creio mesmo que nunca curou de politica ou, se o fez, foi
incidentemente e sem consequencias de maior para os leitores da sua obra.

Quanto a Anthero, a sua acção combativa, e portanto critica no ambito da
materialidade das ideias, vae-se diluindo, diluindo até encarnar
soberanamente nas roupagens hieraticas da Ideia-pura dos seus sonetos...
sem parceiros.

Camillo e Anthero mataram-se, levando, para o Além, o segredo não
devassado dos seus ideaes politico-religiosos.

Restam-nos os quatro mestres cujo influxo mais vibrantemente foi
decisivo para as successivas gerações que lhes libaram o ensinamento.

Oliveira Martins, Eça, Ramalho, Fialho, todos e cada um foram bem por
excellencia os espiritos mais desanuviados de poeiras sentimentaes, que
embotam de qualquer modo a subtilesa do tacto e empanam a transparencia
das lentes de que carece o investigador da vida social para poder
escalpelál-a com segurança e justeza.

Sob este ponto de vista de ausencia sentimental, foram perfeitos,
foram impassiveis, foram observadores estremes e, por isso mesmo, a sua
conversão aos principios conservadores tem summa importancia. Ella ajuda
a firmar, com exemplos de tão incontestada, de tão preclara grandesa, a
theoria do «_regresso ao tradicionalismo por meio do positivismo_».

      *      *      *      *      *

Esta theoria deriva, sobretudo, da attitude que um dos maiores
espiritos--orgulho da França e da Humanidade--tomou depois de assistir
aos desmandos da Communa que assolou Paris apoz a guerra
franco-prussiana de 1870.

Escusado seria dizer que se trata do philosopho positivista Hypolito Taine.

Este cataclysmo sem nome, que a grande cidade soffreu, levou o insigne
philosopho dos _Ensaios de critica e de Historia_ e da _Historia da
Litteratura Inglesa_ a construir a sua obra monumental: _As Origens da
França Contemporanea_.

Esta serie de volumes, que é o libello accusatorio mais extraordinario,
mais vehemente e mais irrespondivel contra o espirito jacobino de 1789 e
ao mesmo tempo, portanto, o mais eloquente padrão levantado ás ideias
conservadoras, advém, segundo a limpida expressão de Bourget, da
_attitude mental d'um positivista apoiada sobre factos_.

É preciso dizer que Taine morreu sem se ter convertido, ao menos
ostensivamente, nem aos principios monarchicos nem aos religiosos.

Taine, ainda muito novo, quando escreve, chama aos seus escriptos:
«as minhas experiencias»--é um positivista de cérebro e coração seguro e
sincero; tambem as _Origens_ foram o inicio d'um nunca-acabar de
publicações, livros, monographias, artigos de jornal e de revista,
reveladores d'uma erudição cuidada bebida nos mais seguros documentos,
que jaziam empoeirados nos archivos publicos e particulares e que
formam, hoje, um corpo de doutrina que refaz inteiramente aquellas
velhas noções que, ha 30 annos atraz, nos ministraram sobre a grande
Revolução e os seus homens.

As _Origens_ e as publicações que na sua esteira viram a luz
atravessaram, naturalmente, os Pyrineus e chegaram a este quadrilatero
occidental. Encontraram-nos ainda aturdidos com a oratoria de Mirabeau e
a do Snr. Dr. Sebastião de Magalhães Lima que, com poucas duzias de
vocabulos contanto que entre elles se escalonem: a liberdade, Danton, a
igualdade, a soberania popular, o supremo architecto, os reis esfolando
o povo e mais coisas semilhantes, é capaz de fazer um discurso de duas
horas cheio de eloquencia e de vacuidade.

E os positivistas de cá principiaram tambem a fazer as _suas
experiencias_ e verificaram, com espanto, que nós ainda não tinhamos uma
communa, mas que agigantadamente caminhavamos para ella e
que--horror!--eram elles com os seus excepcionaes talentos, com os seus
maravilhosos livros, com os seus artigos de mestre, quem mais concorrera
para a anarchia das ideias e para o quietismo n'essa anarchia, onda de
lama que subverteria tudo, sob a formula, propheticamente visionada por
Eça, da _balburdia sanguinolenta_...

Os poetas e os phantasistas não tiveram consciencia nitida das suas
responsabilidades, quiçá não viram a caverna temerosa que ajudaram a
abrir, talvez que ainda a não vejam; mas elles, sim, que estavam
acostumados a palpar a vida friamente, impassivelmente, como cirurgiões
de sentimentalidade embotada e fizeram alto.

E, como se tratasse de gente de escól, esses quatro homens não se
limitaram a parar, regressaram..., cada um d'elles obedecendo á
_attitude mental d'um positivista apoiada sobre factos_. Regressaram ao
_tradicionalismo_ pela via do _positivismo_.

      *      *      *      *      *

É rematadamente paradoxal a theoria bastas vezes preconisada, e agora a
proposito de Ramalho Ortigão novamente posta a lume, de que é preciso
que _um homem superior morra como viveu para credito do seu nome e honra
da sua memoria_; porque, ideologicamente, collide com a evolução do
pensamento e porque, materialmente,

    _... quand l'homme change sans cesse,_

se torna difficilimo, senão impossivel, assentar qual o momento preciso
da vida em que o seu modo de pensar e agir seja a expressão definitiva
que traga para o seu nome e para a sua memoria as devocinaes e
_unanimes_ consagrações do credito e da honra.

Assim, Victor Hugo, por exemplo deveria viver a sua longa vida a cantar
_L'Enfant du Miracle_ e as _Vierges de Verdun_ ou seria mais consentaneo
com a sua dignidade jaser inhumado nos arminhos de Par de França da
Monarchia de Julho?! Certamente que a phase republicanissima
d'aquelle grande espirito é a que mais convém...

E, em todo o caso, nem os partidarios da realesa do Conde de Chambord
nem os da monarchia orleanista pensaram da mesma fórma.

De igual modo, Ramalho Ortigão não perdeu o credito do seu nome e a
honra da sua memoria por ter evolucionado no sentido conservador
politico e religioso.

Antes, como bom positivista, de bem equilibrado espirito, de mente sã em
corpo são, de caracter diamantino e avesso a ambições que lhe podessem
empecer os movimentos de homem livre e forte, a sua attitude tem um
significado inilludivel e reveste-se d'uma grandeza que aureóla de
luminosos nimbos o seu nome e a sua memoria.

Elle lá tinha o summo-sacerdote da sua egreja philosofica--esse austero
Comte--a ensinar-lhe o caminho, quando expressamente se refere á
disciplina moral que á humanidade advém da doutrina catholico-romana e,
por decerto, relendo o volume que, no _Regime Moderne_, Taine consagra á
Egreja, o seu espirito amadurecido e adextrado na algebra das ideias
reconheceria a força constructiva da Unidade Catholica (perante o vacuo
que o seu desapparecimento causaria) nas palavras d'esse philosopho, que
todos os seus biographos dão como um dos mestres do seu espirito:

«Nem a razão philosophica, nem a cultura artistica e litteraria, nem
mesmo a honra feudal militar e cavalheiresca, nenhum codigo, nenhuma
administração, nenhum governo são capazes de substituil-a n'esse serviço.»

O futuro biographo de Ramalho Ortigão terá, no entanto, de responder
a algumas perguntas--indispensaveis respostas para o integro
conhecimento do espirito d'este illustre morto--que não deixarão de
levantar-se-lhe ao compulsar a sua obra de escriptor e de homem.

Occorrer-lhe-ha: se a sua conversão ás ideias conservadoras em materia
politica e religiosa representa uma verdadeira apostasia ou será antes
um regresso não tanto ás ideias alheias como ás suas proprias?!

Occorrer-lhe-ha: se a obra demolidora das _Farpas_ foi bem comprehendida
nos seus intuitos ou, antes, se os leitores ingenuos não tomaram sempre
como verdades eternas o que, no fundo, não passava d'um processo
superficial que propositadamente apouca ou desmesuradamente amplia os
assumptos versados, contanto que o espirito, a _verve_, a ironia, o
_humour_, espirrassem de cada pagina; n'uma palavra, se as _Farpas_
foram lidas (como, aliás, o seu auctor entendia) como obra de espirito
_que faz ver os objectos, critical-os, fóra das correlações geraes, d'um
modo imprevisto, disforme e comico_...

Occorrer-lhe-ha: se a transformação das ideias do insigne escriptor é
phenomeno de fresca data--com o advento do Snr. Conselheiro João Franco
aos conselhos da corôa, como muita gente pensa--ou se já se vem operando
de longe, lentamente, com segurança e criterio justo...

Compenetrado da obrigação moral de responder a estas questões, ao futuro
biographo, se leu a obra do seu biographado _dentro das correlações
geraes_, grandes surpresas se lhe levantarão.

E, como preparo, como viatico fortificante para esta viagem de historia
e de critica, embeber-se-ha nas paginas augustas da já, e nunca
assaz, citada carta do Eça-de-1878 e, ahi, verá as tendencias iniciaes
de Ramalho Ortigão, antes da publicação das _Farpas_.

Paris, «o Paris do _chic_, das _cocottes_, das operetas, dos
_boursiers_, dos _jockeys_, das dansarinas e dos pequenos tyrannos
deixara-lhe nos olhos e no espirito um grande deslumbramento: se lá se
estivesse estabelecido então, teria escripto, com fervor, no _Figaro_;
teria ido todas as tardes ao _Bois_ curvar o espinhaço diante da libré
verde e oiro do personagem taciturno e caquetico que então dominava o
mundo... Em Portugal... dizia-se conservador... detestava a Democracia
porque lhe supunha caspa... e se não era inteiramente devoto, achava a
religião um accessorio indispensavel ao homem bem educado; e preferiria
decerto ter escripto a _Familia Benoiton_ a ter composto os _Lusiadas_.»

Urge não esquecer que estas truncadas linhas são da penna de Eça,
aquelle, d'entre os escriptores portuguezes, para quem o _termo_ tinha,
dentro da _sua arte_, uma significação propria, insubstituivel e que
elle não sacrificava nem ao talhe aristocratico do periodo nem á phonia
de tão grandes effeitos da sua prosa: _aquella extraordinaria geração
vinda parte de Coimbra, parte de aqui, parte de acolá_, propunha-se,
antes de mais nada, para a propugnação das novas ideias, acabar com a
rethorica. D'ellas, das palavras transcriptas, pode, portanto,
concluir-se que Ramalho Ortigão quando abandonou o Porto e veio para
Lisbôa (e já não era nenhuma creança) tinha grandes predilecções pelo
exhibionismo dourado do 2.º imperio, representado na sumptuaria elegante
e custosa de que era symbolo magnifico a volta consuetudinaria _autour
du lac_; que se dizia conservador em politica detestando a
democracia; que, em materia religiosa, não sendo _inteiramente_ devoto,
estava por isso mesmo longe de ser _inteiramente_ o contrario; e,
finalmente, que em litteratura preferia o leve modelo parisiense a toda
a obra dos mestres até então consagrados... Permanecia, no entanto, um
escriptor de «estylo vernaculo, quinhentista, arcaico, obsoleto:
exprimia as suas preferencias de _boulevard_ na linguagem de Bernardes...»

O estylo é o homem. Tal era Ramalho Ortigão pela volta dos 32 annos.

As _Farpas_ deveriam apparecer 3 annos mais tarde; mas antes d'esse
apparecimento, Eça de Queiroz já entrevia na _Visita de Pesames_ (das
«Historias Côr de Rosa») _o realista, o caricaturista, com os processos
quasi scientificos do escárneo_.

Vieram as _Farpas_. Como?! «O grande successo da Lanterna _tendo posto á
moda, como systema, o riso de opposição_ deu, talvez, origem ás _Farpas_.»

Temos d'este modo, pelo auctorisado testemunho do collaborador emerito e
do melhor amigo de Ramalho, a psycologia d'esses pamphletos de
retumbantes exitos e de immarcescivel graça, em que o bom-senso, o
bom-gosto e a visão certa das pessoas e das coisas teem uma parte
consideravel; mas cujo fundo é feito pelos processos _quasi scientificos
do escarneo_, mercê da _moda_ arvorando, _como systema, o riso de
opposição_.

A espessa ingenuidade (chamemos-lhe assim) talvez do maior numero dos
leitores d'esses fasciculos celebres não comprehendeu essa psycologia;
antes tomou á letra tudo quanto a inexhaurivel caudal de violenta ironia
lhes proporcionava... não vendo, muitissimas vezes, n'uma
palavra--adjectivo ou adverbio--a negação patente de toda aquella logica
de desenfastiado _dilletante_ cheio de saúde de corpo e alma.

Tomemos, ao acaso, aquella deliciosa _Carta ao Principe Snr. D. Carlos_,
escripta em 1883.

Quem d'ella se lembrar (e eu creio que quem alguma vez a leu jámais a
esquecerá) talvez se recorde de ter concluido que ao Senhor D. Carlos
proporcionaram seus Augustos Paes, com uma detestavel educação, uma
instrucção sob todos os pontos lamentosa: maus compendios, maus mestres,
processos atabalhoados, humanidades em demasia, syntheses biologicas e
chimicas postas de banda, todo o systema comteano feito n'um
frangalho... um pavor!

Cheguemos a 1908 e abramos o _Rei D. Carlos, O Martyrisado_:

«Foi elle que, em successivas viagens a nações extrangeiras, _pela
variedade dos seus conhecimentos e das suas ideias geraes, pela
facilidade em fallar as linguas, pelo envolvente encanto do seu trato_...»

«Foi elle de todos os poderes do Estado _o que mais se interessou pela
cultura e pelos progressos da sciencia moderna_.»

«_A especialisação scientifica_ é um dos seus titulos á consideração do
futuro...»

«_A sua obra de naturalista_... faz subida honra ao seu methodo
scientifico e _á gravidade dos seus estudos_...»

E ainda diz que El-Rei D. Carlos, com a sua contribuição scientifica,
concorre _com companheiros_ que se chamam Humbold, Darwin, Jussieu,
Agassiz, Geoffroy Saint-Hilaire.»

Estou d'aqui a ouvir estrondosamente saltar, da bocca de cada um dos
leitores, um argumento decisivo e pesado como cylindro de granito sobre
a miseranda pedra-britada de pareceres tão contradictorios, o qual vem a
ser que entre 1883 a 1908 decorre um quarto de seculo e que Ramalho
mudou de ideias, tendo-se feito cortezão.

Puro engano!

Volvamos a 1883. O Senhor D. Carlos vae partir para o extrangeiro e quem
o acompanha é Antonio Augusto de Aguiar.

Que esfusiar de ironias!

«É este homem que vae ser o real olheiro de Vossa Alteza... Um olheiro
de galochas de borracha na vista!; um olheiro que vae para ver tudo e
que a si mesmo se não viu nunca senão até metade do ventre porque da
outra metade até aos pés principia para o seu raio visual o hemispherio
do grande indecifravel, do eterno incognoscivel!»; e mais e muitos mais
epigrammas. Logo a seguir, porém, n'uma transição brusca:

«E todavia é possivel que o _veneravel sabio_ venha a abusar um pouco do
algebrismo technico da sciencia que tão _gloriosamente_ professa...»

Oh! Senhores! Pois se a familia real portugueza entregava o seu
primogenito aos cuidados d'um _veneravel_ e, demais a mais, _glorioso
sabio_ para o guiar n'essa viagem de estudo, especie de complemento aos
trabalhos theoricos de gabinete, que até então o tinham occupado, que
prova mais frisante do cuidadoso disvelo que presidiu á orientação
espiritual dada ao Principe herdeiro?!

É inutil dizer que Aguiar não era só um chimico illustre; era um homem
d'uma cultura superior em qualquer parte do mundo e nem mesmo lhe
faltava o apreço pelas formulas mundanas e até um leve sybaritismo que
tornava a sua convivencia encantadora e brilhante.

Ainda a escolha de tal homem, se nos lembrarmos de que collaborára na
_Democracia_ de José Elias e que precedera o Snr. Dr. Bernardino
Machado, e outros não menores liberaes, no grão-mestrado do
Grande-Oriente, responde, de irrefutavel maneira, á ironia das _Farpas_
no respeitante á educação acanhada e beata que (segundo ellas) era dada
ao Senhor D. Carlos, de modo a tornal-o uma espécie de _Rosière de
Nanterre_...

Mas, para o maior numero dos leitores não eram estas patentes
considerações que prevaleciam, mas as que antitheticamente ali se
expunham, _com os processos quasi scientificos do escarneo, com o
systematico riso de opposição_:

«Os pedagogos de V. A. educaram-o dentro da virtude, mas fóra da natureza.»

E esses leitores ficaram inteirados.

Pois esta especie de _satisfação justiceira_ feita pelo pamphletario á
sua propria consciencia de homem de bem, repete-se muitas e muitas vezes
ao longo das _Farpas_ e o futuro biographo, para quem estou garatujando
estas linhas subsidiarias, não deve perdel-a de vista, porque n'ella
encontrará o filão que o leve a concluir que a attitude de Ramalho, tão
retumbantemente posta a nú nos ultimos tempos, não só vinha de longa
data, como derivava d'uma tendencia espiritual de inicio, que foi
desviada pela leitura--talvez levemente diffusa--dos scientistas
modernos e pelo _meio_ em que a sua actividade lettrada se expandiu
durante um largo periodo.

Para esses leitores d'então, e que hoje andam na volta dos 50, elle
devia viver muito de mal com Deus, porque nas _Farpas_ andava de velha
rixa com os homens em geral e, em particular, com o sr. Antonio Maria de
Fontes Pereira de Mello e com o cabido da Sé. Deveria ser um homem
temeroso que--ou só ou de parceria com um tal Eça de Queiroz que se
encostava ás portas da Havaneza vestido de lagarto com um vidro entalado
n'um dos olhos--ria, chasqueava de tudo e de todos n'uma irreverencia de
demolição; esfarrapando, hoje, o _cache-nez_ do Snr. Duque d'Avila;
desfazendo, ámanhã, a maleta philosophica com que viajava S. M. o Senhor
D. Pedro de Alcantara; dizendo, no outro dia, as maiores barbaridades
sobre o sangue e manhas das pilecas que o Snr. Conde de Sobral mandava
correr no nosso Longchamps de Pedrouços; e hoje e ámanhã e sempre
fazendo gala d'umas ideias e d'umas _toilettes_ mirabolantes para a
sociedade d'então que se sentia escandalisada... mortalmente.

Nós não viamos mais.

      *      *      *      *      *

O Centenario de Camões, em 1880 (que o partido republicano soube
empolgar) encontra Ramalho Ortigão, pela acção effectiva que n'elle
desempenhou, no apogeu da sua gloria de demolição monarchico-religiosa;
quando duvidas houvesse lá está o prefacio da edição commemorativa dos
Luziadas, mandada fazer pelo Gabinete Portuguez de Leitura do Rio de
Janeiro e lá estão as _Farpas_ a attestál-o exhuberantemente.

Um revisteiro de habilidade levou para o palco, como _raisonneur_ da sua
_revista_, a figura saudavel, insolente de mascula compleição de
Ramalho, tal qual a tinhamos visto, de jaquetão e chapeu de côco, alto,
aprumado, impassivel, enorme--n'aquella memoravel tarde de maio,
gloriosa de sol, quando o cortejo camoneano serpenteava n'um halo
d'enthusiasmo pelas ruas de Lisboa--por entre a chusma negra das casacas
(que ao tempo ainda não eram tidas exclusivamente como traje de noite,
_evening dress_) dos caracteristicos e variegados capellos
universitarios, das auriluzentes fardas do exercito e do alto
funccionalismo.

Elle entrava, n'essa revista popular de theatrinho modesto, na figuração
do _Bom-Senso_.

A _revista_ teve um grande exito e não me custa a crer que,
momentaneamente, Ramalho se sentisse lisongeado dos applausos que, em
effigie, todas as noites lhe eram tributados pela massa soberana dos
espectadores.

Se, porém, attentarmos nas suas predilecções espirituaes, na sua
compreensão e exteriorisação do conforto e da elegancia, no aprumo da
sua pessoa e grave gentilesa das suas maneiras; se nos lembrarmos do seu
rebarbativo orgulho d'intellectual que tem por obrigação lêr tudo, saber
de tudo, com tudo entreter o publico, apoderar-se de todas as ideias,
observar todos os phenomenos sociaes, criticar todos os usos, sorrir de
todas as gerarchias humanas, escarnecer de todos os ridiculos e
ridicularisar todas as coisas; se nos compenetrarmos de que n'aquella,
já agora celebre, agua-furtada da C. dos Caetanos vivia e laborava um
homem de tão requintada sensibilidade espiritual e cuja philosophia
tinha, antes, accentuadas, decididas preferencias pela endumentaria
de Petronio e pela mesa de Lucullo, do que escopo na imitação das
celebradas frugalidades e abstenções de qualquer especie dos
_philosophos_, desde Socrates até ao Sñr. Theophilo Braga; então, não
será demasiado adeantar que a sua figuração no _Tutti-li-mundi_, com os
_bravos_ rascoeiros d'uma população anonyma e anodyna só momentaneamente
o poderia lisongear. A sua ideosyncrasia suggerir-lhe-hia, antes, um
vago desdem, quasi que um recondito incommodo, talvez a si proprio não
confessado, por essa consagração de rua e de palco que não podia
casar-se com o seu _grande-ar_ de futuro e proximo frequentador do
_drawing-room_ da Senhora D. Maria Kruz e dos bailes no palacio Palmella.

Dois annos volvidos, o centenario pombalino, esse francamente radical,
já o não encontra na brecha revolucionaria, ao menos, d'um tão ostensivo
modo. Bem pelo contrario. É por demais suggestivo o n.º 1 da 4.ª série
das _Farpas_, relativo a junho e julho de 1882. Esse fasciculo, de braço
dado com o _Perfil do Marquez de Pombal_, de Camillo, deixou a memoria
do ministro de D. José n'uma lastima.

A democracia portugueza entendeu apoderar-se do Marquez como lábaro de
aspirações sectarias, anti-clericaes, por ter expulsado os jesuitas e
decepado as cabeças d'uns tantos nobres--esquecida, a misera!, de que
elle substituira o favor até então disfructado pela Companhia de Jesus,
ás graças dispensadas aos Oratorianos e á Inquisição (a quem deu o
titulo de Magestade) e que os golpes vibrados aos membros da
aristocracia redundavam n'um accrescimo de absolutismo para o poder
real. Mas não é de Pombal que se trata, se não de Ramalho de 1882,
perante a consagração centenaria que as avançadas liberalengas da epoca
levaram a cabo com tanto enthusiasmo quanta inconsequencia.

Todo esse fasciculo das _Farpas_ é sobremodo notavel e presta-se a um
desenvolvido estudo. N'elle, se patenteiam flagrantemente todas as
qualidades e todos os senões do grande escriptor: a graça leve, a ironia
funda, a incerteza moral, laivos tedientos de cansaço, assomos
d'indignação, pontos de vista certos a espirrarem como faúlas brilhantes
d'entre a caligem paradoxal. Para de tudo haver, n'esse supremo
escripto, accentuadamente negativista, nem lhe fallece a nota
prophetica: «_Emquanto á estatua do reformador, em que se falla como
complemento do centenario, a cuja celebração acabamos de assistir, ella
seria, se a fizessem, o monumento funebre elevado á morte da democracia
ou á do senso-commum na sociedade portuguesa. Mas não a farão nunca. É
já demais a do Terreiro do Paço para consignar a estima d'este povo pelo
charlatanismo dos seus tyrannos_».

«Mas não a farão nunca!» Já lá vão 33 annos sobre o dito e, se se não
apressam, é natural que Ramalho tenha de subir á cathegoria de _propheta
maior_.

Chegados a 1883, a _Carta ao Principe_ é mais ainda um supremo adeus á
satyra virulenta do que a obra magnifica d'um espirito cheio de seiva e
alacridade, que joga explendidamente com as palavras e com os conceitos
para seu goso proprio.

Basta, n'ella, reler a passagem, sobre todas hilariante, que é a
historia do principe Paulo no primeiro dia do seu noivado. Está na
memoria de todos: as festas do consorcio principesco findaram «e o
commandante da companhia dos vivas, incumbido mediante a esportula
de 3$200 e jantar, de fazer de Povo nos dias de gala, havia terminado os
seus trabalhos; o rei, com sua natural affabilidade, havia-lhe dito
commovido, batendo-lhe no hombro e mettendo-lhe na mão os 3$200:
_Obrigado, meu Povo!_»

É, como resalta aos olhos menos habituados a vêr n'estes assumptos,
tremendamente demolidor; Offenbach nunca fez mais nem melhor: toda a
psycologia dos enthusiasmos populares, pelas alegrias e fastigio da
realeza, posta a nú n'uma dissecação anatomica perfeita...

Comtudo, o periodo não acaba ali; tem o leve berbicacho que segue; «e
elle (o commandante dos vivas), com o vozeirão restaurado por duas
gemadas, partira á pressa para ir levantar os vivas á Republica n'uma
manifestação de provincia para que estava escripturado.»

Gela-se, talvez, o sorriso satisfeito d'aquelles que celebraram a
primeira parte da oração, porque, se a logica lhes não fôr coisa omissa,
encontrarão, n'esta segunda parte, motivos de sobra para o conhecimento
da psycologia dos _meneurs de vivorio e de morrorio_ tão nossos
conhecidos...

É um leve bisturi, bem afiado, de dois gumes.

No verão de 1886 (se não estou em erro) em Cintra, na quinta do Relogio,
Ramalho dansa, n'um _cotillon_, com a Senhora Duqueza de Bragança.

Os _Vencidos da Vida_, com excepção talvez do Snr. Guerra Junqueiro, são
a nata da elegancia e do palacianismo; elle lá estava, no seu posto, ao
lado dos companheiros de luctas demolidoras Oliveira Martins e Eça de
Queiroz.

Em 1889, morrem o infante D. Augusto e o rei D. Luiz. As palavras
que concede ao primeiro são repassadas d'uma ternura tão recatada que
parecem escriptas no proposito de dizer á gente: Olhem que não fui eu
quem suggeriu e, menos, escreveu no _Album das Glorias_ (de que fui é
certo, collaborador momentaneo) aquella _charge_ tremendamente
agressiva: «Nasceu (e segue-se uma pagina de pontinhos) é infante e
general.»

Quanto ás paginas que dedica a D. Luiz, termina-as com as palavras da
biblia: «Ouvimos, porém, que os reis d'essa casa teem por si a
clemencia», dizendo que elle as merece _aos seus mais encarniçados
detractores_...

É que «o seculo XIX, chegado ao periodo senil do seu termo padece
(palavras de Ramalho) a apathica e sombria enfermidade de todas as
incertezas moraes.»

Foram a essas _incertezas moraes_ que tanto elle como os companheiros de
criterio positivista fugiram ou tentaram fugir, pelo regresso a ideias e
praticas que, n'um dado momento da vida--e, meu Deus, no momento em que
cabouqueiros do Ideal de mais força dispunham para edificar--negaram
inconsideradamente...

Mas o que é a Providencia!...

Os homens insignes, valentes Saúes, _que vinham para desmantelar os
bustos olympicos_, não deixaram a outros o cuidado de plantar as cruzes.

Elles proprios volveram-se Paulos, n'essa Estrada de Damasco que é feita
de _factos_, de observações, de experiencias e da sua respectiva historia.

Elles é que plantaram as cruzes.


13 de Novembro de 1915.





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